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OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

No cair do anoitecer, no ápice das farras no bar comum repleto de boêmios com almas
transbordando desespero. Em busca de inspiração, pessoas fatigadas pela dura semana de
trabalho e após uma semana dedicada de estudo. Eles riam, outras sofriam, recolhiam-se em
solitude ao beber e tentavam afugentar a solidão. De diversas as formas, muitos se divertiam de
sua forma durante uma noite no bar. A vida em um bar, seja em pleno dia ou noite, continham
tantas histórias felizes e trágicas que qualquer um podia imaginar. Talvez, na falta de um livro
ou inspiração, vinha alguém — nunca faltava — para falar ideais do mundo, se tornar filosofo,
bilíngue. Tudo que estivesse entrelaçado ao mais alto patamar de conhecimento — ou coisas
do gênero. Em específico, eu frequentava o bar com dois objetivos em mente: beber muito e
escutar bons contos! E foi assim que a conheci Cecília, a Boemia, como alguns poetas e
poetisas, cronistas, romancistas e como quaisquer tipos de escritores a conhecia. Ela era uma
máquina de informações! Aparecia o tempo todo com uma história diferente e apresentava seu
conhecimento vasto. Conversava expondo os mais vastos e diferenciados assuntos e, às vezes,
cantava com sua voz penetrante, deveras sedutora, para enfeitiçar o local inteiro com sua
beldade. Ambientando tudo em calmaria, e às vezes, intensificava o ânimo de todos com seu
espírito festivo ou indistinguíveis misturas de sentimentos com seus contos. Ela permanecia até
certa hora durante a madrugada, seguindo à risca esse limite. Partia sempre sem titubear, mesmo
que alguns insistisse para que ficasse, ela sempre saía com aquele ar de mistério junto com
aquele espírito tão vívido repentinamente. Muitos diziam que era o único momento em que
Cecília ficava diferente, e até mórbida, senão rígida! Os boatos circularam depressa, o que é
algo de se esperar; para que haja boatos, basta você desconhecer e estar sedento para saber e ter
criatividade, e basta deixar pontas soltas. Em uma madrugada, eu indaguei para um grupo de
pessoas:

— Por que Cecília nunca fica um pouco mais? Tipo, não que ela não devesse ir embora, mas
sempre que a madrugada chega, ela muda por completo com seu anseio para partir estampado
em seu rosto. Vocês notaram? — disse enquanto pegava um tira-gosto e os fitava.

— Não percebemos isso! Mas a resposta é: você é um maníaco! — em seguida, Caio virou o
copo de cerveja e grunhiu como se estivesse aliviado.

- QUÊ?! Não..., não é isso que eu quero dizer! Eu...! – fiquei exacerbadamente desconcertado,
pois não era essa a mensagem que quis passar, nada a ver com alguém obsessivo. Antes que eu
terminasse de falar, Caio me interrompeu com sua gargalhada e retrucou, para meu alívio:
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— HAHAHAHA! Relaxa, irmão — e deu um leve tapa no meu ombro —, eu entendi o que
quis dizer. — em seguida, ele dirigiu sua face em minha direção, fez um leve sinal solicitando
que eu me aproximasse, como se estivesse pronto para falar um segredo. Mas usou deste
artifício para transmitir as informações com facilidade e nitidez, evitando com que eu não
escutasse — Todos percebemos, cara, mas nunca perguntamos. Aliás, já questionaram e ela só
disse “porque eu quero ir embora, eu posso?”, e desde então, ninguém mais inquiriu e só
especulou. E ela está acerta, né? — e então, Caio começou a encher o seu e o meu copo
novamente.

Refleti um pouco, mas não fiquei satisfeito e indaguei completamente entusiasmado, já sob
efeito do álcool:

— Mas sempre foi assim?

— Porra, mano — disse com um sorriso enquanto colocava a garrafa de volta na mesa —, como
vou saber? Vai que seja amante ou marido.

Em seguida, o dono do bar, seu Fabricio, se aproximara com nossos churrascos e com um olhar
sério, como se tivesse escutado nossa conversa:

— Opa, aqui, pessoal. — E manteve-se calado, apenas nos encarando, como se aguardasse
nossas palavras para tomar liberdade para falar, como se devêssemos a permissão — mais
alguma coisa? — disse enquanto limpava as mãos em seu avental.

— Na verdade, sim! Cecília frequenta bastante seu bar. Sabe dizer se ela já ficou até mais tarde?

— Hmmmmmm, sim! Ela já ficou até de manhã, para você ter ideia, — em seguida, Fabricio
puxou uma cadeira e se juntou a nós — mas; as coisas mudaram desde quando ela notou um
novo freguês do bar. Ele é bem simples, humilde, zeloso e todos se encantavam com seu
carisma. Todos, exceto Cecília.

- Mas o que ele tem demais, além dessas características? – eu questionava enquanto tomava um
gole de cerveja.

- Não sei..., mas por que você quer saber sobre ela? – indagou Fabricio com seu olhar penetrante
de desconfiança.
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- Só curiosidade mesmo... – retruquei um pouco desconfiado da reação dele, já que soa estranho
você questionar rotina alheia – é que sempre exatamente nesse horário da madrugada, ela parte,
e teve uma confusão por causa disso. De certa forma é um padrão, sabe? Não sei se está
entendendo o que quero dizer – complementei um pouco nervoso a fim de esclarecer as dúvidas
enquanto tomava mais um gole de cerveja.

Fabrício se aproximou um pouco mais de nós, ainda sentado e sério, e disse em tonalidade
tenebrosa e misteriosa:

- Ela o chama de ‘Olhos Mortos’, não só porque seu olhar é intimidador, misterioso e
profundamente vazio. Segundo Cecília, seu olhar é personificação de um arqueiro que atira e
extrai tudo que há de mais vivo em você e drena para si com uma flecha envenenada que mata
aos poucos. Ela nunca terminou o conto ‘Os Olhos Mortos’ e quando questionam, ela fica
enfurecida e diz “não mencione este nome, pois ele fareja vida e nos devora para se satisfazer
com nossa desgraça”.

- Não entendo, é só um homem! Nunca levei a sério, de fato, talvez seja só mágoa que ela deve
carregar dele, tipo por terminado o relacionamento – disse Caio com um sorriso e embriagado,
seguido de um soluço.

- Talvez... não duvido! Mas esse homem não anda com as mesmas pessoas. Sempre é um grupo
diferente depois de um dia, semana, sei lá – retrucou Fabrício enquanto se levantava impaciente
–, bom, agora terei que voltar. Espero que tenha ajudado! Qualquer coisa, é só chamar.

- Beleza – dissemos ao Fabrício enquanto o víamos partir por alguns segundos antes de virarmos
à mesa e nos embriagar mais.

Caio se levantou com um pouco de dificuldade, com falta de equilíbrio sob efeito do álcool e
disse uma voz um pouco arrastada “vou fumar lá fora e já volto” e dirigiu-se até a saída. Como
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estávamos sentados em frente a saída, fiquei observando e rindo um pouco do seu gingado de
bêbado que de forma fracassada tentava esconder. Então de repente, enquanto ele se distraía
procurando o isqueiro, Caio esbarra em um homem alto, pálido e esbelto vestindo roupas
simples como uma camisa polo aberta preta e calças de jeans preta e tênis branco. O homem
estava sério e Caio ficou sem reação por alguns instantes e o encarou desconfortavelmente e
um pouco envergonhado disse:

- Opa, desculpa, irmão, é a bebida, me desculpa mesmo!

O homem o olhou bem nos olhos como se procurasse algo, olhou de cima a baixo e retrucou
com um sorriso e em palavras leves e singelas:

- Que é isso, cara, não se preocupe! É um bar, não tinha como adivinhar que eu iria aparecer
assim, tinha? – ao dizer isso, o homem deu uma tapinha em seu braço como se fosse alguém
íntimo – se me der licença, hoje irei me embriagar com alguns amigos, irmão.

- Ah, sim... se quiser, pode sentar-se com a gente, pô, tem quase ninguém porque deram um
bolo na gente, está bem ali – disse enquanto apontava até a mesa onde estou sentado e um pouco
mais aliviado pelo homem ter sido compreensível.

- Muito obrigado pela gentileza! Amo novas amizades. Aguardaremos você com seu amigo...
Caio – disse enquanto sorria o bom moço.

Caio ficou um pouco confuso como se não escutasse direito por causa da música e o alvoroço
do ambiente e retrucou:

- Quê? – colocando a mão no ouvido e o aproximando – entendi só até a parte do “amo novas
amizades” – disse enquanto sorria.
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- Falei que aguardaremos você, querido! – deu um tapa nos ombros de Caio e dirigiu-se com
mais 3 pessoas até nossa mesa sentaram-se.

