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niuitas desilusões
,'S í el nené no duerme no puedo baílar... jpero hay que darle la mamaderaf"
Assim cantava a embaixadora do samba, nas rádios de
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Buenos Aires, no fim dos anos 1950. Tudo bem que a música
estava mais para um chá-chá-chá. O importante é que ela havia levado
um pouco do nosso ritmo tão brasileiro para a capital argentina - e
los hermanosporteiíos enlouqueciam cada vez que ouviam o refrão de "La
mamadera", com a irresistível voz e rebolado de Yuyu da Silva.
Nos primeiros dias, foi uma correria para reensaiar tudo e adaptar
o espetáculo para aquele palco gigantesco. Mas Elza, ainda tímida,
cumpria tudo à risca, ainda que tivesse lá as suas dúvidas de que o
espetáculo iria emplacar. "Eu não sabia direito como aquela gente
que não falava português - e acho que nunca tinha ouvido muito
do nosso samba - ia gostar daquela coisa toda." Mas, já na primeira
noite, quando ela entrou no palco, nenhuma sombra de preocupação
transparecia. Sua voz, que já havia encantado os brasileiros, fazia
sucesso agora com os argentinos. E sua participação era, sim, o
ponto alto do show. "Eu me lembro dos aplausos, mais fortes até
do que os que eu tinha me acostumado a ouvir no Rio de Janeiro.
E, naquela hora, fiquei com a sensação de que a gente arrasaria
lá também." Elza se lembra até da maneira como os argentinos
m ostravam que tinham gostado mesmo da apresentação: "Os
homens jogavam seus paletós no palco! Era uma maravilha ver, toda
noite, o chão onde a gente tinha se apresentado cheio de roupas
espalhadas. Era o jeito deles de nos agradecer." Foi um bom começo,
e toda a companhia ficou otimista com o que estava por vir.
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Toda energia e excitação de Elza, porém, se limitava aos palcos. 93
Eu não curtia a noite portenha. Acabava o show eu ia direto para
o hotel. Ficava preocupada com o que poderia estar acontecendo
em casa e, como a gente não tinha notícia de nada, preferia dormir
sem a distração daquela vida noturna tentadora." A estação
Uruguay do metrô de Buenos Aires ficava a apenas uma quadra
do Astral, mas ela dispensava qualquer destino que não fosse
seu quarto. Muito menos a noite tão típica de Caminito. Tarde
da noite, Elza ia caminhando para sua modesta - mas para ela,
luxuosa - acomodação e se dava por feliz. "Hoje eu não ficaria
num lugar tão apertado, mas, para a mulher que saiu de uma esteira
em Água Santa, aquilo era o melhor refúgio de conforto que se
poderia ter - e queria ir logo para lá. Estava longe de casa, pensava
muito nas crianças, na minha mãe, no meu pai. ~eria só ficar
quietinha, fazer meu show no dia seguinte e pronto." Elza saía por
tr.ís do teatro, passava pelo Palácio da Justiça, com suas imponentes
colunas e seus arcos bem marcados, cruzava a praça Lavalle, via
de longe o Teatro Colón - já uma referência mundial da música
erudita - e chegava assim à Florida, numa porta modesta que era a
entrada do seu hotel.
Antes de tudo, Elza tinha que arrumar algum lugar para cantar.
O show que foi fazer, com o calote, foi cancelado abruptamente.
Mercedes e alguns artistas conseguiram voltar logo em seguida
- tinham algum dinheiro guardado. Elza teve que se virar para
descobrir um teatro pequeno, ou mesmo um cabaré, onde pudesse
cantar - e ainda levar com ela os músicos que não conseguiram ir
embora de Buenos Aires. "Eu me apresentava em qualquer lugar.
Cantava em palcos antes das sessões de cinema. Era um ritual
bastante comum então, uma espécie de aquecimento para o filme 94
que começaria, enquanto a sala não lotava. Também aceitava 95
trabalho de uma ou duas apresentações em qualquer casa noturna."
No desespero de juntar uns trocados, Elza cantava até tango -
um repertório que ela improvisava com os músicos e que incluía
também uma música que tinha sido gravada por Ângela Maria ( que
Elza tanto admirava), chamada "O samba e o tango". Essa canção,
décadas depois, abriria o show que Caetano Veloso fez, com enorme
sucesso, nos anos 1990: Fína estampa, recheado de músicas em
espanhol. Mas ali, no desespero e sem perspectiva, apenas querendo
voltar para casa, a letra malandra tinha o "humor" ideal para ela
disfarçar seu sotaque e sua tristeza para os argentinos. "Yo te tengo
amor síncero, diz a muchacha do Prata" - Elza cantava meio com ironia,
meio com desdém. O que ela queria mesmo era sair de lá.
Aquela visão voltava sempre, deixando Elza cada vez mais preocupada
com seu adorado pai. Será que ele estava para morrer? Aquilo teria
sido um aviso? Seu Avelino, ao mesmo tempo em que torcia o nariz
para a possibilidade de a filha ter uma carreira artística, alimentava
nela o gosto pela música. Adorava colocar a filha no colo e cantar
junto com ela, quando criança. "Eu tenho uma lembrança de, ainda
bem menina, ficar encantada quando eu ouvia papai tocar violão."
Mas para ele, música era coisa que deveria ser praticada e consumida
em casa. "Ele tinha um amigo com um nome estranho: Kid Pepe.
