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A Independência

Novas dimensões

Org. Jurandir Malerba


Untitled-1 2 08/08/2014, 15:03
ISBN 978-85-225-1623-0
Copyright © Jurandir Malerba

Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV


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em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).
Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.
1ª edição — 2006
R evisão de originais : Maria Lucia Leão Velloso de Magalhães
E ditoração eletrônica : FA Editoração Eletrônica
R evisão : Aleidis de Beltran e Fatima Caroni
C apa : aspecto:design
F ontes das I lustrações de C apa e 4 a C apa : Luiz dos Santos
Vilhena, Recopilação de noti
cias soteropolitanas e brasilicas... (Salvador: Imprensa Official do Estado, 1921,
p. 254-255);
Biblioteca Nacional, Seção de Iconografia, fonte desconhecida.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca


Mario Henrique Simonsen/FGV
A independência brasileira: novas dimensões / Organizador Jurandir
Malerba — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2006.
432p.
Inclui bibliografia.
1. Brasil — História — Independência, 1822. I. Malerba,
Jurandir.
II. Fundação Getulio Vargas.

CDD —
981.0401
Sumário

Prefácio 7
Leslie Bethell

Apresentação — Ecos de Oxford 11


Jurandir Malerba

Introdução — Esboço crítico da recente historiografia sobre a independência


do Brasil (c. 1980-2002) 19
Jurandir Malerba

Parte I — Raízes históricas 53


Capítulo 1 — Economia e política na explicação da independência do
Brasil 55
Jorge Miguel Pedreira
Capítulo 2 — Das múltiplas utilidades das revoltas: movimentos
sediciosos do
último quartel do século XVIII e sua apropriação no processo de
construção
da nação 99
João Pinto Furtado

Parte II — 1808-20/21 123


Capítulo 3 — A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o
Rio de Janeiro (1790-1821) 125
Kirsten Schultz

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Capítulo 4 — De homens e títulos: a lógica das interações sociais e a
formação
das elites no Brasil às vésperas da independência 153
Jurandir Malerba

Parte III — 1820/21-1822/23 179


Capítulo 5 — Os apelos nacionais nas cortes constituintes de Lisboa
(1821/22) 181
Márcia Regina Berbel
Capítulo 6 — Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos
homens e de si (c. 1780-1830) 209
Iara Lis Schiavinatto
Capítulo 7 — Insultos impressos: o nascimento da imprensa no Brasil
241
Isabel Lustosa
Capítulo 8 — Pagando caro e correndo atrás do prejuízo 269
Lilia Moritz Schwarcz
Capítulo 9 — Muralhas da independência e liberdade do Brasil:
a participação popular nas lutas políticas (Bahia, 1820-25) 303
Hendrik Kraay
Capítulo 10 — O avesso da independência: Pernambuco (1817-24) 343
Luiz Geraldo Santos da Silva

Parte IV — O Brasil e a América hispânica na era das independências 385


Capítulo 11 — Independências americanas na era das revoluções:
conexões, contextos, comparações 387
Anthony McFarlane

Apêndice — Cronologia da Independência 419

Sobre os autores 429

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Prefácio

E ste livro começou a ser concebido no seminário New Approaches to


Brazilian
Independence, coordenado por Jurandir Malerba, pesquisador-bolsista do
CNPq
no Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford no período que se
esten-
deu de janeiro a junho de 2003. O seminário teve lugar nas dependências do
próprio
centro e no St. Antony’s College, ambos da Universidade de Oxford, em 29 e
30 de
maio de 2003.
O propósito do seminário era reunir em Oxford uma amostra
significativa de
uma nova geração de historiadores — principalmente brasileiros, mas também
britâni-
cos, portugueses e norte-americanos — interessados no tema da independência
brasi-
leira. Deles se solicitou que reexaminassem diversos aspectos do longo e
complexo
processo que conduziu à independência do Brasil de Portugal na terceira
década do
século XIX, após 300 anos de jugo colonial: primeiramente, a invasão de
Portugal
pelos franceses como parte da estratégia de Napoleão de apertar o cerco à
Inglaterra, a
subseqüente fuga da corte portuguesa, sob escolta da marinha de guerra
inglesa, de
Lisboa para o Rio de Janeiro em 1807/08 e a abertura dos portos brasileiros
ao comér-
cio internacional (principalmente britânico); em segundo lugar, o exílio da
corte por-
tuguesa no Rio de Janeiro por mais de 13 anos e o impacto desse
acontecimento singu-
lar sobre a economia, a sociedade, a política e a cultura do Brasil
colonial; em terceiro,
a revolução liberal-constitucionalista portuguesa de 1820, o retorno de d.
João VI a
Lisboa em 1821, a tentativa das cortes portuguesas de retomar para Portugal
muito do
quanto havia sido perdido do ponto de vista econômico e político desde 1808
(tenta-

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8 A independência brasileira

ram os portugueses, nesse momento das cortes, “recolonizar” o Brasil?) e a


reação das
elites “brasileiras” (e também do “povo brasileiro”, homens livres e
escravos?), culmi-
nando na declaração de independência do Brasil em 1822; e, finalmente, a
guerra
encetada para expulsar as tropas portuguesas, que ofereceram uma certa
resistência,
ainda que modesta, especialmente nas províncias do Norte e do Nordeste, e as
batalhas
políticas e diplomáticas para assegurar o reconhecimento internacional da
indepen-
dência do Brasil em 1825. Ao mesmo tempo, os historiadores reunidos em
Oxford
foram convidados a refletir mais amplamente sobre a natureza conservadora da
inde-
pendência brasileira, sobre por que e como o Brasil, diferentemente do
império espa-
nhol na América, tornou-se um império unitário, não obstante a existência de
fortes
identidades e sólidos interesses das elites regionais, estas tão refratárias
ao jugo vindo do
Rio de Janeiro quanto ao de Lisboa, e sobre por que e como o Brasil veio a
tornar-se
não uma república independente, mas um império independente.
Sempre foi nossa intenção publicar os ensaios apresentados em Oxford,
revistos
à luz das acaloradas discussões iniciadas no seminário. Já se vão 30 anos
desde a
publicação de duas coletâneas anteriores sobre a independência brasileira: a
organi-
zada por Carlos Guilherme Mota, 1822: dimensões (São Paulo, 1972) e a
organizada
por A. J. R. Russell-Wood, From colony to nation: essays on the independence
of Brazil
(Baltimore, 1975).
Sete dos autores convidados a apresentar papers no seminário de Oxford
e a
contribuir com capítulos para este livro haviam publicado trabalhos
importantes
sobre o Brasil de 1808-25 nos três ou quatro anos anteriores ao evento: o
próprio
Jurandir Malerba — A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às
vésperas da inde-
pendência (2000) —; Kirsten Schultz, da Cooper Union for the Advancement of
Science and Art, de Nova York — Tropical Versailles: empire, monarchy and
the
Portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821 (2001) —; Márcia Regina
Berbel,
da Universidade de São Paulo — A nação como artefato; deputados do Brasil
nas cortes
portuguesas, 1821-1822 (1999) —; Iara Lis Schiavinatto, da Universidade
Estadual
de Campinas — Pátria coroada; o Brasil como corpo político autônomo, 1780-
1831
(1999) —; Isabel Lustosa, da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro —
Insultos
impressos: a guerra dos jornalistas na independência, 1821-1823 (2000) —;
Lilia Moritz
Schwarcz, da Universidade de São Paulo — A longa viagem da biblioteca dos
reis: do
terremoto de Lisboa à independência do Brasil (2002) —; e Hendrik Kraay, da
University
of Calgary, no Canadá — Race, State and armed forces in independence era in
Brazil:
Bahia 1790s-1840s (2002). João Pinto Furtado, da Universidade Federal de
Minas
Gerais, havia também recém-publicado um livro — O manto de Penelope;
história,
mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-89 (2002) —, que revisitava
a

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Prefácio 9

questão de se a Inconfidência Mineira foi um projeto “nacional” de


independência
para o Brasil (em sua opinião, não foi!). Jorge Miguel Pedreira, do
Instituto de Socio-
logia Histórica da Universidade Nova de Lisboa, é autor de vários livros e
artigos
sobre a questão da existência de uma profunda e estrutural “crise” no
“antigo sistema
colonial” no final do século XVIII e começo do XIX, que teria levado à
inevitável
desintegração e colapso do sistema colonial e à separação do Brasil de
Portugal (em
sua opinião, não houve!). Tanto Furtado quanto Pedreira participaram do
seminário
e seus ensaios estão incluídos neste volume.
Luiz Geraldo Santos da Silva, da Universidade Federal do Paraná, que
não pôde
estar presente no seminário de Oxford, foi convidado a escrever um capítulo
para
este livro sobre a independência em Pernambuco — para complementar o
capítulo
de Hendrik Kraay sobre a Bahia e assegurar que o volume não ficasse
demasiadamen-
te focado no triângulo Rio de Janeiro-São Paulo-Minas Gerais. Evaldo Cabral
de
Mello, um dos principais historiadores brasileiros dos séculos XVII e XIX,
nesse
interim, publicou seu notável A outra independência: o federalismo
pernambucano de
1817 a 1824 (2004).
Jurandir Malerba elaborou ainda uma introdução ao volume: um balanço
da
literatura sobre a independência do Brasil desde o final dos anos 1970.
Anthony
McFarlane, da University of Warwick, Inglaterra, contribuiu com uma
conclusão:
um estudo comparativo entre a independência do Brasil e a independência da
Amé-
rica do Norte britânica, a revolução de São Domingos (Haiti) e a América
hispânica
na “era das revoluções”.
Sou grato a todos os colegas que participaram do seminário em Oxford
em maio
de 2003 e que tanto contribuíram para o rico debate sobre a independência
brasileira
numa perspectiva comparativa, a todos os autores dos papers apresentados no
seminá-
rio e dos capítulos deste livro e, sobretudo, a Jurandir Malerba, que não
apenas coorde-
nou o evento, apresentou um paper e escreveu o ensaio historiográfico, mas
também
assumiu com notável entusiasmo e grande capacidade a sempre ingrata tarefa
de editar
o livro — este volume que, em minha opinião, representa um avanço
significativo para
nossa compreensão do processo de independência brasileiro.

Leslie Bethell

Diretor
Centre for
Brazilian Studies
Universidade
de Oxford

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Apresentação

Ecos de Oxford
Jurandir
Malerba

E ste livro começou a ser concebido durante o history workshop New


Approaches
to Brazilian Independence, realizado no St. Antony’s College e no
Centre for
Brazilian Studies, em 29 e 30 de junho de 2003, sob os auspícios do Centre
for
Brazilian Studies da Universidade de Oxford. A proposta original do
seminário era
reunir especialistas cujos trabalhos recentes tivessem contribuído para
reavivar o de-
bate em torno da história da independência brasileira. Desde as primeiras
discussões
de preparação ficou patente a presença de uma nova geração de historiadores
que
pesquisavam na área. O seminário revelaria o que de realmente inovador havia
nessa
produção.
O evento foi estruturado em cinco sessões. Na sessão inaugural,
apresentei um
exercício de crítica historiográfica da produção sobre a história da
independência no
último quarto de século. Os principais temas tratados nessa historiografia
mais re-
cente, que explorei naquela sessão e que serviram de base ao primeiro
capítulo deste
livro, foram as questões relativas a nação, unidade, periodização, o
“caráter” da Inde-
pendência, maçonaria, camadas populares, o “sentido” da Independência. Nas
consi-
derações finais, insisti na necessidade de se pesquisar os agentes sociais
no processo
da independência, registrando em que campos o debate avançou nas duas
últimas
décadas e quais ainda eram carentes.
A segunda sessão centrou-se nas relações entre Portugal e Brasil na
virada do
século XVIII para o XIX. Na primeira conferência — The birth of two nations:
the
political economy of the breakdown of the Portuguese-Brazilian Empire —,
Jorge M.

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12 A independência brasileira

Pedreira levantou de imediato uma questão polêmica, que voltaria à tona


durante os
dois dias do seminário. Segundo o autor, a separação entre Portugal e Brasil
diferen-
cia-se dos processos de independência na América Latina. No Brasil, ela
decorreu de
uma mudança na forma de governo em Portugal, causada em parte pela
residência
do rei e de sua corte no Rio de Janeiro desde 1808. Em largas pinceladas, a
natureza
monárquica e a continuidade dinástica do regime emergente no Brasil foram
preser-
vadas, assim como se manteve no novo Estado a unidade da enorme massa
territorial.
Em Portugal, de acordo com Pedreira, a secessão — que em termos econômicos
se
tornou aparente por volta de 1808 — teve impacto muito maior. A crise
resultante
inaugurou uma época de comoções, em que o antigo império teve que dar lugar
à
construção de uma nova nação moderna, ficando reduzido quase às suas
fronteiras
européias.
O argumento mais inovador de Jorge Pedreira, e o mais controverso, foi
o ques-
tionamento da explicação da independência brasileira que se baseia na
suposta “crise
do sistema colonial”. Pedreira argumenta que as causas da falência do
Império portu-
guês nas Américas devem ser procuradas nas circunstâncias históricas
específicas —
nacionais e internacionais — em que ocorreu. Os historiadores têm tentado às
vezes
interpretar essa falência como o resultado inevitável de uma crise
prolongada, causa-
da por grandes transformações econômicas e políticas de âmbito mundial, como
a
Revolução Industrial e as revoluções norte-americana e francesa. Mas, de
acordo
com as pesquisas de Pedreira, não havia sequer sinal de “crise” no sistema.
Ao contrá-
rio, ele nunca havia funcionado tão bem. Alguns historiadores brasileiros
encontra-
ram as raízes da nação nessa crise.
A rivalidade entre França e Inglaterra, as invasões francesas e a
ocupação de
Portugal, a fuga do rei e sua corte para o Rio de Janeiro, a suspensão
inevitável do
sistema colonial, a ascensão do Brasil ao status de reino unido a Portugal,
tudo isso
preparou o cenário para o desfecho da independência. Esta se tornara de
imediato
inaceitável para amplos setores das elites portuguesas, ansiosos para
retomar o con-
trole absoluto sobre o comércio do Brasil e ressentidos pela preeminência
britânica
em assuntos nacionais. O governo surgido da primeira revolução liberal
forçou o rei
a retornar a Portugal, mas sem conseguir esconder suas intenções de
recuperar o
poder sobre o Brasil. Dessa maneira, foi a revolução que deflagrou o
movimento para
a independência política que agravou a situação econômica após a suspensão
do
sistema colonial.
Na outra exposição efetuada na mesma tarde — History makes a nation:
the
Inconfidência Mineira, historical criticism and dialogue with historiography
—, João
Pinto Furtado procurou oferecer uma aproximação crítica a interpretações

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Apresentação 13

historiográficas consolidadas, à luz das novas perspectivas abertas por


estudos recen-
tes sobre a economia e a política de fins do século XVIII, bem como o
suposto
caráter insubordinado ou revolucionário de Minas Gerais.
Seu trabalho contribui também para a crítica de algumas teses
correntes, no-
meadamente aquelas que corroboram a existência de um projeto nacional
definido,
ao qual os “inconfidentes” aderiram. A atribuição de um sentido nacionalista
à In-
confidência Mineira, de acordo com Furtado, resulta da formação de uma certa
me-
mória nacional, por meio do reconhecimento simbólico que tal movimento
adqui-
riu. Situado na transição do Antigo Regime para a modernidade, o movimento
foi
marcado por ambigüidades e contradições. Na perspectiva de Furtado, a
Inconfidên-
cia Mineira seria uma síntese de várias tendências e tradições com seus
próprios
projetos de futuro, a proposta de uma ordem política nova e a recuperação de
alguns
aspectos do passado de Minas Gerais.
Furtado também resgatou o debate sobre a natureza da “crise” do Antigo
Regi-
me, tal como se processou no mundo colonial. O autor explorou
particularmente a
questão dos problemas sensíveis que emergem quando se tenta ultrapassar um
con-
ceito macroeconômico como a “crise do antigo sistema colonial”, em favor da
análise
de processos de curto prazo tais como, por exemplo, as “inconfidências
brasileiras”
de fins do século XVIII. Na opinião de Furtado, o movimento ocorrido em Vila
Rica
em 1788/89 poderia ser mais bem caracterizado como um tipo de “motim de aco-
modação” do Antigo Regime do que como uma sedição propriamente dita, e menos
ainda como uma revolução.
No segundo dia do seminário, a primeira sessão teve como foco o
período da
corte joanina no Brasil (1808-21). Kirsten Schultz — The age of revolution
and the
transfer of the Portuguese court to Brazil — procurou situar o fenômeno da
indepen-
dência no contexto atlântico da era das revoluções, no qual a independência
brasilei-
ra se caracteriza como uma alternativa conservadora aos desafios
republicanos à mo-
narquia que definiram os rumos da Revolução Francesa e dos processos de
independência nos Estados Unidos e na América espanhola.
Schultz analisou a apropriação do ideário revolucionário pelos
portugueses da-
quém e dalém mar, resgatando a cultura política da época e sua
(re)significação no
ambiente da América portuguesa. Analisando as implicações das novas
linguagens e
práticas políticas à época da transferência da corte e da independência
brasileira, a
linha básica do argumento de Schultz é que a transferência da corte marcou
um
ponto de inflexão nos modos pelos quais as elites portuguesas compreenderam
o
contexto da Revolução Francesa e seus desdobramentos. Como a própria
transferên-
cia da corte foi percebida como “revolucionária”, a posição anteriormente
defensiva

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14 A independência brasileira

assumida com relação à mudança e aos desafios políticos ao Antigo Regime não
mais
se sustentava. Em conseqüência, os dirigentes portugueses começaram a forjar
uma
compreensão da transformação política que defendesse a monarquia e o
império.
Ainda sobre o período da corte portuguesa no Brasil, analisei — no
paper On
men and titles: the logic of social interactions and the shaping of elites
in pre-independence
Brazil — as implicações da fuga da família real portuguesa de Lisboa para o
Rio de
Janeiro na definição das novas configurações sociais que se desenhariam
entre as
elites migrada e residente no tempo em que a corte permaneceu no Brasil.
Minha
linha de argumentação é que tal fuga significou, sim, uma etapa decisiva
para a
emancipação política brasileira. A interação da corte migrada e da classe
superior
residente, que financiou o assentamento dos adventícios, ocorreu sob a
estrita obser-
vância da etiqueta social, tal como prescrita pela lógica da sociedade da
corte portu-
guesa. O príncipe regente d. João desempenhou papel decisivo como o gerente
do
encontro entre a corte portuguesa e os capitalistas brasileiros. Ambos os
grupos fo-
ram detalhadamente analisados, e também procurei realçar a importância de
alguns
pilares ideológicos da monarquia portuguesa, como a propriedade ancestral da
libe-
ralidade do rei, expediente decisivo para a constituição dos grupos
principais no
começo da luta pela independência.
Lilia Moritz Schwarcz — Illuminating parallel scenarios: the symbolic
dimension
of independence festivities and the payment for the Royal Library —
apresentou interes-
sante reflexão sobre elementos simbólicos do processo de independência. Com
um
olhar antropológico, amparado em modelos interpretativos que enfatizam a
eficácia
política do poder simbólico (como Norbert Elias, Clifford Geertz, Claude
Lévi-Strauss
e Marc Bloch), Schwarcz resgatou o contexto da independência brasileira de
dois
ângulos diferentes: as festividades públicas e o alto preço que os
brasileiros pagaram
pela biblioteca nacional durante as negociações da independência entre
Brasil e Por-
tugal. Schwarcz explorou as dimensões simbólicas e culturais que, de acordo
com sua
abordagem, foram extremamente importantes nos primeiros momentos da Indepen-
dência brasileira, e seus desdobramentos imediatos.
Três ensaios constituíram o núcleo temático do seminário, ou a
“independência
propriamente dita”, algo que aconteceu entre 1821 e 1825.
Iara Lis Schiavinatto — Questions of governability in the foundation
of Brazil as
an autonomous political body (c.1780-1830) — tratou da fundação do Brasil
como
uma entidade política autônoma. Procurou analisar as (re)significações do
Antigo
Regime português pelo assim chamado liberalismo constitucional na transição
de
um império luso-brasileiro para um império do Brasil. Em vez de pensar a
história
brasileira numa linha progressiva, da colônia à nação, ou como resultado de
um

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Apresentação 15

discurso nacionalista, sua exposição tratou da questão da fundação do Brasil


como
uma cultura política genuína.
Schiavinatto argumentou que alguns movimentos foram decisivos para um
au-
mento considerável do debate político durante o processo da independência
brasilei-
ra. As questões mais diretamente exploradas foram a negociação política do
pacto, as
diversas noções de identidade colonial, a autonomia relativa e as
dependências entre
o poder central e o periférico, e noções diversas de temporalidade.
Márcia Berbel — The national appeal by the Constitutional conventions
in Lisbon,
1821/22 — procurou retomar os discursos dos deputados brasileiros nas cortes
por-
tuguesas entre 1821 e 1822, fazendo avançar sua análise em três aspectos
principais:
a) a diversidade dos apelos à unidade do império português-brasileiro feitos
pelos
deputados presentes nas cortes; b) as principais ações propostas no
Congresso,
reavaliando-as à luz da seguinte questão: seriam propostas para a unidade
nacional
ou para a recolonização?; e c) descontentamentos pendentes em cada uma das
pro-
víncias brasileiras em relação à política das cortes, identificando as
razões que leva-
ram à reafirmação das várias independências regionais, a despeito de tal
apelo à
unidade.
A contribuição mais importante de Berbel diz respeito ao problema da
existên-
cia de projetos “recolonizadores” nas cortes de Lisboa. Berbel demonstrou
que, em
seu uso inicial, o termo refere-se a determinadas provisões legais que foram
aprova-
das mesmo na presença dos deputados de duas províncias brasileiras,
Pernambuco e
Rio de Janeiro. Berbel mostrou como as referências à política de
recolonização das
cortes foram incorporadas pelos historiadores já no século XIX. O ensaio de
Berbel
corrobora estudos recentes sobre reclamos por unidade nacional nas cortes
(portu-
guesas ou espanholas), que conduziram a uma reconsideração dessa explicação
am-
plamente aceita. Tais projetos em prol da unidade nacional, criados com o
intuito de
manter a integridade do Império, incluíam a representação americana e não
podiam,
dessa maneira, visar resgatar o status colonial anterior.
O papel desempenhado pela imprensa e pela cultura impressa e as lutas
entre as
inúmeras facções políticas no movimento para a independência brasileira
foram o
tema central da palestra de Isabel Lustosa — The birth of a Brazilian press
and Brazil’s
independence, 1821-23. A autora mostrou que os primeiros jornais brasileiros
inde-
pendentes, fundados após a revolução constitucionalista do Porto, tiveram
peso de-
cisivo nos acontecimentos que se seguiram àquela revolta, que culminou na
indepen-
dência do Brasil. Entre 1808 e 1820, tudo o que era escrito no Rio de
Janeiro só
podia ser impresso após rigorosa censura. Nesse contexto, o Correio
Braziliense (1808
a 1822) transformou-se no único veículo usado para divulgar idéias liberais
aos bra-

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16 A independência brasileira

sileiros e para criticar os erros mais gritantes da administração portuguesa


— transferida
para o Rio de Janeiro juntamente com a corte. Ao divulgar os eventos
políticos mais
importantes e os analisar à luz das novas idéias liberais, o Correio
Braziliense transfor-
mou-se numa referência imperativa para aqueles que sonhavam com o progresso
e a
liberdade no Brasil. A liberdade de imprensa conquistada após a revolução
portugue-
sa de 1820 permitiu que os liberais brasileiros encontrassem um canal para
expressar
e divulgar suas idéias.
A questão da imprensa, da cultura impressa e da “leitura” levantada
por Lustosa
transformaram-se num eixo importante do debate, permeando as discussões das
ou-
tras sessões. Qual a real extensão do consumo de material impresso no Rio de
Janeiro
e em outros lugares do Brasil? Enquanto não se chega a uma resposta
definitiva para
tal pergunta, grande parte da produção histórica mais recente sugere que, no
Rio de
Janeiro e em outras cidades brasileiras, houve um aumento significativo na
circula-
ção de obras impressas importadas, ao lado da propagação de impressões
locais sem
precedentes. O fato de essa expansão da cultura impressa no nível local —
particular-
mente dramática quando comparada à América espanhola, onde já havia material
impresso desde o domínio imperial espanhol — coincidir com a independência
bra-
sileira pode levar a questões de causas e efeitos, isto é, “a imprensa
causou a indepen-
dência?” ou era parte de uma transformação político-cultural maior, que
coincidiu
com a independência brasileira? O debate centrado na imprensa e na cultura
impressa
no seminário sugere que os próprios contemporâneos viam a imprensa como uma
ferramenta e um veículo disseminador de idéias sobre legitimidade e
soberania política,
e que a coroa, por sua vez, foi sensível à necessidade de colocar a cultura
impressa a
seu serviço.
Outra questão que suscitou polêmica desde a abertura dos trabalhos tem
a ver
com a virtual participação popular no processo de independência, tida pela
historio-
grafia, por longo tempo, como um processo intra-elites. Como negros e
brancos
pobres, escravos e libertos participaram ou não desse acontecimento?
Uma contribuição importante nesse sentido foram os resultados da
pesquisa de
Hendrik Kraay, expostos em diversos trabalhos já publicados. Kraay prestou
uma
contribuição seminal ao debate em Oxford — e aqui, neste livro —, ao
discutir
justamente o papel desempenhado pelos escravos na independência do Brasil.
Em
seu ensaio Popular participation in Brazilian independence, with special
reference to
Bahia, texto de encerramento do seminário, o historiador canadense tocou em
pon-
tos centrais do debate, chamando a atenção para o fato de que a nova
historiografia
sobre o que os historiadores brasileiros chamam de “processo de
independência” dá
pouquíssima atenção à participação popular no referido processo.

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Apresentação 17

Focalizando o processo de independência na Bahia, província que


assistiu à
mais longa luta para expulsar os portugueses, Kraay procurou elucidar o
papel das
classes populares da província naquele processo. Não causa surpresa o fato
de as
camadas populares não terem uma posição política única. A análise de dois
setores
das classes populares — os oficiais e soldados da milícia negra e os
escravos que
lutaram no lado patriota em 1822 e em 1823 — demonstra a multiplicidade de
posições políticas e formas de ativismo político empreendidas pelas classes
populares
durante aqueles anos. Finalmente, a luta dos escravos pela liberdade colidia
com o
desejo dos milicianos pretos por um papel maior no novo império, e, durante
a
Revolta dos Periquitos de 1824, estes ajudaram a subjugar aqueles.
Se a ênfase geográfica de Kraay é na Bahia, o curso das discussões
levou ao
entendimento de que uma lacuna não poderia ser negligenciada. Para a
confecção
deste livro, Luiz Geraldo Silva foi convidado a analisar o processo de
independên-
cia da perspectiva dos pernambucanos — O avesso da Independência:
Pernambuco,
1817-24. Vários elementos foram imperativos em sua análise: Silva teve que
consi-
derar o que chamou de as “identidades pernambucanas e matrizes políticas do
autonomismo”, nas quais ganha destaque o papel da representação mental da
res-
tauração pernambucana contra o domínio holandês na constituição de uma iden-
tidade regional, geradora de uma espécie de nativismo radical na província
no iní-
cio do século XIX. Um segundo aspecto é o do papel de “grupos e partidos
políticos”,
no qual a constituição dos segmentos políticos na província é analisada a
partir de
suas posições na produção de mercadorias para o mercado externo, em suas
dife-
renças ocupacionais, geográficas e corporativas. Um elemento central da
análise da
independência em Pernambuco feita por Silva é o que chamou de “o furor da
plebe”, no qual examina em detalhe a presença dos setores de baixa extração
nos
acontecimentos políticos de 1817 a 1824 visando entender os motivos dessa
pre-
sença popular e os temores ilustrados, tanto radicais quanto reformistas,
que ela
suscitou.
Os debates durante o seminário nos fizeram perceber que outro ponto
reclama-
va presença na pauta de discussões sobre a independência, além da
importância fun-
damental dos desdobramentos em Pernambuco, lacuna agora sanada no livro com
a
contribuição de Luiz Geraldo Silva. Talvez mercê da histórica ignorância
mútua que
nutrem hispano-americanos e brasileiros, havíamos falhado em não incluir uma
aná-
lise comparativa das guerras de independência na América Latina com o
processo de
independência brasileiro. Anthony MacFarlane, da Universidade de Warwick,
que
conduziu uma das sessões do seminário em Oxford, aceitou o desafio e
escreveu tal
ensaio para este livro, estabelecendo conexões e comparações entre as
guerras de

Untitled-1 17 08/08/2014, 15:03


18 A independência brasileira

independência na América Latina. Tal como Schultz, MacFarlane as insere no


con-
texto mais amplo da “era das revoluções”.
Reunido o material para compor este livro, faltava batizá-lo. O título
do workshop
realizado em Oxford — New Approaches to Brazilian Historiography — foi a
matriz
de onde tirei a idéia geral. Ao substituir “novas abordagens” por “novas
dimensões”,
minha intenção foi dupla: antes de mais nada, realçar o caráter propriamente
histó-
rico da historiografia, cuja dinâmica abre novos horizontes e perspectivas
de investi-
gação, consoante as perguntas levantadas a cada geração de historiadores;
subrepticiamente, “novas dimensões” visa tanto sublinhar o valor inestimável
de uma
obra da historiografia da indepedência que marcou época, quanto nosso
distancia-
mento dela.
As novas versões que constituem as contribuições aqui reunidas trazem
a marca
indelével dos debates iniciados em Oxford em 2003. A rigor, a discussão e a
polêmica
de alto nível marcaram aquele evento. Questões novas foram ali levantadas,
muitas
das quais sem resposta, caminhos de pesquisa que se abrem. Foi no debate que
se
pôde perceber o que de essencial ainda precisava ser tratado. Foi ali que
começou a
ganhar forma a obra que o leitor agora tem em mãos.

Untitled-1 18 08/08/2014,
15:03
Introdução

Esboço crítico da recente historiografia sobre a


independência do Brasil (c. 1980-2002)
Jurandir
Malerba

M uitas das questões que os historiadores da independência do Brasil


se esfor-
çam para responder nos dias de hoje começaram a ser elaboradas há
quase
dois séculos, praticamente desde os acontecimentos de 1822. Sucessivas
gerações,
com maior ou menor sucesso, responderam a seu modo essas mesmas questões. Ao
longo das décadas, questionamentos diferentes foram também levantados. A
recente
vaga revisionista da história da independência está aí a demonstrar que nem
tudo é
consenso no que concerne a temas os mais visitados pela historiografia,
relativos à
questão de por que, afinal de contas, ocorreu a independência do Brasil de
Portugal.
As questões têm variado ao longo do tempo, mas algumas são recorrentes e
serão
aqui priorizadas.
Os historiadores muito pesquisam e debatem sobre que fatores, forças,
proces-
sos, atores conduziram ao desfecho da emancipação política. Não há
unanimidade,
todavia, quanto a ter ou não havido algum projeto “nacional” fundamentando o
movimento, nem tampouco quanto à existência de algum tipo de unidade na Amé-
rica de colonização portuguesa à época da independência. Por outro lado, as
diferen-
tes interpretações geraram, ao longo da história dessa historiografia,
diversas
periodizações mais ou menos consistentes, variando conforme as diversas
linhagens
interpretativas. Por exemplo, um dos pontos abertos no debate sobre a
periodização
gira em torno da questão de se a vinda da corte para o Rio de Janeiro teria
protelado
ou deflagrado o processo de independência. O tipo de relação que a
independência
guarda com os movimentos insurrecionais do final do século XVIII também
depen-

Untitled-1 19 08/08/2014, 15:03


20 A independência brasileira

de, por sua vez, do foco de cada abordagem. Os movimentos insurrecionais da


se-
gunda metade do século XVIII, entre os quais se destaca a Inconfidência
Mineira,
guardariam ou não alguma relação de continuidade com o processo separatista
for-
malmente consolidado em 1825?
É debate antigo determinar qual teria sido o “caráter” da
independência, se
conservadora, reformista ou revolucionária. Em outras palavras: o que
haveria de
ruptura e o que de continuidade no processo de independência? Quanto à
inserção
do Brasil no contexto internacional da chamada “crise do antigo sistema
colonial”,
interpretações consagradas sobre os efeitos dessa crise no processo de
independên-
cia vêm sendo ultimamente constestadas. O processo político foi
razoavelmente
escrutinado, mas as novas abordagens derivadas do cultural turn na
historiografia
têm permitido aos historiadores aquilatar melhor a significância de outros
fatores
decisivos e até recentemente negligenciados. Por exemplo, que peso se deve
atri-
buir às radicais transformações culturais geradas pela abertura de 1808 e
pelo afluxo
de levas de migrantes de todos os pontos? Ou às transformações
civilizacionais
vividas pela população do Rio de Janeiro, geradas pela presença e pelas
demandas
do rei na arte, na ciência, na educação, nas melhorias urbanas? Atesta-o a
criação
do que se poderia chamar de uma “esfera pública” — ou pelo menos o
surgimento
de uma opinião pública —, de que é rico testemunho o caloroso debate na im-
prensa nascente.
Novas dúvidas foram levantadas sobre o caráter dos movimentos
insurrecionais
ocorridos durante os anos da independência. O período de turbulências
regionais
que se seguiu à abdicação de d. Pedro I levou alguns a concluírem que a
independên-
cia não estaria totalmente completada senão a partir do desmantelamento dos
movi-
mentos contestatórios da primeira metade do século XIX, confundindo-se aqui
in-
dependência com construção da nação. Este é um ponto controverso, que
aguarda
mais pesquisa e debate. O mesmo pode ser dito do papel desempenhado por
parti-
dos e ideologias no contexto da independência.
Se um longo caminho foi percorrido no entendimento das relações entre
o movi-
mento de restauração de 1820 em Portugal e a independência do Brasil, o
papel desem-
penhado pelo rei e sua casa dinástica foi praticamente ignorado pela
historiografia nas
últimas três décadas, como se as interpretações dos antigos historiadores
nos bastassem
ainda hoje. Novos estudos apareceram sobre a ação de grupos organizados,
como a
maçonaria, por exemplo, ou sobre a participação popular no movimento de
indepen-
dência. Essa ênfase na história das classes subalternas é outro
desdobramento do cultu-
ral turn iniciado nos anos 1960. Esta última questão sobre a participação
popular na
independência, sequer levantada até uma geração atrás, é caríssima à
historiografia

Untitled-1 20 08/08/2014, 15:03


Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 21

social mais recente e longe está de ser resolvida. Como agiram ou reagiram
os grupos
sociais nas diferentes províncias?
Velhas questões que pareciam esgotadas e que insistem em reabrir, como
feridas
que não cicatrizam. Pois o tema da independência ainda divide opiniões
históricas e
nutre paixões políticas. A história é viva.
Vejamos a seguir que tratamento receberam da historiografia algumas
dessas
questões nas duas últimas décadas.1
No levantamento que fiz da historiografia da independência,2 dividi
essa pro-
dução em cinco períodos, assim didaticamente distribuídos:

Produção historiográfica sobre a independência do Brasil até 2002

Período Bibliografia geral Na RIHGB


Total
Século XIX-1908 58 42
100
1908-c.1930 83 43
126
c.1930-1964 51 13
64
1964-c.1980 201 99
300
c.1980-2002 60 6
66
Total geral 453 203
656

Os critérios para o estabelecimento das datas-baliza apóiam-se no fato


de que,
embora constituindo massa de material muito heterogêneo — crônicas,
narrativas
de viagem, anais, biografias, compilações de documentos, memórias —, a
bibliogra-
fia do século XIX mantém-se numa mesma linhagem historiográfica até 1908,
ano
da publicação de D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima.3 De uma perspectiva
emi-
nentemente política e diplomática, que marca a historiografia oitocentista —
na qual
se inclui a História da independência do Brasil, de Francisco Adolfo de
Varnhagen4 —,

1 Elaborei um primeiro ensaio sobre a riqueza crítica da historiografia da


independência em Malerba, 2004.
Para escrever o texto que se segue beneficiei-me grandemente de Costa, 2004.
Um excelente balanço crítico
da historiografia americana (e brasileira!) sobre a independência do Brasil
encontra-se em Kraay, 2004. Estes
dois últimos ensaios estão em vias de publicação nos anais do Seminário
Internacional Independência do
Brasil: História e Historiografia, realizado na USP em 2003.
2 Trata-se de pesquisa em andamento na qual se incluem tão-somente obras
históricas cujo objeto é o proces-
so de emancipação política do Brasil, não abordando, portanto, outros
gêneros, como literatura ficcional,
livros didáticos, histórias gerais etc.
3 Ver Lima, 1945.
4 Ver Varnhagen, s.d. Pronta desde 1877, a História da independência foi
publicada postumamente apenas
em 1916, por iniciativa do IHGB, já no marco das comemorações do primeiro
centenário.

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08/08/2014, 15:03
22 A independência brasileira

com Oliveira Lima assiste-se à inclusão de aspectos sociais e culturais


decisivos para o
processo de independência, até então negligenciados no debate
historiográfico.5
O quadro anterior permite perceber claramente que a produção histórica
sobre
a independência tem dois momentos fortes no século XX, nos anos que precedem
e
sucedem, respectivamente, as efemérides do centenário oficial (1922) e do
sesquicentenário (1972), quando um volume imenso de títulos veio a lume.
Essas
duas datas — ou as efemérides em torno delas — imantam a produção
historiográfica
e definem a periodização mais ou menos arbitrária que construí com objetivos
mera-
mente heurísticos. Os meados do século XX assistiram a uma relativa
desaceleração
dessa produção, que marcou igualmente os anos 1980. Na década de 1990,
sobretu-
do a partir de sua segunda metade, nota-se uma significativa expansão dos
estudos
históricos sobre a independência. O foco da presente análise é justamente
essa pro-
dução mais recente, desde o início da década de 1980 até 2002.6
Embora sua qualidade aguarde ainda avaliação mais cuidadosa, o boom
historiográfico dos anos 1970 registrou a publicação de mais títulos sobre o
tema da
independência do que toda a produção precedente. Comparativamente às décadas
de 1960 e 1970, muito pouco foi produzido durante os anos 1980. Basta lembar
que, entre os 79 títulos inicialmente encontrados entre 1980 e 2002, há
inúmeras
reedições, de modo que a bibliografia efetivamente nova contabilizada reduz-
se a 66
títulos, seis dos quais publicados pela Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasi-
leiro. Dos 60 volumes restantes, apenas três datam da década de 19807 e
somente 11
são anteriores a 1995. Ou seja, a maioria esmagadora da produção
historiográfica
sobre a independência nas duas últimas décadas, cerca de 85% dos títulos,
concen-
tra-se no último lustro do período.
Essa produção dos últimos 20 anos será o foco da análise a seguir.
Deixemos de
lado, por um momento, as razões de tal fenômeno, da eclosão desse boom sobre
a
independência, e olhemos para o que tem sido publicado. Que questões têm
instiga-

5 Cabe o registro, contudo, que D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima,


embora fundamental para o entendi-
mento da independência, centra-se no período joanino. Seu O movimento da
independência pode ser incluído
na mesma linhagem interpretativa que marca o século XIX.
6 A endossar meu argumento de uma crescente retomada de interesse sobre a
independência, o qual levou a
um relativo boom no último lustro, estão os dois eventos realizados em 2003
sobre o tema. O history workshop
New Approaches to Brazilian Independence, realizado na Universidade de
Oxford, em 29 e 30 de maio, patro-
cinado pelo Centre for Brazilian Studies daquela instituição (o conjunto de
ensaios reunidos nesta coletânea
é fruto daquele debate), e o Seminário Internacional Independência do
Brasil: História e Historiografia,
realizado em setembro pela USP, evento de grandes dimensões que reuniu cerca
de 40 especialistas de vários
países.
7 Todos de autores não-brasileiros: ver Barman, 1988; Proença, 1999; e
Silva, 1988.

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08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 23

do essa leva recente de historiadores? A que linhagens problemáticas suas


investiga-
ções se filiam? De que ângulos têm enfocado o processo de emancipação
política? A
que respostas, ainda que provisórias, chegaram? O que há de efetivamente
inovador
nessa produção?
Diante da impossibilidade de tratar de cada título levantado,
desenvolverei meu
argumento procurando rastrear nessa recente historiografia os tópicos mais
pesquisados
e debatidos. De imediato, o tema que mais tem atraído a atenção dos
historiadores
da independência no Brasil é a “questão nacional”.

Nação

A relação entre independência e nação pode ser definida, se me for


permitida a
ironia, como a discussão sobre a anterioridade histórica do “ovo” e da
“galinha”, ou
quem nasceu primeiro: o Estado ou a nação? Há importantes precedentes,
autores
ilustres que endossaram a hipótese da anterioridade de uma “nação” ou de uma
“cons-
ciência nacional” em relação à independência.8
Em um pequeno livro, publicado pela primeira vez em 1986 e reeditado
10
anos depois, Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota mapearam rigorosamente
as principais questões históricas e vertentes historiográficas da
independência. Ao
pensar o “caráter” do movimento, os autores observaram suas contradições
latentes.
Ao mesmo tempo liberal e conservador, teria sido também “nacional”, “por
criar a
‘nação’, fabricação ideológica do senhoriato para manter sua rígida
dominação social e
política. Quem desejou ir além morreu, como frei Caneca”.9 Tal interpretação
é
marcante na historiografia que passo a analisar.
Maria de Lourdes Vianna Lyra, em ensaio sobre a construção do mito do
7 de
setembro,10 entende que a emancipação “não implicava ruptura com a ‘mãe-
pátria’,
pelo contrário, baseava-se no pressuposto da unidade nacional luso-
brasileira”. Con-
siderando-se o estatuto colonial do Brasil frente a Portugal, a idéia de um
Império
luso-brasileiro, consagrada à época e pela historiografia posterior, parece-
me definiti-
vamente mais apropriada que a de “nação” para designar as relações entre
Brasil e

8 Kenneth Maxwell, por exemplo, entende a Inconfidência Mineira como um


movimento nacionalista. Em
Maxwell (1986:142 e segs.) propôs-se a pensar a seguinte questão: “Mas por
que é que, em fins do século
XVIII, Minas Gerais foi a base do primeiro movimento autenticamente
nacionalista da América portuguesa?
Uma revisão minuciosa da historiografia da inconfidência desde o século XIX
encontra-se em Furtado, 2002.
9 Ver Novais e Mota, 1996:13.
10 Ver Lyra, 1995.

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08/08/2014, 15:03
24 A independência brasileira

Portugal anteriormente à ruptura. Em outro momento do mesmo ensaio, expõem-


se
as estratégias de investigação dessa “conjuntura inicial da história
nacional”. Confor-
me explorarei em detalhe mais adiante, a considerar os estudos mais recentes
sobre
formação da nação e construção do Estado imperial,11 é tese bem aceita pela
histo-
riografia que a primeira é processo que se consolida bem posteriormente, por
volta
de meados do século XIX.
Em dois momentos subseqüentes de sua formação, Ana Rosa Cloclet Silva
de-
dicou-se à “questão nacional” à época da independência. Em sua pesquisa de
mestrado
de 1996, publicada em 1999, a autora aborda o tema no pensamento de José
Bonifácio.12 Nota-se no texto uma certa dubiedade conceitual de origem, na
patente
indistinção das nuances históricas e conceituais entre construção do Estado
e formação
da nação no Brasil. Categorias e processos absolutamente coextensivos são,
não
obstante, específicos o bastante para serem considerados distintos entre si.
O excerto
a seguir dá a medida da questão (Silva, 1999:8, grifo meu):

O debate historiográfico sobre a formação do Estado nacional


brasileiro tem sido
marcado pela presença constante da temática da escravidão. A
associação entre
estes dois temas — nação e escravidão — (...) deriva do fato de
que, entender
nossa formação nacional implica buscar as especificidades do
contexto a partir do
qual ela se gerou, o que, no caso do Brasil, significa considerar
nossa origem
colonial e escravista. Neste sentido, a compreensão do processo
de construção da
nação brasileira não se dissocia destes dois traços básicos de
nossa formação social,
de forma que é a relação entre eles que deve ser buscada para
efeitos de se compre-
ender a dinâmica do processo em questão.

A autora refere-se ao processo de emancipação política como


“independência
nacional” (p. 15). Em sua tese de doutorado, defendida em 2000, estendem-se
o
período e o tema de sua pesquisa. Os mesmos desafios teóricos presentes em
sua
dissertação de mestrado reincidem na tese de doutorado, particularmente na
defini-
ção conceitual de Estado e nação. Ao introduzir o segundo volume de sua tese
(p. 174), centrado na análise do acirramento da guerra peninsular e na
progressiva
dissolução do sistema luso-brasileiro, a autora refere-se ao surgimento de
uma “cul-
tura política” entre 1808 e 1822, que seria “específica à época da
independência nacio-

11 Cf. Jancsó, 2003.


12 Ver Silva, 1999. Sobre o papel do “patriarca”, ver também uma compilação
de documentos em Dolhnikoff,
1998.

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08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 25

nal”. Ou mais adiante, ao tratar da “fragilização do Império na luta pela


hegemonia
do poder”, afirma que “a partir de janeiro de 1822, as tensões transferem-
se, funda-
mentalmente, para o espaço nacional”.13 De fato, do lado português, a
atitude dos
restauradores do Porto pode ser definida como a busca desesperada pela
reinserção
de Portugal numa situação mais confortável no equilíbrio de poder — em uma
pala-
vra, a recuperação do Império, com Lisboa novamente como sua sede. Da parte
das
elites locais residentes nas várias regiões da América portuguesa, a meta
era antes a
manutenção dos mecanismos garantidores de suas posições privilegiadas
(monopóli-
os de comércio e escravidão) do que qualquer projeto assegurador da
“unidade” entre
as diversas regiões — a qual, definitivamente, não existia à época.
A “questão nacional” também é central na pesquisa de Gladys Sabina
Ribeiro,
defendida em 1997 e publicada em 2002, e que tem o Primeiro Reinado de d.
Pedro I
como contexto de investigação da construção da identidade nacional. Nela,
discute-
se o “início da formação identitária da nação”, tendo como marcos
cronológicos “os
acontecimentos que precederam e sucederam o Sete de Abril, quando o país foi
(re)descoberto com a abdicação de d. Pedro I e falou-se em nova e verdadeira
Inde-
pendência, liberdade total do ‘jugo português’”.14
Apesar de seu objeto consistir em período posterior à independência,
este assunto
é tratado. Preocupada em perceber a atuação das “camadas populares” naqueles
aconte-
cimentos, a autora sugere quais seriam as grandes questões em pauta no
período (Ri-
beiro, 2002:18):

Trocando em miúdos, do período anterior e posterior à Revolução do


Porto até a
época da Abdicação as contendas passaram a girar ao redor de questões
como
Monarquia ou República, Federalismo ou Centralismo. Quanto à
autoridade,
seria esta fundamentada sobre a Soberania Nacional ou sobre a
Soberania Popular?

São questões polêmicas. A considerar os estudos sobre a Constituição de


1824
e o direito público no Império, desde o marquês de S. Vicente, nunca a
soberania
esteve no “povo”: a soberania era atributo do imperador, cuja vontade estava
acima
da lei.15 Por outro lado, nacional e popular não são conceitos
necessariamente
excludentes. Quanto à questão da nação, a complexidade analítica manifesta-
se

13 Outros trabalhos recentes admitem o surgimento da nação antes ou durante


o processo de independência.
Cf. Fernandes, 2000.
14 Ribeiro, 2002.
15 Bueno, 1978. Ver também Meneses, 1977a, 1977b e 1977c; e Saes, 1985.

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08/08/2014, 15:03
26 A independência brasileira

claramente. A solução adotada na obra de reificar sentimentos e estados


atribuindo-
lhes maiúsculas não soluciona satisfatoriamente o problema: “Em fins deste
ano de
1821 e ao longo do seguinte, 1822, a causa da Liberdade tinha se
transformado em
‘Causa Nacional’, entendida enquanto autonomia”.16
Muitos autores, como Sérgio Buarque de Holanda e Maria de Lourdes
Lyra,
já demonstraram que a autonomia esteve sempre em pauta, pelo menos desde o
reformismo ilustrado. A manutenção da monarquia dual era perseguida pelas
eli-
tes dos dois lados do Atlântico, que, todavia, diferiam quanto a questões
impor-
tantes, como o papel e a ascendência de cada uma das partes na balança de
poder.
“Causa nacional” é expressão problemática, talvez mesmo anacrônica, para
retratar
esse momento.
Richard Graham17 pintou um minucioso quadro historiográfico da
construção
da nação no século XIX. Ele avalia a trajetória da polêmica sobre a
precedência histó-
rica do Estado ou da nação e sustenta, coerentemente, a tese de que, no
Brasil, “o
Estado levou à formação de uma nação, e não o contrário”, embora reconheça
que
não há qualquer linearidade no processo. No que se refere ao Brasil, Graham
argu-
menta que a tese de que “uma nação existiu antes do Estado independente pode
ser
descartada”.
Em suma, os avanços no debate historiográfico levam à conclusão de que
uma
precisa distinção conceitual entre “processo de independência” e “formação
da na-
ção” é um imperativo. Até em momento muito avançado da história da
historiogra-
fia da independência não haveria tanto problema nessa definição: a maioria
absoluta
de seus historiadores até, digamos, Sérgio Buarque de Holanda (e mesmo
depois
dele) identifica a independência com o fim do jugo colonial que marcou os
primei-
ros três séculos da história da América colonizada por portugueses, a
serviço da coroa
lusitana. Ou seja, consideram o processo da emancipação política, da
separação de
Portugal daquilo que viria a ser o Brasil. Daí resulta definirem-se as
principais
balizas cronológicas do acontecimento entre 1808, ano da chegada da família
real
ao Brasil, ou 1821, ano do regresso do rei a Lisboa, até 1825, quando do
reconhe-
cimento da independência pelas diplomacias internacionais, ou 1831, ano da
ab-
dicação de d. Pedro.

16 Ribeiro, 2002:19.
17 Graham, 2001. Originariamente publicado como Constructing a nation in
nineteenth-century Brazil:
old and new visions on class, culture, and the State. The Journal of the
Historical Society, v. 1, n. 2/3, p. 17-56,
2001. Utilizarei as citações da tradução brasileira.

Untitled-1 26
08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 27

Com Sérgio Buarque de Holanda e, em sua linha, Maria Odila da Silva


Dias e
José Murilo de Carvalho18 a historiografia começou a atentar para a
complexidade
daquele fenômeno histórico, a partir da apropriada consideração, nele, de
aspectos
correlatos que devem ser inseridos na análise da independência, como a
construção
do Estado imperial e a formação da nação brasileira. Pode-se datar do texto
de Maria
Odila Dias o início das periodizações que, guardando aquelas referências,
estendem
o processo de independência até 1848 e além.
Em texto recente, István Jancsó e João Paulo Pimenta enveredam por
tais emba-
tes historiográficos. A partir da análise dos discursos dos deputados
brasileiros nas
cortes constituintes de Portugal, os autores procuram demonstrar a
complexidade do
fenômeno de emergência de uma “identidade nacional”, como se prefigura na
dife-
renciação conceitual dos termos pátria, país e nação, veiculados naqueles
discursos.
O primeiro estaria mais vinculado ao lugar de origem; “país” equivaleria à
unidade
envolvente dessas províncias; “nação” seria um conceito mais fugidio, pois
escaparia de
país e pátria. Uma nação “brasileira” inexistia ainda quando das cortes
constituintes.
Jancsó e Pimenta argumentam que o processo de construção da nação — e,
por
extensão, de consolidação da independência — se arrasta por pelo menos toda
a
primeira metade do século XIX, ou até pouco mais além, como corroboram os
mo-
vimentos insurrecionais eclodidos nas províncias. Sua hipótese é de que a
instauração
do Estado brasileiro precede a difusão de um “espírito ou sentimento
nacional”
(a expressão é minha), pois convive, de início, com um feixe amplo de
diferenciadas
identidades políticas, com trajetórias próprias e respectivos projetos de
futuro.
Os autores afirmam, com propriedade, que não se pode reduzir o
processo de
formação do Estado à “ruptura unilateral do pacto político que integrava as
partes da
América no império português”.

Hoje é assente que não se deve tomar a declaração da vontade de


emancipação
política como equivalente da constituição do Estado nacional
brasileiro, assim
como o é o reconhecimento de que o nexo entre a emergência desse
Estado com a
da nação em cujo nome ele foi instituído é uma das questões mais
controversas da
nossa historiografia.19

Os autores indicam em nota, com acerto, que foi obra da historiografia


impe-
rial, em meio às crises recorrentes de afirmação do Império, procurar
conferir ao

18 Holanda, 1970; Dias, 1972; e Carvalho, 1981 e 1988.


19 Jancsó e Pimenta, 2000:132 e segs.

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08/08/2014, 15:03
28 A independência brasileira

Estado uma idealizada sustentação por meio do “resgate” do seu passado


imediato,
do que resultou a elaboração do mito da “fundação tanto do Estado como da
nação”
a partir do rompimento com Portugal.20
Se atrelarmos a independência ao processo de consolidação da formação
da na-
cionalidade brasileira, pode-se encontrar argumentos para afirmar que a
independên-
cia é até hoje, parafraseando Carlos Guilherme Mota, uma “viagem
incompleta”. Têm
razão autores como Maria Odila da Silva Dias, Ilmar Mattos e todos aqueles
elencados
por Jancsó e Pimenta, ao compreenderem que a construção da nação é processo
que se
arrasta, pelo menos, por praticamente toda a segunda metade do século XIX.
Mas este
não pode se confundir com a formação do Estado e, menos ainda, com a
independên-
cia do Brasil de Portugal, o processo da emancipação política brasileira. E
é esse o proces-
so que nos interessa. A questão para a qual aqui se busca resposta é: por
que aconteceu,
do modo e no momento em que se deu, a separação de Portugal e Brasil?

Unidade

A complexidade do tema torna-se patente ao se pensar a relação das


distintas
regiões da América portuguesa, que em breve seriam designadas por
províncias, com
o movimento emancipatório. Evaldo Cabral de Mello demonstra, com a maestria
que lhe é característica, as implicações históricas da construção do mito
historiográfico
do separatismo e do republicanismo dos pernambucanos, forjado pelos
segmentos
vencedores no processo da construção do Estado, na pena de seus porta-vozes
cons-
pícuos: a “historiografia saquarema da Independência”:

(...) isto é, a historiografia da corte fluminense e dos seus


epígonos na República,
para quem a história da nossa emancipação política reduz-se à da
construção de
um Estado unitário. Nesta perspectiva apologética, a unidade do
Brasil foi conce-
bida e realizada por alguns indivíduos dotados de grande descortínio
político, que
tiveram a felicidade de nascer no triângulo Rio-São Paulo-Minas e a
quem a pátria

20 E apontam para as correntes historiográficas que sustentaram as múltiplas


possibilidades históricas inscri-
tas no momento do surgimento do Estado livre brasileiro, desde Caio Prado
Jr. (1983) até hoje. A historio-
grafia da formação do Estado e da nação no Brasil recebeu recentemente
contribuições de alta qualidade,
acrescidas aos trabalhos já clássicos de Sérgio Buarque de Holanda (1970) e
de Maria Odila Leite da Silva
Dias (1972) ou Ilmar R. de Mattos (1987). Tal historiografia revelou a alta
complexidade do tema. Um
balanço dessas perspectivas encontra-se em Jancsó e Pimenta (2000:131-175),
e na coletânea citada (Jancsó,
2003), que reúne os ensaios apresentados em congresso homônimo. Ver também
Berbel, 1999; Souza, 1999;
Barman, 1988; Santos, 1992; e Oliveira, 1999, entre outros.

Untitled-1 28
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Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 29

ficou devendo o haverem-na salvo da voracidade dos interesses


provinciais, como
se estes fossem por definição ilegítimos, e do gosto, digamos ibero-
americano,
pela turbulência e pela agitação estéreis, como se Eusébio, Paulino
ou Rodrigues
Torres não fossem representantes de reivindicações tão regionais
quanto as de
Pernambuco, Rio Grande do Sul ou do Pará.21

O argumento do eminente historiador pernambucano é extremamente sagaz,


ao descortinar os vícios de uma historiografia que se impôs “nacional”. Ao
longo do
Império, Pernambuco viveu a permanente suspeita de separatismo por parte dos
grupos dirigentes da monarquia, em função do papel geopolítico desempenhado
pelo entreposto comercial recifense, sede administrativa de uma importante
macrorregião. A historiografia oficial do regime imperial encampa a
acusação, pois
angaria para as províncias do Sul o mérito da obra de construção da
nacionalidade
brasileira. Só com o marquês de Paraná se realizaria a condição fundamental
para a
unidade, que foi a abertura de espaço no poder central para as oligarquias
nortistas.
O argumento de Evaldo Cabral de Melo é que não poderia ter havido
separatismo
em 1817 e 1824, já que inexistia constituída uma nação brasileira nesse
momento.22
Essa mesma concepção, da precedência do Estado à nação, que certamente
seria
defendida por Eric Hobsbawm (1990) também para o caso brasileiro, é
reiterada
firmemente por Manuel Correia de Andrade em ensaio sobre os projetos
políticos no
tempo da independência, no qual o autor afirma o isolamento das províncias,
no
sentido de que não havia idéia ou sentimento de “unidade”, de pertencimento,
por-
tanto de nação, pátria ou algo que o valha naquele quadrante histórico. De
acordo
com o autor, d. João tentou aliviar as tensões originadas da condição
colonial com a
elevação do Brasil à categoria de reino, a ser unido a Portugal e Algarves.
“A condição
de Reino Unido dava à elite dirigente uma idéia de Independência, com a
manuten-
ção do status quo; com isto, tentava-se unir as províncias que até então
tinham pouca
vinculação entre si”.23

21 Melo, 2001:16 e segs.


22 “É conhecida a antipatia de Varnhagen pela República de 1817, a cujo
respeito confessa na História do
Brasil teria preferido silenciar, o que fará na História da Independência.
Malgrado essa aversão, ele absteve-se
de caracterizá-la de separatista, cônscio provavelmente de que constituiria
anacronismo criticá-la por isto,
quando o que existia então não era a unidade nacional, mas a unidade do
Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves proclamado em 1815” (Mello, 2001:19). Evaldo Cabral de Mello
desenvolveu sua “desconstrução”
da versão saquarema da independência em seu novo livro (ver Mello, 2005). O
trabalho de Denis Bernardes
(2002) vem também contribuindo significativamente para a revisão do papel de
Pernambuco no processo de
independência.
23 Andrade, 1999:60.

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30 A independência brasileira

Manuel Correia de Andrade assim reitera tese já sustentada


anteriormente em
ensaio clássico de Sérgio Buarque de Holanda (1970:9, 18), que
magistralmente
sugeria que, “no Brasil, as duas aspirações — a da Independência e a da
unidade —
não nascem juntas e, por longo tempo ainda, não caminham de mãos dadas”:

(...) no tempo do rei velho o país parecia organizado como uma


“espécie de fede-
ração, embora a unidade nacional devesse, ao contrário, ser mais
favorável aos
progressos de toda ordem”. Essa unidade, que a vinda da corte e a
elevação do
Brasil a reino deixara de cimentar em bases mais sólidas, estará ao
ponto de esface-
lar-se nos dias que imediatamente antecedem e sucedem à proclamação
da Inde-
pendência. Daí por diante irá fazer-se a passo lento, de sorte que só
em meados do
século pode dizer-se consumada.

Evaldo Cabral de Melo endossa a mesma tese, assim como Graham, no


ensaio
já mencionado. Para este último, reiterando proposição clássica de Oliveira
Lima, a
chegada da corte representou um marco definitivo da independência do Brasil.
Mas
o “Brasil”, em si, sequer existia. De acordo com Graham, independentemente
do
desejo de liberdade que nutriam as pessoas das diferentes províncias em
relação a
Portugal, a ninguém agradava a idéia do poder centralizado no Rio de
Janeiro.
A unidade, nas colônias, não era assegurada por qualquer suposta
identidade
nacional, mas pela eficácia da burocracia de Estado metropolitana, conforme
de-
monstraram Afonso Carlos Marques dos Santos (1992:141) e István Jancsó
(2002:10).
Enfim, compartilho da periodização proposta por Sérgio Buarque de
Holanda,
corroborada por Evaldo Cabral de Melo, que distingue a independência,
entendida
como processo de emancipação política (que se pode situar entre 1808 e, no
máxi-
mo, 1831), do processo de construção do Estado imperial (que, sem dúvida, se
inicia
nesse interregno, com as atividades da Assembléia Constituinte em 1823, a
outorga
da Carta em 1824 e a aprovação do Código Criminal em 183024 ) e da formação
de
uma nacionalidade brasileira, esta ainda mais posterior. Não obstante,
concordo em
que tais processos são umbilicalmente ligados e que a independência não
estaria
consolidada antes da finalização da construção do Estado (vale lembrar que o
Códi-
go Comercial, simulacro de um Código Civil que só aconteceu na República, é
de

24Para uma contextualização desses primórdios da estruturação do Estado


imperial, ver Carvalho, 1981 e
1988; Malerba, 1994; e Saes, 1985.

Untitled-1 30
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Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 31

185025 ) e da difusão de uma concepção de nação (muito beneficiada por nosso


ro-
mantismo nativista).

Periodização

Talvez a tentativa de estabelecimento de referenciais historiográficos


do proces-
so de independência mais bem-sucedida seja a proposta por José Honório
Rodrigues.
Pioneiro e entusiasta dos estudos historiográficos no Brasil, Rodrigues não
poderia
deixar de incluir uma carta de orientação bibliográfica de estudos da
independência
na grande obra histórica que deixou sobre o tema. Não cabe aqui entrar no
mérito da
proposta de periodização do processo, situada entre abril de 1821, ano do
regresso de
d. João a Portugal, e agosto de 1825, com o Tratado de Reconhecimento da
Indepen-
dência.26 Por entender a independência como revolução, José Honório enquadra
autores como Oliveira Lima na categoria dos “ortodoxos”. Para tomar um
exemplo
entre os clássicos, O movimento da independência seria, nesse sentido, “uma
síntese
bem feita”, cujo principal defeito seria ter negligenciado os aspectos
econômicos e
sociais. A ortodoxia o situaria entre aqueles “que não só reconhecem os
benefícios do
governo de d. João, como sua influência direta no movimento”. Ou seja,
aqueles que
assumem o papel decisivo de d. João no processo de emancipação renegariam a
inde-
pendência como revolução: seriam, portanto, ortodoxos e conservadores.
O problema da periodização da independência abre para as diversas
interpreta-
ções e suas ênfases nos aspectos políticos/diplomáticos e econômicos e
sociais, e incide
diretamente na questão da duração do movimento.
Maria de Lourdes Vianna Lyra (1995) produziu ensaio para discutir se o
“7 de
setembro” representa ou não o turning point da independência, visando
apreender a
dimensão simbólica dessa baliza com o objetivo de “buscar na forma de sua
represen-
tação os condicionantes políticos que encaminharam à definição do Grito do
Ipiranga
como marco fundante da nacionalidade brasileira”. Tal abordagem produz
resultados
análogos aos daquelas outras que buscam obstinadamente negar o mito da
fundação,
como a obra de Morivalde Calvet Fagundes (1997). De suas investigações sobre
as
correspondências e relatos referentes ao 7 de setembro, Vianna Lyra
(1995:179, grifo
meu) pode inferir:

O olhar mais atento aos registros da imprensa ou aos discursos


políticos sobre os
acontecimentos de 1822, e sobre as repercussões ocorridas na
sociedade da época,

25 Saul, 1989.
26 Rodrigues, 1975, v. 3, p. 255.

Untitled-1 31
08/08/2014, 15:03
32 A independência brasileira

revela não apenas omissões ou desencontros freqüentes quanto ao marco


definidor
de ruptura da unidade luso-brasileira, isto é, sobre a data precisa da
Independência,
mas evidencia ainda o completo silêncio quanto ao Sete de Setembro
como o
marco definitivo da proclamação da Independência, representação que se
tornaria
no símbolo maior da memória nacional.

A busca da “data precisa” da fundação da nação tende à abordagem que


desconsidera, necessariamente, a independência como processo, centrando o
foco
exclusivamente em seu aspecto político. Em tal abordagem os condicionantes
sociais
fundamentais, como a própria redefinição das elites no período 1808-20,
acabam
em segundo plano.

“Caráter” da independência

A discussão em torno do caráter da independência define o entendimento


do
processo e sua periodização. A questão foi claramente enunciada pelos
professores
Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota. Teria sido revolucionária?
Reformista?
Conservadora? Eles estão corretos ao afirmar que a historiografia varia no
estabeleci-
mento das datas-baliza, tanto da deflagração quanto da conclusão do
processo. Se-
guindo José Honório Rodrigues, a historiografia ora engloba o período
joanino e
chega ao período regencial (1831 ou até mesmo 1840), ora restringe-se aos
fatos
luminosos ocorridos entre 1821 (a volta de d. João a Portugal) e 1825,
quando dos
primeiros tratados de reconhecimento pelas diplomacias internacionais. E
acertam
novamente os autores uspianos na crítica à interpretação de José Honório,
segundo a
qual as periodizações pautadas na periodização mais longa vincular-se-iam a
uma
perspectiva conservadora, que acentua a continuidade, enquanto a perspectiva
libe-
ral explicitaria a ruptura. Concluem Novais e Mota (1996:18):

Ora, colocada a questão nessa dicotomia, fica de fora um terceiro


caminho, que
precisamente nos parece o mais acertado: encarar a independência como
momento
inicial de um longo processo de ruptura, ou seja, a desagregação do
sistema colonial
e a montagem do Estado nacional.

Quer-me parecer que essa terceira perspectiva indicada, post-factum, é


eivada de
teleologia. Isso porque a questão da montagem do Estado nacional sequer
estava
claramente enunciada no processo de ruptura. As pesquisas de Márcia Berbel e
Ma-
ria de Lourdes Lyra demonstram categoricamente que a separação deveu-se mais
à

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15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 33

falta de competência das elites de ambos os lados do Atlântico em preservar


a monar-
quia dual — que era o mote da maioria dos constituintes brasileiros até
avançado
momento da Assembléia —, do que a um desejo latente de implantar um Estado
“nacional”.
Insere-se nessa discussão das balizas temporais, assim como do caráter
da inde-
pendência, a avaliação sobre o peso da transferência da corte para o Rio de
Janeiro.
Sierra y Mariscal (1920) talvez tenha sido o primeiro a enunciar claramente
o proble-
ma. Entendia que a independência já era um processo em marcha, retardado,
contu-
do, pela chegada da família real. Obras recentes acresceram pesquisa e
argumentos ao
debate.27 Quanto a afirmar que a chegada da corte protelou a independência,
eu
diria que sim e que não. Sim, porque a chegada do rei ao Brasil abriu para o
lado
mais forte da contenda (as classes superiores brasileiras) a possibilidade
de vislum-
brar saída menos traumática que a ruptura. Não, porque a vinda da corte
significou
um passo decisivo, do qual não haveria como retroceder. De um modo ou de
outro,
pela conciliação ou pela ruptura, estava lançada a pedra fundamental da
indepen-
dência.
Esse debate sobre o caráter da independência tende, no âmbito da
historiogra-
fia, a endossar interpretações cristalizadas, como as que contrapõem
interesses e/ou
grupos “portugueses” e “brasileiros”. Tal atitude acaba por obliterar a
visão do papel
de agentes históricos importantíssimos, aos quais a historiografia recente
não tem
prestado a devida atenção. Refiro-me especialmente ao papel decisivo
desempenha-
do pelo rei, como chefe de sua casa dinástica, no processo de independência.
Foi Sérgio Buarque de Holanda, mais uma vez, quem teve sensibilidade
para
observar que “(...) o 7 de setembro vai constituir simples episódio de uma
guerra civil
portuguesa, e onde se vêem envolvidos os brasileiros apenas em sua condição
de por-
tugueses do aquém-mar. O adversário comum está, agora, claramente nas cortes
de
Lisboa”.28 Deve ter ocorrido a d. João, ou a seus conselheiros, o trunfo que
o Brasil
representava, após o rei ter sido desafiado pelas cortes de Lisboa. István
Jancsó
(2002:25) também assim percebeu, enfocando o projeto de formulação imperial
dos
Bragança do ângulo de sua aceitabilidade em terras brasileiras:
Os Bragança formularam e implementaram o seu projeto imperial, e este
se refor-
çou na América pois atendia às expectativas das elites locais. Aqui,
ao contrário da

27 Cf. tese de doutorado de Kirsten Schultz pela NYU em 1998, publicada como
Schultz, 2001; Souza,
1999; Schwarcz, 1998; Sleiman, 2000; Malerba, 2000; e Lopez, 2001.
28 Holanda, 1970:13, grifo meu.

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34 A independência brasileira

América hispânica, o conservadorismo político das elites encontrou no


projeto
imperial o instrumento de sua efetividade e os meios para o
rompimento dos
particularismos que no período anterior se apresentavam como
demarcadores dos
limites de seus projetos políticos possíveis.

Mas há uma face oculta nesse ponto. Aceitando-se que d. João tenha
sido
desafiado quanto às dimensões de seu poder pelos vintistas, pode-se entender
a
independência do Brasil como um momento dessa queda-de-braço. Os liberais de
1820 deflagraram um verdadeiro golpe de Estado contra o rei, ao lhe imporem
a
aceitação de uma Constituição ainda por ser feita e seu retorno
incondicional ao
reino, assim como a retomada da pauta de discussões sobre as relações
bilaterais
entre Brasil e Portugal.29 Por seu turno, o contragolpe do rei foi desferido
contra as
cortes vintistas, um verdadeiro “contragolpe” de Estado, ao aceitar a
Constituição
e o retorno, mas mantendo o príncipe herdeiro no Brasil. Esse ato sinalizou
clara-
mente que o custo do acinte dos revolucionários vintistas seria a perda
definitiva
da colônia, um preço caríssimo para os portugueses. Por outro lado, d. Pedro
era
herdeiro de d. João e, morrendo o pai, ironicamente corria Portugal o risco
de ser
colonizado pelo filho.
Até então as discussões caminhavam bem, no sentido da construção de um
novo império liberal transoceânico. A pressão dos grupos brasileiros para a
perma-
nência do príncipe e a ferrenha oposição a esta por parte das cortes de
Lisboa podem
ser tomadas como o turning point da separação. A partir daí as
possibilidades de
entendimento tornaram-se cada vez mais distantes. A partir daí, também, a
capaci-
dade de arregimentação e liderança de Bonifácio foi decisiva para a
unificação dos
discursos dos diversos grupos de interesses localizados no Brasil e,
doravante, reves-
tiu-se o príncipe de papel político que até então lhe era totalmente
estranho. A
simbologia construída em torno do “Fico” serve-lhe de testemunho.
Um segundo momento, este sim derradeiro, deu-se nos embates dentro das
cortes em Lisboa. Em certo sentido, faz nexo a afirmação de Maxwell
(1986:387) de
que “o verdadeiro movimento pela independência da colônia verificou-se na
Europa,
e foi ele a revolução portuguesa de 1820”. Foi a ela que d. João respondeu
com um
golpe de Estado, franqueando a independência às elites brasileiras com o
preço de
manter-se a coroa em sua casa.

29
Embora não se tratasse mais de restaurar a antiga condição colonial,
completamente intangível naquele
momento, como provam as pesquisas mais recentes de Márcia Berbel.

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08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 35

Se as juntas mais ativas do Brasil, como as de São Paulo e Pernambuco,


con-
cordavam com as de Portugal quanto à questão da integridade e da
indivisibilidade
do Reino Unido, divergiam irreconciliavelmente quanto aos papéis de ambas as
partes e quanto ao local da sede da monarquia. A adesão de todos ao sistema
libe-
ral, que significaria a extirpação da ameaça da independência absoluta do
Brasil,
esbarrava nas diferentes posturas quanto ao poder de mando na nova
configuração
política que se buscava. No início de 1822, deputados brasileiros, como o
pernambucano Muniz Tavares, já respondiam abertamente com a separação total
às posturas recolonizadoras, manifestadas, por exemplo, na ameaça de envio
de
tropas militares portuguesas para o Brasil. Como observa acertadamente Maria
de
Lourdes Lyra (1994:208):

O projeto de emancipação sem desligamento, ou seja, o modelo de Estado


cons-
tituído em Reino Unido, começava a naufragar face à [sic] insatisfação
dos portu-
gueses da Europa em relação às démarches da política de unidade luso-
brasileira.

A partir daí, os grupos de interesse elevaram o príncipe herdeiro a


agente histó-
rico, sendo a radicalização o caminho seguido. O resto jaz na retórica
panfletária, nas
memórias edificantes e no cipoal de fatos que preenchem a narrativa da vasta
histo-
riografia sobre a “independência”.

Camadas populares

Leslie Bethell (1985:166 e segs.) já afirmara certa vez que a


independência foi
obra das elites, de segmentos superiores oriundos de ambos os lados do
Atlântico.
Trata-se de questão fartamente trabalhada pela historiografia, mas que,
ainda sim,
gera controvérsias.
Contundente — e menos simpático em função de seu aspecto aparentemente
conservador — é o entendimento de Manuel Correia de Andrade (1999:63) de que
“o povo não usufruiu das conquistas da Independência, pois foi um movimento
de elites
para elites”. Conforme mencionado anteriormente, José Honório Rodrigues
designa
como ortodoxos e conservadores os historiadores que datam o início da
independên-
cia ao tempo da chegada da corte ao Brasil. Tal entendimento negaria o
caráter revo-
lucionário da guerra da independência, deixando prevalecer o papel
desempenhado
por d. João e o decorrente caráter elitista e conciliatório do movimento.
Contrarian-
do os rótulos de José Honório Rodrigues, diria que conservador não é o
historiador

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08/08/2014, 15:03
36 A independência brasileira

que atribui peso à obra de d. João, nem quem relativiza o papel desempenhado
pelo
povo. Conservador foi o processo em si.30
Mas o assunto é polêmico e, nas duas últimas décadas, não se avançou
muito no
conhecimento do papel desempenhado pelas classes populares — escravos,
libertos,
homens livres pobres — no processo de independência. Por exemplo, os
esforços de
Gladys Sabina Ribeiro no sentido de enquadrar a participação popular no
movimen-
to de independência acabam pintando o cenário com tintas estranhas ao
quadro. Em
seu A liberdade em construção, a autora procura situar a participação do
“povo”, que
sempre surge em seu texto entre aspas e em caixa alta. Mas definir quem era
esse
“povo” torna-se tarefa malgrada. Vê-se nos documentos de época “o povo”
assinar
manifestos, posicionando-se contra ou a favor a independência, o povo contra
o
povo. Falta saber quem escrevia em nome do povo!

O “Povo” tinha bastante nitidez quanto aos seus objetivos e sabia as


potencialida-
des do país, lançando da mesma forma mão da ameaça. (...) O “Povo”
era por
demais organizado. Tinha em mente, principalmente, os problemas
econômicos,
que podiam abalar a “segurança” e a “prosperidade” do Reino.

Gladys Ribeiro (2002:38 e segs.) acaba por concluir que o “Povo” era o
“partido
brasileiro”, que pugnava pela preservação da unidade pela via monárquica e
constitu-
cional.
Já os estudiosos da escravidão avançaram um passo largo na mesma
problemática.
Em ensaio muito citado, publicado em 1989, João José Reis analisa a
participação dos
negros nas lutas pela independência na Bahia. Para Reis, além dos
tradicionais parti-
dos políticos, outros agentes disputavam interesses nas lutas da
independência. É o
caso dos escravos, que a viam como uma possibilidade de alcançar sua
alforria. A
indeterminação posterior ao contexto turbulento da revolução do Porto, que
na Bahia
gerou forte reação militar ao 7 de setembro por parte das tropas
portuguesas, possi-
bilitou o surgimento de um cenário tal que permitiu aos escravos
participarem de
discussões sobre questões candentes como liberdade política. Sem dúvida, em
suas
pesquisas pioneiras sobre os caminhos da liberdade no Brasil escravista,
João José
30 Essas linhagens historiográficas, uma que entende a independência como
processo revolucionário e outra
que não, perduram. Na linha de Honório Rodrigues, ver Diégues (2004). Nessa
obra, a independência é
analisada pelo viés da estratégia e da guerra e, nela, se encontra a ação de
Bonifácio, rejeitando o “mito”de
uma independência incruenta.

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08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 37

Reis contribuiu para a abertura de outras dimensões do processo de


independência
até então negligenciadas pela historiografia.31
No mesmo sentido avançam os resultados de pesquisa de Hendrik Kraay
(2001).
Vou tomar seu artigo sobre o recrutamento de escravos na Bahia à época da
indepen-
dência32 como pretexto para demonstrar meu ponto de vista sobre a
dificuldade de
se investigar o papel das camadas populares no processo de independência.
Kraay mostra que o recrutamento de escravos na Bahia “fora um esforço
impro-
visado, que não foi ordenado nem regulado por decreto”. O problema estava na
alforria que os escravos alistados esperavam e na posição de seus senhores
perante o
Estado, no sentido da expectativa de indenização. Kraay insiste na
necessidade de
diferenciar entre “escravo” e “liberto” na análise do recrutamento. A
participação dos
últimos não trouxe maiores problemas. Em 1823, Pierre Labatut os recrutara.
Mas...

A questão dos escravos era bem diversa. Há indícios de que, já em


setembro de
1822 (antes da chegada de Labatut), patriotas pretendiam usá-los.
Maria Quitéria
de Jesus contou depois a Maria Dundas Graham que patriotras então
queriam
obrigar seu pai, um português, a contribuir com um escravo, pois não
tinha filhos
para dar ao exército. A resposta dele — “que interesse tem um
escravo para lutar
pela Independência do Brasil?” — sem dúvida refletia atitudes bem
difundidas...

(Kraay, 2002:112)

Esse é ponto central para mim. O ensaio de Kraay trata com propriedade
a
questão de como a independência, indiretamente, pela via do recrutamento (ou
por
outras vias mais sutis, como a boataria, o imaginário) mexeu com assuntos
delicados
como a condição dos cativos e os horizontes de liberdade que a guerra
suscitara. Mas
a via contrária não faz parte de seu objeto, nem de outros estudos que eu
conheça: em
que medida a escravidão, enquanto instituição, e os escravos, enquanto grupo
ou classe
social, contribuíram para o processo de independência do Brasil ante
Portugal? Isso é
muito diferente de se analisar os vários grupos sociais ou camadas populares
à época
da independência, ou como a independência incidiu em suas vidas. Sem dúvida,
os
trabalhos de autores como Reis, Kraay e Luiz Geraldo Santos da Silva33
contribuem

31 Cf. Reis, 1989:79-98. Para uma abordagem mais ampla do papel da Bahia no
processo da independência,
ver Wisiak, 2001.
32 Kraay, 2002.
33 Ver os capítulos 10, de Kraay, e 11, de Silva, neste livro.

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38 A independência brasileira

significativamente para sanar essa lacuna historiográfica, a qual, contudo,


reclama
contínuo investimento de pesquisa.

O “sentido” da independência

Nas próximas duas seções vou tentar sintetizar, numa abordagem ampla,
o que
me parece ser o mote que fez avançar as interpretações sobre a independência
e o
caminho a seguir para continuar esse avanço. Nesse sentido, talvez seja
necessário um
deslocamento do eixo da discussão do plano historiográfico para um plano um
pou-
co mais estritamente teórico.
Não parece exagero afirmar que o enquadramento teórico predominante e
mais
influente na historiografia da independência, pelo menos desde os anos 1960,
é aquele
derivado da abordagem de Caio Prado Jr. Partindo de um ponto de vista
marxista,
ele procurou entender o “sentido” da colonização, inserindo a história do
Brasil num
contexto senão planetário, pelo menos ocidental. A história do Brasil
explicar-se-ia,
nessa ótica, como um derivativo da história européia, no contexto da
expansão do
capitalismo comercial. Nessa tese jaz a base das teorias da dependência.
Quem melhor definiu a independência a partir dessa perspectiva foram
Fernando
Novais e Carlos Guilherme Mota, no já clássico 1822: dimensões, organizado
por
Mota (1972). Para os professores da USP, é a subordinação do Brasil a um
sistema
econômico mundial, unificado sob o capitalismo comercial, que dá sentido ao
curso
da independência.

(...) qualquer estudo que vise uma síntese compreensiva da


emanciapação política
da América portuguesa [deve] situar o processo político da separação
colônia-
metrópole no contexto global de que faz parte, e que lhe dá sentido;
e, só então,
acompanhar o encaminhamento das forças em jogo, marcando sua
peculiaridade.
(Novais e Mota, 1996:17,
grifo meu)

Esse ponto de vista é desenvolvido no capítulo “Contexto” (1996:22 e


segs.). A
colonização seria um instrumento de “acumulação primitiva (isto é,
acumulação pré-
via necessária à formação do capitalismo) de capital comercial nas áreas
centrais do siste-
ma)” — e a independência do Brasil não mais que um efeito do desmantelamento
da
sociedade do Antigo Regime, ou, como dizem os próprios autores, da passagem
do
feudalismo para o capitalismo, de longuíssima duração.
Por certo ninguém nega a importância dessa contextualização histórica.
O
desmantelamento da sociedade feudal, cuja falência do absolutismo e a crise
do An-

Untitled-1 38 08/08/2014,
15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 39

tigo Regime são dois aspectos derradeiros, são o pano de fundo da cena
histórica.
Para usar a metáfora teatral, o pano de fundo enquadra, estabelece os
limites em que
agem os personagens, mas absolutamente não lhes determina as falas e ações.
É um
equívoco teórico procurar explicar um fenômeno eminentemente político com
ex-
plicações macroestruturais de longa duração. É usar a ferramenta errada,
como atirar
um míssil para derrubar uma ave. A política, como ensinou Gramsci (1975), é
o
lugar da luta dos grupos e indivíduos, onde projetos e desejos individuais e
coletivos
digladiam-se por estabelecer uma hegemonia. Se fôssemos buscar as razões (o
senti-
do, por que não?) da independência em movimentos estruturais de longa
duração,
poderíamos então atribuí-la à queda do Império romano, precursora da
formação da
sociedade feudal, da qual a crise do Antigo Regime marca o ocaso.
Trata-se de uma interpretação engessada em quadros interpretativos de
ferro,
que retiram do processo histórico toda a cor e todo o brilho das relações
sociais
vividas pelos agentes. Um processo eminentemente social e político torna-se
uma
derivação de um macroprocesso econômico. O conceito de “sistema”, com seus
me-
canismos, deságua numa estrutura rígida, como o autômato de Walter
Benjamin34
ou as maquinarias com que Thompson (1978) ironizou Althusser:

Eis aí as peças do antigo sistema colonial: dominação política,


comércio exclusivo
e trabalho compulsório. Assim se promovia a acumulação de capital no
centro do
sistema. Mas, ao promovê-la, criam-se ao mesmo tempo as condições
para a emer-
gência final do capitalismo, isto é, para a eclosão da Revolução
Industrial. E, dessa
forma, o sistema colonial engendrava sua própria crise, pois o
desenvolvimento
do industrialismo torna-se pouco a pouco incompatível com o comércio
exclusi-
vo, com a escravidão e com a dominação política, enfim, com o antigo
sistema
colonial (...) A crise do antigo sistema colonial parece, portanto,
ser o mecanismo de
base que lastreia o fenômeno da separação das colônias (...) Trata-
se, antes de tudo, de
inserir o movimento de Independência no quadro da crise geral do
colonialismo
mercantilista.
(Novais e Mota, 1996:22-
23, grifo meu)

Entendido o funcionamento da máquina, sua “dialética”, está dada a


história...
Assim, a partir de tal enquadramento teórico, a discussão sobre o caráter da
inde-
pendência torna-se totalmente epifenomenal. Seriam meras “vertentes do mesmo

34 Benjamin, 1992:245-255. Uma excelente interpretação das “teses” de


Benjamin encontra-se em Cardoso
Jr., 1996:51-60.

Untitled-1 39
08/08/2014, 15:03
40 A independência brasileira

processo de reajustamento e ruptura na passagem para o capitalismo moderno,


na
segunda metade do Setecentos e primeira metade do Oitocentos”.35 Contida
nessa
definição encontra-se veladamente o pressuposto de que a independência não
foi
senão um ponto no longo processo de desmantelamento do Antigo Regime europeu
e do antigo sistema colonial.
Se, por um lado, pode-se aceitar sem maiores dificuldades que o
planeta forma-
va um “sistema-mundo” desde a expansão européia na era moderna, tal como
pro-
posto por Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein,36 isso não deve
necessariamente
fazer derivar as histórias de diferentes povos do globo desse processo
unilinear que é
o da suposta vitória da civilização ocidental e sua afirmação econômica,
política,
militar e cultural sobre as partes conquistadas. No âmbito da consciência
histórica e
da produção historiográfica, a aceitação de tal proposição fundamenta-se na
aceita-
ção de uma master narrative,37 justamente a daquela marcha vitoriosa de um
projeto
de humanidade, ao qual todas as demais histórias estariam subsumidas. A
concessão
de uma suposta “autonomia relativa” do processo nas colônias não supera a
viga
mestra do argumento, segundo a qual o que se passa na periferia é um eco do
proces-
so europeu. É desse enquadramento que os estudos históricos precisam
libertar-se
para fazer avançar o conhecimento não apenas da independência, mas de toda a
história da América portuguesa.

Considerações finais: centrando o foco nos agentes


da independência

Única tentativa de análise do processo de emancipação numa perspectiva


não
apenas continental mas global é o ensaio de István Jancsó já referido. A
premissa é
correta: o Estado nacional brasileiro se diferencia das variantes latino-
americanas no
sentido da manutenção da unidade, embora não houvesse nenhuma
inexorabilidade
histórica em qualquer um dos casos. A formação dos Estados nacionais
europeus
deve ser compreendida dentro da crise do Antigo Regime, conforme mencionado
anteriormente. O desdobramento latino-americano dessa crise seria uma
dimensão

35 Tal interpretação influenciou enormemente e continua a influenciar a


historiografia brasileira. Ana Rosa
C. Silva (1999:160 e 167) é um exemplo, entre vários.
36 Ver Braudel, 1985; e Wallerstein, 1979, 1984 e 1989.
37 A bibliografia sobre o problema das master narratives é imensa. Uma boa
compilação do debate é Roberts,
2001. Ver também Rüsen, 1996. As críticas de historiadores e filósofos pós-
modernos e pós-colonialistas
tratam diretamente do assunto. Ver Crowell, 1998; Klein, 1995; e Nandy,
1995.

Untitled-1 40
08/08/2014, 15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 41

particular do fenômeno geral, “mas que preserva especificidades, inclusive


no caso
brasileiro”. Também é absolutamente correta a percepção do problema
“nacional”:

para os homens da época, vivessem em qualquer região que fosse da


América
ibérica, ao menos até o final do século XVIII e início do XIX, a
sua identidade
política passava pelo reconhecimento ou pela negação de
realidades entre as quais a
nacional era a menos nitidamente definida.
(Jancsó,
2002, grifo meu)

As especificidades a que se refere Jancsó são fundamentadas


teoricamente com o
conceito althusseriano de “autonomia relativa” do processo nas colônias. Seu
avanço
em relação às formulações de Novais está em que, de acordo com Jancsó, a
crise do
Antigo Regime europeu e do sistema colonial são panos de fundo, cenários,
que
estabelecem os limites de ação e as possibilidades de solução para os homens
da
época em suas diferentes realidades coloniais. A crise européia seria um
pressuposto,
um ponto de partida. Os processos emancipatórios precisam ser entendidos e
expli-
cados em suas nuances locais.38
Se assim não fosse, como explicar os comportamentos diferenciados das
di-
versas regiões do Brasil no tocante à adesão ou à refração ante a
independência
encabeçada pelo Centro-Sul? É necessário olhar de perto os interesses que
motiva-
ram as ações de indivíduos pertencentes a grupos — ou configurações —
específi-
cos. O exemplo do comportamento das províncias em resposta ao anúncio das
cortes de Lisboa dá a medida da complexidade da questão. E dá a medida para
a
compreensão disso que a historiografia quer entender como entidade una:
“Bra-
sil”. Foi o Pará a primeira província a aderir aos chamados de Lisboa, em
janeiro de
1821. Na Bahia, a 10 de fevereiro, nas palavras de Maria Beatriz Nizza da
Silva, “os
comandantes e a oficialidade da tropa de linha da guarnição da cidade
decidiram
jurar a Constituição que fosse feita em Portugal e, interinamente, adotarem
a Cons-
tituição da Espanha”:

Quando a notícia da adesão da Bahia às cortes de Lisboa chegou ao


Rio, a 17 de
fevereiro, a crise política agudizou-se. Caíra por terra a tese
do autor do folheto
francês de que d. João VI estava numa posição de força porque o
Brasil lhe perma-
neceria fiel...39

38 Jancsó, 2002:6.
39 Silva, 1986, v. 8, p. 405. Também Lyra, 1994:193; e Silva, 2000:291 e
segs.

Untitled-1 41
08/08/2014, 15:03
42 A independência brasileira

Mas “quem” era o Brasil? Já me referi à questão da unidade, ou da


falta dela,
quando do movimento da independência. Já não é mais cabível a tese simplista
de
que o “Brasil” se libertava de Portugal. Não se pode precisar em que medida
contri-
bui para o entendimento do processo a prática do velho hábito idealista de
antropomorfizar entidades inumanas, como faz a determinada altura de sua
tese Ana
Cloclet Silva (2000:162), ao atribuir à Colônia (o Brasil) o papel de
sujeito: “(...) o
fato de o mundo colonial emergir como o objeto privilegiado das
investigações em-
preendidas pelos ‘espreitadores da natureza’ sediados no Reino não eliminava
a con-
dição de sujeito que, simultaneamente, o mesmo assumia nesse processo de
reorien-
tação da política imperial”. Se a idéia é mudar o foco das determinações
estruturais
para a ação dos “sujeitos”, ações movidas com respeito a fins, por
interesses, torna-se
um imperativo precisar quem são efetivamente esses “sujeitos”.
A discussão atinge aqui um ponto bastante complexo. Vale notar que a
historio-
grafia é atenta à existência de projetos políticos diferentes e em confronto
nos anos
decisivos da independência. Renato Lopes Leite (2000) dedicou-se ao estudo
do
republicanismo e dos republicanos no Rio de Janeiro à época da
independência.
Manuseando prodigiosa documentação primária, que enriquece fartamente seu
li-
vro, sua pesquisa centra-se particularmente na figura de João Soares Lisboa,
redator
do Correio do Rio de Janeiro, que circulou em 1822, em meio a um turbilhão
de
outros periódicos. Ainda que em seu capítulo primeiro faça uma diferenciação
do
conceito de “republicano” à época e no século XX, é necessário grande
esforço para
concordar com sua tese de que não teria havido contradição no apoio dos
republica-
nos à monarquia constitucional representativa de 1822. Segundo o autor, o
“com-
promisso monárquico-constitucional” dos “libertários” para com o novo
príncipe
não é suficiente para se negar, como fez a historiografia da independência
até então,
a existência e a importância do republicanismo naquele período. De seu ponto
de
vista, o Fico, o 7 de Setembro e a Coroação são “meras construções
simbólicas que
(...) não justificam ou explicam o monopólio da visão ‘verdadeira’ e
‘correta’ do ‘não-
separatismo da nação’”.40 O autor propõe a hipótese instigante, por exemplo,
de que
a suposta unanimidade em prol da permanência de d. Pedro no Brasil é uma
“inven-
ção simbólica do imaginário político da época”, já que os republicanos eram
contrá-
rios à permanência do príncipe.
Mas como se explicaria, então, tão abruptas mudanças de opinião e de
partido?
Se ficarmos no plano das idéias, jamais conseguiremos responder com clareza
à ques-

40 Leite, 2000:52 e segs., grifo meu.

Untitled-1 42 08/08/2014, 15:03


Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 43

tão. O manuseio desse tipo de fontes (periódicos e panfletos) não pode


prescindir do
imperativo da dúvida pirrônica. Não é possível se aproximar do contexto de
enunciação
de seu sentido sem se duvidar, a princípio, do teor do que é veiculado,
único modo
de se evitar o chamado “fetichismo do objeto”. As idéias, numa guerra, são
armas que
são utilizadas conforme o calor da batalha — e o historiador tem que ter o
distancia-
mento crítico necessário para não se deixar convencer pela retórica da
época. O fato
de que pessoas se diziam republicanas, ou mesmo por vezes defendiam em
panfletos
teses “libertárias”, não faz daquelas pessoas republicanos ou libertários.
Nesse parti-
cular, foi Isabel Lustosa quem melhor apreendeu o sentido das práticas de
jornalistas
e panfletários na época da independência.

O maior grau de adesão do auditório ao que se discursa faz parte


dos méritos do
bom orador, independentemente do maior ou menor grau de verdade
contido na
mensagem que se propõe transmitir. (...) Tal como o pregador do
alto do seu
púlpito, encarando sua platéia e apurando a garganta para soltar
a voz, o jornalisrta
defronte da escrivaninha apontava sua pena de pato e pensava na
reação de quem
iria ler as linhas que lançaria sobre o papel. Seu objetivo,
principalmente naquele
momento em que se dividiam tão radicalmente as opiniões, era
ganhar para sua causa
o público leitor.41

Não é dizer que aqueles homens a quem Leite categorizou de


republicanos e
libertários, como Joaquim Ledo, Januário da Cunha Barbosa, José Clemente
Pereira
e João Soares Lisboa, não acreditassem nas palavras, teses e estratégias que
professa-
vam. Mas parece faltar maiores investigações sobre os motivos que levaram
homens
de idéias tão claras e determinadas a mudar de opinião, sem qualquer vacilo,
em
determinadas circunstâncias. Não obstante, o livro de Lopes Leite traz uma
contri-
buição fundamental ao debate, que precisa ser mais explorada, ao resgatar o
papel
desempenhado pelos projetos perdedores no processo de independência.
Aquela dificuldade metodológica básica sobre a relação entre discurso,
agente e
ato pode ser estendida a outras formações sociais gregárias da época. Quero
dizer, as
pessoas não se engajaram contra ou a favor da independência apenas por
professar
ideais republicanos ou monárquico-constitucionais ou monárquico-
absolutistas. Nem
porque pertenciam ou deixavam de pertencer a esta ou aquela confraria ou
sociedade
secreta. O exemplo da maçonaria é bastante feliz nesse caso. Alexandre
Barata, em

41 Cf. Lustosa, 2000:422, grifo meu.

Untitled-1 43
08/08/2014, 15:03
44 A independência brasileira

sua tese sobre a maçonaria à época da independência, partindo exatamente da


leitura
de Lopes Leite, sustenta convincentemente o argumento de que as facções
dentro da
maçonaria estavam sensivelmente pulverizadas. E questiona seu papel:

os anos que antecederam a Independência foram marcados inicialmente


pelo con-
fronto entre projetos políticos diferenciados, dos quais a opção pela
“República”
estava no horizonte, [e é] necessário também perceber que nesse
período a maço-
naria não era de um todo monolítico. Ao contrário, o espaço maçônico
era cruzado por
diferentes tendências, projetos e idéias...

(Barata, 2000:260)

Ora, a questão é então: se todos eram maçons, revolucionários e


republicanos,
se todos esses movimentos e facções eram cindidos e possuíam projetos e
estratégias
diferentes para o Brasil, se todos podiam mudar de opinião e de partido ao
sabor dos
acontecimentos — como efetivamente mudavam —, as abordagens centradas em
grupos, partidos e facções — assim como as macroestuturais — parecem não ser
também suficientes para fazer avançar mais o conhecimento sobre a
independência,
como um dia já foram.
Refinando a questão: como explicar o fato de que, entre tantas forças
sociais e
políticas, tantos projetos e anseios, foi exatamente a solução monárquica,
com o
herdeiro português à frente, aquela que se sagrou vitoriosa? Ou ainda: no
contexto
da crise do Antigo Regime e do antigo sistema colonial, no contexto das
guerras de
Independência na América Latina, como explicar que a independência do Brasil
tenha acontecido naquele momento e do modo como aconteceu?
Em minha opinão, é preciso refinar ainda mais os instrumentos,
observar ainda
mais ao microscópio, utilizando a imagem de Hobsbawm (1980). Parece, pois,
faltar
uma abordagem mais focada na ação de indivíduos concretos, inseridos em
configura-
ções específicas, mas guiados por opções racionais indelevelmente orientadas
com respeito a
fins, como propõem Max Weber e mesmo as mais recentes teorias da ação, como
a
de Pierre Bourdieu. Estou falando de agentes históricos, de pessoas que
pertenci-
am a diferentes grupos, mas que tinham cambiantes projetos e interesses,
indivi-
duais e de grupo.
Senão, como se explica, mesmo que com certa resistência de início, a
aceita-
ção pelas elites econômicas do país do projeto político das elites do
Centro-Sul,
que se uniram ao projeto imperial bragantino, lançando o príncipe como
“outorgante” da emancipação? Quais os interesses em jogo? A resposta a essa
ques-
tão aponta para aquela classe que conseguiu se garantir à testa da empresa
de cons-
trução do Estado imperial. Como ensina Richard Graham (2001), dessa contenda

Untitled-1 44 08/08/2014,
15:03
Esboço crítico da recente historiografia sobre a
independência do Brasil 45

os proprietários de terras e os escravocratas brasileiros emergiram


triunfantes. De-
les era o novo Estado.

Por fim, duas palavras sobre o que este ensaio inclui e omite.
Conforme procu-
rei mostrar, na última década os estudos sobre a independência avançaram
significa-
tivamente no que respeita à discussão sobre nação, no conhecimento das
implicações
do período joanino sobre a independência, a composição social dos partidos e
facções
políticas, os debates nas cortes de Lisboa, o debate político na imprensa,
sobre as di-
mensões simbólicas do poder e, em alguma medida, no conhecimento da
participação
das camadas populares no processo, particularmente no que se refere aos
escravos.
As lacunas mais notáveis deste ensaio refletem as próprias opções e
exclusões da
historiografia que ele analisou. Nesse sentido, parece-me que, nos próximos
anos, os
historiadores da independência deverão se voltar para esses e outros temas
ultima-
mente neglicenciados. Assim, necessita-se de mais pesquisas sobre a
participação
popular na independência. O papel diferenciado das diversas províncias,
particular-
mente Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia e Pará, merece maior atenção.
Talvez
em função do cultural turn nos estudos históricos nos últimos anos, muito
pouco se
avançou em campos mais “tradicionais”, mas igualmente importantes, como, por
exemplo, na história militar do período. Do mesmo modo, a história
diplomática,
particularmente no que se refere ao papel desempenhado pela Grã-Bretanha no
pro-
cesso de emancipação política brasileira, aguarda maiores avanços. Por fim,
o desco-
nhecimento mútuo das historiografias brasileira e hispano-americanas
persiste e muito
investimento em pesquisa e intercâmbio acadêmico ainda tem que ser feito
para se
construir um quadro amplo do processo de independência na América Latina.
Aná-
lises comparativas entre o mundo hispânico e a América portuguesa
praticamente
inexistem.42

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42 Lacuna a ser minimizada com o texto de Anthony McFarlane que compõe o


capítulo 12 deste livro.

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46 A independência brasileira

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PARTE I

Raízes históricas

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Capítulo 1

Economia e política na explicação da


independência do Brasil

Jorge Miguel Pedreira

Perspectivas tradicionais sobre a independência do Brasil

A separação do Brasil relativamente a Portugal constitui sem sombra de


dúvida
um marco na história dos dois países. No caso do Brasil, trata-se da própria
fundação
do Estado e da nacionalidade, acontecimento investido de significado
transcenden-
te. Mas também no caso de Portugal, esse momento assinala o fim de um longo
período de quatro séculos, durante os quais a expansão ultramarina e o
império (ou
os impérios) ocuparam um lugar primordial. O simbolismo de que se reveste o
acon-
tecimento, de um e de outro lado do Atlântico, não podia deixar de
condicionar a
forma de sua representação pelas historiografias nacionais. Figurada como
heróica
emancipação da nação do jugo colonial, ou, simetricamente, como traumática
perda
do império — ao mesmo tempo causa e conseqüência da decadência nacional —, a
secessão do Brasil apresenta-se como um elemento essencial da cultura dos
dois paí-
ses relativamente a si próprios, ainda que a historiografia portuguesa lhe
reserve hoje
um lugar surpreendentemente modesto.1 Essa circunstância presta-se à
construção
de mitografias que, uma vez cristalizadas nas culturas nacionais, acabam por
adquirir
um estatuto quase sagrado, tornando-se por isso muito difíceis de submeter a
uma

1Ver, por exemplo, as histórias de Portugal publicadas nas últimas décadas,


como Serrão, 1993; e Torgal e
Roque, 1993.

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56 A independência brasileira

avaliação rigorosa. Ainda que a historiografia acadêmica ou científica as vá


corroen-
do ou demolindo, pelo exercício da análise crítica, esses esforços só muito
lentamen-
te produzem efeito, até porque essa mesma historiografia não deixa de estar
ela pró-
pria imersa na cultura nacional, da qual é parte integrante.
A idéia de que o brado de independência do príncipe d. Pedro, em 1822,
deu
voz a um sentimento nacional anterior tem raízes profundas na cultura e na
historio-
grafia brasileiras. O poder de legitimação conferido pela tradição prescreve
aos histo-
riadores, como agentes sociais, o recuo no tempo, de modo a que se encontrem
origens tanto quanto possível remotas para a nação, que por esse fato se
pretende
mais sólida e mais vinculativa. Essa idéia de uma nação à espera de ser,
aspiração de
um povo, começa a se revelar nos trabalhos do Instituto Histórico e
Geográfico
Brasileiro — que enraízam no tempo a legitimidade do jovem império — e é
reafir-
mada durante os primeiros tempos da República brasileira, em particular no
contex-
to do primeiro centenário da Independência.2 Ainda que haja algumas
diferenças de
interpretação sobre a verdadeira natureza do processo, a existência de
formas de iden-
tificação nacional anteriores à independência constitui um pressuposto dessa
vasta
historiografia.
Em Portugal, a visão dominante sobre a questão, até a profunda
renovação
empreendida por Valentim Alexandre (1993), não se afasta muito dessa
interpreta-
ção, limitando-se, em geral, a acrescentar alguns comentários pouco
abonadores
sobre os revolucionários de 1820, responsabilizados pela perda do Brasil.
Oliveira
Martins, talvez o mais destacado polígrafo português do século XIX, escrevia
em
1881: “o Brasil era já uma nação e não foi D. João VI quem lhe levou a carta
de
independência”. Projeta, por isso, a Inconfidência Mineira como o “primeiro
mo-
mento da história da independência do Brasil” e o sacrifício dos chefes da
conspi-
ração como o preço que pagaram para “definir o pensamento nacional, madura-
mente elaborado no século anterior” (1881:90, 95-96). Já os homens da
Revolução
portuguesa de 1820, que teriam fornecido ao Brasil o pretexto de que
precisava
para se separar, são apresentados como “um tanto ridículos”.3 Outros
historiado-
res, por vezes mais severos nos seus juízos, denunciaram também “as
violências e
disparates das cortes de Lisboa”,4 os seus “desatinos”, o “delírio
jacobino”,5 a atitu-

2 Pelo que Evaldo Cabral de Melo os designa de epígonos da historiografia da


corte fluminense (2001:16).
3 Martins 1886, v. 2, p. 252, 254.
4 Chagas, 1903, v. 8, p. 195.
5 Almeida, 1929, v. 6, p. 53.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 57

de “insensata”6 e “agressiva”.7 Dos seus erros vários, o mais grave, “aquele


que a
História não pode esquecer”, teria sido justamente a hostilidade ao Brasil,
que
precipitou a desunião.8
A suposição de que o Brasil existia enquanto nação antes ainda da
independên-
cia e a elevação de Tiradentes e seus companheiros à improvável condição de
heróis
ou até de mártires nacionais — isso já na República9 — seria mais tarde
questionada.
O reexame do caráter da colonização, considerada no quadro do
desenvolvimento
do capitalismo internacional, e a introdução dos conflitos entre classes
sociais na
análise do processo da independência levaram Caio Prado Júnior a sustentar,
pelo
menos desde a década de 1940, que “a sociedade colonial era incapaz de
fornecer a
base, os fundamentos para constituir-se em nacionalidade orgânica”.10 A
dispersão
geográfica, a segmentação dos poderes, as profundas divisões sociais
impediram a
constituição de forças capazes de criar a consciência nacional e de
reorganizar a socie-
dade como nação. Sendo a subordinação do escravo ao seu senhor o principal
vínculo
social, faltava um “nexo moral”, uma força de aglutinação que pudesse unir a
socieda-
de, congregada unicamente pela autoridade e pela ação soberana da
metrópole.11
O peso da herança colonial teria por isso constrangido fortemente as
possibili-
dades de formação de uma unidade nacional, e esse constrangimento perduraria
para
além da independência. A metrópole organizara o regime econômico da colônia
de
forma a dela extrair produtos — gêneros e matérias-primas tropicais, ouro e
diaman-
tes — que pudesse colocar favoravelmente nos mercados internacionais. No fim
dos
tempos coloniais, essa organização não se mantinha apenas artificialmente
por força
do regime exclusivo, correspondia de fato à “natureza íntima” da estrutura
da econo-
mia brasileira, de tal modo que, mesmo depois de obtida a soberania, o
Brasil conti-
nuou reduzido a “uma feitoria da Europa, simples fornecedor de produtos
tropicais
para o seu comércio”, porque outra coisa não podia ser.12
Caio Prado Júnior (1942:358, 364) sublinha, pois, as linhas de
continuidade
entre o Brasil-colônia e o Brasil-império e relativiza também o papel do
movimento
das idéias na explicação da secessão: “não será esta ou aquela idéia, de um
ou de
muitos indivíduos — aliás, no caso vertente, de poucos relativamente — que
será a
‘causa’ da Independência”. Desvaloriza, assim, o significado das
inconfidências, de

6 Carvalho, 1935:111.
7 Serrão, 1993:388.
8 Sá, 1937.
9 Como notou Evaldo Cabral de Melo no prefácio à 6a edição de Lima, 1997:16.
10 Prado Jr., 1942:1201-1221. Ver ainda Dias, 1972:161-162.
11 Prado Jr., 1942:341-345.
12 Ibid., p. 126-127.

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58 A independência brasileira

Minas e da Bahia, sustentando que o pensamento sobre o estabelecimento no


Brasil
de um regime independente “nunca saiu de pequenas rodas e conciliábulos
secretos”.
Eram “muito poucos, excepcionais mesmo”, os que levavam as suas posições a
“extre-
mos revolucionários”, sendo incomparavelmente mais numerosos os que
interpreta-
vam as coisas de outro modo e não contemplavam a separação. E conclui: “Até
às
vésperas da Independência, e entre aqueles mesmos que seriam seus principais
fautores,
nada havia que indicasse um pensamento separatista claro e definido”.
Nessa perspectiva, a independência teria sobrevindo abruptamente, como
um
inesperado acontecimento político. Contudo, tal possibilidade dificilmente
seria
conciliável com o paradigma marxista, no quadro do qual Caio Prado escrevia
a sua
obra. De um ponto de vista dialético, o fim do regime colonial não poderia
ser
explicado simplesmente pelas contingências da política internacional — que
haviam
levado a corte a instalar-se no Rio de Janeiro — ou pelo impacto de forças
externas,
teria de resultar das suas próprias contradições internas. Caio Prado Jr.
(1942:359-
360) procura, pois, nessas contradições as causas profundas da mudança,
concluindo
que se, nas circunstâncias do tempo, o sistema de colonização não poderia
ter sido
outro, já não permitia sustentar a estrutura social que sobre ele se
edificara. Tendo
atingido “o extremo da sua evolução”, incapaz já de promover o progresso das
forças
produtivas, exauridas as fontes acessíveis de riqueza, o sistema colonial
esgotara as
suas possibilidades e seria necessariamente substituído por outro. Chegara-
se a tal
situação sem necessidade de uma “intervenção de fatores estranhos”, em
resultado do
próprio desenvolvimento do processo de colonização, que tornara iminente a
com-
pleta desagregação da vida econômica e social do Brasil.
A conclusão, expressa como resultado lógico de um processo dialético,
é explí-
cita: “É assim nas contradições profundas do sistema colonial, donde brotam
aqueles
conflitos que agitam a sociedade, e donde brotará também a síntese delas que
porá
termo a tais conflitos, fazendo surgir um novo sistema em substituição do
anterior, é
aí que encontraremos as forças motoras que renovarão os quadros econômicos e
sociais da colônia”. Prado Jr. admite, é certo, que antes da transferência
da corte para
o Brasil não se entrara ainda na fase de acontecimentos decisivos que
precipitariam a
mudança, mas assegura que as contradições já eram então latentes (1942:366,
370).
Nessa obra coexistem, pois, duas imagens dificilmente harmonizáveis.
Uma em
que figura um sistema econômico e social solidamente implantado, adaptado à
natu-
reza da economia brasileira nos finais da era colonial e que, por isso,
havia de perdu-
rar para além da independência. Outra que representa esse mesmo sistema como
esgotado, sem possibilidade de desenvolvimento ou de reforma, condenado a
uma
desagregação iminente por força das suas contradições intrínsecas. Caio
Prado Jr.

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15:03
Economia e política na explicação da
independência do Brasil 59

(1942:357, 369) advertiu expressamente contra o risco das leituras


teleológicas. Con-
sistiria esse risco em que, informados do desfecho da história — no caso, a
separação
entre Portugal e o Brasil —, valorizássemos especialmente todos os
acontecimentos
que pudessem ser tomados como seus antecedentes e interpretássemos como
antece-
dentes fatos que de outro modo não seriam entendidos como tais. Contudo,
acabou
por ser vítima da mesma armadilha contra a qual advertiu. A relação entre as
contra-
dições do sistema colonial e a sua desagregação não é demonstrada pela
análise histó-
rica (que, pelo contrário, aponta no sentido da sua persistência), é antes
deduzida do
conhecimento antecipado dessa desagregação (melhor seria dizer do seu
colapso):
“As contradições do sistema colonial têm de comum unicamente isto: o de
refletirem
a desagregação deste sistema e de brotarem dele”.
Ora, as contradições faziam parte do sistema desde sua origem e de
modo al-
gum impediram seu crescimento — que estava longe de ter encontrado suas
frontei-
ras —, nem o conduziram inexoravelmente a uma próxima desagregação. A idéia
de
que estavam esgotadas as fontes de riqueza acessíveis e de que a organização
produti-
va baseada no trabalho forçado e no tráfico de escravos não tinha condições
de cres-
cer é desmentida pela expansão da economia brasileira desde o último quartel
do
século XVIII até meados do século XIX. Por outro lado, os conflitos e
tensões sociais
e étnicos que opunham escravos a senhores, e negros a brancos e mulatos,
conflitos
com raízes profundas, não se haviam agravado especialmente na virada para o
Oito-
centos. Por maiores que fossem os receios das elites do Brasil, nada sugeria
a proximi-
dade de uma revolta como a que pusera fim ao domínio francês na colônia de
São
Domingos, no Haiti. Quanto à resistência às exações fiscais, ao recrutamento
e às
requisições mais ou menos violentas das autoridades, não se trata de uma
oposição
especificamente dirigida contra a monarquia portuguesa — que era até um
referente
de arbitragem de conflitos —, mas contra a pressão dos poderes, que tanto
podiam
ser metropolitanos quanto brasileiros. Sobra o ressentimento entre locais e
reinóis,
em particular das camadas inferiores livres e dos senhores de engenho
contra, respec-
tivamente, os lojistas, ou mascastes e os negociantes. Mas esse
ressentimento, que
tinha também uma longa história, recompunha-se segundo as circunstâncias e
não
definia campos opostos num dualismo rígido, não sendo, em qualquer caso,
funda-
mento de uma crise que pudesse abalar os alicerces do velho sistema
colonial.

Uma explicação para a independência

Se minha atenção se deteve tão demoradamente na obra de Caio Prado


Júnior
é porque, em sua própria ambivalência, ela constitui um marco na
configuração das

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15:03
60 A independência brasileira

perspectivas historiográficas sobre a separação entre Portugal e Brasil.


Assinala uma
ruptura com abordagens anteriores e marca, num sentido ou noutro, a ótica
pela
qual o problema seria visto posteriormente. Por um lado, certos autores
retomaram
a idéia de uma sólida continuidade entre a herança colonial e a formação do
império
independente. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda (1962, t. II, v. 1, p.
13), que
descreve os conflitos que conduzem à independência como uma guerra civil
entre
portugueses, instigada pela Revolução liberal de 1820, muito distinta do que
seria
uma hipotética mobilização dos brasileiros em torno de reclamações comuns
contra
a metrópole. Na sua perspectiva, a cisão não viera alterar de modo
significativo o
desenvolvimento do Brasil, pois a autonomia fora já alcançada em 1808, desde
o
estabelecimento da corte no Rio de Janeiro e a abertura dos portos, e
reconhecida
com a elevação do Brasil a reino. No mesmo sentido segue Maria Odila da
Silva Dias
(1972:165-166), que num ensaio incisivo critica a forma pela qual a
historiografia
nacional brasileira (caberia dizer talvez nacionalista), retomando a imagem
cunhada
por Rousseau do colono que se liberta do jugo metropolitano, quis
representar a
colônia em luta contra a metrópole por sua emancipação, relegando a segundo
plano
o que chama de “o enraizamento dos interesses portugueses” e “o processo de
interio-
rização da metrópole no Centro-Sul da Colônia” e esquecendo, por isso, que a
sepa-
ração resultou afinal de “dissidências internas de Portugal”.
A atitude crítica de Maria Odila da Silva Dias é tanto mais de
assinalar quanto
surge num contexto propício às exaltações patrióticas, em plena celebração
dos 150
anos da Independência. Nesse contexto, as interpretações nacionalistas
ressurgiram,
encontrando sua expressão monumental na obra de José Honório Rodrigues
(1975).
Nessa obra, não se trata já de glorificar o império e seus fundadores — pois
o resul-
tado do processo é visto como a frustração das aspirações populares quanto a
uma
mudança mais radical —, mas tem por adquirida a existência de um sentimento
nacional anterior e sustenta a ocorrência de uma verdadeira guerra de
independên-
cia, semelhante às que permitiram a libertação das outras colônias da
América, con-
tra a imagem de um “desquite amigável” entre Portugal e Brasil. Embora esse
tipo de
explicação tenha encontrado audiência junto a outros autores, mesmo em época
mais recente,13 a verdade é que, depois da virada introduzida por Caio
Prado, as
contribuições de Sérgio Buarque de Holanda e de Maria Odila da Silva Dias
foram
decisivas para que outros historiadores reafirmassem a dissociação entre a
emancipação
política e a formação de um sentimento nacional ou até de um Estado
nacional.14

13 Ver por exemplo Maxwell, 1986.


14 Jancsó e Pimenta, 2000.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 61

Contudo, seria o outro caminho aberto por Caio Prado — o da explicação


estrutural — que acabaria por configurar a corrente historiográfica
dominante sobre
o fim da época colonial e o processo da independência. Uma tal explicação
correspondia melhor às orientações teóricas que nos anos 1960 e 1970 se
impuseram
nos principais centros institucionais onde se produzia essa historiografia,
em boa
parte tributárias de um paradigma de inspiração marxista em que o conceito
de
dependência desempenhava papel fundamental. Sob essas orientações, elegeram-
se
como objeto de estudo as manifestações locais dos grandes processos
históricos —
em especial o desenvolvimento do capitalismo —, remetendo para plano
secundário
as circunstâncias históricas particulares do movimento de independência.
Fernando
António Novais e Carlos Guilherme Mota (1996:17, 23) prescreveram o caminho
a
seguir para “qualquer estudo que vise uma síntese compreensiva da
emancipação
política da América portuguesa”. Tratar-se-ia, primeiro, de “situar o
processo políti-
co da separação colônia-metrópole no contexto global de que faz parte, e que
lhe dá
sentido; e, só então, acompanhar o encaminhamento das forças em jogo,
marcando
sua peculiaridade”. Em conclusão: “Trata-se, antes de tudo, de inserir o
movimento
de Independência no quadro da crise geral do colonialismo mercantilista”.
A inserção do movimento de independência do Brasil no contexto dos
grandes
processos históricos — por um lado, o desenvolvimento do capitalismo
industrial
britânico e suas conseqüências para a recomposição dos equilíbrios
econômicos in-
ternacionais e, por outro, as alterações políticas decorrentes das
revoluções norte-
americana e francesa — tornou-se assim obrigatória. A separação política
entre Por-
tugal e Brasil passou a ser vista como resultado inexorável da crise mais ou
menos
prolongada do antigo sistema colonial. Essa crise foi por sua vez
apresentada como o
efeito inelutável do próprio desenvolvimento do sistema, definido, em termos
mar-
xistas clássicos, como mecanismo de acumulação prévia de capital. O produto
dessa
acumulação concentrar-se-ia, porém, não na metrópole, mas no centro do
sistema
capitalista mundial, a Inglaterra, onde, com a Revolução Industrial,
irrompia uma
nova forma de organização social da produção. Ora, o capitalismo industrial
emer-
gente tornar-se-ia progressivamente incompatível com as estruturas
fundamentais
do sistema colonial, notadamente com a escravatura, o comércio exclusivo e a
domi-
nação política. Conclui-se, assim, que o desenvolvimento do sistema colonial
traz no
bojo sua própria crise e superação.15

15 Novais e Mota, 1996:22-23.

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62 A independência brasileira

Assim se apresenta, sob uma forma modificada e mais sistemática, o


esquema
dialético antes sugerido por Caio Prado. E é sob essa nova configuração,
apresentada
de modo eloqüente por Fernando Novais na sua obra sobre a crise do antigo
sistema
colonial (1986), que esse esquema persiste em boa parte das interpretações
modernas
sobre a independência. Mesmo que não o coloquem no centro da explicação,
esse
esquema está-lhes muitas vezes subjacente. Em todo o caso, até a crítica
formal que
lhe dirigiu Valentim Alexandre, nunca foi abertamente contestado.
O seu êxito não resulta apenas da sua aliciante, embora apenas
aparente, simpli-
cidade, tampouco da força institucional do lugar a partir do qual foi
enunciado.
Efetivamente, ao seguir um modelo analítico deduzido da teoria da
dependência e,
portanto, inscrito numa forte tradição intelectual da América Latina em
geral, e do
Brasil em particular, o esquema dialético vinha responder também às
preocupações
de legitimação histórica da nação brasileira. Tida como inevitável, a
emancipação do
Brasil correria a favor dos ventos da história, que por outro lado
condenavam a
arcaica colonização portuguesa a um pronto desaparecimento. A definição da
crise
do sistema colonial, tal como foi sendo construída pela historiografia,
supunha tam-
bém que antes da independência, ou antes mesmo da abertura dos portos
brasileiros
à navegação estrangeira, o Brasil já manifestava capacidade para se libertar
da decrépita
dominação portuguesa e para se integrar de forma autônoma na economia
interna-
cional. No fundo, no argumento está implícita a idéia de que haveria já uma
sólida
base econômica (e não apenas ideológica ou política) para as presumidas
aspirações
nacionais dos brasileiros.

A noção de crise do antigo sistema colonial

A conjunção entre a proposta de uma explicação estrutural e a


satisfação das
aspirações de legitimação histórica nacional enraizaram profundamente essa
concep-
ção do processo de separação entre Brasil e Portugal. Qualquer análise desse
processo
não pode, pois, dispensar seu escrupuloso reexame. Convém começar pelo
questio-
namento das premissas do esquema dialético que está em sua base. Em primeiro
lugar, a articulação entre a acumulação prévia de capital e o
desenvolvimento do
capitalismo industrial na Grã-Bretanha não é tão simples e direta como se
supõe
nesse esquema e foi mesmo frontalmente questionada por diversos autores. Em
todo
caso, a discussão sobre a contribuição da periferia para esse
desenvolvimento e os
estudos publicados conduziram à indiscutível relativização do seu papel.
Por outro lado, a hegemonia da Grã-Bretanha no quadro das relações
econômi-
cas internacionais no último terço do século XVIII e nos primeiros anos do
sécu-

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 63

lo XIX — período em que teria ocorrido a crise — ainda só muito


secundariamente
se baseava na capacidade industrial, devendo-se sobretudo à superior
organização
comercial e financeira e ao poderio da Marinha, tanto mercante quanto de
guerra.
Além disso, no caso específico das relações com Portugal (e indiretamente
com o
Brasil), a supremacia inglesa e as articulações comerciais foram certamente
mais in-
tensas durante a primeira metade do século XVIII, no contexto da circulação
do
ouro do Brasil e das trocas bilaterais de vinhos por tecidos. Por isso,
dificilmente é
possível atribuir a essa supremacia um efeito dissolvente sobre o sistema
colonial
luso-brasileiro durante o último quartel do Setecentos.
Em segundo lugar, ainda não se demonstrou que o desenvolvimento do
capita-
lismo industrial na Europa, em particular na Grã-Bretanha, e a persistência
de ele-
mentos característicos do antigo sistema colonial, como a escravatura e o
tráfico de
escravos, na periferia, fossem incompatíveis no período histórico
considerado. Nesse
ponto, o esquema, mais do que dialético, revela-se teleológico, pois define
a crise
num determinado momento histórico por uma incompatibilidade a longo prazo
que
só mais tarde haveria de se declarar. À luz desse esquema é impossível
compreender
por que a extinção do sistema colonial e a independência do Brasil ocorreram
no
momento e nas circunstâncias em que ocorreram. Uma vez mais, como na
proposta
de Caio Prado, os nexos de causalidade são estabelecidos retrospectivamente.
Tal como é definida, a crise do antigo sistema colonial português,
como notou
expressamente Valentim Alexandre (1993:78), não carece de ser demonstrada. A
demonstração está incorporada nos próprios termos do enunciado. A crise
apresen-
ta-se como uma fatalidade, que haveria de decorrer mais tarde ou mais cedo
do novo
capitalismo industrial, cuja inexorável lógica de expansão provocaria o
colapso dos
impérios coloniais na sua fórmula mercantil. Não tem portanto que ser
verificada,
isto é, confrontada com o comportamento de indicadores que a poderiam
confirmar,
mas também desmentir. Não é necessário procurar os indícios das suas
manifesta-
ções, pois trata-se de um desenvolvimento inelutável do processo histórico.
Assim,
não surpreende que seja caracterizada como um “conjunto de tendências que
force-
javam no sentido de distender ou mesmo desatar os laços de subordinação que
vin-
culavam as colônias ultramarinas às colônias européias”, podendo
“perfeitamente
coexistir com uma etapa de franca expansão da produção e do comércio
colonial,
como é o caso do sistema colonial português dessa época”.16 Essas
tendências, po-
rém, não são extraídas de uma análise da situação histórica do Brasil. São
presumidas

16 Novais, 1986:13.

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64 A independência brasileira

ou deduzidas das premissas teóricas, e só por isso pode conceber-se que


crise e expan-
são sejam tidas como perfeitamente compatíveis.

Crise ou prosperidade?