Fiquei um pouco calado e tímido para puxar assunto com eles: eram dois homens e uma moça
que logo de cara pediu uma dose de cachaça. Usei como pretexto para quebrar esse gelo e disse
para descontrair:

- Uau, hoje vocês realmente não estão brincando – falei isso enquanto sorria.

- Sim, meu caro, é nosso ritual. – disse enquanto devolvia o sorriso, antes de perguntar algo a
Fabrício –, seu Fabrício, e Cecília, hein? Faz tempo que não a vejo! Gostaria tanto de escutar
seus contos inebriantes – ao falar isso, pude notar um ar gracioso, como se fizesse pouco dela.
Era cínico e dissimulado, mas com certeza era paranoia minha, pois não estava tão acostumado
com aquela graciosidade.

- Ela saiu faz pouco tempo, meu querido, talvez devesse chegar mais cedo! Digo a ela que está
preocupado. Quer mais alguma coisa?

- Um... espetinho desse aqui. – disse enquanto apontava para o cardápio –Vocês querem mais
alguma coisa?

- Espetinho também! – respondeu ambos.

- Certo, já volto – em seguida, Fabrício saiu rumo as bebidas.

Ficamos mais um pouco calados, e então me apresentei:


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- Sou Marcos, e vocês? – perguntei um pouco tímido.

- Eu sou Stefanny! Prazer em conhecer você, Marcos.

- João, prazer – ele mal olhou-me em meus olhos porque estava atento ao celular.

- Eu sou Victor, meu caro, prazer em conhecer! E peço desculpas por João, ele deve estar
resolvendo alguma coisa séria – disse enquanto pressionava as mãos uma contra outra, como
se estivesse rezando.

- Não, tudo bem, não se preocupe! Às vezes faço isso.

- Não, não está tudo bem, já conversei com João sobre isso e parece que ele nem me escuta.
Com certeza é besteira – disse Stefanny nervosa, respirando fundo para retrair sua raiva.

- Você nem sabe e fica falando besteira! Por que não age como Victor e tente ser mais
compreensível? Por isso estamos sempre brigando – retrucou João nervoso, e totalmente
impaciente guarda seu celular no bolso e descansa seus braços na mesa.

- E o que você quer dizer com isso? – disse Stefanny enquanto cruzava os braços.

- Gente, por favor, – em seguida, Victor abraçou ambos, colocando o braço por cima do ombro
de cada e os aproximou um pouco – vamos nos divertir! Estamos muito cansados e isso é o
mínimo por nós! Vamos lá, vamos beber e deixar isso para lá! O que acham? É uma péssima
ideia? Vou até desligar meu celular. – Victor retirou seu celular do bolso e o desligou antes de
devolver para seu bolso – Agora estou em total disposição de ambos.
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- Bem que ele poderia ser que nem você, Victor – disse Stefanny já aborrecida.

- QUÊ? – retrucou João enfurecido.

- Ela disse que ama você, João, é isso, bobo! – retrucou Victor com leveza em suas palavras e
um leve sorriso para descontrair.

Novamente tive a paranoia que Victor não estava usando destes artifícios para apaziguar a
situação, a cada momento, ficava mais tenso o clima entre o casal e parecia que Victor se
divertia disso. Aquele sorriso não era para descontrair, mas sim a demonstração é que ele estava
se divertindo e parecia querer mais... esse homem... assombra meus pensamentos então pouco
tempo... esse olhar perdido, misterioso e profundamente vazio era... assustador, muito
assustador! Isso era, de fato, intimidador. A essa altura, o álcool estava me deixando paranoico,
mas seu olhar era perturbadoramente... estranho e penetrante, como se enxergasse meus pecados
nas entrelinhas.

Após alguns minutos, Fabrício traz as doses de cana para os três, que tomam rapidamente e
fazem algumas caras e bocas, e logo depois, Caio volta e senta conosco novamente e demonstra-
se completamente surpreso ao avistar as outras duas pessoas que estava na mesa:

- João, Stefanny?? Caraca, não acredito! Quanto tempo não os vejo! Tudo bem? Lembro de
quando vocês começaram a namorar ainda no fundamental. Sempre se deram bem e eu os
invejava tanto – disse completamente sorridente, enquanto puxava a cadeira para se sentar.

- Sim..., nossa, você por aqui é realmente surpreendente, não vimos que era você! Estamos bem
sim, sabe como é: muita conversa e compreensão. – Retrucou João um pouco inseguro e
cabisbaixo.
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- Entendi... isso é muito fo...! – Antes que Caio terminasse de falar, João prosseguiu:

- Para ser honesto, se não fosse Victor, estaríamos piores! – Falou como se estivesse aliviado
ou arrependido. De fato, em breves palavras notamos o quanto ele estava angustiado pela sua
situação atual.

- Tomou uma dose e já tá falando da sua vida tão fácil, querido? Quer dar a senha do seu cartão
também? – disse sarcasticamente Stefanny enquanto soprava seu copo vazio de cana (ela fez
isso mesmo que você leu).

Victor sorriu e enfim, continuamos a beber e demos muitos risos, assim como
inconvenientemente houve algumas brigas entre o casal e Victor aos poucos soltava seu
comportamento sádico, e ficava nítido principalmente quando discutiam, mas em uma briga
que aconteceu no bar posteriormente, ele realmente não se conteve e pude notar o quanto ele
estava se divertindo com aquilo! E não era algo que muitos podem dizer “é somente uma briga
de bêbado”, houve um momento que o homem puxou uma faca para o outro e quase o cortou.
Todos do bar tentaram apartar, mas ele só ficou rindo e seu olhar brilhou muito mais do que
quando estava conversando conosco. Então fiquei desconfiado, mas segui descontraindo com
todos, e apesar do ocorrido que nos deixou tensos, tentamos nos divertir, até que em certos
momentos eu evitava falar muito com Victor, mas ele não parecia notar e falava abertamente
comigo:

- Marcos, você tem muita energia, aparentemente! O que você aspira, querido? – perguntou
Victor todo carismático e alegre, mas seu semblante não condizia.

- Ah..., pretendo ser um explorador como Marco Polo, sabe? Quero conhecer cada canto do
mundo, cada cultura e afins. Estudo arqueologia para isso. – Retruquei com um pouco de receio
e desviando meu olhar algumas vezes.
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Victor aproximou-se um pouco mais, com um olhar medonho e um sorriso completamente


estranho e sedento, perguntando:

- Será um caminho que exigirá muito de você, não é? Quantas coisas você terá que abdicar para
chegar aonde quer?

- Sim..., é... – Concordei um pouco desconfortável, e mudei de assunto –, mas me fale sobre
você. Parece ser um cara com muitos planos! E vocês dois também parecem ter grandes planos.
Querem falar sobre?

- Na verdade, não comentamos muito sobre o que planejamos, pois quanto menos gente saber,
melhor, sabe? – retrucou João.

- Concordo, João. Olha... tenho que ir agora – Disse Victor enquanto se levantava –. Amanhã
será um longo dia.

- Ah, acho que todos nós estamos saturados, para ser honesto. – Complementou Stefanny
enquanto se levantava e procurava algo na bolsa.

- Sendo assim, vamos pagar as contas e nos despedirmos adequadamente. – Retrucou


concordando Caio e retirando seu dinheiro com os demais.

Victor, Stefanny e João se dirigiram até a saída e escutei apenas João dizer “não vou poder
dirigir, eu acho” e em seguida, escutei Victor dizendo “Vocês não beberam tanto, além disso,
vocês mereceram! Você foi promovido, não é? Tem um casamento de anos e uma futura filha.
Hoje é mais que uma celebração” disse enquanto abraçava ambos e partia, depois não escutei o
que falavam mais.
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Após pagarmos, fomos até a saída e nos despedimos adequadamente e trocamos os números
um com o outro, mas fui o único que se recusou entregar o número e disse que era mais
reservado, uma ótima justificativa, acredito. O casal entrou no carro e questionei-os
mentalmente pelo fato de estarem embriagados, e antes de dar partida até tentei ir até eles, mas
Victor ficou na minha frente e perguntou:

- Por acaso, você vai descer a rua? Não quero correr o risco de ser assaltado, então posso
acompanhar vocês? – disse enquanto erguia suas mãos e expunha ambas as palmas, mantendo
aquele jeito cínico.

- Ah, sim, por que não? Na verdade, Caio vai por outro caminho. – Retruquei quando notei que
não daria tempo de eu falar com eles sobre dirigir no estado que se encontravam.

