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A ESPIRITUALIDADE DOS VOTOS


(Segundo o Prof. Arnoldo Pigna)

Os Conselhos Evangélicos introduzem no caminho da santidade todos aqueles que são a ela
chamados. O Concílio Vaticano II fala do chamado universal à santidade (Cap. 42 da Lumen
Gentium). Portanto, todos são chamados a viver conforme o espírito daqueles conselhos.

São Tomás nos recorda que a lei fundamental do cristão é a lei do espírito e do amor. Há um
único mandamento: Amar com todo... o que significa também a todos. A observância dos
mandamentos representa o começo do caminho, mas para continuá-lo até o fim é necessário deixar-
se invadir pela caridade. O amor vai além do cumprimento dos “deveres”. Quanto mais o amor
cresce, mais cresce a capacidade de amar.

Aqueles que são chamados a viver no estado de virgindade, fazem de Cristo o único objeto do
seu amor esponsal.

Somente alguns são chamados a viver num estado especial de pobreza, mas não há ninguém
que não esteja também obrigado a evitar a acumulação de propriedades e a nutrir a confiança na
Divina Providência e partilhar dos seus bens com os irmãos necessitados.

E há somente alguns chamados a um estado social de obediência e dependência, mas


ninguém está dispensado de uma total docilidade para com Deus e a Santa Igreja, no contexto da sua
própria vocação específica.

Sem humildade ninguém pode avançar na via espiritual. Assim, os conselhos evangélicos são
uma orientação fundamental do Evangelho que leva à perfeita caridade.

Como o próprio Cristo alcançou a total libertação da morte somente através da própria morte,
assim também é para cada cristão. A renúncia de si é a condição para segui-Lo a fim de se tornar
como Ele. É uma participação no Seu mistério pascal.

A Igreja recebeu, como um dom e uma missão, o dever de continuar a tornar presente na
história o mistério da vida de Cristo e expressa isto nestas três palavras:

Pobreza, castidade e obediência.

A Igreja inteira, como Maria, deve ser pobre, casta e obediente. Contudo, a santidade não
consiste nos conselhos, mas no amor, e os conselhos são apenas a senda pessoal para o amor e
conduzem a uma identificação com Cristo. Mas Cristo não é somente a meta, mas também o
caminho para todos.

No Novo Testamento nós temos dois caminhos: o seguimento ou “discipulado” (“sequela”,


em italiano) e a imitação. O seguimento diz respeito à forma de vida, a imitação consiste em assumir
o mesmo modo de pensar que o Mestre. Esta última é indispensável para todo fiel, enquanto que o
seguimento depende do estado de vida ao qual alguém é chamado para viver a sua união interior com
Cristo.
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O discipulado especial consiste em reproduzir a mesma forma de vida que Cristo abraçou
quando Ele veio ao mundo a fim de cumprir a vontade de Seu Pai e a qual Ele propôs aos Seus
discípulos. Esta radical mudança exterior de vida deve tornar-se um sinal profético. A conformação
exterior à Sua forma de vida deve expressar uma total união interior com Ele daqueles que O seguem
mais de perto.

O CONTEÚDO TEOLÓGICO DOS CONSELHOS EVANGÉLICOS

 Os Conselhos Evangélicos derivam do mistério de Cristo

1. Os Conselhos Evangélicos como renúncia

A apresentação dos C.E. como renúncia é um ponto de vista tradicional. Ele sublinha a visão
ascética que os considera como remédio para as tendências de aspiração pelo poder, luxúria e cobiça
(a tríplice concupiscência) na medida em que afasta as “matérias” que são objeto dessas tendências.

Mas o sacrifício de bens apreciáveis (cf LG 46b) feito por amor a Deus dá à renúncia um
valor maior do que o dos bens sacrificados e torna a renúncia positiva.

O sacrifício não é a meta, mas o meio para alcançar o perfeito amor. A escolha da vida
religiosa não é uma escolha negativa, e não é feita em prol da própria perfeição pessoal, mas em vista
de uma configuração com Cristo.

2. Os Conselhos Evangélicos como um meio de adquirir valores

O que atrai não é a renúncia, mas os valores (a liberdade interior diante dos bens temporais, o
autodomínio, etc.). A plenitude destes valores que nós alcançamos ao seguir a Cristo radicalmente
não é o propósito, mas a consequência do discipulado. Seria uma concepção estranha da vida
religiosa entendê-la como um meio para a autorrealização, isto omitiria a dimensão culto que
constitui a absoluta primazia de Deus. A verdadeira vida religiosa é um caminho de total imolação de
si.

3. Os Conselhos Evangélicos são uma escolha para se incorporar a Cristo

O Concílio Vaticano confirmou certamente que os conselhos não pretendem condenar os bens
aos quais eles chamam a renunciar, mas que esses bens são “altamente apreciáveis” (LG 46b). O
único motivo para renunciar a eles deve ser o desejo de assimilar-se a Cristo e unir-se a Deus pela
profissão dos Conselhos Evangélicos. A pobreza e a obediência são apresentadas explicitamente
como uma participação no autoesvaziamento de Cristo. O mistério de Cristo é essencialmente um
autoesvaziamento, “kénosis”, uma opção positiva pela pobreza, pela fraqueza, pela incompreensão,
pela perseguição e pela morte. Na Carta aos Filipenses lemos: “Sendo Ele de condição divina, não se
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prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de
escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem,
humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). Neste texto
há dois ensinamentos fundamentais: O primeiro é que a encarnação é um autoesvaziamento e uma
aniquilação. A salvação e a libertação do homem não pretendeu restaurar certos valores, mas
restaurar uma nova relação com Deus, em Cristo.

O segundo é que Jesus, como homem, assumiu a mais baixa condição, que é a de um escravo
e um fracassado. Ele pôde escolher entre o Messias-Rei e o Messias-servo, entre a alegria e a cruz, e
Ele escolheu o caminho da humilhação que O levou ao total “fracasso”. Ele se esvaziou do amor, a
fim de nos amar. Entregar a vida é a mais alta revelação de Deus como Amor.

Estar com Ele significa para nós ser como Ele. Nós escolhemos a vida dos conselhos a fim de
nos esvaziar como Cristo e. assim, permitir que o Amor se encarne em nós e se revele de novo. Mas
isto somente é possível por meio de um milagre do próprio Amor Eterno. Por esta razão, os
conselhos são um dom.

4. Os Conselhos Evangélicos como um dom

Os C. E. são, antes de tudo, um dom que nós recebemos. O Concílio Vaticano II diz
explicitamente que eles são um dom para a Igreja (LG 43a). A iniciativa vem de Deus, que torna este
dom uma realidade no homem através da consagração. É o Espírito quem “forma e plasma o espírito
dos que são chamados, configurando-os a Cristo casto, pobre e obediente, e impelindo-os a
assumirem a sua missão.” (Vita Consecrata 19).

Um fruto da iniciativa do Pai (cf. VC 17) que nos insere na intimidade com Cristo e nos
coloca nos passos d’Ele (cf. VC 18), e por meio da obra transformadora do Espírito Santo (cf. VC
19), os conselhos são claramente um dom da Trindade inteira (cf. VC 20). Eles nos fazem
participantes da casta, pobre e obediente vida de Cristo, que é ela mesma um reflexo da vida
Trinitária. (cf. VC 21)

Desde modo, os C. E. estão entre os carismas e dons da Graça. Eles não são primeiramente
um dom que nós oferecemos a Deus, mas muito mais um dom que Ele dá a nós. O mais importante
aspecto dos conselhos não é a renúncia, não é busca dos valores, mas a oferta de si, a fim de colocar-
se à disposição e assumir uma íntima e singular participação na verdadeira vida do Redentor. Assim,
os conselhos são um dom de amor, recebido e correspondido, que abraça a totalidade da nossa vida.

O VOTO DOS CONSELHOS

Os votos religiosos como uma resposta ao particular chamado e oferta de Cristo têm também
um aspecto sacrifical. Requerem a “dedicação total e exclusiva” (cf. VC 17b). A consequência é que
esta resposta não é possível sem dizer “não” a todo o resto.
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A total oferta a Deus das próprias faculdades da vontade, do desejo e do amor, inteiramente
esvaziadas de outros interesses e completamente disponíveis para o domínio de Deus, apontam para
a dimensão mística dos votos. A renúncia e o sacrifício dos bens que representam as preocupações
mais fundamentais do homem indicam o aspecto ascético dos votos.

Em vista disso, os votos religiosos não são somente uma “mortificação” a fim de purificar as
tendências desordenadas e suscitar os valores humanos genuínos. Eles requerem mais: o sacrifício de
bens legítimos e fundamentais que tocam as mais profundas inclinações da natureza humana. Deste
modo, os votos infligem uma autêntica morte, a qual constitui, depois do martírio, a mais radical
imersão na aniquilação de Cristo. A escolha de uma vida em pobreza, castidade e obediência é nada
mais do que a expressão da vontade de participar na atitude sacrifical de Cristo. A escolha da vida
religiosa inclui também a morte de uma parte legítima de si em nome da configuração mais plena
possível com Cristo crucificado, mas também com a antecipação da Sua ressurreição (dimensão
escatológica).

