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coleção

arte físs il

JONATHAN (RARY

Técnacas do observador
Visão e mode rnidade no século XIX

TRADUÇÃO

Verrah Chamma

conrRAPonro
1. A mod erni dade e o problema do observador

O ca mpo da visão sempr e me pa receu compa rável


ao sírio de uma escavação arqu eo lógica .
Paul Virilio

Este é um livro sobre a visão e sua construção histór ica. Emb ora discut a so-
bretud o event os e desenvo lvimento s anteriores a 1850, foi escrito em um mo -
mento no qua l a natur eza da visualida de se transfo rm ava pr ova velmente de
modo mais radica l do que na época da ruptur a entr e a imagética medieva l e a
per spectiva renascenti sta . O ráp ido desenvolv imento, ~m pou co mais de u.ma
década, de uma enorme var iedade de técnicas de computa ção gráfica é part e
de uma drás tica reco nfiguração das relações entre o sujeito q ue ob serva e os
modos de repre sent açã o . Ta l reco nfiguraç ão invalida a mai or pa rte dos signifi-
cado s culw ralmenre estabelecidos para os term os observador e representação.
A formalização e a di fusão das imagens gera das por computad o r an unciam a
implanta ção oni present e de " espaços " visua is fabricados , ra dical ment e di feren-
tes da s capac idade s mimét icas do cinema, d a fotog rafia e da televisão . Pelo me-
no s até mead os da década de 1970, estes três últimos eram, cm geral, form as de
mídia a nalógica que ainda co rrespo ndia m aos comprim entos de on da óp ticos
do espectro e ao pont o de vista , estáti co o u móvel, localizado no espaço rea l.
O design feito com a uxílio do comput ador, a hol ografia, os simulado res de voo,
a animação co mputad o rizada, o reco nheciment o aut omáti co de image ns, o ras-
trea mento de raios, o map ea mento de textu ras, o contr o le dos movimento s [mo-
tion contro n, os capa cetes de rea lidade virtu a l, as ima gens de resso nâ ncia magné-
tica e os sensores mu ltiespectr ais são algumas das técnica s que estã o desloca nd o
a visão pa ra um plano dissociad o do ob servador huma no . O bviamente, o ut ro s
modo s de "ver " mais antigos e familiares irão pers istir e coex istir, co m di ficulda-
de, junt o dessas novas form as . Contud o, cada vez mais as tecno logias emerge n-
tes de pro du ção de imagem to rn a m-se os modelos dominant es de visualização,
de ac ord o com os quai s funciona m os principais pro cessos socia is e instit uições.
E, claro, elas estão entr elaç ad as com as necessidades das ind(1srrias de inform ação
glo ba l e com as exigências crescenres das hiera rqui as médicas, militares e polic ia is.
A ma io ria da s funçõe s histo ricam ente irnpo rcanres do o lho hu mano está send o
supla nta da por prát ica s nas quai s as imagens figurati vas não mant êm m ais um a

Técn,cas do observa dor 11


relação pre do minant e com a po sição de um observ ador em um mundo "real",
opr icam ente percebido . Se é possível dizer que essas imagens se referem a algo,
é, sobr etu do , a milh ões de bits de dado s matemáticos eletrô nicos . Cada vez mais
a visualidad e situa r-se-á cm um terreno cibernético e elet romagn ético em que
elementos abstratos, linguíst icos e visuais coincidem, circulam, são consumidos
e trocados em escala global.
Par a compree nd er essa incessante abstração do visual e evitar mistificá-la
co m ex plica çõe s tecnológicas seria necessá rio prop or e responder muita ques-
tões, espec ialment e de orde m históri ca . Se há um a mut ação em curso na na-
tureza da visualidade, quais formas e modos estão sendo deixados para trás?
Que rip o de rup tur a é essa ? Ao mesmo temp o, qu a is elemento s de continuidad e
liga m a produção ce nt emporânea da s imagens às anti gas organizações do vi-
sua l? Em qu e medida a infografia e os term inais de vídeo [video display ter-
minal] co nstituem uma reelaboração e um refinamento do que Guy Debord
denominou "sociedade do espetác ulo"? 1 Qua l a relação entr e as im agens des-
mat eri alizad as, ou digitai s, do presente e a assi m chamada era da rep rodutibi -
lidad e técnica? As quest ões mais urg entes, no entanto, são ma is a mp las. Como
o corpo, incluída a visão, está se tornando um compo nent e de no vas máqui-
nas, eco nomi as e apa ratos , sejam eles soc ia is, libidinai s ou tecnológicos? De
que mane iras a subjetividade está se convertendo em uma precária interface
entre sistemas raci o nalizados de troc a e redes de in formação?
Este livro não trata dir etam ente dessas questões, mas procura reconsiderar
e recon struir uma parte de seus antecedent es histó ricos. Ele o faz ao exam inar
uma reorga nização mai s a ntiga da visão na primeira metade do século XíX,
de lineando a lguns eventos e forças , so bretu do nas déca da s d e 1820 e 1830,
que produzir a m um nov o tipo de ob servador e foram precondições decisivas
para a abs tr ação da visão, em curso , acima esboçada. Em bor a as repercussões
cultur a is imediaras dessa reorga niza ção renham sido menos dramáticas, foram
profundas . Assim co mo agora, os problema s da visão eram fundamentalmente
ques tões relarivas ao corpo e ao funcionamento do poder socia l. Grande parte
deste livro analisará como , desde o início do sécul o X IX , um nov o conjunto
de rela ções entr e o corpo, de um lad o, e as form as do pod er institu cional e
discursivo, de outro, redefiniu o esraruto do sujeito observado r.
Ao esbo ça r alguns "pontos de emergên cia " de um regime de visão moder-
no e hete rogêneo , abo rdo simultan ea ment e o pr o blem a corre lato de qu an do ,
ou em funçã o de qu a is event os, houv e um a ruptura com os m odelos ren asce n-

I Ver meu "Ecl ipse of the Spccrnclc", cm Art a(ter Modernism: lfothi11ki11gReprese11tt11io11,
cd. Brian
Wallis (Boston, 1984), p. 283-294.

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tistas, ou clássicos, de conce ber a visão e o observador. Como e onde se situa
essa ruptura tem uma enor me relevância para compreender a visualidade na
modernidade do s séculos XIX e XX. A maioria das respostas a essa questão
padece por conta de um interesse exclus ivo nos problemas da representaç ão
visual. No início do século XIX, a ruptura com os modelos clássicos de visão
foi muito mais do qu e uma simples mudança na aparência da s imagen s e das
obras de arre, ou nas conve nções de rep resentação . Ao contrá rio, ela foi in-
separável de um a vasta reo rganiza ção do conhecimento e da s práticas sociais
que, de inúmera s ma neiras, modificaram as capacidades produtivas, cogniti-
vas e desejantes do sujeito humano.
leste estudo, apresento uma configuração relativamente desconhecida d e
objetos e aconcecimencos do século XIX: nome s pr ó prio s, conjuntos de co-
nhecimento e invenções tecn o lógicas que rarament e aparecem na s histór ias
da arre ou do mode rni smo . Uma razão para fazê-lo é escapar das limit ações
de muitas da s histó rias hegemôn icas da visualidade nesse período, evitando as
diversas descrições do modern ismo e da mod ernidad e que partem de um a ava-
liação mais ou menos seme lh ante so bre as or igens da a rre e da cultura visual
modernistas nas décadas de 1870 e 18 80. Apesar de num erosa s revisões (que
incluem obras conceituadas d o neo mar x ismo, do feminismo e do pós-estru-
turalismo), permanece inalterado um relato centra l, base ad o em característi-
cas "esse nci ais" do período. Algo co mo: com Manet, o impre ssionism o e/ou
o pós -impressionismo, surge um novo modelo de representação e percepção
visual que constitui uma ruptura com outro mod elo de visão, de sécu los ant e-
riores, vagamente definível como renascentista, de perspe ctiva ou normativo.
A maio ria das teorias da cu ltura visual moderna perman ece sujeira a uma ou
outra versão dessa "ruptura".
Essa narrativa sobre o fim do espaço em perspectiva, dos códigos mim ét i-
cos e do referencial coexiste , em gera l acriricamenre, com outra per iodiza ção
da história da cultura visua l europeia, muito diferente,.mas que tamb ém pre-
cisa ser abandonada. Esse segundo modelo refere-se à invenção e à dissemina-
ção da fotog rafi a e de o utras form as correlatas de "realismo" no século XIX.
De maneira avassaladora, tais desenvolvimentos têm sido apre sent ado s como
parte do desdobramento co ntínuo de um modo de visão de base renasc entist a;
consideram-se a fotografia e finalmente o cinema apenas co mo exem plos mais
recentes de um desdobramento contínuo do espaço e da per cepção em p ers-
pectiva . Permanece, assim, um modelo confu so da visão no século XIX, que
se bifurca em doi s níveis : cm um deles, um núm ero relativam ente pequeno de
artistas mais avançados criou um tipo de visão e de significaç ão radica lmente
novo, enq uanto no nível mais cotidia no a visão permanec eu inserida na s mes-