Um pouco aflito, apenas desci até ao Açude para pegar o caminho de casa, em silencio e
completamente incomodado por estar com Victor. Antes de eu seguir para a esquerda, Victor
para e anuncia:

- Espera! Vou atravessar aqui. Obrigado pela companhia. – disse com aquele sorriso
descaradamente falso.

- Não devia ter dito que estava tudo bem ele dirigir embriagado. – Retruquei rispidamente
olhando em seus olhos, completamente sério.

- Ah, sério? Nossa, sinto muito! Não sabia que estavam tão embriagados. – disse com aquela
voz irritantemente cínica, não obstante, com o mesmo sorrisinho sádico.

- Fala sério, cara, isso foi vacilo! Não vejo graça em saber que pessoas estão se arriscando
desnecessariamente.
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Victor emudeceu, e após alguns segundos, retrucou com uma expressão diabólica e o mesmo
sorriso, como se seu olhar penetrasse em minha alma e suas palavras perturbassem toda minha
paz, toda minha estabilidade e sabotasse até minha postura com ele. Naquele momento, senti
como se outras presenças estivessem atrás de mim pronta para consumir-me e arranhando todo
meu corpo, pelo menos, pareciam ansiar devorar minha alma ou mutilá-la:

- Você é como a maldita bruxa Cecília, não é? – disse quanto tirava um cigarro do bolso e
posteriormente colocara na boca deixando-o pronto para acendê-lo, e prosseguiu: o que fizeram
ou deixaram de fazer não lhe diz respeito. Você não pode fazer nada! Em contrapartida, meu
querido, você tem muito o que fazer em sua vida, não é? – e aos poucos ele aproximara de mim
cada vez mais intenso e sério – Tantos planos..., isso me desnorteia, de fato, deixa eu provar só
um pouquinho dessa vida! O mundo todo está tão mórbido e fatídico que me mata todos os dias
de tédio da vida corriqueira, mas pessoas que se dedicam todos os dias, lutam, sonham e se
sacrificam para ter tudo são impressionantes, assim como pessoas radiantes... O desespero de
uma vida por um fio exposta no olhar me excita.

De reflexo e em choque, vi seus olhos escurecerem e esbugalharem enquanto erguia suas mãos
e sua voz passava por algumas metamorfoses, mas corri sem parar! E quando olhava para trás,
via-o ter alguns espasmos e até se contorcer algumas vezes enquanto gritava “deixe-me entrar,
deixe-me entrar! Você transborda vida”, e então só corria mais e sem olhar para trás mais! E
escutava sua voz demoníaca ecoar na minha cabeça dizendo “vida, vida! Você transborda vida!”
o que fazia eu correr cada vez mais! Até chegar em casa. Às vezes, enquanto corria, as luzes
piscavam e o ambiente mudava drasticamente como se eu estivesse entrando em outro lugar,
outro mundo com coisas envelhecidas caindo aos pedaços com baixa iluminação ou com alguns
postes falhando cada vez mais! Estava tudo morto com uma aparência amarelada cada vez mais
envelhecida, e escutava sua voz, em certos momentos mais intensa, grossa e distorcida gritando
“DEIXE-ME ENTRAR, DEIXE-ME ENTRAR!” juntamente com alguns gritos de desespero,
como se estivessem em agonia pedindo socorro.

Quando cheguei em casa, abri a porta em desespero, liguei todas as luzes, fechei todas as janelas
e tomei um ar enquanto estava em frente ao quarto e senti como se algo estivesse na minha
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esquerda, na cozinha, me observando. A luz piscou algumas vezes e eu estava completamente


apreensivo de ter que olhar para lá! Eu lentamente virava até a cozinha, com a luz amarelada
agora, e pude ver um homem alto vestido de branco, em pé, com as costas arriada, como se
estivesse cabisbaixo e olhando para baixo enquanto sofria com alguns espasmos. Ele foi virando
lentamente até encarar-me; ele tinha os lábios costurados e seus olhos escorriam sangue!
Repentinamente ele pôs-se a esmurrar sua própria cabeça e gritar como se desesperadamente
quisesse falar algo. Em seguida, ele colocou suas mãos em sua boca a fim de descosturar a força
e lentamente foi abrindo e se mutilando cada vez mais e gritando de dor e agonia. Entrei no
quarto sem pensar duas vezes, tranquei e deixei a luz acesa e encarei a porta sem piscar. Escutei
alguns cochichos, e depois, choros de agonia junto com gritos desesperados dizendo “DEIXE-
ME ENTRAAR, DEIXE-ME ENTRAAAR, ele está vindo, ele tá chegando, NÃO, NÃO,
NÃÃÃÃÃÃO!” e alguns ruídos como se alguém golpeasse sem parar alguma coisa, e até
barulho de corte e alguns murmúrios de dor. Depois, tudo ficou em silencio. Eu estava ofegante
e em cima da cama com meu lençol torcendo para que fosse só um pesadelo, mas lá estava eu
encarando a porta com aquele silencio terrível. Após alguns minutos, ouço alguns passos se
aproximando do quarto, mas não bateram na porta. Depois de mais alguns minutos, alguém bate
na porta e diz “Deixe-me entrar, Marcos, essa porta não vai me segurar. Você vai dificultar as
coisas mesmo?” apenas fiquei em silencio todo tremulo, até que depois as luzes se apagaram e
eu simplesmente me cobri, e em prantos, sussurro “por favor, para, por favor, eu não” e então
as luzes se apagam e reacendem com uma tonalidade amarelada e percebo sua silhueta. Meu
corpo involuntariamente se moveu, por mais que eu relutasse, não conseguia controlar, então
removia lentamente meu lençol, e aos poucos estava prestes a ver aquilo. Quando ia remover
por completo o lençol e me reerguer para ficar sentado na cama, a luz se apaga novamente! E
quando estava prestes a gritar socorro, alguma coisa pressiona meu pescoço e repentinamente
as luzes se acendem, e lá estava ele: Victor, com seus olhos mortos e penetrante, babando como
se estivesse faminto e com as veias do rosto saltando e pulsando completamente anormal, com
o rosto mutilado. Enquanto me segurava, ele perguntou com um sorriso tenebroso, com a boca
cortada até as bochechas:

- O que você sussurrou? REPITA, REPITA, REPITA! – e pressionava cada vez mais meu
pescoço.
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Só retruquei as mesmas palavras “por favor, para, por favor, eu não” com extrema dificuldade
e ele só gargalhou e me soltou, e ficou rindo sem parar e disse “que assim seja, mais tarde você
deixará eu entrar” e logo entrou em prantos, se contorcendo e gritando continuamente “DEIXE,
DEIXE, DEIXE-ME ENTRAR! DEIXE, DEIXE” e assim tudo..., tudo se apagou novamente.

Na manhã seguinte, acordo um pouco confuso e com a pior das dores de cabeça, como se tivesse
acertado continuamente cabeçadas na pia de porcelana. Levantei-me um pouco confuso e, em
seguida, relembrei a noite terrível que tive e recolhi-me para o canto da cama e fique escorado
na parede por alguns minutos. Depois, peguei o celular e verifiquei o horário e ainda era manhã.
Não estava atrasado para o trabalho, o canto dos pássaros ecoava pela minha cabeça
estridentemente e instigava enjoo. Após alguns minutos, decidi sair do quarto. Levantei-me às
pressas e nervoso: pronto para enfrentar o mundo! Até gritei “FODA-SE!”. Ao abrir a porta,
não tinha um corpo sequer e nem sangue. Tudo estava do jeitinho que deixei. Fiquei confuso...
fui olhar na cozinha pegar remédio para dor de cabeça que estava no armário. Depois peguei a
água e fui mexer no celular. A mensagem não podia ser a pior, minha manhã sumiu com o
resquício de vontade com aquilo:

- Marcos... Stefanny e João foram encontrados mortos em um acidente.


Tentaram socorrer, mas... É isso. Vamos tomar um café pra falar sobre isso,
a funerária se encarregará do resto.

Então assim concluir o porquê de ele ter partido e me deixado em paz naquela noite. Na verdade,
só desconfiava porque estava perplexo ainda e sem saber o que fazer, então sucumbi as minhas
paranoias sobre tudo que tinha acontecido... O que aconteceu ontem era real a ponto de provocar
essa... Calamidade? O que houve tem a ver com o que acho?

Não pude me conter e tive que contar para ele o que poderia ser a resposta do acidente, uma
possível maldição contra eles que foi lançada por Victor, mas uma informação de cada.
Simplesmente dizer que foi ele seria estranho, preciso de provas e no momento..., bom..., só
tenho o que eu vi e interpretei, mas ainda preciso dizer! Abri a mensagem e respondi sem
titubear:

- Caio... Acho que sei a possível causa do acidente...