A fase final do antigo sistema colonial, no caso do império luso-


brasileiro, é
efetivamente marcada por uma notável expansão comercial. Até aos anos 1790,
esse
crescimento foi relativamente moderado. O volume das exportações portuguesas
de
açúcar brasileiro cresceu 3,6% entre 1776/77 e 1783 e mais 14,3% até 1789 (o
aumento foi mais significativo em termos de valor, 10,8% e 17,3%,
respectivamen-
te). Então o comércio açucareiro readquiriu todo o seu dinamismo,
aproveitando
plenamente as mudanças no mercado internacional.
Os efeitos a longo prazo da progressiva retirada desse mercado do
açúcar produ-
zido nas Índias Ocidentais britânicas (cada vez mais absorvido pelo consumo
interno
da Grã-Bretanha), conjugados com as conseqüências imediatas da revolta de
1792
no Haiti, criaram condições especialmente propícias para a comercialização
do açú-
car brasileiro. Entre 1789 e 1796-1800, as exportações médias a partir de
Portugal
mais do que duplicaram em volume e, beneficiando-se de uma alta excepcional
dos
preços internacionais, cresceram três vezes e meia em valor.17 Essa
oportunidade
suscitou uma expansão da capacidade produtiva na colônia. Na Bahia, por
exemplo,
o número de engenhos elevou-se de 122, em 1759, para 260 em 1798.18 Ao mesmo
tempo, ocorreu uma considerável mudança na geografia da produção açucareira.
Além da Bahia e de Pernambuco, a capitania do Rio de Janeiro tornou-se
também
uma importante área de exportação.19
Apesar do notável ressurgimento do açúcar, o avanço do algodão foi
ainda mais
impressionante. A Companhia do Grão-Pará e Maranhão promovera o seu cultivo
nos anos 1760, mas as saídas de algodão brasileiro pelos portos portugueses,
em
1776/77, não iam ainda além das 388t. Na década seguinte, o crescimento foi
abso-
lutamente espetacular. As exportações setuplicaram, alcançando as 2.886t em
1789.
Nos anos seguintes, a expansão manteve esse ritmo, de tal forma que, em
1796-
1800, a média anual já chegava às 4.443t. Em valor, o incremento não foi
menos
significativo, de 173 para 1.400 contos de réis, aproximando-se do valor das
expor-
tações de açúcar, que depois superaria largamente, ao atingir os 3.300
contos.20 O
17 Pedreira, 2000:843.
18 Schwartz, 1998:96.
19 Alden, 1987:312.
20 Pedreira, 1994:53, 267-268.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 65

aumento da procura gerado pelo avanço da industrialização em algumas regiões


eu-
ropéias, mormente na Inglaterra, sustentou esse desenvolvimento. Na última
década
do século XVIII, 30% das importações inglesas de algodão provinham do
Brasil.21
O açúcar e o algodão constituíam os dois principais produtos do Brasil
encami-
nhados para os mercados europeus a partir dos portos portugueses. Em 1796-
1800,
perfaziam, em conjunto, 85% das reexportações portuguesas de mercadorias de
ori-
gem brasileira. As outras produções significativas eram as peles e couros
(6,5%), o
tabaco (3,5%) e o cacau (3%). A expansão do consumo de gêneros e matérias-
primas
tropicais e a redução da concorrência de outras áreas de produção,
evidenciada pela
alta dos preços no mercado internacional, animaram o renascimento agrícola
do
Brasil, expressão cunhada por Dauril Alden (1987:310-336) para descrever a
recupe-
ração do setor agrário da colônia em fins dos Setecentos.
Parte desse desenvolvimento também deveu-se ao alargamento e ao
dinamismo
do próprio mercado interno brasileiro, que alguns trabalhos têm
sublinhado.22 A
expansão da produção de arroz (em parte também exportado), de trigo e de
gado
respondeu em primeiro lugar à necessidade de abastecer uma população em
rápido
crescimento. Contudo, vastas áreas do Brasil ainda funcionavam como um
sistema
de plantação,23 que representava para o sistema colonial luso-brasileiro, na
esfera
produtiva, o mesmo que o comércio exclusivo, na esfera mercantil. As
comunidades
mercantis de Portugal, em particular a que se baseava em Lisboa, viviam em
larga
medida desse exclusivismo e do comércio de entreposto que o tornava
possível. As
reexportações de produtos do império (principalmente de origem brasileira,
mas
também artigos manufaturados, em especial tecidos, da Índia e da China)
consti-
tuíam o principal eixo de integração de Portugal aos sistemas europeu e
atlântico de
comércio internacional.
Ao mesmo tempo, a produção nacional de artigos manufaturados penetrava
cada vez mais no mercado brasileiro. Em 1776/77, apesar da política de
fomento
industrial empreendida pelo marquês de Pombal, os produtos industriais
portugue-
ses ainda geravam menos do que a quarta parte das exportações para as
colônias. Os
tecidos nacionais representavam apenas 30% de todos os têxteis expedidos
para o
império. Nas duas décadas seguintes, os setores exportadores do aparelho
industrial
conheceram um progresso muito significativo. Os têxteis, em primeiro lugar,
princi-

21 Schwartz, 1998:95.
22 Ver, por exemplo, Fragoso, 1992, especialmente os capítulos II e III.
23 Sobre o conceito, ver Curtin, 1990.

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66 A independência brasileira

palmente os tecidos de linho e os estampados de algodão (que constituíam 60%


das
exportações de artigos industriais em 1796-1806) e, em menor escala, as
manufatu-
ras de lã e seda (que correspondiam a 17% das remessas industriais). Além
disso,
grandes quantidades de carregamentos de chapéus (tanto finos quanto
grosseiros) e
artigos de metal, notadamente pregos e ferramentas agrícolas, completavam os
carre-
gamentos de produtos das manufaturas nacionais expedidos para o Brasil.24
No crescimento dessas exportações reside um dos aspectos essenciais do
desen-
volvimento da economia mercantil portuguesa de fins do século XVIII e de
começos
do XIX. Elas se tornaram um dos ramos mais dinâmicos do comércio externo,
su-
portando um incremento mais rápido do que o conjunto das exportações e
aumen-
tando, dessa forma, para 35% sua participação nas remessas destinadas ao
Brasil.
Nem por isso desapareceram, porém, as reexportações de produtos industriais
euro-
peus e asiáticos para as colônias. Nas trocas com o Brasil, as manufaturas
de produ-
ção nacional tornaram-se mais importantes do que as de origem européia, mas
uma
vez contabilizadas as reexportações de tecidos de algodão e seda do Oriente,
a pro-
porção dos artigos da indústria nacional caía para 42,7%. O impulso
industrial de
fins do século XVIII é, porém, inquestionável, assim como o estímulo que o
merca-
do brasileiro lhe proporcionou.
Como é evidente, o desenvolvimento industrial de forma alguma conduziu
a
economia portuguesa à iminência de uma revolução industrial ou de um
processo
moderno de industrialização. Contudo, ocorreram importantes mudanças
estrutu-
rais, tanto em Portugal quanto no Brasil. Em Portugal, a vinculação da
economia
mercantil aos negócios coloniais tornou-se ainda mais forte. A atividade
manufatureira
cresceu, com o advento de novas indústrias e de modos mais concentrados de
organi-
zação de fabrico. O acesso mais fácil à importação de matérias-primas e aos
mercados
coloniais, que absorviam uma parcela crescente da produção, esteve na base
dos no-
vos padrões de localização da atividade industrial, que conferiam um papel
proemi-
nente às regiões mais próximas do litoral. No Brasil, o cultivo da cana-de-
açúcar
estendeu-se a novas áreas, enquanto o algodão tornou-se uma das primeiras
merca-
dorias do comércio a longa distância. O renascimento agrícola contemplou
ainda
outras produções, que se destinavam quer ao mercado interno, quer à
exportação.
Em suma, a prosperidade mercantil não deve ser subestimada. Na viragem do
século,
o valor do comércio externo per capita era mais elevado em Portugal do que
na

24 Alexandre, 1993:44-54; e Pedreira, 1994:278-295.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 67

Espanha, na Itália ou na Alemanha, e entre 5% e 7% de todas as exportações


euro-
péias passavam pelos portos portugueses.25
Para essa prosperidade concorreram tanto fatores de ordem estrutural
quanto
circunstâncias político-militares. Na verdade, os dois tipos de fatores só
dificilmente
podem ser desvinculados, uma vez que os condicionamentos estruturais operam
ne-
cessariamente em uma conjuntura histórica particular. O desenvolvimento
global do
sistema euro-atlântico foi resultado de uma dinâmica estrutural —
nomeadamente
do avanço da industrialização européia —, mas a parte que coube ao complexo
luso-
brasileiro nesse desenvolvimento foi certamente determinada pela conjuntura.
As alterações introduzidas nos circuitos mercantis internacionais
pelos conflitos
político-militares criaram condições especialmente favoráveis à prosperidade
do im-
pério português. Desde a Guerra da Independência da América, o comércio
maríti-
mo conduzido pelos portugueses se beneficiava das dificuldades enfrentadas
pelas
outras potências imperiais, empenhadas em sucessivos conflitos. Lisboa
voltou então
a ser um dos mais importantes entrepostos europeus para os produtos do
Oriente e a
navegação pela rota do Cabo voltou a animar-se. Depois, as perturbações e
guerras
subseqüentes à Revolução Francesa conferiram uma importante vantagem ao
impé-
rio português, que, após breve participação na campanha do Rossilhão em
1791,
procurou preservar a todo o custo o estatuto de neutralidade. A já referida
crise do
Haiti, em 1792; a extensão do teatro de guerra às Índias Ocidentais, levando
à ocu-
pação, por forças inglesas, de possessões francesas, holandesas e
espanholas; a derrota
da frota da Espanha em 1797 e a interrupção da navegação com suas colônias
favo-
receram claramente a posição de Portugal, enquanto cabeça de um vasto
império
colonial, no contexto das relações econômicas internacionais. Contudo, se a
conjun-
tura político-militar era vantajosa, foi a capacidade de resposta do sistema
colonial
português que permitiu a efetiva exploração das oportunidades que ela
oferecia. Pa-
rece pouco crível que um sistema esgotado, que ameaçava uma iminente
desagrega-
ção, pudesse revelar tal capacidade.

Indícios de crise? Do contrabando às inconfidências


Até as invasões francesas, o sistema funcionou sem problemas maiores e
mante-
ve impressionante crescimento comercial. As importações portuguesas do
Brasil per-
maneceram num nível muito elevado, atingindo um máximo de 13,2 mil contos de

25 Sombart, 1921, v. 2, p. 957; e Bairoch, 1976:267.

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68 A independência brasileira

réis em 1806. Ao mesmo tempo, as reexportações de produtos brasileiros


aumenta-
ram de menos de 10 mil contos em 1796 para mais de 15 mil em 1801,
registrando
depois forte estabilidade, em torno de valores da ordem dos 13-14 mil
contos. Por
outro lado, as exportações para o Brasil ascenderam a um montante
excepcional de
15,7 mil contos em 1799, consolidaram-se entre os 9 mil e os 10,6 mil contos
até
1804, caindo para 8,2 mil contos em 1806.26 Apesar dessas significativas
flutuações,
que em nada se comparam às enormes oscilações do comércio da Espanha com
seus
domínios na América,27 os grandes equilíbrios do sistema de comércio
mantinham-
se inalteráveis. A balança comercial com o Brasil assinalava pequenos
excedentes ou
pequenos déficits, que, quando ocorriam, eram geralmente mais do que
compensa-
dos pelo superávit nas trocas com as nações estrangeiras. Antes de 1807, não
havia
portanto sinais de uma crise próxima, ainda que a amplitude das variações e
a maior
parte dos números de 1805/06 revelassem alguma incerteza, traduzindo a
própria
instabilidade das circunstâncias em que o sistema funcionava.
Sob essa prosperidade, porém, alguns autores, sem chegar a negá-la,
divisaram
indícios de uma crise do antigo sistema colonial, que anunciaria a sua
desintegração.
O contrabando e as inconfidências seriam os sinais dessa crise. A cautelosa
sugestão
de Fernando Novais (1986:178), de que “não será porventura temerário supor
que o
contrabando avolumou-se nas costas do Brasil neste período final da
colônia”, foi
posteriormente transformada na demonstração da crise, pois significaria que
a me-
trópole se mostrava incapaz de fazer observar o comércio exclusivo e de
abastecer a
colônia dos gêneros de que necessitava. Jobson Arruda (1980:323-328),
retomando
as reclamações dos funcionários que, na época, se encontravam incumbidos de
regis-
trar o movimento comercial, julgou poder medir a dimensão do contrabando
pelo
déficit acumulado por Portugal nas trocas com o Brasil. Contudo, além de
esse exer-
cício se basear em pressupostos econômicos insustentáveis (por exemplo, o da
ten-
dência para o equilíbrio a curto prazo das trocas comerciais bilaterais),
utilizou valo-
res altamente sobrestimados dos déficits, pois não deduziu a circulação da
moeda e
dos metais monetários que se destinavam em parte ao pagamento das próprias
tran-
sações de bens.28 Uma vez corrigidos, como devem ser, os déficits são pouco
signifi-
cativos (apenas 4,2% das importações originárias do Brasil em 1796-1806) e o
saldo
acumulado só se torna desfavorável a Portugal justamente em 1806. Se esses
elemen-

26 Pedreira, 2000:846-847.
27 Prados de la Escosura, 1988:69-76.
28 Alexandre, 1993:62-65.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 69

tos fossem a medida do contrabando, este não poderia ser certamente um


indício da
crise do sistema colonial.
Contudo, outros dados têm sido reunidos para comprovar o aumento do
co-
mércio ilícito. Num trabalho especificamente dedicado ao assunto, Ernst
Pijning
(1997:81-91, 122-138) mostrou que o número médio anual de navios
estrangeiros
entrados no porto do Rio de Janeiro em 1800-07 era de 54, contra 25 na
década
anterior. Além disso, registra-se desde fins do século XVIII um forte
crescimento do
apresamento de navios e de incriminações por contrabando, que revelariam não
só a
expansão dessa atividade, como a incapacidade da administração para a
controlar.
Ora, se é provável que a própria prosperidade mercantil tenha
alimentado o
crescimento do contrabando, convém notar que o número de embarcações estran-
geiras nos portos do Brasil não é necessariamente a medida do comércio
ilegal, no
qual nem todas estavam envolvidas. Em tempos de guerra, que tornavam a
navega-
ção mais arriscada, era natural que mais navios procurassem apoio em portos
de
nações aliadas ou neutras. Por outro lado, parte dos veleiros estrangeiros
que chega-
vam ao Rio de Janeiro eram baleeiros, que só limitadamente podiam participar
de
atividades ilegais, por vezes exercidas pelas tripulações contra as
instruções dos arma-
dores e da política comercial da própria Grã-Bretanha.29 Outros eram
negreiros, que
procuravam vender escravos no Brasil, uma transação que podia prejudicar os
nego-
ciantes locais, que dominavam o tráfico, mas não os portugueses, que em sua
maioria
já estavam há muito afastados dele. Outros ainda provinham do rio da Prata,
na
prossecução de uma atividade tradicional, que era complementar e não
concorrencial
ao sistema colonial, ainda que as autoridades portuguesas procurassem evitar
a saída
de escravos para Buenos Aires ou Montevidéu.
Do mesmo modo, as denúncias do contador-mor das balanças comerciais
diri-
giam-se em parte contra formas de contrabando que podiam afetar as
exportações de
artigos industriais portugueses ou a cobrança dos direitos devidos às
alfândegas, mas
que não afetavam o monopólio que Portugal mantinha sobre o comércio do
Brasil. A
introdução no Brasil de artigos estrangeiros por vezes proibidos, por
negociantes
portugueses, correspondia, de fato, do ponto de vista do sistema, a uma
reexporta-
ção. Essas e outras formas de iludir o pagamento de direitos podiam
prejudicar as
receitas fiscais e eram, portanto, motivo de preocupação para os
funcionários, mas
nada têm a ver com a crise do sistema colonial.

29 Pijning, 1997:32.

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70 A independência brasileira

Por outro lado, o crescimento dos confiscos de navios e de


procedimentos judi-
ciais contra contrabandistas, que podiam significar um alargamento da
atividade
ilícita, decorre também da maior determinação e capacidade das autoridades
no com-
bate ao comércio clandestino. Testemunho dessa determinação e da vontade do
go-
verno de consolidar o comércio exclusivo é o alvará de 1785, que não só
proibiu as
manufaturas no Brasil, como reforçou as penas e a autoridade dos vice-reis
em maté-
ria de contrabando. Além disso, o maior risco de perseguição ou de confisco
funcio-
naria também como dissuasor, reduzindo a vantagem econômica das transações
clan-
destinas.
As circunstâncias em que se realizava o contrabando não eram tão
favoráveis
como se poderia imaginar. Os comerciantes britânicos — e também, mas bem me-
nos intensamente, os norte-americanos — eram os que estavam em melhores
condi-
ções para explorar as oportunidades que o comércio ilícito apresentava,
principal-
mente desde que a armada inglesa passou a dominar completamente a navegação
no
Atlântico. Ora, os ingleses não eram os melhores clientes dos produtos
brasileiros.
Com exceção do algodão, que representava 85% das suas aquisições, tinham
pouco
interesse nesses gêneros, pois os recebiam de suas próprias colônias. De
resto, a ocu-
pação de algumas das colônias francesas, holandesas e espanholas elevara as
importa-
ções inglesas das Índias Ocidentais em 25% entre 1792 e 1798.30 Desse modo,
o
contrabando resumia-se à entrada clandestina de produtos ingleses no Brasil,
dificil-
mente encontrando carga de retorno, o que elevava os custos do transporte e
reduzia,
na mesma proporção, a rentabilidade das operações ilícitas. O negócio
beneficiava os
contrabandistas, os funcionários venais e talvez os consumidores (se
pudessem efeti-
vamente obter os artigos a preço mais baixo), mas não os produtores ou
exportadores
brasileiros, que não tinham alternativa para o escoamento de suas produções,
nem os
negociantes do Rio ou da Bahia, que se achavam firmemente interessados no
comér-
cio com a metrópole.31
Depois da abertura dos portos em 1808, os comerciantes ingleses
contornaram
essas dificuldades, encarregando-se da redistribuição na Europa das
mercadorias bra-
sileiras, das quais Londres passou a ser um entreposto. Essa situação só se
tornou
possível, primeiro, com a interrupção temporária da navegação de Portugal
para o
Brasil e para vários portos do norte da Europa e, depois, com o sucessivo
levanta-
mento das barreiras que a França havia imposto à penetração de mercadorias
prove-

30 Parry, 1971:185.
31 Sobre o contrabando, ver Pedreira, 2001.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 71

nientes de portos ingleses nos mercados europeus. Antes disso, as condições


não
eram certamente muito favoráveis para a reexportação de produtos brasileiros
obti-
dos através do contrabando.
Do comércio externo brasileiro depois de 1808 pode-se também extrair
algu-
mas indicações acerca da dimensão do contrabando. As exportações de produtos
ingleses para o Brasil, que gozavam de uma situação de privilégio, concedida
pelo
Tratado de Comércio e Amizade firmado em 1810, só em anos excepcionais
ultra-
passam o valor das exportações de Portugal anteriores à suspensão do sistema
colo-
nial, e o conjunto das exportações portuguesas e britânicas situam-se apenas
15% a
20% acima desses valores.32 Além disso, as exportações inglesas estavam
sobreavaliadas,
pois correspondiam aos valores declarados à saída e não às vendas a preços
efetivos.
Ora, sabe-se que os comerciantes ingleses no Rio de Janeiro tinham por vezes
de
baixar os preços e recorrer a leilões para vender os artigos que importavam,
pois
haviam superestimado a capacidade do mercado brasileiro.33 Assim, se as
importa-
ções legais provenientes da Grã-Bretanha e de Portugal no período posterior
a
1808 eram pouco superiores às que chegavam da metrópole antes dessa data,
não
parece que o contrabando possa ter sido muito significativo relativamente às
tran-
sações lícitas.
Mesmo admitindo que as atividades clandestinas tenham crescido na
última
fase do período colonial — e dificilmente teriam sido mais importantes do
que na
primeira metade do século XVIII, durante o “ciclo do ouro” —, seria
necessário
demonstrar que esse aumento traduzia uma crise do comércio exclusivo. As
indica-
ções existentes apontam, porém, o sentido contrário. Jobson Arruda
(1980:669-674)
sustenta que o sistema continha um mecanismo de exploração da colônia
baseado no
preço de monopólio que os negociantes portugueses cobravam dos seus
congêneres
estrangeiros pelas mercadorias do Brasil. A diferença entre o preço de
importação em
Portugal e o preço de reexportação seria a medida dessa exploração, que
espoliava os
brasileiros dos lucros derivados da exportação de seus produtos. Admitamos
que
assim fosse. A questão que se coloca então é que esse mecanismo só poderia
operar se
o comércio exclusivo funcionasse efetivamente. Se o monopólio não fosse
observado,
não seria possível cobrar preços tão elevados, ou seja, se o contrabando
ameaçasse o
monopólio, a margem entre preço de importação e preço de reexportação seria
redu-
zida. Segundo os elementos disponíveis, não foi o que aconteceu, pois as
flutuações

32
Pedreira, 1994:241-242.
33
O mesmo já havia acontecido em Buenos Aires; ver Socolow, 1978:130;
Manchester, 1933:95-96; e
Chapman, 1984:10.

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72 A independência brasileira

dessa margem não revelam qualquer tendência para a contração.34 O sistema


colo-
nial continuava, por isso, a funcionar perfeitamente bem, sendo capaz de
assimilar o
contrabando, que era de resto um fenômeno endêmico, tanto no império
português
quanto nos demais impérios coloniais da época. A rigor, se o contrabando era
uma
manifestação de crise, então o sistema sempre estivera em crise.
A inconsistência é óbvia entre a imagem de um sistema em crise, minado
pelo
contrabando e condenado a uma próxima desagregação pelos avanços do
capitalis-
mo industrial, e sua definição como mecanismo eficaz de exploração colonial,
gera-
dor de grande descontentamento na população colonial, do qual as
inconfidências
seriam os afloramentos mais visíveis. Com efeito, no imaginário da crise, as
sedições
de Minas ou da Bahia constituíam uma reação à exploração e à opressão
colonial,
justificada nos termos do Iluminismo radical, de olhos postos no exemplo dos
insurrectos norte-americanos triunfantes, que haviam mostrado ao mundo que
as
colônias, mesmo as das nações mais poderosas, podiam afinal tornar-se
comunida-
des livres e autônomas.
Bem pode a mitologia nacionalista tentar implantar as raízes da nação
no passa-
do mais remoto possível, que os vínculos entre a independência do Brasil e
as incon-
fidências não são mais do que aqueles que essa mesma mitologia imaginou. Das
inconfidências, como do contrabando, pode-se dizer que não foram nem causa,
nem
sintoma de uma crise do império ou do sistema colonial em que se baseava.
Consti-
tuíram movimentos visionários, localizados, sem ligação entre si, suscitando
uma
adesão muito limitada e sendo, por isso, facilmente desmontados pelas
autoridades.
Corresponderam em grande parte a problemas e preocupações de expressão local
ou,
quando muito, regional. Em Minas Gerais, o declínio da atividade mineira e o
de-
senvolvimento de uma atividade agrícola para o mercado interno, que se
traduziram
na periferização de toda a região no contexto do império e da própria
colônia e na
oscilação dos equilíbrios geográficos e econômicos internos, criaram o
ambiente pro-
pício a que voltasse a emergir a tradição sediciosa local, concretizada ao
longo do
Setecentos em diversos levantes e motins. Na Bahia, irromperam os problemas,
por
muito tempo recalcados, procedentes das articulações entre a questão racial
e a ques-
tão social. Num e noutro caso, só marginalmente o sistema colonial estava em
causa.
É certo que entre os conspiradores da Inconfidência Mineira havia quem
tivesse
assimilado as idéias do radicalismo iluminista da época, como as de Rousseau
e Raynal
(e Diderot). Eles sabiam, porém, que eram pouquíssimos os que se deixavam
aliciar

34 Pedreira, 2000:862-863.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 73

por tais idéias e que, por isso, sua oportunidade para realizar o projeto
quimérico de
fundar uma república em Minas só chegaria se mobilizassem um eventual
descon-
tentamento popular contra o lançamento de um imposto geralmente tido como
injusto (a chamada derrama). Do mesmo modo, nos pasquins que circulavam na
Bahia em 1798 ressumava a retórica da Revolução Francesa, que suscitou a
adesão
não só dos artífices pardos que teriam supostamente aderido à sedição, mas
também
de alguns (poucos) membros da elite local.35 Contudo, de forma alguma pode-
se
aceitar que se tratasse de um partido ou que houvesse um prenúncio de
emancipação
ou de uma situação pré-revolucionária. Trata-se, uma vez mais, de uma
interpretação
retrospectiva, teleológica, do processo histórico.
De fato, as idéias revolucionárias no Brasil de fins do Setecentos não
saíam de
pequeníssimos círculos clandestinos, de conventículos ou conciliábulos, como
mos-
trou a historiografia menos sensível ao canto das sereias do nacionalismo,
de Caio
Prado a João Pinto Furtado (2002). Na ausência de uma verdadeira esfera
pública —
não existindo universidades, academias, tampouco tipografias —, essas
idéias, que
ademais eram fortemente combatidas (não só na colônia, mas na metrópole),
dificil-
mente poderiam se difundir. Além disso, as aspirações a uma nova forma de
governo
não implicavam a defesa de uma ruptura com Portugal, como se tornaria mais
tarde
evidente, com a adesão das juntas brasileiras à Revolução liberal portuguesa
de 1820.
O sistema de governo colonial português, que permitia às autoridades
locais a
comunicação direta com as instituições centrais da monarquia, caracterizava-
se por
uma flexibilidade que lhe propiciava ir acomodando e arbitrando conflitos e
resis-
tências. A ação do marquês de Pombal, que sabia bem que, para a defesa do
Brasil,
tinha de contar, em primeiro lugar, com as populações da própria colônia,
conservou
o essencial desse equilíbrio. Embora determinasse a reorganização das
finanças, com
o objetivo de obter mais receitas para o Estado, procurou a colaboração de
agentes
locais, de forma a não hostilizar as populações. Mesmo considerando a
criação das
companhias monopolistas, e a implacável repressão à resistência que contra
elas se
levantou, mormente no Pará, assim como as medidas contra os jesuítas, as
reformas
pombalinas foram mais comedidas e muito menos violentas para as populações
lo-
cais, elites incluídas, do que as reformas borbônicas. Ao contrário do que
aconteceu
na América espanhola, não houve qualquer tentativa de reduzir
sistematicamente a
influência e as oportunidades de promoção dessas populações.

35 Jancsó, 2001.

Untitled-1 73 08/08/2014,
15:03
74 A independência brasileira

É certo que alguns elementos do sistema financeiro colonial,


notadamente al-
guns impostos, como a capitação e depois a derrama em Minas Gerais, ou
monopó-
lios régios explorados por grandes capitalistas de Lisboa, em particular o
do sal,
tornaram-se odiosos aos olhos dos povos que os tinham de suportar. É certo
também
que algumas medidas de reforço do sistema colonial e, em particular, o
famigerado
alvará de proibição das manufaturas, as restrições ao comércio intercolonial
ou a
anunciada intenção de restabelecer a derrama geraram tensões significativas.
Porém,
o sistema era suficientemente flexível para, conservando suas regras
essenciais de
funcionamento, acomodar tais tensões, se necessário através do adiamento ou
da
correção das decisões ou até da introdução de reformas, que, ao contrário do
que
supunha Caio Prado, o sistema podia efetivamente admitir. Foi o que
aconteceu com
o abandono, ou pelo menos com a forte limitação, dos dispositivos de
extração direta
da renda por meio da imposição de monopólios a alguns produtos, substituídos
por
mecanismos de caráter fiscal, ou ainda com o aproveitamento das
virtualidades do
comércio intercolonial.
Nesses termos, o poder de constrangimento, não só político-econômico,
mas
também ideológico, do sistema era tal que, mesmo depois da Guerra da
Indepen-
dência da América, a relação entre Portugal e o Brasil dificilmente podia
ser concebi-
da fora dos limites do sistema. Mesmo autores e políticos como o bispo
Azeredo
Coutinho, oriundo de uma importante família do Brasil, ou d. Rodrigo de
Sousa
Coutinho, ministro e presidente do Real Erário, que criticavam abertamente o
regi-
me dos monopólios régios e foram ambos responsáveis pela supressão do
estanco do
sal e do contrato da pescaria das baleias (também ele criticado por José
Bonifácio),
não viam então alternativa para o sistema colonial.
Para Azeredo Coutinho (1794), que as colônias renunciassem à sua
liberdade
de comércio e à produção industrial em favor da metrópole era um pequeno
sacrifí-
cio que tinham de fazer pela proteção e segurança que recebiam em troca.
Quanto a
Sousa Coutinho, um dos primeiros leitores portugueses de Adam Smith, pensava
que existia um vínculo natural que unia Portugal e Brasil e que, mesmo sem
as restri-
ções legais, os dois territórios permaneceriam unidos por interesses comuns.
Não
punha minimamente em causa os direitos exclusivos de Portugal sobre o
comércio
externo do Brasil. Não via, é certo, razão para a proibição das manufaturas
na colô-
nia, mas considerava que a especialização nas atividades agropecuárias lhe
seria mais
conveniente ainda por muitos anos.36

36 Cardoso, 2001.

Untitled-1 74 08/08/2014, 15:03


Economia e política na explicação da
independência do Brasil 75

Também entre os comerciantes do Rio de Janeiro e de Salvador não se


desenvol-
vera uma doutrina minimamente consistente de oposição ao sistema colonial.
Já não
eram certamente simples comissários, incapazes de conduzir os negócios por
sua
conta e que se limitavam a trabalhar para os negociantes de Lisboa, tal como
o mar-
quês do Lavradio ainda os retratava em 1779.37 Além das trocas com Portugal,
em
que tomavam parte ativa, o tráfico de escravos e a ampliação dos mercados e
das
comunicações internas propiciavam oportunidades locais de acumulação.38
Contu-
do, muitos desses negociantes, incluindo os mais importantes, eram
imigrantes de
fresca data no Brasil. Participavam das redes luso-brasileiras de agentes e
correspon-
dentes mercantis, para o que os laços de casamento e de parentesco também
contri-
buíam, lançando uma base para o estabelecimento de relações e associações
comer-
ciais. Eram, portanto, parte essencial da trama social de que se formava o
sistema
mercantil luso-brasileiro.
Em suma, pode-se dizer que a crise do antigo sistema colonial nunca
existiu.
Nem no domínio econômico (mercantil), nem no domínio político-ideológico
pode-
se encontrar, no caso do império português, manifestações dessa crise. Se há
sinais de
crise, reduzem-se à esfera das finanças do Estado, mas têm mais a ver com a
pressão
sobre a despesa do que com problemas na captação das receitas. É certo que a
quebra
progressiva das remessas de ouro e os problemas de colocação dos diamantes
no mer-
cado internacional reduziram a base para a apropriação direta de recursos e
para a
criação de uma renda de monopólio para partilhar com os contratadores. Daí
as tenta-
tivas, efêmeras, para intensificar a pressão fiscal, como no caso da
derrama, em Minas
Gerais. É certo também que novos dispositivos fiscais só parcialmente
substituíam as
receitas provenientes dos estancos. Contudo, a crise financeira residia
essencialmente
no desequilíbrio criado pela necessidade de custear os encargos com a
defesa, impostos
pela situação internacional. Não tem, por isso, uma dimensão especificamente
colo-
nial. Assim, apesar de operar em condições de grande vulnerabilidade, devido
aos ris-
cos que essa mesma situação internacional apresentava, nada indicava que o
sistema
colonial estivesse condenado à desintegração em futuro próximo. E no
entanto…

O colapso do sistema colonial

A estrutura do sistema colonial e as bases em que se assentava a


prosperidade
mercantil ruíram bruscamente. Quando, em 21 de novembro de 1806, Napoleão

37 Carnaxide, 1979:244-245; e Alden, 1968.


38 Fragoso, 1992; e Florentino, 1997.

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76 A independência brasileira

promulgou o Decreto de Berlim, declarando o bloqueio continental à Grã-


Bretanha,
selou o destino do império luso-brasileiro. Portugal foi então colocado
entre dois
terrores, para usar a expressão do próprio Talleyrand. Ceder às exigências
da França
teria como conseqüência o bloqueio dos portos portugueses e a provável
ocupação de
alguns dos domínios ultramarinos pelas forças inglesas. Não ceder implicava
a guerra
com a França e a Espanha e, seguramente, a ocupação estrangeira. A escolha
de
campos tampouco permitiria mobilizar os recursos dos aliados. Depois da
derrota
em Trafalgar, a França, ainda que quisesse, não poderia ajudar Portugal a
defender a
integridade do seu império e a assegurar o comércio marítimo. A Inglaterra,
ainda
que pudesse, não via oportunidade imediata de um dispendioso auxílio militar
à
resistência contra a invasão de Portugal pelas tropas franco-espanholas.
O governo do príncipe d. João usou, enquanto pôde, a tática
diplomática da
ambigüidade e da procrastinação, procurando preservar a todo custo a
neutralidade,
na esperança de que novas tréguas gerais viessem a tempo de evitar a
concretização
das ameaças francesas. Empreendeu mesmo negociações em duas frentes,
tentando
reduzir as pretensões da França ao fechamento dos portos portugueses aos
navios
britânicos e, ao mesmo tempo, obter o consentimento da Grã-Bretanha para
essa
cedência. Sem êxito. A França mostrou-se irredutível em suas exigências, e a
conven-
ção estabelecida com o governo britânico, que só em parte e com grandes
reservas foi
ratificada pelo príncipe regente em 22 de outubro de 1807, mais do que um
acordo,
era uma declaração dos termos do desacordo.39
Entretanto, conhecendo os movimentos das tropas francesas a caminho de
Por-
tugal, o governo, entre os dois terrores, optou pelo que lhe parecia menor.
Conven-
cido da absoluta futilidade da resistência aos triunfantes exércitos
napoleônicos, acei-
tou as pretensões da França, começando pelo encerramento dos portos, e
ordenou
desde logo os preparativos para a defesa de Lisboa contra um eventual ataque
da
armada britânica. Deixou, porém, o cumprimento das injunções mais graves (a
pri-
são dos súditos ingleses e o seqüestro de seus bens) para o último instante.
Tomadas
finalmente essas medidas, ainda que quase toda a colônia inglesa já se
houvesse reti-
rado com armas e bagagens, a esquadra britânica impôs imediatamente um
bloqueio
naval na barra do Tejo. Foram inúteis tais sacrifícios. A submissão in
extremis ao
diktat de Napoleão não evitou a invasão das forças comandadas por Junot, que
não

39 Sobre a convenção, ver Manchester, 1933:62-63, e Alexandre, 1993:151-


156, 159, que demonstram
como a convenção constituiu mais uma verificação de desacordo do que uma
real aproximação com a Ingla-
terra.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 77

vinham somente impor a rigorosa execução do bloqueio continental, mas também


saciar ambições territoriais.40
Pôs-se então em marcha um plano já antigo, mas que nunca fora
necessário
executar: a retirada da corte para o Brasil. Admitida já por d. Luís da
Cunha em
1735/36, essa possibilidade viria a adquirir maior consistência a partir de
1797 no
pensamento de d. Rodrigo de Sousa Coutinho, que a tomava como o último
recurso
para preservar a monarquia, em que o Brasil assumia cada vez mais o papel
central.
Em 1803, na qualidade de ministro, propusera mesmo um procedimento que com-
binava o sacrifício de uma guerra na metrópole à fundação de um poderoso
império
em terras brasileiras, onde se poderia organizar a reconquista do que se
houvesse
perdido na Europa.41 Por várias razões, a idéia não pôde então ser
considerada. Con-
tudo, gorado o projeto de enviar o príncipe d. Pedro, filho primogênito do
regente,
para o Brasil, de forma a salvaguardar a união imperial de uma eventual
secessão
patrocinada pela Inglaterra, baldados também os esforços de aplacar a fúria
de
Napoleão, chegara a hora de adotar essa solução, já expressamente admitida
na con-
venção de 22 de outubro de 1807, pela qual a Inglaterra se comprometia a
reconhe-
cer como rei de Portugal apenas o herdeiro legítimo da dinastia de Bragança
e a
proteger o embarque e a viagem da família real para o Brasil. Assim, foi a
mesma
esquadra inglesa que bloqueava o Tejo que acabou assegurando essa proteção,
mas o
embargo seria imediatamente restabelecido contra Portugal sob ocupação
francesa.
Entretanto, mal chegou ao Brasil, ainda na Bahia, onde fez escala a
caminho do
Rio de Janeiro, o príncipe d. João decretou, em 28 de janeiro de 1808, a
abertura dos
portos brasileiros aos navios das nações amigas. A medida, apresentada como
transi-
tória, como uma suspensão do regime de comércio luso-brasileiro imposta pela
in-
terrupção das relações com a metrópole, constituía realmente a abolição não
declara-
da do sistema colonial. Com a corte instalada no Rio de Janeiro, havendo
quem
desse Portugal por perdido, o governo atendia em primeiro lugar aos súditos
da
América. Uns meses mais tarde, em 1o de abril, um alvará levantou todas as
proibi-
ções à atividade manufatureira no Brasil, consumando a supressão do pacto
colonial.
As invasões francesas, o bloqueio naval britânico, a supressão do
sistema coloni-
al, os tratados de comércio e amizade com a Grã-Bretanha firmados em 1810
cria-
ram graves problemas ao comércio marítimo português. O movimento mercantil
com os domínios ultramarinos esteve praticamente interrompido em 1808 e só
co-

40 Silbert, 1977:64; e Alexandre, 1993:161-162.


41 Alexandre, 1993:131-132; e Cardoso, 2001:94-95.

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78 A independência brasileira

meçou a se recuperar a partir de 1814. Entre 1808 e 1813, as exportações de


produ-
tos nacionais para o Brasil caíram para 22,4% dos valores médios registrados
na
década anterior às invasões. Mais grave ainda era a situação das
reexportações. A
função de entreposto entre a Europa e o Brasil, que constituía um dos
esteios do
comércio externo de Portugal, foi duramente atingida. As reexportações de
produtos
europeus caíram para 10% da média do período precedente e as vendas de
gêneros
brasileiros baixaram a um ritmo semelhante, para 11,6%. Nessas
circunstâncias, a
quebra das importações do Brasil era inevitável, e por isso não chegavam a
um quin-
to dos valores anteriores à guerra.42
Entre 1808 e 1813, Portugal achou-se quase isolado. O comércio com as
Pro-
víncias Unidas, Hamburgo, Dinamarca e França esteve inteiramente paralisado
e
com a Suécia, a Rússia e a Prússia sofreu também dificuldades e
interrupções. En-
quanto duraram os conflitos, o país ficou na estrita dependência da
Inglaterra, que
quase monopolizava suas relações comerciais. Além disso, os comerciantes
britâni-
cos, que antes se limitavam a importar o algodão através de Lisboa, passaram
a ocu-
par uma posição dominante no comércio do Brasil: entre 1812 e 1815,
forneceram
75% das importações e adquiriram 38% das exportações.43 Não é temerário
supor
que essas proporções tenham sido ainda mais elevadas no auge dos conflitos
(anos
para os quais não existem dados). Entretanto, as trocas entre as duas nações
desenvol-
viam-se sob o regime estabelecido pelo tratado de 1810, que abolira todas as
restri-
ções à entrada de produtos ingleses em Portugal e em seus domínios (em
particular
os tecidos de algodão), impondo apenas uma tarifa de 15% ad valorem às
importa-
ções, o que, numa era de protecionismo crescente, eram condições altamente
favorá-
veis para o comércio britânico.
Sob esse novo regime mercantil e nas condições prevalecentes no
comércio in-
ternacional, os portos portugueses não podiam continuar servindo de
entreposto
obrigatório à circulação de artigos europeus para o Brasil e de artigos
brasileiros para
a Europa. Contudo, quando se restabeleceram os antigos canais de
comercialização,
os comerciantes portugueses conseguiram aumentar sua participação no
comércio
brasileiro e a cota-parte dos comerciantes britânicos reduziu-se de forma
correspon-
dente. Entre 1814 e 1818, verificou-se mesmo uma significativa recuperação.
Mais
uma vez, as remessas de produtos portugueses revelaram um comportamento mais
positivo do que o comércio de entreposto. Em 1818, as saídas de artigos
manufatu-

42 Pedreira, 2000:850-851.
43 Id., 1994:341.

Untitled-1 78 08/08/2014,
15:03
Economia e política na explicação da
independência do Brasil 79

rados nacionais estavam apenas 10% abaixo das de 1805 e eram


consideravelmente
superiores às de 1806. Esse ano foi, porém, excepcionalmente positivo para o
setor
industrial, pois, entre 1815 e 1818, as exportações não foram além de 56,5%
dos
valores médios de 1796-1806. De fato, a evolução mais favorável do comércio
de
produtos nacionais deveu-se especialmente à saída de vinhos, em particular
de vinho
do Porto (quase o dobro do volume e o triplo do valor da época anterior à
guerra).44
No processo de adaptação à nova situação, emergiu um novo padrão para
as
transações com o Brasil. Os produtos primários, que, entre 1796 e 1806,
consti-
tuíam pouco mais da quarta parte das remessas nacionais para o ultramar,
passaram
a representar mais da metade. Assim, essas relações tendiam também elas a
confor-
mar-se, no vetor das exportações, com o modelo geral do comércio externo
portu-
guês. Apesar de tudo, as exportações de artigos industriais continuavam a
desempe-
nhar um papel relevante, ainda que menor, nas remessas para o Brasil.
A recuperação, embora efêmera, corresponde à exploração das últimas
vanta-
gens de que Portugal ainda gozava no comércio a longa distância. Por um
lado, a
guerra infligira graves perdas às frotas de vários países europeus, que, de
resto, eram
constituídas por embarcações de baixa tonelagem, mais apropriadas ao
comércio
intra-europeu e menos adequadas para a navegação intercontinental. Além
disso, os
produtos europeus (com a exceção dos britânicos) continuavam a suportar
tarifas de
30% à entrada do mercado brasileiro (e português). Desse modo, durante algum
tempo, só os navios britânicos (e os dos próprios brasileiros) disputavam o
monopó-
lio português do comércio do Brasil. As redes e práticas mercantis
instaladas, embora
caracterizadas por uma apreciável elasticidade, conferiam aos negociantes
portugue-
ses uma posição privilegiada no comércio do Atlântico sul.
Essas condições só permitiram, porém, uma efêmera recuperação. Depois
de
1819, o comércio de Portugal com o Brasil, tanto importações quanto
exportações,
entrou em novo declínio. Era a conseqüência inevitável da nova forma de que
se
revestiam as relações mercantis desde a abertura dos portos brasileiros à
navegação
estrangeira. As importações do Brasil, apesar da quebra, chegavam a 87% dos
valores
anteriores à ruptura do sistema colonial, mas as reexportações de produtos
coloniais
não alcançaram um restabelecimento tão completo, não indo além de 68% dos
mon-
tantes precedentes. Nos primeiros anos do século XIX, o movimento mercantil
entre
Portugal e o Brasil ficou mais ou menos equilibrado. Os pequenos déficits,
quando
existiam, eram amplamente compensados pelos resultados positivos nas
transações

44 Pedreira, 2000:851.

Untitled-1 79
08/08/2014, 15:03
80 A independência brasileira

com as nações estrangeiras (para o que as vendas de gêneros de origem


brasileira
muito contribuíam). Depois de 1809, porém, a balança comercial tornou-se
desfa-
vorável nas duas frentes. Registraram-se sucessivos saldos negativos com o
Brasil,
enquanto a balança com as nações estrangeiras se inverteu completamente e os
exce-
dentes converteram-se em déficits avultados. A conseqüência só podia ser
uma: a
contração geral do comércio externo português. A demonstração dessa
inevitabilidade
está na coincidência entre a fortíssima quebra das importações de gêneros
coloniais
ocorrida a partir de 1819 e a nítida redução do déficit comercial. Nesse
mesmo ano,
a reexportação dos artigos brasileiros caiu quase à metade. O nível em que
se encon-
travam as transações, ainda que muito inferior ao do começo do século, era
incom-
patível com a estrutura da economia mercantil portuguesa, nas circunstâncias
em
que se achava após a ruptura do sistema colonial.

Novos ventos nas duas margens do Atlântico

A transferência da corte para o Rio de Janeiro e o colapso do sistema


colonial,
que com ela coincide, mas só mais tarde estaria plenamente confirmado,
marcaram
uma nova era, tanto em Portugal, quanto no Brasil. Suprimido o mecanismo
prote-
tor, que consistia em um dos primeiros fundamentos do império, a queda do
comér-
cio luso-brasileiro revelou-se em toda a sua extensão em 1819. Essa crise —
agora
bem evidente — provocou terríveis prejuízos aos setores mais mercantilizados
da
economia portuguesa e, em particular, à infra-estrutura mercantil da cidade
de Lis-
boa. Se o império português tinha uma dimensão desproporcionada
relativamente à
metrópole — que se exprimia sobretudo na preponderância que adquiriu nas
recei-
tas do Estado45 —, era natural que as perdas resultantes do colapso do
sistema impe-
rial fossem especialmente pesadas, mais pesadas, por exemplo, do que na
Espanha.46
Efetivamente, a prosperidade do período anterior às invasões tornara
o sistema
colonial ainda mais importante — não do ponto de vista das finanças do
Estado,
mas da própria economia —, na exata medida em que crescera o movimento
comer-
cial com os domínios, e em que estes consumiam uma parte significativa da
produ-
ção industrial. O Estado não podia dispensar uma organização mercantil que
se
baseava no monopólio dos negociantes portugueses sobre o comércio colonial,
e os
negociantes, que em larga medida haviam cumprido o desiderato pombalino de
sub-

45 Godinho, 1978; e Pedreira, 2006.


46 Prados de la Escosura, 1988:85; e Pedreira, 1994:363-366.

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08/08/2014, 15:03
Economia e política na explicação da
independência do Brasil 81

trair os negócios do Brasil ao controle estrangeiro, concentraram de tal


modo as suas
iniciativas nos negócios privilegiados (comércio ultramarino, contratos
régios e ma-
nufaturas de exportação) que raramente exploravam outras oportunidades.
Os negociantes portugueses — em particular o corpo de comércio de
Lisboa —
conheciam bem a importância dos privilégios mercantis de que gozavam em suas
relações com o Brasil. Sem a ajuda do sistema colonial, sentiam grande
dificuldade
em suportar a concorrência estrangeira, mormente a inglesa, que fora
franqueada
pelo tratado de comércio de 1810. Estavam, por isso, fortemente arraigados
aos
velhos privilégios, mas a restauração da antiga exclusividade comercial, por
mais que
a desejassem, era realmente impossível. Jamais o consentiriam não só os
interesses
comerciais baseados no Brasil, que se tinham consolidado, como, o que não
era
certamente menos importante, o próprio governo britânico.
A história não podia recuar sobre os seus próprios passos, mas, aos
olhos dos
principais agentes sociais e econômicos portugueses, era cada vez mais
notório que
não podia prosseguir no mesmo trilho. As reclamações dirigiram-se contra as
mani-
festações da supremacia inglesa, certificada pelos tratados, que iam das
amplas con-
cessões comerciais ao poder atribuído ao enviado britânico (que tomava
assento na
Junta de Governadores do Reino, com voto em todas as questões de defesa e
finan-
ças). A presença de um corpo de oficiais ingleses nas Forças Armadas
nacionais, a
começar pelo comandante-em-chefe, marechal William Carr Beresford — que se
tornara de fato, senão de direito, a autoridade máxima no reino —,
constituía a
imagem visível de uma situação que era sentida como uma submissão. A falta
de
proteção relativamente à Inglaterra cedo se tornou motivo de protesto.
As primeiras expressões de descontentamento surgiram em jornais
portugueses
publicados no estrangeiro, em que as opiniões podiam se exprimir livremente,
assim
como em petições dirigidas à administração. Logo em 1810, a alegação de que
o
tratado de comércio não obedecia ao princípio da reciprocidade e de que
conferia aos
ingleses benefícios dos quais nem os próprios nacionais gozavam no Brasil
foi enun-
ciada nas páginas do Correio Braziliense, periódico dirigido por Hipólito
José da
Costa e impresso em Londres, que, como o título indica, se propunha dar voz
aos
interesses dos brasileiros. Contudo, não havia chegado a hora de divulgar
tal acusa-
ção, ainda precoce. Os protestos contra o tratado foram assim adiados por
algum
tempo, tanto mais que prevalecia a idéia de que se tratava de um ajuste
temporário,
para vigorar enquanto a guerra persistisse.
Em 1812, porém, surgiram as primeiras reclamações dos negociantes de
Lis-
boa, que apresentaram uma representação solicitando a tomada de medidas
urgentes
para favorecer o desenvolvimento da marinha nacional, questionando
implicitamen-

Untitled-1 81 08/08/2014,
15:03
82 A independência brasileira

te os compromissos que Portugal assumira com a Grã-Bretanha. Após novo


apelo,
em que declaravam expressamente não pretender interferir no cumprimento dos
tratados, o governo chegou a instruir a Junta do Comércio para que, com o
auxílio
do corpo mercantil, concebesse um regime de comércio que protegesse
efetivamente
a frota nacional. Contudo, esse regime nunca foi proposto, e os negociantes,
cansa-
dos de esperar, enviaram suas petições para publicação no Investigador
Português em
Inglaterra, outro periódico de língua portuguesa difundido a partir da
capital inglesa.
Outras reclamações chegariam em breve às páginas dos jornais. Em 1813,
pu-
blicaram-se cartas e comentários dos redatores lastimando a miséria dos
artesãos, que
se atribuía à concorrência dos artigos industriais ingleses, facilitada pelo
tratado de
1810. Nos anos seguintes, protestos semelhantes tornaram-se recorrentes. O
descon-
tentamento grassava. A crise econômica, os terríveis problemas financeiros,
que im-
pediam o governo de suprir mesmo as despesas correntes, e a depreciação do
papel-
moeda criavam um clima geral de insatisfação. Ao mesmo tempo, a permanência
da
família real e da corte no Brasil, muito além do fim da guerra, e a
subordinação
política e militar à Inglaterra atingiam os interesses de importantes corpos
sociais. A
par dos homens de negócio, lesados pelo fim do sistema colonial e pelas
facilidades
concedidas aos seus competidores britânicos, os magistrados e os militares
sentiam-
se altamente prejudicados em suas carreiras pelo afastamento em relação ao
centro
político. Suportavam mal, os primeiros, a criação de tribunais superiores no
Brasil e,
os últimos, a permanência dos oficiais ingleses nos quadros das tropas
nacionais.
Todos ajudavam a alimentar uma opinião fortemente antibritânica, que
inicialmen-
te parecera corresponder a um espaço de comunhão entre os interesses de
portugue-
ses e brasileiros, mas que em breve poria a nu a disjunção desses
interesses, contribu-
indo para inflamar um sentimento público de humilhação e decadência
nacional,
em que a inversão da relação com a antiga colônia não pesava menos do que a
sujei-
ção à Inglaterra.
A frustração das aspirações portuguesas no Congresso de Viena foi,
desse ponto
de vista, perfeitamente reveladora. Em Portugal, alimentara-se a esperança
de que,
terminada a guerra, fosse possível obter da Grã-Bretanha a revogação do
tratado de
comércio de 1810. Em conversações bilaterais, paralelas ao congresso, os
enviados
portugueses tentaram, sem êxito, persuadir os ingleses a aceitar essa
revogação. No
próprio congresso surgiu nova possibilidade, no contexto das discussões
sobre a abo-
lição do tráfico de escravos. Os ingleses (com o apoio da Rússia, da Áustria
e da
Prússia) insistiam na extinção imediata, enquanto os portugueses, embora
obrigados
por uma cláusula do Tratado de Amizade e Aliança, tentavam adiá-la o mais
possível,
pois entendiam que a economia brasileira não podia ainda sustentar-se sem o
per-

Untitled-1 82 08/08/2014, 15:03


Economia e política na explicação da
independência do Brasil 83

manente influxo de mão-de-obra forçada. A certa altura, acreditando não


poder
resistir muito mais à pressão internacional, os diplomatas portugueses
tentaram
obter uma compensação para a cedência às pretensões abolicionistas e uma vez
mais sugeriram a derrogação do tratado de comércio. Justificavam sua posição
pelo
fato de que essa derrogação beneficiaria toda a monarquia, enquanto o
tráfico
servia apenas a uma parte.
Contudo, esse esforço não foi bem-sucedido, não só pela resistência da
Grã-
Bretanha, mas porque o governo do Rio de Janeiro optou por manter o tratado
em
vigor, por mais prejudicial que pudesse ser, para não ter de antecipar a
interdição do
tráfico. Dessa forma, alinhava-se com os interesses dos proprietários e
negreiros do
Brasil, deixando passar a oportunidade de retomar a plena soberania sobre a
regulação
do comércio e de introduzir um regime protetor que beneficiasse o comércio,
a nave-
gação e a indústria de Portugal (à semelhança do que fazia então a maior
parte dos
países europeus). Mesmo assim, teve que anuir à imediata proibição do
tráfico ao
norte do Equador.47
A imprensa fez-se eco da desilusão com os resultados do Congresso de
Viena. O
desalento e o pessimismo emprestavam o tom dominante ao ambiente político e
social. Nessas circunstâncias, nada teve de surpreendente o ressurgimento do
velho
mito da decadência nacional, que readquiriu então todo o seu poder de
persuasão.
Tratava-se, sem dúvida, do mais eficaz dispositivo retórico para exprimir
uma pers-
pectiva amplamente partilhada sobre os destinos da nação, pois retomava
argumen-
tos e idéias tradicionais, que podiam ser adaptados à situação. Era também
uma
forma sutil de crítica, numa sociedade em que o exercício da crítica estava
fortemen-
te condicionado. Nesse contexto, algumas obras do mercantilismo português
dos
séculos XVII e XVIII, que reclamavam uma intervenção política vigorosa para
ven-
cer os graves problemas do país e que, em sua maioria, circulavam apenas na
forma
manuscrita, foram então publicadas, legitimando a exigência de uma efetiva
prote-
ção econômica.
A emergência de uma esfera pública, ainda que bastante incipiente,
para a qual
muito contribuía a imprensa de língua portuguesa que se publicava em Londres
e
Paris, propiciou a expressão cívica de um sentimento nacional, sustentado
pela crise
econômica e financeira e pelas crescentes dúvidas tanto acerca da relação do
reino
com o Brasil — antiga colônia, onde se estabelecera a sede da monarquia e
fora
entretanto ela própria elevada a reino — quanto sobre sua posição enquanto
Estado

47 Alexandre, 1993:310-323; Bonifácio, 1991:53-55; e Pedreira, 1994:486-


487.

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84 A independência brasileira

soberano, num mundo que se ia adaptando à nova era, pós-napoleônica. A falta


de
resposta a questões fundamentais sobre as condições e perspectivas políticas
e econô-
micas suscitou um clima de preocupação geral quanto ao futuro do país. Foram
esses
os termos em que a comunidade começou a ser imaginada como nação, não apenas
uma entidade política — um reino, uma monarquia, um Estado —, mas uma co-
munidade que partilhava uma história comum, tal como era expressa pelo mito
da
decadência, e um destino coletivo, que convocava seus membros para uma ação
co-
letiva, expressa pelo mito da regeneração.
Nesse sentido, a conjuntura dramática que se viveu na seqüência das
invasões
francesas, da retirada da corte para o Brasil e da supressão do sistema
colonial, marca
o nascimento de Portugal como comunidade nacional. A inquietação sobre o
destino
da nação e o compromisso com a sua regeneração serviram também de ocasião
para
que se apresentassem como nacionais as preocupações, os interesses e os
objetivos
corporativos de diversas categorias sociais, como negociantes, magistrados,
intelectu-
ais e militares. Essa momentânea articulação entre interesses diversos, em
que a ques-
tão da relação com o Brasil e com o governo do Rio de Janeiro assumia
importância
crescente, encontrou uma linguagem política e uma base para a ação comum num
conjunto impreciso de idéias nacionais e liberais, que em boa parte serviam
apenas
para racionalizar uma ávida aspiração de mudança. Essa aspiração acabou por
con-
duzir à Revolução liberal de 1820.
Entretanto, no Brasil, a residência da família real havia introduzido
importan-
tes alterações. Não se tratava apenas da supressão da exclusividade
mercantil e dos
impedimentos à atividade industrial, da criação de novas instituições —
mormente
os tribunais superiores — e da elevação da América portuguesa a reino.
Tratava-se
também da formação de uma sociedade de corte, não particularmente nas suas
ma-
nifestações cerimoniais, palacianas ou mesmo aristocráticas, embora estas
também
fossem relevantes, mas nas suas dimensões institucionais e até governativas,
e da
progressiva criação de uma esfera pública, com o estabelecimento da
tipografia.48
As conseqüências dessas mudanças eram ambíguas. O traslado da sede da
mo-
narquia e a conseqüente extinção do sistema colonial haviam impedido as
tensões
que em torno desse sistema, tanto econômico quanto de governo, poderiam ter-
se
gerado. É nesse sentido que deve ser entendida a observação de Sérgio
Buarque de
Holanda, antes referida, segundo a qual a autonomia já fora obtida em 1808.
Do

48 Sobre a transferência da corte e as suas conseqüências sociais, ver a


obra clássica de Oliveira Lima (1908)
e as mais recentes de Malerba (2000) e Schultz (2001).

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08/08/2014, 15:03
Economia e política na explicação da
independência do Brasil 85

mesmo modo, as novas instituições e a proximidade ao centro político


facultaram
um espaço de promoção e reconhecimento às elites americanas, minorando a
even-
tualidade de as frustrações sociais adquirirem expressão política. Em
contrapartida, a
presença da própria corte, e de seu séquito de favoritos e privilegiados,
alimentava
em certos círculos, em particular naqueles que se situavam de forma
excêntrica —
social ou geograficamente — em relação ao eixo dos privilégios, uma crítica
à mo-
narquia e aos áulicos.
A influência crescente de idéias progressivas ou mesmo radicais e até
republica-
nas não foi independente da expansão de uma elite letrada, da mais ampla
circula-
ção, legal ou clandestina, de materiais impressos (notadamente os jornais
luso-brasi-
leiros de Londres e Paris) e do peso da maçonaria. É certo que, resolvida em
larga
medida a questão da autonomia, esse pensamento não se focalizou na relação
entre as
duas partes do reino unido, mas na forma da monarquia ou no próprio regime
que
governava a ambas. De resto, a questão punha-se com mais propriedade na
relação
das várias regiões do Brasil com o Centro-Sul, onde, para retomar a
expressão de
Maria Odila da Silva Dias, a metrópole se interiorizara, e não tanto com
Portugal,
que vivia sob tutela britânica, entregue a governadores impotentes e
governado a
distância por um rei que não mostrava intenção de regressar.
Seja como for, a década posterior à chegada da família real deixara o
Brasil
muito diferente. Para os principais habitantes da América portuguesa, entre
os quais
se contavam alguns imigrantes de fresca data — em meio aos muitos que
continua-
vam a afluir —, que se integraram favoravelmente à cadeia dos privilégios,
repugna-
va a eventualidade de suas liberdades serem restringidas e a possibilidade
de a sede da
monarquia ser restituída à antiga capital do império.

A caminho da independência

A convicção de que a revolução oferecia uma oportunidade única para a


regene-
ração nacional, isto é, para a inversão do processo da decadência permeou
rapida-
mente a sociedade portuguesa. A opinião pública — à qual a liberdade de
imprensa
conferia uma nova dimensão e um novo significado — acalentava a esperança de
que
essa súbita mudança política pudesse devolver à nação a dignidade e a
prosperidade
perdidas. Com a institucionalização do novo regime, essa liberdade suscitou
um
movimento febril de expressão de interesses, objetivos, aspirações,
propostas, em
jornais, panfletos, opúsculos, discursos, enfim, numa literatura copiosa,
que mudou
por completo o contexto e a importância da atividade editorial. O soberano
Con-
gresso, o novo centro institucional, tornou-se o ponto de atração desse
movimento e

Untitled-1 85 08/08/2014,
15:03
86 A independência brasileira

recebeu centenas de petições e memorandos que lhe foram dirigidos tanto por
cida-
dãos individuais quanto por grupos mais ou menos organizados. Os direitos da
cida-
dania, de que a população letrada agora gozava e que exercia plenamente, e a
nova
percepção da comunidade nacional, propiciavam a livre expressão dos
interesses,
mas também a demonstração de um entusiasmo patriótico.
Às contribuições espontâneas do público somavam-se os pareceres que o
pró-
prio Congresso solicitava aos representantes de algumas entidades sociais e
os docu-
mentos elaborados por suas comissões especializadas. A natureza e a
relevância das
questões tratadas eram muito variadas. Os problemas econômicos, que
figuravam já
destacadamente no manifesto aos portugueses do pronunciamento de 24 de
agosto
de 1820, proporcionavam um dos tópicos mais freqüentes de reflexão. A
agricultura
e a questão agrária, que diziam respeito à maioria da população e reclamavam
pro-
fundas mudanças do quadro institucional, ocuparam largamente os deputados do
vintismo. Porém, outros assuntos não mereceram menos os seus cuidados,
notada-
mente aqueles que, aos seus olhos, faziam das dificuldades econômicas um dos
fun-
damentos da própria decadência da nação, que feriam a sua própria dignidade.
Estão
nesse caso a proteção ao comércio e às manufaturas nacionais, duramente
atingidos
pela situação posterior às invasões francesas e em particular pelo tratado
de 1810, e o
estabelecimento de um novo regime para as trocas com o Brasil, que fizesse
cessar a
alegada preferência que o governo do Rio de Janeiro concedia aos interesses
brasilei-
ros.49
Estavam assim criadas as condições para que se formasse um amplo
espaço de
convergência entre os interesses dos corpos mercantis das cidades de Lisboa
e do
Porto e as perspectivas políticas de uma facção importante e particularmente
dinâ-
mica das cortes.50 Do ponto de vista dos negociantes, o que estava em pauta
era a
obtenção do novo poder, não só a derrubada dos obstáculos (administrativos,
fiscais)
existentes aos seus empreendimentos e à circulação interna de mercadorias e
capitais,
mas principalmente a aprovação de regimes comerciais que, por um lado,
viessem a
resguardá-los da concorrência britânica e, por outro, lhes restituíssem uma
posição
privilegiada no comércio do Brasil.
Essas posições dos corpos mercantis encontraram audiência junto aos
parla-
mentares, particularmente no caso da regulação das relações comerciais luso-
brasilei-
ras. Efetivamente, depois de uma primeira tentativa, prematura, de
apreciação do

49 Pedreira, 1994:491-492.
50 Alexandre, 1993:624.

Untitled-1 86 08/08/2014, 15:03


Economia e política na explicação da
independência do Brasil 87

assunto no Congresso, quando os representantes do Brasil ainda não tinham


tomado
os seus lugares, a questão foi entregue, nos primeiros dias de 1822, a uma
comissão
especial, constituída por cinco deputados, sendo dois representantes da
Bahia —
Pinto da França e Pedro Rodrigues Bandeira — e tendo três, por si ou por
suas
famílias, ligações estreitas com o mundo dos negócios — Luís Monteiro,
Hermano
Braancamp Sobral e o próprio Rodrigues Bandeira.
A proposta de constituição dessa comissão fora apresentada pelo
deputado Bento
Pereira do Carmo, a fim de que, com a aprovação do novo regime mercantil se
cimentasse a “indivisibilidade do Reino Unido”, pondo “em harmonia a
prosperida-
de e os interesses do Brasil e a prosperidade e os interesses de Portugal” e
consolidan-
do, desse modo, o vínculo da sua união. Contudo, Pereira do Carmo não
esqueceu
também na fundamentação de sua indicação a necessidade de garantir
rapidamente
mercados para as produções dos dois reinos, e em particular para as de
Portugal, que
deles muito careciam.51 Aprovada a proposta, três dias bastaram para que se
alteras-
sem as circunstâncias do funcionamento da comissão. A regulação das relações
co-
merciais não podia ser tratada independentemente dos demais aspectos da
“questão
brasileira”. Ora, enquanto nas cortes, apesar das tensões e de debates mais
ou menos
acirrados entre representantes de Portugal e do Brasil, se haviam alcançado,
em co-
meços de 1822, alguns compromissos importantes, por exemplo em matéria de
or-
ganização do Poder Judiciário,52 as notícias vindas de além Atlântico eram
inquie-
tantes, pois revelavam a total perda de controle pelo Congresso — e pelos
poderes
legitimados — do processo político brasileiro e a desconfiança que grassava
no Brasil
acerca das suas intenções. Nesse contexto, a regulamentação do comércio
(juntamen-
te com a decisão sobre as rendas públicas e a eliminação de alguns tributos
mais
onerosos) surgia aos olhos de alguns deputados como um dos meios mais
eficazes
para, demonstrando a possibilidade de fazer convergir os interesses de
portugueses e
brasileiros, dissipar os receios que se encastelavam no Brasil. Por isso, em
parecer da
comissão da constituição aprovado em 10 de janeiro, recomendava-se à
comissão
especial incumbida de apresentar o projeto de regime comercial a maior
urgência no
cumprimento do seu encargo e atribuía-se ao exame desse projeto prioridade
sobre
os demais trabalhos das cortes.53
As entidades comerciais de Lisboa e do Porto foram então convidadas a
expri-
mir seus pontos de vista sobre a matéria, o que fizeram em longos relatórios
e me-

51 Castro, 2002:116-117.
52 Alexandre, 1993:599.
53 Ibid., p. 607.

Untitled-1 87
08/08/2014, 15:03
88 A independência brasileira

morandos.54 A comissão para o melhoramento do comércio da praça de Lisboa


não
se absteve, no seu parecer, de denunciar os terríveis prejuízos sofridos
depois da aber-
tura dos portos do Brasil. Contudo, por mais que alguns ainda pudessem
desejar, os
negociantes sabiam bem que não seria possível restaurar o sistema colonial e
o co-
mércio exclusivo. Por isso, os seus objetivos só seriam atingidos em parte,
por meio
da regulação do comércio e não através de um sistema de proibições e
exclusividades.
Propunham, em conformidade, um regime capaz de restituir às principais
cidades
portuárias portuguesas, mormente a Lisboa, seu papel de entrepostos na
circulação
internacional dos produtos brasileiros, e que se lhes concedesse um lugar
privilegiado
num espaço mercantil comum luso-brasileiro, que desejavam ver unificado pela
mesma
regulamentação.
Esse regime consistia num conjunto de seis providências principais, a
saber: a) a
exclusão dos navios estrangeiros da navegação entre Portugal e Brasil, que
passaria a
ser reputada de cabotagem; b) a uniformização geral dos direitos de
importação e das
pautas pelas quais eram calculadas, e a extensão ao Brasil das proibições
aplicadas em
Portugal à entrada de produtos estrangeiros; c) a abolição dos direitos de
saída sobre
os produtos nacionais e sobre a reexportação em navios nacionais de artigos
estran-
geiros no comércio luso-brasileiro; d) o abatimento de um terço (ou três
quintos, no
caso de reexportação) dos direitos de importação em benefício das
mercadorias trans-
portadas em navios nacionais; e) a regulação dos direitos de entrada, de tal
forma que
se estabelecesse uma diferença favorável aos produtos portugueses e
brasileiros sufici-
ente para promover a indústria nacional; f ) a imposição, nos portos do
Brasil, de um
direito de saída de cerca de 15% sobre os gêneros de produção local
exportados
diretamente para as nações estrangeiras.55 Neste último ponto revelava-se a
estra-
tégia para devolver a Lisboa o negócio da reexportação dos produtos
coloniais, que
constituíra o eixo fundamental do comércio externo português na fase de
prospe-
ridade anterior.
Essas propostas foram bem acolhidas pelos deputados que compunham a
co-
missão especial. Com efeito, foram quase integralmente transcritas, com
apenas pe-
quenas alterações, no projeto de decreto que se elaborou. O projeto
estabelecia uma
diferença nas tarifas de importação a favor dos artigos luso-brasileiros,
que ficavam
isentos, enquanto os estrangeiros — com exceção dos proibidos ou dos
ingleses —
teriam que arcar com taxas de 30%. Impunha ainda direitos de saída (mais
modera-

54 Pedreira, 1994:493.
55 Ibid., p. 267.

Untitled-1 88 08/08/2014,
15:03
Economia e política na explicação da
independência do Brasil 89

dos do que pediam os negociantes de Lisboa) sobre os artigos brasileiros


exportados
em navios estrangeiros ou “em direitura” para as outras nações: 10% sobre o
algodão
e 6% sobre as outras mercadorias (com exceção da aguardente e do mel).56
Além
disso, entrando em terreno no qual os negociantes não se haviam atrevido a
entrar,
previa a concessão de exclusividade a alguns gêneros brasileiros em Portugal
(algo-
dão, tabaco, açúcar, café, cacau, aguardente de cana e mel) e,
reciprocamente, a pro-
dutos portugueses no Brasil (vinho, sal, vinagre e aguardente). Diante da
coincidên-
cia entre o parecer do corpo mercantil de Lisboa e o projeto de decreto, os
comerciantes
do Porto, quando se pronunciaram acerca das relações com o Brasil,
limitaram-se a
declarar que ficariam satisfeitos se o decreto fosse integralmente
aprovado.57
O projeto foi submetido ao Congresso em 15 de março de 1822. A
situação era
então muito diversa daquela em que a comissão especial começara a trabalhar.
As
novidades que chegavam do Brasil não podiam deixar de gerar grande
preocupação.
Apenas três dias antes, na seqüência da apresentação de duas cartas de d.
Pedro ao
pai, em que lhe comunicava a resolução de muitos brasileiros de declarar a
indepen-
dência caso ele obedecesse às cortes e regressasse a Portugal, julgou-se
conveniente
constituir outra comissão especial, composta paritariamente por deputados
portu-
gueses e brasileiros, para tratar dos negócios do Brasil. Precisamente na
véspera che-
gara mais uma missiva do príncipe, dando conhecimento da representação que
lhe
dirigira a junta provincial de São Paulo em 24 de dezembro, em termos que
afronta-
vam abertamente o Congresso e suas decisões.58
Nas próprias cortes o clima mudara, tornando-se pouco favorável ao
estabeleci-
mento de compromissos. Para tanto muito contribuíram não só essas notícias
como
a entrada em função, a 11 de fevereiro de 1822, dos representantes de São
Paulo, que
tinham acompanhado até mais tarde o curso dos acontecimentos no Brasil e
vinham
munidos de instruções precisas e dificilmente conciliáveis com o rumo até
então
adotado pela maioria dos deputados nas cortes. Nesse cenário, a comissão dos
negó-
cios do Brasil submeteu prontamente às cortes um parecer cuja intenção era
reduzir
as tensões e criar um clima de confiança. Propunha, desde logo, o adiamento
da
tomada de posição sobre a representação da Junta de São Paulo, algo que não
poderia
deixar de excitar os ânimos e provocar a discórdia, e sugeria a adoção de um
conjunto
de disposições que iam ao encontro de conhecidas pretensões dos brasileiros,
notada-

56 Ver o texto do projeto em Castro, 2002:113-116. Sobre a coincidência


entre o parecer da comissão de
negociantes e o projeto de decreto, ver Alexandre, 1993:631-632.
57 Pedreira, 1994:494.
58 Alexandre, 1993:611-612.

Untitled-1 89
08/08/2014, 15:03
90 A independência brasileira

mente a subordinação das juntas de fazenda e dos comandos militares às


juntas pro-
vinciais; o reconhecimento da dívida pública brasileira como dívida
nacional, nela
incluída a dívida do Banco do Brasil; a admissão da introdução de artigos
adicionais
à Constituição especificamente para o Brasil. A proposta era também
conciliatória
quanto ao regresso de d. Pedro e aconselhava a rápida discussão e aprovação
do
projeto de decreto sobre as relações comerciais, para que fosse
imediatamente dado a
conhecer no Brasil, o que constituiria “um dos mais fortes vínculos da
união”, pois
nele não seria possível descobrir “um só artigo” que não procedesse da “mais
perfeita
igualdade e reciprocidade”. Dessa forma, alegava a comissão, os brasileiros
haveriam
de se persuadir de que o Congresso os tratava como amigos.59
Estava iludida a comissão. O seu parecer suscitou acesa discussão, em
que pai-
rou a ameaça de uma iminente separação entre Portugal e o Brasil. A
controvérsia
não só opunha deputados portugueses e brasileiros, mas dividia os próprios
portu-
gueses, entre aqueles que, como Manuel Borges Carneiro, admitiam a
atribuição de
maior autonomia política ao Brasil, procurando preservar a união e obter a
aprova-
ção de um regime comercial favorável, e os que não aceitavam sacrificar aos
interesses
mercantis aquilo que consideravam ser o princípio da integridade do Estado.
Foi
precisamente durante esse debate que Manuel Fernandes Tomás, o chefe da
facção
mais intransigente, proferiu a célebre frase “se o Brasil não quer estar
unido a Portu-
gal, como tem estado sempre, acabemos de uma vez com isto: passe o Sr.
Brasil
muito bem, que cá nós cuidaremos de nossa vida”.60
Assim, quando o projeto de decreto sobre as relações comerciais com o
Brasil
foi posto em discussão em 1o de abril eram profundas as dissenções no
Congresso
sobre a questão brasileira. Ao contrário do que se supusera, em lugar de
constituir
uma base para a convergência, o projeto foi mais um motivo de controvérsia,
pela
tenaz oposição que lhe moveu a maioria dos representantes brasileiros.
Contestavam,
em primeiro lugar, o comércio exclusivo, não só por razões de ordem prática,
denun-
ciando a insuficiência da frota nacional para assegurar as comunicações
entre os ter-
ritórios do Reino Unido, mas também por uma questão de princípio. Esgrimiam,
por isso, com o argumento da liberdade de comércio, invocando os
ensinamentos da
nova economia política. Essa invocação era sobretudo instrumental, como
demons-
tra o fato de não se escusarem a defender o protecionismo sempre que o
julgavam
mais conveniente aos interesses que propugnavam. Não hesitavam, por isso, em
con-

59 Alexandre, 1993:615.
60 Ibid., p. 619.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 91

trariar a livre admissão dos artigos manufaturados portugueses no Brasil, em


nome
da necessidade de proteger a indústria brasileira nascente.61
Os parlamentares portugueses, por sua vez, defendiam vigorosamente a
aprova-
ção do projeto. Manuel Borges Carneiro, que se constituiu nessa matéria como
ver-
dadeiro porta-voz dos interesses mercantis, declarou-se com desassombro
favorável a
um sistema de restrições, condenando as doutrinas de que seus adversários se
serviam
como “vãs teorias de gabinete”.62 Outros, sem irem tão longe como ele e
declarando
preferir ao comércio exclusivo um regime baseado na diferenciação e na
gradação dos
direitos, não deixaram de se bater de forma decidida pela votação do plano
apresen-
tado, brandindo inclusive com a ameaça de criação de um porto franco em
Lisboa, o
que era pedido por alguns homens de negócio e quebraria o monopólio de que
os
gêneros do Brasil continuavam a gozar em Portugal.63
Apesar dos protestos e da resistência dos deputados brasileiros, as
normas do
projeto foram sucessivamente aprovadas em várias sessões ao longo de mês e
meio.
Ao mesmo tempo, iam-se conhecendo, e discutindo, os acontecimentos de
janeiro
no Brasil, desde a decisão de d. Pedro de ali permanecer até os vários
movimentos
para forçar a retirada das tropas portuguesas em Pernambuco, na Bahia e no
Rio de
Janeiro. Depois da sessão de 14 de maio, porém, quando estava por votar
pouco mais
da terça parte do decreto, sua discussão foi interrompida. A perturbação
causada
pelas notícias do Brasil, tanto na opinião pública quanto no Congresso,
recolocou na
ordem do dia a apreciação do comportamento da Junta de São Paulo e do
próprio
príncipe e levou mesmo a que se ponderasse o envio de tropas, o que tornou
muito
difícil o prosseguimento da aprovação do regime comercial.64
A urgência com que o assunto fora até então considerado deixara assim
de fazer
sentido, tanto mais que se tornara por demais evidente que não era possível
conven-
cer os deputados brasileiros a ceder em matéria comercial (mesmo com
compensa-
ções políticas) e que a regulação das relações mercantis, longe de poder
constituir um
vínculo de união do império luso-brasileiro, vinha introduzir mais um ponto
de
fratura.65 O projeto só voltaria à ordem do dia dois meses mais tarde, na
sessão de 17
de julho, quando foram debatidos e aprovados os artigos que faltavam. Nesse
mo-
mento, porém — após o debate que inviabilizou o ato adicional à Constituição
—,

61 Sobre o pensamento econômico dos deputados paulistas, ver Rocha,


2001:187-192.
62 Castro, 1990:42-48.
63 Dias, 1988:160; e Palyart, 1820.
64 Alexandre, 1993:638.
65 Ibid.

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92 A independência brasileira

era inexorável o afastamento entre Portugal e Brasil, o que fez dessa


aprovação um
mero exercício de retórica, pois não havia quaisquer possibilidades de o
decreto vir a
ser aplicado.
Nesse afastamento, sublinhe-se, a questão da regulação das relações
mercantis
acabou desempenhando papel bastante discreto. Não deixa de ser
significativo, de
resto, que a aprovação do regime comercial tenha sido entendida —
quimericamen-
te, é certo — como uma forma de afirmar a igualdade e a reciprocidade entre
os dois
corpos políticos do Reino Unido e como um vínculo para consolidar sua união.
Nessas circunstâncias, a atribuição de intenções de recolonização do Brasil,
no domí-
nio comercial, aos negociantes e deputados portugueses só pode ser
compreendida
como um dispositivo de pura retórica num contexto conflituoso, isto é, como
um
expediente para aprofundar as divergências ou para alargar a distância entre
as posi-
ções dos representantes do Brasil e de Portugal. Do mesmo modo, parece
claramente
excessiva a acusação, que anos mais tarde seria feita por Mouzinho da
Silveira, de que
o comércio sustentava um “patriotismo mercantil” contra o Brasil, no sentido
de
recuperar “o monopólio das colônias”.66
Na verdade, por maior relevância que se possa atribuir às questões de
ordem
econômica — o que inegavelmente tinham —, a dinâmica que desembocou na
secessão do Brasil teve um caráter essencialmente político. É certo que o
rápido ma-
logro do almejado acordo sobre o regime comercial teve como conseqüência a
radi-
calização das posições de vários daqueles que julgavam poder preservar a
união com
base na regulamentação das relações mercantis e na concessão ao Brasil de
uma mais
ampla autonomia política. Assim, restringiu-se irremediavelmente a base
parlamen-
tar para uma composição entre as pretensões e interesses dos representantes
do Brasil
e de Portugal. A verdade, porém, é que, independentemente de tal malogro,
essa base
era estreita e seriam sempre escassas as possibilidades de um ajuste. A
dissenção de-
clarara-se em torno de questões fundamentais da organização política,
investidas de
fortíssima carga simbólica. A questão da sede, ou centro, da monarquia —
questão
tão melindrosa que nunca foi abertamente discutida — e o reconhecimento do
Bra-
sil, e não de suas províncias, como corpo político uno, com dignidade e
preeminên-
cia suficiente para usufruir de ampla autonomia de governo,67 punham em
confron-
to aberto as concepções e os motivos das facções que imperaram em Portugal e
no
Brasil na seqüência do processo político aberto pela Revolução de 1820.

66 Pedreira, 1994:496-497; e Alexandre, 1993:623-624.


67 Sobre a construção dessa imagem, ver Lyra, 1994; e Souza, 1999.

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Economia e política na explicação da
independência do Brasil 93

A irredutibilidade dos deputados portugueses que Valentim Alexandre


(1993:589) qualificou de “integracionistas” ter-se-ia devido, em parte, a um
erro
de previsão, pois subestimaram claramente as possibilidades de êxito do
movimen-
to de independência do Brasil. Não acreditaram que o eixo Rio de Janeiro-São
Paulo se pudesse impor facilmente às demais “províncias”, que viam
desunidas,
separadas por enormes distâncias e divididas por profundas diferenças.
Entende-
ram também que a importância da escravatura acabaria por frustrar o
movimento,
pois o Brasil continuaria a precisar de Portugal para sustentar o tráfico de
escravos
e as elites brasileiras não ousariam desencadear a revolução, por receio de
que esta
abrisse caminho a uma revolta de escravos semelhante à do Haiti.
Superestimaram
ainda as possibilidades de uma intervenção militar das tropas portuguesas
estacio-
nadas no Brasil ou das que para lá fossem enviadas e, pelo menos alguns,
minimi-
zaram até, como provisórios, os prejuízos que a independência poderia causar
a
Portugal. Porém, ainda sem tal erro de cálculo, para esses deputados — e os
brasi-
leiros se encontravam em posição simétrica —, aceitar discutir o centro da
monar-
quia ou até a divisão da representação nacional entre Portugal e o Brasil
(como se
pretendia na proposta de ato adicional à Constituição) seria pôr em xeque os
prin-
cípios da regeneração e da dignidade nacionais, que haviam estado na origem
da
Revolução de 1820.
Os outros focos de exasperação política para as duas partes em
conflito acha-
vam-se afinal subordinados a essas questões da dignidade e da autonomia. Era
o caso
da irritante permanência do príncipe d. Pedro em terras brasileiras (que se
associava
à definição da forma de delegação do Poder Executivo), ou da extinção dos
tribunais
superiores e da apreciação dos recursos de revista, ou ainda da nomeação dos
gover-
nadores de armas. Aos olhos de uma importante facção parlamentar, que acabou
por impor os seus pontos de vista no Congresso, as pretensões expressas
pelos
brasileiros nesses domínios tinham de ser recusadas, não porque causassem
prejuí-
zos diretos aos portugueses, mas porque ou punham em xeque a possibilidade
de
restituir a Portugal a sua dignidade nacional ou eram passos decididos no
caminho
da independência. Embora a distinção possa parecer forçada, para essa facção
a
questão brasileira situava-se menos no campo dos interesses do que no das
repre-
sentações simbólicas. Por isso a conciliação era tão improvável. Depois, as
próprias
circunstâncias em que se desenvolviam os acontecimentos políticos fizeram o
res-
to. A irregularidade da comunicação e a defasagem das informações,
suscitando
reações concentradas e por força extemporâneas, não podiam deixar de
inflamar os
antagonismos e de precipitar a separação.

Untitled-1 93 08/08/2014,
15:03
94 A independência brasileira

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Untitled-1 98 08/08/2014, 15:03
Capítulo 2

Das múltiplas utilidades das revoltas: movimentos


sediciosos do último quartel do século XVIII e sua
apropriação no processo de
construção da nação
João Pinto
Furtado

Q uando investigamos o processo histórico de emancipação e construção


da iden-
tidade nacional brasileira, uma das primeiras questões que nos vem à
mente é
aquela relativa aos possíveis vínculos existentes entre três conjuntos de
acontecimen-
tos sucessivos que à primeira vista parecem, notável e coerentemente,
superar-se em
escala crescente de radicalismo e abrangência. Colocados em relação, os
eventos arti-
culados em torno das diversas inconfidências setecentistas — mineira, de
1788/89;
do Rio de Janeiro, de 1794; e baiana, de 1798 — parecem mesmo sugerir a
muitos
autores uma relativa complementaridade entre si. Aos participantes da
primeira, abas-
tados membros de uma elite urbana, faltariam o radicalismo intelectual
tomado de
empréstimo pelos sediciosos fluminenses aos franceses, bem como a
“coloração” po-
pular finalmente obtida pelos baianos a partir da difusão do apelo sedicioso
entre
negros e mestiços da Bahia. Embora tentadora e apresentando algum nível de
emba-
samento empírico, essa articulação não chega a ser a melhor expressão da
verdade,
conforme tentarei demonstrar a partir do exame da história e da
historiografia
concernentes aos eventos em tela, com especial destaque para a Inconfidência
Minei-
ra, que, entre eles, seria objeto da mais expressiva apropriação simbólica e
política
pelas elites imperiais já a partir do início do século XIX no processo de
construção da
identidade nacional. Nesse sentido, sugiro, já de início, que a relação
estabelecida
entre as diversas inconfidências do final do século XVIII e o processo de
independên-
cia deu-se antes por sua apropriação e releitura pelos agentes da
emancipação do que

Untitled-1 99 08/08/2014, 15:03


100 A independência brasileira

pelo acúmulo de experiências e formação de um pensamento comum — ou compar-


tilhado — pelos três processos em pauta.
Em primeiro lugar, a partir de uma breve análise comparativa,1 seria
preciso
tentar restabelecer em bases realistas as possíveis conexões entre os
eventos em desta-
que. Para além do que sustentou tão fortemente o discurso da historiografia,
pelo
menos até os anos 1980, o que se percebe de fato é que a comunhão e a
circulação das
idéias entre os três eventos foram muito restritas, para não falar da
praticamente
inexistente circulação dos personagens e da heterogeneidade dos agentes
envolvidos,
o que seriam variáveis bastante expressivas se quiséssemos demonstrar que
sua suces-
são no tempo não seria obra do acaso. Hoje sabemos, a partir de documentação
e
também de análises historiográficas mais estruturais, que entre mineiros e
baianos,
por exemplo, são maiores as diferenças que as semelhanças. Sem mesmo
aprofundar
o exame da conjuntura econômica regional, profundamente distinta nos dois
casos,
diria que, enquanto a maioria dos conjurados mineiros era positivamente
defensora
das instituições do Antigo Regime português, desde que escoimadas de alguns
exces-
sos do absolutismo, os baianos certamente se inspiravam nas recentes
transformações
que ainda se processavam no ambiente francês. Se entre os primeiros não
foram
poucos os monarquistas, por outro lado, entre os não-monarquistas baianos o
senti-
do da apropriação do termo “República” era radicalmente diferente do que
sugeriria
o movimento republicano a partir dos anos 1870.
Os baianos, por seu turno, mais referenciados aos acontecimentos
franceses
coevos ainda não chegavam a ser “republicanos” no sentido em que o século
XIX
consagraria, mesmo porque seu repertório político seria ainda fortemente
marcado
pela cultura política que condicionara padrões de ação e representação
política por
séculos. É o caso da tão freqüentemente alardeada conotação popular que se
afirma-
ria basicamente a partir de uma expressiva adesão de elementos de “baixa”
extração
social, artesãos e oficiais em particular, negros e mestiços. Nesse caso, é
preciso lem-
brar que o próprio fato de que o movimento tenha se materializado
inicialmente a
partir da divulgação de textos escritos supõe níveis de educação formal e
inserção
social certamente muito diferenciados em relação ao conjunto da massa
escrava do
continente. Em termos propriamente políticos, não deixa de ser surpreendente
e
avançada, no entanto, a progressiva constituição, no contexto baiano do
final do

1 Villalta, 2000.

Untitled-1 100 08/08/2014,


15:03
Das múltiplas utilidades
das revoltas 101

século XVIII, de uma expressiva esfera pública enquanto locus privilegiado


da ação
política, conforme demonstrou Jancsó (1997).
Por outro lado, ainda que admitindo seus avanços comparativamente à
Incon-
fidência Mineira, particularmente os relativos às reformulações no modo de
se fazer
política, não se pode aceitar impunemente a difundida tese de que o que
contrapõe
os dois movimentos seria, fundamentalmente, o caráter elitista e reformista
da In-
confidência Mineira vis-à-vis o caráter popular da baiana, freqüentemente
vista como
“revolucionária”. Ora, no século XVIII, mesmo tardio, o contraponto elite-
povo não
se processava do mesmo modo que nas democracias modernas. Pelo contrário, na
ordem setecentista, o povo era ainda uma “substância” um pouco disforme,
hetero-
gênea, onde ricos e pobres eventualmente caminhavam de mãos dadas contra o
Esta-
do e a nobreza, ou sua fração dominante. Nesses casos, não era incomum que
os
pobres contassem com a liderança e a proteção simbólica muito freqüentemente
oferecida pelos ricos. A dicotomia elite e povo, tão decisiva e marcante nas
lutas que
caracterizariam a sociedade contemporânea a partir da segunda metade do
sécu-
lo XIX, não seria, portanto, a marca inequívoca dessas sedições do período.
São
exemplares, nesse sentido, os casos da Inconfidência Mineira, que, além das
elites,
contou com algum nível de envolvimento de pessoas de baixa extração social
e, em
menor grau, da Inconfidência Baiana, que contou, a princípio, com forte
adesão de
muitos membros da elite soteropolitana e baiana, os quais foram
progressivamente
eximidos de participação no correr da devassa. Tanto em um caso quanto no
outro,
a versão dominante na historiografia fez “tábula rasa”, eliminando, na
prática, os
setores populares de uma e as elites de outra. Nesse processo, foi decisiva
a ação dos
devassantes em cada caso.
A questão da interferência dos detentores do poder local no curso das
devassas
que investigaram os três eventos nos remete diretamente ao problema, ainda
em
aberto e que persiste como um tema provocante para a historiografia, da
relação
entre a Inconfidência do Rio de Janeiro, a “dos letrados”, e as demais
insurreições do
período. A questão que se levanta é, fundamentalmente, sobre o que, afinal,
define
um crime de inconfidência nesse contexto: a posse e a leitura de livros e
textos inter-
ditos? Ou, simplesmente, o fato de se ter, de algum modo, caído em desgraça
junto
a membros do establishment luso-brasileiro e, portanto, ser objeto de
devassa? A per-
gunta se aplica fundamentalmente ao caso dos cariocas que vinham, como
centenas
ou milhares de outros membros do mundo ibero-americano, se deliciando com
de-
bates teóricos acerca de um novo mundo ou de uma nova ordem, mas que, na
práti-
ca, não chegaram a gerar uma única ação concreta no sentido de sua
transformação.
Possivelmente, seria a homens como eles que um conhecido autor do século XIX
se

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15:03
102 A independência brasileira

referiu, quando escreveu que “até agora, os filósofos teriam se encarregado


apenas de
interpretar o mundo e não de transformá-lo”. Assim como os cariocas de 1792-
94,
muitos dos personagens do mundo intelectual coevo reuniam-se em grupos para
leitura pública e discussão de textos, o que se explica, sem uma hierarquia
necessária
entre esses fatores, tanto pelo alto custo do objeto livro, quanto pelo
desejo de com-
partilhar idéias e experiências. Por que só uns poucos foram indiciados? É
notável,
no caso do Rio de Janeiro, o reduzido alcance da disseminação intelectual e
a nulidade
das ações práticas para se pôr em marcha o “levante”. Se já se definiu a
Inconfidência
Baiana como apenas um “ensaio de sedição”,2 o que dizer daquela “dos
letrados”?
Não sendo de segundo plano, no caso, a análise dos discursos e falas
presentes
na documentação de época, seria necessário levantar alguns problemas e
questiona-
mentos quanto às abordagens mais generalistas, sistêmicas ou estruturais
sobre o
tema da independência brasileira em sua relação com os eventos citados.
Trabalhos
como os de Mota (1984 e 1989) e Novais (1986) me parecem, nesse caso, mais
datados e interessantes como documentos do marxismo dos anos 1970 e 1980 do
que como análises sobre os móveis políticos do processo em causa. O problema
que
se coloca explicitamente reside no fato de que, na parte que tratam de temas
conjunturais, expressos em falas e práticas, esses autores se apegaram
exclusivamente
aos instrumentos interpretativos da longa duração econômica,3 o que parece
insufi-
ciente, não obstante os grandes méritos, sobretudo do trabalho de Novais, no
que
respeita à abordagem das grandes transformações pelas quais passava a
economia
mundial no período. Em última instância, o que se está sugerindo é que a
passagem
da análise estrutural ao exame do processo de emancipação, nesse caso, ficou
aquém
do potencial do tema exatamente porque não conseguiu perceber as filigranas
conti-
das nesta última dimensão, conjuntural, em que a autopercepção dos agentes
não é
questão menor ou desprezível.4
Isso nos leva a um segundo ponto, concernente à natureza e ao estatuto
teórico
e explicativo do assim chamado antigo sistema colonial, tema que tem gerado
inten-
so debate na historiografia brasileira desde o fim da década de 1970.
Arcabouço
conceitual criado para servir como ferramenta explicativa de um certo
ordenamento
2 Jancsó, 1995.
3 Os ensaios de Jorge Miguel Pedreira e o de Jurandir Malerba que abriu o
workshop New Approaches to
Brazilian Independence, realizado em Oxford em maio de 2003, enfatizam o
mesmo argumento sobre a
inadequação de uma abordagem estritamente estrutural, econômica, para a
análise de conjunturas e aconte-
cimentos políticos. Ver introdução, de Jurandir Malerba, e o capítulo 1, de
Jorge Miguel Pedreira, ambos
incluídos na presente obra.
4 Furtado, 2002.

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08/08/2014, 15:03
Das múltiplas utilidades
das revoltas 103

político-econômico de longa duração, o antigo sistema colonial da era


mercantilista
foi, efetivamente, o verdadeiro fundador de uma escola interpretativa sobre
o passa-
do colonial brasileiro que subsiste e se atualiza em vários trabalhos. Se,
por um lado,
pode-se afirmar que seu arcabouço teórico-conceitual foi produtivo e
eficiente na
exploração de inúmeras facetas da história colonial brasileira, por outro,
também se
pode afirmar que, por definição, sua aplicabilidade à interpretação de
fenômenos de
curta duração, como é o caso das inconfidências, é no mínimo problemática.
Con-
forme procurarei demonstrar, são questionáveis algumas das observações de
Novais
(1986) no que se refere à interpretação das inconfidências, em especial a
mineira. Sua
concepção de que as idéias que em Portugal possuíam uma face reformista,
quando
transpostas a uma situação colonial, ganhavam uma face revolucionária me
parece
hoje inadequada e mesmo insustentável. O que a pesquisa empírica e a crítica
dos
testemunhos sugerem é que as idéias iluministas, no Brasil e em Portugal,
como
alhures, podiam ser tanto reformistas quanto revolucionárias, dependendo de
por
quem, como e quando fossem enunciadas, na medida mesma em que circulavam por
várias partes de um mesmo império, seja através de textos, seja através de
valores e
práticas compartilhados.
Apenas por meio de um trabalho de crítica documental e historiográfica
que
valorize, recupere e questione, simultaneamente, testemunhos e procedimentos
judi-
ciais pode-se revelar e iluminar aspectos até então obscurecidos por grandes
cortes
temporais e/ou conceituais. Tomando como exemplo a Inconfidência Mineira de
1788/89, é possível afirmar que não era nacionalista, tampouco
revolucionária, como
sugerem algumas passagens de Maxwell (1985 e 1993). Não obstante o
reconheci-
mento dos grandes e indiscutíveis méritos do historiador inglês, que tem
sido uma
grande referência para meu próprio trabalho no que tange a uma abordagem
mais
geral e sistêmica das relações entre Brasil, Portugal e Inglaterra no
período da Incon-
fidência Mineira, seu texto não foi suficientemente eficaz na interpretação
das falas,
propostas e práticas dos inconfidentes mineiros de 1788/89. Nesse caso,
arguo que a
Inconfidência Mineira seria mais propriamente um “motim de acomodação” no
inte-
rior do Antigo Regime português do que até mesmo um ensaio de sedição,
conforme
se sugeriu em relação aos baianos. Dessa forma, argumentos como a
permanência de
vários inconfidentes nos quadros da burocracia do Estado português, mesmo
após
condenados, bem como a percepção da recorrência e impunidade desse tipo de
le-
vante no contexto do período descrito são poderosos indícios em favor dessa
hipóte-
se. A semântica e sintaxe “revolucionárias”, de ruptura mesmo com os padrões
do
Antigo Regime, eventualmente poderiam estar mais presentes na Bahia de 1798.
Mas em Minas de 1789, seguramente, a questão não seria incontroversa.

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104 A independência brasileira

Por todo o exposto, convém atentar para alguns aspectos muito


importantes a
serem considerados no exame daqueles três eventos em conjunto. Conforme já
ana-
lisei,5 não se pode elidir o fato de que, na ordem setecentista, não
representativa no
sentido moderno, os motins, bem como as devassas, são poderosos instrumentos
de
manifestação de vontade, num caso, e de gestão política, em outro. Tomem-se,
para
promover essa investigação, alguns exemplos concretos, oriundos sobretudo da
In-
confidência Mineira de 1788/89.

Três rebeldes em perspectiva: Resende Costa, Rodrigues da Costa e


José de Sá e Bittencourt e Accioli

Deputado eleito por Minas Gerais às cortes de Lisboa de 1821, José de


Resende
Costa Filho possuía larga experiência político-administrativa e notável
capacidade
de circulação no mundo luso-brasileiro. Nasceu em Minas Gerais em 1765 e aos
27
anos foi para a África, onde viveu entre 1792 e 1803. A partir deste último
ano, foi
para Lisboa, onde esteve radicado até 1809, quando finalmente se deslocou
para o
Brasil, de onde não mais sairia, vindo a falecer no Rio de Janeiro em 1841.6
Foi
protagonista de uma representativa trajetória político-administrativa, tendo
iniciado
sua carreira burocrática ainda na África como ajudante do secretário de
governo em
São Tiago de Cabo Verde, cargo que exerceu entre 1793 e 1795. Neste último
ano,
assumiu a titularidade do cargo do qual até então era ajudante. Entre 1796 e
1797
exerceu outra função em Cabo Verde, a de escrivão da Provedoria da Real
Fazenda, à
qual se sucedeu o cargo de capitão-mor do Forte de Santo Antônio, ocupado
entre
1798 e 1803 e que, na prática, lhe conferia o comando militar da praça da
Vila da
Praia, antiga capital daquela colônia.
Após chegar a Lisboa, entre 1803 e 1804, José de Resende Costa Filho
pareceu
bem acomodado depois de ser novamente empregado pelo Estado português. Foi
escriturário do Erário Régio entre 1804 e 1809, cargo que se sucedeu à
experiência
adquirida na África no mesmo campo. Convocado e nomeado pelo príncipe
regente,
em 1809 teve que voltar ao Brasil, de onde não mais sairia. Na principal
região do
Império à época, convertida em sede da Corte, Costa Filho foi administrador
da
Fábrica de Lapidação de Diamantes do Rio de Janeiro, contador-geral do
Erário e,
até 1827, escrivão da Mesa do Tesouro.

5 Furtado, 2002.
6 Jardim, 1989.

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Das múltiplas utilidades das
revoltas 105

No plano dos cargos eletivos, foi deputado à Assembléia Constituinte


de 1823,
o que se sucedeu à já mencionada delegação de representante de Minas Gerais
nas
cortes de Lisboa em 1821. Neste último caso, diga-se de passagem — como toda
a
bancada de Minas Gerais no contexto da crise que contrapôs os grupos
políticos
radicados na Europa e na América —, não chegou a se transportar a Lisboa e a
exercer efetivamente a representação junto às cortes. Foi ainda deputado em
legisla-
tura ordinária — sempre por Minas Gerais —, entre outros cargos eletivos de
menor
envergadura. No que se refere a distinções nobiliárquicas e de prestígio, em
1825
recebeu o Hábito da Ordem de Cristo, ao qual se agregaria, dois anos mais
tarde, o
título de conselheiro do Império, cargo de aconselhamento do Poder
Moderador, de
muita pompa e relativamente reduzida capacidade deliberativa. Finalmente, em
1840,
já “retirado” da vida pública, ainda foi convidado a integrar os quadros do
recém-
criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, academia oitocentista
criada sob
os auspícios da monarquia e a ela fortemente vinculada.7
Como se percebe, nosso ilustre mineiro era versátil e percorreu
vertiginosa e
heterodoxa carreira pública, onde cargos civis, militares e honoríficos se
alternam
e/ou se sobrepõem. Não é trajetória atípica no quadro da administração luso-
brasi-
leira setecentista e oitocentista e, seguramente, dela se pode dizer
representar uma
trajetória de sucesso, à qual qualquer membro da elite política luso-
brasileira ou
posteriormente imperial aspiraria. O que causa certa estranheza — a qual
aqui se
converte em problema de investigação — é o fato de, em 1792, nosso exemplar
personagem ter sido condenado à morte por crime de lesa-majestade de
primeira
cabeça no processo que investigou a Inconfidência Mineira de 1788/89. Mesmo
tendo sido posteriormente comutada em degredo para a África, sua pena
continuaria
remetendo à prática de um crime de alta gravidade, cometido contra a rainha
e
também contra o infante, que, afinal, parece ter tudo esquecido pois o
nomeou
sucessivas vezes e para diversos cargos.
Seu caso não é único. Um colega da bancada constituinte mineira de
1823, o
padre Manoel Rodrigues da Costa, embora não tenha ocupado tantos cargos,
tam-
bém foi eleito para legislatura ordinária em 1826 e pareceu muito ligado às
questões
políticas de seu tempo. Como Resende Costa, o religioso vinha da região que,
já a
partir do último quartel do século XVIII, revela grande vitalidade
econômica, o que
seria determinante na proeminência que seus agentes políticos adquiririam
nas pri-
meiras décadas do século XIX. Nascido em Conceição do Ibitipoca, atual
município

7 Guimarães, 1988.

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106 A independência brasileira

de Conselheiro Lafaiete, em 1754, Manoel Rodrigues da Costa era descendente


de
abastada família de fazendeiros e cultivava boas relações com o contratador
João
Rodrigues de Macedo, notório sonegador e inconfidente nunca indiciado.8
Prova-
velmente teria sido, no Seminário de Mariana, aluno do cônego Vieira,
veemente
defensor da atualização da doutrina seiscentista do Quinto Império, de seu
homôni-
mo padre Vieira, além de leitor atento de Raynal, Voltaire e Montesquieu.
Também
condenado à reclusão, embora em Lisboa, dada sua condição de religioso, o
padre
Manoel Rodrigues da Costa não deixou de exercer atividades que o
distinguiriam,
sobretudo no campo intelectual, sendo ainda possuidor de vasta biblioteca.
Já em
1796, apenas quatro anos depois de proferida a pena, sua prisão foi relaxada
e ele foi
transferido para o Convento de São Francisco da Cidade, pena não muito cruel
para
um clérigo.
Em 1801 já se tornara amigo e conviva de personagens importantes como
Hipólito da Costa, que posteriormente criaria o Correio Braziliense, do
padre Viegas
de Menezes, introdutor da imprensa em Minas Gerais, e do frei José Mariano
da
Conceição Veloso, diretor da Tipografia do Arco do Cego, em Lisboa, e
responsável
pela tradução e edição de inúmeras obras iluministas e protoliberais.9 Ainda
que boa
parte dessas afirmações seja baseada em conjecturas, o fato concreto é que o
padre
Manoel Rodrigues da Costa trabalhou na tipografia, tendo traduzido e
publicado
pelo menos uma obra, e teria sido o primeiro inconfidente de 1789 a receber
autori-
zação para retornar ao Brasil, o que fez já em 1802, apenas 10 anos após ser
condena-
do, retornando à sua fazenda na comarca do Rio das Mortes. De volta a Minas
Gerais, esteve envolvido com projetos têxteis, alimentícios e de
melhoramentos pú-
blicos em geral. Tornou-se uma referência de civilidade e cortesia em sua
região,
recebendo as visitas de personagens tão díspares quanto Auguste de Saint-
Hilaire e o
imperador Pedro I. Ainda em 1842, em provecta idade, associou-se às
escaramuças
liberais da região de Barbacena, dando guarida a diversos e exaltados jovens
que
pareciam evocar nele sua própria juventude. Também sócio do Instituto
Histórico e
Geográfico Brasileiro, é dele um dos poucos registros, na primeira pessoa,
remanes-
centes da Inconfidência Mineira de 1788/89, uma vez que Resende Costa,
também
convidado a prestar depoimento, limitou-se a reproduzir parte da narrativa
de Robert
Southey. O padre Manoel Rodrigues da Costa morreu em 1844, aos 89 anos,
sendo
o último dos inconfidentes de 1788/89 a falecer.

8 Jardim, 1989.
9 Ibid.

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Das múltiplas
utilidades das revoltas 107

Não é improvável que o religioso, nas lides da Tipografia do Arco do


Cego,
tenha conhecido o irrequieto José de Sá e Bittencourt e Accioli, nosso
terceiro e
último personagem em destaque. Descendente de tradicional e abastada família
baiana,
o naturalista formado em Coimbra nasceu em Caeté, no ano de 1755. Além de
“coimbrão”, teria sido freqüentador do círculo ilustrado da Academia de
Ciências de
Lisboa e tradutor de algumas obras sob coordenação e a pedido do frei
Veloso. Final-
mente, seria correspondente de José Bonifácio de Andrada e Silva, o
“Patriarca da
Independência” e também cientista, com quem compartilharia, além do fascínio
pelos segredos da química, a “repulsa ao despotismo” em todos os seus
graus.10
Acusado de ser o inconfidente citado em vários depoimentos como o
“bacharel
pequeno da comarca do Sabará”, José de Sá e Bittencourt e Accioli morava com
uma
tia, com quem tinha estreitos laços afetivos desde a infância, na vila de
Caeté. Tendo,
em 1789, resolvido passar na Bahia para rever parentes, tomou o caminho do
Serro
Frio, usual para os que faziam aquela jornada, até que foi informado por um
viajante
de que soldados procedentes de Vila Rica estavam na estrada à procura de “um
ho-
mem que se ausentara de Minas”.11 Temeroso de que aqueles “lhe praticassem
algu-
ma violência”,12 embrenhou-se na mata e seguiu seu curso até ter com os
parentes na
Bahia. Tão logo as autoridades das Minas entraram em contato com as da
Bahia, o
engenho em que se encontrava teria sido cercado “por mais de 300 homens” e o
bacharel foi preso. Chegando ao Rio de Janeiro, foi metido em um dos
segredos da
cadeia da Relação até que, após interrogado durante apenas três dias
consecutivos (há
casos de meses entre um interrogatório e outro), foi libertado sem
formalização de
culpa. A questão que surge diz respeito exatamente à suposta incoerência
entre mo-
bilizar tamanho efetivo militar para a sua captura e depois libertá-lo em
poucos dias.
Um detalhe sobre sua libertação não passou despercebido a Silva
(1948), que
afirmaria ter ocorrido, entre a prisão e o interrogatório, o que passaria a
se chamar o
“milagre de Bonsucesso”: sua abastada tia, após tomar conhecimento de sua
prisão,
teria se esvaído em lágrimas e orações até desfalecer. Num delírio,
apareceu-lhe a
imagem da Virgem de Bonsucesso prostrada sobre uma de suas lavras,
supostamente
indicando o atendimento de suas preces. A pobre senhora teria cavado no
lugar
apontado “durante quinze dias com suas próprias mãos” até conseguir alguns
quilos
de ouro, os quais certamente teriam contribuído para o bom andamento e
agilidade

10 Jardim, 1989.
11 A narrativa da epopéia é tomada de empréstimo a Souza Silva. O “homem que
se ausentara de Minas”
seria provavelmente o padre Rolim. Ver Silva, 1948, t. 1, p. 89-92 e 167-
168.
12 Palavras proferidas em resposta à inquirição. Ver Autos de devassa...,
1978, v. 5, p. 555-573.

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108 A independência brasileira

dos trâmites judiciais. A respeito dessa irônica fantasia/denúncia,13 o que


chama a
atenção, num certo sentido, é a notável (e antecipada) analogia com a
“reabilitação”
operada nos outros dois casos citados e com o não-indiciamento de boa parte
da elite
envolvida nos episódios baianos de 1798.
É precisamente a partir dos elementos centrais contidos nessas três
pequenas
narrativas de trajetórias de vida que se pode enunciar algumas hipóteses
sobre as
articulações entre 1788/89 e 1821/22. O que se afirma, nesse sentido, é que,
mediante
a reavaliação operada pela historiografia nos últimos anos, a Inconfidência
Mineira
parece se revelar a muitos de seus contemporâneos antes como um conflito de
interesses no interior do mundo luso-brasileiro do Antigo Regime do que como
um inequívoco movimento de ruptura, com uma clara agenda de construção de
nova nacionalidade, a qual se afirmaria, sobretudo, por sua distinção em
relação à
portuguesa.14

As devassas do fim do século XVIII como instrumento de gestão


política e como fonte sobre a estrutura luso-brasileira de poder

Sendo as devassas um instrumento típico de resolução de conflitos e


gestão
política no Antigo Regime português, não se pode, impunemente, tomar como
real
expressão da verdade algumas de suas conclusões e atribuir aos inconfidentes
de 1788/
89, ou mesmo aos de 1794 ou de 1798, um projeto maior e mais radical do que
de
fato se pode comprovar historicamente, por meio de evidências documentais e
críti-
cas. Ainda que o trabalho da memória — e suas sucessivas reelaborações
simbólicas
— possa amplificar as dimensões e o alcance do tema em exame, em certo
sentido
dir-se-ia que é precisamente a relativa impunidade da maior parte dos
sediciosos e
sua plena reinserção na política do tempo, vistas post factum, que nos dão,
a um só
tempo, a medida dos limites estruturais das sedições pretendidas, bem como
lançam
as bases de compreensão de como se deu sua reapropriação a partir de
1821/22.
Nesse sentido, tome-se como exemplo a percepção de que havia, entre os
incon-
fidentes de 1788/89, pelo menos dois projetos de sedição distintos. A partir
da leitu-
ra dos autos de perguntas e acareações constantes do quinto volume dos Autos
de
devassa da Inconfidência Mineira (Adim), percebe-se claramente que alguns
dos in-
confidentes das regiões de maior prosperidade e vitalidade econômicas, como
o eram

13 Ver Silva, 1948, t. 2, p. 89-92.


14 Já discuti o tema em outros trabalhos. Ver Furtado, 2000.

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15:03
Das múltiplas utilidades das
revoltas 109

José de Resende Costa e o padre Manoel Rodrigues da Costa, ambos firmemente


estabelecidos e com múltiplas atividades na comarca do Rio das Mortes — a
qual
viria a ser um dos principais esteios da consolidação do processo de
independência e
da monarquia — tendiam a defender posições mais radicais no campo econômico,
onde era mais visivelmente acentuada a idéia de ruptura com os padrões
tipicamente
coloniais da economia mineira. Por outro lado, homens como Tomás Antônio
Gonzaga, Freire de Andrada e Cláudio Manoel da Costa, radicados na comarca
de
Vila Rica, pareciam trabalhar muito mais em prol da flexibilização de
algumas nor-
mas de comércio e tributação, bem como de sua própria reinserção política.
Nesse
sentido, os contratadores e os bacharéis e advogados, mais diretamente
vinculados às
atividades urbanas típicas da sociedade e da burocracia portuguesas,
particularmente
aqueles situados no núcleo de Vila Rica e seu entorno, parecem, em alguns
momen-
tos, extremamente céticos quanto ao fim último do projeto sedicioso.
Também a análise quantitativa e qualitativa dos bens seqüestrados aos
inconfi-
dentes de 1789 contribui para a melhor definição desse perfil dividido e
heterogêneo
e suas possíveis implicações para o estudo da sedição projetada. Os dados
apurados e
analisados corroboram o argumento da crescente complexidade e dualidade do
cená-
rio econômico em que se gestou a sedição e inviabilizam a definição das
classificações
relativamente unilaterais como as que, com insistência, falam de um “complô
de
magnatas endividados”,15 ou outras que apontam para a existência de uma
crise
econômica generalizada, agravada pela questão fiscal como principal, senão
única,
motivadora da ação.16
Em última instância, é possível afirmar que os grupos de Vila Rica e
do Rio das
Mortes, em 1788/89, contrapunham-se basicamente a partir de um perfil mais
urba-
no, conservador e estamental no primeiro caso, e agrícola, radical e
“classista”, no
segundo. No primeiro caso, eram homens firmemente inseridos no Antigo Regime
português; no segundo, indivíduos mais competitivos, mas ainda em processo
de
incorporação à burocracia e demais instrumentos de poder do Estado,
incorporação
que só se consolidaria nas primeiras décadas do século XIX, na medida mesma
em
que se definiam suas sólidas bases socioeconômicas, as mesmas que
sustentariam a
primeira geração das elites do império. Talvez fosse possível estabelecer um
produti-
vo quadro político comparativo entre estes últimos e aqueles que foram
eximidos de
culpa na Inconfidência Baiana, embora com substancial vantagem de dados
empíricos

15 Maxwell, 1985.
16 Jardim, 1989.

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15:03
110 A independência brasileira

para o estudo do caso mineiro, haja vista o não-indiciamento de muitos


partícipes do
evento baiano.
O que poderia parecer um confronto irreconciliável de opiniões e de
“posições
antagônicas” na Inconfidência Mineira, analisada a partir da avaliação
crítica dos
Adim, é, na verdade, um fato concreto e relativamente inteligível a partir
do exame
do contexto de transição entre, de um lado, uma sociedade marcada pelo
conteúdo
estamental, mas já introduzindo incipientemente alguns valores típicos de
uma so-
ciedade de classes e, de outro, uma região que experimentava acentuado
processo de
diferenciação regional. É nesse sentido que se deveria melhor compreender
todo o
processo de diversificação produtiva, com o deslocamento do eixo econômico
que se
verificou em Minas Gerais a partir do segundo quartel do século XVIII, como
um
dos componentes explicativos centrais do sentido e dos objetivos do levante
que se
projetava, bem como das razões de sua fragilidade e dissensões internas.
Tomando-se
o conjunto dos inconfidentes, é visível a acentuada concentração de recursos
econô-
micos na comarca do Rio das Mortes: mais de 90% dos recursos seqüestrados
pro-
vêm de moradores dessa comarca e, destes, apenas Alvarenga Peixoto tem maior
destaque na atividade mineradora, ainda que esta não seja sua única área de
atua-
ção.17 No que respeita a uma análise mais qualitativa, itens de composição
da riqueza
mais claramente associáveis a um modo de vida urbano, como
vestuário/toucador,
livros, casas, créditos a terceiros, ouro, prata e pedras preciosas, não
chegam a totalizar
12% do total do seqüestro, o que sugere a necessidade de se reavaliar alguns
pontos
quase consensuais sobre a Inconfidência Mineira de 1789, notadamente no que
tan-
ge à caracterização de seu perfil eminentemente urbano e, por via desse
ambiente,
notavelmente intelectualizado.
Autores como Maxwell (1985), Jardim (1989) e Novais (1986) insistem
nesse
ponto, que, embora correto e pertinente quanto a alguns dos inconfidentes de
Mi-
nas, não pode ser generalizado para todo o grupo, nem mesmo para todo o
grupo
envolvido no caso baiano. O evento que talvez melhor se encaixe nessa
definição das
inconfidências como produto de um cenário urbano e intelectualizado seria
precisa-
mente o caso do Rio de Janeiro, entre todos o mais inexpressivo no que
respeita às
ações práticas ou desdobramentos concretos. Na verdade, o que estou
sugerindo é
que a leitura dos textos iluministas a partir dos maiores expoentes
intelectuais da
comarca de Vila Rica tende a ser um pouco mais moderada e conservadora no
que
tange à redefinição da ordem política-econômica. Ao longo dos 30 anos
seguintes,

17 Para dados quantitativos e tabelas, ver Furtado, 2002.

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15:03
Das múltiplas utilidades
das revoltas 111

isso acabou caracterizando também os discursos e práticas concernentes aos


morado-
res das comarcas do Rio das Mortes e de Sabará, os quais tiveram ativa
participação
no processo de emancipação política.
É precisamente nesse sentido que se pode compreender melhor como se
deu a
retomada do tema, na década de 1820, pelas elites políticas que se
envolveram no
processo de independência. Freqüentando o imaginário nacional, bem como os
de-
bates políticos e acadêmicos brasileiros pelo menos desde o início do século
XIX, a
Inconfidência Mineira de 1789 parece freqüentemente destinada a servir de
instru-
mento privilegiado de reflexão sobre alguns dos temas políticos mais
candentes de
diferentes conjunturas, o que se verificou já nos primeiros anos da
construção da
nacionalidade.

O processo de independência e a apropriação do tema


das inconfidências

Evento crescentemente conhecido nas mais diversas esferas e segmentos


sociais,
supostamente convertido em momento inaugural da nação e criador de
identidade,
a Inconfidência Mineira — e toda a conjuntura de fins do século XVIII —
conver-
teu-se, já nos primeiros tempos, em instrumento persuasivo e retórico por
excelên-
cia. Mais do que um simples fato histórico, portanto, o evento em questão e
as
demais inconfidências tomadas em conjunto transformaram-se em importantes
fer-
ramentas simbólicas para pensar, já a partir da primeira metade do século
XIX, o
tema da “libertação nacional”, como se as inconfidências tivessem se
constituído em
prévias do “Grito do Ipiranga”, engasgadas e sufocadas desde os idos de
1788/89,
mas que teriam ecoado ainda em 1822, e supostamente servido de inspiração a
d. Pedro I, neto da rainha contra a qual se conspirara, convertido ele
próprio em
protagonista do processo a partir do legado daqueles últimos.
O tipo de argumento que talvez explique esse modo de pensar pode ser
bem
ilustrado por um pensador católico mineiro do início do século XX que, em
obra
publicada por ocasião do centenário da Independência do Brasil, em 1922,
ainda faz
largo uso da simbologia ligada ao tema da emancipação e centraliza as
atenções sobre
os elementos “ideais” do processo. Em Lúcio José dos Santos tem-se uma
emociona-
da e reveladora homenagem aos inconfidentes:

Generosos paladinos! Em vão vos condenaram os Juízes da Alçada. A


justiça não
é esta Eumênide infernal, a serviço do despotismo. Ela é uma Vestal,
traja-se de
branco, jurou eterna castidade e paira muito acima das contingências
materiais de

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112 A independência brasileira

uma época. Pois bem, esta justiça inviolável vos absolveu. Ela
não vos absolveu
somente, mas vos engrandeceu e glorificou para todo o sempre!
Hoje, quando
volvemos os olhos ao passado, é a vossa figura que se ergue
diante de nós. Ela cresceu
tanto que enche todo esse horizonte longínquo e ensangüentado,
onde luziram os
primeiros albores da aurora da liberdade. E, quando queremos
acariciar a doce
figura da Pátria, é vosso nome que pronunciamos, a chamar sobre
ele todas as bên-
çãos e todas as glorias.18

Além de compatibilizar supostos interesses públicos e ações privadas,


o texto
remete também ao problema da intervenção humana no curso da história.
Aqueles
que ousaram contra o despotismo e por isso sucumbiram foram, afinal,
absolvidos
pela história e o devir há de glorificar ainda mais esses homens “resolutos
e de grande
espírito público”. É também digna de nota a associação da idéia da
intemporalidade
da concepção de justiça associada, ao mesmo tempo e paradoxalmente, à
virtude
“reveladora” do tempo, da história como triunfo da “verdade”. E se é
precisamente
no domínio do mito que se opera essa suspensão do tempo, elemento que
permite
sua contínua reapresentação, é também no domínio do mito que com freqüência
a
historiografia envereda quando procura restabelecer, em bases históricas e
empíricas,
os discursos e práticas de seus personagens.
Partindo desses aspectos simbólicos e retóricos que, com freqüência,
se associa-
ram à Inconfidência Mineira e demais inconfidências do período, e
seguramente
foram intervenientes nas diversas interpretações que se erigiram sobre o
tema, gosta-
ria de sugerir, tomando as trajetórias e falas de nossos três diferentes
protagonistas,
novas indagações acerca das relações entre os fatos correlativos a 1788/89 e
1808-22,
bem como estabelecer alguns limites para as articulações possíveis. Em
primeiro lu-
gar, citemos brevemente o nosso naturalista.
Em 1821, inspirado pelas transformações que já ocorriam na estrutura
do Esta-
do no Brasil, José de Sá e Bittencourt encaminha a José Bonifácio uma
Memória
mineralógica da comarca do Sabará. O texto, inacessível durante décadas, na
verdade
significa a retomada de uma vocação intelectual interrompida desde que fora
citado e
indiciado pelo crime de lesa-majestade. Embora pouco se conheça sobre suas
relações
com o Estado luso-brasileiro no período entre 1792 e 1821, é elucidativa uma
passa-
gem em que o naturalista expressa as bases de sua renúncia intelectual, o
que muito nos
diz do processo em exame. Na carta de oferecimento de sua Memória, ele
escreve:

18 Santos, 1972:15, grifos meus.

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Das múltiplas
utilidades das revoltas 113

Nem sempre os acontecimentos filosóficos neste país haviam de ser


criminosos;
nem sempre os amantes da razão e da verdade sufocariam em seu seio
sentimentos
úteis e liberais. O tirano despotismo que, neste país, oprimiu,
devastou e destruiu
os primeiros alunos desta útil faculdade embaraçou por muito tempo
o seu exer-
cício aos que escaparam de suas fúrias; fez o retardamento de seu
progresso e
sufocou no berço planos de melhoramentos bem premeditados. Com que
mágoa,
Ex.mo senhor, não me recordo do infernal governo do Déspota
Barbacena, e com
que satisfação não vejo agora a V Ex.a, o primeiro filósofo do
Novo Mundo à testa
da direção dos negócios públicos (...) É agora senhor que sinto o
tempo perdido.
V. Ex.a sabe que, quando deixei a universidade abrasado de um
grande desejo de
ser útil a minha Pátria, comprei livros e todos os vasos de vidro
próprios para o
estabelecimento de um laboratório, todos os reagentes e máquinas
que me eram
necessários para pôr em exercício o meu gênio. (...) e quando
lançava os primeiros
alicerces de meu edifício, a ambição de um Joaquim Silvério (...),
esse malvado,
tendo ouvido a alguns patrícios idéias mais liberais (...) fez
denunciar ao Visconde
de Barbacena uma próxima sublevação que se tramava pelos mais
dignos patrícios
de Minas Gerais. (...) E saindo a salvo, temendo novas
perseguições do déspota
meu denunciante, voltei para a Bahia onde residi muitos anos não
dando exercí-
cio algum à minha faculdade (...).19

Anote-se o fato de que nosso naturalista, irmão mais velho do conhecido


intendente Câmara, pioneiro na siderurgia nacional no século XIX,
correlaciona
diretamente a disponibilidade pública de seu conhecimento, o qual teria sido
coloca-
do a serviço da coroa caso fossem outras as diretrizes de gestão, bem como a
articula-
ção entre luzes, liberalismo e ciência. Observe-se ainda que o autor, ao se
utilizar do
termo “pátria”, não parece distinguir claramente Brasil e Portugal, no que
estaria,
ainda por aquele tempo, em companhia de muitos dos próceres da
independência.
Não é caso isolado no contexto que examinei. Tomemos agora temas mais
políticos
para discutir a questão.
Premidos a um contexto de transição em área de relativa indefinição
entre dife-
rentes valores econômicos e sociais, aqueles homens da sociedade
setecentista e início
do Oitocentos não tinham, como os historiadores podem ter a posteriori, a
certeza de
um certo curso da história. Esse tempo constituía-se em outro universo de
significa-
ção e, portanto, articulava outros conceitos de revolta, revolução, nação ou
repúbli-

19 Jardim, 1989:243-244.

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114 A independência brasileira

ca. É o caso, sobretudo, do conceito de “povos” ou “gentes”, com freqüência


mencio-
nados no plural, poderoso indício de que ainda não haviam se constituído,
para
europeus e luso-brasileiros, os modernos conceitos de cidadania e o mais
homoge-
neizador e universalista (supostamente democrático) conceito de sociedade
civil, no
qual “povo”, “Estado” e “nação” são entidades e conceitos estreitamente
associados, e
a noção de interesse público é formalmente definida. Montesquieu, em O
espírito das
leis, livro que o cônego Vieira possuía, ainda usava com freqüência o termo
no plural.
Michelet, por outro lado, escrevendo sobre a Revolução de 1789 em O povo,
seria
um dos primeiros a singularizar o conceito. Marx, não por acaso, discute o
tema
quando analisa a questão judaica na “Sagrada Família”. Note-se que há, entre
os
autores citados, uma certa sucessão cronológica, correlativa ao processo de
constitui-
ção e amadurecimento da própria sociedade burguesa. No Brasil, ainda sob uma
monarquia, o processo seria particularmente visível a partir da
transmigração da
família real, quando a ritualística da corte começa, aos poucos, a expressar
o fenôme-
no, conforme pode ser discutido a partir de aspectos trabalhados em Souza
(1999),
Malerba (2000) e Schwarcz (2002). Mas, à época das inconfidências, do Antigo
Regime, os privilégios ainda se sobrepõem aos direitos. É extremamente
sugestivo,
nessa perspectiva, o relato do padre Manoel Rodrigues da Costa sobre a
destruição,
em 1821, do padrão de infâmia erigido no local onde havia morado Tiradentes
em
Vila Rica:

Em conseqüência da sentença proferida pela relação do Rio de


Janeiro, foi demo-
lida a casa em que residiu o Alferes Joaquim José e em lugar dela
se levantou uma
memória em que estavam escritos o seu nome e o seu delito. Logo
que se anun-
ciou o Governo Constitucional e, naquela Capital se organizou um
Governo Pro-
visório, o povo, sem autoridade pública, demoliu aquele
espantalho sem oposição
alguma da parte do mesmo Governo e em seu lugar se levantou outro
edifício.20

Anote-se que o autor distingue claramente os termos “povo” e


“autoridade pú-
blica”, excluindo do primeiro a última. A autoridade estaria, na acepção do
padre e
consoante à visão do tempo, certamente melhor representada no governo
provisório.
Nesse caso, parecem persistir nas palavras do inconfidente, mesmo em 1821,
ecos de
alguns dos adjetivos usados pelo poeta e desembargador Tomás Antônio
Gonzaga,
na pena de Critilo, para se referir ao povo quando crítica as ações
políticas do “fan-

20 Carta a José de Resende Costa, em Adim, v. 9, p. 442.

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Das múltiplas utilidades das
revoltas 115

farrão Minésio”. Nesse autor, em sintonia com o pensamento setecentista, a


turba nas
ruas não aparece ainda como um fenômeno político conseqüente ou relevante: o
“néscio vulgo”, a “louca gente” se reúne nas ruas “como as moscas que correm
ao lugar
aonde sentem o derramado mel” ou “se ajuntam, nos ermos, onde fede a carne
podre”.21
Observe-se como o autor parece recear, pela inconseqüência, inconstância e
falta de
previsibilidade, qualquer forma de ação popular, o que confere um tom
eminente-
mente reacionário e aristocrático a seu texto.