Técnicas do observador 13
mas limitaçõ es "realistas" gerais que a haviam organizado desde o século XV.
O espa ço clá ssico parece ser revogado por um lad o, ma s pers iste por outro.
Tal divisão conceituai induz à noçã o errônea de que um a corrente chamada
rea lista dominou as prática s de rep resentaç ão populares , enquanto experi -
mentações e inovações ocorriam em uma arena distinta (a ind a que permeável)
da cr iação artística mod erni sta.
Examinado mais de perto, o impacto cultural e soc ial da celebrada "ruptu-
ra " do modernismo é consideravelmente mais limitado do que dá a entender o
alar de que o cerca. Segundo seus defensores, a supo sta revolução perceptiva da
arte avançada, no final do século XIX, é um acontecimento cujos efeitos vieram
de fora dos modo s de ver predominante s. De aco rd o com a lóg ica desse argu-
mento, trata-se de uma rupturl que oco rre à margem de uma vasta organização
hegemônica do visual, que se torna cada vez mais fort e no sécu lo XX co m a di-
fusão e a pro liferação da fotografia, do cinema e da televisão . Em certo sentido,
contudo , o mito da ruptura modernista depend e fundamentalm ente do mod elo
binário realismo versus expe riment ação . Ou seja, a continuid ade essencial dos
códigos miméticos é uma condição necessá ria para afirmar um avanço ou pro-
gresso da van guarda. A noção de uma revoluç ão visual moderni sta depende da
existência de um sujeito que mantém um ponto de vista di stanciado, a partir do
qu a l o modernismo pod e ser isolado - como esti lo, resistência cultural ou práti-
ca ideo lógica - contra o pano de fund o de uma visão normativa. O modernismo
se ap resenta co mo o advento do novo para um ob servador que permanece o
mesmo e cujo estatuto histórico não é quest ionado .
Não basca tenta r descrever um a relação dialética ent re as inovações dos
artistas e escrito res de vanguarda no final do século XIX, de um lado, e o " rea-
lismo" e o positivi smo concorrentes da cultura científic a e popular, de out ro .
Ao contrár io, é fundamental ver os do is fenômenos como componentes super -
po stos de um a única superfície social, na qual a mode rni zação da visão tinha
começado década s ant es. Sugiro que no início do século XTX oco rreu uma
tr ansformação mai s ampla e muito mai s imp ortante na constituição da visão .
As pinturas moderni sta s nas décadas de 1870 e 1880 e o desenvolvimento da
fotografia após 1839 podem ser vistos co rno sintom as ta rdio s dessa mudança
sistêmica cru cial qu e já estava em curso cm torno de 1820.
Pode-se pergunt a r se a história da arte não coincide com uma históri a d a
percepção . As tran sforma ções das o bra s de arte ao long o do tempo não são o
registro mais co nvincent e de como a própria visão tran sform o u-se historica-
mente? Este estud o insiste em que, ao cont rári o, uma histór ia da visão (se isso é
po ssível) depende de muito ma is do que uma simple s exposição das mudanças
nas práticas da repr esentação. Este livro não ro ma por ob jeto os dados emp íri-

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cos das obras de a rt e ou a noção, em última análise ideali sta, ~e um a _:percep-
ção" isolável; em vez disso, de stac a o não menos problemático fenômeno do
observa dor. Pois o pro blem a do observador é o campo no qual se pod e dizer
que se ma terializ a, se torna visíve l, a visão na história. A visão e seus efeitos são
inse par áveis das poss ibilidades de um suje ito observador, que é a um só tempo
prod ut o histórico e lugar de cercas práticas, técnica s, instituições e procedim en-
tos de subje tivação .
A maior parte dos dicionários faz pouca distinção semâ ntica entre as pa-
lavras "observador" e "espectador", e o uso comum em geral as converte em
sinôn imo s. Escolhi o termo observado r sobretudo por suas resson âncias etimo-
lógicas . Dife rente de spectare, ra iz lat ina de "espectado r", a raiz de "observar"
não significa liter almente "o lhar para". Espectador também carrega conotações
espe cíficas, especialme nte no contexto da cultura do século XIX, que prefiro
ev itar - concretamente, aquele que assiste passivamente a um espetáculo, como
em uma galeria de arte ou em um teatro. Em um sentido mais pertinente ao meu
esru do, observar significa "conformar as própria s açõe s, obedecer a", como
quan do se observam regras, códigos, regulamentos e práti cas . Obviament e, um
observa dor é aquele que vê. "'.'.!aso mais importante é qu e é aque le q'-:!cv§ em
um determi nado conjunto de po ssibilidades, estando inscrito em um sistema de
conve nções e restrições . Por "co nvenções" sugiro muito mais do que práti cas
de representação . Se é possível afirmar que existe um observador específ ico do
sécu lo XIX, ou de qualquer outro período, ele so ment e o é como e(eíto de um
siste ma irredutiv elment e het erogêneo de relações discursi vas, sociais, tecnoló-
gicas e institucionais. N ão há um sujeito observador prévio a esse ca mpo em
contí nua tran sforma çã o. 2
Menc io nei a idei a de um a história da visão apenas como possibilidade hi-
potética . É irr elevante se a percepção ou a visão realmente mudam, poi s elas
não possuem uma história autônoma. O que muda é a pluralidad e de força s e
regras q ue compõem o ca mpo no qual a percepção ~ocorre . E o qu e determina
a visão em qualqu er momento hist órico não é uma estrutu ra profunda, nem

r.m cerro scnrido, mclls obje tivos neste estud o sfo '"gcnealúg icos" , segundo Michae l i:o ucau lt: "N iio
cre io q ue o problema possa ser resolvido com a hisioriciwção do sujei10, tal como propo sio pelos
fcnomc nologi sras , fobr icnnd o um sujeito que evo lui ao longo do cu rso da hisuí ria. I'.preciso se livrar
do su1cito co nsriruinrc, livra r-se d o próprio sujeiw, isto é, chegar a uma análi ~e que possa e xp lica r a
consti tuiç ão d o sujeito na rrama his1órica . É isso que cu chamaria de gencalo~rn, ou seja, lima forma
de h isió na que dê conw da co nsiiruiçiio dos sabe res, discursos, domíni os d os oh1ews eic. sem ter
que se referir a um sujeito que é o u rr:rnsccndcmal cm relação ao cam po <los acomccim cm os ou qu e
/edge (Nova York, J 980), p. 117
pers eg ue sua ide nt ida de vazia ao longo da hisrória. ·· Po111er/K110111
(cd1çiio brasileira : Microfísica do podl'r , G raal, 1998, p. 7).

Técn,cas do observador J5
uma base econômica ou uma visão do mundo, mas, ant es , uma montagem co-
letiva de partes díspares em um a única superfície social. Talvez seja necess ário
considerar o observador como uma distribuição de fenômenos localizados em
muitos lugares diferentes. 3 Nunca houve e nunca haverá um observador que
apreenda o mundo em uma evidênc ia tran spa rente . Em vez disso, há diferentes
arra njo s de forças, menos ou mais poderosas, a partir dos quais as capacida-
des de um observador se tornam possíveis.
Ao sugerir que durante as primeiras déca das do século XIX formou-se um
novo tipo de observador na Europa, radicalmente diferente do tipo de obser -
vador que predominava nos séculos XVII e XVIll, suscito a questão de como
se podem propor genera lizações tão vagas e categorias tão fixas, como "o
observador no século XIX'~. Não haverá o risco de apresentar algo abstrato,
apartado das singularidades e da imensa diversidade que caracterizaram a ex-
periência visual naquele século? É claro que não houve um observador único ,
nenhum exemplo que possa ser encontrado empiricamente. Contudo, preten-
do traçar algumas condições e forças que definiram ou permitiram a forma-
ção de um modelo dominante de observador no século XIX. Isso implicará o
esboço de um con junto de aco ntecimentos relacionados que tiveram um papel
decisivo nos modos pelo s quais a visão foi debatida , controlada e incorporada
em práticas culturai s e científicas . Ao mesmo tempo, espero mostrar como dei-
xa ram de ope ra r os termos e elementos mais imp ortantes da organização an-
terior do observador . Não interessa discu tir aqui formas locais e alternativas
com as quais as práticas visuais dominantes resistiram, foram desviadas ou se
const ituíram de maneira imperfeita. A hist ór ia desses momento s de oposição
precisa ser escrita, mas só será legível se for contrastada ao conjunto hege-
mônico de discursos e práticas no qual a visão tomou forma. Uso tipologias
e unidades provisórias que integram uma estratégia explicativa voltada para
demonstrar uma ruptura o u desconti nuidade gera l no início do século XIX.
É desnecessário assinalar que nã o há continuidades ou descontinuidades na
história, mas somente nas explicações históricas. As divisões temporais que
proponho não buscam mostrar uma "ve rdad eira história" ou resgatar "o que
realmente aconteceu". O que está em jogo é bem diferente: como se periodiza
e onde se localizam ou se recusam rupturas são esco lha s políticas que deter-
minam a construção do presente. Se determinad os acontecimentos e processos
são excluídos ou realçados à custa dos demais, isso afeta a inteligibilidad e do
funcionamento contemporâneo do poder, no qual nós mesmos estamos enre-

I São as tradições científicas e intelectuai s, nas quais os objetos "são agregados de part es rclativam cn-
cc independe ntes··. Ver Paul Fcycrabend, Problems o{ Empiricis111, v. 2 (Cambridge, 1981 ), p. 5.