- A bebida?
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- É o que parece...

- Mas é o que é, falei aquilo brincando!

- E se eu disser que pode ter algo a mais?

- Pelo amor, diga que você não está metido nisso! Sabe o problema que
teremos?

- Calma..., eu explico quando estivermos no trabalho. Não é exatamente o que


está pensando. Quero que prometa que não achará ridículo.

- Não posso prometer isso, terá que me contar e descobrirei assim que o fizer.
Realmente espero que não seja um problema mesmo.
Não respondi mais e apenas preparei-me para banhar e segui adiante ao banheiro. Ainda sentia
dores fortes em minha cabeça, mas acho que o banho bastava (ou ao menos achei). Assim que
terminei o banho, não pensei em comer alguma coisa em casa e só fui até ao trabalho para
encontrar Caio e dizer o que poderia ter acontecido.

Ao chegar no trabalho bem a tempo, vi Caio em uma ligação com um cliente, então apenas me
sentei ao seu lado e entrei na minha conta para iniciar o expediente e aguardar Caio terminar
sua ligação. Caio parecia estar impaciente e apreensivo, então tentava sempre evitar o pior ao
falar com cliente aparentemente insuportável! Após ele desligar na sua cara, ele bufou e fitou-
me com os olhos repleto de raiva e disse:
- Odeio esse trabalho e essa vida aqui. Quero tanto ser um advogado e ganhar dinheiro
processando esses idiotas.
Sorri enquanto terminava a operação e respondi:
- Acredite, tem gente pior!
- Não ligo! Não quer dizer minha situação não mereça atenção. Não vai dizer que prefere
trabalhar eternamente aqui? – retrucou indignado.
- Não disse que esse é o trabalho dos sonhos, disse que estamos em boas condições.
Caio revirou os olhos e retrucou impaciente:
- Deixa pra lá! Apenas diga o que você está escondendo aí...
- Não sei se posso dizer aqui... nosso supervisor está bem ali.
- Vai segurar isso até o intervalo?
- Tenho opção?! – retruquei já impaciente.
- É só falar baixo, estamos conversando agora, droga! – disse enquanto tentava cochichar.
- Tá bom, tá bom... Vai parecer idiota, mas preciso que tente entender.
Caio sorria desde já, muito antes de eu contar, o que me aborrecia por parecer que não estou
sendo levado a sério:
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- Para de rir, é sério, Caio!


- Pode contar, tô esperando.
- Lembra do Victor?
- Como esquecer? – disse enquanto sorria.
- É... ele tá envolvido.
- Por que não disse à polícia? Como sabe disso?
- Ele... – antes que eu terminasse, Caio indagou novamente e impaciente:
- COMO SABE DISSO?!
- Ele convenceu de alguma forma a Stefanny concordar com aquela ideia estupida! Você viu!
Caio suspirou e soltou sua risada que desdenhara da minha ideia e retrucou:
- É preciso mais que uma teoria da conspiração, Marcos! Isso foi apenas um terrível acidente e
trágico. Victor não tem nada a ver só porque não interferiu na vida alheia como você.
- Você consegue esgotar minha paciência mais rápido que meus jogos e investimentos.

Ficamos em silêncio por um breve período apenas operando no computador, aguardando a


próxima ligação. Então Caio suspira e diz arrependido:
- Olha... Foi mal... Não quis te chamar de idiota por uma ideia idiota.
- Isso não tá ajudando.
- Imagino..., mas... Como posso saber disso? O que aconteceu ontem que fez você pensar nisso?
- Ele me atacou...
- Como assim? Por que não abriu BO?
- Porque o que ele fez não faz sentido.

Caio apenas fitou-me a fim de procurar traços de mentira, brincadeira ou algo do gênero, mas
viu minha feição de seriedade e logo suspirou novamente e olho para a sua máquina novamente:
- Realmente deixou você abalado e não é brincadeira, mas você vai ter que explicar direito isso
aí.
- Cara... É complicado, mas é como se ele não fosse daqui. Resumindo tudo: ele meio que fez
eu sobreviver em troca da vida dos dois.
- Tipo um pacto?
- Não sei dizer, falando assim fica fantasioso.
- Mas do que já está? Acho difícil, mas sei que está falando a verdade, mas sabe como sou
cético por essas coisas. Isso não faz sentido, na verdade nem existe!
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- Aparentemente, uma pessoa sabe muito mais disso do que a gente, e isso envolve mulher e
bar.
- Está falando da Cecília, a macumbeira?
- Por que acha isso?
- Pessoal a descreve como se ela fosse algo do gênero, esperava que eu pensasse o que?
- Qualquer coisa, menos algo dessa intensidade.
- Achou preconceituoso só porque interpretei a realidade? Foi que deu a entender.
- Acho que não quero saber sua opinião sobre isso.
- Sobre religiosidade ser uma idiotice?
Apenas calei-me e mexi no computador até chegar alguma ligação. Depois de horas esperando
algo, o telefone toca e dou início ao atendimento com a fala de abertura do telemarketing, como
muitos conhecem. Ao terminar minha apresentação, a voz arrepiou até minha alma e senti
minha pressão caí imediatamente..., a voz não era somente familiar, mas era exatamente quem
eu achava que era. Sua fala mansa e até imaginei aquele seu sorriso dissimulado e seu rosto
sereno:

- Quem fala é Victor, o cara que o tirou a morte do seu caminho.

Fiquei brevemente calado e assustado, tanta que Caio notou imediatamente. Não soube como
reagir, apenas emudeci enquanto buscava algo para reagir. Enquanto isso, Victor prosseguia:

- Não foi fácil, né? Pareciam ter uma longa vida, mas escolheu o melhor para você e não julgo.
Caso sirva de consolo – Victor fez uma longa pausa e retomou sua fala com uma intensidade
menor e assustadora – teria feito o mesmo.

Ainda titubeante se aquilo era real, retruquei repleto de medo e impreciso:

- O que quer de mim...?


- Essa pergunta, de fato, é para pessoa certa?
- Irei abrir um BO contra você!
- Os policiais são capazes de lidar comigo? Não vejo tantos triunfos nem nesse mundo! – disse
enquanto gargalhava.
- Nesse mundo? O que quer dizer?
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

A ligação ficou inaudível e as luzes piscaram; houve queda de energia e as máquinas


desligaram, exceto a minha. Neste momento, minha respiração ficou ofegante e olhei para os
lados paranoico supondo que Victor estaria aqui, mas para minha surpresa: todos
desapareceram e somente eu permaneci. Minha voz ficou trêmula diante da ligação ainda
inaudível e em pânico..., com medo de ser morto ali ou vivenciar o verdadeiro inferno antes de
ser morto. O local ficou com um aspecto envelhecido e as luzes mudaram sua tonalidade para
amarelo, após um breve período, a ligação parou com chiado e ficou limpa para Victor se
pronunciar:

- Você tem algo que quero, aliás! Vocês. E o que eu quero dizer? – Victor fez novamente sua
pausa tenebrosa e completou: Há inúmeras pessoas agora que quer o que você tem, essa vida
ofuscante como o calor de verão, e quando falo pessoa... Bom..., você verá.

Ao desligar, berrei “ESPERA!!”, mas não tive retorno. Saí às pressas do local, mas a saída
estava bloqueada, então corri para saída de emergência, mas enquanto caminhava, vi uma
sombra caminhando lentamente até onde encontrava-me. Admirei brevemente e gritei “CAIO!
É VOCÊ?!” e não tive retorno. Recuei lentamente e gritei para que me deixasse em paz e
continuei caminhando até contornar meu corpo para o caminho planejado, mas enquanto
prosseguia, a criatura disse:

- Não é justo... Tinha tantos planos..., não é justo – a criatura entrou em prantos e se ajoelhou
como se tivesse completamente arrependida de algo.
- Não sei do que está falando.
- Foi roubado fazendo o que eu não queria, mas o ele sempre nos dá uma chance..., por favor,
me dê só um pouquinho.
Ignorei o indigente e segui com meu caminho. Logo, escutei um estrondo e um grito que fez as
luzes piscarem, o grito ecoou e paralisou-me imediatamente. A criatura parou de chorar e
apenas ficou ajoelhada em silêncio. Tentei ignorar, mesmo depois dessa terrível ocasião,
mesmo depois dos murmúrios da criatura que era assim:

- Que egoísmo enorme esse seu..., você é cheio de mentira, ego e covardia. Ainda desdenha
daqueles que têm mais direito que você. – Ele levantou-se lentamente e caminhou em minha
direção um pouco mais depressa e prosseguiu: não acha que tudo simplesmente será assim,
você dá as costas e procura uma fuga. Você deve nos dar o que nos pertence, senão teremos que
tomar!