Elite, povo e política no alvorecer de uma nova era:


limites e possibilidades

O processo que se prenunciou em 1788/89 estava inscrito numa tradição


sedi-
ciosa fragmentária que envolveu no Brasil, e às vezes também em Portugal,
fidalgos,
potentados, homens do povo e escravos, entre outros “povos” e “gentes”, e
parecia
referenciar tanto o projeto de uma nova alternativa de governo quanto a
recuperação
de um passado, senão relativamente autônomo, pelo menos potencialmente mais
propício, posto que mais flexível, à defesa dos interesses e cabedais de
alguns dos
protagonistas. Nesse sentido, estão presentes na sedição não só alguns
elementos da
retórica ilustrada contra os excessos da exploração colonial como também a
eventual
preservação da monarquia portuguesa, desde que houvesse a restauração de uma
política ultramarina anterior à orientação imprimida por Martinho de Melo e
Cas-
tro desde 1777.
As instruções de janeiro de 1788 ao novo governador das Minas, o
visconde de
Barbacena, pareceram aos mineiros ainda mais “draconianas” e
“neomercantilistas”
que as anteriores, implementadas aos poucos sob a gestão de Luís da Cunha
Meneses,
e talvez tenham agravado sensivelmente o quadro de ansiedade e insatisfação
política
na região mineradora, o que afastou ainda mais a elite política da capitania
dos
encarregados da política ultramarina. É curioso o fato de que, nas
estratégias de
convencimento usadas pelos “arregimentadores” — como o padre Toledo,
Tiradentes
e Luís Vaz de Toledo Piza —, as instruções sejam sempre citadas, às vezes
com notó-
rios exageros, como é o caso do teto de 10 mil cruzados (quatro contos de
réis), a ser
estabelecido por Lisboa como “limite de riqueza” nas Minas. Apesar de
draconianas
e reveladoras de certa insensibilidade da parte de Martinho de Melo e
Castro, as

21 Gonzaga, 1995:73-74.

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116 A independência brasileira

instruções não sustentam, minimamente, a suposição de que, a partir de um


limite
de 10 mil cruzados, os bens dos mineiros seriam “confiscados” em favor da
coroa.22
Era grande o desejo dos potentados locais de recuperar o acesso à
gestão e ao
usufruto das benesses do Estado, o que se percebe notadamente na proposição
da
retomada do curso de algumas antigas reformas iniciadas por Pombal, de
reorientações
administrativas e de defesa da continuidade e recuperação de alguns
privilégios con-
cedidos, pela administração metropolitana ou local, a moradores da
capitania. Nesse
sentido, é digno de nota o fato de que o programa econômico dos
inconfidentes está
quase todo contido em correspondência oficial de d. Rodrigo José de Meneses,
en-
viada à coroa portuguesa em 1780, o que não parece ter sido interpretado
como
traição. O governador das Minas propusera ao governo da metrópole uma série
de
medidas de diversificação econômica para reverter o quadro de decadência em
que se
encontrava a capitania. Destacam-se entre as medidas sugeridas: “a)
liberdade para as
indústrias; b) organização de um serviço de correios; c) concessão de
empréstimos
aos mineiros a juros de 8 a 9% ao ano; d) supressão das casas de fundição;
e) instala-
ção de uma casa da moeda em Minas, para absorver todo o ouro em pó e
transformá-
lo em papel-moeda; f ) criação de uma siderúrgica”.23 Exceto a criação de
uma uni-
versidade, era esse basicamente o projeto dos inconfidentes mineiros de
1788/89.
Não se pode esquecer que vários inconfidentes foram constantes
partícipes das
estruturas de poder luso-brasileiras e agraciados com inúmeras regalias nas
gestões
imediatamente anteriores. Gonzaga, como se sabe, era filho de um homem que
per-
tencera, nas palavras de Maxwell (1985), ao “círculo íntimo dos conselheiros
de Pom-
bal”. Cláudio não dispunha mais de posição considerável na capitania, tendo
que
sobreviver da “usura”. Alvarenga perdera boa parte dos privilégios de que
dispunha
ao tempo de Pombal. Todos eles poderiam ser aqui entendidos não como já
quase
“brasileiros”, como insiste parte expressiva da historiografia de
referência, mas como
vassalos da rainha de Portugal estabelecidos em colônias, anteriormente bem
inseri-
dos e agora privados de antigas regalias. Os mineiros, nesses casos, a meu
ver, ainda
estão destituídos daquela consciência do “viver em colônias” que relataria
com
ineditismo um observador do contexto baiano em 1802:24 o que certamente tam-
bém já se colocava em alguns dos discursos de 1821/22, dadas todas as
transforma-
ções que se sucederam a 1808.

22 Adim, v. 8, p. 41-105; v. 1, p. 91-126, 157.


23 Jardim, 1989:39.
24 Vilhena, apud Novais, 1997.

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Das múltiplas
utilidades das revoltas 117

Voltando às Minas, diria que os versos de Gonzaga nas Cartas chilenas,


quase
sempre lembrados pela historiografia apenas por seu elevado teor de crítica
ao despo-
tismo português, parecem ganhar um certo conteúdo premonitório. A lírica de
Gonzaga nem sempre sugere que os “parciais do levante” não estivessem
abertos a
toda sorte de negociações com os prepostos da coroa. Referindo-se ao
despotismo de
Luís da Cunha Meneses, em suas relações com o estamento administrativo da
capita-
nia, escreve o poeta:

Tu já viste o casquilho, quando sobe


À casa em que se canta, e em que se joga,
Que deixa à porta as bestas, e os lacaios,
Sem querer se lembrar que venta, e chove?
Pois assim nos tratou o nosso chefe;
Mal à porta chegou do chefe antigo
Com ele se recolhe, e até ao mesmo
Luzido, nobre corpo do senado
Não fala, não corteja, nem despede.25

Eloqüentes, os versos indicam a possibilidade de que, com alguns


afagos aos
homens bons das câmaras municipais (“luzido, nobre corpo do senado”, que
Gonzaga
procurava preencher com seus “parciais”) e o convite a que adentrassem “à
casa em
que se canta e que se joga”, boa parte das tensões poderia ser aliviada e,
mais que
tudo, poderiam ser retomados e reafirmados os interesses complementares
entre a
metrópole e a colônia. Anote-se que, em sentido geral, a obra de Critilo se
dirige ao
despotismo e ao desapego às normas aristocráticas por parte de Cunha Meneses
ou,
no máximo, ao despotismo stricto sensu. A monarquia, no entanto, parece
resultar
preservada em pilares e esteios fundamentais, entre os quais se inclui a
nobreza, pos-
teriormente convertida em “elite política”, conceito mais próximo a uma
sociedade
de classes.
Por outro lado, também é possível identificar evidências de que alguns
dos in-
confidentes de fato nutriam maior simpatia pelo modelo republicano de
exercício da
política, embora não alimentassem, até as últimas conseqüências, o projeto
de insti-
tuição do sistema representativo stricto sensu. Esta parece ser a tônica
dominante em
relação ao envolvimento de Álvares Maciel, possuidor de volume que continha
as leis
25 Cf. Gonzaga, 1995:62.

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118 A independência brasileira

de algumas das repúblicas norte-americanas, e do padre Toledo, o qual, no


entanto,
mais tarde reafirmaria preferência por uma forma de organização política que
parece
inspirada nas mesmas câmaras municipais luso-brasileiras.26 Não se pode
esquecer
ainda que o conceito de “República”, tal como entendido no contexto mineiro,
tal-
vez também no baiano, supunha sérias restrições ao voto universal e
reduzidas di-
mensões territoriais. Este seria um tema de debate mais característico da
segunda
metade do século XIX, e ainda uma conquista generalizada no mundo ocidental
apenas no século XX.
No entanto, tomado no sentido que nos é contemporâneo, o caráter
republica-
no do movimento mineiro e, às vezes, seus propósitos profundamente
democráticos
são sobejamente referidos por autores como Jardim (1989) e Santos (1972).
Kenneth
Maxwell (1993), por seu turno, ainda no início dos anos 1990, insistia com
veemên-
cia no sentido “republicano” e “nacionalista” como caracterização política
mais geral
do levante, o que não nos parece adequado.
Para outros inconfidentes, alternativamente, a movimentação sediciosa
teria por
objetivo a defesa da coroa e de sua legitimidade contra os desmandos
eventuais de
alguns de seus representantes, desde que suprimida a política econômica
neomercantilista e, por conseguinte, despótica. Gonzaga e Cláudio, embora
partícipes
e conhecedores do motim, não parecem compartilhar da tese republicana, o que
se
depreende de várias de suas intervenções. Tiradentes, por seu turno,
contraditoria-
mente às suas concepções anticoloniais, alude, como já mencionado, a um
ambíguo
e provocativo propósito “restaurador” da sedição. Acompanhando Villalta
(1999),
podem-se evocar ecos da restauração portuguesa nas premissas de alguns de
seus
agentes. Nas próprias e apaixonadas palavras do alferes Tiradentes,
repetidas várias
vezes em resposta a uma intervenção do bacharel Lucas Antônio Monteiro de
Bar-
ros, que afirmara a natureza criminosa do “levante”, não se tratava de ato
de mera
ruptura com a ordem instituída. Dizia ele, colérico e cheio de paixão: “Não
diga
levantar, é restaurar”.

O que tudo isso parece indicar é que alguns aspectos das falas de
1788/89,
notadamente no que concerne à defesa de uma monarquia não-despótica, seriam
notavelmente retomados pelos mesmos protagonistas em 1820-22, num movimento
de força abrasadora ao qual o próprio príncipe herdeiro tentaria
forçosamente se
adaptar. No que se refere aos nossos três personagens destacados, traduzindo
por

26 Adim, v. 1, p. 258.

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Das múltiplas utilidades
das revoltas 119

outros termos a mesma hipótese, é interessante destacar que, cada um a seu


tempo e
a seu modo, puderam nesse processo se reconciliar com a monarquia, com os
Bragança
e, por que não dizer, com sua história imediata. É só a partir daí que se
pode compre-
ender o fato de que Resende Costa, um réu condenado por lesa-majestade de
primei-
ra cabeça, tenha podido assumir o comando militar de uma praça fortificada,
domí-
nio da mesma autoridade que pretendeu ameaçar. É a partir daí que se pode
compreender a renúncia intelectual operada por José de Sá e Bittencourt e
Accioli,
bem como sua retomada. É a partir daí que melhor se compreende as
aparentemente
ambíguas ações do vetusto padre Manoel Rodrigues da Costa, anfitrião de
Pedro I,
Saint-Hilaire e de outros liberais radicais. Seja por via da corrupção, em
menor grau
e apenas no caso de Bittencourt, seja por via de laços de clientela que se
restabelecem
e se reconstroem no interior do mundo luso-brasileiro na virada do século
XVIII
para o XIX, todos são personagens de um redesenho do Estado que viria a ser
decisi-
vo nas décadas subseqüentes.
Três personagens vistos em diferentes tempos, três trajetórias que se
encontram
e se afastam. Por outro lado, três diferentes sedições ou inconfidências,
três curtas
durações que tão decisivamente marcariam o imaginário nacional. Nossos
agentes,
seja os efetivamente condenados, seja os anistiados ou reabilitados, foram
cúmplices
de algumas das principais conspirações do tardio século XVIII, que, como já
procu-
rei indicar, são expressão de um quadro extremamente heterogêneo e, com
freqüên-
cia, foram limitadas em suas bases político-sociais e projetos. Se nossos
diferentes
agentes não compartilhavam da mesma sedição, são pelo menos oriundos de uma
mesma geração e de um contexto socioeconômico comum, o que talvez explique
por
que as tênues ligações existentes entre as três inconfidências aqui
abordadas foram
tão freqüentemente associadas ao processo de emancipação política que a elas
se
sucederia nas primeiras décadas do século XIX. Desse processo elas se
tornariam,
sobretudo, matéria-prima simbólica, inspiração e objeto de sucessivas
reelaborações
no plano da memória.

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PARTE II

1808-20/21

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Capítulo 3

A era das revoluções e a transferência


da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro (1790-1821)*
Kirsten
Schultz

N o contexto da era das revoluções, a independência brasileira


representou uma
alternativa conservadora aos desafios republicanos lançados à
monarquia que
caracterizaram os processos de independência dos Estados Unidos e da América
his-
pânica, assim como a Revolução Francesa. Grande parte desse conservadorismo
foi
atribuído à transferência da corte portuguesa em 1807/08. Argumentou-se que
a
presença do príncipe herdeiro do trono português no Rio de Janeiro
significava que
a fundação do império do Brasil em 1822 asseguraria a dominação da casa de
Bragança
no Novo Mundo. Apresento neste capítulo uma interpretação alternativa a esse
argu-
mento, ao descortinar como os próprios atores definiam a Era das Revoluções
no
mundo luso-brasileiro; como reagiram especificamente à Revolução Francesa; e
como
suas reações foram substancialmente alteradas em função da transferência da
corte
para o Brasil.
Não obstante os esforços envidados nos anos 1790 para isolar as
possessões do
soberano português das conseqüências da revolução, daquilo que o ministro d.
Rodrigo
de Souza Coutinho caracterizou como a adoção de “excessos” e “absurdos” pela
Re-
volução Francesa, a invasão de Portugal pelas tropas de Junot e a
transferência da
corte deixaram claro que não havia mais como negar o impacto da revolução.
De
fato, mais do que uma simples defesa contra a ameaça revolucionária, a
transferência

* Tradução de Jurandir Malerba.

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126 A independência brasileira

da corte pareceu constituir uma transformação revolucionária do próprio


império
português. Em resposta, contemporâneos começaram a considerar uma política
im-
perial e monárquica que não só negaria a mudança e defenderia o status quo
ante,
pré-revolucionário, mas, ao contrário, levando em conta as demandas da
conjuntura
revolucionária então vivida, forneceria à monarquia e ao império as bases
para sua
“regeneração”. Na década de 1820, essa regeneração foi então ao mesmo tempo
desa-
fiada e redefinida por uma emergente política constitucionalista
transatlântica. Tais
transformações na percepção da política e nas bases da legitimidade política
sugerem
que não houve continuidade, mas antes uma interação de agendas contra-
revolucio-
nárias dinâmicas e inovadoras, as quais definiram a transição do Brasil de
colônia de
Portugal para império independente.1

Uma era de revoluções

A idéia de uma era das revoluções foi originariamente proposta e


amplamente
disseminada há meio século por R. R. Palmer em seu volumoso The age of
democratic
revolution: a political history of Europe and America. Nele, Palmer (1959:4)
sustenta
que, no final do século XVIII, testemunhou-se um momento crítico na história
da
“civilização atlântica” que se manifestou “de diferentes modos e com
desdobramen-
tos diversos nos vários países”, todos marcados por “um novo sentimento de
deman-
da de uma certa igualdade, ou pelo menos um desconforto com velhas formas de
estratificação social e hierarquia formal”. Os momentos mais emblemáticos e
trans-
cendentes dessa era foram a independência dos Estados Unidos da América e a
Revo-
lução Francesa. Pesquisas mais recentes procuraram integrar a independência
da
América hispânica e a revolução haitiana em interpretações sobre o escopo e
o senti-
do dessa época, esclarecendo como hierarquias de cor e cultura, e o status
de servidão
involuntária foram postos em xeque com ataques mais amplos a princípios e
práticas
das regras hereditárias e ao lugar subordinado da América no império
europeu. Tan-
to entre as antigas quanto entre as novas narrativas da revolução, contudo,
o mundo
luso-brasileiro permaneceu ou flagrantemente ausente ou foi sumariamente
negli-
genciado com referências a seu conservadorismo. Segundo Lester Langley
(1996), “a
despeito de diferenças aparentemente irreconciliáveis para com a metrópole,
elas [as

1 Gould, 2000; e McMahon, 2001.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 127

elites brasileiras] acreditavam que suas escolhas políticas e sociais eram


limitadas e
circunscritas à corte de Bragança”.2
Essa imagem de estagnação e continuidade contrasta fortemente com a
expe-
riência luso-brasileira dos anos 1790-1810 e com as representações dessa
mesma
experiência produzidas pelas elites luso-brasileiras, que prontamente
reconheceram
os vários riscos e oportunidades que uma tal época apresentava. A rigor,
antes do fim
do século, a era das revoluções se manifestou no Brasil na forma de
conspirações e
rebeliões. Enquanto a coroa respondeu à Inconfidência Mineira (1789) e à
Revolta
Baiana dos Alfaiates (1798) com aparatos judiciais particularmente
espetaculares e
violentos — investigações, julgamentos e enforcamentos —, oficiais reais e
aqueles
que testemunharam esses eventos também reconheceram que, mais do que momen-
tos isolados de contestação, foram produtos de “tempos perigosos” e sintomas
da
difusão de influências revolucionárias.3 Sem dúvida, disse-se de alguns
conspirado-
res mineiros que teriam sido inspirados pelo exemplo americano, enquanto os
rebel-
des populares da Bahia, incluindo escravos e negros livres, invocaram
abertamente a
Revolução Francesa e estenderam seu sentido para o contexto do colonialismo,
conclamando para a independência de Portugal, mas também para o fim da
“discri-
minação entre brancos, negros e mulatos”.4 Para as elites luso-brasileiras,
a ameaça
potencial colocada pela rebelião da Bahia tornou-se particularmente clara
alguns
anos antes na ilha de São Domingos, onde negros livres e escravos começaram
uma
campanha eventualmente bem-sucedida para livrar a ilha tanto da instituição
da
escravidão, quanto da população de brancos latifundiários.
Os oficiais régios responderam a esses desafios à autoridade dentro e
fora do
império português com iniciativas no sentido de reformar a máquina
administrativa.
No Rio de Janeiro, capital da América portuguesa, procuraram fortalecer as
defesas
da cidade. Temiam que o porto movimentado da cidade a tornasse
particularmente
vulnerável à penetração de idéias revolucionárias. Como a cidade não possuía
nem
uma oficina de impressão nem um sólido comércio livreiro por meio dos quais
tais

2 O projeto de Palmer foi baseado em sua colaboração com o historiador


francês Jacques Godechot e seu
trabalho inovador sobre a história do Atlântico. Com um aparato cronológico
e conceitual diferente, as
dimensões políticas, econômicas e culturais de uma era das revoluções foram
também delineadas por Eric
Hobsbawm, 1962. Nenhuma abordagem em língua inglesa, porém, integrou a
experiência luso-brasileira a
essa era das revoluções. Na historiografia brasileira, para o período
anterior à transferência da corte, isso foi
feito por Novais, 1979; Mota, s.d.; e Jancsó, 1997.
3 Memória do êxito..., 1953:223-224.
4 João de Deus do Nascimento, um dos articuladores da assim chamada
Rebelião dos Alfaiates de 1978,
apud Barman, 1988:36.

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128 A independência brasileira

idéias pudessem ser disseminadas, concentraram a atenção nas pessoas


suspeitas de
apoiar propostas insurgentes. As restrições concernentes aos estrangeiros —
visitan-
tes da cidade não pertencentes ao império português — foram sensivelmente
refor-
çadas.5 A resposta mais virulenta à ameaça de revolução, contudo, foi
dirigida aos
vassalos da coroa portuguesa: um inquérito abusivo orquestrado pelo vice-rei
conde
de Resende, que procurou identificar “as pessoas que, com escandalosa
liberdade, se
atreviam a envolver em seus discursos matérias ofensivas à religião e a
falar nos negó-
cios públicos da Europa com louvor e aprovação do sistema atual da França”,
e quem,
“além dos ditos escandalosos discursos, se adiantasse a formar ou insinuar
algum
plano de sedição”.6 Os alvos velados da investigação eram os membros de uma
socie-
dade literária local, homens que liam os jornais e panfletos europeus, assim
como os
trabalhos de Raynal e Mably e o Emile, de Rousseau,7 e que se mantinham
atualizados
sobre os acontecimentos e debates, freqüentando os saraus da sociedade
literária,
onde “se leem as gazetas e discursos Francezes” e onde, conforme estipulava
um do-
cumento escrito clandestinamente, ninguém desfrutaria de “superioridade” e
as dis-
cussões seriam “dirigid[as] igualmente por modo democrático”.8 Os membros da
sociedade e seus amigos e associados debatiam a Revolução Francesa e as
guerras
revolucionárias e suas conseqüências para a monarquia portuguesa. Num dos
deba-
tes, por exemplo, o ourives Antônio Gonçalves dos Santos defendeu o
regicídio fran-
cês argumentando que “a morte do rei de França fora justa porque foi falso
ao jura-
mento que fizera à assembléia”, enquanto outro presente reclamava que a
Revolução
Francesa havia mostrado que “os maus governos se deviam sacudir e repelir”.9
Refle-
xões sobre a autoridade política no mundo português, porém, nem sempre
culmina-
vam em endossos gratuitos do republicanismo. Para alguns, atacar casos
específicos
de tirania e corrupção e reconhecer as origens populares da soberania da
coroa portu-
guesa e os limites da autoridade paterna significavam defender a monarquia e
sugerir
modos para que a instituição pudesse sobreviver ao desafio revolucionário.
Embora ao tempo em que a investigação foi encerrada, em 1797, por
instrução
do novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rodrigo de Souza Coutinho, não
se
houvesse obtido qualquer prova de conspiração, os anos de prisão,
interrogatório e

5 Barrow, 1806:85-86; Wilson, 1799:33; e Tuckey, 1805:51.


6 Autos da Devassa..., 1994:36.
7 Ver Rellação dos livros..., 1901:15-18; e cartas confiscadas nos Autos da
Devassa..., 1994:116-120.
8 José Bernardo da Silveira Frade em Autos da Devassa..., 1994:38. Os
manuscritos aparentemente rascunha-
dos por Silva Alvarenga são citados em Jancsó, 1997:413.
9 Manoel Pereira Landim e Jacinto Martins Pamplona Corte Real, apud Autos da
Devassa..., 1994:42, 61.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 129

averiguação revelaram as ramificações e o impacto de uma era das revoluções


sobre o
império português. Havia no Rio de Janeiro pessoas dos mais variados
escalões so-
ciais que desejavam discutir o contexto revolucionário transatlântico e o
futuro da
monarquia. Essas discussões, revigoradas pelo afluxo de notícias da Europa,
levaram
ao que David Higgs (1994) caracterizou como “extratos e formas de
desrespeito ao
status quo num tempo em que os ecos da experiência jacobina na França
ressoavam
pelo mundo atlântico”. Para os administradores imperiais, os comentários dos
repre-
sentantes legais sobre a monarquia e o império abalavam a imagem de uma
popula-
ção leal sobre a qual, acreditavam os oficiais lusos, se apoiava a
manutenção do impé-
rio, alimentando, conseqüentemente, um sentimento crescente de
vulnerabilidade.
Conforme advertia seu superior, o juiz que presidiu a investigação no Rio,
acima de
tudo não era do melhor interesse da coroa permitir que os franceses
descobrissem
que seus “abomináveis princípios” tinham conquistado simpatizantes no
Brasil.10

Revolução, contra-revolução e a transferência da corte

Além de guardar ferrenhamente os portos e investigar as dissidências


locais, os
administradores imperiais portugueses procuraram isolar da revolução os
domínios
da coroa por meio da diplomacia, levando a cabo uma série de negociações com
monarquias européias e com os franceses, a fim de estabelecer a neutralidade
portu-
guesa nas guerras revolucionárias e napoleônicas. Porém, a manutenção da
neutrali-
dade apoiava-se em algo mais do que a vontade da coroa portuguesa. Conforme
foi
se tornando impossível conciliar as crescentes demandas de Napoleão com os
com-
promissos firmados com a coroa britânica, os conflitos resultantes
redundaram na
perda de território português para os espanhóis, bem como na perda de
território
sul-americano para o regime francês.11 Nesse contexto, membros da corte lusa
come-
çaram a argumentar que aquela resposta à revolução poderia se desdobrar em
alguma
outra coisa que não uma defesa desqualificada do status quo. O alastramento
do
movimento revolucionário, em outras palavras, reclamava medidas ousadas, e
não
simplesmente medidas conservadoras. Assim, contrariando aqueles que
insistiam em
manter negociações com a França, o conde de Ega sustentava que chegara a
hora da
mudança da corte real. Não era apenas a monarquia, mas o próprio império que
corria perigo. “Ou Portugal há de fechar os seus portos aos ingleses e
correr o risco de

10 Apud Santos, 1992:103.


11 Manchester, 1964.

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130 A independência brasileira

perder por algum tempo a posse das suas colônias”, explicava o conde, “ou o
Príncipe
Nosso Senhor (…) irá estabelecer no Novo Mundo uma Nova Monarquia (…)”.
Neste caso, o príncipe regente não apenas evitaria uma desastrosa servidão
aos fran-
ceses, mas poderia comandar “um Império de maior consideração”. Tal mudança,
inferia Ega, constituiria “a maior de todas as revoluções no sistema geral
político”.12
Quando a invasão de Portugal em 1807 precipitou, então, o tipo de
resposta
que pregavam Ega e outros — aí incluído o ministro dos Negócios Estrangeiros
d. Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares —, os funcionários reais
percebe-
ram o fato como um momento revolucionário ao mesmo tempo de incerteza e
opor-
tunidade, momento que definiria o futuro da monarquia e do império.
Comentários
oficiais sobre a transferência da corte caracterizaram o movimento, conforme
Ega o
apresentou, como aquele que assegurou a salvação da monarquia. O almanaque
da
cidade do Rio de Janeiro, uma década mais tarde, relatava que “Sua Majestade
e toda
a sua Real Família (…) escolherão este famoso paiz para seu descanço no meio
das
agitações, que abalavão a Europa”.13 Além do mais, reconhecia-se em outro
comen-
tário, o Brasil não era simplesmente um paraíso. Já antes da transferência
da corte,
postulava Souza Coutinho, seu tamanho e recursos naturais faziam dele a
parte “mais
essencial” da monarquia. Após a transferência da corte, pois, esse “vasto
mas ainda
inculto Continente” seria transformado numa poderosa fortaleza contra
ameaças à
independência da coroa portuguesa, um lugar onde o absolutismo poderia
triunfar
de um modo que parecia não ser mais possível na Europa.14 Como admitiam os
homens de Estado, as conseqüências dessa transformação incluíam uma
reconfiguração
dos domínios da monarquia portuguesa e, mais especificamente, o fim da
posição
subordinada do Brasil no império. Conforme escreveu um português expatriado
ao
ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal, com a transferência da corte “se
mudou
a política da Europa e talvez do universo”, porque o príncipe regente havia
assim
dado um certo “tom ao Novo Mundo e fez desaparecer o nome Colônia”.15 Tal
transformação foi então formalmente reconhecida em 1815, com a outorga ao
Brasil
do título de “reino”.16

12 Conde de Ega, apud Araújo, 1992:235. Sobre a proposta similar do marquês


de Alorna, José Manuel de
Souza, ver Lyra, 1994:109.
13 Almanaque..., 1966:217.
14 Visconde de Anadia para Sua Alteza Real, 14 dez. 1808, apud Pereira,
1946:136; Lisboa, 1818:115.
15 Heliódoro Jacinto de Araújo Carneiro para Vilanova Portugal, [Londres], 3
mar. 1818, Arquivo Histórico
do Itamaraty, Rio de Janeiro, lata 180, maço 1.
16 Carta de Lei, de 16 de dezembro de 1815 (Rio de Janeiro: Impressão Régia,
1815).

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 131

Se, contudo, a transferência da corte significou o fim do Brasil como


“colônia”,
não significou, como apontaram os funcionários da coroa, o fim do império.
De
fato, a redenominação foi concebida como uma medida de reforço, e não de
enfra-
quecimento, dos laços entre Portugal e Brasil. Enquanto termos como
“conquista”,
“possessão” e, no século XVIII, “colônia” faziam parte do que o estadista
José da Silva
Lisboa descreveu como uma “vulgar nomenclatura, que impoliticamente
separava,
como distinctas classes e castas, os Vassalos do mesmo Soberano”, o
documento de-
signando o Brasil como “reino” refletia um “novo systema conciliador”, que
alimen-
tava um “Espírito de Nacionalidade” e fortalecia o “homogeneo Corpo Político
da
Monarchia”.17 Ao evocar um reformismo anterior que procurava assegurar a
unifica-
ção do que Souza Coutinho, em 1797, definia como “todas as partes que
compoem
o todo”, d. João — proclamava um orador — “consolida” o império, resgatando
“os
princípios da vida social as mais distantes do corpo político”.18 Para
avançar ainda
mais nesse entendimento do império como o que um diplomata descreveu como
“uma única dominação moral e política”,19 o diploma real não só estabelecia
que o
próprio Brasil era um reino, mas também reafirmava a unidade inerente do
império,
definindo ao mesmo tempo o Brasil como parte de “um só e único Reino”, o
“Reino
Unido” da monarquia portuguesa.
Esse triunfo ao mesmo tempo da autoridade e da unidade indivisível e
histórica
dos três reinos tornou-se manifesto na cidade do Rio de Janeiro em 1818, nas
cele-
brações da aclamação de d. João ao trono. Na procissão de d. João até a
capela real e
nas festividades que se seguiram, suntuosamente decoradas com câmaras e
fachadas
de arquitetura efêmera, arcos triunfais, fogos de artifício, música e
tributos alegóri-
cos evocavam a história do império e, como o cronista oficial sugeria, o
“êxtase” que
tanto o Reino Unido quanto a Aclamação produziram em cada vassalo real.
Quais-
quer potenciais contradições dentro do Reino Unido, tensões criadas pela
ascendên-
cia do Brasil no contexto da ocupação de Portugal, seriam resolvidas
resgatando os
eventos que culminaram na reconfiguração do império. Em outras palavras,
confli-
tos internos à monarquia e ao império eram dirimidos em favor de conflitos
que
transcendessem o mundo português. A criação do Reino Unido e a Aclamação
tor-
naram-se assim celebrações da derrota da Revolução Francesa e de Napoleão.
Uma
ode comemorativa assim descrevia os eventos recentes: “Septro leve e suave
os Lusos

17 Lisboa, 1818:69, 116.


18 Seixas, 1818:14.
19 José Anselmo Correa Henriques para Viana, Lisboa, 16 dez. 1814, in
Mendonça, 1984:276.

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132 A independência brasileira

rege/No meio da tormenta do Universo/Do systema perverso/Benigno acolhe o


Principe Piedozo (…)”. O Reino do Brasil também emergia como uma trincheira
contra o alastramento de insurgências republicanas desde a vizinha América
espa-
nhola e um como freio contra a influência dos Estados Unidos, que, de acordo
com
Silva Lisboa, “ja manifestavão todos os symptomas de apoiarem o systema do
presu-
mido Autocrator da França”.20
Assim, com a transferência da corte, as tentativas conservadoras de
obliterar a
possibilidade de mudança dentro do império português numa era das revoluções
foram deslocadas, transformadas em uma resposta à revolução que parecia ela
mes-
ma uma atitude revolucionária. Essa revolução máxima no sistema geral
político era,
contudo, uma revolução que defenderia e vingaria a monarquia, ameaçada pela
corrupção e pela violência instaladas na Europa, ao redefinir o império como
ameri-
cano. Alegorizando a criação da nova corte, Silva Lisboa dizia que a
história era
representada significativamente pela mitologia. O Rio de Janeiro, proclamava
Cairu,
era “o Acrocerauneo Promonotorio, donde se expedirão os raios da activa e
santa
Guerra, com que a mythologia figura ao Dominandor Celeste anti-trovejando
aos
Titães, que ousarão assaltar Olympo”.21

A revolução e a nova corte real

Como o Brasil era o lugar privilegiado onde o prestígio da monarquia e


do
império seriam restaurados, a nova corte do Rio de Janeiro e seus habitantes
haveri-
am de encarnar essa transformação político-cultural. Muitos dos aspectos
práticos
dessa transformação foram confiados à Intendência Geral da Polícia, uma
instituição
fundada logo à chegada do príncipe regente em 1808, modelada conforme sua
contraparte de Lisboa e dirigida por Paulo Fernandes Viana, natural do Rio
de Janei-
ro. Viana abraçou a causa de fazer do entorno urbano da cidade algo
“[compatível]
com a residencia de Sua Alteza Real nesta Cidade”, assegurando que a cidade
perma-
necesse livre da “desordem”, e mantendo o que um de seus informantes
descreveu
como “un government purament monarchique” na era das revoluções.22 Para
Viana, a
afirmação coletiva de “respeito, a vassalagem” e a diminuição do “desgosto”
e da

20 Ver [Souza], 1818:5, 14 e 20; Santos, 1981, t. 2, p. 153-156, 165, 176-


177 e 216; e Lisboa, 1818:82-83.
Sobre a tradição da Aclamação, ver Souza, 1998:35; Ribeiro, 1995:74-88; e
Malerba, 2000:118-123.
21 Lisboa, 1818:82-83.
22 Cailhé de Geine, “Projet” e “Memoire et notes explicatives sur le
projet”. Rio de Janeiro, 15 dez. 1820.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (doravante BNRJ), Ms. I-33,29,8 e I-
33,29,16. (N. do Org. — O
nome de Cailhé de Geine aparece de diversas formas nos documentos
consultados. Geine de Cailhé, Cailhé
de Geine, Caille de Geine, Geine de Caille. Nesta obra optamos pela grafia
abrasileirada Cailhé de Geine.)

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 133

“indiferença pelo Governo”, em particular, eram os “objectos” daquilo que


chamou
de alta polícia, e que incluía o patrocínio de momentos de homenagem, como
come-
morações do soberano e de seu reinado, assim como a vigília e a repressão
dos suspei-
tos de manter “doutrinas alheias da nossa fidelidade”.23
Enquanto o intendente assim reeditava os esforços anteriores do vice-
rei para
evitar a difusão e a disseminação das notícias da Revolução Francesa e seus
desdobra-
mentos, também enfrentava desafios quantitativamente, senão
qualitativamente,
maiores. Para começar, a abertura dos portos brasileiros implicava que
estrangeiros,
mesmo quando categoricamente suspeitos de atividade subversiva, não seriam
mais
proibidos de visitar ou residir na cidade. Em conseqüência, o intendente
instituiu
uma série de salvaguardas, incluindo a inspeção centralizada de passaportes
e regis-
tros de todos os forasteiros que visitavam ou viviam na cidade.24 O controle
dos
estrangeiros, especialmente dos “emissários napoleônicos” e insurgentes
suspeitos da
América espanhola, era também submetido ao que o intendente caracterizou de
“con-
tra-espionagem”. Para essa missão, afirmava Viana em 1816, a intendência
precisava
de espiões confiáveis, incluindo aqueles “que saibão as linguas, que
frequentem seus
jantares, e concorram com elles nos Teatros, nos passeios e divertimentos
públicos”.
De fato, ao final da década, ele havia recrutado pelo menos dois franceses
para a
tarefa.25 Vassalos portugueses também eram observados para detectar sinais
de dissi-
dência. Quando se passou a temer que “as scenas de sangue, e devastação, que
em
nossos dias affligirão a desgraçada França”, se alastrariam pelos domínios
da monar-
quia portuguesa, e haviam sido dramaticamente realizados em 1817 na
insurreição
republicana no Nordeste, Viana intensificou seus esforços de “alta polícia”.
Assim
respondendo pela coroa, como havia feito no caso da conspiração mineira —
encar-
cerando e executando os protagonistas e estacionando novos regimentos do
Exército
no Rio de Janeiro e em outras cidades importantes —, o intendente
intensificou a

23 Viana para Aguiar, 9 jun. 1812. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional


(doravante ANRJ), Ministério dos
Negócios do Brasil (doravante MNB), Caixa 6J 79. Sobre as estratégias da
“alta polícia”, ver também Viana,
“Registro do ofício expedido ao [Ouvidor do Crime de Bahia]”, 28 jun. 1808,
ANRJ, Códice 318, f35v;
Viana, “Abreviada demonstração”, 379; e Viana para Sua Alteza Real
[parecer], 1 set. 1810, f2, f5, ANRJ,
MNB, Caixa 6J 78.
24 Viana para Aguiar, 24 jul. 1815, ANRJ, MNB, caixa 6J 79; Viana, “Registro
do ofício expedido ao
ministro do Estado dos Negócios Estrangeiros”, 20 mar. 1817, ANRJ, códice
323, v. 4.
25 Viana [representação], 14 nov. 1816, f11, ANRJ, MNB, caixa 6J 83. No fim
da década, Viana trabalhava
com Cailhé de Geine, que sabidamente havia servido no Exército francês e,
uma vez no Rio, tentara abrir
uma casa de jogos. Sobre o outro informante, Tremeau, que Viana identificava
como um antigo juiz de paz
de Paris, ver Clayton, 1977:235. Sobre os emissários napoleônicos, ver
Grieco, 1939.

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134 A independência brasileira

vigilância, especialmente sobre as atividades maçônicas, ligadas aos


insurgentes em
ambos os lados do Atlântico, que passaram a ser consideradas criminosas,
seguindo a
prescrição da coroa, de 1818, sobre as sociedades secretas.26
Durante a década de 1810, a possibilidade de uma insurreição
abolicionista era
também matéria que requeria especial preocupação. Além do mais, argumentava
Viana, o “exemplo” do Haiti e a guerra na Europa haviam tornado essa ameaça
particularmente mais perigosa. A população escrava constituía um ponto fraco
na
defesa cultural e política contra Napoleão que se supunha que o Brasil
representava.
Uma rebelião de escravos na nova corte do príncipe regente, escreveu Viana
em 1808,
certamente encorajaria os “bem conhecidos inimigos” da monarquia
portuguesa.27
Mesmo após o final da guerra, insistia o intendente em 1816, tendo sido
informado
“de certo exageração, que tem havido espirito insubordinado na escravatura
da Bahia”,
os partidários de Napoleão acreditavam que lá “possão ser mais bem
recebidos”.28
Em conseqüência, Viana perseguiu todos, brancos ou pretos, suspeitos de
simpatias
abolicionistas ou de terem conexões com o Caribe. Assim, ainda em 1818, “um
preto” da “Nação Franceza” chamado Carlos Romão foi posto na cadeia da
cidade,
de modo que o intendente pudesse descobrir se ele era “da Ilha de São
Domingos, ou
dali viesse”, ou se havia “outros, ou mulatos, se já esteve na Bahia, ou
conhece alguns
que lá estejão e viessem de São Domingos, nomes, e signaes por onde se
possão
descobrir”. Tais ações, contudo, também incorriam num risco. Como Viana
comen-
tou com Souza Coutinho, após a prisão de “tres negros da Martinica”, para
que ele
pudesse verificar suas ocupações passadas e presentes, “destes mesmos sempre
tenho
procurado não entrar com elles em exames judiciaes nem com inquirições de
teste-
munhas que sempre vão dar Corpo que as couzas não tem, e suscitar ideas,
athe
ignoradas da maior parte das gentes”.29
Essa possibilidade de as prisões e os interrogatórios poderem dar
publicidade às
idéias que supostamente deveriam reprimir era apenas um dos problemas que o

26 [Carta Régia, “Constando com toda a certeza, a existencia de huma


conjuração...”], 31 maio 1817. [Rio
de Janeiro]: Impressão Régia, [1817]; Souza, 1998:57-74. Sobre a maçonaria
no Brasil e seu papel em 1817,
ver Barman, 1988:57-63; Ferreira e Ferreira, 1962:196-216; Santos, 1965:51-
59; e Pinto, 1961. De acordo
com Barman, já havia atividades maçônicas antes no Brasil, mas estas se
intensificaram após a chegada da
corte.
27 Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro e secretário da
repartição da Guerra”, 23 maio 1808,
ANRJ, códice 318, f16-16v.
28 Viana [representação para dom João], 24 nov. 1816, ANRJ, MNB, caixa 6J
83.
29 Viana, “Registro do ofício expedido ao juiz do Crime do Bairro de Santa
Rita”, 11 abr. 1816, ANRJ,
códice 329, v. 3; Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro de Estado
dos Negócios de Guerra”, 7 jul.
1808, ANRJ, códice 318, f38.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 135

intendente enfrentava enquanto procurava assegurar a lealdade e a segurança


do Rio
de Janeiro. Na verdade, conforme Viana e outros funcionários reais viriam a
reco-
nhecer, as expressões de contestação estavam associadas a muitas das
inovações que
fizeram do Rio de Janeiro uma corte real. O que Viana descrevia num
relatório como
as comunicações freqüentes que se tornaram possíveis pela abertura dos
portos, as-
sim como a inédita proliferação da imprensa, eram realidades que não podiam
ser
mais negadas ou, como Viana sempre reclamava, não podiam ser mais completa-
mente controladas.30 A imprensa de língua portuguesa publicada fora do
império
português, cuja existência era alimentada pela insistência da coroa em
cercear a liber-
dade de imprensa em seus territórios, conforme observou o editor do Correio
Braziliense
sediado em Londres, provou ser particularmente tediosa. Na realidade, a
habilidade
da coroa para proibir essas publicações era aparentemente limitada, já que,
observava
um habitante do Rio, os caixeiros da cidade liam os “folhetos de Londres”,
especial-
mente O Portuguez, periódico abolido em Londres entre 1814 e 1826 e
oficialmente
banido pela coroa.31 De Londres também vinham exemplares do proscrito
Campião,
ou Amigo do Rey e do Povo e o mais conhecido e legal Correio Braziliense,
onde os
leitores podiam encontrar as vociferações do editor contra o “despotismo” do
intendente.32 No final da década, esse volume inédito de material impresso
de opo-
sição deu sinais de estar se esgotando, conforme observou a historiadora
Lisa Graham
(1997:95) sobre as hierarquias francesas do século XVIII, nas quais se
baseava a autori-
dade política. De fato, nos jornais importados do estrangeiro, os residentes
locais liam
sobre a crise imperial, mudanças no tráfico internacional de escravos, uma
possível
separação de Brasil e Portugal e, lamentava Viana, projetos de
Constituição.33
O conhecimento de que, advertia um observador, “as conversações” eram
“sem-
pre fundadas no que se lê nos journaes”34 também redundava no que os
contempo-
râneos chamam de “opinião pública”. Conforme Hipólito José da Costa, editor
do
Correio Braziliense, o “caráter dos homens públicos é objeto de pública
observação,

30 Viana, “Registro do ofício expedido ao ministro de Estado dos Negócios


do Brasil”, 14 mar. 1811, ANRJ,
códice 323, v. 3, f28.
31 Alves, 1992.
32 Correio Braziliense, abr. 1813 e fev. 1819, em Lima Sobrinho, 1977:90-
96, 238-242; Viana para Luiz
Pedreira do Couto Ferraz, 26 out. 1819, ANRJ, códice 330, v. 1; e Souza,
1998:77. Funcionários reais em
Portugal compartilhavam as preocupações sobre esses periódicos, incluindo o
Correio Braziliense, e em 1817
proibiram sua importação para Portugal.
33 Souza, 1998:75-76; Viana para Sua Alteza Real, 8 nov. 1818, BNRJ, Ms. I-
33, 27, 10.
34 Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro para Sua Alteza Real, n.d., n.p.
Rio de Janeiro, c.1818[?], AHI, lata
170, maço 5, pasta 6.

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136 A independência brasileira

isto mesmo lhes serve de freio, e ainda que se pudesse reprimir a publicação
das
opiniões, pela imprensa, nunca se poderiam sufocar as vozes”. O processo
pelo qual
a opinião pública tomou forma foi, assim, libertador e fortalecedor. “Um
povo que
se conduz como rebanho de carneiros”, continuava Hipólito da Costa, “é
sempre
incapaz de cousas grandes”. Porém, quando “os homens raciocinam por si,
quando
têm a faculdade e a oportunidade de julgar os negócios públicos, adquirem a
energia
de espírito que os faz aspirar à fama e a fazerem, para a obter, serviços
assinalados”.
E, acrescentava, não havia “nada que a isso mais conduza do que a leitura
dos
sucessos que vão tendo lugar no mundo para o que são essenciais as obras
periódi-
cas políticas”.35
O intendente e outros funcionários do Rio de Janeiro confrontaram,
assim,
entendimentos emergentes de “opinião pública” como “um princípio de
legitimida-
de” e “uma categoria abstrata de autoridade”. Conforme Keith Michael Baker
(1987:212-213) explicou no caso da França, incapaz de sufocar “os processos
de
contestação política”, a monarquia “encontrou-se sobre crescente pressão
para tomar
parte nelas”. Conseqüentemente, junto com seus críticos, a monarquia invocou
a
opinião pública “para assegurar a legitimidade das reivindicações que não
podiam
mais fazer-se nos termos (e no circuito institucional tradicional) de uma
ordem po-
lítica absolutista”.
Para a coroa portuguesa, sua própria sujeição ao “tribunal da opinião
pública”
era flagrantemente evidente durante a guerra peninsular. Como estavam
totalmente
cientes os funcionários reais, a transferência da corte era uma mudança
polêmica,
cuja legitimidade exigia explicações aos constituintes para além do círculo
dos corte-
sãos, tanto dentro quanto fora do império. No Rio de Janeiro, exilados
vindos de
Portugal e residentes compartilhavam um ávido interesse pela guerra e pelo
estado
dos negócios da nova corte real e de Portugal, reunindo-se para trocar
informações e
debater. Para a monarquia portuguesa, o perigo desses debates era que os
envolvidos
considerassem, e então postulassem, reivindicações tais como as francesas de
que a
mudança para o Brasil era um ato de covardia e, ainda pior, que ao partir de
Portugal
o príncipe regente “renunciara a todos os seus Direitos à Soberania deste
Reino”.
Como se lia num dos proclamas de Junot, a Casa de Bragança “acabou de reinar
em
Portugal”.36 Através da crítica do editor, os leitores do Correio
Braziliense muniam-se

35 Correio Braziliense, fev. 1819, em Lima Sobrinho, 1977:238-242.


36 Junot, “O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de sua
majestade o imperador e rei...” (1 fev.
1808). [Lisboa]: Impressão Régia, [1808], p. 1.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 137

de outros argumentos lançados por panfletos britânicos, incluindo um que


sustenta-
va que a mudança para o Brasil fora orquestrada por Bonaparte e servilmente
execu-
tada por ministros francófilos de um débil príncipe português. Desafiados
por tais
acusações, inúmeras vezes expressas em discursos dissidentes pelas ruas e
lojas da
cidade, os funcionários reais, assim como seus pares na França, reconheciam
que a
resposta teria que abranger não apenas a supressão desses panfletos e a
repressão
daqueles que ousavam debatê-los, mas também um gênero de refutação
concertada e
mais persuasiva: panfletos que, conforme sugeria o intendente,
contradissessem as
“falcidades e mentiras dos Francezes”.37
Para essa tarefa a coroa tinha sua própria Impressão Régia. De fato,
no início da
década de 1810, a maioria das publicações da Impressão Régia incluía
panfletos
atacando Napoleão e afirmando a posição e as alianças da coroa portuguesa.38
Essas
incluíam a própria justificativa oficial da coroa para a sua conduta, o
Manifesto, ou
exposição fundada, escrito por Souza Coutinho e publicado em 1808 em
português e
em francês, e que se centrava na traição diplomática francesa e em sua
beligerância.
Um ano depois, a Impressão Régia divulgou argumentos similares emitidos pelo
primeiro historiador português da guerra peninsular, José Acúrsio das Neves,
em seu
Manifesto da razão contra as usurpações francezas (1809:20-22).39 Relatos
minuciosos
das circunstâncias, incluindo reedições de panfletos originariamente
publicados em
Portugal, foram também editados pela Impressão Régia, como o satírico
Receita espe-
cial para fazer Napoleões: “Hum punho de terra corrompida”, “Hum quintal de
men-
tira refinada”, e “Hum barril de impiedade alambicada”. Juntos, esses
panfletos bara-
tos e breves formavam um gênero bélico transnacional e transatlântico,
construindo,
por um lado, uma “lenda negra” de Napoleão e dos franceses por meio de
referências
concisas e repetidas ao oportunismo, à velhacaria e à perfídia e, por outro,
celebran-
do o heroísmo e o patriotismo português.40

37 Ver Viana para o conde de Aguiar, 27 nov. 1809, ANRJ, MNB, caixa 6J 78.
Um artigo na Gazeta do Rio
de Janeiro de 29 de abril de 1809 tornava pública a necessidade de “os
escritores desmascararem os crimes e
intrigas do inimigo comum”. Apud Sá, 1816.
38 O mais completo resgate das publicações da Impressão Régia encontra-se
nos dois volumes organizados
por Camargo e Moraes (1993). Uma análise revela que, nos dois primeiros anos
de funcionamento da
Impressão Régia, mais da metade de suas publicações anuais referiam-se à
invasão francesa e à guerra penin-
sular. Depois houve um declínio gradual das publicações sobre o assunto. De
1810 a 1812 a média anual era
de 20%, enquanto de 1813 a 1815 passou a ser de 9%.
39 Tanto o Manifesto, ou exposição fundada, quanto a Justificativa do
procedimento da Corte de Portugal a
respeito da França... Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, encontram-se em
Coutinho, 1993, t. 2, p. 335-
343.
40 Receita especial para fabricar Napoleões... Rio de Janeiro: Régia
Officina Typografica, 1809 (reedição).
Sobre o gênero de panfletos antinapoleônicos, ver D’Alcochete, 1977.

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138 A independência brasileira

Esse esforço para moldar uma opinião pública favorável à coroa por
meio da
imprensa foi além da Impressão Régia, chegando até Londres, onde eram
publicados
muitos dos trabalhos críticos encaminhados ao Rio de Janeiro. Como observou
Barman, juntamente com as publicações tidas como ofensivas ou sediciosas, a
coroa
encorajava a publicação de panfletos refutando argumentos feitos na imprensa
expatriada e subsidiava o periódico O Investigador Portuguêz, fundado em
Londres
em 1811. Um ano depois, funcionários reais ainda buscavam um acordo com
Hipólito
da Costa, editor do Correio, que incluía subsídios, aquisição compulsória e
distribui-
ção, em troca de menos comentários direcionados aos oficiais da coroa e a
seus negó-
cios, do fim das “dissertações de Cortes” e das comparações a que Hipólito
repetida-
mente se referia como a “antiga Constituição portugueza” com a “actual
Constituição
ingleza” e, como sugere uma correspondência sua, da publicação de artigos ou
maté-
rias recomendadas pelo intendente.41
A decisão da coroa de se opor à crítica impressa instituindo um prêmio
impres-
so e, mais concretamente, oferecendo apoio financeiro a seu empreendimento
pode
ter levado, segundo Barman, à conseqüência não-intencional de acelerar o
surgimen-
to de uma imprensa periódica em língua portuguesa; na década de 1810, havia
oito
periódicos publicados em Londres, Lisboa e Rio de Janeiro. Esses números
também
atestam o reconhecimento, por parte dos funcionários reais, tanto da
inevitabilidade
da contestação, quanto da função política da opinião pública. Por
conseguinte, eles
sustentavam o que Arlette Farge (1995:198) descreveu como um “senso
crescente do
direito de saber e julgar”. No Rio de Janeiro, tais julgamentos
concentravam-se no
sentido da guerra e na retirada da família real para Lisboa. Eles
sinalizavam que,
enquanto Viana se dedicava à “alta polícia”, encenando celebrações de
louvor, prote-
gendo a coroa de conspirações e investigando dissidências, a transformação
do Rio
de Janeiro em corte real não era, nem poderia ser, baseada num consentimento
pas-
sivo. Como reconheciam os próprios funcionários reais, salvaguardar a
instituição da
monarquia numa cidade aberta a estrangeiros e crescentemente informada da
políti-
ca da guerra e da revolução em ambos os lados do Atlântico requeria
compromisso
com opiniões que, naquele momento mais do que em qualquer outro da história
da
cidade, eram propositadamente formadas em público.

41Sobre os subsídios ao Correio Braziliense, ver Barman, 1988:53; Vicente


Pedro Nolasco da Cunha para
Domingos [de Sousa Coutinho?], Londres, 24 out. 1809, AHI, lata 203, maço 2,
pasta 5; Heliodoro de
Araújo Carneiro para Viana, Londres, 8 ago. 1814, e Hipólito José da Costa
para Viana, 20 ago. 1820, apud
Mendonça, 1984:266, 398; Araújo Carneiro para o marquês de Pombal, 8 jan.
1810, e 9 mar. 1810, BNRJ,
Ms. Arcaz 2; Guilherme Cypriano de Souza para o conde de Linhares, Londres,
7 mar. 1810, BNRJ, Ms. II-
31, 1, 3, n. 2; e Viana para Sua Alteza Real, 28 nov. 1818, BNRJ, Ms.II 33-
27-20, n. 3.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 139

Liberdades e heranças: revolução e constitucionalismo

A transferência da corte alterou as percepções do império português e


seu futu-
ro e forçou os administradores reais a reconhecer a necessidade de uma
opinião pú-
blica na transformação do Rio em corte real e na afirmação da legitimidade
monárquica
no exílio. Além disso, evidências de dissidência também revelavam
entendimentos
alternativos do sentido da transferência da corte. Ao fim da década de 1810,
tais
dissidências pareciam ter-se cristalizado em questões referentes à natureza
e ao futuro
da nação portuguesa. Mais especificamente, a salvação da monarquia na
América
não parecia levar em conta a “decadência” da antiga metrópole e, por isso —
questio-
navam os críticos em Portugal —, a nação heróica que sobrevivera à invasão
francesa
continuava a padecer. O movimento constitucionalista que surgiu em Portugal
em
1820 prometeu revigorar a nação e “regenerar” a monarquia e seus políticos,
ao
convocar as cortes, uma antiga instituição consultiva representativa do
reino, para
deliberar sobre a questão de redigir uma Constituição. “Viva o nosso Bom
Pay”, lia-
se em uma proclamação de 1820, “vivão as Cortes, e com ellas a
Constituição”. O
chavão evidenciava tanto a lealdade do movimento à monarquia quanto o fato
de
que essa lealdade apoiava-se na concordância do rei em reunir as cortes e
aceitar uma
nova Constituição que garantisse a soberania da nação.
Conforme o movimento constitucionalista ganhava força tanto em
Portugal
quanto no Brasil, os constitucionalistas procuravam definir o sentido da
política
constitucionalista no contexto de uma era das revoluções. Apelos à tradição
e à reli-
gião colocaram o constitucionalismo fora do contexto revolucionário. “Dêmos
pois
ao Rei o que pertence ao Rei; isto he, dêmos-lhe o que lhe derão os nossos
antigos”,
explicava o autor de um sermão constitucional, “e tiremos-lhe o que
indevidamente
se nos tem uzurpado. Nada disto”, reafirmava então a seus ouvintes e
leitores, “in-
fringe a Santa Religião, que professamos”. Essa defesa da religião somava-se
a apelos
à história como prova da “verdade” do constitucionalismo. Como explicava um
“cons-
titucional exaltado” para um “corcunda abatido” num “diálogo” publicado à
época,
as cortes tinham o direito de “fazer e desfazer Reis” porque elas haviam
elevado Afon-
so Henriques, João I e João IV ao trono. Segundo Zilia Osório de Castro, o
constitu-
cionalismo português demonstrava uma “racionalidade histórica”; ele
procurava não
apenas resgatar o passado, mas, mais ainda, usá-lo para tornar o presente,
incluindo
as inovações, legítimo.42

42 Sermão constitucional… 1821:18; Dialogo entre o corcunda abatido...,


[1821]:3; Castro, 1979:173, 176; e
Souza, 1998:83-85.

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140 A independência brasileira

A defesa da monarquia e a invocação da religião, da história e da


tradição,
contudo, não excluiam um impulso de mudança. Na verdade, a regeneração da
po-
lítica para o constitucionalismo, em certos momentos, parecia depender de
significa-
tivas transformações jurídico-institucionais. Conforme explicava um
panfletário, o
“methodo antigo, de convocar Côrtes, bem que seja legal, não he proprio da
epoca
presente”. “[A]s leis são, como tudo o mais que com o tempo envelhece”, e
prosse-
guia, “[e como] ellas tem por fito o regular costumes, se os costumes mudão,
devem
as leis também mudar”. A missão do constitucionalismo, portanto, seria a de
tornar
as leis “mais conformes às idéias do século”.43
Ao evocar “as idéias do século”, o panfletário também revelava a
influência do
Iluminismo e da Revolução Francesa no discurso constitucionalista português.
Como
vimos, no final do século XVIII e início do XIX, os funcionários reais
procuravam
evitar o engajamento com o pensamento político francês e suas esferas de
influência.
O constitucionalismo e, mais importante ainda, a liberdade de imprensa que
seus
defensores asseguraram, puseram por terra aqueles limites, construindo-se
sobre um
antigo e censurado engajamento ao pensamento e à política do século XVIII, e
per-
mitindo uma consideração mais aberta do significado do Iluminismo e da
Revolução
Francesa. Enquanto os funcionários reais, nos anos 1790 a 1810, procuraram
garan-
tir a lealdade dos residentes “a Sua Majestade”, “Nosso Senhor” e “Pai
Comum”, os
constitucionalistas celebraram o triunfo do governo contratual sobre a norma
paternal;
eles saudaram a nova entidade política do “povo”; aclamaram o surgimento do
“públi-
co” como a derrota dos interesses estreitos e privados associados ao
absolutismo.44
Os constitucionalistas também enfrentaram dois dos mais emblemáticos
prin-
cípios da Revolução Francesa: a liberdade e a igualdade. Como combatia um
panfletário, embora a liberdade não pudesse ser edificada como “absoluta”,
ela era
“natural”. O homem nascia “livre” e sua liberdade era então limitada,
primeiro, por
sua relação com Deus e, depois, por sua relação com sua esposa, filhos e
outros
homens. “Quanto mais são as relações”, explicava, “mais os deveres, ou
obrigações; e
quanto mais deveres, menos liberdade”. Embora limitada, essas liberdades e
direitos
eram igualmente desfrutados por todos. Adão e Eva foram eles mesmos
“perfeita-
mente iguaes”, argumentava, pois tinham não apenas “igual liberdade”, mas
também
“iguaes relações” e “iguaes deveres”. Em outras palavras, liberdade e
igualdade ti-
nham sempre relação uma com a outra. Ou, como explicava mais sucintamente
ou-

43 Das sociedades ..., 1821:4-5.


44 Verdelho, 1981:103-111, 116-119; e Lima, 1821a:10.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 141

tro panfleto, a “igualdade dos direitos de todo Cidadão e da fraqueza igual


em todos
diante da lei”. Esse tipo de linguagem rousseauniana foi usado, assim,
quando os
constitucionalistas explicavam a lei ou a “Lei Fundamental” como a expressão
da
“vontade geral” do povo e do pacto, ou constituição, por meio da qual os
direitos
eram estabelecidos.45
Esses direitos e liberdades civis, por seu turno, coincidiam com a
“nobreza do
cidadão”, um “vassalo livre”, conforme explicava um catecismo
constitucional, nas-
cido ou naturalizado “nas terras pertencentes à Corôa de Portugal em
qualquer parte
do mundo”. Cidadão, neste sentido, adquiria o significado de identidade
política
nacional, como aquilo a que o intendente se referira impropriamente em 1818
como
“vassallos dos Estados Unidos da America”. Entendimentos anteriores de
cidadãos
como bem considerados membros de uma comunidade urbana que cumpriam seus
deveres para com Deus e o soberano também se ampliaram para incluir o que o
visconde do Rio Seco se referia como um respeito pelas “authoridades
constituidas”
e o amor “ao Soberano e à Pátria”. Na verdade, como contestava um panfleto,
en-
quanto o status de vassalo originariamente qualificava uma pessoa como
cidadão, a
cidadania deslocava a vassalagem como um todo, como a nova ordem deslocava a
velha. Ambos, cidadãos e vassalos, tinham “direitos” e virtudes. Além disso,
um vassalo
era dependente da coroa, enquanto um cidadão era um membro igualitário da
nação
soberana.46
Ao chamar a atenção para os novos termos e papéis e identidades
mutantes, os
constitucionalistas também promoveram a idéia de que a criação de uma nova
or-
dem política dependia da criação de uma nova linguagem política, um discurso
retórico
que procurasse não só refletir os acontecimentos recentes, mas também
persuadir e
moldar a percepção de interesses como um meio de reconstituir a própria
ordem
política, nesse caso fazendo “a nação”, em lugar do rei, soberana.47 Em
outras pala-
vras, ser um constitucionalista era falar como um constitucionalista. Por
conseguin-
te, os próprios panfletos freqüentemente serviam explicitamente para
traduzir uma
velha linguagem absolutista para uma nova, constitucionalista. Uma
justaposição
gráfica, ou “parallelo”, das categorias políticas usando uma lista de
sinônimos e
45 Verdelho, 1981:48-50, 221-231. Dialogo instructivo…, 1821:4-5; Reflexões
filosoficas..., 1821:2-4; Quali-
dades..., 1821.
46 Carvalho, 1821:20; Cathecismo constitucional..., 1821:4; Viana, “Registro
do ofício expedido ao ministro
de Estado dos Negócios da Marinha”, 4 abr. 1818, ANRJ, códice 323, v. 5,
f55-f55v; Dialogo entre o corcun-
da..., 1821:6; Azevedo, 1821:34; Qualidades..., 1821.
47 Hunt, 1984:20-24.

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142 A independência brasileira

antônimos, por exemplo, revelava que ambição e hipocrisia estavam para o


“corcun-
da” assim como a virtude e a razão estavam para o “liberal”.48 Nesse caso,
enquanto
os leitores eram educados quanto ao sentido das palavras novas no léxico
político
português,49 os dicionários de José Joaquim Lopes de Lima sugeriam que, mais
do
que um conjunto de novas palavras, a linguagem constitucional consistia em
novos
sentidos para velhas palavras. Contudo, retoricamente, Lima apresentava
esses senti-
dos não como “novos”, mas como velhos sentidos perdidos no discurso político
ab-
solutista mais recente. O desafio de Lima, então, como ele mesmo explicava,
era
identificar aquelas “expressões transformadas somente para illudir” e
“restituir a sua
genuina significação”.
Esse resgate dos sentidos originais tornou-se parte do resgate dos
direitos políti-
cos originais do constitucionalismo. Para fazer esse resgate, Lima fornecia
um con-
junto de traduções sardônicas de “phrazes dos carcundas”, uma desconstrução
da
velha linguagem política que criava uma nova. Assim, explicava, o que
antigamente
havia sido definido como “absurdos” eram de fato “verdades naturaes”.
“Abolir,” por
seu turno, significava “reformar, purificar”. “Affronta” era uma “verdade”
como em
“Fazer affronta à Soberania… Dizer a verdade ao Rei”. Essa paródia também
conti-
nuava, inversamente, nas definições corcundas de Lima para constituição —
“plano
de desordem” — e cortes — “associação irregular”.50
Essa busca por uma linguagem nova e transparente da política, em
oposição à
linguagem cavilosa do antigo regime, era ela mesma uma herança da Revolução
Fran-
cesa. Na França, segundo Lynn Hunt (1984:20-21, 45), os revolucionários
derruba-
ram uma política do passado ao adotar o poder da retórica, mesmo ao custo de
enfraquecer a própria representação. Palavras associadas ao velho regime
eram proi-
bidas por serem percebidas como ameaças à transparência revolucionária entre
cida-
dãos. Os constitucionalistas no Rio de Janeiro também eliminaram de seu
vocabulá-
rio termos que invocavam o absolutismo, como o título real de “nosso
senhor”. Assim,
em setembro de 1821, “Vivas” oferecidos a d. Pedro, que incluíam esse
“título indevido
e inconstitucional”, foram denunciados como sinais de um “sinistro intento
de pro-
mover desconfianças ao Público e concitar partidos”. Embora uma investigação
en-
tão determinasse que o homem que fez tal declaração desestabilizadora não
era poli-
ticamente motivado, mas simplesmente sem “juízo”, o incidente ainda assim
provocou

48 Parallelo... 1821.
49 Sobre a mudança de sentido de “liberal” para “liberalidade”, ver
Verdelho, 1981:69.
50 Lima, 1821a; Lima, 1821b:7. Lima refere-se a Rafael Bluteau (1638-1734),
autor do Vocabulário portuguêz
e latino... (ver Bluteau, 1712-28).

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 143

“a maior sensação possivel nos animos bem intencionados dos habitantes desta
Capi-
tal”. Para restaurar a integridade da ordem constitucional corrompida por
uma
investida lexical, o oficial militar de cujo balcão a saudação havia sido
feita foi com-
pelido a dar uma explicação pública de sua conduta, publicada tanto como um
pan-
fleto avulso quanto como um artigo na Gazeta da cidade.51
O interesse em disseminar uma língua constitucional transparente, e em
refor-
çar seu uso, foi relacionado ao entendimento constitucionalista da nova
natureza da
política e da vida pública. Como explicava o visconde do Rio Seco:

O Maior dos bens, que trazem a Sociedade os Governos Liberaes he sem


duvida a
faculdade de cada hum dos Cidadãos poder expor a verdade em todo seu
esplen-
dor, e clareza. Perdem com ella, o seu uso as mascaras, e os
disfarces; e o homem
apparece tal qual o tem formado a cadeia dos seus procedimentos. A
Lei fica
sendo o compasso de todas as suas acções; o interesse geral o
centro, a que ellas
convergem; e o Publico o Juiz severo, que as condemna, ou premeia
segundo a
relação, em que estão para com a Sociedade em que elle vive (…).
Tudo se rende
ao Império da verdade (...).52

Essa visão do julgamento coletivo verdadeiro também era descrita como


“opi-
nião pública”. Os constitucionalistas denunciaram perante o “tribunal da
Pública
Opinião, os erros e os abusos” do governo absolutista e avisaram que “os
Monarcas
de hoje tem necessidade não só de consultarem, mas de terem os olhos sempre
fixos
sobre o Norte da Opinião pública”.53
Quando os constitutionalistas herdaram e compartilharam esse sentido de
opinião pública como algo que podia ser julgado e engajado, declararam
também
que seu status no “sistema constitucional” era fundamentalmente diferente.
Os
absolutistas procuravam “desviar a opinião pública do verdadeiro espirito do
bem”.

51 Pedro Alvarez Diniz para João Ignacio da Cunha [intendente], 25 set.


1821, e “Auto das perguntas feitas
ao preso Manuel Luiz Nunes,” 2 out. 1821, ANRJ, MNB, caixa 6J 86; António
Luíz Pereira da Cunha para
Luiz de Souza e Vasconcellos, 26 set. 1821, ANRJ, códice 330, v. 1; João
Ignacio da Cunha, “Ofício expedi-
do ao ministro e secretário de Estado”, [11] out. 1821, ANRJ, códice 323, v.
6, f93; José de Almeida,
tenente-coronel graduado do Batalhão de Caçadores da Corte, “[Anúncio]
Havendo feito a maior sensação
possivel nos animos bem intencionados dos habitantes desta Capital...”. Rio
de Janeiro: Impressão Nacional,
1821.
52 Azevedo, 1821:iii.
53 O português constitucional regenerado (18 set. 1821), apud Pina,
1988:102; Carta de André Mamede...,
1821:5; Qualidades...,1821; e Miranda, 1821:50.

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144 A independência brasileira

Os panfletários também afirmavam que o policiamento absolutista distorcia a


opi-
nião, espionando “as mais secretas conversações, obrigando os Cidadãos (…) a
disfarçarem a sua Linguagem; chamando ao dia noite, ao branco preto (…)”. Os
constitucionalistas, ao contrário, reivindicavam liberar a opinião pública,
torná-la
transparente, trazê-la para a abertura e colocá-la no centro do exercício da
sobera-
nia nacional. “A opinião pública”, declarava um panfletário, “expressa o
voto do
Povo”. Assim, como reconheceu o sucessor de Viana no posto de intendente,
de-
pois de 1821 devia “o público, juiz imparcial”, decidir se os próprios
oficiais havi-
am observado adequadamente a lei. Como um panfletário explicava esse
processo,
“palavras” políticas e “discursos impressos” eram “lançados, por assim
dizer, dentro
de uma vasta Estacada, aonde a todo o cidadão he licito entrar e combater,
tendo
por juiz a Nação inteira que pode sentenciar livremente”. Quanto mais aberto
fosse esse confronto, mais legítimos seriam os seus resultados. Tal
“liberdade de
discussão”, afirmava, era o único modo de “dar a conhecer a verdade”. Ela
formava
a “a baze fundamental de toda a permanência da liberdade civil e politica”.
Portan-
to, a liberdade de imprensa seria também crucial, uma vez que, sem ela,
sustenta-
vam os panfletários, “huma assembleia nacional (...) formará sempre huma
repre-
sentação infiel”. Assim, declarava, “perguntar se a Imprensa deve ser livre
ou escrava”
era “o mesmo que perguntar, por outras palavras, se a Monarchia deve ser
Consti-
tucional ou absoluta”.54
Para os constitucionalistas, essa nova política deliberativa pública
devia ser
não só livre, mas também educada. É na educação, entendia o magistrado
fluminense
José Albano Fragoso, que “se radica a moral publica”. Ou, como um jornal
consti-
tucional declarou, tornar “oportunas excursões pelo florido campo da
Literatura
clássica, antiga e moderna, fazer tudo isto, fazê-lo com frequência, reduzi-
lo a pou-
cas páginas e pô-lo ao alcance da multidão é fazer um serviço eminente ao
seu país
e a civilização em geral”. Juntamente com essa busca a realizar, contudo, os
constitucionalistas também reclamavam uma educação francamente nova e
cívica.
Conforme dizia Fragoso, como previamente na educação “não se tem procurado
vulgarizar as noções de tudo que interesa ao homem na qualidade de Cidadão”,
na
verdade seu objetivo deveria ser o de “formar homens, e Cidadões, com os
conhe-
cimentos relativos à Sociedade, e Governo em que vivem (…)”. Citando tanto

54 Lima, 1821b:7; Qualidades..., 1821; Neves, 1995:123-138; João Ignacio da


Cunha, “Registro do ofício
dirgido a Secretaria de Estado dos Negócios de Guerra”, 8 dez. 1821, ANRJ,
códice 323, v. 6, f103; Quaes
são..., 1821:1-2. Para noções de uma imprensa livre no constitucionalismo
português, ver também Pina,
1988:101.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa
para o Rio de Janeiro 145

Rousseau quanto Thomas Paine, Fragoso argumentava que essa educação devia
ser
“pública, uniforme e universal”. Somente desse modo o governo constitucional
seria consolidado, uma vez que, explicava ainda Fragoso, a educação protegia
con-
tra a desordem e a injustiça. “[O] povo quando geme na ignorancia e
desconhece
sua grandeza”, escrevia, “sendo guiado como rebanho, entrega-se
voluntariamente
ao primeiro usurpador em quem veja reluzir algum brilho, e lhe peça
obedencia”.
Essa ignorância, sustentavam os constitucionalistas, havia de fato permitido
ao
absolutismo corromper a monarquia portuguesa. Se a nação portuguesa tivesse
sido instruída “como hoje pode ser, nos princípios do S. XVIII”, alertava um
panfletário, “nunca ella teria consentido em que pacificamente se lhe
tivessem usur-
pado seus direitos”.55
Ao mesmo tempo em que os panfletários contrapunham um
constitucionalis-
mo instruído a um absolutismo bárbaro e ignorante, eles também reivindicavam
que
a educação distinguisse sua “regeneração”, a opinião pública portuguesa e
seu proces-
so deliberativo dos da Revolução Francesa. “[O]s que puzerão em execução o
plano
da revolução não forão os benemeritos filantropos que a tinhão traçado”,
escreveu
José António de Miranda logo após chegar ao Brasil. Em conseqüência,
explicava
outro panfletário, a Revolução Francesa havia se tornado um momento de
anarquia,
quando “o Povo, que não sabia o que era igualdade, nem liberdade, desatou-se
todo
e fez apparecer as scenas pavorosas que ainda hoje o lê-las horroriza”. Em
contraste,
“o Triumpho Maior da Luzitania” foi, conforme sugeria uma gravura alegórica,
“ju-
rar a Constituição/Sem sangue se derramar”. Assim, a educação prometia pôr
fim,
no futuro, à desordem desenfreada no mundo português, enquanto a história da
Revolução Francesa oferecia outras lições sobre como se evitar seus
desonrosos e
prejudiciais “excessos e extravios”. Em verdade, argumentava um jornal
constitucio-
nalista, o que aquela “escola das revoluções” ensinou foi que a soberania
popular
expressava-se melhor por meio de instituições representativas do que das
usurpações
jacobinas do poder pelo povo. Enquanto a soberania residia na nação,
contestavam
os constitucionalistas portugueses, a nação podia apenas exercitar sua
soberania por
meio da representação legal. “Toda Nação elege”, explicava um panfletário,
“por
hum methodo uniforme, certo numero de pessoas de sua livre escolha, para
estes
nomearem fóra do tumulto os Homens que julgarem capazes para formar o Con-

55José Albano Fragoso, “Plano de regeneração política e de renovação de


ensino, elaborado por...”, 29 dez.
1821, ANRJ, códice 807, livro 20, f64v. f67v, f70-f71; O português
constitucional regenerado, apud Pina,
1988:102; Quaes são..., 1821:9.

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146 A independência brasileira

gresso, em que se devem discutir os interesses da mesma Nação, e organizar


as Leis
que segurem a sua felicidade”.56
Essa pugna por educar e “disciplinar novas formas de poder popular” no
bojo
da Revolução Francesa e a negociação de um complexo entendimento daquela
revo-
lução, tanto como um modelo a ser seguido quanto como uma experiência a ser
rejeitada,57 era também evidente na imagem emergente da própria
Constituição.
Tanto o poder quanto a virtude da Constituição derivavam de seu estrito
status de ser
um texto escrito, impresso e disseminado. Como explicava um panfletário,
numa
aparente glosa de Condorcet, “desde a epocha em que a arte de imprimir se
inventou
ja não he por discuções verbaes, nem por theses, ou sermões, que se as
nações podem
illuminar e instruir”. “As palavras passão, e esquecem”, continuava, e “so a
escriptura
as fixa, e lhes da uma duração permanente”.58 Em conseqüência, uma
Constituição
escrita, diferentemente do costume e da tradição, não estava sujeita à
mudança e à
erosão. Por isso, não apenas garantiria a soberania da nação no presente,
mas tam-
bém protegeria, no futuro, contra sua usurpação tanto por absolutistas
quanto por
revolucionários. Essa promessa de permanência de fato esteve em pauta
durante uma
assembléia no Rio em 1821, quando, como testemunharam alguns presentes, a
Cons-
tituição espanhola pareceu encarnar o triunfo do governo constitucional no
presente
sobre um ilusório penhor real de deferência ao constitucionalismo e o que um
reque-
rente descreveu como a incerteza sobre “a nova forma de governo” gerada pelo
anún-
cio da partida de d. João. Adotar a Constituição espanhola até que a própria
Consti-
tuição das cortes estivesse pronta, em outras palavras, desqualificaria as
tentativas
absolutistas de fazer descarrilar nesse meio-tempo o constitucionalismo.
Assim, antes
mesmo da Assembléia Constituinte, alguns residentes adquiriram cópias da
Consti-
tuição espanhola, enquanto outros começaram a fazer aberta campanha por sua
ado-
ção imediata.59
Conforme o reinado de d. João no Brasil chegava ao fim, a política do
governo
representativo e da cidadania nacional assim deslocava a política da
monarquia abso-
luta e da vassalagem. Como a política da transferência da corte, a política
constitucionalista prometia defender a monarquia da corrupção — nesse caso,
a
56 Pereira, 1991:433. Ver também Miranda, 1821:35; Reflexões
filosoficas...,1821:4; “O triumpho maior da
Luzitania”, IHGB, Icon, lata 47, n. 29; O português constitucional, 12 out.
1820, apud Pina, 1988:107;
Dialogo instructivo..., 1821:3.
57 Hunt, 1984:60.
58 Quaes são..., 1821:2 (grifo no original); Condorcet, Des conventions
nationales (1791), apud Hesse, 1991:180.
59 Schultz, 2001:243-247, 262-265.

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A era das revoluções e a transferência da corte portuguesa para
o Rio de Janeiro 147

corrupção do absolutismo do pacto histórico entre o povo e o rei. No


entanto, mes-
mo que os administradores imperiais na nova corte do Rio de Janeiro dos anos
1810
e os constitucionalistas de inícios dos anos 1820 tenham se mantido
afastados da
revolução, censurando publicamente seus efeitos devastadores como resultados
de
traição, imoralidade, impiedade e “filosofia”, juntos também apresentaram
respostas
sistemáticas que procuravam dar conta das novas demandas da conjuntura
revolu-
cionária que então experimentavam. A rigor, as “exigências políticas e
discursos pú-
blicos gerados pela Revolução Francesa”, como Marilyn Morris (1998)
sustentou
para o caso britânico, “ajudaram a assentar as bases do caráter da monarquia
e a
ideologia da justificação” no bojo da transferência da corte. Mais do que
uma sim-
ples reação à revolução, os modos pelos quais os funcionários e vassalos
reais defini-
ram o sentido da monarquia e do império depois de 1807 abriram a
possibilidade de
uma transição da colônia para o império baseada em continuidades e tradições
polí-
ticas e institucionais, mesmo que eles desafiassem aquelas instituições e
tradições e,
ao fim e ao cabo, mudassem seus sentidos.

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Capítulo 4

De homens e títulos: a lógica das interações


sociais e a formação das elites no Brasil às
vésperas da independência

Jurandir Malerba

Sobre alguns homens e seus títulos

Gastos incalculáveis, somas astronômicas despendeu o príncipe regente


d. João
durante sua permanência no Brasil, onde veio tornar-se rei: para instalar no
Rio de
Janeiro a sede do império ultramarino português; para manter-se na peleja
das na-
ções nesse momento de reordenação do equilíbrio de forças mundial das
primeiras
décadas do século XIX; para dar vezo a seus impulsos imperialistas nas
fronteiras
norte e sul do país; para arrefecer os inflados ânimos locais; para suprir
suas sofistica-
das demandas dionisíacas, como teatro e boa música; para festejar o
casamento de
seu herdeiro e sua própria aclamação, entre outros momentos de júbilo. Tendo
che-
gado ao Brasil na maior bancarrota, a pergunta inevitável é a seguinte: onde
captou
fundos para tanta despesa? Achará uma boa percentagem da resposta quem a
pro-
curar no lugar certo; por exemplo, nas inúmeras listas de socorro que
circulavam na
corte para salvar as despesas do Estado e da casa real. As chamadas
“subscrições vo-
luntárias” angariavam junto aos fiéis vassalos fluminenses e portugueses
aqui instala-
dos verdadeiras fortunas, oferecidas generosamente aos cofres públicos.
Tratando-se
de uma sociedade na qual predominavam valores como honra e prestígio, talvez
fizesse bem ao espírito dos subscritores ver seus nomes publicados em
folhetos pela
Secretaria dos Negócios do reino ou na Gazeta, onde se repetiam
incessantemente.
Além disso, é muito provável que tais listas fossem consultadas quando do
despacho
dos pedidos de mercês, que choviam na Secretaria de Estado.

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15:03
154 A independência brasileira

Consultando essas listas de subscrição voluntária que correram a


corte, a Gazeta
do Rio de Janeiro — o semanário oficioso da monarquia fundado logo à chegada
do
rei — e os almanaques da cidade entre 1808 e 1821, cheguei aos nomes dos
indiví-
duos que desembolsaram vultosas quantias com o fim de angariar fundos para
cobrir
as despesas da casa do rei ou as urgências do Estado. Calculo o número total
desses
beneméritos vassalos em torno de mil a 1.500. Desse contingente, selecionei
aqueles
cujas doações foram iguais ou superiores a 150$000 (cento e cinqüenta mil-
réis),
montante suficiente para se adquirir um escravo com 10-15 anos de idade no
início
do período. Esse valor, além de equivaler a uma mercadoria cara e
emblemática na
sociedade brasileira, permitiu-me chegar ao número dos 160 maiores
subscritores
que seguraram a bolsa do Estado durante a estada de d. João no Rio de
Janeiro.
O tratamento dado a esses nomes e números, a fim de identificar a
composição
das elites que gravitaram em torno do rei, inspira-se muito na metodologia
“prosoprográfica” empregada por Lawrence Stone no estudo da composição da
aris-
tocracia inglesa do século XVII, sem contudo ter a pretensão de ser tão
exaustivo
quanto o modelo. Além das listas de subscrição, procurei identificar por
outros meios
os homens mais próximos ao trono, como aqueles vassalos generosos que, em
mo-
mentos festivos, homenagearam seu rei mandando levantar arcos triunfais e
outros
efeitos, e aqueles cortesãos que vieram com d. João, nomeadamente os
principais
títulos. Simultaneamente, procurei traçar o movimento inverso: graças que
solicita-
ram, graças com que foram contemplados, benefícios diversos que obtiveram,
de
distinções honoríficas a cargos na máquina burocrática, sem deixar de sondar
even-
tuais sesmarias com que foram agraciados.1
Depois das improvisações da chegada do séquito real, foi mister
acomodá-lo e
mantê-lo. Por meio de dados coligidos nas caixas da casa real do Arquivo
Nacional
do Rio de Janeiro (ANRJ), minha meta foi tentar estipular equivalências,
para
dimensionar, senão objetiva e precisamente as despesas da casa do rei, seu
custo rela-

1 Para tanto, utilizei-me à farta dos fundos “Graças honoríficas e ordens


honoríficas”, “Sesmarias” e “In-
ventários e testamentos”, que se encontram no Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro. O levantamento
completou-se com a investigação de fundos semelhantes — sobretudo o Registro
Geral das Mercês, nos
Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, em Lisboa, que me permitiram cotejar,
particularmente para os
cortesãos migrados, o que lhes rendeu o ato de fidelidade ao rei que foi a
travessia atlântica. A fonte de
inspiração dessa metodologia encontrei em Stone, s.d., e sua depuração
metodológica, em Stone, 1971.
Burke (1990) também se utilizou dessa metodologia. No Brasil, ver a
meticulosa pesquisa sobre as elites
econômicas do Rio de Janeiro de Fragoso, 1992. Merece destaque de emprego
bem-sucedido do método
prosopográfico em Portugal o estudo sobre os negociantes de grosso trato
portugueses do final do sécu-
lo XVIII constante em Pedreira, 1992.

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De homens e títulos 155

tivo a valores da época e à receita de que dispunha.2 Ao se reconstituir as


folhas sobre
os fundos disponíveis, qual e quanto dinheiro havia, começa a se desenhar a
trama
em que se ligaram a coroa e os homens fortes do Rio de Janeiro, basicamente
os
grandes títulos emigrados e os residentes envolvidos no comércio de grosso
trato.
Uma vez identificados os benfeitores da monarquia, faltava estabelecer as
vias de
mão dupla que ligavam a praça do comércio ao paço imperial; porque, se os
“ho-
mens bons” seguraram a bolsa do rei, não o fizeram por mera generosidade ou
lealdade
vassálica, mas impelidos por uma mentalidade própria de Antigo Regime, a
mesma
que explica o desvio de grandes somas das atividades produtivas para outras
rentistas,
ou, como foram chamadas, “bens de prestígio”.3 Os grandes que socorreram o
rei
buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social, na forma de
nobilitações, títu-
los, privilégios, isenções, liberdades e franquias, mas igualmente favores
com retorno
material, como postos na administração e na arrematação de impostos.

Enfim, o Brasil joanino e seus “homens bons”. Logo no ano da chegada


da
família real e séquito (1808), sob a rubrica de d. Rodrigo de Souza Coutinho
e
Manuel Caetano Pinto, abriu-se a primeira lista de subscrições voluntárias,
que cor-
reu a corte para auxílio das vítimas da guerra em Portugal. Mandou-se abrir
um cofre
“(...) para se receber o mesmo donativo em dinheiro, e de se nomear pessoa,
que
possa encarregar-se de entregar os gêneros aos que forem encarregados por S.
A. R. do
Governo do Reino”.4 Sob o tom de servil dedicação ao soberano, os generosos
signatá-
rios não deixaram de valorizar subliminarmente a importância de seu gesto,
que por
certo foi percebido pelo rei. Trinta e oito deles doaram valores superiores
a 150 mil-réis.
Desses, exatamente a metade encontra-se na listagem nominal dos traficantes
de escra-
vos entre a África e o porto do Rio de Janeiro, atuantes entre 1811 e 1831.5

2 Lilia Schwarcz, em ensaio sobre a biblioteca real contido nesta obra (ver
capítulo 9), também oferece
parâmetros comparativos relativos a valores da época. Remeto também a
Malerba, 2000, para um minucioso
levantamento do tipo e do valor das mais variadas despesas reais. É preciso
dizer que o presente ensaio não é
senão uma bricolagem de partes daquela obra, ligeiramente modificadas.
3 Cf. Fragoso e Florentino, 1993:71 e segs. Também Fragoso, 1992:251-304.
4 Gazeta, 14 out. 1808.
5 A listagem se encontra no apêndice 26 de Florentino, 1995. Não compreende
comerciantes de grosso que
não atuavam no comércio de almas. Na carta de profissão do hábito da Ordem
de Cristo do sargento-mor
Tomás Gonçalves, por exemplo, relata-se que ele fez serviço efetivo na
Guerra do Rio Grande e Santa Catarina,
e que “(...) como hum dos principaes negociantes da praça do Rio de Janeiro
tinha feito entrar avultadas
somas no Real Erario por Direitos e por ley dos emprestimos (...)”. Motivos
suficientes para receber o hábito
com tença efetiva de 12$000 réis. Cf. ANTT — RGM, d. Maria I, livro 30, fl.
158v.

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156 A independência brasileira

Anos depois, quando sinais de felicidade e grandeza se anunciavam aos


habitan-
tes do Brasil, que tinham visto seu país alcançar o status de Reino Unido,
quando se
programava o consórcio de d. Pedro e d. Leopoldina d’Áustria, quando falecia
no
Rio de Janeiro a rainha louca d. Maria I e se preparava para ungir o diadema
o
príncipe regente, o Erário não poderia se encontrar em estado mais precário.
Contabilizem-se nos gastos públicos as mobilizações contra os insurgentes de
Pernambuco,6 causa que interessava diretamente aos fiéis súditos
capitalistas da cor-
te, simpáticos e devotos a seu rei. Foi assim que se abriu nova subscrição,
publicada
na Gazeta de 2 de abril de 1817:

Havendo-se lembrado muitos capitalistas, proprietários, negociantes,


e pessoas de
todas as classes, de subscreverem espontaneamente para as despesas do
Estado na
urgência atual, faz-se público que estão abertas as subscrições nas
Casas de Co-
mércio abaixo referidas:
João Rodrigues Pereira de Almeida
Francisco Xavier Pires
Amaro Velho da Silva
Fernando Carneiro Leão

A 7 de maio noticiava-se estar à venda o Almanaque do Rio de Janeiro


para o ano
de 1817. Dez dias depois saía a primeira relação de subscritores para as
urgências do
Estado, com valores exorbitantes: essa lista somava, em sua primeira edição,
a quan-
tia de 87:180$000 (87 contos e 180 mil-réis). Em menos de dois meses do
início da
lista, perfizeram-se 157:152$970. Os custos da embaixada com que o marquês
de
Marialva pediu, em grande estilo, a mão de d. Leopoldina a Francisco I na
capital
austríaca, conforme se noticiou em 4 de junho na Gazeta, já estavam em boa
medida
cobertos. Inúmeras outras mobilizações semelhantes tiveram efeito por
motivos di-
versos durante a estada da corte joanina no Rio de Janeiro.

Nome aos cabedais

Uma das maiores fortunas da praça mercantil do Rio de Janeiro, Manuel


Cae-
tano Pinto acumulava em 1839, ano de seu falecimento, um montante superior a

6Evaldo Cabral de Mello oferece contribuição inestimável ao debate


historiográfico — questionando toda
uma tradição “saquarema” que construiu uma memória “sulista” da
independência brasileira — em seu
recente A outra independência (2005).

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De homens e títulos 157

280 contos de réis, constituído de bens móveis e imóveis, escravos, artigos


de luxo e
muito dinheiro em dívidas. Sempre presente nos momentos de dificuldade que
afli-
giram a coroa, bem como na gerência de algumas engrenagens da máquina
adminis-
trativa, Caetano Pinto fora nomeado diretor do “Banco Nacional” desde 1809,
re-
cebendo também a propriedade do ofício de escrivão dos ausentes, capelas e
resíduos
da cidade do Rio de Janeiro (1811), e a mercê da faculdade de nomear
serventuário
no ofício de escrivão da provedoria de defuntos (1822). Compôs no quadro das
corporações militares por meio de carta patente que o reformou no posto de
coronel
de milícias (1811) e ascendeu na hierarquia social com mercês várias: uma
comenda
da Ordem de Cristo, para a qual se habilitou em 1802, com dotação de 16$000
(1814); foro de fidalgo cavaleiro da real casa (1818); agraciado com uma
vida na
comenda da Ordem de Cristo, para se verificar em seu filho Luiz Caetano
Pinto
(1821); e cavaleiro da imperial Ordem do Cruzeiro, criada por d. Pedro após
a inde-
pendência.7
José Inácio Vaz Vieira, igualmente presente na subscrição organizada
por Ma-
nuel Caetano em 1808, é um caso emblemático de nobilitação de indivíduos
ligados
a atividades profissionais estranhas ao ethos aristocrático.8 Agraciado com
o hábito
da Ordem de Cristo por decreto de 1811, Vaz Vieira está relacionado entre os
nego-
ciantes com mais de 10 mil quilômetros no comércio marítimo, entre os 15
traficantes
que mais adquiriram negreiros entre 1811 e 1830 e entre as 15 maiores
empresas de
longa distância que participavam de outros setores da economia, responsáveis
por 33%
do tráfico entre 1813 e 1822, 6% das ações na Seguradora Previdente em 1814
e por
boa parte da comercialização de açúcar, charque e trigo do Brasil entre 1802
e 1822.

7 Cf. ANRJ — Inventário de Manuel Caetano Pinto; ANTT — HOC, letra M, maço
28, n. 19; ANRJ —
Ordens honoríficas. Tanto os inventários quanto os registros de mercês do
ANRJ são organizados em ordem
alfabética e não paginados.
8 “Bons costumes, e muito dinheiro/ Fazem qualquer de Vilão Cavalleiro”. Com
esse adágio, Luís da Silva
Pereira Oliveira, em seus Privilégios da nobreza (1806), explicava o costume
recente, que ele aplaude, da
nobilitação como conseqüência da fortuna. Justifica-se por meio de exemplos:
Adágio verificado à letra a favor de oitenta pessoas da ilha de Candia,
a quem a República de Veneza
concedeu Nobreza em paga das grandes somas pecuniárias que elas
forneceram para as despesas da
Guerra de Chypre com o Turco. O que em certo modo tambem sucedeu em
Portugal, no ano de 1800,
conferindo-se o Foro de Fidalgo a quem concorresse com vinte e cinco
mil cruzados para as urgências do
Estado; e o Hábito de Cristo a quem entrasse com cinco mil cruzados no
Real Erário, para com este
subsídio acudir às despesas da Guerra em que estávamos com a Républica
Francesa. Todavia, para que a
riqueza nobilite, deve ser considerável, e antiga...
Quanto significava esse “considerável” não se encontrava prescrito nas
pandectas. A antigüidade, todavia,
haveria de ser confirmada. Cf. Oliveira, 1806, particularmente capítulo XII:
Da nobreza civil proveniente da
riqueza, p. 113-119.

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158 A independência brasileira

D. Rodrigo de Souza Coutinho, que abriu a lista de 1808 com Manuel


Caeta-
no, conta no número dos que acompanharam a família real para o Brasil. Sua
fideli-
dade, porém, não se limitou a esse gesto; foi incontestavelmente um dos
maiores
estadistas do período, influente nas mais importantes agências da coroa
portuguesa
no país. Suas contribuições em dinheiro e públicas deferências ao rei são
indícios
muito diminutos de sua devoção à coroa. Com ele se inicia aqui a indicação
de outro
grupo de interesses na corte do Rio de Janeiro: os recém-migrados, alguns
proceden-
tes das mais tradicionais casas portuguesas. Não que esse círculo fosse
absolutamente
coeso; ao contrário, cisões, intrigas e conflitos declarados havia entre
eles. D. Rodrigo
era abertamente anglófilo, o que de imediato já o indispunha com os setores
da corte
simpáticos à política francesa, como era o conde da Barca. Ministro e
secretário de
Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, expôs-se d. Rodrigo a todo
tipo de
controvérsias, desentendendo-se com diplomatas estrangeiros, políticos e
mesmo re-
ligiosos, como quando se indispôs com o núncio apostólico Calepi. Odiado
pela
rainha, d. Carlota, que o pejava com inúmeros codinomes depreciativos,
angariava
contudo as simpatias do rei. Nascido no Rio de Janeiro, passou grande parte
da vida
na Europa, tendo sido embaixador em importantes cortes. Quando de seu
faleci-
mento, acumulava distinções, mas não fortuna. Se não enriqueceu com a
política,
teve seus serviços retribuídos com dignidades nada desprezíveis: alçado à
grandeza
com o título de primeiro conde de Linhares em 1808, recebeu mercê do mesmo
título para seu filho primogênito em sua vida (1810), bem como o foro de
cavaleiro
fidalgo da real casa, com 100 mil-réis de moradia por mês e um alqueire de
cevada
por dia (1816).9

Vassalos leais

Os sentimentos de vassalagem dos fluminenses não se medem


exclusivamente
pelos muitos e gordos donativos feitos ao Erário Real. Outros registros há
de situações,
festivas sempre, em que os grandes do Rio de Janeiro comungaram com o rei de
sua
felicidade. A própria chegada da família real, todos os casamentos,
batizados, conquis-
9 D. Rodrigo recebeu moradia em espécie do foro de fidalgo cavaleiro:
“(...) 4.286 rs de moradia por mes,
que he do concelho no qual entram os 3.500 rs, que ja tinha de fidalgo
escudeiro, nam se lhe abatendo o
alqueire e meio de cevada, que vencia com o d.o foro por dia...”. Cf. ANTT —
RGM, d. Maria I, livro 28,
fl. 221 v.); comenda de S. Miguel de Vila Boa e de Santa Maria de Verim,
ambas da Ordem de Cristo; o
senhorio de Paiaba e sua administração, tença de 12$000 rs a título de
hábito. Cf. ANTT — RGM, d. João
VI, d. Maria I, vários livros. Cf. ANRJ — Ordens honoríficas. Dados
biográficos em Coutinho, 1908.
Também Luccock, 1975:67.

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08/08/2014, 15:03
De homens e
títulos 159

tas militares e ensejos políticos foram marcados por memoráveis


demonstrações de
contentamento dos fluminenses. Essas manifestações públicas tinham como
estratégia
acionar todos os sentidos dos espectadores. Repetidas salvas de artilharia e
repiques de
sinos das igrejas, artefatos luminosos — as girândolas —, transparências e
fogos de
artifício, ornamentações nas janelas dos sobrados, chuvas de flores e
queimas de incen-
sos eram recursos ordinários. Assim se assistiu aos desembarques da família
real em
1808 e da arquiduquesa Leopoldina em 1817, por exemplo. O caráter
espetacular da
sociedade de corte como reforço do poder real trazia dos circuitos internos
dos palácios
as auto-representações da realeza, que se reiteravam como que em círculos
concêntri-
cos, abrindo-se a um conjunto mais amplo dos que podiam estar, por exemplo,
no
teatro ou na capela ao mesmo tempo em que o rei, ou em círculos de
representação
ainda maiores, como as aparições públicas da majestade — tal como se
assistiu na
aclamação de d. João VI. Essas ocasiões implicavam ordenar o mundo de acordo
com
o lugar destinado a cada um, considerando-se a diferenciação jurídica
herdada do An-
tigo Regime. As procissões, os cortejos e entradas triunfais concorriam para
tais
ordenamentos. Nessas ocasiões era comum assistir-se a exaltadas
demonstrações de
vassalagem e amor ao rei, de que não se pode medir o quanto de verdadeiro
sentimento
e o quanto de adulação. Mas, por meio delas, é possível saber como eram os
sinais
materiais com que os súditos se dirigiam ao soberano, e identificar esses
súditos.
Os intercâmbios mais que simbólicos entre o soberano e os “homens
bons” da
terra começaram já por ocasião do desembarque da família real,
minuciosamente
contado em um libelo anônimo publicado pela Impressão Régia. Tendo-se
relatado
os passos do “luzido efeito”, atenta-se no opúsculo para algumas
“particularidades
notáveis e curiosas” que marcaram o episódio. A primeira delas é a doação
que fez
Elias Antônio Lopes, negociante de grosso trato estabelecido na praça do Rio
de
Janeiro, da quinta da Boa Vista em São Cristóvão, que passou a ser a
residência
oficial de d. João e seu retiro preferido. Diz-se que, quando nela entrou
pela primeira
vez, o príncipe regente confidenciou ao negociante, que o acompanhava: “Eis
aqui
uma varanda real, eu não tinha em Portugal cousa assim”. Não se sabe se ele
de fato
pronunciou semelhante frase, nem se, tendo feito, se expressasse
sinceramente. Mas
consta que “(...) S. A. R., querendo gratificar a Elias Antônio tão generosa
oferta, que
os mesmos fidalgos avaliam em 400 $ cruzados, houve por bem nomeá-lo
Comendador
da Ordem de Cristo, Fidalgo da casa real, e administrador da mesma
Quinta”.10

10 Relação das festas..., 1810.

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15:03
160 A independência brasileira

Era o conselheiro Elias Antônio Lopes um dos maiores argentários da


praça
mercantil do Rio de Janeiro. À época de seu falecimento, em 1815, sua
fortuna
estava aplicada sobretudo em negócios mobiliários, que somavam mais de 34
contos
de réis, dívidas ativas que giravam em torno de 40 contos de réis e, a maior
parte,
investimentos em atividades comerciais diversas, que ultrapassavam os 100
contos de
réis. Seu montante, computados todos os demais bens móveis e viventes,
trastes,
roupas, alcançava a cifra de 235:908$781. Possuía ainda 110 escravos,
avaliados em
quase nove contos de réis. O presente ao príncipe foi um investimento que
certa-
mente não abalou o orçamento do potentado.
A partir da doação da real quinta da Boa Vista a d. João, os laços de
amizade
entre ambos se estreitaram, assim como se fortaleceu a influência do
comerciante.
Acumulou em sete anos de vida ao pé do trono, ou a seu lado direito,
inúmeros
cargos e patentes. Foi deputado da Real Junta de Comércio (1808); recebeu a
mercê
da alcaidaria-mor e do senhorio da vila de São José d’el Rei, na comarca do
Rio de
Janeiro (1810); a da propriedade do ofício de produtor e corretor da casa de
seguros
(1812). Do registro geral das mercês e decretos gerais constam ainda carta
patente
concedendo-lhe o hábito dos noviços da Ordem de Cristo (1810), alvará do
foro de
fidalgo cavaleiro da casa real, decreto do título do conselho de Sua
Majestade (1811),
carta patente promovendo-o a alferes de infantaria de linha (1815).11
Outra ocasião das mais faustosas em que os fluminenses puderam
externar sen-
timentos de fidelidade ao soberano durante seu exílio tropical foi, sem
dúvida, a da
aclamação do rei, em 1818, evento inédito nos fastos das monarquias
européias.
Decorou-se a cidade como a um presépio. Cuidou o Senado da Câmara para que
ela
fosse iluminada e limpa para tão gloriosa função. Seus cidadãos, sozinhos ou
em
corporações, puderam expressar ao monarca sua gratidão, entre outras
maneiras cons-
truindo elementos de arquitetura efêmera, como arcos triunfais romanos,
costume
que não era em absoluto desconhecido dos fluminenses.12 Um vassalo deu-se à
glo-
riosa tarefa de relatar a memória desse acontecimento único, com rara
riqueza de
detalhes, descrevendo cada iluminação, sua forma, dimensões, alegorias,
emblemas e
versos, e os homens que, atendendo prontamente aos avisos do Senado da
Câmara,
levantaram monumentos ao rei.
Não foi ingrato o corpo do comércio da cidade, tão beneficiado pela
primeira
providência importante tomada por d. João em terras brasileiras, como foi a
franquia

11 ANRJ — Cod. 789; ANRJ — Ordens Honoríficas.


12 A aclamação de d. João IV após as guerras de restauração do reino foi
celebrada no Rio de Janeiro com a
mesma euforia dos reinóis. Cf. Da Acclamação..., 1843:343-351. Os artefatos
instrutivos foram vistos no Rio
muito antes da vinda da corte, como nas comemorações pelos esponsórios dos
infantes d. João e d. Carlota
Joaquina de Espanha. Cf. Relação dos magníficos carros..., 1786. Para uma
análise dos arcos triunfais erigidos
quando do desembarque de d. Leopoldina e da etiqueta aplicada à ocasião, ver
Malerba, 2000, cap. 1.

Untitled-1 160
08/08/2014, 15:03
De homens e títulos 161

dos portos.13 Levantou uma portentosa iluminação em forma de arco romano com
a
expressão: “Ao libertador do Comércio”. Todos os que ofertaram
individualmente
uma homenagem ao rei receberam algum tipo de mercê da coroa. Não é
necessária
qualquer sondagem mais aprofundada para se perceber que se tratava de homens
de
posses, mas, como se localizaram os inventários de um número reduzido deles,
tor-
na-se difícil definir com total segurança informações importantes, como a
atividade
profissional de cada um. Entre os que homenagearam d. João estão a baronesa
de São
Salvador de Campos dos Goitacases, Ana Francisca Rosa Maciel da Costa, viúva
do
negociante Brás Carneiro Leão e mãe de Fernando Carneiro Leão, homem de
grande
ascendência sobre os negócios e a sociedade fluminense do primeiro reinado.
Brás Car-
neiro Leão constitui um caso típico de migrante português pobre que fez
fortuna no
Brasil. Mas já antes da chegada da família real, no mesmo ano de sua morte,
o patriarca
dos Carneiro Leão somava alguns distintivos, sobretudo patentes militares.14
As ramificações dessa família confundem-se com as das mais poderosas
de todo
o império. Fernando Carneiro Leão, que recebeu hábito da Ordem de Cristo e
foro
de fidalgo cavaleiro em 1810 e comenda da mesma ordem em 1818, título de
barão
de Vila Nova de São José em 1825, teve uma de suas filhas casadas com um dos
filhos
de d. Rodrigo de Souza Coutinho, primeiro conde de Linhares. Uma das cinco
filhas
de Brás Leão desposou o influente intendente-geral da polícia Paulo
Fernandes Viana,
de cuja prole descende o conde de Baependi. Registre-se que a baronesa de
São Sal-
vador, dignificada com honras de grandeza em 1823, foi a primeira brasileira
a rece-
ber mercê do título, dando praticamente origem à nobreza nativa
brasileira.15

13 Para informações sobre os trâmites políticos desse fato, consultar


Aguiar, 1960.
14 Capitão de auxiliares do Estado do Brasil (1774), tenente de infantaria
(1802) e coronel do 1o Regimento
de Milícias da cidade do Rio de Janeiro (1806). Recebeu também mercê do
hábito da Ordem de Cristo
(1771) e o foro de fidalgo cavaleiro (1802). Cf. ANTT — RGM, d. João VI,
livros 24, 26, 2 e 8. Riva
Gorenstein elegeu a família de Brás Leão como estudo de caso para investigar
o modus vivendi dos negocian-
tes do Rio de Janeiro por dois justos motivos: primeiro por se tratar de
fato da família de negociantes mais
vasta e de maior influência no berço do império; segundo, pelo impedimento
lógico e concreto de trabalhar
sozinho com um número maior de casos, o que seria muito importante de ser
feito num trabalho coordena-
do, em equipe, para entender melhor as redes de interação e interdependência
constituídas nesse período. Cf.
Gorenstein, 1993:189-208.
15 Fernando Carneiro Leão foi ainda feito cavaleiro fidalgo da casa real
logo em 1808, hábito da Ordem de
Cristo em 1810, comenda da ordem de Nossa Senhora da Conceição em 1818 e a
dignidade da ordem do
Cruzeiro em 1822. Entre as graças mais “práticas” com que lhe assistiu Sua
Majestade, foi-lhe permitido o
uso e transações mercantis da firma Carneiro, Viúva e Filhos (1808). Os
postos militares com que foi agra-
ciado foram o de coronel agregado ao 1o Regimento de Cavalaria de milícias
da corte (1815) e coronel
comandante do mesmo regimento (1818). Cf. ANRJ — Ordens honoríficas;
Baependi, 1880:365-384. Um
estudo de caráter genealógico iluminaria muito a história das elites
brasileiras no século XIX.

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08/08/2014, 15:03
162 A independência brasileira

O círculo da corte

Se os sinais de afetação externados pelos grandes do Rio de Janeiro


por motivo
de pública alegria, como ocorreu na aclamação de d. João, são ótimos
indicadores
das interdependências entre os “homens bons” e a coroa, sensivelmente mais
claras
eram as manifestações dos que freqüentavam o círculo mais restrito da corte.
Os
moços e damas do serviço, que assistiam diretamente a família real não
compravam
seus lugares com as moedas correntes na praça. Aqui ainda se respeitou, ao
que tudo
indica, a precedência da linhagem, a nobreza da terra ingressando no paço em
perío-
do bem posterior. As prescrições da mordomia, para o desembarque da princesa
do
Brasil d. Leopoldina, fornecem os nomes mais importantes no serviço à época
glo-
riosa da aclamação de d. João.
A orquestração de tudo ficou por conta do então ministro e secretário
de Estado
dos negócios do reino Tomás Antônio Vilanova Portugal, um dos mais
influentes
homens do governo português no Brasil. Era Tomás Antônio quem despachava com
o rei as portarias a respeito das solicitações de graças de grandes do
reino. Logo ao
chegar, em abril de 1808, fora nomeado chanceler-mor do Estado do Brasil,
ocupan-
do sucessivamente cargos cada vez mais estratégicos na administração: membro
em
exercício do tribunal da mesa do desembargo, da mesa de consciência e ordens
e do
conselho ultramarino sem precisão de nova carta (1808); oficial do registro
na chan-
celaria-mor do reino do Brasil (1816); e ministro e secretário de Estado dos
negócios
do reino (1817). Não consta ter tido seus préstimos retribuídos com títulos,
como
aconteceu com o marquês de Aguiar, mas elevou-se à dignidade de fidalgo
cavaleiro
da casa real e hábito da Ordem da Torre e Espada já em 1808, assim como com
a
comenda da Ordem de Cristo com dotação de 30$000, nos despachos pelo
natalício
do príncipe regente em 1810.16 Movia-se com habilidade na burocracia e não
encon-

16 Antes de sua chegada ao Brasil, contam-se as seguintes mercês acumuladas


no reino: ANTT — Carta, 5
maio 1800: lugar de corregedor da comarca de Vila Viçosa (d. Maria I, livro
30, fl. 296); Alvará de 8 abr.
1807: fidalgo cavaleiro (d. João VI, livro 9(1), fl. 387); Carta de título,
4-?-1807: conselheiro (d. João VI,
livro 9(1), fl. 86v); Carta de 10 mar. 1807: lugar ordinário de
desembargador do Paço (d. João VI, livro 9(1),
fl. 83v); Alvará de 16 dez. 1805: graduado desembargador dos Agravos da Casa
da Suplicação (d. João VI,
livro 7 (1), fl. 309v); Carta de profissão de 2 jun. 1804: hábito (d. João
VI, livro 4(1), fl. 341); Carta de
padrão: 12$000 rs de tença a título de hábito da Ordem de Cristo (d. João
VI, livro 5(1), fl.175), Carta de
28 jul. 1801: desembargador da Casa da Suplicação (d. João VI, livro 1, fl.
105v). Cf. ANTT — RGM,
vários livros; ANRJ — Ordens honoríficas. Sobre o ministro informa Varnhagen
que nascera em 1775,
tornando-se conhecido por trabalhos publicados pela Academia Real de
Ciências sobre a jurisprudência dos
morgados. Era corregedor em Vila Viçosa quando conheceu o príncipe regente,
que o levou para a corte e em
seguida o nomeou desembargador da Relação do Porto com exercício na de
Lisboa, e logo desembargador do
Paço. Sendo o único dessa função que migrara, foi feito chanceler-mor do
Brasil até a morte de Barca (1817),
quando passou a ocupar a pasta do reino. Cf. Varnhagen, 1917:34.

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De
homens e títulos 163

trou obstáculos para receber parecer favorável a sua solicitação de aumento


de venci-
mentos para 200$000 no emprego de contínuo da chancelaria-mor do Estado
(1810),
bem como a mercê de que o alqueire e meio de cevada que tinha por dia com a
moradia de seu foro fosse havido em espécie na real cevadaria (1810).
Inácio da Costa Quintela, que recebeu de Tomás Antônio a
responsabilidade de
passar ordens quanto às salvas das embarcações e fortalezas na ocasião em
que fosse o
príncipe regente a bordo da nau em que aguardava d. Leopoldina durante seu
de-
sembarque, já chegou ao Rio fidalgo escudeiro da real casa e coronel de
infantaria.
Recebeu sucessivamente o foro de fidalgo escudeiro e fidalgo cavaleiro
(1787), tença
de 600$000 que possuía sua mãe, d. Maria Micaela de Sousa (1785), e o título
do
Conselho (1820). Durante os 13 anos em que permaneceu a serviço de d. João,
foi
em vários momentos lembrado por sua real munificência. Em 1808, como aconte-
ceu a todos os que se submeteram às provações do Atlântico junto com o
príncipe,
foi gratificado com a comenda honorária da Ordem da Torre e Espada. Apenas
em
1815 foi lembrado novamente, agora com a comenda da Ordem de Cristo em sua
vida, com dotação de 16$000. Em 1820, foi-lhe feita mercê do título do
Conselho e
em janeiro de 1821 tornou-se ministro e secretário de Estado dos negócios do
reino.
Suas esposa e filhas foram do serviço de suas altezas e da rainha.17

Teses

Uma das teses propostas em A corte no exílio18 é a de que a chegada da


família
real ao Rio de Janeiro em 1808 representou um passo decisivo rumo à
emancipação
política brasileira. A seguir, procurarei demonstrar por que e como foi
assim. Se a
idéia da ruptura não estaria em pauta senão em momento muito avançado dos
deba-
tes nas cortes de Lisboa, o encontro da corte portuguesa com as elites
fluminenses,
juntamente com a instalação da máquina administrativa no Rio de Janeiro
estampa-
ram a idéia de independência nas elites brasileiras como uma alternativa
viável e
factível, após o impacto e os desdobramentos da Revolução do Porto. A
presença da
corte de d. João VI foi para isso aspecto decisivo, ao estabelecer, com sua
lógica curial
resgatada da tradição ibérica e aclimatada ao novo ambiente, a dinâmica do
contato
entre as elites locais e o poder monárquico, agora presente na pessoa do
príncipe
regente, logo ali aclamado rei.

17 ANRJ — Ordens honoríficas; ANTT — RGM, d. Maria I, livros 18 e 22, e


d. João VI, livro 2f2.
18 Cf. Malerba, 2000.

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164 A independência brasileira

A estada de d. João no Rio de Janeiro deflagrou, assim, duas ordens de


transfor-
mações fundamentais na sociedade e na política brasileiras às vésperas da
indepen-
dência. Uma primeira foi promover o reordenamento político-jurídico do país,
mer-
cê do papel de sede da monarquia lusa que a presença do governante atribuiu
à nova
sede do império. A segunda ordem de transformações, intrinsecamente ligada à
ante-
rior, resultou desse encontro inusitado de duas configurações sociais
distintas: a so-
ciedade da corte portuguesa migrada com a família real e a sociedade
fluminense que
a recebeu, e que tinha no ápice de sua hierarquia social as velhas classes
agrárias
ligadas à exportação e os comerciantes de “grosso trato”, envolvidos no
comércio
intercontinental de gêneros tropicais e no tráfico negreiro — e que
estendiam suas
redes por outras atividades, como o abastecimento interno e o sistema de
crédito.
A primeira esteve intimamente ligada e permanentemente condicionada
por
aquela segunda ordem de transformações, a que se operou no habitus de ambas
as
configurações sociais, dos residentes no Rio de Janeiro e dos adventícios.
Os quadros
dirigentes que iriam assumir a ruptura com Portugal, logo após o retorno do
rei,
definiram-se no ambiente da corte, obedecendo aos imperativos dos
cerimoniais e da
etiqueta cortesã. Numa sociedade estamental, altamente hierarquizada, como a
do
Rio joanino, cada indivíduo lutava por se apresentar nesse círculo
rigidamente regu-
lado, à cata de posições, tanto melhores quanto mais próximas ao rei.
Obedecendo à
dinâmica lúdica das sociedades de Antigo Regime, ainda no Rio de d. João
homens
e mulheres comportavam-se efetivamente como atores num drama.19 A própria
hie-

19 É próprio das sociedades de Antigo Regime, que compreende os regimes


políticos absolutistas, conceber
o mundo como um palco, em quaisquer das diferentes “roupagens” que
revestiram o mesmo gênero de corte.
Estilos variados de uma mesma percepção estética do mundo, “barroco ou
rococó, maneirismo ou
neoclassicismo”, em todos se repete a fórmula do Theatrum mundi ou do
Theatrum orbi terrarum. Como diz
Balandier, a apresentação espetacular da vida social, nessas sociedades, não
se separa de uma representação do
mundo, “de uma cosmologia traduzida em obras e em prática”. Cf. Balandier,
1982:14. Balandier concorda
com Huizinga em que a época das monarquias absolutas se caracteriza por ser
uma cultura sub specie ludens:
“O grande ator político comanda o real através do imaginário. Ele pode,
aliás, manter-se em uma ou outra
dessas cenas, separá-las, governar e produzir um espetáculo (dá o exemplo
dos divertissements de Luís XIV,
que era um comediante)”. Entendimento análogo encontra-se em Ribeiro,
1993:18; e Burke, 1994:19. No
Brasil, Affonso Ávila (1971) desenvolveu amplamente a relação barroco e
jogo, e suas formas de teatralidade.
Huizinga (1990:8) identificou o período do teatro laico do século XVII como
o de uma cultura sub specie
ludens por excelência, em que se destacam figuras como Shakespeare, Calderón
e Racine. Nesses autores “(...)
era costume comparar o mundo a um palco, no qual cada homem desempenhava seu
papel”. Os autos
sacramentais são o exemplo mais emblemático da representação do mundo como
palco, sendo seu máximo
expoente Calderón (Calderón de la Barca, 1988). Os críticos espanhóis estão
entre os que mais exploraram
as conexões entre o barroco e a teatralidade. Cf. Orozco Días, 1969; também
Ortega y Gasset, 1958. Uma
problematização teórica e historiográfica sobre o conceito de representações
encontra-se em Cardoso e Malerba,
2000.

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De homens e títulos 165

rarquia social era produzida e reproduzida com base nos papéis


minuciosamente
regulamentados pela etiqueta, que cada um deveria ocupar e cumprir naquela
confi-
guração social. A hierarquia mesma reafirmava-se a partir de sinais externos
que iam
desde os signos materiais que o “ator” social ostentava em forma de
indumentária,
armas que portava, comendas de ordens militares, distintivos de títulos
nobiliárquicos,
até uma complexa economia dos gestos. Sinais que asseguravam aos homens de
alto
coturno os “privilégios, liberdades, isenções, precedências e franquias” que
constam
nas mercês dos títulos e justificações de nobreza.20
Esse era o ambiente social e mental no qual se movimentavam os
diversos gru-
pos de interesse, particularmente a sociedade de corte adventícia e as
classes superio-
res residentes.21 Para explicar a profusão de mercês com as quais d. João
conseguiu
habilmente dominar os grupos antagônicos de sua corte e cooptar a burguesia
residen-
te no Rio de Janeiro, convencendo-a a colocar suas bolsas a seu dispor,
resta observar
em maior detalhe uma das estruturas mentais ancestrais que legitimavam o
poder pa-
triarcal do rei de gerir a distribuição de prebendas a seus vassalos, a
graça divina da
liberalidade dos reis — usada com desembaraço por d. João em seu exílio
tropical.

Da liberalidade

O poder de que eram investidos os reis, de fazer mercê aos súditos que
a eles
recorriam para solicitações as mais diversas, era um dos pilares em que se
sustenta-
vam as monarquias no Antigo Regime. A capacidade do rei de “dar” é condição
de
sua majestade, nunca podendo desviar-se perigosamente para nenhum dos
extremos,
a prodigalidade ou a avareza.22

20 Sobre a representação teatral que resultava da economia dos gestos


regulada pela etiqueta, diz Elias (1987:47,
75): “a sensibilidade do homem dessa época pelas relações entre a posição
social e a organização de todos os
aspectos visíveis do seu campo de atividade, incluindo os próprios
movimentos do corpo, é simultaneamente
o produto e a expressão da sua posição social”.
21 Uma melhor caracterização conceitual dessas elites encontra-se em
Malerba, 2000.
22 Damião de Lemos Faria e Castro (1749:304), em sua Aula de nobreza,
ensina que é no campo de batalha
que se atesta a fortuna, sendo a liberalidade a batalha em que se prova a
majestade: “A força que vence não
reina nos coraçoens; a generosidade que obriga domina nas vontades. O
Príncipe quanto mais dá, mais
recebe; porque para elle tornão os beneficios, que fez aos vassallos. Assim
como o ser Real lhe facilita os
meyos, o exercicio o empenha a que authorize os seus augustos brazoens.
(...) Dádivas, que quebram penhas,
melhor derretem peitos. Que poucos amarião a Deos, se no Ceo não desse
gloria, e na terra as suavidades da
graça! (...) Se os Príncipes não querem ver na Liberalidade o que tem de
plausivel, attendão ao que encerra de
util. As riquezas, que distribuem, multiplicam-se no augmento. São fecundas
sementes, que espalhadas no
campo da Republica, dão cento por hum”.

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166 A independência brasileira

As distinções hierárquicas na sociedade de corte portuguesa


constituíam, na
segunda metade do século XVIII, o principal capital de que dispunha a
monarquia.
A concessão de graças honoríficas, como os títulos e os lugares nas ordens
militares e
religiosas, foi fartamente utilizada pelos monarcas como um capital
simbólico fun-
damental para retribuir a fidelidade de seus vassalos.23 Claro que, em cinco
ou seis
séculos de história, a estrutura e o funcionamento das ordens de cavalaria —
para se
destacar um exemplo emblemático dos quadros da nobreza — e sua relação com a
coroa não permaneceram estáticos. De sua função essencialmente bélica e
conquista-
dora dos primeiros tempos, as ordens de cavalaria não passavam de
instituições
honoríficas à época da União Ibérica. A partir de 1551, o rei de Portugal
“unificou”
as ordens militares, colocando-se como grão-mestre delas todas. Isso coroa
um pro-
cesso que Norbert Elias chamou de “curialização da sociedade guerreira”: a
perda do
poderio militar dos grandes senhores no final do feudalismo, paralelamente à
conso-
lidação do monopólio da violência legítima (via polícia e exército) por um
órgão
centralizado (o Estado). Isso tudo, por sua vez, acompanha um outro processo
civilizacional, aquele vivido pela classe guerreira, que deixou suas grandes
proprieda-
des rurais para viver próxima ao rei, na corte. Esse movimento levou ao
abandono
das atividades bélicas originais da nobreza, agora incluída numa sociedade
regulada
pelo autocontrole e pela etiqueta. Ou seja, uma alteração essencial de seu
ser. Fortunato
de Almeida fala mesmo de uma mudança da missão histórica das ordens que, à
época
de d. Maria I, só permitiam mudanças limitadas em seus estatutos. Essa
mudança de
natureza explica-se em grande medida pela situação dos monarcas peninsulares
na
conjuntura da crise econômica dos Quinhentos, que, atrelando a si a
distribuição
dos hábitos, passaram a utilizá-los como capital para remunerar os mais
variados
serviços. Ainda assim, desde aproximadamente o último quartel do século XVI,
im-
pedimentos outros colocaram-se para o acesso às ordens, que passaram a
exigir qua-

23 Para Pierre Bourdieu (1996:110), o Estado era para o rei o lugar


privilegiado de exercício desse capital
simbólico, entendido como “uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de
capital, físico, econômico,
cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de
percepção são tais que eles podem entendê-
las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor”. O exemplo que
fornece é o do capital jurídico que
reveste a circulação das honrarias: “A concentração do capital jurídico é um
aspecto, ainda que central, de um
processo mais amplo de concentração do capital simbólico sob suas diferentes
formas, fundamento da auto-
ridade específica do detentor do poder estatal, particularmente de seu poder
misterioso, de nomear. Assim,
por exemplo, o rei esforça-se para controlar o conjunto de circulação das
honrarias a que os fidalgos podiam
aspirar: empenha-se em tornar-se senhor das grandes benesses eclesiásticas,
das ordens de cavalaria, da distri-
buição de cargos militares, de cargos na corte e, por último e sobretudo,
dos títulos de nobreza. Assim, pouco
a pouco, constitui-se uma instância central de nomeação”.

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De homens e títulos 167

lidades como a limpeza de sangue, o não-exercício de ofícios mecânicos e


isenção de
bastardia.
Mas mesmo esses novos critérios de distinção, que acompanharam o
processo
de curialização da sociedade guerreira em Portugal, não lograram manter
“puras” as
ordens, que caíram em relativo descrédito por causa de sua vulgarização
distributiva.
Não obstante, continuaram mantendo enorme importância social como arquétipo
de status, por possibilitar vantagens sociais mais amplas que retornos
econômicos
imediatos.24
Ao franquear largamente mercês a seus vassalos, d. João não inaugurou
no Bra-
sil qualquer prática que já não fosse conhecida no reino. Pagou com
honrarias e
distinções a todos que o assistiram. Para contemplar e remunerar a lealdade
dos
serviços relevantes dos que com ele se arriscaram na fuga redentora,
ressuscitou com
um decreto a Ordem da Torre e Espada, instituída por d. João V, com seu
grão-
mestre — sempre o rei de Portugal —, seus grão-cruzes, comendadores-mores e
menores, honorários e efetivos, seus tratamentos específicos,
necessariamente pes-
soas de “merecimentos”, e empregados no real serviço.25 O sacrifício dos
reinóis, vale
lembrar, conferia-lhes, além das honrarias, moradia, comedorias, condução e
servi-
çais para os mais graduados, além de formas de tratamento diferenciadas,
capital
simbólico realmente de “valor” numa sociedade em que o lugar dos indivíduos
era
estabelecido por critérios de honra e prestígio. Com o mesmo penhor, cobriu
de
graças aos ricos argentários brasileiros, que bancaram tanto inúmeras
gestões de seu
governo, quanto a manutenção de sua Casa e suas festas.
Registros contemporâneos permitem entender a lógica dessas dádivas
reais —
ou pelo menos o sentido que lhes atribuíam os “ideólogos” da corte —, como
nesse
Elogio, de 1811:

Era um costume de longo tempo, religiosamente observado pelos nossos


Sobe-
ranos, exercitarem, mais particularmente a sua liberalidade, e a sua
clemencia
para com os seus vassalllos, quando motivos de geral contentamento
desafiavão

24 Almeida, 1928, t. 5, p. 74. Também Olival, 1988:20, 43 e 83. Sobre a


vulgarização distributiva das ordens
em Portugal, ver também Serrão, 1980, v. 5, p. 343. Jorge Miguel Pedreira,
estudando a banalização dos
hábitos na segunda metade do século XVIII em Portugal, a que concorreram
avidamente os negociantes da
praça de Lisboa, lembra que os distintivos se resumiam a uma notoriedade
simbólica, dado o valor irrisório
das tenças: o candidato ao hábito depositava, em geral, “(...) o equivalente
a cinco anos de tença para as
despesas da Mesa de Consciência e Ordens com as indagações necessárias ao
processo de habilitação”. Cf. o
brilhante ensaio sobre os comerciantes de Lisboa, em Pedreira, 1992.
25 Morais, 1872:211.

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168 A independência brasileira

aquellas suas Reaes virtudes. As suas coroaçoens, os nascimentos dos


seus augustos
filhos, os casamentos da Real Familia, e outros igualmente faustos
successos
erão sempre coroados com um grande numero de despachos e de Mercês,
que
levavão ao centro das familias dos vassalos uma parte d’aquela mesma
satisfação
que cercava os chefes do Estado. Bem longe de que as suas
prosperidades lhes
fizessem esquecer as precizoens dos outros, como regularmente sucede
entre os
mais homens, era no meio dos seus maiores transportes de alegria que
elles se
lembravão de honrar um, de enriquecer a outro, e de felicitar a
todos aquelles a
que podíam chegar as suas graças.26

As crônicas confirmam a perpetuidade dessas práticas na corte


fluminense. Bas-
ta passar os olhos pela Gazeta do Rio de Janeiro, pelas Memórias do padre
Perereca,
pelos almanaques da cidade ou por qualquer uma das inúmeras relações de
despa-
chos que se publicaram na corte por ocasião de todos os aniversários reais,
nascimen-
tos, casamentos ou outro motivo que dispusesse o rei a deitar sobre alguns
escolhidos
seu manto generoso,27 como o foram a vitória sobre os revoltosos
pernambucanos de
1817, o casamento do príncipe d. Pedro e a aclamação de d. João VI. Um dos
prin-
cipais cérebros da ambígua política econômica joanina, a qual continha muito
das
doutrinas protecionistas mercantilistas que ruíam e algo da nova pauta
liberal que se
impunha desde as potências européias, o visconde de Cairu expressava em seus
escri-
tos e em sua prática essa mesma dubiedade. Nas Memórias dos benefícios
políticos do
governo de El Rei Nosso Senhor, D. João VI, que escreveu para celebrar o
advento da
aclamação do monarca, Lisboa procura explicar a lógica da distribuição de
graças
honoríficas, que se assentaria, antes de nada mais, no amor à justiça,
patenteado na
singular bondade com que efetuava aquelas distribuições. Tendo como critério
os
méritos individuais, muitas vezes haveria ordenado o rei que se desse
preferência à
capacidade em detrimento da antigüidade, ao mesmo tempo respeitando-se os

26 Costa, 1823.
27 Cf. Os números da Gazeta posteriores aos dias dos natalícios e dos nomes
das pessoas reais, como 4 de
novembro (dia do nome de d. Carlota), 25 de janeiro (aniversário da rainha),
24 de junho (dia do nome de
d. João), 13 de maio (natalício do rei), 4 de julho (natalício da princesa
d. Isabel Maria), 29 de setembro (dia
do nome de d. Miguel), 26 de outubro (aniversário desse príncipe) etc. Ver
também as listas de despachos
publicadas pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, como: Relação
das pessoas..., s.d.; Relação dos
despachos..., 1809. E também Almanaque da cidade do Rio de Janeiro..., 1969,
1965 e 1966, estes últimos
publicados na RIHGB.

