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Medicina da conservação:

a ciência da saúde do
ecossistema
Mirella D'Elia, 2013

Júlia Angélica Gonçalves da Silveira1 - CRMV/MG 8185,


Mirella Lauria D’Elia2
1
Instituto de Ciências Biológicas (ICB), UFMG
Email para contato: juliaags@yahoo.com.br
2
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva (DMVP), Escola de Veterinária, UFMG
Email para contato: mirelladelia@gmail.com

1. Introdução e tivas de caráter antrópico. Essa pressão


importância econômica com o consequente desequilíbrio am-
biental tem promovido a emergência
da conservação de patógenos, como parasitos, bactérias,
Os ecossistemas naturais encon- fungos e vírus, em todo o mundo. A pre-
tram-se sob forte e crescente pressão hu- sente ameaça que as doenças emergen-
mana, sofrendo fragmentação, redução tes representam à população humana e
e destruição de grandes áreas nativas em à vida selvagem constitui um indicador
decorrência do avanço da agricultura, alarmante da saúde ecológica, com gra-
pecuária entre outras atividades produ- ves mudanças nos ecossistemas e cujos
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impactos ambientais po- para a sociedade, pois
Dentro desse contexto
dem ser locais e globais. dão base à vida e dos
de desequilíbrio
Dentro desse con-
ecológico, surgiu a ideia quais a humanidade de-
texto de desequilíbrio pende. Igualmente, con-
de que precisamos
ecológico, surgiu a ideia sidera que a consciência
olhar para além das
de que precisamos olhar da população acerca da
espécies e considerar
para além das espécies e perda da biodiversidade
o funcionamento dos
considerar o funciona- está aumentando, o que
ecossistemas como um
mento dos ecossistemas leva a mudanças signifi-
todo, já que animais,
como um todo, já que cativas nas preferências
vegetais e o homem
animais, vegetais e o ho- do consumidor e nas
coabitam um mesmo
mem coabitam um mes- decisões sobre o consu-
ambiente.
mo ambiente. mo. Como reflexo dessa
No meio ambiente demanda, os setores in-
ocorre um fluxo contínuo de patógenos dustriais e de serviços estão começando
entre o ser humano, animais domésti- a se preocuparem com a biodiversidade,
cos e silvestres, de forma que essa troca os ecossistemas e a sua conservação.
apresenta um caráter dinâmico, ocor- Finalmente, o PNUMA ressalta a neces-
rendo alterações constantes. Sendo as- sidade de olharmos para além das espé-
sim, é esperado que o surgimento de en- cies e considerar o funcionamento dos
fermidades e seus efeitos sobre
a saúde humana, animal e vege-
tal também sejam dinâmicos e
dependentes entre si (Mangini
SAÚDE
e Silva, 2006) (Fig. 1). ANIMAL
Em 1972 foi criado o
PNUMA – Programa das SAÚDE SAÚDE
Nações Unidas para o Meio VEGETAL AMBIENTAL

Ambiente – com o intuito de


quantificar os prejuízos cau- SAÚDE
sados pela degradação am- HUMANA

biental e os possíveis ganhos


gerados pela preservação da
biodiversidade e o uso de pro-
dutos certificados. O Programa Figura 1. Interação entre as saúdes vegetal, animal e humana
considera que os serviços ecos- que compõem a saúde ambiental
sistêmicos são fundamentais Ilustração: Mirella Lauria D’Elia e Júlia Silveira.