Olhei para trás e o vi se contorcendo como se não tivesse ossos, a criatura soltou seu berro
ecoante e assustador novamente, logo pude notar que não estávamos a sós, havia vários onde
ele estava, mas agora encaravam-se como se reconhecesse o que eu era e porque estava lá. Eram
olhos sedentos por vida, mas preenchidos de morte que avançavam lentamente até onde eu
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

estava. Emitiam sons estranhos com gritos de agonia dentre alívio, quase indistinguíveis. Corri
o máximo que pude, os ruídos foram aumentando juntamente com barulhos como se socassem
metais com um pé de cabra! Corri, corri e corri enquanto os gritos ecoavam desespero
proclamando “ME DÊ A MERDA DESSA VIDA AGORA!!” e eu somente corria até
esgotando-me em um corredor com dois caminhos: de onde vim e o caminho a frente. Parei um
pouco para respirar e recostei minhas mãos em meus olhos enquanto recuperava meu fôlego e
pensava no que fazer, porém escutei ruídos que parecia sair da parede, como rosnado das unhas
contra a parede. Aproximei-me do som recostando minha orelha contra a parede e pude escutar
alguns grunhidos como se estivesse incapacitado de falar mais o ranger da unha esfregando
com força a parede, cada vez mais alto! Depois, o grito ficou tornou-se mais agoniante,
desesperador, repleto de dor, como se o indigente tivesse removido algo que estava na sua boca.
Ele gritou
- EU IMPLORO POR TODOS NÓS, REZO POR NÓS E VOCÊ NOS SILENCIA PARA
SOFRER DENTRO DE NÓS. TUDO DOI, eu sofro..., por favor, me tire daqui, não seja
mesquinho
- Desculpa..., não posso, tenho realmente que ir, desculpe.
- Tudo dói, tudo dói! – ele gritou ainda mais e emitiu uns sons como se golpeasse algo na
parede, e ficava mais forte. Depois prosseguiu: não sofrerei mais, não aguento mais..., por favor,
eu imploro! Deixei-me entrar..., deixe eu entrar..., DEIXA EU ENTRAAAAAAR!!

Tropecei ao tentar correr, mas logo recuperei o ritmo. Para meu alívio, avistei a porta com o
nome saída. Caminhei até o portão onde colocara meu crachá e fui até a parada de ônibus vazia.
A rua estava tão calma que esqueci brevemente do inferno que passei dentro daquele... daquele
lugar. Seja qual for o lugar, mas foi o próprio inferno.
Longos 20min se passaram até que o ônibus chegasse. Adentrei aliviado querendo somente
dormir e esquecer esse dia que quanto mais passava, mais distante do fim eu ficava. Peguei meu
vale transporte, passei na máquina sem olhar pra nada além do meu banco próximo da saída.
Estava completamente exausto, entretanto; nunca pensei que nada pode piorar quando você já
está na pior. O cobrador segurou meu braço e fitou-me com seu olhar penetrante e estranho.
Seus olhos eram pretos e a tonalidade de sua pele era estranha, como se estivesse morto. Ele
sorriu e disse:

- Olha só... Acho que você não devia estar aqui, tenho quase certeza que cometeu um equívoco,
não é, Jonathan?

O cobrador apenas olhou pelo espelho, acenou com cabeça concordando com sua feição de
raiva, angústia ou sei lá... era como se não me quisesse. Logo, prosseguiu:

- Esse ônibus vai a um local onde não há retorno, não há arrependimentos, não há alegria nem
tristeza. Nada e tudo ele é e esse lugar não é para você..., ainda.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Apenas me calei e passei impacientemente pela catraca, sentei-me e suspirei. Fechei os olhos e
pensei “se for o fim, talvez deva me conformar, se for um sonho; devo acordar. O que eu fiz
para merecer um inferno desse?”. Impertinentemente, o cobrador bateu em sua mesa e gritou
“vamos AGORA levar esse andarilho ingrato! ÚLTIMA PARADA, SEUS ARREMPEDIOS E
DESESPERADOS!”. Olhei para frente sério, cocei algumas vezes meus olhos, minha cabeça.
Notei que todos no ônibus me olhavam como se nunca tivesse me visto ou como se fosse alguma
comida. Olhavam completamente sedentos, curiosos e tristes; era como se quisesse me devorar
sem poder. Eles e seus olhos mortos cobiçavam a vida insubstituível que tivera. Desviei o olhar
para baixo e pensei em outra coisa além daquele local.
Por mais estranho que pareça, só lembrei da Cecília e sua dança reconhecida como seduzente
presenciada e deleitada com meus olhos..., eu enxerguei..., aquilo trouxe tranquilidade,
acalentando aquele horror. Depois, como uma cortina que desaba de um teatro, uma voz
carregada de amargura diz na menor intensidade possível:

- Deveria pensar duas vezes antes de acabar com tudo, esse caminho talvez não tenha volta...

Continuei calado, fechei meus olhos e meus punhos já domado de fúria, mas a voz era familiar
e ele continuou:

- Sabe... Não sei como explicar, mas a vida pode desaparecer e nem podemos fazer nada quando
algo assim acontece. Quero tanto ver minha esposa e dizer o quanto sinto. O mundo é injusto
com aqueles que querem viver. Só se aproveitam do nosso animo e se nutrem até não sobrar os
ossos. Quantas vezes me questionei o que eu realmente queria, talvez até assaltar um banco
seria mais aventureiro..., odeio tudo, odeio o homem que fui, odeio, odeio, odeio... – disse
enquanto chorava discretamente.

Virei meu rosto lentamente e imediatamente identifiquei-o: era você...João!


Fiquei em silencio e busquei tantas palavras para ganhar alguma migalha de misericórdia ou
perdão que nem deus pôde-nos dar ao crucificar e matar seu único filho, nem quando ficou
angustiado ao destruir seu mundo perfeito. Apenas encarava-o murmurando buscando todas as
palavras em tudo e no nada, mas minha alma pesava de tanta angústia, tanta amargura..., porém
pensei “essa pode ser a chance de libertar-me?” e falei titubeante, gaguejando:

- Sinto muito, João... – logo meus olhos lacrimejaram.


- Marcos?? Você aqui? Você é uma das últimas pessoas que pensei em ver nesse fim de mundo.
O que houve? – indagou um pouco mais animado.
- Eu matei você e sua esposa, isso tudo podia ser evitado!
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

João emudeceu, porém logo desdenhou da minha ideia com um sorriso e voltou ao seu silencio.
Então prossegui:
- Na verdade..., sei quem realmente roubou tudo de vocês e isso posso provar!
- Diga então, estamos ficando sem tempo. – Retrucou desdenhando.
- Victor! Ele trouxe-me até aqui!
- Victor? Pelo amor...
- Parece idiota, eu sei! Mas pensa comigo: nós estávamos com ele e agora estamos aqui! Ele
deu a palavra que nos condenou. Na mesma noite... – antes que eu terminasse, João me
interrompeu e retrucou aborrecido:
- Peraí, você tem noção do que tá falando?! Não fode! Por que agora isso?!

Elevei a intensidade da minha voz e retruquei enfurecido:


- MERDA! Olha como estamos! Acha que estou brincando?! VOCÊ PODE TER UMA VIDA
INTEIRA AINDA PARA LEMBRA OU SE ARREPENDER SE ME DER UMA CHANCE!!

João se calou e sinalizou com a cabeça para eu prosseguir, então o fiz:


- Desculpa, não queria ser grosso.
- Nada..., só deu um choque que eu precisava. Prossiga.
- Victor invadiu minha casa com os mesmos truques sobrenaturais e exigiu que eu escolhesse.
Ele me deixou sem opção e eu não sabia que realmente custaria a vida de alguém. Escolhi a
mim e tirou vocês por eu não dar minha vida. Ele matou sua esposa e brinca de vida e morte.

João novamente tragou um breve silêncio, respirou fundo não como se estivesse incrédulo (dada
circunstância), mas como se estivesse indignado. Logo redarguiu com a testa franzida e seus
olhos pretos:

- Então o tal moço gentil tirou minha Stefanny, quem diria...


- Sim, inclusive; o próprio barista disse que ele e Cecília não se davam bem. Ela sabe alguma
coisa sobre o que ele é e o evita.
- Cecília é vivida, sabe das coisas.
- Sim..., talvez se for comigo aonde quero ir e o que pretendo encontrar, podemos; pela primeira
vez, triunfar sobre esse mundo injusto.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

João olhou-me com um semblante sereno e um sorriso perspicaz esperançoso. Retrucou, em


seguida:

- O que estamos esperando? A justiça acontece quando agimos, não é? Vamos descer dessa
porra!
- É assim que se diz! Vamos!!

