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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

LUISA DE ALMEIDA MAGALHÃES SIMÃO

O TERNO NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE A TRADIÇÃO E O DESIGN DE MODA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

MESTRADO EM DESIGN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

São Paulo, janeiro/ 2012.


UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

LUISA DE ALMEIDA MAGALHÃES SIMÃO

O TERNO NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE A TRADIÇÃO E O DESIGN DE MODA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

MESTRADO EM DESIGN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU

São Paulo, janeiro/ 2012.


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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

LUISA DE ALMEIDA MAGALHÃES SIMÃO

O TERNO NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE A TRADIÇÃO E O DESIGN DE MODA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Design – Mestrado, da Universidade
Anhembi Morumbi, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Design

Orientadora: Prof. Dra. Cristiane Mesquita

São Paulo, janeiro/ 2012.


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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

LUISA DE ALMEIDA MAGALHÃES SIMÃO

O TERNO NA CONTEMPORANEIDADE:
ENTRE A TRADIÇÃO E O DESIGN DE MODA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação


Stricto Sensu em Design – Mestrado, da Universidade
Anhembi Morumbi, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Design:

Orientadora e presidente da banca:


Prof. Dra. Cristiane Mesquita
Mestrado em Design Universidade Anhembi Morumbi

Examinador Interno
Prof. Dra. Rosane Preciosa
Universidade Anhembi Morumbi

Examinador externo
Prof. Dra. Carla Mendonça
Universidade Federal de Minas Gerais

São Paulo, janeiro/ 2012.


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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor.

LUISA DE ALMEIDA MAGALHÃES SIMÃO

Mestranda em Design pela Universidade Anhembi


Morumbi. Especialista em Gestão de Negócios –
PUC-MG e graduada em Design de Moda – FUMEC
(BH). Atua profissionalmente como estilista em Ateliê
próprio e como professora na Estácio – BH, no curso
Tecnológico em Design de Moda.
[luisasimao@live.com]

S596t Simão, Luisa de Almeida Magalhães


O terno na contemporaneidade: entre a tradição e o
design de moda / Luisa de Almeida Magalhães Simão. – 2012.
127f.: il.; 30 cm.

Orientador: Prof. Dra. Cristiane Mesquita.


Dissertação (Mestrado em Design) - Universidade
Anhembi Morumbi, São Paulo, 2012.
Bibliografia: f.114-117.

1. Design de moda. 2. Alfaiataria. 3. Design.


4. Terno. 5.Vestuário. I. Título.

CDD 741.6

5
Dedicatória

Dedico este trabalho a todos aqueles que acreditaram


no meu sucesso; a todos que contribuíram para que essa
caminhada se tornasse mais leve e suave, mais prazerosa e
menos sofrida: ao meu pai, por viabilizar a oportunidade
de estudo e crescimento intelectual e por acompanhar
tudo com enorme orgulho e satisfação; a minha mãe, pelas
palavras doces e pelo eterno colo nos momentos difíceis; aos
meus irmãos, Soninha, Dani e Toti, que a todo momento
me incentivaram e estiveram sempre a postos para o que eu
precisasse; ao meu amor, Wagner, que, pacientemente, esteve
ao meu lado, compreendendo os momentos de ausência e
dizendo sempre palavras de estímulo; a minha sobrinha
Carolina que, sem dúvida, através de seu olhar inocente, de
sua espontaneidade e de seu carinho, contribuiu para que a
jornada se tornasse mais alegre.
A Prof. Dra. Cristiane Mesquita, pela enorme sabedoria
e por compartilhá-la comigo ao longo desses dois anos; pela
paciência e empenho na construção deste trabalho.
As amigas que fiz no mestrado, pelo companheirismo
e pela troca de experiências que ajudaram muito durante
todo o processo.
A Deus.

6
“Sou contra a moda que não dure. É o meu lado masculino. Não consigo imaginar
que se jogue uma roupa fora, só porque é primavera.” Coco Chanel
7
Resumo
Esta pesquisa aborda o terno como um artigo do vestuário que acompanha as exigências
do mercado de moda, sem perder sua original conexão com a tradição e com a alfaiataria clássica
e investiga o traje sob diferentes perspectivas. A fim de compreender melhor sua origem, o texto
apresenta uma averiguação histórica, contextualizando o terno ao longo do tempo, apontando
conexões com o campo do design de moda, realçando seus atributos simbólicos e enfatizando alguns
dos paradoxos que o caracterizam. Após este trajeto, nosso objeto de estudo é abordado sob o ponto
de vista dos estilos de vida e dos usos individuais, de modo a enfocar o traje no contemporâneo. Por
fim, o terno é pensado a partir do trabalho do alfaiate e artista plástico mineiro Marcelo Blade, o
que aponta reflexões no âmbito da experiência estética.

Palavras-chave: Terno. Design de Moda. Tradição. Alfaiataria.

Abstract
This research adresses the suit as a piece of clothing that follows the fashion business’ demands
but maintains it’s original conection with the tradition and classic tailoring. It also investigates the
suit under various perspectives. To better understand the origins of the suit, the text presents a
historical research contextualizing the suit over time , pointing out the connections with the fashion
design field, enhancing it’s simbolic atributes and emphasizing some of it’s caracterization paradoxes.
After this journey, our research object is adressed by individual points of view and different lifestyles
in order to foccus in the suit of the modern days. At last, the suit is analized throught the work of
Marcelo Blade, an artist and professional tailor from Minas Gerais, that approaches the suit within
his aesthetic experiment.

Key words: Suit; Fashion Design; Tradition; Tailoring.

8
Sumário

Introdução 13

1. O terno: um breve resgate histórico 17


1.1. O início da alfaiataria 18
1.2. Calça, colete e paletó: o traje de três peças 23
1.2.1. Atributos simbólicos do terno: erotismo e poder 35
1.3. Da costura à mão à máquina de costura, da máquina à 45
confecção seriada.

2. Tradição, Moda e Design 52


2.1 Tradição e Design: dissonâncias e conexões 54
2.2 Reflexões sobre o terno e os paradoxos da moda. 60
2.2.1. Uniformização: o terno para ser igual 60
2.2.2. Distinção: o terno para ser diverso 67

3. Algumas interpretações do terno: olhares contemporâneos 78


3.1. Paletó + calça + camisa + gravata = R$199,90 80
3.2. Usos e desusos: novas configurações do terno 91
3.3. “O palhaço vem de terno. O palhaço vende ternos” 99

Considerações Finais 111


Bibliografia 114
Anexo 118

9
Lista de Figuras

Figuara 1 – Soldado grego 19


Figura 2 – Armadura medieval 19
Figura 3 – Vestuário masculino do início do século XVIII 21
Figura 4 – Vestuário masculino simplificado 22
Figura 5 – Capa, gibão e culotte 23
Figura 6 – Charles II 24
Figura 7 – Traje revolucionário francês 25
Figura 8 – Vestuário masculino do século XVII 26
Figura 9 – Vestuário masculino do século XVIII 26
Figura 10 – Protótipo do terno do século XVIII 26
Figura 11 – Discóbolo de Mirón 27
Figura 12 – O Grupo de Laocoonte 27
Figura 13 – George Beau Brummell 31
Figura 14 – Traje de passeio do século XIX 32
Figura 15 – Gravata de musselina 33
Figura 16 – Gravata contemporânea 33
Figura 17 – Terno inglês 34
Figura 18 – Terno italiano 34
Figura 19 – Grand Négligé 37
Figura 20 – Porta-pênis a 38
Figura 21 – Porta-pênis b 38
Figura 22 – Porta-pênis c 38
Figura 23 – Gravata com caráter erótico 38
Figura 24 – Um passeio 40
Figura 25 – Modes de Paris 40
Figura 26 – Terno do século XX 40
Figura 27 – Imagem do filme 007 – O mundo não é o bastante a 42
Figura 28 - Imagem do filme 007 – O mundo não é o bastante b 42
Figura 29 – Imagem do filme 007 contra o homem da pistola de ouro 43
Figura 30 – Imagem do filme 007 contra GoldenEye 43
Figura 31 – Imagem do filme 007 contra a chantagem atômica a 44
Figura 32 - Imagem do filme 007 contra a chantagem atômica b 44

10
Lista de Figuras

Figura 33 – Prova de roupa em alfaiataria a 47


Figura 34 - Prova de roupa em alfaiataria b 47
Figura 35 – Caseamento artesanal 47
Figura 36 – Corte de molde feito a mão 47
Figura 37 – Desfile Yohji Yamamoto a 58
Figura 38 – Desfile Yohji Yamamoto b 58
Figura 39 – Desfile Yohji Yamamoto c 58
Figura 40 – Desfile Yohji Yamamoto d 58
Figura 41 – Desfile Vivienne Westwood a 59
Figura 42 – Desfile Vivienne Westwood a 59
Figura 43 – Advogados em solenidade de posse 63
Figura 44 – Presidente Dilma Rousseff 63
Figura 45 – Uniforme de seguranças 65
Figura 46 – Uniforme de garçon 65
Figura 47 – Integrantes do CQC 66
Figura 48 – Louis-Auguste Brun 69
Figura 49 – Le smoking 70
Figura 50 – Marlene Dietrich 70
Figura 51 – Desfile Tommy Hilfiger a 71
Figura 52 – Desfile Tommy Hilfiger b 71
Figura 53 – Terno adaptado à forma feminina 71
Figura 54 – Mulher trajada com terno a 72
Figura 55 – Mulher trajada com terno b 72
Figura 56 – The Beatles a 73
Figura 57 – The Beatles b 73
Figura 58 – Grafiteiro vestindo terno a 75
Figura 59 – Grafiteiro vestindo terno b 75
Figura 60 – Homens de terno praticando esporte a 75
Figura 61 – Homens de terno praticando esporte b 75
Figura 62 – Terno do malandro 76
Figura 63 – Ator e coreógrafo Carlinhos de Jesus 77
Figura 64 – Kit para montar carro 84

11
Lista de Figuras

Figura 65 – Kit de maquiagem 84


Figura 66 – Manual de instruções 85
Figura 67 – Revista Men’s Health 86
Figura 68 – Chic Homem 87
Figura 69 – “Kit terno” Artman 88
Figura 70 – “Kit terno” loja virtual a 89
Figura 71 – “Kit terno” loja virtual b 89
Figura 72 – Combinação informal do terno a 94
Figura 73 – Combinação informal do terno b 94
Figura 74 – Combinação informal do terno c 94
Figura 75 – Combinação informal do terno d 94
Figura 76 – Acessórios informais usados com terno 95
Figura 77 – “Costume” tradicional a 96
Figura 78 – “Costume” tradicional b 96
Figura 79 – Composição personalizada de terno a 96
Figura 80 - Composição personalizada de terno b 97
Figura 81 - Composição personalizada de terno c 97
Figura 82 – Marcelo Blade 99
Figura 83 – Intervenções de Marcelo Blade 101
Figura 84 – Ternos de Marcelo Blade a 101
Figura 85 – Ternos de Marcelo Blade b 101
Figura 86 – Performance de Marcelo Blade em Tiradentes a 103
Figura 87 – Performance de Marcelo Blade em Tiradentes b 103
Figura 88 – Performance de Marcelo Blade em Tiradentes c 104
Figura 89 – Terno singular 107
Figura 90 – Marcelo em ato performático 108
Figura 91 – Artefato exposto em intervenção 110

12
INTRODUÇÃO

Introdução

13
O presente trabalho visa investigar o terno como um artigo do
vestuário que se mantém em uso há cerca de dois séculos, conservando
seu caráter tradicional e, concomitantemente, dialogando com o
design de moda contemporâneo. Acompanhar as exigências do
mercado do vestuário sem perder sua conexão original com a tradição
e com a cultura da alfaiataria clássica, nos possibilita uma abordagem
que enfatiza o terno como meio para enfocar alguns dos paradoxos do
sistema da moda.
Esta pesquisa pretende abordá-lo em sua origem e história, bem
como a partir de alguns aspectos relevantes de sua presença no cenário
da moda contemporânea. Nosso principal objetivo é explorar alguns
dos atributos, características e usos que perpassam o universo do traje,
desde a tradição da alfaiataria, até criações no campo do design de
moda. Nosso trajeto abrange algumas das maneiras como esse artigo do
vestuário é usado e transformado por seus usuários, como também uma
manifestação ligada ao campo da arte. Dessa forma, nosso estudo se
fará a partir de uma compreensão de sua origem tradicional, percorrerá
adaptações e reinvenções ocorridas no campo do design de moda e será
concluída com a investigação sobre criações que deslocam o terno de
seu uso comum.
Para compor tal linha de pensamento, no primeiro capítulo
tratamos do contexto histórico em que se dá o surgimento do terno,
bem como sua evolução formal que resulta na estrutura que hoje
conhecemos. No entanto, é importante ressaltar que se trata de um
exame não linear de sua história e da alfaiataria, com a referência
aos acontecimentos que consideramos relevantes nesta pesquisa. Na
sequência, a fim de se compreender um pouco mais sobre sua utilização
como vestuário em grande parte do mundo, abordamos aspectos
relacionados às atribuições simbólicas ligadas ao terno, como erotismo
e poder, ilustradas por meio da figura do personagem James Bond. Para
finalizar este capítulo, apresentamos o levantamento das principais
transformações ocorridas no sistema produtivo do terno, relacionadas à
substituição do trabalho artesanal pelo processo industrial, bem como a
adaptação do traje ao novo cenário surgido com a Revolução Industrial.
Nesse sentido relacionamos o terno ao sistema de produção denominado
- 14 -
prêt-à-porter, na contramão da roupa sob medida.
Tendo em vista o surgimento da produção de ternos em larga
escala e a maior acessibilidade dos consumidores, o segundo capítulo
está voltado para uma análise sobre o traje e sobre o design de moda.
Em nossas hipóteses consideramos o terno como um elo entre a
tradição e o design, uma vez que o traje mantém sua estrutura formal
e suas características tradicionais, mas mostra-se aberto a inovações.
Este apontamento poderá ser visto por meio do trabalho de designers
como o japonês Yohji Yamamoto e a inglesa Vivienne Westwood, que
interpretam a alfaiataria e o terno cada um à sua maneira, de forma a
conferir-lhe singularidade e distinção.
Posteriormente, apresentamos aproximações entre o terno e a
moda sob a ótica dos paradoxos que caracterizam esse sistema: o traje
é pensado como vestuário capaz de conferir distinção ao indivíduo, ao
mesmo tempo que pode funcionar como vestimenta padronizadora.
Inicialmente, interpretado como um artigo do vestuário que possibilita
uma certa uniformidade entre os indivíduos, serão feitas algumas
reflexões relacionadas à apropriação do terno masculino pelas mulheres.
As possibilidades distintivas do terno, por sua vez, podem ser percebidas
quando este é deslocado de seu “lugar comum”, ou seja, quando seu uso
é relacionado à situações nas quais o traje não seria adequado. Alguns
desses deslocamentos poderão ser vistos no trabalho do designer inglês
Adrien Sauvage, intitulado This is not a suit – “isso não é um terno”,
em português -, em que ele descontextualiza o terno de seu uso comum.
Serão utilizados como exemplos a banda de rock britânica, The Beatles
e a figura do popular “malandro carioca” tipicamente brasileiro. No
primeiro caso, o terno é apresentado como um traje que rompe com
o estereótipo do roqueiro, e no segundo, como vestuário capaz de
caracterizar um tipo social.
No terceiro e último capítulo, o terno é apresentado na
perspectiva diferenciada dos estilos de vida, dos usos individuais e da
arte. Por meio dos estudos sobre o terno, trabalhamos com alguns
conceitos trazidos pelo prêt-à-porter, relacionados ao consumo e à
construção de modelos existenciais pré-estabelecidos. Em contrapartida,
para pensar usos individualizados, apresentamos exemplos de maneiras
- 15 -
distintas de vesti-lo através de imagens de moda de rua retiradas de blogs
especializados, fazendo comparações com sua tradicional configuração,
composta por paletó, calça e colete.
Como proposta de finalização, nosso objeto de estudo será
pensado a partir de um exemplo que envolve sua inserção no território
artístico. Esta abordagem traz a oportunidade de se refletir sobre o terno
no contexto da experiência estética. O trabalho do alfaiate e artista
plástico mineiro Marcelo Blade é enfocado a partir da apresentação
de suas ações performáticas, nas quais o traje é de uso recorrente.
O terno, sob esta ótica, é retirado de seu lugar comum e visto pela
perspectiva de um artista que o desvincula de seus atributos simbólicos
usuais. Para compreender o trabalho de Marcelo Blade, o entrevistamos
informalmente em seu ateliê, em Belo Horizonte, por considerar
relevante vivenciar seu processo criativo em relação ao terno.
Consideramos relevante nosso estudo por se tratar de uma
espécie de “janela” para investigar o terno sob diferentes perspectivas,
tais como aquelas ligadas aos campos da história, do design de moda e
da arte. Além disso, esta pesquisa enfatiza um artigo do vestuário pouco
abordado de modo específico, em termos teóricos. Nosso trabalho teve
como referências autores como Hollander (1996), Boucher (2010),
Souza (1987) e Musgrave (2009), no que diz respeito à abordagem
histórica. Sudjic (2010), Simmel (2008), Svendsen (2010) e Forty
(2007), colaboraram para uma compreensão mais ampliada com relação
ao design de moda e, por fim, facilitando o entendimento na esfera da
individualização e da experiência estética, estivemos em diálogo com
Lipovetsky (2009), Featherstone (1995), Gumbrecht (2006), Preciosa
(2005) e Crane (2006). Fizeram-se também relevantes as pesquisas
realizadas na internet, mais especificamente, nos blogs de moda, por
permitir uma maior aproximação visual com relação aos usos do terno
no cenário contemporâneo.

- 16 -
Capítulo 1
O terno: um breve
resgate histórico

17
1.1. O início da alfaiataria

Originalmente, o terno masculino é composto por três


peças: calças – roupa para as pernas que se estende da cintura aos
tornozelos –, colete – peça abotoada na frente que cobre o torso e
cujo comprimento vai até a cintura ou pouco abaixo dela – e paletó –
casaco de corte reto, com mangas compridas, que vai até a altura dos

1. Ao longo deste capítulo


quadris (NEWMAN, 2011).
dedicaremos alguns Construído com três metros de tecido, acabamentos artesanais,
parágrafos ao entendimento
da configuração atual forro, botões e alguns metros de linha, o terno pode ser chamado de
do terno, que passa a ser
nomeado “costume”. “costume”, sendo constituído de duas peças apenas: as calças e o paletó1.
O terno masculino esteve, em seus primórdios, relacionado ao
trabalho do alfaiate e à roupa feita sob medida. Por esse motivo, considera-
se interessante iniciar a presente análise a respeito do terno por uma
breve compreensão do ofício da alfaiataria e das primeiras características
que influenciaram o surgimento deste artigo do vestuário.
A alfaiataria surgiu na Europa entre os séculos XII e XIV, de
maneira lenta e gradativa. Na definição literal, “consiste no ato de
talhar (cortar) e coser (costurar) tecidos para a produção de roupas
masculinas” (HOUAISS; VILLAR, 2003, p.20), feitas, geralmente, com
técnicas artesanais e sob medida, levando em consideração as medidas
específicas do corpo de cada cliente. O alfaiate ou tailleur (em francês)
é o profissional que aprende o ofício da alfaiataria e se especializa nele,
tendo sido importante personagem para as transformações pelas quais o
vestuário masculino viria a passar, nos dois últimos séculos da história.
Os alfaiates pertenciam às Corporações de Ofício ou Guildas,
cuja origem também data de meados do século XII. As Guildas de
alfaiates, supervisionadas por alfaiates juramentados que mantinham
a disciplina e a ordem, eram tão importantes quanto quaisquer outras
instituições artesanais. Pertencer a tais associações facilitava a defesa
de interesses trabalhistas e econômicos, além de formalizar a profissão
(ROCHE, 2007).
Consideradas antecessoras dos sindicatos modernos, as
Corporações ou unidades de produção artesanal eram extremamente
organizadas e, geralmente, divididas em três categorias: mestre, oficial
- 18 -
e aprendiz. A divisão hierárquica acontecia, entre outros motivos,
para que a profissão se perpetuasse. O aprendiz era o futuro oficial o
qual, por sua vez, viria a se tornar mestre. Dessa maneira gerava-se um
ciclo de sucessões, responsável pela permanência da atividade. Havia,
no entanto, regras rígidas para o ingresso na mestrança. Os alfaiates
deveriam dominar todas as etapas e técnicas do processo produtivo,
pois pagavam multas caso o cliente reclamasse (ROCHE, 2007).
Os primeiros registros existentes a respeito do ofício estão
relacionados com o desenvolvimento das armaduras metálicas militares
e de cavalaria medievais que, posteriormente, serviriam de inspiração
para mudanças e transformações dos trajes masculinos.
Diferentemente das armaduras clássicas, feitas em algodão e
couro, as de metal, além de possibilitarem maior proteção, valorizavam
e exaltavam as formas do corpo masculino, realçando a beleza do corpo
articulado, dando-lhe aparência de força. O desconforto proporcionado
pelo peso e rigidez do metal, no entanto, resultou na necessidade de
proteger o corpo da própria armadura.
Por esse motivo, profissionais nomeados armeiros produziam
trajes acolchoados e justos feitos em linho para serem utilizados sob
a armadura. Segundo Hollander (1996), tais profissionais podem ser
considerados os primeiros alfaiates da Europa.
Figura 1: Soldado grego.
Soldado grego de
infantaria pesada.
Uniforme que deixava
o corpo mais exposto.
Geralmente, feito em
couro e algodão, com
proteções em metal
específicas para algumas
partes do corpo.
Fonte: www.enciclopedia.
com.pt, acesso em
05/10/2011.

Figura 2:
Armadura medieval
Armadura medieval feita
em aço e chapas de ferro
que cobrem todo o corpo.
Podiam conter até 250
partes articuladas, o que
evidencia a valorização das
formas humanas.
Fonte: www.tienda-
medieval.com, acesso em
05/10/2011.
- 19 -
As inovações nas armaduras representaram a primeira
modernidade real na moda ocidental. Substituía a estrutura
humana nua por outra tridimensional. O vestuário
masculino perde o aspecto folgado que tinha desde a
Antiguidade e surgem novas formas e linhas para o torso
e passa a considerar a forma completa das pernas e braços
(HOLLANDER, 1996, p. 62).

Se durante a Idade Média, a indumentária de homens e mulheres


diferenciava-se mais pelas cores e materiais do que pela forma, no fim
do período - que compreende a Europa Gótica ou Baixa Idade Média –
houve uma maior distinção entre o vestuário masculino e o feminino,
caracterizada, principalmente, pelo encurtamento das túnicas dos
homens e pelo alongamento das túnicas das mulheres (BOUCHER,
2010). A Baixa Idade Média – ocorrida entre os séculos XI e XV – foi
marcada também pelo estilo urbano e verticalizado que influenciou o
surgimento de uma silhueta mais magra e também verticalizada.
A estrutura vestimentar mais justa, executada pelos armeiros
no século XII, bem como a tendência à verticalização das roupas no
2. Estrutura
“formal”, no
fim da Idade Média são características que posteriormente, como será
sentido proposto
visto ao longo deste trabalho, influenciarão na concepção do terno
nesse trabalho,
refere-se à forma masculino. Possivelmente, da mesma maneira, muitos elementos da
do terno, à sua
materialidade. estrutura formal2 do terno já podiam ser vistos ao longo dos séculos
que a ele se antecederam.
O ofício da alfaiataria, de acordo com Hollander (1996),
desenvolveu sua história técnica com lentidão. Mesmo que,
inicialmente, fosse executada apenas por homens, até o final da Idade
Média tanto homens quanto mulheres usufruiam do serviço. Mulheres
que se dedicavam à costura trabalhavam para os alfaiates, considerados
melhores e mais competentes no ofício, executando tarefas para as
quais eram consideradas aptas, como costuras finas, confecção de laços,
bordados e roupas de baixo. A distinção entre os trajes femininos e
masculinos, estes “confortáveis e utilitários” e aqueles “complicados,
ilusórios e tolos”, nas palavras de Hollander (1996, p. 88), fez com que
esse cenário se modificasse.
Em 1675, na França, durante o reinado de Luís XIV, costureiras
francesas pediram permissão para formar uma Guilda de alfaiates
- 20 -
femininos, voltada apenas para a confecção de roupas femininas,
alegando que as mulheres sentiam-se desconfortáveis ao provarem suas
roupas diante dos artesãos. Alfaiates masculinos passaram, então, a
costurar apenas roupas para homens e mulheres as faziam para mulheres,
exceção ao corpete feminino, que se manteve executado por homens
por tratar-se de uma peça de execução similar à dos armeiros medievais
(HOLLANDER, 1996).
Para a autora, a separação da produção do vestuário, gerou uma
série de consequências marcantes para a alfaiataria que, a partir daí, passou
a ser vista como algo de técnica extremamente respeitável e minuciosa,
tendo o desenvolvimento do traje masculino se acelerado consideravelmente
a partir daí. Enquanto as vestimentas femininas adquiriam volume e
ostentação, os trajes masculinos tornavam-se cada vez mais resumidos.
Isso porque havia uma preocupação em manter os padrões
3. Traje comum,
considerado dentro
estabelecidos voltados para a harmonização do traje dos homens.
dos padrões de beleza e Um alfaiate habilidoso era aquele que interpretava o gosto do cliente,
qualidade da alfaiataria
da época. mantendo a harmonia das formas e proporções de um traje normal3.
A costureira, por sua vez, podia confeccionar o que bem entendesse,
extrapolando os limites do aceitável, trazendo extravagância e
dramatização para a vestimenta feminina que, no século XVIII, era vista
como teatral, absurda e indisciplinada.
Para Hollander (1996), na
primeira metade do século XVIII,
o vestuário masculino era muito
mais incômodo do que criativo,
pois até então a roupa era feita,
principalmente, para demonstrar
a posição social do indivíduo que
a vestia e não para dar mobilidade
ou comodidade. Já na segunda
Figura 3:
Vestuário masculino do metade do século, distinguiram-se
início do sec. XVIII.
Fra Calgaria Ghislandi, as formas consideradas elegantes
O conde Valetti, 1710,
Academia, Veneza. pela aristocracia inglesa, com
Vestuário masculino do
início do século XVIII: preferência pela simplicidade em
distinção social através
da roupa.
detrimento do exibicionismo.
- 21 -
Figura 4: Vestuário De acordo com
masculino simplificado.
Alessandra Longhi, Svendsen (2010, p. 47), o
Um fidalgo veneziano,
1765. Vestuário mais processo de industrialização e as
simplificado a partir da
segunda mudanças econômicas e sociais
metade do século.
Fonte: BOUCHER, do período, intensificadas no
2010, p. 299.
século XIX, foram os principais
fatores responsáveis por essa
simplificação, criando “uma
necessidade de roupas
masculinas mais simples para a
nova burguesia”, que precisava
de um traje mais confortável e
articulado para o trabalho.
A objetividade e a limpeza
de formas das vestimentas
masculinas se mantiveram e se
fortaleceram no século seguinte.
Conforme enfatiza Mello e
Souza (1987, p.61), “o século XIX se inicia sob o signo da simplicidade.
Nesse sentido já vinha se processando, desde o século anterior, um
movimento que partiu talvez das idéias de Rousseau e da influência das
modas inglesas, acentuando-se com a Revolução Francesa”.
O espírito de democratização e a instauração do conceito
de “indivíduo”, em substituição à noção ideológica de “cidadão”,
estimularam mudanças no vestuário, fazendo surgir, assim, trajes
mais sóbrios e elegantes que, de certa forma, vão influenciar no
aparecimento do terno masculino. O terno, para Svendsen (2010,
p. 47), foi “uma brilhante solução” para o novo cenário econômico e
social que se estabelecia no século XIX, assinalando a afiliação a uma
nova era por sintetizar, ao mesmo tempo, a praticidade, a elegância
e a distinção.
Veremos que essa simplificação das vestimentas masculinas
culmina no aparecimento do terno, fato que será mais profundamente
investigado no próximo tópico do presente capítulo, quando serão feitas
investigações sobre as origens desse traje.
- 22 -
1.2. Calça, colete e paletó: o traje de três peças