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ecossistemas como um todo, reforçan- pouco significativas em razão de seu
do a importância da medicina da con- desconhecimento e as epidemias eram
servação (Balmford et al., 2002; Bishop fatores aleatórios, já que em um ambien-
et al., 2010). te preservado esses fatores são compo-
Como exemplo do ganho econô- nentes naturais da dinâmica populacio-
mico relativo às áreas preservadas, foi nal. Com o passar do tempo, o aumento
quantificada a contribuição das áreas do interesse e do conhecimento sobre a
protegidas brasileiras para a economia vida selvagem somado à quantificação
nacional e constatou-se que dez áreas dos valores monetários dos bens na-
preservadas na Amazônia movimen- turais provocou a observação de que o
taram em torno de US$ 1,76 milhões/ uso inadequado de áreas naturais po-
ano e geraram 218 empregos diretos deria ocasionar prejuízos econômicos.
no ano de 2003 (Amend et al., 2003). Nesse contexto de crise pela perda da
Levando-se em consideração que os diversidade biológica, os biólogos e
animais silvestres habitam tais áreas pre- outros profissionais começaram a atu-
servadas, torna-se imprescindível, para ar em uma nova área de conhecimento
a manutenção da biodiversidade, o co- denominada biologia da conservação
nhecimento das múltiplas interações e (Primack e Rodrigues, 2001).
inter-relações possíveis entre os agentes No final da década de 1980, houve
etiológicos, os hospedeiros, o ambiente um aumento do número de epidemias
e, consequentemente, as doenças. graves em ambientes diversos e as do-
enças tornaram-se grandes obstáculos
2. História da medicina da ao equilíbrio ecológico, sendo os pro-
conservação blemas de saúde populacional citados
A importância dada à conservação como importantes no surgimento da
da natureza e de ambientes naturais pre- medicina da conservação: a ocorrência
servados vem se modificando ao longo de morbiliviroses em mamíferos ma-
dos anos. Nas décadas de 1960 e 1970 rinhos; o declínio global de anfíbios
acreditava-se que os re- por múltiplas causas; o
cursos naturais eram Nas décadas de 1960 surgimento da pneumo-
inesgotáveis e a manu- e 1970 acreditava-se nia asiática em humanos
tenção de áreas nativas que os recursos naturais e a chegada da Febre
indenes era sustentada eram inesgotáveis e a do Nilo à América do
apenas pelo seu valor manutenção de áreas Norte (Mangini e Silva,
existencial. Nessa época, nativas indenes era 2006). Em populações
as doenças em popula- sustentada apenas pelo humanas, também re-
ções de vida livre eram seu valor existencial. gistraram-se, naquela
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época, graves epidemias causados por No Brasil, as primeiras iniciativas
patógenos de caráter zoonótico, como em medicina da conservação acontece-
o enterovírus EV-70, responsável pela ram no início dos anos 2000. Em 2004,
conjuntivite hemorrágica aguda (CHA) foi criado o Instituto Brasileiro para
e originária, provavelmente, da mutação a Medicina da Conservação (IBMC-
de um vírus que infecta normalmente Tríade). Três anos depois, o Instituto
populações animais (Karnauchow et al., de Ensino, Pesquisa e Preservação
1996). Na transição do século XX para Ambiental Marcos Daniel - IMD (www.
o XI, várias mudanças imd.org.br) promoveu o
ambientais significati- O aumento da I Encontro Internacional
vas ocorreram, como o circulação de pessoas, de Medicina da
aumento da degradação animais e produtos, em Conservação em parceria
ambiental, das altera- âmbito mundial, como com o Tríade (www.tria-
ções climáticas e da per- resultado da progressiva de.org.br) e a Faculdade
da de biodiversidade. O globalização, facilitou de Saúde e Meio
aumento da circulação o acesso a áreas Ambiente (FAESA).
de pessoas, animais e
geograficamente Esse evento foi marcado
produtos, em âmbito
distantes e isoladas, pela produção da “Carta
mundial, como resulta-
contribuindo para de Vitória”, com diretri-
a disseminação de
do da progressiva globa- zes para a medicina da
espécies exóticas,
lização, facilitou o acesso conservação na América
incluindo patógenos e
a áreas geograficamen-
seus carreadores, além Latina (disponível em
te distantes e isoladas,
de outras consequências www.imd.org.br/eimc).
contribuindo para a dis- O segundo fruto des-
socioambientais.
seminação de espécies se trabalho pioneiro na
exóticas, incluindo pató- América Latina veio em
genos e seus carreadores, além de outras 2009, com o II Encontro Internacional
consequências socioambientais. Nesse de Medicina da Conservação que, além
cenário, a importância da conservação do Tríade e do IMD, contou com a par-