O estado dos conselhos é uma nova criação que nasce unicamente do mistério pascal de
Cristo. É uma permanente proclamação da vocação do homem que não pode encontrar-se a si mesmo
se não transcender-se, e ao mesmo tempo anuncia que esta transcendência só pode ser realizada –
depois da queda – por meio da morte.

O voto de castidade não é somente renúncia da “concupiscência da carne” e uma restauração


do total domínio da razão sobre ela, mas é também a renúncia ao direito natural do casamento; por
ele, sacrifica-se este elevado bem a Deus. Trata-se de uma renúncia ao encontro, à
complementariedade e à ajuda mútua através da parceria matrimonial, transcendendo em muito o
aspecto meramente corporal. A castidade religiosa não consiste na supressão dos instintos, mas
significa estar totalmente à disposição da Divina Caridade. Depois de aceitar a “morte” que está
incluída nos votos, a capacidade inteira do religioso de amar de um modo esponsal é colocada à total
disposição da vida sobrenatural, a fim de estar totalmente penetrado e preenchido por ela. Ele oferece
o seu próprio corpo a Deus como um sacrifício que, unido ao de Cristo, pode ser a origem da vida
não somente para alguém, mas para todos.

O voto de pobreza é não somente orientado para o controle da cobiça pelas posses e pela
acumulação de bens, o que é válido para qualquer cristão. O voto religioso da pobreza sacrifica a
Deus também o direito natural e legítimo de possuir propriedades e de usar os bens materiais de um
modo racional. Com o voto de pobreza nós não somente renunciamos a ter bens que possamos
considerar nossos, mas também supomos a obrigação de usá-los, positivamente, somente no que diz
respeito ao Reino de Deus. Isto não significa nada possuir, mas, positivamente, sentir-se apanhado e
conquistado pelo desejo de Deus e disposto despender-se totalmente para que o Seu Reino possa vir.

É este o desenvolvimento do interesse na nova vida que significa estar “ocupado com as
coisas do Pai”.

O voto de obediência não é somente o dever de buscar em tudo a vontade de Deus. Ele é
ainda a renúncia ao direito natural de fazer as nossas próprias escolhas e ter um programa de vida
próprio na Igreja e na sociedade. Diferente dos outros cristãos, o religioso não tem mais o direito de
decidir e fazer o que ele considera justo. Ele deve aceitar ser guiado pelas instruções da comunidade
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e dos superiores que representam para ele a vontade definitiva de Deus, mesmo transcendendo o seu
mais esclarecido entendimento. Com isso ele está, na sua livre vontade que o constitui como um ser
humano, “morto” no seu mais profundo ego.

Esta “morte” permite à vontade do religioso uma total e constante referência à vontade do
Pai, o que lhe possibilita ter a liberdade em plena medida. Trata-se de participar da liberdade de
Cristo, que pode ser satisfeita somente em vista dos interesses que concernem à obra do Pai. Mais do
que ser uma renúncia às escolhas pessoais, a obediência é a plena disponibilidade e capacidade de
fazer todas as escolhas de Deus. E esta é a ressurreição que surge da morte que a obediência causa.

Nós não podemos ser preenchidos com Cristo se nós não nos esvaziarmos. Se o nosso anseio
é pela mística união com Cristo, o meio para alcançar isto é sempre a morte de nós mesmos. Os
votos nos fazem participar mais profundamente na morte redentora de Cristo.

Esta plenitude não somente concerne à dimensão sobrenatural, mas à vida por completo. Em
Cristo, o homem pode também encontrar a sua plena autenticidade humana; se ele segue a Cristo, o
Homem perfeito, ele se torna “mais humano”.

Deste modo, os votos favorecem também um progressivo retorno do homem à sua integridade
original:

No Éden o homem possuía a completa virgindade como absoluta transparência, capaz de um


total e perfeito encontro do espírito; um encontro estendido ao corpo que o faz partilhar dessa
fecundidade espiritual. Depois da Queda, o corpo foi obscurecido e se tornou um “muro” a ser
superado para chegar a um encontro pessoal. O voto religioso da castidade, que dá absoluta
prioridade ao espírito, abre um caminho de retorno àquela ordem original.

No Éden os primeiros pais viveram em um estado de perfeita riqueza e, ao mesmo tempo, em


um estado de perfeita pobreza, recebendo tudo de Deus; depois da Queda eles foram condenados a
procurar e defender a sua propriedade privada. O voto de pobreza abre uma via eficaz para retornar
àquela ordem original.

No Éden o homem vivia a perfeita obediência em suprema liberdade. Ele era totalmente
inserido no movimento do Divino Amor pelo qual ele se deixava carregar. Quando o pecado o
colocou fora desta corrente de amor, ele teve que escolher entre aderir a ele ou recusá-lo, sendo
continuamente obrigado a fazer escolhas. O voto de obediência, com a renúncia das escolhas
pessoais, possibilita o deixar-se sempre guiar somente pela vontade de Deus e abre uma estrada
essencial de retorno à ordem original.

Assim, os votos se tornam o caminho mais direto para a plenitude de vida, não somente para
a vida sobrenatural, mas também para a vida autenticamente humana.
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A CASTIDADE CRISTÃ E A VIRGINDADE


Natureza da Castidade

Para os cristãos, a virtude da castidade é a disposição que nasce do amor espiritual de


caridade. Este amor é uma força interior que domina, coordena, unifica os dinamismos do homem, a
fim de colocá-los à disposição do verdadeiro Deus, onde quer que a concupiscência seja uma força
desintegradora.

O homem é um ser feito para a comunicação, e também para uma comunicação que nós
chamamos “esponsal”. Para a pessoa virgem essa relação esponsal é realizada com Cristo. Além
disso, segue que a escolha virginal não é acima de tudo uma renúncia ao casamento, mas uma oferta
e uma aceitação de um modo tão total que exclui um relacionamento similar com outra pessoa. O
corpo da pessoa virgem é tão totalmente dedicado a Cristo que ele se torna um lugar particular da
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Sua presença. É uma revelação particular da máxima aspiração do corpo, que alcançou o seu mais
alto clímax pela Encarnação: ser corpo de Deus, revelar o próprio Deus.

Cristo interpretou o Seu Corpo antes de tudo como um sinal e expressão do Seu grande amor,
um lugar onde o amor de Deus se tornou manifesto e foi comunicado a nós. Em segundo lugar, ele
considerou o seu corpo como uma matéria de oblação, de sacrifício (cf. Heb 10,5). Estes são os dois
grandes significados divinos e redentores que o Verbo deu ao Seu Corpo e que Ele quis estender à
Sua Igreja, o Corpo Místico. Também o nosso corpo é destinado a ser um sinal, uma expressão, uma
manifestação de amor; mas de um amor que, na nossa atual situação de pecado e redenção tem um
nome: sacrifício. Em Cristo nós somos uma oblação viva ao Pai.

A castidade da pessoa virgem expressa a vocação de ser um sinal de amor sacrifical. Por
causa disto, ela pode ser realmente chamada de “consagrada”. “Consagrado” significa ser oferecido
em sacrifício, consagrado antes de tudo porque foi tomado por Deus e tornado um lugar especial da
Sua presença e revelação.

O elemento decisivo da castidade religiosa é a consciência de consagração e pertencimento a


Cristo, o mais característico elemento dela é o sacrifício. Ser virgem, num sentido cristão, não
significa não ter dado o próprio corpo para ninguém, mas ser consagrado e totalmente tomado por
Cristo. A pessoa virgem se vê e entende como uma resposta que se dá ao Eterno Amor.

A virgindade não é uma conquista alcançada de uma só vez, mas um caminho progressivo de
identificação com Cristo. É um caminho de purificação do ser na sua integridade, que abraça a
existência inteira.

Mas falar sobre este particular amor de Deus não significa se esquecer do amor aos outros.
Pelo contrário, o amor virginal dá frutos também para o próximo, um amor que não considera os
outros como homens ou mulheres, mas na sua mais profunda natureza, como filhos de Deus, criados
à Sua imagem e semelhança e, portanto, nossos irmãos. O religioso reconhece neles, como o seu
mais central e sobrenatural valor, a sua filiação em Deus. Assim, a virgindade está criando
fraternidade. O matrimônio humano cria uma família humana, enquanto a virgindade cria uma
família divina.

A VIRGINDADE NO MISTÉRIO DE CRISTO E DA IGREJA

- A virgindade como a vocação do cristão

O Antigo Testamento é antes de tudo um sinal de expectativa e preparação, a qual encontra


na fecundidade física a sua melhor expressão. A virgindade é considerada uma condição temporária
cuja conclusão está no matrimônio.

