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Algumas considerações sobre a articulação


na flauta transversal

Por : Raul Costa d’Avila


Universidade Federal de Pelotas
PPGMUS – UFBa / 2007
Tirocínio Docente
costadavila@gmail.com
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTICULAÇÃO NA FLAUTA TRANSVERSAL Raul Costa d’Avila / UFPEL

SUMÁRIO

1. Expressividade e analogias à linguagem falada ____________________ 3


2. Conceitos e a língua como meio ___________________________________ 6
3. Observação do processo ___________________________________________ 7
4. A Utilização dos Fonemas e Sílabas________________________________ 8
5. Os Golpes de Língua, segundo Altès ______________________________ 13
5.1 O Golpe de Língua Simples____________________________________________ 13
5.2 O Golpe de Língua Louré ou Mezzo-Staccato__________________________ 16
5.3 O Golpe de Língua Composto _________________________________________ 16
5.4 O Duplo Golpe de Língua______________________________________________ 18
5.5 O Triplo Golpe de Língua _____________________________________________ 23
6. Os Golpes de Língua Mistos ou Complexos _______________________ 26
7. Coda: a queixa mais comum e algumas propostas ________________ 28
8. Conclusão ________________________________________________________ 29
9. Referências Bibliográficas ________________________________________ 30

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1. Expressividade e analogias à linguagem falada

Quando se fala de articulação na música considero fundamental associar o


estudo deste elemento discursivo à expressividade e, conseqüentemente, à
interpretação. A importância da articulação como elemento fraseológico e
expressivo é salientada por Artaud (1996, p.110) que afirma: “Il est important dès
le debut d’insistir sur la valeur musicale du cup de langue, le premier élément de
phrasé acquis pendant les études”. [É importante desde o início insistir sobre o
valor musical do golpe de língua, o primeiro elemento do fraseado adquirido
durante os estudos]. Assim, naturalmente, se estabelece uma relação intrínseca
entre articulação, fraseado, expressão musical e interpretação musical.

A relação entre a linguagem falada e a linguagem dos sons musicais foi levada em
consideração desde a Antigüidade Grega, demonstrando uma identidade entre a
articulação das sílabas e a articulação, separação dos sons musicais. A este
respeito, Balssa (1995, p.49) diz o seguinte:

Durant l’Antiquite Grecque, si les joueurs d’aulos empruntaient


à la voix des éléments du langage articulé pour construire des
séquences mélodiques qui imitaient l’énonciation en syllabes, la
voix à son tour (dans des chants pour accompagner des danses),
se réappropriait ces séquences a-sémantiques pour imiter
l’instrument. L’un des aspects les plus caractéristiques de cette
anciènne pratique était donc l’articulation. [Durante a
Antigüidade Grega, se os tocadores de aulos tomavam
emprestados da voz os elementos da linguagem articulada para
construir seqüências melódicas que imitava a enunciação em
sílabas, a voz, por sua vez (em canto para acompanhar danças),
se reapropriava dessas seqüências não-semânticas para imitar
instrumento. Um dos aspectos mais característicos dessa antiga
prática era então a articulação]

Harnoncourt (1988, p. 49) também menciona o paralelo entre a linguagem falada


e a linguagem musical, afirmando:

Deparamos-nos com o problema da articulação principalmente na


música barroca, mais precisamente na música de 1600 até 1800, pois
esta é fundamentalmente orientada pela linguagem. Os paralelos com
a linguagem foram acentuados por todos os teóricos daquele tempo, e
a música era freqüentemente descrita como uma “linguagem dos
sons”. Grosso modo, eu diria que a música anterior a 1800 fala e a
música posterior a esta pinta.

Inúmeros tratados e métodos relatando experiências sobre a arte de tocar flauta


foram escritos desde o período pré-barroco, fazendo sempre uma aproximação
entre a articulação musical e a linguagem falada. Castellani e Durante (1987,
p.119-122) citam diversos tratados e métodos que abordam a articulação nos
instrumentos de sopro, em particular a flauta transversal, desde o século XVI até
o século XIX. Nesse trabalho, Sylvestro Ganassi Dal Fontego, através de sua obra
“Fontegara” (Veneza, 1535), é citado como o autor mais antigo de um tratado
ensinando como tocar flauta.

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Assim, para os instrumentistas de sopro, é muito curioso e, ao mesmo tempo,


muito importante observar o fato de que a maneira como se toca é uma
conseqüência direta da maneira como se fala. Nenhum outro aspecto sobre o
tocar é mais afetado pela fala do que a articulação; assim, a conexão entre “a
língua falada” e a execução instrumental torna-se a raiz de onde se originam as
diferentes maneiras de expressar-se através do som, as quais, por sua vez, estão
vinculadas diretamente à língua materna do instrumentista.

Ainda que exista uma aproximação, é muito importante esclarecer que esta
analogia cessa na fonação. Tanto na fala quanto no canto, a articulação ocorre
após a fonação, isto é, o som primeiro é produzido pelas cordas vocais e depois
recebe as características sonoras de acordo com a articulação desejada. Na flauta
transversal o processo é diferente, pois o som não é produzido pelas cordas
vocais, e sim pela vibração do ar no bocal e a articulação ocorre simultaneamente
com a formação do som.

É importante chamar atenção ainda que na articulação produzida por um


instrumento de sopro deve ser observado não apenas o impulso disparado, mas
também a sua parte sonora, fato que pode ser comparável com a pronúncia de
uma sílaba. Portanto, nessa comparação, o impulso inicial de um som de um
instrumento de sopro corresponde ao “ataque” o qual corresponde a uma
consoante, já o seu prolongamento corresponde a uma vogal.

A este respeito Richter (1986, p.108-109) declara:

Der Unterschied zwischen den Sprachlauten und den “Lauten”


der Blässerautikulation lieget einfach darin, daß letztere in
Wirklichkeit lautlos sind. Dazu kommont, daß sie w6ahrend des
Blasens durchweg mit gespannten und (bis auf den Blasspalt)
geschlosenen Arbeiten übernommen werden.(....) (A diferença
entre os fonemas da fala e os fonemas da articulação da flauta
reside simplesmente na razão de que os últimos são, na
realidade, mudos (silenciosos). Acrescente-se a isto que, na
execução, são formados com os lábios fechados e tensionados.

Assim, a articulação instrumental, na verdade, está mais próxima da articulação


fonatória na modalidade denominada como murmúrio. A este respeito, Castellani
e Durante (1987, p.16-17) declaram:

“L’analogia cessa comunque a questo ponto: nella fonazione ordinaria


infatti la udibilità è garantita dalla presenza del suono prodotto dalla
vibrazione delle corde vocai, si che si protrebbe meglio parlare di um
flusso d’aria che può o meno caricarsi di sonoritá, rispettivamente
nelle vocali e nelle consonanti sonore nella prima ipotesi, nelle
consonanti sorde nella seconda. Queste ultime per il vero hanno in
isolamento una scarsissima udibilitá, e si rendono chiaramente
percettibili soltanto in nesso com vocale, cioé en quanto modalità di
attacco o di stacco di una vocale. La consonante [p] ad esempio è
appena percettibile se pronunciata per sé solo; me diviene chiaramente
udibile en sillabe come [pa] o [ap], dove essa costituisce per l’appunto
ka modalità di attacco e di sttacco rispettivamente della vocale [a]. Nel
primo caso l’occlusione bilabiale si resolve bruscamente fino a
raggiungere il grado diafragmmatico della vocale [a] (consonante
esplosiva), nel secondo cao movendo dal grado diaframmatico della

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vocale [a], si realizza una brusca chiusura delle labbra com arresto
della corrente d’aria (consonante implosiva).
Relativamente alla articilazione strumentale si dovrà in primo luogo
notare che le vibrazioni glottidali vanno assolutamente escluse perché,
amplificate da corpo dello strumento, si sommerebbero ai suoni che
com questo si producono generando un effetto cacofonico: si postula
dunque un flusso d’aria egressivo afono che puó incontrare nel suo
percorso cavitá di varia forma e volume (secondo la qualità della
vocale scelta nella articolazione), e ostacoli di vario genere (secondo il
tipo consonantico).
Sotto questo profilo strette appaiono le analogie com quella
particolare modalitá fonatoria che va sotto il nome di bisbiglio, in cui il
messaggio è reso appena udibile grazie alla soppressione della
sonoritá, che si ottiene rinunciando alla vibrrazione delle corde vocali.
[...] Considerati i cospicui tratti comuni tra bisbiglio e
articolazione strumentale, si potrá osservare una seconda sostanziale
divergenza rispetto alla fonazione normale: in questa infatti si è in
presenza di una colonna d’aria sonorizzata che viene articolata,,
mentre nell’emissione strumentale si trata de aria afona articolata che
entra in vibrazione, fazendosi suono in corrispondenza della
imboccatura dello strumento; [...] 1.

A grande dificuldade no processo de articulação dos sons para os flautistas está


em saber qual o melhor fonema ou sílaba que deve ser utilizado para que a língua
exerça sua função da melhor forma possível, resultando em uma articulação que
soe de acordo com as necessidades expressivas do contexto musical e que não
implique em esforço ao instrumentista. Evidentemente é aqui que se originam as
diferentes maneiras de expressar-se através do som, uma vez que a produção dos
fonemas e sílabas está vinculada, além de à língua materna do flautista, às

1 A analogia cessa, de qualquer modo, neste ponto: na fonação comum, de fato, a audibilidade é
garantida pela presença do som produzido pela vibração das cordas vocais, o que se poderia dizer
melhor de um fluxo de ar que pode ou não carregar-se de sonoridade, respectivamente nas vogais e
nas consoantes sonoras, na primeira hipótese, nas consoantes surdas, na segunda. Estas últimas,
na verdade, têm, em isolamento, uma pouquíssima audibilidade, e se fazem claramente perceptíveis
somente em união com vogal, quer dizer, enquanto modalidade de união ou afastamento de uma
vogal. A consoante [p], por exemplo, é imperceptível se pronunciada isolada; mas torna-se quase
claramente audível em sílabas como [pa] ou [ap], onde ela constitui a modalidade de ligação ou
afastamento respectivamente, da vogal [a] (consoante explosiva), no segundo caso, movendo do grau
diafragmático da vogal [a], se realiza um brusco fechamento dos lábios, prendendo a corrente de ar
(consoante implosiva).