Durante muitos séculos, os códigos do vestir eram ditados pelas


cortes e disseminados pela aristoracia, e com o terno não foi diferente.
A combinação de calça, colete e casaco, que constitui o traje de três
peças, surgiu como uma alternativa moderna para a capa, o gibão – um
tipo de casaco normalmente acolchoado, com ou sem mangas – e o
cullote (ou calções), que eram, em meados do século XVII e início do
século XVIII, representantes da elegância masculina.
Figura 5 De acordo com Musgrave
Figura 5: Capa,
gibão e culotte. (2009)4, o início da evolução
Início do século
XVIII, Victoria and do traje de três peças surge na
Alber Hall, Londres.
Fonte: BOUCHER,
Inglaterra, durante o reinado de
2010, p. 237. Charles II, em 1660. A vestimenta
4. As citações comum do rei era um casaco longo
indiretas de
Musgrave (2009)
de origem persa, um longo colete
são tradução nossa. por baixo dele e calças curtas na
altura dos joelhos ou acima deles.
Sob a pressão de crises financeiras
provenientes de batalhas navais
contra os holandeses, e supondo
serem necessárias contenções de
gastos, Charles II decretou, em
outubro de 1666, que a côrte deveria simplificar suas vestimentas,
utilizando um traje sóbrio de três peças feitas em um mesmo tecido.
Esse traje, no entanto, deveria realçar o caráter másculo dos homens
ingleses, reforçando sua legitimidade política e sua autoridade moral.
Tal tentativa de simplificação foi, no entanto, frustrada. Mas, mesmo
a côrte continuando a usar seu tradicional adorno que exaltava poder e
riqueza, esse acontecimento marcou o ponto inicial do desenvolvimento
do traje moderno que hoje é conhecido como terno.
O mesmo autor afirma que, ao longo do século XVII, o terno
desenvolveu sua forma moderna através da adapatação das roupas de
montaria dos cavalheiros. A aristocracia inglesa passava muitos meses
em suas propriedades rurais onde as principais atividades eram a caça e
- 23 -
a montaria. Por ser comprido demais, o paletó usado na corte era
inadequado às atividades exercidas no campo e, por esse motivo, foi
adaptado para o esporte, tornando-se mais curto e prático. Esse paletó
esportivo transformou-se no século XVIII em traje para o dia, utilizado
com colete e bermuda no joelho.
Figura 6 A simplificação das roupas
Figura 6: Charles II
Século XVII. Vestuário masculinas, que se inicia no
formado por casaco
longo, colete (sob o período revolucionário no fim
casaco) e calça
acima do joelho.
do século XVIII e continua nos
Fonte: www.oglobo. séculos seguintes, influenciou
globo.com, acesso em
07/10/2011 consideravelmente a concepção
do terno e, por isso, deve ser aqui
abordada, ainda que brevemente.
Segundo Mello e Souza
(1987), a Revolução Francesa,
ocorrida em 1789, consagrou
a passagem de uma sociedade
estamental para uma sociedade de
classes, estabelecendo, nesse sentido,
a igualdade política entre os homens, fazendo com que as distinções se
dessem pelas qualidades pessoais de cada um. As linhas suntuosas e
artificiais do vestuário do período Rococó foram abandonadas para dar
lugar à simplicidade a ao naturalismo, valores esses relacionados ao ideal
igualitário da revolução.
5. Para Boucher (2010, A nova ordem social, mais democrática5, exigia uma uniformidade
p. 311), a partir de
1789, “as bandeiras que se distanciasse dos padrões estabelecidos pela corte, marcando o fim
da democratização e
de progresso social e das diferenças que, até então, dividiam ricos e pobres. As sedas deram
econômico ocuparam o
primeiro plano na ação lugar ao algodão, a silhueta ficou mais simples e a decoração opulenta
empreendida contra
as regulamentações do acabou banida. Essa tendência à “despersonalização” do indivíduo
Antigo Regime e a favor
de sua substituição de
traduzia-se na uniformização da imagem pública, caracterizada,
uma doutrina utilitária principalmente, por mudanças consideráveis no vestuário masculino:
e individualista.” Dessa
maneira, a queda do a ostentação relacionada à hierarquia assumiu uma conotação negativa,
regime político francês
e o fim da vida de corte sendo renunciada para dar lugar às vestimentas muito mais resumidas.
acarretaram a supressão
de todo “traje de corte” O intinerário percorrido pela indumentária masculina, de acordo
até seu restabelecimento
por Napoleão. com Mello e Souza (1987), em vez de estar sujeito a ciclos de expansão
- 24 -
de determinados elementos decorativos, se simplifica progressivamente,
tendendo a cristalizar-se num uniforme. Para Roche (2007), o uniforme
reflete tanto o desejo de distinção quanto o de consenso e o terno, como
veremos adiante, pode representar tendências de homogenidade e, ao
mesmo tempo, de individualização. Nesse sentido, Brandini (2003,
p.3) afirma que

[...] se até o século XVII a espetacularidade no traje masculino


constituía uma forma aristocrática de representação do poder,
novas convenções sociais, entre elas, a banalização do luxo
ostentatório entre a aristocracia, a projeção do corpo humano
como extensão do trabalho e a condenação do homossexualismo
em países como a Inglaterra, a partir do século XVIII, reduziram
a espetacularização no traje do homem, tornando-o escuro e
sóbrio (BRANDINI, 2003, p. 3).

Figura 7 A riqueza de um homem


Figura 7: Traje
revolucionário francês. estava representada nas vestes de
Formas e tecidos mais
simplificados.
suas filhas, esposas e mães e não
Fonte:www.oglobo. mais na extravagância de sua
globo.com, acesso em
14/10/2011. própria vestimenta. A adoção de
roupas mais simples veio atrelada
à Era Industrial que se instalava,
exigindo mais sobriedade,
conforto e flexibilidade das
vestimentas masculinas, bem
como a reconstrução de sua
imagem pública.
A ostentação que
antecedeu a Revolução Francesa foi substituída pela simplicidade e pelo
conforto da Era Industrial. Influenciada pela moda inglesa, a roupa
masculina tornou-se mais sóbria. A essa simplicidade do vestuário pode
ser também atribuída à necessidade de mudanças nas formas do vestir
masculino, apropriadas às novas formas de trabalho. As atividades,
agora realizadas nas fábricas, no comércio e no escritório, exigiam tal
simplificação (CARTER, 2003).
No contexto do século XVIII, o vestuário feminino era teatral e
dramático, enquanto o masculino, mais resumido, procurava considerar
- 25 -
Figura 8: Vestuário as articulações do corpo e seus movimentos. Os trajes dos homens eram
masculino do
século XVII. estruturados sobre o corpo e, apesar de até esse período ainda possuirem
Visível excesso de
ornamentação. ornamentos tais como laços, fitas e babados, o que se extinguiria com a
retomada dos valores clássicos no final do século, já apresentavam as
formas do corpo masculino tal qual elas eram.

Figura 9: Vestuário Mello e Souza (1987, p. 44) afirma que a moda, nesse momento,
masculino do
século XVIII. “evolui da imobilidade para a mobilidade, o corpo evolui do bloco total
Traje mais simplificado,
apesar de ainda conter para a libertação dos membros.” Nesse sentido, observa-se que o traje
certos excessos.
Fonte: www.
masculino passa a ser feito de partes separadas, dispostas em camadas e
modahistoria.blogspot. destacáveis e a grande mobilidade física permitia a roupa se ajustar, tanto
com, acesso em
07/10/2011. ao corpo parado, quanto em movimento. A libertação dos membros e a
simplificação das vestimentas são influenciadas pelo resgate dos valores
Figura 10: Protótipo do da Antiguidade Clássica, ocorrido no fim do século XVIII.
terno do século XVIII.
Protótipo do terno De acordo com Hollander (1996), apesar de a alfaiataria ter
mais próximo de
como conhecemos traços de sua origem na Idade Média, o corte masculino clássico,
hoje, formado por
casaca, colete e culotte.
sugerindo um corpo masculino que se afina a partir dos ombros largos
Segunda metade do e peitos musculosos, é originalmente neoclássico e foi inventado e
século XVIII.
Fonte: www.oglobo. aperfeiçoado entre 1780 e 1820. A elegância nesse período, era
globo.com, acesso em
16/10/2011. sinônimo de seriedade. Os princípios estéticos característicos da época,
no fim do século, propunham “um ideal de ordem autoperpetuante,
flexível e infinitamente variável, privilegiando a simplicidade, a limpeza
- 26 -
de detalhes e cortes” (HOLLANDER, 1996, p. 16), marcando o
despertar para valores clássicos da antiguidade, afastando-se
esteticamente do barroco, aproximando-se, cada vez mais, de uma
simplicidade menos exibicionista.
Figura 11:
Discóbolo de Mirón,
Encontrada em 1781.
Uma das mais famosas
estátuas gregas e
exemplo de liberdade
de movimento. A
estaticidade e a rígidez
das esculturas de
períodos anteriores,
foram substituídas,
na Antiguidade,
por movimentos
tridimensionais, de
modo que as pessoas
pudessem admirar
o corpo humano tal
como ele é.

Figura 12: O Grupo de


Laocoonte. Encontrada
em1506. Valorização O ideal de beleza grego, pautado, entre outros fatores, pela
do corpo humano
em movimento. proporcionalidade e pelo movimento, pode ser observado nas esculturas
Representação
anatômica fiel: ossos e do período que refletem sua constante busca pela perfeição, pelo
musculos evidenciados.
Fonte: www. equilíbrio e pela harmonia das formas humanas.
ancientgreece.com,
acesso em 08/10/2011. Além disso, o volumoso vestuário da antiguidade clássica,
representado pelos tecidos drapeados sobre o corpo, era constituído
por formas elementares simples e nítidas, sem cortes ou modelagens
(BOUCHER, 2010). O neoclacissismo resgata essa simplificação e, ao
6. No presente
contexto, o sentido de mesmo tempo, o equilíbrio e a valorização das formas humanas nas
“natural” refere-se ao
vestuário masculino
vestimentas da época. O período neoclássico (1795-1820), dessa forma,
mais fiel à realidade
prima por um ideal de modificações em vez de um ideal de preservação,
das formas corporais
e mais simplificado. valorizando a beleza proveniente das esculturas gregas e definindo os
“O corte de um
bom terno devia novos padrões da beleza masculina.
ser “natural”, o que
significa que ele A nova imagem do homem “natural6” inspirada na figura clássica,
deverá fazer realçar da
melhor forma a figura podia ser vista nas linhas sutis dos casacos modelados com base em
do portador do fato
e só deverá intervir ossos e músculos. A textura do tecido sugerindo a suavidade da pele
para corrigir certas
partes em figuras
mostrava a interação vital entre a pessoa e o traje, fazendo com que,
verdadeiramente vestidos, os homens parecessem mais naturais do que nus. De acordo
problemáticas”
(ROETZEL, com Hollander (1996), as formas vitais da elegância masculina foram
2000, p. 90).
- 27 -
desenvolvidas pela aristocracia inglesa que desdenhava o exibicionismo.
A estrutura fundamental do corpo foi redescoberta, baseando-se na
anatomia humana e em suas proporções.
Nesse momento, o papel do alfaiate era recriar em tecido a nudez
masculina ou seja, trazer para a vestimenta todas as características
consideradas ideais para um homem moderno. Seu principal desafio era
criar a imagem da perfeição masculina nos moldes antigos respeitando as
regras ditadas pela alfaiataria. Castilho (2004) discorre sobre as relações
estabelecidas entre a vestimenta e o corpo masculino, reforçando, dessa
maneira, aspectos antes descritos por Hollander :

Pela análise plástica do traje, observamos que a figura


masculina é reforçada por meio de linhas retas, verticais,
que se traduzem em uma forma retangular, sólida. Temos,
pois, uma aproximação maior do traje masculino ao corpo
do homem. Dessa maneira, ainda que muitas vezes eles se
adornem ou se enfeitem, a reconstrução do corpo masculino
mantém uma linha mais próxima à sua estrutura física natura
(CASTILHO, 2004, p. 121).

A mudança plástica do corpo masculino vestido, ocorrida através


dos novos padrões estéticos neoclássicos que visavam aumentar o tórax
e os ombros, sugerindo-lhes um heroísmo natural, pode ser entendida,
do ponto de vista de Castilho (2004), como resultado da cultura na
qual esse homem estava inserido, valorizando positiva ou negativamente
determinadas partes do corpo. Nesse sentido, segundo a autora, ombros
e braços masculinos eram revestidos de forma a salientar ou reforçar
sua configuração, assim como o tórax que, sempre proeminente,
demonstrava sua solidez e seu volume.
A influência clássica no vestuário masculino se evidencia,
principalmente, na valorização do corpo do homem através da
vestimenta. Isso porque, em termos formais – relativos à forma das
roupas -, a indumentária da antiguidade nada tinha a ver com a estrutura
da roupa masculina que se estabeleceu no neoclacissismo. O terno, por
exemplo, ao contrário das vestes fluidas e soltas do período clássico,
remetia a uma forma sólida, compacta e quadrada do tronco masculino,
exaltando sua verticalidade, ocultando um interior encoberto pela
sobreposição de elementos do vestuário, como o paletó, o colete, a
- 28 -
gravata, a camisa e a camiseta.
Cabe ressaltar que a construção do terno mais simplificado e
sóbrio mantém-se e intensifica-se no século XIX. Os novos padrões de
elegância podem ser relacionados diretamente à Revolução Industrial
iniciada no século anterior, e foi marcada, entre outros fatores, pela
ascenção da classe média e pelo desenvolvimento do capitalismo.

O desenvolvimento do capitalismo industrial significava que a


riqueza não mais dependia da hereditariedade. Esforço pessoal
e propósito ganharam o status de únicos atributos capazes
de garantir uma vida próspera. O trabalho duro adquiriu
contornos de religião. Sobriedade no comportamento e o
hábito de poupar tornaram-se dominantes. (MACKENZIE,
2010, p. 32)

Tal sobriedade refletiu-se no vestuário masculino e o terno justo,


de aparência austera e cores escuras, virou símbolo de respeitabilidade,
em detrimento dos trajes extravagantes.
A elegância sóbria e comedida foi também influenciada pelo
dandismo, movimento ocorrido no Romantismo (início do século
XIX), que desencadeou o novo padrão de beleza do período.
O dandismo pode ser entendido como uma maneira de ser, um
estilo de vida, no qual seus adeptos vestiam roupas justas e impecáveis,
de corte e modelagem bastante precisos. Seu precursor, George Bryan
Brummel, chegou a influenciar o príncipe regente George IV, do Reino
Unido, entre 1789 e 1820, que ficou conhecido como o primeiro
membro da realeza a se interessar por moda e estilo (MUSGRAVE,
2009, p. 19). O príncipe, considerado extravagante, adotou os novos
padrões de gosto estabelecidos por Brummel que, segundo James Laver
(1989), marcaram o fim da hegemonia aristocrática no vestir de maneira
mal feita, mal acabada, e deram início à verdadeira distinção e elegância
dos homens, através de suas roupas feitas sob medida, específicas e
ajustadas perfeitamente ao corpo.
Segundo Jonh Harvey (2003, p. 43), “o estilo dândi renuncia
às plumas, mas ainda é uma forma de ostentação: assim a exibição da
riqueza está presente nas sutis evidências da boa qualidade do tecido,
quando visto de perto, e na meticulosidade do corte.” Esse aparente

- 29 -
7. A simplificação, recato dos dândis era, então, precedido de um preparo pessoal meticuloso
aqui referenciada com
relação aos dândis, em relação ao corte, à modelagem, ao caimento do tecido sobre o corpo
baseia-se no fato de
tratar-se de roupas e à maneira de se portar socialmente.
menos ornamentadas, se
comparadas às do início Mesmo que, na maioria das vezes, o dândi optasse por uma
do século XIX.
combinação de roupas mais sóbria e simplificada7 visualmente, sua atitude
e postura mantinham-se rebuscadas, pautadas por um certo excesso de
preocupação com a maneira de se portar e de agir socialmente.

Os dândis ingleses, agrupados em torno do príncipe


regente, futuro Jorge IV, e de George Brummel, impõe,
pouco a pouco, o novo estilo do traje masculino, feito de
uma correção calculada e um ajuste impecável, que leva os
alfaiates ingleses a aperfeiçoar o corte assim como os menores
detalhes das maneiras: paletós com abas caídas, cores sóbrias,
coletes abotoados, calções de gamo e botas curtas, calças bem
apertadas e abotoadas no tornozelo, chapéus de castor baixos e
quadrados são adotados por todos os elegantes (BOUCHER,
2010, p. 328).

A nova estética sugeria que o grande heroísmo do homem era


ser ele mesmo, natural, mas impecavelmente vestido. Nesse sentido é
possível afirmar que, apesar de os dândis portarem roupas simples e de
estilo sóbrio, geralmente compostas somente por calças, colete e casaco,
essas eram rebuscadas e trabalhosas de serem vestidas.
Para Harvey (2003, p. 38), a vestimenta do dândi demonstrava que
“a elegância, a modernidade e o bom gosto estavam à disposição tanto
do não-aristocrata quanto do aristocrata. Em um estilo manifestamente
sóbrio e de um impecável auto-respeito, um auto-respeito não ligado
à posição social”. Isso porque o dândi não era positivamente burguês
e sim um ocioso que demonstrava que “parecer um aristocrata não era
mais visto como elegante ou perspicaz” (HARVEY, 2003, p. 42).
A figura do dândi estabeleceu novos padrões de gosto, enraizados
na aparente simplicidade e distinção, mas é importante ressaltar que
levou certo tempo até que o terno se aproximasse do que é hoje e, como
vimos, diversos fatores contribuíram para o amadurecimento do traje
moderno. Musgrave (2009) afirma que o terno como conhecemos data
de 1860, ou seja, desde o surgimento da alfaiataria, ele sofreu inúmeras
mudanças, chegando à sua síntese somente no século XIX.

- 30 -
A essência do traje masculino estava consolidada desde o início do
século XIX e, dessa maneira, o que se modificavam eram os detalhes, e
não sua estrutura básica. Segundo Hollander (1996), desde 1800, as
roupas masculinas mostravam-se variáveis e expressivas, fluidas e criativas.
A diferença, no entanto, é que
Figura 13: George
Beau Brummell. surgem de maneira mais definitiva,
Século XIX (1805).
O precursor do dandismo, uma vez que já teriam atingido sua
Fonte: www.
oglobo.globo.com,
simplificação. O paletó tradicional,
acesso em 14/10/2011. por exemplo, se mantinha e o que
mudava eram suas lapelas, seus
detalhes como botões, bolsos, etc.
Na análise de Mello e Souza (1987),
a casaca que dará origem ao paletó
conhecida em inglês por riding-coat
8. Amplo casaco e, em francês, como redingote8, é
masculino longo e
cintado, cujas abas adotada pela maioria dos homens
se juntavam na
frente, próprio para europeus no fim do século XVIII. O
cavalgar.
paletó mais informal, como data
Boucher (2010, p. 347), surgiu em
1835, dividindo as horas do dia com
o redingote. O paletó era cada vez
mais usado depois de 1870, e o
terno – paletó, colete e calça de mesmo tecido – ganhou espaço após
1875, sem ser, todavia, considerado traje de gala.
No fim do século XIX, a sobrecasaca, ancestral do double
brasted - casaca com abotoamento trespassado, considerada estilosa e
autoritária - se faz presente com forte influência militar. Com a era
vitoriana chegando ao fim, houve um aumento da utilização do que era
considerado um traje informal, nomeado traje de passeio, e a sobrecasaca
se inseria nessa definição. Na virada do século, porém, a simplicidade
da sobrecasaca foi substituída pelo paletó de abotoamento simples, que
passou a ser considerado ideal para o dia (MUSGRAVE, 2009).
Segundo análise do mesmo autor, paletós e calças deveriam
respeitar as linhas do corpo e trabalhar sua proporção, uma vez que era
fundamental que as partes de um traje se complementassem. O terno
- 31 -
9. “Fato” pode referir-se ideal era aquele que disfarçava os defeitos e valorizava as qualidades do
à indumentária, roupa,
traje, vestuário. No corpo masculino. Roetzel (2000, p. 90), afirma que “o corte de um bom
presente contexto é
o mesmo que terno fato9 devia ser “natural”, o que significa que ele deverá fazer realçar da
masculino.
melhor forma a figura do portador do fato e só deverá intervir para
corrigir certas partes em figuras
verdadeiramente problemáticas.”
A evolução do terno
masculino também foi marcada por
algumas transformações que serão
aqui brevemente abordadas. Trata-
se de uma abordagem não linear
de alguns itens que constituem ou
Figura 14: Traje de
passeio do século complementam o terno moderno.
XIX. Sobrecasaca,
colete e calças. As calças, por exemplo, logo
Fonte: www.
oglobo.globo.com, substituiriam os calções, na segunda
acesso em 16/10/2011.
década do século XIX, lançadas pelo
duque de Wellington. Em concordância, para Eric Musgrave (2009),
a partir de 1820 as calças se tornaram mais comuns, embora fossem
bastante disformes, sem mostrar os contornos das pernas, terminando
sobre os tornozelos. Em 1895, de acordo com Boucher (2010),
introduziu-se a moda de marcar com ferro quente um vinco na perna
da calça, e, por sua vez, as pregas feitas no cós datam de 1911.
Outro exemplo refere-se à gravata. Boucher (2010, p.327) descreve
o acessório quando diz que “os últimos anos do século XVIII trazem
de volta a moda da gravata de musselina, mas bem diferente do que
tinha sido sob Luís XVI, consistindo num grande quadrado dobrado na
diagonal, enrolado em volta do pescoço, preso apenas por um pequeno
laço sem roseta [...]” As gravatas e os coletes se mantiveram até 1830,
quando a moda masculina, ainda concordando em alguns aspectos com
a feminina, privilegiava o estrangulamento dos corpos, acentuando as
formas com as “cintas bascas” usadas sobre a pele.
Mesmo a gravata não fazendo parte do traje entendido como
terno, uma vez que o mesmo compreende calças, colete e paletó, nas
mais recentes configurações desse artigo do vestuário – calças, paletó,
camisa e gravata – ela se insere como um acessório que o caracteriza
- 32 -
como tal. Na imagem a seguir é possível vizualizar como era a gravata
no século XIX e como ela se configura no contemporâneo.

Figura 15: Gravata


de musselina.
Início do
século XIX.
Fonte: www.oglobo.
globo.com, acesso
em 17/10/2011.

Figura 16: Gravata


contemporânea.
Fonte: www.
maiorestilo.com.
br, acesso em
23/11/2011.

Quanto aos tecidos, até o século XIX, não havia diferença entre
o masculino e o feminino. O uso do linho e da lã, combinados com
a seda, foi generalizado com o desenvolvimento da indústria têxtil. A
medida que o século avançava, o homem ia renunciava às sedas, aos
cetins e aos brocados, cabendo aos mesmos, apenas tecidos ásperos e
estruturados (MELLO E SOUZA, 1987). O aparecimento dos tecidos
sintéticos, já no século XX, trouxe uma nova dimensão para o terno
masculino e permitiu que os trajes pudessem ser feitos em tecidos muito
mais leves do que antigamente e, naturalmente, mais confortáveis e
frescos (ROETZEL, 2000). A invenção do poliéster combinado com
a lã, permitia uma enorme redução de custos na confecção dos trajes.
Tecidos sintéticos e misturas têxteis eram muito comuns em 1970, mas
os ternos de lã continuavam supremos, mesmo mantendo seus altos
custos (MUSGRAVE, 2009).
Até o fim do século XIX, o terno era considerado impróprio para
ocasiões formais, sendo utilizado somente durante o dia. É no século
XX que, mesmo muitos homens usando ternos sóbrios tradicionais,
uma variedade de possibilidades estilísticas foi implantada. No fim de
1960 e início de 1970, era possível encontrar tanto ternos clássicos
tradicionais, quanto ternos feitos de acordo com as inovações da moda.
- 33 -
Para Musgrave (2009), somente na década de 1930 é que o terno passou
a ser usado para o trabalho e para o lazer, de dia ou à noite. O contraste
entre o terno como roupa de trabalho e como roupa capaz de conferir
estilo pessoal foi estabelecido na década de 1970 e permanece até hoje.

A maior parte do vestuário masculino continua a expressar


um conhecimento maior das fronteiras visuais do que o das
mulheres, talvez conveniência estética, eu diria um sentido
mais aguçado para o design moderno, com base na noção de
que um único costume preenche um único propósito estético,
e exige uma única idéia para unificar suas partes visivelmente
separadas. (HOLLANDER, 1996, p. 143)

Ainda de acordo com Musgrave (2009), em termos de localização,


considera-se que a história da alfaiataria iniciou-se na Inglaterra e
ganhou fama pelos alfaiates que se instalaram em Savile Row, cujo
trabalho era considerado de alta qualidade. Conhecida como a mais
elegante rua da cidade de Londres e referência quando se trata de
alfaiataria, Savile Row manteve seu status e boa fama por muitos anos e
ainda hoje representa a sobrevivência do trabalho artesanal do alfaiate.
Por volta de 1960, no entanto, o corte italiano ganhou visibilidade por
ter uma alfaiataria diferenciada e se tornou, consequentemente, uma
referência para a moda masculina. Precursora da criação do traje de três
peças tradicional, nos antigos padrões da alfaiataria, a Inglaterra, há

Figura 17:
Terno inglês
Terno masculino,
1981. Corte e
modelagem mais
tradicionais
Fonte:
MUSGRAVE,
2010, p. 61.

Figura 18:
Terno italiano
Terno masculino,
1969. Modelagem mais
próxima do corpo.
Fonte: MUSGRAVE,
2010, p. 81
- 34 -
algum tempo, divide o monopólio estilístico com a Itália, que inseriu
critérios estéticos para a confecção de ternos que extrapolam os moldes
tradicionais (ROETZEL, 2000).
Segundo Roetzel (2000, p. 90), “o fato (terno) continua a ser a
roupa mais elegante que um homem pode vestir, pressupondo que o
corte, a cor e o tecido estejam correctos e que condigam com a ocasião,
a hora do dia, a estação do ano e o clima da região”. Vale ressaltar aquilo
que mencionamos inicialmente: originalmente composto por três
peças, paletó, colete e calça, o terno adquire, ao longo da história, uma
nova configuração, transformando-se em costume, um traje de duas
peças composto por paletó e calça, como veremos no terceiro capítulo
desta pesquisa, quando abordaremos alguns dos usos deste traje no
contemporâneo.