Os profetas usaram a imagem do casamento para descrever a aliança de Deus com o Seu povo
e, assim, se aproximaram do “grande mistério” com o qual São Paulo descreveu a relação entre
Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 25-32). Antes da Encarnação havia somente imagens, símbolos; a união do
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Verbo com a humanidade ainda não havia sido consumada. No AT Deus se comportava como um
Pai, uma Mãe ou um Esposo, mas somente no NT é que foi compreendido que Ele realmente o é.

No NT as coisas são alteradas. A verdadeira vida vem de cima, como fruto do Espírito, e o
verdadeiro matrimônio não é aquele entre um homem e uma mulher, mas a união do Verbo com a
humanidade. O que antes era realidade se torna um sinal, e o que anteriormente fora uma imagem se
torna realidade. Assim, também a forma de amar como um “novo homem” é a forma virginal. Cristo,
Maria, a Igreja amam desta forma. Por este amor a Igreja deve lutar e neste amor ela deve ser
transfigurada. Agora o matrimônio é somente um tempo de transição, o qual será concluído na
virgindade. Ao fim, todos se amarão uns aos outros desta forma. A última vocação do cristão é a
virgindade e a fecundidade espiritual.

O exemplo de Cristo
A revelação alcança o seu clímax no Corpo de Cristo. No Seu Corpo habita a plenitude de
Deus, fazendo-O ser visto e encontrado; ele é o Corpo que carrega a salvação.

Sua concepção, nascimento e vida virginal constituem uma novidade absoluta. Esperado no
AT através de uma geração natural, o Messias vem através de uma geração virginal. Como Filho de
uma virgem, Ele é inteiramente Filho de Deus, e Maria é virgem porque ela é a Mãe de Deus. A
virgindade expressa o novo Reino, e ela é a nova criação.

Nós devemos aprender não somente por meio das palavras de Cristo, mas também através do
Seu exemplo; nós temos o dever de imitá-Lo até mais que o de obedecê-Lo.

Começando pela Encarnação na qual Cristo Se une à natureza humana, passando pela Cruz na
qual Ele se ofereceu de Corpo e Alma pela humanidade, até a Santa Eucaristia na qual Ele se entrega
de Corpo e Alma à Igreja, Jesus manifesta um verdadeiro amor esponsal. Ele revela que o verdadeiro
e mais alto matrimônio não é aquele que se contrai com uma criatura, mas aquele que se efetua com
Deus. Isto, é claro, num nível sobrenatural, espiritual e Divino. Mas justamente por esta união incluir
pessoa inteira por meio da imolação do corpo na união com Cristo, a mais alta fecundidade é
alcançada. E, do Coração traspassado de Cristo, a Igreja nasce e estabelece a definitiva aliança
esponsal entre Deus e o Seu povo.

A virgindade constitui no tempo o “reflexo do infinito amor que une as três Pessoas Divinas
no profundo mistério da Vida Trinitária” (cf. VC 21b). A Palavra se fez Carne a fim de poder
oferecer-se e morrer por amor: Ele nasceu para morrer de acordo com a ordem natural para dar a
verdadeira vida que vem do alto. Com a escolha da virgindade, Cristo quis indicar que Ele vem do
alto e que a nova vida que Ele traz não é nascida “da carne e do sangue”.

A Virgem Maria
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No Evangelho de São Lucas é narrado como Deus diretamente tomou a iniciativa da vida,
tanto no nascimento de João Batista e mais ainda no nascimento de Jesus. A virgindade de Maria está
vinculada acima de tudo à sua imaculada conceição, e através da plenitude da sua graça ela foi
inteiramente orientada para Deus. Deus a fez imaculada porque Ele quis que ela fosse a Mãe do Seu
Filho; sua virgindade foi em serviço da sua Divina Maternidade. Sua virgindade não foi um
obstáculo à sua maternidade, mas sua condição necessária. Maria não somente deu a sua própria
carne ao Verbo, mas antes deu-Lhe todo o seu coração e toda a sua alma. “Ela concebeu o Filho de
Deus primeiro na sua alma, e somente então com o seu corpo.” (cf. RM 13). A vida que nela surgiu
foi uma vida Divina, a qual não se identifica com a carne, mesmo quando encarnada. Assim, Maria é
a verdadeira modelo para todos aqueles que a seguem a fim de alcançar a fecundidade espiritual.

A Igreja Virgem

Como virgem e mãe, Maria é o modelo perfeito para a Igreja unida a Cristo como “virgem
casta” (II Cor 11,2) e, no entanto, mãe de inumeráveis filhos. Como Maria, a Igreja é humilde e
pobre porque ela recebeu tudo de Deus, ela ouve e aceita continuamente Sua Palavra, está disponível
para os Seus planos e está envolvida na obra redentora de gerar filhos de Deus. Ele é tão tanto a
esposa quanto o “Corpo de Cristo”, ela é virgem porque ela é esposa, e ela é esposa porque ela é
virgem. Sendo uma esposa ela necessariamente se torna uma mãe.

Todo cristão é chamado a tornar-se um lugar da encarnação de Deus. A dar o nosso corpo a
Deus, a ser Corpo de Deus, esta é a nossa vocação, e esta é uma vocação maternal. Uma maternidade
que tem a sua fonte na virgindade de coração e na virgindade física a sua mais absoluta proclamação
de transcendência. O cristão que, pelo batismo, é incorporado à Santa Igreja, é chamado a se tornar
como ela virgem e mãe. Esta é a vocação batismal. A vocação cristã é essencialmente uma vocação
esponsal.

Somente Maria alcançou sobre esta terra a plena realização da vocação da Igreja; ela é o seu
modelo e sua imagem perfeita. Neste sentido, a vocação cristã é ao mesmo tempo uma vocação
mariana.

O cristão virgem

Como a virgindade, a condição de esposa e a maternidade definem a Igreja, elas são também
a vocação de cada um dos seus membros. Este é um caminho de progressiva integração. A perfeição
faz uma pessoa ser ao mesmo tempo virgem, esposa e mãe. O único modo de identificar-se com
Cristo é tornando-se Igreja, aquela que é Sua esposa.

A VIRGINDADE COMO UM CARISMA PARTICULAR


Dentro da vocação de cada cristão, é o estado de vida daqueles que recebem de Cristo uma
singular participação no Seu modo humano de amar. Este estado é caracterizado pelo fato que
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transcende o matrimônio humano, visando diretamente e unicamente a união esponsal com Cristo.
Tal condição de vida somente é possível através de um dom particular de amor da parte de Deus, um
dom de eleição e favor com o qual Ele coloca dentro do coração do(a) chamado(a) a capacidade e o
pedido de uma resposta adequada (cf. VC 17-18).

Um dom livre

O Concílio fala da virgindade consagrada como um “um dom precioso de graça dado por
Deus Pai somente a alguns” (LG 42c; cf. PC 12a). As almas consagradas estão assim em um estado
de ser concedido como dom: “A vós é dado compreender...” Esta amor particular reflete o amor do
Pai pelo Verbo e o amor de Cristo pelo Pai. Tal amor particular pressupõe, como na virgindade, o
particular amor de Deus por cada criatura Sua.

Assim a virgindade consagrada não é uma realização humana, mas um dom de Deus que
transforma e penetra o ser humano mais intimamente através da misteriosa semelhança com Cristo.

Ela é esta força de configuração que nos torna capazes de amar como Cristo, de um modo
virginal.

Uma escolha esponsal

O efeito do amor eletivo de Deus é a capacidade de dar uma resposta adequada: o desejo de
aderir a Ele pela renúncia de tudo o mais. É Ele quem quer a pessoa para Si. Seu amor significa uma
progressiva e sempre mais completa espiritualização, como o amor dos anjos no Céu. A escolha
virginal é essencialmente a escolha de uma pessoa, de um esposo: Cristo. Não é a escolha de uma
atividade, de um serviço ou de uma missão. É decisivo que a pessoa consagrada sinta-se olhada com
amor e escolhida pelo seu Esposo; é uma aliança de amor que invade as profundezas da existência.
Assim, a virgindade se torna, em verdade, a extensão da Encarnação na qual Cristo uniu-se
intimamente à natureza humana a fim de torná-na uma pessoa com Ele. O amor esponsal do(a)
virgem é um processo de unificação. Ele passa da partilha (viver com o outro) à doação (viver para o
outro) e à identificação (viver no outro). O caráter esponsal do consagrado será perfeito quando
alcançar a plena identificação com Cristo.