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De homens e títulos 169

provectos e envelhecidos no serviço. Os conflitos seriam algo natural na


inexistência
de empregos para todos.28
Uns exultando, outros execrando, fato que não se sublima é a
prodigalidade
com que d. João cumulou de mercês os habitantes do Brasil e particularmente
do
Rio de Janeiro.29 Requeria-se graça para tudo, desde uma galinha para um
súdito
pobre e doente até um título de nobreza. O interessado encaminhava seu
pedido a
uma das secretarias de Estado, onde um alto funcionário o examinava e
encami-
nhava acima com uma análise e um parecer, muitas vezes acompanhados de uma
minuta, que ajudava a esclarecer o rei em seu despacho. Este se fazia quase
sempre
na própria solicitação, o que permite visualizar não só as causas que
levavam os
vassalos aos pés do trono, mas também, nos pareceres favoráveis ou
desfavoráveis
dos secretários do rei, as práticas do costume que os guiavam; e ainda as
redes de
interdependência entre os homens da corte, quando, por exemplo, algum
indeferimento contrariava normas consuetudinárias. Muito provavelmente nem
todas as solicitações saíam das secretarias tendo passado pelas mãos do
monarca,
considerando-se o volume diário delas.
O fato é que d. João superou seus antecessores na prodigalidade com
que, no
dizer de Oliveira Lima (1945:82), obedecendo ao coração generoso e ao
imperativo
de suas finanças, geriu a distribuição de mercês. Alan Manchester (1970:203)
compara
duas estimativas, a de Tobias Monteiro e a de Sérgio Buarque de Holanda,
para chegar
a cifras impressionantes: se, de acordo com o primeiro, computava-se para
Portugal,
desde sua independência até o fim do terceiro quartel do século XVIII, 16
marqueses,
26 condes, oito viscondes e quatro barões, em oito anos d. João criou 28
marqueses,
oito condes, 16 viscondes e 21 barões. A lista das condecorações de
cavaleiros reforça
esses números. Segundo cálculos de Sérgio Buarque de Holanda (1984:32), no
Brasil
de d. João distribuíram-se 4.048 insígnias de cavaleiros, comendadores e
grã-cruzes da
Ordem de Cristo, 1.422 comendas da Ordem de São Bento de Avis e 590 comendas
da
Ordem de São Tiago. A oferta de títulos — barões, viscondes, marqueses,
condes e
duques — a brasileiros seria um pouco posterior. Mas não eram apenas estes
últimos
28 Lisboa, 1818:11 e segs. Pelo menos desde Raízes do Brasil, Sérgio
Buarque expõe as contradições na
aversão de Cairu ao trabalho mecânico e sua opção pela “inteligência”, não
obstante a propalação que empre-
endeu das novas idéias econômicas. Cf. Holanda, 1984, especialmente p. 51 e
segs. Nesse clássico ensaio,
Sérgio Buarque de Holanda demonstra definitivamente os limites do
liberalismo de Silva Lisboa.
29 Cunha, 1969:55.

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170 A independência brasileira

que nobilitavam, e a nobreza brasileira foi semeada com largueza por d.


João, cuja
política era “finória”, na expressão mordaz de Raimundo Faoro.30
Os próprios áulicos reconheceram a abundância com que o príncipe
premiou
generosamente seus súditos, retribuindo com serviços que, muitas vezes,
implicaram
sacrifícios como o da travessia atlântica. Distribuição eqüitativa, justa,
na opinião de
Cairu. Importava valorizar os préstimos ao monarca. Em um elogio necrológico
ressaltou-se a franqueza e a generosidade de d. João, nenhum de seus
predecessores a
ele se igualando na profusão das mercês, na criação de títulos, na
distribuição de
distintivos... mas, em compensação, nenhum outro teria sido tão amado e
venerado
por seus vassalos:

Que muito pois que hum Soberano, que como o Senhor dom João VI se vê
assim
servido e defendido pelos benemeritos filhos de sua nação, seja
facil, franco e
generoso em premia-los? Que restaure huma antiga Ordem Militar, qual
a da
Torre-Espada, invente outra como a da Conceição, com cujas insignias
os conde-
core? Que distribua com profusão Titulos de nobreza e Mercês
pecuniarias? Que
dirija Cartas Regias de agradecimentos e louvores aos Juizes do Povo
das Cidades
do Porto e de Lisboa, ao Reitor da Universidade de Coimbra, aos
Governadores
do Reino, e à Nação toda; e que ufano repita como o Homero
portuguez, e mande
inscrever nas Bandeiras dos Regimentos, que mais se distinguirão na
memoranda
Batalha da Victoria, aquelle honroso conceito:
Julgareis qual he mais excellente
Se ser do mundo Rei, se de tal Gente.31

Considerações finais

Toda essa profusão das mais variadas graças — títulos, comendas, postos
na
administração —, além de conspurcar o próprio valor intrínseco das
distinções, faria

30 Manchester, 1970:203. Segundo Raimundo Faoro (1987, v. 2, p. 259-262), o


número de cavaleiros, grã-
cruzes e comendadores de Cristo chegou a 2.630; os outros são idênticos aos
que apresenta Manchester.
Sobre o estatuto da nobilitação ver Oliveira, 1806:15-119. As diferentes
proveniências da nobreza constitu-
em nove capítulos de sua obra. (seguem-se-lhes as páginas): cap. IV — Da
nobreza civil proveniente das
dignidades ecclesiasticas, p. 33; cap. V — Da nobreza civil proveniente dos
postos de milícias, p. 41; cap. VI
— Da nobreza civil proveniente dos empregos na Casa Real, p. 51; cap. VII —
Da nobreza civil proveniente
dos ofícios da República, p. 57; cap. VIII — Da nobreza civil proveniente
das ciências, e graus acadêmicos,
p. 67; cap. IX — Da nobreza civil proveniente da agricultura, e sua honrosa
profissão, p. 82; cap. X — Da
nobreza civil proveniente do comércio, e sua util profissão, p. 92; cap. XI
— Da nobreza civil proveniente da
navegação, p. 107; cap. XII — Da nobreza civil proveniente da riqueza, p.
113.
31 Brandão, 1828:24-26.

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De homens e títulos 171

semear a disputa e a vaidade entre os que se julgavam ou pretendiam


“beneméritos”,
nativos ou migrantes.32 A expectativa a cada aniversário real, festividade
pública ou
vitória militar exaltava os ânimos, na esperança de promoções, como a que
por tanto
tempo aguardou Joaquim dos Santos Marrocos, reclamando ao pai em suas cartas
o
ver-se por muito tempo preterido em relação a contendores mais bem
apadrinha-
dos.33 O fato inegável é que, usando a imagem forte de Faoro, o governo
acolheu os
fugitivos desempregados “colocando-lhes na boca uma teta do Tesouro”; mas,
igual-
mente, não deixou de reconhecer as diligências com que os nativos,
compulsória ou
francamente, desinteressados ou não, mobilizaram-se para amparar a corte
trânsfuga
e dispor ao príncipe seus préstimos. Nesse processo, foram se redefinindo
novas con-
figurações, estabelecendo-se novas relações de interdependência entre os
grupos que
se apresentaram; configurações nas quais a linhagem e os metais no bolso
pesavam
tanto ou mais que a naturalidade. Afinal, distinguir era um atributo do rei
e, para
quem teve bolsa cheia e mão generosa, não foi difícil fazer brilhar no peito
o metal
das algibeiras. Armitage (1972:9) percebeu esse aspecto decisivo na
constituição do
Estado brasileiro:

À sua chegada ao Rio de Janeiro, os principais negociantes e


proprietários haviam
cedido as suas respectivas casas para o alojamento da real comitiva;
haviam aque-
les desprezado e sacrificado seus interesses particulares por um
desejo de honra-
rem os seus distintos hóspedes; e, quanto permitiam os seus
limitados meios,
haviam ofertado grandes somas de dinheiro. Em recompensa desta
liberalidade,
eram condecorados com as diversas ordens da cavalaria. Indivíduos
que nunca
usaram de esporas foram crismados cavaleiros, enquanto outros que
ignoravam as
doutrinas mais triviais do Evangelho foram transformados em
Comendadores da
Ordem de Cristo.

32 Armitage (1972:8) destaca os reveses da prodigalidade com que d. João


beneficiou “(...) um enxame de
aventureiros necessitados e sem princípios” que acompanhou a família real,
admitidos pela coroa nos diferen-
tes ramos da administração, fonte dos dissídios entre eles e os brasileiros
natos: “Era notável a extravagância
e a prodigalidade da Corte: ao mesmo tempo que a Uxaria por si só consumia
seis milhões de cruzados, e as
suas despesas eram pontualmente pagas, os empregados públicos estavam
atrasados nove e doze meses na
percepção de seus honorários”.
33 Marrocos, 1939. Cairu assim justificou essa fatalidade: “Não sendo
possivel ao Soberano o individual
conhecimento dos meritos de todos os vassalos, em havendo Empregos para
todos os aspirantes às Honras
Publicas, os rivaes tem conflictos, e pretextos de lastimar infortunio,
sendo muitas vezes os mais clamorosos
os que tem mais egoismo que patriotismo. (...) Mas he iniquo que se attribua
à Fonte das Graças as mingoas
que alguns sintão por injuria da sorte, ou por sorpreza dos afoitos, que a
fortuna auxilia” (Lisboa, 1818:13).

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08/08/2014, 15:03
172 A independência brasileira

D. João não foi apenas a única cabeça coroada que se manteve ante o
avanço
napoleônico. Mesmo com toda a sua “brandura”, seu regime de governo pode ser
caracterizado nos moldes das monarquias despóticas, das quais Portugal foi
das últi-
mas a sucumbir na Europa. Se a Revolução liberal de 1820 encaminhou o
sistema
português rumo ao constitucionalismo, o Brasil experimentou ainda muitos
anos de
monarquia absoluta. Mesmo a nossa revolução, a da independência, não
aconteceu,
ou antes, como diz Sérgio Buarque de Holanda (1984:126 e segs.), foi algo
compa-
rável às antigas “revoluções palacianas”, tão familiares aos conhecedores da
história
européia. Para se avançar na compreensão do processo da independência e da
funda-
ção do Estado brasileiro que lhe seguiu, é fundamental levar-se em conta a
constitui-
ção dos quadros sociais da corte do Rio de Janeiro, complexa rede de
interdependên-
cias em que se moviam as diversas classes privilegiadas em jogos de
solidariedade e
adesão ou de hostilidade mortal, além da lógica que governava a
sociabilidade dessas
elites.
Ao final, diria apenas que, considerando-se a situação de Portugal e
do Brasil
nos anos que antecederam a independência e que correspondem à estância da
corte
portuguesa no Rio de Janeiro, não há ainda pesquisa e argumento suficientes
que
autorizem uma afirmação peremptória sobre a existência de qualquer tendência
emancipacionista importante acontecendo antes da chegada da corte em 1808.
As-
sim, a hipótese de que 1808 postergara a independência não soa convincente.
Ao
contrário, parece que a chegada do rei e sua corte ao Brasil deflagrou um
processo
irreversível de mudança, embora durante aqueles anos nenhum ator daquela
cena
histórica soubesse para onde conduzia aquele processo decidido,
efetivamente, nos
anos derradeiros de 1821 e 1822.

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particularidades igual-
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PARTE III

1820/21-1822/23

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Capítulo 5

Os apelos nacionais nas cortes constituintes


de Lisboa (1821/22)

Márcia Regina Berbel

Projetos nacionais e independências

As experiências constitucionais ibéricas do início do século XIX foram


retoma-
das por vários autores nos últimos anos. Os recentes trabalhos sobre o
período da
independência no Brasil incluem importantes análises sobre a experiência
portugue-
sa em 1821 e 1822.1 Paralelamente, vários trabalhos de autores de origem
hispânica
também incluem a reavaliação da primeira Constituinte realizada na
península, em
Cádis, entre 1810 e 1814, sob as invasões napoleônicas.2 A reavaliação da
experiên-
cia gaditana é esclarecedora para a compreensão de todo o processo anterior
às inde-
pendências na América, pois esse foi o modelo constituinte utilizado em
Portugal e
na Espanha durante os anos 1820 e é referência fundamental para o
liberalismo
ibérico durante todo o século XIX.
A grande quantidade de estudos realizados sobre o tema não resulta,
porém, de
uma seqüência de trabalhos conjuntos ou de um amadurecimento preliminar
sobre
os problemas abordados. Mais do que resultado de um trabalho comum, essa
reto-

1 Alexandre, 1993; Lyra, 1994; Neves, 2003; Oliveira, 1999; Souza, 1999;
Vargues, 1997; e Verdelho,
1981.
2 Artola et al., 1991; Caballero Mesa et al., 1991; Castillo Meléndez, 1994;
Chust, 1999; Garcia Godoy,
1998; Garcia Laguardia, 1994; Martinez de Montaos, 1999; Moran Orti, 1994;
Pascual Martinez, 2001;
Rieu-Millan, 1990; e Salilas, 2002.

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08/08/2014, 15:03
182 A independência brasileira

mada indica a necessidade atual de compreender um tema-chave para a formação


dos Estados emergentes da crise dos impérios português e espanhol. Nessas
análises,
as reuniões de deputados peninsulares e americanos são vistas como
fundamentais
para a compreensão de vários aspectos da experiência e do pensamento
político por-
tuguês e espanhol, nas antigas metrópoles e nas colônias, às vésperas das
independên-
cias. Destacam-se os momentos cruciais e fundadores de uma herança que
acompa-
nharia, na península Ibérica e na América, os dilemas da formação dos
Estados
nacionais durante todo o século XIX.
A ausência de contato anterior entre esses pesquisadores ressalta a
coincidência
entre algumas de suas conclusões. Em todos os casos, os autores focalizam os
apelos
nacionais realizados por essas cortes constituintes. Manuel Chust (1999)
destaca a
originalidade do processo iniciado em Cádis, em 1810, que acompanharia as
expe-
riências constituintes de Espanha e Portugal no início da década seguinte:

los representantes americanos en Cádiz esperaban conseguir más


reformas, especial-
mente autonomistas, el legado de los representantes americanos que
estuvieran pre-
sentes en estas Cortes hispanas en la constitución de los nuevos
Estados-nación
durante los años veinte será trascendental. Toda la práxis política de
Cádiz será
trasladada a México, a las repúblicas centroamericanas, Peru, Ecuador
y Chile (...)
La integración en sus propias estructuras nacionales de todo um
imperio se presentaba
sin un precedente histórico, sin modelos que seguir. Los cuatro
estados nacionales
que se habían formado con anterioridad — Países Bajos, Inglaterra,
Estados Unidos
de Norteamérica y Francia — consumaron sus revoluciones sin imperio
detrás.

Sem modelo a seguir, os constituintes reunidos em Cádis tornaram-se


uma nova
referência para o mundo ibérico. Os deputados de 1810-14 ou os de Lisboa de
1821/
22, eleitos na Europa ou na América, lidavam com o dilema de construir a
unidade
de um vasto império, permeado por demandas autonomistas, sobre as bases de
um
Estado que projetavam como nacional.
Desde a segunda metade do século XVIII, os governos portugueses e
espanhóis
avançaram propostas para a unidade dos impérios; elas faziam parte da gama
de
preocupações que caracterizou o reformismo ilustrado nos dois países. As
propostas
de unidade do início do século XIX, porém, continham elementos diferentes:
basea-
vam-se na idéia da soberania nacional expressa por representantes eleitos
que, em
suas reuniões, constituiriam as novas bases políticas e jurídicas para a
unidade. Esse
poder constituinte contaria desde o início com representantes da América e,
assim, a
unidade seria transformada em novo “pacto político”.

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15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 183

Sob o impacto das invasões napoleônicas, reunidos em Cádis ou em


Lisboa, os
deputados europeus e americanos encontraram-se, então, na defesa da
soberania na-
cional. Quais os significados dessa união e das concepções sobre nação e
soberania
são aspectos destacados por quase todos os autores. Quais as implicações
dessas for-
mulações no momento-chave da desintegração dos impérios ibéricos é a
indagação
que move a retomada feita por esses pesquisadores. Deve-se ressaltar que
todos esses
trabalhos observam as reuniões dos constituintes como apelos pela unidade
das na-
ções portuguesa e espanhola. Nesses termos, as reuniões das cortes não são
vistas
como prenúncio ou motivo das independências na América, mas como tentativas
de
manutenção da unidade das diversas partes do império com a adoção de novos
prin-
cípios legitimadores. Tais princípios, baseados na defesa de uma nação
soberana re-
presentada por deputados eleitos, destruíam a antiga relação metrópole-
colônia e
inviabilizavam qualquer projeto para uma possível “recolonização”, tal como
se afir-
mou no Brasil durante os anos de 1821 e 1822.3
O encontro na defesa da soberania nacional estimulou, porém, a
apresenta-
ção de vários projetos diferentes. Todos originavam-se da constatação de uma
pro-
funda crise, vivida diferenciadamente nas diversas partes do império e cuja
supera-
ção se tornava tangível na visualização de um futuro diferente.4 As reuniões
constituintes apareciam, então, como espaços privilegiados para a
apresentação
das propostas relativas a esses projetos, e são importantes indicadores dos
diversos
interesses e perspectivas políticas que marcaram a formação dos Estados
indepen-
dentes da América.
Nas cortes portuguesas de 1821 e 1822, a diversidade dos projetos para
a
unidade do império dividiu os deputados do Brasil e também os de Portugal.
Con-
flitos e tentativas de acordos ocorreram entre representantes de províncias
do mes-
mo reino e de reinos diferentes. Todos pretendiam a unificação de leis,
mercados e
padrões político-administrativos, ou seja, buscavam integrar pela via da
unidade
nacional aquele complexo que o sistema colonial havia soldado anteriormente
e
construir um Estado nacional na dimensão do império. Tratava-se de uma
tarefa
difícil e, até aquele momento, inédita. Diante dessas dificuldades,
divergiram, como
veremos, quanto à forma e aos instrumentos necessários para a realização da
unida-
de desejada.

3 Sobre a origem do vocábulo “recolonização” e sua incorporação pela


historiografia brasileira, ver Rocha,
2001. Uma análise mais detida sobre a utilização da idéia da recolonização
pelos deputados do Brasil nas
cortes de Lisboa poderá ser encontrada em Berbel, no prelo.
4 Jancsó e Pimenta, 2000.

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184 A independência brasileira

A inclusão do Brasil nas cortes portuguesas

Desde 1808 difundira-se em Portugal o sentimento de ser “colônia de


uma
colônia”: invasões napoleônicas em 1807 e 1809, dominação inglesa de 1808 a
1815
e a transferência da corte para o Rio de Janeiro revelavam a perda de
autonomia do
reino. A presença da corte no Rio de Janeiro simbolizava a inversão dos
papéis entre
as partes da monarquia. Essa presença e o crescente movimento comercial nos
portos
da América evidenciavam o papel secundário da economia do reino português,
agora
relegado à sua própria produção.
A derrota de Napoleão Bonaparte em 1815 gerou a expectativa do retorno
do
rei a Lisboa. No entanto, até 1820, d. João VI não mostrava intenção de
voltar. Além
disso, a restauração empreendida pelo Congresso de Viena incluía o
reconhecimento
da transformação do Brasil em reino e o monarca português poderia optar por
qual-
quer das partes da monarquia. A partir de 1816, então, diversos setores da
sociedade
portuguesa, liberais ou não, mostraram sua insatisfação com essas mudanças:
exigi-
ram a volta do rei, a centralidade de Lisboa na administração do império e
apresen-
taram projetos para a restauração da ordem na monarquia.
Essas exigências eram feitas de formas diferentes. Alguns setores da
nobreza do
reino clamavam pela restauração de uma ordem que consideravam perdida:
coloca-
vam o retorno do rei a Lisboa no centro de sua campanha e reivindicavam a
reunião
das cortes tradicionais — baseada na representação do clero, nobreza e povo
—,
interrompida desde 1698. Os diversos grupos liberais, por sua vez,
enfatizavam a
defesa da soberania nacional para a realização dos mesmos objetivos. Para
esses libe-
rais, a nação era desrespeitada nas diversas decisões do monarca e isso
havia provoca-
do a decadência do reino. Consideravam que somente a reunião dos deputados
elei-
tos poderia restaurar uma monarquia que tachavam de degenerada pelo
“despotismo”.
Nos dois casos, a regeneração implicaria também resgatar a tradição da nação
portu-
guesa e seus direitos históricos sobre os domínios coloniais. Direitos que,
na concep-
ção liberal, eram pertinentes ao conjunto dos súditos portugueses: não se
referiam
apenas aos habitantes do Brasil, tampouco aos integrantes da família de
Bragança.
Os descontentamentos explodiram na revolução iniciada no Porto em
agosto
de 1820. A regência de Lisboa tentou chamar as cortes tradicionais, mas,
diante da
negativa dos liberais, acabou estimulando a formação de diversas juntas
regionais em
setembro daquele ano. Formou-se, então, pacificamente, um novo governo
conten-
do os setores mais tradicionais da nobreza do reino associados aos liberais
resistentes
do Porto e demais regiões do país. Os representantes desses dois setores
divergiram,
como é evidente, sobre o papel a ser atribuído às cortes, sobre os
propósitos da sobe-

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Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 185

rania nacional, sobre as relações da nação com o rei e sobre a importância a


ser
atribuída aos domínios coloniais. Em 31 de outubro de 1820, o governo de
coalizão
definiu as primeiras regras eleitorais para a convocação das cortes.
Buscando conci-
liar os diversos setores, os 38 artigos dessas instruções referiam-se apenas
ao reino de
Portugal. Mas as pressões foram enormes para que se adotassem os critérios
espa-
nhóis definidos na Constituição de Cádis, em 1812. Em conseqüência, novas
instru-
ções foram publicadas em 23 de novembro de 1820, seguindo rigorosamente o
mé-
todo previsto pela Constituição espanhola.
A adoção dos critérios espanhóis garantia a vitória liberal, pois
estabelecia a
proporcionalidade da representação relacionada ao total de indivíduos que
integra-
vam a nação portuguesa e descartava definitivamente qualquer menção à
tradicional
divisão da sociedade em três ordens. Definia que “a base da representação
nacional é
a mesma em ambos os hemisférios” e, assim, os habitantes de ultramar eram
incluí-
dos no processo eleitoral.
Além disso, a adoção das definições de Cádis introduziriam a província
como
última instância para a escolha dos deputados. “Províncias” não existiam no
Brasil e
a aplicação de tais critérios elevariam as tradicionais capitanias à
condição de unida-
des provinciais, reconhecendo nelas, também, um certo grau de autonomia na
esco-
lha dos deputados. O texto insistia na unidade e na soberania da nação e não
fazia
qualquer referência à unidade definida em 1815 sob a forma do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves.
Os 100 deputados eleitos em Portugal reuniram-se pela primeira vez em
26 de
janeiro de 1821, iniciando os trabalhos das “Cortes Gerais, Extraordinárias
e Cons-
tituintes da Nação Portuguesa”. Resgatavam, assim, a tradição das antigas
cortes,
mas acrescentavam a elas, em caráter extraordinário, a incumbência inédita
de reali-
zar a função constituinte. Assim, revelando o compromisso entre os vários
setores,
preservava-se a tradição das cortes e incorporava-se a concepção liberal.
Não havia
qualquer representante do reino do Brasil, mas, depois de superadas várias
divergên-
cias, se esperava a adesão dos habitantes da América à Constituinte
portuguesa.
Entre os meses de janeiro e abril de 1821, os deputados eleitos em
Portugal
viveram inúmeras incertezas. Não sabiam que posição seria adotada por d.
João VI,
instalado com a corte no Rio de Janeiro desde 1808. Também não conheciam as
intenções dos demais governantes europeus, que, empenhados na conservação da
ordem estabelecida no Congresso de Viena desde 1815, poderiam vetar uma
monar-
quia constitucional no continente. A expectativa gerou incertezas e, diante
delas, os
liberais chegaram a visualizar a separação do reino europeu das demais
partes da
monarquia portuguesa. O rei poderia decidir pela permanência no Rio de
Janeiro

Untitled-1 185 08/08/2014,


15:03
186 A independência brasileira

com o apoio do governo inglês e, nesse caso, só restaria uma possibilidade


aos cons-
tituintes portugueses: a associação com os liberais de Espanha, empenhados
na re-
construção constitucional desde janeiro de 1820. No entanto, os liberais
portugueses
enfrentavam importantes opositores dentro do reino. Assim, esses meses de
incerteza
fizeram vir à tona todas as divergências acalentadas nos anos anteriores.
Durante esses meses, os liberais avançaram na defesa da soberania
nacional, em
um embate com os demais setores que acompanharia todo o trabalho
constituinte.
No Brasil, porém, a adesão havia acontecido somente no Pará, já em 1o de
janeiro,
antes mesmo da reunião dos deputados de Portugal. Até o mês de março, os
depu-
tados de Portugal trabalharam para obter o juramento do rei à Constituição e
acreditaram que, com isso, obteriam também a adesão das províncias a serem
for-
madas no Brasil.
A vitória liberal no Congresso consolidou-se em 9 de março de 1821 com
a
aprovação das bases da Constituição da nação portuguesa, onde se definia a
sobera-
nia da nação, a divisão dos poderes e demais princípios definidores daquela
vitória.
No Rio de Janeiro, mediante pressão popular, d. João VI já havia jurado
provisoria-
mente a Constituição de Cádis no mês de fevereiro e havia se submetido às
determi-
nações do Congresso. Assim, definidos os princípios para a nova Constituição
e feito
o juramento de submissão do rei, as expectativas com relação às adesões no
Brasil
tornaram-se ainda maiores.
A notícia da adesão paraense chegou às cortes em 26 de março, após a
aprova-
ção das bases constitucionais. Nesse momento, a antiga capitania do Pará foi
trans-
formada em província. Reconheceu-se, então, a junta recém-formada como
governo
local diretamente submetido às cortes de Lisboa. Isso significava a extinção
do antigo
sistema baseado na existência de capitães-generais locais, nomeados pelo
rei, e que se
constituíam em única autoridade nas antigas capitanias durante o período
colonial.
Esperava-se que esse fato acelerasse o pronunciamento das demais capitanias
do Bra-
sil em favor das cortes constituintes.
D. João VI embarcou para Lisboa em 24 de abril, deixando ao seu filho
Pedro
“todos os poderes para a administração da justiça, fazenda e governo
econômico”,
cabendo-lhe ainda resolver “todas as consultas relativas à administração
pública”.5
Instalado no Rio de Janeiro, d. Pedro deveria ocupar-se dos negócios do
Brasil e,
pleno de poderes, estava apto para assegurar a condição de reino às diversas
unidades
da América. No entanto, em Lisboa, os deputados temiam que o governo do
regente

5 Coleção das Leis do Brasil, v. 1.821, parte 2, p. 10.

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15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 187

agisse no sentido de impedir a adesão dos habitantes da América, e isso


estimulou a
ofensiva das cortes para a eleição dos deputados das futuras províncias.
Foi somente no mês de abril, após a notícia sobre o juramento feito
por d. João
VI, que as bases da Constituição foram remetidas para todas as capitanias do
Brasil,
juntamente com as instruções eleitorais. Agora não se tratava mais de
afrontar os
propósitos do monarca. Os deputados de Lisboa enfatizavam, nesse momento,
que a
aceitação das bases e a escolha dos representantes no Brasil teriam um duplo
signifi-
cado: cada capitania seria transformada em unidade provincial reconhecida
pelo go-
verno central e seus habitantes partilhariam das condições de igualdade
definidas
pelo Texto Constitucional em elaboração. Portanto, a adesão permitiria
assegurar
alguns direitos e incluir o Brasil na nação portuguesa que se constituiria a
partir da
reunião das cortes.
A chegada do rei a Lisboa no mês de julho de 1821 anunciou o fim da
primeira
fase dos trabalhos constituintes, pois eliminava as dúvidas sobre as
atitudes do
monarca. No entanto, a chegada da corte atualizou as notícias sobre o Rio de
Janeiro e fez ver ao Congresso um clima de sucessivas rebeliões e de difícil
controle
na capital do reino americano. Paralelamente, os conflitos começaram a
aparecer
em outras regiões.
Na Bahia, a adesão às cortes ocorreu já em fevereiro de 1821, antes do
juramen-
to do rei no Rio de Janeiro, e a formação da junta de governo indicou a
vitória dos
constitucionalistas da nova província. O processo eleitoral baiano arrastou-
se até o
mês de setembro e abriu a possibilidade de um intenso debate entre
partidários e
opositores da ordem constitucional, que sinalizavam para futuros
enfrentamentos
entre as duas alas. Em Pernambuco, o capitão-general nomeado por d. João VI
desde
1817 aderiu à ordem constitucional quando informado do juramento do rei.
Luís do
Rego Barreto encaminhou rapidamente as eleições e o envio dos deputados
pernambucanos ao Congresso de Lisboa. No entanto, o governador havia sido
responsável pela grande repressão ao movimento revolucionário de Pernambuco
em 1817 e, agora em 1821, os prisioneiros detidos naquele ano haviam sido
anis-
tiados pelas cortes e regressavam à província. Apesar da rapidez empreendida
ao
processo eleitoral, os opositores de Rego Barreto passariam a exigir sua
destituição
e a formação de uma junta de governo eleita em Pernambuco nos moldes daquela
formada em 1817.
Em Portugal, os liberais, unidos e vitoriosos nas cortes até aquele
momento,
passaram a se dividir entre duas linhas de atuação para o controle do
território brasi-
leiro: os moderados propunham o envio de tropas para controlar as rebeliões
e o
governo do Rio de Janeiro, e os integracionistas apostavam na total
integração polí-

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15:03
188 A independência brasileira

tica, por via constitucional, para realizar o mesmo controle. A divisão


ganharia novos
contornos com a chegada dos primeiros deputados do Brasil durante o mês de
agosto.

Integracionismo: uma proposta de centralização administrativa

A primeira proposta discutida nas cortes para a integração


administrativa da
América foi apresentada pelo grupo de Fernandes Tomás, o líder da Revolução
do
Porto. Fazia parte de sua política geral, já definida como integracionista,6
a soberania
da nação portuguesa, que dependia da definição de sua unidade. Entendida
como
“una e indivisível”, essa nação era vista como um amálgama dos diversos
segmentos
sociais e regionais que deveriam ser dissolvidos na reunião dos
representantes eleitos
e reunidos nas cortes constituintes. Nessa visão, a partir desse momento, os
deputados
transformaram-se em representantes da nação em sua totalidade: já não
poderiam refe-
rir-se a interesses particulares e/ou regionais e estavam autorizados a
decidir sobre qual-
quer parte ou tema, sempre entendidos como pertinentes ao conjunto da nação.
Essa total integração deveria ser expressa na adoção de um modelo
político-
administrativo que pudesse garantir a unidade nacional. Deveria ocorrer no
Legislativo,
composto por uma única câmara de deputados, que se reuniria em Lisboa e
represen-
taria a nação. Ocorreria também no Executivo, a ser exercido unicamente pelo
rei e
seus ministros, residentes em Lisboa e controlados pelo Legislativo, sem
qualquer
possibilidade de delegação de poderes. E, finalmente, a integração deveria
ocorrer no
Judiciário: todas as últimas instâncias de julgamento deveriam ser
realizadas em Lis-
boa, sob o estrito controle dos representantes da nação.
O projeto integracionista tinha desdobramentos para a América. Esses
itens
foram transformados em proposta de decreto, apresentada ao Congresso em
agosto
de 1821, alguns dias antes do ingresso da primeira bancada eleita no Brasil:
a
pernambucana. O conteúdo do projeto foi discutido durante os meses de agosto
e
setembro e finalmente aprovado em outubro. Contou com a interferência dos
depu-
tados eleitos em Pernambuco e também com a anuência dos representantes
escolhi-
dos no Rio de Janeiro, presentes nas cortes a partir do mês de setembro.
Sinteticamente, a proposta estabelecia que: a) as capitanias do Brasil
seriam
transformadas em províncias; b) os governadores nomeados por d. João estavam
depostos, e juntas provinciais deveriam assumir o controle dos governos
regionais;
c) as juntas já formadas, como a da Bahia e a do Pará, eram reconhecidas
como

6 Alexandre, 1993.

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15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 189

legítimos governos provinciais; d) estes teriam seus presidentes


subordinados às cor-
tes e ao rei; e) não teriam qualquer autoridade militar, e um governo de
armas deveria
ser formado em cada província, também submetido a Lisboa; f ) todos os
órgãos de
governo formados no Rio de Janeiro depois da transferência da corte deveriam
ser
extintos; g) o príncipe regente deveria voltar para a Europa, retirando do
Brasil o
estatuto de uma unidade política com relativa autonomia.7
Os pernambucanos presentes no Congresso subscreveram essa proposta sem
qualquer objeção. Aceitaram a implementação do projeto em Pernambuco quando
ainda estava em fase de discussão preparatória, pois as medidas permitiam a
destitui-
ção do governador Luís do Rego Barreto, que se opunha decididamente à
formação
de uma junta provincial em Pernambuco e voltara a perseguir os recém-
libertos par-
ticipantes de 1817. Os pernambucanos aceitavam, então, um decreto que,
apesar de
impossibilitar a unidade do Reino do Brasil — eliminando as funções
centralizadoras
do Rio de Janeiro e exigindo o retorno de d. Pedro —, afirmava a existência
de
governos provinciais relativamente autônomos e escolhidos no nível regional.
Os deputados pernambucanos, em sua maioria patriotas revolucionários
de 1817,
e fluminenses — a maior parte residente em Portugal e incluindo dois
vintistas —
alinharam-se ao integracionismo nesse primeiro momento. Mas a proposta desse
grupo não foi aceita por todos os deputados de Portugal.
Os integracionistas de Fernandes Tomás já haviam encontrado vários
opositores
antes da chegada dos deputados do Brasil. Na defesa da soberania nacional,
eles
contaram com o apoio de outro grupo liberal: o liderado pelo deputado Borges
Carneiro, eleito em Lisboa. No entanto, os dois grupos liberais não tiveram
a mesma
posição quando se discutiu a proposta organizativa para o Brasil, aprovada
em outu-
bro de 1821. O grupo de Fernandes Tomás apostou na integração político-
adminis-
trativa para controlar as várias partes da América e fazer eleger deputados
em todas as
províncias. Borges Carneiro, no entanto, exigia a força das armas. Todos
inquieta-
vam-se com a presença do príncipe herdeiro no Rio de Janeiro, pleno de
poderes
concedidos pelo rei e a serem exercidos sobre todo o reino. Temiam que d.
Pedro,
submetido a pressões, agisse no sentido de impedir adesões às cortes de
Lisboa. As-
sim, informado sobre os protestos no Rio de Janeiro que antecederam a
partida do
rei no mês de abril de 1821, Borges Carneiro passou a defender o envio de
tropas
para essa província. O método, utilizado posteriormente em Pernambuco e na
Bahia,

7 Diário das Cortes Constituintes, 29 set. 1821.

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08/08/2014, 15:03
190 A independência brasileira

foi adotado para o Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1821, contra o voto e o


parecer
dos integracionistas, que insistiam na via político-administrativa para a
integração.
Assim, a adesão de pernambucanos e fluminenses à proposta
integracionista
teve também a importante intenção de evitar a intervenção armada nas
províncias do
Brasil. As divergências apareceram, porém, quando as reações se fizeram
sentir entre
os habitantes da América. A mais enfática talvez tenha ocorrido exatamente
em
Pernambuco, quando a junta provincial finalmente eleita negou-se a receber o
gover-
nador das armas indicado pelo governo de Lisboa.8 Mas também ocorreu na
Bahia,
onde a indicação do governador das armas acelerou a oposição entre as
facções presen-
tes na província e provocou um enfrentamento armado que se prolongaria até o
ano de
1823.9 Em todos os casos, as divergências entre os integrantes das elites
locais fizeram
explodir insatisfações entre os segmentos livres e pobres da população e
também entre
os escravos, conferindo a essas disputas um caráter de verdadeira guerra
civil.
Além disso, o projeto de outubro de 1821 teve de ser detalhado no
Congresso,
e a necessidade de definir a abrangência dos poderes locais evidenciou
inúmeras dife-
renças entre os deputados do Brasil.
Nesse contexto, a interferência dos deputados eleitos na Bahia
exacerbou as
divergências. Os baianos ingressaram nas cortes quando se realizava o
detalhamento
do decreto nos itens referentes ao funcionamento do Judiciário, e depois de
decidido
o envio de tropas ao Rio de Janeiro. Um dos integrantes da delegação baiana,
Cipriano
Barata, propôs suspender todas as decisões do Congresso referentes à
América, en-
quanto não chegassem os deputados eleitos em suas várias províncias.
Recorreu às
bases da Constituição: elas só se tornariam válidas para os habitantes de
ultramar
quando seus representantes (eleitos nas unidades provinciais) estivessem no
Congres-
so. A proposta contrariava a parte central do projeto concebido pelos
integracionistas,
para os quais qualquer deputado eleito, amparado pelos demais, poderia
responder
pelo conjunto da nação.
Mais à frente, outros dois baianos — Lino Coutinho e Borges de Barros

defenderam a extinção dos poderes do Rio de Janeiro, associando-a à
necessidade de
total autonomia para as províncias no que se referia ao Judiciário. De
acordo com
esses deputados, as últimas instâncias de julgamento deveriam se situar nas
unidades
provinciais, poupando seus habitantes de realizar recursos, praticamente
inviabilizados
pela distância, quando dirigidos a Lisboa ou ao Rio de Janeiro. Dessa forma,
contra-

8 Bernardes, 2002.
9 Wisiak, 2001.

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15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 191

punham-se, mais uma vez, ao projeto integracionista e centralizador de


Fernandes
Tomás e, pelos mesmos motivos, não apoiavam a anuência dos pernambucanos.
Chocavam-se também com as propostas do fluminense Martins Basto, que propôs
no mês de setembro que se mantivesse a Casa de Suplicação no Rio de Janeiro
para os
últimos recursos de julgamento.
Esboçava-se nesse momento — dezembro de 1821 — uma alternativa ao pro-
jeto integracionista, que se apoiava na defesa da autonomia provincial. De
formas
diferentes, pernambucanos, fluminenses e baianos reclamavam a concentração
de
poderes em suas unidades provinciais. Assim, afirmavam os antigos vínculos
com
suas capitanias, agora refeitos no momento da realização de uma nova ordem
políti-
ca. Por isso, afirmavam também o pacto político realizado regionalmente para
a
eleição dos deputados e para a formação das novas províncias. Os
pernambucanos
expressavam o compromisso com os pedidos de afastamento do capitão-general
Rego
Barreto. Os baianos, orgulhosos de sua pronta adesão ao sistema
constitucional e
eleitos após uma longa fase de debates, destacavam a adesão provincial à
Constituin-
te como expressão de autonomia. E, finalmente, os fluminenses defendiam a
perma-
nência do Rio de Janeiro como sede de alguns órgãos centrais do Brasil,
expressando
as demandas pela permanência da cidade como capital do reino.
No Brasil, as tensões aumentaram na Bahia, em Pernambuco e no Rio de
Janei-
ro, evidenciando a insuficiência das propostas constitucionais para
solucionar os con-
flitos nas diversas regiões. Assim, Borges Carneiro passou a acenar com
outra forma
de união, que pressupunha uma relativa autonomia político-administrativa
para as
províncias: a integração de mercados. Esse novo projeto, defendido
posteriormente
pelos moderados, parece ter angariado, pelo menos no início, uma certa
simpatia por
parte dos deputados baianos.
As políticas predominantes no Congresso entre janeiro e junho de 1822
foram
as defendidas pelos moderados e, como veremos mais adiante, discutiram-se
nesse
período propostas de integração econômica.
Em 9 de janeiro, d. Pedro decidiu-se pela permanência no Rio de
Janeiro, contra-
riando assim, frontalmente, o decreto de outubro emitido pelas cortes. Um
conflito
aberto entre os governos do Rio de Janeiro e de Lisboa passaria a dominar o
cenário
político. Dessa forma, as propostas de Borges Carneiro para a integração de
mercados
apareciam como alternativa para a união dos domínios da monarquia
portuguesa.
Essas idéias podiam ser conciliadas com as propostas dos baianos. Para
estes
últimos, as províncias deveriam ter um Executivo eleito, as leis deveriam
ser feitas a
partir da representação provincial e sua aplicação seria de inteira
responsabilidade
das autoridades provinciais. Uma proposta de “confederação nacional” que se
opu-

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15:03
192 A independência brasileira

nha frontalmente à “nação integrada” de Fernandes Tomás, mas que podia ser
conci-
liada com a integração econômica de Borges Carneiro, pois esse projeto
admitia
alguma autonomia para as províncias.
Porém, antes que esse acordo se realizasse, a chegada dos paulistas em
11 de
fevereiro de 1822, munidos do programa elaborado por José Bonifácio de
Andrada e
Silva, alterou mais uma vez o quadro do Congresso de Lisboa. O programa de
São
Paulo enunciaria, então, uma nova forma de unidade para a nação portuguesa,
que
incluiria as demandas pela autonomia provincial.

Programa de São Paulo: integração federativa do império

A chegada a Lisboa da delegação de São Paulo, em fevereiro de 1822,


aumentou
ainda mais a tensão entre os deputados presentes naquelas cortes
constituintes. Ela
foi seguida da apresentação do programa paulista, que, pela primeira vez no
Con-
gresso, se destinava à defesa do estatuto de reino para o Brasil com a
conseqüente
permanência do príncipe d. Pedro como regente.
As bases constitucionais haviam chegado ao Rio de Janeiro em maio de
1821.
O juramento fora exigido por levante de tropas em 5 de junho e, como
conseqüên-
cia, exigiu-se também a formação de uma junta provisória para a província. A
partir
desse momento, a cidade passou a ter dois governos. O primeiro, encabeçado
por
d. Pedro, destinava-se à condução do Reino do Brasil, e o segundo era
formado por
uma junta provisória, que, como as demais, se referia à província.
O governo de d. Pedro era ainda muito frágil nesse momento. Não
contava
com o reconhecimento das juntas do Norte e do Nordeste e tinha a clara
oposição
das cortes. O primeiro passo para o fortalecimento desse governo central
passaria,
então, por seu reconhecimento na região Centro-Sul e, nesse sentido, as
posições
adotadas em São Paulo foram de fundamental importância.
Lá, ainda no mês de junho de 1821, formou-se uma junta para a
província, nos
moldes definidos pelas cortes. Por iniciativa de José Bonifácio de Andrada e
Silva,
uma reunião geral de eleitores manteve o antigo capitão-general na
presidência do
novo governo e indicou Andrada como vice-presidente. Imediatamente, a junta
paulista enviou uma deputação para cumprimentar e reconhecer a autoridade do
príncipe regente. Paralelamente, sob a direção de José Bonifácio, o novo
governo
paulista encaminhou eleições para deputados e elaborou a defesa do Reino do
Brasil
que, em forma de programa político, seria enviada às cortes.
No final de dezembro, antes da partida para Lisboa, chegou ao
conhecimento
do governo de São Paulo o conteúdo do decreto de outubro sobre a formação
das
juntas e a necessidade do retorno de d. Pedro à Europa. Os paulistas
fizeram, então,

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Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 193

um adendo ao programa inicial, concitando d. Pedro a ficar no Brasil e,


utilizando
expressões agressivas, iniciaram uma aberta oposição às determinações das
cortes.
D. Pedro decidiu pela permanência no Rio de Janeiro em 9 de janeiro de 1822
e José
Bonifácio foi indicado para o ministério. Portanto, quando os paulistas
ingressaram
no Congresso, no mês de fevereiro, para defenderem seu programa, o confronto
entre os dois governos já era inevitável.
Nas cortes, a defesa do programa foi feita por Antonio Carlos de
Andrada e
Silva, o mais novo dos Andrada. Opondo-se frontalmente ao decreto de
outubro, ele
argumentou contra os princípios do integracionismo. Teorizou, então, sobre
dois
aspectos já apresentados pelos baianos: a “artificialidade” do pacto que
embasava a
união da nação portuguesa e o princípio federativo da união nacional.
Analisando a
situação em que se encontrava o Brasil, Antonio Carlos salientou diversas
vezes que
a união luso-brasileira só poderia acontecer se obedecesse a esses dois
princípios.10
A argumentação quanto à “artificialidade do pacto” visava destruir a
idéia de
uma união natural, histórica e imutável entre os integrantes da “família
portuguesa
espalhada pelos quatro cantos do mundo”. Aqui, o paulista enfatizava que o
pacto
formador de qualquer nação era obra de homens e por eles também poderia ser
destruído ou refeito. Aí residia o segredo do pacto. Ele não existia a
priori, como
elemento constitutivo da nação portuguesa. A união dos portugueses havia
ocorrido
em função de um pacto anterior, já obscuro na memória, que a própria
revolução do
Porto havia se encarregado de destruir. Um novo acordo realizava-se naquele
mo-
mento, em Lisboa, e a nação nasceria dessa negociação política. O paulista
mostrava-
se partidário da união dos portugueses de “ambos os hemisférios”, mas
acrescentava
que tal união encontrava-se, naquele momento, como um “tecido prestes a se
desco-
ser” e que só um “milagre” de política poderia garantir a integridade. Esse
milagre era
da responsabilidade dos deputados presentes em Lisboa e de sua capacidade
política
para realizar um acordo (ou pacto) que pudesse envolver todas as partes
integrantes
da nação. Esta última afirmativa levava ao segundo ponto da argumentação: o
prin-
cípio federativo.
A idéia da integração de uma nação una e indivisível era refutada,
então, pela
proposição de uma união federativa. Para o paulista, a união das partes da
monarquia
portuguesa envolveria a associação de “corpos heterogêneos”: alguns
compostos por
homens livres e outros por homens livres e escravos e gente de toda cor. A
associação
não poderia, portanto, basear-se na igualdade entre as partes, pois cada uma
delas

10 Essas posições são verificáveis nas discussões registradas no Diário das


Cortes, sessões de 10 a 22 de março.

Untitled-1 193
08/08/2014, 15:03
194 A independência brasileira

necessitaria de legislação específica. Tal reconhecimento levaria à


necessidade da dele-
gação de poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário deveriam ser
representados nas
unidades provinciais e, também, por intermédio do príncipe herdeiro, no Rio
de Janei-
ro. Refutava, assim, a idéia da centralização como condição para a unidade
da nação
portuguesa e, nesse aspecto, utilizou-se freqüentemente do império britânico
como
exemplo. A independência dos Estados Unidos da América foi lembrada como
fantas-
ma separacionista. A nova nação independente teria se formado por força da
intransigência da monarquia britânica ante as reivindicações de autonomia
apresenta-
das pelos norte-americanos. Alertava, porém, para o fato de que a
organização do impé-
rio britânico, pós-independência americana, baseava-se no reconhecimento das
leis locais
em seus domínios e havia incorporado o funcionamento autônomo de suas
partes. Final-
mente, concluía que nenhum rei deixava de ser rei quando delegava poderes em
suas
possessões: esta era uma necessidade, implícita à formação de qualquer
império.
Esses argumentos podiam ser muito atraentes para os deputados baianos,
de-
fensores da total autonomia provincial. No entanto, as primeiras reações
dessa dele-
gação não foram de adesão ao programa paulista. Cipriano Barata e Lino
Coutinho
mostraram-se bastante receosos em aceitar a autoridade do príncipe regente e
a per-
manência do Rio de Janeiro como capital do Reino do Brasil.
Antonio Carlos supunha a autonomia provincial tal como os baianos. No
entan-
to, diferentemente daqueles deputados, o paulista enfatizava a necessidade
de um
poder central no Brasil para a associação desses poderes autônomos. Os
termos refe-
rentes ao federalismo, já abertamente discutido e teorizado em várias partes
da Amé-
rica, jamais foram utilizados nos debates das cortes. Mas é possível pensar
que a
proposta dos paulistas distanciava-se da idéia americana referente à
“confederação”
de estados, acrescentando um tom “federalista” a esse projeto: ideário no
qual se
prevê a necessidade do poder central. De qualquer forma, distanciava-se
ainda mais
da “nação integrada” pensada por Fernandes Tomás.
No primeiro semestre de 1822, o clima de tensão só fez aumentar
durante as
sessões do Congresso. No Brasil, d. Pedro passaria do “Fico”, em 9 de
janeiro, à
convocação da Assembléia Constituinte, em 5 de junho, acirrando
gradativamente a
oposição às cortes. Em Lisboa, a maioria dos deputados respondeu com
ameaças,
envio de tropas, condenação da junta de São Paulo, em julho de 1822, e a
exigência
do retorno imediato do príncipe.
Paralelamente, os deputados do Brasil avançaram em alguns acordos. As
reivin-
dicações pela autonomia provincial foram imediatamente incorporadas ao
programa
elaborado em São Paulo, o que permitiu uma primeira aproximação com os
deputa-
dos de Pernambuco e da Bahia. Restavam, porém, as desconfianças quanto aos
pode-
res conferidos ao príncipe regente no Rio de Janeiro.

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15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 195

Entre fevereiro e junho de 1822 ocorreram várias tentativas de acordo


entre os
deputados do Brasil. Inicialmente, no mês de março, cogitou-se a extinção do
governo
central no Rio de Janeiro e a formação de dois centros governativos: um no
Norte e
outro no Sul, como forma de diminuir as desconfianças expressas pelos
representantes
da Bahia. No entanto, uma medida parece ter sido decisiva para acelerar a
aproximação
entre deputados de Bahia, São Paulo e Pernambuco: o envio de tropas para a
Bahia, em
22 de maio de 1822, contra o voto da maior parte dos deputados do Brasil.
Além disso, d. Pedro convocou a Constituinte do Brasil em junho de
1822. A
proposta apresentada por Antonio Carlos de Andrada e Silva passou a incluir,
também
a partir de junho, a realização de uma Constituinte que, além de legislar
sobre assuntos
específicos do reino, deveria garantir a limitação dos poderes conferidos ao
príncipe
regente e negociar o conjunto das demandas para a autonomia das províncias.
Na sessão de 17 de junho, a inclusão da Constituinte no Brasil foi um
dos itens
defendidos pelos deputados de São Paulo e aprovados por vários deputados do
Bra-
sil. Apresentou-se, nesse momento, uma proposta de ato adicional à
Constituição
portuguesa. Ela veio assinada pelos paulistas Antonio Carlos de Andrada e
Silva e
Fernandes Pinheiro, pelo baiano Lino Coutinho, pelo pernambucano Araújo Lima
e
pelo fluminense Vilela Barbosa. Nesse texto, estabeleciam-se as bases do
acordo para
a união da nação portuguesa, de forma a contemplar os representantes do
Brasil: um
Congresso reunido em Portugal e outro no Brasil; as províncias da África
declara-
riam a que Congresso pretenderiam se integrar; ao Congresso do Brasil
caberia legis-
lar o que lhe dissesse respeito “sobretudo especialmente às províncias”, e
as leis do
Brasil seriam sancionadas e publicadas pelo regente. Vê-se no acordo a
previsão da
Constituinte no Brasil como forma de negociação das autonomias provinciais e
de
controle do governo do Rio de Janeiro.
Antonio Carlos de Andrada e Silva foi incansável na defesa da unidade
da nação
portuguesa, ainda que contando com dois congressos reunidos em reinos
diferentes,
e a adesão dos representantes da Bahia e demais deputados parece ter
ocorrido com
base nesse princípio. Para os deputados de Portugal, porém, a proposta tinha
o signi-
ficado de separação dos dois reinos e de fundação de uma outra nação no
Brasil. O
ato adicional foi recusado pelo Congresso. Um total de 87 votos vetou a
delegação da
regência ao príncipe herdeiro, bem como a realização da Constituinte no
Brasil. Esse
número incluía alguns dos deputados da América,11 mas, entre os derrotados,
estava
a maioria dos deputados do Brasil alinhados com o projeto de São Paulo.

11 Feijó,Lemos Brandão, Fagundes Varela, Luís Paulino e Grangeiro. Diário


das Cortes Constituintes, sessão
de 5 de julho de 1822.

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196 A independência brasileira

Os paulistas haviam conseguido o apoio de boa parte dos deputados do


Brasil,
acrescentando alguns itens ao texto inicial elaborado por José Bonifácio.
Admitiram
uma maior esfera de decisão no nível do Judiciário e do Legislativo
pertinente a cada
província, associando cada uma dessas definições à necessidade de
permanência de
d. Pedro no Rio de Janeiro e à manutenção da unidade do Reino do Brasil. A
men-
sagem era clara: o governo do Rio de Janeiro aceitava a autonomia
provincial, e o de
Lisboa negava-se a fazê-lo. Além disso, a Constituinte no Brasil aparecia
como garan-
tia da limitação dos poderes do príncipe regente e da negociação das
demandas rela-
tivas aos poderes das autoridades provinciais. Esse era o “milagre de
política” propos-
to para o “novo pacto” formador da nação portuguesa. Ele supunha, portanto,
a
união federativa e a delegação de poderes.
A recusa do ato adicional selou a separação entre os deputados de
Lisboa. À
medida que crescia o número de apoiadores do programa de São Paulo, crescia
tam-
bém a antipatia da maior parte dos deputados de Portugal pelos defensores
dessas
idéias. Todas as tentativas de acordo fracassaram e os dois governos
opunham-se
irremediavelmente dentro do império. Os debates seguiram formalmente até
dezem-
bro de 1822, mas, a partir de junho, a separação dos dois reinos já era um
fato
incontornável.
Estes já não eram os tempos de vitória dos integracionistas. Desde
dezembro de
1821, as tensões haviam aumentado na Bahia, em Pernambuco e no Rio de
Janeiro.
Em Lisboa, comerciantes e demais setores sociais pressionavam os
constituintes para
que tomassem atitudes mais enérgicas diante de uma situação que parecia
incontrolável. As propostas de integração pela via institucional, discutidas
durante
esse período, não pareceram solucionar as tensões e o envio de destacamentos
milita-
res passou a ser exigido. Borges Carneiro foi portador dessas pressões
inúmeras vezes
e, além de defender o uso da força militar, passou a anunciar uma nova forma
de
integração: a de mercados. Diferentemente de Fernandes Tomás, mostrava-se
flexível
na negociação sobre os diversos níveis de autonomia político-administrativa
para as
províncias, desde que a integração econômica fosse garantida, pois esta
seria a verda-
deira forma da união nacional. Tratava-se de conceder “grande liberdade” ao
Brasil
na organização política, tendo em vista “estabelecer boas relações
comerciais com os
povos ultramarinos, relações reciprocamente úteis para todo o Reino Unido”,
pois aí
estaria a “grande base da união”. O “pacto social” deveria ser complementado
por
um “pacto comercial”. Assim, enquanto os deputados discutiam as inúmeras
decor-
rências do programa de São Paulo, discutiam também as propostas para a
integração
econômica da nação portuguesa.

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Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 197

Integração econômica: última esperança para a união nacional

As propostas econômicas para o império português foram discutidas


pelas cor-
tes a partir de abril de 1822, em poucas sessões: 1o, 9, 15 e 27 de abril,
13 e 14 de
maio, 17 de junho, 14 e 26 de setembro. O debate iniciou-se quando o
conflito entre
os governos de Lisboa e do Rio de Janeiro já era irreconciliável e foi
interrompido
várias vezes devido às diversas revoltas no Brasil, às respostas freqüentes
às cartas do
príncipe regente, ao debate sobre os procedimentos quanto à Junta de São
Paulo, à
convocação da Constituinte no Brasil e, depois de o grupo integracionista já
ter
declarado sua total ruptura com o projeto paulista, sintetizado no “adeus
sr. Brasil”,
pronunciado por Fernandes Tomás. Tratava-se de um último apelo que,
gradativa-
mente, mostrou-se inútil. Por isso, as discussões foram tensas e permeadas
por amea-
ças e confrontos, que chegaram ao enfrentamento físico.12
Em 10 de janeiro de 1822, as cortes haviam aprovado um parecer que
visava
imprimir maior rapidez à elaboração dos vínculos econômicos e
administrativos a
serem estabelecidos entre os dois reinos, considerando que esta era a melhor
forma
de dissipar os conflitos e acelerar a união entre as partes da nação. A
comissão forma-
da contou com a participação de um único representante do Brasil, o baiano
Luís
Paulino, e obteve o apoio de Borges Carneiro. Apresentou, em 15 de março, um
projeto de decreto para “fixar as relações comerciais entre Portugal e
Brasil”, que
passaria a ser discutido a partir de 1o de abril. Para a elaboração desse
projeto, a
comissão baseou-se em proposta feita pelos comerciantes de Lisboa, em agosto
de
1821, e conservou a maior parte de seu conteúdo.
Apresentada em 15 tópicos, a proposta feita pela comissão estabelecia
que: a) o
comércio entre os reinos seria considerado tal como o de províncias do mesmo
reino
e só permitido a navios de construção nacional; b) nesses casos, os produtos
agrícolas
e industriais seriam isentos de direitos de saída, pagando 1% para
fiscalização;
c) ouro e prata estavam livres de todos os direitos; d) dever-se-iam
estabelecer o mais
rapidamente possível a igualdade e a uniformidade de moedas e do sistema de
medi-
das; e) proibir-se-ia a entrada, em Portugal, de açúcar, tabaco, algodão,
café, cacau,
aguardente de cana ou mel que não fossem do Brasil; f ) inversamente,
proibir-se-ia a
entrada de vinho, vinagre, aguardente de vinho e sal, que não fossem de
Portugal, em

12 A discussão sobre a nomeação do governador das armas para a Bahia, feita


durante esse período, acabou
provocando o enfrentamento físico, incluindo o desafio para um duelo, entre
dois deputados baianos: Cipriano
Barata e Luís Paulino Pinto da França.

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198 A independência brasileira

território brasileiro; g) seria fixado um limite de preço para a entrada do


arroz em
Portugal e do azeite no Brasil; h) os produtos industriais de Portugal
estariam livres
de tributos no Brasil, e, se neste existissem congêneres sujeitos a
tributos, os mesmos
seriam aplicados aos produtos de Portugal (e reciprocamente para os produtos
in-
dustriais brasileiros); i) os produtos estrangeiros pagariam iguais direitos
em Portu-
gal e no Brasil; j) esses produtos poderiam ser levados de uma província a
outra sem
nova tributação; k) os produtos saídos do Brasil em navios estrangeiros
seriam tribu-
tados: o algodão em 10%, todo o resto em 6%, permanecendo a aguardente
isenta de
tributação; l) os mesmos produtos depositados em Portugal e reexportados em
navio
português pagariam 1%; m) a fiscalização seria feita pelas juntas
provinciais; n) a
descarga de produtos só seria admitida nos portos de livre entrada, onde
haveria
alfândega: Belém, São Luís, Fortaleza, Natal, Paraíba, Recife, Maceió,
Bahia, Espíri-
to Santo, Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina, Rio Grande de São Pedro;
o) o
estabelecimento de outros portos só poderia ser feito pelas cortes.13
Os debates ocorreram de forma a contemplar as várias partes da
proposta e,
portanto, evidenciaram vários níveis de divergência. A polarização nas
discussões
ocorreu entre Borges Carneiro e Antonio Carlos. O primeiro, defendendo a
propos-
ta, argumentava pela suspensão dos tratados de 1808: o livre-comércio
estabelecido
naquele momento teria favorecido somente algumas províncias do Brasil e os
diver-
sos comerciantes ingleses. Em sua opinião, a ausência da proteção tarifária
prevista
naquele tratado serviria para arruinar a indústria portuguesa e inibir o
desenvolvi-
mento agrícola das regiões mais desfavorecidas do Brasil. Defendia também o
estabe-
lecimento do privilégio de troca e consumo entre as diversas partes da
monarquia
por meio de tarifas privilegiadas, de forma a criar nexos de
complementaridade entre
as partes da nação. Tal medida não visava inviabilizar a entrada de produtos
estran-
geiros, mas privilegiaria aqueles de origem portuguesa. Argumentava também
que
tais gêneros deveriam ser transportados, exclusivamente, pela marinha
portuguesa,
impedindo todo o tipo de contravenção e/ou investida de outros países.
Concluía,
finalmente, que todas essas medidas serviriam como salvaguarda da indústria
portu-
guesa, nos dois lados do Atlântico, protegendo-a da concorrência com os
fabricantes
de outros países.
Dessa forma, Borges Carneiro entendia estar formando um verdadeiro
merca-
do nacional protegido contra a concorrência estrangeira. Em seu entender,
essa con-
corrência certamente prejudicaria os comerciantes de Portugal, mas também
poderia

13 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 23 de março de 1822.

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Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 199

ser nociva a várias províncias do Brasil. Em sua opinião, todas as teorias


sobre o livre-
comércio jamais teriam auxiliado o desenvolvimento econômico de qualquer
nação:
haviam sido concebidas na Inglaterra, onde o comércio livre nunca teria
existido. A
política de proteção estatal teria feito o sucesso do Reino Unido e dos
Estados Uni-
dos da América e poderia garantir a competitividade futura da economia
portuguesa
plenamente integrada por um “pacto” de complementaridade.
Na visão de Borges Carneiro, o protecionismo adquiria o estatuto de
uma em-
preitada militar e, por isso, previa também o fortalecimento da frota
portuguesa, que
deveria cumprir as funções de transporte e controle. O mercado brasileiro
estaria
aberto aos demais países, desde que sob a estrita vigilância do Estado,
estabelecendo
taxas privilegiadas entre as regiões do império e coibindo as vantagens dos
demais
países. Não se tratava, portanto, de restabelecer a exclusividade portuguesa
no acesso
aos portos do Brasil. O restabelecimento do exclusivo implicaria o
rompimento do
tratado firmado com a Inglaterra em 1810, e este estabelecia sua vigência
por prazo
ilimitado. Todos sabiam, então, que seria impossível afrontar os governantes
britâni-
cos e restabelecer o monopólio.14 Mas é certo que o escalonamento de taxas,
implí-
cito na proposta, tornava mais vantajosa a compra dos produtos brasileiros
nos por-
tos portugueses, bem como a venda dos produtos europeus para as diversas
regiões
da América.
A contraposição feita por Antonio Carlos de Andrada e Silva ao projeto
da
comissão reconhecia que a proposta não implicaria o retorno à condição de
colônia.
Mas, em sua opinião, seria desvantajosa para a maior parte da nação
portuguesa.
Apresentando-se como um defensor do livre-comércio, o paulista recordou as
inú-
meras vantagens implícitas nos tratados de 1808, que teriam feito crescer o
comércio
com a chegada de negociantes de vários países aos portos do Brasil. Tal fato
teria
estimulado a produção e as trocas somente em algumas partes do império, mas
teria
feito crescer as rendas em toda a nação. Por isso, contrapunha-se também à
definição
da prioridade portuguesa no transporte dos gêneros americanos. Em sua
opinião,
14 Um informe do ministro Silvestre Pinheiro às cortes afirmava: “os
brasileiros não receiam a volta à catego-
ria de absoluta colônia quanto ao exercício do seu comércio e indústria.
Isso sabem eles e sabe todo mundo
que é absolutamente impossível; pois o franco tráfico de um como de outro
não depende do arbítrio do
governo: foi uma necessária conseqüência da natureza das coisas e sua
continuação é do mesmo modo inde-
pendente do capricho”. O ministro referia-se, seguramente, ao tratado de
1810 com a Inglaterra, onde se lê
que: “o comércio dos vassalos britânicos nos seus domínios não será
restringido, interrompido, ou de algum
outro modo afetado pela operação de qualquer monopólio, contrato, ou
privilégios exclusivos de venda, ou
de compra, seja qual for, mas antes que os vassalos da Grã-Bretanha terão
livre e irrestrita permissão de
comprar e de vender”. E acrescentava-se que o tratado seria “ilimitado
quanto à sua duração”. Rocha, 2001:25.

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200 A independência brasileira

isso equivaleria a uma nova forma de exclusividade, pois, associada aos


privilégios
tarifários, impediria o acesso direto ao mercado do Brasil. E, talvez mais
grave, a
exclusividade portuguesa no transporte dos gêneros americanos poderia levar
ao es-
trangulamento do fluxo comercial: as províncias do Brasil não possuíam
navios pró-
prios e a frota portuguesa era pequena para atender ao volume de comércio já
em
andamento nas diversas partes do império.
Apoiando-se nas intervenções dos baianos Borges de Barros e Cipriano
Barata,
Antonio Carlos também argumentou contra a preferência na compra dos produtos
de Portugal indicados no projeto: isso inibiria um circuito comercial já em
anda-
mento nas várias regiões do Brasil e, seguramente, afetaria os produtores
proprietá-
rios de terras e escravos. Além disso, escarnecia da “proteção à indústria
portuguesa”
tal como era definida na proposta da comissão, pois ela implicava a
“reciprocidade” de
tarifas e privilégios referentes aos manufaturados dos dois reinos. Contudo,
todos sa-
biam que as manufaturas existiam preferencialmente em Portugal e que a
obrigatorie-
dade de comprar esses produtos acabaria, sem dúvida, impedindo o crescimento
da
indústria no Brasil e condenando-o à eterna dependência. Na expressão de
Cipriano
Barata, “não havia reciprocidade” nessa proposta de complementação de
interesses,
pois a troca que finalmente seria realizada não se referia a produtos do
mesmo gênero.
É necessário ressaltar que, também no nível da integração econômica,
prevale-
ceram as diversas reivindicações por autonomia das províncias. A proposta da
comis-
são deixava o controle do comércio a cargo das juntas provinciais, e Antonio
Carlos
jamais contestou esse aspecto da proposta. Defensor da unidade política do
Reino do
Brasil e da permanência do Rio de Janeiro como capital e sede de todos os
órgãos
centrais da administração, o Andrada não visualizava, porém, qualquer
unidade eco-
nômica do reino. Cada província vincularia sua produção ao mercado
internacional
e seria responsável pela fiscalização das trocas. Antonio Carlos não
propunha qual-
quer política para a formação de um mercado interno no reino. Nesse aspecto,
con-
cordava com Borges Carneiro. Ambos entendiam que a nação a ser integrada,
com
ou sem política protecionista, era ainda a nação portuguesa.
O cerne das divergências encontrava-se, portanto, no tipo de política
econômi-
ca a ser adotado no conjunto do império e no papel a ser exercido pelo
Estado na
implementação dessa política. Antonio Carlos e os demais oradores do Brasil
apre-
sentaram-se como defensores do livre-comércio (leia-se aqui, dos termos do
tratado
de 1808) em contraposição ao protecionismo de Borges Carneiro. No entanto, a
argumentação não parece ter sensibilizado a maioria dos representantes do
Brasil.
Foram poucos os que participaram do debate. Além de Antonio Carlos, o
principal
orador, falaram a seu favor somente os baianos Borges de Barros, Cipriano
Barata e

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Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 201

Lino Coutinho, além do pernambucano Manuel Zeferino dos Santos. As votações


mostram o alinhamento de parte de algumas bancadas: todos os paulistas,
cinco dos
sete pernambucanos e seis dos oito baianos. Assim, revelava-se a
concordância da
maioria dos deputados do Brasil com as propostas feitas pela comissão
apoiada por
Borges Carneiro.
Dessa forma, a última tentativa de integração da nação portuguesa
também mos-
trou-se inviável. A aprovação do projeto elaborado pela comissão alijava os
principais
oradores do Brasil: os protagonistas dos acordos políticos expressos no ato
adicional,
discutido basicamente no mesmo período. Mas as votações referentes aos
princípios
políticos presentes no ato adicional — autonomia provincial e Constituinte
no Brasil
— mostram o alinhamento de um número maior de deputados eleitos no Brasil. A
política econômica defendida pelos paulistas e sustentada por parte dos
baianos e dos
pernambucanos não teve igual sucesso. Talvez seja forçoso concluir que a
abertura dos
portos definida em 1808 não atraía os representantes das demais províncias e
que o
protecionismo prometido por Borges Carneiro era, então, muito mais atraente.

A divisão da nação portuguesa

Em 2 de agosto de 1822, tentou-se ainda mais um acordo. A Comissão dos


Negócios do Brasil apresentou nova proposta de organização política, que
precisava
os termos do ato adicional à Constituição. Tratava-se de uma readequação do
projeto
inicial, na qual se procurava incorporar as discussões realizadas no
Congresso.
Propunha-se então: uma delegação do Poder Executivo no Brasil, formada
por
uma regência de sete membros escolhidos pelo rei; a indicação de nomes para
a
regência durante o processo de eleição das juntas provinciais, contemplando
as pro-
víncias do Norte e do Sul; nomeação de três secretários de Estado para os
Negócios
do Reino, Fazenda, Marinha e Guerra, Justiça e Eclesiástico, também
escolhidos em
lista tríplice indicada pelas juntas; criação de um Supremo Tribunal de
Justiça no
Brasil com as mesmas atribuições do de Portugal e Algarves; impedimento dos
re-
gentes de apresentar nomes para os arcebispados e bispados, prover lugares
do tribu-
nal supremo de justiça, prover postos de tenente-general e superiores,
nomear em-
baixadores, cônsules e agentes diplomáticos, fazer tratados políticos e
comerciais com
estrangeiros, declarar guerra ofensiva e fazer a paz, conceder títulos em
recompensa
de serviços ou alguma outra mercê.15

15 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 2 de agosto de 1822.

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202 A independência brasileira

O novo texto era assinado pelos fluminenses Martins Basto e Vilela


Barbosa,
pelo deputado capixaba João Fortunato Ramos dos Santos e pelo maranhense
Joa-
quim Antonio Vieira Belford. Não havia a chancela de Antonio Carlos,
Fernandes
Pinheiro, Lino Coutinho e Araújo Lima, indicando que os representantes de
São
Paulo, Bahia e Pernambuco haviam abandonado os trabalhos da comissão.
Antonio
Carlos apresentou seus motivos. Ele mantinha sua posição original quanto à
atribui-
ção da regência ao príncipe herdeiro, e por isso não assinara. Salientava
que a descen-
tralização administrativa era uma forma de possibilitar a unidade do
governo, pois
“dela nascem a unidade nas medidas e a celeridade na execução”.16 A unidade,
po-
rém, deveria se dar no interior do reino. Não haveria qualquer contradição
entre as
eleições em âmbito provincial e a regência do príncipe, que, em sua opinião,
deveria
ser controlado por uma Assembléia Legislativa.
Os deputados de Portugal apresentaram outros motivos para a
discordância.
Chegavam às cortes notícias sobre a adesão de Pernambuco ao governo do Rio
de
Janeiro, e em diversas províncias multiplicavam-se os pronunciamentos das
câmaras
municipais declarando seu apoio ao governo do príncipe d. Pedro. Além disso,
todos
conheciam a convocação da Constituinte feita no Brasil durante o mês de
junho e
consideravam que sua realização significava a ruptura com a nação
portuguesa. Assim,
consideravam inútil e desmoralizante continuar legislando sobre as matérias
do Brasil.
Finalmente, a proposta foi derrotada na sessão de 6 de julho. As
votações dos
dias 7 e 8 levaram à aprovação de uma delegação do Executivo no Brasil,
confiada à
regência e composta por cinco membros nomeados diretamente pelo rei, sem
indica-
ção das províncias. Algumas delas, se preferissem, poderiam ficar
diretamente subor-
dinadas a Lisboa. Dessa forma, procurava-se tolerar as autoridades do Sul e
abrir
espaço para o reconhecimento do governo de Lisboa pelo menos no Norte.
Em 26 de agosto, chegou a Lisboa uma nota oficial sobre a convocação
da
Constituinte no Brasil. Nesse momento, os paulistas Antonio Carlos, Feijó,
Vergueiro
e Silva Bueno solicitaram à comissão de Constituição a anulação de suas
representa-
ções, pois “as províncias de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e
algumas outras
estão em dissidência com Portugal”.17
Um parecer negativo da comissão afirmava não reconhecer “governos
dissiden-
tes” no Brasil. Pela primeira vez, então, Antonio Carlos defendeu a
separação dos
dois reinos:

16 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 2 de agosto de 1822.


17 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 27 de agosto de 1822.

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08/08/2014, 15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 203

Eu não quero por isto fazer mal à união (...). A opinião de um


representante de
uma nação pode ser a verdadeira opinião dos povos representados, ou
pode ser
diversa: pode a maior parte dos deputados do Brasil pensar que é
utilíssima a
união do Brasil com Portugal, e podem no entretanto ver que as
províncias não
pensam como eles (...). Se acaso quiserem ser o espelho do espírito
dos povos que
representam, devem dizer, se os povos não quiserem, não queremos
esta união,
ainda que eles individualmente a queiram (...) Mas não creio que se
faça mal à
união com a separação temporária, muito pelo contrário. Juntos,
aqui, somos
como inimigos em linha de batalha.18

E afirmava, referindo-se ao governo de d. Pedro:

Mas, diz-se, ainda lá está a autoridade legítima que é o príncipe.


Legítima, nas
circunstâncias atuais? Não vê o ilustre preopinante as últimas
cartas de S.A. em
que não reconhece este Congresso? Realmente ele é chefe de outro
governo.19

Por todos esses motivos, explicava as razões de seu pedido de


afastamento: “So-
berania é a coleção das vontades dos cidadãos de uma nação” e “a
representação é a
delegação desta soberania”.20
As vontades dos cidadãos que o elegeram já estavam expressas na adesão
a
d. Pedro, ficando sua representação, portanto, invalidada. Seu pedido foi
assinado
por todos os deputados de São Paulo e negado pela Comissão das Cortes.
Em 11 de setembro, Lino Coutinho apresentou uma indicação assinada por
todos os deputados baianos, exceto Luís Paulino, alegando que não poderiam
conti-
nuar a representar sua província, pois a vontade expressa na Bahia era a da
separação,
e que, caso a indicação não fosse aprovada, não se julgavam em condições de
assinar
a Constituição.21
Ainda se decidiria em 19 de setembro que o decreto de d. Pedro
convocando a
Constituinte era nulo, que estavam dissolvidas as secretarias de Estado do
Rio de
Janeiro e que seria considerada criminosa a obediência voluntária àquele
governo.
Uma série de medidas que, todos sabiam, não teriam qualquer valor, mas cujo
obje-
tivo era tentar manter a polarização entre Lisboa e Rio de Janeiro. Na mesma
sessão,
18 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 27 de agosto de 1822.
19 Idem.
20 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 30 de agosto de 1822.
21 Diário das Cortes Constituintes, sessão de 11 de setembro de 1822.

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08/08/2014, 15:03
204 A independência brasileira

muitos deputados do Brasil exprimiram suas dúvidas quanto à futura


assinatura da
Constituição que estava prestes a se realizar.
Apesar de todas essas dúvidas, as assinaturas à Constituição, em 23 e
24 de
setembro, contaram com a quase totalidade dos deputados do Brasil. Apenas
seis
deles não a subscreveram: Antonio Carlos, Feijó, Costa Aguiar e Vergueiro,
de São
Paulo, e Agostinho Gomes e Cipriano Barata, da Bahia.22 Do juramento,
realizado
no dia 30, além dos seis anteriores, também não participaram Lino Coutinho e
Muniz Tavares, apesar de seus nomes constarem entre os signatários da
Constituição.
Em 2 de outubro, Antonio Carlos ainda se dirigiria às cortes para
solicitar auto-
rização para sair do reino. A comissão que se dedicou a analisar o pedido
não divul-
gou qualquer parecer a respeito. Dessa forma, Antonio Carlos deixou Lisboa,
clan-
destinamente, em companhia dos paulistas Diogo Antonio Feijó, Antonio Manuel
da Silva Bueno, José Ricardo Costa Aguiar Andrada, e dos baianos Lino
Coutinho,
Cipriano Barata e Agostinho Gomes. Sem retirar seus passaportes, os sete
deputados
fugiram para Falmonth, utilizando-se de um barco inglês.
Esses episódios finais revelam, então, enormes discordâncias quanto à
unidade
da nação portuguesa, perseguida pelos deputados de Lisboa até o último
momento.
A defesa da nação integrada e centralizada pelos vínculos político-
administrativos
permaneceu como princípio inabalável para a maior parte dos deputados de
Portu-
gal até o fim dos trabalhos. Os vintistas talvez voltassem às suas
prioridades originais:
a unidade e a soberania da nação eram mais importantes do que a conservação
do
conjunto do império. Soberania, portanto, era entendida como uma unidade
inte-
gral que só se expressaria pela total centralização dos poderes da nação em
sua “mãe
pátria”: matriz geradora e preservada em Portugal. Essa prioridade esboçava-
se em
seus pronunciamentos desde 1815, quando a propaganda para a afirmação dos
prin-
cípios liberais contrapunha-se abertamente à definição do Brasil-Reino e à
perma-
nência da corte no Rio de Janeiro. Cogitava-se, desde então, a separação das
partes da
monarquia portuguesa e priorizava-se a afirmação da soberania nacional,
ainda que
esta não se referisse ao conjunto dos domínios do império. Desse ponto de
vista, esta
seria a única possibilidade para a regeneração do antigo reino europeu.
De seu ponto de vista, Antonio Carlos de Andrada e Silva sintetizou os
motivos
que teriam levado à separação dos dois reinos: o “milagre de política”
baseado no
respeito à diversidade das leis e dos povos da nação portuguesa havia sido
rejeitado

22 Ver texto constitucional e assinaturas, publicados no Diário das Cortes


Constituintes, sessão de 30 de
setembro de 1822.

Untitled-1 204
08/08/2014, 15:03
Os apelos nacionais nas cortes
constituintes de Lisboa 205

pelo Congresso e, como conseqüência, a dissociação entre as suas partes


tornara-se
inevitável. De acordo com as posições por ele defendidas durante todo o
trabalho
constitucional, as tentativas de integração, uniformização das leis e
centralização ad-
ministrativa teriam acelerado o processo de esfacelamento de um tecido
apodrecido
pelo tempo.
Mas, apesar dessa avaliação do deputado paulista, a maioria dos
deputados do
Brasil assinou e jurou o Texto Constitucional. Além disso, o próprio Antonio
Carlos
declarou-se favorável a uma “separação temporária” entre as partes da
monarquia.
Na verdade, a presença do príncipe herdeiro no Rio de Janeiro, ainda que
aclamado
como imperador do Brasil, acalentou por muito tempo a esperança de
reunificação
dos antigos reinos da monarquia portuguesa.
Os motivos para a proclamação da independência e para sua posterior
consoli-
dação acumulavam-se fora das Cortes Constituintes. No interior dessa
assembléia,
apesar das inúmeras divergências, todos os deputados do Brasil lutaram pela
manu-
tenção da unidade da nação portuguesa.
José Bonifácio de Andrada e Silva talvez tenha conseguido justificar a
separação
dos dois reinos em manifesto dirigido às nações amigas no mês de agosto de
1822.
Afirmando, em termos inéditos, a existência de uma nação brasileira, ele
avaliava a
política das cortes com relação às províncias do Brasil: “quais foram as
utilidades que
daí vieram para a Bahia? O vão e ridículo nome de província de Portugal e o
pior, os
males da guerra civil e da anarquia (...)”. Apresentava, então, uma solução
para a
“anarquia”: “só um governo forte e constitucional” poderia coibir “as
facções inter-
nas”. E alertava ainda as nações amigas: “sem este centro comum, todas as
relações de
amizade e comércio mútuo entre o Reino do Brasil e países estrangeiros
teriam mil
colisões e combates”.23
Apesar das declarações, o governo do Brasil era ainda muito frágil.
Apoiava-se
sobretudo em articulações políticas e grupos de interesse instalados no
Centro-Sul
do Brasil: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Nas outras províncias,
as adesões
ocorreriam em meio a enfrentamentos que, muitas vezes, chegaram à luta
armada.
Em algumas delas, a dissidência era latente no final de 1822 e as medidas
adotadas
mostravam a necessidade de controle da “anarquia”. Expedições dirigidas por
expe-
rientes mercenários internacionais eram enviadas para as regiões de maior
turbulên-
cia: lorde Cochrane encarregou-se do Maranhão e do Pará e o francês Labatut
se em-
penharia no controle da Bahia, onde os enfrentamentos seguiriam até o ano de
1823.

23 Silva, 1961.

Untitled-1 205 08/08/2014,


15:03
206 A independência brasileira

O Império do Brasil levaria ainda algumas décadas para se consolidar.


Mas, no
momento da proclamação da independência, os acordos realizados em Lisboa
pelos
deputados de algumas províncias fundamentais para o Brasil auxiliaram em uma
primeira tentativa de unidade. Baseavam-se na existência de uma assembléia
consti-
tuinte e no respeito à autonomia provincial, como já foi mencionado. Uma
formula-
ção que, apesar de atraente, levaria para o Rio de Janeiro todos os
conflitos interiores
a cada uma das unidades provinciais. Como se sabe, a Constituinte do Brasil
insta-
lou-se em maio de 1823 e foi fechada pelo imperador em novembro do mesmo
ano,
rompendo o acordo firmado em Lisboa. Mais uma vez, alegou-se a necessidade
de
fortalecer o poder central para controlar as unidades provinciais. Porém,
tratava-se
agora do governo central do Império do Brasil.
Os atrativos oferecidos pelo governo do Rio de Janeiro referiam-se às
possibili-
dades de organização interna do reino. Os motivos para a “anarquia”
associavam-se à
permanência da ordem escravista: tema jamais discutido pelos deputados do
Brasil
presentes no Congresso de Lisboa. O silêncio revelava o verdadeiro ponto de
encon-
tro entre os seus interesses: manter a escravidão e preservar a ordem
social. A associa-
ção dessas duas pretensões justificava a instabilidade dos governos
provinciais. Para-
lelamente, a afirmação dos poderes locais e as dificuldades para estabelecer
acordos
com o governo central revelavam a imperiosa necessidade de dispor dos
instrumen-
tos legais, inclusive das armas, para o controle das tensões sociais
existentes em cada
província do Brasil. As negociações para a obtenção total ou parcial desses
instru-
mentos acompanharam a formação do Brasil império durante todo o século XIX.

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Untitled-1 208
08/08/2014, 15:03
Capítulo 6

Questões de poder na fundação do Brasil:


o governo dos homens
e de si (c. 1780-1830)

Iara Lis Schiavinatto

O amor da pátria, que me


anima e inflama.
A grande empresa me
convida e chama.
(O
Espelho, 18 out. 1822)

H á um interessante debate histórico-historiográfico em curso a


respeito da com-
preensão do Antigo Regime, seus deslocamentos, rupturas e
continuidades em
relação ao liberalismo constitucional de fins do século XVIII e início do
XIX. Não se
trata apenas do que se pode considerar uma “fase de transição”, idéia que
suscita
reservas conceituais, ou de se ater única e exclusivamente à noção de crise
do antigo
sistema colonial.1 Debate-se a natureza do Antigo Regime nos moldes
ensejados
pelos estudos ibero-americanos, nomeadamente de Antonio Manuel Hespanha,
Chiaramonte, François Xavier Guerra, e mais recentemente sistematizado em
pro-
posição historiográfica de Fragoso, Bicalho e Gouvêa.2
Dessa discussão, destacaria as relações espiraladas entre o centro e
as localida-
des, em uma economia do bem comum que comporta uma economia moral do dom,
engendrando uma hierarquia social por princípio excludente. Grosso modo, o
centro,
encarnado pela figura real e pelo sistema de corte, significa uma noção de
governabi-
lidade real que imbrica o mando fiscal, a distribuição da justiça, a
autoridade militar,

1 Nuno Gonçalo Monteiro (2001) pondera: “Se o tráfico de escravos e o


esforço de imposição do exclusivo
comercial metropolitano sobre o mercado brasileiro constituíam dimensões
essenciais do antigo sistema
colonial, a verdade é que estão muito longe de esgotar a multiplicidade das
suas relações, nem chegam para
explicar a razoável eficácia e durabilidade dos mecanismos de integração do
Império”.
2 Ver Fragoso, Bicalho e Gouvêa, 2001. Acho elucidativo sobre a noção de
política em jogo, nesse debate
historiográfico, Schaub, 1994. Luciano Figueiredo (2001) avançou nesse
debate historiográfico.
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210 A independência brasileira

a compensação por privilégios. A localidade, por sua vez, assume certos


formatos no
império português, marcado pela descontinuidade territorial e por forte
continuida-
de jurídico-administrativa. Isso conferiu ao império como um todo uma
notável
plasticidade, pela semelhança e permanência. A localidade reiterava esse
modo de
governar, com relativa ou maior autonomia, com uma noção de autogoverno
regula-
do, dependendo das conjunturas, das tensões e negociações entre as várias
instâncias
e protagonistas jurídicos, administrativos, mercantis e militares, que
mediavam o
centro e a localidade, explicitando a noção de relações espiraladas nesse
império
transoceânico. Os laços entre centro e localidades eram ritmados também
pelas rela-
ções regionais estabelecidas entre as localidades, as estratégias de
negociação com o
monarca, a gestão das informações dentro do império e a operacionalização da
vontade
real, a fim de manter a mesma ordem teológica-política que enredava o
governo de si,
da casa e dos homens, enfatizando-se aí a centralidade do centro.3 Dessa
maneira, a
centralidade encarnada pela corte comunicava-se com todas as localidades,
numa espé-
cie de atributo universal, produzia relações de dominação e presumia certa
maleabilidade
para enfrentar o conflito e a negociação, assegurando a coesão do império.
Entre a localidade e o centro, reconhece-se o papel capital
desempenhado pelas
câmaras. Agregavam os homens bons do lugar, sem necessariamente arregimentar
ape-
nas os nobres de sangue, mas também os de feito, os “valorosos” que
implementaram
a ação e a continuidade da conquista, defenderam a monarquia portuguesa “à
custa
de nosso sangue, vidas e fazendas”, como explicou Evaldo Cabral de Mello
(1997).4
As câmaras constituíram, nessa medida, um instrumento fundamental de
integração
política da colônia e de suas elites no império, estabelecendo vínculos de
interdepen-
dência e complementaridade entre a coroa e essas elites.
Essa relação espiralada entre o centro e as localidades contrasta com
a dualidade
metrópole × colônia.5 A localidade não é mera cópia do centro, embora seja
hierarqui-
camente atrelada à centralidade da coroa. Também se afasta da noção, às
vezes ingê-
nua, de que a colônia era sacrificada em prol da metrópole, versão ainda
corrente nos
livros didáticos. Por outro lado, essa relação espiralada força a avaliar o
teor transa-
3 Monteiro, 2001.
4 A partir desse custo “tirava-se o corolário da existência de um pacto
entre a Coroa e a ‘nobreza da terra’, o
qual teria estabelecido em favor desta um tratamento preferencial, um
estatuto jurídico privilegiado, um
espaço de franquias, que a pôs ao abrigo das ingerências reinóis,
legitimando sua hegemonia sobre os demais
estratos sociais da capitania e, em especial, sobre o comércio português
nela estabelecido” (Mello, 1997:127).
Tratava-se de uma vassalagem de cunho contratual.
5 Russell-Wood, 1998.

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Questões de poder
na fundação do Brasil 211

tlântico da cultura política entre 1780 e 1830, quando o eixo de sustentação


do
império residia no complexo atlântico.6 Essa economia política de
privilégios, nos
termos de Fragoso, Bicalho e Gouvêa (2001), mediava as relações entre os
protago-
nistas sociais em uma sociedade bastante hierarquizada, na qual a realeza
portuguesa
recompensava com mercês, graças, arrendamentos, serventias, honras,
privilégios,
aqueles que atuavam nas modalidades jurídicas, administrativas, militares e
mercan-
tis do império. Na localidade, isso aparecia bastante no âmbito da câmara,
onde o
homem bom gozava da condição de cidadão dessa res publica, ao manejar
negócios,
compromissos familiares e de favorecimentos, de amizade e de agir em nome de
sua
majestade, inclusive quando rivalizava com oficiais, em geral reinóis,
enviados pelo
rei. Na localidade, em tese, buscava-se celebrar a ordem social referida ao
rei e que o
reverenciava, a despeito de sua ausência nos territórios ultramarinos. Isso
engrande-
cia a ação do vassalo, que precisava se comportar em consonância com os
ditames da
arte de governar, mesmo longe do exemplo severo, paternal e justo do rei.
Conforme
entendem Fragoso, Bicalho e Gouvêa (2001:75):

Através da distribuição de mercês e privilégios, o monarca não só


retribuía o ser-
viço dos vassalos ultramarinos na defesa dos interesses da coroa e,
portanto, do
bem comum. Ele também reforçava os laços de sujeição e o sentimento
de perten-
ça dos mesmos vassalos à estrutura política do Império, garantindo a
sua governa-
bilidade. Materializava-se, assim, forjando a própria dinâmica da
relação impe-
rial, uma dada noção de pacto e de soberania, caracterizada por
valores e práticas
tipicamente do Antigo Regime, ou dito de outra forma, por uma
economia política
dos privilégios.

Em contrapartida, pesavam a ingerência local e sua plasticidade, na


definição
daqueles que se credenciariam aos cargos de governança, que aspiravam a ser
cida-
dãos.7 Além disso, havia uma multiplicidade de laços políticos entre os
vassalos, tão

6 Desde a década de 1730, aumentou a força política do Brasil no império


com a concessão sistemática do
título de vice-rei, a alteração do perfil dos governantes enviados ao Brasil
e a importância de galgar esse cargo
no conjunto do império, a instalação do Tribunal da Relação no Rio de
Janeiro e a transferência da capital de
Salvador para o Rio. Há uma alteração de seu estatuto jurídico-
administrativo, intensificado, parece-me,
com a transladação da corte (1808), a elevação a Reino Unido (1815) e a
aclamação de d. João VI (1818).
Dessa maneira, afirma Fátima Gouvêa (2001:313): “a Coroa chegava em pessoa
àquele que era o centro mais
fundamental do complexo atlântico, então transformado no coração do Império,
da própria monarquia”.
Isto é, o Rio de Janeiro passava a ocupar a centralidade do império.
7 Ver Bicalho, 2003a e 2003b. Sobre a noção de cidadão, ver também Silva,
1988.

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212 A independência brasileira

heterogêneos, e o monarca e seus delegados, que impedia uma regra única e


fixa na
gestão do império e, por outro lado, constrangia a coroa.
Essa categoria da economia do bem comum não presume, na compreensão do
Antigo Regime, uma divisão entre os campos da política e da economia, como o
saber liberal instaura. Tampouco dissocia negócios e favorecimentos do
sentido de
amizade e honra, por exemplo; antes tais categorias participavam ativamente
desse
ethos social. Outra decorrência conceitual dessa noção de Antigo Regime
questiona a
precocidade do Estado português, pois tenta perceber a construção histórica
do Esta-
do-nação e sua noção de soberania, a qual não se coaduna ou corresponde
strito sensu
à arquitetura de poderes polissinodais do Antigo Regime, no qual o direito
público
limitava o poder régio por meio dos outros corpos sociais. Em parte, o
liberalismo
oitocentista acusou a inépcia do Antigo Regime em exercer o poder central,
ora
demais, ora de menos, ou então sua dificuldade em racionalizar a máquina do
Esta-
do, como se tratassem de modos de governar afinados ou semelhantes. A partir
dessa
premissa liberal, também foi toldada a compreensão sobre o Antigo Regime,
esva-
ziando ou minimizando seus modos de governar e sua eficácia; ato contínuo, o
Esta-
do-nação significava o progresso em relação ao Antigo Regime e dele,
teleologicamente,
resultava.8
Nessa recente discussão histórico-historiográfica, o sentimento de
pertencimento
e a elaboração da identidade coletiva passam a se associar, ao mesmo tempo,
à loca-
lidade e ao império. Pertencer a essas duas instâncias não implicava
contradição ou
fragilidade. Nesse sentido, mesmo no acalorado debate político de 1810-30,
viceja-
ram “pernambucanos, paulistas, mineiros, fluminenses, baianos”, que se
diziam “por-
tugueses do Reino, do Brasil, de Portugal”, gente da “família luso-
brasileira,
brasilienses, brasílicos, brasileiros, lusitanos, patriotas”. Esse
sentimento de pertença
e tais identidades foram configurados na experiência da conquista e da
colonização,
de acordo com as potencialidades de cada lugar, com tempos diversos de
duração, e
conformaram uma experiência coletiva comum, de luta, negociação, agrura — e
adesão à coroa e à localidade. Grosso modo, uma experiência coletiva
compartilhada
por gerações de uma mesma localidade e marcada por uma história vivida
comum. A
partir das contribuições de Jack Greene,9 pode-se considerar que, durante a
colo-

8 Para uma discussão da arquelogia do Estado-nação, ver Jancsó, 2003.


9 Cf. Greene, 1989. Parece-me importante conhecer desse autor Negotiated
authorities..., 1994. A respeito
de uma identidade colonial na América portuguesa, Luciano Figueiredo (1996)
explorou os sentidos dos
motins antifiscais durante o período colonial, notando o apreço à figura do
rei, a elaboração de uma expe-
riência reivindicatória e peticionária diante de sua majestade, a suspeita
que recaía sobre os governadores, as
estratégias de luta e os gestos que configuravam tal identidade local e a
performance do levante.

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08/08/2014, 15:03
Questões de poder
na fundação do Brasil 213

nização da era moderna, articulou-se uma gama de identidades engendradas


entre
colonizadores, colonizados e colonos,10 que compartilharam significados de
coleti-
vos e de si próprios, sem necessariamente afirmar uma homogeneidade de
sentidos
ou de recepções. Antes, tais sujeitos interiorizaram no hábito, na tradição
oral, na
memória local e social, uma compreensão coerente e pertinente dessa
sociedade e de
si mesmos, inclusive diante daqueles que ali estavam ou eram de fora. Tal
sentimento
de pertencimento à localidade vinha acompanhado de uma noção contratual do
direito público do Antigo Regime, calcado em textos de cunho jurídico e
também no
exercício cotidiano e urgente, muitas vezes, do ato de governar. Ambos
estabeleceram
uma série de entendimentos do que era cabível ou não no pacto da vida
coletiva e na
ordem das práticas. Ao final do século XVIII e início do XIX, assinalou
István Jancsó,11
intensificaram-se as inteligibilidades acerca dessas especificidades
locais/regionais na
América portuguesa, “genericamente Brasil” — segundo d. Rodrigo de Souza
Coutinho —, instaurando-se uma distinção, depois uma clivagem, entre a
América
portuguesa12 e o império, que se expandiu nas décadas de 1820-30, ao
transfigurar-se
na tensa disputa entre brasileiros e portugueses, assemelhada ao antagonismo
colônia ×
metrópole. No âmbito deste capítulo, gostaria de indicar algumas questões
acerca do
governo dos homens e de si, entre 1780 e 1830, quando da redefinição das
identidades
coletivas e políticas por ocasião da fundação do Brasil como corpo político
autônomo.
Esse debate a respeito do governo de si e dos homens, nesse momento, enreda
a liturgia
política, os protocolos da convivência social e política, as formas de gerir
a vida coletiva
e de cada um, a produção de identidades compartilhadas e individuais.

Em 1830, Diogo Antonio Feijó publicou o Guia das câmaras municipais do


Brasil no dezempenho de seus deveres por um deputado amigo da instituição.
Trata-se de
um manual sobre a organização e a conduta das câmaras e dos deputados. Feijó
insistia na necessidade de a câmara pautar-se pela lei de outubro de 1828 —
baseada
em projeto de sua autoria —, e que a desvinculava de uma série de
competências que
lhe haviam sido atribuídas durante o período colonial. Em si mesmo, o Guia
pode
ser considerado um texto complementar da lei de 1828.
10 Para usar as categorias consagradas por Mattos, 1987.
11 Jancsó, 1996; e Jancsó e Pimenta, 2000. O termo “mosaico” para designar
as identidades coletivas e suas
relações fluidas foi retomado por Lara, 2004.
12 Sobre a noção de América portuguesa, ver Novais, 1997 e 2000.

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214 A independência brasileira

Essa lei atrelava-se a um processo de desagregação do mundo


colonial,13 ao
participar da gênese e da montagem do Estado liberal no Brasil. Pela lei, a
câmara
ligava-se de vez ao governo provincial e se desligava do monarca. Era
proibida de
destituir qualquer autoridade, como aconteceu no início da década de 1820,
ou de
nomeá-la sem o aval do governo provincial. Perdia parcialmente a função de
prover
e organizar as celebrações locais, caracterizando-se pela incumbência
administrativa.
Abatia-se sua carga simbólica, sua habilidade e capacidade de mobilizar
signos e
investi-los com determinados sentidos ou de celebrar o contrato social com o
monar-
ca ou com o Brasil, como fizera entre 1822 e 1824.14 A lei igualmente
coadunava-se
à montagem de um Estado fundado numa soberania única e indivisível, que se
pau-
taria pela centralização, diferentemente do Antigo Regime.
Feijó escreveu o Guia em meio a uma franca disputa entre a Assembléia
e
d. Pedro I a respeito da força de cada poder — Moderador, Executivo e
Legislativo
— em relação aos outros, a fim de estabelecer suas competência e
responsabilidade.
Nesse sentido, reiterava a necessidade de a câmara gozar de autonomia ante o
Execu-
tivo e o Moderador, considerando suas atribuições distintas e,
necessariamente, com-
plementares na visão do constitucionalismo liberal.15
No Guia, deu-se importância ao cerimonial apropriado às câmaras. Feijó
defi-
niu as regras de sua moralidade e de seu cerimonial, designando, portanto,
sua digni-
dade. Essa instituição teria uma moralidade própria, seria servida por
homens de
bem, zelosos no trajar, que escrevessem com acerto, gozassem de crédito e
estima,
falassem com moderação, sem atropelar os outros. Feijó tratou da moralidade
da
câmara, seu comportamento e sua composição de “homens de bem, sábios e
honra-
dos”.
O Guia alterava o estatuto da câmara perante o soberano, a assembléia,
a pro-
víncia e sua capacidade de mobilização política. Ao mesmo tempo regrava a
câmara

13 Hollanda, 1985, t. II, v. 1.


14 Ver Souza, 1999.
15 Feijó retomava uma questão acalorada da Assembléia de 1823, ao debater o
juramento real e dos deputa-
dos, as precedências de um poder em relação a outro, envolvendo a disposição
de cada pessoa na sala da
Assembléia, as mesuras devidas entre si que expressassem sua correlação de
poderes definida pela teoria
política. Dizia o deputado José Custódio Dias (1978, v. 1, p. 42): “É na
solene instalação destas [cortes] que
tem de comparecer o digno representante do Poder Executivo, e como tenha de
respeitar a nação, legitima-
mente representada, da qual só deriva toda autoridade que pelo pacto social
se lhe vai a conferir por lei
fundamental, sou de parecer que a posição que lhe deve designar seja sim
distinta, mas no mesmo plano onde
estiver o Sr. Presidente, a cabeça inseparável, naquele ato, do corpo moral
que representa a nação, soberana
e independente”. Esse debate se prolongou por várias sessões, prevalecendo a
versão de que o trono ficaria
num patamar acima e central em relação à cadeira do presidente da
Assembléia.

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Questões de poder
na fundação do Brasil 215

em seus formatos e sociabilidade, ganhando foros de texto cívico. Ensinava


sua virtu-
de a ser percebida pelos eleitores no cotidiano institucional e na vila.
Nesse sentido,
continha uma discussão acerca da moralidade pública e a educação de si e,
ademais,
promovia um deslocamento, em certo sentido até superação, das liturgias
políticas
vigentes.
Feijó dedicou-se à educação moral em seus Cadernos de filosofia,
escritos entre
1818 e 1821,16 e n’O retrato do homem de honra e verdadeiro sábio.17 Para
ele, a
filosofia moral tratava dos deveres do homem e dos meios de ser feliz...

e tem cunho prático ao pautar-se por conhecer, antes de tudo, o


próprio homem,
cujas propensões naturais são: o desejo de felicidade e amor à
justiça. Este senso
prático aparece porque o homem é dotado de um senso moral
intimamente ligado
à ação e deve procurar os meios úteis que garantam esta necessidade
de conserva-
ção de si a partir destas propensões. Isto ocorreria na convivência
com o(s) outro(s),
desde que mantivesse o direito de propriedade, liberdade, igualdade,
segurança.18

Feijó ligou uma sucessão de sociedades: conjugal, paterna, doméstica,


civil, com
seus respectivos governos, ordenando-os sob uma mesma premissa de trocas,
deveres
e direitos. Todos fundados no contrato.19 Relacionou também a sociedade ao
gover-
no de si, instituindo uma lógica que ia do indivíduo à sociedade e vice-
versa. A
moralidade, inscrita por Deus no coração dos homens, atravessa os direitos
(natural,
civil, público, político, das gentes) e dita, em última instância, essa
lógica. Por isso,
descobri-la e reconhecê-la consistiam em uma obra em favor do bem público e
uma
maneira correta de estar em dia com o criador e sua própria consciência.
Ele descreveu ainda os atos e a moral do sábio que, de preferência,
ocuparia a
cena pública e o governo. O império do sábio seria de “doçura e amor”,
interessado

16 Ver Feijó, 1967a.


17 Feijó, 1967b:165-172.
18 Definindo senso moral como a “faculdade de sentir o justo pela aprovação
ou censura da ação” (1967a:124,
grifos meus).
19 Ele assim explicava a natureza e o fim da sociedade civil: “Esta é a
sociedade geral, natural, para a qual
todos nascem e para a qual todos entram independente de sua vontade, mas
para a qual todos se sentem
impelidos por suas propensões, faculdade e interesse; sociedade, contudo,
onde se não reconhece outro chefe
que o Autor da natureza, nem outro estímulo que a lei da ordem; porém os
abusos da liberdade obrigaram
aos homens a reunirem-se, criarem chefes e estabelecerem uma consciência
pública na lei e uma liberdade
pública no executor, para o fim de sermos associados, guiados por uma só
regra e constrangidos por uma
igual força a praticar aquilo a que sempre foram obrigados” (1967a:149).

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216 A independência brasileira

em cultivar a “moderação”. Devia, portanto, ser “cortês”, não cortesão —


aquele que
goza e esplendidamente exibe sua grandeza. Feijó recomendava: “Jamais se
jacta de
seu nascimento ou riqueza; mostra-se superior a estas vantagens, esquecendo-
as”. O
sábio não se renderia à vaidade. Cuidaria de si, vigiaria seus modos e os
dos outros,
falaria com brandura e firmeza, evitaria o pedantismo, escolheria os amigos,
zelaria
por sua reputação. Esse modelo de indivíduo seria “liberal”, segundo Feijó,
“por
gênio” e “econômico por justo”, não desperdiçaria dinheiro, seria avarento
no tem-
po, porque não se seduziria pelas frivolidades e inutilidades, ao se ocupar
de si e do
outro. Essas virtudes pragmáticas afugentariam a tristeza e reforçariam a
propensão
natural de cada um a ser feliz e justo. Dessa maneira, o indivíduo ficaria
de bem
consigo, com a sociedade e com Deus, ao exercitar continuamente esse governo
de si
e dos homens, motivando a “felicidade geral”.
Encontra-se, em uma gama variada de textos escritos entre 1810 e 1830
no
mundo luso-brasileiro uma proposição política inovadora, que redimensiona o
sujei-
to, a sociedade, sua explicação e justificativa. Feijó conquistou projeção
política des-
de 1810, na vila de Itu, sendo figura-chave da Regência. Parece-me
importante notar
no discurso de Feijó a necessidade de estabelecer uma moralidade e uma
lógica que
atravessassem a sociedade e o sujeito, coadunando-os. Essa preocupação, que
se com-
porta como um projeto político e letrado, orientou também sua ação
cotidiana.20
Seus escritos abordam temas permeados pela tradição política do Antigo
Regime e
pelo liberalismo constitucional e fazem pensar sobre a emergência e o lugar
do sujei-
to liberal e da sociabilidade.
Feijó pertenceu a uma geração que viveu o projeto de império luso-
brasileiro,21
a fundação do Brasil e as formas enviesadas e diversas com que esse primeiro
libera-
lismo constitucional ocorreu. Por sua vez, José Bonifácio de Andrada e Silva
escreveu
sobre o homem público e de virtudes. Preocupou-se em moldar o caráter do
homem
público letrado, talhado para a política. Ele deveria cultivar a
“moderação”, a “tem-
perança”, interessar-se pelos costumes de sua pátria, a fim de apreendê-los
e, então,
intervir na educação e na legislação.22 Promoveria as reformas necessárias e
possíveis,
sem adiantar ou reter o compasso da vida dessa gente e seus costumes, sem
arremessá-
los na “tirania” ou na “revolução”. Estudioso de Montesquieu, Raynal, Adam
Smith,
David Ricardo, achava os “costumes, direito das gentes”, sua
“sociabilidade”, motor

20
Ver Ricci, 1993.
21
Lyra, 1994.
22
De que serve uma Constituição em papel? A constituição deve estar
arraigada em nossas leis, estabeleci-
mentos e costumes (Silva, 1998:235).

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Questões de poder na
fundação do Brasil 217

da mudança.23 Recuperando A. Smith, Raynal, Montesquieu, achava que o comér-


cio traria trocas, amizades, comunicação, e esses trariam bens à sociedade,
inserindo-
a na civilização. Nessa perspectiva e graças à heterogeneidade da gente,
riqueza, etnia,
educação do Brasil, acreditava que ele necessariamente deveria se tornar uma
“mo-
narquia constitucional”.
Aos poucos, nessa cultura política, estabelecia-se uma coerência
necessária entre a
conduta do homem de bem, preferencialmente aquele que governa a política, e
a socie-
dade. Aquele não se deixa seduzir apenas pelo fato de estar no exercício do
poder, antes,
vai se configurando uma moralidade do indivíduo que afeta o campo político.
Esse debate sobre a educação de si relacionada ao governo dos homens
surge
num conjunto diverso de textos e tendências constitucionais da década de
1820: em
escritos, periódicos, pasquins, poesias, hinos, panfletos, catecismos.24
Trata-se de uma
imensa e diversa produção discursiva, que iria definir o perfil das
lideranças políticas,
suas formas de atuação, recorrendo a um variado rol de figuras de linguagem
(metá-
foras, ironias, metonímias) e palavras de ordem. Essa prática discursiva
tentava, em
certa medida, sistematizar uma conduta de si, que participava da
reformulação do
“eu cerimonial”,25 e reconsiderava a importância da liturgia política e da
sociabilida-
de no âmbito da monarquia constitucional. Esse debate ocorria de forma
díspar e,
por vezes, desencontrada, mas abordava um assunto novo: o domínio de si,
enquan-
to um sujeito que adere ao contrato social de tom liberal. Aí, a noção de
sociabilida-
de era fundamental, porque mostrava a civilização do local, estava na origem
da
fundação do contrato social e requeria daquele que pactuava uma norma de
conduta
condizente com as leis da sociedade. Por seu turno, as leis precisavam ser
coerentes
com essa mesma sociabilidade.
Ciente da heterogeneidade da gente do Brasil, da presença de nobres e
clero,26
do caráter brasileiro, o importante ministro José Bonifácio de Andrada e
Silva organi-

23 Sobre as leituras de Bonifácio e a noção de costume, ver Silva, 1999.


24 Sobretudo a partir do vintismo, há uma intensa produção e divulgação de
textos de caráter liberal, con-
frontando-se com outros de cunho monarquista absolutista. Circularam no
Brasil e em Portugal escritos de
Locke, Rousseau, De Pradt, Benjamin Constant, Mably, Jeremy Bentham,
Condorcet, Raynal, Say, Adam
Smith, Edmund Burke, Montesquieu. Compete dizer que esse constitucionalismo
liberal dialogava muito
com as experiências constitucionais da Espanha, com a Constituição de Cádis
e com a monarquia francesa
restaurada, ainda que conhecesse e tratasse do período revolucionário
francês. Entretanto, maciçamente,
rejeitava-se o radicalismo e o jacobinismo, que adquirem um tom negativo,
prestando-se, na maioria das vezes,
para alcunhar e detratar o adversário político. Ver Neves, 1992; Oliveira,
1986; Verdelho, 1981; Pinas,
1988; e Pereira, Serra e Ferreira, 1982. v. 1.
25 Ver Haroche, 1999.
26 Figuras que designam corpos do Antigo Regime.

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218 A independência brasileira

zou as celebrações em torno de d. Pedro I em 1822/23. Essas celebrações


falariam ao
povo da nova condição política do Brasil, fundariam o novo contrato social
por meio
das entradas régias, aclamações ocorridas nas vilas do país afora, nas
grandes aclama-
ções do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Pará, e no rito da sagração
ocorrido
apenas no Rio de Janeiro. Por sua vez, Feijó participou ativamente das
festas religio-
sas e cívicas na região de Itu, a fim de estar entre sua gente e ouvir suas
expectativas.27
Ou seja, essa educação de si presumia um saber conceitual a respeito da
política,
aprendido nos livros, em autores respeitados, na necessidade de organizar e
sistema-
tizar um corpo de leis próprio ao país. Envolvia, simultaneamente, uma
discussão a
respeito da sociabilidade, da liturgia política, das formas de comunicar o
poder ins-
tituído, dos modos de conquistar a anuência do outro e sua manutenção. Essa
cultu-
ra política atentava para as paixões, os sentimentos, as virtudes capazes de
suscitar,
mobilizar e efetivar a ação política e pública. Essa discussão letrada e
culta visava
também a gestão das paixões e tentava nomear e explicar os sentimentos
concernentes
à política. No geral, esse debate sobre a governabilidade buscava organizar
as cerimô-
nias políticas, por envolverem uma construção simbólica da esfera pública e
por
pertencerem à sociabilidade. Essa liturgia política não se apegava apenas às
formula-
ções do passado, do Antigo Regime. Dialogava intensamente com as demandas do
presente e era reconhecida no âmbito da sociabilidade, categoria muito
estudada
para garantir a coerência entre a sociedade e o novo pacto social. A
liturgia conseguia
representar esse ato fundador, torná-lo uma celebração, uma performance e um
mo-
mento públicos e memoráveis.
É necessário ainda considerar a reordenação da experiência de si na
esfera do
cotidiano, pois esta vinha entremeada a uma reflexão acerca da
sociabilidade. Nesse
aspecto, o processo de individuação do maçom, nesse mundo letrado luso-
brasileiro,
pode indicar certos aspectos da conformação do eu coerente com esse ideário
políti-
co. Muitos estadistas e letrados lusos e luso-brasileiros, entre o final do
século XVIII
e início do XIX, foram maçons: d. Rodrigo de Souza Coutinho, Hipólito da
Costa,
José Mariano de Azeredo Coutinho, Francisco da França Miranda, Antônio e
Luís
27 Ricci, 1998. As festas cívicas e religiosas funcionam também como
mecanismos de liderança por parte de
Feijó. Tal procedimento também pode ser assinalado em Cipriano Barata, com
sua indumentária de forte
caráter simbólico: chapéu de palha, ramo de café nas mãos, casaca de algodão
da terra. Marco Morel o
considera uma “alegoria viva que comunica pelo impacto visual” (Morel,
1999:124). Isso indica a complexa
(re)formulação da liderança política e quanto não se restringia a liturgia
política à figura do monarca. Ver
também os artigos sobre essa educação moral da liderança política no Correio
do Rio de Janeiro, nos textos de
frei Caneca e Cipriano Barata. Em especial, a análise de Marco Morel (2001).

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Questões de poder na
fundação do Brasil 219

de Meneses Vasconcelos Drummond, Pedro Dias Paes Leme, José Bonifácio e seus
irmãos, Gonçalves Ledo, Januário da Cunha Barbosa, Clemente Pereira, José
Do-
mingos de Ataíde Moncorvo, Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Luís Pereira
da Nóbrega de Sousa Coutinho, assim como muitos homens do clero — frei
Sampaio,
por exemplo —, o próprio d. Pedro I. Participaram dessa cultura política
letrada, de
sociedades secretas com seus princípios, suas insígnias e significados
específicos, e
atuaram intensamente no processo de autonomização do Brasil.28
François Xavier Guerra29 observou que, em meio a uma crise monárquica
ins-
talada no Império ibero-americano, as novas formas de sociabilidade dessa
época —
clubes, círculos de leitores, tipografias, sociedades secretas, partidos —
foram estabelecidas
com base numa espécie de “processo de individuação”, correspondente à
constitui-
ção liberal. Seria possível transpor essa consideração de François Xavier
Guerra para
o horizonte da formação e atuação dos letrados no Brasil, entre 1810 e 1830?
É
prudente, desde já, acrescentar a necessidade de circunscrever a emergência
dessas
novas formas de sociabilidade, definindo quem podia dela usufruir e
delimitando,
de imediato, a noção de liberdade de cada um — assunto nevrálgico numa
sociedade
escravista e senhorial. Nessa medida, talvez compense avaliar o que
significava ser
maçom30 — um modo de individuação que marca as lideranças políticas e
letradas
desse mundo luso-brasileiro.
Os gestos de entrada e adesão à maçonaria guardavam um forte senso de
ceri-
mônia, no qual a individualidade ficava marcada por atos definidos no grupo
e ca-
racterizava esse pertencimento social. Essa cerimônia explicitava a
hierarquia existen-
te entre os membros, quem guiava quem, quem usava o avental mais enfeitado
de
símbolos, portanto com maior dignidade. Tais símbolos e ritos funcionavam
tam-
bém como uma espécie de livro moral do maçom, pois cada um, ao portá-los e
vivê-
los, sabia — constantemente relembrava — a qual compromisso estava atado por
juramento de sujeição e fidelidade. Esse gênero de sociedade presume
hierarquia,
porém propõe fraternidade, na medida em que nasce de um ato voluntário de
cada
um. O rito incutia uma moralidade que exige autocontrole e empenho para
obter a
virtude. Baseia-se na noção de que o sujeito exerce seu direito de se
associar a seus
irmãos, criando, pelo menos em tese, um elo de fraternidade com os outros.

28 Para um levantamento dos maçons e sua atuação, ver Ferreira e Ferreira,


1972; Marques, 1990, v. 1; e
Sleiman, 2000.
29 Xavier Guerra, 1993 e 1994. Agradeço esta última indicação a Fátima
Gouvêa.
30 Ver o processo interessante sobre a entrada na maçonaria, com descrição
minuciosa do rito e discursos em
Vieira Couto. ANTT, Inquisição de Lisboa. Proc. 16.809. Tive oportunidade de
abordar este documento em
Schiavinatto, 2003. Para um estudo recente da maçonaria, ver Barata, 2001.

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220 A independência brasileira

Hipólito da Costa31 dedicou-se a esclarecer o papel da maçonaria. Fez


uma
defesa da sociedade e a historiou, assinalando suas origens desde a
Antigüidade, pas-
sando pela Idade Média até o Iluminismo. Viu em Locke um recurso de
autoridade
que lhe “afiança a antigüidade e autenticidade”,32 avalizando-a e, assim,
legitimando
a associação. Discorreu sobre os símbolos, usos e significados, explicitando
que mes-
mo uma coletividade fundada a partir da adesão carrega insígnias próprias,
conotando
o mérito de cada um mais do que sua condição de nascimento. Explicou que os
aparatos podem ser mais ou menos carregados, de acordo com o costume local
de
cada país. Assim, as insígnias básicas estão em toda parte onde haja um
maçom,
todavia modificam-se de acordo com a localidade — como dizia Montesquieu.
Hipólito da Costa mostrou que a maçonaria pertence ao rol das “sociedades
priva-
das”, como uma “companhia de seguro”, asseverando que aí também existem
“jura-
mentos, medalhas, insígnias”. Por sua vez, essas sociedades contribuíam para
a pros-
peridade nacional e para civilizar a sociabilidade. Assim, ponderou sobre a
sociabilidade
na qual nasce e se estabelece a maçonaria, casando num mesmo argumento
celebra-
ção pública e política, virtude e civilidade, com vistas ao futuro comum
feliz e não ao
Antigo Regime.
Para ele, essas sociedades trazem às “terras incultas a civilização”
e, nas “nações
provectas, habituam o homem à virtude”. Podia-se participar, paralelamente,
de mais
de uma sociedade — literária, de comércio, junta de agricultura, de prazer,
diversão,
dança, caça, pesca etc. —, aprendendo a necessidade de leis e estatutos,
cordialidade,
experimentando na convivência uma dada teoria do indivíduo que agora funda a
vida coletiva:

(...) os membros destas sociedades passam alternativamente de


superiores a súdi-
tos e de súditos a superiores; e, portanto, hão de necessariamente
adquirir o co-
nhecimento prático efetivo da utilidade das leis civis, e da
necessidade que há de

31 Segundo Vieira Couto, Hipólito da Costa freqüentava sua casa.


32 Hipólito da Costa escreveu Narrativa da perseguição... (Mendonça, 1811).
Também traduziu as Cartas
sobre a framaçomaria (Mendonça, 1821:9). A primeira edição, de 1778, foi
publicada em Amsterdã. Tra-
balho esse texto, pois refaz uma história da maçonaria e circulou no Brasil
e em Portugal, e Hipólito responde
francamente por sua tradução, assumindo uma espécie de co-autoria da obra.
Convém lembrar ainda que
vários estudiosos o identificam como autor desse escrito. As Cartas não
tiveram uma recepção unânime, mas
permitem problematizar a sociabilidade e as insígnias usadas pelos maçons.
Sua forma epistolar cria um
enredo que desperta o interesse do leitor, porque testemunha o diálogo entre
os correspondentes e, por vezes,
o leitor pode assumir o papel de um deles. Trata-se de uma escrita
pedagógica, que, por meio de argumentos
concisos, rebate as condenações freqüentes feitas à maçonaria e a defende
abertamente.

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Questões de poder na
fundação do Brasil 221

manter a ordem e o sossego público, para se gozar a tranqüilidade


e felicidade de
que o Mundo é suscetível.33

Essas sociedades serviam para implementar e aperfeiçoar a


sociabilidade entre
os homens, de modo a adensar os laços de parentesco e amizade, sendo os
sentimen-
tos admitidos e queridos na “felicidade social: amor, patriotismo, amizade”,
que
correspondiam às “virtudes patrióticas”. Daí também a “utilidade [destas]
sociedades
privadas”, obrigatoriamente “reguladas”.
Essa adesão à maçonaria consiste em um ato voluntário que pode manter
certa
afinidade com a explicação liberal do contrato social, no qual os homens,
“por livre
arbítrio e necessidade de segurança”, aderem ao contrato, no caso de uma
sociedade
particular. O gesto concreto de adesão a uma sociedade inscreve-se na ordem
do
vivido, assemelhando-se ao ato de fundação do pacto político. Nesse sentido,
a op-
ção por Locke, no texto de Hipólito da Costa, adquire importância. Era um
recurso
de autoridade que chancelava tal sociedade e trazia uma certa carga
metafórica à
origem da maçonaria. Assim, a maçonaria adentrava a vida de cada um e
funcionava,
no prezado mundo das idéias, como uma forma de experimentar ser indivíduo,
sem
contradizer ou negar a monarquia.
Esses textos dedicados à educação do letrado, às normas de convivência
e cons-
tituição das sociedades particulares, aos protocolos das instituições que
ordenam a
vida cívica abordavam também os sentidos das cerimônias e insígnias, as
formas de
sociabilidade, os sentimentos apreciados e rejeitados, os modos pertinentes.
Assim,
moldavam uma certa noção de sociabilidade, alterando seu lugar de enunciação
e
matizando a compreensão do Antigo Regime. Aos poucos e de modo conflituoso,
falou-se de outro tipo de comportamento apropriado ao homem “letrado,
burocrata
régio, governante, interessado no bem comum”, e valorizou-se a sociabilidade
en-
quanto instância reguladora da ordem social, porque significava e
impulsionava os
mores. Padre Feijó, José Bonifácio, José da Silva Lisboa, Hipólito da Costa
e frei
Caneca,34 entre outros, preocuparam-se com a educação individual — em
especial
do sujeito letrado e a serviço da administração monárquica, reformada e
reordenada
desde fins do século XVIII —, e fundaram uma ordem discursiva sobre o modo
de
governar os homens que foi se diferenciando da economia do bem comum, nos
termos
propostos por Fragoso, Bicalho e Gouvêa.

33 Mendonça, 1821:90-91.
34 Lyra, 1998.

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15:03
222 A independência brasileira

Essa ordem de textos diversos entre si, inclusive pertencentes a


enunciados po-
líticos díspares, participou de uma primeira educação cívica no Brasil,
caracterizada
por muitos panfletos, catecismos, periódicos, impressos, de forte cunho
político.
Com ares irônicos ou sisudos, combativos, anônimos, persistentes, voláteis,
esses
escritos produziram, movimentaram e difundiram uma primeira biblioteca de
textos
políticos liberais, um acervo coletivo de idéias que conviveram entre si,
mesmo à
custa de desejarem e, por vezes, excluírem uns aos outros no afã de obter a
adesão do
leitor, ouvinte ou eleitor. Essa primeira produção, divulgação, recepção de
uma série
de obras de caráter mais liberal confronta-se com outras propostas
anteriores de
monarquia. Parece-me que não se encontra uma coerência única no plano
político;
sua força reside nessa multiplicidade de práticas, forças, metáforas,
imagens, que se
diferenciam nos sentidos e se intercambiam, gerando uma polissemia e uma
politização
dos discursos, a par de uma disputa acirrada pela autoridade pública no
âmbito da
nascente opinião pública. Essa educação cívica e patriótica emergia também
na liturgia
política, principalmente entre 1820 e 1830, perpassada pelo liberalismo
constitucio-
nal. Talvez se possa pensar que tais práticas se entrecruzavam e, desse
modo, adqui-
riam significados no plano do cotidiano e na ordem da liturgia política, sem
que,
necessariamente, um anulasse o outro.

II

Esse primeiro liberalismo constitucional teve vários níveis de


significação dis-
tintos. Por um lado, implicou uma renovada noção de si, da sociabilidade, do
modo
de governar. Porém, significou também, entre outras coisas, em Portugal, o
desejo de
não ser colônia da colônia. No Brasil, colocou em pauta a questão do pacto,
da vonta-
de e da necessidade de continuar unido ou não a Portugal. Principalmente
para as
elites do Centro-Sul e do Sudeste, foi uma estratégia para garantir seu
pertencimen-
to, seu status e sua força política. Assim, o liberalismo constitucional
tornou-se um
tema e um debate transatlânticos.
Com o vintismo, entre 1820 e 1822, o Rio de Janeiro viveu uma espécie
de
retração festiva da realeza, ao contrário da freqüência e grandeza das
régias celebra-
ções do período 1808-18. Porque, em 1820/21, houve a diminuição e mesmo a
ausência de atos públicos de d. João VI. Simultaneamente, emergiu uma forte
e
breve palavra política que rivalizou abertamente com a liturgia real,
revirando sua
autoridade. Frei Francisco de Sampaio, ao celebrar o 24 de agosto e o 15 de
setem-
bro, disse que já possuía idéias e sentimentos liberais, em segredo, e agora
podia,
enfim, revelá-los, ao aderir ao constitucionalismo. Ele negou o poder
absolutista e
conciliou o presente e a mudança, ao justificá-la por meio do direito
natural:

Untitled-1 222 08/08/2014, 15:03


Questões de poder na
fundação do Brasil 223

É uma verdade, e um dogma reconhecido pelos melhores jurisconsultos,


sancio-
nado pelo Direito da Natureza e das Gentes, que pertence à
Sociedade, em conse-
qüência das obrigações mutuamente impostas pelo Pacto Social, o
direito de des-
viar tudo quanto possa causar sua destruição, vingando o respeito
das Leis,
dobrando debaixo de sua vara a ousadia daqueles que as insultam,
repelindo os
excessos da ambição, chamando enfim os Reis e os povos ao centro da
ordem em
defesa da segurança política.35

O argumento do direito natural que funda o pacto social e um novo


tempo
apareceu, assiduamente, na defesa do liberalismo constitucional, no
vintismo, na sua
adesão tanto no Brasil quanto em Portugal. Esse argumento implicou ganhos e
inte-
resses políticos e econômicos distintos e, depois, foi usado amplamente na
reivindi-
cação em favor da elaboração de uma Constituição própria ao Brasil e nas
adesões
das câmaras e juntas provinciais ao imperador entre 1822 e 1824. Câmaras,
juntas,
Conselho de Estado e soberano repunham uma forma de pactuar elaborada numa
tradição política contratualista. Entretanto, pactuava-se agora a partir do
direito na-
tural. Essa explicação imbricava-se aos “princípios de felicidade,
liberdade, proprie-
dade, segurança”, e enredava-se à noção do lugar onde se nasce,36 à cor da
localidade,
à escolha de permanecer na “família luso-brasileira” ou fundar o “império do
Brasil”.
A liturgia política do liberalismo constitucional, contudo, valeu-se,
demais e
muitas vezes, do vocabulário simbólico comum do Antigo Regime e do passado:
de
suas figuras de retórica, alegorias, preces, deuses, virtudes e vícios,
gestos e etiquetas.
Mas há deslocamentos e (re)significações.37 Por exemplo, a partir do
vintismo, utili-
zou-se o cânone da Ave Maria, antes colado ao rei, para sagrar a
Constituição:

Ave Maria Constitucional


Ave Maria, cheia de graça e sabedoria
El Rei é contigo, benta és tu entre as Constituições,

35 Sampaio, 1821:16. Fala impelido pelo amor nacional e, via Constituição,


(re)concilia o súdito-cidadão, o
rei, Portugal e o Brasil.
36 Um dos significados do termo pátria. Ver, em especial, a dissertação
sobre o que se deve entender por
pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, de frei Caneca.
Há uma reedição desse escrito em
Mello, 2001. Os textos de frei Caneca aqui referidos encontram-se nessa
coletânea.
37 Recomendo ao leitor ver a estampa O triunfo maior da Lusitania que se
encontra no IHGB, lata 47, n. 29,
onde uma mesma representação neoclássica trata desse novo estatuto da
realeza. Indico essa estampa em
especial porque conta com uma legenda explicativa. Sobre a educação cívica
em Portugal no vintismo, ver
Vargues, 1993. Para uma interpretação das cortes no Antigo Regime, ver
Cardim, 1998.