Caminhos juntos, como irmão de guerra até a saída, entretanto; o motorista gritou “psiu” para
chamar minha atenção e encarou-me enfurecido:

- Victor sabe o que faz e isso é fato..., você e essa usa mania de querer estar em tudo. Meteu o
nariz onde não foi chamado. – Logo buzinou e bradou: O ANDARILHO VAI DESCER COM
O UM VINGATIVO, VAMOS LOOOOGO, SEM PARADAS E VELOCIDADE TOTAL!

Antes que eu dissesse qualquer coisa, apenas saíram às pressas com os passageiros que
pareciam rir para caçoar de mim e minha atitude, mas não me importe. Sorri esperançoso e logo
olhei para João. Assim que o vi, seus olhos sangravam e ele encarava o chão. Depois sorriu e
olhou-me estranhamente, como se soubesse de meus pecados, com um sorriso maquiavélico ou
malicioso e disse:
- Ele vai pagar caro, né?! Ele errou feio, muito feio.
- É... – disse um pouco desconfortável.
Ele veio até onde eu estava, abraçou-me desesperadamente apertado, e disse:
- JUNTOS!

Tentei desfazer-me do abraço, mas logo ele puxou meu rosto, segurou minha face com muita
força e soltou um rugido enorme enquanto penetrara meus olhos com seus olhos mortos. Senti
a vida esvair-se brevemente, só que João apenas soltou seu rugido de fúria e sumiu. Fechei
meus olhos e quando abri, vi Caio falando sobre o trabalho naturalmente. Eu estava perdido e
confuso de como estava na mesma parada, longe do trabalho e exatamente no horário de saída.
Mais estranho ainda é não lembrar de absolutamente nada além do terror que vivenciei. Caio
notou quão atônito eu estava e mexeu no meu ombro a fim de chamar minha atenção:

- Tudo bem? Prestou atenção no que eu disse, cara?


- Não sei..., é que...
- Ah, fala sério! Tenho que falar tudo de novo?
- Pode ser estranho, peço até perdão..., mas não lembro de nada desde a minha segunda ligação.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Não sei qual foi a sua segunda ligação. Tá falando do cara que ligou pra você pedindo uma
GRANDE contrato?
- Não sei... Como agi?
- Ficou feliz, eu acho. Não parou de falar dele.
- Eu fiquei conversando com você?
- Sim, sim, até chamaram sua atenção, mas você foi muito irritante.
- Por quê?
- Perguntei toda hora sobre o lance do Victor, mas você só ria e acabava desviando do assunto.
Quando reclamei, você nem ligou. Seu olhar tava estranho...
- Não lembro de nada. Diga-me tudo quando entrarmos no ônibus. Melhor... Acho que
devíamos ir até Cecilia.
- A bruxa?
- QUE SEJA!
- Ok, ok! Vamos entrar no ônibus.

Expliquei a Caio toda minha situação assim que entramos no ônibus e onde estive, até
acrescentei a preciosidade de Cecilia saber de algo que não sabemos. Caio estava incrédulo e
apenas se calava, escutando atentamente. Caio falou de como eu agia naturalmente, exceto
quando mencionava Victor e o que aconteceu. Expliquei tudo que pude, assim como ele.
Apenas agi naturalmente todo o tempo, com todo esse mesmo tempo, naquele lugar passaram-
se aparentemente poucos minutos ou no máximo 1 hora, mas às 6hs passaram-se da minha
jornada. Após este longo diálogo, acrescentei ainda:

- Vamos até o bar.


- Agora? Talvez não seja uma boa, amanhã é trabalho.
- Isso é importante, por favor, talvez minha vida dependa disso.

Caio silenciou, suspirou e redarguiu:


- Ok... Se é importante pra você, então vamos. Encontraremos a Cecília?
- Isso. Não pode ser madrugada, tem que ser agora!
- Então vamos.

Por mais que a dúvida rondasse sua cabeça, Caio entendia meu desespero e agia do seu jeito
para ajudar-me – o que confortava.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Cecilia sabia de algo e ela é minha última aposta. Só precisava entender o conto dos Olhos
Mortos e o que era tudo e como ter minha vida de volta..., de qualquer forma, nada poderia
melhorar se eu somente fingisse que nada aconteceu, porque tudo estava simplesmente
acontecendo.
Ao entrarmos no ônibus, conversamos mais sobre o que fazer. Caio tentava esconder sua cara
de desdenho quando mencionava Cecilia e o “lance de misticismo”, emudecia e apenas
concordava como algo simbólico, mas como um pesar na consciência e reconhecimento de sua
apatia, tentava complementar minhas informações com algumas perguntas:
- Acha que isso ou esse tal de Olhos Mortos tem algum problema com Cecilia?
- Não sei, só podemos saber com ela.
- E se for só um problema casual...?
- Tipo...?
- Podem ter sido um casal, como disse naquela noite. – Retrucou um pouco hesitante.
- Sei lá..., isso parece meio vago, dada informação que mencionamos. Não temos outra opção
e você sabe.
Caio deu de ombros ainda, mesmo em seu silêncio perturbador sondado por dúvidas sobre tudo,
então resolvi silenciar-me até chegar o mais próximo possível do bar para descermos até lá e
encontrarmos Cecília.
Ficamos em silêncio durante todo nosso percurso, até chegar ao bar aliviados. Avistei
imediatamente Cecília com seu humor simplesmente vislumbrante e infestando todo o bar com
alegria. Ela se expressara tão bem ao dançar com sua cintura solta e sorriso com aquelas
covinhas lindas, seu corpo magro e sua pele morena coberto de suor deixando-a brilhar ainda
mais, ela era tão contagiante que fazia todos desprenderem-se da ideia de não saber dançar e só
ir até lá para se divertir. Todos embriagados, batendo palmas, tocando, dançando, cantando sem
parar, cada vez mais contagiados pelo clima. Era difícil chegar até Cecília com tanto movimento
em sua volta, por mais que eu estivesse com pressa, esperei até que tudo se acalmasse – que
seria esperar Cecília sentar e pedir a mesma bebida, o que não demorou tanto.
Ela respirou fundo e se sentou na cadeira mais próxima que foi dada por um homem qualquer.
Em seguida, sinalizou para Fabrício trazer sua bebida. Foi quase nesse exato momento que fui
com Caio até ela para conversarmos, ainda um pouco nervoso por não saber qual seria sua
reação. Tossi para descontrair um pouco enquanto encarava seus olhos esverdeados cristalinos:
- Cecília...
- A própria, meu amor – respondeu enquanto sorria.
- Não sei como falar, mas já que está saindo... sei lá...
- Lamento, mas não busco agora e nem depois um amor.
- Não, não, não é isso, é mais delicado.
Cecília apenas encarava e fazia gestos exigindo minhas especificações, o que me deixava ainda
mais nervoso para falar. Caio intrometeu-se e falou sem titubear:
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Queremos saber sobre Os Olhos Mortos.


Cecília mudou sua expressão imediatamente, olhou para os lados desconfiada, incomodada e
em busca de saída, mas logo encarou-me e disse da forma mais seca possível:
- É um conto idiota, não é para vocês..., pessoas como vocês. Melhor pensarem em outra coisa,
principalmente se for falar sobre isso com a pessoa errada, repórter.
- Não, é que...!
- O quê? Curioso? Isso pode matar você, isso se já não mencionou o nome dele.
Engoli a seco e a fitei com meus olhos de cachorro pedindo ao dono, suplicando ajuda
desesperadamente sem mesmo ser específico:
- Olha..., estou passando pelo verdadeiro inferno desde ontem. Primeiro foi enquanto ia pra
casa, agora é até no trabalho. Sei que não quer falar disso, mas não sei onde posso retirar
informações sobre tudo sei lá o que...
Cecília me olhava com pena, o que me deixava desconfortável e me sentindo ainda mais
desesperado, mas o que piorava era seu silêncio com seus longos suspiros mergulhados com
pensamentos profanado pela minha afobação. Ela encarou-me novamente, se levantou e disse:
- Falaremos disso em outro lugar e resolveremos do meu jeito, mas aqui não é o local. Irei beber
só o que pedi e iremos pra minha casa.
Assim que Cecília disse isso, Fabrício chega com seu copo de caipirinha. Cecília bebe
rapidamente e me puxa para fora impacientemente, enquanto Caio me acompanhava. Todos
que estavam no bar vislumbravam surpresos e iniciaram os boatos imediatamente.
Sua casa ficava algumas quadras do bar e era aparentemente simples. Ao chegarmos, Cecília
olhou para nossos sapatos e bradou:

- Tirem os sapatos, por favor. Entre descalços.