Relativamente à articulação instrumental, deve-se-á em primeiro lugar notar que as vibrações da


glote ficam absolutamente excluídas, porque, amplificadas pelo corpo do instrumento, se somariam
aos sons que com este se produzem, gerando um efeito cacofônico: postula-se, portanto, um fluxo
de ar egressivo (que sai) afônico, que pode encontrar no seu percurso cavidades de variadas formas
e volumes (segundo a qualidade da vogal escolhida na articulação), e obstáculos de vários gêneros
(segundo o tipo consonântico consonantal).

Sob este perfil, as analogias parecem estreitas com aquela particular modalidade fonatória que tem
o nome de murmúrio, no qual a mensagem é tornada apenas audível graças à baixa pressão da
sonoridade, que se obtém renunciando à vibração das cordas vocais.

[...] Considerando-se os normais traços comuns entre o murmúrio e a articulação instrumental, se


poderá observar uma segunda substancial divergência, com respeito à fonação normal: nesta,
realmente, se está em presença de uma coluna de ar sonorizada, que é articulada, enquanto que,
na emissão instrumental, trata-se de ar afônico articulado, que entra em vibração, fazendo-se som
em correspondência à embocadura do instrumento.

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diferenças morfológicas de cada pessoa: a conformação da arcada dentária


(normal, topo, prognata), dos lábios (mais espessos ou menos espessos), o
formato da língua, do rosto, entre outros, que individualmente e/ou combinados
entre si, influenciam tanto na modificação da pronúncia individual falada, quanto
no som da flauta.

2. Conceitos e a língua como meio

Em um contexto musical, de acordo com o Dicionário de Música Grove, ela é


definida como: “A junção ou separação de notas sucessivas, isoladamente ou em
grupos, por um intérprete, e a maneira pela qual isso se faz; a palavra é mais
amplamente aplicada ao fraseado musical em geral ”. (Sadie, 1994, p. 44).

Koellreutter (1990, p.16-17), define a articulação como a maneira de tocar ou


cantar, dando como exemplos o trêmolo, o staccato, o legato, entre outros. Fala
ainda que articulação é expor ou separar, tocando ou cantando, com distinção e
clareza, as diversas partes da forma, de um trecho ou de uma frase musical.

Flautisticamente falando, entre os conceitos que encontrei o de Wurz e o de


Richter foram aqueles com os quais mais me identifiquei. Wurz (1988, p. 81 §
156) manifesta-se dizendo que entende a articulação como um conjunto de
fenômenos que acontecem no começo e no fim de um som tais como a
intensidade (acentuação) e a duração de cada som; depois disso, vem a separação
ou não de seqüências de sons. Richter (1986, p. 107) amplia mais sua opinião
sobre a articulação musical dizendo que a articulação, na técnica dos
instrumentos de sopro, é mais do que o ensinamento do golpe de língua e das
ligaduras, e que ela avança amplamente no âmbito geral da produção do som.
Assim, minha principal intenção neste artigo é refletir sobre o conceito de
articulação mais amplo, estabelecido por Wurz e Richter.

A pedagogia tradicional da flauta aponta a língua como principal meio de


articular os sons, entretanto sabe-se que o processo de articulação dos sons na
flauta transversal não é possível somente através dela. Pode-se articular também,
ou só com, a musculatura respiratória, com a glote ou ainda com os lábios 2.

2 Conforme se sabe, a língua é o principal meio para articular os sons da flauta, porém ela não é o
único meio. Até o período que antecede a flauta moderna, uma “possível” forma de articulação sem
língua que observei, foi apresentada por Delusse, em seu tratado. Ele apresentou a articulação “Hu”
(o Tac aspirado), sílaba que me fez relacionar com a teoria moderna da utilização do diafragma, na
qual toda a musculatura abdominal e intercostal é utilizada, uma vez que o diafragma também é
considerado um importante meio para articular o som na flauta, podendo este agir em conjunto ou
isoladamente. A Flauta Moderna desenvolvida por T. Boehm em 1847 trouxe uma nova concepção
de som e, junto com ele, novas possibilidades de articulação através de meios até então não muito
enfatizados, como: os lábios (articulação bilabial); a glote (articulação com a glote ou “glotidal”) e a
musculatura respiratória (articulação diafragmática ou abdominal e intercostal). A articulação
bilabial é produzida pelas consoantes “p” ou “b”, que fecham os lábios e bloqueiam a saída do ar.
Destina-se a ataques delicados e muito sutis, mais especialmente na região grave da flauta. Por ser
necessário tempo para preparar os lábios, deve ser utilizada para a emissão das notas que iniciam
uma frase, preferencialmente em p, pp ou ppp, ou em notas seqüenciais num andamento lento.
Artaud denomina esta articulação de “détachés por lábios”, classificando-a dentro dos Détachés
Especiais. A articulação diafragmática ou articulação feita com a musculatura respiratória, de
acordo com Wurz (1988, p.94 §184) é feita unicamente com o diafragma e serve principalmente a
objetivos de estudo, especialmente aqueles para o sf e o domínio de seqüências rápidas de staccato

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Evidentemente, torna-se bastante claro que as possibilidades de articulação dos


sons na flauta transversal são muito diversificadas e saber utilizar todos estes
meios, de maneira mais combinada ou separada, fará do flautista um músico
mais qualificado. O grande problema é que, de modo geral, ficamos habituados
em utilizar somente a língua como meio de articular os sons, ficando os demais
meios ⎯ que também poderiam cooperar no processo de articulação ⎯ quase
sempre esquecidos e/ou desprezados. Quem, por exemplo, nunca se sentiu
frustrado com o resultado de sua articulação após horas de estudo?

3. Observação do processo

Penso que o primeiro passo que devemos tomar é deixar de dar tanta importância
à língua e começarmos (... ou pelo menos tentarmos) observar cuidadosamente o
processo da articulação dos sons por um ponto de vista mais amplo.

Através de uma simples observação, pode-se constatar que iniciar um som


apenas com o sopro não produz um início claro, sendo necessário, para isso
recorrer ao auxílio da língua. A movimentação desta dentro da boca, denominada
popularmente como “golpe de língua3”, torna-se um meio de tentar iniciar uma
nota, um som, com maior precisão. Porém, é importante saber que, o que
acontece depois deste início é atributo do sopro, do ar, e que isto tem maior
influência no resultado sonoro que o ataque da nota. O “golpe de língua” não é
responsável pela inflexão do som e também não empurra o ar para fora da boca,
cabendo isto à musculatura abdominal.

Para dificultar mais ainda o processo da movimentação da língua dentro da boca,


sabe-se que, pelo fato do ar não oferecer resistência, seu movimento (que resulta
na liberação e/ou bloqueio do ar) pode às vezes ser pesado em excesso e às vezes
leve demais, tornado o resultado muito vulnerável. Certamente cabe lembrar aqui
que é muito importante para o flautista movimentar o mínimo possível sua língua
dentro da boca, pois caso contrário a língua acumula uma fadiga, tornando a
articulação manca e irregular.

na região grave. A Breath Articulation, segundo Mather (1989, p.65), é uma forma de articulação
produzida por pouca quantidade de ar, quase sem pressão, como se fosse um “bafo”, que é exalado
quando a parede abdominal se contrai. Pode ser utilizada para iniciar ou terminar uma nota.

3 A origem da expressão, provavelmente, veio da analogia com o golpe de arco. Quantz reforça esta
idéia quando, em seu famoso tratado, ele declara: “The tongue is the means by which we give
animation to the execution of the notes upon the flute. It is indispensable for musical articulation, and
serves the same purpose as the bow-stroke upon the violin”. [A língua é o meio pelo qual nos damos
animação para a execução das notas sobre a flauta. Ela é o meio indispensável para a articulação
musical, tendo o mesmo propósito que o golpe de arco tem sobre o violino...]

Embora a expressão “golpe de língua” seja bastante difundida e conhecida pelos flautistas, sabe-se
que é uma expressão inadequada porque, na verdade, a língua não se move para frente, e sim, abre
a passagem do ar, funcionando como uma válvula, produzindo um “golpe de ar” e não um “golpe de
língua”, como é conhecido. Este é um pensamento unânime dos autores pesquisados, inclusive
Quantz, entretanto Wurz contra-argumenta, em um feliz comentário, sob o meu ponto de vista, que
embora a expressão “golpe de língua” seja um termo errado, ela já está incorporada pelos flautistas,
sendo correta, do ponto de vista da psicologia do aprendizado, sua utilização.

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Retornando aos conceitos de Wurz e Richter, deparo com algo que quase nunca é
comentado, porém é uma realidade que não posso deixá-la passar despercebida,
sobretudo pelos ouvidos: a articulação não é apenas "o ataque" da nota, ou o
"início da nota", mas muito mais que isto, é também o que acontece depois deste
ataque. Assim, a inflexão que se dá no ar após o ataque também é parte da
articulação e, quem sabe, tão importante, ou mais, do que o próprio golpe de
língua.

4. A Utilização dos Fonemas e Sílabas

A utilização dos fonemas e sílabas como meios para obter diferentes formas de
articular os sons em um instrumento de sopro é uma prática muito antiga
utilizada pelos instrumentistas. Uma analogia muito simples pode explicar a
razão da utilização das sílabas no processo de articulação destes instrumentos:
na flauta, como nos instrumentos de sopro em geral, deve-se observar não
apenas o impulso disparado, quer dizer, o ataque inicial, mas também sua parte
sonora, que é comparável à pronúncia de uma sílaba. Assim, o impulso inicial do
som, o ataque, corresponde a uma consoante e seu prolongamento, a uma vogal.

De um modo geral, tem-se utilizado, para o impulso disparado ou ataque inicial,


as consoantes explosivas “t ” ou “d ”. Estas consoantes são as mais utilizadas
porque, em ambas, a ponta da língua fica arqueada para cima, embora possa
sofrer ligeiras modificações em sua forma, as quais estão diretamente associadas
ao movimento da língua materna do flautista.