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dados. Tais escolha s afetam a aparência "natural" do presente e evidenciam
sua constituição historicamente fabricada e densamente sedimentada.
No início do século XIX houve uma rad ica l transformação na concep -
ção do observado r - em uma varieda d e de práticas sociais e domínios do
saber . Aprese nto o principal percurso desses desenvolvimentos examinan-
do a importância de certos apa relho s ópt icos . Não os abordo pelos mode -
los de representação que implicam, mas co mo lugares de saber e de poder
que operam diretamente no corpo do indivíduo . Proponho a câma ra esc ura
como paradigmá tic a do esraruro dominant e do obse rvad or nos séculos XVII
e XVIII; em relação ao século XIX, abordo uma variedade de instrumentos
ópticos, em parricu lar o este reoscópio, como meios úteis para especificar
as transformações no estatuto do observado r. Tais dispositivos óp tico , de
maneira significativa, são pontos de int erseção no s qu a is os discursos fi-
losóficos, científicos e estéticos imbricam-se a técnicas mecânicas, exigên-
cias institucionais e forças soc ioeconômicas . Mais do que objero mat erial
ou parte integra n te de um a história da tecno logia, cada um de les pod e ser
entendido pela maneira como está inserido em uma montagem muito maior
de acontecime nto s e pod eres . Isso contraria muiras influent es exp lica ções
da história da fotografia e do cinema, caracterizadas por um determinismo
tecnológico latente ou explícita, no qual uma dinâmica independente de in-
venção, modificação e aperfeiçoamento mecânicos impõ e-se em um campo
social, transformando-o a partir de fora. Ao contrário, a tecnologia é sempre
uma parte concomitante ou subordinada a outras fo rças. Para G illcs Dclcu-
ze, "uma sociedade se define por seus amá lgamas, não por suas ferramentas
[...1.As ferrame nt as só exisrem em relação às combinações que possibilitam
ou que as tornam possívei s. '"1 Porranro, já não é possível redu zir uma hisró-
ria do observador a rransformações técnicas e mecânicas, nem a mudanças
ocorridas nas fo rmas de obras de arte e de representação visual. Ao mesmo
tempo, embora eu designe a câmara escura como um objc-ro-chav c nos séc u-
los XVII e XVlll, ressaira que ela não é isomorfa cm relação às tecnologias
ópticas que discuto no cont exto do séc ulo XIX. Os sécul os XVIII e XIX não
são redes análogas, nas quais diferentes objetos culrurais podem ocupar as
mesmas posições relativas. Ao conrrário, a posição e a função de uma técni-
ca são historicamente variáveis; a câmara escura, co mo sug iro no próximo
capírulo, é pane de um campo de sabe res e práticas que não corre spo nde es-

• G,lle~ Delcu.tc e l'elix Guarrari. A Tbo11sa11dl'latea11s:Cn/Jital1s111and Sc/17.opbre111a, rrad. llrian


Masç11111i(Minneapohs, 1987), p. 90 (ediç:io bras ileir:i : Mil platõs : capitalismo e esq11izofre111a,
Editora 34, 1995).

Têcn,cas do observador 17
trut u ra lm ente aos lugares dos dispositivos ópticos que examino em segu ida .
Nas palavras de Deleuze:

Por um lado, cada estrato ou formação histórica implica uma distribuição


do visível e do enun ciável que atua sobre si mesma; por outro, de um es-
trato a outro há uma variação na distribuição, pois a própria visibilidade
muda de est ilo, enquant o as enu nciações alteram seu sistema. 5

Argumento que a lguma s das mais disseminad as tecnol ogias de produ ção de
efeitos "rea listas" na cul tur a visual de massas, como o estereoscópio, basearam-
-se em uma abstração e reconstrução radicais da experiênc ia óptica, o que exige
uma reconsideração do que sign ifica "rea lismo" no século XIX . Também espe-
ro demonstrar como as ideias mais inflêlentes acerca do observador no início
do século X lX dependiam pri oritariamente dos modelos de visão subjetiva, cm
contraste com a sistemática supressão da subjetividade da visão no pensamento
do s séculos XVII e XVIII. Uma noção de "visªo suQjetiva" esteve presente, du-
rante muito tempo, nas discussões da cu ltur a oitocent ista, mais frequentemente
no contexto do romantismo - como, po r exemplo, ao ilustrar uma mudança no
"pape l desempenhado pela mente na percepção"-, da s concepções de imitação
às de expressão, da metáfora do espe lho à da lâmpada. 6 Porém, a ideia de uma
visão ou uma perce pção de alguma forma exclusiva aos artistas e poetas, dife-
renciada da visão moldada por ideias ou práticas empíricas ou positivi stas, é
novamente centra l nessas interpr etaçõ es.
,.. Interessa -me o modo como os conceitos de visão subjetiva e a produtividade
cio observador impregnaram não apenas os campos da arte e da literatura, pe-
netrando também nos discursos filosófico s, cient ificos e tecnológicos. Em vez d!!
enfa tizar a separação entre arte e ciência no sécu lo XIX, o importante é ver como
ambas integravam um único campo entrelaçado de sa beres e práticas. O mesmo
sa ber que permit iu a crescente racionalização e o contro le do sujeito humano
em funçã o das novas exigê ncias institucion a is e eco nômicas foi ta mb ém uma
co nd ição de possibilidade para novos experimentos no campo da representação
visua l. Desejo, portanto, delinear um sujeit o observador que é a um só tempo
causa e consequência da modernidade no século XIX. Em linhas muito gerais,
o observad or sofre um processo ele modernização no século XIX, ajustando-se

s Gillcs Dclcu1.e, Fo11c(lu/1,trad. !,c:ín Hand (M inncapolis , 1988 ), p. 48 (ed içiio brasi leira: Fcmc(l11/t,
Brasiliense, 1988 ).
6 M. H. Ahr:uns, Thc Mirror m1d the Lmnp: Ro111n11ti c Tbeory nnd tl,e Critic(I/Trnditio11(Lo ndr es,
1953), p. 57 -65 (ed ição brasileira: O espelho e n lâ111pnd11:
teoria româ11ticae tradição crítica,
Uncsp, 2010).

18 Jonathan Crary
a uma constelação de no vos acontecime nt os, forças e instituições qu e, junco s,
podem ser definidos, de modo vago e ta lvez ta uto lógico, co mo "mo dernidade".
A modernização torna-se uma noção útil quando a retiramos da§_deter -
minações teleo lógicas, sobretudo eco nômicas, e qua ndo envolve não somen -
te mudanças estruturais nas formações po líticas e econômicas, mas também
uma imensa reorganização de conhecimentos, linguage ns, espaços, redes de
comunicação, a lém da própria subj etividade. Em um caminho alternativo aos
tr a balhos de Weber, Lukács, Simmel e outros, assim como a toda a reflexão
teór ica concebida em termos de "rac iona lização" e "re ificação", j po ssível
propor uma lógica da mod ernização radicalmente d issociada da ideia de pro -
gresso ou de desenvolvimento e que implica, ao contrário, r~ansformaçõ es
não linear es. Para Gianni Vattimo, a mo dernidade possui pr ecisamente essas
caracte rísticas "pós- histór icas", nas q uais a produção contín ua do novo é o
que permite que as coisas permaneçam as mesmas .7 Trata-s e de uma lógica do
mesmo, porém situa da em uma rela ção inversa à estabilidade da s formas tra -
dicionais . A moderniza ção é um processo pe lo qua l o capitalismo des estabiliz a
e to rn a móvel aquilo que está fixo ou enraizado, remove o u elimina aquilo
que impede a circulação, torna intercambi áve l o que é singula r.8 Urna di nâ-
mica que abarca cor pos, signos, (magens, linguagen s, relaçõ es de parentesco,
práticas religiosas e nac iona lidades, a lém de mercador ias, riquezas e força de
traba lho. A modernização torna-se uma incessa nte e a utoperpetua nte criação
de novas necessidades, novas ma neiras de consumo e novos modos de produ -
zir.9 O observador, como sujeito humano, não é exte rior a esse processo, ma s