1.2.1 Atributos simbólicos do terno: erotismo e poder

Ao longo desta pesquisa, percebemos que alguns autores como


Hollander (1996) e Mello e Souza (1987), preocuparam-se em discursar
sobre a evolução e a permanência do terno ao longo dos dois últimos
séculos da história. Hollander (1996, p.14) afirma que a alfaiataria
masculina ao longo do tempo, adquiriu maior virtude e nova valorização
e “acumulou poder ao invés de dissipar suas forças durante os seus dois
séculos de flutuações, de modo que as satisfações que proporciona têm
sido cumulativas.” Mello e souza (1987), por sua vez, aborda a contínua
simplificação do traje masculino ao longo do século XIX que, segundo
a autora, inicia-se sob o signo da simplicidade e da crescente sobriedade
nas formas e cores das vestimentas da época.
Entende-se por Historicamente, o terno masculino assumiu sua forma moderna
“terno moderno”
a máxima 10
no século XIX e pode ser considerado síntese de um período de
simplificação do
traje masculino, transformações socio-econômicas. Vimos, anteriormente, que a
cujo auge se deu no
século XIX. Revolução Francesa e a Revolução Industrial desencadearam mudanças
significativas no trajar masculino, que se adaptou à nova ordem social
e econômica estabelecida a partir desses momentos históricos. Trata-se,
então, de um vestuário que traduziu o espírito de seu tempo através de
sua sobriedade e sintetização.
- 35 -
No entanto, o terno continua a ser usado no contemporâneo, o
que aponta que, possivelmente, ele possa traduzir também, o espírito
do nosso tempo. De acordo com Hollander (1996, p. 14), “ao não
desaparecer, mas ao contrário mudar seu campo de atuação e sua ênfase
visual, e mudar também seus significados social e sexual, os ternos
masculinos feitos nos moldes da alfaiataria provaram ser infinitamente
dinâmicos, detentores de um vigor elegante próprio.” Para a autora,
desde sua origem, os ternos são eróticos e politicamente atraentes e,
por esse motivo, ainda se mantém em uso. Talvez, alguns dos atributos
simbólicos que o terno pode carregar garanta sua logevidade, pautada
por valores que ainda são a ele associados.
Atributos como o erotismo e o poder são comumente associados
ao terno moderno e acompanham sua trajetória como marcas deixadas
pelo tempo, fazendo com que ele “continue exercendo sua autoridade
própria, sua força simbólica e emocional de autoperpetuação”
(HOLLANDER, 1996, p. 14). Possivelmente, vestir um terno pode
significar vestir também sua história e seus significados.
Nesse sentido, nosso intuito é compreender um pouco mais sobre
este traje como símbolo da virilidade masculina que traduz-se, entre
outras formas, através do poder que a ele está atrelado.
Hollander (1996, p. 47) afirma que “a simplicidade moderna
tornou-se um tema altamente erótico, permeando todas as formas de
design” e que a sexualidade é o motor fundamental das roupas modernas
e está por trás de toda e qualquer força na moda, chamando ou não
para características sexuais do usuário. Para a autora, a sexualidade no
vestuário é algo que se evidencia no fato de a roupa identificar cada
indivíduo, ou seja, dar-lhe identidade, definindo ideias sobre o próprio
corpo. A vestimenta é, por exemplo, primeiramente masculina, para
depois ser classificada como roupa de trabalho, de atividades esportivas,
de lazer, etc.

Os efeitos de sentido de sensualidade e os de erotismo que o


traje e o adorno, por suas composições plásticas, conferem ao
corpo realçam nessas manifestações um programa narrativo
articulado por estratagemas de matipulação diversas, das
quais se sobressaem a sedução e a tentação (CASTILHO,
2004, p. 100).
- 36 -
Castilho (2004) considera complexo o simbolismo sexual criado
pelo traje, uma vez que este se estabelece mediante relações interpessoais
que se alternam em razão das modificações socioeconômicas e
culturais.
Para se compreender o viés erótico que o terno adquire ao longo
de sua história, é necessário que voltemos ao contexto de sua origem.
Os ternos são originalmente neoclássicos e, talvez, esse fato poderia
explicar, a princípio, o porquê das primeiras associações da vestimenta
masculina com o erotismo.
Na perspectiva de Hollander (1996, p. 113), na Grécia Antiga,
no fim do século III a. C, a força, a virtude e a honestidade masculinas
eram diretamente associadas ao “herói nu”. No neoclassicismo, o “herói
nu” se torna o padrão de beleza masculina a ser seguido e a estrutura do
corpo vestido foi baseada na nudez natural da antiguidade, daí o
erotismo tão comumente relacionado ao terno. Com relação aos seus
aspectos formais, percebe-se que estão, da mesma maneira, evocando
significados sexuais.
Castilho (2004, p. 109) ao mencionar que “podemos entender
que o sujeito seduz revelando seu corpo nu, ao mesmo tempo em que o
vela, e assim por diante”, possibilita-nos compreender um pouco mais a
erotização que o terno carrega. Isso porque o traje masculino em questão,
ao mesmo tempo que reveste o corpo do homem, ocultando certas
partes do mesmo, revela, de maneira
implícita, em sua estruturação formal,
traços da nudez do herói da antiguidade,
reforçando sua sensualidade.
Figura19:
Grand Négligé Algumas vestimentas anteriores ao
Gravura de moda,
Grand Négligé, extraído
terno apresentavam, de maneira mais
de La Mésangère, óbvia, alguns traços sexuais. Na
francesa, 1808.
Proprorções “clássicas” Renascença, por exemplo, a virilidade do
dos homens: tórax e
ombros musculosos, homem era demonstrada através da
flancos esguios e pernas
compridas. Alfaiataria ênfase que se dava ao órgão sexual
mais simplificada que,
possivelmente, reflete masculino com o “porta-pênis” ou “code
uma figura clássica nua
traduzida em tecido. piece” (em inglês), uma estrutura rígida
Fonte: HOLLANDER,
1996, p. 125.
que marcava o local da genitália. Em
- 37 -
diversos períodos, inúmeros foram os recursos que exaltavam as
características sexuais do homem: desde o recorte das roupas de maneira
enviesada, direcionando ao órgão sexual, até o jogo de cores das
vestimentas para se chegar a um mesmo efeito. O terno, no entanto,
Figuras 20, 21 e apresenta uma sexualidade latente, mas muito mais sutil. As calças
22: Porta-pênis.
Imagens de homens tornaram-se mais folgadas no corpo e a explícita ênfase que antigamente
do século XVI. O
vestuário exalta o se dava à genitália masculina foi substituída pela sutileza da gravata que,
órgão sexual através
do “porta-pênis”, nesse sentido, trouxe de maneira discreta essas referências passadas. Seu
estrutura rígida
que demonstrava
formato fálico e seu sentido de direcionamento – uma seta que aponta
virilidade.
para baixo – evocam o caráter erótico e conduzem a atenção do
Fonte: BOUCHER,
2010, p. 189 e 190. observador para o órgão sexual masculino.

Figura 23: Gravata


com caráter erótico.
Imagem recente:
assim como os
“porta-pênis” do
século XVI, pode-
se considerar a
gravata como parte
do vestuário que
enfatiza o caráter
erótico do terno,
direcionando o
olhar do outro para
o órgão sexual.
Fonte: www.
roupasocial.
net, acesso em
28/10/2011.
- 38 -
A estrutura do terno era feita de maneira a reconstruir o corpo
nos moldes clássicos, baseando-se em ossos e músculos, aumentando
ombros e tórax, construindo, dessa maneira, uma imagem imponente e
erotizada, por traduzir em tecido, a nudez do homem.

O caráter erótico da nova moda masculina na primeira


década do século XIX foi intensificado por suas qualidades
exigentes. As roupas de feitio mais simples do barroco eram
mais fáceis de ser usada por todos. O feitio perfeito e os lenços
e adornos para o pescoço exigiam agora uma postura elegante
e movimento, que deveriam dar a impressão de ser feitos sem
esforço algum, já que estavam evocando e supostamente
imitando a natureza. (HOLLANDER, 1996, p. 129)

Desta maneira, a carga erótica da sedução masculina através do


terno, pode também ser explicada pelo fato de que portá-lo não era tarefa
fácil. Vestir o traje exigia postura e elegância no movimento, dando uma
ideia, segundo Hollander (1996), de “esforço sem esforço”, que reforça
a conotação erótica. Nas palavras de Castilho (2004, p. 80), o gesto tem
uma gramática própria, assim como a linguagem verbal e “desenvolvido
e assimilado como referência cultural, pode mapear manifestações de
“defesa”, de “submissão”, de “simpatia”, de “aprovação”, etc.”
Na reflexão de Castilho (2004, p. 71), “o corpo age, põe em ação
o gesto, por intermédio da mobilidade, que amplia significativamente
o potencial de significação da linguagem corporal capaz também de
traduzir esse universo polarizado entre o masculino e o feminino.” Para
a autora, a separação do vestuário feminino e masculino, culturalmente
estabelecida, revela, de certa forma, uma hierarquia, uma distinção de
papéis sociais e evidencia a superioridade dos trajes masculinos.

Homens e mulheres, pela segregação de diferentes tarefas,


estão separados na sociedade como dois grupos antagônicos,
formando mundos ou realidades completamente distintas.
Pode-se entender a diferença sexual como o primeiro
paradigma, a primeira oposição significativa, como também
a primeira manifestação de dominação explícita de um sexo
sobre o outro (CASTILHO, 2004. p. 112).

A diferença no trajar feminino e masculino pode ser evidenciada


nas distintas direções que estes tomaram e pode também explicar o
caráter de superioridade que o traje do homem moderno assume. O
- 39 -
aparecimento dos casacos masculinos folgados e articulados, em 1660,
contrastavam com a roupa das mulheres que, nesse mesmo período,
tornavam-se cada vez mais rígidas e apertadas (HOLLANDER, 1996).
Enquanto, gradualmente, os homens foram ganhando maior liberdade
de movimentação através de seus trajes, a movimentação feminina era
restrita e limitada.
Figura 24: Um passeio O período Romântico
Auguste Bourdet,
Um passeio, 1838, pode ser um bom exemplo
Bibliothèque Nationale
de France, Paris. disso, uma vez que as mulheres
Distinção no trajar
masculino e feminino costumavam desmaiar com
do século XIX: aquele
mais simples e sóbrio,
frequência devido ao uso dos
este mais suntuoso e
espartilhos que, de tão
exagerado.
Fonte: BOUCHER, apertados, dificultavam a
2010, p. 347.
circulação sanguínea. Os
homens, nesse momento, eram
vistos como capazes de garantir
a sobrevivência dessa frágil
mulher, assumindo papéis
protetores e reforçando a superioridade masculina que, no século XIX,
se refletiu na figura do terno (CASTILHO, 2004).
A verticalidade que os trajes masculinos assumiram, influenciaram
Figura 25: Modes na construção da imagem do homem dominador. A altura, de acordo
de Paris Le Narcisse,
Modes de Paris, com Castilho (2004, p. 79), “cria um efeito de superioridade, desperta
traje de verão, 1835.
Horizontalidade dos
ombros e verticalização
da figura masculina por
meio do traje.
Fonte: BOUCHER,
2010, p. 347.

Figura 26: Terno


do século XX.
Imagem de um terno
(costume) masculino
do século XX: a
verticalidade pode ser
percebida no formato
em “v” das lapelas e
na proximidade do
vestuário ao corpo.
Ombros marcados por
ombreiras.
Fonte: ROETZEL,
2000, p. 88.
- 40 -
no outro sentimentos de inferioridade, reverência, temor, respeito, etc.”
Dessa forma, a tendência à verticalização das vestimentas masculinas
contribuem para as associações entre o terno e o poder. De maneira
semelhante, a horizontalidade dos ombros, por exemplo, também
reforça essa conotação.
Para Harvey (2003, p. 16), “certos significados (das roupas)
aparecem e se reforçam pelo uso ao longo dos anos”, como é o caso
de alguns dos valores atrelados à imagem do terno. A moda muda,
segundo o autor, como mudam os significados e isso pode ser visto, na
presente abordagem, através das tranformações dos valores eróticos do
terno que, inicialmente, eram relacionados à sua origem neoclássica e
que, mais recentemente são associados ao poder e à virilidade.
É provável que a ideia que se tem hoje do terno tenha sido
influenciada por sua trajetória, mas é possível perceber que a
imagem produzida pelo traje também adquire novos contornos na
contemporaneidade.
O erotismo e o poder comumente associados ao traje masculino
moderno, podem ser ilustrados por meio da figura do personagem
James Bond. Também conhecido pelo código 007, James Bond é
um agente secreto fictício do serviço de espionagem britânico, criado
pelo escritor Ian Fleming em 1953. Os livros se tornaram filmes e a
franquia James Bond, ao longo de seus 46 anos, já inclui 22 produções
cinematográficas. Em todas elas, a figura do agente secreto é associada
ao terno:desde sua primeira aparição, em 1953, a personagem de Bond
utiliza ternos sob medida, produzidos em Saville Row que mantém 007
11. www. dentro dos padrões de elegância britânicos11, mesmo em cenários ou
bondcollection.com.ar
climas diversos.

12. Mais sobre o A visualização e breve abordagem da personagem colabora nesse


assunto pode ser visto
estudo para mostrar como o uso do terno pode intensificar determinados
em: CHAPMAN,
James. Licence to Thrill: valores como o erotismo e o poder sem, necessariamente, fazer uma
a cultural history of
the James Bond films. análise histórica baseada nos filmes em questão12, mesmo porque seria
New York: Columbia
University Press, 2000. uma leitura de outra natureza por tratar-se de figurino.
Segundo seu criador, Ian Fleming, “James Bond é um homem

13. www.
que sabe o que quer e como conseguir, em todos os aspectos de sua
bondcollection. vida”13 e o terno, nesse sentido, pode reforçar a ideia de determinação.
com.ar
- 41 -
Figura 27: Imagem do O agente 007 é descrito nos livros como um homem alto, moreno,
filme 007 – O mundo
não é o bastante. viril, de porte atlético e sedutor. Em muitas cenas, está vestido de
Pierce Brosnan
interpretando 007 no terno, que, associado aos atributos simbólicos averiguados, tende a
filme 007-O mundo
não é o bastante, em enfatizar tais características.
1999. O terno (nesse
caso o costume) está Hollander (1996, p. 144),
presente nas cenas de
ação da personagem,
afirma que “o terno não restringe o
demostrando corpo do modo como a armadura
sua adaptação ao
corpo também em ou os gibões da Renascença” e, sim,
movimento.
por ser um traje de caimento fácil,
permite uma maior movimentação.
No caso de James Bond, mesmo
em movimento, em cenas de ação,
o terno está presente, conferindo,
nas palavras de Hollander (1996, p.
145), uma “masculinidade adulta
confiante” e reforçando a “aparência
moderna de abstração dinâmica cuidadosamente simplificada, que tem
seu próprio apelo sexual forte.”
Figura 28: Imagem
do filme 007 contra
Golden Eye.
Fonte: www.
webcine.com.
br, acesso em
24/10/2011.

Para Hollander (1996, p. 144), de maneira geral, “o terno sugere


diplomacia, compromisso, civilidade e autocontrole físico” e no caso
do agente 007, são características que constituem a personagem. Nesse
sentido, a escolha do traje moderno como sua principal vestimenta se
faz adequada por reforçar esses significados.
De acordo com Lima (2008, p.1), “a franquia de 007 é
constituída pelos elementos que satisfazem as frustrações e desejos
coletivizados do homem médio e também ratifica os modelos masculinos
que a cultura industrializada impôs como ideiais”. Através do estereótipo
- 42 -
frágil da figura feminina, erotizada e fetichizada nos filmes, a figura do
homem mantém sua posição dominadora. De acordo com a autora
“pode-se considerar que também o elemento feminino inserido na série
revela muito sobre a mentalidade da sociedade patriarcal e suas
expectativas para as funções das mulheres” (LIMA, 2008, p.1), que
assumem, nas tramas, posições inferiores ao protagonista.

Figura 29: Imagem


do filme 007 contra o
homem com a pistola
de ouro, Filme de
1974. Roger Moore
interpretando o agente
secreto, vestindo um
terno e resgatando a
mulher do perigo.
Fonte: www.webcine.
com.br, acesso em
24/10/2011.

As “Bond Girs”, como são conhecidas as mulheres que, a cada


filme, acompanham 007, de maneira geral:

[...] não são constituídas por nuances ou detalhes particulares,


a não ser que eles sejam de alguma importância específica
para a trama. Algumas são até incoerentes em sua estrutura,
mudando radicalmente de comportamento de acordo com
a conveniência do roteiro. Diversas garotas podem aparecer
numa aventura de James Bond, mas só uma ou duas ganham
maior destaque dentro da história. A função delas está
bastante relacionada ao próprio Bond e com as necessidades
dele na trama – inclusive sexuais. Grosso modo, 007 olha
para as mulheres como meros objetos sexuais, prazeres
descartáveis que, a princípio, não despertam nenhuma
afeição ou sentimento (LIMA, 2008, p. 2).

Figura 30: Imagem do filme O papel “protetor” e


007 contra Golden Eye.
Pierce Brosnan atuando no “dominador” que James Bond assume
filme 007 contra Golden
Eye, em 1995. A figura em relação às mulheres, em conjunto
fragilizada da mulher
reforça o poder do agente com sua principal vestimenta, resulta
secreto. Isso pode ser visto
na expressão facial de medo em uma combinação “sedutora”.
em seu rosto e, da mesma
maneira, por meio de sua A sedução pode ser aqui
linguagem corporal que
passa a ideia de uma
apontada como uma das principais
figura fragilizada que características do agente secreto e
precisa de proteção.
Fonte: www.webcine.com. enfatizada não só pelos momentos em
br, acesso em 24/10/2011.
- 43 -
que este traja seu terno, mas também em momentos em que o corpo de
Bond é revelado. Em todos os filmes da série, James Bond aparece
despido apenas em momentos breves. No sentido de “velar” e “revelar”
o corpo, de acordo com Castilho, “o vestuário possui a função reguladora
do instinto sexual, que pode ser atenuado ou explorado por meio de
trajes e acessórios” (2004, p. 123). Dessa forma, ao cobrir o corpo de
007, é possível perceber que o terno assume tanto o papel de “velar”
quanto o de “revelar”, pois, ao mesmo tempo em que oculta o corpo, ele
exalta as formas do mesmo, através de sua estruturação verticalizada que
alarga os ombros e confere porte à James Bond.

Figuras 31 e 32:
Imagens do filme 007
contra a chantagem
atômica. Filme de
1965. Sean Connery
interpretando o
agente secreto em dois
momentos distintos:
expondo o corpo e
trajando um smoking14.
Ambas as imagens
podem ser consideradas
sexualmente fortes.
Fonte: www.webcine.
com.br, acesso em
24/10/2011.

14. Em Monte Carlo,


por volta de 1880,
surgiu o dinner-jacket
ou smoking, adotado
pelos jogadores que
achavam cansativo
ficar a noite inteira de
casaca (BOUCHER,
2010). É formado
por gravata-borboleta
preta e paletó preto
ou azul-marinho que
desce até a cintura, com Por meio da breve exposição sobre o figurino do agente 007,
lapela de seda, podendo
ser considerado uma podemos considerar que a escolha do figurino clássico para caracterizar
variação para o terno
masculino. James Bond não só colabora para construção de sua imagem sobre os
pilares do poder e da virilidade, como também permite que, mesmo
depois de 46 anos, a personagem seja reconhecida por sua elegância.
Considerando a moda como um sistema que permite a
ressemantização do corpo e do sujeito, ou seja, a protagonização de papéis
sociais diversos, ressaltamos a reflexão de Castilho, ao afirmar que

- 44 -
quando utilizados pelo grupo masculino, certos trajes
assumiam significados específicos, como a glória na hierarquia
militar, civil ou religiosa. No conjunto, a indumentária
masculina conferia aos homens o poder, a grandeza, a riqueza,
a dignidade no contexto de uma determinada coletividade
(CASTILHO, 1996, p. 144).

Nesse sentido, vale lembrar que, embora o terno masculino não


seja mais um traje universal para os homens, ele “retém sua imagem de
obedecer aos padrões, e portanto retém seu prestígio” (HOLLANDER,
1996, p. 146) que, como vimos, pode estar também relacionado aos
valores que vêm se atrelando a essa peça do vestúario desde sua origem.

1.3. Da costura à mão à máquina de costura,


da máquina à confecção seriada

Diante de um novo cenário produtivo proveniente da Revolução


Industrial, a alfaiataria, no século XIX, passou por diversas mudanças.
A invenção da máquina de costura há mais de 150 anos, por exemplo,
assim como a invenção de inúmeras outras máquinas – caseadora
(1862), para costurar botão (1875), para reforçar o acabamento (1886),
para o corte (1900) (MUSGRAVE, 2010) – representou o início de
um período de transformações que resultaram em uma diminuição
significativa do trabalho, para muitos considerado enfadonho e
cansativo, de costurar à mão, gerando maior eficiência produtiva.
Inaugurava-se, dessa forma, uma maneira de otimizar o trabalho e
conferir-lhe maior precisão, além da possibilidade de se produzir em
massa, resultando uma maior acessibilidade.
Compreender o contexto da Revolução Industrial, ocorrida entre
os séculos XVIII e XIX, se faz importante por tratar-se de um período
que desencadeou mudanças permanentes nos modos produtivos e
representou também o aumento considerável do consumo de massa. Tal
compreensão é importante para a sequência dessa pesquisa que abordará
questões relacionadas aos modos de uso do terno no contemporâneo
desencadeados, entre outros motivos, pela massificação do consumo
deste produto. Dessa forma, o entendimento de um percurso de tais
- 45 -
transformações é de suma importância.
Para Cardoso (2008, p. 26), a Revolução Industrial refere-se “à
criação de um sistema de fabricação que produz em quantidades tão
grandes e a um custo que vai diminuindo tão rapidamente que passa
a não depender mais da demanda existente, mas gera seu próprio
mercado.” O barateamento dos custos aumentaram as possibilidades
de consumo, não só no que diz respeito ao vestuário, mas também aos
demais produtos.
O século XIX foi marcado por um significativo crescimento
urbano que veio atrelado à expansão da indústria, com um número
cada vez maior de pessoas fazendo uso de novos meios de transportes
nos núcleos urbanos para irem em busca de emprego (CARDOSO,
2008). As cidades assumiam novas configurações diante das novas
estruturas sociais e familiares que se formavam, entre outros motivos,
pela ascensão do capitalismo e pela redefinição de valores e códigos
morais da vida urbana, que se transformava progressivamente. Cardoso
afirma que:

A mecanização do trabalho é o outro grande fator que define


a industrialização, e uma série de inovações tecnológicas entre
o final do século XVIII e início do século XIX foi permitindo
o aumento constante da produtividade na indústria têxtil a
custos cada vez menores em função da rapidez da produção e
da diminuição da mão-de-obra (CARDOSO, 2008, p. 27).

Nesse sentido, os progressos da indústria e do comércio geraram


uma série de mudanças que contribuíram para a evolução do vestuário
rumo à sua democratização. Boucher afirma, nesse contexto, que:

Estado de espírito, progressos da indústria e do comércio,


afluxo de invenções técnicas, concentração de capitais – todo
esse conjunto de condições novas estimula, durante essa
primeira metade do século, uma evolução do vestuário rumo
à sua democratização (BOUCHER, 2010, p. 332).

Antes disso, a produção de ternos restringia-se às técnicas manuais,


como aponta Musgrave (2010) ao lembrar que até a metade do século
XIX, a roupa produzida era feita à mão, em pequenos ateliês e a maioria
das pessoas costurava em casa.
- 46 -
No entanto, de acordo com Roetzel (2000, p. 93), a partir da era
industrial, a alfaiataria passou a abranger tanto a confecção sob medida,
quanto a confecção em escala industrial e, em termos produtivos,
existem consideráveis diferenças entre elas. Segundo o autor, confeccionar
um terno sob medida significa costurá-lo especificamente para cada
cliente, “segundo suas medidas e os seus desejos”, com um “corte
próprio, que é exatamente ajustado ao seu corpo e que corresponde à
sua personalidade”. O terno pronto, por sua vez, é resultado de um
corte padronizado, com medidas preexistentes e, algumas lojas, caso
seja do interesse do cliente, possibilitam ajustes para que o terno se
adapte melhor ao seu corpo. Assim mesmo que as duas formas de
produção possibilitem bons resultados, falta, ao terno pronto “a
individualidade de um terno feito sob medida”.
As técnicas artesanais utilizadas na confecção sob medida podem
Figura 33 e 34: Prova
de roupa em alfaiataria. ser consideradas de grande precisão e qualidade se comparadas às técnicas
Alfaiate da loja
especializada em industriais. Isso se deve ao fato de o terno artesanal ser construído
alfaiataria masculina,
realizando a primeira sobre uma base única de medidas e proporções específicas, além de ser
prova de roupa de um
terno no cliente. Nesta produzido em um período de tempo maior, o que possibilita maiores
fase, o traje ainda pode
ser alterado em todas as cuidados com sua produção. As imagens que se seguem ilustram algumas
suas partes, de acordo
com o gosto e com o
das técnicas utilizadas pela alfaiataria sob medida:
corpo do cliente.
Fonte: ROETZEL,
2000, p. 100 e 101.

Figura 35:
Caseamento artesanal
A figura tal ilustra a
costura das casas dos
botões de maneira
artesanal, técnica que
exige algumas horas de
dedicação.

Figura 36: Corte de


molde feito a mão.
Alfaiate realiza o
corte do molde
em tecido de um
único terno à mão.
Técnicas precisas e
individualizadas.
Fonte: ROETZEL,
2000, p. 100 e 101.

- 47 -
Como as roupas eram feitas de maneira exclusiva, não pensava-se
em um padrão único de medidas e nem em um design que atendesse a
todos. A fita métrica como conhecemos hoje, dividida em centímetros,
foi inventada pelos próprios alfaiates, em 1820, com a finalidade de
se produzir mais de um traje por vez. Antes disso, cada cliente tinha
sua própria tira de medidas, com marcações específicas para seu corpo.
Observou-se, no entanto, semelhanças nas proporções de alguns corpos
masculinos e que, dessa maneira, seria possível produzir várias peças
ao mesmo tempo, para corpos semelhantes (HOLLANDER, 1996).
A possibilidade produtiva que surge com a invenção da fita métrica é
potencialmente ampliada na era industrial.
O advento da industrialização e a incapacidade de competir com
a rapidez de produção e os baixos preços das lojas, tornou o serviço
do alfaiate caro e elitizado, o que não significa que este não continue
tendo seu espaço no mercado, mesmo que reduzido. No entanto, a
fabricação em série ganhou maior visibilidade por ser considerada capaz
de fornecer roupas de todos os tipos a um preço acessível (BOUCHER,
2010). O mesmo autor afirma ainda que:

Os progressos da industrialização e do comércio, a implantação


das ferrovias e a rapidez dos transportes, e também, com o
surgimento da prensa barata, os procedimentos da economia
geral e da vida social, cada uma dessas transformações,
contribuiu para a melhoria da produção e industrialização
do vestuário. (BOUCHER, 2010, p. 331)

De acordo com Boucher (2010, p. 414), modelos especialmente


concebidos pela fabricação industrial ganham o nome de “prêt-à-
porter” em 1949, expressão calcada no termo americano “ready to
wear”, cujo significado seria “pronto para vestir.” O autor afirma que
essa denominação foi “muito bem aceita, pois não representa mais a
imagem do conformismo enfadonho por tanto tempo ligada ao termo
confecção” e, no presente contexto, será utilizada para designar os ternos
produzidos em massa ou em larga escala.
De acordo com Hollander (1996), os trajes produzidos em massa
foram criados com um alto padrão de elaboração, entre outros motivos
pela constante melhora tecnológica, e chegaram a ser comparados
- 48 -
com aqueles estabelecidos pela alfaiataria feita sob medida, tamanha a
precisão e a qualidade de alguns produtos. Não é possível, no entanto,
generalizar, uma vez que a maioria das peças de alfaiataria que resultam
da produção em larga escala, deixam muito a desejar em relação as
peças feitas sob medida. Para Musgrave (2010), no entanto, a alta
qualidade das roupas prontas só pôde ser percebida após cem anos de
produção em larga escala, o que demonstra que, em conjunto, o preço
razoável e a qualidade elevada constituem uma recente combinação em
se tratando de ternos.
15. “O corte de um As transformações pelas quais a alfaiataria passou, não se
bom terno devia
ser “natural”, o que limitam, todavia, apenas ao aspecto produtivo. Ocorreram mudanças
significa que ele deverá
fazer realçar da melhor no comportamento do consumidor. Houve uma transferência de
forma a figura do
portador do fato e só responsabilidades: o alfaiate que confeccionava a roupa sob medida,
deverá intervir para
corrigir certas partes em estabelecia o que era ou não adequado para o corpo de seu cliente, ou
figuras verdadeiramente
seja, tinha a compreensão do que era um bom terno15 e da maneira
problemáticas”
(ROETZEL, como este deveria vestir o cliente, afinal tinha que manter o status
2000, p. 90).
de bom profissional. A roupa pronta para vestir, por sua vez, passa
somente pelo crivo do consumidor, que estabelece seus padrões pessoais
de vestir, sendo o único que pode julgar o caimento e a qualidade do
traje que irá adquirir.
É possível perceber que o novo cenário produtivo, proveniente
da Revolução Industrial, desencadeia novas formas de comportamento
e consumo que, como será abordado posteriormente, são intensificadas
na contemporaneidade. O ato de comprar, gradualmente, se tornou
corriqueiro, o acesso aos produtos, muito mais possível, fazendo com
que a experiência de compra do consumidor se tornasse bastante
diferente da antiga experiência, por exemplo do início do século XIX,
quando esperar semanas ou meses por um traje era normal e aceitável.