Duas outras consoantes explosivas, “k ” ou “g ”, também merecem atenção, uma


vez que se observou que elas são as mais utilizadas para o movimento da língua o
qual faz com que esta se coloque em contato com o palato mole ou palato duro,
produzindo os golpes de língua duplo e triplo. É importante mencionar que estas
consoantes normalmente são utilizadas pelas notas fracas, isto é, pelas notas que
se alternam com as fortes, onde normalmente se utilizam as consoantes “t ” ou
“d ”. 4

Quanto ao prolongamento de cada consoante, que, como foi visto, corresponde à


vogal, observou-se que estas vogais se alteram de método para método ou, ainda,
de idioma para idioma, o que faz resultar em uma diversidade de sílabas. A este
respeito, vale a pena observar a diversidade fonética existente entre as línguas,
particularmente sobre a terceira (letra c), mencionada por Castellani e Durante 5 .

4No caso de trechos começando com a nota fraca, onde a nota forte está antecipada por um silêncio
ou por uma nota sincopada, esta primeira nota fraca deve ser articulada com a sílaba TU.

5 De acordo com Castellani e Durante a diversidade de natureza fonética existente entre as línguas
pode ser individualizada em três pontos:
a) a diferença na tensão articulatória geral, que caracteriza o ato fonatório (base articulatória );
b) diferente distribuição do acento intensivo;
c) diferente constituição articulatória dos elementos fonéticos de base (sons)

No que se refere ao primeiro ponto, de acordo com os autores citados anteriormente, deve-se
observar que cada idioma mostra uma base articulatória diferenciada em relação aos outros, quer
dizer, alguns são mais tensos outros, menos tensos. Quanto ao segundo ponto, é interessante
observar que, em determinado idioma, o acento tem uma tendência fixa sobre a última sílaba; em

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Particularmente sobre cada autor/flautista pesquisado, tem-se: Altès (1906, p.17)


sugere a sílaba “Tu” para a emissão do golpe de língua, dizendo que, inicialmente,
deverá ser feito apenas com o bocal, o que no meu entender demonstra uma
consciência da necessidade que se tem de estabelecer uma aproximação entre
articulação e embocadura. Ele defende que a utilização da sílaba “tu” permite que
a ponta da língua encoste-se aos incisivos superiores, impedindo que o ar escape
dos lábios.

Sobre a sílaba “du”, Altès (1906, p.121) a menciona quando aborda sobre o Golpe
de Língua Composto, dizendo que este se dá pela combinação do Golpe de Língua
Simples com o Louré ou mezzo-staccato, (que será visto no capítulo Golpe de
Língua), no qual as sílabas “tu” e “du” são utilizadas. A execução se faz
pronunciando a sílaba “tu” sobre a nota breve, e a sílaba “du” sobre a mais longa.

A respeito da consoante explosiva “k”, acrescida da vogal “u”, formando a sílaba


“ku”, Altés a menciona quando aborda o Golpe de Língua duplo. Pelo fato de a
sílaba “ku” ser mais fraca que a sílaba “tu”, provoca-se uma desigualdade de
acentuação, resultando em uma maior rapidez na articulação. É interessante
dizer que este processo ocorre após a língua ter articulado a sílaba “tu”, pois esta
volta rapidamente sobre ela mesma, produzindo um segundo movimento que é
resultante do primeiro impulso, de maneira que ela venha tocar o céu da boca (o
palato), resultando na formação da sílaba “ku”.

Taffanel & Gaubert (1923, p.14) não citam textualmente o uso de nenhuma
sílaba, mas, no capítulo intitulado “De L’Articulation et du Simple Coup de
Langue”, apresentam exercícios musicais originais onde eles utilizam a consoante
“T” e a sílaba “Te” , indicando que as notas onde se encontram a consoante ou
consoante mais vogal devem ser articuladas com golpe de língua.

É interessante observar que o prolongamento utilizado por Taffanel & Gaubert é a


vogal “e”, enquanto Altès utilizou a vogal “u”. Eles argumentam que o ataque com
a sílaba “te” deverá ser muito curto, pois desta maneira se obtêm a clareza e a
vivacidade do Staccato dos violinistas.

Taffanel & Gaubert (1923, p.90) também utilizam a sílaba “re”, em combinação
com a sílaba “te”, formando a articulação “te-re”. Eles dizem que esta articulação
deverá ser feita de maneira muito áspera e dura, sendo necessário, para obtê-la,
bater a língua com força um pouco acima dos dentes.

Quanto à consoante “k”, Taffanel (1923, p.92) a utiliza acompanhada da vogal “e”,
diferentemente de Altès, que recomenda a vogal “u”. Assim, Taffanel combina a
sílaba “ke” com a sílaba “te”, produzindo o duplo golpe de língua, “te-ke”. De
acordo com ele, a dificuldade desta articulação está na igualdade dos dois
movimentos, pois ele argumenta que a sonoridade que se obtém da sílaba “ke”,
no princípio, é muito vazia.

outro idioma, o acento recai sobre a primeira; em outro, o acento é móvel. Sobre o terceiro ponto,
devem ser considerados alguns tipos fonéticos que interessam à articulação instrumental. Assim,
por exemplo, na mais importante sílaba articulatória, “t + vogal”, observa-se que o lugar de sua
realização será diferente uma vez que dependerá, incondicionalmente, do idioma utilizado.

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Moyse (1928, p.1-23) não apresenta maiores explicações sobre as sílabas. Apenas
propõe vários exercícios nas mais diversas articulações, sugerindo a utilização
das consoantes “t ” e “k ”. No caso de golpe de língua simples, ele utiliza a
consoante “ t ”, e para os golpes de língua duplo e triplo, ele combina as duas
consoantes, um costume bastante tradicional entre os flautistas, especialmente
os franceses.

Le Roy (1966, p.60-62) sugere o fonema “t ” para o primeiro ataque, sendo a


língua colocada contra a face interna do lábio superior, de modo que ela não
ultrapasse o exterior.

Sobre este ataque, assim ele se manifesta:“1º Derrière la lèvre supérieure: c’est la
grande attaque, que l’on utilize au début lorsqu’on vient de respirer. Elle est
employée également au cours d’un morceau, en fonction des nécessités du phrasé
et pour attaquer des notes longues en force” [Atrás do lábio superior: é o grande
ataque, que se utiliza no início quando se acaba de respirar. Ele é empregado
normalmente no decorrer de uma peça musical, em função das necessidades do
fraseado e para atacar as notas longas fortemente]. (LE ROY, 1966, p. 60)

Ele sugere ainda as sílabas “te” e “teu”, pois ambas permitem que a língua incida
contra os dentes superiores. É um ataque muito pequeno, que permite uma
articulação muito mais rápida porque a língua se afasta muito pouco dos dentes
superiores. Ainda segundo Le Roy , o som poderá ser breve ou longo, de acordo
com a rapidez que a língua volta a sua posição normal.

Le Roy sugere as sílabas “De” ou “Deu”, que provocam um golpe de língua menos
acentuado, mas que pode ser utilizado nos movimentos rápidos. Este ataque é
obtido pelo apoio da parte de cima da língua sobre a parte anterior do palato,
devendo a língua fazer um movimento extremamente curto, não se deslocando
praticamente de lugar.

A consoante explosiva “k”, acompanhada da vogal “e”, é citada por Le Roy. Do


mesmo modo como abordou Taffanel, Le Roy também associa esta sílaba à sílaba
“te” para produzir o duplo golpe de língua: “te-ke”. De acordo com o autor, a
sílaba “ke” traz a parte média da língua contra o palato. Ele sugere, como
novidade em relação à Altès e Taffanel & Gaubert, que, para se obter uma
articulação de duplo golpe de língua mais suave, devem-se utilizar as sílabas “De-
Gueu” em que os movimentos da língua são ainda mais reduzidos e permitem
uma execução ainda mais rápida.

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Scheck (1975, p.83) sugere a consoante “t”, palatal francês, para produzir a
articulação. Segundo ele, esta consoante é “comprovadamente precisa”, pois a
língua fica arqueada para cima. Sugere ainda que os movimentos devam ser
pequenos e reduzidos à ponta da língua ou à sua parte superior.

Quanto às vogais para as sílabas de articulação, ele defende as vogais “ö” e “ü”, e
não as vogais “a”, “i” ou “e”, como geralmente consta nos métodos de flauta
antigos e novos. Através de uma pirâmide de vogais, Scheck defende que o “ü” e o
“ö” são vogais naturais, produzidas com a boca quase fechada, e que a escolha
destas vogais em métodos modernos franceses e alemães para as sílabas de
articulação é fundamentada na pirâmide do fisiologista alemão Emil Dubois-
Reymond:
A
Ä A
E Ö O
I Ü U

Curiosamente, Scheck ilustra a utilização da consoante “ t ” através da frase de


um conhecido personagem de cinema (Mon oncle Tati), que assim expressa: “Ne te
tue pas, Tati, tente la fortune”. Nessa frase, em função da pronúncia francesa das
sílabas te, tu ta, ti, provocam-se pequenos movimentos na ponta da língua. É
interessante observar como ele varia o prolongamento, isto é, as vogais que
acompanham a consoante “t ”, numa tentativa, segundo me parece, de explorar
ao máximo as possibilidades de posicionamento da língua, da forma da cavidade
bucal, da forma dos lábios e, conseqüentemente, da embocadura, resultando
articulações diferenciadas – mais ou menos incisivas, mais ou menos rápidas,
mais ou menos curtas, entre outras.

As sílabas “ke” ou “ku” também são mencionadas por Scheck, quando ele aborda
sobre o golpe duplo e também o golpe triplo. As sílabas utilizadas por Altès e
Taffanel & Gaubert são novamente apresentadas aqui, intercalando “te-ke” ou “tu-
ku” para o golpe duplo (pronunciadas, segundo eles como tö-kö , tü-kü). Para o
triplo golpe, Scheck utiliza “tü-ke-tü” , “ke-tü-ke” , “tü-ke-tü” , “ke-tü-ke”, o que
difere de Altès e Taffanel & Gaubert, como veremos mais adiante.

Woltzenlogel (1982, p.79) emprega em seu “Método Ilustrado para Flauta” as


sílabas “tu” ou “te” e “ku” ou “ke”, a mesmas utilizadas, respectivamente, por
Altès e Taffanel & Gaubert.