- Gianni Vatrimo, The End o( Modemit y, trad. Jon R. Snyde r ( Balcimore , 1988), p. 7-8 (edição brasi -
leira : O fim da modemidadc, M art in s Font es, 2002).
s Re levante aq ui é o esb oço histórico em Gil lcs Dc leuic e Félix G uatta ri, A111i -Oedip11s: Capitalism
and Schizopbrenia, tr:id . Robe rt Hurl cy er ai. (N ova York, 1978), p. 200-26 1 (edição bra sileira:
O anti-1:.dipo: capitalismo e esq11iw(re11ia1. Edi t0ra 34, 2010). Aqui, a modernid ade é um pr ocesso
co ntínuo de kdesrerrirorialização", um t0mar ah str:110e inrer caithi:ível dos co rpo s, objeto s e relaçõe s .
Porém, como Dclcuzc e Guatrari insistem, a nova inter ca mbialid ade da s formas sob o cap itali smo é
a condição para sua .. re·territor i:1lizaçfo ·• cm novas hiera rquias e instituiçõe s . A industria lização d o
,éculo XIX é discutida em termos de descerricorialização, desenraizamento ldéraci11eme11tl e de pro ·
dução de fluxos cm Ma rc G uillaume , F.loget/11désordre (Pari s, 1978), p. 34-42.
Ver Karl Marx, Gr1111drisse, trad. Martin Nicol:!us (Nova York, 1973), p. 408 -409. "Porrnnro, a
ex ploração de roda a natur eza a fim de desco brir qualidade s novas, út e is nas cois:is; a 1roc:i univer -
sal dos produtos de rodos os climas e de terras diferentes; a nova preparação (an ificial) dos objetos
na tu rais, pe la qual e les recebem no vos va lo res de uso. A exploração d:i terra em rodas as dir eções,
pa ra descobrir novas co isas de uso a ssim como nov:is qualidade s úte is da s velha s; ( ... ) do mesmo
mo d o a d escoberta, criação e satisfação de nova s ncccssídades que surgem da própria sociedade;
o cultiv o ele cod:1s a , qua lida des do ser humano soc ia 1, a produ çã o do mesmo cm uma forma tão
rica quanto possível em necessid:ides, porquanio rico cm qualidades e relações - produção des ce ser
com o o pr o d uto soci:11 mai s coral e universa l po ss ível. "

Técnicas do observador 19
imanente a ele. Ao longo do século XIX, o observador teve de operar cada vez
mais em espaços urbanos fragmentados e desconhecidos, nos deslocamentos
perceptivos e temporais da s viagens de trem, do telégrafo, da produção indus-
trial e dos fluxos da informação tipográfica e visual. A identidade discursiva
do observador, como objeto de reflexão filosófica e de est ud o empírico, pas-
sou por uma renovação igualmente dr ás tica.
O trabalho inicial de Jea n Baudrillard detalha algumas condições desse
novo terr eno em que se situava o observador do século XIX. Par a Baudrillard,
um a das consequências cruciais das revoluções políticas burguesas no final
do século XVIIl foi a força ide o lógica que animou os mitos dos direitos do
homem, o dir eiro à igua ldade e à felicidade. No século XIX, pela primeira vez,
provas observáveis tornaram-s·e necessá rias para demonstrar que a felicidade
e a igua ldade tinham sido, de fato, alcançadas. A felicidade tinha de ser "men-
surável cm termos de objetos e signo s", algo que fosse evidente ao olho em
termos de "critérios visíveis" . 10 Muitas décadas antes, Walter Benjamin havia
escriro sobre o papel da mercadoria na geração de um a "fantasmago ria da
igu aldad e" . ~esse sentido, a modernidade é insepa rável , por um lado, de uma
reconstrução do observador e, por outro, de uma proliferação de signos e ob-
jetos circulantes cujos efeitos coincidem com sua visualidade, ou com aquilo
que Ado rno chama de An schauli chk eit . 11
A exposição que Baudrillard faz da modernidade destaca uma desestabili-
zação e uma mob ilidade crescentes dos signo s e códi gos, que têm iníci o no Re-
nascimento. Antes, tais signos estavam en raizados em posições relativamente
seguras no int erior de hierarquias sociais fixas .

A moda não existe cm uma sociedad e ordenada cm castas, já que a cada


um é designado um lugar em ca rát er irrevogáve l. A mobilid ade de classe
não existe. Uma interdição protege os signos e lhes assegura uma clareza
cotai; cada signo se refere inequivocamente a um status. (...) Em sociedades

10 Jean Baudrillard, l.a Société de conso111111ati


o11(Paris, 1970), p. 60 (edição em porruguês: A socíe-
dnde de co11s111110,Edições 70, 2008) . Grifos no orig inal. Alg um as dessa s mudança s foram de scr ita s
por Adorno corno "a :1dap1ação Ido observador! :i ordem da racionalidade burguesa e, por fim, à
era da indústria av:inçada, ícita pelo olho quantlo ele se habituou a perceber a realidad e co mo uma
realidade de objetos e, porr:inro, basicarncnre de mercadorias". /11Seac/1o( \Ylag11er,trad. Rodncy
Livingsrone (Londres, 1981 ), p. 99.
11 Thcodor Adorno, Aesthetic Theory, trad. C . Lenhardt (Lond res, 1984 ), p. 139-140 (edição em por -
mguês: Teoria estética, Edições 70, 2008): "Ao negar a oarure7.:.1implicit:imcnre conceituai da ,me.
a norma da visualidade rcifica a visualidade em 11maqualidade opaca, impenetráve l - uma réplica
do mundo exte rior petrificado, atemo a rndo o que pos sa interferir na fol~a aparência de harmonia
que o trabalho suge re."

20 Jonathan Crary
de castas, feudais ou arca icas, soc ieda des cruéis, os signos são limitado s em
número e não estão am plamente difundidos. Cada um funciona com seu
va lor pleno como interdição, cada um é uma ob rigação recíproca entre cas-
tas, clãs ou pessoas . Nesse sentid o, os signos são tudo , menos arbitrários.
O signo arbi trário começa quand o, em vez de vincular duas pessoas em
uma reciprocida de indestrutív el, o significante começa a se remeter a um
mundo desencanta do de significado, um denominador comum do mundo
real em relação ao qual ninguém tem qualquer obr igação . 12

A modernidade, para Baudrillard, está estritament e ligada à capacidade


que grupos e classes soc iais recém -chega dos ao poder têm de superar o "ex-
dus ivismo dos sign os" , promovendo "u ma proliferação de signos sob deman-
da". Imitações, cóp ias, falsificações e as técnicas para produzi-las (que inclui -
.riam o teat ro ital iano, a perspectiva linea r e a câmara escura) desafiaram o
monopó lio e o co ntrol e aristoc rático dos signos. ~ qui , o problema da mimese
não é um prob lema de estét ica, mas de poder social; um po der fundado na
;apacida de de pro du zir equivalê ncias . r ~: r ·._ • ' ' •

Para Baudrillard e muitos outros, no século XIX, junto co m o desenvolvi-


mento de novas técnicas industriai s e novas formas de pod er po lítico, emerge
um novo tipo de signo . Esses novo s signos, "ob jetos pot encia lmente idênticos
produz idos em séries ind efinidas", anunciam o mome nto em que o problema
da mimese desaparece .
1

I
A relação ent re eles [objetos idênticos] não é mais aquela de um orig inal em
1
relação à sua imitação. A relação não é de analogia nem de reflexo, mas de
eq uivalência e indiferença . Na série, os objetos se tornam simulacros indefini-
dos uns do s outr os. (...) Sabemos agora qu e é no nível da reprodução- moda,
míd ia, propaga nda, informação e com unicação, nível que Marx chamava
faux frais [falsos custosl do capita lismo - (...) ou seja, na esfera dos simula-
cros e do código, que os processos globais do cap ital se unem. 13
"
Nesse novo ca mpo de objetos produzidos em série, os de maior impacto so-
cia l -~ cultural fo ra m a fotografia e um a infinid ade de tecnicas corre latas para
industrializar a criação de imag ens [im age making] . 14 A fotografia converteu-se

12 Jea n Baudri llard, L"Échange symb olique et la 111ort (Pa ris, 1976), p. 78; Simulations, rrad . Pau l Foss
(Nova York, 1983 ), p . 84-85 (edição brasi leira: A troca simbólica e a morte, Loyo la, 1996).
IJ Jbid, p. 86 .
14 A munição e as peças de rep<>sição militares foram o mode lo mais imponanre para a produção
industria l em série no sécu lo XIX. Que a necessidade de seme lha nça absolura e inte rcamb ial idade
res ulto u das exigê nc ias da guerra, não dos desenvolvimentos cm um seto r econômico, é d iscu tido cm
Manuel De Landa, War i11the Age o( /11tellige11tMachi11es(Nova York, 1990) .