Uma profética antecipação

O Concílio afirmou que a vida religiosa é a melhor proclamação da futura ressurreição e da


glória do Reino celestial (cf. LG 44c), e que as pessoas virgens se tornam “sinais vivos” do mundo
vindouro. Este presente mundo é passageiro, assim como nós passaremos deste mundo para o Pai, e a
vida que nos espera é “outra vida”, mas também é fato que nós já estávamos vivendo aquela vida que
nos aguarda, pois a “a última hora já começou” (cf. I Jo 3,2). Sendo uma profecia do tempo
vindouro, a virgindade é ao mesmo tempo um sinal muito particular da vida eterna vivido neste
tempo. Na virgindade, o homem está na expectativa, também corporalmente, do matrimônio
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escatológico de Cristo com a Sua Igreja. Assim, a pessoa virgem antecipa a nova palavra da futura
ressurreição, da vida eterna quando Deus será tudo em todos.

Um amor fecundo

Deus é Espírito, e assim a sua fecundidade é exclusivamente e essencialmente espiritual. E,


como d’Ele procede toda paternidade, também a mais genuína paternidade (e a mais genuína
maternidade) é realizada na ordem espiritual.

O Verbo se fez carne em Maria antes de tudo porque ela O concebeu no seu espírito através
da fé. Como Mãe de Deus, a sua grande fecundidade advém do seu acolhimento da palavra d’Ele. A
nova vida é a conquista da alma pelo Espírito e a adesão ao Espírito, que é o princípio de vida (Veni
Creator Spiritus). Assim, a Virgem não é estéril, mas essencialmente fecunda, deste modo a
plenitude da virgindade é expressa na maternidade. “Ser vossa esposa, ó Jesus, é ... convosco ser mãe
das almas” (St. Teresa D’Ávila). Esta fecundidade se manifesta numa maior disponibilidade e
dedicação ao serviço dos irmãos.

Uma morte fecunda

Mas nós não devemos nos esquecer de que o celibato significa também uma severa renúncia
que toca o mais profundo ser do homem, pois deixa o homem “sozinho”, o que é algo, do ponto de
vista natural, que “não é bom para o homem”. Mesmo que não seja algo vazio, pois é preenchido por
Deus, o homem [celibatário] se torna, na ordem natural, verdadeiramente “sozinho”. É uma
experiência que pode ser realmente “mortificante”, um tornar-se extremamente pobre pelo Reino de
Deus.

Não é sem razão que a tradição religiosa considera a virgindade consagrada como uma
substituta para o martírio. Somente na luz da Cruz de Cristo alguém se torna apto a entender a
profunda fecundidade da morte redentora e santificante do celibato, pois ela constitui uma profunda
assimilação ao autoesvaziamento de Cristo. A fecundidade desta morte é expressa na palavra do
Senhor sobre o grão de trigo que tem que cair no chão e morrer para produzir muito fruto.

VIVER A CASTIDADE CONSAGRADA

O Magistério e a tradição da Santa Igreja nos oferece muitas indicações de como viver a
castidade consagrada:

1. Profunda convicção
Antes de tudo é necessário crer firmemente que a virgindade consagrada é um dom da
graça de Deus. Ela requer uma total e incondicional dedicação a esta vocação e a firme
crença de que é possível vivê-la.
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2. A maturidade humana e cristã


(cf. Perfectae Caritatis 12c). Somente com a necessária maturidade humana e cristã é
possível fazer escolhas pessoais que sejam verdadeiramente livres. A liberdade afetiva
significa ser equilibrado afetivamente, não se apegar aos outros nem rejeitá-los, mas ter uma
atitude benevolente para com todos e não buscar a própria satisfação nas relações humanas.

3. Vida virtuosa
A pessoa madura é a que pratica as virtudes humanas e cristãs. E, antes, estão todas as
virtudes divinas que nos ancoram firmemente em Deus. Por meio deste encontro com Deus é
que cresce a castidade consagrada. Por meio disto deve desenvolver-se a nossa maneira de
crer, esperar, amar. Estas virtudes nos conectam diretamente com Deus: elas O fazem
presente para nós, nos preenchem com Ele, nos fazem viver com Ele. Isto tem como efeito
uma vida com virtudes morais, especialmente com as virtudes cardeais: prudência, justiça,
fortaleza, temperança.

4. Oração humilde
O carisma da virgindade somente pode perseverar numa atmosfera de graça,
continuamente dependente do trabalho do Espírito. Esta é essencialmente uma atmosfera de
oração. A virgindade é em sua essência uma relação singular e interpessoal com Deus. A
alma inteiramente concentrada em Deus deve estar em um estado de permanente oração. Com
frequência se diz que a pessoa consagrada deve estar “apaixonada por Cristo”. A íntima
amizade com Ele cresce com a familiaridade, com a frequência dos encontros, com a
intimidade na oração. Se nós não cultivamos esta profunda amizade com o Senhor, nós
sentiremos um vazio em nós e iremos procurar algo inadequado para preencher esse vazio.
Em nossa oração, nós devemos pedir a Deus sempre de novo por este dom precioso, pois
quem pede receberá.

5. Saúde mental e física

Os meios naturais que ajudam a manter a saúde mental e física não devem ser
negligenciados. Eles contribuem para criar um perfeito equilíbrio interior.

6. Ascetismo
O ascetismo permanece como um elemento essencial da vida religiosa. Já do ponto de
vista natural, não é madura a pessoa que não se impõe algum ascetismo, que não está apta a
fazer renúncias e abrir-se às necessidades dos outros, que se considera, como uma criança, o
centro do mundo, que não se reconhece como ela realmente é: com suas imperfeições e
qualidades. E isto é humildade! A mortificação evangélica é a condição indispensável para
garantir a liberdade interior ao homem. Mas a pessoa madura é também aquela que, com
realismo, sabe da sua própria fragilidade, e por esta razão está pronta a aceitar com plena
liberdade todas aquelas normas de prudência que a experiência dos séculos lhe propôs (cf. PO
10d; PC 12b).
13

Quando nós falamos de mortificação, é bom lembrarmos do valor da mortificação dos


olhos em nossos dias. A luz do corpo, diz Jesus, são os olhos. Assim, se os seus olhos são
límpidos, todo o seu corpo será luz, se os seus olhos forem doentes, todo o corpo estará nas
trevas (cf. Mt 6, 22-23). Em nossa civilização da imagem, a imagem se tornou o veículo
privilegiado da uma filosofia de vida caracterizada por uma sensualidade que é separada do
sentido original que Deus conferiu a ela. Um jejum sadio em relação às imagens é hoje mais
importante do que um jejum de fast food. Pois a comida nunca é impura, contudo certas
imagens são. Assim, o ascetismo hoje é, num alto grau, a mortificação da concupiscência dos
olhos.

7. Amor fraterno
Um dos meios que favorecem o equilíbrio interior e o desenvolvimento da vida afetiva
é certamente o amor fraterno na comunidade. Justamente pela virgindade ser um chamado a
antecipar a comunidade de santos, ela é a vocação de uma autêntica comunidade que
estabelece uma relação interpessoal profunda e verdadeira. A virgindade não é a renúncia da
caridade, mas uma vocação e uma obrigação de formar uma comunidade de caridade junto
com aqueles a quem o Senhor tem chamado a viver juntos, como nós, e nos dado como
irmãos e irmãs. Não é apenas a pessoa virgem separadamente, mas a comunidade de virgens
tem que antecipar o “novo mundo” e deve ser um sinal escatológico do Reino já presente. A
pessoa virgem deve aprender a amar os outros de um modo virginal, como os “filhos da
ressurreição” no tempo da “comunhão celestial”.
Mas, antes de tudo, nós devemos declarar que o conteúdo e o motivo fundamental da
castidade consagrada é o amor ao próprio Cristo: Cristo como amigo, irmão, esposo. Ele nos
conhece, Ele sabe nos conceder consolações, mas Ele também sabe deixar-nos na aridez se
Ele vê que nós precisamos dela para a purificação do nosso amor. Neste caso, nós devemos
nos abandonar sempre mais totalmente a Ele numa fé pura, nestes momentos o nosso amor se
torna supremo e mais generoso. A solidão do coração não será carregada então como uma
cruz inevitável, mas como um meio privilegiado e fecundo de redenção.
14

NATUREZA E DIMENSÕES DA POBREZA


A pobreza como um mal

A pobreza, na mentalidade atual, significa antes de tudo uma “falta” daqueles bens
que alguém necessita para se realizar, significa dependência, submissão, insegurança, ser
excluído, etc. Mas não denota somente a necessidade do ponto de vista econômico, mas
também uma opressão do ponto de vista sociológico e uma alienação do ponto de vista
pessoal. A lista daqueles pobres incluem hoje os deficientes, os doentes mentais, as crianças
nascidas e abortadas, os idosos, os enfermos, os desempregados, os criminosos, os viciados,
etc.