Nyfenger (1986, p.83-90), em sua abordagem sobre articulação, menciona duas


consoantes, “k ” e “ t ”, inicialmente desacompanhadas de vogal , com o objetivo
de, através da combinação entre estas consoantes, obter velocidade na
articulação. Ele aborda sobre as dificuldades de se articular a consoante “ k ” ,
comparando-a com o movimento de subida do arco das cordas ou, ainda, com a
segunda baqueta do percussionista. Alerta sobre a questão, muito comum entre
os flautistas, de a língua mover-se muito para trás dentro da boca, quando esta
realiza o movimento da segunda sílaba (“ k ”) do duplo golpe. Isto provoca um
desequilíbrio no processo de emissão do duplo golpe porque o tempo do “ k ”
excede bastante o tempo do “ t ” , resultando num efeito que ele, curiosamente,

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denomina de “articulicídio” (pelo fato de a base da língua recuar muito para


dentro da boca, quase na garganta).

Nyfenger (1986, p.86) sugere ainda que, além da consoante “ t ” e “ k ”, o flautista


também experimente as consoantes “ d ” e “ g ”. Sugere, além disso, as sílabas
“de-ge”, “ti-ki” ou “ta-ka”. A este respeito ele declara:

What creates a difference in length at a consoant speed? The violinist


keeps his bow on the string and changes direction to articulate long,
fast notes. For the short ones, the wrist causes the bow to bounce on
and off the string. By spending less time on the string, shorter notes
emitted. For the flutist, a loose lazy vowel-like tonguing like DE-GE
produces fast but long notes. These notes are less incisive and seem to
be anti-punctuation, resembling the speech of a quick-minded
inebriate, who is still inder control. A more rigid, Germanic TI-KI or TA-
KA tonguing (try them all) produces shorter, more punctuated, fast
notes. To play louder und softer in double-tonguing, use more or less
air, of course. Remember: the tongues is neither a tone-producing
hammer nor a resonating body. [O que cria a diferença de duração em
uma velocidade constante? O violinista mantém seu arco na corda e
muda de direção para articular notas longas e rápidas. Para as notas
curtas, o pulso faz com que o arco alterne o contato com a corda e a
distância desta. Por passar menos tempo em contato com a corda,
notas mais curtas são emitidas. Para o flautista, um golpe de língua
solto, preguiçoso e “vocalizado”, como DE-GE, produz notas rápidas,
porém longas. Estas notas são menos incisivas e parecem ser anti-
pontuação, assemelhando-se ao discurso de um “bêbado falando
rápido”, mas que ainda está sob controle. Um golpe de língua mais
rápido, germânico, TI-KI ou TA-KA (tente todas), produz notas rápidas,
mais curtas e mais pontuadas. Para tocar mais alto e mais baixo em
golpe duplo, use mais ou menos ar, é obvio. Lembre-se: a língua não é
nem um martelo produtor de som nem um corpo ressonante.]

Wurz (1988, § 134 e 136), como os demais autores pesquisados, também chama
atenção para as duas consoantes explosivas “t ” e “ d ”, por serem as mais
utilizadas para tocar flauta. Segundo ele, para se tocar flauta, usam-se estas
duas consoantes porque a ponta da língua fica arqueada para cima, permitindo
que ela toque a região entre a raiz dos dentes e o palato com facilidade.

Outras consoantes explosivas “k ” e “ g ” também são mencionadas por Wurz,


porque elas podem ser executadas com a base da língua, tocando o palato mole
ou o palato duro, promovendo a articulação dupla ou tripla.

A respeito da vogal que acompanha as consoantes “k ” ou “g ”, Wurz sugere a


vogal “ ü ” porque, segundo ele, sua aplicação no duplo golpe de língua faz com
que a ponta da língua se mova ligeiramente para trás.

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Embora ele diga que contraria a opinião de outros autores, como Richter e Le
Roy, sobre o uso da vogal “ü”, uma vez que estes não utilizam esta vogal, Wurz
não menciona nominalmente Altès, representante francês que utilizou a vogal “u”
em seu método para flauta; ele só associa o uso desta vogal ao nome do flautista
alemão Gustav Scheck. Wurz sugere, ainda, o uso das sílabas “dü gü” na
aplicação do duplo golpe de língua.

Artaud (1996, p.110) sugere as sílabas “De, Dou ou Du” ou, ainda, as sílabas “T,
Te ou Tu”. Ele defende que “De, Dou ou Du” parecem-lhe mais desejáveis porque
permite separar mais delicadamente os lábios, o que já não acontece com “T, Te
ou Tu”, que resultam quase sempre em uma superarticulação.

Quanto às sílabas Ke, De ou Ge, elas são mencionadas quando Artaud faz sua
abordagem sobre os golpes de língua compostos, termo empregado por Artaud no
lugar de “duplo ou triplo. É interessante observar que se diferenciam dos “Golpes
Compostos” de Altès, uma vez que este faz referência a esse termo significando a
combinação entre o Golpe de Língua Simples com o Louré − sílabas “tu + du”,
como será visto no capítulo sobre Golpe de Língua.

5. Os Golpes de Língua, segundo Altès

Segundo Altès (1906, p.212), a flauta possui cinco formas diferentes para
articular os sons:

√ O Golpe de Língua Simples


√ O Golpe de Língua Louré
√ O Golpe de Língua Composto
√ O Duplo Golpe de Língua
√ O Triplo Golpe de Língua

Embora se saiba que tradicionalmente estes Golpes de Língua mencionados por


Altès, sejam, de certa maneira, os mais utilizados, é impossível limitar-se a eles.
Por questão de identificação com a metodologia utilizada por ele, as cinco
maneiras de articular os sons serão consideradas aqui como guia, entretanto
foram feitas inclusões extras Altés, visando complementar com abordagens de
outros importantes autores como: Taffanel e Gaubert, Le Roy, Scheck, Nyfenger,
Wurz, Woltzenlogel e Artaud.

5.1 O Golpe de Língua Simples

O Golpe de Língua Simples ou Détaché simple (fr.); Simple detached (ing);


Getrennt (al.); Picado simple (esp.), deve ser executado colocando-se a ponta da
língua sob os incisivos superiores, de forma a impedir que o ar escape dos lábios,
retirando-a rapidamente e suavemente, como para produzir a sílaba “Tu”, ou
como para expelir um fio de linha da ponta da língua. Ele recomenda que se deve
estudá-lo lentamente, destacando todas as notas com golpes de língua muito
secos e muito curtos, mantendo-se rigorosamente o tempo, a fim de evitar a
precipitação e a desigualdade própria dos movimentos repetidos.

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Le Roy (1966, p.60-62), em sua abordagem sobre o Golpe de Língua, afirma que,
para o primeiro ataque, deve-se colocar a língua contra a face interna do lábio
superior, chamando atenção para que ela não ultrapasse os lábios. Assegura
ainda que ela age como uma válvula no interior da boca, que libera ou bloqueia o
ar, devendo para isso ser flexível e não produzir nenhum ruído em seus
movimentos. Ele menciona também duas posições para a ponta da língua: atrás
do lábio superior e contra os dentes superiores, utilizando-se respectivamente o
fonema “t” e a sílaba “te”

Sobre a primeira posição, denominada de grande ataque, deve ser utilizada no


início, quando se acaba de respirar. Já a segunda posição é para um ataque
pequeno, que vai permitir uma articulação muito mais rápida, em função de a
língua afastar-se muito pouco dos dentes superiores. Argumenta ainda que,
nesta posição da língua, o som poderá ser muito breve ou longo, conforme a
rapidez com a qual ela volta a sua posição inicial.

Le Roy apresenta ainda outra variedade de Golpe de Língua, que pode ser
utilizada nos movimentos rápidos, visando a obter um ataque menos acentuado.
Ele recomenda, para esta variedade de Golpe de Língua, as sílabas “De” ou “Deu”,
afirmando que este ataque é obtido pelo apoio da parte de cima da língua sobre a
parte anterior do palato, devendo a língua fazer um movimento extremamente
curto, não se deslocando de lugar, praticamente.

Recomendações importantes como, por exemplo, preparar antecipadamente a


posição dos dedos, adaptarem os lábios e deixar bem posicionada a língua, são
mencionadas por Le Roy, visando a obter melhores resultados antes de atacar o
Golpe de Língua. Ele ainda recomenda: o lábio inferior deve ficar absolutamente
imóvel, não se deixando levar pelos movimentos da língua; deve-se evitar toda
contração da garganta, a fim de manter uma pressão constante de ar nos
pulmões e na boca; e, fora da respiração, não se deve jamais abrir a boca no final
da execução de um trecho antes do ataque de um som.

Woltzenlogel (1982, p. 79) manifesta-se, referindo-se ao Golpe de Língua Simples


através da utilização de duas sílabas, “tu” ou “te”. Segundo ele, “o ataque mais
comum é o simples golpe de língua, que consiste em pronunciar as sílabas “tu” ou
“te” no início de cada nota. Este golpe de língua possibilita emitir as notas com
ataques curtos e com certa rapidez”.

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Nyfenger (1986, p.83-90) aborda sobre o Golpe Simples, mencionando quatro


posições que a língua pode assumir, as quais, sob o meu ponto de vista, estão
diretamente ligadas às características morfológicas de cada pessoa6. Portanto, de
acordo com Nyfenger, temos as seguintes posições:

√ entre os lábios
√ entre os dentes (mas não tocando os lábios)
√ atrás dos dentes superiores
√ mais atrás no palato superior

A posição da língua entre os lábios pode oferecer uma resposta mais rápida, mas
não pode ser facilmente repetida, pois pode perturbar os lábios. Tecnicamente,
para os flautistas, esta posição da língua deve ocorrer para que se evite o
problema dos lábios fechados ou secos no momento do primeiro ataque de uma
passagem ou, ainda, para inícios especiais, sendo desaconselhável seu uso para a
execução de notas repetidas fluentemente.

Já no caso dos instrumentistas de palheta, esta posição da língua entre os lábios


é mais favorável, pois em função de a posição dos lábios estarem fixa antes do
ataque, os instrumentistas tocam a abertura da palheta com a ponta da língua,
podendo esta facilmente ser removida, permitindo o acesso do ar na palheta /
bocal.

