Somos quatro filhos e cada um desempenha as suas tarefas. É claro que cada um também tem talentos diferentes. O meu irmão Eliah consegue esculpir um pedaço de madeira de forma a transformá-lo num cão, num ganso ou num pato. A minha irmã Jerusha toca piano e canta como um passarinho. A mais nova, Katherine, une quadrados de tecido lavrado com fios de seda e faz edredões maravilhosos. Eu pinto quadros. Quando era pequenina, costumava espalhar a fuligem da lareira e desenhar formas de pássaros e flores. Mas a ama dizia “não” e “sujo” e limpava tudo. Penso que não lhe prestava muita atenção. Já mais velha, decorei a carroça do meu pai com gavinhas de videira pintadas. O meu pai não ficou nada satisfeito, embora o tenha ouvido dizer à minha mãe que as vinhas pareciam mesmo verdadeiras. Numa bela manhã de maio, não pude conter- me. A vontade de fazer alguma coisa com as mãos era tão grande que peguei no balde da cal e levei-o para o celeiro pintado de fresco. É claro que o celeiro ficou muito mais bonito depois de eu pintar a nossa vaquinha Delia e a nossa égua Becky nas paredes. Mas o meu pai também não gostou e disse “Arranjem-lhe tintas a sério e uma tela que não seja o meu celeiro.” Mal me deram tinta e telas, pintei um retrato do meu pai em jeito de agradecimento. Deve ter gostado bastante dele, porque o pendurou na arrecadação. A minha mãe pediu-me para fazer um retrato para oferecer à prima Mariah pelos seus 90 anos. O meu pai comentou “É melhor que não o faça. A pintura a sério não é tarefa para raparigas.” Contudo, mostrou o retrato que eu fizera dele ao nosso vizinho, Mr. Prior, que pediu que eu lhe pintasse um também. E recebi igual encomenda de MR. Pinney, um outro vizinho nosso. Pouco tempo depois, já eu tinha pintado todos os membros da minha família, incluindo o nosso empregado e o seu cão. E comecei a procurar novos temas. A nossa tia Eliza conta histórias como ninguém. Quando éramos crianças, sentávamo-nos em redor dela, todos os domingos, depois do jantar, e ouvíamos o relato de Noé a construir a arca que iria salvar todos os seres do mundo do Grande Dilúvio. Sempre que as princesas do velho Egito retiravam Moisés das águas do Nilo, soltávamos exclamações e suspirávamos de alívio. Ao ouvir a tia Eliza, sentia que quase conseguia tocar no azul da túnica de Maria e nos retalhos do manto de José e ansiava por que os meus quadros fossem tão expressivos como as histórias dela. Quando mostrei à minha mãe a minha pintura da Fuga para o Egito, ela sugeriu ao meu pai que talvez o Pastor Winslow a quisesse para a igreja. “É melhor não”, comentou o meu pai. Mas o Pastor ouvira falar do quadro e gostou bastante dele quando nos veio visitar. Por isso, o meu pai deu-lho. Perguntei se podia assinar a Fuga, mas a minha mãe advertiu-me acerca do orgulho. Então, em vez de assinar o meu nome, comecei a colocar uma pequena marca nos meus quadros, sob a forma de uma rosa minúscula. Podia escondê-la por entre as flores e as folhas, ou nas pregas da saia de uma senhora. Como não se tratava do meu nome, não vi mal nenhum em fazê-lo. Neste verão, recebemos a visita do tio Albion. O tio Albion é um caixeiro-viajante, embora não costume vir até ao nosso vale. A sua carroça colorida, adornada com fiadas de colheres, que tilintam com a brisa, é uma visita que os habitantes de Genesee bem apreciam. Vejo-a sempre como uma carroça mágica, cheia de todo o tipo de coisas, desde pedaços de fita a peças de seda. Transporta martelos e serras, pregos e sementes, além de pequenos frascos de xarope que curam todas as maleitas. Quando o nosso tio já tinha comido e estava a descansar no alpendre, perguntei-lhe se podia pintar de novo a carroça, com motivos à sua escolha. Depois de exclamar “Mas que grande novidade me dás!”, insistiu em ver todo o meu trabalho, que