A pobreza como um valor

Todas as formas mencionadas acima descrevem a pobreza como um mal que é


imposto ao homem, muitas vezes dolorosamente sofrido, contra o qual é necessário lutar a
fim de extingui-lo. Há uma diferença fundamental entre a pobreza livremente escolhida e a
pobreza sofrida. Mas é necessário entender que o termo “pobreza” não tinha originalmente o
significado de “miséria”. A palavra latina “pauper” (o pobre) não significa alguém que nada
tem, mas alguém que tem apenas um pouco, o pouco que é suficiente para viver com
dignidade. Assim, ela não denota uma situação sub-humana, mas tem mesmo algo de nobre
que não é oposto à dignidade humana.

Existem duas formas possíveis de alienação para o homem:


Uma coisa é a miséria, com a falta dos meios necessários para adquirir os valores, enquanto
que a outra é a riqueza que padece de uma falta de valores encoberta por uma acumulação de
meios. O mal não consiste na posse de bens em si, mas no possuir as coisas de um modo
desordenado.

A pobreza digna é caracterizada pela capacidade de se alegrar com as coisas simples.

A POBREZA COMO UMA VIRTUDE EVANGÉLICA

Há uma estreita conexão entre serem “bem-aventurados os pobres de espírito” e as


outras beatitudes que são uma explicação para esta. De um modo geral, a pobreza é o
fundamento do encontro salvífico de Deus com o homem. Como uma síntese entre as atitudes
interiores e as situações exteriores, é necessário que ela comece a partir do interior, do
coração, onde o homem toma a sua posição perante Deus. Mas mesmo a pobreza sendo uma
atitude espiritual, é necessário que ela seja encarnada de algum modo, caso contrário seria
15

apenas uma mistificação. A pobreza evangélica abraça a pessoa inteira com todas as suas
dimensões.
1. A pobreza como a aceitação da verdade sobre o próprio ser: humildade
A pobreza radical do homem consiste no fato de que ele é uma criatura e, por
essa razão, é totalmente e continuamente dependente. Desde modo, ele é um dom que
Outro fez a ele. Esta pobreza ontológica 1 se torna uma virtude quando alguém
reconhece e aceita esta verdade do seu próprio ser. Ser uma criatura não apenas
significa ter sido criado por um outro, mas também para um outro. Significa
considerar Deus como o único valor absoluto da vida e tem como consequência uma
contínua atitude de adoração e gratidão.
Como esta pobreza ontológica é a mesma para todos os homens, ela é também
a primeira condição para reconhecer cada um como um irmão ou irmã.
Há também outra pobreza, mais propriamente triste e dolorosa, mas também
comum a todos do mesmo modo: a pobreza moral. Todos nós temos os nossos limites,
fraquezas, frustrações, dificuldades, pecados. Somos vulneráveis, impotentes,
necessitados de auxílio e de misericórdia. Esta pobreza, se reconhecida por alguém, o
torna capaz de conhecer a Deus como seu Salvador.

2. A pobreza como aceitação da verdade sobre o próprio devir: obediência

Aceitar a verdade do próprio ser significa também aceitar a verdade do próprio devir.
O estado de criatura não somente consiste em ter sido originado por um Outro, mas
também ser chamado a tornar-se algo que ainda não se é. Este chamado é tão grande que
o homem experimenta cada dia a sua incapacidade de responder a ele de um modo
apropriado. Se a sua meta é Deus, nenhuma coisa criada pode satisfazê-lo, conforme a
famosa palavra de Santo Agostinho: Criaste-nos para Vós, Senhor, e inquietos estão os
nossos corações enquanto não descansarem em Vós.
Deste modo, o homem também é pobre porque é incompleto: ele é um peregrino em
direção a uma meta que ele não alcançou ainda. Ele é continuamente tentado pelo desejo
de garantir o seu próprio futuro, de seguir o seu próprio plano: o pecado de Adão. A
pobreza como um estado de não ser completo se torna uma virtude quando o homem
deixa-se guiar por Deus na fé sem se apegar aos seus próprios planos. Isto significa
desapego das suas próprias ideias e opiniões, renúncias às muitas seguranças que
buscamos a fim de abrir-se continuamente ao futuro que Deus tem para nós.

3. A pobreza como uma superação do instinto de posse: liberdade-desapego

1
Ontológico(a): que diz respeito ao ser. No caso, o que é intrínseco ao ser humano, à natureza humana.
16

A pobreza, como experiência de dependência de Deus e expressão da própria confiança


na Sua fidelidade é também é também uma rejeição da autossuficiência e uma superação
da ansiedade e do medo do “amanhã”. A fim de encontrar novamente a liberdade, é
necessário retornar àquela atitude inicial que nos permite considerar as coisas não como
um meio de conquista e uso para os nossos próprios propósitos, mas como dons que nós
podemos usar com gratidão a fim de nos dirigir aos bens eternos. Isto significa ter aquela
liberdade de espírito que nós chamamos de “desapego interior”. Em vez de usar as coisas
para termos um prazer egoísta, nós as respeitamos sob o aspecto do propósito para o qual
elas foram criadas: para servir como matéria na construção do Reino de Deus, no homem
e no mundo. Não basta a carência exterior. Este desapego não é suficiente. Ele envolve a
pessoa por inteiro com todas as suas faculdades, incluindo a memória, na qual nós sempre
podemos guardar os nossos bens secretos.

4. A pobreza como uma superação do instinto de dominação: serviço

Na busca por valores, o homem também encontrará seus semelhantes, que o ajudarão a
crescer e amadurecer. Mas nisto se encontra também um duplo perigo: Um consiste no fato
de que o outro frequentemente não é considerado uma companhia no caminho, mas um rival
contra o qual se deve lutar. O outro perigo é a vontade de possuir o outro, de dominá-lo, de
fazê-lo um instrumento da própria realização. Assim sendo, é necessário lembrar-se de que
nós não somos criados para nós mesmos, mas conforme o plano de Deus, para um propósito
que encontra a sua melhor expressão no mistério do Corpo Místico de Cristo, com os outros.
A consequência disto é que é necessário não apenas renunciar ao domínio, mas também
assumir uma atitude de serviço. Esta dimensão fundamental da pobreza evangélica encontra
na virgindade a sua mais radical expressão, como renúncia à “posse” o outro, e na obediência
a renúncia a “dominar” o outro.

5. A pobreza como partilha de bens: solidariedade e trabalho

É necessário descobrir o “senso comunitário” dos bens, para que eles se transformem num
sinal sacramental de comunhão com os irmãos. A verdadeira pobreza se expressa no
exercício crescente da autêntica caridade de acordo com o exemplo da primitiva comunidade
cristã. Ligada a ela está a lei geral do trabalho ao qual todos na comunidade estão sujeitos.

6. A dimensão material da pobreza: uma renúncia escolhida e querida


A atitude de desapego interior manifesta-se na renúncia efetiva do que é desnecessário e
no uso cuidadoso do que é necessário. Para o que é necessário, todos devem encontrar sua
justa medida de acordo com a sua vocação: a pobreza religiosa é certamente diferente da
pobreza no mundo.

7. Pobreza sofrida: um valor redentor

Há um outro tipo de pobreza que não é nem escolhida nem querida, mas imposta por uma
sociedade injusta. Mesmo esta pobreza sendo um escândalo contra o qual é necessário lutar,
ela tem um lugar entre as bem-aventuranças do Senhor e, por um milagre da Divina
Providência, se transforma num instrumento de salvação. A pobreza material pode impelir o
17

homem a se abrir para Deus e ancorar a sua vida n’Ele. Da pobreza material, portanto,
floresce a pobreza espiritual evangélica, a humildade e o comprometimento confiante com
Deus. É uma partilha da pobreza de Cristo que se tornou pobre em prol da nossa redenção.

8. A pobreza como uma escolha de Amor por Cristo

O conteúdo da pobreza tem para os cristãos um significado profundamente cristológico:


seguir Cristo e tomar parte na Sua vida. Este é um meio de reviver o mistério pascal do
Senhor: morrer para si a fim de ser transformado n’Ele, morto e ressuscitado. Neste ponto, a
pobreza não é mais uma escolha para corresponder à verdade do nosso próprio ser, mais uma
exigência do coração que nos impele a tornarmo-nos como a Pessoa amada. Nós podemos
encontrar a plenitude da pobreza somente por meio de um encontro com Ele.

Aqui nós tocamos a última razão e o conteúdo central da pobreza cristã. O ideal e a norma de
conduta para o cristão não é a pobreza em si mesma, mas o Cristo pobre. A pobreza é uma
qualidade íntima do Salvador, que a elevou ao status de virtude. A pobreza se tornou uma
virtude porque o Senhor a assumiu. Assim, a perfeição da pobreza não está vinculada à
condição social, mas à configuração de si mesmo com Cristo. É o desejo de se tornar como
Ele, e com Ele consumir-se no serviço aos irmãos até o ponto em que nós não
consideraremos mais nada como propriedade nossa: nem o tempo, nem os talentos, nem a
própria vida. Trata-se de colocar tudo à disposição do Reino de Deus e assim permitir que
Cristo continue Sua obra de salvação através de nós.