de uma espécie-alvo, passou a dar lugar ceria da Universidade Federal Rural de
à importância da conservação de um Pernambuco e do Instituto Brasileiro
conjunto composto pela espécie-alvo do Meio Ambiente e dos Recursos
e seu entorno, o ambiente, as espécies Naturais Renováveis (IBAMA). Na
vegetais e animais coabitantes, surgindo oportunidade, a médica veterinária
assim uma nova área de conhecimento argentina Marcela Maria Uhart da
multidisciplinar denominada medicina Wildlife Conservation Society (WCS)
da conservação. apresentou diversos trabalhos acerca
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do monitoramento de zoonoses emer- biologia da conservação e o manejo de
gentes pelo mundo do programa “One vida silvestre, já vinham produzindo um
World One Health”, com trabalhos in- extenso material acerca dessa relação,
clusive no Brasil. Na época, a WCS em mas cada um sob seu prisma investiga-
parceria com a empresa Cargill finan- tivo, de maneira isolada. Por esse moti-
ciava projetos de pesquisa sobre saúde, vo, o grande diferencial da medicina da
produção de alimentos e meio ambien- conservação é que se trata de uma ciên-
te no Brasil (www.oneworldonehealth. cia focada na interseção entre ambiente,
org). Atualmente mais de vinte e cin- hospedeiros humanos e não humanos e
co instituições desenvolvem projetos patógenos (Fig. 2), necessitando da in-
na área da medicina da conservação, tegração e parcerias multidisciplinares
como, por exemplo, o IBMC-Tríade, o entre diversos profissionais, como veteri-
Instituto de Pesquisas Ecológicas (www. nários, biólogos, médicos, ecólogos, epi-
ipe.org.br), o Instituto Onça Pintada demiologistas, zootecnistas, engenheiros
(www.jaguar.org.br), o Instituto Pró- ambientais, etc.
Carnívoros (www.procarnivoros.org. Recentemente os pesquisadores
br), a Associação Mata Ciliar (www. brasileiros Mangini e Silva (2006) defi-
mataciliar.org.br), o Instituto Oswaldo niram medicina da conservação como “a
Cruz (FIOCRUZ) e universidades, ciência para a crise da saúde ambiental e
como a UNESP, a USP, a UEL e, mais a consequente perda da diversidade bio-
recentemente, a Escola de Veterinária lógica, desenvolvida por meio da trans-
da UFMG (www.ecoas.org). disciplinaridade na execução de pesqui-
3. Conceito sas, ações de manejo e políticas públicas
O termo “medicina da conservação” ambientais voltadas à manutenção da
foi introduzido por Koch em 1996, de- saúde de todas as comunidades biológi-
finido como “um amplo contexto ecoló- cas e seus ecossistemas”.
gico, no qual a saúde das espécies está Como podemos observar, a medi-
interconectada aos pro- cina da conservação, se
cessos ecológicos que O grande diferencial é que conseguiremos
governam a vida”. Apesar da medicina da algum dia defini-la em
de ser um termo relativa- conservação é que se uma única sentença, é
mente novo, o interesse trata de uma ciência o resultado da conver-
dos pesquisadores sobre focada na interseção gência de três campos
o complexo conserva- entre ambiente, de atuação que, por si
ção-doença não é recen- hospedeiros humanos só, são desafiantes o su-
te e diversas áreas, como e não humanos e ficiente em termos de
a ecologia parasitária, a patógenos. complexidade: a saúde
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humana, a saúde animal e a saúde am- existente dentre cada grupo, possibilita
biental. Sendo assim, faz-se necessária a manutenção de um fluxo contínuo de
a análise das relações existentes entre agentes com diferentes níveis de pato-
diversos fatores, como as mudanças nos genicidade. Contudo, fatores de caráter
habitat de animais silvestres e no uso da antrópico relacionados a cada uma des-
terra, a emergência e reemergência de sas esferas (Fig. 2), e que ocorrem sem
agentes infecciosos e a manutenção da as devidas avaliações de risco e impacto
biodiversidade e das funções dos ecos- no meio, podem favorecer a adaptação
sistemas que sustentam a saúde das co- de diversos agentes potencialmente pa-
munidades vegetais e animais, incluin- togênicos a novos hospedeiros e a novas
do o ser humano. situações de desafio.
Dois processos distintos se desta-
4. Causas e manutenção cam pela sua importância na manuten-
de enfermidades em um ção desses no ambiente, denominados
ambiente spill-over e spill-back. De acordo com
A crescente proximidade entre seres Schloegel e Daszak (2004), spill-over
humanos, animais domésticos e ani- trata-se de uma situação epidemiológica
mais silvestres, além da interação já na qual um agente etiológico adaptado a
Globalização - Urbanização
Manipulação biomédica