Técnicas do observador 21
em um elemento centr al não apenas na nova economia da mercado ria, mas
na reorganização de todo um território no qu al circulam e prolif eram signos e
imagens, cactã um deies efet ivamente separado de um referente . As fotografias
podem ter algumas semelhan ças aparente s com tip os mais antigos de imagens,
como a pintur a em perspe ctiva ou desenho s feitos com o a uxílio de uma câ-
mara escura, mas elas participam de um a imensa ruptura sistêmica qu e torna
insignificantes essas semelhança s. A fotografia é um elemento de um novo e
homogêneo terreno de consumo e circulação, no qual se aloja o observador.
Para entender o "efeito fotografia " no século XIX, é preciso vê-lo como com-
ponente crucial de uma nova econo mia cultural de valor e troca, não como
parte de 1_:.ma histó ria co nsín ua da repr esentação visua l.
· Foto grafia e dinheiro K>rnam-se formas homó logas do poder soc ial no sé-
culo XIX . 15 Ambos são sistema s tota liza ntes que englobam e unificam os su-
jeitos em uma mesma rede g lobal de valoração e desejo. Assim como Marx
disse a respeito do dinh eiro, a foto grafia tamb ém é uma gra nd e niveladora,
um agente democratizador, um " mero sím bolo" , uma ficção "sancionad a pelo
pretenso consenso univ ersa l da hum an idade" . 1~ Ambo s são formas mágicas
qu e estabelecem um novo conjunto de relações abstrata s entre indivídu os e
coisas, e imp õem essas re lações co mo sendo o real. Por meio das eco nom ias
do dinheiro e da fotografia - dist inta s, ma s que se inter penetram-, um mundo
social é represe nt ado e constituído exclusivamente como signos .
Mas a fotografia não é o tema deste livro . Po r mai s decisiva que po ssa ter
sido para o destino da visualidad e no século XIX e adiante, sua invenção é
secundár ia para os aco nte cimentos que pretendo det alhar aqui . M inha tese é
que uma reorgani zação do observador ocor re no século XIX antes do surgi -
mento da fotografia . O que acontece entr e 1810 a 1840 é um deslocamento
da visão em re laçã o às relações estáve is e fixas crista lizadas na câmara escura .
Se a câmara escura , como conce ito, sub sistiu co mo base ob jet iva da verda de
visual , vários discur so s e práticas - na filosofia, na ciência e em procedimentos
de normatizaç ão soc ial - tendem a abolir essa base no início do séc ulo XIX .
Em certo sentido, ocorre um a nov a valoração da experiênc ia visual: ela ad-
quire mobi lidade e intercambiaÍ idade sem precedentes, ab st raída s de qualqu er
~ugar ou refere ncial fundant e.

11 Para argumentos relacion ado s, ver John Tagg, "T he Currcncy oí rhe Phorograph", em Thi11ki11g
Photogrnphy, cd. Vict0r Burgin (Londr es, 1982), p. 110- 141; e Alan Sekula , "T hc Traffic in Phoro -
grnp hs'", em Pho togm phy Agninst the Grai11:Essnys a11d Photo Works / 973·1983 (Haliíax, 1984),
p. 96-10 1.
1~ Karl Marx , O,pita l, v. 1, trad. S::unuel Moore e Eclw:ird Avcling (Nova York, 1967), p. 9 1 (cdiçiio

brasile ira: O capital, livro 1, v. 1, Civilização Brasileira, 2008) .

22 Jonathan Crary
No capírulo 3, descrevo certos aspectos dessa revaloração na obra de
Goe the e de Schopenhauer, bem co mo na psicolog ia e na fisio logia do início
do sécu lo XIX, nas quais a natureza da sensação e da percepção adquire mui -
tos dos elem entos de equivalência e indiferença qu e mais tarde caracterizarão
a fotograf ia e outras redes de mercador ias e signos . Esse "niilismo" visual
está na primeira linha dos estudos empíricos da visão subjetiva, uma visão
que engl o ba uma percepção autônoma apartada de qualquer refe rente exter-
no . No entanto, deve -se ressaltar que essas novas autonomia e abstração da
visão não são só uma precond ição para a pintura modernista no final do sé-
:::uloX IX, mas também pa ra formas da cultura visual de massas qu e surgiram
muiro ant es . No capítu lo 4, analiso como aparelhos ópticos qu e se tornaram
forma s de entreten imento de massas, como o estereoscópio e o fenacistos -
:ópio, na scera m dos novos conhecimentos empír icos do estatuto fisiológico
:lo obser va dor e da visão . Com isso, certas formas de experiência visua l, em
~era ! con siderada s acriticamente como "realistas ~ vincul~n;.se a teori _as t1ão
'Jerídicas da visão, que têm por efeito aniqui lar a ex istência de um mundo rea l.
Apesar das tentativas de autenticá -la e naturalizá-la, a experiência visua l per-
:ieu no século XIX as pretensões apodícticas de que se valia a câmara escura
pa ra estabelecer a verdade . Em um nível superficial, as ficções do rea lismo
atuam imp ertu rbadas, mas os processos de modernização no século XIX não
dependiam d essas ilusões. Novos modos de circulação, comunicação , produ-
ção, consumo e racionalização exig iram e deram forma a um novo tipo de
co nsu midor -observador.
O que denomino obse rv ador é ape na s um efeito da construção de um novo
ripo de sujeito ou indivíduo no sécu lo XIX . A obra de Michel Foucaulr é cru-
cial sobr e isso, por anal isar processos e inst iwições que racionalizaram e mo-
dern izara m o sujeito nesse cont exto de transformações sociais e econômicas. 17
Sem fazer co nexões causais, roucau lt demonstra que a revo lução industrial
coi nc idi u com o surg imento de "novos métodos para admi,pistrar" a popu-
laç ão urb ana com seus grandes co ntingentes de trabalhadores, estudantes,
pr isio neiros, pacientes hospitalares e outros grupos . Na medida cm que in-
divíd uos foram sendo arrancados dos ant igos regimes de pod er, da produ-
ção agrá ria e artesanal e das grandes est ruturas familiares, novo s arra njos
descen tr a lizad os foram concebidos para controlar e regular essas massas de
suje iras relativamente livres e abandona d os à sua sorte. Para Foucault, a
mode rn id ade do século XIX é inseparável da maneira pela qua l meca nismos

,- Michel hi uc:rnl r, Discipli11


e a11dP1111ish
, rrad. Alan Shcridan (Nova York, 1977) (edição h rasile ira:
Vigiar e p1111
ir, Vozés, 2002).

Técn,cas do observ ado r 23


1
o
1
1
J
de poder di s persos co in cidem com novos m o do s de s ubj et ividade; ele detal ha
um a sé rie de técni cas locai s , efi ca zes pa ra co ntrol a r, mant er e torn a r úte is as
no vas multipli cid ades de indi víduo s . A mod ernização co ns iste ness a produ -
çã o de s ujeiro s ad ministrá veis por mei o do qu e ele chama de

uma políricn do corpo, cerra man eira de rornnr dóc il e t'itil o agrupamenro
dos ho mens . Essa política exigia a part,cip açiio de relaçôcs de saber nas
rel.ições ele pode r; reclam;lvn urna técnic a pa ra entr ecruza r -;ujeição e objc-
rivnção ; incluía no vos proceclimenro s de ,nd ividua lização . ''

Emb or n r o uca ulr ex amin e os rens ivnmenr e ins tirniçõe s " di sc iplin a res",
co m o prisões, esco las e quart éis, ele tamb ém descr eve o pap el cfas recé m -co ns-
tituíd as ciênci as hum a nas na n!gulaç,10 e na rnoc.lificaçào do co m po rtam ento
dos indi vídu os . A ges tã o do s sujeiros depend eu, acim,1 de tud o, da ac umula-
çno de co nh ecim enro s so bre eles, seja na medicina, na ed ucação , na ps icolo g ia,
na fisio log ia, na raci o nal ização do trabalho , ou no cuidado co m as cria nças .
Desses sa beres veio o que f o ucault de nomi nou " uma tecnologi a muito real, a
tec nol og ia do s indi víduos' ' , que está "inscrirn em um amplo processo h istór i-
co: o dese nvo lvim ento, a proxi m éldam ent e na m esma época , de mui tas o ut ras
tecno log ias - agronômi ca, industrial, eco nômicn ". 1' 1
Para dese n vo lver ess as novas téc nicas d iscipl ina res do s ujeito fo i fun da-
ment a l definir 11ormas qua nrir arivas e estatíst icas de co mporram cnro. 111A ava -
liação de " normalidade" na medicina, na psicologia e cm outra s ,ir eas to rn ou ·
-se pa rt e esse ncial da co nsrirui ção do indi víduo confo rme as necess ida des d o
pode r insti t ucio na l no século X IX . Por meio dessa s discip lina s o suje ito, cm
ce r ro sentido, ro rn o u-se uisíuel. Meu interes se é ex aminar co m o o ind ivíduo,
na cond ição de obse rvador, tornou -se o bj ero de in vestigaçiio e loc11se.lo co -
nh ccimenro qu e tem início nas p rimei ra s décad ns do séc ul o XIX, e co m o o
esta tuto do s ujeito observado r fo i tran sformado. Como já indi que i, a visão
subjeti va foi um o hjcro-chave de esrudo nas ciênci as ex perime nta is da época,
um a visão q ue havia sido rir.id a da s relaçõe s inc o rp círeas da câmara escura

IS Jl, jJ, p. ,05.