Os homens modernos não inventaram a aparência contida -


esta foi uma característica de toda a moda renascentista - mas
seu reavivamento intenso forneceu um traço excelente para
as preocupações masculinas do século XIX, e ia muito bem
com as formas simplificadas da moderna moda masculina e
com as novas possibilidades de elegância das roupas prontas
(HOLLANDER, 1996, p. 138).

- 49 -
A produção de roupas feitas em larga escala permitiu que os
ternos, antes restritos a camadas sociais abastadas, se tornassem mais
acessíveis e adequados às mudanças produtivas e às exigências de um
público cada vez mais diverso. Mas, mesmo com as constantes mudanças
de gostos e ideais relativos à moda, as formas da alfaiataria masculina
foram ganhando força e valorização ao longo de sua existência e servem
até os dias de hoje, sendo periodicamente remodeladas pelas diretrizes
do campo da moda.
Diante da permanência da alfaiataria na contemporaneidade,
é possível considerar que esta continua mostrando a força simbólica
de alguns valores. O mesmo não se pode dizer dos alfaiates, antigos
profissionais especializados na técnica, que hoje somam muito poucos
em consideração aos períodos anteriores à industrialização.
Na era industrial, esses profissionais, ainda necessários nas
fábricas que se formaram, precisaram ensinar a técnica e os segredos
da alfaiataria para que a confecção em larga escala pudesse acontecer.
Durante algum tempo muitos deles continuaram a trabalhar dentro do
sistema fabril ensinando e disseminando seu conhecimento. Por volta
de 1940, os alfaiates que monitoraram as fábricas foram substituídos
por administradores e, a partir de 1950, as mudanças trouxeram uma
redução no trabalho humano resultando em uma queda no tempo de
produção e na melhoria da qualidade dos produtos (MUSGRAVE,
2009). A redução considerável dos ateliês de alfaiataria tornou o serviço
sob medida caro e altamente especializado.
A produção em série desencadeou o início da extinção das
alfaiatarias. No entanto, outros fatores têm contribuído igualmente para
esse fato. Um dos maiores problemas que impedem a perpetuação do
ofício do alfaiate é a falta de continuadores nos ateliês. A imagem pouco
atrativa que as alfaiatarias foram adquirindo gerou desinteresse das
camadas mais jovens que, possivelmente, garantiriam sua continuidade.
Além disso, para agravar ainda mais o quadro, trata-se de uma profissão
que exige um longo período de aprendizagem e não oferece uma
estrutura organizada de formação profissional.
Podemos considerar que a situação descrita, acaba por prolongar
uma crise generalizada na atividade. Os poucos alfaiates qualificados,
- 50 -
por serem raros, encontram sempre empregos sem dificuldade, mas os
jovens, cada vez mais desinteressados, preferem atividades relacionadas
ao esquema de trabalho ligado ao prêt-à-porter que se por um lado
oferecem menos possibilidades de expressão da sua criatividade, por
outro auferem, em geral, melhores salários no mercado de moda. Os
jovens querem estudar ou optam por trabalhar em atividades que
lhes pareçam mais atrativas e com mais possibilidades de ascenção
profissional. Optam, por exemplo, pela área de design de moda, ao
invés da área de alfaiataria.
O capítulo que se segue investigará algumas questões relacionadas
à alfaiataria e ao design, com ênfase no paradoxo que atravessa essas
instâncias no contemporâneo.

- 51 -
Capítulo 2
Tradição, Moda e Design

52
No presente capítulo, as reflexões acerca do terno são direcionadas
à possíveis diálogos que este artigo do vestuário pode estabelecer entre a
tradição, o design e a moda.
A associação do terno à tradição, possívelmente, relaciona-
se à sua origem clássica e à sua estrutura formal que mostra-se ainda
permanente na contemporaneidade. Por outro lado, sobre essa mesma
estrutura, inúmeras são as possibilidades criativas que a moda e o design
proporcionam e, como veremos, permitem ao terno ser considerado
um possível suporte para tais mudanças.
Nesse sentido, o principal objetivo deste capítulo é pensar alguns
dos paradoxos relacionados ao terno contemporâneo, aproximando-o
ao território também paradoxal da moda e, dessa maneira, investigar
como o design colabora com a perpetuação deste traje na atualidade.
Essa reflexão inicia-se com uma abordagem que permite pensar
o terno como um possível elo entre a tradição e o design de moda.
Isso porque o traje possui, simultaneamente, características clássicas e
contemporâneas, o que significa que, mesmo mantendo sua estrutura
formal, acompanha as aceleradas transformações estéticas que se fazem
presentes no campo do design. Este apontamento poderá ser visto por
meio do trabalho de designers como o japonês Yohji Yamamoto e a
inglesa Vivienne Westwood, que interpretam a alfaiataria e o terno à sua
maneira, de forma a conferir-lhe singularidade e distinção.
Muitos autores como Simmel (2008), Lipovetsky (2009) e,
posteriormente, Svendsen (2010) se preocuparam em abordar a moda
e seu caráter paradoxal de individualização e de uniformização. Nesse
sentido, utilizando o terno como principal exemplo, serão feitas
aproximações entre este artigo do vestuário e o campo da moda,
pautadas pelas possibilidades de uniformização e de distinção que o
terno proporciona.
Inicialmente, o terno será pensado como um artigo do vestuário
que possibilita uma certa uniformidade entre os indivíduos. Para tal,
serão feitas algumas reflexões relacionadas à apropriação do terno
masculino pelas mulheres, pensando em seu viés homogeneizador.
As possibilidades distintivas do terno, por sua vez, podem ser
percebidas quando este é deslocado de seu “lugar comum”, ou seja,
- 53 -
quando seu uso é relacionado à situações em que, normalmente, este
traje não seria adequado. Alguns desses deslocamentos poderão ser vistos
por meio da apropriação do terno masculino pelas mulheres, no trabalho
16. www.asauvage.com do designer inglês Adrien Sauvage, intitulado This is not a suit16 – “isso
não é um terno”, em português -, em que ele descontextualiza o terno
de seu uso comum. De maneira semelhante, pensando ainda no terno
como traje capaz de conferir distinção, serão utilizados como exemplos
a banda de rock britânica, The Beatles e a figura do popular “malandro
carioca” tipicamente brasileiro. No primeiro caso, como veremos, o terno
é apresentado como um traje que rompe com o estereótipo do roqueiro,
e no segundo, como vestuário capaz de caracterizar um tipo social.

2.1 Tradição e Design: dissonâncias e conexões

Esta reflexão inicia-se com uma abordagem conceitual a


respeito de dois eixos de nossa discussão: tradição e design. Uma
breve tomada dos significados dos termos é de fundamental
importância para a compreensão das possíveis conexões que o terno
pode estabelecer com eles.
Comecemos com o conceito de tradição. Popularmente, é uma
palavra que remete-nos ao passado e relaciona-se com fatos e costumes
antigos. De acordo com Giddens (1997, p. 80), a tradição está vinculada
à compreensão do mundo fundada na superstição, na religião e nos
costumes, tratando-se de “uma orientação para o passado, de tal forma
que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é
constituído para ter uma pesada influência para o presente.”
Nesse contexto, em nossa abordagem, entende-se por tradição,
aquilo que está referenciado em valores do passado (do latim tradere –
trazer de um lugar para outro), e é reiterado no tempo presente. Nesse
sentido, é possível considerar que a Modernidade reinventa as tradições
expressando uma espécie de continuidade. O passado e suas tradições
são capazes de legitimar o sentimento de pertencimento, fortalecendo
o espírito de identidade e possivelmente, por esse motivo, o terno se
mantém atrelado às suas raízes.
- 54 -
Do ponto de vista da fabricação, isso pode ser visto, no atual
contexto, através de técnicas específicas utilizadas na produção de
ternos que se relacionam à tradição do terno feito à mão, como em suas
origens. Por exemplo, as técnicas artesanais de alinhavo – pontos largos
que se dão em uma peça de vestuário, para a segurar ou ajustar até que
seja cosida em definitivo – e de caseamento - abrir e pontear casas para
os botões do vestuário – são ainda comuns por conferirem um bom
caimento e acabamento aos costumes.
No entanto, por mais que certas formas tradicionais se perpetuem
– e o terno é uma delas – a adaptação e a inovação tornam-se imperativos
para sua sobrevivência. Para Lipovetsky (2009), na contemporaneidade,
a tradição, preponderante e superior às inovações da moda, insere-se
em um novo contexto: “Pela primeira vez, o espírito de moda prevalece
quase por toda parte sobre a tradição, a modernidade sobre a herança”
(2009, p. 313). Segundo o mesmo autor, o presente se sobrepõe ao
passado, assinalando uma inversão da temporalidade social, quando o
desejo pela novidade se tornou geral, regular e sem limites.
Dessa maneira, as tradições se adaptam ao presente, que “comanda
nossa relação com o passado, desde só conservamos o que nos “convém”,
o que não está em contradição flagrante com os modernos, com o
gosto e a consciência pessoais” (LIPOVETSKY, 2009, p. 316). Nesse
sentido, a permanência do terno pode ser relacionada ao seu caráter
adaptativo em relação às inovações propostas pelo design e pela moda.
Numa análise formal – relativa à estrutura, à modelagem e ao formato
do terno contemporâneo – podemos perceber que a tradição está,
de certa forma, constantemente atrelada à sua figura e, dificilmente,
poderá ser desvinculada do mesmo. Ainda que sua estrutura comporte
possíveis modificações, ela se mantém, quase sempre, relacionada à sua
origem tradicional.
Na contemporaneidade, no entanto, outros aspectos do terno são
explorados, para além da tradição. Ele passa, então, por renovações que
o tornam mais atual. Podemos considerar que este seja um dos possíveis
papéis do design, no que diz respeito a esta pesquisa: oferecer novos
conceitos e possibilidades para os ternos que, mesmo ainda atrelados à
tradição, se tornam suportes de inovações do design de moda.
- 55 -
O design, para Forty (2007, p. 12), “tem dois significados comuns
quando aplicado a artefatos. Em um sentido, refere-se à aparência das
coisas: dizer “eu gosto do design” envolve usualmente noções de beleza,
e tais julgamentos são feitos, em geral, com base nisso. O segundo e mais
exato uso da palavra design refere-se à preparação de instruções para a
produção de bens manufaturados, e este é o sentido utilizado quando,
por exemplo, alguém diz ‘estou trabalhando no design de um carro’” .
Cardoso (2008, p. 26) afirma que o desenvolvimento e formalização do
campo do design é fruto da Revolução Industrial, ocorrida na Europa,
entre os séculos XVIII e XIX.
A partir das colocações de Cardoso (2008) e Forty (2007),
será feita uma abordagem que delineia o design como atividades ou
produtos que partem de projetos, transitam entre a criação, a produção
e a reprodução, utilizam materiais diversos, tecnologias e técnicas,
chegando, por fim, ao usuário.
As definições e reflexões a respeito do design fazem sentido
apenas, se atribuídas às questões relacionadas ao sistema social em que
este está inserido. O momento de seu surgimento foi caracterizado por
inúmeras transformações. Cardoso novamente dialoga conosco:

O século XIX foi palco de uma revolução nos meios de


transportes e de comunicação, que só parece menos fantástica
em comparação com sua aceleração contínua posterior.
A introdução das estradas de ferro, da navegação a vapor,
do telégrafo, da fotografia e de outras inovações que serão
discutidas adiante, alterou inteiramente as perspectivas para a
distribuição de mercadorias e de informações, estabelecendo
os alicerces do processo de globalização que gera tanta
discussão nos dias de hoje (CARDOSO, 2008, p. 43).

A Modernidade foi marcada pela aceleração das transformações


nos meios de transportes e de comunicação, provocada pelo significativo
crescimento urbano que desencadeou, na mesma medida, uma enorme
procura de empregos nas fábricas e nos setores de serviços que atendia,
justamente, às grandes concentrações populacionais.
A produção de ternos, nesse momento, passa também por
mudanças diversas. A fabricação artesanal - modo de produção no
qual um mesmo indivíduo participa de toda a concepção e execução
- 56 -
de determinado produto - foi substituída por um sistema de divisão do
trabalho, no qual havia uma clara distinção entre projeto e execução.
Com base nisso, a industrialização pode ser apontada como um dos
principais acontecimentos impulsionadores do surgimento do design.
Na concepção de Cardoso (2008), o design é fruto de três processos
históricos: a industrialização, que reorganiza e otimiza a produção
de bens; a urbanização, responsável pela ampliação e adequação das
concentrações populacionais em grandes metrópoles; e a globalização,
responsável, por sua vez, por integrar redes de comércio, transporte
e comunicação.
Naquele período, mesmo diante de um cenário de mudanças
tecnológicas na produção de ternos, ainda há uma preocupação
em manter algumas das principais técnicas antes utilizadas pelos
alfaiates. Exemplo disso é o fato de que, na indústria da confecção,
eles normalmente são responsáveis pela primeira modelagem das peças
que entrarão na linha de produção em série. Isso permite que os ternos
ditos “contemporâneos” possuam uma base estrutural semelhante
àquela utilizada quando eram feitos exclusivamente sob medida. Sobre
tal base, o terno se torna um objeto susceptível às influências do design,
da moda e das exigências do público consumidor.
O novo sistema de fabricação dos ternos possibilitou a
popularização de seu uso, resultando em um maior acesso, a custos
reduzidos. Apesar dessas transformações, o traje, em sua estrutura
formal básica, manteve-se praticamente o mesmo, carregando
simbolicamente códigos e signos que o acompanham desde sua origem.
Seu perfil adaptativo, ou seja, sua capacidade de se deslocar no tempo
e no espaço, o permitiu transitar nos variados momentos da história,
tornando-o um possível elo entre cenários e tempos diversos, entre
passado e futuro, entre tradição e design contemporâneo.
17. Outras Alguns dos possíveis diálogos que ocorrem no território do design
informações sobre o
designer japonês pode e da tradição podem ser ilustrados por meio do trabalho de designers
ser visto em: www.
yohjiyamamoto.co.jp como Yohji Yamamoto17 e Vivienne Westwood18. Tais trabalhos servirão

18. Outras informações como exemplos de interação entre esses campos e, por meio de imagens,
a respeita da
será possível perceber de que maneira ela acontece.
designer inglesa pode
ser visto em: www. O designer japonês Yohji Yamamoto tem, como uma das
viviennewestwood.co.uk
- 57 -
principais características de seu trabalho, o desenvolvimento de
alfaiataria assimétrica e desconstruída, com proporções ampliadas que
marcam suas criações desde o início de sua carreira.
Por ser recorrente, a assimetria pode ser considerada uma marca
do trabalho do designer. Nas imagens apresentadas, podemos perceber
modelagens modificadas e desproporcionais. Nesse sentido, ainda
reconhecido por suas formas características – conjunto de paletó e calça,
lapelas, bolsos, etc, - o terno adquire novas configurações na perspectiva
do designer, a partir de alterações em técnicas de corte, costura e
modelagem, além da desconstrução formal, proposta por Yamamoto.

Figuras 37, 38, 39


e 40: Desfile de
Yohi Yamamoto.
Ternos soltos e amplos
da coleção de outono/
inverno 2012 de Yohji
Yamamoto, apresentada
na semana de moda de
Paris. As proporções
podem ser consideradas
diferencidas na
largura das calças e
no comprimento dos
paletós. Trajes mais
afastados do corpo
são característicos nas
criações do designer.
Fonte: www.
portaisdamoda.com.br,
acesso em 01/11/2011.

- 58 -
A desconstrução – aqui entendida como desmontagem ou
reconfiguração de elementos – pode ser vista, por exemplo, na figura
39, onde os botões do paletó são deslocados de sua posição usual. Nesta
mesma imagem, o colete é construído sobre uma modelagem
diferenciada, que não se assemelha diretamente ao colete de alfaiataria
comum. Dessa forma, é possível perceber que o terno recebe as
influências do designer, embora não descaracterize sua forma
historicamente construída.
As criações de Vivienne Westwood também nos servem de
exemplo. O trabalho da designer inglesa, tem como característica a
mistura da cultura jovem e do tradicionalismo. Westwood, uma das
precursoras do movimento punk, é considerada como um dos nomes
mais criativos na moda contemporânea e conhecida por desafiar padrões.
Nas palavras de Pacce (2006, p. 51), “é conhecida pelo senso de humor
e pela estranheza que arremata suas roupas.”

Figura 41 e 42: Desfile


de Vivienne Westwood.
Coleção masculina de
Vivienne Westwood,
verão 2012, desfilada
na semana de moda
de Milão. Ternos
combinados com
peças informais e
com a modelagem
diferenciada.
Fonte: www.modaspot.
abril.com.br, acesso em
02/11/2011.

Em sua coleção masculina para o verão 2012, a designer mostrou


um trabalho inspirado nos jogos olímpicos que acontecerão na cidade de
Londres, em 2012. As peças desenvolvidas foram criadas com referências
esportivas e, ao mesmo tempo, clássicas. Isso pode ser visto na mistura
de elementos que pertecem aos padrões clássicos ou esportivos, mas
dialogam entre si, resultando na construção de ternos que transitam
entre o tradicional e o contemporâneo.
- 59 -
Além do uso de peças informais, como a camiseta na figura 41 e a
camisa polo, na figura 42 ou os sapatos de ambas as imagens, é possível
perceber que a modelagem das peças é também alterada. Essas modificações
podem ser vistas no gancho – costura que une as duas pernas da calça e
sobre a qual costuma se localizar o zíper ou fecho - da calça da figura
41. Nos paletós também pode-se observar modelagens diferenciadas:
na figura 41, o paletó possui linhas mais arrendondadas e na figura 42,
referências às linhas geométricas angulosas podem ser notadas.
No presente contexto, os trabalhos de Vivienne Westwood e
Yohji Yamamoto servem para ilustrar possíveis interseções entre os
territórios do design e da tradição, por meio da figura do terno. Nas
imagens apresentadas é possível perceber essas conexões: os ternos são
construídos de acordo com sua estrutura tradicional, ao mesmo tempo
em que suportam uma série de interferências criativas provenientes do
design contemporâneo: modelagens diferenciadas, estampas, misturas
de cores e texturas variadas.
Nesse sentido, entendemos que, apesar da amplitude dos
deslocamentos de técnicas e inovações do design de moda, comuns ao
cenário contemporâneo, a formalidade inicial da concepção do traje
ainda se faz presente.
No último capítulo desta pesquisa ampliaremos a visualização
sobre interferências e deslocamentos formais nos ternos, averiguando
alguns modos de uso por parte do consumidor.

2.2 Reflexões sobre o terno e os paradoxos da moda

2.2.1 Uniformização: o terno para ser igual

Neste tópico faremos uma abordagem que permeia as relações


paradoxais da moda, que, de acordo com Simmel (2008) é ora
sustida pela necessidade individual da diferença, ora sustida pela
necessidade de imitação.
A incessante busca por variações relacionadas à inovação pode
ser considerada o motor fundamental que permite ao sistema da moda
- 60 -
manter-se em constante funcionamento. Nossa finalidade é apontar para
uma discussão sobre como o terno transita nesse universo e algumas das
maneiras como ele dialoga com as exigências relacionadas às aceleradas
transformações do cenário contemporâneo.
Tal transição acontece, entre outros fatores, pela versatilidade
19. Por “Sistema da com a qual a moda amplia possibilidades de construção e reconstrução
moda”, entendemos
o modo de de códigos, por meio da roupa. Sudjic (2010, p. 151) explica que “a
funcionamento
e organização do moda também é uma forma democrática de expressão que qualquer
complexo esquema
um está apto a usar, e as escolhas dos consumidores configuram o
de produção e
comercialização de modo de atuação do círculo mágico, ocasionalmente o impelindo em
produtos do vestuário,
que se relaciona com novas direções e fornecendo-lhe sua matéria prima.” Com base nessa
variáveis culturais e
sociais. Quando nos reflexão, compreendemos a moda como um fenômeno que extrapola
referimos apenas à
“moda”, consideramos a frivolidade para se inserir no terreno da comunicação, da linguagem,
seus aspectos cíclicos,
relativos aos modismos das concepções e valores simbólicos característicos de um sistema19, em
de vida curta.
constante mudança. Nas palavras de Sudjic:

A moda é definida tanto pelo universo das roupas quanto


pelo fenômeno de mudança que denota. Trata do modo de
vestir e das mensagens que as roupas trazem. Mas também
do modo como somos programados pelo mundo que nos
rodeia para procurar variações. O dia passa por mudanças
de luminosidade à medida que o sol nasce e se põe. As
estações transcorrem num ritmo mais lento mas igualmente
predeterminado. (SUDJIC, 2010, p. 162)

Ora, se o paradoxo fundamental da moda relaciona-se com


o desejo de diferenciação do indivíduo e ao mesmo tempo de
personalização do mesmo, estas reflexões, quando relacionadas ao terno,
se fazem pertinentes e significativas. Podemos considerar que, entre
outros motivos já apontados nesta pesquisa, o traje tenha sido aceito
socialmente, permitindo o jogo do ser/parecer e estabelecendo novos
códigos, comportamentos e atitudes.
Considerar a moda um divisor tênue entre pertencer e não
pertencer, permitindo que os papéis sociais desempenhados pelos
indivíduos alternem-se constantemente, faz com que o terno possa ser
interpretado como linguagem e discurso de um tempo social que, da
mesma maneira, representa tais possibilidades de transformação. De
acordo com Moura (2008, p. 40):
- 61 -
Os objetos criados no âmbito da moda, da arte ou do design,
sobrevivem em razão de dois caminhos. Um é o da inovação,
significação e expressão que vai além de um estilo, de um
tempo determinado e das relações mercadológicas. O outro
caminho se dá em razão de um circuito industrial e comercial,
entendendo aqui a relação comercial também como uma
relação de serviços que atendem à demanda desenfreada
típica do capitalismo e do consumismo”.

Nesse aspecto, considera-se que a permanência do terno relaciona-


se aos significados e códigos que o mesmo emite, sobrepondo-se às
questões de estilo e tendências de moda, o que permite que o mesmo
possa ser interpretado como um artigo do vestuário que se coloca à
frente de seu tempo.
De início, o intuito dessa investigação é identificar situações
em que o terno aparece como um artigo do vestuário que possibilita
a homogeneização dos indivíduos desempenhando um papel
uniformizador.
No século XVIII, o terno facilitou a homogeneização dos homens,
que voltados para o trabalho passaram a obedecer uma exibição mais
codificada por meio do vestuário. Nesse sentido, consideramos que o
terno assume uma posição uniformizadora, ou seja, torna-se um traje
civil para a maioria dos homens e, se, para Sudjic (2010, p. 151), “os
uniformes, assim como a moda, são criados para conferir prestígio”,
com a simplificação do terno não foi diferente. O “desejo de ser visto”
transformou-se no “desejo de ver” e a exibição da riqueza passou a ser
vinculada à beleza e às vestimentas exuberantes de suas mulheres.
De acordo com Flugel (1966, p. 100), no século XVIII “os
homens abdicaram de seu direito a todas as formas mais claras, mais
alegres, mais elaboradas e mais variadas de ornamentação, deixando-
as inteiramente para o uso das mulheres, fazendo assim o seu corte
de roupa a mais austera e ascética de todas as artes.” A colocação do
autor traduz o momento de uniformização das vestimentas masculinas
resultante da nova ordem social que, através da homogeneização do
traje, suavizou as distinções que antes dividiam ricos de pobres.
Em concordância, Harvey (2003, p. 255) afirma que o estilo
sóbrio da roupa masculina que se acentua no período de expansão

- 62 -
comercial e industrial, parece, “por mais bem cortado e elegante, marcar
uma desvalorização do prazer de vestir; no século XIX, falar de roupas e
de moda tornou-se quase sinônimo de feminilidade.” Dessa forma,
pode-se perceber que, de certa maneira, as vestimentas masculinas
relacionavam-se a uma negação do feminino, consolidando-se numa
sobriedade comum aos homens.
Figura 43: Advogados
em solenidade de
posse. Auditório da
OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil)
em abril de 2010.
Fonte: http://www.
folhadaregiao.com.br/
Materia.php?Canal=
Arquivo&id=257677,
acesso em 23/12/2011.

Para Sudjic (2010, p.154) “a finalidade mais básica de um


uniforme é tornar o usuário o mais intimidante possível. Isso pode ter
a ver com enfatizar a masculinidade ou, dado o atual equilíbrio militar
dos gêneros, tirar a ênfase da sexualidade”. Pode-se considerar, então,

Figura 44: A presidente


do Brasil, Dilma
Rousseff no Palácio
da Alvorada com os
senadores do Partido da
República em abril de
2011. Foto de: Roberto
Stuckert Filho/PR
Fonte: http://www.
jbronline.com.br/
site/blogs/marlene/
index.php?blog=
6&mes=&pagina=24,
acesso em 23/12/2011.

- 63 -
que a uniformização fez parte da evolução do traje moderno no que diz
respeito à sua gradual simplificação, vista de maneira mais detalhada,
no primeiro capítulo deste trabalho.
Embora ocorram mudanças pontuais em detalhes dos ternos
contemporâneos, em criações e modos de uso, é possivel perceber que
o traje ainda possui um caráter padronizante, ou seja, confere certa
semelhança aos usuários.
Pode-se citar como exemplo de uniformização, o uso do terno em
atividades profissionais que exigem uma certa formalidade. É o caso de
advogados e políticos que o utilizam como traje principal de trabalho,
como podemos observar nas imagens 43 e 44.
Como as figuras nos ajudam a visualizar, os ternos não são
idênticos: variam em termos de cores, de caimento, de gravatas, entre
outros detalhes. Entretanto, podemos considerar que ainda assim,
proporcionam uma leitura visual de unidade e similaridade. É provável
que a escolha deste traje como “uniforme de trabalho” se relacione, entre
outros fatores, com os códigos que a ele são relacionados, discutidos no
20. A reportagem
pode ser vista na capítulo anterior.
íntegra no endereço:
http://epocanegocios.
A valorização do traje como apropriado para o trabalho, pode
globo.com/Revista/ ser compreendida também, por meio do trecho de uma reportagem
Common/0,,EMI
215055-16365,00- da revista Época Negócios20 que aborda questões relacionadas aos
A+MODA+CORPO
RATIVA.html uniformes corporativos.