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224 A independência brasileira

Santo é o fruto do teu ventre


Santa Constituição, Mãe dos Portugueses
Vigia por nós agora
E na hora de nossa morte civil, ou política
Amém.38

Consagrou-se a Constituição com uma série de palavras muito próximas


aos
dizeres do Antigo Regime: “sagrada causa da Constituição”, “sagrada
Constituição”,
“vivas à Constituição”, a fim de legitimar uma certa ordem política. Por
outro lado,
a Constituição vinha associada à árvore da liberdade, ao edifício social, ao
estandarte
da liberdade, ao pendão e ao grito. No conjunto, houve um forte investimento
simbó-
lico e performático na Constituição: os deputados de roupa escura e simples,
de
casaca de brioche, com medalha, lenço de alcobaça em Portugal, sérios, com
votos de
obediência e fidelidade (“morrer pela pátria, Constituição de 1822,
liberdade ou
morrer”), laços constitucionais, hinos, proclamações, desfiles militares,
salvas de ti-
ros, missa campal, novos dias de festividades, juramentos constitucionais.
Esses gestos tentaram incutir também no cidadão e no patriota um amor
à pá-
tria e às virtudes cívicas. Com a expansão do liberalismo constitucional em
Portugal
e no Brasil, configurou-se uma celebração política que o tornava público e
ensejava a
“regeneração política”, sobretudo ao converter o 24 de agosto e o 15 de
setembro em
datas da liturgia constitucional39 e, depois, as datas do império do Brasil
centradas
na persona constitucional do imperador.
Lúcia Bastos e Kirsten Schultz40 observaram um jogo de antônimos, numa
série
de espelhos invertidos, entre o tempo de antes e o de agora, entre o
constitucional e
o absolutista: corcunda × liberal, antigo sistema colonial × liberdade,
liberdade × despo-
tismo, liberdade × tirania, brasileiros × portugueses, patriotas ou
portugueses × déspotas.
Esses antônimos se sobrepuseram e foram repetidos no universo social,
criando uma
constelação de conceitos que se reforçaram e excluíram. Eles configuraram
uma in-
terpretação do que era legítimo agora, do que se condenava no passado e não
deveria

38 Apud Neves, 1998.


39 A Constituinte portuguesa altera os feriados, criando novas datas e
diferindo da memória da realeza. Os
vintistas se (re)apropriam do tempo comemorativo e vivido, inserindo aí a
Regeneração, por eles capitanea-
da. Actas das sessões..., 1822.
40 Neves, 1992; e Schultz, 1998, cap. 7. Ver também a dimensão cômica e
irônica dessa ordem discursiva em
Lustosa, 2000.

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Questões de poder na
fundação do Brasil 225

retornar. Reprovava-se intensamente o cortesão, o fausto, o dispêndio


excessivo, o apa-
rato extraordinário, o absolutismo, a revolução, a anarquia, a tirania.
Nesse jogo de antônimos, simultaneamente, emergiu um veto ao passado
abso-
lutista em Portugal e ao absolutismo e ao sistema colonial no Brasil. Nesse
sentido,
compreende-se o tom dos manifestos assinados por d. Pedro, em agosto de
1822, nos
quais Portugal se tornava a metrópole opressora que impediu a civilização do
Brasil,
amarrou, com “grilhões”, seu passado, presente, futuro. Assim, o Brasil
devia superar
a condição colonial, já que esse lhe seria um “direito natural”. José
Bonifácio expli-
cou o “caráter geral do brasileiro” contraposto ao português. Ao português
faltava
probidade, sendo pedante e incompetente. Já o brasileiro era qualificado
pela pujan-
ça da terra, pelo humor e pela necessidade de orientação.41 Em 23 de
setembro de
1823, em meio a tantas incertezas quanto à efetivação da independência do
Brasil,
seus termos e elos mantidos com Portugal, João Soares Lisboa, no número 131
do
Correio do Rio de Janeiro,42 convertia Portugal na “mãe-pátria”. Ela tolheu
o frescor
do Brasil, com sua exuberante e nova natureza americana. Impediu a
prosperidade e
a saúde do filho, o manteve nas trevas do saber, tornou-o escravo, roubou-
lhe suas
riquezas. Percebe-se que o antagonismo, dirigido pelos jornais, panfletos,
manifestos
à parte da bancada liberal portuguesa que visava recompor a hegemonia de
Lisboa e
de Portugal no governo do Brasil, converteu-se aos poucos no ataque à
pátria-mãe e
aos portugueses.
Por outro lado, uma gama de palavras funcionava na justaposição e no
jogo de
semelhanças: “regeneração”, “liberdade”, “propriedade”, “segurança”,
“igualdade”,
“cidadão”, “cortes”, “Constituição”. Nessa direção, o termo “patriota” tinha
uma
ampla extensão semântica, diferente da atual, sendo qualificativo de “homem
liberal,
patriota constitucional, filantropo, amigo da pátria, patrício afeiçoado,
patrício ob-
servador, brasileiro”. Esses termos coadunavam-se e competiam entre si,
coexistiam
ou tentavam gradualmente substituir, nas proclamações, juramentos, sermões,
cate-
cismos, panfletos, os “paulistas, pernambucanos, mineiros, baianos”. Essa
identida-
de política coletiva,43 patriota, ocupou lugar importante nessa cultura
política e plas-
mou em si a referência à localidade e ao Brasil, em sua proporção
continental, lutou

41 Caráter geral dos portugueses e caráter geral dos brasileiros. IHGB.


Coleção José Bonifácio, 1822 (?),
docs. n. 89 e n. 22, lata 192.
42 Quanto à ordenação das identidades de português e brasileiro, ver
Ribeiro, 2002.
43 Essas redefinições de identidades não ocorrem de modo linear, uniforme,
monocórdico, homogêneo,
antes caracterizam-se pela disputa e tensão dos termos.

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226 A independência brasileira

contra um invasor e a favor da liberdade, contra os portugueses de além-mar


com
seus objetivos de “recolonização”.44
Os catecismos políticos, proclamações, hinos, poesias ensinaram e
publicizaram
as boas maneiras e os valores do patriota. O vassalo45 foi reprovado,
condenado ao
passado por definir-se somente em relação a um rei absolutista. Surgiu o
súdito-
cidadão, que se pautava pela Constituição, deliberava sobre o corpo
político, porque
o funda ao pactuar. Esse súdito-cidadão pertencia à monarquia
constitucional, trans-
ferindo para a autoridade real parte de sua liberdade, e escolhia esse
governo coerente
à sociabilidade do país. Já os sermões, no Brasil de 1820-26, repudiavam a
“tirania”,
a “anarquia”, a “revolução” e o “despotismo”. Preocuparam-se, contudo, nas
aclama-
ções e na sagração de d. Pedro no Rio de Janeiro, em tematizar a fundação da
socie-
dade pelo contrato social. Essa ordem de enunciados permite entrever como,
súbita
e veementemente, um discurso pautado pelo liberalismo constitucional
expandiu-se
pela sociedade, atravessando panfletos, catecismos, diálogos, jornais, e
migrando para
um texto tão oficial, cerimonioso e solene como o sermão.
Os jornais no Rio de Janeiro incumbiram-se de narrar a liturgia real
em torno
de d. Pedro. Havia uma unanimidade temática, mas divergiam e entravam em
con-
flito quanto às categorias políticas capazes de designar e significar esses
atos. De certa
maneira, qualificaram seus gestos e protagonistas, nuançando seus sentidos.
Da acla-
mação de d. Pedro I, O Espelho destacou o discurso de Clemente Pereira sobre
o
vínculo constitucional estabelecido entre d. Pedro e o Brasil, modelado pela
adesão
das câmaras. Clemente Pereira advertiu d. Pedro de que não deveria repetir
os erros
das antigas práticas políticas, sob pena de desembocar no despotismo e na
centraliza-
ção das decisões. O imperador deveria ser constitucional, governando com o
parla-
mento. O Espelho designava um tipo de cidadão: aquele que participou do
círculo do
poder joanino, o procurador das províncias, o membro das câmaras e juntas
governativas, que também protagonizam o ato político. Por sua vez, a Gazeta
do Rio
de Janeiro enfatizou em sua descrição a aliança entre a “pátria” e a
dinastia bragantina,
fazendo crer que a “adesão do povo [era] espontânea”. Sem mencionar o
conturbado
alistamento de tropas e sua descrição, lembra o “público regozijo” de padre
Perereca
ao narrar a aclamação de d. João VI. A Gazeta enalteceu d. Pedro como “filho
da

44 Primeiro, entre 1800 e 1815, a batalha foi contra o invasor francês no


Portugal ocupado e, depois, contra
as tropas portuguesas leais às cortes de 1822 no Brasil. De 1810 a 1820,
essa noção de invasor ganhou um
senso prático e imediato que não pode, me parece, ser desconsiderado ou
minimizado.
45 Para uma noção de vassalo vigente no mundo luso-brasileiro e o perigo de
distinguir vassalo europeu e
americano, ver Distinção entre vassalos..., 1883.

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Questões de poder na
fundação do Brasil 227

pátria” e o direito de o brasileiro ter uma “nação independente”. Assim,


ressaltou que
Brasil e Portugal não mais formavam o império português, e rejeitou a
“recolonização
e o despotismo legal” das cortes, exaltando a fundação do império do Brasil
pelas
mãos de d. Pedro. Diversamente, para o Correio do Rio de Janeiro, a
aclamação tinha
um forte senso constitucional, baseado mais na “soberania popular” e menos
na
“adesão”, como se viu na Gazeta e em O Espelho. Aí, a aclamação envolveria
“cida-
dãos de todas as classes”, sendo o povo formado pelo Senado da Câmara do Rio
de
Janeiro, pelos procuradores das câmaras, pelas corporações, pelos militares,
pelas
tropas e pelos cidadãos de todas as classes. Nesse debate político, a
questão do estatu-
to do governante era nevrálgica, a ponto de frei Sampaio tentar, no sermão
da sagração
real em dezembro de 1822, conciliar a tradição do rei escolhido por Deus e
aquele
que pactua segundo o direito natural.46 Frei Sampaio reconhecia a
originalidade dos
novos tempos que motivava essa conciliação política:

Nós vemos hoje no mundo huma fisionomia bem diversa daquella, que se
desco-
bria em outros séculos: todas as Nações mostram, ou mais ou menos,
que partici-
param desse espírito regenerador, cuja influência tem produzido huma
espantosa
revolução nos costumes, nas artes, nas sciencias e nas idéias do
povo; por todas as
partes nós encontramos vestígios dessa mudança.47

Essas descrições da aclamação e sagração sugeriam quem seria cidadão.


As pro-
clamações e os jornais falavam do “povo em armas”, na presença das “tropas”,
e
discutia-se muito os requisitos para ser “cidadão”48 e seus protagonistas.
Essa defini-
ção de cidadão foi muito disputada, porque estabelecia uma clivagem entre
eleitores,
eleitos, votantes e excluídos, enfim quem poderia participar da esfera de
decisão e, no
limite, da escrita da Constituição. Em contrapartida, “povo”, “cidadão” e
“imperador”
eram patriotas — uma identidade política coletiva que os enlaçava, sem
igualá-los.
Nessas séries discursivas e na liturgia política de 1820-24, d. Pedro
era conside-
rado “brasileiro e patriota”, por ser “filho adotivo do Brasil” e abraçar a
“causa do
Brasil”, como enfatizaram a Gazeta e O Espelho. Nessa medida, a heroicizada
persona
de d. Pedro foi associada à América e ao índio do Brasil, figurados como
índio nos

46 Ver Regulador Brasileiro, entre outubro e dezembro de 1822.


47 Regulador Brasileiro, 11 dez. 1822. p. 201
48 Acrescente-se que a organização da aclamação coincidiu com as eleições
para deputados da Assembléia
Constituinte e a definição de eleitores/eleitos gerou descontentamentos, por
exemplo, ao alijar do processo
eleitoral os portugueses recém-imigrados.

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228 A independência brasileira

moldes de Cesare Ripa,49 referindo-se à localidade e, paralelamente, ao


Brasil. A arte
efêmera, tão presente nessa liturgia real, estreitou os laços entre d. Pedro
e a dócil e
domesticada América, numa relação de amor. Num arco do triunfo em Caeté, ela
proclamava:

Dons, que neguei aos Tiranos,


Aceitai, meu Defensor,
Submissão, e Fé Te juro,
Meu Primeiro Imperador.50

Pelas mãos de d. Pedro e sua Constituição, a América poderia sair


definitiva-
mente do reino da natureza e viver, em si e por si, o reino da política. Sua
sapiência
e maturidade residiam em poder reconhecer corretamente a tirania e o bom
governo.
Ao escolher o segundo, provava sua capacidade de progredir. D. Pedro
transformou-
se em seu “defensor perpétuo”, ao defendê-la do inimigo externo — o
colonialismo
português —, reforçando o caráter heróico do bom governante. As
representações
da América apareceram principalmente nas entradas régias, nas aclamações, na
farta
distribuição do retrato do novo monarca — providenciada por José Bonifácio —
por
várias regiões do Brasil, nos jornais que narravam as celebrações
monárquicas, nas
gravuras, poesias, peças teatrais. Ela serviu para mediar as relações entre
a indepen-
dência, o império do Brasil, o imperador, os cidadãos, os patriotas, os
súditos, enre-
dando-os numa cadeia de afetos comuns e calcada pelo amor. Se no governo de
d. João, no Rio de Janeiro, a figura da América, no teatro e na arte
efêmera, vinha
acompanhada das figuras da Lísia, França, Inglaterra, Espanha, África e de
Portugal,
agora sumiam as referências a Portugal e à Lísia, sinônimos de despotismo
que con-
trastavam com a autonomia da América e do índio do Brasil. No teatro, O
triunfo da
América e o drama O triunfo do Brasil eram peças comuns e apresentadas, que
repu-
diavam a tirania, a violência da Revolução Francesa, e negavam a concórdia
entre
América e Portugal.
Essa noção da América foi reordenada desde fins do século XVIII nas
obras
poéticas de Basílio da Gama,51 Alvarenga Peixoto,52 Tomás Antonio Gonzaga,
Silva

49 Maser, 1972.
50 As câmaras municipais..., 1972, v. 2, p. 63.
51 Chaves, 1997.
52 Malard, 1996. A autora comenta que a figura do índio arrebentando
correntes estaria prevista na bandeira
inconfidente.

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Questões de poder
na fundação do Brasil 229

Alvarenga, Cláudio Manuel da Costa, e retomada ao longo da década de 1810


por
sermões e peças teatrais.53 Aí, o índio adora o retrato real, recebe de bom
grado
d. João, coloca a coroa em sua cabeça com a elevação a reino, estabelecendo
uma
afinidade entre d. João e a América e o índio do Brasil. No início de 1820,
d. Pedro
ligou-se à América e ao Brasil, mediados pelo pacto e pela Constituição.54
Em geral,
as figuras da América e do índio do Brasil apareciam em pé, de joelhos, ao
lado de
d. Pedro. Usavam manto, carregavam o cetro, eram coroados com cocar, acompa-
nhados do brasão, do escudo, do livro da Constituição. Sua pose e adornos os
distin-
guiam como senhores de si e de seus destinos. Os relatos da aclamação
insistiam
nesse vínculo entre a América e d. Pedro, referindo-se ao passado colonial
da Améri-
ca e à liberdade adquirida pelas mãos do imperador constitucional, com quem
cada
localidade pactuara através da câmara, das juntas governativas, das tropas,
do povo
em armas, de juramentos, celebrações reais, representantes enviados à corte
ou nela
contratados. Assim, em 1822, as personagens da América e do índio do Brasil
ganha-
ram, juntamente com as localidades, um passado comum de despotismo,
grilhões,
amarras, trevas. Rejeitaram intensamente o passado colonial e o
pertencimento ao
império transoceânico português, diferenciando aí os “americanos e os
europeus, os
portugueses e os brasileiros”. Essa identidade coletiva politizada — América
e índio
do Brasil — conquistava a liberdade política, a autonomia, no presente
vivido, ao
“quebrar os grilhões” e vislumbrar um “futuro venturoso”. Caracterizava-se
por uma
geografia imaginada, delimitada pelos rios Amazonas e Prata, e grandiosa
pela natu-
reza. Unia-se pelo “grito elétrico de Independência ou Morte”, pela sua
gente “brasílica,
brasileira, brasiliana”.
A idéia de pátria55 articulava a terra onde se nasce, o amor à terra
onde se vive,56
com o monarca que pactua com a localidade, a origem do próprio pacto, seu
gesto de

53 Ver o estudo de Lopez, 2001.


54 Pode restar a dúvida que atravessou toda a Constituinte de 1823 e a
Constituição outorgada de 1824, do
exercício e extensão do Poder Moderador, do uso dos vetos; entretanto sua
persona não consegue — nem
pode — desvincular-se da Constituição sob pena de implodir pela intensa
contradição que implicaria.
55 Para uma avaliação dessa noção de pátria, Valentim Alexandre (1993)
indicou a fala do deputado portu-
guês José Antônio Guerreiro, no Diário das Cortes, sessão de 4 de julho de
1822. Ver também Matos, 1822.
Além da importante “Dissertação...” de frei Caneca (Matos, 1822).
56 Apenas para assinalar a força desse conceito e sentimento, convém citar
frei Caneca (1822:85),
reapropriando-se de Cícero: “A pátria”, diz ele, “é a coisa mais jucunda de
todas as do mundo; é preferível a
todos os demais ofícios do homem; o seu amor encerra em si todos os amores.
De todas as sociedades,
nenhuma há mais grave, nem mais cara, do que aquela que cada um de nós tem
com a república. São caros
os pais, são caros os filhos, os parentes e os familiares; mas todas as
caridades de todos abraçam e encerram em
si uma só pátria”.

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230 A independência brasileira

fundação, a liturgia política, a Constituição. No horizonte dessa cultura


política, a
pátria vinha permeada pela localidade, pelo caráter regional (“baianos,
paulistas,
pernambucanos”) e continental do Brasil (“brasileiros, brasílicos,
brasilianos”).
Simultaneamente, instaurava uma noção de pátria que superava o despotismo do
passado e rompia a relação histórica de submissão metrópole × colônia.
Ocioso mencionar que essa liturgia política serviu, entre outras
coisas, para
educar moralmente o povo através dos costumes e criar, designar e
representar uma
noção de pátria. Esse “tempo festivo”, de 1820 a 1826 em torno do Brasil, da
monar-
quia constitucional e da persona de d. Pedro I, transformou-se também num
apren-
dizado das virtudes cívicas, principalmente o amor à pátria e ao governante
na monar-
quia constitucional. Tal pedagogia concorria ainda para moralizar o
brasileiro, pois,
nela, cerceavam-se e regravam-se os costumes, amenizando-os. Assim, as
celebrações
também concorriam para pacificar as discórdias da praça pública, as
reivindicações,
petições populares, suas ações políticas, sociais e cotidianas.
Essa liturgia real moldava uma noção de governante condizente com um
ideário
liberal e mais contemporâneo, embora o investisse de elementos do passado.
Esse
procedimento mostrava a força da permanência, a capacidade de sensibilizar a
lo-
calidade e o hábito ditado pela tradição, a mística do bom rei, que, muitas
vezes,
pesou nas rotinas e atribulações cotidianas ou nas reivindicações e revoltas
locais.
Contudo, os hinos, cantados pela gente da rua inclusive, sua produção,
variedade,
divulgação, quer em papel, quer na hora da celebração, nas tropas, as muitas
pro-
clamações que evocavam o súdito-cidadão deslocavam o lugar do governante que
não mais ambiciona ou pode fazer as leis, determinar sua interpretação, como
se
desejava nos círculos palacianos ou no projeto político pombalino e
reformista de
fins do século XVIII.
Em meio a essas celebrações e ritos, incentivava-se o patriotismo em
cada um.
Isso implicava uma educação de si mesmo em consonância com a pátria. A
esfera
íntima de cada homem precisava relacionar-se com o coletivo, reorganizado em
uma
sociedade guiada pelos princípios do liberalismo constitucional. Nessa
mediação entre
o eu e a coletividade, privilegiava-se o tom cordato e cordial, a
preocupação justa
com o bem comum, um guiar-se pelas Luzes e pela retidão de caráter, pela
moderação,
pela polidez de uma sociabilidade civilizada, norteada pela razão e
instruída pelos
manuais de civilidade.
Parece-me que também aflorou, desde o início do século XIX pelo menos,
uma
ordem discursiva de textos e experiências pessoais, que falavam dessa
educação de si
ao desejar abordar o bem comum. Encontra-se isso numa série de escritos e
tradu-
ções de José da Silva Lisboa. Ele definiu o “bem comum” como uma utilidade
de

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Questões de poder na
fundação do Brasil 231

todos,57 por exemplo: a introdução das aulas de comércio e a Junta do


Comércio, ou
então a necessidade de diplomar comerciantes, para que os negócios se
expandissem.
A partir de Burke, Bentham, Adam Smith, visava garantir a conservação do
homem.
Afirmava, citando Burke:

A idéia de herança fornece seguro princípio de conservação e seguro


princípio de
transmissão, sem todavia excluir o princípio de melhora. Ela deixa
livre os meios
para novas aquisições, mas segura o adquirido.
Quando um Estado se governa por estas máximas, constitui-se uma
sorte de Esta-
belecimento de Família, com a perpetuidade das Corporações de mão-
morta.
Quando a Polícia Constitucional obra sobre o modelo da natureza,
transmitimos
as nossas vidas, e as nossas propriedades. Assim as instituições
saudáveis, os bens
de fortuna, os dons da Providência, se transpassam, como de mão a
mão, de pais
a filhos, na mesma carreira e ordem de operações da Natureza, e
então o Corpo
Político se mantém em saúde habitual de uma boa Constituição.58

Ele não presumia a imutabilidade das formas sociais ou de governo.


Pelo con-
trário, a lei deveria acompanhar as mudanças sociais, almejando a
preservação da
ordem. A mudança da lei garante a continuidade do governo. Aqui, a reforma é
um
elemento-chave da política, porque assegura que o próprio governante altere
a lei
para estar em sintonia com a sociedade civil, o povo e sua gente.
Caracterizava, as-
sim, a “felicidade geral” pela “estabilidade do sistema político”. Propunha,
então,
que a lei ficasse na alçada daquele que soubesse fazê-la e exercê-la, sem
escorregar no
mal revolucionário.

57 Ao tratar da economia política, caracteriza o bem comum: “O transcendente


destino desta Ciência é o
formar e estender o Reino da Justiça Universal, exterminando a violência e
indigência da Sociedade, substi-
tuindo fiel convenção à força; e promover a correspondência da Humanidade em
todos os países, para os
homens reciprocarem, em franco ajuste, seus bens e conhecimentos, a fim de
poder cada indivíduo ter o mais
convinhavel emprego, e a maior possível abundância do necessário, cômodo e
grato à vida, que as suas
circunstâncias admitam. Para este efeito cumpre inquerir as Leis Naturais,
que regulam a produção, acumu-
lação e distribuição dos frutos da terra e indústria dos Estados, e a sua
produção” (Lisboa, 1975, cap. 1).
Posso assinalar que foram subscritores dessa obra os seguintes homens de
elite, envolvidos com “as causas e
coisas do Brasil” entre 1820 e 1830, e pelo Primeiro e Segundo Reinados
adentro: Antônio Caetano da Silva,
Antônio de Menezes Vasconcelos de Drummond, desor. Clemente Ferreira França,
Domingos Alves Moniz
Barreto, Ledo Gonçalves, José Antonio de Maia, vários homens da família
Carneiro de Campos, José Joa-
quim Viana Junior, José Paulo de Figueirôa Nabuco de Araújo, José Rezende
Costa, desor. do paço Luiz José
de Carvalho, Manoel, Clemente de S. Paio Miranda, Mariano José Pereira da
Fonseca, Pedro de Araújo
Lima, monsenhor Pizarro.
58 Burke, 1812:20. Tenha-se claro que a conservação visa a segurança de uma
liberdade civil fundamental:
a propriedade.

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232 A independência brasileira

Ao recuperar Burke, Lisboa explicou a necessidade do culto cívico.


Considerava
a sociedade um grande contrato, uma “companhia” — ou seja, usa um termo mer-
cantil para designar a sociedade civil. “Companhia em toda arte, companhia
em toda
virtude, e em toda perfeição.” Essa sociedade precisa da majestade do culto
cívico,
que funciona como uma consolação pública, quando se homenageia Deus, a reli-
gião, a vida em sociedade. Esse ato, próprio da natureza humana, ajuda a
aperfeiçoar
a virtude do cidadão, de preferência um homem público:

No esplendor modesto do culto público cessam os privilégios da


opulência; e
mostrando-se por ele, que os homens são iguais por natureza, e podem
ser ainda
superiores pela virtude humana, uma porção da geral riqueza do país
vem por este
expediente a ser empregada e santificada.59

Gostaria de considerar que a geração de 1790 não desacreditou da cena


pública
ou a recusou. Essa geração não supunha a liturgia como apetrecho do passado
ou
enfeite do poder real, antes percebia sua necessidade e discutia como
compreendê-la
em sua cultura política. No entanto, há em várias séries documentais de
1810-30
uma forte referência, direta ou indireta, afinada ou divergente, contrária
ou a favor,
ao “súdito-cidadão” — como se vê em destaque na Constituição moral e deveres
do
cidadão com exposição moral pública conforme o espírito da Constituição do
Império.60
Não se falava do cortesão e seus jeitos de bailar, modos à mesa, hierarquias
sociais,
etiquetas pertinentes. Insistia-se muito no homem sábio, de virtude, e
público, que
deve conhecer a Lei Fundamental, a fundação do contrato social, os riscos e
males do
absolutismo, da tirania, da revolução, e vai-se tornando sinônimo de
cidadão. Fala-
va-se de uma educação de si, baseada no senso de moderação, na rejeição da
vaidade
por ser tola e contrária ao bem comum. Este não suporta a vaidade de cada
um, que,

59 Burke, 1812:79.
60 Estuda as virtudes de cada um, da família e sociais, diferenciando-as,
hierarquizando-as, definindo o
comportamento de cada um, sempre almejando a temperança e a moderação e
privilegiando a utilidade. Ele
insiste em que o pai deve avivar mais a utilidade nos filhos e menos a
obediência e a submissão. Bem como
os criados e amos devem cultivar a “recíproca utilidade”. Aí, a probidade
seria “o respeito dos nossos direitos
no dos outros: este respeito se funda sobre um cálculo prudente e bem
combinado dos nossos interesses, compa-
rados aos dos outros” (p. 110). Explorando as relações entre os homens — e
isso envolve uma certa economia
dos afetos, das paixões — o autor definia pátria: “Comunidade dos Cidadãos,
que, reunidos por sentimentos
fraternais, e necessidades recíprocas, fazem de suas forças respectivas uma
força comum, cuja reação sobre
cada um deles toma o caráter conservador e benfazejo de cidadãos, que formam
um Banco de Interesse: na
pátria formam uma família de doces afeições; o patriotismo vem a ser a
caridade ou amor do próximo, com
a extensão à toda Nação” (Lisboa, 1975:115, grifos do autor).

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08/08/2014, 15:03
Questões de poder na
fundação do Brasil 233

se cultivada, não o potencializa. Porque o bem comum passa a ser considerado


uma
utilidade que nasce também do que cada um faz ou empresta de si para o
coletivo.
Quem se envaidece de agir pelo bem comum, propriedade da vida coletiva,
apenas
enaltece a si mesmo e faz o bem comum parecer tolo.

III

Tentei, ao longo do texto, indicar certas tensões entre categorias


procedentes do
Antigo Regime e do liberalismo constitucional, assinalando apenas algumas
reformulações, como na noção de pátria, cidadão, bem comum, pacto. Parece-me
que
algo da estratégia do vintismo, do primeiro liberalismo constitucional e da
emergên-
cia da monarquia constitucional no Brasil reside em parte nesse exercício de
retoma-
da do passado e suas representações, a ponto de (re)significá-los. Pode-se
pensar numa
espécie de “semântica de temporalidades”,61 que recompõe várias noções e
relações
temporais. Nesse sentido, cabe mencionar alguns elementos dessa semântica
das
temporalidades que remetem à experiência política, à reordenação das
identidades
coletivas, aos modos de governar os homens e a si mesmo. Pois parte da boa
atuação
do letrado, do burocrata, do deputado, do eleitor, do impressor, do
“periodista”, do
“publicista”, do “periodiqueiro”, do homem público consistia em reconhecer o
mo-
mento de intervir na sociedade, não perdê-lo, deixá-lo encalacrado no
passado ou
descarrilhado no presente. Certa noção laica e historicizante da
temporalidade passa-
va a imbricar-se ao jogo político mais imediato e cotidiano. Exigia, por sua
vez, um
aprendizado dos modos de apreendê-la.
Houve, grosso modo, uma valorização do “momento imediato” com uma
colora-
ção libertadora. Pois se reconhece que, nesse momento, é possível ter um
gesto herói-
co ou pronunciar a palavra certa e potente. O momento demarca-se pela
intensidade
da ação humana e seu controle. Essa ação e seus desdobramentos precisam ser
doma-
dos sob pena de descambarem na tirania, anarquia, despotismo, revolução. O
ime-
diato vivido pelo indivíduo coincide com a fundação do pacto político e
abarca,
dessa maneira, toda a sociedade, forjando uma relação imprescindível entre o
sujeito
e essa mesma sociedade. Trata-se de um momento vincado por uma grandeza
única
que se assemelha a um “momento de origem”. Nesse momento emerge uma nova
identidade política coletiva do “brasileiro, patriota, cidadão” que se torna
digno da
história, merece ser recordado e narrado.

61 Koselleck, 1990.

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15:03
234 A independência brasileira

No campo da política, estabelece-se um calendário festivo da


monarquia cons-
titucional referido no Brasil, nas conquistas de sua autonomia política e na
persona
do imperador d. Pedro I. Essas datas brasileiras, brasílicas, brasilianas e
monárquicas
seriam celebradas, muitas vezes, com uma retórica do passado de enunciados
regidos
pela tradição política. Em contrapartida, instaura-se um passado comum com
um
teor historicizante, filho da exploração da metrópole Portugal contra a
colônia Brasil
e, aí, vislumbra-se um rumo para o futuro, acionado no presente, que promete
auto-
nomia política ao país.
Nesse mesmo passado comum, reconhecem-se as experiências de amor à
terra —
como o nativismo em Pernambuco — e os gestos, agora considerados
patrióticos,
mas esboçados no tempo de antes e capazes de anunciar a experiência de agora
ou
indicar uma longa tradição de amor à terra. Por seu turno, o presente vivido
delineia-
se pela Regeneração,62 posto que envolvia uma deliberada retomada do
passado,
recolocando o mundo dos homens nos eixos de antes. Igualmente, exclui-se e
esque-
ce-se, por opção, uma certa experiência de passado considerada exemplo de
tirania,
vilania, opressão. Essa noção de regeneração ensejava a mudança com
conservação.
Há, dessa forma, certa ruptura com o passado, na medida em que não se busca
sua
completa restauração. Contudo, ele não é recusado no todo. Antes, prevalece
uma
escolha deliberada do tempo passado que paute o tempo vivido. Em certa
medida, o
presente vivido assemelha-se ao passado, ao ser reinterpretado e (re)criado
por uma
série de chaves históricas e da esfera da memória social que requalificam
tal presente.
Frei Caneca viu na dissolução da Assembléia Constituinte de 1823 um ato
seme-
lhante ao 18 Brumário63 e o vintismo reinterpretou as cortes de Lamego e a
elas se
perfilou. Constitui-se, de formas diversas, um imaginário comum, informado e
con-
figurado por um senso histórico do passado e do presente, que elabora uma
memória
comum do país. Dessa maneira, o Brasil e sua identidade política e coletiva
vão se
colocando como uma categoria incontornável do discurso político e tema
primeiro
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado por muitos desses
letrados
da geração de 1790. Não à toa, nos tetos das varandas de d. Maria, d. João,
d. Pedro,
quando de suas aclamações, reluziam as figuras da Temperança, da Justiça, da
Mag-
nanimidade, e outros atributos reais do Antigo Regime. Na aclamação de d.
Pedro
II,64 o passado do Brasil, sua história e grandeza foram temas do teto da
varanda, e

62 A Regeneração política foi bem sistematizada e apresentada por Borges


Carneiro, em texto de várias tira-
gens e com leitores nos dois lados do Atlântico. Refere-se ao passado,
reencontra as cortes e as insere num
mundo de tradições e luta por liberdade, reformulando sua interpretação no
presente.
63 O Typhis Pernambucano, 25 dez. 1823 (Mello, 2001:304).
64 Coroação e sagração de d. Pedro II, segundo notícia do Jornal do
Commercio de 20 de julho de 1841
(Bonavides e Vieira, s.d.:316-332).

Untitled-1 234
08/08/2014, 15:03
Questões de poder na
fundação do Brasil 235

nele figuravam José Bonifácio, José da Silva Lisboa, Clemente Pereira e


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15:03
Capítulo 7

Insultos impressos: o nascimento da


imprensa no Brasil*

Isabel Lustosa

D a partida do rei, em abril de 1821, até o fechamento da Assembléia,


em no-
vembro de 1823, a imprensa abrigou um debate de características
democráti-
cas, porém sem regras definidas. A situação de instabilidade e indefinição
política
que o país vivia fez com que o debate alcançasse níveis de violência tais
que incluíram
o insulto, o palavrão, os ataques pessoais e até a agressão corporal,
anunciada ou
levada à prática. O processo da independência estimulou a participação
democrática
e, com ela, a emergência de estilos de escrita ricos, variados, originais. A
liberação da
imprensa possibilitou a escritores e leitores brasileiros a abertura para
uma multipli-
cidade de idéias e atitudes.
Foi uma época de grandes disputas verbais. Pode-se dizer que a
independência
foi sendo conquistada pari passu através das campanhas jornalísticas:
primeiro, rea-
gindo aos projetos de recolonização das cortes de Lisboa; segundo, mediante
a inten-

* Este capítulo apresenta de forma resumida os temas trabalhados em meu


livro Insultos impressos: a guerra
dos jornalistas na independência. Creio que a principal contribuição daquele
trabalho foi ter demonstrado
como a imprensa teve papel fundamental no processo de independência.
Procurei identificar as condições
em que se deu seu aparecimento e demarcar suas características. Demonstrei
que os jornais iniciavam sua
publicação anunciando sua intenção pedagógica e como, ao longo dos embates,
essa intenção era desvirtua-
da. Tentei explicar por que a imprensa se constituiu numa esfera pública que
deu lugar a formas de compe-
tição política embrionárias e tão imprevisíveis. E identificar também,
através dos debates, as principais ten-
dências políticas que disputavam o poder. Por outro lado, creio que Insultos
impressos também contribuiu
para recuperar a linguagem que se falava no Brasil daquele tempo, refutando
a idéia de que, no começo do
Novecentos, apenas a linguagem erudita que nos chegou através dos impressos
era praticada.
Untitled-1 241
08/08/2014, 15:03
242 A independência brasileira

sa movimentação de dezembro de 1821, que levou ao Fico no janeiro seguinte;


de-
pois, na campanha pela Constituinte brasileira e, em seguida, quase que
simultanea-
mente, na disputa em torno dos limites do poder que haveria de ter o
imperador.
Essa foi seguida pela Bonifácia, a violenta repressão que sucedeu à falsa
renúncia de
José Bonifácio e de seu gabinete em outubro de 1822.
Os meses que se seguiram — novembro de 1822 a maio de 1823 — só não
foram de total silêncio porque os jornais da situação continuaram a atacar
os adversários
do Andrada. Com a abertura dos trabalhos da Assembléia, em 3 de maio de
1823, no
entanto, os jornais de oposição voltaram a circular. A partir de agosto de
1823, a
configuração da imprensa mudou, com a entrada em cena dos Andrada, agora
opositores do imperador. A intensidade dos ataques dos irmãos paulistas, por
meio
das páginas do Tamoio e de seu aliado casual — a Sentinela da Praia Grande
—,
provocou o fechamento da Assembléia. Todo esse processo teve como atores
jornalis-
tas improvisados. Gente das mais diversas origens e formações, que
aproveitou a
porta aberta pela imprensa para se lançar na vida pública.

Nasce a imprensa

O Brasil colonial, ao contrário de alguns de seus vizinhos na América


Latina,
não tinha universidade.1 Era também um dos únicos países do mundo, salvo os
da
África e da Ásia, que não produzia palavra impressa. Até 1808, data da
chegada de
d. João VI, as letras impressas eram proibidas no Brasil. As poucas
tentativas de se
estabelecer tipografias esbarraram na intransigência das autoridades
portuguesas.2

1 Foi, como diz José Murilo de Carvalho (1981:55), uma política sistemática
do governo português nunca
permitir a instalação de estabelecimentos de ensino superior nas colônias,
com o intuito de impedir o relaxa-
mento da dependência. Em contraste, diz o autor, a Espanha teria permitido
desde o início a criação de
universidades em suas colônias.
2 No governo de Francisco de Castro Morais, um obscuro negociante tentou a
empreitada, fazendo impri-
mir letras de câmbio e orações devotas. Mas a Carta Régia de 8 de junho de
1706 mandou seqüestrar as letras
impressas e notificar os donos da gráfica de que não imprimissem nem
mandassem imprimir livros e papéis
avulsos. Em 1746, durante o governo de Gomes Freire, um antigo impressor de
Lisboa chamado Antônio
Isidoro da Fonseca tentou se estabelecer no Rio de Janeiro com uma gráfica.
Poucos meses depois, uma
Ordem Régia datada de 10 de maio de 1747 mandava que se seqüestrassem e
remetessem para Lisboa as
letras de imprensa idas para o Brasil. Pouco antes da chegada do rei, em
1807, o padre José Joaquim Viegas
de Menezes imprimiu em Vila Rica um opúsculo de 18 páginas. Não usou tipos,
abriu-o em chapas de cobre,
inserindo na capa gravura representando o governador e sua mulher, em
singelo e ingênuo traço. Mais tarde,
em fins de 1820, patrocinado por Manuel Joaquim Barbosa Pimenta e Sal,
chapeleiro e sirgueiro, o padre
Viegas improvisou uma tipografia inteira, moldando e fundindo letras. Ao
solicitar sua licença para funcio-
nar, Pimenta e Sal lembrou que sua gráfica bem merecia o epíteto de
patrícia, pois fora toda feita no Brasil
(Rizzini, 1946:310-315).

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 243

No espetáculo desordenado que foi a fuga da corte portuguesa, merece


desta-
que o homem previdente que salvou o Brasil de ficar ainda algum tempo à
margem
da história. Foi Antônio de Araújo, o conde da Barca, ministro de d. João
VI, quem
lembrou de trazer no porão do navio em que viajou toda uma tipografia.
A Impressão Régia passou a funcionar no próprio dia de sua criação, 13
de
maio de 1808, estampando, em um folheto de 27 páginas, a relação dos
despachos
publicados no dia de anos do príncipe regente. Logo começaria a imprimir a
Gazeta
do Rio de Janeiro.3 Surgida em 10 de setembro de 1808, era apenas uma versão
adaptada da Gazeta de Lisboa, periódico sensaborão que, em sua maior parte,
se
limitava a traduzir artigos publicados na imprensa mais conservadora
européia.
O primeiro redator da Gazeta do Rio de Janeiro foi o frade português
Tibúrcio
José da Rocha, funcionário da mesma secretaria à qual estava vinculada a
gráfica. Em
março de 1812, o frade demitiu-se e foi substituído pelo capitão Manuel
Ferreira de
Araújo Guimarães, no cargo entre 1813 e 1821.4 Ferreira de Araújo também fez
publicar a revista O Patriota, que surgiu em janeiro de 1813 e desapareceu
em de-
zembro de 1814.
A partir da chegada da corte ao Brasil, reduzira-se a censura à
imprensa. Mas
não radicalmente. O jornalismo que se fazia no Brasil antes de 1821 era
aquele típico
dos regimes absolutistas antes da Revolução Francesa. O que se lia aqui
sobre política
entrava sob a forma de impressos clandestinos vindos do exterior, dos quais
o mais
constante e importante era o Correio Braziliense,5 de Hipólito da Costa.
Ainda está para ser avaliada a importância de Hipólito da Costa na
formação
das consciências dos jornalistas que tiveram atuação destacada no processo
da inde-
pendência. Através do Correio, Hipólito teria sido o primeiro brasileiro a
denunciar

3 A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal publicado no Brasil, durou de


10 de setembro de 1808 a 31 de
dezembro de 1822, quando passou a se chamar Diário do Governo, que, com esse
nome, só sobreviveria até
maio de 1824.
4 Ferreira de Araújo (1777-1838) como passou a ser conhecido, era baiano.
Foi professor da Academia de
Marinha de Lisboa, onde estudou, chegando a primeiro-tenente. Matemático e
latinista, com vários livros
publicados, Ferreira de Araújo regressou a Salvador em 1805, acompanhando o
conde da Ponte, com quem
morou. Obteve transferência para o corpo de engenheiros no Rio, com a ajuda
do conde de Linhares. Aqui
lecionou nas academias de Marinha e Militar, chegando ao posto de
brigadeiro. Ingressaria depois na políti-
ca, sendo eleito deputado à primeira Assembléia Nacional Constituinte, em
1823. Apesar de suas tantas
outras atividades foi sempre um ativo jornalista. Dizem que morreu de
desgosto, após ter assumido, em
1837, sem sucesso, a defesa, perante o tribunal, de seu filho, o major
Inocêncio Eustáquio de Araújo, acusa-
do de envolvimento na Revolução de 7 de novembro de 1837 (Blake, v. 6, p.
71-72).
5 O Correio Braziliense, ou Armazém Literário, foi lançado em Londres em 1o
de junho de 1808 e durou até
dezembro de 1822. Seu redator era o brasileiro Hipólito José da Costa
Pereira Furtado de Mendonça.

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244 A independência brasileira

os danos que a escravidão causava, não só à economia como também à cultura e


à
sociedade. Simpático ao modelo da monarquia constitucional inglesa, ele
analisava o
funcionamento da máquina administrativa portuguesa a partir daquela
perspectiva.
Apesar de ter apoiado o processo de independência das colônias espanholas,
Hipólito
foi um crítico intransigente da democracia e das revoluções à moda da
França. De-
fensor do trabalho livre, da livre iniciativa, da liberdade de imprensa, ele
combateu
os monopólios e os tratados que submetiam Portugal e o Brasil à Inglaterra.
Hipólito da Costa nasceu em 1774, na Cisplatina (que hoje compreende o
Uruguai). Com a perda dessa província para a Espanha, em 1778, sua família
mu-
dou-se para o Rio Grande do Sul. Aos 17 anos, Hipólito foi estudar em
Coimbra e
nunca mais retornou ao Brasil. Viveu dois anos nos Estados Unidos, onde se
filiou à
maçonaria; de volta a Portugal, dois anos depois de retornar dos EUA, em
1802, foi
preso por suas atividades maçônicas e preso ficou por três anos, sendo
interrogado
pelo Santo Ofício. Fugiu para Londres em 1805, onde viveu até falecer em
1823. O
Correio Braziliense, primeiro jornal brasileiro, foi publicado em Londres de
1808 a
1822, duas datas decisivas para a nossa história. Surgido no ano da chegada
da corte
ao Brasil, o Correio Braziliense trabalharia para fazer do Brasil sede do
reino portu-
guês e, a partir de 1821, se engajaria na luta pela independência. Com ela,
o jornalis-
ta Hipólito da Costa considerou encerrada a sua missão. Durante 14 anos, um
brasi-
leiro que nascera no Uruguai, formara-se em Portugal, conhecera os EUA e
vivera a
maior parte de sua vida na Inglaterra dedicou-se a publicar um jornal para o
Brasil.
Isso nos leva a pensar sobre os diversos sentidos que a palavra pátria pode
ter.
A Revolução Constitucionalista do Porto, em 1820, revolucionou também
o
Brasil.6 Logo depois que a notícia aqui chegou, surgiu, impresso pela
Impressão
Régia, um panfleto em francês cujo título indagava: Le Roi et la famille
Royale de
Bragance doivent-ils, dans les circonstances présentes, retourner en
Portugal, ou bien rester
au Brésil? Baseado em seis razões, o folheto defendia a permanência da
família Bragança
no Brasil. Era, em tudo e por tudo, uma súmula das idéias do ministro Tomás
Antô-
6 Em 24 de agosto de 1820, eclodiu no Porto a revolução. Marchando as forças
para Lisboa, aí, em 15 de
setembro, foram destituídos os governadores. Criou-se uma Junta Provincial
do Governo Supremo do Rei-
no, que assumiu a forma de um governo quase soberano, se bem que, em nome do
rei. A junta convocou
imediatamente a reunião das antigas cortes da monarquia. “Naturalmente”, diz
Caio Prado Júnior (1947:88),
“esta revolução tem causas internas ao reino português. Dirige-se,
sobretudo, contra a ordem estabelecida em
Portugal, isto é, o absolutismo monárquico e administrativo a ele ligado.
Mas é certo também que o profun-
do dano sofrido pelos interesses portugueses com a nova política adotada
pelo soberano com relação ao Brasil
levou para o lado da revolução setores importantes do reino movidos
unicamente por este fato.”

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 245

nio7 sobre o assunto. Atribuído a F. Cailhé de Geine, um aventureiro,


jogador pro-
fissional, ex-soldado da Revolução, ex-espião a soldo de Napoleão,
informante do
intendente de Polícia,8 o panfleto se fizera imprimir com a rubrica do rei
e, por
recomendação de Tomás Antônio, à custa do Erário. Causou tanta comoção que
foi
mandado recolher.9
Foi esse panfleto acerca da volta do rei que deu início no Brasil à
prática de
qualquer cidadão se manifestar sobre problemas do país por meio de
impressos. Esta
se tornaria bastante comum após a liberação da imprensa, em 2 de março de
1821, e
seria adotada tanto por personalidades como José da Silva Lisboa, o futuro
visconde
de Cairu,10 quanto por gente de extração mais simples, como Luís Augusto
May,
João Soares Lisboa,11 Stephano Grondona,12 entre outros.

Os primeiros jornais

Diz Hélio Viana que foi José da Silva Lisboa, o futuro visconde de
Cairu, o
primeiro brasileiro a redigir e publicar um jornal de sua propriedade. O
Conciliador

7 Figura central dos acontecimentos políticos do final do reinado de d.


João no Brasil, o desembargador
Tomás Antônio de Vila Nova Portugal nasceu em Tomar, em 18 de setembro de
1755. Era chanceler-mor e,
com a morte do conde da Barca (21 de junho de 1817), passou a ministro do
Reino. Morreu pobre, em
Lisboa, a 16 de maio de 1839, tendo seu sustento garantido por um brasileiro
que fora seu protegido, José
Antônio da Costa.
8 O comendador e coronel de cavalaria F. Cailhé de Geine era um antigo
soldado da Revolução Francesa que
se tornara oficial a serviço de Portugal. Após a abdicação de Carlos IV, da
Espanha, foi feito escudeiro
daquele rei. Agia, na verdade, como espião, a soldo de Bonaparte. Jogador
profissional, estabeleceu no Rio
uma roleta que teve de fechar, diante das reclamações dos pais de família. O
negócio era, no entanto, tão
proveitoso que ele e seus sócios ofereceram em troca do privilégio da banca
mandar vir da França e sustentar
um corpo de bombeiros. Diz Oliveira Lima que Cailhé terminou miseravelmente
essa vida de condottiere.
9 Na cópia que ofereceu a d. Leopoldina, José Maria de Andrade Cardoso teve
o cuidado de anotar: “Tem
junto a tradução em português. Este impresso fez-se tão raro que hoje não
aparece por se ter mandado
recolher todos os exemplares que foram impressos em língua francesa” (apud
Varnhagen, 1972:56).
10 José da Silva Lisboa, feito barão de Cairu em 1825 e visconde em 1826,
nasceu na Bahia, em 1756.
Estudou filosofia e direito canônico em Coimbra entre 1774 e 1779. Era um
erudito, dedicado aos estudos
literários, históricos, políticos e econômicos, conhecedor e admirador das
obras de Adam Smith e Edmund
Burke. Atuou na Impressão Régia como censor, mas foi também jornalista e
panfletário ativíssimo. Morreu
em 1835 no Rio.
11 De Luís Augusto May, redator da Malagueta, nascido em Lisboa em 1792 e
falecido no Rio em 1850, e
de João Soares Lisboa falarei a seguir.
12 Do italiano da Sardenha, Joseph Stephano Grondona, que chegou ao Rio em
1818 e foi redator da
Sentinela da Praia Grande, suspeita-se que fosse um carbonário. Em seu
jornal atacava a Santa Aliança e os
portugueses. Os artigos do Brasileiro Resoluto que motivaram o fechamento da
Assembléia foram publicados
na Sentinela de Grondona.

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246 A independência brasileira

do Reino Unido surgiu no Rio de Janeiro em 1o de março de 1821. Quinze dias


depois, vinha à luz O Bem da Ordem, do cônego Francisco Vieira Goulart, e
que, dos
três jornais publicados naquele semestre, teve vida mais longa, pois saiu em
10 par-
tes, entre março e dezembro de 1821. No mesmo mês, apareceu O Amigo do Rei e
da
Nação, de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva,13 que saiu em três partes
entre março
e junho. Todos esses jornais visavam a continuidade da união luso-brasileira
e a per-
manência de d. João VI no Brasil.
Eram jornais escritos e publicados por gente que ocupava cargos
públicos ou
estava ligada a pessoas que os ocupavam. O primeiro, O Conciliador, era
publicado
por Cairu, então membro do Conselho de Censura da Impressão Régia. O
segundo,
redigido por um padre, o cônego Vieira Goulart,14 também funcionário
público,
teve sua publicação subsidiada pelo governo, segundo informa Rizzini,
ficando o
redator com 30 exemplares e vendendo-se o resto pela Impressão Régia. O
terceiro
jornal era publicado por um homem das oportunidades, tipo comum à época, que
aproveitara a ocasião para melhor cortejar o poder. Ovídio Saraiva de
Carvalho e
Silva, nascido em Parnaíba, no Piauí, era um advogado formado em Coimbra
que,
como diz Rizzini, ao longo da vida “muito virou a casaca”.
Como os títulos já anunciavam, eram jornais da conciliação, da ordem,
amigos
do rei e da nação, jornais bem comportados, que se propunham a educar o povo
para
o futuro constitucional que se avizinhava, todos impressos sob a chancela do
censor.
Foram eles que, com a igualmente bem comportada Gazeta, deram o tom da im-
prensa no primeiro semestre de 1821, aquela que acompanhou a agonia do rei,
de-
fendendo-se da pressão das cortes para que retornasse a Portugal.

13 Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva foi eleito deputado para as cortes,


tarefa da qual se escusou. Foi
membro do Apostolado e morreu desembargador. Foi autor de elogios a
personalidades às mais variadas:
Ratcliff; o pai da Domitila, d. João VI, e sobre o 7 de abril, data da queda
de d. Pedro I (Rizzini, 1946:332).
Morreu em 1852.
14 Francisco Vieira Goulart, cônego da Capela Imperial, foi redator da
Gazeta do Rio de Janeiro de 1821 a
1823, quando esta se transformou em Diário do Governo. Pouco se sabe sobre
Vieira Goulart. Sacramento
Blake diz que ele foi cônego da Capela Imperial, que lecionou humanidades em
São Paulo e foi também
sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. Goulart foi também diretor da
Biblioteca Pública no Rio de
Janeiro até sua morte em 21 de agosto de 1839. Organizou a Folhinha de
Algibeira, para o ano de 1823, em
formato in-16º e, segundo Blake, outras que se lhe seguiram. Devia ser um
homem cultíssimo e de variada
gama de conhecimentos. O cônego revelou, no número 8 do Bem da Ordem, sem no
entanto precisar a data,
que fora encarregado dos trabalhos econômicos da província de Minas Gerias.
Demonstrando sofisticados
conhecimentos de demografia, apresentou mapas da distribuição da povoação
brasileira e discutiu questões
de estatística. Blake (1970, v. 3, p. 133-134) registra como de sua autoria
uma Memória sobre os defeitos do
sistema de pesos e medidas que se estava adotando no Brasil, publicada no
ano de 1836. Lúcia Bastos Neves
(1992:84 e 86) diz que o cônego Goulart era bacharel por Coimbra e foi
diretor do Laboratório Químico do
Rio de Janeiro desde 1812. Ele também trabalhou como naturalista na
capitania de São Paulo.

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 247

O jornal do visconde de Cairu foi o mais significativo para o debate


da impren-
sa, pois marca a sua estréia como polemista. O primeiro número de O
Conciliador
surgiu na véspera da promulgação do decreto que liberou a imprensa, em 2 de
mar-
ço. Esse decreto provocou manifestações de descontentamento, pois, ao
retirar a cen-
sura dos manuscritos, transferira-a para as provas tipográficas. Quando não
fossem
conhecidos os autores, os impressores respondiam pelos escritos.
Cairu se contrapôs ao decreto, fazendo a defesa da censura prévia em
seu jornal.
Ele comparava a liberdade de imprensa ao vinho, que atordoa as cabeças
fracas e
arruina os estômagos débeis. Dizia que se a censura “não obstasse os
desvarios no
vulgo”, mais depressa chegaríamos à época das desordens totais. Achava que
aqueles
que sabem manejar as armas da calúnia e do ridículo, num ambiente de ampla
liber-
dade de imprensa, teriam incomparável vantagem sobre o “sábio modesto”. Não

pela vulgar suposição de que “quem dá primeiro, dá duas vezes”; mas também
por-
que pessoas de espírito elevado desdenham de medir-se e emparelhar-se com
celerados.
Afirmava Cairu que a ilimitada liberdade de imprensa nunca existira em
parte
alguma, principalmente em tempos de comoção do Estado. Ele atribuía a uma
ma-
nia do século vir sendo a liberdade de imprensa reclamada como direito do
homem e
do cidadão. A culpa seria dos “sofistas” e dos “pregoeiros de desordens”.
Estes, ale-
gando ter chegado à idade da razão, queriam converter a tipografia em
máquina
infernal, voltada para as “explosões revolucionárias, calúnias atrozes [e]
escritos in-
cendiários”. Os periódicos e papéis avulsos publicados por “ardilosos e
maquinadores”,
alertava ainda Cairu, eram lidos “sofregamente pelas classes inferiores” e
podiam
disseminar no povo idéias incendiárias.
A esses três primeiros jornais vieram se somar outros três, no segundo
semestre
de 1821. Jornais de que falarei a seguir e cujo perfil era bem diverso dos
primeiros,
porque surgiram para combater a política das cortes portuguesas que visava
reduzir o
Brasil ao estágio colonial.15 Os decretos que aqui chegaram no final de 1821
foram
os que mais mobilizaram toda essa imprensa nascente.
O decreto das cortes de 1o de outubro de 1821 determinava que d. Pedro
voltasse para Portugal, de onde passaria a viajar incógnito pela Espanha,
França e

15 Márcia Berbel, no capítulo 3 deste livro, apresenta evidências de que


havia não só mais de um projeto
português para o Brasil, como também mais de um projeto dos deputados do
Brasil para a forma que este
assumiria na nova ordem política. Berbel parte da análise das propostas dos
deputados portugueses nas cortes
de Lisboa para questionar a consagrada tese de que aquelas eram
essencialmente recolonialistas. A meu ver,
porém, foi assim que elas foram recebidas pelos brasileiros do Rio de
Janeiro e de São Paulo que fizeram a
campanha do Fico e, na seqüência, a da Constituinte e a da Independência.
Fato que se torna evidente
quando lemos os jornais e os panfletos brasileiros da época.

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08/08/2014, 15:03
248 A independência brasileira

Inglaterra, sendo acompanhado por pessoas “dotadas de luzes, virtudes e


adesão ao
sistema constitucional, que para este fim S. M. houver por bem de nomear”.
Logo
depois deste, foi promulgado outro decreto, através do qual ficavam extintos
os
tribunais criados por d. João VI no Brasil desde 1808, o que significava o
desem-
prego para cerca de 2 mil funcionários públicos. A Casa da Suplicação do Rio
de
Janeiro, através do mesmo decreto, ficava reduzida a simples Casa de Relação
Provincial.
Publicados na Gazeta Extraordinária do dia 11 de dezembro, os decretos
das
cortes relativos aos tribunais e ao príncipe caíram como uma bomba no Rio de
Janeiro. O clamor foi geral. No dia 12 de dezembro de 1821, apareceu
impresso
pela Tipografia Nacional um folheto anônimo intitulado O Despertador
Brasiliense.
Dizia ele ser a resolução das cortes “ilegal, injuriosa e impolítica” e
acusava os
portugueses de estarem “a fomentar o cisma”. Sugeria como os brasileiros
deveriam
se dirigir a d. Pedro: expondo-lhe que o país não poderia perder as
vantagens e a
representação de que já gozava. Considerava nula a alegada transferência da
sede
da monarquia para Lisboa. Se as cortes reconheciam que a força da nação
residia
na ligação de todas as suas partes constitutivas, não deveriam dividir o
Brasil e
impedir a permanência aqui do príncipe. Pedia ao herdeiro que, para o bem do
Brasil, não partisse. E concluía:

Vede, ó brasileiros, o que, em tal conjuntura melhor vos convém: se


ficardes sujeitos,
como dantes, a Portugal, onde seus representantes decidem de vossa
sorte sem serdes
ouvidos, ou pugnardes pela conservação dos vossos direitos, rejeitando
quanto se
tem determinado a respeito do Brasil, sem efetiva assistência de
vossos deputados,
como seria necessário, para se tornarem valiosas essas deliberações.
(...) Eis o mo-
mento em que deveis decidir-vos. Lançai mão dele: se o perderes, não
podereis
jamais reavê-lo, senão com muito custo, ou talvez com efusão de muito
sangue.

Hélio Viana atribui a Cairu a autoria de O Despertador Brasiliense. O


panfleto
aconselhava os brasileiros a desobedecer às decisões das cortes e a
conservar o prínci-
pe no Brasil. Seria mesmo de Cairu esse discurso? Ele, o aguerrido defensor
da cen-
sura em nome da preservação da ordem, ele que fora criticado por Hipólito da
Costa
justamente por pregar a obediência cega não só ao soberano, mas também aos
seus
funcionários? No entanto, há que se considerar que as atitudes das cortes
naquele
momento feriam de morte os interesses brasileiros e que, do ponto de vista
de al-
guém tão leal ao trono, as cortes é que eram subversivas. E, naquele final
do ano de

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15:03
Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 249

1821, nas antevésperas do Fico, o interesse central de todos era dar combate
às idéias
que estavam se convertendo em lei nas cortes de Lisboa.16
Cairu publicaria outro panfleto em janeiro de 1822: a Heroicidade
Brasileira,
que foi mandado recolher. Na Heroicidade, louvava d. Pedro e sua atitude
diante da
Divisão Auxiliadora, as tropas portuguesas que o príncipe enfrentara e
expulsara do
Brasil. Ainda no mesmo mês iniciou a publicação da Reclamação do Brasil, que
teve
14 partes. Nas duas últimas, atacava violentamente o projeto dos liberais de
uma
Constituinte brasileira, dando início à violenta polêmica que se estenderia
por todo
o período e que demarcaria os campos políticos.

A imprensa liberal

O Revérbero, O Espelho e A Malagueta surgiram, nessa seqüência, no


segundo
semestre de 1821 e diferiam totalmente dos três jornais aparecidos no
primeiro se-
mestre daquele ano. Apesar de ainda se desmancharem em reverências ao
príncipe,
cada um deles foi publicado por conta e risco de seus redatores e
representavam
opiniões divergentes sobre a condução do processo político.
O mais verboso e também o mais importante deles para o processo da
indepen-
dência foi O Revérbero Constitucional Fluminense, primeiro jornal
politicamente in-
dependente a surgir no Rio. Publicado pelo conhecido líder maçônico Joaquim
Gon-
çalves Ledo e por Januário da Cunha Barbosa, grande orador sacro, cônego da
Capela
Real, O Revérbero era independente porque, ao contrário dos jornais surgidos
no
primeiro semestre daquele ano, seus redatores não estavam comprometidos de
forma
alguma com o governo. Depois que estouraram no Rio os decretos de 29 de
setem-
bro e 1o de outubro, O Revérbero se somou aos demais brasileiros que se
manifesta-
ram contra aquelas medidas e seus redatores se distinguiram na liderança da
campa-
nha pelo Fico. O estilo grandiloqüente, a exagerada retórica, na qual se
misturavam
a oratória sacra com os mais batidos chavões de 1789, e a seriedade e o bom
nome de
Ledo e Januário contribuíam para o sucesso de O Revérbero.
Quinze dias depois do lançamento de O Revérbero, a 1o de outubro,
Ferreira de
Araújo, ex-redator da Gazeta do Rio de Janeiro, lançava O Espelho, jornal
que publica-
ria os artigos mais insultuosos daquele período e no qual d. Pedro
escreveria.

16 No mesmo dia em que circulou O Despertador, 12 de dezembro, foi dirigida


ao príncipe uma respeitosa
representação para que não partisse. O príncipe ainda estava decidido a
obedecer à resolução das cortes.
Intensificou-se naquele momento a campanha que tivera início no mês de
julho, logo que aqui chegaram as
primeiras notícias dos planos de dividir o Brasil meditados em Portugal.

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250 A independência brasileira

O Espelho tinha como redator o único jornalista profissional do Rio de


Janeiro, o
coronel Ferreira de Araújo, que vinha de quase 10 anos de atuação na
imprensa,
período durante o qual, além da Gazeta, publicara O Patriota. Mas Ferreira
de Araú-
jo não estava comprometido com os liberais, nem se pode dizer que fosse um
valente
defensor do trono e do altar, como Cairu. As atitudes assumidas pelo Espelho
eram
mais orientadas por ligações pessoais de Araújo com pessoas próximas ao
príncipe e,
logo depois, com José Bonifácio, do que por uma agenda de princípios
políticos bem
definidos que ele pretendesse ver aplicados, como era o caso dos redatores
de
O Revérbero e de A Malagueta. É possível até que O Espelho já tenha surgido
para
atender à demanda por um veículo que se contrapusesse a O Revérbero. O fato
é que
O Espelho abrigaria, durante 1822 e início de 1823, os mais agressivos
artigos contra
A Malagueta e contra o grupo de Ledo.
O redator de A Malagueta era o português Luís Augusto May. Nascido em
1782, May estivera em Londres, como funcionário da Secretaria da Legação
Estran-
geira. Por volta de 1810, viera para o Brasil. Funcionário público, May viu
seu cargo
ameaçado pelas medidas das cortes portuguesas que determinavam o fechamento
de
várias repartições públicas. Foi por isso, como ele mesmo disse, que “teve
de tirar seus
cuidados dos sonhos na sua reforma e aposentadoria [e lançar-se] “no campo
raso da
liberdade da imprensa”, com a publicação, em 18 de dezembro de 1821, do
primeiro
número de A Malagueta.
A repercussão de A Malagueta foi imediata. O jornal de May logo se
tornou o
mais popular na corte, chegando a contar com 500 assinantes no Rio de
Janeiro.
May nunca foi maçom, como declararia mais tarde. Agia por conta própria.
Dizia
não ser “constitucional por contrato, nem corcunda por inclinação, nem
republica-
no” e alegava ter sido “educado à sombra da Magna Carta e do Bill dos
Direitos do
Homem”.17
Seus ataques eram velados. Valia-se do recurso de fazer anteceder o
ataque à
atitude do adversário de um imenso elogio às suas qualidades pessoais. Além
das
críticas aos ministros, gradativamente mais constantes, emitia opiniões
sobre a atua-
ção de d. Pedro, ressaltando a imaturidade do imperador.
Ao longo de sua trajetória, May desempenharia o contraditório papel de
crítico
do governo, adepto de um projeto liberal, e de mais constante bajulador do
trono.
Ao mesmo tempo, em meio aos circunlóquios em que vinham envolvidas suas
críti-
cas, havia muito bom senso, pensamentos bastante razoáveis, e todos
reconheciam

17 A Malagueta, n. 1, 18 dez. 1821.

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15:03
Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 251

seus conhecimentos. O próprio O Espelho o chamaria de sábio, sapientíssimo,


antes
de criticar as expressões populares ou neologismos que A Malagueta usava com
muita
tranqüilidade.
Mas o jornal de maior importância para os acontecimentos de 1822 foi o
Cor-
reio do Rio de Janeiro, de João Soares Lisboa, que surgiu em 10 de abril de
1822.18
Logo após seu lançamento, dele receberia notícias na Europa o príncipe de
Metternich:
“De nouveaux placards parurent, et un journal, le Courrier de Rio de Janeiro
se mit a
discuter le droit du prince comme régent de créer un conseil d’État”.19 O
Correio logo se
revelaria a folha mais claramente radical do Rio: seria a primeira a pedir a
criação de
uma Assembléia Constituinte no Brasil. O estilo popular do jornalista se
revelou
desde o primeiro número. Nele, Soares Lisboa dizia que o Correio se propunha
a
divulgar toda a correspondência recebida, contanto que não encerrasse
diatribes e
sarcasmos, porque, acrescentava ele, “não prostituiremos a nossa folha a
semelhante
linguagem: argumentar é próprio do homem livre, bem educado; atacar é
próprio de
quem não teve educação, nem adquiriu sentimentos de honra”.
Quando lançou o Correio, Soares Lisboa já vivia no Brasil há 23 anos.
Conside-
rava-se por isso mais brasileiro do que português. Lúcia Bastos Neves
(1992:91)
classifica-o entre os jornalistas que eram também negociantes. Ela descobriu
que, em
1818, Soares Lisboa obteve matrícula como negociante de grosso trato na Real
Junta
do Comércio, a partir de declaração de que ele “se achava estabelecido com
créditos
e fundos proporcionados para o giro de seu negócio, tendo além disso
instrução
suficiente de Comércio e Escrituração Mercantil”. Possivelmente por conta de
sua
modesta ocupação e de seus poucos estudos, procuraram levantar a suspeita de
que
não eram dele os textos publicados no Correio. De vez em quando, derrapava
no
vernáculo. Caíam-lhe na pele os adversários mais ilustrados. Ao contrário da
maioria
daqueles com quem debatia, não tinha curso superior, não estivera em
Coimbra.
Viera de Portugal muito moço.
João Soares Lisboa afirmava que pessoa alguma influía nos seus
escritos e que,
apesar de conhecer de perto alguns ministros de Estado, desde que se tornara
redator
não falara com qualquer um deles. Tentariam seus inimigos acusá-lo de vira-
casaca e
de ter passado a escrever após ver frustrado o pleito a um cargo público.
Acusações
caluniosas que a própria situação do jornalista cuidava de desmentir. Contra
ele, de

18 O jornal teve duas fases, de 10 de abril a 21 de outubro de 1822 e de 1o


de agosto a 24 de novembro de
1823. Teve também várias edições extraordinárias entre 24 de maio e 31 de
julho de 1823.
19 Mello, 1917:58.

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252 A independência brasileira

fato, não pesavam acusações de venalidade ou conivência de qualquer espécie.


Os
adversários nada mais encontraram para dizer dele senão que era gordo,
esfarrapado,
louco varrido, inconseqüente, contraditório e que seu jornal era a folha do
“sans-
cullottismo”.
Sua leitura dos episódios relativos ao Fico e outras situações em que
d. Pedro
fora levado a tomar decisões em virtude da pressão popular é francamente
democrá-
tica. O Correio foi o jornal que esteve à frente dos acontecimentos que
resultaram na
aclamação de d. Pedro como imperador do Brasil em 12 de outubro daquele ano.
Soares Lisboa foi também um dos que, com mais determinação, defendeu a
cláusula
do juramento prévio e combateu o direito de veto do imperador às leis que
fizesse a
Constituinte, granjeando, através dessas campanhas, a definitiva inimizade
de José
Bonifácio.
Quando se tratou de apresentar ao príncipe a representação pedindo a
criação
de uma Assembléia Constituinte para o Brasil, divergiram seus autores sobre
se deve-
riam ser diretas ou indiretas as eleições para deputado. Por isso julgaram
útil que cada
um dos assinantes declarasse, depois do nome, sua opinião. Em virtude dessa
decisão,
João Soares Lisboa, que era um dos seis signatários do documento, tinha
avisado ao
público que este estava na tipografia para quem quisesse se manifestar a
respeito. Fo-
ram colhidas cerca de 6 mil assinaturas, a maioria optando pelas diretas.20
Por isso, quando o príncipe decretou que as eleições para a
Constituinte seriam
indiretas, Soares Lisboa, para usar a feliz expressão de Carlos Rizzini
(1946:397),
subiu a serra e escreveu: “Quem autorizou S.A.R. para mandar o contrário
daquilo
que lhe representaram os povos desta província?”. Por conta dessa
interpelação, Soa-
res Lisboa teve o dissabor de concluir o no 70 de seu jornal (CRJ, 8 jul.
1822) com a
seguinte nota:

Tínhamos a pouco acabado de escrever as linhas que acima ficam e


eram duas e
meia da tarde quando fomos intimados pelo escrivão do Crime da
Corte e Casa
de Suplicação para, em 24 horas, escolhermos de 24 Ilustres
cidadãos, 8, que
devem ser nossos juizes de fato sobre uma acusação que de nós fez
o Procurador
da Coroa, França, por causa do no 64 do nosso periódico .
Era o que preceituava o decreto lavrado por José Bonifácio sobre os
crimes de
abuso contra a liberdade de imprensa.

20 Ver Correio do Rio de Janeiro, n. 101, 14 ago. 1822; n. 106, 21 ago.


1822; e n. 110, 26 ago. 1822.

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Insultos impressos: o
nascimento da imprensa no Brasil 253

Antes do julgamento de Soares Lisboa, no entanto, já se manifestavam


os fiéis
admiradores do jornalista. No dia 9 de julho de 1822, um deles escreveu
lembrando
que, como aquele seria o primeiro júri brasileiro, tinha de “fazer época”.
Apostava,
otimista, que não seria manchada a “aliança da liberdade”, condenando-se
como
“subversivo do sistema constitucional brasílico [um dos] cidadãos que
primeiro le-
vantou a voz pela sua solene emancipação; exceto se tiver por juizes homens
interes-
sados em aniquilar este mesmo sistema, o que nunca é de supor (sic)”.
O julgamento de João Soares Lisboa, primeiro jornalista a ser
processado com
base na Lei de Imprensa no Brasil, contribuiu para aumentar-lhe o prestígio.
Levado
a júri em 1o de agosto, foi absolvido. Atendendo a pedidos, o jornalista
prometeu
publicar seu processo, que chamou de “troféu da vitória que no templo da
Imortali-
dade colocaram os nunca assaz louvados Juizes de Fato: os Jurados”.
Comemorou a
absolvição dizendo que ela era uma demonstração de que “o Brasil é o país da
liber-
dade” e que no Rio de Janeiro não existe mais o despotismo, nem a
arbitrariedade,
que “já não treme a mão do escritor imparcial”.21
O Correio do Rio de Janeiro foi o jornal mais popular do período. As
cartas de
seus leitores, ao contrário da maioria das publicadas nos outros jornais,
parecem
mesmo autênticas. Elas são repletas de chavões, nos quais se repetem
críticas ao des-
potismo e se exaltam a liberdade e os direitos do cidadão. Ordenadas em
parágrafos
nos quais a pouca prática da escrita alia-se a um palavreado ingênuo e
pretensioso, as
cartas do Correio formam um curioso documento da difusão do ideário da
Revolu-
ção Francesa nos trópicos.
Entre as polêmicas que animaram a imprensa da independência, merece
espe-
cial destaque o embate travado entre os dois Lisboa. De um lado: José da
Silva,
futuro visconde de Cairu, ilustrado, versado nos clássicos, conhecedor do
latim, fa-
miliarizado com a literatura política inglesa e francesa. De outro: João
Soares, um
modesto comerciante empolgado pelas idéias do tempo, movido pela paixão por
instituições que, naquelas circunstâncias, tinham um caráter quase
ficcional: direitos
do cidadão, Constituição e democracia.
Cairu incitaria o Brasil a desobedecer às cortes na série de panfletos
que fez
publicar a partir de janeiro de 1822. A Reclamação do Brasil, publicada em
14 partes,
seria, no entanto, o estopim dos primeiros ataques dos radicais a Cairu. Ao
tomar
conhecimento de que corria na cidade um abaixo-assinado — a Representação do
povo do Rio de Janeiro —, pedindo a instalação de uma Constituinte
brasileira, Cairu

21 Correio do Rio de Janeiro, n. 93, 5 ago. 1822.

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254 A independência brasileira

protestou. Ele achava que tal iniciativa desautorizava e punha em risco os


nossos
deputados nas cortes de Lisboa. O mais radical nas críticas ao antigo censor
foi mes-
mo seu quase homônimo, João Soares Lisboa.
Soares Lisboa e seus leitores contribuiriam para fixar a imagem de
Cairu através
dos adjetivos que lançaram contra ele ao longo daquele ano de 1822: “servil,
teimo-
so, adulador, cheio de vaidade e de velhice”. Cairu, que se assinava em
alguns de seus
panfletos Fiel à Nação, mais parecia, segundo um correspondente do Correio,
fiel “ao
despotismo, egoísmo e a tudo que termina em ismo”. As doutrinas propagadas
nos
panfletos de Cairu seriam frenéticas e desprezíveis, por conta da
decrepitude e da
senilidade de seu autor (Cairu tinha 66 anos em 1822).
A partir da campanha pela Constituinte brasileira iniciada em seu
jornal, João
Soares Lisboa, por sua vez, tornar-se-ia o alvo preferencial do grupo
liderado por José
Bonifácio. Este grupo, do qual fazia parte o regente d. Pedro, usaria as
páginas de
O Espelho para atacar o jornalista, especialmente nas cartas assinadas por
Aristarco.
Nelas, afirma-se que Soares Lisboa não era o autor dos artigos publicados em
seu
jornal, pois “a desigualdade do estilo, não para melhor, mas sempre para
pior, mostra
bem que a panela é mexida por muitos”.
Propõe O Espelho que o jornal de João Soares mude de nome e passe a se
chamar
Catraia, porque o Correio seria apenas “o condutor do lixo, da espuma, e do
vômito
dalguns petits philosophes sans façon”. Diz a Soares Lisboa que, enquanto o
ministro
da Justiça não quer mandar correr os banhos, para que ele possa se casar com
a viúva
da Prainha, ele “vá guardando o fogo sagrado com as vestais da Rua da Vala e
não
mude de casa; porque mesmo o senhor é uma vala, onde se lançam todas as
imundí-
cies da imoralidade pública”. Aludindo à modesta origem do jornalista,
sugere que
Soares Lisboa procure um outro ofício: “um armarinho com agulhas dá para
viver,
um botequim viajor também deixa ir passando o dono e o rendeiro; um caniço
não
é má lembrança”.

A Bonifácia

Essas animadas polêmicas aconteceram às vésperas da independência.


Depois
da volta de d. Pedro da província de São Paulo, o quadro mudou. Tratava-se
agora de
estabelecer a feição do novo Estado. Queriam os maçons, liderados pelos
redatores
de O Revérbero, que constasse da cerimônia de aclamação de d. Pedro seu
juramento
prévio à Constituinte que estava para se fazer. Era uma forma de submetê-lo
ao
Legislativo. A medida desagrou a José Bonifácio, que a combateu duramente.
Entre
o Andrada e a maçonaria, liderada por Gonçalves Ledo, d. Pedro hesitava.

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 255

A 19 de outubro de 1822, uma semana depois da festa da aclamação de


d. Pedro, o Correio do Rio de Janeiro saudou o imperador chamando-o de Pedro
Luso
Brasileiro e narrando episódio em que d. Pedro teria dito: “Entre amigos,
não há o
que temer”. Indagava então o eufórico redator do Correio: “E como há de ter
inimi-
gos quem se esforça quanto pode por mostrar que de todos é amigo?”. Seu
entusias-
mo se devia justamente ao fato de, no dia da aclamação, não terem sido
concedidos
títulos e outras mercês. Para ele, esta era uma prova de que não iria surgir
uma
aristocracia brasileira, de que eram democráticos os sentimentos do
príncipe. E Soa-
res Lisboa iria ainda mais longe em seu deslumbramento, publicando em sua
folha
que d. Pedro, ao aceitar o título de imperador, teria afirmado:

O Brasil pretende e deve ser livre para ser feliz e se os povos


manifestarem geral
desejo de serem republicanos, não acharão em mim oposição; antes
farei quanto
puder para que o consiga e eu me contento em ser seu concidadão.22

Mas foi a passagem em que exclamava: “Eis o homem singular! Eis o


Pedro 1º
sem 2º! Eis um puro democrata!!!” que, segundo contaria Mareschal,
“excitèrent la
colère de SAR”. O Pedro Primeiro sem Segundo (no sentido de que depois dele
viria a
República), o verdadeiro democrata, o homem que diria que, se os brasileiros
quises-
sem a República, ele aceitaria se tornar um simples cidadão, ainda estava
para nascer.
Aquela camisa era apertada para um governante que, como disse Otávio
Tarquínio
de Sousa, estava convencido de que, como príncipe, como herói, estava-lhe
reserva-
do um destino excepcional. Logo se pronunciaria O Espelho contra a saudação
de
Soares Lisboa, inquirindo sobre o seu real sentido.

Como estou no caso de confessar a minha ignorância, desejo também


que se me
explique a causa por que S.M.I. é puro democrata e é intitulado no
mesmo peri-
ódico por Pedro 1º sem 2º. A ignorância e a malícia apanham
palavras, convém
clareza e verdade. Sr. redator, expliquem-se estes oráculos e
veremos se são de
Apolo ou de Plutão. Alerta, brasileiros!23

Em virtude de seu artigo, Soares Lisboa foi intimado a comparecer, no


dia 21
de outubro, perante o intendente-geral da polícia, João Inácio da Cunha.
Ali, obriga-

22 Sousa,1952:477. “Teria D. Pedro feito tal declaração? Talvez num arroubo


de liberalismo agudo” (Ibid.,
p. 477).
23 O Espelho, n. 97, 22 out. 1822.

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256 A independência brasileira

ram-no a assinar um termo pelo qual ficava proibido de escrever e era também
inti-
mado a deixar o país “nas primeiras embarcações que deste porto se fizerem à
vela”.
Teria que cumprir essas determinações dentro do exíguo prazo de oito dias.
O artigo de Soares Lisboa chamando d. Pedro de democrata também
estimulou
José Bonifácio a tomar outras providências contra o grupo dos que assinaram
a re-
presentação de 20 de maio pedindo Cortes para o Brasil. Foi aberta uma
devassa
baseada no boato de que Ledo e os demais signatários da representação
tramavam
um golpe para derrubar o ministério. No dia 23 de outubro já não saiu o
Correio e
nova portaria ordenava ao intendente João Inácio da Cunha que tratasse
pessoalmente
de descobrir e processar, com todo o rigor das leis, os “perversos [que
urdiam] tramas
infernais, não só contra os honrados amigos do imperador, como até contra a
precio-
sa vida do mesmo senhor”.
Em 2 de novembro, após um processo relâmpago de renúncia e volta dos
Andrada
ao ministério, foi aberta a devassa que passou à história com o nome de
Bonifácia.
Acusava de crime de “inconfidência ou conjuração ou demagogia”, entre
outros,
Ledo, Januário e João Soares Lisboa, este como responsável pelo jornal da
conspira-
ção. No dia 4 de novembro, o intendente de polícia publicou editais a esse
respeito,
“convocando todos os cidadãos honrados e zelosos da tranqüilidade pública a
virem
à sua casa delatar quanto soubessem”. Ledo e Soares Lisboa fugiram para
Buenos
Aires, a fim de escapar da prisão. O clima de perseguição aos adversários
prosseguiu
na imprensa através das páginas de O Espelho e, a partir de janeiro de 1823,
do Diário
do Governo, que apareceu para substituir a Gazeta do Rio de Janeiro.
No começo de 1823, o jornal O Espelho publicou violento artigo contra
Luís
Augusto May, um dos que primeiro apoiara o projeto de uma Constituinte
brasilei-
ra. Mas José Bonifácio, informado de que o jornalista era sensível a ofertas
de vanta-
gens pessoais, resolveu acenar-lhe com um lugar importante em Washington.
Uma
divergência em torno do valor do salário de May prolongou as negociações e
fez
gorar o negócio. May viu chegar o final do ano de 1822 sem o cargo e sem o
prestígio
que lhe dava o jornal, que deixara de publicar em junho.
Diante da frustração, May sentiu-se novamente tomado de brios liberais
e man-
dou recado ao ministério dizendo que tencionava retomar a publicação de A
Malagueta
para denunciar a perseguição do ministério aos seus antigos aliados. Antes
que levas-
se a cabo a ameaça, May foi tema de um interessantíssimo artigo publicado em
O Espelho de 9 de janeiro de 1823 sob o título “Calmante no ou da
Malagueta”.
Insinuava-se ali, entre outras coisas, que May devia sua trajetória à
relação que man-
tivera com o conde das Galveias, cujo nome era citado inúmeras vezes: “as
coxas por
fora não parecem más, se são macias haja vista ao Conde das Galveias;(...) o
nariz

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 257

mostra bem a razão do amor que lhe teve o conde das Galveias”. De forma
chula e
ignóbil, o artigo fazia, a seguir, referência ainda mais explícita ao
conhecido homos-
sexualismo do conde.
Quem lê hoje esse artigo tem certeza de que seu autor não se deteria
diante de
qualquer impedimento moral ou legal para escrever ofensas. Ele escreve
ciente da
impunidade, em texto coloquial, que tem momentos francamente humorísticos.

muitas semelhanças com o estilo dos artigos igualmente ofensivos que tiveram
como
alvo João Soares Lisboa, e que os historiadores confirmaram terem saído da
pena de
d. Pedro I.
No começo do ano de 1823, a imprensa que ficara ativa no Rio era
francamente
favorável ao gabinete Andrada. Mas o início dos trabalhos da Constituinte,
em 3 de
maio, inverteria esse quadro. Da tribuna da Câmara seus adversários puderam
pro-
testar livremente. João Soares Lisboa logo estaria de volta. Não suportara o
exílio.
Tomou um barco americano e voltou, acreditando que se acharia já funcionando
a
Assembléia e que seria por ela protegido. Chegou no Rio a 17 de fevereiro de
1823.
Foi imediatamente preso. Sinal dos tempos singulares em que se vivia, foi a
retomada
pelo jornalista, naquelas circunstâncias, da publicação de seu jornal.

Este periódico há de continuar diário em números extraordinários até o


fim do
corrente mês, e abre-se subscrição mensal para ser entregue
diariamente nas casas
dos Srs. subscritores. Preço da subscrição: 1$600 por mês. Quem quiser
subscre-
ver dirija-se à Cadeia, onde atualmente reside o Redator.
(Correio do Rio de Janeiro,
28 jul. 1823)

Luís Augusto May, depois de esperar longamente que d. Pedro I


divulgasse
declaração de que nada tivera a ver com o infame artigo de O Espelho,
publicou, em
5 de julho de 1823, o segundo número de A Malagueta Extraordinária. Fazia
ali
acusações diretas ao gabinete Andrada e, bem no estilo do jornalista,
sinuosas indire-
tas contra o imperador. No dia seguinte, à noite, um grupo de embuçados
invadiu
sua casa e deu-lhe surra violenta. Na Assembléia, May foi imediatamente
elevado a
mártir da imprensa amordaçada pelo governo dos Andrada.
Fervia a disputa entre José Bonifácio e a Assembléia, com muitos
ataques de
parte a parte através do Diário do Governo e dos demais jornais que então
circulavam
na cidade. A exemplo do que acontecera com João Soares Lisboa em julho do
ano
anterior, agora era a Assembléia que levava a julgamento autores de artigos
publica-
dos na imprensa considerados ofensivos àquela casa. A absolvição dos
implicados na
Bonifácia aconteceu quando d. Pedro convalescia de um acidente de cavalo em
que

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15:03
258 A independência brasileira

quebrara algumas costelas. Recolhido ao leito, o imperador foi visitado


tanto pelos
réus daquela devassa, quanto por quase todos os deputados da Assembléia. O
rosário
de queixas contra os Andrada era imenso.

O Tamoio, a Sentinela e a dissolução da Assembléia

A 16 de julho de 1823, José Bonifácio pedia demissão do ministério.


Com a
queda do gabinete Andrada verifica-se um rearranjo das forças envolvidas nas
dispu-
tas em torno do poder. O Correio do Rio de Janeiro de João Soares Lisboa
passa a ser
publicado regularmente, ainda que o jornalista continuasse preso. Soares
Lisboa se
afastaria dos amigos a que estivera ligado antes da Bonifácia: de todos os
implicados
na devassa, apenas ele tinha sido condenado. Já no Brasil daquele tempo,
conforme
pôde constatar o jornalista, valia o rifão: “quem não tem padrinho morre
mouro”.
Lendo-se atentamente seu jornal, não se pode concordar com a
afirmativa de
Carlos Rizzini de que João Soares Lisboa era o jornalista que melhor
escrevia no seu
tempo. Seus melhores artigos haviam sido escritos em 1823, na prisão. Aí, de
fato, o
próprio caráter dramático da situação que vivia, aliado à sua natureza
apaixonada,
daria beleza às suas composições. Não se pode, igualmente, concordar com
Otávio
Tarquínio de Sousa, quando se refere a Soares Lisboa como o trêfego
jornalista. Ou
com o embaixador da Áustria no Brasil, Wenzel de Mareschal, quando, em uma
das
tantas cartas que mandou ao conde de Metternich, cita um panfleto, inspirado
pelos
Andrada, pedindo a expulsão do “imbécile rédacteur du Courieur”.24 Havia
muito de
preconceito, não só político, mas também social, na avaliação que os
contemporâ-
neos fizeram do jornalista.
João Soares Lisboa era um apaixonado. O tom de seus discursos é
febril, direto,
vibrante. Não fosse por isso, poderia ser considerado, tal como José
Bonifácio classi-
ficara Ledo e Januário, apenas um repetidor “dos mais cediços lugares comuns
da
Retórica de 1789”.25 Visionário, Lisboa não se detinha ante o perigo. Ia
lançando
bandeiras e colecionando inimigos, parecendo não se dar conta do quanto se
tornava
odiado. Muitos de seus textos lembram a comuna de Paris. E gostava de
entremeá-los
com versos do tipo: “Q’importe à l’homme libre un sceptre./ un diadème?/ Se
il marche
égal aux rois/ il est roi de lui même”. O rei de si mesmo diria: “seremos
vítimas, porém
nunca escravos”. A história cuidaria de fazê-lo cumprir essa sentença.

24 Mello, 1917:122.
25 Sousa, 1945:143.

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15:03
Insultos impressos: o nascimento da imprensa
no Brasil 259

As novidades da cena impressa do segundo semestre de 1823 estariam com


os
dois jornais a movimentar a corte do Rio de Janeiro até a dissolução da
Assembléia:
O Tamoio e A Sentinela da Liberdade na Guarita da Praia Grande. O Tamoio foi
o
jornal que o grupo andradista passou a publicar menos de um mês após deixar
o
governo. Jornal dos mais bem escritos daquele período, O Tamoio era o que
tinha o
tom mais veemente. A retórica de que se valiam na Assembléia os dois Andrada
mais
novos, Antônio Carlos e Martim Francisco, ganharia lugar em suas páginas. Ao
mes-
mo tempo, a intenção do jornal já transparecia no título escolhido. Ele
vinha, tal
como fizeram os tamoios no Rio de Janeiro do princípio da colonização, dar
comba-
te ao elemento português. Vinha lutar contra os privilégios dos antigos
colonizado-
res, mantidos mesmo depois da independência. Tratava-se de fazer com que
voltas-
sem para Portugal e deixassem cá os brasileiros. Mensagem que era também,
ainda
que indiretamente, dirigida ao imperador, nem tanto por ter nascido em
Portugal,
mas por viver agora cercado de amigos e auxiliares portugueses.
A passagem para a oposição, no entanto, não aproximou os Andrada dos
seus
antigos adversários. O Tamoio atacava também os radicais do Rio, como Soares
Lis-
boa e seus correspondentes de Pernambuco, frei Caneca e Cipriano Barata,
redator
de A Sentinela da Liberdade. Esta, publicada em Recife, era reproduzida em
grande
parte pelo Correio. Barata e Caneca defendiam a autonomia das províncias e
eram
partidários ferrenhos do sistema federativo. Eles combateram o projeto
constitucio-
nal dos Andrada e se manifestaram contra a existência de duas câmaras,
contra a
concessão ao imperador do poder das armas e do poder de veto sobre as leis
votadas
pela Assembléia. Para os radicais, o projeto constitucional defendido pelos
Andrada
e também por Hipólito da Costa era aristocrático.
Em 6 de agosto de 1823, surgiu no Rio um jornal homônimo ao do Barata:
Sentinela da Liberdade à Beira do Mar da Praia Grande. Seu redator logo se
tornaria
conhecido de todos, pois, por conta de artigo considerado ofensivo à honra
de
d. João VI — e, em decorrência, à de seu filho Pedro I, como argumentou a
acusação
— foi levado a julgamento. José Estevão Grondona nascera na Sardenha e se
estabe-
lecera no Rio de Janeiro desde 1817 como restaurador de quadros. Era
claramente
um carbonário e o texto de seu jornal está eivado de provocações contra as
monar-
quias européias e a Santa Aliança. Apesar de declarar que suas idéias se
aproximavam
mais das de Cipriano Barata, muita gente do Rio acreditava que seus
verdadeiros
padrinhos eram os Andrada.
Foram estes os principais atores da última cena impressa da campanha
da inde-
pendência. Na batalha contra o elemento português, O Tamoio seria secundado
pela
Sentinela do Grondona. Naturalmente que José Estevão Grondona não tinha o
mes-

Untitled-1 259 08/08/2014,


15:03
260 A independência brasileira

mo projeto que os Andrada para o Brasil. Mas naquele momento era conveniente
para ele aliar-se aos paulistas no combate aos portugueses para ver se,
expulsos estes,
sairia com eles do Brasil o imperador e, quem sabe, se instauraria no Rio de
Janeiro
uma república. Foi certamente movido por esse desejo que fez publicar em seu
jor-
nal, em outubro de 1823, uma série de artigos assinados por um personagem
que se
auto-intitulava o Brasileiro Resoluto. Neles, os portugueses eram atacados
num tom
ainda mais forte do que vinham sendo em O Tamoio.
Sentindo-se ofendidos pelos artigos do Brasileiro Resoluto, dois
oficiais portu-
gueses foram até a botica de David Pamplona, no largo da Carioca, e,
pensando ser
ele o autor dos artigos, deram-lhe umas bengaladas. Desde sua instalação, a
Assem-
bléia Constituinte vinha se constituindo no desaguadouro de todas as queixas
popu-
lares e Pamplona resolveu ir lá para também fazer a sua. Pamplona era tudo
que
Martim Francisco e Antônio Carlos podiam desejar naquele momento. Só tinha
um
defeito o boticário: era português de nascimento. Essa informação, no
entanto, não
apareceria nos discursos apaixonados de Martim Francisco e Antônio Carlos,
que o
converteram em brasileiro nato e usaram seu espancamento para incitar a
Assembléia
contra os portugueses. O discurso de Martim Francisco pronunciado em 10 de
no-
vembro de 1823 e as manifestações públicas que se lhe seguiram determinaram
d. Pedro I a dissolver a primeira Assembléia Geral Constituinte e
Legislativa do
Brasil. Os Andrada e alguns membros de seu grupo foram banidos para a
França.
João Soares Lisboa protestaria veementemente contra o fechamento da
Assem-
bléia. Segundo ele, os inimigos do império haveriam de interpretar o
acontecimento
a seu gosto e diriam que o governo aproveitara a ocasião para dissolver a
Assembléia.
Ele achava que, para castigar os Andrada, não era “necessário derribar o
grande edi-
fício social brasílico, aniquilando a Assembléia”. Este foi o último número
do Correio
do Rio de Janeiro. Encerrou-se com um melancólico e lacônico aviso do
redator:
“Com este número damos fim à 2a parte de nosso Periódico; os Srs.
Subscritores
queiram ter a bondade de mandar à Cadeia receber o que lhes resta”.
Antes desse aviso, no entanto, Soares Lisboa reproduzira texto de
edital do
intendente de polícia Estevão Ribeiro de Rezende, datado do último dia 20.
Aquela
autoridade declarava que qualquer pessoa que lhe viesse denunciar quem eram
os
autores das proclamações que circulavam na cidade contra o fechamento da
Assem-
bléia e quem as estava distribuindo receberia imediatamente 400 mil-réis.
Soares
Lisboa encerrou aquele número com um amargo comentário acerca desse aviso.

Denúncias ocultas! Nem mais palavra da nossa parte, demasiado


satisfeito estamos
com quase 13 meses de trabalhos, e ainda agora jazente em cárcere.
Haverá quem

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 261

possa dormir descansado e sem receio de falsas testemunhas e infames


denuncian-
tes de mentiras? (...) quando as paixões se acham exaltadas convém
dar tempo a
que a razão possa ser ouvida.

Em fevereiro de 1824, João Soares Lisboa recebeu ordens de passar à


Europa. O
navio em que viajava parou no Recife. Corria solta a revolução. Era a
Confederação
do Equador. Lisboa desembarcou, aderiu e logo se tornou figura notável do
movi-
mento. Entre 24 de junho e 6 de agosto, lançou seis números de um jornal a
que
chamou de Desengano dos Brasileiros. A epígrafe dizia: “Auguste Liberté,
fille de la
nature / Sans tois, tout n’est que l’opprobe, injustice, imposture”. O
Desengano de Soares
Lisboa atacava duramente o imperador.26
O jornalista João Soares Lisboa não se furtou de pegar em armas contra
o gover-
no. Morreu a 30 de novembro de 1824, em plena batalha, vítima de uma
emboscada
em Couro das Antas. Seu corpo foi sepultado no álveo do rio Capibaribe. Dele
disse
frei Caneca: “A Confederação do Equador não teve partidário mais leal do que
João
Soares Lisboa. Bateu-se pela Independência. Morreu pela liberdade”.27

O caráter da imprensa em seu nascedouro

Os jornais publicados durante o ano de 1821 eram quase todos de


caráter polí-
tico. Após aquele ano, apenas o Diário do Rio de Janeiro28 ficaria de fora
do grande
debate em que se viu envolvida a jovem imprensa nacional. Adotavam esses
jornais,
de que são o melhor exemplo o Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, e O
Revérbero,
uma numeração de páginas que continuava nos números seguintes, indicando que
se
tratava de uma seqüência, uma obra fechada. Eram impressos em formato in-8o,
no
tamanho tradicional dos livros, e vendidos nos mesmos lugares que estes. O
jornal,
tanto na forma quanto no conteúdo, não tinha o caráter ligeiro e descartável
que
adquiriu depois. Eram comuns os anúncios de venda de coleções do Correio
Braziliense.
Em 21 de setembro de 1822, um leitor anunciava em O Volantim: “Quem tiver
para
vender os números do Correio Braziliense do ano de 1812, declare por esta
folha”.
Os jornais que surgiram nesse período, em sua maioria, seguindo a
tradição da
imprensa do século XVIII, praticavam o chamado jornalismo de opinião.
Manifesta-

26 Rizzini, 1946:401.
27 Sodré, 1966:84.
28 O Diário do Rio de Janeiro
surgiu em 1o de junho de 1821 e durou até 31 de
outubro de 1878. Foi criado
pelo português Zeferino Vito de Meireles, que de operário chegou a vice-
administrador da Impressão Régia.

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262 A independência brasileira

vam inicialmente uma intenção pedagógica, com vistas a preparar seu público
para a
nova realidade política que se apresentava. Essa intenção era desvirtuada
por conta
das divergências inerentes aos projetos políticos dos redatores ou das
correntes a que
se vinculavam. Logo se instaurava o debate, com a conseqüente competição
pela
conquista do público.
Para os que escreviam nos jornais, o papel do jornalista se confundia
com o do
escritor. Sua missão era educar. Os jornais surgidos no Brasil entre 1821 e
1823,
período de intenso debate político, de violenta transformação das
instituições, com
mais razão ainda nasciam impulsionados por esse espírito. Seu propósito,
segundo
declaravam quase sempre no editorial de estréia, seria o de preparar o povo
para o
regime liberal que se inaugurava. Os homens que os faziam acreditavam nas
virtudes
mágicas do saber e confiavam na educação como alavanca principal da
transforma-
ção da sociedade. Para Hipólito da Costa, a instrução seria a chave de uma
conduta
racional e asseguraria o bom funcionamento dos governos. Difundir as Luzes
era
criar condições para uma política justa e eficiente.29
Nesse contexto, cabia ao jornalista o importante papel de suprir as
deficiências
que a carência de livros e de informações especializadas acarretava. Quase
todo jornal
começava com uma carta de intenções. Seus redatores estavam conscientes da
impor-
tância de seu papel naquele momento. Um dos três primeiros jornais
publicados no
Brasil, em 1821, O Bem da Ordem,30 iniciou suas atividades com esta
advertência:

Os leitores menos instruídos e os que não têm meio de o serem de


outro modo,
suposta a falta dos livros e a penúria de estabelecimentos
tipográficos, aqui acharão
todas as idéias que lhe são indispensáveis para desempenhar com
utilidade da Nação
os deveres de Representantes ou Empregados; e todos os homens de
bem, todos os
literatos que melhor conhecem a necessidade destas instruções são
convidados a
concorrer para esta importante obra com o precioso cabedal das suas
luzes.

Um alerta fazia, no entanto, o redator de O Bem da Ordem, no mesmo


espaço
em que declarava seus propósitos: não incluiria em seu jornal matéria
estranha àque-
les mesmos propósitos. Ou seja, não admitiria injúrias ou ataques pessoais.

Neste periódico não se admitirá discussão ou trabalho literário que


não se enca-
minhe a este objeto em particular ou ainda ao da pública instrução
em geral. Se

29 Candido, 1962:258.
30 O Bem da Ordem foi editado pelo cônego Francisco Vieira Goulart. Um dos
três jornais a circular no Rio
no primeiro semestre de 1821, dele foram publicados 10 números, entre os
meses de março e dezembro.

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Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 263

alguma idéia, que nele se transmitiu, ou seja do Redator ou de


algum correspon-
dente seu, se apartar da dos mais Literatos, no mesmo periódico se
transcreverão
as observações que estes queiram fazer, contanto que sejam ditadas
por um espíri-
to de imparcialidade e só dirigidos ao Bem da Ordem, concebidas
nos termos da
mais polida urbanidade.

É que, apesar das boas intenções dos redatores, aos poucos, em virtude
da diver-
sidade das idéias e dos interesses em disputa, emergiam as diferenças de
opinião. O
clima tenso e apaixonado que caracterizava a vida política se transferia
rapidamente
para os textos. Entre as melhores intenções declaradas logo no primeiro
número,
estava a promessa de que não seriam acolhidos nas folhas os chamados libelos
difamatórios. Um leitor de O Volantim recomendava ao seu redator que
procurasse
evitá-los.

Como nesta cidade tem andado em moda os libelos difamatórios, e


V.M. vai
principiar nova tarefa, é preciso que se previna, para não inserir
na sua folha senão
os objetivos que instruam os cidadãos, sem prejudicar a boa
harmonia que deve
reinar entre eles (1o set. 1822).

Outro correspondente lembrava que estávamos ainda “na infância da


liberdade
de imprensa [e não obteríamos] a sua civilidade, que é a pedra fundamental
da supe-
rioridade de seu Estado constitucional”, se a imprensa não seguisse um
caminho
seguro, mostrando as vantagens da liberdade de imprensa e como ela
concorreria
para “a recíproca união e felicidade dos cidadãos”. E concluía sua exposição
indagan-
do se seria dos libelos que a sociedade deveria esperar essas vantagens e
que papel
neles desempenhariam as artes e a indústria.31
Era a linha de pensamento defendida por Hipólito da Costa desde que
estreara
o seu jornal. Escrevendo de Londres e respirando a liberdade que lhe
garantia a
Constituição inglesa, dizia ele que a “imprensa livre remedeia-se a si
mesma, porque
não pode haver razão para que a mentira, sendo igualmente livre, como a
verdade,
prevaleça contra esta”.32 Hipólito achava que, mesmo nos casos de boatos e
anedotas
relativas a particulares, a imprensa livre era melhor. Dizia que,
considerando o pe-
queno tamanho da população das cidades brasileiras, as anedotas e os boatos
circula-

31 O Volantim, n. 6, 7 set. 1822.


32 Apud Rizzini, 1946:328.

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08/08/2014, 15:03
264 A independência brasileira

vam mais facilmente de boca em boca, tornando-se ainda mais conhecidos do


que se
impressos fossem. E que, enquanto contra o rumor não tem defesa o indivíduo,
aparecendo ele sob a forma de um impresso, de maneira definida e certa,
“pode o
lesado refutá-lo com precisão ou requerer o castigo do caluniador”.33
Cairu, na intensa defesa que fez da censura no Conciliador, advogava
princípios
totalmente contrários aos de Hipólito. No que diz respeito especificamente
às injú-
rias por palavras, sua opinião era que elas eram causadoras de rixas
mortíferas e de
implacáveis vinganças. As vozes ao ar, como as chama, facilmente se dissipam
e difi-
cilmente se provam. Já as injúrias por escrito são um atentado muito maior,
pela
facilidade de sua circulação.
Esse debate seria uma constante entre os jornais da época e correria
paralela-
mente à evolução da agressividade. Manifestavam seu desgosto com a violência
a que
tinha descido a linguagem da imprensa mesmo os jornais que faziam uso
pródigo
dela. Em outubro de 1823, às vésperas da dissolução da Assembléia, diante do
clima
geral da imprensa, o Diário do Governo, que atacara seus adversários tão
violenta-
mente quanto os jornais que descrevia, lamentou o nível a que descera a
jovem im-
prensa brasileira.

Para que proveito enxovalhar famílias, descer a particularidades


pessoais, cobrin-
do de baldões os cidadãos que servem ou têm servido a Pátria, como
se vê no
Correio e em outros periódicos? Se os cidadãos têm crimes em
administração,
aponte-se-lhes moderadamente, criminem-se, mas uma sentença nunca
será justa
por ser concebida em termos insultantes e nem o ladrão por se lhe
dar esse nome
fica punido. (...) O Imparcial.34

A campanha da independência foi o campo de provas da imprensa


brasileira, e
muitas das características adquiridas por ela naquele período se
cristalizariam como
estilos. Escritos no calor da hora, em meio a violentas campanhas contra os
adversá-
rios, os jornais desse período tiveram necessariamente um caráter mais
efêmero do
que o que inicialmente se propuseram. Seu compromisso com o acontecimento,
com o aqui e o agora, exigia mais agilidade e menos cuidados estilísticos
por parte de
seus escritores. Apesar de reconhecerem o papel missionário do jornalista
naquele
contexto, os redatores também reconheciam seu menor compromisso com o rigor
da

33 Correio Braziliense, fev. 1819, p. 240.


34 Diário do Governo, n. 80, 4 out. 1823.

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15:03
Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 265

forma e do conteúdo do que aquele do trabalho destinado à publicação sob a


forma
de livro. Como diria o redator de A Sentinela da Praia Grande (n. 19, 7 out.
1823):

Os periódicos, Ilmos. Srs., são escritos e formados muitas vezes


de pedaços e às
vezes até opostos em sentido, sempre desligados mais ou menos no
seu nexo e
inteiramente conformes à licença dos poetas e à efemeridade dos
romancistas. As
vozes que correm, ainda que vagas, não são já verdades
evangélicas, as quais ordi-
nariamente eles contêm, tão pouco são demonstrações matemáticas
nas quais se
exige aquela escrupulosa escolha de termos técnicos, que não
admitem troca ou
substituição, e que severamente prescreve que tudo esteja na mais
estreita relação
desde o princípio até o fim.

Conclusão

Para Antônio Candido, o exemplo maior do jornalismo panfletário foi


frei
Caneca. As características que Candido destaca no grande panfletário
pernambucano
são comuns a quase todos aqueles com que aqui trabalhei: o “cunho pessoal do
ata-
que, a predominância da paixão e o pouco desenvolvimento teórico”. Concordo
com
Richard Hoggart quando diz que o que mais influencia uma época não são as
idéias
originais deste ou daquele pensador, mas sim uma versão simplificada e
distorcida
dessas idéias, coadas pela compreensão geral. E para proceder à diálise das
grandes
idéias, indispensável é a ação do panfletário, com suas campanhas
intensivas, com
seus textos incendiados de paixão, onde o argumento se mistura à injúria.

A idéia aparece como pulsação, e os batimentos da frase ora surgem


picados pelo
tumulto do arranco polêmico, ora se espraiam em compasso largo de
ironia. Cada
palavra é vivida, os conceitos caem na página como algo visceral,
e tanto o seu riso
quanto a sua cólera, enlaçando-se em cadências variadas, dão lugar
a uma das
expressões mais saborosas do nosso jornalismo, redimindo o lugar
comum, vivifi-
cando os torneios cediços, lançando-se a ousadias de metáfora e
sintaxe, inclusive
o pronome oblíquo inicial: “me parece”; “se diria”.35
Os panfletários desempenham nos movimentos de idéias, ainda seguindo o
pensamento de Candido, um papel fecundo que vai além do bom senso e da
elegân-

35 Candido, 1962:263.

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266 A independência brasileira

cia, para “sacudir as consciências e tornar flagrante a iniqüidade”. O que


tornou
diferente, o que deu um toque novo e original ao debate político da
independência,
obrigando a imprensa a adotar recursos da oralidade popular, foram o fim da
censura
e a democratização do prelo. A liberação da imprensa, em 1821, possibilitou,
para
escritores e leitores brasileiros, a abertura para uma multiplicidade de
idéias e atitu-
des, que lhes passaram a ser oferecidas todos os dias pelas folhas dos
jornais. No lugar
da univocidade da linguagem da Gazeta, a polifonia proporcionada pelas
diversas
vozes que se propuseram a entrar no debate e a conquistar o auditório para
suas
idéias.
A intensa batalha verbal que marcou a campanha da independência
através dos
jornais impediu que a língua popular permanecesse confinada à oralidade ou à
epistolografia familiar. A partir da liberação da imprensa, ela passou a
freqüentar a
página impressa e obrigou gente da maior nobreza, cultora dos usos mais
castiços da
língua pátria, a participar do debate na grande arena popular, onde era
preciso não só
fazer-se compreender, como também despertar as identidades, provocar as
paixões.
Um aprendizado pelo qual passaram os autores eruditos ao longo do debate com
os
jornalistas de pretensões democráticas.
A batalha final dos periódicos brasileiros desse período se daria
durante o se-
gundo semestre de 1823, encerrando-se apenas com o fechamento da Assembléia.
O
vigor com que a imprensa participou e conduziu os debates em torno das
questões
definidoras do regime que seria adotado e a efetiva ação de seus jornalistas
no proces-
so político em evolução encontraram seu lugar num contexto em que
preponderava
a indefinição das formas que assumiria o regime político que se estava
fundando.
Para o nascente Estado brasileiro tudo era novo e estava por se fazer, até
mesmo o
soberano. Quais os limites de sua autoridade? Que papel lhe estava reservado
neste
Estado em construção?
Era a nação brasileira que se constituía, onde as instituições,
algumas remanes-
centes do governo colonial (mantidas pela própria inércia das coisas),
outras surgidas
no tempo do Brasil Reino Unido, e as novas, que estavam por se constituir,
como a
legislação relativa à imprensa, se confundiam. A ausência de uma legislação
clara
sobre a imprensa, a pouca fé nas velhas e novas instituições, aliadas ao
próprio pro-
cesso de construção do Estado iriam gerar uma permanente instabilidade.
É esse processo constante de transformação que funciona como cenário e
motor
da ação dos jornalistas na independência. Em defesa dos projetos políticos
que acre-
ditavam ser os melhores para o país que nascia, os jornalistas que ocuparam
a cena da
independência foram às últimas conseqüências. As violentas e muitas vezes
arriscadas
guerras em que a imprensa se envolveu durante aquela campanha inscrevem-se
entre

Untitled-1 266 08/08/2014,


15:03
Insultos impressos: o nascimento da
imprensa no Brasil 267

as mais decisivas daquele período de nossa história. Esgrimindo, ora uma


batida
retórica revolucionária francesa, ora os bons e velhos aforismos
portugueses, esse
jornalismo furioso realizou de forma pragmática a missão educativa a que se
propu-
sera a imprensa brasileira no seu nascedouro.

Bibliografia

BLAKE, Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro:


Conselho Federal de
Cultura, 1970.
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ed. rev. São
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MELLO, Jerônimo de A. Figueira de. A correspondência do barão Wenzel de
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Departamento de
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———. O império brasileiro entre a democracia e o absolutismo ilustrado. In:
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PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. The Spectator, o teatro das luzes —
diálogo e im-
prensa no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1995.

Untitled-1 267 08/08/2014,


15:03
268 A independência brasileira

PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil — ensaio de interpretação


dialética da
história brasileira. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1947.
RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil (1500-1882) —
com um breve estudo
geral sobre a informação. Rio de Janeiro: Kosmos; São Paulo, Porto Alegre:
Erich Eichner,
1946.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasi-
leira, 1966.
SOUSA, Otávio Tarquínio de. José Bonifácio (1763-1838). Rio de Janeiro: José
Olympio,
1945. (Coleção Documentos Brasileiros, 51).
———. A vida de d. Pedro I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952. 3v. (Coleção
Documentos
Brasileiros, 71-A).
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, visconde de Porto Seguro. História da
Independência
do Brasil, até o reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo,
separadamente, a dos su-
cessos ocorridos em algumas províncias até esta data. 6. ed. anotada pelo
barão do Rio Branco,
por uma comissão do IHGB e pelo prof. Hélio Viana. Brasília: Ministério da
Educação e
Cultura, INL, 1972. (Coleção Biblio. Sesquicentenário, 6).

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15:03
Capítulo 8

Pagando caro e correndo atrás do prejuízo*

Lilia Moritz Schwarcz

Introdução

Neste capítulo pretendo retomar o contexto da independência brasileira


a partir
de duas facetas pouco estudadas: as festas e o alto preço pago pela Real
Biblioteca —
a livraria dos monarcas portugueses, cuidadosamente “ajuntada” durante
gerações. A
intenção é, assim, atentar para a dimensão simbólica e cultural dos momentos
ime-
diatamente posteriores à emancipação, verificando como, ao lado de uma
lógica mais
pragmática, existe uma eficácia simbólica que perpassa a efetivação
política. Ou seja,
a par das medidas mais imediatamente referidas a uma ordem racional —
golpes,
leis, medidas, atos —, também rituais, símbolos e a divulgação acelerada de
novos
valores constituem parte fundamental do estabelecimento de um novo Estado.
Como
diz C. Geertz em Negara, em Bali era o Estado que servia à pompa e não o
contrário,
revelando o papel fundamental da simbologia na afirmação política. Também
Norbert
Elias, em A sociedade de corte, mostrou como a etiqueta era fundamental na
definição
daquela estrutura e não um acessório eventual.
Essas e tantas outras obras — Marc Bloch (1993) com sua análise do
poder
taumatúrgico dos reis franceses e ingleses, Claude Lévi-Strauss (1975a e
1975b) com
sua interpretação sobre os xamãs, que curavam mesmo quando se negavam a
curar

* Este ensaio faz parte de um projeto mais amplo que resultou, entre outros,
no livro A longa viagem da
biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil (São
Paulo: Cia. das Letras, 2002).

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270 A independência brasileira

— demonstram a importância de se atentar para a eficácia simbólica do poder


polí-
tico e suas formas de afirmação.
No caso deste ensaio, pretendo iluminar cenas paralelas ao processo de
inde-
pendência brasileiro, as quais, cada uma a sua maneira, falam das dimensões
simbó-
licas do poder político e de suas efetivações: os rituais de libertação e um
detalhe que
tem passado despercebido na “conta” que o Brasil pagou, em 1825, para
garantir sua
independência. Falo da Real Biblioteca, que constava em segundo lugar no rol
de
dívidas contraídas pelo novo país e que permaneceria no Brasil, finalizando
uma
verdadeira batalha bibliográfica.

Cena 1: as festas de liberdade e outras festas

Toda festa tem muitos lados e o “bem representar” faz parte da


encenação do
ritual. Na verdade, nesses momentos pouco se distinguem teatro e realidade,
e tudo
se passa como se o ritual fosse apenas o que é: demonstração, afirmação e
criação de
um novo Estado político. Por isso mesmo, à declaração formal de emancipação
se-
guiram-se alguns conflitos — conhecidos como “guerras de independência” —,
mas
que não tiveram maior repercussão.1 Por um lado, não era fácil aceitar tal
ato de
indisciplina e de infidelidade filial e Portugal reagiu como podia à
emancipação. Por
outro, uma reação portuguesa imediata tornava-se difícil, uma vez que os
exemplos
de guerra contra ex-colônias eram todos de fracassos e a própria Santa
Aliança, em
vez de se opor, parecia observar com bons olhos essa monarquia na América.
Foi por isso que, logo após o “famigerado” 7 de setembro, pouco se
falou de
conflitos e mais se assegurou a “lógica das festas”. No país, tratou-se logo
de reencenar
o modelo de “bem ostentar e festejar, para melhor assegurar”; iniciava-se
mais uma
das grandes comemorações, às quais a população já começava a se acostumar.
Na
verdade, desde a vinda de d. João, os portugueses importaram para o Brasil o
seu
hábito de marcar datas e novos momentos políticos com grandes e aparatados
ri-
tuais. Foi assim com a chegada da corte em 1808, com a elevação da colônia a
reino

1 Os conflitos mais importantes ocorreram na Região Sul do país e na Bahia.


Na Província Cisplatina, as
tropas portuguesas resistiram, mas acabaram se retirando em novembro de
1823. Aí começaria uma longa
guerra de independência uruguaia, mas contra os brasileiros e não mais
contra os portugueses. Na Bahia, os
conflitos resultaram em centenas de mortos. No início, as tropas portuguesas
foram vitoriosas, mas acabaram
batidas na seqüência, por tropas apoiadas por senhores de engenho e por uma
frota sob o comando do inglês
Cochrane. A ação de Cochrane se estendeu também ao Maranhão e ao Pará,
províncias que tinham contato
mais estreito com Portugal.

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08/08/2014, 15:03
Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 271

unido em 1815, com a morte de d. Maria I em 1816 e, sobretudo, com a


ostentosa
coroação de d. João VI e o casamento de seu filho, d. Pedro, em 1818.
Por sinal, com tanta variedade de cores, procedências e misturas, a
capital se
convertera há muito num contínuo carnaval, com uma procissão cotidiana de
perso-
nagens. Ora surgia o desembargador da Casa de Suplicação, com sua beca de
seda
negra a suar com o calor de 40o; ora era a sege de um ministro escoltado
pelos
correios que vinham a cavalo, com suas fardas azuis, golas e punhos
vermelhos,
botas altas e chapéus jogados um pouco de lado; ora ainda um batizado de
negros,
que, “recém-chegados” ao catolicismo, ostentavam suas madrinhas e padrinhos
com roupas extravagantes.
Não obstante, se o rebuliço era normal, as ruas do Rio ficavam ainda
mais
animadas nos dias de festa. As procissões estavam na ordem do dia e as
principais
eram sete: a de São Sebastião, a 28 de janeiro e nos oito dias posteriores à
festa do
padroeiro da cidade; a de Santo Antônio, na Quarta-Feira de Cinzas; a do
Triunfo,
na sexta-feira que antecede o domingo de Ramos; a do Senhor dos Passos, na
segun-
da-feira da quaresma; a do Enterro, na Sexta-Feira Santa; a do Corpo de Deus
e a da
Visitação, em 2 de julho.2 Nessas ocasiões, até mesmo a corte e seus
figurões, com
uniformes bordados, saíam em desfile, junto com o infalível cortejo de
soldados de
barretina pendurada no antebraço, estandartes religiosos, cantores da Real
Capela,
pessoas gradas e demais curiosos. Os préstitos seguiam por entre cânticos e
foguetes,
enquanto a multidão compactada aplaudia a procissão e o comércio lucrava
alto com
a venda de doces e bolos. Afinal, ninguém é de ferro e não havia dia sem
festa e não
havia festa que não valesse um bom dia. Mas não eram só as procissões que
brotavam
nas ruas. Foguetórios, leilões, batuques, fandangos, cavalhadas, a queima do
Judas
no sábado santo (proibida em 1821), a festa do Imperador do Espírito Santo,
os
aniversários da realeza, as datas religiosas... qualquer motivo era bom para
tirar a
cidade da aparente calma semanal.
Existia, porém, uma hierarquia nessas festas: enquanto nos rituais
religiosos eram
os clérigos que comandavam, nas cívicas e nos aniversários oficiais os
representantes do
príncipe regiam o andamento.3 Por fim, nas demais procissões de rua eram os
impera-
dores do Divino e outras figuras do imaginário popular que tomavam a cena.
Essa mania festeira não era, no entanto, uma invenção local. Na
verdade, tanto
portugueses livres quanto africanos escravos, ou não, em seus países de
origem, ti-

2 Debret, 1835.
3 Em As barbas do imperador (1999) desenvolvi, com Valéria Macedo, essa
mesma questão com mais vagar.

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nham o costume de assistir a cortejos reais e procissões. No caso de algumas


nações
africanas, eram comuns, desde o século XVIII, as cerimônias de coroação de
reis
locais, isso sem falar dos reis e rainhas das congadas, cheganças e do
maracatu. Quan-
to aos portugueses e seus descendentes, além de habituados às procissões
barrocas,
conheciam muito bem as cavalhadas. Mas as festas cumpriam função ainda mais
estratégica nesse reino distante e transmigrado. Falo de sua importância
simbólica
para a manutenção do poder político e de como a corte utilizava e era
utilizada nesse
espaço da festa.
As aparições públicas do príncipe d. João — seja nos cortejos reais,
seja nas
procissões — convertiam-se em demarcações territoriais e vinculavam sua
imagem à
própria representação do império português, espalhado pelos quatro cantos do
mun-
do e governado a partir da colônia. O fato é que, com tantas festas a
realizar e muitas
novas modas a consagrar, o Rio de Janeiro convertia-se em centro difusor, e
o prínci-
pe acomodava-se a esse calendário de festas mistas.
A corte adicionaria novas datas ao já carregado calendário de festas
local. Em 16
de dezembro de 1815, na véspera da comemoração do 81o aniversário de d.
Maria I,
d. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e
transfor-
mou a colônia em sede da monarquia portuguesa. A medida representava uma
espé-
cie de homenagem do príncipe a essa terra que ainda habitava, depois de sete
anos.
Mas o ato tinha também contornos políticos, econômicos e diplomáticos:
desemba-
raçava o comércio e suas regras; respondia a uma parte das demandas inglesas
e, de
quebra, buscava evitar o destino da revolução, que se assistiu na América
inglesa e em
nossas vizinhas colônias espanholas. Por sinal, mesmo com a atuação do
Congresso
de Viena, movimentos eclodiam por todos os lados, mostrando como a ordem
polí-
tica era ainda frágil. Na Rússia, surgiam notícias de reformas; na Polônia,
havia vá-
rios focos de perturbação; Prússia e Áustria continuavam lutando pela
hegemonia
germânica; Suécia e Dinamarca se opunham por conta da Noruega; Bélgica e
Holanda
não mais logravam permanecer unidas; e enquanto Nápoles virava um campo de
experimentos liberais, a Espanha servia de sede para reações absolutistas.
Enfim, para
onde quer que se olhasse, a situação parecia pouco segura e a tutela —
também
tirânica — da Santa Aliança e o desassossego latente davam motivos de sobra
para
dissuadir d. João de sair do Brasil, local relativamente tranqüilo, distante
das guerras
civis e dos arroubos revolucionários.
Assim, a elevação do Brasil a reino, além de representar a afirmação
de sua
integridade territorial, significou a derivação lógica de uma série de
circunstâncias.
Por um lado, era inegável que uma certa autonomia era necessária, já que,
agora,
todos os negócios se arranjavam a partir da colônia. Por outro, a medida foi
ainda

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Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 273

uma hábil resposta de d. João às potências coligadas, que pediam o regresso


do prín-
cipe a Portugal, assim que cimentada a paz geral.
De toda maneira, nada como selar uma nova realidade com mais festas.
Por
sinal, as comemorações cariocas quando da elevação da colônia a reino foram
motivo
de júbilo para os brasileiros e de manifestações iradas para os portugueses.
Marrocos,
um português de quatro costados, em um parágrafo típico de suas cartas mal-
humoradas, achincalhava o que via:

O Senado, que em tudo se quer distinguir, em tudo que dá a


conhecer que é o
Senado do Brasil; e por isso fez a função mais porca, que eu não
esperava ver. Em
despique a mesquinhez do Senado, o corpo do comércio, todo
basofia, reserva
para depois da Páscoa a sua função, alusiva ao mesmo objeto, e em
que prometem
o maior aparato e grandeza, a imitação das festas reais de
Lisboa, para o que já se
acha atualmente em cofre de depósito mais de 100 contos de réis,
finta que se vai
recebendo de todos os negociantes para aquele fim. Quanto a mim,
o extremo
também é vício.4

Além do mais, a coroa trabalhava sempre com uma proposital


coincidência de
datas. Não bastava aproximar a elevação do aniversário da rainha, era
preciso juntar
a festa patriótica a uma data religiosa; assim, o ato civil se unia à data
do santo
padroeiro da cidade — São Sebastião —, e um feriado referendava o outro. Era
como se o calendário de festas naturalizasse uma história, uma outra
história.
Visto de longe, governar parecia até fácil e, entre festas, o Brasil
virava reino e
rompia de vez com as amarras do comércio metropolitano. E não era para
menos. O
Rio de Janeiro havia se transformado, desde o tratado de 1810, no grande
entreposto
brasileiro, e de seus portos afluíam e partiam uma enormidade de produtos.
Do Reino
Unido vinham tecidos, metais, gêneros alimentícios e mesmo vinhos espanhóis;
da
França, artigos de luxo, quinquilharias, móveis, livros e gravuras, sedas,
manteigas,
licores, velas, drogas; da Holanda, cerveja, vidros, linho e genebra; da
Áustria, que
comercialmente representava o norte da Itália e o sul da Alemanha, relógios,
pianos,
tecidos de linho e seda, veludos, ferragens, produtos químicos; do resto da
Alemanha,
cristais da Boêmia, brinquedos de Nuremberg, utensílios de ferro e latão; da
Rússia e
da Suécia, mais utensílios de ferro, cobre, couro, alcatrão; da costa da
África, mais
especificamente de Angola e Moçambique, ouro em pó, marfim, pimenta, ébano,
cera

4 Marrocos, em carta de 23 de fevereiro de 1816 (Biblioteca da Ajuda,


Lisboa, Portugal).