1'1 lhiJ . p. 22-1-225.
!0 P:1ra Ct ·<ir~..-, C,111g11 1lhe111,pro..-..-\~o, til' nor111.111z:1ç.io .:0111 t1dt•111to m ,t mod c rn1i ,1ç:io n o ~t\: 111 0
X IX . ·· ;\~,i m 1:om o a refor m:t pc·d .tg<Ígi.:.t. ,1 rdorm.1 ho,p11al.1r t"' I""~'·':, ""~ên.:1.1 J..-r.i.:11>11:1 111:1-
ç.io que t:imhc m , nrgc 11:1polít it::t hem t:omo na cco no m i.1. ,oh o .:ic1ro Ja me.:.11 1i?.1ç.io 1111.lu,tri.11
n.1'.:cnrt·. e (Jlltº lin.1l111cnllº n·, ult.t na quilo q ue d\' , d c c n 1.io \'Clll ~.:mio d 1:11n .1do d..- norn1.1t11;1çãn. ··
Tlie N11m1,rl,11ultlJ<•f',11/mlt,g,,·.,I. tr.1d. Camlrn F.1w.:c11{No1.1 York. 1989) , p. 217-238 (t'd iç,i n
hr.1siil·1r:t: O 1111 Jm, 1l ,. 11Ji.1111/,igm,. hircn~c l hmcr"t.iri.1, 2006 ). ( .111i: 111lhcm .1firn1:1 qut· o ver bo
··11nrm.m1..1r" fo1 usado pda p rimei ra vo t•nt 18 H .

24 Jonath a n Crary
e realocada no corpo humano . Trata-s e de um deslocamento sinalizado pe la
passagem da ópt ica geométrica dos séculos XVII e XVIIlà óptica fisiológica
que aominou os debates científicos e filosóficos sobre a visão no sécu lo XIX.
Com isso, acumulou-se co nh ecimento sobre o papel constitutivo do co rpo na
apreensão do mundo visível, e rapidame nte ficou cla ro que a eficiência e a ra-
cionalização cm muitas áreas da atividade human a dependiam da informação
sobre as capacidades do o lho humano. Um resultado da nova óptica fisiológi-
ca foi e~por as idiossincrasias do olho "normal". As pós-imagens retinianas,
a visão periférica e binocular e os limiares da atenção foram estudados, tendo
em vista determinar normas e parâme tr os quantificáveis. A preocupação gene-
ralizada com os defeiros da visão humana defin iu mais precisamente um con-
torno do norm a l e gerou nov as tecnolo gias para impor uma visão normativa
ao observador .
Diversos aparelhos ópticos foram inventados mais tarde, no decorrer des-
sa pesq uisa, e se tornaram elementos com uns na cultur a visual de massas do o
sécu lo XIX. O fenacisroscópio, uma das muitas máquinas inventada s par a a
simulação ilusória do movimento, foi produzido em meio ao estudo empíri co
das pós-imagens na retina, enquanto a ester eosco pia, que se tornou a forma
dominante de consumo das imagens fotog ráficas durante mais de meio século, V
foi dese nvolv ida pe la pr imeira vez no co nt exto do esforço de quantificar e
e..
formalizar a operação fisiológica da visão binocular. O mais importante é que
esses componentes centrais do "realis mo" caracte rístico de grande parte do
século XIX P_!ecederam a invenção da forografia e de forma alguma requere-
ram procedimentos forográficos ou mesmo o desenvolvimento de técnicas de
produção em série. Eles dependeram inextricavelmente de um novo ordena -
mento do co nh ecime nto sobre o co rpo e da relação co nstitu tiva desse saber
com o poder social. Tais dispositivos resultam de uma co mpl exa reconstrução
do indivíduo, como observador, cm algo calcu lável e padronizável, e da visão
humana em a lgo mensurável e, portanto, incercambiável. 21 A padro nização
das imagens visuais no sécu lo XlX não deve ser vista simplesmente como parte

21 A medição assume um papel fundamenta l em umn vasta gama da s ciê ncias físicas entre 1800 e
1850, sendo 1840 a darn-chave, segundo Thomas S. Kuhn ern ''The Function of Measurement in
Modem Physical Scicnce", em The Esse111inlTe11sio11: Selected Studics in Scie11ti(icTraditio11and
Chm1ge (Chicago, 1979), p. 219-220 (cdiç:io brasileira: A tensão essencial, Unesp, 20 1 1). Kuhn é
corrohorado por lan Hacking: -Ap ós cerca de 1800, há uma avalanche de números, mais notada-
mencc nas ciê ncias sociais . ( ... ) Ta lvez um momento decisivo tenha sido sina lizado em 1832 , ano
cm que Charles Babbage, inventor do compmador digit:tl, publicou seu breve panfleto exortando
a pub licação de tabela s de wdos os números constantes con hecidos nas ciências e nas artes."
Hacking, Representing m,d /11terve11ing:fotrod11 ctory Topics in the Phi/osophy of Natural Science
(Cambr idge, 1983), p. 234-235.

Técnicas do observador 25
das nova s formas de re[)rodutibilidad e técnica, mas em relação a um pro cesso
m ais amplo de normatização e sujeição do observador. Se há uma revolução
na natureza e na função do signo no sécu lo X IX, ela não acontec e independen -
temente da reconstrução do suje ito. 22
Os leitores de Vigiar e fmnir registra m com frequência a afirmação categó-
rica de Foucault: "Nossa sociedade não é do espetác ulo, mas da vigilância.( ... )
Não estamos nem no anfiteatro nem no palco , mas na máquina panóptica." 21
Embora essa obs ervação ocorra em meio a uma comparação ent re arranjos
de pode r na Antiguidade e na mod ern idade, o uso que Foucault faz do termo
"espetáculo" está claramente relacion ado às polêmica s da França pós-1968 .
Qua ndo ele escre veu o livro , no início da déca d a de 1970, "espetáculo" era
uma alusão óbvia às a nálise'S do capitalismo co nt emp o râneo feitas por Guy
Debord e o utro s.24 Pode-se muito bem imagin a r o desprezo de Foucault - que
escreveu uma da s maiores análises sob re mod erni dad e e poder - por qualqu er
uso fácil o u superfi cia l do "espetáculo" como exp licação de como as massas
são "co ntroladas " o u "enganadas" pelas imagens midi át icas. 25
No entanto, a opos ição qu e Fouc au lt faz entr e vigilânc ia e espe táculo pa-
rece ignor a r como os efeitos desses dois regimes de poder podem co incid ir.
Usa ndo o panóprico de Bencham como objeto teórico fundam ent a l, Foucault
ressalta incessa nt ement e as maneir as pelas quais os sujeito s humanos se tor -
nam objetos de observação, sob a forma do co ntrole institu cion al ou do es-
tudo científico e comportamental. Cont udo , ele neglig encia os novos modos
pelos quai s a própria visão se converte em um tipo de disciplina ou forma de
trabalho. Os aparelhos ópticos do século XlX envolv eram, não menos que o
panóptico , ordenamentos dos co rpo s no espaço, regula ções d as ativ idad es e o

?? ,\ noção de Baudrillar d de uma tro ca dos signo s fixos das sociedades feud ais e ar isrocrá cicas por um
regime simhólico imen.:ambiável de modernidade encontra uma transformação recíproca artic:ul.1da
por Foucaulr cm termo s do indivíduo: .. O mum cmo em que passamos dos mecanismos histôrico -
-riruais de for mação da individu a lidade a mcc:anismos cicn rífico ·di scip linarcs, c m que o norma I
mmou o lugar do ,1nccs1ral, e a medida do lugnr o d o status. sub st iwindo assim a indiv idua lid::1de
do homem memorável pcl::tdo homem calculável, esse 111umc1110 em que ::1sciências do homem se
tornaram possíveis é aquele em que foram posrns cm funcionamento uma nova tecnologia do poder
e uma nova :111aromi:1po lítica do co rpo.•· Discipli11ea11dl'1111ish,
p. J 93.
21 Fouca ult, Discipli11e mui 1'1111is/
1, p. 2 17.
24 Guy Debord, Tbe SoCtety o( tbe S11ect11cle,1rad. Donald N1cholson-Smi1h (Nova York, 1990) (edi -
ção brasileirn: A sociedadl' do espetáculo, Co mrapon10, 1997) . Publicado pela primeira vct na
Fra nça em 1967 .
25 Sobre o lugar da visão no pensamen to fouc:iultiano, ver G illcs Deleuzc, l'oucault. p. 46-69 (edição
hrasileira: Foucault, Brasiliense, 1988). Ver tamhém John R::1jchm:in, ·•Foucault'~ Art of Scc111g".
Octo!Jer44 (~pring 1988), p. 89- 117.

26 Jonathan Crary
uso dos corpos individuais, que codificaram e norm atizaram o observador no
interior de sistemas rigidamente deQnidos em termos de 5.on_s~mo visual. Tra -
ta-se de técnicas para administrar a atenção, para impor uma homogeneidade
perceptiva com proced imentos que fixaram e isolaram o observador usando
"partição e celularidade (... ) nas quais o indivíduo é reduzido como força po-
lítica" . A organização da cultu~a __de massas ~ão se dirigiu para alguma outra
área não essencial ou superestrutura ! da prát ica social; ela estava plenamente
inserida nas mesmas transformações que Foucault descreve.
Não estou suger indo, porém, que a "sociedade do espetác ulo " emerge re-
pentinamente, ju nto com os desenvolvimentos que analiso aqu i. O "espetácu-
lo", conforme o uso que Debord faz do termo, provavelmente não roma forma
de maneira efetiva até meados do sécu lo XX. 26 Neste livro, apresento algumas
observações acerca de sua pré -h istória, acerca dos primeiros antecedentes do
espetácu lo. Debo rd, em uma passagem bastante conhecida, apresenta uma de
suas principais ca racterísticas.