Símbolo de poder, força, sobriedade, elegância e virilidade,


o terno é capaz de inspirar confiança e definir o lugar em
que o homem se encaixa na sociedade. Padres, médicos,
juízes e outras autoridades têm usado vestimentas escuras e
camisas brancas para inspirar lisura e impor respeito há pelo
menos 150 anos. Durante muito tempo, pouca coisa mudou
na estrutura da roupa de trabalho masculina, composta por
paletó, colete e calça, feitos do mesmo tecido.

Com base nessa afirmação é importante ressaltar que terno é uma


opção para o exercício de diferentes ofícios não apenas para enfatizar
atributos relacionados ao poder, à força e à virilidade, mas também
para gerar uma certa indiferenciação entre os indivíduos que o portam.
Algumas demonstrações deste uso podem ser vistas a seguir.
Algumas atividades profissionais que exigem certa neutralidade,
- 64 -
como as profissões de garçon ou de segurança, são favorecidas pelo uso
do terno. Nesse caso, sua utilização pode relacionar-se à necessidade de
identificação do profissional e, por outro lado, pela possibilidade de
conferir certa invisibilidade aos mesmos.
Figura 45: Uniforme de
seguranças.
Figura 46: Uniformes
de garçons.
Fonte: http://recife.olx.
com.br/garcons-festas-
infantis-formaturas-
casamentos-bodas-
finne-eventos-recife-iid-
265350891, acesso em
24/12/2011.

Outro exemplo semelhante, pode ser notado no uso do traje


pelos integrantes do programa televisivo “CQC – Custe o Que
Custar”, transmitido pela Rede de TV Bandeirantes. O programa21
21. O programa é
exibido pela Rede tem, como uma de suas características, o invariável uso do terno preto
Bandeirantes desde
2008. Outras
por toda a equipe, durante sua exibição. Trata os fatos políticos,
informações podem artísticos e esportivos ocorridos na semana de maneira satírica e
ser vistas no site:
http://www.cqc. humorística. Assuntos como a corrupção ou situações vergonhosas
band.com.br/.
- 65 -
que envolvem pessoas famosas e políticos, são comumente abordados
no programa no intuito de colocar propositalmente, o entrevistado
em situação desconfortável.
Figura 47: Integrantes do
CQC Integrantes
do programa CQC
com ternos pretos.
Fonte: http://
pensomodafanny
littmann.wordpress.com/
2011/08/02/cqc-datena
-ternos-e-estilomasculino/,
acesso em 24/12/2011.

Consideramos que a conformidade visual que o terno preto


confere ao grupo transmite neutralidade e confere uma certa formalidade
aos entrevistadores que usam a provocação e a ironia como estratégias
de abordagem.
22. http:// A reportagem da revista Época Negócios 22 colabora para nos
epocanegocios.
globo.com/Revista/ fazer ver uma outra perspectiva. Segundo a matéria, nas últimas três
Common/0,,
EMI215055-16365, décadas existe um movimento de mudança da cultura corporativa
00-A+MODA+
CORPORATIVA.html
“que tem como tônica valorizar a inovação e a informalidade em
oposição à tradição e ao formalismo”, abrindo espaço para novos
códigos do vestuário.

A uniformidade dos ternos sóbrios tem perdido espaço para


visuais mais lúdicos e criativos. Em certa medida, pode-se
dizer que essa possibilidade de personalização por meio do
vestuário sinaliza o triunfo do indivíduo sobre a corporação.
Isso vai ao encontro das vivências da Geração Y, que cresceu
com a internet, as redes sociais e a ausência de hierarquia
entre chefes e subalternos, ou entre pessoas e empresas.

A ampliação das possibilidades de uso de outras peças do


23. Estilista mineiro
que fabrica peças
vestuário para o ambiente de trabalho, no entanto, não exclui
masculinas. completamente o terno que, segundo o designer João Pimenta23,
pode sofrer algumas pequenas variações no corte e na proporção, mas

- 66 -
dificilmente se extinguirá por ser a roupa que mais dá segurança ao
homem (ÉPOCA, abril de 2011).
Nossos exemplos colaboraram para explicitar o terno como um
traje capaz de conferir certa similaridade entre seus portadores. Com o
intuito de abordar sua faceta capaz de realçar características de estilos
individuais, no próximo tópico serão abordadas situações em que este
traje possibilita a distinção dos indivíduos, no sentido de destacá-los
dos demais.

2.2.2 Distinção: o terno para ser diverso

Em contraponto ao que foi apresentado a respeito da


uniformização que o terno pode conferir ao indivíduo, os
apontamentos que se seguem abordarão esse traje na perspectiva da
diferenciação. Para tal, serão trabalhadas algumas ideias de Simmel
(2008), Lipovetsky (2009) e Svendsen (2010), sobre questões da
Modernidade e da moda como ferramenta de individualização,
aproximando as reflexões à capacidade distintiva do traje e localizando
alguns dos cenários em que esse seu papel pôde ser exercido.
No capítulo anterior, vimos que a instauração do conceito de
“indivíduo” em substituição à noção ideológica de “cidadão”, estimulou
o surgimento de trajes mais sóbrios e elegantes, a fim de que fosse possível
atingir um equilíbrio entre o que deveria ser mostrado e o que deveria ser
ocultado. O terno situava-se num jogo de emulação e disfarce, por ser
um traje que possibilitava ao indivíduo “ser” ou “parecer”, colaborando
na construção de sua subjetividade. Nesse sentido, o intuito desse
tópico é pensar o terno para além de sua formalidade e tradicionalismo,
localizando entre suas possibilidades de uso, fatores de distinção.
Ao longo do século XIX, a forma do terno masculino atendia à
indiferenciação do homem público, característico da Modernidade, por
facilitar a similaridade dos indivíduos e por tornar mais difícil a leitura
das aparências, transferindo o complexo exercício da decodificação
visual para detalhes sutis da vestimenta. No entanto, aqui enfocaremos
o momento em que o advento da Modernidade permitiu uma mudança
- 67 -
de cenário, quando a liberdade individual foi enfatizada.
Para Svendsen (2010, p. 160): “O homem pré-moderno tinha
uma identidade mais estável porque ele se ancorava numa tradição, mas
hoje fomos libertados em grande medida desses grilhões, e a identidade
pessoal tornou-se portanto uma questão de estilo de vida.” E ainda:
“desprovidos de tradições, somos construtores hiperativos de estilo de
vida, numa tentativa de formar significado e identidade.”
A emergência do individualismo moderno vivenciada na
atualidade reflete um momento “em que o gosto se torna cada vez
mais uma preocupação individual e os conceitos de classe esgotaram
em grande medida seu papel” (SVENDSEN, 2010, p. 60), não mais
necessariamente inserindo o indivíduo num grupo social mas, ao
contrário, fazendo-o se destacar por sua unicidade.
A moda, nesse sentido, tornou-se um meio para a expressão da
individualidade e através dela foi possível ao individuo reinventar-se
constantemente, moldando uma identidade social plural. Para Simmel:

Ora a moda, em virtude de sua peculiar estrutura interna,


proporciona um destacar-se que se capta sempre como
adequado. A manifestação ou a exteriorização, mais
extravagante, na medida em que é moda, protege daquele
reflexo penoso que o indivíduo geralmente sente, quando é
objeto da atenção dos outros (Simmel, 2008, p. 45).

De acordo com o autor, o indivíduo cria, muitas vezes, para si


mesmo uma conduta que o faz sobressair-se dos demais e é esse destaque
que aqui nos interessa. Svendsen (2010, p. 171) afirma que “a moda, ao
que se diz, é a essência perdida do eu pós-moderno, que é constantemente
programado para partir em busca de novas versões de si mesmo.”
De maneira semelhante, Lipovetsky acredita que a pluralidade
da moda permitiu o exercício da autonomia individual, ou seja, trata-
se de um instrumento de individualização que permite aos indivíduos
diferenciarem-se uns dos outros (2009, p. 204). A maior liberdade
individual desencadeada na Modernidade traduziu um novo momento
em que o vestuário ganhou novo enfoque e importância.
As opções de consumo, cada vez mais expandidas, facilitaram
a expressão da identidade por meio da moda e as pessoas passaram
- 68 -
a acreditar que suas roupas, seus gestos, seus gostos revelavam sua
personalidade. Nesse aspecto, o vestuário tornou-se um código para ser
lido, capaz de revelar informações sobre seu portador.
Cabe-nos aqui abordar o terno sob a perspectiva da diferenciação,
sendo que no capítulo seguinte trabalharemos de maneira mais detalhada
os processos de personalização e as construções individualizadas sob o
ponto de vista do uso deste traje.
Para tanto, alguns exemplos serão trabalhados e o primeiro deles
refere-se à apropriação do terno masculino pelas mulheres. Partindo do
desejo de assemelhar-se à figura masculina, por meio do terno e de seus
atributos, a mulher que o veste pode diferenciar-se em determinados
contextos. Aproximar-se da figura masculina pode criar certa distância
do universo convencionalmente dito feminino.
O uso das roupas masculinas pelas mulheres, de acordo com
Maciel (2009, p. 33), ocorre desde o século XVI, quando foram
24. Rainha introduzidas por Catarina de Médicis24, por baixo das anáguas, calças
da França, de
1574 à 1589. tricotadas de lã, seda ou veludo, com a finalidade de facilitar as práticas
esportivas ao ar livre, como a cavalgada e o esqui. Outro exemplo
25. Rainha da apontado pela autora, é Maria Antonieta25 que, no século XVIII, adotou
França, de 1774 à
1788, conhecida por as calças de equitação e os redingotes de corte masculino, tornando-os
revolucionar a moda
de seu tempo. referência de bom gosto para as mulheres.

Figura 48: Louis-


Auguste Brun. 1783,
private collection
Marie-Antoinette.
Maria Antonieta
cavalgando de calças
sob o vestido.
Fonte: http://www.
ladyreading.net/
marieantoinette, acesso
em 25/11/2011.

26. A imperatriz russa,


Catarina a Grande (1762)
e a Rainha Elizabeth II
(1926), da Inglaterra, são Posteriormente, foram muitos os exemplos de figuras
alguns dos exemplos de
mulheres que assumiram a
femininas que se utilizaram das vestimentas masculinas 26. Nota-
vestimenta masculina como
se que gradualmente, desde o século XVI, as mulheres foram se
integrante de seu vestuário
(MACIEL, 2009). adaptando à alfaiataria masculina e servindo-se de sua praticidade
- 69 -
e conforto – características relativas ao terno já vistas no primeiro
capítulo deste trabalho.
Segundo Maciel, os limites de distinção de gêneros já vinham
sendo ultrapassados por homens e mulheres:
27. Josephine Baker foi
uma célebre cantora Na história da moda, o ano de 1966 marca a apropriação
e dançarina norte-
do smoking na coleção de inverno da Yves Saint Lauren em
americana, naturalizada
francesa em 1937. Paris. Entretanto a negação da distinção entre os sexos ou
androginia sem idade já estavam presentes nos smokings
28. Marlene Dietrich de espetáculos de Josephine Baker27 em 1928 e Marlene
(1901–1992) era Dietrich28 em 1930 (MACIEL, 2009, p. 38).
uma Atriz e cantora
alemã, naturalizada
estadunidense.
Consolidada pela figura de Marlene Dietrich nos anos de 1930, a
apropriação do traje moderno pelas mulheres ganhou, ao longo do tempo,
maior visibilidade e, consequentemente, maior uso por parte delas.
Figura 49: Le smoking
1996, Yves Saint
Laurent.
Fonte: www.be-in-his-
shoes.blogspot.com,
acesso em 25/11/2011.

Figura 50: Marlene


Dietrich
A cantora usou calça
comprida em 1920,
rendendo-se ao terno
completo em 1930.
Fonte: http://
profissaofamilia.
blogspot.com, acesso
em 02/04/2011.

Na presente abordagem, apontar para a apropriação do traje


masculino pelas mulheres significa lidar com estereótipos presentes
no imaginário coletivo no que diz respeito às possíveis adjetivações
que a figura feminina recebe ao trajar um terno. Pode-se considerar,
por exemplo, que, ao vestí-lo, a mulher assume uma série de códigos
relacionados a ele, como o poder e o erotismo, além de poder expor certos
desejos de imitação da figura masculina. Nesse aspecto, ao traje pode ser
associado a capacidade de equalização e uniformização dos indivíduos.
Se por um lado a imagem da mulher vestida de terno a diferencia das
demais, também pode aproximá-la do estereótipo masculino.

- 70 -
Figura 51 e 52: Desfile
de Tommy Hilfiger.
Outono, 2011. O terno
presente nas coleções de
moda feminina.
Fonte: http://www.
comunidademoda.
com.br, acesso em
22/10/2010.

As figuras 51 e 52 mostram a incorporação do traje às coleções


femininas, se tornando recorrentes nas passarelas. Já a figura 53, revela
o uso do terno no cotidiano de uma mulher. Tem-se, nesse caso, a
imagem completa de um terno masculino, em um corpo feminino, o
que sugere, além do apelo erótico, profissionalismo e poder. Tal figura
colabora para que se perceba a construção de um estereótipo comumente
associado aos homens usuários de ternos.
Figura 53: Terno Ao observar a imagem,
adaptado à forma
feminina.
é possível perceber que se trata
Mulher vestida com de um cenário urbano que
terno adaptado às
suas formas. Imagem pode estimular a ideia de que
masculinizada,
principalmente pelo essa mulher deva estar indo ou
uso da gravata que,
geralmente, não é voltando do trabalho. Nesse
utilizada por mulheres.
Fonte: www. aspecto, consideramos que
thesartorialist.com,
acesso em 03/11/2011. os atributos relacionados ao
terno podem ser interpretados
como uma forma específica
de representação de poder,
profissionalismo, competência, seriedade, etc.
Seguindo com nossa linha de raciocínio mas abordando a
apropriaçao feminina por um outro viés, vale ressaltar que o ritmo
constante das transformações propostas pelo sistema de moda leva
a crer que são inúmeras e variadas as possibilidades do vestir e que,
em meio ao leque de opções, faz-se escolhas de modo a construir
- 71 -
identidades e diferenciar o sujeito a partir de suas composições e usos
de elementos do vestuário.
As inúmeras mudanças que ocorrem no cenário da criação de
moda, relativas à propostas “inovadoras” para o vestuário, tornam
perceptível a existência de uma espécie de jogo de significados. Em
outras palavras, percebemos uma manipulação de códigos e símbolos
que permitem que as peças criadas se tornem atraentes ao olhar do
29. “Consumimos, consumidor29. Isso explica o porquê das mudanças, mesmo que sutis,
através dos objetos
e das marcas, em alguns detalhes e cortes dos ternos contemporâneos, bem como a
dinamismo, elegância,
poder, renovação de
transição dos mesmos para os armários femininos.
hábitos, virilidade,
O traje recebe novos tons, novas formas, linhas e cores e, nesse
feminilidade, idade,
refinamento, segurança, sentindo, podemos pensá-lo como suporte para que sejam percebidas as
naturalidade...
(LIPOVETSKY, mudanças da moda, um suporte que mantém sua forma original, mas
2009, p. 203).
recebe ao longo do tempo novos desenhos e volumes que são integrados
à sua base formal, tornando-se objeto de desejo tanto para mulheres,
quanto para homens.
Figuras 54 e 55:
Mulheres trajadas com
terno.
Mulheres trajadas com
ternos, cada qual à sua
maneira.
Fonte: www.
styleandthecity.com,
acesso em 25/11/2011.

As imagens 49 e 50 podem ser consideradas exemplos de


apropriações distintas relacionadas ao terno que reforçam a condensação
da imagem feminina e masculina, resultando num paradoxo relevante
para a presente abordagem. Ambas as figuras mostram mulheres vestidas
em ternos. No entanto, é possível perceber que prevalece, visualmente,
as interpretações individuais que cada uma dessas mulheres têm do
mesmo, tornando-as singulares.
- 72 -
30. The Beatles foi Com relação aos atributos simbólicos do terno, relativos ao poder
uma banda de rock
britânica, formada em e ao erotismo, também podemos associá-los às imagens apresentadas.
Liverpool em 1960 e
o grupo musical mais Essa associação, além de relacionar-se à maneira como essas mulheres
comercialmente bem-
sucedido e aclamado
vestem seus ternos, foi convencionalmente atrelada à imagem deste
da história da música
traje desde sua origem. É possível que ela ocorra vinculada à imaginação
popular. Enraizada do
skiffle e do rock and roll coletiva, sobre a qual operam os signos da moda, que ressalta tais atributos
da década de 1950, a
banda veio mais tarde a como representantes da masculinidade vestida de terno. Nesse sentido,
assumir diversos gêneros
que vão do folk rock ao compreendemos que ocorra uma diferenciação calcada pelos códigos
rock psicodélico, muitas
vezes, incorporando comumente relacionados ao terno em relação às demais mulheres.
elementos da música
clássica e outros, em Outro exemplo de distinção por meio do terno refere-se à banda
formas inovadoras e
criativas.
de rock britânica, os Beatles30, que se apropriou do tradicionalismo, da
elegância e da formalidade desse traje.

Figura 56: The


Beatles
A banda em 1960
usando terno.
Fonte: http://www.
roadie.com, acesso
em 10/05/2011.

No início da carreira, o grupo apareceu engravatado e vestido


com ternos ajustados. Resultado de uma estratégia do empresário
Brian Epstein, os músicos John Lennon, George Harrison, Paul
Figura 57: The Beatles McCartney e Ringo Starr
A banda vestindo a nova
configuração de seus romperam com o estereótipo
ternos: cinza, sem lapela
e colarinho, 1962.
do roqueiro, de atitude rebelde,
Fonte: http://www. jaqueta de couro, tachas, etc, e se
depositonaweb.com.br,
acesso em 10/05/2011. tornaram referência de moda.
De maneira semelhante
ao primeiro exemplo, o terno foi
também retirado de seu “lugar-
comum”, passando a inserir-se
num terrítório que, comumente,
- 73 -
não seria o seu. É possível dizer, dessa maneira, que, de forma
subversiva, há um duplo deslocamento de sentidos que reforçam a
ideia de distinção.
Alguns anos depois, o terno preto clássico utilizado inicialmente
pelos integrantes da banda, passou a ser cinza e o paletó foi redesenhado,
31. Franz Ferdinand
é uma banda de perdendo o colarinho – parte da camisa que contorna o pescoço – e a
rock formada em
Glasgow (Escócia),
lapela – parte superior e dianteira de um casaco, voltada para fora –,
em 2002. Mais pode reforçando ainda mais o terno diferenciado do grupo.
ser visto nos sites:
www.franzferdinand. Entre outros motivos, foi a vestimenta que permitiu ao grupo
com.br e www.
franzferdinand.co.uk. diferenciar-se dos demais. Os ternos utilizados pelos músicos passaram
por grandes modificações e seu uso marcou a imagem do grupo. Algumas
32. The Killers é bandas dos anos 1990 e 2000, como Franz Ferdinand31 e The Killers32,
uma banda norte
americana de rock podem ter sido influenciadas pelo traje usado por John Lennon, George
alternativo, formada
no ano de 2002 em Harrison, Paul McCartney e Ringo Starr, uma vez que optaram pelo
Las vegas. Mais pode
ser visto no site: www. uso dos ternos como principal figurino.
thekillersmusic.com.
Nossa próxima demonstração de diferenciação relaciona-se a
este, no que diz respeito à perspectiva de deslocamento dos propósitos
uniformizantes do terno, bem como de seus atributos simbólicos
homogeneizantes.
Trata-se do trabalho do designer inglês, Adrien Sauvage, que
propõe uma quebra dos padrões simbólicos relacionados ao terno.
Trata-se de um projeto denominado This is not a suit (Isso não é um
terno), no qual o designer fotografa em preto e branco ternos de sua
autoria, vestidos em indivíduos comuns, artistas, músicos, em ações
variadas do dia-a-dia.
As imagens que se seguem são caracterizadas pelo uso do terno
em situações nas quais o uso do mesmo não se adequaria. Nas figuras
58 e 59, por exemplo, um grafiteiro exerce seu trabalho portando um
terno. Da mesma maneira, as imagens do homem sobre o skate e do
surfista, novamente instigam e reforçam a ideia de um deslocamento de
sentido relacionado ao uso do traje e às atividades associadas a seu uso.
O traje é retirado de seu uso tradicional - eventos sociais, trabalhos
formais, cerimônias, etc. - e inserido num contexto no qual, usualmente
não caberia. As imagens de Sauvage suscitam questões relacionadas à
formalidade do terno: seus deslocamentos sugerem uma certa
- 74 -
Figura 58 e 59: Grafiteiro informalidade, quando utilizado em ações esportivas ou consideradas
vestindo terno. Foto
de Adrien Sauvage. O subversivas. Por um outro lado, é possível pensar que seu uso pode
indivíduo destaca-se dos
demais por realizar suas também conferir mais formalidade para os indivíduos que o vestem em
atividades trajando um
terno. Fonte: http:// ocasiões inusitadas.
thisisnotasuit.tumblr.com,
acesso em 13/05/2011. Outro exemplo que colabora para realçar as características
distintivas do terno pode ser observado num cenário tipicamente
brasileiro: o cenário do samba. A figura do “malandro” carioca,

Figuras 60 e 61: Homens de caracterizada pelo terno de linho branco S-12033, camisa de seda,
terno praticando esportes
Foto de Adrien Sauvage.
sapato bicolor, navalha no bolso e chapéu de palha. A escolha desta
Fonte: http://thisisnotasuit. personagem para ilustrar a presente discussão está pautada na associação
tumblr.com, acesso em
13/05/2011. do “malandro” com seu terno branco (ROCHA, 2005).
33.“Super 120” refere-se ao
título do fio do tecido: é a
Sobre esse personagem e sua aparência, Rocha (2005, p. 123)
relação entre a massa (m) e pontua: “é sabido que o vestuário designa um tipo de linguagem
o comprimento (c) do fio.
Quanto maior o numero, simbólica, um importante modo de significação cultural. Em particular,
melhor é a qualidade do
tecido, já que a espessura o vestuário do malandro pode ser visto como uma narrativa por meio da
do fio é mais fina, exigindo
uma maior quantidade qual podemos ler e ver aspectos fundamentais do processo de construção
de fio por centímetro
quadrado de tecido. Neste da sua identidade social.” Tal perspectiva nos interessa por realçar que
aspecto, a durabilidade,
toque e caimento,
este terno branco possui uma formalidade característica, mas distingue-se
tornam-se superiores.
por ser associado a uma figura considerada “esperta”, de “lábia sedutora”
(www.homensmodernos.
wordpress.com, acesso em e capaz de “aplicar golpes aos otários” (ROCHA, 2005).
12/08/2011).
- 75 -
Figura 62: Terno do
malandro.
Terno típico do
malandro. Considera-se
o uso do terno branco
de linho como uma
de suas principais
características.
Fonte: www.
embriagadodeletras.
blogspot.com, acesso
em 20/05/2011

Essa interpretação rompe com os valores tradicionais do terno,


relacionados ao profissionalismo, competência e seriedade. Ao contrário:
a partir da primeira metade do século XX, o termo “malandro” é usado
no Brasil para designar um tipo popular, desocupado, frequentador de
rodas de samba e gafieiras e amante da boemia.
Não se sabe ao certo o motivo pelo qual o terno na cor branca
tornou-se característico do malandro. Segundo Rocha (2005, p. 126)
“andar bem vestido fazia parte do “ethos” do malandro. A qualidade e a
sensibilidade que o caracterizavam correspondem à sua elegância. Mais
do que uma questão de vaidade ou gosto pessoal, andar elegantemente
vestido era uma obrigação imposta moralmente ao malandro.” Para o
autor, no que se refere a cor, o branco era visto como propício aos
trópicos, ao contrário da cor negra, que representava a sobriedade e a
autoridade da aristocracia.

Não cair na batucada, não se deixar derrubar na pernada, não


se sujar na roda de capoeira, sempre vestindo um elegante
terno de linho branco, era um desafio constante ao qual
o malandro se submetia. Espécie de ritual, participar das
rodas de capoeira ou samba e mesmo nos casos de luta entre
malandros e a polícia garantia respeito e reconhecimento
público. (ROCHA, 2005, p. 134)

É possível perceber que o terno branco, no caso do malandro,


ao mesmo tempo que lhe conferia uma certa elegância, estimulava a
construção de um estereótipo “ocioso” e “aproveitador”.
- 76 -
Figura 63: Ator e
coreógrafo Carlinhos
de Jesus
O ator está trajando um
terno de linho branco,
sugerindo a figura do
malandro, 2010.
Fonte: www.estadao.
com.br, acesso em
20/05/2011.

Nesse sentido, consideramos que o terno ao reforçar a imagem


do malandro é capaz de realçar e diferenciar a personagem em questão.
Nesse sentido, consideramos o aspecto paradoxal do terno de modo a
enfatizá-lo como um artigo do vestuário que se encontra inserido no
âmbito do sistema da moda e do design, o que destaca suas ligações com
as tradições, bem como revelador de aspectos do contemporâneo.
No capítulo que se segue, o terno será enfatizado em suas
perspectivas de distinção. Serão abordadas questões relacionadas ao
seu uso, ou seja, à maneira como alguns indivíduos, por meio deste
traje, se diferenciam.

- 77 -
Capítulo 3
Algumas interpretações
para o terno: olhares
contemporâneos

78
Para Lipovetsky (2009, p. 184), a contemporaneidade abarca
a “lógica da renovação precipitada, a diversificação e a estilização
dos modelos”, e pauta-se no incessante surgimento no “novo” como
“imperativo categórico.” Nesse contexto, num cenário onde predomina a
multiplicação das escolhas e das opções de consumo, pode-se considerar
o terno como um artigo do vestuário que, mesmo atrelado à tradição,
mostra-se flexível, adaptável e aberto a interpretações carregadas de
inovação no campo do design ou ainda, interpretações criadoras que
esbarram nos terrenos da arte.
O presente capítulo tem como principal objetivo apresentar
interpretações para o terno no contemporâneo, compreendendo
algumas de suas conexões no que diz respeito aos seus usos e à sua
adaptação aos modos de vida das sociedades contemporâneas.
A trajetória desta reflexão será construída sobre três principais
pilares de pensamento: o primeiro deles relacionado ao advento do prêt-
à-porter e ao estilo de vida inaugurado a partir daí, a fim de discutir a
inserção do terno na era da democratização do vestuário e da moda
como instrumento de possível individualização.
Trata-se de compreender, com o auxílio de autores como
Lipovetsky (2009) e Crane (2006), de que forma a moda contribui para
a noção de autonomia. Nesse sentido, a ideia é refletir sobre o modo
de vida relacionado ao modelo de consumo “self-service”, no qual o
individuo tem a ilusão de estar escolhendo aquilo que está adquire.
Nesse contexto, o “kit terno” – combinação semipronta de paletó,
camisa, calça e gravata – será tomado como exemplo.
Num segundo momento, serão abordados os usos do terno, suas
adaptações e interpretações por parte de alguns de seus usuários, no
início século XXI. Dessa maneira, a individualidade será enfocada, bem
como o modelo também sugerido por Lipovetsky (2009), relacionado
ao consumo à La carte, ou seja, feito de acordo com a escolha pessoal.
De maneira a romper com conceitos pré-estabelecidos relacionados
ao terno, num terceiro momento, ele poderá ser compreendido como
um suporte para a arte, mais especificamente no trabalho do alfaiate e
artista plástico mineiro, Marcelo Blade.
Nosso intuito é investigar, por meio da utilização do terno como
- 79 -
integrante de manifestações artísticas, algumas possíveis conexões que
retiram esse artigo dos modelos de uso convencionais a ele atrelados.
Para tal, autores como Featherstone (1995), Gumbrecht (2006)
e Preciosa (2005) serão de grande valia, por discorrerem sobre a
contemporaneidade levantando aspectos relativos à estetização, entre
eles a aproximação entre arte e vida cotidiana.
O artista tomado como exemplo exerce a função de alfaiate,
produzindo ternos sob medida e, ao mesmo tempo, atua como artista
plástico, utilizando os mesmos como parte integrante de sua arte.
Enfocaremos a perspectiva com a qual Blade lida com os ternos, criando
diálogos entre a tradição, o design de moda e a arte.