Quanto à posição da língua entre os dentes, esta permite uma repetição mais
rápida, porque a língua se desloca numa distância menor. A resposta é rápida,
devendo os lábios ser independentes e posicionados na forma necessária
previamente.

A posição da língua atrás dos dentes superiores, segundo Nyfenger, é mais


acessível em termos de distância, como o primeiro golpe de língua. Já a última
posição mencionada por ele − a da língua atrás no palato superior − é a menos
incisiva e é mais útil para articulações suaves, porque ela corta o fluxo de ar por
uma duração mínima de tempo e longe dos lábios.

A respeito da posição da língua, Artaud (1996, p.111) declara que embora


durante anos fosse um detalhe técnico muito discutido, atualmente a posição da
língua logo atrás dos dentes superiores é a mais aceita. Essa posição é realmente
a mais lógica, porque ela permite não mexer na posição dos lábios, aumentando a
segurança da execução, e também obter uma grande velocidade no détaché7,
tornando o caminho percorrido para o ataque, o mais curto possível.

6 A conformação da arcada dentária (normal, topo, prognata), dos lábios (mais espesso ou menos
espesso), do formato da língua, do rosto, entre outros, que individualmente e/ou combinados entre
si influenciam tanto na modificação da pronúncia individual falada, quanto no som da flauta.

7 De acordo com Fonseca7, a palavra détaché significa “gênero de execução musical pelo qual se
separam as notas por silêncios”. Scheck7 manifesta-se sobre este gênero de articulação, afirmando
que o “Détaché é a forma básica do golpe de língua; uma seqüência clara de sons separados uns dos
outros...”.

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5.2 O Golpe de Língua Louré ou Mezzo-Staccato

Sobre o Golpe de Língua Louré (fr.) ou Mezzo-staccato (Ing.), Altès (1906, p.78)
afirma que esta forma de articulação é representada ao mesmo tempo por um
ponto e por uma ligadura, devendo-se substituir a sílaba de articulação natural,
“tu”, pela sílaba “du”, o que faz tornar a articulação mais suave ou doce,
conforme ele mesmo menciona.

Altès destaca ainda, em sua abordagem sobre esta espécie de golpe de língua, um
caso diferenciado do Louré, bastante utilizado. Trata-se de uma articulação
semelhante ao próprio “Louré”, porém, ao invés de vir representada por um ponto
acima da nota, vem expressa por um pequeno traço horizontal. Sobre esta
articulação, assim ele se manifesta:

Une sorte d’articulation lourée est parfois indiquée par des traits
surmontés d’une liaison; les notes, dans ce cas doivent être
toujours attaquées avec la syllabe “Du” mais soutenant
parfaitement le son. [Um tipo de articulação Louré é, às vezes,
indicado por pequenas linhas abaixo da ligadura. Neste caso, as
notas devem ser atacadas com a sílaba “du” e o som deverá ser
mais prolongado] ALTÈS, 1906, p.78

Artaud (1996, p.122) aborda esta espécie de articulação como détache alongado
ou louré. Segundo ele, este golpe de língua é o mais simples de explicar e
dominar, pois constitui um estado intermediário entre détaché e legato, sendo
aconselhável pronunciar a sílaba “de” atrás dos dentes.

5.3 O Golpe de Língua Composto

Sobre o Golpe de Língua Composto, Altès (1906, p.121) explica que esta espécie
de articulação é produzida combinando o Golpe de Língua Simples com o Golpe
de Língua Louré (ou mezzo-staccato). Sua execução é feita pronunciando-se a
sílaba “tu” sobre a nota breve, e “du” sobre a longa, procurando acentuar esta
última sílaba com mais força que aquela correspondente ao Louré ou Mezzo-
staccato.

Altés esclarece que, quando a nota ponto de partida é uma nota longa, deve-se
articular esta com um golpe de língua simples, portanto com a sílaba tu. Quanto
à sílaba du, deverá ser utilizada para a nota curta. Ainda segundo ele, esta
articulação será mais bem compreendida quando praticada em ritmo ternário.

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É oportuno comentar aqui que a terminologia “Golpe de Língua Composto”,


aplicada por Altès, difere em conteúdo da terminologia Golpe de Língua Composto
aplicado por Artaud. Enquanto Altès considera como Golpe de Língua Composto
a fusão do Golpe de Língua Simples (sílaba “tu”) com o Golpe de Língua Lourè ou
Mezzo Staccato (sílaba “du”), como se acabou de ver, Artaud (1996, p.115) afirma
que o termo “golpe de língua composto” inicialmente é escolhido no lugar de
“duplo ou triplo” para mostrar que se utilizam apenas duas articulações
misturadas à vontade: “te” e “ke” ou “de e “ge”.

Artaud ainda aborda sobre o Golpe de Língua Composto declarando:

Le “Te” est dite articulation forte, le “Ge” articulation faibile.


L’alternance régulière des deux s’appelle double coup de langue,
celle d’un seul “Ge” pour deux “Te”, triple coup de langue. Pour
les groupes de 5 ou 7 notes d’autres types de mixages sont
utilisés tels que: TKTKT, TTKTT, TTKTK, TKTTK, TTTKT... En
tous cas il s’agit toujours d’articulations fondées sur la binarité
Te-Ke [O “Te” é chamado articulação forte, o “Ge”, articulação
fraca. A alternância regular dos dois chama-se duplo golpe de
língua, a de um só “Ge” por dois “Te”, triplo golpe de língua. Para
os grupos de 5 a 7 notas, outros tipos de misturas são utilizados,
tais como: TKTKT, TTKTT, TTKTK, TKTTK, TTTKT... Em todo
caso, trata-se sempre de articulações fundadas sobre o binário
Te-Ke. (ARTAUD, 1996, p. 115)

A respeito do Duplo e Triplo Golpe de Língua, Altès afirma que são articulações
empregadas principalmente em passagens muito rápidas, impossíveis de se
executar com o Golpe de Língua Simples. Para alcançar um bom resultado nestas
duas espécies de articulações, a língua deverá adquirir muita agilidade e leveza, o
que se obtém exercitando o Golpe de Língua Simples, até alcançar o movimento
mais rápido possível.

Ainda segundo Artaud, o duplo ou triplo golpe de língua são muito úteis, mas o
seu aprendizado apresenta um inconveniente à língua: ela torna-se preguiçosa.
Por isso, ele recomenda que seja muito importante sempre insistir no trabalho do
golpe simples, o qual é responsável pela agilidade dos outros golpes.

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5.4 O Duplo Golpe de Língua

O Duplo Golpe de Língua tem por finalidade facilitar e aumentar a velocidade das
notas, de divisão binária, executadas em andamentos mais rápidos, onde o Golpe
Simples já não pode mais ser aplicado com naturalidade. Consiste em utilizar-se
apenas um movimento da língua para fazer dois ataques que, a partir de uma
alternância feita com duas sílabas diferentes8, protege a língua do cansaço e
favorece a ampliação da velocidade.

O trabalho lento e progressivo visando a desenvolver a velocidade, como também


alcançar mais igualdade entre as sílabas – uma vez que elas têm forças
diferentes, como será visto mais adiante – é outra a tônica comum dos autores.
Várias recomendações poderão ser observadas através de cada autor
apresentado.

De acordo com Altès, o Duplo Golpe de Língua é obtido pronunciando-se duas


sílabas: “tu-ku”. Após ter articulado a sílaba “tu”, a língua volta rapidamente
sobre ela mesma, produzindo um segundo movimento que é resultante do
primeiro impulso, de maneira que ela venha tocar o céu da boca (o palato),
resultando na formação da sílaba “ku”. Destes dois movimentos, ou melhor
dizendo, deste duplo movimento representado pela língua em um só impulso, vem
o nome de Duplo Golpe de Língua. Ainda segundo ele, esta maneira de articular
permite a língua mover-se com uma rapidez tal, que pode obter efeitos na flauta,
semelhantes aos détachés trêmulos dos violinos.

Sobre o emprego do Duplo Golpe de Língua Altès declara:

Son empli n’est possible que lorsque les notes se succèdent très
rapidement, et cela, parce que l’accent de la seconde syllabe KU
est plus faible que celui de la première syllabe TU. Cette inégalité
d’accent est atténuée par la rapidité de l’execution on la fera
disparaître entièrement en travaillant de Duble coup de langue
lentement et en cherchant à donner à la syllabe KU un accent
égal en force à la syllabe TU; on devra en outre maintenir entre
elles la régularité la plus absolue, en un mot: ne pas précipiter
l’une plus que l’autre. [Seu emprego somente é possível em
passagens rápidas, isso porque a segunda sílaba KU é mais fraca
que a primeira sílaba TU. Esta desigualdade de acentuação é
atenuada pela rapidez da execução, e poderá ser eliminada
inteiramente, praticando-se lentamente o duplo golpe de língua,
tentando dar à sílaba KU um acento com a mesma força da
sílaba TU, procurando, assim, manter entre as duas sílabas uma
absoluta regularidade; em outras palavras: não apressar uma
mais que a outra]. (ALTÉS, 1906, p. 213)

O Duplo Golpe de Língua é aplicado somente em divisão binária, ou seja, a


divisão de notas em grupos de dois. Como foi exposto, é a sílaba “tu”, a qual
chamamos de nota forte. A segunda nota, a qual chamamos de nota fraca, é
articulada com a sílaba “ku”. No caso de trechos começando com a nota fraca,

8 Conforme será visto, não há um consenso sobre quais sílabas são as melhores para serem
utilizadas.

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onde a nota forte está antecipada por um silêncio ou por uma nota sincopada,
esta primeira nota fraca deve ser articulada com a sílaba “tu”.

Taffanel & Gaubert (1923, p.92) manifestam-se sobre a necessidade do Duplo


Golpe de Língua da seguinte forma:

Lorsque la vitesse d’un trait en détaché est trop grande, le simple coup
de langue devient insuffisant et il est nécessaire d’employer le double
coup de langue te-ke, te-ke, qui permet d’obtenir une très grande
agilité. La difficulté de cette articulation réside dans l’egalité des deux
mouvements de la langue. La sonorité que l’on obtiendra au début sera
creuse sur la syllabe ke... [Quando a velocidade de uma passagem é
muito grande, o golpe de língua simples será incapaz, sendo necessário
empregar o duplo golpe de língua TE-KE, TE-KE, que permite obter
uma grande agilidade. A dificuldade desta articulação está na
igualdade dos dois movimentos da língua. A sonoridade que se obterá
no princípio será vazia na sílaba KE ... .]