O espetáculo, como tend ência a faze r ver (por diferentes med iações espe-
cializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve -se da visão
como o sentido privilegiado da pessoa humana - o que em outras épocas
fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito à mistificação, corres-
ponde à abstração genera lizada da sociedade atual.27

Com isso, quando descrevo uma modernização e uma reavaliação da visão,


indico como o sent ido do tato havia sido parte integrante das teoria s clássicas da
visão nos séculos XVll e XVlII. A dissociação subsequente do tato em rela ção à
visão ocorre no inte rior de uma ampla "separação dos sent idos" e uma reorga-
nização indu strial do corpo no século XIX. A perda do taro como componente
conceituai da visão significou deslocar o olho da red e de referenciais encarnados
na tatilidade e na sua relação subjet iva com o espaço percebido. Essa autonomi-
zação da visão, que ocorreu em muitos domín,os diferentes, foi uma condição
histórica para reconst ruir um observador sob medi.da para as tarefas do consu-
1:10 "espetacular" . Não só-o isÕlamenro empír ico da visão permitiu qualificá-la
e homog ene izá-la, mas também possib ilitou que os novos objetos da visão (seja

26 Seguindo um breve co ment:ír io de Debord, no meu "Specrac le, Arrention, Counrer-Memory",


October 50 (l'al l 1989), p. 97 -107 ("Espetác ulo, atenção, conrramcmó ria" , Arte & Ensaios, nº 23,
2012, p. 193-205), d iscu ti a razão de se considerar qu e o início da ·'sociedade do espetácu lo" ocorreu
no final da década de 1920, co ncomit anrememe com as origens tecnológicas e inst irucionais da
televisão, o início do som sincronizado nos filmes, o uso de técnicas de mídia de massa pelo Partido
N:izisrn na Alemanha, o aumento da urbanização e o fracasso político do surrea lismo na !'rança.
11 Debord, The Society o( the Spectacle.

Técn icas do observador 27


mercadorias, fotografias ou o ato da percepção propri a mente dito) assumissem
uma identidade confusa e abstra ta , dissociad a de qual quer relaç ão com a pos i-
ção do obse rvad or em um ca mpo cognitivamente unifi cado . Nesse contexto, o
estereo scó pio é um luga r cu ltural da maior importân cia, em que se ev idencia de
maneir a singular essa ruptur a ent re o que é palpável e o que é visível.
Fou ca uJt descreveu algumas das co ndiç ões ep istemológicas e institucionais
do obse rvador no século XIX, enquanto outros retrataram a forma e a den-
sidade reais do campo no qua l a percepç ão so freu as transformações. Talvez
mais do que rodo s, Walter Benjamin map eo u a tex tu ra heterogênea dos eventos
e objeto s que delinea ram o obse rvado r naqu ele séc ulo. N os div ersos fragmen-
tos de seus escrito s, deparamo -no s co m um obse rvado r ambulante, formado
por um a conve rgência . de novos espaços urb anos, novas tecnologias e novas
funções econômicas e simb ólicas da s imagen s e dos pr od uto s - formas de ilu-
minação artificial , novos usos de espelhos, arq uitetur a de vidro e aço, ferrovias,
museus, jardins, fotografia, moda , multidõ es. ~ara Benjamin, a pe rcepção era
nitidam ente temporal e cinética; ele escla rece co mo a modernidad e subverte até
mesmo a possibilidade de uma perc epção conte mplati va. Jamais há acesso puro
a um objeto em sua unicid ade; a visão é sempre múltipl a, co ntí gua e sobreposta
aos outros objeto s, desejo s e veto res. Mesmo o frio espaço do mus eu é incapaz
de tran scender um mundo em que tud o está em circul ação.
Um rema não foi anali sa do por Benjamin: a pintura do sécu lo XIX, que
não constitui parte significa tiva do ca mpo d o qual ele fornece um ric o inven-
tário. Essa omissão impli ca muita s coisas. Ent re elas, indi ca que, para ele,
a pintur a não era um elemento fu11damental na reform ula ção da percepção
no sécu lo XIX. 28 O observador de pintur as nesse sécu lo semp re era também
um observa dor que simultan ea ment e consumia um a va riedade c rescente de
ex peri ências ópti cas e senso riais. Em o utra s pa lavras, as pinturas eram produ-
zidas e ass umiam um significado não em a lgum isola mento esté tico , de resto
impossível, ou em um a tradi ção contínua de cód igos pictóricos, mas como um
dos muito s elementos consumíveis e efêmer os em um caos cada vez maior de
imagen s, mercad o rias e estímu los.
Um do s pouco s artistas visuais qu e Benjamin disc ute é Charles Meryon, me-
diado pela sensibilidade de Baudelaire .29 M eryo n é impo rtant e não pelo con-

lS Ver, por exemplo, Bcnjamin, Re{lections, trad. Edmund Jephcon (Nova York, 1978), p. 151. '"Com
o alcance crescenre dos sistema s de co mun icação, red uz-se a importância da pintura na divulgação
da inforrn :iç:io."
29 Walter Benjamin , Cl,ar les Ba11delaire : A Lync />oetin tl,c Era o( Higl, Ca/Jitalism, tr:id. Harry Zohn
(Londres, 1973), p. 86-89 (edição brasileira: Obras escoll,idas Ili. Charles Baudelaire: 11111 línw n o
a uge do capitalis1110,Brasiliense, 2004 ).

28 Jona than Crary


teúdo formal ou iconográfico de sua o bra, mas como indicação de uma sen-
sorialidade danificada que reage aos prime iros choq ues da modernização . As
perturbadoras imagens de Meryon da inércia mineral de uma Paris medieval
assumem o valor de "pós-imagens" de lugares e espaços destruídos no início da
reforma urbana do Segundo Império. E as nervosas incisões de suas ilustrações
gravadas em pranchas em água -forte são sintomas de uma atrofia do trabalho
artesanal diant e da reprodução industrial em série.· O exe-mplo de Meryon rei-
tera qu e, n·o século XIX, a visão era inseparável da fugacidade - ou seja, de no -
vas temporalidad es, velocidades, expe riênc ias de fluxo e obso lescência, de uma
nova densidade e sedimentação da estrutur a da memória visual. fara Benjamin,
a percepção no contexto da modernidade nunca revelava o mundo como pre -
sença. O observador era identificado como flâneur, consumidor móvel d e uma
sucessão incessant e de imagens ilusórias se.melhantes a mercadorias. 30 Porém,
o dinamismo destruti vo da modernização rambém condicionou uma visão que
resistiria aos seus efeitos, uma percepção que reativava o presente, capturada
em suas próprias pó s-imagens históricas. No sécu lo XlX, ironic amente, a per-
cepção "padronizada e desnatura lizada" das massas, para a qual Benjamin ten-
ta va conseguir alternativas radicais, devia a maior parte de sua força ao estudo
empírico e à quantificação das pós-imagens retinianas e de sua tempora lidad e
específica, como indico nos capítu los 3 e 4 .
A pintura do século XIX também foi menosprezada, por diferentes mo -
tivos, pelos fundadores da história da arte mod erna, uma ou duas gerações
ª~
antes de Benjamin. É comum esquecer que história da arte, como disciplina
acad êmica, tem orig em nesse mesmo ambiente do século XIX . Três desenvol-
vim entos dess e século são inseparáveis da institucionalização da prática his -
tórica da arte: 1) os modos hisrori cistas e evolucionistas de pensamento, que
permitiram que as formas fossem ordenadas e classificadas segundo um desen -
volvimento temporal; 2) as transformações sociopolíticas que envolveram a
cri ação do tempo de lazer e a emancipação cultura~ tle setores mais amplos das
populações urbanas , que tiveram como um dos resultados o museu público de
ar te; e 3) novo s modos de reprodução em sér ie da imagem, que permitiram
tanto a circulação global como a justaposição de cópias altame nte confiávei s
de diferentes obra s. Cont ud o, se a modernidade do sécu lo X IX constitui a
matriz da história da arte, as obras de arte dessa mesma modernidade foram
excluídas dos esqu emas de exp licativos e classificatórios dominantes dessa
história, mesmo no início do sécu lo XX .

3U Ver Susan Buck -Mor ss, "T he Fla neur, lhe Sandwichman and the Whor c : Thc Politi cs o f Lo ircri ng",
New Gcrman Critique 39 (Fali 1986), p. 99-140.