3.1 Paletó + calça + camisa + gravata = R$199,90

A diversidade de ofertas de produtos e o consumo excessivo


são alguns dos reflexos da consagração do capitalismo como sistema
econômico e a imagem da sociedade contemporânea. A caracterização
desta sociedade como aberta, plural e dotada da construção permanente
de sentidos múltiplos, proposta por Lipovetsky (2009), é o ponto de
partida para a investigação que se segue.
No que diz respeito à compreensão de uma lógica da sociedade
de consumo de massa, é importante entender que a efemeridade e a
obsolescência programada a caracterizam, e “por toda parte impõe-se
a lógica da renovação precipitada, da diversificação e da estilização dos
modelos” (LIPOVETSKY, 2009, p. 184). O ideal de permanência foi
substituído pela regra do efêmero, a “era do consumo coincide com
esse processo de renovação formal permanente” (LIPOVETSKY, 2009,
p. 191), em que existem estímulos constantes que impulsionam a
aquisição e o desejo da novidade.
A “nova” sociedade ou sociedade contemporânea, na reflexão
de Crane (2006, p. 453) é, em parte, “resultado de mudanças
econômicas que alteraram o conceito de trabalho e a relação entre ele
e o lazer, mudanças essas que correspondem à definição de sociedade
pós industrial”. De acordo com a autora a complexidade da “nova”
- 80 -
sociedade está relacionada às mudanças sociais, econômicas e culturais
que conduziram a novas formas de fragmentação social.
A moda é aqui abordada como um processo que se renova
constantemente, processo esse que multiplica a possibilidade de
escolhas e opções, permitindo ao indivíduo reinventar-se por meio
delas. Os consumidores contemporâneos selecionam ativamente o que
é de seu gosto ao invés de responderem passivamente ao que lhes está
disponível e, nas palavras da autora, “parecem ter um forte senso de
identidade pessoal e de como desejam expressar-se através das roupa”
(CRANE, 2006, p. 464).
A cada novidade, a moda é capaz de criar um sentimento
ilusório de libertação em relação aos hábitos passados, às antigas
modas, intensificando o desejo pelo “novo” e a aspiração à autonomia
individual. Para Lipovetsky (2009), o consumo passa para a ordem do
utilitarismo e do individualismo não sendo mais regrado pela busca
do reconhecimento social e sim, da satisfação pessoal. A autenticidade
torna-se, então, o resultado pelo qual almeja o consumidor, não apenas
no que se refere às roupas, mas também no que diz respeito à construção
de estilos de vida. Pautados por paradigmas e modelos existenciais que
orientam as escolhas individuais, os estilos podem ser caracterizados,
como sugere Mesquita (2008):

[...] o estilo ligado à aparência é atrelado a muitos outros


campos propagados pelo mercado e pelas campanhas de
marketing: estilos de comer, de beber, de dormir, de amar, de
morar, de dirigir, de falar ao celular, de tomar café da manhã
com pão e determinada margarina, delimitam uma vida
identificável dentro do mapa contemporâneo das supostas
diferenças (MESQUITA, 2008, p. 112)

Com base nessa colocação, podemos perceber que a construção de


estilos de vida fundamenta-se num conjunto de fatores que, somados,
resultam em um modo personalizado de viver, fruto de escolhas pessoais
aparentes e combinações independentes. Vale notar, de acordo com
Mesquita(2008, p. 112), “que esses universos, pacotes de modos de vida
emoldurados pelo marketing do estilo de vida, são pacotes subjetivos
construídos com a promessa de pertencimento a um mundo de valores,

- 81 -
que garante um poder-saber circular na instabilidade contemporânea e
ser reconhecido no meio da multidão.”
Com o intuito de gerar possíveis conexões entre as combinações
pré-definidas e os indivíduos, “mundos personificados de identificação
são produzidos pelos meios de comunicação em um número avassalador”
(MESQUITA, 2008, p. 119), estimulando o processo de sedução ao
qual Lipovetsky (2005) atribui a tendência à personalização.
Esta perspectiva tornou-se, para o autor, a mais ampla estratégia
de vendas, uma vez que se trata de um real idealizado, convidativo,
que incita o envolvimento do consumidor com determinado produto
num patamar que vai além das referências materiais. De acordo com
Lipovetsky (2009), o consumo se manifesta na esfera do bem estar, da
funcionalidade e do prazer para si mesmo, movido, entre outros fatores,
pela ilusão de uma construção identitária que se faz possível devido à
estratégia da sedução. Em suas próprias palavras, essa estratégia:

[...] não se limita ao espetáculo do acúmulo; mais exatamente,


identifica-se com a repetida multiplicação das escolhas que
torna possível a abundancia, levando a maioria das pessoas
a permanecerem mergulhadas num universo transparente e
aberto, ao lhes oferecer cada vez mais opções e combinações
sob medida, permitindo, assim, circulação e escolha livres
(LIPOVETSKY, 2005, p. 2).

Tomando como referência a colocação do mesmo autor com


relação à tal possibilidade de escolha,

[...] como falar de liberdade individual ali onde a vida da


consciência vibra no ritmo dos humores cambiantes da
moda? Se as ideias oscilam ao sabor das paixonites flutuantes,
se adotamos regularmente as correntes “em voga”, como fica
a finalidade democrático-individualista por excelência que é
a soberania pessoal ou de autodeterminação de si mesmo na
ordem das idéias? (LIPOVETSKY, 2009, p. 305).

É nesse contexto que se desdobra o principal tema desse tópico:


examinar, em meio aos discursos sobre estilos de vida, a ideia de
“livre escolha”, uma vez que na contramão do processo generalizado
de individualização no qual predomina uma procura pela distinção e

- 82 -
pela construção individual, há também uma inclinação para seguir os
juízos da maioria.
Para Mesquita (2008, p. 113), “algumas variáveis prometem
constituir eus, a partir de pacotes construídos por uma somatória de
frações intangíveis, recolhidas na própria subjetividade. Um sem número
de substantivos são somados e subtraídos para compor modelos que
se adéqüem, pelo menos, a um molde básico”. No sentido de refletir
um pouco mais sobre o modo como se dão essas construções, serão
apresentados alguns tipos de organizações de produtos denominados
genericamente de “kits”, encontrados à venda em diferentes setores do
mercado, por reunirem possibilidades combinatórias e modelos pré-
moldados que colaboram para a venda de diferentes produtos reunidos
num mesmo conjunto.
Os “kits” significam um “pacote pronto”: elementos variados
passíveis de se complementarem quando colocados em conjunto. Se
esses elementos não estiverem pré-determinados e forem escolhidos e
combinados pelo consumidor, possibilitam ao sujeito a sensação de
montar as peças à sua maneira, mesmo que este conjunto tenha sido
previamente selecionado, dentro de um leque limitado de opções.
Nas definições encontradas em alguns dicionários, por “kit”
entende-se “estojo com ferramentas, instrumentos ou equipamentos
para fins específicos ou conjunto de peças ou materiais para serem
34. www.michelis. montados”34. Ou ainda, “conjunto de peças que atendem juntas a
uol.com.br
um mesmo fim. Estojo que abriga esse conjunto”35. O “kit” pode ser
35. HOUAISS, ilustrado, por exemplo, por um jogo de peças de montar ou um “kit”
2003, p. 315
de maquiagem, entre outros, como nas figuras 64 e 65:
Lipovetsky (2009, p. 201), aponta para o gosto e a procura pela
autonomia presente na contemporaneidade. Em conexão com este
pensamento, é possível perceber que no primeiro caso trata-se de um
“kit” que exalta a propensão ao “cada um por si”, ou seja, estimula a
sensação de liberdade, de construção individual e o sujeito vê-se capaz
de efetuar a montagem das peças “por si mesmo”.
Porém, é comum em “kits” que configuram conjuntos de peças
de montar, que estes venham acompanhados de manuais que fornecem
as informações necessárias e direcionam o individuo na execução da
- 83 -
montagem. Nesse caso a ideia de liberdade e autonomia individual é, de
certo modo equivocada, uma vez que junção de peças é mediada por
um manual de instruções que direciona o sujeito.
Figura 64: Kit para
montar carros
Dodge Charger R/t
1969 – 1:24 Maisto.
Carro em miniatura
para montar.

Figura 65: Kit de


maquiagem
Fonte: www.
produto.
mercadolivre.
com.br, acesso em
10/11/2011

Já no segundo caso o “kit” de maquiagem inclui, em um único


estojo, inúmeros utensílios de um mesmo grupo de produtos com uma
finalidade comum, reunindo as diversas etapas do processo em um só
lugar e sugerindo a ideia de praticidade. Nesse “kit”, as peças são pré-
definidas, mas existe a possibilidade do indivíduo escolher as diferentes
opções de cores das sombras, da base, dos batons, e combiná-las da
maneira que quiser. Novamente, reforça-se a sensação de singularidade
e personalização e assim a ideia de que os consumidores sejam, nesse
sentido, “cada vez mais capazes de exercer um livre exame, de tolerar
- 84 -
menos os discursos coletivos, de servir-se do próprio entendimento, de
“pensar por si mesmos”, o que evidentemente não significa a ausência
de qualquer influência” (LIPOVETSKY, 2009, p. 307).

Figura 66
Figura 66: Manual de
instruções.
Uma das páginas de um
manual de instruções
para a montagem de
uma miniatura de
carro de corrida.
Fonte: www.small-
dreams.com, acesso em
10/11/2011.

A partir destes exemplos, ressaltamos uma conexão com os


modelos existenciais que orientam o individuo na construção de seu
modo de vida. De forma semelhante aos manuais de instrução que
acompanham jogos de peças de montar, lembramos as palavras de
Preciosa, quando a autora afirma que

Somos sistematicamente forçados a adotar, em nossa


existência, um modo de funcionamento que depende
exclusivamente de identidades prontas, já catalogadas. A vida,
como uma potência de diferenciação e transformação, vê-se
sufocada, intimidada por essa legião de indivíduos fabricados
para atender satisfatoriamente às demandas de um mercado
que molda consumidores (PRECIOSA, 2005, p. 39).

Nesse sentido, compreendemos que o acesso aos processos de


singularização torna-se limitado e constantemente vulnerável aos
modelos de vida pré-estabelecidos.
Observando mais atentamente este cenário, podemos perceber
que as fórmulas estáveis que possibilitam construções existenciais
- 85 -
mais “assertivas” ou “cômodas” são abundantes no contemporâneo.
Um exemplo pode ser visto em determinados livros e publicações
de moda, que preocupam-se em delimitar o que deve ser usado, de
acordo com cada ocasião. Os guias de estilo, como são popularmente
conhecidos, podem ser encontrados em edições simplificadas – em
revistas semanais ou jornais diários – bem como em publicações que
se dedicam exclusivamente à ensinar – como fazem os manuais de
montagem – de que forma combinar suas roupas para que se tenha um
resultado socialmente aceitável e coerente.
A imagem que se segue é um exemplo de publicação que
demarca algumas “dicas”, como um guia que fornece informações a
serem seguidas.
Para Preciosa (2005, p. 41), “recorremos aos diversos manuais que
nos prometem desvendar passo a passo as demandas e o funcionamento
da existência. Passamos a colecionar molduras de bem-estar no mundo:
como amar, seduzir, transar, vestir, morar”. Nossa abordagem nesse
sentido, relaciona-se, mais especificamente às publicações de moda
masculina, tema deste trabalho.

Figura 67: Revista


Men’s Health.
Agosto de 2009.
Editora Abril. Revista
voltada para o público
masculino, evidencia
maneiras de se
conquistar o corpo
perfeito, dieta ideal e
modos de vestir para
parecer “poderoso”.
Fonte: www.
ebooksgratis.com.br,
acesso em 11/12/2011.

35. PEZZOLO, Dinah


Bueno. Moda fácil: guia
de estilo para todas as
ocasiões. São Paulo:
Codex, 2003. Títulos como Moda fácil: guia de estilo para todas as ocasiões35,
- 86 -
Segredos de Estilo: um manual para você ficar sempre bem”36 ou O homem
casual: a roupa do novo século” , reforçam o desejo e a busca por
respostas prontas e sem margem de erro, podendo ser considerados
36. FRANCINI, pequenas engrenagens de “uma maquineta de funcionamento social”,
Christiana. Segredos
de Estilo: Um que delimita modelos facilitadores da vida (PRECIOSA, 2005, p. 30).
manual para você se
vestir melhor e ficar
sempre bem. São
Pulo, Alegro, 2002.

Figura 68: Chic


Homem: Manual
técnico de moda e
estilo. A autora,
Glória Kalil, dá dicas
de estilo para homens.
Fonte: www.
mundofashion
pontocom.blogspot.
com, acesso em
8/12/2011.

O livro intitulado Chic-Homem: um manual técnico de moda e


37. KALIL, Glória. estilo37 , de maneira similar, aborda indicações sobre como os homens
Chic Homem. Um
manual técnico de devem se vestir, de acordo com seu tipo de corpo – gordo, magro, alto,
moda e estilo. São
Paulo: Editora SENAC
baixo, forte, etc – e de acordo com ocasiões específicas. O sumário do
São Paulo, 1998. livro está disposto de maneira a assemelhar-se ao manual de montagem
visto na figura 66, porém por meio de palavras e não de imagens. Sob
o título Breve manual para um guarda-roupa perfeito, estão dois sub
grupos intitulados “As ferramentas básicas” e “Peça por peça”. Modos de
funcionamento são propostos ao longo do texto, que aponta o modelo
que deve ser seguido. Nesse sentido, Preciosa afirma que:

Com esse poderoso kit-identidade debaixo do braço,


circulamos triunfantes por aí e, à força do hábito, passamos
cegamente a nele acreditar, a nele investir e reinvestir. Logo
percebemos que algumas dessas figuras pré-moldadas são
mais valiosas do que outras, algumas funcionam socialmente
bem melhor do que outras, são mais facilmente incorporadas,
- 87 -
aceitas, não atritam com os referenciais dominantes, aos quais
nos esforçamos tanto em aderir. Isso é bastante tranqüilizador.
(PRECIOSA, 2005, p. 32 e 33).

Nessa linha de pensamento, uma breve apresentação do “kit


terno”, a partir desse momento, auxiliará nossa compreensão relativa
ao discurso da “livre escolha”, aos modelos pré-definidos e ao ponto de
vista da fixação dos indivíduos às formulas estáveis de combinações.
De maneira semelhante aos exemplo – o carro de montar ou o kit
de maquiagem –, o “kit terno” localiza-se no território das combinações
possíveis e da lógica da personalização do cliente.
Nesse aspecto, o “kit terno” pode ser interpretado como um
conjunto de peças - terno, camisa, gravata (e outras variações) – que,
combinadas entre si, constituem um terno ou um costume. Dialoga
com as atuais exigências do mercado de massa, uma vez que sugere a
independência da escolha individual e possibilita o exercício da
autonomia – mesmo que relativa. Vale lembrar que a ideia de kit engloba
uma esfera maior que a do consumo somente, se referindo, na verdade,
a um “retrato” dos modos de vida predominantes na sociedade
contemporânea, imersa na variedade e na congruência de estilos e
Figura 69: “Kit códigos diversos.
terno” Artman. O
Kit que aponta para a Nesse sentido, em caráter de ilustração, os exemplos que se
possibilidade de escolha
seguem mostram peças publicitárias de modelos de “kit ternos” que, em
do cliente.
Fonte: www.artmanbh. determinado momento, exaltam a relação custo-benefício e, em outro,
com.br, acesso em
02/09/2011. estimulam a noção da combinação personalizada.

- 88 -
Figura 70 e 71: Kit
terno loja virtual.
Exemplos de “kit
ternos” de loja virtual
voltadas para o mercado
de massa.
Fonte: www.seguro.
leopard.com.br, acesso
em 02/09/2011.

Para Lipovetsky (2005, p. 4), o processo de personalização reduz


a rigidez das organizações, substitui os modelos uniformes e pesados
por dispositivos mais flexíveis. Na mesma linha de raciocínio, nas
palavras de Crane (2006, p. 470), “a criação e a produção das roupas
da moda migraram de um sistema altamente centralizado para outro,
mais descentralizado e pluralista”. Nesse cenário entendemos que
o terno tenha percorrido um caminho semelhante, uma vez que sua
origem tradicional, calcada nas regras da alfaiataria clássica sob medida,
sucumbiu aos modos de produção do prêt-à-porter, e passou a ser
oferecido pelo mercado de produção e consumo de massa, inclusive no
formato do “kit”.
Na perspectiva da diversidade, o prêt-à-porter exerce um papel
importante no que se refere à possibilidade de produção em larga
escala dos ternos, desencadeando o aumento da oferta. Segundo
Lipovetsky (2005, p. 3), é a diversidade de ofertas que permite que o
que a “vida kit” - ou vida “sem imperativo categórico”, vida flexível
- possa ser modulada em função das motivações pessoais, das opções
e das fórmulas independentes. Em suas próprias palavras, o autor
enfatiza a proposição:

Submetendo-se aos decretos novos, “o concidadão dos


novos tempos vangloria-se de fazer uma livre escolha entre
as proposições que lhe são feitas; enquanto a obediência às
prescrições antigas e antinômica à afirmação do indivíduo
autônomo, o culto das novidades favorece o sentimento
- 89 -
de ser uma pessoa independente, livre em suas escolhas,
determinando-se não mais em função de uma legitimidade
coletiva anterior, mas em função dos movimentos de seu
coração e de sua razão (LIPOVETSKY, 2009, p. 213).

O sentimento de independência ao qual se refere Lipovetsky,


relaciona-se com o conceito do modelo “self-service” também proposto
por ele. Trata-se de um modelo de estilo de vida contemporâneo,
relacionado à noção da escolha livre, à diversidade e à autonomia no
fazer cotidiano.
Podemos considerar o “kit terno” como parte desse modelo
“self-service”, em que as escolhas do indivíduo são relacionadas às suas
motivações pessoais. Diante da abundante oferta, as combinações podem
tornar-se alternativas que transmitam sensação de segurança, uma vez
que, mesmo que o consumidor escolha as peças do conjunto, estas
já foram pré-selecionadas para serem combinadas entre si, formando
um “pacote pronto”. Essa ideia de “pacote pronto” levanta questões
relacionadas aos diferentes tipos de ofertas que a moda proporciona
ao consumidor e suscita a dúvida sobre até que ponto as escolhas são
realmente individuais.
Preciosa (2005, p.39) colabora ao dialogar com nossas questões:
“Estamos pisando num espaço-tempo que se organiza segundo padrões
de homogeneidade, que nos sujeita a formas lineares e serializadas de
percepção da existência. Convertemo-nos numa espécie de garotos-
propaganda dos valores hegemônicos, modelizantes.”
Na presente abordagem, apontamos o “kit terno” como um
conjunto de peças do vestuário capaz de reforçar o estereótipo modelizante
de um modo de vida, por se tratar de um “pacote estilístico” que engloba
sentidos e códigos diversos relativos ao seu conteúdo. Ou seja, além
de se consumir o produto material, consome-se, de maneira similar, o
que o terno representa socialmente, no que diz respeito aos valores a
ele atrelados, tais como a elegância, a seriedade, o profissionalismo, o
poder. Nesse contexto vale retomar o pensamento de Mesquita:

A partir de um intenso trabalho de organização de


informações que vão de encontro à construção subjetiva são
simulados conjuntos de qualidades expressivas, espécies de
- 90 -
kits de adjetivação que delimitam e favorecem a circulação,
comunicação e aquisição dos pacotes estilísticos, em amplo
espectro de classes socioeconômicas, setores profissionais e
faixas etárias (MESQUITA, 2008, p. 113).

Demarcando estereótipos específicos, a moda alimenta o desejo


de consumo desses pacotes, movido, também pela lógica da novidade,
pelo “novo” que “é sentido como instrumento de “libertação” pessoal,
como experiência a ser tentada e vivida, pequena aventura do Eu”
(LIPOVETSKY, 2009, p. 213) e, nesse aspecto, a novidade relaciona-se
à aspiração à autonomia individual.
Na presente abordagem, faz-se necessário compreender que a
origem do terno parte da noção de exclusividade – quando feitos sob
medida, para cada cliente – e seus caminhos o trazem para um momento
no qual isso continua existindo de diferentes maneiras. De um lado há
a “ilusão” de individualidade com os kits, de outro, há o exercício da
individualidade com as reinvenções de uso e interpretações pessoais.
Por esse motivo o terno pode ser considerado um meio para visualizar
os paradoxos e o modo de funcionamento da moda contemporânea.
O “kit terno” abre espaço para a sequência desta investigação
que enfocará os usos do terno no cotidiano. Nesse momento, o campo
do vestuário e da moda serão abordados como estimuladores dos
processos de fragmentação dos estilos de vida, de valorização das escolhas
individuais, e também, como meio de construção de interpretações
particulares para o terno.

3.2 Usos e desusos: novas configurações do terno

Podemos considerar que a democratização do vestuário,


proveniente da era industrial e, mais especificamente, da disseminação
do prêt-à-porter, conduziram o terno à um novo cenário que estimulou
sua diversificação e suas possibilidades combinatórias.
Se ao longo de sua história a moda esteve, muitas vezes, ligada à
ostentação, ao status como diferenciador social, o contemporâneo vai
tornando possível percebê-la de maneira distinta e mais relacionada às
- 91 -
variáveis individuais do que às diferenças de classe. A moda torna-se
um meio para a expressão da individualidade e através dela torna-se
possível ao individuo reinventar-se constantemente, moldando uma
imagem mais plural.
De acordo com Simmel (2008, p. 24), a moda expressa o
movimento dinâmico da sociedade, unindo, de maneira peculiar, o
interesse pela duração, pela unidade e pela igualdade com o interesse
pela mudança, pelo particular e pelo único. O terno adéqua-se a esse
paradoxo, tornando-se um meio para a expressão da individualidade.
Como já apontado na abordagem anterior, na contemporaneidade,
há uma generalização do processo de personalização e da autonomia
individual, produzindo sujeitos cada vez mais voltados para si mesmos,
responsáveis pela própria vida e administradores de suas escolhas. Estas
escolhas se tornam cada vez mais complexas diante do atual estágio
econômico, pautado por uma exacerbada estimulação da demanda
através da facilidade de acesso e da abundância de bens e serviços. O
indivíduo, sob esse ponto de vista, volta-se para si mesmo, num processo
de emancipação, buscando a realização pessoal e a construção de seu eu,
através das escolhas de consumo que faz.

A era da moda consumada significa tudo menos


uniformização das convicções e dos comportamentos. Por
um lado, ela certamente homogeneizou os gostos e os modos
de vida pulverizando os últimos resíduos dos costumes
locais, difundiu os padrões universais do bem-estar, do lazer,
do sexo, do relacional, mas, por outro lado, desencadeou
um processo sem igual de fragmentação dos estilos de vida
(LIPOVETSKY, 2009, p. 322).

O exercício da individualidade por meio da roupa e de suas


combinações é o principal objetivo deste tópico que enfocará o terno.
Algumas das possibilidades de construções às quais esse traje está
sujeito serão aqui abordadas, com o intuito de compreender o modo
como ele é usado pelos indivíduos para conferir atributos ligados ao
“estilo pessoal”.
O processo de “fragmentação dos estilos de vida” ao qual se refere
Lipovetsky (2009), pode relacionar-se à multiplicação e à renovação
constante dos artigos produzidos pela indústria da moda, que possibilitam
- 92 -
inumeráveis combinações estilísticas por parte dos indivíduos. Dessa
maneira, são elaborados discursos individuais distintos que caracterizam
“estilos” diversos.
“Estilo”, sob o ponto de vista individual, “diz respeito ao conjunto
de componentes subjetivos, resultado das escolhas de peças do vestuário,
acessórios e interferências diretas sobre o corpo, assim como corte e cor
de cabelos, tatuagens e outras intervenções corporais” (MESQUITA,
2008, p. 106). No caso do terno, considera-se que a construção de
“estilos” está associada, entre outras possibilidades, às re-combinações
do mesmo, ao desmembramento de suas peças componentes do
conjunto, que passam a ser utilizadas separadamente ou inseridas em
combinações não usuais.
Nesse sentido, considera-se que o individualismo pode ser
reforçado pelas escolhas pessoais que possibilitam ao consumidor
inventar composições que extrapolam o que é sugerido pelo mercado
de moda, assumindo posturas cada vez mais autorais e independentes.
Vale ressaltar que, mesmo em meio às possibilidades de combinações
diversas, o terno tradicional ainda se mantém em uso em ocasiões que
exigem sua formalidade, reforçando, dessa forma, sua capacidade de se
adaptar à realidades distintas.
O terno vinculado à tradição, passa por um processo de adaptação
ao cenário contemporâneo, principalmente no que diz respeito ao seu
uso. A começar pela ausência do colete que o caracteriza como “terno”
(conjunto de três peças). A combinação tradicional composta por
paletó, colete e calça, assume a configuração de “costume”, relativa
ao conjunto de calça e paletó, como pode-se perceber a partir da
observação de Roetzel (2000, p. 91): “nos seus primeiros tempos, o
fato consistia em três peças, ou seja, as calças, o casaco e o colete. Hoje
em dia, a composição é, em regra, só de duas peças, nomeadamente o
casaco e as calças; o colete desaparece gradualmente”.
Os atuais usos do terno ou “costume”, no entanto, extrapolam
a ausência do colete, abrangendo outras formas de transformação e
modificação, estimuladas, entre outros fatores, pela construção de
“estilos” diferenciados e individualizados.
Para exemplificar, podemos tomar como exemplo imagens de um
- 93 -
38. www.thesartorialist. dos blogs de moda mais famosos da internet, o The Sartorialist38. Seu
com. Pode-se apontar
alguns outros criador, Scott Schumann fotografa o estilo de vestir de pessoas anônimas
exemplos de blogs
que mostram “estilos” pelas ruas de Paris, Milão e Nova York. O propósito, segundo ele em
individualizados por
meio de fotografias entrevista para um site de moda, é pensar a moda como expressão de
de moda de rua:
www.lookbook.nu, personalidade: “o que me interessa, muitas vezes é a linguagem corporal,
www.facehunter.
blogspot.com, www.
o modo de carregar a roupa, o aspecto psicológico da moda”39.
stockholmstreetstyle. De acordo com Mesquita (2008, p. 108 e 109), “o estilo individual
com, entre outros.
ganha cada vez mais força e, nos anos 1990 e 2000, atropela previsões,
39. www.chic.com.br lançamentos e campanhas de marketing, demonstrando sua força nos
mecanismos da moda”. Nesse sentido, por meio das fotografias de
Schumann, é possível perceber que se trata de uma diversidade de estilos
pessoais, pautados por escolhas individualizadas que constituem o
sujeito, cada qual à sua maneira.
Figuras 72 e 73:
Combinação informal
do terno.
Uso de cores fortes
e contrastes, uso de
moletom sob paletó:
combinações incomuns
e informais que trazem
o traje para o campo
da experimentação de
possibilidades.
Fonte: www.
thesartorialist.com,
acesso em 1/08/2011.