Aceitar que nós mesmos somos um dom também significa fazer de si um dom para os outros.

O valor teológico da pobreza consiste na proclamação de que Deus é o Salvador.

PORBREZA RELIGIOSA

O fundamento bíblico

No Evangelho, a pobreza aparece como uma condição necessária e um sinal da


aceitação do Reino de Deus. Não é possível entrar nele sem fé, e não há fé naquele que põe a
sua confiança nas coisas criadas. Como aquele que encontrou o tesouro escondido no campo,
nós devemos estar prontos a renunciar a tudo a fim de adquiri-lo. A pobreza que é aceita em
prol do Reino como verdadeiro tesouro da vida é um elemento essencial do Evangelho. Este
“deixar tudo para trás” não pode ser somente uma escolha pessoal, mas é muito mais uma
aceitação do Seu pedido. Seguir a Cristo até as últimas consequências é uma resposta ao Seu
pedido: somente quando Ele chama e para o serviço ao qual Ele convoca. Esta é uma vocação
particular, não é para todos.

O voto de pobreza
18

Falar dos votos religiosos é importante para recordar que eles estão essencialmente
unidos. A pobreza religiosa é também castidade, é também obediência; elas são as formas
supremas de pobreza. É tomar parte no auto-esvaziamento de Cristo através da renúncia dos
direitos mais fundamentais da pessoa a fim de colocar tudo à disposição do Reino de Deus.

1. Pobreza individual
O objetivo da pobreza religiosa não é levar a pessoa à miséria, mas favorecer a
pobreza interior (a humildade, o desapego, a disponibilidade). Tudo isto em conformidade
com as normas próprias de cada instituto. O que é mais importante é que ela seja uma
escolha voluntária a fim de partilhar a vida e missão de Cristo, assimilar-se a Ele e ser
capaz de enriquecer os outros como Ele.
É indispensável que nós descubramos a pobreza como um valor evangélico, que nós
experimentemos o seu encanto e que nós a amemos por ela ser uma virtude cristã tão
grande. O religioso é uma pessoa que descobriu, como Francisco de Assis, a presença de
Deus na beleza da “Senhora Pobreza”.
No nascimento, vida e morte de Cristo, nós descobrimos que a pobreza é um sinal
distintivo de Deus, ela revela a Face de Deus para nós.
É necessário que os religiosos pratiquem uma pobreza interior e exterior, e mesmo no
uso dos bens tenha uma liberdade interior. A norma da nossa pobreza não é tanto a regra,
mas o amor a Cristo. Ter-me dado a Deus, não pertencer mais a mim mesmo.
Um dos elementos fundamentais do espírito de pobreza é a prontidão para o serviço
altruísta, também a prontidão para a mudança e revisão de vida. Assim, alguém alcançará
a perfeição da pobreza colocando toda a sua confiança em Deus e procurando a própria
realização somente n’Ele, na firme convicção de que se nós buscamos o Reino de Deus e
a sua justiça, o resto não será esquecido (cf. Mt 6,33).
Juntamente com uma profunda alegria do coração, o principal efeito de tal pobreza é
um senso de grande liberdade.

2. Pobreza comunitária

Uma característica típica da pobreza religiosa é a total partilha dos bens. Isto significa
também colocar tudo a serviço dos outros por amor.

Se nós escolhemos seguir a pobreza de Deus, não devemos nos conformar aos costumes do
nosso ambiente. A comunidade religiosa deve dar um testemunho de pobreza. (No que se
refere a este ponto, ver também os documentos da Santa Sé, esp. Perfectae Caritatis.)

Os pobres têm uma importância especial para os religiosos. O que eles fizerem pelos pobres,
terão feito por Cristo. Eles devem ver a Face de Deus nos pobres.

A POBREZA COMO BEATITUDE


19

Cristo redimiu a nossa pobreza abraçando-a. A fim de entender o paradoxo das bem-
aventuranças é necessário redescobrir o encontro com Cristo como o mais elevado dom da
história. Encontrá-Lo e recebê-Lo significa tornar-se “Reino de Deus”. Esta é a nova relação
que é estabelecida com Ele, e n’Ele com Deus. A alegria não consiste em possuir ou não
possuir, mas em estar em comunhão com Deus em Cristo, ser propriedade de Cristo.

Concluamos com as palavras de São Paulo: “Se pertenceis a Cristo e Cristo pertence a vós,
que importa o resto?” Esta é a vossa bem-aventurança, esta é a vossa felicidade. “Para mim o
viver é Cristo” (Cf. Phil 1,20)

A OBEDIÊNCIA CRISTÃ E RELIGIOSA

A natureza da obediência
Na mentalidade do nosso tempo, a obediência é com frequência mal compreendida como
submissão, como uma falta de personalidade e de espírito de iniciativa. Obedecer, no sentido
de fazer o que outra pessoa ordena, é considerado um tipo de renúncia ao uso da liberdade ou
da autonomia pessoal.

Mas mesmo na dimensão natural, a obediência é um ato especialmente humano, o ato de uma
pessoa livre e inteligente; obedecer implica na capacidade de assumir, como pessoa adulta e
de maneira responsável, o seu lugar dentro de uma comunidade. A obediência é a capacidade
de cumprir os próprios deveres e respeitar os direitos dos outros. Nunca há comunidade sem
uma interdependência nos vários níveis de relação, não pode haver comunidade sem
obediência.

Consequentemente, obedecer é uma atitude de uma pessoa adulta e madura, não uma atitude
infantil. Não é a renúncia à vontade própria. Ninguém pode exigir de mim a renúncia à minha
própria liberdade e vontade, pois isto seria contra a minha dignidade humana.
20

Porém, a obediência a uma ordem objetiva não parece ser um bem para o homem moderno,
mas uma limitação; ele identifica a liberdade com a independência, e isto não lhe permite
considerar a obediência verdadeiramente como uma virtude.

Embora já na dimensão social do homem haja um requisito de submeter-se [para conviver em


sociedade], a obediência ultrapassa essa dimensão e se torna atributo de um relacionamento
pessoal. Neste relacionamento, a obediência chamar-se-á amor. Quem crê sabe que é uma
criatura de Deus, fruto do Seu amor e “encarnação” do Seu plano? Confrontar-se com este
amoroso plano de Deus esclarecerá o nosso senso a respeito do mistério da nossa vida e,
assim, também a natureza e a dimensão da nossa obediência. Nós não temos que lutar contra
o destino ou contra forças hostis, mas nós estamos na presença da amorosa Providência de
Deus, que nos tem chamou à existência com uma vocação e uma missão pessoal e continua a
nos guiar e sustentar com o Seu amor.

Assim, o fiel sabe que esta obediência é uma obediência para com Deus. Justamente por isso
ele não se torna o escravo de ninguém, porque mesmo que ele obedeça aos outros ou
submeta-se a uma ordem objetiva ele vê nisto um sinal da presença de Deus que Se manifesta
a ele. A fim de realizar-se plenamente na fidelidade, ele não pode senão obedecer, o que
significa responder Àquele que o chama em todas as circunstâncias a uma existência sempre
mais plena.

A obediência do cristão não brota apenas do fato de que ele é uma criatura, mas antes de tudo
do fato de que ele é explicitamente chamado a participar intimamente da vida de Deus e ter
uma relação de amizade com Ele. A lei fundamental da amizade é ter uma mesma vontade
com o amigo. Viver a amizade com Deus significa conformar-se inteiramente à Sua vontade,
obedecer. Não há contradição entre obediência e liberdade. Deus nos criou livres, o que
significa capazes de aceitar o dom que Ele continuamente nos dá. Ao dizer “sim” a isto e nos
aceitar como um dom d’Ele, nós praticamos o primeiro e supremo ato de liberdade, que inclui
o ato fundamental da obediência. A verdadeira liberdade significa viver na escuta, com nossa
face voltada para Ele, que nos fala.

Com o pecado emergindo como uma desconfiança de Deus e com a consequente a


reivindicação do homem de construir sua existência por si próprio, esta relação com Deus foi
interrompida e o Seu amor foi rejeitado, fazendo surgir uma contradição entre a liberdade e a
obediência. Ela foi substituída pela lei do egoísmo, que leva o homem aceitar apenas a sua
própria opinião e vontade como lei. Agora ele identifica a liberdade com independência. Mas
o homem será capaz de amar somente se aprender a obedecer, submetendo-se alegre e
generosamente à vontade de um Outro.

A glorificação de Cristo, que foi elevado através da mais radical obediência, mostra-nos que
apenas a obediência é o único caminho para obter a mais plena realização de si. A
ressurreição é a total reunificação da liberdade, encontrada na total obediência.