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274 A independência brasileira

(consumidas pelas igrejas em quilos), azeite-de-dendê, goma arábica e — a


nota triste
dessa relação — escravos negros. Mas a lógica do mercado, por certo, não
tinha um
lado só. O Rio passava a representar para as colônias africanas de Portugal
o mesmo
papel que antes cumprira Lisboa. Também o comércio português com a Índia e a
China localizou-se então no Rio de Janeiro, de onde se faziam as
reexportações para
Lisboa e outros pontos europeus, e para o restante da América. Por sua
parte, as prin-
cipais exportações do Brasil, e em especial do Rio, compreendiam o açúcar, o
café, o
algodão e o fumo, produzido também no Espírito Santo.5
Era a autonomia que vinha chegando, como se fosse presente fácil. Mas
tam-
bém a condição de d. João passaria, finalmente, por mudanças. Em 20 de março
de
1816, pouco depois de seu aniversário, morria d. Maria I, que há muito só
vegetava.
A despeito de sua situação mental instável, porém, foram-lhe reservadas as
honras
devidas a alguém de sua posição. Assim que seu estado de saúde piorou e se
declarou
que sua morte seria para breve, saíram às ruas confrarias e membros do
clero, entoan-
do ladainhas e preces. Era um outro tipo de festa; a festa da morte, que
seguia um
desenrolar semelhante. No palácio, o ofício da agonia foi executado pelo
núncio e
pelo frei Joaquim Dâmaso, da Congregação do Oratório e prefeito da Real
Bibliote-
ca. Uma vez dado o derradeiro respiro, vestiram o corpo morto da rainha de
negro,
com a banda de três ordens militares, e passaram-lhe o manto de veludo
carmesim,
bordado de estrelas de ouro e forrado de cetim branco. Entre as atividades
das exé-
quias, procedeu-se ao beija-mão da defunta, na presença do futuro rei, que
estava “na
maior mágoa e saudade, perdeu o comer e ainda persiste em contínuo pranto”.6
Com o corpo encerrado num caixão de lhama branca, revestido por fora de
veludo
negro, com drogas aromáticas secas e moídas perfumando o ambiente, celebrou-
se o
funeral. Nas decorações lutuosas das igrejas predominavam os tons roxos da
viuvez e
a pompa da realeza se afirmava, ainda nessa hora, com a construção de
capitéis coríntios
e cúpulas de veludo preto com galões em ouro e prata. Por toda parte, missas
enco-
mendavam a alma da soberana e lhe desejavam um descanso melhor do que sua
vida
lhe reservara.
Oito dias depois do falecimento, os vereadores saíram em procissão e
as con-
templações pela saúde de d. João fizeram reduzir o luto àqueles oito dias,
decorridos
os quais a família real recebeu pêsames e saiu para ouvir missa e aspergir o
caixão. As
exéquias realizaram-se a 23 de abril, na Real Capela, forrada de alto a
baixo de negro

5 Lima, 1997:241.
6 Descrição baseada na carta enviada por Marrocos ao pai em 30 de março
de 1816.

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Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 275

e ouro. A cidade toda carregaria luto por um ano, acompanhando o da dinastia


Bragança, que ficara sem sua rainha, mas começava a esperar pela aclamação
do novo
rei.7 A cerimônia da morte não deixava de ser uma bela encenação, sobretudo
por-
que, nesse caso, abria espaço para um novo contexto político. Depois de
assinar,
durante tanto tempo, atos em nome de outros, o príncipe que elevara seu
reino
preparava-se para ser aclamado rei.8
Mas essa não seria a única morte sentida no governo; o ano de 1817
começava
com algumas festas de luto. Entre tantos, foi particularmente sentido o
falecimento,
em 24 de janeiro, de d. Fernando José de Portugal, marquês de Aguiar,
ministro e
secretário de Estado de Negócios do Reino, prontamente substituído pelo
desembargador do paço Tomaz Antônio de Vila Nova Portugal. Também um novo
ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos seria indicado: o conde dos
Arcos.
Mas talvez o desfalque mais importante tenha sido o de Antônio Araújo de
Azevedo
— o conde da Barca —, que faleceu em junho daquele ano. Político de atuação
conturbada, Antônio Araújo representou como ninguém o partido francês e os
inte-
resses e costumes dessa nação junto ao governo português. Mas tal moda não
lhe era
privativa. Desde a pacificação de 1814 — e até um pouco antes dela —, a
influência
francesa na área cultural se fazia cada vez mais notar. Nos jornais da
época, imigran-
tes franceses ofereciam seus préstimos e prometiam, pelo valor de 480 réis,
milagres
para quem quisesse aprender a língua de Rousseau. Costureiras imigradas e
modistas
alardeavam serviços para donzelas desejosas de se vestir nos trópicos como
nos cal-
mos climas temperados. Rendas, leques, enfeites, cheiros de todos os
gêneros, cha-
péus, jóias, galões, canutilhos, penachos, laços, bordados em ouro e prata,
botas e
sapatos de seda — inadequados para as empoeiradas ruas cariocas, mas
apropriados
para o novo luxo que se apregoava —, tudo vinha do continente europeu e
princi-
palmente da França. Na Imprensa Régia, além dos documentos oficiais,
figuravam
inúmeros tratados em francês, incluindo as primeiras novelas que chegavam a
prelo
no Brasil: Diabo coxo, de Alain-René Lesage, e traduzido em 1809; Paulo e
Virgínia,
de Bernardin de Saint Pierre, de 1811. Mas foi a partir de 1815, com a
derrota de
Napoleão, que essa voga literária francesa pegou para valer, fazendo a
loucura dos
leitores mais românticos com títulos variados: O amor ofendido e vingado, A
boa mãe,
O bom marido, As duas desafortunadas, Triste efeito de uma infidelidade.
Sofria-se com
motes e personagens franceses, assim como lia-se a boa literatura
iluminista, como

7 A descrição das exéquias de d. Maria foram retiradas, em sua maior


parte, de Lima, 1997:583-590.
8 Para uma brilhante análise dos rituais de luto, consultar Reis, 1991.

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276 A independência brasileira

Henriada, poema épico de Voltaire, As cantatas, de Rousseau, ou Iphigène, de


Racine.
Também entre os livreiros locais a presença de títulos franceses era uma
constante,
incluindo-se obras de religião, filosofia, ciências e artes, história,
novelas, dicionári-
os, livros de geografia e de anedotas.9 A idéia era, então e daí para a
frente, portar-se
como pessoas familiarizadas com as modas européias e os ditames franceses.
Por isso,
e com a abertura do comércio, chegava livremente uma grande quantidade de
merca-
dorias finas e objetos de uso por vezes duvidoso. E a elite se acostumaria
rápido com
a exibição de alguns truques de brilho imediato: relógios de parede,
candelabros de
cristal, lustres de 12 luzes, camas de sofá com cortinado, leitos de acaju
com cortinas
de franjas, mesas de chá e de costura em jacarandá, quadros, papel pintado,
porcela-
nas, cristais, vidros, panos de linho, plumas, jóias, biombos de charão,
figuras de
porcelana mate... aí estavam alguns dos “trastes” diariamente anunciados em
jornais
cariocas — em especial na Gazeta do Rio de Janeiro —, revelando como havia
um
público ávido por produtos europeus. Aí estava mais uma lógica simbólica;
uma
espécie de teatro da elite carioca, que, mesmo antes da independência, vivia
uma
certa autonomia cultural, ou melhor, uma autonomia em relação a Portugal,
que,
nessas searas, deixara de ditar gostos e valores.10
E para completar a encenação só faltava mesmo a coroação de d. João.
Essa, no
entanto, teve que ser adiada por conta da revolta de 1817 em Pernambuco. Por
sinal,
a derrota dos revoltosos, em 1818, foi vivenciada pela realeza como um sinal
de
abertura para novos tempos mais calmos e estáveis. Todos os projetos seriam
desengavetados, a começar pela aclamação de d. João, tantas vezes
postergada. Com
efeito, logo que soube da vitória em Pernambuco, d. João, que a essas
alturas encon-
trava-se na Fazenda Santa Cruz, exigiu tudo o que podia: entrada solene para
seu
novo governador, com direito a beija-mão e, como sempre, muita festa para
guardar
bem a ocasião. Os festejos se esticariam até a Bahia e o Rio de Janeiro,
onde luminá-
rias, repiques de sinos, salvas de canhão e missas cantariam a vitória do
soberano,
assim como anunciariam sua aclamação.
Originariamente, a aclamação ocorreria um ano após as exéquias de d.
Maria.
Mas a revolução em Pernambuco alterara a ordem das coisas, uma vez que não
con-
vinha celebrar tal cerimônia com o território dividido e diante da ameaça
republica-
na à monarquia. Por isso mesmo, nessa ocasião, a cerimônia ganharia novo
sentido:

9 Neves, 2000:100-101.
10 Jurandir Malerba explora o uso desses “trastes”, a partir da análise de
inventários post mortem, em Malerba,
2000, cap. 3. Na mesma obra, o capítulo “O teatro da festa” tem como objeto
o caráter lúdico da sociedade
fluminense a que aludi.

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Pagando caro e
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representaria o momento máximo de celebração da concórdia entre o futuro rei


e
seus vassalos. Para completar, estrategicamente, os decretos de 6 de
fevereiro de 1818
davam fim às investigações sobre os revoltosos pernambucanos, reafirmando a
mag-
nanimidade do soberano, silenciando a discórdia e nuançando a extensão da
revolta.
Mas faltava a comemoração, que seria, mais uma vez, financiada pelos
mercadores
do Rio, que dessa maneira reiteravam o apoio a d. João, assim como
reafirmavam as
bases de seu governo: a capital continuava a ser a capital. E a festa não
podia falhar,
pois, desta feita, era nela que o poder se mirava e espelhava.
A Gazeta do Rio de Janeiro, fiel veículo de divulgação da corte,
dedicou um
número em separado ao acontecimento.11 Logo em 10 de fevereiro saiu o número
comemorativo celebrando: “O glorioso ato de Aclamação do Senhor d. João
Sexto,
Nosso Augusto Soberano, e Modelo dos Monarcas do Universo, anunciado na
Gaze-
ta precedente, vai hoje fixar as mais sérias atenções de nossos leitores, e
ser objeto de
nossa narração ingênua e sincera (...)”. E não era para pouco. Luminárias,
comes e
bebes, fogos de artifício, muitos retratos reais e emblemas da América e da
Ásia
davam ao ritual um caráter memorável, pois, afinal, o Império tinha novo
rei. Além
do mais, alterando a folhinha, fazia-se coincidir a data das Chagas de
Cristo com a
aclamação:12 dava-se um tapa nas coincidências e o calendário cristão ficava
estabe-
lecido com reis e santos. Evidenciava-se, dessa maneira, a associação entre
a figura de
Cristo e a do rei de Portugal, e a liturgia simbólica dava forma ao
cerimonial de
aclamação.
A comemoração também lucrou, e muito, com a participação dos artistas
fran-
ceses recém-chegados ao país.13 Foram erguidos por Grandjean de Montigny,
rapi-
damente e com materiais feitos para durar pouco, três monumentos
neoclássicos,
que bem a seu estilo evocavam a antigüidade com um templo grego a Minerva,
um
obelisco egípcio e um arco do triunfo romano. Imagine-se a reação da
população
diante de tal monumentalidade. Como dizia Luís Gonçalves dos Santos: “Fazia
uma
agradável sensação a vista simultânea destes monumentos grego, romano e
egípcio,
não só pela beleza da iluminação que os decorava, mas também pelo bom gosto
de
sua arquitetura, que só pessoas inteligentes podiam conhecer e apreciar”.14
A civiliza-
ção era para poucos e até parecia que aquele que a notasse primeiro sairia
na frente.

11 Gazeta do Rio de Janeiro, 7 fev. 1818. Também Malerba, 2000:91-124.


12 Ver também Souza, 2000:58-60.
13 Refiro-me à Missão Francesa, que chegou ao Rio de Janeiro em 1816,
composta por artistas como Debret,
Taunay e Montigny.
14 Apud Morales de los Rios Filho, 1941.

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278 A independência brasileira

E Montigny não trabalhou só; contou com a colaboração de Auguste M. Taunay,


de
Debret e dos recém-chegados irmãos Ferrez, uma equipe cuja habilidade deu a
esses
monumentos a aparência necessária, mesmo à custa de falsos mármores, bronzes
e
granitos. Na corte tropical Montigny exercitou seus atributos de arquiteto
real, acos-
tumado a dar às edificações a teatralidade necessária a cada ocasião. O
segredo era
agir em duas frentes: decorava-se o evento com monumentos frágeis como o mo-
mento político; mas as alegorias clássicas e referências ao passado davam às
celebra-
ções a tradição que lhes faltava e a história de que careciam.
Também Debret tomaria parte dos preparativos da aclamação. Esperava-se
com
ansiedade a noite de 13 de maio de 1818, quando seria encenado o Himeneu —
drama alegórico em quatro atos que tecia elogios à monarquia lusitana —, e
apre-
sentada a pintura Bailado histórico, de autoria de J. Baptiste Debret.15
Nessa obra, o
artista unia os deuses da mitologia clássica aos personagens históricos
portugueses.
D. João VI, em uniforme real, era suportado por figuras que caracterizavam
as três
nações unidas — Portugal, Brasil e Algarves —, tendo logo abaixo,
ajoelhados,
Himeneu e Amor, com os retratos do príncipe e da princesa reais. O Rio de
Janeiro
jamais conhecera pompa semelhante, com Debret e Montigny esmerando-se em dar
à decadente corte portuguesa um ar solene e engrandecedor, e procurando
vincular,
por meio da pompa e da simbologia do ritual, um império alijado à heróica e
perdi-
da antigüidade clássica.
Entretanto, só com muita dificuldade esses artistas transplantariam
para os tró-
picos as técnicas acumuladas na Europa. Sem os materiais necessários ou
ajudantes
especializados, faltava de tudo e o negócio era improvisar. E parecia
complicado
aplicar modelos externos a uma realidade tão particular. O elogio da virtude
deveria
se mostrar por meio da forma ideal e da caracterização do heroísmo
neoclássico, o
que ficava difícil diante do cotidiano marcado pela escravidão e por uma
corte trans-
plantada como essa.
Mas a festa conseguiu encobrir tudo o que faltava. No momento da
aclamação
e dos vivas, o padre Perereca não se cansava de descrever o regozijo do
público, que,
entre lenços brancos, lágrimas, aplausos, vivas, salvas de canhão, fogos de
artifício e
bandas, reconhecia seu novo governante. Mais outro artista da missão
imortalizaria o
momento da aclamação — Nicolas Taunay —, que por meio do desenho represen-
tou a comunhão celebrada pelo ritual. A cerimônia precisava ser a mais
pomposa de

15 Cf. análise de Malerba (2000:100-119) da peça e do pano de fundo


pintado por Debret para esta.

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Pagando caro e
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todas, como se o ritual, com sua plena realização, afastasse para sempre o
vento
impetuoso da rebeldia e assegurasse o prestígio da monarquia, tudo de uma
vez só.
O Paço Real foi incorporado ao grandioso cenário montado para a
aclamação,
em 6 de fevereiro de 1818. Era a primeira vez que esse tipo de celebração se
fazia no
Novo Mundo e o largo do Paço foi cuidadosamente preparado para a ocasião, ao
mesmo tempo em que se ornamentavam os cortinados com damasco de carmesim.
Para completar, todos os edifícios da rua Direita e da praça foram
enfeitados. No
meio da praça, erguia-se o obelisco de falso granito; na frente do chafariz,
pelo lado
do mar, o arco triunfal à romana e, quase a diante do palácio, o templo
grego. Mas o
ponto alto era mesmo a varanda, que ocupava toda a frente do Convento do
Carmo,
desde o passadiço sobre a rua Direita — que unia o convento onde vivera d.
Maria
— até a Capela Real. Não faltaram detalhes nesse cenário efêmero, que
deixava o rei
visível de onde quer que se quisesse observar.16
Afinal, era a primeira vez que d. João VI se apresentava a seu público
americano
com toda a realeza. E lá veio ele portando nos ombros o pesado manto real de
veludo
carmesim, todo coberto de ouro e ostentando as insígnias de todas as suas
ordens.
Surgiu acompanhado de perto pelo príncipe herdeiro, d. Pedro, e pelo infante
d. Miguel. Logo em seguida, vinham todas as representações oficiais, que não
perde-
riam por nada a oportunidade de ver o rei ser aclamado e depois realizar seu
jura-
mento. E assim foi feito, até que toda a longa cerimônia religiosa se
completou com
o Te Deum na Capela Real.17
Também no campo de Santana foram construídas quatro torres com 24
peças
todas iluminadas. Em cada torre, um coro de música instrumental tocava
sinfonias
selecionadas, para fazer da população bons atores coadjuvantes. No centro
desse pas-
seio formou-se uma praça com 16 estátuas e uma cascata artificial, que
lançava água
ao longe, por conta de um repuxo continuado. Essa cachoeira deitava suas
águas
num grande tanque repleto de conchas exóticas, que formavam um cenário à
parte.
Luzes também não faltaram: ao todo, 60 mil bicos — eram 102 agulhetas, 64
lustres,
um pavilhão chinês, pirâmides de 400 fogos e mais um teatro de 400
lâmpadas.18
Por fim, para reter a multidão que ali se acumulava, distribuíram-se
refrescos e
doces. Para alguns poucos privilegiados, numa grande sala forrada de
damasco, se

16 Santos, 2000:14-15.
17 Para uma descrição ainda mais detalhada da coroação, ver o documento
“Sobre a aclamação do sr. d. João
Sexto no Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1818, códice
569, papéis relativos à aclamação,
à sagração e à coroação de d. Maria I, d. João VI, d. Pedro I e d. Pedro II
(1777-1841).
18 A descrição das comemorações no campo de Santana foi elaborada a partir
do relato de Barreto,
[1939-]:212.

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280 A independência brasileira

ofereceu um dessert (como pedia a voga francesa) em suntuosas baixelas de


ouro e de
prata. Enquanto isso, no Teatro de São João, que começava a se afirmar como
local
privilegiado para demonstrações políticas, agitavam-se lenços, cantavam-se
hinos e
tudo servia de homenagem ao soberano. Assim, ao ser aclamado no Novo Mundo,
d. João refazia, a partir do ritual e do desfile simbólico, laços com a
monarquia
ocidental e realizava nos trópicos a síntese do Reino Unido. O espaço,
apesar de
efêmero, redesenhou a cidade, que se transformou em lugar de legitimação do
Estado
monárquico, agora firme na América. Nada que o ritual não entronizasse e que
não
transformasse o estranho em natural.
Até mesmo a vinda da princesa, a aguardada esposa de d. Pedro, que se
aproxi-
mava da colônia e que fora atrasada por conta da rebelião em Pernambuco,
retomou
curso normal. Com efeito, antes mesmo da coroação, chegou a arquiduquesa
Caro-
lina Josefa Leopoldina, que, apesar do espectro de Maria Antonieta — sua tia
deca-
pitada pela revolução na França —, em nenhum momento pareceu dar sinais de
demover-se de seu compromisso régio, só involuntariamente adiado. Afinal,
entre as
negociações diplomáticas da regência de d. João em território americano, o
casamen-
to do príncipe herdeiro d. Pedro era das mais bem-sucedidas, mesmo porque
matri-
mônios entre reis são, de fato, grandes negócios de Estado, nos quais as
razões do
coração pouco influem na decisão. Além do mais, matrimônios conformam
cerimô-
nias prenhes de significados e simbologias. A própria monarquia é que saía
reforçada
a cada nova encenação.
E tudo parecia jogar a favor: a nobreza da casa de Bragança, a riqueza
e a vasti-
dão do império português, e até mesmo a bonita figura do noivo, que era
conhecido
como o único varão no meio de fealdades reais à disposição, por
contraposição à
comentada falta de dotes — em muitos sentidos — da princesa.19 Mas Marialva,
o
representante português, tinha outras questões diplomáticas mais difíceis a
resolver20
e, por isso mesmo, chegara a Viena com ordens explícitas de fazer “boa
figura”;
despender muito para aparecer bem. Os gastos da embaixada portuguesa na
capital
da Áustria compreenderam a distribuição de jóias e barras de ouro para
membros da
corte e para o Ministério de Estrangeiros.21 A principal despesa foi a
esplendorosa
19Prado, 1986:9.
20Tinha que resolver outros enlaces entre as duas casas reinantes: o
casamento do príncipe imperial da
Áustria com a infanta Isabel Maria e o do grão-duque da Toscana, irmão do
imperador, com a princesa Maria
Tereza. Também precisava lidar com espinhosas questões relativas a
Montevidéu e à banda oriental do rio da
Prata.
21 Cf. a análise dos detalhes do contrato de casamento de d. Pedro e d.
Leopoldina, em Malerba, 2000:53.

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do prejuízo 281

festa dada nos jardins imperiais de Augarten, onde o marquês mandou edificar
um
salão e ofereceu uma ceia para mais de 400 convidados. Lá estavam os
diamantes do
Brasil, que, segundo o relato orgulhoso de Marialva, fizeram pasmar a corte
de Vie-
na. Isso sem esquecer da arquiduquesa, que recebeu nessa ocasião o retrato
de seu
esposo, também devidamente emoldurado por pedras do Brasil. Tudo muito bem
encenado...
O ato de casamento foi celebrado no dia do aniversário de d. João, 13
de maio,
como se o mundo fosse feito só de coincidências rituais. Representou o noivo
o
arqueduque Carlos, irmão do imperador, a quem o embaixador entregara dois
dias
antes a procuração do príncipe d. Pedro. E, após tanta solenidade, chegou a
hora de
a nababesca comitiva se despedir, levando consigo a noiva comprometida. Em 2
de
julho o grupo partiu para Florença, onde aportou no dia 14, só para aguardar
a
chegada da esquadra portuguesa que levaria ao Brasil sua nova princesa. A
espera foi,
porém, maior, motivada não só pela revolução de 1817, como pela pressão
inglesa
junto a Viena, para que a corte portuguesa retornasse a Lisboa. A idéia era
impedir a
partida de Leopoldina, ou enviá-la diretamente a Lisboa, onde se reuniria à
família
real em cujo seio entrava. Mas, se o coração do pai, o imperador Francisco,
oscilava
diante do inseguro destino da filha, já o ministro Metternich empenhou-se em
não
ceder aos apelos ingleses, garantindo que a arquiduquesa cumprisse o acordo.
E assim formou-se a comitiva. A parte masculina era portuguesa e a
feminina,
austríaca, composta pelas condessas de Kundurg, Sarentheim e Lodron: a
primeira
como camareira e as outras duas como damas. Além das damas de honor, outras
de
serviço particular, retretas, açafatas, criadas, um capelão, um
bibliotecário, vários
serviçais de libré aboletaram-se nas naus, sendo todos de nacionalidade
austríaca. O
médico era português, e o cozinheiro, austríaco; isso para não passar
vergonha diante
da princesa, acostumada aos banquetes vienenses. Na outra nau, provida de
menos
acomodações, seguia o embaixador especial com sua comitiva.
Enquanto isso, no Brasil, começavam os preparativos. Se até mesmo a
notícia
dos desponsórios foi celebrada com missas, Te Deum Laudamus, repiques de
sinos,
salvas de artilharia e ações de graça, o que dizer da recepção. E assim,
entre fins de
outubro e início de novembro a tarefa foi confiada ao secretário do Estado
dos Negó-
cios do Reino, Tomás Antonio Vilanova Portugal, que lidou com a questão como
se
fosse — e era — estratégica para o governo. E como bom político, Vilanova
Portugal
tratou de dividir as muitas tarefas: o iate que receberia a princesa, as
bênções nupciais,
as embarcações de boas-vindas, a recepção, a limpeza... Por sua vez, o
Senado publi-
cou decreto pedindo não só que se ornassem casas e janelas, mas que as ruas
por onde
o cortejo passaria tivessem “a conveniente limpeza. Ordena outrossim o mesmo
Se-

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282 A independência brasileira

nhor que o Senado mande fazer os reparos que forem precisos na calçada dela,
e dê as
providências para que se ache limpa, areada e livre de todo o pejamento no
dia
daquela função...”.22 Era preciso, portanto, maquiar a cidade, a fim de que
a prince-
sa tivesse uma primeira boa impressão. Também foram devidamente avisados
todos
aqueles que participariam do evento: os funcionários do paço, a fidalguia da
corte e,
é claro, a família real. Cada um no seu lugar, no seu horário e
indumentária, como
bem manda a etiqueta numa sociedade majoritariamente analfabeta, onde as
clivagens
de classe ficavam inscritas nos corpos.
Montigny foi novamente chamado a participar, com seus grandes cenários
fugidios. Dessa vez, ergueu em frente à Igreja de Santa Cruz dos Militares
um arco
do triunfo — um conjunto de mastros, sustentando guirlandas de flores e
medalhões
com os atributos da princesa, entrelaçados de folhagens. Seu colega Debret
tratou de
descrever a cena, não sem antes emitir certos julgamentos estéticos: “O arco
do triun-
fo de estilo português (...) apresenta a extravagância dos detalhes
arqueológicos (...).
O lado direito do desenho é inteiramente formado por uma parte da popa do
navio
real de d. João VI, que trouxe de Triestre a princesa austríaca”.23 Mais uma
vez, o
projeto urbano se adaptava às festas e tentava fazer coincidir o que era
muito diferen-
te: uma colônia tropical e escravocrata com um modelo europeu e neoclássico.
Como
se vê, as festas criavam uma série de “prédios falsos”, estruturas que se
desfaziam,
tudo em nome desse “urbanismo patriótico” herdado do modelo francês. Tal
tipo de
teatro constituía-se como pano de fundo dessas festividades ao ar livre e
devia con-
formar um espetáculo realmente espantoso aos olhos da população, até então
mantida
apartada desse tipo de festividade. A cada festa, a nação era fundada, e a
representa-
ção criava realidade e não o oposto. O monumento, como exemplo do passado,
tinha a função de guardar uma certa memória e perpetuar na recordação a
certeza da
nação. Buscava-se criar uma “Europa possível”24 em terras americanas,
inventar um
passado e dar brilho ao que era opaco.
A chegada da princesa foi aguardada com ansiedade e recebida com as
festas de
sempre, que ficavam mais e mais aprimoradas. Só a procissão que a
recepcionaria
contava, além de uma partida de cavalaria servindo de batedores, com quatro
moços
a cavalo e os azeméis com seus degraus cobertos de veludo carmesim,
timbaleiros
com seus instrumentos, os oito porteiros da cana a cavalo, os reis de armas,
arautos,
passavantes, e 93 carruagens de quatro rodas puxadas por dois e quatro
cavalos. Pelas

22 Apud Malerba, 2000:63.


23 Debret, 1835, v. 3, p. 218.
24 Expressão utilizada por Bittencourt, 1988.

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atrás do prejuízo 283

ruas redobrou-se o policiamento, assim como armaram-se pavilhões e


decoraram-se
as vias por onde passaria o cortejo. À entrada da rua Direita ficava o arco
romano de
Montigny e Debret, e da ladeira de S. Bento até a Capela Real espalharam-se
areia,
flores e ervas aromáticas. Isso sem esquecer das casas, decoradas com
cortinas e mui-
tas flores.25
Mas a comemoração teve que esperar sob um sol de mais de 30o. O navio
que
transportava d. Leopoldina e que deveria desembarcar de manhã conseguiu
fundear
apenas às cinco da tarde por conta da falta de vento — e de sorte. Mas
bastou retar-
dar tudo um pouco e não se mexer no ritual, meticulosamente planejado. A
princesa
aportou no Arsenal de Marinha e, depois de cumprimentar a família real, foi
levada
pela mão de d. Pedro. O cortejo desfilou até o largo do Paço, tudo por entre
duas alas
de povo e duas filas de tropas, cujos soldados vestiam uniforme de grande
gala. A
procissão real foi acompanhada da maior curiosidade, pois ninguém queria
deixar de
ver e medir a nova princesa. Às três horas o casal parou junto ao portão
principal da
Real Capela do Carmo, onde o aguardava o bispo capelão-mor, d. José Caetano
da
Silva Coutinho, com o Cabido e o Senado da Câmara. Aí realizou-se a cena do
casamento, com a presença de quem de direito. Finda a cerimônia, cantou-se o
Te
Deum Laudamus, terminando esse ato só às quatro horas da tarde. Mas a
solenidade,
apesar de já longa, não acabou por aí. A corte dirigiu-se, então, ao Paço da
Cidade,
de cujas varandas assistiu ao desfile das forças.26
A noite vinha caindo e a cidade a recebeu toda iluminada. Os arranjos
foram
muitos e até serenata a arquiduquesa recebeu. O príncipe d. Pedro, a
princesa Maria
Tereza e a infanta Maria Isabel cantaram, sucessivamente, uma arieta e os
músicos da
Real Câmara, com os da Real Capela, executaram uma peça dramática, que se
pro-
longou até as duas da manhã. No mesmo mês, d. Carlota ofereceu aos noivos um
novo jantar, no qual os seletos convidados usaram da arte do ver e ser
visto. Lá estaria
o casal de herdeiros e, na lógica da corte, a proximidade era fundamental.
Leopoldina se acomodou bem, apesar de estranhar o calor do verão que
se
aproximava e os mosquitos — habitantes incômodos. E, como boa princesa, logo
mostrou fecundidade e seu novo estado interessante, para alegria geral. No
Brasil
nasceria, pela primeira vez, um herdeiro real: nada que o ritual não
previsse ou não
solenizasse antes mesmo da própria realidade. Era como se fosse possível
escrever
(e assegurar) uma certa história oficial a partir do encadeamento sucessivo
de rituais.

25 Malerba (2000:51-90) analisa em detalhe essa mesma procissão, sua


disposição, componentes, prescri-
ção, gafes, efeitos de arquitetura efêmera etc. no capítulo sobre o
desembarque de d. Leopoldina.
26 A descrição da recepção de Leopoldina foi feita a partir do relato de
Barreto, [1939-]:213-214.

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284 A independência brasileira

Mas voltemos ao nosso contexto de país recém-independente, agora sem


esque-
cer que a lógica de “bem festejar para bem assegurar” já era prática
corrente. É por
isso que, logo após a independência política de 1822, investiu-se muito no
cerimo-
nial da nova realeza brasileira, como se este — por si só — desse conta da
estranheza
causada por essa monarquia cercada de repúblicas por todos os lados. Mais
uma vez
recorria-se à “certeza fácil” dos rituais e obliteravam-se tensões e
conflitos. D. Pedro
foi aclamado imperador, como se sabe, em 12 de outubro de 1822 — data a
princí-
pio considerada mais importante que o próprio 7 de setembro. Diz o refrão
portu-
guês que, “boda molhada, boda abençoada”, e o casamento do imperador com a
nação brasileira, a julgar pelas fortes pancadas de chuva que assinalaram o
dia da
cerimônia da coroação, não deveria desmentir o dito. Além do mais, e para
manter a
moda agora em tempos independentes, nada menos que cinco arcos do triunfo
foram
erguidos, devidamente alegóricos, destacando-se desde o campo da Aclamação
até a
rua Direita.27 O cenário se repetia e alterava, tudo junto. Enquanto a mesma
guarda e
personagens semelhantes desfilavam, nas colchas dispostas nas janelas e nas
roupas das
senhoras que assistiam à parada destacava-se o verde-amarelo, as novas cores
da nação.
Em mais um ato pleno de significados, d. Pedro e d. Leopoldina
achegaram-se
à varanda do palacete do campo de Santana e mostraram à multidão espremida
diante do palácio a princesa d. Maria da Glória, erguida nos braços paternos
e sim-
bolizando a continuidade do império e, no limite, da dinastia. Para o povo,
que não
cuidava dos melindres políticos, um príncipe garboso em seus atos, virtuoso
em sua
prole e acompanhado de sua princesa — e assim exposto ao olhar — dizia mais
à
imaginação do que qualquer teoria do direito político. Para selar o ato,
poucos dias de-
pois, a 16 de outubro, recebeu-se a notícia de que as tropas destinadas à
reconquista do
Brasil tinham alterado seus planos e desembarcado dos navios que as
transportariam.
E as mudanças vieram rápidas, sobretudo no que se refere aos emblemas
e sím-
bolos, espécie de cartão de visita de um novo regime. A 10 de novembro, o
corpo
diplomático estrangeiro foi informado da adoção de uma nova bandeira e do
tope do
Brasil. O verde, cor que representava a tradição da Casa dos Bragança, e o
amarelo,
que simbolizava a casa de Lorena, e era usado pela família imperial
austríaca, vinham
na frente, como apresentação. Além disso, aparecia em destaque o losângulo
da ban-
deira imperial, indisfarçável e incômoda homenagem que d. Pedro I resolvera
fazer a
Napoleão, apenas introduzindo sobre ele o brasão monárquico, com as armas
impe-
riais aplicadas sob as plantas do Brasil.28 Se essa versão é exata, estamos
diante de um

27 Atuais praça da República e rua Primeiro de Março.


28 Clóvis Ribeiro (1993) apresenta essa interpretação como uma lenda, ou
uma versão.

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Pagando caro e correndo atrás do
prejuízo 285

caso de redefinição típico do nosso processo cultural: elementos


tradicionais do
armorial europeu, com seu significado preciso de homenagem aos soberanos da
jo-
vem nação, acrescidos de uma modalidade de distribuição do espaço na
bandeira
francesa, passavam a representar nossa realidade física.29
E tudo estava pronto para a coroação, que teve lugar em 1o de
dezembro, ani-
versário da restauração portuguesa da senhoria espanhola e início do reinado
dos
Bragança: mais uma vez, a festa interpolava datas e vinculava a realeza
independente
à monarquia destituída e atenta em Portugal. Estranho caminho é esse; mais
estra-
nho ainda se pensarmos que era preciso convencer não só as monarquias
européias,
mas também as repúblicas americanas vizinhas, de que, após a emancipação, se
insti-
tuía uma monarquia européia em um país de dimensões continentais. Por isso,
o
ritual tinha que ser caprichado e reunir modelos variados: um misto do
cerimonial
usado na sagração de Napoleão em Notre Dame, com o ritual dos imperadores da
Áustria em Frankfurt, numa combinação inédita entre o tradicionalismo e o
moder-
nismo dos novos tempos. Imitou-se ainda um detalhe da coroação dos reis da
Hungria,
que consistia em fender o ar com o gládio, numa alusão original ao título
recebido
por d. Pedro de defensor perpétuo do Brasil — sua primeira investidura
popular,
mas que se tornava hereditária na família.
Para alimentar a imaginação, o imperador apareceu vestido com uma
túnica de
seda verde, calçando botas de montaria com esporas e ostentando um manto em
forma de poncho de veludo verde, forrado de cetim amarelo, bordado de
estrelas e
com uma guarnição de ouro. A simbologia era quase óbvia em sua apresentação,
juntando-se elementos mais tradicionais aos símbolos da terra. Para não
deixar esca-
par essa lógica feita de detalhes, ajuntou-se à indumentária imperial uma
romeira —
uma murça — feita de papos de tucano, retirada da arte plumária dos
aborígines
locais, em uma homenagem aos chefes indígenas da terra.
A cerimônia foi dividida entre o paço da cidade — com suas salas
forradas de
verde e ouro — e a capela imperial, e no percurso o povo viu desfilar, mais
uma vez,
toda a corte, seguida do monarca em pessoa. Para completar, o soberano
recebeu a
unção sagrada que o fazia rei legítimo diante dos demais soberanos e perante
seu
povo. Com efeito, desejando romper com o costume português, por um lado, e
influenciado pela sagração e coroação de Napoleão em 1804, por outro, d.
Pedro I
empenhou-se pessoalmente na realização dessa importante cerimônia religiosa,
de
origens bíblicas, e regida, com detalhes, pelo livro I do antigo Pontifical
romano.

29 Candido, 2002:1.

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286 A independência brasileira

Nesse documento, estabelecia-se que os soberanos deveriam ser ungidos e


sagrados
com óleo santo no contexto solene da missa pontifical, costume que os reis
portu-
gueses tinham abolido há muito tempo.
Mas o novo império não dialogaria apenas com a tradição; introduziria
elemen-
tos da cultura local no seu ritual. Construía-se, a partir de então, uma
cultura impe-
rial pautada por dois elementos constitutivos da nova nacionalidade: o
Estado
monárquico, como portador do projeto civilizatório; e a natureza, como base
territorial
desse Estado.30 Ainda em 1822, foi elaborada pelo artista de sempre, o
mestre Debret,
uma alegoria, especialmente idealizada para o “pano de boca” de uma
apresentação
teatral que celebrava a coroação de d. Pedro I, como primeiro imperador do
Brasil.
Nela, o império do Brasil aparecia em toda a sua pompa, mas também em sua
origi-
nalidade. Além de ter sido confiado a Debret todo o programa das festas,
ficou ainda
sob a responsabilidade do artista esse primeiro símbolo oficial da realeza
brasileira. Na
tela, Debret procurou apresentar a “fidelidade geral da população brasileira
ao governo
imperial, sentado em um trono coberto por uma rica tapeçaria estendida por
cima de
palmeiras”.31 Na grande tela, negros mostravam sua fidelidade; indígenas,
com seus
arcos, declaravam sua lealdade; tudo isso ao lado de paulistas, mineiros e
da marinha.
As frutas, bem ao centro, eram todas tropicais, além das palmeiras e da
vegetação que
compunham um quadro decididamente exótico. Por fim, as vagas do mar
desaguavam
no grande trono, a brindar o Atlântico que nos separava e unia à
civilização.
Desvinculando a monarquia brasileira de sua matriz lusitana, os novos
símbolos da
terra ganhavam um caráter inaugural, como se toda a história começasse a
partir do ato
que constituía a nação independente. Unidos e irmanados a partir da realeza.
Contudo, apesar de toda essa exuberância de detalhes, na imagem de
Debret,
como afirma o crítico de arte Rodrigo Naves (1989:65), “há uma rigidez mal
resol-
vida, a produção de uma grandiosidade meio naif fiel talvez ao espírito
acanhado da
monarquia brasileira, mas muito limitada enquanto pintura”. Não havia como
es-
quecer a existência da escravidão, que tornava a realeza brasileira
absolutamente sin-
gular. No Rio de Janeiro, de um total de 79.321 pessoas, 45,6% eram
escravas,32
resumindo-se a estas o universo do trabalho. Aí estava a grande contradição
dessa
monarquia, que não se limitava ao traço de Debret. Afinal, era difícil
afirmar uma
imagem civilizada e constitucional num país assim dependente da escravidão.

30 Salles, s.d.:74.
31 Debret, 1835:326.
32 Karash, 2000:335.

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Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 287

Por isso mesmo o império nasceu cercando-se de elementos para


legitimá-lo
que escondiam fraquezas estruturais. Para dar-lhe guarida, acionava-se uma
certa
cultura universal, que nesse contexto virava elemento de batalha contra a
propagan-
da que vinculava o jovem império ao tráfico negreiro. Mas o ritual fazia
mais: ao
encenar tornava-se realidade. Ora, se tomarmos a definição de Carlo Ginzburg
(2002:85), veremos que esse conceito, por um lado, “faz as vezes da
realidade repre-
sentada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade
representa-
da e, assim, sugere a presença. Mas a contraposição poderia ser facilmente
inverti-
da: no primeiro caso, a representação é presente, ainda que como sucedâneo;
no
segundo, ela acaba remetendo, por contraste, à realidade ausente que
pretende
representar”. Como “presença e ausência”, o ritual se comporta como
“representa-
ção”, ao mesmo tempo em que “reflete”, cria e produz significados. Era como
se a
independência começasse e fosse selada com as festas e não devesse mais
nada, ou
pouco, à realidade.
O Estado servia à pompa, nesses momentos rituais, e jogava a partida
simbó-
lica de sua eficácia política. Nesse sentido ainda, e para contrabalançar a
imagem
do tráfico negreiro que se colava ao império, vale a pena atentar para os
itens da
nossa dívida e para a agenda de pagamento de nossa independência. A
emancipa-
ção foi paga — e muito bem paga — para além das encenações rituais que
procu-
ravam dar ar de naturalidade ao que estava longe de ser um desígnio da
natureza.
Mas o objetivo aqui não é só escarafunchar os meandros da negociação.
Gostaria
de destacar — e estranhar — o segundo item de nossa pauta de negociações.
Logo
depois da dívida pública, a Real Livraria — a antiga biblioteca dos reis,
ajuntada
durante séculos e instalada no país logo depois da vinda da corte, entre
1810 e
1811 — surgia tal qual antídoto.33 Era ela que mostrava como “a cultura”
habitava
entre nós e de que maneira nossa memória, apesar da juventude do novo
Estado,
era tão antiga quanto os exemplos dos luminares gregos ou dos filósofos
iluministas.
Nada como um grande acervo de livros para assentar o império, no sentido de
lhe
auferir uma legitimidade ilustrada, que o igualava às demais nações
européias. Aí
estava um país recém-independente, mas que já acumulava saberes seculares;
uma
nação jovem, que surgia ostentando, como diziam os diferentes
bibliotecários, “a
sétima biblioteca do mundo e a primeira do Novo Mundo”. Portanto, deixemos
as
contradições do império e os problemas de d. Pedro um pouco de lado para
falar

33 Não é o caso de refazer toda a história dessa biblioteca. Para uma visão
mais aprofundada, sugiro a leitura
de Schwarcz, Azevedo e Costa, 2002; e Schwarcz e Azevedo, 2003.

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288 A independência brasileira

do tratado de 1825, que previu um ressarcimento “pelos bens deixados pela


Coroa
no Brasil”, entre eles nossa biblioteca.

Cena 2: pagando a conta

A primeira tentativa de negociação da independência deu-se depois que


uma
série de fatos indicaram a feição irreversível do movimento: a aclamação do
príncipe
regente como imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil em 12 de
ou-
tubro de 1822; a evacuação do Exército português, que se encontrava na
Bahia, em 2
de julho de 1823; a adesão das províncias do império do Brasil ao ato da
indepen-
dência e a reunião da Assembléia Constituinte do Brasil, em 3 de maio de
1823.
Contudo, todas as tratativas mais imediatas resultaram em fracasso. Essa foi
inclusive
a posição oficial do próprio reino de Portugal, quando em 1823 enviou ao
império
uma missão chefiada pelo conde do Rio Maior para tratar de uma conveniente
con-
ciliação entre o Brasil e Portugal.
A Grã-Bretanha, na pessoa de sirCharles Stuart, mediou as negociações.
Come-
çaria, então, uma série de conferências em Lisboa, que se alongariam até 23
de maio,
quando se tratou em minúcias dos termos e pendências com os diplomatas
portu-
gueses. A primeira entrevista foi realizada em 30 de março de 1825, e
percebeu-se
logo como seria vasta a agenda para discutir a sucessão real, uma aliança
defensiva,
socorros mútuos em navios e soldados, indenizações em dinheiro — tanto para
o
governo português quanto para particulares — e a negociação de um tratado de
comércio. Só se acertou de pronto, e não sem longa discussão, a espinhosa
questão
dinástica: d. João ficaria com o título de imperador, mas daria soberania ao
filho,
determinando-se ainda que o “Príncipe ou Princesa, herdeiro presuntivo das
duas
Coroas” teria o título de príncipe imperial do Brasil e príncipe real de
Portugal e dos
Algarves.34 Os nomes entrariam em primeiro lugar, guardando para si o lugar
sim-
bólico da classificação.
A pauta só havia começado quando se decidiu que haveria reciprocidade
de
tratamento para os súditos das duas nações, cessariam as hostilidades, o
valor das
baixas feitas a Portugal seria restituído, acabaria o seqüestro de
propriedades portu-
guesas, seriam pagos os valores devidos aos donatários das diversas
capitanias e se
fixaria um princípio básico para reger as relações comerciais, introduzindo
uma tari-
fa comum de 15% de direitos de importação. Mas ainda faltava a questão
capital: o

34 BN/SOG III294, 5, 17, Martins, 1922:331.

Untitled-1 288 08/08/2014, 15:03


Pagando
caro e correndo atrás do prejuízo 289

Estado português exigia que fosse pago o valor de todos os objetos que
tinham ficado
no Rio de Janeiro.
E não era só. No documento intitulado “Conta dos objetos que Portugal
teria
direito de reclamar ao Brasil”, resultado da quarta conferência realizada
ainda em
Lisboa em 15 de abril de 1825, incluiu-se tudo que se lembrava ou que se
julgava de
direito: as equipagens, as pratas, os navios de guerra, os soldos dos
oficiais, os fretes
dos barcos que conduziram as tropas, divisões militares, o êxodo das armas,
as arti-
lharias e, o que nos interessa mais de perto, a Real Biblioteca, vendida por
800:000$000
réis (800 contos de réis).

Conta dos objetos que Portugal teria direito


de reclamar ao Brasil:
Dívida pública
1
o
Metade da dívida pública até 1807
12.899:856$276
Bibliotheca
2o Bibliotheca Real, avaliada pelo bibliotecário
800:000$000
Casa do Rei
3o Equipagens que ficaram no Rio de Janeiro
200:000$000
4 Pratas, móveis e outros objetos deixados no Rio de Janeiro
o

200:000$000

400:000$000
Marinha
5o Valor dos navios de guerra deixados no Brasil
3.334:000$000
6 Importância dos ordenados pagos pela repartição
o

da Marinha aos empregados civis que vieram do Brasil


9:479$118
7 Pensões que se pagaram no Brasil e que se
o

continuaram a pagar em Lisboa


12:344$818
8o Soldos e alimentos pagos aos oficiais da Marinha do
tempo que serviram no Brasil
6:454$681
9o Fretes dos navios fretados pela Junta da Bahia
24:630$000
10o Importância dos soldos e alimentos dos
oficiais do Exército do Brasil e dos de Montevidéu
22:257$337
Transporte
3.409:165$954
(total)
14.099:856$276
11 Frete do navio Luiza que levou as tropas
o

do Maranhão para Lisboa


10:278$800
12o Despesa da Divisa Militar que, saindo da
Bahia, para Pernambuco, arribou a Lisboa
63:536$401

(total) 3.482:981$155

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290 A independência brasileira

Guerra
13o Despesa de um destacamento de tropas
que veio do Pará e para aí voltou
5:524$570
14o Idem de um destacamento de tropas vindo
do Maranhão e que para aí vai tornar
25:389$377
15 Idem de dois esquadrões da Legião da Bahia
o

15:568$012
16 Soldo dos oficiais
o

327:981$585
17o Valor da Artiharia e munições de guerra deixadas no Brasil
203:730$368
18o Fornecimento ao destacamento do Maranhão
10:825$296
19 Idem aos esquadrões da Bahia
o

2:973$850

591:993$068
De que se abate:
— O valor da artilharia e das munições de guerra pertencentes à Bahia que
estão em Lisboa 25:276$690
— O valor dos objetos pertencentes à confraria dos esquadrões da Bahia
4:129$267

29:405$957

562:587$111
Total geral:
18.145:424$542

N.B.: Esta conta não compreende senão os principais objetos, mas no caso
em que o Brasil preferisse entrar em liquidação a
pagar logo uma soma junto, haveria muitos outros artigos para lhe juntar
(Biker, 1880, t. XV. Ver também t. XXIII da coleção,
p. 62-5. Ou Arquivo da Torre do Tombo, Negócios Estrangeiros, casa forte
2).

Conforme diz o historiador português Francisco Martins:

Tratava-se de um grande rol, de um comprido e complicado


inventário, ante o
qual um analista se admiraria de não se vender ao Brasil as suas
árvores gigantescas
e as suas minas profundas, a cintilação do seu Sol e dos olhos de
suas mulheres, as
cristas dos seus montes, e os animais exóticos das suas
florestas...35
Sem fazer coro aos exageros de época, vale mais a pena “insistir na
conta”. Em
primeiro lugar, surgiu a necessidade de pagar por dívidas alheias, digamos
assim, e o
Brasil começou sua vida de país independente rolando dívidas. Mas parece-me
que esse
lado é conhecido. Pagou-se também por propriedades deixadas no país e pelos
gastos

35 BN/SOG III294, 5, 17, Martins, 1922:332.

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Pagando caro e correndo
atrás do prejuízo 291

com pensões e com todo o aparato de guerra. Esse foi, com certeza, o lado
mais óbvio
dessa paga por soberania e, mesmo que protocolarmente, fazia-se necessário
ressarcir.
Mas, se não é possível em pouco tempo fazer uma história original
desses assun-
tos bastante repisados, deve-se insistir em um item da conta. Por que a
Biblioteca
Real aparece em segundo lugar, antes dos demais itens que faziam parte da
própria
lógica do Estado?
A própria biblioteca entraria em pauta novamente na nona conferência,
de 23
de maio, juntamente com a lista de vários equipamentos que precisavam ser
ressarci-
dos. Além da cópia original da dívida pública e da lista de equipagens da
corte que
haviam ficado no Brasil, foi apresentada a carta do frei Joaquim Dâmaso,
contendo
a avaliação da Real Biblioteca, da qual fora bibliotecário.
Dâmaso, para subsidiar a conferência, emitira o seguinte parecer sobre
a biblioteca:

A Biblioteca de Sua Majestade, existente no Rio de Janeiro, consta


de 80.000
volumes impressos e apenas lá não ficaram os Manuscritos que devem
existir no
Real Tesouro em Lisboa, contudo lá se tinham adquirido alguns
centos e tantos
estimáveis entre os quais há as cartas dos jesuítas Anchieta e
Nóbrega e de outros,
e todos originais e preciosidades a quem quiser saber ou escrever
da descoberta e
colonização da Terra de Santa Cruz, outros tantos estimáveis (...)
e ainda autógra-
fos do Marquês de Pombal, a flora de Veloso em 16 tomos.

Dâmaso, que partira do Brasil em 1822, logo após a independência,


continuava
descrevendo, não sem uma ponta de ciúmes, as preciosidades existentes na
Seção de
Manuscritos, entre autógrafos, textos e desenhos.36 Afora esses, citava
também os
livros da Casa do Infantado, fundamentais, dizia ele, para todo aquele que
“quiser
saber a fundo alguns pontos da História de Portugal e suas conquistas”.
Mapas tam-
bém havia, e muitos versavam sobre fronteiras litigiosas como as da colônia
de Sacra-
mento, os limites com a Espanha, e possessões portuguesas nos quatro cantos
do
mundo. O religioso lamentava ainda, e profundamente, as coleções de estampas
que
teriam permanecido no Brasil. Vinham da Antigüidade e chegavam até o momento
presente, desenhando reis, paisagens, locais existentes e imaginários. Não
ficavam
atrás as obras impressas, não só em raridade como em qualidade; todas
distribuídas
em cinco classes: teologia, ciências e artes, belas-artes e história. Faziam
falta em
Portugal ainda os livros de música e as partituras, tão ao gosto de d. João
VI. Para

36 O padre Dâmaso faleceu de cólera-morbo em Lisboa em 14 de junho de


1833.

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292 A independência brasileira

comprovar a riqueza das seções, nesse mesmo documento o bibliotecário citava


as
obras mais raras, assim como declamava, quase de cor, os grandes volumes de
histó-
ria e de ciências que teriam restado no Brasil. Com efeito, Dâmaso parecia
mesmo
estar aborrecido, e muito, com tal separação política e bibliográfica. Na
sua opinião,
apesar de a biblioteca não ter preço, era preciso calcular: estava-se no ano
de 1825 e
era hora de arriscar um valor e pedir ressarcimento. Por isso mesmo, assim
concluía
o bibliotecário: “Quem à vista disto poderá dar uma ajustada avaliação?
Quanto à
mim, a soma de dois milhões é pequena... Este é o meu parecer”. E assim, sem
titubear,
o bibliotecário despeitado jogava o preço da livraria para cima — dois
milhões parecia
pouco — e terminava o documento datando-o de 21 de abril de 1825 em
Lisboa.37
Eram tempos de negociação, e o antigo bibliotecário julgava que já
estava mais
do que na hora de restituir o valor pecuniário da livraria que ficara no
Brasil. No
entanto, entrando no acerto geral, a biblioteca saiu por menos: 800 contos
de réis,
apesar de todo o empate capital e simbólico nela investido.
Voltemos, porém, a nossa negociação geral, que estava longe de ser
concluída.
Na verdade, da parte de Portugal, os termos estavam claros e era hora de
cobrar a
conta do Brasil. E assim como chegara, portando uma espécie de letra de
câmbio,
sir Charles Stuart partiria num luminoso dia de maio de 1825 rumo ao império
tropical. Mas de tanto negociar, quase se esqueceu de um dos itens, o que o
obri-
gou a voltar às pressas a Lisboa. Como o rei cedia a soberania, parecia-lhe
justo que
lhe pagassem pessoalmente. Isto é, já que d. João VI não recebia pensão
anual,
exigia ao menos que se votasse, como compensação das suas propriedades — as
fazendas de Santa Cruz e São Cristóvão —, uma verba privativa.38 E depois de
apresentado este último ponto, a nau 74 fez vela, ao som das salvas, levando
o
nosso eminente caixeiro, que conseguira a proeza de tentar vender o Estado
ao
próprio Estado.
Mas não havia por que chorar o leite derramado; por parte do Brasil, a
intenção
era aceitar logo e obter em troca o reconhecimento de outras nações. E foi
assim que,
em 17 de julho, Stuart chegou ao Rio de Janeiro com os termos definitivos da
nego-
ciação, sendo recebido pelo imperador na sala do trono, em audiência solene.
Dis-
cutiram-se ainda frases, redações, maneiras de dizer, e os encontros se
estenderam até
quase o final do mês de agosto, quando se decidiu passar ao capítulo das
indeniza-
ções, visto estarem assentes as outras bases. Aí estava a grande conta que
se ia apresen-

37 O parecer de Dâmaso encontra-se na íntegra, citado por Carlos Alberto


Ferreira, nos anais do Congresso
do Mundo Português (Lisboa, 1940, v. VII, p. 602-606.
38 BN/SOG III294, 5, 17, Martins, 1922:334.

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Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 293

tar. Os ingleses, interessados, propunham que o Brasil tomasse para si, como
indeni-
zação a Portugal, o empréstimo levantado por este país em Londres.
Procuravam,
assim, uma garantia nessa nova nação, que decerto lhes renderia boas
comissões, e
falavam na soma de 1 milhão e 300 mil libras esterlinas.
Os negociadores brasileiros quiseram logo diminuir para 1 milhão a
quantia,
enquanto d. Pedro pagaria ao pai 250 mil libras pelas propriedades deixadas
no
Brasil39 e mais 55 mil libras aos donatários das capitanias. Começava-se,
assim, a
história desse país recém-independente rolando dívidas e misturando-se
esferas pú-
blicas e privadas. Afinal, o que era do Estado e o que era propriedade
privada de
d. João ninguém se lembrou de perguntar. Mas, na última hora, apareceu outra
proposta, menos complicada. O Brasil entregaria a Portugal, que nada mais
teria a
reclamar, a soma de 2 milhões de libras esterlinas, em prestações anuais de
100 mil
libras. Já com relação a d. João VI, isso seria questão entre pai e filho.
E como toda história tem um fim, chegou-se a um acordo naquele mesmo
ano
de 1825. Na verdade, d. Pedro tinha pressa, pois o que queria mesmo era
publicar o
tratado, até sem a assinatura do pai, em 7 de setembro, bem na data do
aniversário da
independência. O tratado — que teria que ser ratificado por ambas as partes
— seria
aqui assinado já em 29 de agosto de 1825, quando o Brasil foi admitido na
categoria
de império, independente e separado dos reinos de Portugal e Algarves, sendo
d. Pedro reconhecido seu imperador, a quem o rei de Portugal transferia a
soberania,
bem como a seus sucessores, tomando para si o mesmo título. Mas o tratado
não
concedia simplesmente a independência. Destacava que as propriedades
portugue-
sas, bens de raiz e móveis, ações seqüestradas ou confiscadas, assim como as
embarca-
ções e cargas apresadas deveriam ser restituídos.40 E para tanto, uma
comissão paritária,
composta de brasileiros e portugueses, seria criada para continuar
arbitrando as di-
vergências que poderiam surgir no caminho.
Explicitados os termos, o imperador assinou imediatamente no Rio o
Tratado
de Amizade e Aliança e a Convenção Adicional, logo no dia 29 de agosto de
1825,
sendo o mesmo ratificado em 30 de agosto. Além do tratado propriamente dito,

39 Oliveira, 1973:181.
40 O art. 6o do tratado determinava que: “Toda propriedade de bens de raiz,
imóveis e ações seqüestrados ou
confiscados pertencentes aos súditos de ambos os soberanos do Brasil e
Portugal serão logo restituídos, assim
como seus rendimentos passados, deduzidas as despesas da administração, ou
seus proprietários indenizados
reciprocamente pela maneira declarada no artigo oitavo”. Já o art. 7o
tratava da restituição de embarcações e
cargas pesadas, enquanto o 8o estabelecia que uma comissão nomeada por ambos
os governos, e composta de
brasileiros e portugueses em número igual, se encarregaria de examinar a
matéria dos arts. 6o e 7o no prazo de
um ano. Ver Tratado..., 1825.

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294 A independência brasileira

assinava-se no mesmo dia uma “Convenção especial em quatro artigos”,41 na


qual o
Brasil se comprometia a pagar ao governo português 2 milhões de libras
esterlinas,
assumindo de imediato a responsabilidade do empréstimo português (1.400.000
libras) feito em outubro de 1823, em Londres, ficando o restante para ser
pago à
vista, no prazo de um ano após a ratificação.42
No Brasil, a euforia correu solta. A Gazeta de Lisboa e seu Suplemento
inseriram,
no dia seguinte à notícia da aprovação, o tratado e seus 11 artigos,
recebido com
satisfação na capital e nas províncias, tanto mais porque, a princípio, o
governo guar-
dou segredo sobre a convenção e a indenização.
Finalmente sir William Acourt, que acompanhara Charles Stuart, sairia
no
Spartiate para Lisboa, levando o novo tratado para ratificação. Partia com
os papéis e
com duas cartas de d. Pedro para o pai, depois de três anos de relações
interrompidas.
Uma era de negócios e, muito afável, mostrava as bases do negócio — os 2
milhões
de libras esterlinas a serem pagos pelo Brasil — e lembrava que 250 mil
libras iriam
diretamente para o “real bolso” de d. João. A outra não passava de um
amontoado de
banalidades, em que nem as irmãs de d. Pedro, nem a mãe eram mencionadas.
D. João faria a ratificação em Lisboa, mas apenas em 15 de novembro.
Assinaria
a paz com o filho num dia nevoento e gelado, sozinho no seu quarto no
Palácio de

41 Ao tratado, ajuntava-se ainda uma “Convenção em quatro artigos” (Lisboa,


Arquivo da Torre do Tombo,
Tratados, Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Casa Forte 1 e
2), estabelecendo o pagamento
final, o ressarcimento do empréstimo feito por Portugal à Inglaterra e a
ratificação do acordo em cinco meses:
“Artigo 1o. Sua Majestade Imperial convém a vista das reclamações
apresentadas de Governo a Governo em
Dar ao de Portugal a soma de dois milhões de libras esterlinas ficando com
essa soma extintas de ambas as
partes todas e quaisquer outras reclamações assim como todo o direito de
indenizações desta natureza.
Artigo 2o. Para o pagamento desta quantia Toma Sua Majestade Imperial sobre
o tesouro do Brasil o emprés-
timo que Portugal tem contraído em Londres no mês de Outubro de 1823 (o
documento vem com a data
corrigida e rasurado) pagando o restante para perfazer os sobreditos dois
milhões esterlinos no prazo de um
ano a quartéis depois da Ratificação e publicação da presente convenção.
Artigo 3o. Ficam exceptuadas da regra estabelecida no primeiro artigo desta
convenção as reclamações de
tropas e despesas feitas com as mesmas tropas. Para liquidação destas
reclamações haverá uma comissão mista
formada e regulada pela mesma maneira que se acha estabelecido no artigo
oitavo do tratado de que acima se
faz menção.
Artigo 4o. A presente convenção será ratificada e a mútua troca das
ratificações se fará na cidade de Lisboa
dentro do espaço de cinco meses ou mais breve que for possível.
Em testemunho do que nós abaixo plenipotenciários de Sua Majestade El rei de
Portugal e Algarves e de sua
Majestade o Imperador do Brasil em virtude dos nossos respectivos plenos
poderes assinamos a presente
convenção e lhe fizemos pôr os selos de nossas armas.
Feita na cidade do Rio de Janeiro aos vinte e nove dias do mês de agosto de
1825.
Assinam: Charles Stuart, Luiz J. de Costa Melo, Barão de Santo Amaro,
Francisco Vilela Barbosa.”
42 Com isso ficavam extintas todas as reclamações recíprocas, excetuando-se
apenas as despesas militares e de
transporte, que passavam ao exame de uma comissão mista luso-brasileira, de
conformidade com o teor do
art. 8o do tratado de paz.

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Pagando caro e
correndo atrás do prejuízo 295

Mafra, onde se refugiara cansado, abatido, cheio de desilusões, já sem o


cálculo que
o incomodara de manhã e sem a velha tática de pretender anuir sempre diante
das
vontades alheias. Era agora um homem de barbas brancas, com o rosto vincado
de
rugas, que se apoiava na bengala de castão de ouro cada vez que queria se
movimen-
tar, uma vez que trazia sempre as pernas fistuladas.43
A obtenção da assinatura de d. João significou muito para o Brasil:
abriu cami-
nho para outros reconhecimentos, que se seguiram em pequenos intervalos: o
da
Áustria, em 27 de dezembro; o da França, em 8 de janeiro de 1826; o da Santa
Sé, em
27; o da Grã-Bretanha, em 31 do mesmo mês, e sucessivamente os dos reinos e
principados da Alemanha e da Itália. Os Estados Unidos, antecipando-se a
todos,
havia reconhecido o império desde 26 de junho de 1824, e o México, desde 9
de
março de 1925: era a adesão de um continente que, recém-independente,
abraçava
causas comuns, a despeito das diferenças políticas.
No entanto, conforme dizia Talleyrand, “para estar satisfeita, a paz
não deve
satisfazer ninguém”, e assim foi também nesse caso. O preço alto pago pelo
Brasil seria
um dos motivos da impopularidade futura de d. Pedro I, e Portugal entraria
numa
guerra civil que tumultuaria por muitos anos a vida do país. Assim terminava
uma
história e começava outra: a necessidade de indenizar a coroa portuguesa deu
origem
ao primeiro empréstimo externo, contraído pelo Brasil em Londres, e ao
início de uma
dívida e de dependência financeiras que se perpetuariam por longo tempo.44

Os livros

Mas falemos um pouco mais dos livros. Pagou-se caro pela independência

2 milhões de libras esterlinas —, e desse valor parte significativa cabia
aos livros: 800
contos, valor que, à época, correspondia a 250 mil libras esterlinas ou a
cerca de
12,5% do valor total do pagamento a ser efetuado. Além do mais, como se
sabe, na
relação da “Conta dos objetos que Portugal teria direito de reclamar ao
Brasil”, a
biblioteca aparecia logo em segundo lugar, imediatamente após a soma da
“Metade
da dívida pública até 1807” e valia quatro vezes mais do que toda a famosa
prataria
da coroa, que, juntamente com os demais móveis e objetos, só alcançava 200
contos,
assim como a “equipagem”, que também não ultrapassava esse valor.

43 BN/SOG III294, 5, 17, Martins, 1922:340.


44 Heitor Ferreira Lima, em artigo intitulado “Os primeiros empréstimos
externos” para os Ensaios de Opi-
nião (v. 2, n. 1, p. 106-109, 1973), levanta mais dados relativos aos
empréstimos contraídos com os bancos
ingleses.

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296 A independência brasileira

Tomando-se por base os preços de 1822, também se pode ajuizar o alto


valor da
livraria:

Gazeta do Rio de Janeiro. 19-3-1822. Vende-se uma morada de casas de


sobrado,
sita na rua do Ouvidor entre a da Quitanda e o beco das Cancelas no
144, que
rende anualmente setecentos mil réis, quem a quiser comprar procure na
rua do
Ouvidor no 29.

A biblioteca valia mil vezes mais que uma série de casas. Já uma
padaria equipa-
da e com escravos incluídos, conforme aparecia na Folha Mercantil de 15 de
setem-
bro de 1825, alcançava apenas 0,5% do seu valor total:

Vende-se a padaria do falecido Hipólito Ladevese, rua do Cano no 83,


constando
de 4 fornos, cada um com seu mestre forneiro, 13 pretos oficiais de
padeiros,
peneiras e todos os utensílios competentes de uma padaria, tudo em bom
estado,
o que tudo importa em 4:500$000 rs, pela avaliação feita no
inventário, quem
quiser ver pode dirigir-se ao dito estabelecimento, ou aos
encarregados da liquida-
ção da dita herança.

Comparativamente, portanto, os livros significavam muito: custavam


caro e
representavam mais do que seu valor venal. Objetos carregam dons, portam
dádivas
e a eles se vinculam outros ganhos, emocionais, políticos ou mesmo
simbólicos. E era
assim que se avaliava uma real livraria. Mais do que livros, lá se
acumulavam idéias,
projetos, ambições, e ainda a cultura possível de uma nação; sobretudo de
uma mo-
narquia independente, isolada no meio da América republicana. Segundo item
de
uma longa pauta de negociações, ela representava a cultura acumulada e a
tradição
de que carecia: nada como colocar tudo numa lista e quantificar o que é da
ordem da
cultura e da própria representação. Pagava-se pelos livros, é certo, mas
pagava-se
mais pelo troféu que a biblioteca representava. Era a cultura do Velho Mundo
que
ficava no Novo, junto com essa livraria, considerada a maior das Américas.

Conclusão: sobre a eficácia simbólica

Meu objetivo aqui foi, atenta à noção de eficácia simbólica, refletir


sobre outros
aspectos que ajudaram na nossa libertação. As festas, por um lado,
representavam a
parte mais brilhante e ritual de nossa emancipação. Sob essa ótica, não
havia conflito
possível ou conflitos de ordem política a se afirmar. Era como se o ritual,
por si,

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15:03
Pagando caro e correndo atrás
do prejuízo 297

encantasse e realizasse esse teatro da política, que parece só depender de


uma encena-
ção para se realizar. Por outro, tratou-se de pensar nos “termos da nossa
conta”.
Afinal, o que se cobrava e como se cobrava? E por que pagar tanto por um
“ajuntado”
de livros? Mais do que por seu valor “real”, pagava-se por símbolos, pela
tradição
acumulada nas 60 mil peças daquele acervo.
Nesse sentido, destaca-se o papel da biblioteca e dos rituais,
demonstrando como
é possível pensar em outra história feita de detalhes e “pistas”, como diz o
historiador
Carlo Ginzburg (1982), pouco explorados. Diante do ato da emancipação, breve
e
fortuito como são os atos humanos, recorria-se a efeitos mais vistosos. De
um lado, o
caráter teatral das festas tratava de assegurar o que era inseguro e fazia
do tempo
recente um elemento do passado. De outro, adquiria-se a um custo muito alto
um
acervo maravilhoso, dono de histórias que recontavam a sina de toda a
humanidade,
e que se constituiria na maior coleção do continente americano. Nada como
dar
tradição a uma nação que lutava para se assegurar politicamente.
Aí estão, portanto, dois exemplos que comprovam como nem tudo se passa
segundo uma ordem racional, em sentido estrito. Entre o uso pragmático — que
no
caso da livraria demonstra a sua importância na constituição de leis,
decretos e até
fronteiras — e a dimensão simbólica de sua inserção, fiquemos com os dois.
Talvez
seja boa idéia recorrer a Jorge Luis Borges (1983), que em “A biblioteca de
Babel”
revelou a lógica geral das bibliotecas:

Esses exemplos permitiram a um bibliotecário de gênio descobrir a lei


fundamen-
tal da biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por
mais diversos
que sejam, comportam iguais elementos: o espaço, o ponto, a vírgula,
as 22 letras
do alfabeto. (...) Dessas premissas incontroversas ele deduziu que a
biblioteca é
total, e que as suas prateleiras consignam todas as possíveis
combinações dos vinte
e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não
infinito), quer
dizer, tudo aquilo que é possível exprimir em todas as línguas. Tudo,
a história
minuciosa do porvir, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel
da biblioteca,
milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia
desses catálogos,
a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico
de Basilides,
o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse
evangelho, o
relato verídico de tua morte, a tradução de cada livro em todas as
línguas, as
interpolações de cada livro em todos os livros. Quando se proclamou
que a biblio-
teca guardava todos os livros, a primeira reação foi de uma felicidade
extravagante.

Assim, enquanto as festas prometiam estabilidade, os livros garantiam


passado
ao presente e restabeleciam um mundo seguro em suas classificações. Quem
sabe

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15:03
298 A independência brasileira

seria interessante nos referir ainda ao professor Peter Kien — personagem


principal
do livro Auto de fé, de Elias Canetti (1982:551, 18 e 670) —, eminente
sinólogo,
cuja obsessão eram os livros de sua seleta biblioteca, que lhe permitiam
evitar o
contato objetivo e prático com a realidade que o massacrava:

Kien tinha saudade de sua biblioteca (...) quatro salas altas, as


paredes revestidas
de livros em toda a sua extensão (...) a escrivaninha repleta de
manuscritos, tra-
balho, trabalho, idéias, idéias, a China, controvérsias científicas,
opinião contra
opinião (...) Kien o vencedor não numa luta de boxe e sim no
entrevero de espíri-
tos, sossego, sossego, o farfalhar reconfortante dos livros, nenhum
ser vivo (...).

Tantos fantasmas habitam nossas bibliotecas repletas da utopia de


conterem a
enormidade do conhecimento e de acumularem toda a memória possível da huma-
nidade. Os livros valem bem muitas viagens, diversos fantasmas, vários
espectros e
tantas libertações.
Por isso mesmo, e sem esquecer do lado pragmático de nossas tratativas
de
libertação, talvez valha a pena terminar insistindo — mesmo que pelo detalhe
— na
importância da eficácia simbólica do poder político: livros são cartões de
visita e
motivos de prestígio e, junto com as festas, tratavam de dar “naturalidade,
tradição e
até antigüidade” ao que era recente, quase imediato, e de fato desígnio e
mando dos
homens. Não se trata de optar entre a lógica racional e a simbólica, mas
antes de dar
lugar a dimensões que são tão constituintes da realidade política como o são
os de-
cretos, partidos, leis e jogos de Estado. Se parecia difícil manter uma
monarquia que
nascia cercada de repúblicas por todos os lados, ou um país escravocrata de
dimen-
sões continentais, quem sabe os símbolos e rituais realizariam bem a sua
parte. Por
meio deles divulgaram-se “sensos comuns”, modos de pensar e acreditar. Nada
como
olhar pela fresta da porta...

Bibliografia

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Janeiro: A
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BIKER, Julio Firmino Judice. Suplemento à coleção de tratados, convenções,
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públicos celebrados entre a coroa de Portugal e as mais potências desde
1649. Lisboa: Imprensa
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BITTENCOURT, José Neves. Da Europa possível ao Brasil aceitável. 1988.
Dissertação
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Pagando caro e correndo atrás
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Untitled-1 302 08/08/2014,


15:03
Capítulo 9

Muralhas da independência e liberdade do Brasil:


a participação popular nas lutas políticas
(Bahia, 1820-25)*

Hendrik Kraay

J osé Vicente de Santana provocou um pequeno incidente diplomático em


janeiro
de 1825. Na qualidade de “secretário do embaixador do Benin dos Reis da
África”,
solicitou ao contra-almirante sir George Eyre que recebesse o embaixador
“para tra-
tar de um negócio de alto interesse”. O cônsul-geral britânico no Rio de
Janeiro,
Henry Chamberlain, consultou o ministro de Negócios Estrangeiros e soube que
o
embaixador beninense, Manoel Alvarez Lima, residira em Salvador durante 12
anos
antes de vir à capital, havia alguns meses, com seu secretário, Santana, um
baiano. As
credenciais diplomáticas de Lima não passavam de “um documento, bastante
estra-
gado”, cuja data era “a única parte que se podia ler” e uma “bengala que,
segundo ele,
era o emblema da dignidade conferido pelos monarcas africanos aos seus
represen-
tantes”. O embaixador foi recebido por d. Pedro I e presenteou o imperador
brasilei-

* Agradeço o apoio financeiro à pesquisa prestado pelo Social Sciences and


Humanities Research Council do
Canadá. Uma versão preliminar deste capítulo foi apresentada no workshop New
Approaches to Brazilian
Independence, realizado na Oxford University em 30 de maio de 2003; agradeço
os comentários valiosos dos
participantes. E também os comentários de Jurandir Malerba sobre a versão
final do capítulo, bem como sua
revisão da versão em português. As seguintes abreviaturas são usadas nas
notas: AAPEB (Anais do Arquivo
Público do Estado da Bahia), ADI (Brasil, Ministério das Relações
Exteriores, 1922-25), AHE (Arquivo
Histórico do Exército), AHMI (Arquivo Histórico do Museu Imperial), AN/SPE
(Arquivo Nacional, Seção
do Poder Executivo), Apeb (Arquivo Público do Estado da Bahia), BN/SM
(Biblioteca Nacional, Seção de
Manuscritos), CLB (Coleção das Leis do Brasil), Nars (United States,
National Archives and Records Service),
PRO/FO (Great Britain, Public Record Office, Foreign Office), RIGHB (Revista
do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia).
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304 A independência brasileira

ro com a bengala. Na época, recebeu uma pensão do governo brasileiro; quando


ela
foi suspensa, ele solicitou e recebeu a promessa de uma passagem de regresso
à Bahia
para ele e seu secretário no próximo navio de guerra a fazer vela rumo ao
norte.
Chamberlain ainda duvidava de Lima, suspeitando que viera ao Rio de Janeiro
na
“procura de sustento” e observando que ele era “considerado um dos mais
estúpidos
e incompreensíveis dos negros”. Por outro lado, a recepção de Lima pelo
governo
brasileiro sugeriu que ele talvez tivesse “algum direito ao título”. Enfim,
o contra-
almirante recusou-se a receber o embaixador africano.1
A história do secretário Santana e do embaixador Lima era mais
complicada do
que Chamberlain podia imaginar. Na qualidade de embaixador dos obás
Osemwede,
de Benin, e Osinlokun, de Lagos, Lima viera ao Rio de Janeiro para comunicar
o
reconhecimento da independência brasileira da parte desses reis. Foram, de
fato, os
primeiros monarcas a reconhecer d. Pedro como imperador do Brasil, embora,
se-
gundo Chamberlain, poucos no Rio de Janeiro tenham levado Lima a sério.2 O
secretário Santana era natural da Bahia. Um alferes do 3o Regimento de
Milícias (os
ditos Henriques) da cidade de Salvador, ele viera ao Rio de Janeiro em 1813
para
cuidar de um processo. Como sua permanência se estendeu, vivia à cata de
promo-
ção e indicação para qualquer cargo militar no país que fosse remunerado. Um
pro-
cesso sobre um escravo foragido resultou na sua prisão na ilha das Cobras
por 16
meses em 1820/21, durante a qual o governador da Bahia finalmente lhe deu
baixa
da milícia. Solto depois de provar sua inocência perante um conselho de
guerra,
Santana voltou a buscar uma promoção, solicitando em vão a indicação para
capitão
no Regimento dos Henriques do Rio de Janeiro. Então casado com Fortunata
Maria
dos Santos, uma ex-criada do palácio imperial, Santana alegava que não podia
voltar
a Salvador em função de sua consorte temer a viagem marítima. Em meados de
1824, quando o Rio de Janeiro agitava-se com preparativos militares para
repelir
uma esperada invasão da antiga metrópole, Santana propôs a organização de
uma
companhia de espadachins da sua “cute [cor] e pátria” para defender d. Pedro
contra
ataques dos portugueses. As autoridades militares fizeram o devido resumo
dessa
proposta de uma guarda negra baiana e arquivaram-na com os outros
requerimentos
do miliciano baiano.3 Alguns meses mais tarde, Santana apareceu como
secretário
do embaixador beninense.

1 Henry Chamberlain para George Canning, Rio de Janeiro, 29 jan. 1825,


PRO/FO 13, v. 8, fs. 109r-10r.
2 Verger, 1987:283-284; e Silva, 2003:7-8, 11.
3Sobre Santana, ver “Informação dos officiaes do 3o Regimento de
Milicias...”, Salvador, 31 dez. 1809,
Apeb, m. 247-6; e seus requerimentos, AHE/RQ, JZ-173-4.911.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 305

Pouco tempo depois da tentativa de Santana de marcar uma audiência com


o
contra-almirante britânico, José Lino Coutinho descobriu que dois de seus
escravos
estavam servindo como soldados na Brigada de Artilharia a Cavalo do Rio de
Janei-
ro. Lino Coutinho, médico baiano formado em Coimbra, servira como secretário
da
junta constitucional proclamada em Salvador em fevereiro de 1821, tendo
represen-
tado sua província nas cortes portuguesas e na malograda Assembléia
Constituinte
brasileira de 1823. Apesar de juntar-se a Cipriano José Barata de Almeida e
a alguns
outros deputados brasileiros na recusa em assinar a Constituição portuguesa
em ou-
tubro de 1822 e de fugir com eles para Falmouth, ele antes falara nas cortes
a favor
do envio de tropas portuguesas ao Brasil a fim de controlar “os facciosos,
apoiados
nos pretos e nos mulatos”, que ameaçavam os cidadãos pacíficos.4 Embora
tenha
mudado de opinião sobre a conveniência de mandar tropas portuguesas para a
Bahia,5
em outubro de 1824, Lino Coutinho assistiu pessoalmente a atuação de
“elementos
sediciosos”, quando testemunhou o levante do 3o Batalhão de Salvador,
alcunhado
de “os Periquitos”. É possível que os soldados rebeldes incluíssem seus dois
escravos,
os irmãos Francisco Anastácio e João Gualberto, carpinteiros, que se diziam
capazes
de ler, escrever e contar. Durante a guerra para expulsar as tropas
portuguesas de
Salvador (1822/23), os dois se alistaram nas forças patriotas; depois,
muitos dos
escravos recrutados durante a guerra foram transferidos para o batalhão dos
Periqui-
tos. Quando da eclosão da revolta, o presidente enviou Lino Coutinho ao Rio
de
Janeiro para informar diretamente o imperador. No início de dezembro, a
revolta foi
contida e os Periquitos enviados para a capital, onde já se encontrava Lino
Coutinho.
No devido tempo, os dois escravos foram avaliados e ele aceitou 600$000 de
com-
pensação pela alforria que concedeu aos dois.6
Enquanto Santana solicitava autorização para criar uma guarda negra
para o
imperador e as autoridades militares lidavam com um influxo de soldados
negros e
ex-escravos da Bahia, Felisberto Caldeira Brant Pontes, o futuro marquês de
Barbacena,
e o ex-comandante de Santana — na época em que exercia o cargo de inspetor-
general das tropas baianas, 1811-21 — estavam em Londres, encarregados da
delica-
da missão de obter o reconhecimento britânico da independência brasileira e
de
contratar colonos e soldados europeus para o Brasil. Brant, que nutria
opiniões fortes
a respeito de questões raciais, urgiu a contratação de mercenários para
promover o
“cruzamento de raças”, acrescentando que “homens altos, e claros” eram
essenciais,

4 Berbel, 1999:161.
5 Sentinella Bahiense, Salvador, 21 ago. 1822.
6 Requerimentos de José Lino Coutinho, AHE/RQ, JZ-101-3.037. Sobre a sua
carreira, ver Souza, 1979:57-58.

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306 A independência brasileira

“antes que os naturais do país se reduzam a anões cor-de-cobre”.7 Já na


década de
1810, Brant demonstrava uma antipatia visceral aos oficiais milicianos
negros de
Salvador e tentou demiti-los.8 Embora Brant tenha passado a época da
independên-
cia viajando entre Londres e Rio de Janeiro, encarregado de missões
diplomáticas —
depois de sua expulsão de Salvador na esteira da adesão baiana ao regime
liberal
português em 10 de fevereiro de 1821 —, ele, como outros observadores da
política
brasileira, se preocupava muito com “a peste revolucionária” e com o que
aconteceria
se ela se propagasse “em um país de tantos negros, e mulatos”.9 Na década de
1820,
Brant seria um oponente implacável do que ele percebia como graves ameaças
da
parte de homens de cor.
As histórias de Manoel Alvarez Lima e José Vicente de Santana, de
Francisco
Anastácio e João Gualberto, de José Lino Coutinho e de Felisberto Caldeira
Brant
Pontes, ligadas entre si, oferecem uma ótima oportunidade para se refletir
sobre o
papel das classes populares na independência brasileira. O temor das classes
baixas
demonstrado por Brant, sua determinação de substituir soldados negros por
merce-
nários brancos e seu desejo de transformar a população brasileira por meio
da imi-
gração são indícios do pessimismo sobre o futuro do Brasil que prevalecia na
épo-
ca.10 Tanto estrangeiros quanto brasileiros temiam que o país seguisse o
destino de
São Domingos, mas freqüentemente esse medo era menos uma descrição objetiva
do
que se passava no país do que meras advertências retóricas, exageradas para
se conse-
guir maior efeito, emitidas por aqueles que desejavam limitar mudanças
sociais e
políticas. Brant, como Pedro e Lino Coutinho, vivia numa sociedade altamente
de-
pendente da escravidão, impregnada de cultura africana e afro-brasileira. O
impera-
dor recebera um embaixador africano e dera-lhe uma pensão; incapaz de
preservar
seu domínio sobre seus escravos, Lino Coutinho fez o possível, libertando-os
e acei-
tando compensação (de fato, bem menos que o valor da avaliação dos dois
rapazes).
Chamberlain, o cônsul-geral britânico, esforçava-se para entender o “caráter
alta-
mente timorato” de Brant. O diplomata brasileiro declarava-se “fervoroso
(...) advo-
gado” da abolição do tráfico de escravos e “confessava sua apreensão do
perigo da
população negra existente”, mas alegava que os baianos não aceitariam
qualquer res-
trição ao tráfico e se levantariam caso fossem impostas restrições.
“Contudo”, con-

7 Felisberto Caldeira Brant Pontes para José Bonifácio de Andrada e Silva,


Londres, 1 o jun. 1823; e para Luiz
José Carvalho e Mello, Londres, 1o out. 1824, ADI, 1:263, 2:128.
8 Kraay, 2001a:102-103.
9 Brant para Joaquim Pereira d’Almeida, Salvador, 31 out. 1820; Barbacena,
1976:174; e para o conde de
Palmela, Salvador, 21 dez. 1820, BN/SM, II-33, 22, 74.
10 Schultz, 2001:122, 208-209; Silva, 1999:169-171, 175-176, 190-218; e
Oliveira, 1999:117-219, 147.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 307

cluía Chamberlain, “é na Bahia que ele considera a população negra mais


perigosa!”11
José Vicente de Santana era monarquista convicto e facilmente imaginava-se
coman-
dante de uma guarda imperial composta de negros, na mesma época em que o
impera-
dor, português nato, já havia começado o recrutamento dos mercenários
europeus que
eventualmente preencheriam esse papel na capital.12 Também podia se imaginar
como
o representante de um monarca africano. Por outro lado, já seria bem mais
difícil saber
o que Francisco Alberto e João Gualberto pensavam dos acontecimentos que
converte-
ram em soldados libertos os artesãos escravos e que os arrancaram da Bahia.
Eles não
deixaram nenhum relato de suas esperanças e de seus temores, como fez seu
senhor. Sua
história, todavia, também faz parte da independência brasileira.
A alta política da independência e a rica cultura política da esfera
pública emer-
gente no Rio de Janeiro são os temas principais de boa parte dos estudos
recentes
sobre essa época.13 Ainda se sabe muito pouco sobre a participação popular
no pro-
cesso da independência e como esta foi compreendida pelas classes populares.
Ade-
mais, a história da independência nas províncias do então Norte, notadamente
a
Bahia, mas também Pernambuco — onde a participação popular na política
daque-
les anos era mais visível —, ainda permanece mal-incorporada às histórias da
inde-
pendência nacional. Uma análise das questões sugeridas pelas histórias
conectadas
das preocupações de Brant, Lino Coutinho e seus escravos, e da busca de um
posto
militar por parte de Santana certamente evidenciará como nossa compreensão
desses
anos pode ser ampliada.
Relativamente poucos historiadores abordaram a questão da participação
po-
pular na independência brasileira. Na medida em que a independência é vista
como
resultado do grito do Ipiranga, como no quadro famoso de Pedro Américo, o
povo
brasileiro não passa de um espectador atônito. Interpretar a independência
como o
resultado de uma crise estrutural do antigo sistema colonial deixa pouca
margem
para a atuação de pessoas. 14 Focalizar os limites impostos ao liberalismo
pelo
escravismo ou sustentar que à estrutura social do Brasil faltavam requisitos
para o
desenvolvimento completo do liberalismo também pode empobrecer nossa visão
desses anos.15 Uma escola nacionalista de historiadores, mais antiga, viu a
desor-

11 Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 31 dez. 1823; Webster, 1938, v.


1, p. 232.
12 Lemos, 1996.
13 Lustosa, 2000; Oliveira, 1995 e 1999; Lyra, 1994; Malerba, 2000; Schultz,
2001; Souza, 1999; Barman,
1988; Neves, 2003; Leite, 2000; e Jancsó, 2003.
14 Novais, 1995; Novais e Mota, 1996.
15 Costa, 2000:53-77; Schwarz, 1992:19-31; Jancsó e Pimenta, 2000:168-172.

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308 A independência brasileira

dem social e política no Norte como tentativas de destruir a união nacional,


dei-
xando assim de reconhecer os sofisticados projetos políticos que emergiram
naque-
las lutas.16
De fato, a independência tal como foi alcançada em 1825 — quando do
reco-
nhecimento das monarquias européias — não pode ser vista como uma conquista
popular. O império de d. Pedro fortaleceu-se derrotando, e em muitos casos
repri-
mindo brutalmente, projetos políticos regionais que buscavam maior autonomia
para as províncias e movimentos populares cujos partidários concebiam uma
socie-
dade mais aberta. Sua derrota, todavia, não deve nos levar a ignorá-los.
A participação popular na política da época da independência é
freqüentemen-
te vista como dependente de divisões na elite que motivaram a busca de apoio
entre
as classes populares. Segundo Matthias Röhrig Assunção (1990, 1999 e 2003),
no
Maranhão, a independência “abriu a porta à participação das classes baixas
na políti-
ca (...) embora sob liderança liberal”; mas fugiu ao controle dos liberais
durante a
presidência de Miguel dos Santos Freire Bruce. Numa série de artigos, Marcus
J. M.
de Carvalho (1996, 2002a e 2000b) analisa o impacto social dos anos da
indepen-
dência sobre diversos grupos sociais, inclusive índios, mulheres e negros.
Para a Bahia, João José Reis (1989 e 2003) cunhou a frase “partido
negro” para
caracterizar o movimento popular, sustentando que foi tanto a “construção
ideológi-
ca” de uma elite receosa quanto algo “absolutamente real”. Embora Reis
reconheça
que o movimento não era homogêneo, falar de um “partido negro” ou, como os
contemporâneos faziam com mais freqüência, de “classes de cor”, esconde
diferenças
importantes de condição legal e étnica entre escravos, libertos e livres
pardos e ne-
gros. De fato, todos tiveram papéis ativos nesses anos, mas nunca atuaram
coletiva-
mente. Os rebeldes muçulmanos e africanos de 1835 rejeitavam totalmente a
socie-
dade brasileira vigente, e tal resistência escrava se distinguia dos
movimentos políticos
dos livres. Sua lógica derivava não da “Era das Revoluções” do mundo
ocidental, mas
de fontes africanas. Os brasileiros livres, fossem quais fossem suas
divergências, sem-
pre colaboraram uns com os outros durante as revoltas africanas e escravas
desses
anos, e apenas retomaram suas lutas quando controlada a ameaça escrava.
Uma análise mais ampla da política popular na década pós-independência
en-
contra-se num livro recente de Gladys Sabina Ribeiro sobre os conflitos
antiportu-
gueses no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado. Ela assevera que os escravos e
os
pobres livres da capital não eram instrumento de ninguém: “tinham uma
ideologia

16 Rodrigues, 1975.

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15:03
Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 309

própria, elaborada a partir das suas vivências e dos conflitos existentes


naquelas so-
ciedades”. A concorrência cotidiana entre imigrantes portugueses e negros
fornecia a
base das lutas plebéias pela liberdade da opressão e pelo controle de suas
vidas. Ela
sustenta que “grupos ‘de cor’ aparecem sempre unidos” nas suas lutas, ao
contrário
do que se passava na Bahia, onde distinções entre africanos e crioulos (e
entre escra-
vos e livres) dividiam as classes populares.17 Embora Ribeiro às vezes
afirme mais do
que suas fontes revelam, seu livro fornece insights importantes sobre o
universo com-
plexo da política popular no Rio de Janeiro.
A Bahia se acomoda mal na história mais ampla da independência
brasileira. A
província não seguiu nem o Rio de Janeiro, a capital, nem Pernambuco, o
centro da
resistência contra as tendências centralizadoras da corte entre 1817 e 1824.
Ao con-
trário de Pernambuco, a luta pela independência na Bahia não produziu
qualquer
projeto político exaltado ou federalista tão claro quanto o de frei Joaquim
do Amor
Divino Rabelo Caneca e da Confederação do Equador de 1824.18 O exaltado
baiano
e correligionário de Caneca, Cipriano Barata, compartilhou muitos dos ideais
radi-
cais do carmelita pernambucano, mas nunca teve a oportunidade de realizar
seu
programa na Bahia.19
Uma guerra contra as tropas portuguesas sitiadas em Salvador, que
durou um
ano (1822/23), dominou os anos da independência na Bahia.20 A guerra criou
novas
identidades e proporcionou aos grupos populares uma nova consciência de sua
im-
portância para o Estado. Embora homens da classe de Brant tenham acabado se
livrando da ameaça ao seu domínio representada pela independência,
conseguindo o
que F. W. O. Morton habilmente qualifica de uma “revolução conservadora da
inde-
pendência”, esse resultado não era inevitável, a julgar pelas preocupações
de Brant na
década de 1820, sem falar na queda do governo provincial em 1831 (devido a
um
movimento popular) e da Sabinada de 1837/38.21 Os vitoriosos da “revolução
conservadora” nunca tiveram certeza de seu triunfo, e há muitos indícios de
um
patriotismo popular duradouro que interpretava a independência como uma
realiza-
ção dos homens de cor.
17 Ribeiro, 2002:248-250, 269, 299-301; ver também Soares, 2001:337-341.
18 Leite, 1989; Morel, 2000; e Bernardes, 2003.
19 Morel, 2001.
20 Sobre a independência baiana, ver Amaral, 1957; Pinho, 1964; Morton,
1974; Cavalcanti, 1972; Tavares,
1982 e 2003; e Kraay, 2001a.
21 Reis, 2003:50, 65; Kraay, 1992; Souza, 1987. A rebelião escrava de 1835
poderia ser acrescentada a essa
lista, mas não fez ruir a ordem política como fizeram os movimentos de 1831
e 1837.

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310 A independência brasileira

Neste capítulo, pretendo relatar os principais episódios da época da


indepen-
dência e, na medida do possível, ligá-los à atuação das classes populares.
Começo
com um exame da política baiana entre 1817 e 1822, quando a província
enfrentava
escolhas difíceis entre projetos políticos articulados em Recife, em Lisboa
e no Rio de
Janeiro. Esta seção também trata das Forças Armadas, que tiveram papel-chave
na
política baiana da época, além de incorporar importantes setores das camadas
baixas
da sociedade. A Guerra da Independência (1822/23) e as mudanças sociais
provoca-
das pela luta em prol da expulsão das tropas portuguesas são os temas da
seção seguin-
te. O incipiente movimento popular que emergiu dessa luta foi brutalmente
aniquila-
do nos 18 meses que se seguiram à libertação de Salvador, em 2 de julho de
1823. A
percepção de que a independência fora uma vitória popular, obtida pelas
classes de cor
(livres), todavia, permanecia, e a última seção do capítulo analisa dois
momentos em
que as implicações políticas dessa perspectiva foram discutidas
publicamente. A con-
clusão liga a história da independência baiana à do Rio de Janeiro e faz
algumas refle-
xões sobre a complexidade da política popular à época da independência.

A política, 1817-22

Na década de 1810, Salvador era a segunda cidade da América


portuguesa. As
elites baianas almejavam um papel de liderança mais amplo e, durante a curta
estada
da corte exilada na capitania, em fevereiro de 1808, os comerciantes baianos
espera-
ram que a monarquia se radicasse na cidade, chegando ao ponto de se
oferecerem
para construir um palácio digno dos soberanos portugueses. A corte seguiu
viagem
para o Rio de Janeiro, garantindo um lugar secundário para a Bahia e o
restante do
Norte no império, cujas bases foram lançadas na década seguinte. A relação
com o
Rio de Janeiro e outras questões sociais dominaram a política desses anos, e
as Forças
Armadas inevitavelmente tornaram-se centrais nos cálculos políticos.
Em 1811, Felisberto Caldeira Brant Pontes, um rico senhor de engenho,
co-
merciante e oficial do Exército, foi nomeado inspetor-general da Bahia, um
posto
equivalente a comandante de guarnição. Desse posto, podia observar
cuidadosamen-
te os principais setores das classes baixas e livres, ligadas ao Estado
através das Forças
Armadas. Como um grande senhor de engenho, ele também se preocupava com a
desordem crescente entre os africanos, opondo-se vigorosamente à política
paterna-
lista e leniente do governador, o conde dos Arcos, para com os escravos.22

22 Reis, 2003:81-93; Kraay, 2001a:44-46.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 311

Nos últimos anos da época colonial, a guarnição de Salvador era quase


exclusi-
vamente baiana, no sentido de que seus oficiais e soldados eram, em sua
grande
maioria, naturais da capitania. Em 1812, os regimentos pagos e da milícia
contavam
com um efetivo de aproximadamente 6.500 homens, número que cresceu um pouco
durante o restante da década, beirando a um alistamento completo da
população
masculina adulta.23 O serviço como soldado do Exército estava restrito aos
homens
brancos; com muita relutância, as autoridades alistavam pardos. O tempo de
serviço
era longo, mas o serviço não era muito desgastante. Durante a maior parte do
ano, o
Exército chegava a licenciar até três quartos do efetivo, e muitos soldados
viviam fora
dos fortes e dos quartéis. Muitos complementavam seus soldos baixos e etapas
parcas
com o que ganhavam como artesãos ou trabalhadores manuais; enfim, estavam
bem
integrados à classe baixa urbana.24
A expansão da milícia manteve o padrão setecentista de batalhões
segregados de
brancos, pardos e pretos, mas o inspetor-general Brant estimava pouco os
oficiais de
cor parda e preta (as classificações de “qualidade” usadas na época pelas
instituições
militares).25 Os oficiais pretos do 3o Regimento, os Henriques, formaram uma
elite
artesã, que preenchia o fosso entre o Estado colonial e as classes baixas
africanas ou
de ascendência africana (de cor, na linguagem da época). Alguns dos oficiais
pretos
(todos crioulos, nascidos no Brasil) eram casados com africanas; os
comandantes
eram promovidos entre os oficiais pretos. Os oficiais do 4o Regimento, de
homens
pardos, formaram um grupo menos coeso, e oficiais de fora do regimento foram
a ele
impostos no início da década de 1810. Os oficiais brancos variavam dos ricos
comerci-
antes do 1o Regimento aos artesãos bem-sucedidos do 2o, muitos deles
portugueses.26
Poucos indícios de descontentamento com a ordem colonial apareceram na
Bahia na década de 1810, com a exceção das grandes revoltas escravas. A
elite baiana
aparentemente permanecia leal à monarquia. Os pernambucanos, pelo contrário,
reagiram à crescente centralização no Rio de Janeiro com a revolta
republicana de
1817.27 Como aconteceria repetidamente nos anos seguintes, os baianos não se
alia-
ram aos pernambucanos. Não obstante a simpatia pela posição pernambucana,
ma-
nifestada em boatos sobre um possível levante na Bahia, o Exército baiano
mobili-
zou-se e marchou para o norte, onde teve importante participação no debelar
da

23 Kraay, 2001a:87, 267.


24 Ibid., p. 71-80.
25 Sobre as classificações “raciais” nos meios militares da época, ver
Kraay, 2001a:20-24, 52-53, 75-80,
88-97.
26 Kraay, 2001a:82-105.
27 Leite, 1988; e Mota, 1972b.

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312 A independência brasileira

rebelião. Os patriotas pernambucanos foram encarcerados na Bahia e


processados,
sendo quatro executados. Enquanto a dura repressão caía sobre Recife, as
autorida-
des baianas investigavam suspeitas de infidelidade em Salvador. Pouco se
sabe dos
inquéritos, mas vários relatos contemporâneos atribuíram o levante militar
em
Salvador que causou a adesão baiana ao regime constitucional à influência
dos
presos pernambucanos, principalmente entre os oficiais de artilharia
encarregados
da prisão.28 Uma unidade portuguesa, o 12o Batalhão, foi estacionada por
algum
tempo na cidade (talvez um indício da preocupação do governo), partiu em
1819,
mas voltou em 1820.
Com a notícia da revolução portuguesa, que chegou à Bahia em outubro
de
1820, surgiu uma dialética entre patriotas de classe baixa, mais radicais ou
exaltados,
e os mais moderados de classe média e alta. As cartas da Bahia recebidas por
um
espião policial no Rio de Janeiro relatavam que, em dezembro de 1820, “só se
fala[va]
da Constituição”. Ouviam-se com freqüência “canções políticas” nas ruas,
enquanto
publicamente se liam periódicos portugueses “entre grupos de trinta a
quarenta pes-
soas e ao aplauso dos ouvintes, tanto burgueses [isto é, civis] como
militares”. Segun-
do o correspondente, todavia, essa esfera pública emergente e a simpatia
pelo regime
constitucional por parte dos “primeiros do país” arrefeceram em meados de
dezem-
bro com a descoberta de uma conspiração “organizada pelos negros e mulatos
livres,
na qual eles [os primeiros do país] eram designados as primeiras vítimas”.
Nada mais
se sabe sobre essa conspiração, mas tanto o inspetor-general Brant quanto o
cônsul
britânico manifestaram pela primeira vez, explicitamente, suas preocupações
com as
classes de cor em dezembro de 1820.29
Em 10 de fevereiro de 1821, a Bahia aderiu ao regime constitucional,
após uma
insurreição liderada pela artilharia. Breves conflitos entre as tropas
constitucionalistas
e monarquistas arruinaram o dia, mas a paz foi rapidamente restaurada e os
constitucionalistas vitoriosos estabeleceram uma junta provisória, composta
majori-
tariamente de burocratas, oficiais e clérigos portugueses. Lino Coutinho
serviu como
um dos secretários, enquanto o oficial baiano mais graduado da artilharia, o
tenente-
coronel Manoel Pedro de Freitas Guimarães, foi promovido a brigadeiro,
nomeado
comandante da guarnição e incorporado à junta por aclamação popular. O papel
do
inspetor-general Brant foi ambíguo naquele dia. Começou o dia liderando as
tropas

28Silva, 1919-40, v. 3, p. 267; Silva, 1866:13; e Garcia, 1900:12.


29Cailhé de Geine para intendente-geral da Polícia, Rio de Janeiro, 2 jan.
1821, BN/SM, II-33, 22, 54;
William Pennell para visconde de Castlereagh, Salvador, 8 dez. 1820, PRO/FO
63, v. 230, f. 85. As preocu-
pações de Brant já foram mencionadas antes; ver também Morton, 1974:235.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 313

realistas e por pouco escapou da morte (seu cavalo morreu numa descarga dos
constitucionalistas); na reunião da Câmara Municipal, propôs “uma nova obra
de
brasileiros”, aparentemente visando ligar a Bahia ao Rio de Janeiro, onde
havia pla-
nos para ou a separação de um Brasil absolutista do Portugal
constitucionalista ou a
proclamação de uma Constituição brasileira para antecipar os liberais
portugueses.
Nenhuma das duas propostas foi bem recebida na época, e Brant mais uma vez
por
pouco escapou de outra ofensa física por parte dos constitucionalistas. Em
segui-
da, saiu da Bahia, mas voltaria depois da guerra como membro do círculo
íntimo
de d. Pedro.30
A adesão da Bahia ao regime constitucional em fevereiro de 1821 mudou
o
significado do serviço militar. A junta convocou voluntários para defender a
Bahia
contra a reação do Rio de Janeiro, e muitos assentaram praça para defender
sua
pátria (a aceitação do regime constitucional por d. João VI no final daquele
mês
eliminou a ameaça).31 Em agosto, chegou de Lisboa um contingente substancial
de
tropas portuguesas, a Legião Constitucional. Originariamente convidados pela
junta
para defender o regime constitucional contra a reação do Rio de Janeiro,
esses refor-
ços eventualmente chegaram a ser percebidos como um Exército de ocupação.
Cada
vez mais, os baianos que assentavam praça o faziam com fins explicitamente
políti-
cos: João Primo declarou posteriormente que se alistara voluntariamente “a
fim de
rogar a tropa do país, para não anuir no desembarque dos lobos lusitanos”.32
Em
setembro, a Bahia elegeu seus oito deputados às cortes, todos eles
brasileiros. Embora
dominada por senhores de engenho e comerciantes, a bancada baiana também in-
cluía Lino Coutinho e Cipriano Barata. Alguns soldados baianos foram
destacados
para Pernambuco numa época em que aquela província estava dividida entre a
Junta
de Goiana e o governador Luís do Rego Barreto (setembro a outubro de 1821).
Mas
os reforços baianos enviados ao governador de Pernambuco estavam por demais
in-
clinados a apoiar a junta e foram logo retirados.33 A hostilidade às tropas
portugue-
sas em fins de 1821 era estimulada por aqueles que viam os soldados europeus
como
instrumentos da centralização em Lisboa. O brigadeiro Freitas Guimarães,
algo
populista, incentivava os alistamentos patrióticos, cultivava ligações
estreitas com as

30 Garcia, 1900:19-24; Silva, 1866:15; Rebouças, 1923:457; Barman, 1988:68-


69; Aguiar, 1896:26-32;
Neves, 2003:97-98, 139, 242-244.
31 Idade d’Ouro do Brazil, 15, 17, 19, 20 e 21 fev. 1821; e Silva, 1919-40,
v. 3, p. 282.
32 Castro, 1984:145.
33 Pennell para o marquês de Londonderry, Salvador, 18 set. 1821, PRO/FO 63,
v. 240, f. 141; e Graham,
1824:130.

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314 A independência brasileira

tropas e mobilizou muito apoio entre milicianos pretos e pardos quando


comandan-
te da guarnição.
A lealdade dos baianos às cortes foi duramente testada por medidas que
subor-
dinavam as guarnições brasileiras às autoridades militares de Lisboa e pela
chegada,
em 11 de fevereiro de 1822, de ordens para substituir o brigadeiro Freitas
Guimarães
pelo coronel Inácio Luiz Madeira de Melo, comandante português do 12o
Batalhão
que inicialmente se opusera ao regime constitucional. A Câmara Municipal
recusou-
se a cumprir a formalidade de registrar a patente de Madeira; a tentativa da
junta de
conciliar a disputa fracassou e o combate irrompeu em Salvador em 19 de
feverei-
ro. As tropas portuguesas venceram. No dia 21, capturaram Freitas Guimarães
(depois mandado para Lisboa como prisioneiro), esmagaram os regimentos
brasi-
leiros e tomaram Salvador. Muitos oficiais e soldados baianos fugiram para o
Recôncavo, acompanhados dos civis que preferiam emigrar a permanecer numa
cidade sob ditadura militar.
O inquérito de março de 1822 sobre as lutas de fevereiro, instaurado
por Ma-
deira, é a única fonte que oferece algumas pistas sobre a participação
popular nesse
movimento. Muitas testemunhas concordaram que os patriotas incluíam
soldados,
milicianos pretos e pardos, e negros armados e descalços (escravos) — em
outras
palavras, um amplo recorte das camadas baixas urbanas.34 O simbolismo,
racialmen-
te carregado, de liberdade e escravidão provou ser voz corrente entre os
soldados
rasos, que não se definiam nem como pretos nem como escravos e, cada vez
mais,
tampouco como portugueses. Vários oficiais patriotas haviam mobilizado suas
com-
panhias perguntando aos homens se eles queriam ser “forros ou cativos”. Os
soldados
declararam unanimemente que queriam ser livres e, depois disso, seus
oficiais reco-
mendaram que se preparassem para expulsar os portugueses da Bahia.35 Segundo
todas as testemunhas, essa retórica de escravidão e liberdade permaneceu sob
o con-
trole firme dos oficiais, mas há indícios de uma consciência política mais
ampla entre
os soldados. Alguns do 1o Regimento negaram-se a obedecer a ordem para depor
armas, instigados por um que gritou “Viva Pernambuco”, provavelmente
lembrando
o sucesso da Junta de Goiana em conseguir a demissão de Luís do Rego.36
Vivas a
Freitas Guimarães indicam sua popularidade e seu papel de símbolo para os
patrio-
tas.37 Motivos mais rasteiros também se manifestavam entre a tropa,
refletindo as

34 AAPEB, v. 27, p. 51, 61, 66, 111, 1941.


35 AAPEB, v. 27, p. 32, 38-39, 42, 55-56, 66, 1941.
36 AAPEB, v. 27, p. 29-30, 1941.
37 AAPEB, v. 27, p. 41, 53, 55, 1941.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 315

tensões de classe nessa sociedade: alguns “soldados diziam em voz vaga que
se derro-
tassem os três batalhões europeus haviam de dar saque nos habitantes da
Praia”, isto
é, o distrito comercial da freguesia de Conceição da Praia, um reduto
português.38
Buscando a liberdade, determinados a depor um governo dominado por
portugueses
— como os pernambucanos haviam feito — e esperando pilhagem, os soldados
derrotados se dispersaram pelo Recôncavo e, mais tarde, formaram uma parte
im-
portante do Exército patriota reunido na segunda metade de 1822.
A milícia preta e parda também teve papel importante na luta. O idoso
capitão
negro (mais tarde coronel) Joaquim de Santana Neves colocou-se no centro do
con-
flito, quebrando pessoalmente o braço de um oficial português. Os sargentos
da
artilharia lutaram sem sucesso para conter os milicianos, cujo entusiasmo
superou
sua disciplina ao abrirem fogo contra as tropas portuguesas sem terem sido
instruí-
dos a fazê-lo.39 Somente uma testemunha do inquérito propiciou alguns
indícios
sobre os motivos dos milicianos. Esse oficial confrontou-se com um soldado
do 4o
Regimento de Milícia “que praticava imensos despropósitos”, enquanto montava
guarda na praça da Piedade. Quando inquirido sobre quem lhe havia dado
ordens —
uma afirmação de autoridade militar por parte do oficial —, o soldado
respondeu
“que tinha ido por ali por muito sua vontade, e que estavam reunidos para
defender
a sua Pátria, e que admirava muito que sendo ele [a testemunha] oficial de
artilharia
lhe fizesse tal pergunta, dizendo-lhe ao mesmo tempo que se fosse oficial
honrado
estaria no forte”. Os oficiais da milícia chegavam e saíam durante toda a
tarde, entre
brados de “vivas” a Freitas Guimarães.40 Evidentemente, o brigadeiro
tornara-se o
símbolo e o ponto de encontro daqueles que procuravam defender sua terra dos
portugueses. Depois de sua derrota, os milicianos patriotas deixaram a
cidade, segui-
dos de um êxodo de oficiais e soldados que não haviam participado da luta.
Dessa
forma, a milícia dividiu-se ao longo de linhas mais ou menos raciais, com os
portu-
gueses e alguns dos brasileiros dos regimentos brancos permanecendo em
Salvador,
enquanto a maioria dos oficiais pretos e pardos juntou-se aos patriotas.
Em fevereiro de 1822 dividiu-se profundamente a sociedade baiana. Nos
pouco
menos de 18 meses desde a Revolução do Porto, as divisões entre portugueses
e
brasileiros tornaram-se claras e as classes populares, setores importantes
que serviam
em funções subalternas nas Forças Armadas, demonstraram sua importância.
Deve-
ras, havia um grau de liderança da elite nessa luta, mas muitos repararam na
curiosa

38 AAPEB, v. 27, p. 64, 68, 1941.


39 Titara, 1973:179; e AAPEB, v. 27, p. 169, 173, 1941.
40 AAPEB, v. 27, p. 128, 1941.

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316 A independência brasileira

passividade de Freitas Guimarães ante a mobilização em prol dele. Este foi,


sem
dúvida, um movimento bem mais popular do que aquele de fevereiro de 1821. A
ordem social na cidade ruiu, a disciplina militar falhou nos regimentos
baianos e a
dispersão dos patriotas derrotados levou a desordem ao Recôncavo.

A guerra, 1822/23

Pouco se sabe dos meses entre fevereiro e junho de 1822. Madeira,


cauteloso,
permaneceu em Salvador, talvez considerando-se vitorioso. Manifestações
antiportuguesas continuaram na cidade. Em março, “uma multidão de negros”
ape-
drejou a procissão de São José, da qual participavam muitos portugueses.41 A
esposa
de um dos deputados baianos — ela também senhora de engenho —, Maria Bárbara
Garcês Pinto de Madureira, temia que a Bahia seguisse o caminho de
Pernambuco,
“onde pretos e pardos (corja do diabo!) apedrejam e dão cacetada em todo
lojista”,42
uma referência à atuação dos batalhões de negros e mulatos durante o governo
de
Gervásio Pires Ferreira.43 Albert Roussin culpava os portugueses arrogantes
e sem
“desdém para com as castas de cor” pelas tensões crescentes, que até junho
levaram ao
assassinato de soldados portugueses.44
No Rio de Janeiro, d. Pedro desafiou as cortes permanecendo no Brasil
e, pouco
a pouco, consolidou um governo alternativo ao regime de Lisboa, prometendo
no
início de junho convocar uma Assembléia Constituinte. Mais tarde, naquele
mesmo
mês, as câmaras do Recôncavo reconheceram d. Pedro como regente,
estabelecendo
em setembro um Conselho Interino de Governo dominado pelos senhores de enge-
nho para coordenar os esforços militares contra os portugueses em Salvador.
Com o
apoio do governo do Rio de Janeiro, que enviou tropas e um oficial francês,
Pierre
(Pedro) Labatut, para comandá-las, e a ajuda das províncias vizinhas, o
Conselho
Interino organizou o que se chamou de Exército Pacificador (o próprio nome
sugere
uma inquietação social a ser dominada, assim como tropas estrangeiras a
serem ex-
pulsas). Uma mistura de milícias do Recôncavo, corpos provisórios e
regimentos do
Exército e da Milícia reconstituídos de Salvador, em grande parte
financiados e sus-
tentados por senhores de engenho baianos, o Exército Pacificador cercou
Salvador e

41 Silva, 1919-40, v. 3, p. 339-340.


42 Maria Bárbara Garcês Pinto de Madureira para Luis Paulino d’Oliveira
Pinto da França (pai), Salvador, 15
abr. [1822]; e França, 1980:39.
43 Quintas, 1962:226.
44 Albert Roussin para o ministre de la Marine, Salvador, 21 jun. 1822; e
AAPEB, v. 41, p. 121, 1973.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 317

subjugou pela fome as tropas portuguesas da cidade. Na manhã de 2 de julho


de
1823, elas embarcaram para Portugal, deixando os vitoriosos brasileiros
entrar sem
oposição na capital baiana naquela mesma tarde.
O que significou essa luta para os muitos indivíduos humildes que
arriscaram
suas vidas em fevereiro de 1822 e continuariam a arriscá-las até julho de
1823? Ma-
deira não tardou em explicar os eventos segundo os interesses de classe e as
inclina-
ções políticas dos envolvidos. Em março de 1822, relatou três partidos
ativos em
Salvador: um português e constitucionalista; um dominado pelos baianos ricos
e
vinculado ao Rio de Janeiro, cujos membros desejavam “uma Constituição em
que,
como lordes”, seriam independentes de Portugal; e um terceiro, composto de
classes
menos abastadas, que “quer[iam] uma independência republicana em que só
figur[ass]em os naturais do país”. Um mês depois, o capitão-mor de Cachoeira
tam-
bém relatou três partidos em seu distrito: um brasileiro, um europeu
(português) e
um negro, acrescentando que os brasileiros estavam se armando.45 Apesar de
sua
simplificação de associações complexas, esses dois relatos referem-se
virtualmente a
todas as questões desses anos, em que classe, cor e uma emergente percepção
de
diferença entre portugueses e brasileiros configuraram os debates sobre a
natureza do
governo, o lugar da Bahia em regimes políticos mais amplos, o papel do
liberalismo
nessa sociedade escravocrata e o lugar dos estrangeiros na nação.
O comentário sarcástico de Madeira sobre o desejo da elite baiana de
agir como
“lordes” sob um regime constitucional resume algumas das questões, ligadas
entre si,
que estavam em jogo na Bahia. Para os senhores que formaram o Conselho
Interino,
a subordinação a um regime parlamentar de Lisboa lhes era tão desagradável
quanto
a submissão a um imperador autocrático do Rio de Janeiro. De fato, quando
Labatut,
pessoalmente escolhido por d. Pedro para o comando das forças patriotas na
Bahia,
ultrapassou o que o conselho julgava os limites da sua comissão, foi deposto
e envia-
do, sob guarda, de volta ao Rio de Janeiro. Mais importante que a autonomia,
toda-
via, era o domínio dos “lordes” sobre a sociedade baiana. As referências
vagas, porém
constantes, a facções “anarquistas” ou “republicanas” cujos membros
entendiam mal
o liberalismo apontam para a profunda politização desses anos e para a
ameaça que
isso representava para a classe dos senhores de engenho. Na verdade, as
câmaras
municipais usavam suas aclamações da regência de d. Pedro para lamentar o
“de-

45 Inácio Luís Madeira de Melo para d. João VI, Salvador, 7 mar. 1822;
Amaral, 1957:124; capitão-mor para
Madeira, Cachoeira, 16 abr. 1822; e AAPEB, v. 27, p. 9, 1941.

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318 A independência brasileira

plorável estado de fermentação” no Recôncavo e declarar sua oposição àqueles


que
incitavam a população a cometer “excessos anárquicos”.46
A revolta escrava preocupava tanto observadores quanto governos. O
Conselho
Interino promulgou um código negro repressivo em novembro e manteve uma
tropa
de reserva para policiar os distritos açucareiros, acusando Madeira de
incentivar re-
voltas escravas em áreas rurais. Poucos levantes de fato aconteceram durante
esses
anos, e os que ocorreram foram duramente castigados, principalmente os 200
escra-
vos supostamente instigados por Madeira a atacar as forças patriotas em
dezembro
de 1822: Labatut ordenou a execução de 52 homens e mandou açoitar os
demais.47
Apesar disso, as atitudes dos escravos mudaram de maneira sutil, porém
signifi-
cativa. Relatos de que a “crioulada da Cachoeira” estava exigindo a
liberdade em
requerimentos a serem enviados às cortes em abril de 1822 e que os africanos

muito residentes na Bahia estavam falando de “seus direitos à liberdade”
indicam até
que ponto os ideais liberais haviam penetrado na sociedade baiana.48 Para
esses es-
cravos, o regime constitucional significava mais do que direitos políticos
para os
livres, e alguns chegaram a cogitar a abolição — ou pelo menos sua própria
liberdade
— como um resultado possível das lutas pela independência. De fato, em todos
os
cantos do Brasil, historiadores encontram evidências da crença entre os
escravos de
que seriam libertados em decorrência do regime constitucional ou da
proclamação
da independência.49
Inúmeros observadores — brasileiros e estrangeiros — juntaram-se a
Brant na
preocupação com a ameaça revolucionária da discussão de direitos e de
liberdade
num país com “tantos negros e mulatos”. Francisco de Sierra y Mariscal
(1920/21:65)
achava que, em breve, “a raça branca acabar[ia] às mãos das outras castas, e
a provín-
cia da Bahia desaparecer[ia] para o mundo civilizado”. Um observador anônimo
francês temia que o Brasil se tornasse um “deplorável pendant da brilhante
colônia de
Santo Domingo”.50 Em 3 de outubro de 1822, o Semanário Cívico aconselhou os

46 “Vereação extraordinária”, Santo Amaro, 29 jun. 1822; Amaral, 1957:202;


Ata da Câmara, São Francisco,
29 jun. 1822; Silva, 1919-40, v. 3, p. 350.
47 Woodbridge Odlin para John Quincy Adams, Salvador, 15 set. 1822; Nars, T-
432, rolo 2; Conselho
Interino para Labatut, Cachoeira, 21 e 23 nov. 1822; AAPEB, v. 41, p. 31,
33, 1973; Silva, 1919-40, v. 3,
p. 401; e Reis, 2003:95-97.
48 Maria Bárbara para Luís Paulino, Salvador, 13 abr. 1822; França, 1980:36;
Roussin para o ministre de la
Marine, a bordo do Amazone, 21 jun. 1822; e AAPEB, v. 41, p. 121, 1973.
49 Reis, 2000:250-252; Costa, 2000:56; Lustosa, 2000:47-49; Assunção,
1999:23, 25; Ribeiro, 2002:320;
e Oliveira, 1999:227.
50 Mott, 1972:475-476.

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“desvairados do Recôncavo” a refletirem sobre o fato de que o regresso das


tropas
portuguesas provocaria a emigração dos demais europeus, o que deixaria um
número
insuficiente de “brancos” para “conter no dever, e respeito, as raças de
cor”. Em
palavras mais comedidas, o vice-cônsul britânico concluiu, em meados de
1824, que
os acontecimentos dos anos antecedentes haviam feito com que “os mulatos e
os
negros, de que se compõe a grande maioria da população (...), [adquirissem]
con-
fiança e força”.51 Nenhum desses observadores — nem outros que conheço — se
deram ao trabalho de descobrir as intenções políticas e as aspirações das
“classes de
cor”, e ainda continua sendo muito difícil discuti-las sem recorrer a
categorias vagas
como o desejo de liberdade, de ascensão social ou de controle das próprias
vidas.
De fato, sabe-se algo sobre o ideário político de alguns mulatos que
se tornaram
proeminentes durante a guerra — Antônio Pereira Rebouças, Francisco Gomes
Brandão (posteriormente conhecido como Francisco Gê Acaiba Montezuma) e
Fran-
cisco Sabino Álvares da Rocha Vieira. Suas trajetórias políticas
posteriores, bem di-
versas, servem de advertência para não se homogeneizar as “classes de cor”.
Embora
os três tenham chegado a desagradar os “lordes” baianos durante esses anos,
prestan-
do-se assim para demonstrar as oportunidades restritas de mobilidade social
abertas
aos homens de cor, Rebouças e Montezuma eventualmente chegaram a se
incorporar
às elites existentes, com Rebouças liderando uma longa campanha para
garantir igual-
dade de direitos entre os livres. Sabino, ao contrário, permaneceu exaltado,
chegan-
do a liderar a rebelião de 1837/38, à qual emprestou seu nome.52
Os conflitos desses anos eram como que cadinhos de formação de
identidade,
pois os patriotas se definiam em oposição aos portugueses. O discurso
antiportuguês
violento, não apenas racial no conteúdo, marcou uma identidade brasileira e
baiana
contra a “canalha lusitana” ou os “fardados lobos” que ocupavam Salvador.53
Duran-
te esses anos, a lusofobia fincou raízes profundas na população baiana,
passando a
colorir a política, em especial a política liberal radical, por décadas.
Ribeiro (2002:27-
87) argumenta que, enquanto “português” e “brasileiro” eram construções
sociais e
políticas no Rio de Janeiro, na Bahia eram mais ligados ao lugar de
nascimento. Não
estou convencido desse argumento; as escolhas políticas também importavam na
Bahia e às vezes eram mais importantes que a naturalidade.54 Menos
freqüentemente

51 William Pennell para Canning, Salvador, 2 ago. 1824, PRO/FO 63, v. 281,
f. 85v.
52 Grinberg, 2002; Souza, 1979:63-64; e Souza, 1987.
53 Resolução, Conselho Interino, 23 out. 1822 (cópia), BN/SM, II-34, 10, 11;
Salvador Pereira da Costa
para Conselho Interino, Nazaré, 30 jan. 1823, BN/SM, II-33, 36, 6.
54 Para um exemplo, ver Kraay, 2001a:118-119.

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320 A independência brasileira

explícito, mas apesar disso muito real, era o sentimento antiafricano que
demarcava
o outro lado da nação brasileira. Os residentes de Jaguaripe que protestaram
contra a
retirada das tropas de seu distrito em fevereiro de 1823, preocupavam-se com
o fato
de isso os deixar “expostos aos marotos, nossos inimigos, em grande número
aqui
concentrados, e à mesma raça africana cujas maldades já” freqüentemente
foram
demonstradas no município.55
O Exército Pacificador dos patriotas era muito diferente do Exército
baiano
destruído pelos portugueses vitoriosos em fevereiro de 1822. Apesar, ou
talvez por
causa, de seu entusiasmo patriótico, os soldados do Exército Pacificador
eram um
grupo desordenado, pelo menos na opinião das autoridades. O Conselho
Interino
mais tarde aludiu a grandes problemas com soldados indisciplinados, e o
batalhão do
major José Antônio da Silva Castro, o núcleo dos futuros Periquitos,
adquiriu uma
reputação de brutalidade quando saqueou propriedades durante sua marcha de
agos-
to de 1822 por Nazaré e Jaguaripe.56 Inácio Acioli de Cerqueira e Silva
(1919-40,
v. 3, p. 370) atribuiu essas desordens “às sedutoras idéias da liberdade,
não perfeita-
mente entendidas por todos”. É desnecessário dizer que as propriedades de
portu-
gueses eram o alvo predileto para os saques, pois estes podiam ser
justificados como
atos patrióticos.
A mobilização patriota incorporou amplos setores da sociedade. O caso
de Maria
Quitéria de Jesus, que assentou praça como um homem e tornou-se, por algum
tempo, celebridade, indica que mulheres não estavam excluídas da mobilização
pa-
triótica.57 Chamberlain ouviu relatos de que as mulheres de Itaparica
juntaram-se
aos seus homens para repelir uma tentativa dos portugueses de se apoderarem
da
ilha.58 Os baianos não tardaram em mobilizar os grupos remanescentes de
indígenas
na vizinhança de Salvador. Segundo o cônsul britânico, os “caboclos (uma das
tribos
nativas) manifestaram coragem desesperada e ódio aos portugueses” durante a
bata-
lha de Pirajá. O Conselho Interino posteriormente acusou Labatut de ter
demitido a
“tropa de índios” e de assegurar que nenhum índio permanecesse nas
fileiras.59 En-
quanto em dúvida a respeito do recrutamento de índios, Labatut apressou o
escurecimento das fileiras ao incentivar, primeiro, o recrutamento de
libertos e, de-
55 Requerimento à Câmara, Jaguaripe, 12 fev. 1823, AAPEB, v. 10, p. 62,
1923.
56 Almeida, 1823:4-5; Rebouças, 1923:497; e Silva, 1919-40, v. 3, p. 372.
57 Silva, 1919-40, v. 3, p. 400, n. 67; e Graham, 1824:292-4.
58 Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 4 fev. 1823, PRO/FO 63, v. 258,
f. 80v.
59 Pennell para o earl of Bathurst, Salvador, 14 nov. 1822, PRO/FO 63, v.
249, f. 267; Conselho Interino
para José Bonifácio, Cachoeira, 16 abr. 1823, RIGHB, n. 17, p. 358, 1898.

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pois, por conta própria e sem a aprovação do Conselho Interino, ao alistar


escravos
(principalmente os que pertenciam a senhores de engenho portugueses
ausentes).60
Em abril de 1823, ele propôs uma contribuição voluntária de escravos por
parte dos
senhores baianos, mas o Conselho Interino negou-se a autorizar a proposta. O
alista-
mento de escravos indicou uma mudança profunda no significado do serviço
militar.
Juntamente com a desordem generalizada provocada pela guerra, ele ofereceu
novas
e complexas oportunidades aos escravos. Se a rebelião escrava era rara, a
fuga aumen-
tou sensivelmente, e o quartel-general de Labatut atraiu muitos foragidos,
alguns dos
quais foram alistados enquanto outros acabaram trabalhando nas obras de
fortifica-
ção ou tornaram-se criados dos oficiais.
Os esforços de Labatut no sentido de recrutar escravos não foram muito
longe
— ele nunca chegou a prometer a liberdade aos escravos alistados —, mas eram
profundamente perturbadores, não só devido à ameaça que o recrutamento de
escra-
vos constituía para a propriedade e a economia açucareira, mas também porque
toca-
vam na delicada questão racial. “É uma verdade incontestável”, escreveu o
conselho
em meados de abril de 1823, “que as classes de cor têm no Brasil o maior
ciúme por
não entrarem nos empregos públicos”. Com os portugueses esperando que um
con-
flito racial no lado brasileiro preservasse seu domínio sobre o Brasil, não
era “fácil,
nem de modo algum político, conceder já aquela igualdade para aparecerem
homens
de cor nos primeiros empregos”. Portanto, “muito convinha ter a maior
política com
a situação destas classes, desarmando-as delicada e prudentemente”. Em vez
disso,
Labatut agia temerariamente, insistia o conselho, examinando os esforços do
general
para recrutar escravos e sua recusa em atender às suas advertências. De
forma ainda
mais preocupante, ele levantou a questão do recrutamento publicamente; como
re-
sultado, “em outra coisa não falavam os pardos, cabras e crioulos”.61 A
queda de
Labatut em maio de 1823, por razões não relacionadas aos seus esforços para
recrutar
escravos, pôs fim a essas iniciativas. Ele foi substituído pelo coronel
Joaquim José de
Lima e Silva, o comandante do Batalhão do Imperador, do Rio de Janeiro.
Quando os patriotas organizaram suas forças em meados de 1822, a
milícia
também foi incorporada ao Exército Pacificador. Os oficiais e os soldados
dos
Henriques (os homens pretos) ficaram sob o comando do sargento-mor Manoel
Gonçalves da Silva, promovido a tenente-coronel no final de 1822 ou início
de 1823,
enquanto aqueles do 4o Regimento foram distribuídos como reforço entre as
outras

60 Kraay, 2002.
61 Conselho Interino para José Bonifácio, Cachoeira, 16 abr. 1823, RIGHB,
n. 17, p. 362-364, 1898.

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unidades, uma decisão consistente com a preferência racial no recrutamento


coloni-
al; os pardos, mas não os pretos, podiam servir na tropa paga.62 Os
contemporâneos
saudaram Gonçalves como “o novo Henrique Dias” em seus relatos da marcha
vito-
riosa dos patriotas rumo a Salvador e elogiaram efusivamente os oficiais
pretos.63
Após uma fuga noturna angustiante para fora de Salvador em maio de 1823, o
dia-
rista anônimo ficou muito aliviado em se entregar ao “admirável capitão
Neves, ho-
mem de muita coragem e valente”. “E de cor preta”, acrescentou como uma
reflexão
tardia.64
O papel destacado da milícia preta e parda, o alistamento de escravos,
a desor-
dem social provocada pela guerra, o liberalismo “mal-entendido”, a retórica
virulen-
ta antiportuguesa e a violência não-autorizada contra os naturais de
Portugal, tudo
contribuiu para abalar ainda mais a ordem social, já profundamente
subvertida em
fevereiro de 1822. Ainda que os senhores de engenho que dominaram o Conselho
Interino se esforçassem por controlar a mobilização e por tornar o Exército
Pacifica-
dor um instrumento efetivo de pacificação, tiveram pouco êxito. Embora as
tropas
portuguesas fossem, enfim, expulsas e as ligações estabelecidas com o Rio de
Janeiro,
o dia 2 de julho de 1823 deixou muitas questões ainda sem solução.