Eles recomendam que o aluno trabalhe esta articulação visando a alcançar


perfeita igualdade nos dois movimentos da língua, até chegar a obter a mesma
clareza do som que se tem com o golpe de língua simples. Inicialmente, o estudo
do golpe duplo deverá ser aplicado nos movimentos lentos, pois assim a sílaba
“ke” será obtida através de uma articulação com mais força e clareza, pois
quando for necessário praticar o duplo golpe em passagens muito rápidas, o
aluno terá maior domínio em obtê-lo com mais igualdade.

Taffanel & Gaubert também mencionam uma articulação denominada


“L’Articulation TE-RE”, afirmando que ela deverá ser feita de maneira muito
áspera e dura, sendo necessário, para obtê-la, bater a língua com força um pouco
acima dos dentes. Quanto ao ataque da sílaba “TE”, eles garantem que este
deverá ser muito curto, pois defendem que, desta maneira, se obtêm a clareza e a
vivacidade do Staccato dos violinistas.

Como se pode perceber, em momento algum ele trata esta articulação como um
Duplo Golpe de Língua. Entretanto, defendo que ela pode muito bem ser
caracterizada como um duplo golpe de língua, uma vez que a desigualdade entre
as sílabas provoca um aumento da velocidade na articulação. Esta articulação
pode ainda ser comparada ao Golpe de Língua Composto citado por Altès, que,
por sua vez, também não deixa de ser, sob o meu ponto de vista, uma forma de
Duplo Golpe.

Le Roy (1966, p.61-62) manifesta-se afirmando que o Duplo Golpe de Língua


consiste em utilizar um só movimento da língua para fazer dois ataques. O

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primeiro é feito através da sílaba “te” e o segundo, através da sílaba “ke”, que traz
a parte média da língua contra o palato. Ele ainda sugere que, para uma
articulação mais suave, poderão utilizar-se as sílabas “de-gueu”, nas quais os
movimentos da língua são ainda mais reduzidos, permitindo uma execução ainda
mais rápida.

Como Taffanel & Gaubert, Le Roy também recomenda que, para serem bem
executadas, estas sílabas devem ser trabalhadas com muito cuidado e
lentamente, sendo necessário, também, que a pressão do ar seja mais forte,
permanecendo constante, para que a sílaba “ke” ou “gueu” não fique diferente da
sílaba “te” ou “deu”.

Scheck (1975, p.84) declara que, sendo o Duplo Golpe de Língua uma articulação
que parte do princípio da alternância de duas sílabas (a primeira com a parte
superior da ponta da língua e a segunda como consoante palatal), esta forma de
articulação protege a musculatura da língua do cansaço em passagens rápidas de
notas repetidas, possibilitando um staccato muito rápido.

Conforme foi visto no capítulo “A Utilização dos Fonemas e Sílabas”, Scheck


utiliza as mesmas sílabas empregadas por Altès e Taffanel & Gaubert: TU-KU ou
TE-KE pronunciadas, segundo ele como TÜ-KÜ ou TÖ-KÖ.

Ele ainda recomenda que é muito útil, quando se estuda o Duplo Golpe de
Língua, separar as duas sílabas de maneira bem clara e chama atenção para a
dificuldade em se aplicar esta articulação na terceira oitava com andamentos
rápidos e em pianíssimo.

Woltzenlogel (1982, p.79) assim se manifesta sobre o Duplo Golpe de Língua:

Para se emitir as notas em staccato, nos trechos de grande velocidade,


recorremos ao duplo golpe de língua, que consiste em utilizar-se
um só movimento da língua para fazer dois ataques: “tu-ke” ou
“te-ke”. No primeiro ataque coloca-se a ponta da língua de encontro à
face interna do lábio superior, pronunciado-se a sílaba “tu” ou “te”. O
segundo ataque, com a sílaba “ku” ou “ke”, fará com que a parte média
da língua vá de encontro ao palato. Para que haja um perfeito
equilíbrio entre os dois golpes, já que o primeiro é muito mais incisivo,
aconselhamos a trabalhar os exercícios primeiramente com as sílabas
“tu” ou “te” e depois com as sílabas “ku” ou “ke”. Assim que se obtiver
uma relativa igualdade entre as duas emissões, repetir os exercícios
desta feita com a combinação das duas sílabas”. (grifo meu)

Woltzenlogel menciona também que, para uma articulação mais branda, poderão
ser utilizadas as sílabas “du-gu”. Como se pode perceber, estas sílabas são
semelhantes à articulação apresentada por Le Roy (Deu-Gueu), na qual este

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTICULAÇÃO NA FLAUTA TRANSVERSAL Raul Costa d’Avila / UFPEL

último reforça seu pensamento afirmando que, neste caso os movimentos da


língua são mais reduzidos e permitem uma execução ainda mais rápida.

Outra opção de articulação em duplo golpe apresentada por Woltzenlogel, é a


combinação das sílabas “te-re”, as quais possibilitam uma pronúncia mais
branda, sendo uma articulação muito empregada no jazz. Esta espécie de
articulação foi mencionada por Taffanel & Gaubert, porém não tratada como
“Duplo Golpe de Língua” e sim como “L’Articulation TE-RE”, conforme já citado.

Nyfenger (1986, p.83-90) aborda o Duplo Golpe de Língua de uma maneira


bastante diferente dos demais autores pesquisados, diferença esta que está na
utilização de uma linguagem muito pessoal, através da qual ele consegue
apresentar questões extremamente importantes, quase nunca mencionadas por
outros autores.

Antes de abordar o Duplo Golpe de Língua, ele aborda especificamente a sílaba “


k ”, chamando atenção para que se a exercite bastante, antes de aplicá-la ao
Duplo Golpe de Língua. Ela é a responsável pela maior parte dos problemas
relacionados com o Duplo Golpe de Língua, como: desequilíbrio (um primeiro
pulso muito forte, ou um segundo muito fraco), ritmos desiguais e, ainda, moleza
e imprecisão nos golpes. Isso se deve porque, segundo Nyfenger, a língua se move
muito para trás dentro da boca, posicionando-se na garganta, quando se articula
a sílaba “k”. Curiosamente, ele assegura que esta área na garganta deve ser
reservada para dizer “Chanuka” (NT: diz-se Rânuka) ou “Rampal”, e também para
gargarejar. Além disso, ele argumenta inteligentemente que além de ser
ineficiente do ponto de vista de tempo e movimento, a quantidade de espaço que o
ar deve atravessar após ser solto de trás da garganta faz com que ele alcance o
tubo da flauta muito tarde e, consequentemente, muito dissipado, fazendo a
sílaba “K” exceder muito em tempo, em relação à sílaba “t”, provocando o curioso
e já mencionado “articulicídio”.

Em função disso, Nyfenger (1986, p.85) assim se manifesta: “...A comulative effect
closes the throat itself, as it refuses to sustain this nonsense of opening and closing
so rapidly, adding strangulation to our suicidal efforts. Finally, the air support is
cut off and life ceases along with the tone”. [Um efeito cumulativo fecha a própria
garganta, porque ela recusa dar continuidade a esta “insensatez”, de abrir e
fechar tão rapidamente, adicionando estrangulamento aos nossos esforços
suicidas. Finalmente, o suporte de ar é interrompido e a vida acaba junto com o
som.]

Conseqüentemente, a fadiga torna-se uma queixa comum daqueles que praticam


indevidamente o movimento da língua, o que prejudica a velocidade do duplo
golpe logo após tocar as primeiras linhas: língua tensa gera articulações mancas
e irregulares que, com toda a certeza, frustram qualquer flautista.

Sobre o duplo golpe, com propriedade, Nyfenger assim se manifesta:

At first! Instead practice two forms of single-tonguing. Isolate,


analyze, and conquer. TTT is old hat, but KKKK is awkward. By
playing repeated K’s there is time to correct, to minimize motion
to bring the tongue into a more relaxed, forward position, and to

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attain the maximum incisiveness. When T and K are as similar


as possible, we can apply them to a scale passage. ...” [Em
primeiro lugar, não o faça! Ao invés disso pratique duas formas
de golpes simples. Isole, analise, e vença. TTT “é moleza”, mas
KKK é desconfortável, desajeitado. Tocando repetidos K’s, há
tempo de corrigir, de minimizar o movimento, de trazer a língua
para uma posição mais relaxada e menos para frente e de obter a
máxima incisividade. Quando T e K forem tão similares quanto
possível, nós podemos aplicá-los a uma passagem em escala. ...]
(NYFENGER, 1986, p.85)

Ele ainda apresenta algumas recomendações muito importantes, que merecem


ser citadas: não deixe o ar sair de uma só vez do sistema de suporte, pois o fluxo
de ar deve ser dividido somente pela língua; evite o movimento de garganta,
especialmente a síndrome de quem estuda demais, onde o Pomo de Adão se move
visível e audivelmente; mantenha os lábios sem se mover.

Em seu método, “Flauta Transversa – Método Elementar”, Artaud (1995, p.137-


138) menciona o Duplo Golpe, afirmando que, para executá-lo, deve-se colocar a
língua atrás dos dentes superiores e pronunciar as sílabas “tê-kê- tê-kê- tê-kê”.
Ele também recomenda que se deve treinar primeiro com uma só nota,
observando a igualdade do détaché no que se refere à intensidade, à qualidade do
ataque e do ritmo.

Artaud (1996, p.115) ainda insiste sobre a igualdade entre as sílabas utilizadas,
Te e Ke. Segundo ele, as duas articulações devem ser efetuadas próximas uma da
outra, atrás dos dentes superiores. A manutenção do sopro e o relaxamento da
garganta devem ser controlados e, em nenhum caso, a língua deve empurrar o ar
contido na boca.