A OBEDIÊNCIA DE CRISTO E A DO CRISTÃO


21

A estrutura e o percurso da história da salvação mostra claramente como a obediência, como


livre resposta do homem a Deus, é o centro da aliança e o seu elemento vital e primeiro.
Através dela, a ruptura inicial que dilacerou a existência humana em nível cósmico,
comunitário e pessoal será gradual e progressivamente remediada e sanada. Mas finalmente
todas as divisões serão superadas definitivamente somente em Jesus Cristo, que é o
verdadeiro Filho Obediente, que é o verdadeiro Servo. Mas como Cristo obedeceu ao assumir
a nossa condição e obediência humana, assim a nossa obediência somente será perfeita se
estiver inserida na obediência de Jesus. E, obedecendo daquela forma, nós obedeceremos
realmente ao Pai. A obediência cristã tem o seu início na obediência de Jesus que nos
conquistou e nos assimilou a ela.

Como Cristo cumpriu perfeitamente a vontade do Pai, Sua vida e Suas palavras apresentam
para nós a forma concreta, viva e visível da vontade de Deus a nosso respeito. Assim, a nossa
obediência a Deus é nada mais que uma relação pessoal com Cristo que continua a viver em
Seu Corpo, a Igreja, através do Espírito. Isto expressa a nova condição do cristão, que vive
em uma contínua atitude de receber a sua palavra. O cristão que se compromete com Cristo
através da conversão não pode assumir outra atitude para com Ele senão aquela de uma total
disponibilidade: “Senhor, o que queres que eu faça?”

Mas antes de ser uma exigência da vida cristã, a obediência é antes de tudo uma graça
concedida a nós. Ela nos foi dada precisamente no momento do batismo quando nós fomos
libertados do pecado e nos tornamos servos da justiça (cf. Rm 6,17). A nova vida constitui a
passagem da desobediência para a obediência, através da qual nós cessamos de ser “Adão” a
fim de nos tornarmos “Cristo”. Esta obediência é primeiramente não uma submissão a Cristo,
mas sim uma imitação d’Ele. Então nós nos tornaremos sempre mais filhos de Deus. Sendo
um dom da graça confiado à nossa liberdade, ela se torna também um dever, uma norma para
vida do cristão. E ela tem como consequência a obrigação de conduzir-se como Ele. Então, é
evidente que a obediência cristã é uma virtude positiva. O que é essencial nisto não é a “não
realização da própria vontade”, mas a “realização da vontade do Pai”. Se esta, algumas vezes,
requer um sacrifício, isto advém do fato de que a nossa vontade ainda não está plenamente
conformada com a d’Ele. Para o próprio Cristo a obediência foi um sacrifício, isto porque Ele
quis “pagar o preço” a fim de obter para nós a libertação da escravidão do nosso egoísmo.
Embora o sacrifício não seja o objetivo da obediência, esta implica numa disposição para
aceitá-lo.

Assim a obediência cristã é muito mais a renúncia da própria autonomia e uma limitação. O
cristão é aquele que não obedece a Deus por dever, mas O obedece por amor. Buscar
zelosamente a vontade de Deus dá a justa medida da nossa existência como cristãos e torna
possível uma obediência verdadeiramente evangélica. O cristão também entenderá bem
aquilo em que os planos de Deus ultrapassam a nossa compreensão, e que os Seus caminhos
não são os nossos caminhos. O plano de Deus sobre nós é revelado em Cristo. Por essa razão,
o chamado de Deus a cada um de nós pessoalmente é sempre um convite a ouvir a Cristo e
segui-Lo.
22

Nós não devemos nunca nos esquecer também de que a Igreja, como “Corpo de Cristo”, é
sempre um meio de salvação. Deus, que nos salvou através de Cristo, continua a nos salvar
através da Igreja. É neste contexto que a realidade profunda da obediência religiosa e cristã
pode ser compreendida.

AUTORIDADE E OBEDIÊNCIA NA IGREJA

O chamado de Deus é profundamente inserido num “corpo”. Mesmo que este seja um
chamado absolutamente pessoal, ele nos faz reconhecer que a nossa realidade é
essencialmente relacional. Ser uma pessoa significa relacionar-se com Ele e com as outras
pessoas. Dizer “sim” ao plano de Deus que nós descobrimos em Cristo também significa
entrar em relação com todos aqueles que estão unidos a Ele. Isto significa tornar-se Igreja, a
qual é um sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade entre os seres humanos
(cf. LG 1). E significa, ao mesmo tempo, aceitar a Igreja como tal sinal e instrumento. Mas
aceitar o convite de entrar na Igreja significa também aceitar as normas que regulam a sua
vida, incluindo a submissão ao Santo Padre e à hierarquia: “Quem vos ouve, a mim ouve.”

Assim, a obediência ao plano de Deus significa também obediência ao legítimo superior que
Ele estabeleceu na Sua Igreja. A imagem da Igreja como “Corpo de Cristo” mostra a sua
diversidade de funções e ofícios. Um corpo somente é vivo e saudável na medida em que
cada membro, de acordo com o seu papel, cumpre a sua função. Neste corpo, é uma tarefa de
autoridade garantir a unidade na diversidade e favorecer a diversidade na unidade. Assim, a
autoridade é na Igreja, antes de tudo, um serviço e um ato de obediência às necessidades do
Corpo, e ainda antes disso, aos desejos d’Aquele que é a Cabeça da Igreja (Cristo) e sua
Alma (o Espírito Santo). Justamente porque a Igreja é o Cristo vivente hoje, ela tem, como
Ele, o ministério da obediência, como expressão do Seu filial amor para com o Pai e do Seu
amor fraterno (para com os Seus irmãos). Assim, nossa obediência na Igreja é participação na
obediência de Cristo, e a obediência de Cristo continua a realizar-se hoje através de nós.
“Não o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que cumpre a
vontade do meu Pai.” (Mt 7, 21). Como Cristo obedeceu ao Pai, assim a Sua obediência
estará presente na Igreja na medida em que os fiéis viverem o Seu mandamento de amar uns
aos outros.

Obedecer significa, acima de tudo, aceitar a lei do Espírito e Sua orientação. Cristo continua a
estar presente na Sua Igreja como Cabeça, e Ele continua a vivificá-la e guiá-la por Seu
Espírito. A autoridade da hierarquia não somente procede de Cristo, mas é de Cristo, que Se
faz presente por meio dela. Deste modo é estabelecido o caráter da Igreja como mediação.

AUTORIDADE E OBEDIÊNCIA NA VIDA CONSAGRADA

De acordo com a espiritualidade e as tradições de cada instituto, há um entendimento


diferente sobre a obediência religiosa (por ex., nas comunidades apostólicas, beneditinas e
23

agostinianas). Em nosso tempo, o modo de exercer a autoridade mudou imensamente sob a


influência da eclesiologia da comunhão e da mentalidade democrática.

A autoridade religiosa é considerada como “primus inter pares” (o primeiro entre iguais) que
tem o dever especial de cuidar do bem comum, mas também dos membros individuais da
comunidade. Eles devem ter com o superior uma relação de confiança e filial dependência.
Os religiosos que livremente ingressam num instituto de vida consagrada tem também que
aceitar o seu modo específico para encarnar o Evangelho na própria vida, e junto com isto
também o tipo de obediência que pertence ao seu carisma especial. Portanto, todos devem ter
clara a sua identidade vocacional.

A natureza e fundamento da autoridade e da obediência na vida


religiosa
A obediência de Cristo consiste em cumprir em tudo somente a vontade do Pai, sem
preferências pessoais. O religioso é chamado a imitar a sua obediência. O cristão pode
selecionar entre vários bens, de acordo com a sua escolha; mas o religioso aceita a limitação
de sua escolha a fim de, como Cristo, abandonar-se totalmente à vontade do Pai. Esta é a
escolha daquele que “seguem a Cristo mais de perto” e deixam-se guiar somente pelas
indicações do Senhor. O fundamento da obediência religiosa está profundamente expresso
nas palavras “vem e segue-Me”. O Evangelho também menciona as mulheres que seguiam e
serviam o Senhor – uma exemplar imagem da vida religiosa!

A questão não é se os religiosos querem depender mais ou menos da vontade de Deus, mas
consiste na escolha dos meios através dos quais eles encontrarão sua vocação pessoal que eles
desejam cumprir fielmente.

A autoridade religiosa vem de Deus através do ministério da Igreja; os superiores recebem-na


diretamente do Espírito Santo em conexão com a santa hierarquia. Os institutos religiosos
receberam o seu carisma e missão do mesmo Espírito Santo, através de seus fundadores,
como um dom para a Igreja. Como eles receberam sua autoridade diretamente de Deus, os
superiores são representantes de Deus, não da comunidade. Mas justamente por causa disto
um superior não pode dar uma ordem de acordo com a sua própria vontade, mas deve ser um
fiel intérprete e mediador da vontade de Deus.