Figuras 74 e 75:
Combinação informal
do terno
O “costume” utilizado
com short e tênis
exalta o caráter da
personalização e do
rompimento com o
tradicional.
Fonte: www.
thesartorialist.com,
acesso em 01/08/2011.

- 94 -
Para o presente trabalho foram selecionadas imagens nas quais os
indivíduos utilizam o terno ou “costume” para arquitetar a construção
de seus estilos, caracterizados, entre outros fatores, pala mistura de
elementos, cores variadas e combinações incomuns.
As imagens anteriormente retratadas representam alguns
rompimentos no uso dos ternos tradicionais. O terno é, de certa forma,
deslocado do campo da formalidade clássica para o campo da livre
informalidade: pode ser visto combinado com tênis, jeans, camisetas de
malha, mochilas e outros acessórios.
Figura 76: Acessórios Nesse sentido, podemos
informais usados
com o terno. Acessórios considerar que o conceito de “sob
como a mochila, por
exemplo, possibilitam medida”, originalmente atrelado
uma interpretação
mais informal em
à alfaiataria, adquire, diante desse
relação ao terno. quadro, uma nova interpretação. Se
Fonte: www.
bolsasdevalor.net, antes estava relacionado à confecção
acesso em 01/10/2011
de peças com a medida do cliente
e únicas para cada tipo de corpo,
agora ganha outra conotação:
relaciona-se com a diversidade, com
múltiplas escolhas e combinações,
num cenário no qual o indivíduo seleciona e adquire aquilo que lhe é
conveniente para a construção de uma aparência especifica.
Podemos fazer um paralelo entre o “sob medida” tradicional
e o “sob medida” individual: o primeiro diz respeito à determinadas
técnicas de corte e costura, aos cuidados com o acabamento das peças e,
principalmente, à unicidade das mesmas, uma vez que são produzidas
para um indivíduo determinado. O segundo, de forma semelhante,
confere uma certa unicidade, por referir-se à composição autoral e à
criação de um estilo diferenciado, mas pauta-se pela manipulação de
informação e códigos para a construção de um modo de vestir.
Vale ressaltar que a criação da imagem pessoal, aparentemente
pautada por um livre arbítrio é encarada, de acordo com Mesquita
40. MESQUITA, (2008, p. 98), como necessidade no contemporâneo40. O indivíduo
Cristiane. Políticas do
vestir, recortes em viés. assume, então, a responsabilidade sobre sua própria construção pessoal
Tese de Doutorado.
PUC-SP, 2008. por meio do vestuário. Na busca por diferenciação, ele experimenta
- 95 -
múltiplas possibilidades de construção do “eu” através da moda, que
se torna uma potente ferramenta capaz de moldar identidades. O
terno se insere, nesse contexto, como um tipo de suporte, uma possível
plataforma de expressão.
Assim, esse artigo do vestuário pode ser interpretado como
instrumento de individualização por meio de seus usos individualizados
nem sempre atrelados às suas raízes tradicionais. Em outras palavras,
partindo em busca de diversas versões de si mesmo, o individuo é capaz
de subverter os usos do terno e manipular seus significados, através de
rupturas diversas.

Figura 77 e 78:
“Costume” tradicional.
“Costumes” usados de
maneira tradicional:
calça e paletó do mesmo
tecido, combinados
com gravata, sapato
e camisa social.
Fonte: www.
homensmodernos.
wordpress.com, acesso
em 13/12/2011.

Figura 79: Composição


personalizada do terno.
Paletó usado com
calça jeans justa,
camisa social e gravata
borboleta. Composição
de elementos
personalizada.
Fonte: www.
itsadriancano.blogspot.
com, acesso em
18/11/2011.

- 96 -
Figura 80 e 81:
Composição
personalizada do terno.
Combinações não
usuais, compostas
por elementos que
constituem um
“costume”.
Fonte 80: www.
skinnysuits.blogspot.
com, acesso em
18/11/2011.
Fonte 81: www.
itsadriancano.blogspot.
com, acesso em
18/11/2011.

Ao investigar a diversidade de usos que são atribuídos ao terno


e ao “costume” no cotidiano e observar algumas de suas rupturas, é
admissível perceber que tais modificações podem ser vistas como
uma espécie de “interrupção dentro do fluxo da vida cotidiana”. A
utilização do terno, quando inovadora de seu uso tradicional, passa por
transformações e mudanças, alcançando o território das experiências
individuais e da construção de estilos variados.
Para ilustrar essas possíveis rupturas, apresentamos imagens
de usos distintos do terno no contemporâneo, a fim de mostrar sua
versatilidade e possibilidades de transformação.
As figuras 77 e 78 retratam a maneira tradicional de utilização
de um terno. Trata-se dos padrões comuns de um terno clássico,
usado, por exemplo, em ambientes formais de trabalho ou eventos
que exigem trajes apropriados. No entanto, essa combinação – paletó,
calça, camisa, gravata – pode assumir novos contornos, de acordo com
escolhas indivíduais. Para Preciosa (2005, p. 30), a moda “nas suas mais
variadas manifestações, nos propõe modos subjetivos que serão vestidos
por nós. Isso exige que estejamos bastante atentos ao sentido das peles
que iremos por sobre as nossas”. Com base nessa afirmação, é possível
compreender as demonstrações individuais de interpretação do terno e
- 97 -
as construções personalizadas que as imagens 74, 75 e 76 apresentam.
A mistura de elementos variados que, sob o ponto de vista da
elegância tradicional não combinariam entre si, pode ser considerada
como um dos fatores que rompem com as lógicas tradicionais para o uso
do terno. No exemplo da figura 79, nota-se a junção de peças formais
– o paletó, a camisa e a gravata borboleta – com outras, consideradas
informais – o jeans e os sapatos -, que confere um mix de elementos. Essa
mistura aponta, por um lado, ao terno convencional, e por outro, à uma
combinação personalizada. Outro fator que contribui para a ruptura é
a modelagem das peças, justas ao corpo. Se comparadas às imagens 80 e
81, reforçam o distanciamento em relação ao terno tradicional.
Nas imagens 80 e 81, a mistura de referências distintas se repete. É
o caso da bermuda jeans usada com paletó vermelho e pulseiras variadas.
Ou ainda o paletó verde, combinado com calça amarelada e tênis. As
imagens colaboram para a percepção das possibilidades do terno, para
transitar pela diversidade e se adaptar às composições particulares.
As intervenções que podem ser visualizadas nas figuras
apresentadas, em relação ao uso tradicional do terno, dialogam com
colocação de Preciosa (2005):

Estamos de fato pisando em solo movediço: de alianças,


misturas, hibridizações, disso e daquilo, do inclassificável.
Desespero para quem procura sempre a identidade, a
essência, a verdade das coisas, desafio e festa para aquele
que embarca no caudaloso rio dos sentidos inesgotáveis,
provisórios, imperfeitos, que nos estimulam a ousar existir de
outro jeito, inventando-se, reinventando-se, incansavelmente
(PRECIOSA,2005, p. 45).

Para a autora, os indivíduos são fruto dos encontros e conexões


que se fazem ao longo da existência e o vestuário, nesse sentido, pode
colaborar com essa construção.
Nosso trajeto abordou o terno sob perspectivas diversas,
examinando seu caráter tradicional e suas possibilidades de interpretação
no campo do design de moda. Avançando nossas investigações à luz da
“experiência estética”, tal como delineada por Gumbrecht (2006), será
possível compreender, na sequência deste trabalho, outros rompimentos
e deslocamentos do terno que podem tomar proporções ainda maiores,
- 98 -
quando inseridos no campo da arte.
Nosso intuito é pensá-lo além das fronteiras do design, como
integrante de um cenário caracterizado pela tensão entre as linhas que
dividem a arte e a vida cotidiana. Autores como Featherstone (1995),
Preciosa (2005), Gumbrecht (2006) e Stalybrass (2008) servirão de
referência para o desenvolvimento desta discussão.

3.3 “O palhaço vem de terno. O palhaço vende ternos”.

Figura 82
Figura 82: Marcelo
Blade,
O alfaiate e artista
plástico, em uma de
suas performances.
Fonte: www.
marcelobladealfaiate.
com.br, acesso em
01/10/2011.

Ao longo deste capítulo, foram abordados alguns usos do terno


no cenário contemporâneo, pensados de acordo com a inserção desse
artigo do vestuário no design de moda, pautados por suas possibilidades
combinatórias e por interpretações individuais do usuário.
Nesse momento, abordaremos o uso singular do terno em
manifestações que extrapolam sua utilização como vestuário. Nosso
intuito é pensá-lo de forma mais abrangente, para além de sua origem
no campo do vestuário e da moda, capaz de estar inserido em territórios
como, por exemplo, o da arte.
No contexto da arte, é possível pensar que o terno seja mais
intensamente deslocado de suas interpretações mais comuns. Nesse
sentido, compreendemos que a tradição é descontextualizada e o terno
passa a fazer parte de um cenário pautado por “novos gostos e sensações”
- 99 -
e pela “exploração de um número cada vez maior de possibilidades”
(FEATHERSTONE, 1995, p. 99).
Para isso, o trabalho do alfaiate e artista plástico mineiro
Marcelo Blade será abordado, uma vez que Blade utiliza o terno como
uma das peças fundamentais de suas intervenções artísticas, fazendo-o
transitar no cotidiano de maneira a desvencilhar-se de seus atributos
simbólicos convencionais.
Com o intuito de entender um pouco mais sobre o trabalho de
Marcelo e, mais especificamente, sua relação com os ternos, foi realizada
uma entrevista registrada em áudio e vídeo, no ateliê do alfaiate em
41. A íntegra da Belo Horizonte41. Alguns dos registros serão transcritos ao longo deste
entrevista realizada
com Marcelo Blade tópico, com o objetivo de contribuir para um melhor entendimento a
encontra-se em anexo.
respeito de suas performances artísticas.
Marcelo Blade é mineiro e se autodenomina um “fazedor”.
Passou a infância na alfaiataria do pai, Hermano do Carmo, que lhe
ensinou o ofício e o fez tomar gosto pela técnica. “Meus carrinhos eram
carretéis de linha”, exalta Marcelo, que desde os quatro anos de idade
ia, aos domingos, para a alfaiataria do pai, rabiscar as paredes com giz.
O convívio com muitos artistas e músicos que frequentavam o ateliê
de seu pai acabou influenciando a formação de Blade (nome pelo qual
é conhecido), que hoje atua como alfaiate e como artista plástico em
Belo Horizonte. Como herança familiar, Blade aprendeu as técnicas
da alfaiataria clássica, atuando no mercado das roupas masculinas sob
medida. Iniciou sua carreira como criador e diretor de estilo da Blade
Runner, marca própria, cuja especialidade era a criação e confecção de
roupas masculinas. Alguns anos mais tarde, encerrou a marca e abriu
seu próprio ateliê de alfaiataria com atendimento em domicílio.
O trabalho de Marcelo pode ser considerado peculiar, uma vez
que de um lado ele cria peças tradicionais, clássicas e sob medida, para
um público exigente formado por executivos, empresários e noivos. E,
por outro lado, ele atua como artista plástico em constante produção,
42. Entrevista de
Marcelo Blade ao Jornal segundo o próprio artista: “costura, cozinha, recupera, pinta, cria,
O Peru Molhado, de
Búzios (RJ) constrói, desconstrói e constrói novamente”42.
Para o artista, o terno “garante sua sobrevivência” – em relação
à comercialização e às vendas de seus produtos – e “sua alucinação” –
- 100 -
43. Em nossa no que diz respeito à sua atuação artística –, uma vez que está inserido
pesquisa, o termo
“desconstrução” refere- em seu cotidiano e em sua memória. Vende ternos clássicos e
se à transformações
formais que Marcelo tradicionais sob medida, ao mesmo tempo em que vende ternos
Blade executa sobre
os ternos. Trabalhar desconstruídos43 ou reconstruídos, de bicicleta nas praças da cidade.
com o avesso, retirar
mangas, desmontar “O palhaço vem de terno” diz Blade, lembrando que “vender também
bolsos, são ações que
servem como exemplos
faz parte das minhas performances.”
de como a estratégia da
desconstrução é usada
pelo artista.

Figura 83:
Intervenções de
Marcelo Blade.
Os ternos estão
sempre presente
nas intervenções
de Marcelo que os
utiliza, também,
como suporte para
sua arte.
Fonte: www.flickr.
com/photos/
bladealfaiate, acesso
em 01/10/2011.

Nas imagens que se seguem, é possível perceber seu trabalho


tradicional, sob o ponto de vista formal e do uso.
Figura 84 e 85:
Ternos de Marcelo
Blade. Ternos
tradicionais, feitos
sob medida, pelo
alfaiate Marcelo
Blade.
Fonte: www.
marcelobladealf
aiate.com.br, acesso
em 20/11/2011.

Em contraponto à sua vivência como alfaiate, sua conexão com


o território artístico, possibilita a mistura da tradição e da rigidez da
alfaiataria com a liberdade de criação das artes plásticas. Para ele, atuar
como alfaiate, além de fazê-lo por gosto, possibilita a realização de seus
trabalhos artísticos em termos, principalmente, financeiros.
- 101 -
44. Entrevista de Sua principal proposta como artista, em suas próprias palavras,
Marcelo Blade ao Jornal
O Peru Molhado, “é influir nas coisas, interferir no universo, mexer os dados do futuro.
de Búzios (RJ).
23/10/2010 Não me contento com a realidade. Para mim a vida é mais que acordar
e dormir. É um constante processo de criação”44
Para o alfaiate/artista, o terno se configura, muitas vezes, como o
principal componente de suas interferências artísticas que geralmente,
são realizadas como performances pela cidade. Suas ações itinerantes
abrangem várias cidades mineiras: Belo Horizonte, Barbacena,
Tiradentes, entre outras. Rodas de bicicleta sobre tamboretes,
manequins com projetos de ternos e mesas com restos de tecidos fazem
parte dos cenários por ele construídos, geralmente inspirados em seu
45. www. ateliê e em sua vivência como alfaiate. No site do artista45, encontra-se
marcelobladealfaiate.
com.br a seguinte definição:

Atento ao mundo criativo das artes, Marcelo desvenda novas


fronteiras da reciclagem, suas performances, extra oficial,
subvertem os acontecimentos. Sua fonte de inspiração vem
do giro contemporâneo transformando acontecimentos em
um dialogo artístico.

46. Outras Inserida nas fronteiras entre o design de moda e o campo da arte46,
manifestações artísticas
relacionadas ao terno a descontextualização do terno com relação aos seus usos, pode tomar
podem ser vistas no
trabalho do artista diversas proporções. Para Featherstone (1995, p. 101), “a arte deixou
alemão Joseph Beuys
(1921-1986), intitulado de ser uma realidade protegida e separada; ela ingressa na produção e
como O terno de feltro
(1970), em www.beuys.
reprodução, de modo que tudo, mesmo que seja a realidade cotidiana
org, e nas fotografias e banal, é por isso mesmo classificado como arte e se torna estético”.
da sueca Maria Friberg,
disponíveis em www. Segundo o autor, trata-se de um retrato da sociedade contemporânea
mariafriberg.com.
que enfatiza o apagamento das fronteiras entre a arte e a vida cotidiana,
resultando na estetização da mesma.
A ruptura pela qual o terno tradicional passa quando se fala em
sua inserção no território artístico, pode consistir em uma “experiência
estética” que, nas palavras de Gumbrecht (2006, p. 51), “sempre será
uma exceção que, de maneira totalmente natural e de acordo com cada
situação individual, desperta em nós o desejo de detectar as condições
(excepcionais) que a tornaram possível”. Nesse sentido, pode-se
considerar os deslocamentos e as transformações no uso do terno como
parte de um tipo de experiência que caracteriza-se por uma quebra no
- 102 -
47. No caso do fluxo dito “natural”47 das coisas.
terno, o uso
“natural” pode As propostas de Featherstone (1995) e Gumbrecht (2006) podem
significar sua
combinação de ser visualizadas no trabalho que Marcelo realizou, em 2010, durante
tecidos, modelagem
e composição o evento Classic Fusca II, ocorrido na cidade de Tiradentes (MG). O
tradicional: calças,
paletó e, em alguns conjunto de objetos pode ser visto nas imagens que se seguem e forma o
casos, o colete.
cenário que serve de palco para a atuação do artista. No contexto de suas
performances, dentre os objetos selecionados, o terno se faz presente,
tanto para consumo, quanto para a apreciação artística, e a maioria deles,
expostos em araras, apresentam interferências feitas por Blade.
48. Escritor Para Alexander48, Blade “fez uma verdadeira arqueologia que
no blog www.
lindatiradentes2010. resultou numa coletânea de objetos hoje obsoletos, mas que fizeram
wordpress.com.
parte do cotidiano dos anos 1960 a 1980. Cada um deles cuidadosamente
preparado para ser parte de sua performance”.
Figura 86 e 87:
Performance de Marcelo
Blade em Tiradentes.
Performance em
Tiradentes (MG), em
2010, durante o evento
Classic Fusca II. Objetos
antigos constroem um
imaginário nostálgico das
décadas de 1960 a 1980 e
os ternos ficam expostos
para a venda.
Fonte: www.
lindatiradentes2010.
wordpress.com, acesso
em 01/10/2011.

Podemos considerar que, nesse caso, o terno é desarticulado de


várias maneiras. Uma delas refere-se ao cenário artístico ao qual passa
a pertencer, tornando-se parte de um novo contexto. Outra forma de
desarticulação pode ser vista com relação ao sentido que Marcelo confere
aos ternos nos quais ele interfere. Tratam-se, segundo ele, de peças de
- 103 -
arte desenvolvidas sem a rigidez da alfaiataria clássica e voltadas para a
experimentação, tanto de quem faz, quanto de quem veste.
Em geral, ele desloca o sentido dos objetos, retirando-os de seu
lugar comum. Para o evento Classic Fusca II, um encontro de centenas
de fuscas antigos, Blade levou um capô de fusca para o cenário e mostrou
48. A palavra “picante”,
dentro do contexto sua coleção de espelhinhos decorados com uma interpretação “picante”48
apresentado, faz alusão
ao universo erótico. de um capô de Fusca.

Figura 88: Performance


de Marcelo Blade em
Tiradentes.
Blade mostra seus
espelhinhos decorados
aplicados no avesso do
casaco, durante o evento
Classic Fusca II.
Fonte: www.
lindatiradentes2010.
wordpress.com, acesso
em 01/10/2011.

Para Gumbrecht (2006, p. 55), “todos nós já passamos por esses


momentos em que um objeto que durante muito tempo nos foi familiar,
de repente e sem qualquer motivo visível, ganha uma aparência estranha
ou causa um sentimento de estranheza”. Essa descrição caracteriza uma
“experiência estética”. Um dos possíveis efeitos desse tipo de experiência
seria “a impressão de independência e liberdade que resulta da detecção
de potencialidade até então escondida das coisas”.
Preciosa (2005, p. 56) dialoga com Gumbrecht (2006) ao afirmar
que “o objeto estético é uma forma de vida autônoma, pulsando diante
de nós”, que convida o indivíduo – ou espectador – a experimentar
um encontro singular, a abandonar-se numa lógica diferente da qual
está acostumado. Dessa forma, ele vivencia uma nova experiência à sua
maneira, se abrindo para possibilidades de conexões inusitadas.
A partir destas articulações podemos entender que alguns dos
deslocamentos conferidos ao terno podem fazer parte de um momento
“em que aquilo que consideramos uma experiência cotidiana
- 104 -
completamente normal, de repente, aparece sob uma luz excepcional,
a saber, à luz de uma experiência estética” (GUMBRECHT, 2006,
p.51). Isso ocorre por meio de mudanças nos moldes situacionais,
ou seja, nos usuais contextos dentro dos quais aborda-se o artigo do
vestuário em questão.
De acordo com Gumbrecht (2006, p. 53) “qualquer objeto e
seu conceito são capazes de ser descontextualizados e assim capazes
de aparecer”. Entendemos, portanto, que a “experiência estética”
compartilha a sua condição de “excepcional” dentro de um contexto
maior. No caso do terno, comumente utilizado de maneira formal
e tradicional, é plausível perceber que essa experiência pode estar
relacionada a uma inesperada interrupção no fluxo normal de uso.
Para Preciosa (2005) a arte nos desencaminha e diante de uma
experiência estética somos deslocados de nosso estado mais comum.
Nesse sentido, de acordo com a autora:

Aportamos em outros universos de referência, que se chocam


com os papéis preestabelecidos, rompem com a lógica dos
receituários. A arte desfaz os nós do consenso, desentroniza
formas-padrão de existência, os tais modelos prontos
que incorporamos e com eles nos atolamos até o pescoço
(PRECIOSA, 2005, p. 55).

No caso de Blade, a perturbação, à qual se refere Preciosa (2005),


pode estar relacionada, por exemplo, às suas interferências no cenário
urbano. Ao longo da entrevista, foi possível perceber que a interação do
artista com o espectador e com a cidade é uma forte característica do
trabalho, pois ele espalha, por pontos específicos de Belo Horizonte, os
objetos que utiliza em suas performances, tais como bonecos e rodas
de bicicleta. Essa foi a forma que encontrou de se fazer presente na
cidade, como se os objetos expostos o representassem, uma vez que,
fisicamente, ele está ausente.
As performances do artista assumem um caráter repentino e
surpreendente, quando executadas no meio da rua, em lugares públicos,
estimulando o público a vivenciar uma situação distinta das que seriam
comuns no cotidiano.
Podemos considerar que esta maneira de o artista se inserir no
- 105 -
cotidiano e no cenário urbano significa reinventar esse cotidiano como
experiência estética, ou seja, torná-lo gerador de poéticas relacionadas
com a interação entre pessoas comuns e com o dia-a-dia da cidade.
Preciosa (2005, p. 55) reafirma essa ideia, ao apontar que a arte “está
declaradamente em busca de inventar mundos possíveis, dar visibilidade
ao invisível, desembaraçar nosso olhar tão acostumado, rendido às
uniformidades.” Marcelo permite que os ternos e os objetos que expõe
sejam vistos de maneira singular, os recontextualizando de modo a
exaltar sentidos diversos daqueles que eles possuem no cotidiano.
Em seu “mundo imaginário” o terno e a alfaiataria são focos
principais.Em meio a profusão dos objetos que constituem as cenas, as
imagens e os sons, os ternos se destacam por serem sempre recorrentes no
trabalho do artista. Durante suas performances, seus ternos e outras peças
de alfaiataria estão sempre à venda, expostos em araras ou manequins. A
sensação, segundo ele, é de estar em um ateliê urbano onde o limite entre
o real e o imaginário se confundem. Para Blade, “inserir objetos móveis
e utilitários no alvo do transeunte, do passante, os deslocam para o lugar
inventado”, ou seja, são inseridos “numa realidade invertida, como se
fosse contar uma mentira de trás para frente”.
No vídeo Universo Arte: Marcelo Blade gravado e produzido
pela TV UFMG em 2010, Blade conta um pouco de sua vida como
alfaiate, artista e como funciona seu processo criativo. Um “palhaço
contemporâneo” é como ele se sente ao realizar suas performances e
gerar “alegria coletiva” após um estranhamento inicial por parte do
público. Preciosa (2005, p. 63) descreve o momento do estranhamento
face a uma experiência estética:

Por um breve momento, esse perturbador espaço assedia


nossa existência, que insiste em cravar seus pés na terra da
experança de preservar-se sempre de pé, interoga nosso viver,
sentir e pensar e nos acena com um desafiador convite: que
tal buscarmos outro chão para pousar o pé? E isso implica
dizer: que tal inventar outros equilíbrios, outros prumos
possíveis?

Consideramos o “estranhamento” descrito por Preciosa como


potência no trabalho de Blade, pois tal como uma “experiência estética”
se impõe como uma interrupção dentro do fluxo da nossa vida cotidiana.
- 106 -
(GUMBRECHT, 2006, p. 51). Em meio à suposta normalidade do
dia-a-dia, o “palhaço contemporâneo” surge como um rompante que
“nos obriga a julgar sem a possibilidade de recorrer a dimensões ou
conceitos estáveis” (GUMBRECHT, 2006, p. 53).
O estranhamento pode, também, ser um sintoma do processo
de desautomatização nos modos de pensar do espectador, também
característico da experiência estética, o que significa que, por meio de
suas performances, Marcelo constrói “mundos plenos, autônomos,
fecundos” (PRECIOSA, 2005, p. 55), que geram uma reorganização
no sentido das coisas.
O terno, deslocado do ambiente da loja ou da alfaiataria e inserido
no ambiente performático, criativo e fantasioso, adquire um caráter
também repentino e surpreendente, tornando-se parte da experiência.
A partir da investigação sobre o trabalho de Blade, percebemos
que o terno é desvinculado de seu espaço e de seus valores tradicionais
e passa a ser percebido de maneira distinta ao que seria usual para o
mesmo. Ainda dialogando com nossa perspectiva de análise, Gumbrecht
faz a seguinte colocação:

Em sua Estética da aparência, Martin Seel diz que o conteúdo


da experiência estética não é simplesmente um objeto, mas
um objeto associado ao conceito que lhe atribuímos na nossa
linguagem. O efeito da “aparência”, no entanto, dependeria
da desvinculação do objeto e do conceito dos contextos
conceituais e materiais aos quais pertencem normalmente
(GUMBRECHT, 2006, p. 53).

Figura 89: Terno


singular.
O terno deslocado de
seu ambiente usual
e adornado com
elementos diversos,
“aparece” de maneira
singular.
Fonte: www.
marcelobladealfaiate.
com.br, acesso em
01/10/2011.
- 107 -
É o que acontece na arte de Marcelo a partir do momento em
que ele começa a dar novos sentidos aos artefatos com os quais trabalha,
desvinculando-os de seus contextos convencionais. “Eles pedem para
ser comprados” ou “essa roupa pediu pra nascer”, são frases comuns no
49. “Parangolé” (1960)
referencia o objeto repertório do artista/alfaiate, quando se refere aos ternos e aos demais
artístico cujo conceito
foi criado pelo artista objetos como se tivessem vida própria e fossem capazes de dialogar
brasileiro Hélio Oiticica
(1937-1980). É uma
com o público.
espécie de capa que só Blade cria diálogos com o espectador com seu repertório artístico.
mostra claramente seus
tons fortes e materiais, Em cima de sua bicicleta, modificada para receber uma dúzia de ternos,
por meio do uso sobre o
corpo de alguém. o artista, que diz chegar “parecendo um parangolé”49, roda a cidade com
seu megafone, fazendo propaganda de seu trabalho. Sua figura atrai a
atenção do transeunte mais distraído que, normalmente, aproxima-se
para observar o conteúdo surpreendente que Marcelo disponibiliza.
Figura 90: Marcelo
Blade em ato
performático.
Marcelo “a bordo”
de sua bicicleta e
segurando seu
megafone. Na garupa,
seus ternos.
Fonte: www.
marcelobladealfaiate.
com.br, acesso em
01/10/2011.

A “atmosfera” que Blade cria em suas performances envolve de tal


forma o espectador, que este acaba consumindo algum produto seu e,
segundo ele, esse é seu principal momento de satisfação, por significar
que a pessoa “entendeu o recado e comprou a ideia”.
A questão da memória é também recorrente em seu trabalho.
A começar pela reutilização de objetos antigos ou usados numa nova
configuração ou num novo cenário.