A derrota, 1823-25

Durante o ano e meio entre julho de 1823 e janeiro de 1825 foram


derrotadas
as manifestações populares que, em 1821 e 1822, pareciam tão ameaçadoras à
classe
senhorial. A derrota deveu-se em parte às divisões entre as classes
populares — não
eram um “partido negro” homogêneo —, mas também resultou de um estreitamen-
to gradual das relações entre a classe senhorial e o governo no Rio de
Janeiro. Essa
opção pelo governo imperial, na qual Brant parece ter desempenhado papel
central,
urgia na medida em que o tamanho da ameaça popular e a dificuldade de contê-
la
tornavam-se claras.
Depois da guerra, os senhores de engenho baianos vitoriosos
enfrentaram a
difícil tarefa de restaurar sua autoridade sobre uma população de escravos
que havia
ouvido e presenciado muitas novidades sobre um Exército cujos soldados
incluíam
62 Titara, 1973:506, n.e.
63 Titara, 1973:539; Silva, 1919-40, v. 4, p. 56; Garcia, 1900:127; Echo
da Pátria, Salvador, 19 ago. 1823;
e AAPEB, v. 10, p. 87, 1923.
64 Chronica..., 1938:80.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 323

um número importante de escravos (cujo status estava ainda por resolver) e


sobre as
“classes de cor”, cuja importância havia adquirido novo sentido como
resultado dos
serviços prestados à independência. Os soldados-escravos eram um problema
sério.
O vice-cônsul britânico explicou que, nove dias depois da evacuação
portuguesa,
“ainda não houve aquela restauração de confiança que se esperava (...) [o
que é]
atribuível ao grande número de negros armados que têm entrado na cidade,
pois,
contrário à sã política, se oferecera admissão ao exército a escravos
foragidos”. No
mês seguinte, ele reiterou suas preocupações sobre “o emprego, amplo demais,
de
negros como soldados”.65
Numa medida notável pelo respeito para com os escravos que assentaram
praça
— mas consonante com a distinção entre escravo e soldado —, o governo
imperial
ordenou que a província agenciasse a alforria dos que estavam servindo como
solda-
dos, compensando, se preciso, os seus senhores. A decisão era provavelmente
do
interesse dos senhores baianos. Afinal de contas, devolver os escravos-
soldados de
Labatut ao cativeiro seria menos político do que alistá-los. Muitos donos de
escravos
finalmente aceitaram a compensação e renunciaram a seus direitos de
propriedade.66
Não obstante o resultado final desses processos, o Exército lidaria
doravante com um
número significativo de homens como Francisco Anastácio e João Gualberto.
A inquietante indistinção entre escravo e soldado prenunciou uma
perturbação
mais geral da ordem. A desordem provocada pela guerra contribuiu para o
aumento
da mobilidade entre as classes inferiores baianas; a fuga dos escravos e o
banditismo
se associaram à deserção para pressagiar uma quebra na disciplina social.
Ordens
emitidas às autoridades locais para que devolvessem escravos vadios aos seus
donos
refletem as preocupações do governo.67 O cônsul dos Estados Unidos comentou,
em
setembro de 1823, que os escravos e os soldados uniformizados estavam
pilhando
propriedades dos portugueses em Salvador, enquanto seu colega francês chamou
a
atenção para o banditismo rural endêmico, contra o qual o governo não ousava
enviar soldados por medo de que os homens desertassem.68 Nem toda desordem
era
meramente banditismo. “Há quem não cesse de gritar ‘mata maroto’”, relatou
um
correspondente; a lusofobia expressava a luta de classes em termos
patrióticos. O

65 Follett para Chamberlain, Salvador, 11 jul. 1823, PRO/FO 63, v. 259, f.


290r; Follett para Canning,
Salvador, 4 ago. 1823, PRO/FO 63, v. 263, f. 51v.
66 Kraay, 2002:116-118.
67 Bando, 31 jul. 1823, AAPEB, v. 10, p. 69, 1923.
68 Odlin para Adams, Salvador, pós-escrito de 9 de setembro ao ofício de 24
ago. 1823, Nars, T-432, rolo 2;
Jacques Guinebaud para o ministre de la Marine et des Colonies, Salvador, 6
mar. 1824, AAPEB, v. 39,
p. 157, 1970.

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324 A independência brasileira

cônsul britânico detectou um “espírito de republicanismo”, mas Maria Bárbara


desqualificou-o como o “infernal veneno” de Cipriano Barata, então em
Recife, onde
se preocupava com a “ocupação” de Salvador por tropas imperiais.69
Ademais, a vitória trouxe à tona as divisões existentes no Exército
Pacificador.
Poucos dias depois da ocupação de Salvador, o comandante das tropas
pernambucanas
solicitou, com urgência, que sua unidade voltasse imediatamente para casa,
acrescen-
tando que, no intervalo, seus soldados fossem aquartelados juntos, “para sua
inteira
segurança, e defesa, por quaisquer motivos que possam ocorrer em tempos tão
arris-
cados”.70 No início de setembro, vários soldados do Batalhão do Imperador
(do Rio
de Janeiro) foram mortos por soldados baianos; um oficial culpou os
“anarquistas,
terríveis anarquistas”.71 É mais provável que essa rivalidade refletisse a
determinação
dos soldados baianos de livrar sua pátria de tropas de fora da província.
Uma mistura
de ideologia política mais ampla e de patriotismo local é sugerida pelo
relatório do
cônsul francês de que “os soldados negros e os batalhões de mulatos
percorr[iam] as
ruas, roubando e maltratando os portugueses e alguns estrangeiros,
insultando o
governo do Rio de Janeiro e gritando morte ao imperador, morte aos
portugueses e
janeiristas, com a independência e a República”.72 “Janeiristas” é
provavelmente uma
referência ao Batalhão do Imperador, cujo comandante, Lima e Silva,
substituíra
Labatut no comando do Exército Pacificador. A presença de soldados
portugueses,
veteranos das guerras napoleônicas, nesse batalhão (mencionada por
Chamberlain)
deve ter acirrado os ânimos.73 O governo provincial tomou providências
enérgicas,
decretando toques de recolher e prisões sumárias para o porte de armas
(escravos
seriam castigados com o açoite).74 Uma companhia do Batalhão do Imperador
em-
barcou pouco depois e, antes do final do mês, as autoridades enviaram
sumariamen-
te uns 360 “soldados negros (escravos)” para o Rio de Janeiro, uma medida
repetida
com mais 500 soldados em dezembro.75

69 “Estracto de huma carta, que recebemos da Provincia da Bahia”, 27 ago.


1823, O Sylpho, Rio de Janeiro,
13 set. 1823, p. 54; Maria Bárbara para Luis Paulino (pai), n.p., c.set.
1823; França, 1980:122; Morel,
2001:191-192.
70 Requerimento, José de Barros Falcão de Lacerda para Governo Provisório,
Salvador, 11 jul. 1823, BN/
SM, II-33, 36, 45.
71 Luis Paulino (filho) para Luis Paulino (pai), Salvador, 14 set. 1823;
Maria Bárbara para Luis Paulino
(pai), Salvador, 5 set. 1823; França, 1980:119, 118.
72 Morton, 1974:289.
73 Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 25 nov. 1823, PRO/FO, v. 261,
f. 155v.
74 Bando, 8 set. 1823, AAPEB, v. 10, p. 67, 1823.
75 Governo Provisório para ministro da Guerra, Salvador, 12 set. 1823,
AN/SPE, IG1, v. 114, f. 108; Follett
para Canning, Salvador, 20 set. 1823, PRO/FO 63, v. 263, f. 81v. As
deportações de dezembro foram
registradas pelo cônsul francês; ver Araújo, 2000:538.

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Muralhas da independência
e liberdade do Brasil 325

Em outubro, depois de mais uma briga entre soldados baianos e


fluminenses,
Lima e Silva demitiu-se. O governo baiano indicou o coronel Felisberto Gomes
Cal-
deira para comandar a guarnição, e o restante do Batalhão do Imperador
embarcou
para o Rio de Janeiro, afastando da Bahia uma das fontes de tensão entre as
tropas e
satisfazendo as ambições de um homem que, segundo alguns, havia instigado a
vio-
lência contra os soldados do Rio de Janeiro.76 Em vez de controlar a
soldadesca,
Caldeira não conseguiu reprimir a indisciplina, nem afastar a política dos
quartéis.
Em dezembro de 1823, a Câmara Municipal aconselhou-o a não perder qualquer
oportunidade de castigar os soldados, “fazendo-os ocupar em freqüentes e
aturados
exercícios, único meio de os adestrar e conter”, mas as reclamações sobre os
soldados
não diminuíram.77
Muito provavelmente, o perfil social dos soldados alistados modificou-
se rapi-
damente à medida que o Exército Pacificador ia sendo desmobilizado e que o
gover-
no criava um Exército para tempos de paz.78 Os soldados rasos que tinham
outro
emprego ou meio de subsistência provavelmente pediram baixa o mais depressa
pos-
sível, deixando uma guarnição composta de uma proporção maior de homens po-
bres e marginais, presumivelmente não-brancos, do que a existente no
Exército pa-
triota; além disso, os ex-escravos que haviam conseguido não ser deportados
em
setembro e dezembro não tinham incentivo para pedir baixa enquanto o seu
status
continuasse incerto. Não obstante essas tentativas de embranquecer a
guarnição por
meio da deportação de soldados negros, o presidente ainda insistiu na
necessidade de
uma “absoluta reforma” das tropas em maio de 1824, declarando que “de
nenhuma
maneira podem convir os pretos de que se compoem os batalhões”, dos quais
menos
de uma décima parte eram brancos e mulatos.79 No calor do momento, o
presidente
pode ter exagerado na negritude das praças. Outras evidências sugerem que
ainda
podia haver algum grau de segregação na guarnição de 1823/24, pois muitos
dos ex-
escravos terminaram no Batalhão dos Periquitos, que Inácio Acioli
caracterizou como
composto “pela maior parte de libertos e outras pessoas de classes
heterogêneas”.80 O
cônsul francês distinguiu entre os batalhões ao descrever a Revolta dos
Periquitos
como um impasse entre as tropas brancas e negras.81 Talvez essa segregação
refletisse

76 Silva, 1919-40, v. 4, p. 91; Souza, 1945:128; Garcia, 1900:137-141; ver


também Tavares, 2003:214-222.
77 Ata, Câmara, Salvador, 17 dez. 1823; Silva, 1919-40, v. 4, p. 110; Grito
da Razão, Salvador, 13 fev.,
2 mar. e 13 abr. 1824.
78 Kraay, 2001a:123, 135-136.
79 Presidente para d. Pedro I, Salvador, 8 maio 1824, AN/SPE, cód. 603, v.
1, f. 66v.
80 Silva, 1919-40, v. 4, p. 179.
81 Guinebaud para o ministre de la Marine et des Colonies, Salvador, 24
nov. 1824, AAPEB, v. 39, p. 168, 1970.

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326 A independência brasileira

a política oficial do governo; mas pode também indicar a relutância dos


homens
livres em servir ao lado de ex-escravos.
Além dos soldados, que continuavam a preocupar as autoridades, um
segmento
maior das classes baixas livres e os que pleiteavam mudanças políticas mais
amplas
chamavam a atenção das autoridades. Tais pressões populares, além da
ansiedade da
classe senhorial quanto às relações com o Rio de Janeiro, chegaram ao auge
numa
série de incidentes provocados pela dissolução da Assembléia Constituinte em
12 de
novembro de 1823. A reação inicial em Salvador foi altamente negativa.
Embora o
imperador prometesse uma nova Carta “duplicadamente mais liberal”, uma
procla-
mação atribuída ao brigadeiro Freitas Guimarães (de volta na Bahia)
condenava a
tentativa de escravizar o Brasil e conclamava os brasileiros a pegarem em
armas con-
tra o “tirano”.82 Em meio a “agitação considerável” e a atos de “ofensas
físicas” contra
portugueses, no dia 13 de dezembro, a câmara divulgou um protesto, “de
natureza
violenta (...) pouco menos de uma declaração de guerra”;83 o cônsul francês
relatou
que a ata da câmara incluía a ameaça da secessão da Bahia caso a assembléia
não fosse
restaurada.84 Quatro dias mais tarde, a câmara mudou de idéia. Revogou o
protesto
do dia 13 (arrancando todos os vestígios dele do livro de atas) e articulou,
em termos
comedidos, a oposição da elite baiana às ações não-liberais de d. Pedro,
pediu-lhe
que promulgasse sem delongas a Carta “duplicadamente mais liberal” que ele
havia
prometido e tentou satisfazer o clamor antiportuguês ordenando a expulsão
daqueles
portugueses que não haviam apoiado a independência.85 Chamberlain atribuiu
esse
procedimento “à influência do general Brant, cuja família e alguns dos seus
parentes
chegaram na Bahia do Rio de Janeiro entre os dias 12 e 15 (...). [E]le
impressionou-
os com a necessidade absoluta, para o bem do país, de acalmar os espíritos
indigna-
dos e de usar todos os seus meios para manter a união das províncias e a
obediência
ao imperador”.86
As preocupações com a situação em Salvador persistiam na capital e, no
início
de janeiro de 1824, Chamberlain relatou que dois navios estavam sendo
preparados
para levar “dois batalhões de homens escolhidos” para restaurar a ordem na
província
e para dissolver um regimento miliciano “que se recusa a entregar suas armas
e con-
tinua a cometer todos os tipos de impropriedades e de violência contra os
habitantes

82 Proclamação do general da Bahia, Salvador, 6 dez. 1823, AHMI, I-POB-


06.12.1823-Gui.pr.
83 Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 31 dez. 1823, PRO/FO 63, v.
261, f. 293r.
84 Morton, 1974:293.
85 Ata, Câmara, 17 dez. 1823; Silva, 1919-40, v. 4, p. 106-110; Morton,
1974:292-294.
86 Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 31 dez. 1823, PRO/FO 63, v.
261, f. 294.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 327

europeus pacíficos”.87 Esta é quase certamente uma referência ao Batalhão


dos Peri-
quitos, que há muito tempo era motivo de preocupações. No dia 30 de janeiro,
Brant chegou a Salvador, encarregado de assegurar que a Câmara Municipal
reagisse
favoravelmente ao texto da Constituição. Para seu desgosto, o documento
chegara
antes dele e “os diretores da opinião pública na classe dos pardos, e
pretos, bem como
dos pobres e canalhas de todas as cores, aproveitando-se da faculdade
concedida por
S.M.I., espalharam um cento de correções ao projeto, e queriam a torto e
direito
ostentar de liberais”. Durante os 10 dias seguintes, Brant e “todos os
homens de
bem” puseram fim a esse movimento e a câmara registrou apenas duas reservas
quan-
to ao documento.88
Uma vez resolvida a questão da Carta, Brant voltou-se contra as
tropas: “A não
ser os uniformes”, declarou, os quartéis de Salvador seriam confundidos com
“arma-
ções da Costa da Mina”. A solução dele — a dissolução imediata do Batalhão
dos
Periquitos, a demissão de todos os soldados negros, a limitação do acesso
aos postos
inferiores a homens brancos e 800 mercenários estrangeiros para “neutralizar
a in-
fluência dos pardos” — foi drástica, mas inteiramente consistente com sua
visão de
mundo e com o que já fora discutido no Rio de Janeiro. Antecipando que
ordens
nesse sentido estavam a caminho, Brant seguiu viagem rumo à Europa.89 De
fato,
tais ordens nunca se concretizaram e d. Pedro, prudentemente, respondeu a
Brant
que esperaria um momento mais oportuno, quando a lealdade dos baianos à
monar-
quia fosse mais segura.90
A união da elite baiana ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1824 marcou
o início
do fim da presença popular na política. Manifestações subseqüentes da
política exal-
tada, inclusive o protesto de 1o de abril contra o fracasso do governo em
implementar
a ata do dia 17 de dezembro e uma conspiração militar misteriosa pró-
Confederação
do Equador no início de julho, não suscitaram qualquer reclamação quanto à
parti-
cipação popular.
Em outubro, Caldeira finalmente voltou-se contra os Periquitos,
implementando
ordens do governo imperial para demitir o major Castro, seu comandante
popular,
visando transferir a unidade para fora da Bahia. Na madrugada de 25 de
outubro de

87Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 8 jan. 1823 [sic, 1824], PRO/FO
63, v. 276, f. 14.
88Brant para Mello, Salvador, 12 fev. 1824, ADI, 2:6; Chamberlain para
Canning, Rio de Janeiro, 5 mar.
1824, PRO/FO 63, v. 276, f. 171r-72v; Silva, 1919-40, v. 4, p. 168-171;
Grito da Razão, Salvador, 17 fev.
1824.
89 Brant para Mello, Salvador, 12 fev. 1824, ADI, 2:7-8.
90 Mello para Brant, Rio de Janeiro, 10 mar. 1824, ADI, 1:59.

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328 A independência brasileira

1824, alguns oficiais e soldados do batalhão mataram Caldeira e aclamaram


Castro
como comandante. Ele reassumiu relutantemente seu posto em meio a um impasse
entre as tropas leais ao governador morto e os amotinados. Quando as
tentativas de
conciliar as duas facções fracassaram, os legalistas refugiaram-se nas
propriedades da
família de um grande senhor de engenho na vizinha Abrantes. O assassinato de
Cal-
deira aparentemente enfraqueceu os conspiradores, pois eles proclamaram com
espa-
lhafato sua lealdade ao imperador e o batalhão preparou-se para embarcar
para
Pernambuco. No final de novembro, o governo provincial finalmente se
refugiou em
um navio de guerra, escapando assim das garras dos rebeldes. O muito temido
saque
de Salvador não ocorreu (principalmente porque a milícia manteve a ordem no
final
de novembro), grande número de soldados e oficiais implicados nos motins
fugiram
e os legalistas de Abrantes reocuparam a cidade no início de dezembro.91
O papel dos soldados no levante dos Periquitos permanece obscuro. No
cerne
da liderança rebelde estavam oficiais exaltados de baixa patente, quase
todos ingres-
sados no Exército durante a guerra. Suas propostas eram vagas. Muitos se
preocupa-
vam em não conseguir postos permanentes no Exército; havia muita hostilidade
con-
tra Caldeira, como também simpatia pela Confederação do Equador e antipatia
aos
portugueses. Brant identificara o major Castro como a principal fonte da
desordem
de fevereiro, e sua liderança no protesto de abril tendia a confirmar essa
avaliação. O
cônsul francês reparou nas “idéias republicanas e anarquistas” de Castro.92
Os ofici-
ais dos Periquitos supostamente haviam lido jornais dos rebeldes
pernambucanos
para seus soldados e lhes ensinado a “moderna filosofia”, em vez de impor a
disci-
plina militar.93 Seja qual for a dinâmica da autoridade hierárquica no
batalhão,
seus oficiais puderam contar com o apoio ativo da fileira em outubro e
novembro
de 1824, e um número impressionante de soldados cumpriu a ordem de embarcar
para Pernambuco, em vez de desertar no final da revolta. A animosidade entre
os
Periquitos e os soldados dos outros batalhões provavelmente colaborou para
asse-
gurar essa lealdade.94
Como Pernambuco depois da derrota da Confederação do Equador, a Bahia
enfrentou um período de intensa repressão durante o qual se suspenderam as
garan-
91Tavares, 2003:187-252.
92Guinebaud para o ministre de la Marine et des Colonies, Salvador, 27 out.
1824, AAPEB, v. 39, p. 167,
1970.
93 Memoria..., 1867:311.
94 Presidente para ministro da Guerra, Salvador, 28 out. 1824, BN/SM, II-33,
22, 1, doc. 20; Governador
das Armas Interino para presidente, Salvador, 24 nov. 1824, BN/SM, II-34, 1,
3, doc. 210.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 329

tias constitucionais para que uma comissão militar dispensasse justiça


sumária. Os
governos provinciais e imperiais colaboraram para expulsar soldados
desordeiros da
guarnição de Salvador e demonstraram inequivocamente sua determinação de
man-
ter a ordem. Dois oficiais e um soldado que tentara assassinar seu
comandante em
outubro de 1824 foram executados. A repressão assumiu conotações raciais com
a
remoção de Salvador dos soldados negros e ex-escravos que ainda permaneciam
na
cidade. A partida dos Periquitos da província, com a subseqüente dispersão
de seus
soldados por outras unidades do Sul do Brasil, baniu os que eram então
considerados
os homens mais turbulentos. Na suposição de que os soldados negros seriam
menos
perigosos no mar do que na terra, a Marinha tornou-se o destino final de
muitos.95
Outros foram depois enviados para Montevidéu, cidade seguramente remota e
nor-
malmente assediada, onde gozariam do “frio” do Sul, como observou
ironicamente
um comentarista sobre o destino dos Periquitos.96
A repressão do levante dos Periquitos e a expulsão dos soldados negros
de Salva-
dor removeram o que Brant considerou uma das principais ameaças à ordem
baiana
em 1824. O movimento pode ser considerado, em muitos aspectos, uma rebelião
dos setores mais radicais do Exército Pacificador. De fato, sua liderança
fracassou em
articular uma posição política clara, mas sua retórica antiportuguesa e sua
ameaça
aos “lordes” da província eram muito apoiadas pelos soldados rasos, muitos
deles ex-
escravos ou, tecnicamente, ainda escravos.
Uma das principais razões da derrota final dos Periquitos foi a falta
de apoio da
milícia. A maior parte desta — e de forma significativa, os oficiais e
soldados milicianos
pretos e pardos — emergiu como um dos esteios do regime imperial pós-
indepen-
dência na Bahia, contribuindo decisivamente para a derrota da rebelião. Os
milicianos
demonstravam pouca simpatia pelos soldados negros dos Periquitos; como José
Vicente
de Santana, preferiam associar-se à monarquia e assim exigir um papel maior
para si
no novo Estado. Os Periquitos e demais rebeldes atormentaram os soldados e
os
oficiais da milícia preta, que, sob o comando de Gonçalves, se juntou aos
legalistas.
Gonçalves e alguns de seus homens finalmente fugiram para as forças que
estavam
reunidas nos arredores da cidade, onde ele foi bem recebido nos conselhos
legalistas
como oficial superior.97 O tenente-coronel Neves — promovido como recompensa

95 Governador das Armas para presidente, Salvador, 9 fev. 1825, Apeb, m.


3.365; 24 nov. 1824, BN/SM,
II-34, 1, 3, doc. 208.
96 Memoria..., 1867:316, n. 55.
97 Grito da Razão, Salvador, 14 nov. e 29 dez. 1824; Manoel Gonçalves da
Silva para presidente, Salvador,
19 nov. 1824, Apeb, m. 3.693; Oficiais para presidente, Abrantes, 27 nov.
1824, BN/SM, I-31, 36, 8, doc.
60; Tenente-coronel para coronel comandante, Divisão Constitucional e
Pacificadora, Armações, 30 nov.
1824, BN/SM, I-31, 23, 8.

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330 A independência brasileira

por seus serviços à independência — assumiu o comando dos Henriques remanes-


centes, aquartelados no Forte Santo Antônio além do Carmo, e quando o
governo
provincial finalmente se retirou para um navio de guerra no porto, passou a
ser o
oficial legalista de mais alta patente na cidade. Em meio ao temor de que os
rebeldes
saqueassem a cidade antes de a tropa regular voltar a ocupá-la, o presidente
nomeou
Neves para o comando autônomo de toda a milícia da cidade; ele montou
guardas da
milícia no banco e em outros prédios públicos, entregando a cidade às forças
legalistas
dois dias depois.98
Enfim, os Henriques estavam profundamente comprometidos tanto com o
novo
império quanto com a ordem que a classe senhorial procurava restaurar. O
fato de
um homem preto (e talvez liberto), casado com uma liberta africana, ter
comandado
a última linha de defesa contra a “anarquia” fomentada por um batalhão de
libertos
não deve surpreender; uma enorme diferença de classe e status separava o
artesão
senhor de escravos tenente-coronel Neves e os outros oficiais e soldados dos
Henriques
dos soldados plebeus do Batalhão dos Periquitos.99 Os oficiais da milícia
precisavam
de estabilidade para reconstruir suas vidas. Como Santana, viam no apoio ao
regime
imperial a melhor maneira de alcançar isso. Em compensação, esperavam que o
go-
verno imperial respeitasse seu status e reconhecesse seu serviço patriótico.
No final da
década de 1820 e na de 1830, as reformas liberais solapariam essa barganha
implíci-
ta, e os oficiais negros reconsiderariam seu apoio ao regime.100
Entre julho de 1823 e o início de 1825, a classe senhorial da Bahia,
aliada à
monarquia no Rio de Janeiro, conseguiu impor na província sua visão de uma
revo-
lução conservadora pela independência. A ordem e a estabilidade completas,
toda-
via, lhes escaparam, e as mobilizações populares do início da década de 1820
perma-
neciam vivas na memória popular. De fato, o entusiasmo com que o diarista
anônimo
saudou a notícia de que Portugal reconhecera a independência — notícia que
chegou
a Salvador na manhã do dia 16 de setembro de 1825 — indica algo da
identificação
popular com a independência. Em meio às salvas de costume, ele declarou que
a
notícia deixara “todos os marotos Portugueses confundidos, e envergonhados,
e nós
brasileiros em geral (...) [n]a maior alegria possível (...). Ó que prazer,
e confusão
para eles, coitados, desgraçados”.101

98 Grito da Razão, Salvador, 24 e 29 dez. 1824; Memoria..., 1867:348-350.


99 Sobre a origem social de Neves, ver Kraay, 2001a:94.
100 Kraay, 2001a:220-225, 231-239; e 2003.
101 Chronica..., 1938:87.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 331

Lembrando, 1827 e 1836

De maio a setembro de 1827, a situação política em Salvador esteve


muito
tensa. “Uma mina esta[va] se preparando”, escreveu o cônsul britânico no
início de
maio, “que pod[ia] explodir dentro de pouco tempo e causar o desmembramento
deste império”. A guerra contra Buenos Aires (a Guerra Cisplatina) motivara
o envio
da maioria dos soldados para o Sul, e o governo convocara a milícia para
fazer o
serviço da guarnição, enquanto muitos dos oficiais presos por sua
participação no
levante dos Periquitos estavam sendo soltos. A partida das tropas do
Exército signifi-
cava que milicianos pretos e pardos tomariam conta da segurança em Salvador;
em
fins de maio, o cônsul comentou que “o número de tropas negras e mulatas
nesta
cidade atualmente excede muito aquele de qualquer outra descrição (...) o
que faz
com que a população branca corra um grande perigo”, mas reconhecia que isso
“não
era um objeto de muita apreensão imediata” entre os baianos.102 A soltura
dos presos
do levante dos Periquitos preocupava o visconde de Pirajá, que esperava que
esses
homens tentassem fazer outra revolução; em vez de se levantarem, eles
disseminaram
boatos de que Pirajá tentava proclamar d. Pedro monarca absoluto. O vice-
presiden-
te percebeu uma trama para desacreditar as “pessoas graves da província”,
mas tam-
bém sugeriu que alguns dos comentários “menos discretos” do visconde, muito
con-
servador, contribuíram para os boatos.103 Em julho e agosto, apareceram
proclamações
conclamando a população a se levantar e a matar as principais autoridades da
provín-
cia antes de proclamar uma república.104 Brant, agora marquês de Barbacena,
de
viagem para Londres, chegou a Salvador no início de setembro e passou dois
dias
intimando as autoridades a implementar uma política de linha dura contra os
que ele
percebia como “revolucionários” da província, “quase todos mulatos”, bem
como a
retirar os milicianos pretos e pardos de todos os pontos-chave de Salvador.
Caso o
governo não fizesse nada, a província tornar-se-ia um outro Santo Domingo,
decla-
rou.105

102Pennell para John Bidwell, Salvador, 7 e 26 maio 1827, PRO/FO 13, v. 41,
f. 86v, 92r.
103Visconde de Pirajá para ministro do Império, Salvador, 26 maio 1827,
AHMI, II-POB-17.02.1827-
Alb.c 1-5, doc. 4; Vice-presidente para ministro do Império, Salvador, 26
maio 1827, BN/SM, II-33, 19,
56.
104 Vice-presidente para ministro do Império, Salvador, 3 ago. 1827, BN/SM,
II-33, 27, 59.
105 Marquês de Barbacena para d. Pedro I, Salvador, 3 e 4 set. 1827; e para
Francisco Gomes da Silva,
Salvador, 4 set. 1827, AHMI, II-POB-04.09.1827, Hor.c 1-20. Ver também os
documentos transcritos em
Aguiar, 1896:321-326.

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332 A independência brasileira

Na Bahia, Barbacena recebeu um memorial anônimo sobre a situação da


pro-
víncia que encaminhou a d. Pedro. “Um só fato”, segundo o autor, “explicará
mais
que volumes”. Em 1826, não foram realizadas comemorações no dia 2 de julho,
o
aniversário da expulsão dos portugueses de Salvador em 1823, mas em 1827, os
“revolucionários”, perturbados com a nomeação de portugueses para o comando
de
certos regimentos milicianos e para cargos na administração civil,
resolveram come-
morar o dia com um te-déum, uma parada, jantares, iluminações “e discursos
da
mais virulenta natureza”.106 A parada foi algo inédito, como explicou depois
Francis-
co Joaquim Álvares Branco Moniz Barreto. As tropas milicianas receberam
autoriza-
ção para se reunir na véspera do dia 2 de julho em Soledade (nos arrabaldes
da
cidade) antes de entrar na cidade. A procissão, “toda enramada”, passou por
baixo de
um arco triunfal em Soledade rumo ao centro da cidade. Por uma coincidência
infe-
liz, as autoridades militares embarcaram um batalhão do Exército para a
Cisplatina
naquele mesmo dia. “A canalha, que aproveita tudo”, sustentou que os
soldados que
embarcavam representavam a tropa de Madeira, enquanto a milícia representava
o
Exército Patriota de 1823. Barreto declarou que essa parada convertera “uma
coisa
séria [n]uma farsa” digna só do teatro; o papel conveniente de soldados em
festas
cívicas era fazer filas nas ruas do centro ou desfilar em praça pública.
Ademais, quan-
do o préstito chegou à praça em frente ao palácio presidencial, os
“batalhões de
pretos e o dos de mulatos só falavam em marotos”, o que “escandalizou” um
batalhão
miliciano em que serviam alguns portugueses.107
Estes são os primeiros relatos do desfile do Dois de Julho na forma
que em
breve se tornaria tradicional, mobilizando milhares de pessoas todos os
anos. As
comemorações do Dois de Julho em 1824 e 1825 foram rituais cívicos
convencio-
nais, sem a vigília noturna, nem o desfile ao centro da cidade.108 As
figuras-chave
identificadas nos relatos das comemorações de 1827, os “revolucionários” ou
a “ca-
nalha”, revelam a associação da comemoração patriótica com a política
exaltada; o
papel central da milícia, principalmente os pretos e mulatos (pardos) que
domina-
ram numericamente a fileira desses soldados não-pagos, sugere uma
interpretação
popular da independência. Os patriotas milicianos baianos viam-se como
vitoriosos
contra os portugueses e como protagonistas centrais nas lutas de 1822 e
1823. Isso

106 “Observaçoes de hum viajante q’ passou pela B.a p.a hum seo amigo no
Rio”, AHMI, II-POB-04.09.1827,
Hor.c 1-20.
107 Francisco Joaquim Alvares Branco Moniz Barreto para d. Pedro I,
Salvador, 1o out. 1827, AHMI, II-
POB-01.10.1827 Bar.c.
108 Kraay, 1999:260.

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Muralhas da independência
e liberdade do Brasil 333

marcou o início de uma comemoração popular duradoura da independência, na


qual ela era vista como fruto de uma mobilização popular antiportuguesa. Não
ex-
cluía forçosamente a lealdade ao Brasil ou à monarquia, mas o Dois de Julho
recla-
mava o reconhecimento da luta popular na província. De fato, no ano
seguinte, os
patriotas baianos começaram uma campanha, enfim sem êxito, para tornar 2 de
julho dia de festa nacional.109
Em 1836, O Defensor do Povo, um jornal exaltado efêmero, condenou os
boatos recorrentes de que existia uma Sociedade Gregoriana em Salvador.
Home-
nageando o abade Grégoire, o clérigo francês que defendera a abolição e os
direitos
dos gens de couleur haitianos na década de 1790, a sociedade supostamente se
com-
punha de “homens de cor parda”, alguns “ricos e de sabedoria”, que tramavam
“acabar com a raça dos brancos”. Respondendo às acusações do que no Rio de
Janeiro seria chamado de “haitianismo”, o Defensor declarava que os “homens
de
cor” eram os maiores patriotas do Brasil, as “muralhas da Independência e
liberda-
de do Brasil”. Lutaram e morreram diante das trincheiras cavadas pelas
tropas de
Madeira. Durante os “lutuosos” dias de 19 e 20 de fevereiro de 1820, os
homens
de cor se sacrificaram em favor do brigadeiro Freitas Guimarães, cuja “cor
branca”
era conhecida de todos. “Os homens de cor”, destacava o autor, “não querem e
não
desejam a desordem no seu país porque forçosamente teriam de perecer nela”.
Queriam, todavia, a completa igualdade perante a lei, conforme prescrito
pelo art.
179 da Constituição de 1824, uma pedra de toque na política racial pós-
indepen-
dência.110 Significativamente, O Defensor nada dizia sobre a escravidão, que
não se
discutia na época, dados o levante dos malês de 1835 e o tratamento dos
soldados-
escravos da Guerra da Independência.
Como os milicianos patriotas de 1827, o redator desconhecido de O
Defensor
contou uma história da independência na qual os “homens de cor” tiveram
papel
central. Para Brant e muitos outros, tais asserções eram declarações
perigosas, que
ameaçavam toda a ordem social. Para os patriotas de cor, todavia,
representavam
tentativas de conseguir a inclusão na nação, como compensação pela
manutenção da
ordem. Enfim, a recusa dessas demandas levou à Sabinada, na qual a milícia
negra
teve papel de destaque.111
109 Kraay, 1999:276-277; e 2001b.
110 O Defensor do Povo, Salvador, 13 fev. 1836.
111 Kraay, 1992, 2001a, 2003; Souza, 1987.

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334 A independência brasileira

Conclusão: da província à capital

Trazer a Bahia para a história da independência brasileira permite-me


destacar a
importância da participação popular nesse processo político complexo. Os
sucessos
das províncias chegaram a afetar a capital e, de fato, não se deve tomar as
lutas na
Bahia (e alhures no Norte) como episódios locais. A polícia do Rio de
Janeiro com
freqüência prendeu pessoas que falavam dos eventos da Bahia e de Pernambuco,
e
Ribeiro lembra as redes de sociabilidade entre marinheiros que conectavam os
portos
brasileiros.112 Resta muito a pesquisar sobre essas conexões entre as
camadas popula-
res, mas a história de Joaquim Sapateiro, também conhecido como Joaquim de
Melo
Castro, qualificado como angola, mina ou baiano, revela algumas das
possibilidades
que existiam. Joaquim declarou ter sido liberto quando da morte do seu
senhor em
Salvador e ter passado a Guerra da Independência como criado do futuro
visconde
de Pirajá. Acompanhara Pirajá quando da viagem dele à corte durante a
guerra, mas
voltara a Salvador depois do conflito. A essa altura, Pirajá o entregou aos
herdeiros de
seu ex-senhor. Eles o venderam a um comerciante português que se mudou para
o
Rio de Janeiro em 1824. De volta à capital, Joaquim assentou praça na
artilharia sem
o conhecimento de seu dono. Ele logo requereu a devolução de Joaquim, mas as
autoridades militares gastaram mais de um ano para esclarecer o caso. No
intervalo,
Joaquim lutou contra a Confederação do Equador, o que lhe deu direito à
medalha
da campanha. As autoridades enfim concluíram que ele, de fato, era ainda
escravo e
compensaram seu dono, que o alforriou.113 Nenhum dos documentos referentes a
esse caso contém indícios de suas opiniões políticas, além da insistência em
sua qua-
lidade de liberto. Todavia, essa história destaca a mobilidade dos escravos
e libertos
durante esses anos e o papel do serviço militar nas estratégias dos
escravos.
Havia, aliás, muita preocupação com os soldados-escravos baianos no
Rio de
Janeiro. Depois de sua expulsão da Bahia, os Periquitos chegaram à capital
no dia 16
de janeiro de 1825. Não lhes foi permitido desembarcar no Recife, onde foram
em-
barcados alguns dos prisioneiros da Confederação do Equador antes que o
navio
fizesse vela para o Rio de Janeiro. Os dois grupos certamente tiveram o que
discutir
durante a viagem. Sob a mira de um vaso de guerra, o navio atracou debaixo
dos
canhões de uma fortaleza da capital e os prisioneiros permaneceram a bordo.
Dentro
de três semanas, a maioria deles estaria a caminho de Montevidéu, enquanto
alguns

112 Ribeiro, 2002:260-261, 268, 271-272; e Soares, 2001:268-278, 340.


113 AHE/RQ, JJ-237-5790.

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Muralhas da independência e
liberdade do Brasil 335

indivíduos seriam distribuídos entre os batalhões da corte. Pouco depois, o


cônsul
norte-americano soube que já se desconfiava dos “negros e pernambucanos”
envia-
dos para defender o posto avançado do império no rio da Prata.114
Para a elite baiana, é claro, isso foi menos importante do que o fato
de a expul-
são dos soldados negros ter embranquecido a guarnição e separado os soldados
liber-
tos da população escrava local. A remoção dos elementos desordeiros da
soldadesca
muito contribuiu para a relativa paz que se seguiu ao levante dos Periquitos
na Bahia.
Ademais, negou-se qualquer legitimidade à política dos soldados rasos. Em
contraste
com a Conspiração dos Alfaiates de 1798 ou com o inquérito de março de 1822,
não
houve qualquer investigação sobre a participação de soldados no levante. Por
isso,
sabe-se muito menos sobre Francisco Anastácio, João Gualberto e os outros
soldados
de 1823/24 do que sobre Luiz Gonzaga e as praças da conspiração de 1798.115
Foi mais
fácil expulsar os soldados da província e negar que tivessem opiniões
políticas.116
A visão dos oficiais milicianos pretos e pardos sobre sua experiência
na Guerra
da Independência é muito reveladora da complexidade da política pós-
independên-
cia e dos legados do regime colonial. Não cabem na camisa-de-força de uma
luta
genérica pela liberdade de um “partido negro”. Com sua ameaça aos
privilégios cor-
porativos e com sua promessa de igualdade, os ideais liberais representaram
tanto
uma oportunidade para os oficiais pretos e pardos quanto uma ameaça ao seu
status,
conquistado a duras penas durante o regime colonial. Conversas sobre a
capacidade
de qualquer homem negro para o generalato no Exército de um Brasil
independente
foram ouvidas em 1824, mas direitos iguais para os livres e os libertos — a
pedra de
toque da política de Rebouças117 — acabaram sendo um benefício ambíguo para
os
oficiais pretos e pardos quando os liberais aboliram suas unidades e criaram
a Guarda
Nacional, uma instituição color-blind. A perspectiva sobre o liberalismo dos
oficiais
milicianos pretos e pardos remonta a uma compreensão, característica do
Antigo
Regime, de liberdades como privilégios a serem protegidos, e do Estado como
o
protetor de todos os membros da sociedade.118 O apoio à monarquia de
oficiais
114 Condy Raguet para Adams, Rio de Janeiro, 31 jan., 17 fev. e 11 mar.
1825, Nars, T-172, rolo 3;
Chamberlain para Canning, Rio de Janeiro, 31 jan. 1825, PRO/FO 13, v. 8, f.
115v; Mr. Hood para
Chamberlain, Montevidéu, 5 maio 1825 (cópia), PRO/FO 13, v. 9, f. 105r.
115 Tavares, 2003:55-83; e Kraay, 2001a:62-80.
116 Paradoxalmente, os malês receberam tratamento muito mais respeitoso por
parte das autoridades baianas,
que os processaram devidamente; graças aos autos de 1835, que possibilitaram
as pesquisas de Reis (2003),
arrisco-me a dizer que sabemos mais sobre a cultura e sociedade afro-baianas
(escrava e liberta) do que sobre
os homens pobres livres e libertos que serviam no Exército.
117 Grinberg, 2002; e Mattos, 2000.
118 Kraay, 2001a:223-234, 231-239; Graham, 2001; e Oliveira, 1999:198, 210-
211, 216-217, 222, 241.

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336 A independência brasileira

como Santana também pode ser relacionado à tradição bem-estabelecida de reis


ne-
gros no Brasil, que, como notam alguns historiadores, também tinha
antecedentes
africanos, reforçados pela presença de embaixadores africanos no Brasil.119
A Guerra da Independência na Bahia mudou o significado do serviço
militar,
ao possibilitar o serviço de homens negros no Exército e a liberdade para
(alguns)
escravos. Em muitos aspectos, a guerra na Bahia foi apenas parte de uma luta
maior
e multifacetada para criar um império vasto sob o controle do Rio de
Janeiro. A
mobilização deslocou homens (e algumas mulheres) pelos quatro cantos do
país,
enquanto o serviço patriótico minou padrões tradicionais de deferência,
ocasionan-
do temores sobre a estabilidade da ordem social. De fato, os esforços dos
liberais, em
fins da década de 1820 e no início da de 1830, para reduzir o tamanho do
Exército
constituíram uma reação à ameaça de tantos soldados politizados. Mas cumpre
reco-
nhecer a complexidade dessa época. Os escravos lutavam pela liberdade; os
livres
pobres viam a expulsão dos portugueses como um primeiro passo para
conseguirem
algum controle sobre suas vidas. Outros, como os oficiais milicianos negros,
espera-
vam que seu serviço em prol da independência lhes proporcionasse um status
maior
no aparelho do Estado. E os patriotas baianos definiam a independência como
uma
vitória popular. Brant tinha muita razão de temer “a peste revolucionária”
em fins de
1820.

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Capítulo 10

O avesso da independência: Pernambuco (1817-24)*


Luiz Geraldo
Santos da Silva

Nós
pretos, pardos e brancos

Cidadãos somos unidos,


E
à pátria oferecemos

Mulheres, filhos queridos.

Nós,
bravos pernambucanos

Exemplos demos primeiros;


Às
armas, corramos todos,

Valorosos brasileiros.
(José da
Cruz Ferreira, 1817)

Cidadãos pernambucanos

Sigamos de Marte a lida;


É
triste acabar no ócio,
Morrer
pela Pátria é vida.

(Frei Caneca, 1817)

Não, não creias, ó


déspota inumano,
Que o patíbulo
assusta um peito forte:
Amar a pátria,
desprezar a morte,
Caráter sempre
foi Pernambucano.
(Natividade
Saldanha, 1825)

1817 e as “províncias do Norte”

Em Pernambuco e sua área de influência — as províncias do Ceará,


Paraíba,
Rio Grande do Norte e Alagoas —, o processo de independência apresentou
trajetó-
ria peculiar. Afinal, foi naquela região que eclodira em 1817, ainda sob a
presença da
* O autor agradece a Jurandir Malerba e a João Paulo Garrido Pimenta pelas
sugestões e comentários ao
presente texto.

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344 A independência brasileira

corte joanina nos trópicos, um movimento político cujo objetivo era


instituir um
regime que pretendia ser, no final das contas, republicano. Neste, amplos
setores da
sociedade pernambucana e das demais províncias “do Norte” ensejaram uma
separa-
ção radical da monarquia portuguesa, então organizada sob a forma de Reino
Unido
de Portugal, Brasil e Algarves. Claro está que a idéia de ruptura com o
poder
monárquico não surgiu repentinamente em 1817; trazia marcas muito antigas,
enraizadas na experiência histórica daquele território. Embora todas as
partes da
América portuguesa possuíssem dupla identidade, a regional e a lusitana,1 a
região
aqui considerada revelava faceta particular. A representação mental da
restauração
contra o domínio holandês, empreendida no século XVII, ou mesmo a guerra
civil
de 1710-12 — que colocou os senhores de terra sediados em Olinda contra os
privi-
légios dados pela coroa aos mercadores da vila do Recife2 — marcaram
sobremanei-
ra a memória e a experiência histórica local. Como se verá adiante, esses
aspectos
ainda possuíam amplo poder de mobilização nas primeiras décadas do século
XIX.
Ademais, eles se tornaram, então, passíveis de serem reinterpretados à luz
das idéias
ilustradas amplamente difundidas naqueles anos em todo o mundo atlântico. A
memória e a experiência histórica local foram, pois, elementos decisivos na
justifica-
ção dos embates contra o reino unido em 1817. Contudo, apenas
secundariamente
apareceram na conflagração contra o império nascente ocorrida em 1824.
Ao contrário, porém, do que sugeriu uma historiografia regional e
nativista,3
1817 não significou uma antecipação da independência do Brasil e muito menos
repre-
sentou, como afirmou a historiografia saquarema, um movimento separatista,
ou uma
cisão no interior de um corpo político mais ou menos consolidado.4 Ora,
naquele
momento, nem os pernambucanos se enxergavam em meio a uma luta entre “metró-
pole e colônia”, nem muito menos o reino unido continha o embrião do que,
após a
década de 1850, poder-se-ia chamar de “nação brasileira”.5 Ante tais
postulados, faz-
se necessário situar os termos da experiência republicana de 1817 nos
quadros da
crise do Antigo Regime na América, o que permite perceber, por um lado, as
formas
de enfrentamento político do poder monárquico então disponíveis e, por
outro, os
modelos capazes de fornecer um quadro institucional que tornasse viável um
gover-
no autônomo, ainda que provisório, no reino unido.

1 Dolhnikoff, 2003:434; e Jancsó e Pimenta, 2000.


2 Mello, 1975.
3 Lima Sobrinho, 1998:24.
4 Lima, 1962.
5 Dias, 1972; Holanda, 1970; e Mello, 2001.

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O avesso da
independência 345

Levando-se em consideração as forças políticas que participaram do


movimen-
to contra a monarquia em 1817, observa-se que o segundo momento vital dessa
análise é aquele subseqüente ao chamamento das cortes constituintes da nação
por-
tuguesa (1820). Embora d. João tivesse acenado com um perdão real em janeiro
de
1818, alguns dos implicados no movimento de 1817 que não haviam sido
sentencia-
dos à morte ainda se achavam presos nos cárceres da Bahia em inícios da
década de
1820. Foi, então, graças à Revolução do Porto e à formação da Assembléia
Consti-
tuinte em Lisboa que muitos dos “patriotas” radicais puderam retornar à
província e
às lides políticas. Houve, assim, entre 1821 e 1823, uma retomada das
aspirações
autonomistas provinciais, ou mesmo sua realização, após estas terem sido
represadas
pela feroz repressão perpetrada pelo comandante do bloqueio naval ao porto
do Recife
em 1817, José Ferreira Lobo, e pelo governador Luís do Rego Barreto (1817-
21).

Constitucionalismo e autonomia

Como se sabe, as cortes constituintes, cujo chamamento se deu a partir


de de-
zembro de 1820, permitiram a formação de governos provinciais de caráter
provisó-
rio, facultando aos grupos provinciais participar diretamente da
administração de
suas “pátrias” — compreendidas pelos contemporâneos como local de nascimento
e
como territórios dotados de alguns princípios de identidade.6 Contudo, a
adesão de
Pernambuco ao constitucionalismo — que se seguiu à do Pará, em 1o de janeiro
de
1821, e à da Bahia, em 10 de fevereiro — não se fez sem contradições,
violências ou
derramamento de sangue. Ali, o governador Luís do Rego Barreto procurou
contro-
lar os termos da adesão e impedir o acesso dos grupos políticos locais ao
poder da
província.
Em carta de 20 de maio de 1821, Barreto informa a d. João que, ao
saber de seu
juramento à “Constituição da Monarquia”, dera “todas as ordens necessárias
para as
eleições dos Deputados desta província para a representação em Cortes, par a
par
com os outros Representantes da Nação”. Atalhava assim a ação de “alguns
faccio-
sos”, que espalhavam “doutrinas absurdas mas que podiam achar partido no
povo”.
Tais facciosos, ainda conforme Barreto:

julgaram ser-lhes lícito empreender mudanças de Governo, e de


administração,
feitas tumultuosamente e por homens obscuros e ferozes, que em
nada punham a

6 Jancsó e Pimenta, 2000.

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15:03
346 A independência brasileira

mira, senão em seu próprio interesse, na queda de pessoas que lhes


eram odiosas,
e em uma celebridade louca, triste remedo do arrojo heróico dos
nossos Restaura-
dores em bem diversas circunstâncias.

Ademais, afirmou o governador que, por um lado, já havia em Pernambuco


grupos políticos formados com o intuito de compor uma junta de governo e
que, por
outro, discutia-se abertamente a nova configuração política da monarquia:

alguns demagogos levantaram depois do dia 26 de março uma voz de


indepen-
dência, não propriamente de uma separação absoluta, mas o seu fito
era, a meu
parecer, um Governo Federal, deixando cada Capitania governar-se por
si, e por o
que eles chamavam Patrícios; este partido ia ganhando prosélitos
(...) Coroavam-
se estes fins com as aparentes pretensões de uma Junta Provisional,
eleita pelo
povo, mas corriam pelas mãos dos prosélitos do novo sistema listas
dos que ha-
viam de ser nomeados.7

Como se percebe, a resistência de Barreto ao novo estado de coisas


foi enorme e,
ao mesmo tempo, a pressão dos grupos locais no sentido de controlarem o
poder
político na província consubstanciava-se na tomada de decisões de caráter
prático e
em discussões de formas institucionais. Desse modo, somente por meio de uma
guerra
civil, iniciada como sempre ao norte do Recife, e da criação de uma junta
paralela ao
governo de Barreto, a qual fora instalada na cidade de Goiana, é que os
grupos locais
conseguiram isolar o governador no Recife e em Olinda e forçar sua
deposição.8
Porém, ao contrário do que esses fatos possam sugerir, faz-se
necessário salientar
que o período do constitucionalismo luso-brasileiro também não representou
uma
antecipação da independência política da América portuguesa. Antes,
significou um
momento de aproximação entre a colônia e sua metrópole, ou entre cada
província e
a monarquia portuguesa. Esse aspecto é claramente observado nos vários
documen-
tos elaborados pelas juntas provisórias de governo das províncias e mesmo na
carta
do governador Luís do Rego Barreto antes mencionada: nela se fala da
pretensão dos

7 Cf. carta do governador da capitania de Pernambuco, Luís do Rego Barreto,


ao rei d. João VI sobre ter
tomado conhecimento do juramento à Constituição, e informando as medidas
tomadas para a eleição dos
deputados da dita capitania que seguiriam viagem ao reino; as dificuldades
de se proceder às eleições devido
às distâncias das comarcas e aos receios do povo; e informando ter reprimido
todas as idéias propagadas nessa
capitania acerca da instalação de um governo federal. A.H.U., ACL, CU, 015,
Cx. 281, doc. 19.148. Recife,
20 maio 1821.
8 Berbel, 1999:57-65; e Bernardes, 2003a: 23-24.

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O avesso da
independência 347

grupos locais a uma “independência”, mas “não propriamente de uma separação


absoluta”. O objetivo era a autonomia provincial, politicamente viável em um
regi-
me federativo, ou “um Governo Federal, deixando cada Capitania governar-se
por
si”. É falsa, pois, a afirmação de que a primeira junta constitucionalista
de Pernambuco,
presidida pelo comerciante de grosso trato Gervásio Pires Ferreira — de 26
de outu-
bro de 1821 a 16 de setembro de 1822 —, “estava deslizando rapidamente para
a
anarquia sob o pretexto de conquistar a liberdade”.9 O que esta desejava,
acima de
tudo, era manter uma administração de caráter amplo, com forte acento na
autono-
mia provincial. Até então, em nenhum momento se havia pleiteado uma ruptura
local, ou mesmo regional, com o reino unido. Tal ruptura, paradoxalmente, só
apa-
rece no horizonte após fevereiro de 1822, por sugestão do príncipe regente e
dos
próceres do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo.
Assim, curiosamente, antigos partidários da República de Pernambuco
haviam-
se conformado com os termos propostos pelas cortes, de uma monarquia
constitu-
cional com sede em Lisboa. Afinal, manejar as contas da província, aplicar
suas ren-
das como bem quisessem, controlar as Forças Armadas, projetar reformas
educacionais,
introduzir mecanismos diferenciados de governo político constituíam aspectos
fun-
damentais para os grupos políticos locais. Em suma, aspiravam sobretudo à
autono-
mia provincial, a qual se tornara possível graças ao constitucionalismo
luso-brasilei-
ro. Profissionais liberais, padres, representantes do comércio de grosso
trato e
produtores ligados ao novo e dinâmico artigo de exportação da província, o
algodão,
contavam entre aqueles homens. Eles tinham como base territorial o Recife e
o norte
da província, incluindo a populosa vila de Goiana. Alguns senhores de
engenho,
sobretudo residentes na Zona da Mata Norte, também perfilavam com aqueles,
mas
a tendência da açucarocracia seria a ruptura paulatina, ao longo da fase
constitucio-
nal, com o “autonomismo” provincial.
Ora, é necessário destacar que a possibilidade de governar as
províncias, isto é,
permitir aos grupos políticos locais administrarem rendas e forças armadas e
fomen-
tarem práticas educacionais e culturais, criava diferenças importantes entre
os anti-
gos inimigos da monarquia bragantina, outrora ombreados em 1817. Ademais, as
soluções políticas adotadas nos momentos decisivos do conflito contra o
reino unido
haviam gerado tensões profundas entre diferentes grupos da província. Nessa
dire-
ção, a incorporação de escravos e de homens livres de cor entre partidários
e comba-
tentes da ruptura republicana constituía para alguns aspecto temerário e
perigoso,

9 Lima, 1962:204-205.

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348 A independência brasileira

um expediente de triste memória. É nesse quadro, pois, que as forças


políticas oriun-
das daquele movimento tomam direções diversas na época do constitucionalismo
luso-brasileiro.10
Sugere-se aqui que esse divórcio entre antigos aliados constitui
aspecto central
para o entendimento do que vem a ser o processo de independência em
Pernambuco.
Freqüentemente, põe-se ênfase demasiada nas idéias e práticas do grupo
autonomista,
isolando-o de uma configuração relacional da qual faziam parte os demais
grupos
políticos. Esse aspecto, aliás, é atestado examinando-se as inúmeras
análises produzi-
das sobre o pensamento de frei Caneca e de outros militantes “patriotas” e
radicais.11
Pouco se discute, inversamente, o lado adesista da província, constituído
pelos ir-
mãos Cavalcanti, pelos irmãos Gama e pelo morgado do Cabo, Francisco Paes
Barreto.
Carvalho (1998) contribuiu significativamente para corrigir essa tendência e
ofere-
cer um quadro mais amplo das lutas políticas em Pernambuco. É preciso, pois,
não
olhar as posições do grupo político que aceitou os termos do projeto do Rio
de
Janeiro com estranhamento apenas porque Pernambuco e as demais “províncias
do
Norte” constituíam uma “região de tradição liberal e contestatória”.12
Antes, faz-se
necessário sublinhar que havia ali bases tão sólidas para a contestação
quanto para a
aceitação inconteste da causa imperial.
O motivo da ruptura radical entre os grupos políticos de Pernambuco, a
qual
daí por diante poria em campos opostos autonomistas e centralistas, seria o
chamado
projeto do Rio de Janeiro. Este aparece no horizonte num momento em que as
provín-
cias da América portuguesa gozavam da mais ampla autonomia — prerrogativa,
aliás, sequer imaginada nos tempos dos governadores e capitães-generais
enviados
por Lisboa e, depois de 1808, pelo Rio de Janeiro. É nessa linha que se
entende por
que a primeira Junta de Governo Provisório de Pernambuco, mas também as de
outras “províncias do Norte”, como a da Paraíba, custaram a reconhecer a
autoridade
do príncipe regente e a pertinência daquilo que se passou a denominar
“independên-
cia”. Como notou Bernardes (2003a), soava desrespeitoso para os governantes
locais
o rompimento do pacto arduamente construído com as cortes constituintes e,
sobre-
tudo, com d. João VI, bem como parecia difícil abrir mão da autonomia
provincial
penosamente adquirida. Assim sendo, os áulicos do príncipe acabaram por
perpetrar
um golpe de Estado que levou à destituição da primeira junta provisória de

10 Carvalho, 1998; e Mello, 1997.


11 Lyra, 1998.
12 Mello, 2001:35.

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independência 349

Pernambuco, presidida por Pires Ferreira, e à eleição da chamada Junta dos


Matutos
(outubro de 1822 a dezembro de 1823), que entronara os senhores de engenho
da
Mata Sul no poder da província. Desse modo, as elites do Sul e seus aliados
políticos
locais derrubavam um governo legalmente constituído, de modo a pavimentar os
caminhos tortuosos da independência em Pernambuco.

Autonomismo versus centralismo

Consumada a independência política e tornando-se esta sabida pelo


conjunto
das províncias em fins de 1822, restou aos autonomistas pernambucanos se
confor-
marem com o chamado “projeto do Rio de Janeiro”. Isso ocorreu não por
traição dos
princípios antes defendidos, como afirmaram alguns historiadores, mas por
três ra-
zões básicas, que invalidaram a defesa do autogoverno provincial sob o reino
unido.
Em primeiro lugar, os trabalhos nas cortes constituintes fracassaram no
sentido de
salvaguardar os direitos federativos das províncias do Brasil. Esse duro
golpe no
autonomismo pernambucano viabilizou a entrada em cena de projetos políticos
aca-
lentados pela bancada paulista ao tempo das cortes constituintes. Tais
projetos ten-
deram a se materializar na confrontação entre o príncipe e Lisboa, inclusive
com o
chamado de uma Constituinte no Brasil em junho de 1822.13 Em segundo lugar,
observou-se que, internamente à província, amplos setores das camadas
populares —
majoritariamente constituídas por “pretos” e “pardos” —, viram na criação do
corpo
político independente motivo de júbilo, apoiando-o enfaticamente. Tais
setores po-
pulares, amplamente presentes em 1817, tendiam naquele momento a desconfiar
de
quem não aceitasse a ruptura definitiva com Portugal. Não por acaso tiveram
papel
destacado na conflagração que levou os matutos ao poder em outubro de 1822,
uma
vez que estes defendiam explicitamente a ruptura e a constituição do corpo
político
autônomo com sede no Rio de Janeiro. Desse modo, a sociedade local estava
dividi-
da não apenas entre suas elites políticas e econômicas, mas também entre o
povo
comum. Finalmente, e em terceiro lugar, a aceitação da independência pelos
autonomistas decorreu principalmente do fato de o príncipe acenar, naquele
mo-
mento, com uma proposta constitucional, então identificada com o
autonomismo. Ora,
recorde-se mais uma vez que este significava administrar rendas, controlar a
força
militar e, sobretudo, exercer a governabilidade dos povos por meio das
forças políti-
cas locais. Se esse princípio pôde ser implementado na velha ordem, ao longo
da fase

13 Berbel, 1999:193-194.

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350 A independência brasileira

do constitucionalismo luso-brasileiro, por que, no dizer de Frei Caneca


(2001:104),
não o seria nesse novo momento, marcado pela ruptura definitiva com o “velho
e
estonteado Tejo”? O símbolo dessa adesão dos autonomistas ao “projeto do Rio
de
Janeiro” e o fim de suas resistências a este materializaram-se no Sermão da
aclamação,
pregado pelo carmelita na Matriz do Corpo Santo em 8 de dezembro de 1822.
Nes-
te, aduzia Caneca (2001:104) que fora d. Pedro “aquele príncipe justo,
magnânimo,
incomparável, que tocado dos nossos males passados e das injustiças
presentes do
Congresso lisbonense a nosso respeito” proclamara “aquele último termo
político,
que nos dá liberdade, afiança a reintegração de nossos direitos postergados,
assegura
nossa felicidade e preconiza a nossa glória”.
Essa adesão dos autonomistas ao projeto do Rio de Janeiro ocorria,
porém,
num momento em que sua facção não exercia o controle político da província.
Como
se viu, em setembro de 1822, Bonifácio havia arquitetado a derrubada da
junta
gervasista por meio de um enviado seu a Pernambuco, Antônio de Meneses
Vascon-
celos de Drummond. A resistência da junta em aceitar os termos do projeto do
Rio
de Janeiro, notadamente o decreto de 16 de fevereiro relativo à criação do
Conselho
de Procuradores das Províncias, fora o motivo do golpe que a derrubara.
Assim sen-
do, subia ao poder, em outubro de 1822, a Junta dos Matutos, tendo por
presidente
Afonso de Albuquerque Maranhão e por membros Francisco Paes Barreto,
Francisco
de Paula Cavalcanti e Albuquerque, Manoel Inácio Bezerra de Melo e José
Marinho
Falcão Padilha. Tratava-se de grupo local apegado aos antigos padrões de
condução
da política econômica do Antigo Regime, mormente vinculados à produção
açucareira
e baseados na Zona da Mata Sul da província.14 Eles encontrariam alento no
projeto
de José Bonifácio e de outros áulicos do primeiro imperador, como demonstra
seu
entusiasmo, externado em 23 de novembro de 1822, pela aclamação de d. Pedro.
Nesse dia, a junta oficiou ao imperador informando-o de que os “habitantes
de
Pernambuco” revelavam ser “os primeiros que consideraram como um dever dos
Brasileiros (...) a necessidade de aclamar a Vossa Majestade Imperial por
Seu Legíti-
mo Monarca Constitucional, contido então em seus ardentes desejos pelo amor
da
Ordem e da legalidade”.15 Ainda nesse momento, autonomistas e centralistas
cons-
truíam diferentes interpretações da “independência”, mas ambos a abraçavam.
Porém, a frustração dos autonomistas em relação ao governo imperial
não tar-
dou a se manifestar. Por um lado, acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro
e

14 Mello, 2001.
15 Cf. Ofício da Junta do Governo Provisório de Pernambuco ao imperador d.
Pedro I, em As juntas
governativas..., 1973, v. 2, p. 694-695. (Recife, 23 nov. 1822.)

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O avesso da
independência 351

sabidos em Pernambuco em 13 de dezembro de 1823 revelaram que, entre as


noções
de federalismo constitucionalista e lealdade dinástica, esta defendida de
modo enfático
por José Bonifácio, o príncipe optava pela segunda. Nessa direção, fatos
como o
fechamento da Assembléia Constituinte a poder de baionetas, o acirramento
das
ações contrárias à liberdade de imprensa — que vinham sendo tomadas desde
1822
contra o Correio do Rio de Janeiro, de João Soares Lisboa — e a carta de lei
de 20 de
outubro de 1823, que acabava com as juntas e instituía a presidência da
província,
deixavam claro que as pretensões autonomistas estavam com seus dias
contados.
Curiosamente, porém, acreditava-se que o príncipe mantinha intactos seus
princí-
pios constitucionais, e que seus apaniguados é que trabalhavam contra a
união fede-
rativa do império. Na edição de 19 de fevereiro de 1824 do seu Typhis
Pernambucano,
frei Caneca ainda sustentava a idéia de que “há de raiar o dia em que o
nosso augusto
imperador, rompendo a venda que o cega, dará avesso à luz da verdade, que
lhe
encobrem a mais insolente adulação e o desenfreado egoísmo dos áulicos”.
Contra
esses “áulicos”, caberia aos pernambucanos abrir os olhos do imperador,
constituin-
do-se na “salvação dos nossos brasileiros”, em “beneméritos da pátria, com
um
inauferível direito à sua gratidão”.16 Como sugerem alguns historiadores, a
eclosão
da Confederação do Equador, em julho de 1824, seria em parte, par a par de
uma
secessão, uma mera tentativa de sensibilizar o imperador para que este
voltasse atrás
na imposição do juramento à Constituição outorgada e renovasse o chamado dos
deputados constituintes ao Rio de Janeiro.17
Por outro lado, no plano local, em meados de dezembro de 1823,
assistiu-se ao
malogro definitivo do que restara da Junta dos Matutos. Esta já havia
passado por
situação vexatória em fevereiro, quando um grupo de negros livres chefiados
pelo
governador das Armas, Pedro da Silva Pedroso, havia tomado a capital por
toda uma
semana.18 Os negros haviam lembrado aos brancos que não eram sempre dóceis e
obedientes e que, numa situação em que se apresentavam como maioria da
popula-
ção — em 1810 os negros livres perfaziam 42% da população da província19 —,
poderiam levar a efeito uma rebelião de caráter racial como fora a
“Pedrosada”. Ade-
mais, em dezembro daquele mesmo ano, Pernambuco achava-se a um passo da
guer-
ra civil. Como sempre, o movimento com o objetivo de destituir o que restara
da
Junta dos Matutos partira do norte da província.

16 Caneca, 2001:360.
17 Mello, 2001:38; e Bernardes, 2003b:245.
18 Silva, 2003:515-520.
19 Alden, 1999.

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352 A independência brasileira

O retorno dos autonomistas

Em 13 de dezembro de 1823, Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque


chamava o “Grande Conselho” — instituição de feições democráticas criada ao
tem-
po de Gervásio Pires — para anunciar, já à falta de outros membros da junta,
que:

achando-se a Província bandeada, e ameaçando uma Guerra Civil,


havendo já
Corpo reunido em Goiana, [entendia ser] um dever sagrado do
Governo fazer
cessar as calamidades públicas. [Solicitava, então,] em nome do
bem da humani-
dade e da Província, e mesmo em nome do Grande Império
Brasileiro, que [os
membros do Grande Conselho] os dispensassem de um Governo, em que
tinham
perdido toda a força moral.20

Sabedor da carta de lei de 20 de outubro de 1823 que instituía a


presidência da
província, o Grande Conselho deliberou nomear nova junta, enquanto o
imperador
não informasse quem seria o primeiro presidente provincial. Naquela
circunstância,
a Junta dos Matutos deixava o poder nas mãos de um grupo que guardava claros
traços de continuidade em relação aos que haviam estado à frente da
revolução con-
tra o reino unido em 1817 e do movimento do qual resultara a formação da
primeira
junta de governo. Desse grupo político fazia parte o carmelita frei Joaquim
do Amor
Divino Caneca, o poeta e advogado mulato José da Natividade Saldanha e o
comer-
ciante de grosso trato Manoel de Carvalho Paes de Andrade — respectivamente,
conselheiro, secretário e presidente da Junta Provisória.
No entanto, à crença quase ingênua de Caneca no imperador,
contrapunha-se o
ardil deste em oferecer a presidência da província a Francisco Paes Barreto,
morgado
do Cabo, e a seu grupo adesista. Essa atribuição havia sido feita em 25 de
novembro
de 1823, mas quedara ignorada em Pernambuco até fevereiro de 1824. Na sessão
do
Conselho da Província do dia 3 daquele mês, discutiu-se o teor do “ofício do
Morga-
do participando ao Governo que havia recebido uma Carta Régia em que
[Francisco
Paes Barreto] era nomeado Presidente do Governo da Província”. Membros do
con-
selho, a exemplo de Manoel Silvestre de Araújo, entenderam que não se devia
dar a
posse a Paes Barreto, ao passo que outros, como Bernardo Luiz Ferreira,
pensaram o
inverso. A decisão final foi a de que “não convinha por ora que se lhe desse
posse”.21

20 Cf. Sessão extraordinária do Grande Conselho, 13 dez. 1823, em Atas


do..., 1997, v. 1, p. 213-214.
21 Cf. Sessão de 3 fev. 1824, Atas do..., 1997, v. 1, p. 229.

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O avesso da
independência 353

A idéia era protelar ao máximo o retorno da “açucarocracia” da Mata Sul ao


poder e
buscar uma saída negociada com o imperador.
Os ânimos foram se acirrando ao longo da primeira metade de 1824. Em
lados
opostos, autonomistas e centralistas ameaçavam a paz da província e estavam,
mais
uma vez, à beira da guerra civil. Paes Barreto, juntamente com Luís
Francisco de
Paula, Bernardo Luís Ferreira, Francisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque,
José
Carlos Mayrink e Manuel Inácio de Carvalho, constituiu em 22 de março de
1823
um governo independente na vila do Cabo, seu reduto ao sul da província. A
Junta
Provisória, por sua vez, resolveu realizar duas importantes sessões do
Grande Conse-
lho. Na primeira, a 7 de abril de 1824, votou-se o reconhecimento de Paes
Barreto
como presidente da província. Num dos votos proferidos — o de frei Caneca —
insistiu-se que aceitar a presidência do morgado era anuir às intenções
anticonstitu-
cionais do imperador e aceitar um projeto “despótico” para a nação.
Argumentou o
carmelita, enfim, que com “a nomeação do Paes Barreto em presidente não se
pode
conseguir o bem-estar dos povos desta província, e se arrisca a integridade
do impé-
rio”.22 A outra sessão, de 6 de maio, foi dedicada à discussão do envio de
tropas ao
sul da província “para fazer guerra às tropas de Francisco Paes Barreto”.23
O confronto entre autonomistas e centralistas encerrava, em última
análise, o
conflito entre diferentes visões acerca da independência, da formação do
Estado e da
nação. Tais visões conviviam no mesmo contexto provincial, mas acenavam para
as
diferentes formas pelas quais então se construía o pacto mais amplo entre
governan-
tes e governados. Exemplo disso é o teor da discussão de outra sessão do
Grande
Conselho da Província, ocorrida a 6 de junho de 1824, na qual Natividade
Saldanha,
secretário de governo, afirmou que o que desatinava no “projeto
constitucional” não
era a “insignificante extorsão de dinheiros” exigida pelos poderes centrais
com base
nas rendas provinciais, mas a ausência do estabelecimento de “poderes
políticos, de
assinar a cada um a sua esfera e de fixar os seus deveres e direitos;
tratamos em suma
da existência da Nação”. Ainda conforme Saldanha, demandava-se:

o direito de uma Assembléia Constituinte, mesmo com as


dificuldades e vicissitu-
des que são inevitáveis à liberdade e aos primeiros passos de uma
nacionalidade
nova, que reclamam paciência e proteção (...); queremos assim a
verdade, o crédi-
to, a superioridade e todo o proveito do Governo Representativo
(...) Queremos a

22 Caneca, 2001:538.
23 Ibid., p. 545.

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354 A independência brasileira

paz sim, mas no seio da honra satisfeita. [Para ele, aceitar o]


pérfido projeto [cons-
titucional era] arriscar a nossa ainda disputada Independência,
reconhecer nossa
incapacidade para nos constituirmos pelo modo competente.24

A idéia de o partido autonomista de Pernambuco buscar “outra


Independência”
toma consistência à medida que se compreende que o princípio de autogoverno
provincial recebia, então, duros golpes dos poderes que se faziam cada vez
mais “cen-
trais”. Desse modo, uma aspiração histórica das “províncias do Norte” — a
autono-
mia provincial — acaba por configurar um projeto de nação, o que impede de
se ver
o autonomismo pernambucano, ou quaisquer outros, como “separatista”. A
rigor, o
que se origina do confronto entre o partido autonomista, de um lado, e o
imperador
e os centralistas locais, de outro, não é a mera oposição de uma província
isolada, que
insiste em manter seu autogoverno a despeito das medidas adotadas a partir
de um
centro qualquer de peregrinação. Antes, trata-se de um confronto entre dois
projetos de
nação para o que fora outrora o conjunto do território da América
portuguesa.
Na edição de 10 de junho de 1824 de seu Typhis Pernambucano, Caneca
deixa
claro que:

[quando] aqueles sujeitos do sítio do Ipiranga (...) aclamaram a


s. m. imperador
constitucional, e foram imitados pelos aferventados fluminenses,
Bahia podia cons-
tituir-se república; Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí,
federação; Sergipe
d’El-Rei, reino; Maranhão e Pará, monarquia constitucional; Rio
Grande do Sul,
estado despótico.

Em meio a essas “possibilidades, o Rio (...) aclamou s. m. imperador


constitu-
cional, e então s. m. não ficou mais do que imperador do Rio de Janeiro”.
Caso
quisesse contar com a anuência das demais províncias, haver-se-ia de
respeitar não
apenas a idéia de monarquia, mas também a de “sistema constitucional”, pois
“sem
uma Constituição dada pela nação, acabou-se a união; fica cada província
sobre si
independente e soberana, pois que a sua união foi anunciada e baseada no
conjunto
indissolúvel das duas condições, sistema constitucional e s. m.
imperador”.25 Definiti-
vamente, essa não era uma visão “provincial” ou mesmo “regional” do problema
da
formação do Estado e da nação: contemplava-se o conjunto do que antes havia
sido

24 Melo, 1895:41-44.
25 Caneca, 2001:464-465, grifos no original.

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O avesso da
independência 355

a América portuguesa, e era toda essa territorialidade e a sua forma de


governo que
estavam em jogo.

Confederação do Equador

Mas não havia qualquer possibilidade de haver outra nação ou outra


Constitui-
ção para o império, nem chance de que a indicação para o cargo de presidente
de
província pudesse recair sobre algum membro do partido autonomista. Desse
modo,
a eclosão da guerra civil era inevitável. Atento a tudo isso estava um dos
tantos mer-
cenários contratados pelo imperador, John Taylor, que então comandava uma
esqua-
dra que bloqueava o porto do Recife. Sua presença ali revelava o caráter
paradoxal da
independência: por um lado, o imperador forçava a nomeação de Francisco Paes
Barreto ameaçando o uso da força, por outro, acenava com uma negociação em
tais
circunstâncias. A negociação pouco rendeu porque d. Pedro se recusou a
aceitar a
legitimidade da eleição de Manoel Paes de Carvalho, indicando em seu lugar
um
tertius: José Carlos Mayrink da Silva Ferrão. Este, um mineiro chegado a
Pernambuco
como secretário do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1804-17),
traíra seu chefe e aderira à revolução de 1817. Contudo, fazendo jus à fama
dos
nascidos em sua terra natal, Ferrão recusou a oferta, que agradava a ambos
os parti-
dos, dando pretexto ao imperador para insistir mais uma vez na escolha de
Paes
Barreto. Dessa instabilidade política à guerra civil foi um passo. O
resultado desse
quadro foi a criação, em 2 de julho de 1824, de um corpo político autônomo
situado
ao norte da América portuguesa: a Confederação do Equador.
Mais uma vez, as demais “províncias do Norte” acorreram ao projeto do
Recife,
e como em 1817, foram debeladas de forma radical, agora pelo governo
imperial e
suas forças militares mistas — isto é, em parte locais, em parte
mercenárias. Guerra
civil, mortes, execuções sumárias e exílios se seguiram nos anos
subseqüentes. Con-
tudo, percebem-se diferentes trajetórias individuais, diferentes destinos
para os im-
plicados. Uns foram sentenciados à morte, ao passo que outros retornaram à
provín-
cia após o exílio e alcançaram, já na década de 1830, títulos e posições de
destaque no
cenário imperial. Embora os acontecimentos de 1824 tenham muito em comum
com os de 1817 — notadamente as estratégias equivocadas, as proposições
desmedi-
das, as veleidades republicanas e as pretendidas e nunca concretizadas
adesões —, há
uma dimensão muito mais ampla no segundo conflito. Não se tratava apenas de
defender um sentimento regional, como em 1817, ou de um mero pugnar pelo
autonomismo —, embora estes fossem aspectos presentes e radicalizados no
conflito.
Na verdade, em 1824 estava em jogo a vitória dos ilustrados e liberais de
todos os

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356 A independência brasileira

quadrantes do mundo contra os restauradores e monarquistas, que muito


dificil-
mente se podiam denominar “constitucionais”. Mais ainda, Pernambuco acabou
por
reunir, à época, opositores do absolutismo e da Santa Aliança oriundos de
várias
partes do mundo. Estes enxergaram nas “províncias do Norte”, como informou o
Argos de Buenos Aires em sua edição de 31 de janeiro de 1824, “o povo mais
enérgico
e livre de toda a América Portuguesa”.26 Não por acaso, com os confederados
perfi-
lavam sujeitos oriundos de outras lutas contra aquilo que então se chamava
de “des-
potismo”.
Assim, tanto em 1817 quanto em 1824, setores expressivos da sociedade
de
Pernambuco — e também da Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Ceará —
tomaram atitudes que não encontram paralelo em nenhuma das províncias da
Amé-
rica portuguesa. Por que, então, apenas as “províncias do Norte”
conflagraram-se
primeiro contra o reino unido e depois contra o império nascente? Qual a
natureza
dessa contestação, que, longe de ser meramente local ou regional,
questionava de
modo incisivo a maneira pela qual se organizava o Estado nacional?

Impostos e algodões

A natureza da ruptura com a monarquia portuguesa ensaiada em 1817 tem


recebido interpretações que enfatizam sobretudo razões de ordem econômica ou
fis-
cal. Do ponto de vista fiscal, sublinha-se, por exemplo, como uma grande
quantida-
de de novos impostos passou a afetar a economia pernambucana após 1808,
drenan-
do recursos principalmente para a manutenção da corte instalada no Rio de
Janeiro.27
Entre 1808 e 1813, surgiram, por exemplo, impostos sobre compras, vendas e
arrematações de bens de raiz (10% do valor de transação), sobre a
propriedade de
imóveis urbanos (10% do valor do imóvel), sobre a compra de cativos vindos
da
África (5% do valor do escravo), ou sobre cada arroba de algodão exportado
(600 réis
por arroba). A lista dos novos impostos surgidos no processo de
“metropolização” do
Rio de Janeiro é enorme.28 Assim, tão logo assumiu, mesmo que precariamente,
o
controle da situação, o governo provisório não só procurou reduzir impostos,
mas
também determinou que os direitos da coroa cobrados diretamente na alfândega
de
Pernambuco fossem revertidos para o Erário da própria província.29 Já em 9
de mar-
26 Caneca, 2001:450.
27 Mosher, 2000a:36.
28 Gouveia, 2003; e Bernardes, 2003b: 228-229.
29 Leite, 1988:204-205.

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O avesso
da independência 357

ço de 1817, isto é, três dias após a tomada do poder, o Governo Provisório


de
Pernambuco considerou o quanto era “odiosa” e “contrária aos princípios de
econo-
mia pública” a carga tributária que pesava sobre os pernambucanos, a qual
tornava
“desigual a sorte dos habitantes do país, e membros do mesmo Estado”.30
Embora constitua aspecto importante, a opressão fiscal não explica
parte essen-
cial do conflito, qual seja, as razões pelas quais se estabeleceu uma
ruptura com o prin-
cípio monárquico de governo. Afinal, precisava-se de justificativa poderosa
para aglutinar
amplos setores sociais contra princípio tão arraigado no mundo social.
Nesse mesmo sentido, argumenta-se com freqüência que razões econômicas
concorreram em grande medida para a ruptura com o reino unido. A principal
delas
diz respeito ao peso e importância que a produção algodoeira foi adquirindo
entre
fins do século XVIII e início do século seguinte. Em 1796, o algodão
equivalia a
37% do conjunto dos produtos exportados pela capitania; em 1806 essa
participa-
ção cresceu para 48%, até atingir 83% em 1816. Isso refletia fatores
conjunturais,
como as guerras anglo-americanas e as guerras napoleônicas, que
impulsionaram
dramaticamente a demanda de algodão naqueles anos. Fosse como fosse, o peso
econômico do setor algodoeiro revela que, então, novos produtores entravam
em
cena e adquiriam equivalente peso político, que tendia a contrabalançar a
tradicional
supremacia do setor açucareiro.31 No mesmo período, o açúcar declinou de
modo
significativo como produto-chave da pauta de exportações. Sua participação
no total
dos produtos pernambucanos destinados ao mercado externo caiu de 54% em 1796
para 45% em 1806 e finalmente para ínfimos 15% em 1816.32 Contudo, isso não
significa que o setor açucareiro passava por uma crise. Aliás, nem a América
portu-
guesa em geral, nem Pernambuco apresentavam, então, um quadro de crise e
estag-
nação econômica — aspecto comumente apontado como pano de fundo dos movi-
mentos revolucionários. A época era de prosperidade,33 e isso pode ser
ilustrado pelo
balanço de pagamentos da província, sempre superavitário entre o final do
século
XVIII e início do seguinte. Ademais, em 1805, 1814, 1815 e 1818, graças ao
algo-
dão, Pernambuco liderou a lista de províncias que mais assistiram ao
ingresso de
rendas em decorrência de suas exportações. Assim, pois, a economia local, em
íntima
30 Cf. Decreto do Governo Provisório de Pernambuco sobre a abolição de
tributos. Documentos Históricos,
Casa do Governo, v. 1, p. 13, 9 mar. 1817.
31 Palacios, 1997.
32 Mello, 2001:20-21.
33 Alden, 1999.

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08/08/2014, 15:03
358 A independência brasileira

conexão com as demandas do mundo atlântico, revelava então uma clara


tendência
ao crescimento e à diversificação.34
Acresça-se que, se o açúcar continuava sendo exportado para a Europa
no grande
comércio dominado pelos lusitanos — permanecendo, desse modo, inserido nas
linhas
mercantis estabelecidas pelo antigo sistema colonial —, o algodão tinha
outro destino.
Sua importação se processava principalmente através do mercado inglês,
alimentando
a dinâmica da Revolução Industrial. Em decorrência, a geografia do açúcar e
do algo-
dão havia gerado diferenças notáveis entre grupos sociais e,
conseqüentemente, distin-
tas posições políticas. Por um lado, a Zona da Mata Sul continuava baseada
na tradi-
cional produção açucareira e nos seus vínculos com o grande comércio
português, ao
passo que a Zona da Mata Norte passou a constituir o reduto de produtores de
algodão
e dos senhores de engenho a eles associados. No Recife, os comerciantes de
grosso trato
de origem brasileira pendiam para uma aliança com os últimos, enquanto o
grande
comércio detido por portugueses tendia naturalmente a se alinhar com os
primeiros.35
Todavia, dificilmente pode-se aplicar esse esquema dual, como fez
Mello (2001),
para entender as motivações do confronto estabelecido em 1817. Para aquele
autor,
é em parte o “contraponto do açúcar e do algodão” a base de explicação do
“feitio
instável e radical” dos movimentos políticos ocorridos na província, “pois
foi ali,
mais acentuadamente que em nenhuma outra região brasileira, que se
aprofundou o
conflito entre a nova e a velha estrutura comercial”. Indo além, Mello
(2001:23-24)
sugere que havia uma diferença intra-regional nítida naqueles conflitos:

Quem se der ao trabalho de fazer a geografia dos movimentos


insurrecionais de
Pernambuco na primeira metade do século XIX, a começar pela
Revolução de
1817, constatará que, no interior, a sua área natural de apoio é a
mata norte; e que
a reação baseia-se invariavelmente na mata sul.

Ora, esse raciocínio pode até ser válido para 1824, mas não o é para o
movi-
mento político anterior. Como já se argumentou, produtores de açúcar de
ambas as
regiões, bem como plantadores de algodão da Mata Norte, além dos
comerciantes de
grosso trato do Recife, estavam lado a lado na luta contra o reino unido em
1817.
Em janeiro de 1818, o desembargador João Osório de Castro e Souza Falcão
notara
a esse respeito “que dos grandes filhos do país não houve um só nas duas
comarcas do

34 Ribeiro Júnior, 1980:122-144.


35 Carvalho, 1998.

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15:03
O
avesso da independência 359

Recife e Olinda que não fosse rebelde, com mais ou menos entusiasmo”. Talvez
ape-
nas o grande comércio lusitano tenha estado, desde o início, contra a
revolução. O
mesmo desembargador escrevera em março de 1818 que se o governo da província
era sabedor de supostos planos revolucionários antes da eclosão do
movimento, tais
informações haviam sido obtidas “à instância de alguns negociantes europeus
no
primeiro de março (que logo foi sabida dos conspiradores)”.36 Tanto o
morgado do
Cabo, Francisco Paes Barreto, quanto os irmãos Cavalcanti — Francisco de
Paula,
Antônio Francisco e José Francisco —, todos radicados na Mata Sul e senhores
de
engenho e proprietários de amplos domínios territoriais, estavam entre os
“mártires
pernambucanos vítimas da liberdade” de 1817.37
Na verdade, os irmãos Cavalcanti já apareciam como principais
implicados na
conspiração de 1801, a dos Suassuna, organizada, como se sabe, no engenho de
sua
propriedade, cujo nome dera origem ao da conspiração. Esta remetia à idéia
de for-
mação de um governo autônomo em Pernambuco, supostamente amparado em au-
xílio francês, em caso de invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas.38
Como
também já se discutiu, foi apenas no período do constitucionalismo luso-
brasileiro,
entre 1821 e 1823, que o grupo de grandes proprietários radicados na Mata
Sul
criou as bases do adesismo pernambucano ao projeto do Rio de Janeiro,
divorcian-
do-se daí por diante das concepções autonomistas. Assim, não é possível
entender
1817 como fruto de um contraponto entre os grupos radicados no sul
açucareiro e
no norte algodoeiro. Com efeito, esse confronto só viria à tona na vaga do
consti-
tucionalismo. Foram os resultados da avaliação política de 1817 e,
sobretudo, a pos-
sibilidade de gerir o governo da província — propiciada pelo
constitucionalismo e
depois pela independência — que constituíram os fundamentos daquele
divórcio.
Resta, pois, explicar a natureza da ruptura com o princípio monárquico de
poder em
1817, a qual foi bem sintetizada num decreto do Governo Provisório da
Paraíba,
datado de 18 de março daquele ano. Neste, os próceres locais decretavam “que
não
torne mais a aparecer em toda a nossa província as insígnias, armas e
decorações do
rei de Portugal, para banir absolutamente das nossas idéias o império do
despotismo
e tirania até os seus últimos vestígios”.39

36 Cf. Devassa assinada por João Osório de Castro e Souza Falcão. Documentos
Históricos, Recife, v. 103,
p. 91, 15 jan. 1818; Carta de João Osório de Castro e Souza Falcão a Tomás
Vila Nova Portugal. Documentos
Históricos, Recife, v. 103, p. 109-110, 17 mar. 1818.
37 Martins, 1853.
38 Mello, 2001:18.
39 Cf. Decreto do Governo Provisório da Paraíba sobre a abolição das
insígnias, armas e decorações do rei de
Portugal. Documentos Históricos, Casa do Governo Provisório da Paraíba, v.
1, p. 34, 18 mar. 1817.

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360 A independência brasileira

Pernambuco restaurado

Num contraponto às explicações de natureza fiscal e econômica, mas sem


des-
denhar delas, sugere-se aqui que o ponto de partida para o entendimento
dessa rup-
tura radical com o poder monárquico e com seus símbolos repousa naquilo que
Evaldo Cabral de Mello (1997:17-29) chama de “sistema de representações
mentais
sobre o período holandês”. Trata-se, sinteticamente, de um sistema de
representações
que contém vários topoi, bem como uma periodização tripartida que se estende
pelos
séculos XVII, XVIII e XIX. Esse sistema envolve mistificações históricas,
derrapa-
gens de significados e alterações de ênfase, mas seus tópicos centrais
tenderam a se
cristalizar ao longo do tempo. Assim, conforme essa representação mental, os
custos
da guerra contra os holandeses teriam recaído principalmente sobre os
“filhos da
terra”, e não sobre a metrópole portuguesa, uma vez que esta se achava em
meio ao
caos provocado pela guerra de restauração contra o domínio de Castela
(1640). Em
decorrência disso, se os pernambucanos haviam restituído por sua vontade, e
à “custa
de nosso sangue, vidas e fazendas”, o domínio dos territórios ao norte da
América
portuguesa à casa de Bragança, eles deveriam ser considerados “vassalos
políticos” da
coroa, e não “naturais”. Finalmente, tal representação mental remete à
complexa
elaboração de um “panteão restaurador” no qual figuravam os “heróis” da
guerra do
açúcar — o reinol João Fernandes Vieira, o mazombo Vidal de Negreiros, o
índio
Felipe Camarão e o negro Henrique Dias. A periodização desse sistema,
proposta
por Mello (1997:21), aponta para uma primeira fase — a do “nativismo
nobiliárqui-
co” —, cuja duração se estende da década final da Guerra de Restauração
(1650) até
a repressão aos nobres envolvidos na Guerra dos Mascates (1715). A segunda
fase,
chamada de “nativismo de transação”, é aquela na qual nobres e mascates se
unem
em torno dos mesmos topoi da restauração — aspecto visível ao longo de todo
o
século XVIII. Finalmente, a terceira fase — a que mais interessa nesta
análise — é
representada pelo “nativismo radical” posterior à conspiração dos Suassuna
(1801), e
nitidamente presente nos movimentos políticos de 1817 e, secundariamente, de
1824.
Claro está que não se devem confundir estes com outros “nativismos”, que
enxergam
na restauração pernambucana a base de formação da nação brasileira; trata-
se, antes,
de um nativismo local, próprio da capitania, no máximo de alcance regional,
emana-
do da memória forjada nas guerras contra os holandeses.40

40 Mello, 1997; e Jancsó e Pimenta, 2000.

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O avesso da
independência 361

O manejo desse sistema de representação mental por parte tanto de


revolucio-
nários quanto de defensores da monarquia é aspecto amplamente manifesto em
1817.
Nessa direção, lê-se ao pé de todos os documentos impressos produzidos pelo
gover-
no insurrecional de 1817: “Na oficina tipográfica da República de
Pernambuco, 2a
vez restaurada”. Claro está que a primeira restauração foi aquela
empreendida no
século XVII contra o domínio holandês, ao passo que a segunda era a vivida
no
início do século XIX, e que dava fim ao domínio da monarquia portuguesa
sobre o
território. Ao mesmo tempo, documentos manuscritos produzidos pelo mesmo go-
verno eram datados da “segunda era da liberdade pernambucana”. Por sua vez,
o
jovem poeta mulato José da Natividade Saldanha41 evocou o panteão
restaurador ao
compor versos com o objetivo de emular os “Jovens Brasileiros” a se
alistarem nos
exércitos revolucionários da República de Pernambuco:

Filhos da Pátria, Jovens Brasileiros,


Que as bandeiras seguis do Márcio Nume,
Lembrem-vos Guararapes, e esse cume,
Onde brilharam Dias e Negreiros.

Lembrem-vos esses golpes tão certeiros,


Que às mais cultas Nações deram ciúme;
Seu exemplo segui, segue seu lume,
Filhos da Pátria, Jovens Brasileiros.

Note-se, ademais, que o manejo do sistema de representações mentais


concernente à restauração não era especificamente pernambucano, pois sua
prática
disseminava-se pelo conjunto das “províncias do Norte”. Ora, isso tinha
raízes no
próprio processo de restauração, uma vez que o chamado “Brasil holandês”
compre-
endia não só Pernambuco, mas também a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o
Ceará.
Não por acaso o Governo Provisório da Paraíba utilizava o mesmo topos do
panteão
restaurador a fim de requisitar homens armados para a defesa da pátria:

Alistai-vos e deixai os vossos nomes nas páginas das histórias


futuras com o distin-
tivo do vosso esforço, vejam as nações do universo que os netos
dos Vieiras, dos

41 Melo, 1895:12-13.
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362 A independência brasileira

Negreiros, dos Henrique Dias e dos Camarões imitaram um dia os


heróis da
Grécia e de Roma.42

A adesão das “províncias do Norte” a Pernambuco, retomada depois em


1824,
não repousava apenas no fato de o Recife constituir o único porto de
escoamento e o
principal entreposto comercial para os seus produtos: ela também se
assentava na
filiação histórica, na experiência da restauração. Afinal, não apenas em
Pernambuco,
mas também na Paraíba, no Rio Grande do Norte e no Ceará havia “netos dos
Vieiras,
dos Negreiros, dos Henrique Dias e dos Camarões”.
Assim se entende que o mito da restauração constituiu o mais
importante ins-
trumento ideológico de justificação do fim do domínio da coroa lusitana no
norte da
América portuguesa em 1817. Com efeito, a mais bem elaborada peça escrita
sob
esse objetivo saiu da pena do deão da Sé de Olinda, o dr. Bernardo Luís
Ferreira
Portugal, a quem coube o governo do amplo bispado de Pernambuco durante a
breve república. Este escreveu em uma das tantas pastorais destinadas aos
“patriotas
pernambucanos” que a revolução não era coisa contrária ao Evangelho, uma vez
que
a posse e o direito da Casa de Bragança eram fundados em contrato bilateral.
Con-
forme este, estavam os povos desobrigados de lealdade jurada por ter sido a
dinastia
quem faltou com as suas obrigações.43 A justiça da rebelião, assim, baseava-
se em ter
a coroa desrespeitado os supostos compromissos assumidos por d. João IV e
por
d. Afonso VI como compensação à restituição, após 1654, da região norte da
Amé-
rica à suserania portuguesa. Cabia, assim, aos reis “não nos incomodar com
tributos
e não mandar para a administração pública e força armada gente exótica”,
isto é,
“portugueses” que não fossem de Pernambuco. O governador do bispado
revolucio-
nário acusava ainda que, desde a restauração portuguesa do domínio
castelhano, em
1640, “foi sucessivamente atacada a dignidade e os direitos primitivos dos
portugue-
ses e brasileiros; e todas as leis fundamentais e promessas foram taladas”.
Finalmente,
Ferreira Portugal retoma um dos topos fundamentais da representação mental
sobre a
restauração — a idéia de que a vassalagem dos pernambucanos era política, e
não
natural. Assim sendo, esta poderia ser rompida quando bem se entendesse, ou
quan-
do um dos pactuantes faltasse com a palavra jurada. “Tendo pois os
encarregados dos
direitos do povo faltado ao contrato a que se ligaram com juramento solene”,
aduz o
deão, “não só se tornaram perjuros, porém pelos seus mesmos atos nos
reintegraram
em nossos primitivos direitos, dos quais haviam desapiedadamente abusado”.44

42 Mello, 1997:196.
43 Achilles, 1973:98.
44 Mello, 1997:136-137.

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O
avesso da independência 363

Tais formulações foram duramente rebatidas em agosto de 1818, na vaga


da
repressão desencadeada pelo Estado português então sediado no Rio de
Janeiro. Coube
a Manuel Vieira de Lemos Sampaio, o novo bispo de Pernambuco, lembrar aos
pernambucanos que não “são os povos os que elegem os reis” mas que “é Deus
que
elege os representantes do nosso primeiro pai; diz o Espírito Santo, por mim
reinam
os reis. O nosso amabilíssimo rei, e Senhor, em que Deus depositou o poder
sobera-
no acompanhado de muitos dons naturais e sobrenaturais, é todo o objeto do
nosso
discurso”. Ainda conforme o bispo realista:

os mistérios da Soberania do Nosso Rei e Senhor Dom João Sexto não é


menos
respeitável que os mistérios profundos que venera a nossa Religião
Cristã, [uma
vez que era este] nosso Pai Soberano segundo a ordem da natureza,
por descender
de tantos soberanos, quantos são os monarcas portugueses, que por
lei natural
tantos séculos dominaram a porção portuguesa. [Assim, pois, o que
lhe era] devi-
do por natureza também o é por uma legítima prescrição.

Não cabia evocar a idéia de pacto político ou lembrar a audaciosa


proposição
pela qual seriam os pernambucanos “vassalos políticos” da coroa. Afinal,
criara “Deus
a Adão para Soberano de todos os viventes, e este Soberano poder dá aqueles
que
representam a pessoa do nosso primeiro pai”. Nessa ótica, o pacto político
era desca-
bido porque “não foram os filhos de Adão que lhe deram o poder de governar,
sim
quando nasceram o viram revestido do Divino Poder de governar, a eles só foi
dado
o poder de obedecer”.45
Do ponto de vista do governo civil, coube ao desembargador João Osório
de
Castro e Souza Falcão, em carta de 17 de março de 1818, insistir na mesma
argu-
mentação. Destaque-se que, para este, a “mola” da revolução ocorrida na
província
decorrera da tarefa intelectual baseada “em aumentar invertendo os fatos da
história
da restauração passada sobre os holandeses deduzindo daí direitos de
propriedade,
doação a Sua Majestade com exclusão de quaisquer impostos”. Ainda conforme o
desembargador Falcão, estas “foram as persuasões que serviram de mola para
dar movi-
mento ao detestável projeto e de que se serviram com especialidade no dito
dia seis [de
março de 1817]”. Daí decorreram, enfim, as nefandas “idéias de igualdade”.46

45 Cf. Os governadores do bispado ao clero e ao povo de Pernambuco.


Documentos Históricos, Olinda, v. 104,
p. 260-262, 1o ago. 1818.
46 Cf. Carta de João Osório de Castro e Souza Falcão a Tomás Vila Nova
Portugal. Documentos Históricos,
Recife, v. 103, p. 109-110, 17 mar. 1818.

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364 A independência brasileira

Os topoi da restauração foram ainda retomados no tempo do


constitucionalis-
mo luso-brasileiro, e no mesmo sentido de 1817. Em carta de 18 de março de
1822,
Gervásio Pires Ferreira oficiava ao príncipe regente informando de sua
crença nas
“bases da Constituição”, a despeito das arbitrariedades do Congresso
lisboeta, por-
que aquelas asseguravam à província “a liberdade” a que Pernambuco “se julga
com
direito, como herdeira do patriotismo dos Vieiras, Vidais e Dias”.47
Contudo, nas lutas políticas posteriores, notadamente em 1824, o
sentimento
nativista tomou peso e direção diferentes. Primeiro, não mais se fazia
necessário
dessacralizar o poder ancestral dos reis porque o constitucionalismo já
havia criado as
bases para a disseminação de novo tipo de pacto entre governantes e
governados.
Retomar a velha tese, assentada no mito da restauração, portanto, era algo
fora de
moda. Segundo, o que se colocava depois de dezembro de 1822 era a discussão
em
torno da instauração de um Estado de tipo novo, isto é, constitucional, bem
como de
uma nova nação — a brasileira. Desse modo, na antecâmara do movimento que
resultaria na Confederação do Equador, o mito da restauração constituía
apenas uma
evocação genérica, um discurso vago, que visava aglutinar em torno dos
autonomistas
setores descontentes com o projeto do Rio de Janeiro. Não deve ser lido de
outra
forma o texto inicial publicado por frei Caneca no primeiro número do Typhis
Pernambucano, datado de 25 de dezembro de 1823. Neste, o carmelita escreve
que
estando a “nau da pátria (...) combatida por ventos embravecidos” que
ameaçavam
“naufrágio e morte”, cabia a “todo cidadão” ser “marinheiro”. O estorvo ao
autonomismo — então posto a olhos vistos com o fechamento da Assembléia
Cons-
tituinte — assumia a forma de um “medonho nevoeiro que se levanta do sul, e
que
vai desfechar em desastrosa tempestade”. “Firme neste princípio”, escreve
Caneca
(2001:303), “te falo, oh Pernambuco, pátria da liberdade, asilo da honra e
alcáçar da
virtude! Em ti floresceram os Vieiras, os Negreiros, os Camarões e os Dias,
que fize-
ram tremer a Holanda, e deram espanto ao mundo universo”.
Ora, o princípio de identidade dos pernambucanos, centrado no mito da
res-
tauração, ainda permanecia no horizonte, mas não passava de alusão genérica.
Não
mais constituía, como em 1817, justificativa de ruptura com o poder
estabelecido.
Este, agora nascente em sua forma imperial, ao contrário, ainda era motivo
de deba-
tes, algo provisório e em construção. Vão daí os argumentos para redefini-
lo, reorientá-
lo em favor dos grupos provinciais herdeiros do autonomismo. Como bem
resumiu

47 Melo, 1973, v. I, p. 63.

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15:03
O avesso da
independência 365

Cipriano Barata em 18 de junho de 1823, no jornal Sentinela da Liberdade na


Guarita
de Pernambuco:

nós não temos feito este Império para meia dúzia de famílias do
Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais desfrutarem (...) nós somos livres, as
províncias são
livres, o nosso contrato é provisório e não está concluído.48

Modelos políticos

Tanto o movimento político de 1817 quanto o de 1824 acabaram, como se


sabe, por assumir formas republicanas. Constituíram, pois, antecipações aos
projetos
insurgentes da Bahia (1837/38) e do Rio Grande do Sul (1835-45). Se os
historiado-
res revelam grande dificuldade para caracterizar o republicanismo vigente
nesses
movimentos do período regencial,49 maior ainda tem sido a estupefação e a
falta de
consenso diante daquele emergente em Pernambuco e nas províncias limítrofes
nos
anos densos que vão de 1817 a 1824. A esse respeito, João Paulo G. Pimenta
(2003:133) escreveu que a República de 1817, embora fosse norteada “por um
pro-
jeto politicamente vago e pouco articulado”, possuía um “caráter de frontal
contesta-
ção ao governo monárquico”, o qual era “dado pela recorrência a uma idéia
(igual-
mente vaga) de ‘república’, a qual se pretendia erguer na condição de um
modelo
político alternativo ao vigente”. Quais seriam, então, os modelos políticos
do movi-
mento de 1817 e 1824, considerando que ambos, como já se disse, tomaram uma
configuração republicana?
A esse respeito, a historiografia insiste em sublinhar as fontes
norte-americanas
e francesas dos movimentos políticos em questão, sustentando que os modelos
perse-
guidos pelo partido autonomista pernambucano não podem ter sido outros. Em
mais de um escrito, Evaldo Cabral de Mello argumenta que o republicanismo
ali-
mentado pelos autonomistas tinha semelhanças profundas com as doutrinas dos
founding fathers norte-americanos. Estes, segundo Mello (2001:31), “haviam
pensa-
do não em termos da independência dos Estados Unidos mas de uma Constituição
federal escrita para o Império Britânico”. Noutro texto, Mello (2004)
observa que
havia distintas visões constitucionais em jogo na América do Norte, mas
também na
América espanhola. Ora, havia diferenças de graus de autonomia dos corpos
políti-
48 Leite, 1989:118.
49 Souza, 1987.

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15:03
366 A independência brasileira

cos locais entre os Articles of Confederation, de 15 de novembro de 1777, e


o texto
prevalecente da Constituição de 1787. Aquele tinha aspecto confederativo, ao
passo
que o segundo formatava uma federação com poderes centrais e sem interesse
de
associação com outros corpos políticos. Para Mello (2004:6-8), “Frei Caneca
pensa-
va antes em termos do sistema norte-americano dos Articles of Confederation
do que
na Constituição federal de 1787, nos quais os Estados haviam preservado
feixe me-
nos amplo de poderes”. Fosse como fosse, para Mello, pairava no horizonte
ideológi-
co dos partidários da autonomia provincial em Pernambuco principalmente a
expe-
riência norte-americana.
Por sua vez, Leite (1988:194) notou que o “ideário político” dos
revolucioná-
rios de 1817 incluía uma “idéia de liberdade” cuja fundamentação repousava
na
“luta contra o sistema colonial”. Sua inspiração estava diretamente
relacionada às
formas políticas, mormente republicanas, presentes na experiência de “outras
nações
da América, em especial os Estados Unidos”. Nessa direção, um aspecto
anedótico
acena para o fato, incluído na defesa do conselheiro do governo
revolucionário, José
Pereira Caldas, de que este fora cognominado o “Franklin” do Brasil. Ao
mesmo
tempo, o tratamento de “vós” e o apelativo “patriota”, presentes naquele
“ideário”,
seriam reflexos, ainda conforme Leite (1988), da “influência francesa”
atribuída ao
movimento. A argumentação de Bernardes (2003b:225) segue a mesma linha. Para
este, no Pernambuco de 1817 e de 1824, “dois acontecimentos externos
constituí-
ram importante referência e fonte de inspiração: a independência das treze
colônias
da América inglesa (1776) e a Revolução Francesa (1789)”.
Reiterando a idéia segundo a qual as fontes de inspiração de 1817 em
particu-
lar, mas também de 1824, se situavam principalmente nos eventos localizados
nas
sociedades do Hemisfério Norte, a historiografia pouco atentou para os
vínculos
efetivos, traduzidos em formas institucionais, que as sociedades hispânicas
haviam for-
necido para a experiência revolucionária pernambucana. Primeiro, esses
vínculos
decorrem da própria proximidade temporal das duas experiências: como se
sabe, as
guerras contra a metrópole no Vice-Reinado do Prata haviam começado no
início da
década de 1810, indo até julho de 1816, quando se estabeleceu a
independência das
Provincias Unidas en Sud América. Estas, articuladas por laços federativos,
constituí-
am diferentes unidades estatais portadoras de distintos projetos nacionais,
os quais
tenderiam a confrontar-se com os ideais centralizadores de Buenos Aires,
notada-
mente após 1819, quando uma Constituição comum fora elaborada.50 Assim,
havia

50 Pimenta, 2002:160-161.

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O avesso da
independência 367

em 1817 um modelo de luta política antimonárquica bem mais próximo e efetivo


que os freqüentemente evocados pela historiografia.
Segundo, em vez de se insistir no vínculo do ideário da República de
Pernambuco
com o “exemplo” da América do Norte, ou de retomar aspectos anedóticos, como
o
referente ao “Franklin do Brasil”, mais decisivo é explicar a natureza das
formas insti-
tucionais adotadas em 1817 — notadamente a junta de governo — bem como seu
republicanismo — geralmente descrito como “confuso” ou “genérico”. Aliás,
tais
confusão e generalidade talvez decorram do aspecto federativo, já antes
presente na
experiência das Províncias Unidas do Sul da América, e que fora muito mal
compre-
endido pelos contemporâneos. Em 1823, ao conhecer o projeto autonomista
pernambucano, o cônsul da França em Pernambuco, Lainé, escreveu que não
sabia
dar nome “a esta espécie de governo”, o qual acenava para a possibilidade de
que “o
Império se tornaria a união de estados bem distintos”. Argumentava ainda o
cônsul
em julho de 1823, isto é, um ano antes da Confederação do Equador, que era
sabe-
dor da formação de “um vasto complô” que buscava “do sul ao norte, Bahia,
Pernambuco, Paraíba etc., proclamarem-se repúblicas unidas”, isto é,
federadas.51
Esse tipo de aparente confusão estava na base dos projetos políticos
então vi-
gentes na bacia do rio da Prata, como destacou Chiaramonte (2001:24). Ali,
“pro-
víncia” acabou se tornando sinônimo de “Estado”: “depois da chamada
‘anarquia do
ano 20’”, argumenta o historiador argentino, “as províncias foram assumindo
expli-
citamente sua independência soberana, ao mesmo tempo em que persistiam em
ten-
tativas de união”. Inscrevem-se nesse processo os tantos “pactos
interprovinciais”,
cuja série fora iniciada “pelo Tratado de Pilar de fevereiro de 1820”.
Assim, pois, o
que seriam os pactos senão “formas de relação entre entidades soberanas”?
Ademais,
a própria promulgação de “textos constitucionais, a partir do Regulamento
Provisó-
rio Santafesino de 1819”, traduzia igualmente “a necessidade de regulamentar
o exer-
cício das atribuições soberanas dessas províncias-Estados”.
Ora, a instituição das juntas provisórias de governo nasceu em
ambiente espa-
nhol na década de 1800, mas foi no universo da América do Sul que ganhou
relevo
surpreendente. A partir de 1810, tais formas institucionais — as juntas —
estavam
presentes em Caracas, Buenos Aires, Santa Fé de Bogotá, Santiago do Chile e
Quito.
Contudo, tratou-se de aspecto especificamente americano a união dessa
instituição
com o federalismo, que articulava a criação de vastos corpos políticos e
forte autono-
mia provincial. O surgimento de tais fenômenos políticos, como sugere
Pimenta

51 Mello, 2001:32.

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15:03
368 A independência brasileira

(2003:124), era “de domínio público nos principais centros da América


portuguesa,
sendo acompanhado com vivo interesse pelos homens de Estado e todos os
demais
interessados em política”.
Frei Caneca lia e citava no Typhis Pernambucano tanto o Argos, de
Buenos Aires,
quanto o Aurora, de Montevidéu. Antes disso, conhecera provavelmente o
Censor e a
Gazeta de Buenos Ayres, ambos publicados na capital portenha antes de 1820.
As
citações do Typhis, que apareceu apenas em dezembro de 1823, ocorriam num
tem-
po em que esses periódicos platinos não eram lidos como fontes de inspiração
exter-
na, mas como reforço da luta política local. Na edição de 27 de maio de 1824
— às
vésperas da Confederação do Equador —, Caneca (2001:450) cita o Argos de 31
de
janeiro, como já foi indicado anteriormente, informando que neste se
escrevera que
os pernambucanos eram, então, “o povo mais enérgico e livre de toda a
América
Portuguesa”, os verdadeiros “defensores da liberdade brasileira”. Essas não
foram as
únicas referências a jornais portenhos contidas no Typhis.
Antes disso, porém, outros jornais platinos deram conta dos
acontecimentos de
Pernambuco e lamentaram a derrota da revolução de 1817. O Censor, de 1o de
maio
de 1817, informou que a revolução pernambucana resultara de uma “comoção po-
pular”, a qual depusera o governador e dera bases para o surgimento de “um
governo
de cinco pessoas ao qual prestou sua obediência toda a guarnição. Têm-se
tomado as
medidas mas ativas para sufocar a revolução que toma o caráter de uma
verdadeira
independência do rei e da metrópole”.52 Por sua vez, a Gazeta de Buenos
Ayres lamen-
tou, em sua edição de 2 de agosto de 1817, o fim do movimento das
“províncias do
Norte” da América portuguesa, mas evidenciou, ao mesmo tempo, o errado
cálculo
político de seus mentores.53
Simultaneamente, o exemplo vivo, móvel, em plena fermentação, das
Provín-
cias Unidas da América do Sul — que permaneceu no horizonte até pelo menos
1825 — acenou igualmente para a formatação federalista buscada junto às
outras
“províncias do Norte” tanto em 1817, quanto, principalmente, em 1824. Embora
a
expressão “Confederação do Equador”, principalmente em decorrência dos
vários
manifestos assinados por Manuel de Carvalho Paes de Andrade em 2 de julho,
tenha
se tornado usual para descrever o corpo político então surgido no norte da
América
portuguesa, observa-se em ata da reunião do Conselho do Governo de
Pernambuco
de 5 de agosto a inclusão de outra expressão para designá-lo. Naquela
sessão, oficiou-

52 Pimenta, 2002:159.
53 Ibid., p. 159-160.

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O
avesso da independência 369

se “aos Presidentes do Maranhão e Pará para se unirem à Confederação das


Provín-
cias do Norte”.54 Ora, essa expressão parece constituir um claro
contraponto, mas no
sentido da complementaridade, às “Províncias Unidas do Sul da América”.
Ademais, a memória nativista e revolucionária pernambucana, cunhada
anos
depois dos acontecimentos de 1817 e de 1824, reitera essa interpretação de
forma
contundente. Um revolucionário presente a ambos os movimentos — o mais tarde
comendador Antônio Joaquim de Melo — escreveu em duas biografias, destinadas
a
resgatar do esquecimento a memória daqueles anos, que os projetos políticos
emer-
gentes na bacia do rio da Prata constituíram a base das ações e dos
pensamentos dos
revolucionários de Pernambuco em 1817. Na biografia dedicada a Gervásio
Pires
Ferreira, observa que:

[os] povos limítrofes do Brasil haviam-se já erguido e lutavam


para sacudir o jugo
colonial e constituir-se em Nações livres; o exemplo era
fascinante e contagioso; e
já com temerária franqueza essas idéias e necessidades
enunciavam-se em
Pernambuco; nem faltava a inteligência, quando não alguma coisa
de liga, a res-
peito, em outras províncias do Norte.55

Escusado dizer que “alguma coisa de liga” diz respeito, evidentemente,


a con-
cepções de tipo federativo.
Por sua vez, na biografia dedicada a José da Natividade Saldanha, o
mesmo
biógrafo retoma essa tese ao também se referir ao movimento político de
1817:

Já os povos contérminos ao Sul e ao Poente do Brasil derramavam


em batalhas seu
robusto sangue para sacudirem o jugo colonial e constituírem-se
em Nações inde-
pendentes e livres. O não acompanhá-los esta outra parte da
América, o Brasil, em
tão generosa e sublime empresa, seria uma prova indeclinável de
seu atraso inte-
lectual e moral, de seu contentamento ou vil frieza nos ferros da
absoluta tirania
embrutecedora. Livrou-a, porém, deste opróbrio a província de
Pernambuco.

Ao se sublinhar os vínculos entre os projetos políticos das “províncias


do Norte”
e do antigo Vice-Reinado do Prata, não se quer, entretanto, desdenhar as
fontes de
inspiração constituídas pela revolução da América do Norte e pela Revolução
Francesa.

54 Cf. Sessão do dia 5 de agosto, em Atas do..., 1997, v. 1, p. 303.


55 Melo, 1973, v. I, p. 24.

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370 A independência brasileira

Mas há que se conferir o devido destaque aos acontecimentos do Prata, os


quais
forneceram aos revolucionários de Pernambuco, graças à sua proximidade
temporal,
espacial e cultural, certas formas institucionais — como a junta de governo
provisó-
rio — e uma noção, apenas aparentemente confusa, de federalismo.

Portugueses, sois pernambucanos!

Finalmente, é preciso esclarecer que uma diferença central separa o


ponto de
vista dos autonomistas pernambucanos daquele defendido na América espanhola.
Refiro-me ao fato de que, se ali, o conflito aberto e violento entre
peninsulares e
criollos manifestou-se de forma veemente, em Pernambuco a busca de
aproximação
entre “portugueses do Brasil” e “portugueses de Portugal” sempre foi uma
constante.
Ainda em 1817, a famosa Proclamação do Novo Governo de Pernambuco, elaborada
em início de março, expressava claramente que a “pátria é a nossa mãe comum,
vós
sois seus filhos, sois descendentes dos valorosos lusos, sois portugueses,
sois america-
nos, sois brasileiros, sois pernambucanos”.56 A revolução dirigia-se, pois,
contra o
rei, contra a monarquia, não contra os “portugueses de Portugal”.
“Poderíamos ler
nesta proclamação a intenção da permanência da unidade nacional luso-
brasileira?”
— indagou-se pertinentemente Maria de Lourdes Vianna Lyra (1994:167). Ou
esta-
riam os pernambucanos, como também notou a historiadora, “apenas buscando
as-
segurar o apoio, à causa da pátria, dos portugueses ali residentes?”.
Essa concepção paradoxal, mais tarde consagrada na dissertação de frei
Caneca
sobre a “pátria do cidadão”, está presente na carta enviada ao governo
republicano
dos Estados Unidos da América, datada de 12 de março de 1817. Nesta, o
governo
revolucionário de Pernambuco manifestava que seguia o “exemplo” de
“patriotismo”
dado pelos norte-americanos “ao mundo inteiro na vossa brilhante revolução
que
procuramos imitar”. Além disso, falava ali dos “nossos caracteres e
semelhança de
causa” e, claro, da falta de meios, que levava o governo provisório a
requisitar “auxí-
lios a que nos dá direito a vossa generosidade”. No entanto, na mesma carta
os
pernambucanos contrapunham-se claramente aos norte-americanos e à sua luta
anticolonial ao argumentar que a revolução das províncias do Norte da
América
portuguesa fora realizada por “patriotas brasileiros e europeus”. Mais
ainda, susten-
tavam que esta havia sido “firmada na mais perfeita união com os nossos
irmãos

56 Bonavides e Amaral, 2002, v. I, p. 463.

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15:03
O avesso da
independência 371

europeus, que conosco habitam”. Nada mais estranho, pois, às lutas


antieuropéias
tanto dos norte-americanos quanto dos hispano-americanos do sul.57
Ao tempo do constitucionalismo luso-brasileiro — de notória
aproximação com
a monarquia portuguesa —, Gervásio Pires Ferreira escreveu edital, datado de
18 de
setembro de 1821, dirigido aos comerciantes portugueses que insistiam em
deixar a
praça do Recife. Por meio daquele documento procurava fazê-los ver que
aquela
“retirada” apenas externava o pouco “respeito e afeição às Ordens do
Soberano Con-
gresso da Nação Portuguesa, de quem sois igualmente filhos”. Garantia,
ademais,
que seu governo provisório e constitucional “nunca distinguiu os Portugueses
pelo
local de seu nascimento, e que os mesmos membros que o compõem são oriundos
de
um e outro hemisfério”. Retomando os termos da Proclamação de 1817, o
presidente
da junta de governo reavivava o passado para “desassombrar” os reinóis:

A experiência de comportamento de vossos irmãos brasileiros no


espantoso dia 6 de
março e seguintes, apesar da intriga de alguns desgraçados, d’aquém e
d’além mar, (...)
vos deve ter convencido que os Portugueses-Brasileiros não vêem nos
Portugueses-
Europeus senão irmãos e amigos. A identidade de religião, de língua,
de costumes, as
mais estreitas relações de sangue, as mesmas leis e governo, e
sobretudo mútuos inte-
resses, esta mola real do coração humano, tudo afiança uma tão grata
verdade.58

Porém, a peça mais prolífica e mais brilhante de exortação da união


entre “euro-
peus” e “indígenas”, ou brasileiros, foi a famosa Dissertação sobre o que se
deve enten-
der por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, saída da
pena de frei
Caneca.59 Evaldo Cabral de Mello (2001:25) afirma que essa peça, escrita
“nos pri-
meiros dias do ano de 1822”, nas palavras do próprio frei Caneca (2001:53),
fora
elaborada para “dar formulação teórica a um dos principais objetivos de
Gervásio
Pires Ferreira, como seja conciliar o comércio português da província com a
nova
ordem das coisas”. Utilizando noções oriundas de Cícero Ático e de outros
autores
antigos, bem como de tratadistas da Era das Luzes, a exemplo de Pufendorff —
cujos
escritos sobre o direito das gentes influenciaram sobremaneira o carmelita
descalço —,
Caneca lamenta o fato de os “ingleses naturais dos Estados Unidos na
América”
terem se tornado “rivais dos ingleses europeus”. Essa “rivalidade”, ainda
conforme

57 Cf. Carta do Governo Provisório de Pernambuco ao presidente dos Estados


Unidos da América. Docu-
mentos Históricos, Recife, v. 101, p. 18-19, 12 mar. 1817.
58 Melo, 1973, v. I, p. 28-29.
59 Lyra, 1998.

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372 A independência brasileira

aquela dissertação, “cresceu tanto de ponto, pelos gravames da metrópole”,


que os
primeiros “chegaram finalmente a sacudir o jugo (...) reivindicando sua
liberdade
natural” e proclamando “sua independência”. “Quem ignora que esta mesma
rivali-
dade tem desmembrado a América Espanhola da sua metrópole européia?” Lem-
brando fatos da própria história local, como a guerra de 1710-12, lamentava
igual-
mente que esse “mau humor se tem estendido, porventura, mais em Pernambuco”
que em qualquer outra parte da América portuguesa. Sua argumentação seguia
na
mão oposta dos conceitos de pátria e nação então vigentes, e sugeria uma
tentativa de
construir uma visão alternativa deles. Assim, pois, para Caneca, “a pátria
do cidadão
não é só o lugar em que ele nasceu, como também aquele em que ele faz sua
morada e fixou
o estabelecimento”. Em outras palavras, “a pátria não é tanto o lugar em que
nascemos,
quanto aquele em que fazemos uma parte, e somos membros da sociedade”.60
Havia, conforme os “argumentos da razão”, a “pátria de lugar”, a
“pátria de
escolha” e, finalmente, a “pátria de direito”: cabia o reconhecimento da
necessidade
ou da indispensabilidade da “pátria de direito” àqueles que não podiam “ter
a de
lugar”. Como sintetizou Caneca (2001:74):

os portugueses europeus estabelecidos em Pernambuco, só pelo fato de


nele virem
habitar e estabelecer-se, são legítimos compatriotas desta
província, e ela sua pá-
tria de direito; e como tais devem ser reconhecidos pelos indígenas
de Pernambuco,
e amando-se fraternalmente, mostrarem que são cidadãos do mesmo foro
e direi-
to, uma só família de irmãos legais, sem jamais se distinguirem pela
fútil, prejudi-
cial e insubsistente diversidade de solo natal, detestando e
alongando de si a mal
entendida paixão de nação ou paisanismo.

Assim sendo, percebe-se que, ao longo dos anos cruciais da luta


política contra
o reino unido e pela autonomia provincial, isto é, de 1817 a 1822, o
antilusitanismo
não se manifestara em nenhum momento entre as elites locais. Bem ao
contrário, a
busca de uma união de vistas entre portugueses do Brasil e portugueses de
Portugal
constituiu uma meta constante e firmemente perseguida.61

60 Caneca, 2001:98, grifos no original.


61 Algo radicalmente diverso era proposto no contexto platino. Em Buenos
Aires, ou mesmo na Federação
artiguista, como mostrou Chiaramonte (2001:41-42), pátria não era lugar de
nascimento, nem muito me-
nos uma sociedade aberta que permitia a união de vistas entre americanos e
europeus. Antes, seu território
era toda a América e, mais importante, seus membros eram pessoas aqui
nascidas. Europeus, quaisquer que
fossem suas procedências, não poderiam ser membros da mesma “pátria”. Para
eles, não havia “pátria de
direito”. Ao mesmo tempo, a maior preocupação existente no território do
antigo Vice-Reino do Rio da Prata
dizia respeito às diferenças provinciais, as quais estorvavam, então, os
princípios da unidade na diversidade
confederativa (Pimenta, 2002:112).

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O avesso
da independência 373

Havia, pois, uma profunda diferença entre os conceitos de pátria de


frei Caneca
e aquele elaborado no calor das lutas antimetropolitanas no contexto do rio
da Prata.
Eles atendiam a realidades diversas e apontavam para o fato de estas serem
muito
mais vastas e poderosas que os aspectos comuns presentes nos seus projetos
políticos.
É verdade, porém, que, como demonstrou Mosher (2000b), um sentimento
antilusitano apareceria no Brasil nas décadas de 1830 e, principalmente, de
1840.
Este surgiu em decorrência da frustração, observada apenas entre os
liberais, causada
pelo peso e influência dos portugueses de nascimento na condução da vida
política
do império. Tratava-se, então, contraditoriamente, da retomada de um
princípio
político da luta anticolonial num contexto pós-colonial, mas ainda marcado
pela
herança do “viver em colônias”. Todavia, o que interessa a esta análise é a
ênfase posta
nos anos de 1817 a 1824 e, não, na exclusão dos portugueses da “pátria” ou
da vida
política da “nação”, mas na sua inclusão e conversão em “patriotas” da
América.
Assim, portanto, se havia paralelos na luta anticolonial de pernambucanos,
norte-
americanos e hispano-americanos, havia, ao mesmo tempo, uma diferença
ideológi-
ca essencial, que primava pela união entre europeus e “indígenas”.

“Pretos” e “pardos” no mundo político

Um aspecto marcante dos movimentos políticos verificados na província


de
Pernambuco entre 1817 e 1824 diz respeito ao grande número de pessoas comuns
que neles tomou parte. Carlos Guilherme Mota (1972:241-244) observa que
houve
uma mudança capital entre a inconfidência mineira de 1789 e a revolução
pernambucana de 1817 do ponto de vista das defesas de seus implicados.
Enquanto
na primeira atribuíram-se aos indivíduos e aos rigores do sistema colonial
os motivos
da conjura, em Pernambuco não se apresentou culpado, mas insistiu-se em que
o
movimento resultara do “poder irresistível” da “massa dos povos”, da “massa
enor-
me”, do “furor da plebe”, dos “povos desordenados”. Contudo, os “povos” aos
quais
tanto se referiam os observadores coevos da revolução não encontram
equivalência
na categoria homônima e típica do Antigo Regime. Nesse sentido, um
informante a
serviço de d. João VI escrevera em 15 de janeiro de 1818 que a “populaça” de
Pernambuco constituía uma “canalha que se compõe geralmente de mulatos,
negros
etc.”, a qual revelava-se “entusiasmada da palavra ‘liberdade’ que se
espalhou no
tempo da revolução”.62 Assim, pois, no bojo da crise do Antigo Regime nas
Améri-

62 Cf. Anônimo. Memórias históricas da revolução de Pernambuco e cartas.


Documentos Históricos, v. 107,
p. 230-265.