E Kid falava que eu seria um dia uma grande cantora. Meu pai ficava
furioso e respondia que não queria uma filha artista. O sonho dele era
que eu me tornasse professora. Ou enfermeira." Mais que tudo, ela se
lembra, até hoje, de um conselho que seu pai sempre dava: "Menina,
por mais que você pule, você nunca vai alcançar as estrelas ..."
"Minha avó, Cristina, que era severíssima, logo achou que era uma 98
má ideia socorrer aquele homem que ninguém conhecia. Mas minha 99
mãe, que tinha um coração grande, não só recebeu esse rapaz em casa,
como fez de tudo para que ele sobrevivesse." Num gesto desesperador,
a mãe de Elza, que ainda estava amamentando Bibina, resolveu dar
do seu próprio leite para seu Avelino. "Parece que ele chegou bastante
desnutrido, só tinha comido frutas silvestres e algumas delas nem
tinham feito muito bem a ele, porque todo mundo lembra que o rosto
estava bem inchado. Então, minha mãe tirava um pouco do seu leite e
dava na colher para o meu pai, sempre escondido de minha avó." Com
isso, a recuperação foi rápida. "Ele foi ficando bom, e quando já estava
com a saúde quase roo%, os dois começaram a namorar, a princípio
sem contar nada para a minha avó Cristina. E depois de um tempo
veio eu, Elzinha", resume em tom de brincadeira.
Elza soube que seu pai havia morrido da maneira mais inesperada.
Um outro grupo de samba chegou do Brasil para tocar em Buenos
Aires e se hospedou no mesmo hotel na Florida onde ela morava
- que era uma espécie de Q_G. da música brasileira na capital. 100
"~ando eu vi aquela turma, logo me animei, e reconheci um 101
músico amigo meu, chamado Raimundo, que, se não me engano, era
de Manaus." Elza já havia se apresentado com ele num espetáculo
organizado por Mercedes Baptista e foi falar com Raimundo, sem
que ele percebesse que ela estava se aproximando. De longe, ela
ouviu seu nome e uma conversa estranha: ninguém no grupo recém-
-chegado estava à vontade para falar com ela, pois não sabiam se
Elza já tinha recebido a notícia do falecimento do seu pai ...
Sim, esse era o pai que havia obrigado Elza a se casar aos i3 anos.
Mas era também o pai que a despertava na esteira todos os dias,
antes de sair para trabalhar. E ela, sempre com seu instinto maternal
mesmo com relação à figura paterna, só guardava as boas lembranças.
Desesperada, Elza saiu por Buenos Aires e chorou. Naquela noite a
cidade pareceu mais sufocante. As fachadas austeras da vizinhança de
Tribunales, por onde ela passava todos os dias, pareciam ainda mais
escuras. As janelas altas das sacadas de pedra dos prédios construídos
na virada do século XX deixavam toda atmosfera ainda mais sombria
- e o retorno ao Brasil parecia uma realidade ainda mais distante.
Foram semanas de desesperança.
Elza seguiu cantando - era a única coisa que precisava fazer. Fazia
amigos na noite, a maioria deles, músicos. Ironicamente nunca
ficou próxima de Yuyu da Silva, apesar de circularem pelas mesmas
rodas. Ela acabou cultivando mais amizades com músicos argentinos,
especialmente com os que pertenciam a uma cena alternativa da
música, reinventando o tango - entre eles Astor Piazzolla. "~ando
nos conhecemos, ele estava por baixo: a crítica estava acabando com
ele por causa das novidades que ele estava trazendo para o tango. Eu
escutava sua miísica e achava que era sensacional, mas ninguém ainda
entendia o que ele estava apresentando. A crítica destruía Piazzolla
e ele ficava arrasado, mas não parava de se apresentar. Eu era sempre
convidada para vê-lo tocar e, às vezes, coisa que eu não fazia quase
nunca, virava a noite conversando com Piazzolla - como nós dois
estávamos numa fase :ruim da vida, acabamos ficando amigos."
pesar do reencontro tão esperado com sua família, não foi uma
volta com alegria. "Logo que fui andando na direção da minha casa,
as pessoas se aproximavam de mim e vinham me dar os pêsames
- foi horrível, eu não sabia como reagir. Eu tinha que, ao mesmo
tempo, reagir com tristeza à morte do meu pai e demonstrar uma
certa felicidade por estar vendo todo mundo de novo." Sua mãe,
nessa época, trabalhava num botequim e, mesmo antes de entrar em
casa, Elza foi até lá dar um abraço nela, ainda carregando as malas.
As duas choraram muito, mas, no fim , a satisfação de finalmente
estar de volta era mais forte que as amarguras que as duas tinham
vivido nesse período. De lá do botequim, Elza correu para ver
Carlinhos, Gilson e Dilma - Gérson continuava morando com seus
padrinhos. Dessa vez, o maior presente para eles foi o abraço da
mãe. E Elza se esqueceu de todo o arrependimento de ter deixado
os filhos para trás quando viu que eles estavam bem. Carlinhos
estava com a saúde ótima. Gilson estava bem, e Dilma, brincalhona.
Nem parecia que tanto tempo tinha passado desde aquela separação.
"Foram os melhores abraços que ganhei na minha vida."
O desafio agora era retomar sua carreira. Um ano era muito tempo
para quem tentava ficar conhecida num meio musical como o do
Rio de Janeiro. Era hora de Elza retomar seus contatos, voltar a
procurar um lugar para cantar - e, claro, achar um emprego que
pagasse alguma coisa. Apesar de tanta dificuldade, de tantos desafios
pela frente, ela retomava tudo com ânimo, impulsionada por uma
visão que teve logo nesses primeiros dias de retorno.