Técnicas do o bserva do r 29
Por exemplo, duas trad ições import antes, uma que tem origem em Morelli
e outra na Escola de Warburg, foram fundamentalmente incapaz es, ou pelo
menos ret icentes, ele incluir a arte cio século XIX em suas investigações . Isso
apesar da relação d ialética dessas práticas com o momento histórico em que
elas próprias surgiram : com toda sua erudi ção, o interesse de Morelli pela
autoria e a originalidade ocorre quando nova s tecnolo gias e formas de troca
aba lam as noções de autoria, originalidade e "feito à mão"; e a busca, por
parte do s estudiosos da Escola de Warburg, d e formas simbó licas que expres-
sassem as bases esp irituai s de um a cultur a unificada coincide com um a ansie -
dad e cultural co letiva diante ela ausência o u impossibi lidade de tais formas no
presente. Esses modo s sobreposros de h istó ria da a rte privilegiaram os objetos
da...ª-!_~fig~r?t iv?_da Anfiguidade e do Renascimento.
Aqui nos interessa destacar o reconhecim ento profundo , subliminar ou
não, pelos prime iros histori ador es da arte, de que há uma descont in uidade
na arte do século XIX em relação à ar te do s sécu los anteriores. É claro que a
descontinuidade que eles perceb era m não é a conh ecida ruptura indicada por
Man et e pelo impr essionismo; a ntes, trata- se de tentar compreende r por quais
mot ivos pintor es tão d iversos quanto Ingres, Overbeck , Co urbet, Delaroche,
Meissonier, von Kob ell, Mi llais, Gleyre, Friedric h, Cabane l, Gerôme e Dela-
croix (para cita r alguns) encarnaram , junto s, um esti lo mimét ico e figurativo
de representa ção aparentemente semelhante àque le que o havia precedido,
mas qu e se diferenciava inquiet ant ement e dele . O silêncio, a in~ç~ ou
mesmo o desprezo do historiad or da arte pelo ecletism o e PJ'!l~tormJ!~ "de -
gra'Cíadas" insinuam que esse período co_nstituiu um a lingt1age_m visual radi-
calmente diferente, 'l!:!..en~ -ser subm eti da aos mesmos métod Qs_de
possí~azê -la falar das mesmas ma neiras, e el; não poderia
segÜer ser interpretada ..11
No encanto , a obra da s gera - lli.ntes de historiadores da arte o!?_scu-
recêu aquela 1mpressao inicial de ruptur.a OJLdecliferença.0 -século XTX foi
sendo gi·adua fme nte a~i l~ rnainstrearn da disciplina e submetido a
uma investiga ção aparentemente fria e objetiva, semelhante ao queiá havia

------:---___ -
----
ocorrido ant es com a arte da Anti g uid ade tard ia~
-
ã -aom~r aquela
est ranh eza que havia pro võeã"do o recuoêfos primeiro s estud iosos, os h is-
toriadores aplicaram, à arte do século XIX, mé todos tomados do estudo da

JI A hos til idade à maior parte da ar te contemporânea em Burckha rdr, Hi ldebrand, W<ilffling , Ricgl e
Ficdler é recontada cm Michael Podro , The Cl'itical Historial/S <>(Art (New H:wen, 1982). p . 66 -70 .

30 Jonathan Crary
arre mais antiga .32 Inicialmente, so bretudo as categorias formais da pintura
renascenrista foram transferidas para os a rtistas do séc ulo X IX, mas, no iní -
cio da década de 1940, noções co mo co nt eú do de cla sse e im ag é tica popu lar
passaram a subst itui r a iconografia tradi ciona l. Po rém, ao in se rir a pintura
do século X IX em uma história da arte cont ínua e em um aparato exegético
discursivo unificado, a lgun s traços de sua difer ença esse nci a l se perd er am.
Para recupe r ar essa diferença, d eve-se r eco nh ecer co mo a criaç ãõ-:-Õco n s~-
mo e a eficácia dessa arte dependem de um observado r e de uma orga ni zação
do visível que em grande med~ ced e o <!Õmínio trad Têjon a lm enr e exa mi -
nado _pela história da arte e s uas conv enções . Apó s 1830, o iso lamento da 11
p;;;~ra con-:;_ornegor ia viável e aucossufic ient e de escudo coro a-se altam e nte l
·problemático, para dizer o- mínimo . A c irculação e a rece pção d e todas as .P

imagens visua is estão taÕ int imament e int er- relaci o nadas a té a metad e do
século, que qualquer meio ou for ma de representação visua l individual de i-
xou de rer uma identidade autô noma significa tiva. Os s ignifi cados e e fe itos
de qualquer imagem estão sem pr e muico co ntíguo s a esse ambi ent e sensorial

-
p lural e sob reca rr egado, no q ua l o ob servãâ or hab ita. Benj amin, por e~ 1-
pio, via o muse u de arte em meados d o séc ul o X IX co-mo um dos- muico s
es paços de~~~. qu;;- o ~-bserva dor experimentava e atrav essava de manei -
ra não difere nte de como fazia nas pa ssage ns, jardin s botâni cos, mu se us de
cera, cassinos, estações de trem e loja s de depart ame nco s .33
Nietzsche descreve a posição do indivíduo nes se ambiente em term os de
uma crise de ass imil ação :

A sensibi lidade é imens amente mais irri táv el; (... ) a abundância das im-
pressões díspares é maior do que em qualq uer outra época; o cosmopoli -
tismo das co mid as, das literaruras, do s jornais, das formas, dos gostos e
mesmo <las pa isagens . O tempo des se influxo é um prestíssinw; as impr es-
sões desfazem -se; resistem instint ivamente a ab so rver a lgo, a se impr es-
sionar profundamente, a "diger ir" algo; daí so br evém o eitfr aquecimento
da faculda de de diges tã o . Prod uz-se uma es pécie de adapta ção a essa en -

·~ Uma <las primeiras 1c11wrivas influ entes d.: impor a mcro do log ia e o vocabul á rio da a ntiga h iscór ia
da am· ao m:uerial do século XIX foi <.lcWa lter Fricdland er, cm D(lvid to Delacroix, rrad. Robert
Goldwaccr (Cambridge, Massachuscus, 1952); edição alemii original de 1930 (ediçiio bra~ilcira:
De Da1•1,1 Delncroix, Cos:ic N:iify, 2001 ). Friedlacnclcr descreve a pintura france sa em rcrmo s de
alternância cnrre fase, clá~~icas e barrocas .
1, Ver Walcer Benjam in, Das Passagc11- Wlcrk, v. 1 (Frankfurr , 1982), p. 5 10-523 (ed ição bra sileira:
Pnssagc11s,UFMG, 2006).

Tecn ,cas do observ ado r 31


xur rada de impressões; o homem esquece o mod o de ag ir; ele só reage aos
esrímu los exteriores. 14

Assim como Benjamin , N ierzsche subestima aqui qualquer pos sibilid ade de
umes'péccado r concemplanvo e prop oe uma co nfus ão recreativa e anriestética
êo mo característica c"enrrãl da modCrl)~ ãdê, qÜe -depois Georg Simmel e ou-
tro s ex aminariam em dera lhe. Quando Nietzsche usa palavras quase científicas
como "fluxo", "adaptação", "reagir" e " irritabilidade ", ele tr ata de um mun-
do que já se reconfigurou cm novos co mponente s percepti vos . A modernid ade,
,~esse caso , coincide com o co lapso do s modelo s clássicos de visao ·é S!u e_spaço
estável de repre senta ções . Em v~ ação torn a-se, cad; vez mais, /
~ma stão de sensações e estímulos eq'uiva lenres, despr ovufr>s-de refe rência :; e.& .....
espac ial. O qu e tem início na s década ; de -1820 e 1830 é um reposic ionamento n-..o ::r~
do obse rvad or, fora da s rela~ões fixas de inrerior /exterior que era m pressupos- e.. .:-
tas pela câma ra escura e que vai cm direção a um território não demarc ado, no t...,,..r-..c-
qual a distin ção entr e sensação interna e sinais exte rno s torn a-se definitivamen- e. ~) ~-
te opaca. Se alguma vez houve um a "liberação" da visão no sécu lo X IX, é nes se ._-- ?
momento que ela ocorre pela primeira vez. Na ausência do modelo jurídico da
câ mara esc ura , há um a emancipação da visão, um desmo ron amento das estru -
turas ríg idas qu e a formaram e co nstituíram seus obj eros .
Porém, quas e simultan ea mente a essa dissolu ção final de uma fundamenta-
ção tra nsce nd ent e para a visão , c~ge uma pJur ~ de ~:ios p~ reco-
dificar a atividade do Qlho, ordená- la, elevar sua produt ividade e impedir sua
~ração . Com isso, os imperati vos da modernizaç ão cae_italjsra, ao mesmo
tempo que demoliram ~@~gcr;~a -m té:.nicas para im-
por uma atenção visual mai s acurada, rac io nali zar a sensação e administrar a
perc é°Qç-ªº· Trara- s;a~ iplinares que so licita ram um a concepção
de expe riência visual como algo instrument a l, mod ificáv el e abstrato, e que
jamai s permitiram que um mund o rea l adquirisse so lidez ou permanência .
Uma vez que a visão pa ssou a se localizar no corp o empírico e imediato do
o.bse rvador, ela pa sso u a -perre~~;r --;.~ -tempo , aoJiuxo , à morte. As gara ntia s

------
---
d;;ucoridade, identidade e u~iver s~lida-de fornecjdas pela câmãra esc u1;per-
---... - - -
tencem a outra epoc a.

14Fricdric:h Nietzsche. The Wr// tu Puwer. 1raJ. Walter Kaufmann e R. J. Holl,ngdalc (Nova York.
1967). p. 47 (cdiç ;io hrasilc,rn: A ucm1<1de
de pode,; Contrapomo . 2008 ).

32 Jonathan Crary

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