Wurz (1988, p.90-92) argumenta que, a partir de um determinado limite de


velocidade – que depende de cada flautista –, o golpe de língua simples já não
funciona mais, sendo necessária a aplicação do duplo ou triplo golpe de língua,
ou “golpes de língua múltiplos”, conforme ele denomina. As sílabas tü-kü e dü-gü
são as sugeridas na utilização do duplo golpe, porque, segundo ele, ao pronunciar
a sílaba kü a base da língua articula-se mais à frente no palato duro, e também
porque a ponta da língua move-se ligeiramente para trás.

Wurz ainda explica que os fenômenos ocorrentes no golpe duplo comprovam que,
no golpe simples, a língua se move para baixo, e não para trás. Conforme pode
ser observado através da ilustração apresentada, ao abaixar a ponta da língua no
movimento do duplo golpe, a base da língua se eleva. Wurz argumenta, de
maneira bem peculiar, que, para um duplo golpe de língua “bem azeitado”, tanto
a ponta da língua como sua base deve mover-se regularmente em torno de um
eixo central, como num relógio mecânico. Neste caso, não é a engrenagem que vai
se movimentar, sendo solta ou trancada regularmente, e sim a corrente de ar.

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Wurz ainda dá algumas recomendações as quais considero muito oportuno citar


aqui. Assim, tem-se:

√ Estudar primeiro a articulação kü, até que fique bem limpa e “crocante”.

√ Após esta fase, combinar as duas sílabas (tü e kü). Kü é muito macio em relação
a Tü, por isso é preciso procurar obter igualdade em ambas as sílabas.

√ Praticar exercícios utilizando apenas uma nota, de modo que se possa acelerar
e retardar a nota estudada. Deve-se utilizar as sílabas tü-kü ou dü-gü e vice-
versa.

√ É necessário fazer uma adaptação entre a embocadura e a articulação, que


varia de flautista para flautista e deve ser cuidadosamente conduzida na sua
adaptação.

√ O andamento só deve ser aumentado depois que o movimento dos dedos e da


língua estejam ajustados um ao outro.

√ Sustentar com regularidade a condução da respiração deve ser considerado


muito importante.

Concluindo, é pertinente destacar a importância de não permitir que a língua


caia na base da boca ao articular o duplo golpe. Para que ele seja bem sucedido,
atingindo uma velocidade máxima, ambas as sílabas devem movimentar-se com o
mínimo de movimento possível, consistindo, o movimento da língua, somente em
um tremor.

5.5 O Triplo Golpe de Língua

O Triplo Golpe de Língua tem por finalidade facilitar e aumentar a velocidade das
notas, no caso de notas em divisão ternária ou divisão de notas em tercinas,
executadas em andamentos mais rápidos, onde o Golpe Simples já não pode mais
ser aplicado com naturalidade.

A origem do nome deve-se à alternância de uma só sílaba por duas outras iguais,
resultando uma combinação ternária. De acordo com Wurz (1988, p.92-93),
antigamente esta articulação tinha o mesmo peso que o golpe duplo, e era muito
utilizado em seqüências de tercinas:

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T-K-T T-K-T T-K-T T-K-T

Esta forma de articulação pode ser observada nas publicações de Altès, Taffanel
& Gaubert, Moyse, Le Roy, Artaud e também Woltzenlogel. Entretanto, a prática
desta maneira de articular provoca, naturalmente, a repetição do fonema “T ” de
maneira consecutiva (conforme pode ser observado no quadro apresentado) e
mesmo que a pressão do ar seja mantida constante e mais forte, para que ambas
as sílabas soem iguais, conforme sugere Le Roy, ou para que se mantenha a
garganta relaxada, conforme sugere Artaud, a repetição da sílaba “Tu” (ou “Te” )
provoca um ligeiro cansaço na língua, prejudicando a igualdade do triplo golpe.

Nyfenger manifesta-se a este respeito de maneira muito peculiar, como de


costume, fazendo uma comparação dos dois “Tês” consecutivos com o movimento
de uma roda com a superfície achatada. Assim ele afirma:
Triplets used to be a sign to engage in triple tonguing. Famous cornet
in the heyday of concert bands used this device, TKT, as a display of
lingual dexterity and to machine-gun down the audience.
Unfortunately, in most cases, these triplets sounded uneven and
limping. A good reason to strike this technique from your bag of tricks
is that it contains two consecutive T’s, like a wheel with one flat
surface. This is analogous to a string player bowing triplets down-up-
down down-up-down, or a timpanist stroking right-left-right right-left-
right. By repeating the same stroke, the original reason for, and
advantage of, multiple-tonguing is negated. Back to the Stone Age.
What is the antidote? (or anti-dope?) Watch the string player execute
triplets. The first group of three notes begins downbow, the second
group upbow. The player never even considers two strokes in the same
direction on consecutive notes. The percussionist has prepared for an
alternation of hands, having spent hours drilling single strokes on
each so that when the time comes to alternate, the listener will be
unable to tell them apart.
So triple-tonguing becomes merely double-tonguing. Strauss
never wanted waltzers to trip over his bar lines, nor did
Christianity invent the triplet to test man’s patience and
conformity to odd numbers. When a student protests at being
withdrawn from his old habit of triple (or what I now
sarcastically refer to as single-double) tonguing, I ask him to
play a passage (Fig. 39) in double-tonguing. When things are
rolling along smoothly, I begin to superimpose a clap every three
notes, and the case for simplicity is closed! (NYFENGER, 1986,
p.89).
[Tercinas costumam ser um sinal para empregar o golpe triplo.
Famosos solistas de trompete usavam no auge das bandas de
concerto este método, TKT, TKT, como uma exibição de destreza
da língua para metralhar a platéia. Infelizmente, na maioria dos
casos, estas tercinas soavam desiguais e mancas. Uma boa razão
para eliminar esta técnica de sua mala de truques é que ela
contém dois T’s consecutivos, como uma roda com uma
superfície achatada. Isto é análogo aos instrumentistas de corda
tocando “down-up-down” “down-up-down”, ou a um timpanista
atacando “right-left-right” “right-left-right”. Repetir o mesmo
golpe nega a vantagem e a razão para a existência de golpes
múltiplos. De volta à Idade da Pedra.
Qual é o antídoto? Observe atentamente um instrumentista de corda
tocando tercinas. O primeiro grupo de três notas começa com arco em
baixo, o segundo grupo com arco em cima. O instrumentista nem
pensa em empregar dois golpes na mesma direção em notas

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consecutivas. O percussionista se prepara para uma alternância de


mãos, já tendo gasto horas treinando golpes simples sobre cada mão
para que, quando for o momento de alternar, o ouvinte seja incapaz de
distinguir um do outro.
Então o golpe-triplo torna-se meramente golpe-duplo. Strauss nunca
quis que suas valsas atravessassem suas barras de compasso, nem o
Cristianismo inventou a tercina para testar a paciência do homem e a
conformidade com números ímpares. Quando um estudante protesta
por ser retirado de seu velho hábito de golpe-triplo (ao qual eu me
refiro agora sarcasticamente como simples-duplo), eu peço a ele que
toque uma passagem (Fig. 39) em golpe-duplo. Quando as coisas estão
indo bem, eu começo a adicionar uma palma a cada três notas e então
o caso para a simplicidade está encerrado!].

Scheck (1975, p.85-86) chama atenção para o fato de que a escola francesa
prega somente a articulação clássica ( T-K-T ), entretanto ele menciona outra
maneira de produzir o triplo golpe para obter tercinas rápidas em staccato. De
acordo com ele, alcança-se maior precisão rítmica na obtenção de tercinas
rápidas através dos seguintes grupos de “duplos”:

Tü-Ke-Tü Ke-Tü-Ke Tü-Ke-Tü Ke-Tü-Ke

Conforme pode ser constatado, esta maneira de articular na verdade, é uma


seqüência de articulações duplas acentuadas de três em três. Wurz (1988, p.91-
92) complementa a idéia de Scheck, declarando que a prática flautística atual se
desenvolveu no sentido de se poderem tocar as tercinas com a língua dupla, e
que “hoje” o Golpe Triplo é uma exceção, mas que ele deve ser estudado porque,
conforme o contexto rítmico e a aptidão do flautista, a velha prática pode ser de
grande utilidade.

Ele ainda ilustra com um clássico exemplo da Sinfonia Italiana de


Mendelssohn, conforme também foi ilustrado por Ricther.

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6. Os Golpes de Língua Mistos ou Complexos

Originando-se a partir da combinação dos golpes de língua simples, duplo e


triplo, esta articulação, de acordo com Altès (1906, p.328-330), tem duas formas:
a primeira resulta da fusão do golpe simples com o duplo golpe, e a segunda
resulta da fusão do duplo golpe com o triplo golpe.

A primeira articulação (fusão do golpe simples com o duplo golpe) pode ser
utilizada em grupos de 4 ou 6 notas. Presta-se muito bem para passagens de
notas sucessivas em staccato, onde o golpe simples é muito rápido e o duplo
golpe é muito lento. Esta articulação, quando bem executada, dá a impressão de
um golpe de língua simples brilhante e leve.

Nos grupos de 4 notas, utilizam-se as sílabas Tu-Ku-Tu-Tu.

Nos grupos de seis notas, podem ser utilizadas duas seqüências de sílabas
Tu-Ku-Tu-Tu-Tu-Tu para os compassos compostos, ou Tu-Ku-Tu-Ku-Tu-Tu para os
movimentos mais rápidos.

A segunda articulação (fusão do duplo golpe com o triplo golpe) presta-se


muito bem para tocar notas rápidas em staccato, em sucessões com número
impar, especialmente as quiálteras de cinco ou quintinas.

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Artaud (1996, p.118-120), em seu “A Propos de Pédagogie”, aborda os


Golpes de Língua complexos afirmando que eles são mais adequados para serem
utilizados na música dos século XIX e XX, especialmente na música do século
XX, “particularmente acrobática”. Ele argumenta também que “as aproximações
desta articulação podem ser feitas com os golpes de arco, cuja pesquisa se efetua
em função do contexto musical”.

Vários exercícios são apresentados como “estudo da virtuosidade da


articulação” e ele ainda compara estes com os exercícios de pronunciação dos
comediantes.