Sem titubear, o fiz, enquanto Caio a questionava:

- Por quê? Não fará diferença.

- Fará porque é minha casa, mas pode esperar aqui, se quiser.

Caio suspirou aborrecido e retirou impacientemente seu sapato e os deixou no tapete com os
meus.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Adentramos sua casa que possuía uma decoração exótica com alguns... símbolos... ou coisa
assim. Parecia runas ou selos. Havia inúmeras cortinas, tapetes e até incensários – o que
explicaria o aroma doce até fora de casa, mesmo que quase imperceptível, pude sentir. Cecília
apontou à mesa para sentarmos e disse “irei preparar um chá e já volto”. Caio aproveitou a
deixa para falar:

- Acha mesmo que ela pode nos ajudar? Olha isso...

- O que?

- Sei lá..., esquece. Só estou estressado. O trabalho é foda.

- Ah, desculpa... arrastar você pra isso não parece ter sido uma boa. Já têm suas coisas, afinal.

Caio fez uma expressão um pouco cabisbaixa, como se novamente lembrasse de ser agradável
e retrucou com um semblante arrependido:

- É demais, eu sei, mas quero ajudar. Mesmo se for contra o que acredito. Só quero respostas
imediatamente. Fazer as coisas “foi isso, foi aquilo”, soa estranho.

- Desconfia de mim?

- Não foi o que eu quis dizer. É melhor esperar ela para esclarecer tudo.

Concordei com a cabeça e aguardamos em silêncio até Cecília chegar. Após alguns minutos,
Cecília aparece com uma bandeja com um bule e três xicaras toda sorridente, como se não
houvesse preocupação. Deixou-nos com a bandeja na mesa e disse “sirvam-se” e foi acender
seu incenso. Ela estava com uma roupa mais relaxada, mas ainda com o mesmo semblante sério.
Quando sentou conosco, sem rodeios, ela foi direta com muitas informações:

- Aqui é possível falar o nome dele sem que ele se sinta invocado. Os sapatos fora daqui é
questão de higiene, caso estejam curiosos. Os incensos são garantias para que nada chegue aqui
por entre permeio ou entrelinhas, as runas nos protegerão dos espíritos que permeiam e
observam. Odeio essas almas curiosas que buscam brechas para nutrir-se de vida para auto
revigorar-se. Por incrível que pareça, almas não são guardiãs como todos dizem! Eles
selecionam o mais maleável e nutrem-se até que tenham chance de renascer. Eles podem trazer
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

preocupações, ansiedade, medo, insegurança e afins. Quando fazem algo bom, é para benefício
próprio: a redenção.

- Espera..., mas nunca ouvi essa versão.

Cecília deu de ombros e redarguiu:

- Pessoas inventam coisas: sejam boas ou ruins, e você sabe. Elas não sabem nada do mundo
interior, exterior e o espiritual. Principalmente sobre Cosmos.

- Cosmos? Aquela lei do universo lá? – indagou Caio.

- Guarde seu ceticismo e busque respostas, por agora, não mais dúvidas para manter seu ego.
Como estão na minha casa, posso canalizar energias e sentir como se sentem. Seu amigo tem
tantas dúvidas e incômodos.

- Não acredito nessa idiotice – retrucou Caio enfurecido.

- Gente, só quero resposta. Depois discutimos isso.

Cecília manteve seu sorriso cínico para Caio, mas logo retomou sua conversa:

- Enfim, espíritos são a mais pura forma ou essência de alguém. A verdade é que todo ser
humano tem interesse, se é coisa boa ou ruim, depende de quem enxerga, mas não altera o fato
de que a realidade tende a ser decepcionante e seus interesses podem ser interrompidos por
outros fatores ou pessoas. Como nós, eles se decepcionam quando não o ajudamos a voltar para
cá..., tipo quando não realizamos a vontade daquele amigo que não aceita um não. Seres livres
do aprisionamento, como eu, opta por ver ou não ver coisas, ser ou não ser coisas. Uma
porcentagem rara nota isso, muitos acham que é outra coisa, não julgo. É o mundo.

- Ainda não entendi o que isso tem a ver com Victor. – Retruquei um pouco desanimado.

- Seja paciente. Uma mão lava a outra. Entenda a magnitude do que você está lidando agora.
Depois contará o que houve detalhadamente.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Cecília tomou um gole de chá, levantou-se e caminhou até algumas velas aromatizantes para
acender. Antes de prosseguir, descobriu sua janela e buscou paranoicamente algo fora do
comum, cobriu-a novamente e voltou a caminhar pela sala falando:

- Não esqueçam do chá, ele sela corpo dos espíritos que querem “proteger”. Bom... os espíritos
são mais ambiciosos que você pode imaginar, e com eles não se brincam. São eternos, vivem
como andarilho em busca de pessoas desesperadas, perdidas e afins. Ajudar alguém por
entrelinhas altera o Cosmos para que eles reincidam a morte e ganhem algo que a morte não é
capaz de dar: esse mundo, a vida, a liberdade – disse alegremente Cecília.

- Isso não faz sentido. Ser um fantasma e passear por aí parece melhor que as merdas daqui –
retrucou Caio com desdenhar.

- Não sabe o que tem lá, então não se trata de opinião e sim SABER. Retrate sua insolência e
ignorância, meu amor.

Ficamos em silêncio brevemente, mas logo Cecília prosseguiu e aproximara seu rosto com
semblante ainda mais sério até nós:

- Conte-me sua história e verei o posso fazer. Diga o seu nome e deixe as runas guardá-lo, quem
sabe isso não me ajude a lembrar também – disse Cecília enquanto sorria.

Contei detalhadamente o que houve comigo na noite anterior e hoje, o que vi e o que houve
antes de chegar aqui. Evitei citar o fato de eu ter pensado nela por constrangimento, claro...,
não vem ao caso. Falei tudo o que podia e Caio também repassou cansativamente sua versão da
história enquanto eu estava em transe. Cecília nos fitava conforme entreguemos detalhes,
pensava e escutava atentamente. Quando terminei de relatar, ela se sentou à mesa com um
semblante preocupado e pensativo. Depois exclamou:

- Como eu falei: espíritos são ambiciosos e querem só um passe pra cá. Infelizmente, Victor é
algo diferente; ele faz acordo com espíritos que vagam, busca, os expurga, nutre-se e nem os
vivos escapam disso.

Cecília falava de uma forma desconcertada de Victor, como se não quisesse se aprofundar sobre
ele – o que fazia eu indagar a mim mesmo se eram amantes. Antes que eu perguntasse algo a
mais sobre Victor, Cecília me atropelou com uma bela bronca sobre o que eu fiz no ônibus:
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Não devia ter interferido no caminho que leva almas como a de seu amigo. Não faça coisas
que não saiba, porque isso pode ser uma catástrofe. Não quer mais Victor por aí, não é?

- É... mas ainda não sei o que fazer. Perdoe-me ter interferido no caminho do Cosmos, mundo
espiritual ou sei lá, só fiquei indignado. Pareceu adequado.

- Mas não foi... temos que agir para expurgar seu amigo daqui agora, antes que Victor faça com
ele o mesmo que fez com os outros. – Cecília se levantou bruscamente, fez um leve sinal com
as mãos fazendo as velas se apagarem. Depois disse:

- Dormirão aqui e faremos a busca amanhã de noite. Têm coisas que trabalho melhor sozinha e
explicar para vocês agora será cansativo. Tenho um quarto de hóspede. Farei os preparativos
e... é isso.

Caio manteve um olhar desconfiado e tampouco se pronunciou sobre. Esperou até que ela
desaparecesse para falar comigo; na verdade, para ser específico: reclamar.

- Ela não falou nada que pudesse nos ajudar. Pior ainda: deliberadamente disse que dormiríamos
aqui e quando ajudaríamos. Não quero faltar, não quero motivo para reclamarem de mim.

- Calma..., a gente tenta convencer eles. Isso é necessário!

- Pra você. Espero que saiba como me tirar dessa depois.