Invasão humana HUMANOS Alimento


Manipulação ecológica Pecuária
Contato em caveiro Indústria

AMBIENTE
SILVESTRES DOMÉSTICOS
Migração Intensificação
Soltura da pecuária
Translocação Trânsito de animais

Introdução, invasão
Spill-over e Spill-back
Figura 2. Fatores relacionados ao fluxo de agentes potencialmente patogênicos entre as esferas huma-
nos, animais silvestre e animais domésticos.
Ilustração: Mirella Lauria D’Elia e Júlia Silveira. Adaptado de Daszak et al., 2000.

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um hospedeiro X (hospedeiro original) gico internacional; a coabitação entre
infecta um hospedeiro Y adaptando-se a espécies nativas e cultivadas devido à
esse novo hospedeiro. Já spill-back está intensificação da agricultura e pecuária;
relacionado ao retorno ao hospedeiro X a negligência epidemiológica no trân-
desse agente etiológico, anteriormente sito, translocação e soltura de animais
adaptado ao hospedeiro (Fig. 3). Esse selvagens.
trânsito de patógenos pode ter conse-
quências imprevisíveis para os novos 5. Papel dos animais
hospedeiros e para os hospedeiros ori- silvestres na manutenção
ginais, em razão das possíveis mudanças de patógenos em um
na patogenicidade e na virulência dos ambiente
agentes.
Além do trânsito de patógenos, As pesquisas sobre a sanidade de
diversas são as alterações ambientais animais silvestres podem auxiliar na
relacionadas à emergência de agentes identificação, no ambiente natural, de
etiológicos potencialmente patogêni- hospedeiros preferenciais e de possí-
cos, tais como: o aumento da população veis reservatórios de agentes etiológicos
humana; o desmatamento e o avanço com potencial patogênico e, igualmen-
do espaço urbano sobre ambientes na- te, identificar o papel desses animais na
turais; o aumento do turismo ecoló- manutenção de patógenos no ambiente
Spill-over

Spill-back
Figura 3. Exemplo de ocorrência de spill-over e spill-back entre cervídeos e bovinos. Imagens: Mirella
D’Elia, 2012; Paula Senra, 2012.

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e nas cadeias de transmissão e de dis- assim, auxiliando na detecção precoce
persão de doenças. Por outro lado, al- de perturbações ambientais através da
gumas espécies de animais silvestres sua capacidade de refleti-las. Os diag-
podem atuar como espécies sentinelas nósticos laboratoriais são importantes
na epidemiologia de certas doenças ou no monitoramento da saúde da espécie
infecções, pois, mediante o seu monito- sentinela e do seu ecossistema, devendo
ramento, podem indicar a atividade e a estar associados aos estudos de campo
circulação de agentes etiológicos espe- desenvolvidos pelas equipes de pes-
cíficos ou potencialmente ameaçadores quisa (Caro e O’Doherty, 1999; Tabor
no ambiente e, concomitantemente, na e Aguirre, 2004). Como exemplos de
circulação de patógenos entre animais espécies sentinelas, temos animais que
silvestres e domésticos e o homem. exercem a função de hospedeiros de um
As espécies silvestres sentinelas são patógeno transmitido por vetor, mas
espécies selecionadas para exercerem a não desenvolvem doença crônica, sendo
função de indicadoras da qualidade de assim improvável fonte de infecção para
saúde do ambiente em que estão inse- novos vetores. É o caso das suçuaranas
ridas, fornecendo informações sobre o (Puma concolor) (Fig. 4) em relação ao
estado de saúde de um ecossistema e, agente (Anaplasma phagocytophilum)

Figura 4. Exemplar de Puma concolor, da instituição NEX (No Extinction). Paula Senra, 2013.

