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"Tinha clube que era racista", afirma Elza, reconhecendo que nem
entendia muito bem o que significava aquilo na época. Tudo que
diziam para ela era que, num determinado local, o diretor não
queria que um negro subisse ao palco para cantar. O preconceito
era claro, mas não era algo que ela conseguisse elaborar totalmente
naquele momento. Elza simplesmente obedecia mesmo sabendo
que, se não cantasse, não ganharia o dinheiro da noite. Naquela
época infelizmente não tinha muito como fazer diferente, só restava
obedecer. "Eu ia toda bonita - o professor mandou fazer pra mim
um vestido de :filó, todo branco, que eu vestia e me sentia como uma
bailarina em dia de estreia, linda... Mas tinha lugar que negro não
cantava, né? Então algumas noites eu me arrumava toda, :ficava ali,
prontinha, fora do palco, esperando para entrar... e nada ... Voltava
pra casa sem me apresentar."
.-\ tal saia que haviam prometido, e que chegou pouco antes de sua
estreia, era menor que aquilo que hoje pode-se chamar de pareô
- apenas alguns babados que começavam na cintura e se abriam
ao longo das pernas, transformando Elza numa possível rumbeira
estilizada. Ou seria mambeira? "Maestro, toca um mambo, maestro
toca um mambo, que é pra gente dançar" - é o que ela se lembra da
letra de seu número principal, que logo caiu no gosto do público.
· Foi um sucesso!", lembra Elza com saudades daqueles primeiros
2Plausos, quando finalmente se apresentava sem ter que se
preocupar com as risadas de um público sarcástico, ou mesmo com
o crivo de um apresentador de programa de rádio ou a vergonha
de estar malvestida. A peça se passava na praia, num cenário todo
estilizado, por isso as mulheres de biquíni, no melhor estilo "juju-
-frufru". E tudo parecia coisa de cinema. Uma diversão que Elza
também nunca se tinha permitido até então, mas fazia parte do seu
imaginário. Mas era tudo real: em É tudo Juju-Frufru ela estava linda,
glamorosa, irradiante, cantando como nunca - e com seu nome
gravado numa estrela na entrada do teatro.
"Sua puta!", gritava ele para aquela moça que ele mal conhecia,
durante um dos vários encontros que tiveram. A ideia não era ofendê-
-la, mas sim, em sessões de aquecimento, buscar uma reação diferente
daquela mulher que só sabia arregalar os olhos diante de um palavrão.
Era como Grande Otelo queria transformar Elza numa atriz.
"Eu ficava quietinha, não sabia muito o que fazer. Ele continuava me
provocando e eu ficava muda. Ele me dizia: 'Vou ser seu diretor, tá?'
E eu fazia tudo o que ele mandava, quando eu conseguia", brinca Elza.
Naquelas primeiras tentativas, ela só dava conta mesmo de fazer cara
de assustada. Mas ela era boa aluna e foi aprendendo rápido. "Ele me
ensinou a como entrar no palco, quando e como olhar para a plateia,
eu aprendi com ele como eu deveria conversar em cena, contracenar
com os outros atores, e até como eu deveria me esconder, quando
não era a hora de aparecer." E Grande Otelo seguia com o treino:
"Responda", exigia ele a cada insulto. "Mas você tá me xingando",
respondia Elza. E ele explicava: "Eu quero uma reação diferente para
cada coisa que eu falar na sua cara, combinado?"
Elza aprendeu o suficiente para se virar naqueles primeiros
espetáculos. Mas o que ficou desse encontro foi a relação entre os
dois. A confiança dela foi crescendo, junto com o laço da amizade
entre eles. "Nós conversávamos muito, às vezes ficávamos até tarde,
depois que saíamos do teatro, e varávamos a noite jogando conversa
fora." Aliás, nem tudo era conversa jogada fora. Foi Grande Otelo
que, em vários desses encontros, deu à Elza sua primeira consciência
do que era ser uma artista negra no Brasil - um Brasil, diga-se,
bastante diferente desse nosso de hoje (ou talvez não). "Ele era um
homem muito engraçado e muito inteligente; ele tinha uma cabeça
muito boa e me 'abraçou' naquele início. Lembro-me de que ele já
sentia que o negro estava sub-representado nas artes, e quando viu
que eu estava no elenco de]uju-Frufru foi como se eu estivesse dando
uma contribuição maior para o espetáculo."
No fundo, ela sabia que não estava fazendo nada demais. E que
teria de um dia dar esse "salto" de um mundo ao outro. Aquele
cotidiano que sua família oferecia não era para Elza. Ela queria mais
e iria correr atrás disso. Àquela altura, porém, sua maior ambição
imediata era ganhar uma estrela na frente do João Caetano, não
pequenininha, mas do tamanho da que estampava o nome de Rose
Rondelli, o destaque do seu espetáculo, já cercada de uma fama tão
grande, que a aproximaria do seu futuro marido Chico Anysio, já
um nome importante da TV brasileira - que ainda engatinhava.
E uma estrela maior significaria também ... mais dinheiro para
comprar um pouco mais de leite para Carlinhos, Gilson, Dilma e
toda a família.
Levaria algum tempo até que ela ganhasse esse destaque. Mesmo
com seu carisma em plena formação, ainda demoraria um pouco
para que Elza conquistasse uma noite só sua. Num teatro, por
que não? Ou até mesmo numa boate, como já acontecia, por
exemplo, com a grande Maysa, que, enquanto Elza rebolava de
Juju-Frufru, se apresentava com exclusividade no Club 36, naquela
mesma temporada.
Elza nem sabia o que era uma boate, muito menos que um lugar
desses seria seu passaporte para o estrelato. Escolher as músicas que
queria cantar e ainda por cima ser o motivo pelo qual as pessoas
saem de casa para assistir, se divertir, se emocionar... tudo isso
parecia um voo alto demais para aquela mulher simples de Água
Santa querer alçar. Mas ali, contagiada pela ebulição de uma intensa
cena teatral, Elza sentia, ainda que de maneira intuitiva, que já
estava fazendo parte de alguma coisa maior. No mínimo, já estava
sendo notada. Era amiga de Grande Otelo e, em seu camarim,
chegavam bilhetes e flores de admiradores anônimos.
Elza não teve dúvidas e foi logo aprontar a sua mala. A terra era a
do tango, mas Elza faria com que eles se apaixonassem, sem muita
resistência, pelo samba. Embarcou num navio que saiu do Rio de
Janeiro e partiu, então, para conquistar Buenos Aires!