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7. Coda: a queixa mais comum e algumas propostas

Como já mencionado, a fadiga da língua torna-se a queixa mais comum daqueles


que praticam a articulação de maneira indevida, prejudicando a velocidade e a
leveza tanto dos golpes de língua simples, duplo e triplo. Consequentemente a
fadiga da língua gera também uma tensão na garganta.

O leitor deve estar se perguntando: como tornar a articulação mais fluente e


regular? Ou, conforme Wurz, como tornar o golpe língua “bem azeitado”?

Ainda que encontrar soluções para as possíveis dificuldades do processo da


articulação na flauta transversal possa parecer algo complexo, não é impossível.
Considero muito importante também ― paralelo aos estudos específicos e as
sugestões já mencionadas ― que cada estudante faça periodicamente (...e se for o
caso, até mesmo o próprio profissional) sua reavaliação sobre a utilização de seu
próprio corpo quando este está atuando no processo de execução musical, pois,
como diz Artaud (1996, p. 110), a flauta é um instrumento amorfo que apenas
amplifica os sinais que lhe são transmitidos. Neste sentido, é importante observar
para aprimorar ou corrigir, se for o caso, a postura das pernas, bacia, tórax,
ombros, braços, mãos, dedos, cabeça, assim como a respiração, a musculatura
abdominal e intercostal, a embocadura, a abertura e o relaxamento da garganta,
o movimento de digitação, a posição da língua dentro da boca, entre outros, uma
vez que em conjunto, estes quesitos técnicos vão inter-relacionar-se e, com
certeza, poderão contribuir para o benefício da articulação.

Certamente ainda alguns poderão pensar: como a postura das pernas, braços,
mãos, entre outros, podem prejudicar a articulação, uma vez que ela está mais
relacionada com a forma com que o ar é colocado para dentro da flauta? O que
posso dizer é que, aparentemente não tem nada a ver mesmo, mas, se
observarmos o conjunto, perceberemos que uma técnica sempre está inter-
relacionada com outra e que o conjunto de técnicas precisa funcionar muito bem
para que, como Artaud disse, a flauta apenas amplifique os sinais que lhe são
transmitidos. Assim, evidentemente, se estes sinais forem bem transmitidos, eles
serão bem amplificados.

Concluindo, gostaria de dizer que embora o “golpe de língua” seja importante,


existe uma super valorização, uma super-estimação do seu uso e que de alguma
forma isto precisa ser revisto. Creio que, mesmo parecendo óbvio para muitos,
devemos sempre pensar em articular “o ar”, e que a língua, como já foi dito, é
apenas um dos mecanismos que pode ser utilizado para conseguir esta
articulação do ar. A idéia é realmente muito simples, mas pode causar alguma
perturbação inicial devido aos velhos hábitos. Neste sentido ainda, é muito
importante também inter-relacionar, conscientemente, as diversas técnicas e
procurar estudá-las de maneira diferente da habitual (ou reestudá-las) para
desenvolver (ou aprimorar) tais habilidades ⎯ muitas vezes esquecidas, mal
trabalhadas ou mal assimiladas ⎯, a fim de tentar controlar e de coordenar os
reflexos nervosos e impulsos musculares que permitirão aos flautistas transmitir
à flauta. Assim, creio que estas idéias poderão ser o começo para aqueles que

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desejam tornar seu discurso musical mais distinto, claro e expressivo ou, para
quem preferir mais cheio de vida e graça.

8. Conclusão

A oportunidade que tive de investir em um estudo sistemático sobre a


articulação, especificamente na flauta transversal moderna, como meio para
procurar responder uma pergunta provocada ao ouvir um flautista,
proporcionou-me, além de uma resposta à minha pergunta inicial 9 — obtida
através de um levantamento de importantes informações históricas e técnicas
publicadas por flautistas de épocas e países diferentes — uma constatação: a
articulação na música é sinônimo de movimento, de atuação, de gesto, de uma
maneira de formar idéias, de expressão, de emoção e vida, o que, com certeza,
não abrange somente os instrumentos musicais em geral, mas a própria vida, nas
suas diversas formas de comunicação e expressão.

Embora essa constatação já pudesse ser clara e definida para alguns


privilegiados, ela foi-me fruto de uma comovida percepção auditiva — passo
inicial para desenvolver o gosto e a percepção da arte de unir e/ou separar os sons
— aliada a conhecimentos teóricos de fontes importantes, frutos das
experimentações individuais.

Certamente essas idéias, aparentemente óbvias e simples, não me vieram à mente


de maneira clara e definida, muito menos, ainda, tão rapidamente. As reflexões
deram-se pouco a pouco, obrigando-me a rever constantemente uma série de
pensamentos sobre como utilizar a língua, os dedos, o ar, a musculatura
abdominal e intercostal, a garganta, a postura da cabeça, dos ombros, assim
como do corpo em geral, de modo que pudesse desfrutar de um melhor
aproveitamento, de maneira mais integrada, beneficiando o todo e,
conseqüentemente, a articulação, o mais importante meio de expressão musical,
sob o meu ponto de vista.

A aproximação da linguagem falada com a articulação dos sons na flauta foi um


dos pontos de partida desta pesquisa. À medida que novas reflexões ocorreram,
novas relações da articulação com outras formas de comunicação e expressão
surgiram, fazendo-me, aos poucos, perceber, e, principalmente, sentir, uma feliz
afinidade com os movimentos da dança, com os contornos e formas de uma
escultura, com os lineamentos de um desenho ou pintura, entre outros,
reforçando e, ao mesmo tempo, tornando mais evidente, que a articulação é
fundamental para que os mais diferentes meios de expressão e comunicação
adquiram vida.

Sendo o inter-relacionar uma característica deste trabalho, a articulação e a


interpretação, naturalmente, tornam-se inseparáveis. Conforme constatei ainda,
a articulação abre caminhos para a criatividade, a vontade de descobrir
possibilidades novas, criando-se um universo ilimitado de interpretações, o que

9 Como obter um som presente e comunicativo − quase pronunciado − na flauta transversal ?

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faz o intérprete — desde que ele atue conscientemente — ser um eterno


experimentador. Para isso, o mais importante não é apenas conhecer as
informações teórico-musicais, técnicas, históricas, estéticas, fisiológicas,
lingüísticas, entre outras, mas, sobretudo, inter-relacioná-las, buscando
identidade própria, o que exige disciplina, rigor e principalmente, muita
consciência na execução musical, sem os quais se tende, muitas vezes, a
execuções — parafraseando Carlos Drumond de Andrade — “de acordo com seu
capricho, sua ilusão, sua miopia”, o que torna a articulação meramente intuitiva.
Assim, é necessário um estudo cada vez mais consciente, para fundir
“abençoadamente” o que não pode ser apenas intuitivo, com uma dose certa do
“capricho individual”, resultando uma interpretação que pode ser executada e
percebida de maneira “quase pronunciada”, emocionando aqueles que ouvem,
sobretudo com o coração.

Assim, diante de meu obstinado objetivo — um estudo sistemático sobre a


articulação na flauta transversal moderna — e também diante do que
apresentei nesta conclusão, desejo e espero que esta pesquisa — fruto da
EMOÇÃO provocada ao ouvir um artista, uma pessoa, Roger BOURDIN —
possa ser muito útil a todos aqueles que estudam e trabalham com música,
beneficiando o ensino, a música brasileira, compositores brasileiros,
flautistas profissionais e alunos, hoje e no futuro.

9. Referências Bibliográficas

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ARTAUD, Pierre-Yves. A Propos de Pédagogie. Paris, Gerard Billaud, 1996.
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____________________ Flauta Transversal – Método Elementar. Tradução de
Carmen Cynira. O.Gonçalves e Raul Costa d’Avila. Brasília: EdUnB, 1995
____________________. La Flute. Paris, J.-C. Lattès/Salabert, 1996.
CASTELLANI, Marcello e DURANTE, Elio. Del Portar Della Lingua Negli
Instrumenti Di Fato - Per una correta interpretazione delle sillabe
articolatorie nella trattatistica dei secc. XVI-XVIII . Firenze: S.P.E.S.,
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D’AVILA, Raul Costa. A Articulação na Flauta Transversal Moderna: uma
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Ed. Universitária UFPel, 2004.
DELUSSE, Charles. L'Art de la Flûte Traversiere, Paris, 1761, Facsimiles: Geneva:
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua
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autor, 1986.
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TAFFANEL, Paul & GAUBERT, Philippe. Méthode Complete de Flûte. Paris,
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Vitale, 1982.
WURZ, Hanns. Querflötenkunde. Baden Baden: Verlag, 1988.

Raul Costa d’Avila

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da


Bahia, na classe do Prof. Lucas Robatto.

Autor do livro, “A Articulação na Flauta Transversal Moderna – Uma abordagem histórica,


suas transformações, técnicas e utilização”, publicado pela Editora da UFPel, 2004.

Idealizador do projeto de tradução, com apoio das Professoras Carmen Cynira Otero
Gonçalves e Odette Ernest Dias, do “Flauta Transversa - Método Elementar” de Pierre-Yves
Artaud, publicado pela EdUnB, 1995.

Bacharelou-se em Música (Flauta Transversal) pela Universidade Federal de Minas


Gerais. Mestre em Música, Práticas Instrumentais – Flauta Transversal, pela Faculdade
de Música Carlos Gomes / SP.

Desde 1989 é Professor da Universidade Federal de Pelotas, onde atualmente pertence ao


Departamento de Canto e Instrumento do Conservatório de Música.

Mineiro de Ubá, iniciou os estudos de música e flauta aos 11 anos, sob orientação de seu
pai, Milton de Abreu d’Avila. Posteriormente ingressou no Conservatório Estadual de
Música “Prof. Theodolindo José Soares”, em Visconde do Rio Branco / MG.

Sua formação musical foi amparada por Expedito Vianna, professor no bacharelado,
Odette Ernest Dias, professora em diversos cursos de férias e orientadora no curso de
mestrado e Marcos Kiehl, professor e co-orientador no mestrado.

Fez cursos de aperfeiçoamento com Artur Andrés (UFMG), Keith Underwood (USA), Pierre-
Yves Artaud (UnB), Antônio Carlos Carrasqueira (USP) e Felix Renggli (FMCG/UFRGS).

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