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374 A independência brasileira

cas, “pretos” e “pardos”63 — ou negros livres — adentravam num mundo


político
cujo acesso era, até então, dominado por grupos oligárquicos. Debelavam,
enfim,
princípios hierárquicos tradicionais associados à ordem aristocrática.
Evaldo Cabral de Mello (1997:22) nota que, longe de revelar papel
desprezível
na conjuntura marcada pelo processo de independência, a presença de pessoas
co-
muns nos movimentos da época pareceu determinar tanto a entrada de
Pernambuco
no “aprisco imperial” quanto, paradoxalmente, a liquidação das veleidades
democrá-
ticas e republicanas locais. Ora, foi na vaga do nativismo radical de início
do sécu-
lo XIX que se percebeu o apelo ilustrado, próprio dos novos tempos, que
conformara
o ingresso dos homens de baixa extração nos “negócios de brancos” da
província. Em
decorrência, nota-se que o segmento oligárquico da açucarocracia recua em
1817 e
tende a se aliar, daí por diante, ao projeto do Rio de Janeiro. “Ao vestir-
se um santo”,
diz Mello, “desvestiu-se o outro”, isto é, ao se apelar para a presença dos
setores de
baixa extração nos eventos ocorridos entre 1817 e 1824, a tendência assumida
pelos
grupos tradicionais vinculados à produção açucareira foi recuar
politicamente, o que,
passada a fase do constitucionalismo luso-brasileiro, equivalia a aderir ao
projeto do
Rio de Janeiro.64
Por outro lado, há que se indagar acerca dos interesses dos principais
grupos
locais — os que primavam pelo autonomismo provincial, por um lado, e os que
defendiam o centralismo ou a adesão da província ao projeto do Rio de
Janeiro, por
outro — em engajar “pretos” e “pardos” livres nas lutas políticas
posteriores à fase do
constitucionalismo luso-brasileiro. Carece, pois, como sublinha Carvalho
(2003:5),
investigar as redes de clientela e de poderes locais nos quais “pretos” e
“pardos” esta-
vam envolvidos em nome dos princípios políticos advogados por um e por outro
partido. Nessa direção, é pouco aconselhável associar, como o fez Bernardes
(2003b:
243), participação popular e autonomismo provincial. Escrevendo acerca da
crise do
constitucionalismo luso-brasileiro, esse historiador notou que, em
Pernambuco, a
adesão ao projeto do Rio de Janeiro fora obtida em decorrência da
“paradoxal, em-
bora breve, união entre os grandes proprietários de terras e escravos do sul
de
Pernambuco e a gente livre de cor do Recife”. Ora, não há paradoxo algum aí,
nem,
muito menos, tratou-se de aliança “breve”. Ambos os partidos que se
digladiaram na
província entre 1821 e 1824 buscaram o apoio dos negros livres locais para
levar a

63 A razão pela qual os termos “pretos” e “pardos” aparecem no texto sempre


entre aspas decorre do fato de
constituírem categorias nativas, ou noções coevas presentes nos documentos
da época aqui privilegiada —
século XVIII e início do XIX.
64 Carvalho, 1998.

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O
avesso da independência 375

cabo suas pretensões políticas. Aliás, as oscilações desses sujeitos entre o


autonomismo
e o centralismo acenam, curiosamente, para disposições que são específicas
dessa
camada da população.
Assim, as acusações que pesavam contra os negros livres envolvidos na
revolu-
ção de 1817 apontam para práticas e concepções políticas que apenas em parte
fo-
ram elaboradas em decorrência de contatos com ilustrados radicais. Em grande
me-
dida, elas surgiram em conversas nas oficinas artesanais, nas corporações
militares,
nos círculos familiares. É bastante ilustrativa, nesse sentido, a rede
formada por José
do Ó Barbosa, Francisco Dorneles Pessoa e Joaquim dos Santos. Todos eram
alfaia-
tes, da milícia dos “pardos” e parentes: Barbosa e Dorneles eram irmãos, e
Joaquim
dos Santos era genro de Barbosa. Barbosa fora acusado de rasgar “uma das
suas pa-
tentes publicamente (julga-se que a de tenente)”, de tê-la calcado “aos pés”
e de
proferir “coisas contra nosso Augusto Soberano, que até seria vergonhoso
repeti-
las”.65 Além disso, foi descrito como sujeito “influído. Tratou mal os
presos das Cin-
co Pontas. Falador descarado contra El Rei”. Sobre seu irmão, Francisco
Dorneles
Pessoa, pesavam acusações de igual teor: “Influído, falador, tratou mal os
presos das
Cinco Pontas, foi coronel de Caçadores pelos rebeldes”. Joaquim dos Santos
também
fora descrito como “influído”.66 Por sua vez, Joaquim Ramos de Almeida,
sargento-
mor do Terço Velho de Henriques, fora “acusado de ter assinado a Capitulação
e a
eleição dos governadores [provisórios]; de ter servido muito influído, e
coronel de
Caçadores; de ter sido declamador e na fugida dos rebeldes ter-se embrulhado
em
bandeira deles, dizendo primeiro havia morrer que deixar de defendê-la”.67
Assim sendo, creio que não se pode entender as ações e os pensamentos
das
pessoas comuns apenas em função das redes patronais nas quais se viam
envolvidas.
Elas, definitivamente, não constituíam “um corpo manietado”, disposto a
“seguir à
maneira dos rebanhos o exemplo dos primeiros”, como aduziam observadores
coevos.
Nessa direção, o senhor S. escreveu, em janeiro de 1818, que fizera amizade
com o
capitão do regimento dos “pardos” do Recife, José do Ó Barbosa, e com seu
genro,
furriel do mesmo regimento, Joaquim dos Santos. Estes, conforme o senhor S.,
“se
informaram de mim mesmo, sabendo que eu tinha estado nas Antilhas, da
maneira
que vivem os rebeldes de São Domingos. Eu lhes disse que muito mal; e
acrescentei:

65 Cf. Anônimo. Memórias históricas..., p. 256.


66 Cf. Relação dos réus que se mandaram prender em 5 de abril. Documentos
Históricos, Recife, v. 103, 20
jan. 1818.
67 Cf. Relação dos presos desde o dia 6 de fevereiro do corrente ano, com a
observação de suas culpas segundo
a minha lembrança, que entreguei ao juiz da alçada no dia 22 de abril.
Documentos Históricos, Recife, v. 106,
30 abr. 1818; Relação dos réus presos existentes na cadeia da Bahia.
Documentos Históricos, Salvador, v. 106,
p. 173-174, s.d.

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376 A independência brasileira

‘tudo quanto fizeram os franceses seus senhores, eles têm estragado e


arruinado e se
os ingleses os não patrocinassem, já há muito os tinha levado o demônio’.
Objeta-
ram-me em ar de mofa: ‘então só os brancos é que sabem conservar?’”. Esse
tipo de
raciocínio voltado para uma dimensão política na qual a variável racial
tinha papel
destacado — bem como atento a acontecimentos daquela conjuntura — levou o
senhor S. a afirmar, em fevereiro de 1818, que Barbosa e seu genro revelavam
a
“vontade de verem o Brasil qual São Domingos”, o que parece um notório
exagero.68
Na verdade, nem os negros livres, como grupo social, constituíam um
“corpo
manietado”, nem muito menos revelavam necessariamente propensão para o mode-
lo revolucionário radical, ou mesmo para seguir os passos do autonomismo
provin-
cial. Embora eles tivessem sido tocados, mesmo que indiretamente, pela
vertente
democrática das Luzes e olhassem acontecimentos como o de São Domingos com
grande entusiasmo — em particular por se tratar não de um “negócio de
brancos”,
mas de uma revolução de “pretos” —, seu horizonte estava confinado a uma
perspec-
tiva barroca de mundo.69 Nesta, as motivações, os interesses se
consubstanciavam na
obtenção de cargos, privilégios, isenções, soldos e promoções que poderiam
melho-
rar-lhes a vida, ou facilitar-lhes a ascensão social nos termos do Antigo
Regime. E tais
benesses tanto podiam ser ofertadas pela ilustração radical e autonomista
quanto
pela ilustração reformista e realista.
Isso explica, aliás, por que alguns desses homens tornaram-se
revolucionários
republicanos em 1817 para depois cederem aos encantos do projeto imperial do
Rio
de Janeiro, sem incorporarem, como fez frei Caneca, noções referentes ao
autonomismo ou à Federação. É provável que diferenças étnicas e raciais
pesassem
mais para alguns deles que projetos coletivos referentes à organização
política da
província em face do corpo unitário do império. O caso do coronel negro das
tropas
pagas, Pedro da Silva Pedroso, é exemplar. De revolucionário radical e
principal “he-
rói militar” em 1817, conforme uma testemunha ocular,70 passa a cooperar
direta-
mente, após a independência, com os grupos provinciais que tenderam a
aceitar os
termos do projeto político da corte fluminense, chegando mesmo a colaborar
na
ocupação do Recife pelas tropas fiéis a d. Pedro I quando da Confederação do
Equa-
dor.71 Ora, se não se pode imputar a Caneca qualquer “esquizofrenia
política” por

68 Cf. Anônimo. Memórias históricas..., p. 246-248.


69 Blackburn, 1997:20-23.
70 Martins, 1853:309-310.
71 Silva, 2003:515-520.

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15:03
O avesso da
independência 377

este ter louvado a independência e a coroa tropical em 1822 e ter-se voltado


contra o
império no ano seguinte, não se pode, igualmente, imputar ao negro Pedroso
nenhu-
ma “insatisfação psicológica” individual do “mulato mal-ajustado ao mundo
dos
brancos”, como sugeriu Gilberto Freyre (1961:108). Se Caneca privilegiava,
antes da
desejada unidade do império, a autonomia provincial — e não o mero
“separatis-
mo”, como sugeriu a historiografia saquarema —, no caso de Pedroso e de
outros
negros livres que vivenciaram as lutas políticas daqueles anos, é a tensão
entre aspira-
ções barrocas e ambigüidades ilustradas, vivida na estrutura social e na
estrutura social de
personalidade dos indivíduos,72 que explica tais ações e pensamentos, e não
qualquer
dimensão psicológica deformada ou mero oportunismo.
Além disso, depoimentos de “pretos” e “pardos” implicados naqueles
eventos
revelam que, se a ordem aristocrática e barroca os tratava como seres
carentes de
tutela e proteção, os revolucionários, por seu turno, negavam-lhes qualquer
autono-
mia, como aliás prescrevia o próprio receituário das Luzes em relação aos
negros.73
Defendendo o “preto” Joaquim Ramos de Almeida, o causídico Aragão e
Vasconce-
los informou, por exemplo, que:

[no] dia 27 de março, por ordem do governo, se juntaram os oficiais e


soldados
dos Regimentos de pretos. O General das Armas fez resenha, e dos dois
Regimen-
tos tirou oficiais e soldados que lhe pareceu e formalizou um
Batalhão e o entre-
gou ao réu para o comandar dando-lhe o nome de coronel (...) O
batalhão era
pequeno, e todo bizonho, e aumentado com escravos, que se tiraram à
força de
seus senhores: esta gente, como é público, foi mandada disciplinar
por oficiais
brancos, aquartelada na Soledade, atalaida pela cavalaria de
brancos.74

A despeito das informações evidentemente distorcidas pelo advogado, o


que se
percebe nesse depoimento é que os conflitos raciais se estenderam revolução
adentro,
criando atritos entre revolucionários de distintas cores, de diferentes
grupos raciais.
Assim sendo, quanto à sorte dos negros, o pensamento ilustrado dos
homens de
Estado e dos revolucionários radicais parecia ser, em essência, o mesmo:
buscava-se
tão-somente agregar forças às causas de um ou outro partido. Suas
preocupações
gravitavam em torno das distintas ênfases sobre a autonomia provincial, da
adesão ao

72Elias, 1993:193-274.
73Pimentel, 1995.
74Cf. Defesa de Joaquim Ramos de Almeida pelo advogado Antonio Luis de Brito
Aragão e Vasconcelos.
Documentos Históricos, Salvador, v. 109, p. 217-220, s.d.

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378 A independência brasileira

império unitário, ou dos diversos modos de pactuar entre governantes e


governados.
Disseminar em certas circunstâncias “idéias de igualdade” era fato
importante, mas
estas, como afirmou um repressor do movimento de 1817, foram “embutidas aos
pardos e pretos” porque “lhes afiançavam o bom êxito pelo aumento
considerável do
seu partido”.75 Cabia aos negros, e apenas a estes, obter melhores posições
no mundo
político marcado pelas Luzes em que insistiam em penetrar, mesmo que assim
proce-
dessem em busca de bens simbólicos e materiais tipicamente barrocos.

Conclusões: algumas trajetórias

As trajetórias posteriores a 1824 de brancos e negros, ricos e pobres,


grandes
proprietários de terras e grandes comerciantes, padres e militares são assaz
reveladoras
dos estigmas sociais, ou das benesses inerentes a certas posições sociais.
Se todos eram
“pernambucanos” ou “patriotas” em 1817 ou ao tempo da Confederação do Equa-
dor, seus destinos revelaram-se diferentes, e isso provavelmente por causa
de suas
distintas origens sociais.
O poeta e advogado mulato José da Natividade Saldanha, secretário do
governo
de Paes de Andrade entre dezembro de 1823 e agosto de 1824, partiu de
Pernambuco
logo após a derrota da confederação, conseguindo asilo nos Estados Unidos da
Amé-
rica. Na Filadélfia, soube, talvez pela primeira vez, que era negro, ao ser
enxotado por
esse motivo de uma hospedaria onde jantava com outros brasileiros e alguns
ameri-
canos. Da Filadélfia seguiu para Nova York, onde passou pelo mesmo vexame, e
daí
migrou para Paris. Chegando à França durante a conjuntura desfavorável de
1820-
28, marcada pela restauração dos Bourbon, Saldanha acabou expulso do país em
janeiro de 1825. Deixando a França, passou alguns dias em Londres, mas,
saindo da
Europa e voltando à América, refugiou-se na Grã-Colômbia. Em Caracas, tomou
conhecimento da sentença de morte proferida contra ele em 26 de abril de
1825, a
qual recebera várias assinaturas, entre as quais a do juiz relator Tomás
Xavier Garcia
de Almeida. Em 13 de agosto de 1825, enviou procuração a Pernambuco
designan-
do “o Ilmo. Sr. Bacharel Tomás Xavier Garcia de Almeida para que, em meu
lugar,
como se eu próprio fora, possa morrer enforcado e sofrer quaisquer castigos,
desautorizações e penas que a Comissão Militar julgar conveniente impor-me,
pois,
75Cf. Carta de João Osório de Castro e Souza Falcão a Tomás Vila Nova
Portugal. Documentos Históricos,
Recife, v. 103, p. 109-110, 17 mar. 1818.

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O avesso da
independência 379

para tudo lhe concedo os amplos poderes que o Direito me permite”. Saldanha
mor-
reu de forma obscura em Caracas, em 1832, na rua, numa noite de
tempestade.76
Sorte bastante diferente teve o grande comerciante e presidente da
Confedera-
ção do Equador Manuel de Carvalho Paes de Andrade. Em setembro de 1824,
toma-
do o Recife pelas tropas de Lima e Silva, partiu Andrade para a Inglaterra.
Ali se
estabeleceu até a queda do imperador Pedro I. Regressando ao Brasil em
dezembro
de 1831, elegeu-se deputado provincial por Pernambuco em 1833, mas sequer
to-
mou posse, uma vez que foi nomeado senador pela Paraíba em janeiro de 1834.
Em
4 de junho do mesmo ano a regência o fez presidente da província de
Pernambuco.
Em 1840, reconciliou-se com inimigos de outrora. Por convite de seu colega
de
Senado por Pernambuco, Antônio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti de
Albuquerque, mais tarde visconde de Albuquerque, passou a integrar o grupo
parla-
mentar que pugnava pela aprovação da maioridade de d. Pedro II. Naquela
circuns-
tância foi retórico: “tenho entrado em revoluções para derrubar, mas não
para levan-
tar reis. Assim o querem, eu os acompanho”. Andrade morreu no Rio de
Janeiro, em
1855, na condição de senador do império e de coronel de legião da Guarda
Nacio-
nal.77
A trajetória dos centralistas foi bem mais prestigiosa, fossem eles
brancos ou
“pretos”. Depois de participar da repressão à Confederação do Equador, o
militar
negro Pedro da Silva Pedroso viveu no Rio de Janeiro até sua morte. Em 1834,
ouviu
dizer na corte que José Bonifácio fora quem primeiro dera o grito da
independência.
Em contrapartida, fez publicar na Bússola da Liberdade, na edição de 20 de
setembro
daquele ano, uma nota com o seguinte teor:

Não pude ouvir a sangue frio que o Senhor Dr. José Bonifácio fosse o
primeiro
que desse o grito de independência do Brasil: esta glória só a mim
pertence, por-
que eu é que fui o primeiro que na cidade do Recife de Pernambuco, a
6 de março
de 1817 pelas 2 horas da tarde, fiz soar esta palavra mágica, que ao
depois foi
ecoada em 7 de setembro de 1822 pelo Sr. Dr. José Bonifácio de
Andrada nos
campos do Ipiranga. Perdoe-me! O seu a seu dono.78
Menos folclórica foi a trajetória dos ricos e brancos membros da
açucarocracia
pernambucana. Francisco Paes Barreto, o morgado do Cabo, líder local da
repressão

76 Saldanha, 1988:23-35; Melo, 1895:67-71.


77 Costa, 1882:653-662.
78 Ibid., p. 762-763.

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15:03
380 A independência brasileira

à Confederação do Equador, tornou-se armeiro-mor de d. Pedro I e, depois,


mar-
quês do Recife. Os irmãos Cavalcanti também receberam títulos: três se
tornaram
viscondes e um barão. Três também tornaram-se senadores. Protagonizaram,
desse
modo, o único caso de três irmãos senadores do Brasil imperial.79 Francisco
de Paula
Cavalcanti de Albuquerque, o mais velho, tornou-se visconde de Suassuna.
Ocupou
a vice-presidência da província em caráter quase permanente entre 1826 e
1844. Em
várias ocasiões viu-se na contingência de exercer a função de presidente.
Foi ministro
da Guerra entre 1840 e 1841.80 Seu irmão, Antônio Francisco de Paula e
Holanda
Cavalcanti de Albuquerque, visconde de Albuquerque, foi duas vezes ministro:
da
Marinha, em 1844, e da Fazenda, em 1862. É de sua autoria projeto
apresentado ao
Senado em 1840 considerando maior um jovem imperador de apenas 14 anos.81
Nota-se, pois, que ao longo da história do império o adesismo pernambucano
cons-
tituiu um dos pilares da monarquia, o que lhe facultou amplas recompensas da
corte
fluminense.
Finalmente, é fato que várias trajetórias políticas seguiram os
passos da revolu-
ção fosse lá onde esta se encontrasse. O general revolucionário Abreu e Lima
saiu de
Pernambuco em 1817 e foi servir ao Exército de Bolívar na Grã-Colômbia. O
mes-
mo destino teve o militar pardo Emiliano Felipe Benício Mundrucu, que em
1826
enviou carta aos exércitos da Grã-Colômbia informando ser “um republicano a
mais,
(...) um irmão vosso de armas: desejo naturalizar-me entre alguns, desejo
igualmente
alistar-me entre vós”.82 Revolucionários oriundos de outras latitudes
acabaram por
encontrar seu destino em Pernambuco, ao longo da guerra civil que ganhou
foro
internacional de luta contra o despotismo monárquico — fosse este qual
fosse. O
português João Soares Lisboa, que publicava o Correio do Rio de Janeiro em
1822 —
recebendo, inclusive, contribuições de frei Caneca em forma de artigos —,
foi con-
denado a deixar o Brasil em 1823, após sair da cadeia. Contudo, desembarcou
em
Pernambuco, onde lutou pela Confederação do Equador. Nesse desiderato encon-
trou a morte em combate a 30 de setembro de 1824.83 Vinculados de alguma
forma
à revolução de Pernambuco, o português Joaquim da Silva Loureiro, o
português
filho de ingleses João Guilherme Radcliffe e o maltês John Metrowich
acabaram

79 Carvalho, 1998.
80 Costa, 1882:370.
81 Ibid., p. 96.
82 Saldanha, 1988:195-199.
83 Mello, 2001:33.

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15:03
O avesso da
independência 381

enforcados na praça do Rio de Janeiro.84 Ao todo, 32 pessoas receberam a


mesma
pena, mas apenas 16 foram executadas.85 O número de mortos por condenação à
pena capital aproximou-se, pois, daquele referente à repressão ao movimento
de 1817.
Naquele ano, chegou-se a 13 pessoas.
Pernambuco, como espaço físico, sofreu graves retaliações: em setembro
de
1817 perdeu a comarca de Alagoas e, em 1824, a de São Francisco. Esta, que
representava 80% de seu território, ou 266 mil quilômetros, tornou-se parte
da
província da Bahia.86
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, após uma tresloucada fuga para o
inte-
rior da província, foi preso e fuzilado na Fortaleza das Cinco Pontas a 13
de janeiro
de 1825.87 Foi vítima, como muitos outros, da independência pelo avesso.

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PARTE IV

O Brasil e a América hispânica na


era das independências

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Capítulo 11

Independências americanas na era das


revoluções: conexões, contextos, comparações*
Anthony
McFarlane

Q uando o Brasil se tornou independente em 1822, juntou-se ao crescente


nú-
mero de colônias européias nas Américas que haviam rompido com suas
res-
pectivas metrópoles e se transformado em países autônomos. A secessão do
Brasil em
relação a Portugal deu-se de maneira diversa daquelas levadas a cabo pelas
colônias
da América hispânica em seus processos de ruptura com a metrópole espanhola.
A
independência destas foi, em regra, a culminação de batalhas armadas
prolongadas,
que desaguaram na fundação de repúblicas, enquanto o Brasil passou por uma
trans-
formação relativamente curta e pacífica para se tornar um reino
independente. Não
obstante tantas especificidades, a transição do Brasil de colônia a Estado
indepen-
dente inseriu-se num movimento mais amplo das colônias ibéricas na América
de
oposição ao jugo colonial. Esse movimento teve início com a grande crise das
mo-
narquias ibéricas de 1807/08, quando os reis das casas de Bragança e Bourbon
foram
destituídos de seus tronos mercê da invasão napoleônica da península
Ibérica, e atin-
giu o auge mais de uma década depois, entre 1820 e 1825, quando nasceu a
maioria
das modernas repúblicas da América Latina — ou, melhor dizendo, renasceu,
uma
vez que muitas regiões haviam se livrado temporariamente do controle
espanhol em
1810-15 — durante a campanha dos exércitos libertadores liderados por Simon
Bolívar
e José de San Martin, que avançaram a partir de suas bases no norte e
nordeste dos

* Tradução de Jurandir Malerba.

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388 A independência brasileira

Andes. No lapso de uma década, um longo e inédito movimento de independência


culminou na emergência de um punhado de Estados e na extinção final do
poderio
ibérico em todas as partes da América. Primeiramente, o ataque bem-sucedido
de
Bolívar sobre Nova Granada foi seguido da criação da República da Colômbia
em
1820; a invasão do Peru por San Martin produziu a declaração da
independência
peruana em 1821, a qual, embora inicialmente restrita a Lima, abriu uma nova
fase
na guerra contra a Espanha nos Andes e conduziu finalmente à fundação da
Repúbli-
ca do Peru, em 1821, e da Bolívia, em 1826. Nesse ínterim, o México pôs fim
ao
domínio do vice-reinado em 1821 e, por um breve período, tornou-se uma
monar-
quia independente com um monarca mexicano à testa, antes de se converter na
Re-
pública do México em 1822, mesmo ano em que o Brasil se tornou a única
monar-
quia independente do continente. O colapso do domínio espanhol e português,
assim,
mais ou menos se completou no começo dos anos 1820. A Espanha manteve ainda
uma base de apoio no Caribe, em Cuba e Porto Rico, mas por volta de 1825 seu
governo já havia sido completamente expulso do continente americano, o mesmo
ocorrendo com o de Portugal.
A culminância da independência na América espanhola constitui um marco
histórico maior, claramente visível para os observadores da época e para os
historia-
dores desse período. Foi, antes de mais nada, um momento decisivo na
história das
Américas. O fim do jugo ibérico no continente americano parece ter concluído
um
processo mais amplo de libertação que começou em 1776, quando 13 colônias da
América do Norte declararam sua independência da Grã-Bretanha e mostraram
que
era possível a criação de Estados independentes, livres das amarras da
governança
européia. Com o estabelecimento de Estados totalmente independentes por todo
o
espectro territorial e político da América Latina, do México, na América do
Norte,
ao Chile, no extremo sul do continente, os diversos povos que se haviam
unido sob o
domínio espanhol e português, como os povos dos Estados Unidos, estavam
agora
livres para perseguir seus próprios desígnios, sob regimes constitucionais
que defen-
diam os direitos dos indivíduos e a soberania dos povos. Este foi também um
mo-
mento-chave da história européia. A independência das Américas inglesa e
latina não
só encerrou efetivamente a primeira época do colonialismo europeu no
hemisfério
ocidental (meros remanescentes permaneceram no Canadá, no Caribe e nas
Guianas),
mas também se conectou a uma crise maior na Europa. Durante esses mesmos
anos,
as grandes potências foram abaladas por guerras e revoluções que
transformaram
radicalmente Estados e sociedades, anteriormente submetidos ao controle
incontes-
tável de reis e do clero. Enquanto as colônias convertiam-se em Estados
independen-
tes na América, os reinos transformavam-se em modernos Estados-nações por
toda a

Untitled-1 388 08/08/2014, 15:03


Independências americanas na era das
revoluções 389

Europa ocidental, num claro prelúdio ao célere processo de mudança do qual


uma
segunda onda de expansão imperialista nasceria ao longo do século XIX.
A história da desintegração dos impérios europeus nas Américas durante
o meio
século posterior a 1776 gerou uma vasta literatura, na qual a emergência dos
Estados
que surgiram com o fim do domínio colonial foi estudada de muitas
perspectivas. As
histórias mais antigas tendem a ter um tom patriótico, visando mostrar o
“nascimen-
to da nação” como um triunfo de incipientes comunidades nacionais. As
histórias
mais recentes são mais propensas a enfocar conflitos ou continuidades
sociais, ou os
tropos ideológicos da independência, ou o papel desempenhado por histórias
de
independência na construção de mitos nacionalistas. A maioria, contudo,
continuou
a enfocar a independência de um ponto de vista eminentemente nacional,
prestando
relativamente pouca atenção a possíveis ligações entre os movimentos de
indepen-
dência no norte e no sul, ou em similaridades e diferenças de origens,
desenvolvi-
mentos e resultados.
Isso não é de surpreender. Primeiro, os historiadores das repúblicas
americanas
estão mais preocupados em examinar suas histórias de independência em busca
de
respostas para questões sobre os desdobramentos subseqüentes da nação e,
portanto,
mais propensos a enfatizar especificidades regionais do que a estabelecer
paralelos
com outros Estados latino-americanos. Por outro lado, a maioria reconhece a
impor-
tância de influências externas na feitura da independência — seja de
tradições euro-
péias do pensamento político, dos exemplos políticos das revoluções francesa
e ame-
ricana, ou da mudança na balança de poder na Europa — e implicitamente
aceita
que houve alguns processos gerais de mudança política. Isso se aplica
particularmen-
te aos historiadores da América hispânica, que têm consciência de que as
repúblicas
hispano-americanas, quaisquer que fossem suas diferenças, emergiram todas da
mes-
ma estrutura colonial e em meio à mesma crise imperial. Neste capítulo,
contudo,
vamos tomar um quadro de referência mais amplo e comparar as histórias de
inde-
pendência nas Américas inglesa, francesa, espanhola e portuguesa, com vistas
a
identificar suas similaridades e diferenças, assim como quaisquer outros
padrões co-
muns que as possam ligar.
Uma estrutura importante para se comparar as revoluções americanas vem
de
historiadores que conceituaram o período que se estende de 1776 a 1848 como
uma
“era das revoluções”, uma grande crise histórica que transformou a Europa
ocidental
e suas colônias transatlânticas na virada do século XVIII para o XIX. Uma
variante-
chave desse conceito é a da “revolução democrática” ou “revolução
atlântica”, moti-
vada primeiramente por idéias e valores derivados das revoluções francesa e
america-
na e que apresentam uma flagrante identidade de princípios e propósitos.
Assim, R.

Untitled-1 389 08/08/2014,


15:03
390 A independência brasileira

R. Palmer (1959-64) viu a Revolução Americana como a fonte das modernas


doutri-
nas de direitos individuais e soberania popular, de liberdade e igualdade,
que os
revolucionários franceses tomaram como inspiração e como programa de
transfor-
mação da sociedade. O mecanismo da Revolução Francesa também foi tomado de
empréstimo de sua antecessora americana, com a assembléia constituinte, a
declara-
ção de direitos e a Constituição escrita como elementos-chave para a
definição do
novo Estado republicano, num modelo que subseqüentemente se espraiou pela
Eu-
ropa seguindo a trilha do Exército revolucionário francês. Jacques Godechot
(1965)
também considerou as revoluções americana e francesa como as principais
molas
propulsoras de mudança numa Revolução Atlântica, geradoras e difusoras de
novas
idéias filosóficas e políticas que interagiram com insatisfações e
dissidências onde
quer que tenham chegado, inclusive na América ibérica.
A ênfase no impacto ideológico das revoluções americana e francesa via
propa-
gação do conceito de direitos universais é central para o conceito de
“revolução atlân-
tica”. Tal conceito, diz-se, espraiou-se amplamente porque os meios de
difusão de
notícias e idéias, e suas áreas de recepção, estavam se expandindo no final
do sécu-
lo XVIII. Entre as elites educadas da Europa e de suas colônias, a
multiplicação de
fóruns para a disseminação e discussão de idéias suscitou a descrença nos
axiomas
sociais e políticos da ordem monárquica: uma imprensa periódica em rápida
expan-
são, combinada a novas formas de associação civil em cafés e agremiações
literárias e
científicas, fomentou a difusão de notícias e uma propensão à “filosofia
natural” que
era implicitamente crítica quanto às velhas formas de conhecimento e
autoridade,
criando um cadinho cultural no qual idéias e valores estabelecidos eram
questiona-
dos, desafiados e (re)significados. No outro extremo social, os movimentos
do prole-
tariado marítimo que tripulava a Marinha européia espalharam idéias de
liberdade
de porto em porto, alcançando inclusive os escravos africanos que abasteciam
de
mão-de-obra as plantações do Caribe.1 Christopher Alan Bayly (2004:86-92)
suge-
riu recentemente que a esfera da influência comercial e militar européia
transoceânica
foi tal que a era das revoluções teve repercussões para muito além do mundo
atlânti-
co. Em sua opinião, as revoluções americanas e européias foram simplesmente
o
aspecto ocidental de distúrbios políticos e econômicos mais amplos que se
estende-
ram da África à Ásia, constituindo uma “primeira crise global”, na qual as
doutrinas
dos direitos naturais e da soberania popular encarnadas pelas revoluções
americana e

1 Linebaugh e Rediker, 2000.

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Independências americanas na era das
revoluções 391

francesa nutriram dissidências locais contra os sistemas políticos


estabelecidos em
regiões distantes dos centros daquelas revoluções.
Mesmo quando se aceita o quadro histórico de uma “era das revoluções”
alicerçada nas revoluções americana e francesa, ainda se fica, porém, com
muitas
questões em aberto sobre o caráter e as conexões das revoluções que puseram
fim aos
impérios europeus pela América afora, substituindo-os por nações-Estado
indepen-
dentes. Benedict Anderson (1991:47-65) apresentou uma boa explicação da
razão
pela qual as ex-colônias assumiram a forma de nações-Estado quando, na
América
espanhola, não tinham quaisquer das características — como diferentes
línguas, cul-
turas, histórias — que usualmente alimentam o nacionalismo: ele argumenta
que o
“capitalismo impresso” europeu desempenhou papel fundamental no sentido de
tor-
nar as nações-Estado a meta e o resultado da independência, ao fornecer os
meios às
elites urbanas para formarem “comunidades imaginadas” que abarcavam a
totalida-
de dos territórios coloniais. Mas essa é uma explicação sociológica de por
que as
nações-Estado emergiram das lutas pela independência, a qual, embora aponte
para
uma unidade subjacente da América espanhola independente, não explica as
origens
dos movimentos de independência nas Américas, nem compara suas
características.
Quais são, então, as conexões, os contextos e as comparações entre
esses movi-
mentos? As revoluções políticas na América Latina foram elementos de um
movi-
mento mais amplo de transformação política e cultural na Europa e seus
domínios
americanos, um movimento rumo à modernidade que, conforme Palmer e Godechot
afirmam, teve origem na América do Norte, recobrou energia na França e então
se
espalhou por todo o mundo atlântico? Em caso positivo, que ligações e
interconexões
facilitaram a disseminação da revolução? Quais as semelhanças e as
diferenças entre
as origens e as formas de independência nas Américas? Como as revoluções
foram
afetadas pelas diversas estruturas socioeconômicas e tradições culturais e
políticas? Se
percorreram trajetórias distintas, como e por que seus resultados variaram?

Conexões

Houve, por certo, inúmeras diferenças entre as revoluções que


produziram Es-
tados independentes nas Américas, e alguns historiadores vêem tais
diferenças como
mais significativas que quaisquer semelhanças. Assim, o recente trabalho
comparati-
vo de Lester Langley (1996) sugere que as diferenças entre as revoluções que
se disse-
minaram pela América britânica, São Domingo e pelas colônias continentais
espa-
nholas sobrepujaram quaisquer semelhanças e, enfatizando suas
especificidades, o
autor prefere explicar seu caráter e resultados fazendo menção ao “caos dos
tempos”.

Untitled-1 391 08/08/2014,


15:03
392 A independência brasileira

Porém, quando se reflete sobre as origens das revoluções, é evidente que


elas pelo
menos se constituíram numa estrutura comum de competição política e
interação
ideológica entre os impérios euro-americanos do século XVIII.2
Em primeiro lugar, as independências americanas devem ser vistas no
contexto
de uma intensa e crescente competição entre as principais potências
européias duran-
te o final do século XVIII e início do XIX, especialmente entre França e
Grã-Bretanha.
As rebeliões coloniais nas Américas sempre estiveram ligadas a conflitos
entre suas
respectivas metrópoles européias; na verdade, todas surgiram, direta ou
indiretamen-
te, de guerras entre as potências que se propagaram para suas esferas
coloniais. Du-
rante a primeira metade do século XVIII, a competição entre as potências
passou a se
manifestar cada vez mais em guerras que se disseminaram além-mar e que
visavam
assegurar vantagens territoriais e comerciais. Essa tendência era
especialmente visível
nos conflitos entre a Grã-Bretanha e a França, mas também afetou a Espanha,
ligada
por aliança dinástica à França e, em menor medida, a Portugal, cada vez mais
próxi-
mo da Inglaterra. A Espanha estava mais exposta a conflitos internacionais,
uma vez
que os Bourbon espanhóis se mostravam determinados a restabelecer o poder e
o
prestígio da monarquia Habsburgo, explorando de forma mais eficiente seu
império
americano numa época em que os ingleses estavam cada vez mais decididos a
fazer
incursões comerciais e territoriais naquele império. Conflitos decorrentes
do comér-
cio colonial e de imperativos territoriais eram, pois, uma fonte freqüente
de atrito
entre a Inglaterra e a Espanha, assim como entre a Inglaterra e a França, e
essa com-
petição ganhou força em meados do século, por ocasião da Guerra dos Sete
Anos.
A Guerra dos Sete Anos constituiu um ponto de inflexão nas relações
da Euro-
pa com as Américas: foi a guerra imperial mais longa e onerosa jamais
empreendida
entre as potências européias e teve conseqüências duradouras para a forma de
ser e o
futuro do império nas Américas. O resultado da Guerra dos Sete Anos (1756-
63) foi
uma mudança na balança do poder colonial. No Tratado de Paz de Paris, em
1763, a
França perdeu o Canadá, a Espanha perdeu suas terras na Flórida, e ambas as
potên-
cias passaram a sonhar com a vingança em uma futura guerra. Seu desejo de
recupe-
rar as perdas sofridas na Guerra dos Sete Anos e de deter a expansão
comercial e
territorial inglesa encontrou uma oportunidade de se realizar quando as
colônias
inglesas da América do Norte se rebelaram em 1775/76. A França rapidamente
se

2 Neste ensaio, remeto-me a outros estudos comparativos das Américas,


publicados antes do trabalho de
Langley, a saber: McFarlane, 1984; Bushnell, 1999:69-83; Hamnett, s.d.:279-
328. Para uma exposição
geral da queda dos impérios espanhol e português, com comparações entre o
Brasil e a América espanhola,
ver Halperín-Donghi, 1985.

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08/08/2014, 15:03
Independências americanas na
era das revoluções 393

alinhou aos rebeldes britânicos, seguida pela Espanha, quando ambas


aproveitaram a
chance de declarar guerra à Inglaterra, enquanto esta lutava contra sua
população
colonial. O apoio que proporcionaram, em especial as forças navais
francesas, foi
vital para o sucesso da Revolução Americana. Porém, o triunfo da monarquia
france-
sa foi breve. Embora a França tivesse sido bem-sucedida em fazer a
Inglaterra perder
suas principais colônias norte-americanas, o alto custo da guerra contribuiu
para a
falência do Tesouro francês, para o enfraquecimento da autoridade da
monarquia e a
exacerbação dos antagonismos dentro da França, e para o surgimento de um
conflito
político interno que levaria a uma convulsão ainda maior conhecida como a
Revolu-
ção Francesa.
A revolução na França, por sua vez, abriu caminho para um levante
revolucio-
nário na América francesa. Em São Domingos, a mais rica das colônias
francesas
remanescentes, a crítica à monarquia parisiense ensejou ataques ao Antigo
Regime
na colônia, uma vez que as elites grand blanc que dependiam da escravidão e
da
cultura açucareira desafiaram o monopólio mercantil francês e os petit
blancs e mula-
tos livres passaram a exigir mais direitos de cidadania em relação às elites
grand blanc.
Embora não objetivasse a revolução ou a independência da França, essa
divisão en-
fraqueceu a hegemonia branca e, a partir de 1790, abriu espaço para
insurreições e
hostilidades por parte dos escravos, as quais foram gradualmente minando o
domí-
nio francês e levaram à independência do Haiti em 1804. A extraordinária
rebelião
escrava em São Domingos não desafiou apenas o governo francês ali vigente;
tam-
bém encontrou eco entre as comunidades escravas, incentivando conspirações
contra
os brancos e gerando pânico entre os proprietários de escravos do Caribe,
especial-
mente nas costas vizinhas hispano-americanas da Venezuela e de Nova
Granada.3
Além disso, o exemplo da República francesa também repercutiu nos círculos
nati-
vos4 instruídos, nos quais, aliado ao exemplo dos Estados Unidos, acentuou o
inte-
resse em alternativas ao sistema existente. Tal interesse em geral se
restringia à discus-
são e ao debate, mas acabou se convertendo em conspirações revolucionárias
contra
o domínio colonial. Em Minas Gerais (1788/89), Nova Granada (1794) e
Venezuela
(1797), nativos inspirados nas revoluções francesa e americana sonharam em
substi-

3 Helg, 2004:109; e Lynch, 1973:193-194.


4 N. do T.: O autor usa aqui o termo creole, que designa o homem branco,
descendente de espanhol ou
francês nascido na América Latina. Como o uso do termo “crioulo” em língua
portuguesa tem uma acepção
diferente, relacionada com a miscigenação racial (e muitas vezes empregada
pejorativamente), optei pelo
emprego do termo “nativo” — embora consciente de que ainda é impróprio, haja
vista que, por exemplo,
nem todos os envolvidos nas conspirações que grassaram pela América Latina
na segunda metade do século
XVIII eram nascidos na região, mas, em muitos casos, espanhóis ou
portugueses radicados.

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08/08/2014, 15:03
394 A independência brasileira

tuir os governos coloniais por repúblicas livres. Nenhum conseguiu obter o


apoio de
suas sociedades, nas quais a maioria dos nativos via a monarquia como o
esteio de
suas posições privilegiadas na ordem social; não obstante, as atividades de
tais dissi-
dentes refletem a difusão da nova linguagem do republicanismo entre as
elites colo-
niais, munindo-as de uma visão política e um repertório que, mais tarde,
seriam
utilizados contra o poder das metrópoles.
O impacto político da Revolução Francesa na América ibérica foi maior,
contu-
do, quando a transformação do Estado francês de monarquia em uma agressiva
re-
pública revolucionária atingiu sua fase de expansão napoleônica, depois de
1799.
Pois Portugal e Espanha foram as monarquias mais atingidas pela expansão
política e
militar de Napoleão. Tendo conseguido se isolar dos assaltos ideológicos do
revolucionarismo francês por mais de uma década, elas não lograram, porém,
resistir
ao poderio militar de Napoleão, quando este mobilizou suas tropas rumo à
penínsu-
la Ibérica em 1807/08. O desejo de Napoleão de converter Portugal e Espanha
em
Estados satélites — e assim ampliar os recursos de seus impérios — teve
efeitos dramá-
ticos. Primeiramente, derrubou temporariamente as dinastias de Bragança e
Bourbon
em 1807 e 1808; em segundo lugar, quebrou os acordos tácitos — os “pactos
coloniais”
— que tradicionalmente sustentavam os sistemas políticos desses impérios.
A monarquia portuguesa desvencilhou-se da crise com uma única tacada,
des-
locando a coroa e a corte para o Brasil; a monarquia espanhola dos Bourbon
padeceu
de um destino mais humilhante. Outrora aliado da França, o regime espanhol
ima-
ginou que poderia sobreviver com Napoleão, mas foi traído, deposto e sua
família
real capturada pelo general francês. Esse fato deflagrou uma profunda crise
política
na metrópole e em suas colônias. Quando os legalistas espanhóis lutaram para
orga-
nizar uma guerra de libertação nacional contra as forças francesas na
península,
conclamaram os hispano-americanos a lhes dar apoio, acenando-lhes com uma
re-
forma constitucional que transformaria as relações coloniais. Contudo, ao
despertar
o interesse colonial em uma reforma política significativa, a Espanha então
perdeu
sua credibilidade. Quando a junta central caiu sob a pressão militar
francesa, os
colonos das cidades americanas mais importantes decidiram se livrar da
regência
espanhola e, em 1810, começaram a estabelecer seus próprios governos
autônomos,
que, embora proclamassem sua lealdade à Espanha, rejeitaram a regência e as
cortes
de Cádis.
Os danos colaterais que as potências ibéricas sofreram em suas
colônias como
resultado da invasão napoleônica foram, assim, muito maiores na América
espanho-
la do que na América portuguesa. Entre 1810 e 1814, todos os vice-reinados,
à
exceção dos dois mais antigos — Nova Espanha e Peru —, romperam com o domí-

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Independências americanas na era das
revoluções 395

nio espanhol, disseminando a guerra entre a Espanha e seus súditos coloniais


para as
principais regiões coloniais. O colonialismo português na América sofreu
menos. A
transferência do governo real para o outro lado do Atlântico não só impediu
a captu-
ra da coroa, como também garantiu a continuidade do domínio português no
Brasil
e preservou a pedra angular do império português durante anos, enquanto a
Espanha
teve que lutar para defender e recuperar sua autoridade colonial.
As guerras européias, as insurreições coloniais e o abafamento dessas
subleva-
ções entre 1810 e 1814, porém, causaram fissuras nos impérios que nunca
puderam
ser completamente reparadas. Com a ajuda britânica, as monarquias ibéricas
se de-
fenderam, e depois foram restauradas, mas os anos de crise política deixaram
marcas
profundas, particularmente nas relações com as colônias.
Em 1814, Fernando VII retornou ao trono espanhol e, por volta de 1816,
recu-
perou o controle de toda América espanhola, com exceção do rio da Prata. No
entan-
to, seus esforços para restabelecer a autoridade real sobre as colônias não
lograram
restaurar o status quo anterior, num mundo onde muitos hispano-americanos
ti-
nham aprendido a viver livres do jugo espanhol e resistiram a sua retomada.
A partir
de zonas de refúgio na Venezuela e na Argentina, Bolívar e San Martin
montaram
exércitos para a libertação continental da América do Sul e, por volta de
1820, ha-
viam conseguido acabar com o domínio espanhol em áreas estratégicas. Os
proble-
mas militares espanhóis foram agravados por crises políticas: o desgaste
causado pe-
las guerras coloniais precipitou uma revolução liberal na Espanha em 1820, e
os
esforços do governo liberal para restabelecer sua autoridade sobre as
colônias no
contexto de um regime constitucional apenas aceleraram a separação. Em 1821,
o
México declarou sua independência; em 1824, o Peru; em 1825, o Peru
Setentrio-
nal, o último baluarte importante espanhol nos continentes americanos, caiu
ante os
exércitos de Bolívar. Até mesmo o Brasil, que permanecera relativamente
imune às
convulsões na década seguinte a 1807, deu sinais de crescente dissidência no
período
pós-napoleônico, quando Portugal procurou exercer um controle mais incisivo.
Em
1815, o Brasil foi elevado à condição de reino e d. João trouxe de volta
grande parte
do Exército português para servir de apoio a seus desígnios imperialistas
sobre a
Banda Oriental do rio da Prata. Mas esse envolvimento maior no projeto
imperial
não satisfez a todos os brasileiros. Em 1817, a consolidação do regime real
foi desa-
fiada por um levante republicano em Pernambuco, o qual, embora não tenha
conse-
guido ir além da cidade de Recife, refletiu o crescente ressentimento
brasileiro em
relação aos muitos imigrantes e soldados chegados de Portugal. Como na
Espanha, a
mudança foi pouco depois precipitada pela crise política metropolitana: a
revolução
liberal de 1820 em Portugal, fomentada pela da Espanha, procurou congregar
as

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15:03
396 A independência brasileira

províncias brasileiras num regime constitucionalista sediado em Lisboa;


porém, tal
como ocorrera com os constitucionalistas espanhóis, só conseguiu convencer
as elites
coloniais de que a ruptura era uma solução melhor.
A disseminação da independência pelas Américas constitui, pois,
claramente,
parte de um modelo mais amplo, no sentido de que todas as secessões
coloniais
estavam estreitamente ligadas à guerra crescente entre as potências
coloniais euro-
péias. A guerra por si só, contudo, não causou a dissensão colonial. A
rigor, os colo-
nos eram geralmente aliados entusiastas nas guerras coloniais: anglo-
americanos, por
exemplo, contribuíram enormemente para a vitória inglesa na Guerra dos Sete
Anos,
enquanto os hispânicos da América igualmente se empenharam na defesa das
forta-
lezas coloniais espanholas contra os ataques britânicos.5 O que fez da
guerra uma
fonte de ruptura para todos os impérios coloniais foi seu impacto nos laços
políticos
que mantinham esses impérios coesos. A guerra causou a ruptura colonial
porque
seus altos custos fizeram os governos metropolitanos exigir mudanças que os
colonos
execraram. Quando as monarquias metropolitanas saíram à cata de recursos
para
lutar suas guerras cada vez mais dispendiosas — ou obstaculizar o acesso de
seus
inimigos a tais recursos —, iniciaram uma reorganização inédita das relações
com
suas colônias, principalmente ao impor normas econômicas e exigências
fiscais mais
onerosas. Tais “modernizações defensivas” tinham várias facetas, mas um
objetivo
claro era forçar as colônias a contribuir mais para sanar as necessidades
fiscais e eco-
nômicas do Estado metropolitano, em suma, a se comportar como colônias, em
vez
de províncias autônomas. As diversas reformas levadas a cabo por ministros
britâni-
cos em 1765-74, as reformas dos ministros de Carlos III na América espanhola
em
1776-84 e as políticas pombalinas para o Brasil entre 1750 e 1777, todas
tiveram um
mesmo propósito básico: subordinar mais rigidamente suas respectivas
colônias às
metrópoles e delas extrair mais recursos.
Essas reformas, por seu turno, desaguaram em crises políticas, uma vez
que os
colonos — que já haviam se acostumado com um controle menos rígido da metró-
pole — rejeitaram impostos mais pesados e ingerências em sua autonomia
local. Isso
foi particularmente óbvio na América do Norte inglesa, onde era permitido às
elites
locais eleitas legislar por conta própria em assembléias representativas,
que julgavam
ser equivalentes coloniais do Parlamento britânico. Suas pretensões de
autogoverno
foram afrontadas por tributações à sua revelia, e seus protestos foram
apoiados pela

5 Sobre a participação das colônias inglesas na guerra da Inglaterra contra


a França e a Espanha, ver, por
exemplo, Anderson, 2000.

Untitled-1 396
08/08/2014, 15:03
Independências americanas na
era das revoluções 397

população, que se opunha a pagar mais impostos. Tipos similares de


dissidência
colonial também aconteceram nas colônias espanholas e portuguesas. Embora
go-
vernadas por um absolutismo teórico, as colônias ibéricas, como as anglo-
america-
nas, estavam acostumadas a baixa tributação e a uma administração mediada
pelas
leis informais das elites sociais nativas. Esses “pactos coloniais” tácitos
foram postos
em xeque quando as metrópoles procuraram exercer mais autoridade e tomar
para si
uma parcela maior dos recursos coloniais por volta do final da década de
1770 e
começo da seguinte, o que provocou protestos entre os colonos, os quais, no
que diz
respeito a motivos, comparavam-se àqueles da América do Norte. Assim,
enquanto
as colônias anglo-americanas passaram gradativamente do protesto ruidoso ao
con-
fronto armado no período que se estende de 1765 a 1783, os colonos da
América
espanhola também resistiram às reformas fiscais e políticas introduzidas
pela monar-
quia Bourbon. As reformas bourbônicas, cujo objetivo era aumentar a
eficiência da
administração e do fisco, produziram a rebelião de Quito em 1765/66, e
deflagraram
as rebeliões de Túpac Amaru no Peru, em 1780, e dos Comuneros em Nova
Granada,
em 1781.6 Portugal tampouco escapou. Embora as reformas pombalinas no Brasil
não tenham provocado uma revolta imediata (provavelmente porque ele deixou a
administração fiscal nas mãos de notáveis locais, em vez de introduzir uma
nova
burocracia coletora), a determinação do governo metropolitano de fazer os
brasilei-
ros contribuírem mais para o Tesouro real acabou sendo um estímulo
importante à
rebelião para os conspiradores da Inconfidência Mineira de 1788/89.
No começo, as rebeliões coloniais contra as reformas foram
invariavelmente
conservadoras: eram protestos objetivando preservar o status quo das
inovações me-
tropolitanas; inicialmente, causaram uma crise constitucional nas estruturas
da mo-
narquia, em vez de tentar subvertê-las. Por muitos anos, os colonos anglo-
america-
nos apelaram à coroa para terem reconhecidos seus direitos de permitir a
cobrança de
impostos; de negociar e de manter a Constituição; a princípio, viam a si
mesmos
defendendo o status quo e não subvertendo-o. Da mesma maneira, os líderes
das
rebeliões de Quito, Nova Granada e Peru, com seu lema “Vida longa ao rei e
abaixo
o mau governo”, opuseram-se aos ministros metropolitanos que implementaram
as
reformas, em vez de desafiar o princípio da monarquia ou as instituições do
governo
real.7 Essas rebeliões das décadas de reformas imperiais nos anos 1770 e
1780 dife-

6 Ver McFarlane, 1989:283-330; e Phelan, 1978. A literatura sobre Túpac


Amaru é mais ampla: para inter-
pretações, ver os ensaios de Flores Galindo, 1976, e Stern, 1987. Para
monografias sobre a conjuntura
econômica e social da rebelião, ver Godoy, 1985; Cornblit, 1995; e Stavig,
1999. Sobre as dimensões cultu-
rais e ideológicas, ver Szeminski, 1982.
7 Para uma comparação dessas rebeliões, ver McFarlane, 1995; ver também
Godoy, 1992.

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08/08/2014, 15:03
398 A independência brasileira

riam justamente em sua capacidade de transformação. Se tiveram uma matriz


co-
mum de oposição às reformas, foi apenas na América do Norte britânica que os
protestos contra as novas políticas passaram diretamente ao ataque à
autoridade im-
perial, expresso na guerra contra a metrópole e no estabelecimento de um
Estado
republicano inteiramente novo. Os opositores das políticas metropolitanas
demora-
ram muito mais para passar a desejar a independência na América ibérica, por
razões
que se tornam mais claras quando se comparam as estruturas sociais e as
culturas
políticas das colônias anglo-americanas e latino-americanas.

Contextos

Desde o início, as sociedades coloniais euro-americanas se


desenvolveram se-
guindo linhas bem distintas. As colônias criadas pela Espanha e por Portugal
no
século XVI eram socialmente hierárquicas, politicamente autoritárias e
uniformes do
ponto de vista religioso. Em suma, se assemelhavam a seus criadores
europeus, mas
com uma característica muito especial: sustentavam-se explorando povos não-
euro-
peus. As colônias hispano-americanas se originaram de conquistas pela espada
de
sociedades ameríndias e desenvolveram estruturas sociais e econômicas nas
quais
uma pequena minoria de brancos, concentrando nas mãos o direito à
propriedade,
prestígio social e postos políticos, dominava massas subalternas de índios e
mestiços.
Os colonizadores espanhóis e seus descendentes almejavam uma réplica de suas
co-
munidades e culturas: o desenvolvimento da mineração do ouro e da prata
tornou
isso possível por financiar o governo real, a evangelização cristã, a Igreja
Católica e o
comércio transatlântico de produtos manufaturados e outras mercadorias
européias,
essenciais à manutenção de um estilo de vida similar ao da sociedade da
metrópole.
A sociedade colonial portuguesa trilhou caminho semelhante no Brasil.
Aqui, a
sociedade colonial também tinha por característica a concentração da riqueza
e do
poder nas mãos dos colonizadores brancos, que procuravam imitar os valores e
o
comportamento da sociedade metropolitana, mas com algumas diferenças essen-
ciais. No Brasil, o açúcar desempenhou o papel da prata na América espanhola
como
o produit moteur para o desenvolvimento colonial, e os latifúndios
produtores de
açúcar dependiam do trabalho dos escravos importados da África, em vez dos
cam-
poneses indígenas americanos. A cultura do Brasil colonial, portanto, foi
construída
mais a partir de interações de europeus com africanos do que as culturas da
América
espanhola, nas quais as interações com os índios tiveram um impacto social e
cultu-
ral muito maior.

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15:03
Independências americanas na era
das revoluções 399

O modelo brasileiro de desenvolvimento colonial expandiu sua


influência para
além das fronteiras da América portuguesa. Quando outras potências européias
esta-
beleceram colônias nas Américas no século XVII, o desenvolvimento das
sociedades
que dependiam da exportação do açúcar para a Europa e da importação de
escravos
da África espraiou-se para as colônias inglesas e francesas do Caribe.
Quando seu
crescimento se acelerou, no século XVIII, as ilhas das Grandes Antilhas e
das Peque-
nas Antilhas foram transformadas em sociedades escravocratas, nas quais
minorias
brancas dominavam imensas massas de escravos negros. Barbados foi o
protótipo
inglês de sociedade escravista no século XVII; São Domingos tornou-se a mais
bem-
sucedida sociedade escravista francesa no século XVIII, quando a importação
maciça
de escravos a tornou a maior produtora de açúcar do Caribe.
Contudo, o açúcar e a escravidão eram apenas uma faceta do
colonialismo eu-
ropeu nas Américas, sendo a outra radicalmente diferente. Embora a primeira
colô-
nia inglesa da Virgínia tenha se desenvolvido como uma sociedade agrícola e,
mais
tarde, trilhado o caminho da escravidão, outras regiões da América do Norte
inglesa
se desenvolveram seguindo uma linha bem diferente. As colônias da Nova
Inglaterra,
em primeiro lugar, e, depois, as da Pensilvânia, Nova Jersey e Nova York não
se
desenvolveram nem conquistando índios, nem importando escravos. Foram
erigidas
por imigrantes europeus, que se estabeleceram como pequenos proprietários de
terra
em comunidades autônomas e que praticavam muitas formas de cristianismo
protes-
tante, em vez de se unirem sob a égide de uma única Igreja.8
Essa sociedade se modificou à medida que sua população e seu comércio
se
expandiram, tornando-se mais desigual na distribuição da riqueza e do poder
duran-
te o século XVIII. Mas, apesar disso, a América do Norte britânica continuou
a ser
fundamentalmente diferente de suas congêneres ibéricas no que tange à
cultura polí-
tica e social. Enquanto as colônias ibéricas estabelecidas no século XVI
haviam her-
dado as instituições de uma monarquia autocrática, católica e contra-
reformista, as
comunidades inglesas estabelecidas no século XVII foram fundadas por
dissidentes
religiosos que, como ramos heterodoxos de uma sociedade metropolitana
cindida
por conflitos religiosos, almejavam criar novas sociedades no Novo Mundo.
Sua des-
confiança da coroa e da Igreja e sua preferência por formas de gestão
comunitárias
encontraram espaço para medrar em meio aos intensos conflitos políticos da
Ingla-
terra de meados do século XVII e da subseqüente adoção, lá, de uma limitada
mo-

8 Para um esboço do desenvolvimento das sociedades coloniais britânicas, e


algumas comparações com a
colonização ibero-americana, ver McFarlane, 1992.

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400 A independência brasileira

narquia constitucional, que assentiu na representação popular. Dentro dessa


estrutu-
ra, os norte-americanos desenvolveram políticas amplamente autônomas,
geridas por
elites terratenentes e mercantis independentes, que exerciam sua influência
política
por meio de assembléias coloniais que estabeleciam suas próprias leis. Essas
elites
acabaram vendo o império como uma espécie de estrutura federativa, unida por
fidelidade a uma coroa comum, na qual desfrutavam dos mesmos direitos de
repre-
sentação e participação no governo que os free born Englishmen.9
Na América ibérica, ao contrário, não se pensava muito em governo
constitu-
cional. Nas Américas espanhola e portuguesa, os conselhos municipais serviam
de
fórum institucional para a representação direta dos pontos de vista
coloniais, mas
eram muito mais fracos e menos representativos do que as assembléias das
colônias
britânicas, e o governo real muito mais forte. Foi em parte por isso que as
grandes
rebeliões ocorridas na América espanhola não conseguiram representar sérias
amea-
ças ao governo colonial: elas tendiam a ser urbanas, invocavam velhas idéias
sobre
privilégios provinciais (fueros) e não dispunham de instituições
representativas por
meio das quais pudessem organizar uma oposição coerente que mobilizasse as
pes-
soas além das fronteiras locais e regionais. Também encontravam dificuldade
de for-
jar alianças entre raças e classes sociais. Diferentemente das colônias
anglo-america-
nas, onde a maioria dos índios vivia distante dos limites dos povoados
brancos, colônias
como o Peru e a Nova Espanha tinham grandes populações indígenas em seus
cen-
tros urbanos, o que constituía uma fonte permanente de ansiedade para
brancos e
mestiços que, em geral, temiam mais insurreições indígenas do que
desgostavam do
domínio espanhol. Assim, ao contrário dos rebeldes norte-americanos, cujas
assem-
bléias coloniais serviam de meio para a discussão e a mobilização políticas,
e cujas
idéias de representação apresentavam alternativas para a monarquia, os
rebeldes
hispano-americanos prendiam-se ao passado. Preocupavam-se em defender a
velha
ordem contra uma monarquia modernizante e não arredavam pé desse propósito.
No Peru, líderes rebeldes indígenas como Túpac Amaru e outros talvez
sonhassem
em restaurar um imaginário reino inca, mas a “utopia andina” era uma visão
sem
consistência política. Na América espanhola, o respeito à monarquia
permaneceu
arraigado no discurso político, mesmo entre os rebeldes, que, na Nova
Granada ou
no Peru, ignoravam a alternativa republicana que estava sendo buscada pela
revo-
lução norte-americana. A visão republicana só penetrou na consciência dos
colo-
nos ibero-americanos uma década mais tarde, quando a existência dos Estados

9 N. do T.: Os “ingleses nascidos livres”.

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15:03
Independências americanas
na era das revoluções 401

Unidos e a eclosão da Revolução Francesa estimularam o interesse pela


“Constitui-
ção da Filadélfia”.
Foi, pois, apenas na esteira das revoluções americana e francesa que
as elites
instruídas das Américas espanhola e portuguesa começaram a discernir novas
formas
políticas e a vislumbrar visões de um futuro fora da monarquia. Isso em
parte resul-
tou da exposição a idéias oriundas do Iluminismo europeu, o qual, desde
cerca de
meados do século, começou a impregnar o discurso dessas elites. A “filosofia
da
natureza” derivada da Ilustração atraiu particularmente as gerações mais
jovens de
nativos, para quem a ciência natural propiciou a crítica do conhecimento
estabeleci-
do e de seus agentes, assim como um estímulo para definir e defender suas
identida-
des americanas contra o preconceito europeu.10 Porém, as novas correntes
ideológi-
cas que fluíram do Iluminismo não incitaram necessariamente a oposição ao
domínio
colonial. Os intelectuais brasileiros transformaram a crítica iluminista ao
absolutis-
mo europeu em crítica ao regime colonial em 1788/89; então, e à medida que
notí-
cias da Revolução Francesa se difundiam no começo da década de 1790, os
dissiden-
tes hispano-americanos também passaram a enfatizar o conteúdo político das
críticas
iluministas à monarquia e encontraram inspiração na Declaração de
Independência
americana, e de seu subproduto, a Declaração francesa dos Direitos do Homem.
Contudo, as idéias iluministas eram disseminadas principalmente pelos canais
ofi-
ciais das monarquias reformistas, e tendiam a ser identificadas com a
reforma do
modelo existente, e não com uma ruptura em relação a ele. Isso é
especialmente
evidente no caso da América espanhola durante os anos em que o reformismo
Bourbon
estava no auge, na década de 1780 e começo da de 1790. Nessa época, a coroa
promoveu um grande impulso na inovação intelectual ao encorajar o
“conhecimento
útil”, promover a reforma universitária, financiar a pesquisa científica e
permitir a
difusão da imprensa periódica dedicada à divulgação de notícias oficiais e à
discussão
de projetos de fomento do progresso econômico e social.
As novas formas de pensar e se comportar foram aos poucos corroendo a
auto-
ridade espanhola e portuguesa nas colônias. Primeiro, o compromisso com
idéias
iluministas tendeu a reforçar o “patriotismo nativo”,11 o que foi mais
evidente na
América hispânica, onde declarações nativistas de pertencimento a “pátrias”
regio-
nais recobraram energia com novas e positivas avaliações de seu potencial
econômico
e social, e onde a preferência iluminista pela meritocracia em detrimento da
aristo-

10 Gerbi, 1973.
11 N. do T.: Creole patriotism no original.

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402 A independência brasileira

cracia atraiu uma geração mais nova de nativos, empenhada em reivindicar seu
direi-
to de participar do governo.12 Segundo, quando as monarquias ibéricas se
enfraque-
ceram durante as grandes guerras européias da virada do século, as idéias
iluministas
foram uma fonte de crítica às instituições e políticas coloniais.
Entretanto, embora as
idéias oriundas do Iluminismo e das revoluções americana e francesa tenham
intro-
duzido importantes e novas correntes de pensamento nas culturas políticas
ibero-
americanas, não modificaram essas culturas políticas, nem interagiram com o
des-
contentamento social de modo a deflagrar movimentos pela independência, como
aconteceu nas colônias da América do Norte. Longe de se tornarem
politicamente
radicais por tal exposição a novos modos de ver o mundo, os nativos
progressistas
estavam mais propensos a ver a monarquia, essencialmente, como uma promotora
de progresso em sociedades provincianas profundamente conservadoras e em
grande
parte iletradas.13 Sua visão da monarquia como a forma “natural” de governo
e sua
crença nos vínculos estabelecidos com as metrópoles só foram seriamente
abaladas
quando as potências ibéricas entraram em crise em 1807/08. Enquanto a
Revolução
Americana se alimentou do crescimento gradual da oposição ao governo
metropoli-
tano em 1765-75, as revoluções pela independência na América ibérica se
origina-
ram do súbito colapso dos governos metropolitanos em seus territórios
europeus.

Comparações

É nos contextos políticos em que a crise colonial surgiu que se


encontra uma
das diferenças mais evidentes entre os movimentos americanos pela
independência.
Os rebeldes norte-americanos enfrentaram uma metrópole cujo poderio estava
no
auge, após os triunfos militares da Guerra dos Sete Anos. Os ingleses haviam
expul-
sado os franceses do Canadá, removido a Espanha da região estrategicamente
impor-
tante da Flórida, e pareciam prontos para uma nova fase de expansão imperial
que
aumentaria sua influência tanto na América quanto na Ásia. Na verdade, foi
esse
novo poderio que precipitou a resistência dos colonos. Pois, quando a Grã-
Bretanha
começou a policiar a fronteira ocidental, a governar o Canadá e a expandir
suas
forças armadas numa escala compatível com sua nova posição de potência
dominan-
te na América do Norte, assumiu as feições de uma tirania que o pensamento
políti-

12 Sobre o “patriotismo nativo” e suas ligações com o Iluminismo, ver


Brading, 1973 e 1991.
13 Sobre o Iluminismo hispano-americano, ver Góngora, 1975:177-193. Para um
excelente estudo de caso
da Ilustração numa cidade e região da América espanhola, ver Silva, 2002.

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Independências americanas na era das
revoluções 403

co inglês havia ensinado os colonos americanos a temer. Para se defender, os


colonos
dissidentes passaram a se representar como “ingleses nascidos livres”, os
guardiões de
antigas liberdades contra os ministros corruptos e despóticos da metrópole.
Porém,
conquanto a rebelião anglo-americana tenha começado como um comportamento
de defesa e não de repúdio ao governo britânico, rapidamente se radicalizou
quando
a Grã-Bretanha se recusou a ver as coisas dessa maneira. Muitos americanos
opositores
da política britânica buscaram a conciliação por meio de um arranjo
constitucional
que permitiria que o poder fosse compartilhado entre Londres e as colônias;
quando
Londres se negou a negociar, confirmaram-se os temores norte-americanos de
que as
liberdades a que davam tanto valor estavam em perigo, e isso ajudou a tornar
a defesa
da “liberdade” em uma causa comum que ligou cidades, regiões, ricos e
pobres.
As revoluções de São Domingos e da América espanhola originaram-se de
crises
completamente diferentes. Elas foram causadas mais pelo colapso da monarquia
na
própria Europa do que pela afirmação de seu poderio na América. Primeiro, o
ani-
quilamento do domínio francês em São Domingos começou em meio ao colapso do
Antigo Regime na França, sendo a revolução colonial apenas uma extensão dos
acon-
tecimentos revolucionários na própria metrópole. A população branca de São
Do-
mingos reagiu aos distúrbios na França, também se dividindo: plantadores de
cana-
de-açúcar e os proprietários de escravos tentaram acabar com o monopólio
comercial
francês, enquanto os petit blancs desafiavam o poder dos ricos grand blancs.
Os ne-
gros livres aproveitaram a chance, oferecida por uma Assembléia francesa que
decla-
rara todos os homens iguais, para reivindicar a igualdade com os brancos. Os
escra-
vos, por seu turno, também vislumbraram uma oportunidade de obter a
liberdade e,
em 1791, deflagraram uma série de sangrentas insurreições que abalaram o
sistema
escravista em que se baseava a sociedade colonial. Por mais de uma década,
sucessivos
governos franceses procuraram restabelecer a colônia, mas ficou evidente a
impossi-
bilidade de essa sociedade escravista se recuperar das repercussões da crise
francesa.
Quando as forças rebeldes de escravos, sob o comando de Toussaint
L’Ouverture,
tornaram-se dominantes no início do século XIX, até mesmo o prestígio
político de
Napoleão e seu poderio militar nada puderam fazer. Quando Napoleão tentou
restau-
rar a velha ordem de plantações e escravidão, os mestiços e negros livres
formaram uma
frente comum e suas rebeliões fundiram-se numa luta armada pela
independência. O
resultado foi o Estado independente do Haiti, proclamado em 1o de janeiro de
1804.14

14 Geggus, 1982; e Fick, 1990.

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15:03
404 A independência brasileira

Os governos coloniais na América espanhola também foram derrubados,


assim
como o de São Domingos, pelas ondas de choque causadas pela crise e pelo
colapso
das metrópoles. Embora a Espanha tenha conseguido resistir às ameaças de
subversão
decorrentes da Revolução Francesa no início da década de 1790, e
restabelecido sua
aliança com a França em 1796, não pôde evitar as conseqüências catastróficas
de seu
envolvimento no ciclo de guerras revolucionárias que sacudiram a Europa.
Em 1808, a aliança da Espanha com a França nas guerras contra a Grã-
Bretanha,
que prejudicaram seu comércio, enfraqueceram seu poderio naval e militar, e
mina-
ram as finanças e o prestígio de sua monarquia, culminou com a tomada do
trono
espanhol por Napoleão Bonaparte e em sua tentativa de criar ali uma
monarquia
vassala, com seu irmão José como rei. O resultado foi uma guerra de
libertação na-
cional na Espanha entre 1808 e 1813, e o início de uma enorme crise na
América
espanhola. Com a queda da monarquia, os legalistas espanhóis estabeleceram
um
governo interino que, durante os anos de 1809 e 1810, foi se transformando
em um
novo regime constitucional. Como os americanos e os franceses antes deles,
os espa-
nhóis da península abraçaram as idéias de direitos individuais e soberania
popular e
adotaram o projeto de uma assembléia constituinte, com o fim de instalar um
novo
governo no lugar do rei Bourbon deposto. Os políticos espanhóis também
buscaram
o apoio das colônias, prometendo em troca aos americanos direitos iguais.
Contudo,
simulacros das juntas espanholas mostraram-se insustentáveis. Embora muitos
hispano-americanos tenham continuado fiéis à monarquia e comprometidos com o
domínio espanhol, os sucessos militares franceses em 1809/10 convenceram
outros
de que a Espanha estava moribunda e de que, para substituir os oficiais
coloniais,
eram necessários governos autônomos. Durante o ano de 1810, esses homens
toma-
ram a iniciativa na maioria das principais cidades e vilarejos da América
espanhola.
Apesar de proclamarem sua lealdade ao rei cativo Fernando VII, lançaram-se à
cria-
ção de governos independentes do controle espanhol. Uma série de golpes
urbanos,
conduzidos quase sem derramamento de sangue, transferiu o poder para juntas
em
Caracas, Buenos Aires, Bogotá e Santiago do Chile, fazendo dessas cidades
centros
de reação ao domínio espanhol. Assim, ao contrário das colônias britânicas
da Amé-
rica do Norte, que enfrentaram uma metrópole no auge de seu poderio, as
colônias
hispano-americanas se separaram de uma metrópole em rápido e abrupto
declínio.
Não obstante essas diferenças quanto à ocasião dos levantes coloniais,
eles apre-
sentam alguma semelhança, pois todos começaram com conflitos
constitucionais,
nos quais grupos de colonos disputaram a distribuição de poder com o governo
colonial. Os norte-americanos de origem britânica contestaram o direito da
metró-
pole de reduzir os poderes de que gozavam; os primeiros protestos em São
Domin-

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Independências americanas na era das
revoluções 405

gos surgiram a partir de reivindicações de brancos e negros livres de que se


lhes
estendessem os direitos políticos conferidos aos franceses pela nova
Constituição; do
mesmo modo, os hispano-americanos reivindicaram uma parcela maior do poder
quando a Espanha buscou um novo regime constitucional, primeiro sob uma
junta
central, depois sob a regência e as cortes. Os rebeldes não só
compartilhavam uma
base comum de reivindicações de direitos constitucionais, mas também
seguiram
uma trajetória semelhante até a rebelião civil. Quando os governos
metropolitanos se
recusaram a negociar, ou não puderam fazer isso, sua posição inflexível
transformou
os conflitos políticos em guerras civis. A Grã-Bretanha conseguiu pôr em
campo um
exército contra os colonos rebeldes, mas contaram demais com o apoio de
colonos
legalistas. O mesmo se aplica à América espanhola, onde, em 1810 e mesmo
após
essa data, continuaram existindo fortes centros legalistas. No México e no
Peru, os
leais à coroa foram suficientemente fortes para manter colônias inteiras sob
o gover-
no real. No México, uma conspiração nativa para tomar o poder nas cidades
provin-
ciais situadas ao norte da capital do vice-reino converteu-se em uma
rebelião san-
grenta quando o padre Hidalgo mobilizou camponeses indígenas e mestiços do
México
central, num movimento estratégico de antecipação à repressão real. Mas a
rebelião
de Hidalgo foi sufocada em 1811 e, embora os defensores da independência
mexica-
na tenham dado continuidade ao levante armado, o domínio espanhol sobre o
vice-
reino da Nova Espanha se manteve. O vice-rei do Peru também permaneceu no
poder e conduziu vigorosos contra-ataques às cidades e regiões das colônias
vizinhas
que haviam aderido à independência. Em ambas as regiões, o temor de revolta
social
vinda da base, das massas de camponeses indígenas e castas desempenhou
importan-
te papel em reprimir o anseio dos nativos pela independência.
Os movimentos pró-independência na América espanhola levaram, assim,
à
guerra, como ocorrera na América do Norte britânica. Pois, embora a Espanha
tives-
se tropas muito menores e mais fracas que a Grã-Bretanha tivera para lutar
pelo
poder contra suas colônias rebeladas (em 1810-13, os exércitos espanhóis
estavam
totalmente absorvidos na guerra peninsular contra Napoleão), havia forças
legalistas
suficientes nas Américas para enfrentar um conflito armado. Desse modo, como
acontecera na América do Norte, as colônias se dividiram em áreas legalistas
e patrio-
tas, fazendo da guerra pela independência política uma revolução civil entre
america-
nos. Por vezes, cidades rebeladas conseguiam fazer alianças com outras e
criar gover-
nos e exércitos unificados: Buenos Aires e Caracas , a princípio,
constituíram um
desses casos bem-sucedidos. Mas nada que se comparasse ao Congresso
Continental
dos Estados Unidos, nem ao Exército que Washington comandou contra os
britâni-
cos, nem ao apoio que poderosos aliados estrangeiros, como a França e a
Espanha,

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15:03
406 A independência brasileira

haviam prestado aos rebeldes norte-americanos. A guerra seguiu, assim,


padrões di-
ferentes na América inglesa e na América espanhola. Após os reveses
iniciais, Wash-
ington montou um Exército que, com o apoio francês, tornou-se mais forte e
vito-
rioso. As forças revolucionárias na América espanhola, ao contrário, foram
em geral
derrotadas por seus oponentes realistas. Por volta de 1814/15, os primeiros
movi-
mentos coloniais pela independência, na América espanhola, haviam sido
pratica-
mente debelados e a autoridade real restaurada. Apenas a colônia do rio da
Prata
permanecia fora da esfera de controle espanhol em 1815, embora enfraquecida
por
divisões internas e pelo temor de uma invasão espanhola iminente. Assim, os
primei-
ros passos rumo à independência na América espanhola deram em nada, porque
as
colônias mergulharam em conflitos locais, disputas étnicas e sociais,
marcadas por
crescente violência.
A guerra e a derrocada do Antigo Regime na América espanhola
contrastaram
nitidamente com a experiência do Brasil nesses mesmos anos. Embora Portugal,
como
a Espanha, tivesse se tornado palco de ocupações estrangeiras e exércitos
inimigos, a
continuidade do governo real foi garantida de forma muito mais vigorosa na
Améri-
ca portuguesa, e o Brasil desfrutou de uma estabilidade bem maior que seus
vizinhos
hispano-americanos na região. Isso deveu-se em grande parte à não-existência
de
uma ruptura comparável da autoridade imperial. A transferência da coroa e da
corte
para o Rio de Janeiro amorteceu o impacto da crise imperial; na verdade,
fortaleceu
o domínio português com a transformação do Brasil em sua própria metrópole,
dentro da estrutura institucional de uma monarquia absoluta sob a dinastia
Bragança.
O monopólio comercial exercido por Portugal foi abolido, abrindo o Brasil ao
co-
mércio com todas as nações amigas, removendo assim uma fonte de atrito entre
Portugal e as elites coloniais. D. João criou uma nova aristocracia, o que
solidificou
o apoio prestado pelas elites locais; então, em 1815, foi concedido ao
Brasil o status
de reino autônomo. Dessa forma, Portugal e Brasil permaneceram unidos, sob a
proteção da armada inglesa, e o Brasil, ao contrário da América espanhola,
escapou
dos violentos levantes deflagrados pelos movimentos separatistas.
Isso não quer dizer que a presença do rei e de sua corte permitiu que
o Brasil
evitasse por completo revoltas e violência. Em 1817, o Recife, capital de
Pernambuco,
levantou-se contra o governo do Rio de Janeiro e lutou pelo estabelecimento
de uma
república independente, antes de ser sufocado pelas tropas reais. Contudo,
essa vio-
lência ocorrida no Brasil deu-se numa escala muito menor, se comparada às
guerras
pela independência das Américas inglesa e espanhola, e, embora ainda tenha
havido
outros episódios violentos mais tarde, a transição do Brasil para a
independência foi
comparativamente pacífica, custando muito menos vidas do que em outras
regiões

Untitled-1 406 08/08/2014, 15:03


Independências americanas na
era das revoluções 407

das Américas. O contraste com a América espanhola é particularmente evidente


por-
que, durante os mesmos anos em que o Brasil se encaminhava para a
independência
sob a tutela de um príncipe português, a ruptura entre o rei espanhol e suas
colônias
tornou-se cada vez mais violenta e militarizada. Entre 1815 e 1825, a
resistência
armada ao jugo espanhol reapareceu em dois pontos estratégicos da América do
Sul
— Venezuela, no norte, e rio da Prata, no sul —, e a partir desses pontos
dois líderes
militares carismáticos lançaram-se em campanhas de libertação continental.
Por vol-
ta de 1820, quando uma revolução liberal na Espanha pôs por terra os
esforços do rei
Fernando pelo domínio militar e o fez buscar um compromisso político com as
colônias rebeldes, os dados já haviam sido lançados. Ao tentar recuperar seu
império
por meios militares, a Espanha conjurara sua nêmesis: “libertadores” armados
que
preferiram obter a independência pela via da vitória militar. Assim,
enquanto a inde-
pendência do Brasil foi obtida principalmente por políticos, a concretização
da inde-
pendência na América espanhola foi obra de militares: Iturbide no México,
Bolívar
na Colômbia e San Martin na Argentina e no Peru não tiveram contrapartida
entre
os generais brasileiros.
Por que o Brasil passou relativamente com tanta suavidade de colônia a
Estado
independente? Primeiro, as turbulências políticas foram menos numerosas e
violen-
tas do que em outras regiões das Américas, graças principalmente à
continuidade
institucional garantida pela presença da monarquia portuguesa no Brasil. A
América
espanhola tendeu a dividir-se em cidades-Estado antagônicas, reproduzindo as
divi-
sões do período colonial entre centros urbanos rivais.15 Segundo, havia uma
unidade
maior entre as elites brancas, baseada em parte em seu desejo de preservar a
escravi-
dão e seu temor de que a divisão política pudesse inflamar as massas não-
brancas
(como ocorrera em São Domingos). Terceiro, evitar a guerra havia impedido a
emer-
gência de caudilhos, que construíam suas carreiras políticas alicerçados em
suas proe-
zas militares e defendiam valores militaristas. Quarto, as elites
brasileiras se mostra-
ram muito mais dispostas a buscar soluções políticas dentro das estruturas
existentes
e a adaptar essas estruturas quando necessário, como aconteceu após a
revolução
liberal de Portugal em 1820. Por fim, a postura pró-Brasil e a disposição de
d. Pedro
de aceitar uma monarquia constitucional evitaram a grande crise de
legitimação por
que passou a América espanhola sob o reinado de Fernando VII, permitindo que
um
príncipe regente português se tornasse imperador do Brasil, num momento em
que
o rei Bourbon da Espanha tinha pouquíssimas chances de instalar um príncipe

15 Sobre essa continuidade, ver Xavier Guerra, 1992.

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408 A independência brasileira

Bourbon em qualquer trono da América espanhola. O México foi o único país


hispano-americano a instalar uma monarquia, mas esta mal pode ser comparada
à
do Brasil. O primeiro rei mexicano, Agostinho I, era um plebeu alçado à
realeza por
políticos conservadores que viam em Iturbide, comandante-em-chefe dos
exércitos
revolucionários, um meio de preservar a hierarquia e a estabilidade da velha
ordem
colonial. Contudo, Iturbide não tinha qualquer vínculo com a dinastia
espanhola rei-
nante e, como mostrou seu breve mandato, absolutamente nada da legitimidade
con-
cedida pela conexão com a monarquia do Antigo Regime. Assim, o México
rapida-
mente se voltou para o sistema político favorito de todos os outros regimes
revolucionários
nas Américas, e convocou uma Assembléia Constituinte para construir uma
moderna
república do tipo daquela criada de modo precursor pelos Estados Unidos. Por
todo o
século XIX, o Brasil manteria um regime político distinto, sem paralelo
entre os Esta-
dos americanos: uma monarquia constitucional cercada por repúblicas.

Conclusões

A especificidade do Brasil, que se manteve como a única monarquia em


meio às
repúblicas criadas pela independência nas Américas, indica as trajetórias
diversas
seguidas pelas colônias americanas em sua transição para Estados
independentes.
Elas indubitavelmente compartilham de algumas características comuns
importan-
tes que as vinculam num processo que varreu o mundo atlântico: todas
nasceram no
contexto de guerras entre potências coloniais; todas estavam relacionadas a
reformas
políticas que incitaram a oposição colonial aos governos das metrópoles;
todas surgi-
ram de crises políticas e constitucionais que incitaram o descontentamento
com a
distribuição do poder; todas se inspiraram em idéias sobre direitos
individuais e
soberania popular que, induzidas pela Revolução Americana, encontraram nova
for-
ma de se expressar na França revolucionária, e, combinadas ao pensamento e
método
republicano francês, forneceram inspiração e instituições para a revolução
política
nas colônias da América Latina. Os contemporâneos reconheceram uma unidade
de
princípios e propósitos nas revoltas americanas e sentiram que a Revolução
America-
na havia inaugurado uma nova era. Já em 1786, Jefferson apresentava a
Revolução
Americana como o protótipo da revolução nas Américas: “Nossa confederação”,
dis-
se Jefferson, “deve ser vista como o ninho a partir do qual toda a América,
de norte a
sul, deve ser povoada”.16 E, uma vez propagada a revolução, o senso de
participação

16 N. do T.: No original: “Our confederacy must be viewed as the nest from


which all America, north and south,
is to be peopled”. Lewis, 1989:14.

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Independências americanas na
era das revoluções 409

em uma nova era, caracterizada por novos valores, foi certamente forte entre
os líde-
res dos Estados revolucionários americanos. Bolívar, por exemplo, acreditava
que
todos os Estados americanos compartilhavam interesses similares e podiam se
unir
numa “Liga Anfictiônica”17 para defender seus interesses comuns. Até John
Quincy
Adams, que sempre foi cético quanto a tais afinidades, achava que os Estados
Unidos
deviam participar da agenda de cooperação pan-americana no Congresso do
Panamá
de 1826, reconhecendo que houvera uma “grande revolução nos assuntos
humanos”
durante o meio século transcorrido desde a Revolução Americana, e que o
estabele-
cimento das várias novas nações independentes havia colocado os Estados
Unidos
“numa situação não menos nova e interessante do que (...) sua própria
transição de
um grupo de colônias para uma nação de estados soberanos”.18
Eles, contudo, tinham obtido a independência por vias muito diferentes
e che-
gado a destinos também diversos. Primeiro, nem todos haviam sido igualmente
afe-
tados pela violência e a guerra. Enquanto os Estados Unidos e as repúblicas
da Amé-
rica espanhola haviam sido afligidos pela guerra e conflitos civis, o Brasil
escapara
dessa violência maior quando derrubou o governo colonial em 1822. Por outro
lado,
os Estados Unidos e o Brasil parecem se assemelhar mais um com o outro do
que
com as repúblicas da América espanhola porque, após a independência, ambos
fo-
ram capazes de criar um sistema político estável que durou mais de meio
século. A
maioria dos Estados hispano-americanos, ao contrário, enfrentou dificuldades
para
unificar regiões rivais em Estados nacionais estáveis e passou por guerras
civis fre-
qüentes em seu primeiro meio século de existência. O desenvolvimento
econômico
dos novos Estados também diferiu em muito. A economia colonial do Brasil não
experimentou grandes mudanças: o vínculo comercial com a Inglaterra criado
sob
domínio português fortaleceu a posição do Brasil como exportador de produtos
primários e garantiu sua prosperidade. Os Estados Unidos também prosperaram
com a independência, em parte devido às oportunidades comerciais que sua
neutra-
lidade propiciou durante o longo período de guerras internacionais entre
1796 e
1815, e em parte porque nunca foram de fato inteiramente excluídos do
comércio
britânico. O Haiti e a maioria das repúblicas da América espanhola, contudo,
não
tiveram a mesma sorte. O Haiti logo se viu às margens do comércio
internacional
quando suas plantações de cana-de-açúcar declinaram. A América espanhola
desfru-

17 N. do T.: Relativo aos “anfictíones” (ou anfictiões), como eram


designados os membros do conselho de
representantes dos antigos Estados gregos, que se reuniam para deliberar
sobre asssuntos de interesse geral.
18 Apud Lewis, 1989:215.

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tou de um breve surto de prosperidade nos anos 1820, mas então a maioria foi
abalada pelo interesse internacional cada vez menor em seus recursos e
mercados.
Relegadas à margem da economia internacional, a maior parte das repúblicas
da
América espanhola viu sua vida econômica se estagnar ou declinar,
freqüentemente
de modo a exacerbar conflitos políticos internos.
Assim, embora a Revolução Americana talvez tenha nutrido de idéias e
servido
de inspiração aos defensores da independência na América espanhola, não se
conver-
teu em um modelo facilmente imitável. Ao contrário, pode-se dizer que as
indepen-
dências americanas se inspiraram em ideais comuns, mas aplicaram esses
ideais em
contextos tão diversos que a independência pôde apenas reproduzir a
diversidade das
sociedades coloniais. Nenhuma delas se inspirou em identidades nacionais
preexistentes ou em sentimentos claros de unidade nacional. Os Estados
Unidos
foram forjados a partir de uma confederação de estados na qual a identidade
local e
regional das populações significava muito mais do que ser “americano”. Nas
cidades
e províncias da América ibérica, onde a comunicação entre as regiões estava
muito
menos desenvolvida do que nos Estados Unidos, as pessoas, em geral, estavam
muito
mais propensas a se identificar com suas localidades do que com entidades
políticas
mais amplas, que se diziam representantes da “nação” ou do “povo”. Isso pode
ter
criado tendências centrífugas poderosas, que representaram um sério
obstáculo à
construção de novos Estados e à garantia de sua estabilidade.
O problema de manter a unidade interna nas ex-colônias foi evidente nos
Esta-
dos Unidos nas décadas que se seguiram ao reconhecimento de sua
independência
em 1783. Havia o temor, razoável, de que os Estados Unidos se separassem
após a
independência, particularmente quando a expansão para o Oeste abriu novos
terri-
tórios e fronteiras, oferecendo a possibilidade de fundação de novas
repúblicas. Em-
bora a Constituição Federal de 1787 propiciasse um modelo constitucional de
uni-
dade, no qual os Estados compartilhavam o poder sob a autoridade de um
governo
central em Washington, a presença inglesa no Canadá, espanhola no México, e
a
expansão contínua da fronteira em direção ao oeste fizeram com que esse medo
continuasse a preocupar o governo americano ao longo de toda a primeira
metade do
século XIX.19
Os obstáculos à unidade foram muito maiores na América dominada pela
Espanha. Por quase toda a América espanhola, mostrou-se difícil converter em
na-
ções-Estado estáveis regiões que pouco se integravam sob domínio colonial, e
virtu-

19 Os temores relativos à união dos Estados são explicados em Lewis,


1989, passim.

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Independências americanas na era das
revoluções 411

almente todas as repúblicas padeceram de uma instabilidade política


endêmica. A
luta contra a Espanha abalara o respeito por velhas hierarquias e verdades
estabelecidas,
fizera da contenda política um estilo de vida e transformara a violência num
instru-
mento de política. Tudo isso tornaria difícil para os novos Estados se
estabelecerem
como formas estáveis e reguladas de vida política. Por volta de meados da
década de
1830, surgiram sinais de arrefecimento de ânimos, particularmente porque as
elites
políticas e econômicas haviam se cansado dos conflitos incessantes. No
Chile, Diego
Portales desempenhou papel fundamental no estabelecimento de um Estado
conser-
vador e centralizado, regulado pela Constituição de 1833, enquanto a Bolívia
se
estabilizava sob o general Santa Cruz (1829-39). As repúblicas do Equador,
Venezuela
e Nova Granada, que emergiram da divisão da Grã-Colômbia em 1830, também
desfrutaram de alguma estabilidade, embora não tivessem conseguido se livrar
total-
mente de levantes provinciais. Mesmo na Argentina, onde os federalistas, sob
a lide-
rança de Rosas, violentamente esmagaram as esperanças daqueles que viam o
futuro
em termos de um Estado unificado e centralizado em Buenos Aires, o regime de
Rosas (1829-52) trouxe estabilidade para um território que se estendia para
além da
cidade e da província de Buenos Aires. Esse padrão, é claro, não foi
uniforme. Os
esforços no sentido de impor uma autoridade centralizada no território do
México
continuaram não dando certo, enquanto a tentativa do general Santa Cruz de
inte-
grar o Peru à Confederação Peru-Bolívia (1836-39) desestabilizou a vida
política
boliviana sem estabilizar a do Peru, onde os governos continuaram mudando de
mãos com grande freqüência e quase sempre por meios violentos. Além disso, a
mudança para governos centralizados e mais fortes, onde ocorreu, em geral
represen-
tou um mero interlúdio. Boa parte da América espanhola assistiu a um
recrudesci-
mento dos conflitos violentos por volta de meados do século, os quais se
refletiram
em um novo ciclo de conflitos civis que rivalizavam, às vezes superavam, os
ocorridos
durante as guerras pela independência.
Isso parece contrastar nitidamente não só com a situação nos Estados
Unidos,
mas também no Brasil, que conseguiram manter unidas, após a independência,
as
diferentes regiões de seus imensos territórios. Mas as diferenças não são
tão exagera-
das. Após a independência, em 1822, o governo do Rio de Janeiro teve menos
pro-
blemas para criar um Estado centralizado do que a maioria das ex-colônias
hispano-
americanas, principalmente porque se livrou do domínio colonial de forma
menos
abrupta. A rigor, o novo regime tinha autoridade meramente nominal em muitas
regiões, e essa autoridade não demorou a ser contestada. A promulgação de
uma
nova Constituição, em 1824, despertou sentimentos antilusitanos, revoltas
regionais
e a ameaça de separação do Nordeste brasileiro. O descontentamento dos
habitantes

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412 A independência brasileira

das províncias com as ambições centralizadoras e autoritárias do governo do


Rio de
Janeiro desencadeou uma rebelião armada em Pernambuco, a qual, por sua vez,
atraiu
o apoio das províncias vizinhas e levou à proclamação de uma república
independen-
te, a Confederação do Equador. Nessa ocasião, a guerra civil e a
desintegração do
novo Estado foram evitadas graças, em parte, ao fato de o governo central
dispor de
Forças Armadas eficientes e leais, e recursos financeiros suficientes para
pagá-las.
Contudo, embora o Exército imperial tenha rapidamente desbaratado a
rebelião,
permaneceram as tensões entre as províncias e o centro. De fato, elas
reapareceram
como uma ameaça mais difundida e significativa ao governo central brasileiro
em
meados da década de 1830, após a crise da monarquia de 1831, quando revoltas
regionais pipocaram no Pará, na Bahia e no Rio Grande do Sul, impondo ao
Estado
brasileiro seu maior desafio desde a independência.
Das rebeliões originadas dessa contenda, a Guerra dos Farrapos
propicia inte-
ressantes comparações com a América espanhola por suas semelhanças e formas
de
interação com os conflitos que estavam ocorrendo entre centralistas e
federalistas na
região vizinha do rio da Prata. A revolução farroupilha foi basicamente uma
rebelião
de proprietários de terras numa região de fronteira onde o processo de
apropriação
da terra tinha resultado numa cultura violenta, dominada por “senhores
guerreiros”
que, sob o domínio português, haviam se habituado a uma espécie de
autogoverno
bem flexível, mas que aceitavam o governo centralizado e autoritário pelo
qual
d. Pedro I procurou unificar as províncias do Brasil sob a égide do Rio de
Janeiro
porque apoiavam sua política anexionista em relação à Banda Oriental. Quando
essa
política falhou e os governos depuseram as autoridades da elite terratenente
local que
se recusavam a cooperar com a nova forma de agir, os proprietários de terra
se rebe-
laram. Para tanto, abraçaram o republicanismo, justificado pela doutrina da
sobera-
nia popular. Na verdade, seu republicanismo era um meio de reafirmar a
indepen-
dência da elite em relação ao governo central, não um passo na direção da
reforma
política e social. Essa era, pois, uma região que, como outras regiões
análogas da
América espanhola, tendia a se opor a projetos de unidade e integração
nacional
porque suas elites econômicas preferiam perseguir seus próprios interesses
econômi-
cos. Como os proprietários de terras das províncias pastoris vizinhas do rio
da Prata,
os estancieiros do Rio Grande viviam em sociedades fronteiriças nas quais o
poder
dos governos centrais sempre fora débil, a vontade dos proprietários de
terras locais
contava mais do que a lei do Estado, as guerras de fronteira haviam
banalizado a
violência e os donos de terras podiam mobilizar prontamente seus gaúchos e
peões a
fim de impor sua vontade pela força. Quando as políticas formuladas por
políticos
nacionais, nas distantes capitais, entraram em conflito com os interesses
dominantes

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Independências americanas na era
das revoluções 413

nessas sociedades, eles rapidamente se voltaram violentamente contra elas,


abraçan-
do as doutrinas do republicanismo federalista, mais por conveniência
política do que
propriamente por convicção ideológica.20
Apesar dessas rebeliões, o Brasil manteve sua unidade melhor do que
seus vizi-
nhos hispano-americanos e, nesse sentido, se assemelha mais aos Estados
Unidos.
Mas as razões para a manutenção dessa unidade diferem. Nos Estados Unidos, a
unidade prevaleceu graças, em grande parte, ao crescimento econômico
posterior à
independência, à mobilidade social e à autonomia econômica propiciadas pelo
cres-
cimento e a um senso de comunidade compartilhada sob instituições políticas
legíti-
mas e contra inimigos externos. No Brasil, a unidade deveu-se à passagem
gradual de
governo colonial a independente, à homogeneidade da elite dominante — que em
boa parte se educara em Coimbra —, a sua determinação em manter a
instituição da
escravidão e a seu desejo de evitar a insurreição e a instabilidade das
classes subalter-
nas, inclusive os escravos, que haviam contrariado os interesses das elites
das socieda-
des coloniais das Américas francesa e espanhola.21
Talvez as maiores diferenças no que tange aos resultados da revolução
nas Amé-
ricas tenham a ver com seu impacto social. A Revolução Americana dos anos
1770 e
1780 não acarretou atos de terrorismo revolucionário, nem deu sinais
exagerados de
conflito étnico e de classe; apesar de produzir significativa mudança
social, assim
como inovação política. Tal mudança foi considerável: novos atores entraram
na
cena política e a participação política foi sensivelmente ampliada,
acentuando as
tendências representativas e democráticas da vida política americana.22 Por
outro
lado, parte da ordem social colonial permaneceu intacta: os líderes das
sociedades
escravistas do sul da América do Norte se recusaram a estender a seus
escravos os
princípios de liberdade que reivindicavam para si. A revolução seguinte nas
Améri-
cas, a de São Domingos na década de 1790 e início da de 1800, foi bem
diferente.
Pois, embora deflagrada por idéias de liberdade familiares aos norte-
americanos,
eclodiu num contexto que deu à noção de liberdade conotações mais
revolucionári-
as. Quando a rebelião colonial tornou-se inextricavelmente ligada à revolta
escrava, a
revolução política produziu mudanças sociais muito mais profundas. A
escravidão
foi abolida; as distinções legais baseadas na raça foram proscritas; o
sistema agrícola
de plantations em que se apoiava a economia colonial foi substituído por uma
econo-
mia camponesa de subsistência; e, claro, o governo colonial cedeu lugar a
uma re-

20 Piccolo, 1998.
21 Assunção, 2000:51-65.
22 Sobre as implicações revolucionárias da Revolução Americana, ver Wood,
1992.

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414 A independência brasileira

pública, apesar de um viés para um governo centralizado e autoritário no


qual mula-
tos abastados substituíram os brancos como grupo dominante e passaram a usar
a
força militar para impor sua vontade. Quando a revolução se disseminou pela
Amé-
rica ibérica nas décadas de 1810 e 1820, nunca acarretou redistribuições de
riqueza e
poder tão dramáticas. É verdade que velhas famílias de colonos perderam, por
vezes,
sua antiga influência e até mesmo suas propriedades em função das guerras
pela
independência, enquanto novos personagens assumiam o poder, alguns dos quais
conseguindo ascender socialmente, apesar de suas origens humildes, em função
de
suas proezas políticas e militares. Contudo, o poder manteve-se firme nas
mãos dos
brancos, com freqüência nas mãos das mesmas famílias que haviam ocupado o
topo
das hierarquias coloniais, mesmo tendo que fazer alianças com caudilhos de
origem
modesta. A igualdade de direitos legais para índios e mestiços era lugar
comum no
papel, mas bem mais difícil na prática. As leis liberais, que objetivavam
converter os
índios em cidadãos iguais aos brancos, aboliram impostos, que, quando
eficazes,
beneficiavam os índios. Mas tais leis também aboliram os direitos indígenas
à pro-
priedade da terra, um benefício menos óbvio. Em nenhum lugar as condições
das
comunidades indígenas melhoraram muito quando os governos republicanos
substi-
tuíram o domínio colonial. Os escravos se saíram melhor nas repúblicas da
América
espanhola, que em sua maioria aboliram a escravidão. Bolsões de escravidão
conti-
nuaram a existir no Peru e em Nova Granada, mas, entre os Estados
independentes
das Américas, apenas o Brasil e os Estados Unidos mantiveram a escravidão em
larga
escala por mais de uma geração após a independência. A escravidão continuou
ocor-
rendo em contextos muito diferentes: nos Estados Unidos, lado a lado com uma
sociedade cada vez mais dinâmica e em expansão, com um crescente setor
industrial;
no Brasil, em uma sociedade mais estática e hierárquica, bastante dependente
da
exportação de produtos agrícolas. Mas, em ambos os casos, a manutenção da
escravi-
dão provavelmente ajudou a preservar a unidade e a estabilidade políticas,
uma vez
que qualquer medida contra ela teria provocado forte resistência por parte
dos pode-
rosos grupos de proprietários de escravos. Mas também é verdade que, nos
dois ca-
sos, a manutenção da escravidão na independência apenas postergou o
conflito. Na
década de 1860, os Estados Unidos finalmente tiveram que lidar com as
conseqüên-
cias da preservação da escravidão, quando as tensões entre o Norte e o Sul
explodi-
ram numa guerra civil devastadora. Nesse particular, os Estados Unidos
finalmente
se assemelharam a seus vizinhos latino-americanos, uma vez que adversários
políticos
passaram a um violento conflito civil, a fim de defenderem seus interesses e
suas
visões de república. O Brasil também se viu forçado a enfrentar o problema
da escra-
vidão no mesmo período. Fazendo-o de modo mais gradual, a monarquia
conseguiu

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Independências americanas na era das
revoluções 415

evitar o conflito violento que a abolição acarretara nos Estados Unidos, mas
não
pôde impedir a transgressão concomitante da ordem vigente pós-independência:
com
o fim da escravidão veio a queda do imperador e a substituição da monarquia
cons-
titucional pela república.
Nesse ponto, talvez, na abolição final da instituição da escravidão em
seus enclaves
remanescentes nas Américas, esteja a conclusão do ciclo de revoluções que
começa-
ram um século antes nas colônias britânicas na América, pois finalmente se
pôs fim
à mais gritante contradição à doutrina dos direitos individuais e à idéia de
soberania
popular em que se basearam os Estados independentes. O fato de que a
escravidão
tenha demorado tanto para ser abolida em algumas regiões indica importantes
dife-
renças entre os três movimentos revolucionários que varreram as Américas
britânica,
francesa, espanhola e portuguesa no meio século entre 1776 e 1825. A crise
colonial
em todos esses impérios estava associada ao conflito instalado na Europa,
com a
disseminação de novas noções de direitos naturais e constitucionais e com o
fracasso
das metrópoles em criar Constituições imperiais capazes de integrar as
colônias em
termos igualitários. As revoluções políticas produziram resultados bem
diferentes,
porém, já que o novo conceito de direito à “vida, à liberdade e à busca da
felicidade”
foi introduzido em contextos sociais e culturais muito distintos.

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revoluciones
hispánicas. Madrid: Mapfre, 1992.

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Apêndice

Cronologia da independência

1808

❑ Extinção do Conselho da Regência e proclamação oficial da destituição


da Casa
Real de Bragança.
❑ Chegada de d. João a Salvador em 22 de janeiro, sábado.
❑ Decreto da abertura dos portos brasileiros às nações “amigas”, com
revogação do
alvará que restringia o desenvolvimento industrial desde 1785, em 28
de janeiro.
❑ Criação da Escola de Cirurgia do Hospital Militar em Salvador por
decreto de 18
de fevereiro.
❑ D. João aporta no Rio de Janeiro em 7 de março, segunda-feira.
❑ Criação do Conselho de Estado.
❑ Criação do Conselho da Fazenda.
❑ Criação do Conselho Supremo Militar e de Justiça por alvará de 1o de
abril.
❑ Organização do ministério de d. João VI: d. Rodrigo de Souza Coutinho,
conde
de Linhares, ministro da Guerra e do Estrangeiro; d. Fernando José de
Portugal,
ministro da Fazenda e do Interior.
❑ Manifesto do príncipe regente, d. João, declarando guerra à França em
1o de maio.
❑ Estabelecimento da Real Academia dos Guardas Marinha, no Rio de
Janeiro, por
alvará de 5 de maio.
❑ Criação do Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e
Ordens
no Rio de Janeiro por alvará de 10 de maio.

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420 A independência brasileira

❑ Criação da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do


Brasil, por alvará
de 10 de maio.
❑ Elevação do Tribunal da Relação à categoria de Casa da Suplicação do
Brasil, por
alvará de 10 de maio.
❑ Elevação à primazia de Capela Real da Igreja de Nossa Senhora do Monte
Carmelo
no Rio de Janeiro e criação da Paróquia do Paço Real.
❑ Criação do Arsenal da Marinha.
❑ Criação do Regimento de Cavalaria.
❑ Chegada ao Brasil do ministro inglês Beresford.
❑ Criação da Impressão Régia em 13 de maio.
❑ Regulamentação da fábrica de pólvora por decreto de 13 de maio.
❑ Abolição da proibição de instalação de fábricas no Brasil e em todos
os domínios
ultramarinos por alvará de 28 de maio.
❑ Estanco das cartas de jogar do Brasil e dos domínios ultramarinos por
alvará de 28
de maio.
❑ Elevação à primazia de Capela Real da Igreja de Nossa Senhora do Carmo
do Rio
de Janeiro, em junho.
❑ Capitulação de Sintra, com a retomada parcial do território português.
❑ Criação do Museu Real no Rio de Janeiro, por decreto de 6 de junho.
❑ Regulamentação das sesmarias por decreto de 22 de junho.
❑ Criação da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação
por alvará
de 23 de agosto.
❑ Convenção entre os exércitos inglês e francês para a retirada do
segundo de Portu-
gal, assinada em Lisboa em 30 de agosto.
❑ Determinação de circulação de moedas de ouro, prata e cobre e
proibição de ouro
em pó, por alvará de 1o de setembro.
❑ Começo da circulação da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro periódico
regular do
país, com a prensa trazida na fuga da família real, em 10 de setembro.
❑ Restauração de Portugal, em 15 de setembro.
❑ Invasão da Guiana Francesa por 600 homens das tropas brasileiras,
reforçadas por
dois navios de guerra portugueses e uma corveta inglesa, em outubro.
❑ Fundação do Banco do Brasil por alvará de 12 de outubro.
❑ Estímulo à imigração no Brasil, por decreto de 25 de novembro.
❑ Permissão para a concessão de sesmarias a estrangeiros por decreto de
25 de no-
vembro.
❑ Declaração de completa liberdade de circulação de moeda no Brasil por
alvará
régio.

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Cronologia da
independência 421

❑ Criação da Escola Anatômica e Médica do Hospital Militar do Rio de


Janeiro, por
decreto de 5 de novembro.
❑ Início da circulação do Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa
Pereira, em
Londres.
❑ Criação da Escola da Marinha.
❑ Desembarque de tropas inglesas em Portugal contando com apoio popular.
❑ Insurreição contra os invasores franceses.

1809

❑ Invasão da Guiana Francesa pelo Exército brasileiro por ordem do


príncipe regente.
❑ Capitulação de Caiena, proposta pelo governador da Guiana Francesa às
forças
brasileiras e aos contingentes da Inglaterra e Portugal, em 12 de
janeiro (em 1817
seria devolvida aos franceses).
❑ Criação da Real Junta de Comércio, onde passaram a ter que se
inscrever, obriga-
toriamente, os comerciantes de grosso trato das grandes firmas
estabelecidas na
praça mercantil do Rio de Janeiro.
❑ Guerra contra os botocudos no sul da Bahia.
❑ Segunda invasão francesa, comandada por Soult, e tomada do Porto em
março,
logo retomado pelos ingleses, em maio.
❑ Início das atividades do Banco do Brasil em 11 de dezembro.
❑ Início das atividades da Impressão Régia no Rio de Janeiro.
❑ Retirada das tropas francesas de Portugal.
❑ Ordem Régia determina o encaixotamento e embarque da Real Biblioteca,
do
Real Arquivo da Torre do Tombo, de documentos importantes do Paço e de
“tudo
de consideração que estivesse a cargo de João Diogo de Barros”, da
Casa Real,
assim como “o mais precioso da Real Cavalariça”.

1810

❑ Criação da Academia Real Militar no Rio de Janeiro por carta régia de


4 de feve-
reiro (aberta em 1811).
❑ Início do governo da Bahia por d. Marcos de Noronha e Brito, oitavo
conde dos Arcos.
❑ Instalação da Real Biblioteca no andar superior do Hospital da Ordem
Terceira do
Carmo, por alvará de 27 de junho. Frei Gregório José Viegas e padre
Joaquim
Damaso: primeiros prefeitos da biblioteca. Viegas fica no cargo até
1821 e Damaso
(encarregado do arranjamento e conservação), até 1822.
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422 A independência brasileira

❑ Publicação da primeira história do Brasil, pelas mãos do inglês Robert


Southey.
❑ O Brasil assina protocolo de compromissos fundamental com a
Inglaterra. Co-
nhecido por Tratado de Comércio e Amizade, Aliança e Navegação, nele
obriga-se
o Brasil a cooperar com a coroa britânica no sentido de extinguir o
tráfico negreiro
(o que não sairia do papel antes de 1850), além de se estabelecerem
tarifas prefe-
renciais para os ingleses em portos brasileiros.
❑ Instalação, nas dependências improvisadas do antigo Hospital da Ordem
Terceira
do Carmo, da Real Biblioteca e do Gabinete de Instrumentos de Física e
Matemá-
tica, em junho.
❑ Decreto de 29 de outubro determina que a Real Biblioteca seja aberta
“aos estu-
diosos”.

1811

❑ Abertura da Academia Real Militar, criada em 1810.


❑ Abertura da Biblioteca Pública da Bahia, Salvador.
❑ Abertura da Real Biblioteca.
❑ Criação da Junta da Fazenda, de arsenais, fábricas e fundições no Rio
de Janeiro,
por alvará de 1o de março.
❑ Última retirada dos franceses de Lisboa, em 3 de maio. Os combates
continuam
até 1814, mas já fora do território português.
❑ Chegada ao Rio de Janeiro, com o bibliotecário Luís Marrocos, do
segundo lote
de livros da Real Biblioteca, em junho. Em novembro, com José Lopes
Saraiva,
chegam “os últimos 87 caixotes de livros”, segundo carta de Marrocos
ao pai.
❑ Morte de d. Rodrigo de Souza Coutinho e ascensão de Antônio de Araújo
e Aze-
vedo.
❑ Publicação, no Rio de Janeiro e em Salvador, respectivamente, das
obras Ensino
sobre o estabelecimento dos bancos e Observações sobre a prosperidade
do Estado pelos
liberais princípios da nova legislação do Brasil, por José da Silva
Lisboa, futuro vis-
conde de Cairu, um dos ideólogos do nascente Estado brasileiro.
❑ Chegada ao Rio de Janeiro do compositor da corte Marcos Portugal, com
um
séquito de cantores e músicos. Próximo mestre da Capela Real e da Real
Câmara,
sua presença é um sinal do empuxe civilizador empreendido pelo
príncipe regente,
que procurava criar na nova moradia um ambiente o mais próximo
possível de sua
corte de origem, à qual possivelmente acreditasse não retornar tão
cedo.

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Cronologia da
independência 423

❑ Independência do Paraguai.
❑ Para minorar o problema de falta crônica de acomodações que se
verificou com a
chegada da corte, d. João concede isenção da décima urbana a quem
edificasse
casas nos terrenos da periferia conhecida como “Cidade Nova” (Rio de
Janeiro),
num prazo de dois anos.

1812

❑ Inauguração, no dia do aniversário do príncipe regente (prática comum


na época),
do Teatro de São João, em Salvador, em 13 de maio.
❑ Napoleão Bonaparte invade a Rússia.
❑ Entrada dos portugueses em Madri, em 12 de agosto.

1813

❑ Publicação do primeiro número do jornal O Patriota, que teve em José


Bonifácio
um de seus destacados colaboradores, em janeiro.
❑ Início do assentamento de migrantes vindos das ilhas portuguesas
(sobretudo Aço-
res) em diversas partes do país, como Rio de Janeiro, São Paulo,
Espírito Santo e
Bahia.
❑ Inauguração do Real Teatro de São João na capital do Rio de Janeiro,
em 12 de
outubro. Criado para ser a casa de ópera do príncipe, seria o palco
dos principais
acontecimentos sociais e políticos do período joanino.
❑ Criação da Escola Cirúrgica, com sede no Hospital da Misericórdia.

1814

❑ A Real Biblioteca (futura Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro) é


franqueada ao
público. Nas cartas que seu bibliotecário, Joaquim dos Santos
Marrocos, dirige ao
pai (em Lisboa) encontra-se um dos mais importantes registros do
cotidiano da
corte joanina no Brasil.
❑ As dinastias aliadas vencem Napoleão Bonaparte e Luís XVIII sobe ao
trono na
França.
❑ Entrada dos portugueses em Bordeaux, em 12 de março, e em Toulouse, em
12 de
abril.
❑ Napoleão é deposto. Luís XVIII ocupa o trono.

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424 A independência brasileira

❑ Convenção, assinada em Paris em 23 de abril, entre França, Inglaterra,


Portugal,
Áustria, Prússia e Rússia, sobre a suspensão de hostilidades; Ato de
Adesão de
d. João, em 8 de maio.

1815

❑ A Guiana Francesa, invadida pelas tropas de d. João, é devolvida à


França pelo
Congresso de Viena.
❑ Napoleão retorna à França e é finalmente derrotado em Waterloo.
Congresso de
Viena e formação da Santa Aliança.
❑ D. João ratifica vários tratados nesse ano, no qual decreta o fim do
tráfico de escravos.
❑ Primeiro engenho movido a vapor, na Bahia.
❑ Carta de lei elevando o Brasil a reino, depois unido a Portugal e
Algarves, em 17
de dezembro.
❑ Com a relutância da Espanha de devolver Olivença, prevista no tratado,
Portugal
ocupa Montevidéu e a colônia do Sacramento.

1816

❑ Morte de d. Maria I, na cidade do Rio de Janeiro em 20 de março.


Inicia-se o
reinado de d. João.
❑ Desembarque da missão artística francesa, contratada pelo marquês de
Marialva,
que trouxe, entre outros nomes, Debret, Taunay e Grandjean de
Montigny, res-
ponsáveis pela criação do Instituto de Belas-Artes.
❑ Independência da Argentina, à época Províncias Unidas do Prata.
❑ Criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios e autorização para
a contratação
de artistas da Missão Artística Francesa por decreto de 12 de agosto.

1817

❑ Tomada da cidade de Montevidéu pelas tropas reais. O Uruguai é


incorporado ao
Reino do Brasil com o nome de Província Cisplatina.
❑ Eclosão da revolução republicana em Pernambuco, que resiste cerca de
dois meses.
Províncias limítrofes aderem ao movimento, como Paraíba e Ceará.
❑ Fundação do serviço dos correios brasileiros, ligando inicialmente a
corte e a vila
de Porto Alegre.
❑ Celebração, por procuração, do casamento do príncipe d. Pedro com d.
Leopoldina,
filha de Frederico II da Áustria, em Viena.
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Cronologia da
independência 425

❑ Publicação, no Rio de Janeiro, da Corografia brasílica ou Relação


histórico-geográfica do
Reino do Brasil, do padre Manuel Aires de Casal, um marco da geografia
brasileira.
❑ Chegada da esquadra que trouxe d. Leopoldina ao Rio de Janeiro, em
novembro.
A cidade celebra com muita festa o real consórcio.

1818

❑ Aclamação de d. João VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e


Algarves.
❑ Casamento de d. Pedro e d. Leopoldina da Áustria.
❑ Prosseguimento da campanha militar na região do rio da Prata.
❑ Alvará proíbe a constituição de sociedades secretas.
❑ Abertura de uma filial do Banco do Brasil em Salvador.
❑ Em louvor à aclamação do rei, publicação das Memórias dos benefícios
políticos do
governo d’el rei d. João VI, do visconde de Cairu.
❑ Independência do Chile.

1819

❑ Abertura de filial do Banco do Brasil em São Paulo.


❑ Nascimento da primeira filha de d. Pedro e d. Leopoldina, d. Maria da
Glória,
princesa da Beira, futura rainha de Portugal, segunda do nome.
❑ Chegada dos imigrantes suíços. Cerca de 2 mil deles se instalam em
Nova Friburgo,
na serra do Rio de Janeiro.
❑ Publicação dos Estudos do bem comum, de Cairu.

1820

❑ Inauguração de estrada ligando Curitiba ao porto de Paranaguá.


❑ Revolução liberal na cidade do Porto, em Portugal, reivindicando uma
Constitui-
ção e o retorno do rei.

1821

❑ Adesão do Pará à revolução do Porto, em janeiro.


❑ Assembléia popular na praça de Comércio no Rio de Janeiro, em abril,
uma ten-
tativa do público de participar da definição da nova ordem
constitucionalista,
prontamente reprimida pela coroa.

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426 A independência brasileira

❑ Ordem do rei, em fevereiro, para que seu filho d. Pedro siga para
Portugal como
príncipe regente. Recuo, porém, nessa intenção em função das agitações
no Rio de
Janeiro, no Pará, na Bahia e, pouco depois, em Goiás.
❑ Eleição de deputados brasileiros para as cortes de Lisboa, que para lá
levam um
Mapa geral da população do Reino do Brasil: excluídas as províncias do
Ceará,
Maranhão e Piauí, a população do Brasil dividia-se em 48,2% de pardos,
44,8%
de brancos e 7% de índios (“domesticados”).
❑ Criação da relação de Pernambuco.
❑ Proclamação da Constituição da Monarquia Portuguesa, na praça do
Rocio, no
Rio de Janeiro.
❑ Pressão das cortes lisboetas para o regresso de d. Pedro a Portugal.
❑ Regresso de d. João VI a Portugal.
❑ Independência do Peru, do México e da Venezuela.

1822

❑ D. Pedro decide ficar no Brasil em 9 de janeiro, após negociar com


mineiros,
paulistas e fluminenses.
❑ Proliferação de jornais pelo país, sobretudo na corte.
❑ Aumento da resistência contra o desembarque de tropas portuguesas no
Rio de
Janeiro, em 1o de agosto.
❑ Proclamação oficial da independência do Brasil, em 7 de setembro.
❑ D. Pedro é aclamado pelas câmaras e proclamado imperador do Brasil em
12 de
outubro.
❑ Coroação de d. Pedro I em dezembro.
❑ Libertação do Equador.

1823

❑ Elevação da vila de Recife a cidade.


❑ Cunhagem das primeiras moedas no Brasil.
❑ Instalação de uma Assembléia Constituinte, em 3 de maio.
❑ D. Pedro I dissolve a assembléia em 12 de novembro.

1824

❑ A Constituição é aprovada e outorgada pelo imperador em 25 de março,


preven-
do a existência de quatro poderes: Legislativo, Executivo, Judiciário
e Moderador.

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Cronologia da
independência 427

❑ Reconhecimento da Independência do Brasil pelos Estados Unidos da


América,
em 26 de maio.
❑ Nova agitação republicana no Recife, que instaura a Confederação do
Equador.

1825

❑ Independência do Uruguai do jugo brasileiro.


❑ Portugal reconhece a independência do Brasil em 29 de agosto.
❑ Nascimento de d. Pedro de Alcântara, futuro d. Pedro II do Brasil, em
2 de de-
zembro.
❑ Eclosão de conflito entre Brasil e Argentina em dezembro.
❑ Independência da Bolívia.

1826

❑ O Vaticano reconhece a independência do Brasil em 25 de janeiro.


❑ Reabertura da Assembléia Legislativa em 3 de maio.
❑ Morte de d. João VI em Portugal.
❑ Novo tratado com a Inglaterra objetivando a supressão do tráfico
negreiro.

1827

❑ Continuação dos conflitos no Prata.


❑ Fundação das faculdades de Direito de São Paulo e Olinda.

1828

❑ Com a mediação inglesa, Brasil e Argentina firmam tratado de paz em


agosto,
declinando ambos os países da posse da Província Cisplatina, que se
torna país
independente com o nome de República Oriental do Uruguai.
❑ Chegada ao Brasil do comerciante inglês John Armitage, que escreveria
uma das
mais importantes histórias do Brasil do período.
❑ D. Miguel, irmão de d. Pedro, usurpa a coroa à sobrinha d. Maria da
Glória.

1829

❑ Entrada em solvência do primeiro Banco do Brasil, criado por d. João.

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428 A independência brasileira

1830

❑ O café passa a ocupar o terceiro lugar na pauta de exportações do


Brasil, depois do
açúcar e do algodão.
❑ Promulgação do Código Criminal do Império, que serviria de modelo a
inúmeros
outros pelo mundo, como o argentino, o espanhol e o belga.

1831

❑ Conflitos pelas ruas do Rio de Janeiro em torno dos que exigem a


abdicação de
d. Pedro, em 13 de março; ficam conhecidos como a “noite das
garrafadas”.
❑ D. Pedro I abdica do trono em favor de seu filho, ainda menor de idade
e tutorado
por José Bonifácio de Andrada e Silva, em 7 de abril. O Brasil seria
governado
durante nove anos por regências: primeiro a Trina Provisória, depois a
Trina Per-
manente e, por fim, a Una Permanente.

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Sobre os autores

ANTHONY MCFARLANE, PhD em história pela Universidade de Londres, é professor


na School of Comparative American Studies, do Departamento de História da
Uni-
versidade de Warwick (Inglaterra). Suas pesquisas e publicações centram-se
na Amé-
rica espanhola dos século XVIII e XIX e na história do império britânico nas
Améri-
cas. É autor de: Reform and insurrection in Bourbon New Granada and Peru,
(co-editado
com John Fisher e Allen Kuethe, 1990); El Reino Unido y América: la época
colonial
(1992); Colombia before independence: economy, society and politics under
Bourbon
rule (1993); The British in the Americas, 1480-1815 (1994); Colombia antes
de la
independencia: economía, sociedad y politica bajo el dominio Borbon (1997);
Independence
and revolution in Spanish America: perspectives and problems (co-editado com
Eduar-
do Posada-Carbó, 1999). Atualmente prepara um livro sobre as guerras de
indepen-
dência na América Latina.

HENDRIK KRAAY, PhD em história pela Universidade do Texas em Austin, é


professor
associado de história e ciências políticas na Universidade de Calgary,
Alberta, Cana-
dá, e foi professor visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro. É
autor de:
Afro-Brazilian culture and politics: Bahia, 1790s-1990s (1998); Race, state,
and armed
forces in independence-era Brazil: Bahia, 1790s-1840s (2001); Nova história
militar
brasileira (co-editado com Celso Castro e Vitor Izecksohn, Editora FGV,
2004); I die
with my country: perspectives on the Paraguayan War, 1864-1870 (com Thomas
L.
Whigham, 2004).

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430 A independência brasileira

IARA LIS SCHIAVINATTO, doutora em história pela Universidade de Campinas, é


pro-
fessora associada no Departamento e Programa de Pós-Graduação em Multimeios
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora de Pátria coroada:
o
Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831 (1999).

ISABEL LUSTOSA, doutora em ciência política pelo Iuperj, é pesquisadora


titular III da
Fundação Casa de Rui Barbosa/MinC. É autora de: Histórias de presidentes: a
Repú-
blica no Catete (1989); Brasil pelo método confuso: humor e boêmia em
Mendes Fradique
(1993); Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência
(2000); O nasci-
mento da imprensa no Brasil (2003); As trapaças da sorte: ensaios de
história política e de
história cultural (2004). É co-editora junto com Alberto Dines da edição
facsimilar
do Correio Brazilense (1808-1822) de Hipólito da Costa (2002/03). Dirigiu a
área
de pesquisa do Museu da República.

JOÃO PINTO FURTADO, doutor em história social pela Universidade de São


Paulo
(USP), é professor de história do Brasil e historiografia brasileira na
Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisador e coordenador do Projeto
História e
Linguagens. É autor, entre outras obras, de Trabalhadores em educação;
experiência ,
imaginário e memória sindical nos anos 80 e 90 (1996) e O manto de
Penélope: história,
mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788/9 (2002).

JORGE M. PEDREIRA, doutor em sociologia pela Universidade Nova de Lisboa, é


profes-
sor visitante na Brown University (Providence, EUA) e na Universidade de
São Paulo,
professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lis-
boa, presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (1996-1998) e
secretário de
Estado Adjunto e da Educação de Portugal (desde março de 2005). Editou o
Ensaio
Económico sobre o comércio de Portugal e suas colónias [1794], de Joaquim
José de Azeredo
Coutinho (1992), e é autor de Estrutura industrial e mercado colonial:
Portugal e Brasil,
1780-1830 (1994) e Capitalismo, privilégio e império: os homens de negócio
e a praça
mercantil de Lisboa do tempo de Pombal à independência do Brasil (no
prelo).

KIRSTEN SCHULTZ, doutora em história da América Latina pela Universidade de


Nova
York, é professora de história e estudos latino- americanos na Cooper Union
for the
Advancement of Science and Art (EUA). É autora de Tropical Versailles:
empire,
monarchy and the Portuguese Royal Court in Rio de Janeiro, 1808-1821
(2001).

LILIA MORITZ SCHWARCZ é professora titular no Departamento de Antropologia


da
USP. Foi professora visitante nas universidades de Oxford e de Leiden. É
autora,

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Sobre
os autores 431

entre outros livros, de: Retrato em branco e negro: jornais, escravos e


cidadãos em São
Paulo no final do século XIX (1987); O espetáculo das raças: cientistas,
instituições e
pensamento racial no Brasil, 1870-1930 (1993); As barbas do imperador: d.
Pedro II,
um monarca tropical (1998); A longa viagem da biblioteca dos reis: do
terremoto de
Lisboa à independência do Brasil (2002); Símbolos e rituais da monarquia
brasileira
(2000); Racismo no Brasil (2001); O livro dos livros da Real Biblioteca
(2003). Coor-
denou o volume 4 da História da vida privada no Brasil: contrastes da
intimidade
contemporânea (1998).

LUIZ GERALDO SANTOS DA SILVA, mestre em história pela Universidade Federal


de
Pernambuco (UFPE), doutor e pós-doutor pela USP, é professor adjunto no
Depar-
tamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É autor de A
faina,
a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar, sécs.
XVII ao XIX (2001)
e Os pescadores na história do Brasil: Colônia e Império (1988).

MÁRCIA REGINA BERBEL, doutora em história pela USP, é professora associada


no
Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da USP. É autora de A
nação como artefato: deputados do Brasil nas cortes portuguesas, 1821-1822
(1999).

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