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transmitido por carrapato e responsável a população-alvo (por meio de infecção
pela anaplasmose granulocítica, sendo experimental); além da caracterização
considerada uma zoonose (Foley et al., genética do patógeno em diferentes po-
2004). pulações e a delimitação da população-
Já os animais silvestres reservatórios -alvo (Haydon et al., 2002; Lanfranchi
apresentam diferentes definições na lite- et al., 2003). Temos como exemplo
ratura, sendo considerados espécies que prático para definir uma dada espécie
mantêm a infecção em um ambiente. como reservatório a probabilidade de
Segundo Haydon et al. (2002), trata-se um ruminante selvagem, como o vea-
de “uma ou mais populações conecta- do campeiro (Ozotocerus bezoarticus),
das epidemiologicamente ou ambien- atuar como reservatório do protozoário
talmente nas quais o patógeno pode ser Babesia bovis, transmitido pelo carrapa-
mantido permanentemente e a infecção to Riphicephalus microplus e responsável
transmitida para a população alvo”. É por grande impacto econômico na pe-
importante considerar a condição de cuária nacional. Essas duas espécies ru-
reservatório como temporal e espacial minantes coabitam o mesmo ambiente
e ainda sob uma abordagem sistêmica, em algumas regiões brasileiras, como o
pois a interação entre os patógenos e as Pantanal. Para considerarmos o veado
espécies susceptíveis apresenta um ca- como reservatório do agente, é preciso
ráter dinâmico devido às variadas pres- observar se, excluindo o contato entre
sões seletivas. Essas interações entre gado e cervo, o agente deixaria de es-
parasito e hospedeiro podem provocar tar presente no rebanho bovino. Nesse
mudanças no perfil epidemiológico de caso, o veado campeiro seria considera-
diversas parasitoses, além da emergên- do reservatório de B. bovis e, para a eli-
cia de novas doenças ou de outras consi- minação da infecção, seriam necessárias
deradas controladas (Abdussalam, 1959 medidas de controle direcionadas para
Ávila-Pires, 1989). Para a identificação esses cervídeos.
de um reservatório, deve-se incluir: o
acúmulo de evidências epidemiológicas 6. A interdisciplinaridade
que associam o potencial reservatório na medicina da
com a população-alvo; a evidência da conservação: o papel do
infecção natural na população não alvo
(por meio da identificação prévia da
médico veterinário e do
infecção por detecção de anticorpos,
zootecnista
pelo isolamento do agente infeccioso Apesar de ser um evento cada vez
ou, ainda, pela detecção do seu gene no mais comum, a transmissão de doenças
hospedeiro) somada à transmissão para infecciosas entre o ser humano, os ani-
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mais domésticos e os animais silvestres vigilância epidemiológica (Mangini e
pode assumir um papel transcendental Silva, 2006).
do ponto de vista epidemiológico, e
ameaçador, do ponto de vista da con- 7. Conclusão
servação das espécies. Populações re- Podemos notar que a medicina da
duzidas ou em declínio, em situação de conservação não envolve apenas mé-
má nutrição, submetidas à endogamia e dicos veterinários especializados em
ao estresse contínuo em seu habitat na- animais selvagens, mas especialistas
tural, são tremendamente vulneráveis e de diferentes áreas que levam em con-
altamente predispostas a sucumbirem sideração o cenário global da conser-
durante a emergência ou reemergên- vação. Apesar da diversidade da fauna
cia de doenças infecciosas (Furtado e brasileira, os estudos sobre o papel
Filoni, 2008). das espécies nativas na epidemiologia
A investigação e o manejo da saúde das doenças infecciosas, os impactos
animal tornam-se uma vertente impor- dos patógenos nas populações silves-
tante na manutenção do tres e a morbidade e
equilíbrio do ecossiste- Apesar de ser um mortalidade de do-
ma, sendo o médico ve- evento cada vez mais enças tropicais nes-
terinário um profissional comum, a transmissão sas espécies ainda são
imprescindível nessa in- de doenças infecciosas escassos.
vestigação, tanto da saúde entre o ser humano, os Contudo, as ini-
de animais domésticos animais domésticos e ciativas de insti-
quanto de animais silves- os animais silvestres tuições de ensino,
tres. Essa linha de atuação pode assumir um papel grupos de pesquisa
realiza estudos relacio- transcendental do ponto e organizações não
nados à epidemiologia de vista epidemiológico, governamentais na
das doenças nas espécies e ameaçador, do ponto área de medicina
selvagens in-situ e ex-situ; de vista da conservação da conservação no
impactos de agentes etio- das espécies. Brasil têm alcançado,
lógicos nas populações a cada ano, maior vi-
de animais selvagens; im- sibilidade. Em 2012,
portância do trânsito de doenças entre o instituto Tríade em parceria com a
espécies domésticas e selvagens; im- Fundação Oswaldo Cruz promoveu
pactos de zoonoses e agentes estressan- a 1a Conferência Brasileira em Saúde
tes nas populações animais; doenças Silvestre e Humana. Em 2013, a USP
prevalentes que afetam as populações sediou a 1a Reunião da Wildlife Disease
animais; saúde pública veterinária e Association – Latin America. Eventos
Medicina da conservação: a ciência da saúde do ecossistema 27
estes que não apenas possibilitaram a 8. Referências
troca de experiências, mas que fomen- Bibliográficas
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Benefícios econômicos locais de áreas protegidas
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terinários e zootecnistas na área, com COSTANZA, R.; FARBER, S.; GREEN, R.E.;
intuito de ampliarmos e auxiliarmos JENKINS, M.; JEFFERISS, P.; JESSAMY, V.;
MADDEN. J.; MUNRO, K.; MYERS, N.; NAEEM,
outros profissionais nesse grande que- S.; PAAVOLA, J.; RAYMENT, M.; ROSENDO,
bra-cabeças em um país com imensas S.; ROUGHGARDEN, J.; TRUMPER, K.;
extensões territoriais e, em mesma TURNER, R.K. 2002. Economic reasons for con-
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