elogiou calorosamente. Tive, então, permissão para pintar a carroça, enquanto o tio Albion me relatava as suas viagens e me falava dos artistas que conhecia. Eram todos homens, mas, segundo ele, eu pintava melhor do que muitos deles. O entusiasmo do tio Albion pelo meu trabalho levou-o a pedir aos meus pais que o acompanhasse nas suas andanças. Foi muito persuasivo e, por fim, o meu pai concordou. “Podes passar o verão a ajudar o teu tio. Se te pedirem um quadro, podes pintá-lo, mas é o tio que guardará o dinheiro, para pagar o teu sustento. Se ele não precisar dele todo, o resto fica para ti, para quando casares.” E foi assim que o tio Albion e eu partimos a percorrer as estradas poeirentas do nosso vale verde e vasto, enquanto vendíamos carrinhos de linhas e cartões de agulhas e pernoitávamos com os agricultores e os aldeões. O meu tio sabia sempre onde seríamos bem acolhidos para passar a noite ou partilhar uma refeição. Quando mostrávamos os quadros que eu pintara da Bíblia, as donas das casas soltavam exclamações de admiração e ofereciam-nos copos de leite frio ou de cidra. “Não partam antes de o meu marido ver isto. Olhem só para o azul da túnica de Maria!” diziam umas. “E para o sorriso do Menino!” exclamavam outras. E ora compravam um quadro, ora o agricultor queria um quadro da mulher e dos filhos, ora queriam pintar um filho recém-nascido com a sua roca de guizos. Certa vez, perguntei ao meu tio: “Posso assinar o meu nome?” Sorriu, afetuoso, e disse, dando-me uma palmadinha no ombro: “É melhor não o fazeres. É um trabalho excelente, mas será mais apreciado se não o assinares. Todos os pintores famosos são homens. O trabalho de uma pintora nunca será tão valorizado. Dá-te por satisfeita com o que fazes e não procures fama nesta vida, minha filha.” E, assim, continuei a assinar os meus quadros com a rosa minúscula. Certa manhã, quando tinha montado o meu cavalete junto do Rio Genesee, aproximou-se de mim um homem com um embrulho às costas. Era um dos artistas de que o meu tio falara, um tal MR. Sprigg. No inverno pintava tabuletas e no verão pintava retratos e paisagens, enquanto viajava com o cão. Mostrou-me o seu último quadro, que muito admirei, e passámos horas a discutir a mistura das cores e as várias formas de captar a luz do rio. Foi um dia maravilhoso. Agora que o verão chegou ao fim, regressei à nossa quinta. Ofereci o quadro do rio aos meus pais e todos me fizeram perguntas sobre as minhas viagens. Mas não contei ainda a ninguém que regressei com uma ideia nova. Hoje à noite, depois do jantar, vou pedir ao meu pai para ir viver com o meu tio Ezra, que tem uma loja na cidade. O tio Ezra é comerciante, como o tio Albion, mas as semelhanças entre ambos acabam aí. É que a mercadoria do tio Ezra está sempre bem arrumada em prateleiras e vitrinas e a loja tem uma pequena arrecadação onde poderei pintar retratos, letreiros, tapa-fogos e tapetes durante todo o ano e vendê-los na loja. Se a resposta do meu pai for “É melhor não, Abiah Rose”, hei de insistir até ele concordar. E quando, um dia, tiver a minha própria loja na cidade, colocarei cadeiras confortáveis de costas para uma parede forrada a tecido negro e pintarei os quadros de quem me pedir. A loja há de ter armários cheios de tintas, telas e pincéis, dos mais finos aos mais grossos. Acredito que, por essa altura, os meus pais já concordarão que assine os quadros com o meu nome e que deixe de ser uma pintora anónima. Embora me tenha sentido satisfeita com a ocasional moeda e com os elogios que recebo pelo meu trabalho, não vejo virtude em ser desconhecida e vergonha em assinar o meu próprio nome num trabalho que fiz com as minhas próprias mãos. Diane Browning Rosa-Dos-Ventos, Novembro, 2021, Ano 53, Nº 585, Santa Casa da Misericórdia do Porto, CPAC, Edições Braille.