Obediência: voto e virtude


A autoridade dos superiores está vinculada ao plano das constituições, seus limites, seu senso,
o objetivo e o carisma do instituto. Com a promessa de obediência feita na profissão dos
votos, o religioso se obriga a obedecer aos seus superiores “quando eles ordenam de acordo
com as próprias constituições” (can 601). Esta obediência é a prática do voto e da virtude ao
mesmo tempo. Voto e virtude integram e assistem um ao outro mutuamente: a obediência
24

será mais perfeitamente cumprida quando ela é interiormente aceita e também acompanhada
por outras virtudes, especialmente a caridade. A diferença entre o voto e a virtude consiste no
fato de que o alcance da virtude é muito mais amplo do que somente aquilo que o superior
ordena. Quando, na sua profissão, o religioso fez o voto de obedecer às ordens legítimas dos
seus superiores, este não é somente válido para casos especiais e sob penalidade severa. A
distinção entre voto e virtude deve estar integrada e superada por uma visão espiritual que
ultrapasse os aspectos meramente judiciais. Certamente existem algumas exigências que são
o objeto do voto e outras não. Mas como o voto está orientado para a virtude, recusar certos
atos requeridos pela virtude com a desculpa de que eles não são o objeto do voto, significaria
uma renúncia interior do dinamismo espiritual do voto em si. E isto significaria a destruição
de uma autêntica obediência religiosa.

Às vezes é dito que nós não fazemos voto de obedecer aos superiores, mas a Deus com todo o
nosso ser. Mas nós obedecemos a autoridade de Deus que o superior representa.
Consequentemente, nós obedecemos a Deus através da submissão a uma autoridade pela qual
Ele se deixa representar e através da qual Ele se faz visível. Na verdade, o religioso não faz
um voto para obedecer a Deus, pois isto já é uma obrigação do Batismo e válida para todos os
cristãos. Ele faz um voto para se submeter a uma mediação humana a fim de obedecer a
Deus. O seu objeto é a submissão a um superior (comunidade, normas) que ele aceita como
representante de Deus.

OBRIGAÇÃO E RESPONSABILIDADE DO SUPERIOR

Também o superior deve obedecer: como os outros e ainda mais que os outros. Ele o faz
levando a cabo fielmente a tarefa que foi confiada a ele (Ver “Vida Consagrada” 43 a-b).

Tanto quanto a Igreja como um todo, também o superior tem a tarefa de ensinar, santificar e
governar de acordo com o caminho da Igreja. A fim de ensinar, eles devem ser Mestres do
Espírito, e devem dar aos religiosos o alimento da Palavra de Deus (cf. Can 619). Mas o
campo próprio do “magisterium” do superior é o projeto evangélico do seu próprio instituto.
Eles devem oferecer aos membros da comunidade uma adequada formação e promover a
renovação na fidelidade do seu carisma.

Pela santificação dos membros, ele deve ter o zelo para assegurar, com todos os meios
possíveis, o desenvolvimento da vida espiritual e um amor fraternal genuíno na comunidade.
Ele deve recordar a importância primária da oração e desenvolver a dimensão contemplativa
da vida religiosa (ver o documento “Dimensão Contemplativa da vida religiosa”). Acima de
tudo, o superior deve favorecer a celebração Eucarística na qual a comunidade inteira está
reunida com a consciência de viver ali o momento central e mais importante do dia.

O seu ofício de governo significa mais do que a simples organização, mas implica em
encarregar-se de alimentar e apoiar as pessoas que foram confiadas a ele.

As três funções de Cristo são três aspectos de uma só tarefa para o superior: santificação, pela
qual ele ensina, e ensino, pelo qual ele santifica. O ensino não acontece somente através de
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palavras, mas é vida, o que ele é se tornará ensinamento, o que ele faz se tornará santificação;
e assim cada ato de governo deve ser ensinamento e santificação.

A autoridade deve, antes de tudo, ser espiritual e fraternal (cf. Vita Consecrata 43b). É mais
uma questão de receber uma resposta livre e voluntária do que demandar uma submissão do
religioso.

OBRIGAÇÃO E RESPONSABILIDADE DO RELIGIOSO

O religioso não é alguém que deve obedecer a Deus mais que os outros, pois todos devem
obedecê-Lo com uma absoluta obediência. O que é especial na obediência do religioso é o
fato de que sob a influência do Espírito ele se submete às “mediações” que não são requeridas
dos outros. Estas mediações são essencialmente: as constituições, a comunidade, o superior.

Obediência às Constituições
As regras e constituições delineiam um projeto de vida com o objetivo de tornar
continuamente presente para os religiosos – tanto individualmente como no instituto – as
exigências da sua vocação, o carisma que eles receberam e o caminho para segui-lo e vive-lo
frutuosamente. O religioso tem a responsabilidade de responder a Cristo através de um
carisma especial e assumir como próprios os conteúdos das constituições. Eles não devem
permanecer como um texto exterior que nós devamos observar, mas devem se tornar uma
realidade viva, impressa verdadeiramente no coração dos religiosos.

Obediência dos religiosos à comunidade


Nós estamos inseridos num corpo em que todos os membros estão numa relação de mútua
dependência. Assim, a obediência significa uma abertura consciente aos outros membros e o
reconhecimento do dom que eles são para mim. Este dom é dado para a edificação do corpo
inteiro. Ele deve criar um intercâmbio de dom e oferta mútua, um dos atos fundamentais de
obediência. Este é um dom da própria liberdade, dado através da caridade a serviço dos
outros (ver VC 92a).

A obediência mútua na comunidade significa uma abertura e disponibilidade para o que o


Senhor me diz através das necessidades, dos dons e dos pedidos dos outros. Observar
somente as normas não é suficiente, pois o Espírito não fala somente através das normas, mas
também de outras formas. Trata-se de estar em comunidade, pois nós somos Igreja, estamos
inseridos no Corpo Místico.
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E cada membro da comunidade é responsável do carisma do instituto, ele é também


corresponsável pela resposta de todos os outros. Assim, se alguém não zelasse pela promoção
do carisma da comunidade, também a sua própria resposta não seria correspondida.

Obediência dos religiosos ao superior


O superior tem o dever de mediar a vontade de Deus junto aos seus irmãos e a comunidade
inteira. Quais são as disposições que os religiosos devem ter para que esta mediação possa ser
cumprida efetivamente?

1. Antes de tudo, os religiosos devem definitivamente buscar cumprir a vontade de Deus.


2. Assim, a atitude interior dos religiosos deve ser a de olhar para o superior como um
auxílio oferecido pelo próprio Deus.
3. Deste modo, ele favorece um diálogo de confiança com o superior.
4. Reconhecendo que nós somos todos fracos e imperfeitos, eles também não exigirão
perfeição dos superiores e entenderão que mesmo o superior é necessitado de ajuda,
compreensão e estima.
5. Também os religiosos têm uma responsabilidade pessoal para com o crescimento da
comunidade e os irmãos, incluindo o superior.
6. Todas estas indicações servirão somente para uma viva obediência religiosa na medida
em que elas estejam ligadas a um profundo espírito de fé e a uma visão sobrenatural da
vida. Isto é necessariamente o que os religiosos veem no seu superior como representante
de Deus, de outra forma ele será sempre tentado a opor as suas próprias razões às ordens
recebidas.

O religioso deve estar apto a reconhecer, na pessoa do superior, a Face de Cristo que
lhe pede para ser aceito, ouvido e compreendido. Jesus quer que nós O amemos também
na pessoa do superior, como nós O amamos em cada homem, e especialmente nos irmãos
e irmãs que Deus colocou ao nosso lado. Mas o superior representa Deus também no
serviço que ele exerce como superior. Se como tal ele toma uma decisão, é o Senhor que
pede a minha obediência. O religioso deve aceitar isto com fé.
O profundo senso de obediência revela-se somente no mistério da morte e
ressurreição, isto é, através do sacrifício, sofrimento e morte que nós alcançamos a
verdadeira vida. Os religiosos devem atentar para o fato de que, com a sua profissão, eles
fizeram uma total oferta da sua vontade e eles fizeram-na com suprema liberdade, a fim
de participar da obediência redentora de Cristo.

Nós devemos sempre atentar para o fato de que a obediência, na medida em que nos
assimila a Cristo, tem como consequência a imolação das inclinações naturais: inclinação
para o bem-estar, o sucesso, o triunfo, a autoexibição, o amor humano e muitas outras
coisas. Ela pode mesmo exigir o sacrifício da própria vida, e quer ser nutrida pela
disponibilidade fundamental: perder a própria vida a fim de ganhá-la. Assim a obediência
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realiza a total aniquilação, a “kénosis” de Cristo como condição da perfeita transformação


n’Ele.

OBEDIÊNCIA ATIVA, RESPONSÁVEL E VOLUNTÁRIA

A obediência não é meramente uma disciplina e também é mera conveniência ou


complacência.
A obediência deve ser ativa.
A obediência deve ser responsável.
E é necessário cumpri-la voluntariamente.

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