Às vezes os móveis largados entram na caçamba do meu carro


sem eu pedir. Já vi cadeiras pulando dentro da caçamba do
meu carro sem mais nem menos. Acredito muito no amor. Ele
- 108 -
50. Entrevista de atrai. Esses móveis largados nas ruas, depois que eu recolho,
Marcelo Blade voltam a ter vida. Depois passo a mexer nelas, fazer contato
ao Jornal O Peru
Molhado, de Búzios
com as mãos e elas começam a conversar comigo. Todos os
(RJ). 23/10/2010 meus objetos tem carinho por mim50

Para Blade, no contexto da memória, o terno possibilita um


51. José Alencar “saudosismo admirável”. Ele cita o neto de José Alencar51 que, após sua
(1931-2011) foi
senador do estado morte, pediu que Marcelo reformasse 15 ternos de seu avô, para que
de Minas Gerais
(1998) e vice- pudesse lembrá-lo a todo momento. Os ternos, nesse caso, contam uma
presidente do Brasil
(2003-2011).
história e sua reforma permite que esses continuem existindo no corpo
de outra pessoa.
Essa abordagem poética nos remete às palavras de Stallybrass
(2008), quando discursa sobre seu falecido amigo Allon e a memória
que uma de suas jaquetas lhe trazia:

Se eu vestia a jaqueta, Allon me vestia. Ele estava lá nos


puimentos do cotovelo, puimentos que no jargão técnico
da costura são chamados de “memória”. Ele estava lá nas
manchas que estavam na parte inferior da jaqueta; ele estava
lá no cheiro das axilas. Acima de tudo, ele estava lá no cheiro.
(STALLYBRASS, 2008, p. 10).

A jaqueta, para Stallybrass (2008), recebeu as marcas de seu


amigo em vida e, mesmo depois de sua morte, continuavam presentes.
As marcas físicas foram capazes de remeter o autor à uma memória
relativa ao indivíduo que a vestia, ao corpo que a “habitava”. Sua
reflexão aponta para o fato de que as roupas sobrevivem ao tempo, não
somente em relação à sua materialidade mas também em relação aos
seus significados.
Com base nessa afirmação, no caso dos ternos de José Alencar
reformados por Marcelo, vale mencionar sua preocupação em manter
as marcas do tempo e do uso, para que o neto pudesse relembrar o
avô quando os vestisse. Nesse sentido, ressaltamos a preocupação do
artista em exaltar os valores dos ternos para além de sua materialidade.
Dessa forma, notamos que a atitude de Blade novamente dialoga
com Stalybrass, quando este afirma que “as coisas adquirem uma vida
própria, isto é, somos pagos não na moeda neutra do dinheiro, mas
em material que é ricamente absorvente de significado simbólico e no
- 109 -
qual as memórias e as relações sociais são literalmente corporificadas”
(STALLYBRASS, 2008, p. 15).
Como alfaiate, Marcelo Blade constrói e desconstrói memórias
possibilitando, através de seus ternos, a criação de novas histórias. É
nesse momento que o alfaiate se encontra artista e o real se confunde
com o imaginário no qual o terno, mais uma vez, encontra-se suscetível
a transitar entre esses dois mundos. “A vida contaminada de arte, a arte
lambuzando-se de vida” (PRECIOSA, 2005, p. 54), perspectiva que
realça o lugar fronteiriço que os ternos de Blade podem ocupar.
Figura 91:
Artefato exposto
em intervenção.
Alguns dos
artefatos expostos
em uma de suas
intervenções, como
se fosse ele próprio.
Fonte: www.
lindatiradentes
2010.wordpress.
com, acesso em
01/10/2011.

- 110 -
Considerações
Finais

111
Nesta dissertação, nosso principal objetivo foi pensar o terno e seus
trânsitos entre a tradição e a contemporaneidade, no cenário do design
de moda. A pesquisa nos permitiu conjeturar esse artigo do vestuário
para além de suas interpretações convencionais. Nosso percurso nos
possibilitou aproximações e distanciamentos do terno com sua origem
na alfaiataria tradicional e com aspectos do design de moda e da arte.
No primeiro capítulo, percebemos que o surgimento do terno
foi consequência de uma série de transformações socioeconômicas
que simplificaram as formas das vestimentas masculinas ao longo da
história. Sua origem artesanal e clássica, de certa maneira, influenciou e
fortaleceu a relação comum entre o terno e a tradição. Dessa maneira,
mesmo diante das possibilidades adaptativas do terno, observadas ao
longo da pesquisa no que diz respeito ao design e à moda, seu alicerce
principal está sempre calcado em sua procedência histórica. Foi possível
perceber, também, que códigos como o erotismo e o poder usualmente
relacionados ao terno, colaboram para a força de sua imagem de
masculinidade e superioridade, o que, provavelmente, contribui para
sua permanência no cenário do design e consumo de moda.
No segundo capítulo, as conexões estabelecidas entre o terno
e o campo do design de moda, mostraram-se pertinentes por permitir
a compreensão da inserção deste artigo do vestuário nesse sistema de
criação e produção, nos permitindo observar alguns dos paradoxos
a esses relacionados, e por revelar que o terno pode ser considerado
um elo entre a tradição e o design. Observou-se que o traje tem,
de maneira similar, um caráter paradoxal, por assumir diferentes
posicionamentos face às perspectivas diversificadas: ora possibilita a
distinção do indivíduo, ora permite a padronização. Isso demonstra
que ele dialoga com as características do contemporâneo, calcadas na
pluralidade e na diversificação. Considerá-lo um elo entre a tradição
e o design é um pensamento possível, pois percebemos que o terno
recebe influências inovadoras ao mesmo tempo que mantém sua
estrutura formal original.
Finalmente, ao investigar aspectos do terno no contemporâneo,
confirmou-se sua tendência a adequar-se aos diversos cenários nos quais
está inserido: adapta-se ao “kit terno”, tornando-se parte do sistema
- 112 -
massificado da moda; confere distinção àqueles que o interpretam de
maneira individualizada e, num viés mais subjetivo, adentra o território
da arte, rompendo com os padrões pré-estabelecidos relacionados aos
seus usos e avançando sobre as linhas tênues que, em alguns momentos,
separam os campos da moda e da arte contemporânea. Com relação à
inserção do terno no cenário artístico, ilustrado pelo trabalho de Marcelo
Blade, percebeu-se deslocamentos e transformações no uso do traje
como parte integrante de um tipo de experiência que se caracteriza por
um rompimento com seu uso tradicional. A compreensão do conceito
de “experiência estética” possibilitada por autores como Preciosa (2005),
Gumbrecht (2006) e Featherstone (1995), bem como o entendimento
da maneira como o terno se insere e desencadeia esse tipo de experiência,
nos permitiu desvinculá-lo de seu espaço e valores comuns e observar
novas possibilidades de interação com outros campos.
Esta dissertação se propôs a abordar o terno sob uma das
muitas possibilidades investigativas a respeito do assunto. Devido
à escassa bibliografia sobre o terno e a alfaiataria, concluiu-se que o
estudo relativo ao tema pode ser ainda vastamente explorado para além
de manuais sobre o vestir e análises históricas. Neste trabalho, várias
questões se abriram no que diz respeito aos usos do terno no século XXI.
Nosso trajeto aponta diversas perspectivas para o traje. Entre aquelas
que investigamos, a compreensão do terno que evidencia os paradoxos
e a pluralidade do cenário contemporâneo nos parece instigante para o
avanço de nossas pesquisas.

- 113 -
Bibliografia

114
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Anexos

Luisa Simão entrevista Marcelo Blade


10 de outubro de 2011

Transcrição de entrevista gravada em vídeo


0’’ --

Blade: [...] Então, eu tenho o dom de levar isso que está aqui, que você está vendo aqui para um
evento. Eu monto esse circo...

Luisa: ... em qualquer lugar.

Blade: Mas em uma facilidade que nem eu mesmo acredito. Então, assim, é substituível. O espaço
ele move. Interferi no deck todo da loja com produtos que pego em caçamba, já vejo que é a asa
de um avião... Aquilo tudo tem uma conversa cósmica. A Casa: “Apesar da aparente dificuldade
formal, tem alma, tem gesto e tem uso. Parece possuir duas mediações: entre o passado e o atual,
entre as intimidades do lar e a exposição pública, privilegiando o desligamento com seus antigos
donos. Inserir objetos móveis ou utilitários no alvo do transeunte, do passante é como [...], mas
aqui a imagem é outra, numa realidade invertida como se fosse contar uma mentira de trás para
frente. Desloca em seu interior com maior propriedade de uso. Marcelo Blade responde a uma
multiplicação da oferta cultural, ou seja, recicla objetos, inclui novamente no mercado. Em outro
tempo, os deslocam da suas demandas habituais para um lugar inventado. São novas contribuições,
ignora as depreciações, deixa de lado [...] criação e cópia. Enfim, podemos fingir que nos encontramos
de fato esquecidos, acreditamos em segredos antigos, libertamos nossa mais ingênua imaginação por
outro contexto: pelo humor, pela inquietação e pelo afeto”.

Luisa: Eu queria entender a sua formação mais especificamente com o terno. Como funciona?

Blade: O terno...

Luisa: Assim, você como artista e você como alfaiate. São duas visões.

Blade: Esse trabalho que garante a minha...

Luisa: ... sobrevivência.

Blade: ... e a minha alucinação também, essa derivação. Eu mesmo banco os meus projetos. Agora
estou fazendo um filme.

Luisa: Vocês estão fazendo?

Blade: Fazendo o tempo todo. Agora mesmo eu estava limpando a mão ali porque sujei o dedo de
118
graxa. (risos) Então, o negócio é o seguinte: o atelier é pronto para atender o cliente agora e fazer
um terno para ele amanhã. Então nós estamos marcados o dia inteiro com os clientes e de boca a
boca é a melhor propaganda... ou irmão, ou sobrinho, ou tio, ou pai.

Luisa: Você vai na casa também?

Blade: Vou no cliente ou aqui também com hora marcada.

Luisa: E você vai com toda a parafernália?

Blade: Não, são as malas já todas montadinhas com as cartelas, eu tenho os tecidos.

Luisa: Eu achei que você entrava com o megafone. (risos)

Blade: Não, não pode espantar o cliente... (risos)

Luisa: ...de cara.

Blade: Agora me ligaram e marcaram para quinta-feira de manhã lá de Tiradentes. Lá eu já vou


comprar pão fantasiado. Ai o personagem se confunde com o cara, comigo. Não tem jeito. Você tá
entendendo?

Luisa: Estou demais...

Blade: Parece que você está imitando a...

Luisa: Não tem um limiar, não tem uma separação.

Simone: E esse agora de quinta-feira ele falou assim: “eu conheci o Marcelo Blade de saia”. Eles
ficam rindo, mas eles querem fazer o terno com o alfaiate Blade...

Luisa: ...que na verdade carrega todo esse repertório.

Simone: É assim também. Você entendeu?

Luisa: Com certeza.

Simone: Agora, a gente atende presidente de banco, diretor da Fiat... Não dá. Mas eles já sabem que
ele é assim. Assim que a gente atende.

Luisa: Entendi.

Blade: A mala com os tecidos, funciona assim: são duas malas. Essa com os tecidos meus que eu já
aplico o cliente num tecido que eu já escolhi.

Luisa: Você trabalha com o que?

Blade: Super cem, que agüenta o... eu penso a roupa para o dia a dia. Esse tecido é novinho com o
blazer. Combina com um monte de calças, calças lisas. Isso é o blazer. Tem aqui os the best: são o
119
130. Normalmente o cliente tem que me orientar o que ele está querendo fazer. Ele já tem alguma
idéia.

5’’ --

Luisa: Se é para o dia, se é para o trabalho...

Blade: Esse blazer aqui...


Luisa: é mais claro.

Blade: Em outra cartela ele aparece. É de outra estação, mas sempre tem os tecidos que são... veludo.
Esse aqui é o supra sumo dos tecidos que é o Valentim, esse aqui é um super 150... um pouco muito
caro, né?

Luisa: É caríssimo, né? Você compra como, no metro?

Blade: É, compra o corte, né? O corte 3,20, 3,30, 3 metros... dependendo a estatura. Então, falando
basicamente eu acordo cedo e fico disponível para o meu cliente até as 18 horas. Ai eu faço qualquer
coisa: faço manta para cavalo, batina de padre...

Luisa: (risos) Entendi... avental...

Blade: Aventais, a linha gourmet.

Luisa: Isso bomba, né? Está bombando?

Blade: Ele veio na linha do meu trabalho para poder entregar um produto na hora. Porque o cliente
ele me conhece e eu tenho que encontrar com ele umas duas vezes até entregar o trabalho. O avental
vai na hora, ele veste qualquer pessoa, modelagem universal. E como eu participo de eventos, eu
tenho um produto que me dá um outro contato. Inclusive abriu um comercial para feminino, que
eu não tinha acesso. Então eu pego, visto a mulher, amarro ela por trás... aquilo dá uma alegria...

Luisa: E os próprios ternos masculinos às vezes vestem essa mulher, né?

Blade: Mas o avental... O que acontece, ele custava R$ 69,00. Ai eu vi que R$ 69,00 é muito para
quem está lá no bar e está disposto a tomar uma cervejada. Ai eu abaixei o preço dele pra R$ 50,00.
R$ 50,00 é a nota de uma onça (risos). Eu já chego fazendo a performace, parecendo um parangolé.
Tem que vender um, um. Eu preciso de um primeiro. Ai, menina, parece que cria...

Luisa: ...uma corrente.

Blade: Esse momento para mim é de felicidade plena, por que aquilo ali assim... [...] e vai só
acreditando, né? Então aqueles momentos ali como se estivesse em uma vibe, assim, única. De
prazer absoluto...

Luisa: ...total.

Blade: E Belo Horizonte é cheio de barzinho...


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Luisa: Esse avental ele vem do terno, né? Da descontrução do Blade.

Blade: Lógico! Lógico! Mas ele veste bem demais, a pessoa vai copiar e não consegue. (risos) É isso
que é a alegria dele para mim.

Luisa: E esse aqui todo bacanudo?

Blade: Isso é roupa que eu fiz pra fazer o desfile de uma formanda da FUMEC, olha que bacana.
Luisa: Demais. Isso que eu queria saber também... Você acha que o terno, ele é um suporte?

Blade: Olha só essa roupa ela nasceu para ser usada do avesso. Ela pediu para ser assim. Ele não era
assim não, ele saiu ser querer. Cada dia eu to de um jeito.

Luisa: Você tá sóbrio hoje, eu achei que eu ia te encontrar mais...

Blade: Não, mas eu estou demais. Eu estou pedalando e o pedal está me desobrigando a ficar...

Simone: Ele está é tapeando, né? (risos)

Blade: Não porque o pedal tá me desobrigando de ter que ficar inventando muita coisa para queimar
energia de outro lado. Olha que jóia!

Luisa: Entendi.

Blade: Aqui, isso aqui é uma capa. Eu com esses espelhinhos aqui eu fui convidado para fazer um
festival.

Luisa: Eu vi. Do capô.

Blade: Capô de Fusca! Agora eu trouxe umas cuecas de Roma, já é outra performace. Aquela que
tem um David de Michelangelo. Virou outra coisa, já abre... (risos)

Luisa: Entendi... e você vai para Tiradentes o ano inteiro, ou como que é? Só para os festivais?

Blade: Não, você sabe que tem 18 anos que eu freqüento lá. Esse ano eu fui mais em festivais, mas
agora tem esse feriado depois de amanhã, eu estou o tempo todo achando que eu to indo. Se eu não
for na terça ou na quarta na quinta com certeza.

Luisa: Entendi.

Blade: Ai fica lá endoidando.

Luisa: E me conta aqui... você vende seus ternos na praça também, na bicliceta. Sua performace
serve para isso... São um tipo de...

10’’ --

Blade: O palhaço vem de terno. O palhaço vende terno, faz terno. Então fica todo mundo “o que
esse cara faz?”. Não sabe o que esse cara faz. Foi por isso que eu dei uma diminuída. Nós fomos para
121
um congresso agora... o máximo, lá é chique demais. É para quem pode, e é chique.

Luisa: E é para sempre.

Blade: Uma cultura de pai que fazia roupa com alfaiate... É um cara que já ficou bem de vida mais
cedo, já quer ser diferente dos outros. Então tem esse feeling. Ai que fazer uma roupa com um
alfaiate.

Luisa: Se diferencia pelo tanto que ele usa...

Blade: Agora eu estou colocando uma nova marquinha no nosso produto, para identificar...

Luisa: ... o cliente, não, que é do Blade. Isso é bárbaro.

Blade: Ai tem hora que não pode colocar muito colorido não. Aqui, esse daqui eu estava em um
casamento sábado com ele. Ai cruza os botões... vermelho, oh.

Luisa: Esses são seus?

Blade: Os dos clientes também estão indo. Mas tem que pedir autorização, né? Para não... tem
gente que não dá conta. Mas o Nissan que é sem capota... carro conversível... a capota já é vinho.
Lá dentro tudo já é bege claro, que era cafona um tempo atrás. Então as coisas estão transformando
para ficar chique. Então essa marca... tem cliente meu que faz questão que eu ponha. Agora, tem
camarada que é presidente do banco, não quer então eu também não...

Luisa: Mas você não inventa uma mais discretinha?

Blade: Sei... tem os forros também, que são os forros coloridos. Isso tudo... eu estava assistindo
agora um Discovery Turbo da Porche... nenhuma Porche é igual a outra. Todas são montadas,
com quatro caixas de som...

Luisa: Personalizadas, né?

Blade: O cara quer a moldura do volante diferente da porta, do forro.... Então essa roupa... A roupa
quando o cliente chega e já sabe o que ele quer já me ajuda bastante. Mas se eu o ver por aquele
vitrô, se deixar eu faço uma obra de arte

Luisa: Você já imagina, né?

Blade: Já, na hora. Eu tenho essa facilidade, sabe?

Luisa: Eu li uma entrevista sua, que você deu para esse jornal Peru Molhado... Que você fala que
você pega objeto na rua, traz para casa e interfere naquilo e tal... E você fala ‘como que uma pessoa
convive com uma cadeira há 30 anos e joga fora’. Então, como é essa relação da memória, do terno
e ...

Blade: Ah, isso rola. Rola demais. Olha só o José Alencar faleceu e o neto dele trouxe quinze ternos
para arrumar do avô. Eu acho isso de uma seriedade, de uma... você usar a roupa do seu avô... Esse
saudosismo deve ser gostoso de mais. Não é gostoso?
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Luisa: É, é incrível.

Blade: Ai vem uma menina que traz um smoking do avô para eu mexer nele para ela usar com a
calça Jean rasgada. Chique.

Luisa: Então você faz essas interferências. Se eu trouxer um terno para você...

Blade: Eu sou mágico com alfinete. Eu vou no espelho e vou refazendo tudo. E não tenho dó não.

Luisa: Que barato.

Blade: Consertar roupa não é fácil não.

Luisa: Se bobear dá mais trabalho, né?

Blade: Esse daqui já é uma roupa doida. Na hora que eu acordo eu tenho um monte de idéias.
Luisa: E esse lance seu? Desses objetos que você espalha pela cidade? Como que funciona? Isso faz
parte da sua performance eterna... ou você escolhe esse lugar para por esses objetos... como é que é
isso? As rodas, os bonecos...

Blade: Você acredita que eu não tenho, assim, uma resposta fundamental...

Luisa: Não? (risos) Não tem porque, né?

Blade: No fundo é... é uma arte que eu inventei... eu ando com esse carro que é uma nave, ai eu
paro ele lá na praça de Santa Tereza, para o festival de cinema. Ai coloco uns bancos de cinema em
cima, cheio de televisão ligada. Uai, eu não tenho...

Luisa: De certa forma é subversivo, não é? Totalmente?

Blade: Menina, o mais bacana é... tem que extrair isso para um documentário... O que eu ouço das
pessoas.

Luisa: E o que você escuta?

15’’ --

Blade: Uai, cara ia com a irmã para a praça, pulava o muro do cinema por causa daquela cadeira...
O outro foi assistir o primeiro filme da vida dele, Tarzan, naquela cadeira. E o trem não queta... E
aquilo que eu te li da casa, aquilo está escrito. Outro dia eu vi um cara, que mora em uma dessas
ruas perto da minha casa, que ele tem um Corcel branco, que está cheio de recado. De manhã ele
está no sacolão, faz doação... ai eu olhei lá de novo, dei ré e falei ‘eu não vou ficar assim não’. (risos)
Tomar cuidado para não ficar assim.

Luisa: E esses projetos que você tem, por exemplo, com a Ju? O que que é esse projeto? É uma coisa
que pode ser dita, ou não?

Blade: Na verdade, a Juliana ela aprendeu aqui na alfaiataria. Eu não sei se a gente menciona treze
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anos que eu... a época que passou, uma rapidez danada.

Luisa: Tem três anos que ela está aqui?

Blade: Treze! O ser humano, nós... eu fui para a festa sábado, né? Festa no interior, festa de cliente.
Eu fiquei passando mal quatro dias por causa dessa festa, não queria ir de jeito nenhum. Chega lá...
eu sempre estou adiantado, sou um dos primeiros. Chega lá: música. Eu sentei na primeira mesa, lá
para dançar. Eu fiquei igual em uma aula de aeróbica, e a música não vai. Da vontade de gritar, eu
vou gritar. Por que eu quero dançar.

Luisa: É uma imobilidade absurda, né?

Blade: Quem não cuidou disso? A festa é de menino, porque eles estão colocando música de gente
velha para ouvir? Eu nunca ouvi aquelas músicas! (risos) Então, essa arte que a gente vê por ai, que
o Blade solta na cidade... ela já lá na faculdade onde eu fiz estudo, que é na Federal, eu sou o cara.
Nem eu sei disso direito, mas eles todos acompanham.

Luisa: Claro.

Blade: Então na hora que você passa num ambiente que eu decorei... ‘O Blade passou por aqui...’

Luisa: Eu acho, e foi por isso que eu te escolhi. No meio daquela coisa normal, daquela coisa
comum, aparece o Blade. Poderia ser uma coisa comum, porque você é um alfaiate, você trabalha
com a tradição, com o clássico, mas você rompe com todos esses valores e desconstrói tudo, e isso
é muito legal.

Blade: É muito legal te ouvir falar, sinceramente. Agora lá em Tiradentes nós pintamos tudo... tem
o vermelho do Silvio Meireles... pintamos tudo de amarelo. Ai o cara ‘Porque amarelo? Por que
não vermelho?’. Chegou um cara muito chique e falou ‘Num primeiro momento eu fiquei olhando
e pensando... esse cara é cafona’ (risos) ‘É uma coisa cafonona. Mas não é que esse cara é bacana’
– ele falando comigo. Depois ele foi ler o jornal, ficou me olhando, o povo chegando e falou ‘Esse
cara não parece o Elvis Presley, aquelas gutarronas grandonas’ (risos). Ai você vai... continuando
fazendo. Ninguém me segura. Agora mesmo eu estava na [...] na loja das araras, já voltei e estou de
olho nos bonecos. Esse fim de semana nós fomos para o Inhotim, confirmei algumas coisas lá e já
sai correndo, né apressado. Eu estou com pressa. Como que fala, absorver e apurar aquilo.

Luisa: Entendi...

Blade: Mas a roupa, ela está no meu sangue, na minha veia. Alguém me convidou para um desfile,
uma apresentação, uma mostra de pessoas de Belo Horizonte lá no BH Shopping ai ‘descreve você
em uma linha’. ‘Alfaiate de nascença. A moda masculina corre na minha veia”. Pronto, sabe? Eu
não tenho o menor problema de fazer roupa para homem, o menor problema. E me desobrigo a
ficar pensando muito em desfile. [...] Sinceramente, eu acho que desfile tem uma coisa muito falida,
aquela trabalheira toda...

Luisa: E hoje não faz tanto sentido mais, né? Porque o desfile está na rua, não está mais na
passarela.

Blade: Quer ver uma coisa que eu acho incrível? Esse tanto de jogo de futebol que existe, esse tanto
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de campeonato. Eu não entendo. Virou outra coisa, virou uma coisa de grana. Não é mais pegar,
levar um cara que gosta de futebol... tem jogo terça, quinta, sábado e domingo.

Luisa: É comercial, né?

Blade: Antigamente era sábado, um jogo maravilhoso à tarde. Todo mundo disposto. Hoje cara
pega avião, vai para lá... As coisas estão meio enfadonhas, né?

Luisa: Mas me fala aqui. Eu vi um terno seu em uma foto, que era um terno que você estava
vendendo à preço de banana.

Blade: Sei.

20’’ --

Luisa: Bárbaro. Esses ternos que você vende na rua, eles são mais baratos do que os daqui?

Blade: Ah, pois é. Para mim isso ai é muito difícil. Vender é uma arte. Eu tenho um preço para a
roupa...

Luisa: Sob medida.

Blade: ...é que eu vou pegar, te mostrar a cartela e você vai escolher.

Luisa: Claro, claro.

Blade: Agora, a pronta ela já desvaloriza um pouco. Mas...

Luisa: Mas tem mercado, né?

Blade: Mas não quer dizer que eu não coloco o novo... eu tenho uma modelagem que veste... O cara
fez 35 ternos, ele sempre tinha cinco e eu coloco no seu irmão para ver... Beleza, eu descobri meu
M, eu tenho o G e o P. Veste para cima e para baixo, modelagem universal. O P está no PP e o P
está no MP. PM. O M está no MM e no MG. O G está no GG... (risos)

Luisa: G, GM, GG, extra G...

Blade: Ai, na hora que o cara pega, ele vem aqui e esse terno já está pronto... eu incluo ele no pacote,
minha flor. Ele leva na hora.

Luisa: Claro.

Blade: Ai ele vai feliz e ainda encomenda um novo.

Luisa: Mas e esse quando você leva na rua? Esse é que eu quero entender.

Blade: Na rua...

Luisa: ... você comove essas pessoas...


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Blade: Ah, se a mulher dele for boa... (risos)

Luisa: Está ótimo! Entendi!

Blade: Não, mas eu não mexo com ninguém, graças a Deus, você não acredita...

Luisa: É, porque você tem um mulher espetacular.


Blade: Não, essa queixa eu não tenho. Não que eu separe plenamente, porque tem umas mulheres
que são jóia, né? A mulher que te dá o... você pega e chutou a bola, né... tá e tá... Se ela é casada
com ele ou não é... está bom. Ninguém está pegando nada de ninguém...

Luisa: ... está só olhando. (risos) Olhar não tira pedaço!

Blade: Está só curtindo... Esse negócio de ciúme tem que ser mais explicado, não é? Isso não é assim
também não. Até acontecer alguma coisa tem muita água para passar de baixo dessa ponte. Porque
esse trem é perigoso.

Luisa: Agora aqui...

Blade: O cara começou a gostar da Simone, eu falei: ‘Aqui, deixa eu te falar. Você vai levar ela
agora... com os cartões de crédito...’ (risos)

Luisa: ‘Leva agora, se não for agora não tem mais jeito’. (risos)

Blade: Uai, mas que entrevista boa essa nossa aqui, hein, sô!

Luisa: Eu vou filmar e vou te mandar tudo. Aqui, mas a última pergunta é a seguinte: Marcelo
Blade é... um alfaiate que faz arte ou um artista que faz terno?

Blade: Puxa vida...

Luisa: O que ele é?

Blade: Que pergunta bacana, viu!

Luisa: Ele é tudo?

Blade: É... Eu sou um artista que faz terno.

Luisa: É... eu acho que é.

Blade: É verdade... é isso.

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