Caio estava chateado pela situação em si e principalmente por ele não entender. O que me
lembrava da nossa maior aventura em Bolton Strid, Inglaterra, que foi uma das nossas maiores
programações de viagem já feito. Li sobre o local aleatoriamente e achei o riacho e a floresta
perfeitos! Trazia paz e fazia eu pensar “tenha que estar em lugares assim”. Caio, sendo otimista
como sempre, pesquisou sobre o local e viu que aquele riacho era um dos locais mais perigosos
do mundo, dando início a inúmeros alertas de como agir, onde fica e o que evitar. Não preciso
dizer que disse a ele que isso era desnecessário e que tínhamos que apreciar a brisa. Somente.
Ainda nos acidentamos, mas consegui sair do riacho a tempo! Escorreguei numa rocha por lá e
acabei caindo, mas Caio foi rápido, estava precavido – depois ficou aborrecido. Ainda sim foi
nossos melhores dias, mesmo que ele não tivesse entendido a ideia “aproveitar”, aquilo ficou
registrado.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Levar ele ao bar para saborear o melhor de um momento ruim era o mínimo que tínhamos para
fazer, senão a situação seria mais desgastante. Chamei ele e cochichei em seu ouvido:

- Vamos ao bar beber um pouco, já que estamos protegidos. Precisamos de uma trégua.

- Você tem certeza de que isso é uma boa ideia agora? Minutos atrás você estava desesperado!
– disse no seu tom sarcástico.

- Será coisa rápida. Vamos!

- Gosto quando você acorda esse seu espírito descuidado... às vezes.

Caio foi pelas pontinhas dos pés comigo até a porta, calçamos os sapatos e fomos até o bar. Já
era noite, mas estava longe da madrugada, o que nos daria bastante tempo para descontrair à
vontade. Saímos ao bar com a felicidade imensurável em nós. Conversamos sobre o tempo que
precisaríamos ficar e sobre a Cecília:

- Acha que ela pode nos ajudar ainda? Acha que ela tem alguma ainda que esconde sobre
Victor? – retrucou Caio titubeante, com uma expressão preocupada.

- Concordo que ela só explicou algo que não queríamos e mal falou sobre Victor ou Os Olhos
Mortos, mas sei o que vi.

- E se ela, na verdade, não souber nada dele? Pode ser que ela saiba sobre esse mundo louco,
mas talvez nem imagine o que há em Victor.

Apenas fiquei em silêncio pensativo por ele não estar totalmente errado. Ela parecia hesitante
ou cautelosa para falar, mas não como se estivesse preocupada com que Victor aparecesse de
repente, era evidentemente outra coisa que desconhecíamos. Pensar sobre isso fez eu ter certeza
do que precisaríamos... O Bar.

Ao chegarmos, ainda havia a mesma clientela no bar, só que menos eufórica. Apesar da música,
o local estava calmo e repleto de bêbados deprimidos buscando respostas em um copo com
álcool. Escolhi alguma mesa do lado de fora para respirar um pouco e apreciar o melhor daquela
noite. Caio foi até Fabrício pedir nossas bebidas enquanto aguardava-o na mesa. Novamente
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

pensei sobre nossa curta conversa: e se Cecília realmente não soubesse de nada sobre quem era
Victor? Com poucos minutos de espera, Caio juntou-se a mim e aliviado, disse:
- Ainda bem que pensou nisso..., só de estar aqui, mudei por completo. Realmente Cecília muda
esse local.
- É...
- Deveríamos pensar em uma viagem como aquela na Inglaterra, não é?
- Estava pensando nisso antes.
Caio serrilhou seus olhos, mudou a direção do seu olhar para meu lado para constatar quem
seria. Assim que pode ter certeza, apenas retrucou “fodeu” e mudou a direção do seu olhar. Era
Cecília com seus passos impaciente repleta de fúria:
- Vocês enlouqueceram?! Sabem no que se meteram, vocês têm IDEIA do que está
acontecendo? – disse enquanto nos fitava e chacoalhava suas mãos.
- Calma..., só queríamos uma coisa boa, pelo menos por alguns minutos, já que ainda nem
sabemos se você pode conter ele. – Bradou Caio sem titubear, a fim de atingi-la.
Senti um desconforto..., uma leve sensação de estar aqui e não está, mas pensei que fosse só
uma singela culpa por agir irresponsavelmente. Logo Cecília retrucou ainda mais enfurecida,
apontando o dedo para Caio:
- Me dispus ajudar vocês por nenhum pagamento, e você sabe disso. Quem precisa de ajuda é
seu amigo. Se você tivesse alguma ideia do que há com ele, saberia certamente como agir agora.
Devemos voltar pra casa agora!
- Ah..., gente, calma. – Disse enquanto me levantava e realizava alguns gestos apaziguadores:
Cecília, realmente só foi uma saidinha. Não pretendemos demorar, nos dê essa chance. Estamos
protegidos, de qualquer forma, não é? – novamente senti aquele mesmo desconforto, só que
mais intenso e com um calafrio.
- Se me dessem tempo de falar, só mais um tempinho para pensar no que exatamente falar sobre
Os Olhos Mortos, não estaríamos aqui. Sua culpa vai me atrapalhar.
Continuei questionando então Cecília, mas sempre desviava suas respostas e dizia para voltar,
enquanto Caio tentava nos interromper, mas só discutíamos sobre respostas, sobre o que
acreditar e afins. Caio simplesmente se joga na nossa frente desesperadamente e grita:
- PARA, PARA, PARA! PAROU. Vocês..., notaram?
- O QUÊ?! – eu e Cecília retrucamos enraivecidos:
Caio estava completamente pálido, até trêmulo, apontando para o bar e gaguejando, como se
estivesse vendo um monstro:
- O..., o bar ficou vazio.
Ficamos vislumbrado com a situação o suficiente para esquecer a discussão. O bar há alguns
minutos estava cheio, embora melancólico. A rua estava ficando coberta com uma neblina
misteriosa e as luzes ficaram com uma coloração estranha. O local aos poucos mudava,
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conforme buscássemos algum encontro com o mundo que estávamos, mais distante ficávamos.
A neblina aumentava e tudo em volta ficava ainda mais imperceptível, só podíamos contar um
com o outro. Nos apertávamos ainda mais até aquilo se dissipar ou diminuir o suficiente para
enxergarmos. A neblina ficou rapidamente intensa, mas brevemente permaneceu no local que
nos cercava, da mesma forma que sua aparição misteriosa entrelaçou-se entre vossos
pensamentos com o medo, ela sumiu e nos deixou alerta. O local estava ainda mais diferente: o
bar, as casas e até rua estavam envelhecidos. As luzes com sua coloração amarelada, o céu sem
estrela alguma e sem lua e a sensação estranha que eu sentia.
Cecília atônita, apenas sondava interminavelmente todo a rua, entrou no restaurante e olhou da
outra esquina, mas tudo estava vazio e sombrio. Ela engolia a seco como se aquilo fosse
novidade, o que irritava mais Caio. Após analisar e encarar o fato com muita dificuldade,
Cecília diz quase inaudível:
- Seteálem...
- Pode ser mais clara? – pergunta Caio impacientemente e aborrecido, como se não tivesse
escutado suas palavras.
- Seteálem é um universo paralelo. Ele fez isso...
- Você faz o que faz e isso ainda lhe impressiona? Uau!
- Acontece que é a primeira vez que sou arrastada até aqui. Isso é culpa de vocês!
- É fácil, é só irmos para sua casa. Pelo visto... – Caio rumou em direção da casa de Cecília e
prosseguiu: você não é tão boa no que faz. Sua casa não tem selos ou sei lá o quê? Estaremos
protegidos. E bebemos chá.
- Você não é tão inteligente, pelo visto – retrucou Cecília enquanto procurava algo em sua
pequena bolsa.
- Vamos até lá, qual é o medo?
- Nada, mas se o selo do chá não serviu, significa que é fraco contra o que estamos lidando.
- Tá aí algo que devo concordar. – Retrucou sarcasticamente.
- Poupe-me de sua idiotice!
Tomei dianteira, me aproximei dos dois a fim de apaziguar a situação:
- Gente, agora realmente não é hora. Cecília, vamos ao menos tentar. É pertinho..., por favor.
Cecília ficou titubeante, mas após uma breve reflexão, consentiu. Antes de partirmos, advertiu:
- A casa pode ter sumido, mas vamos. Por isso não quero e acho que será perca de tempo.
- Disse que o selo que estávamos era fraco, podemos descobrir se o selo que usa na sua casa é
forte assim. – retrucou Caio todo repleto de graciosidade e sarcasmo.
- Claro que o de casa é forte, isso é que nem você presentear o melhor para seu amigo e ficar
com o pior. Casa é casa, rua é rua. Não posso me desgastar como imagina, todos os dias,
sabendo que posso sempre voltar ao meu lar.
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- Talvez eu não possa mais... – retruquei veementemente triste por causa da situação incerta,
cabisbaixo, fadigado a ponto de desistir de tudo.
Cecília se aproximou de mim domada por sua fúria e indignada pela minha atitude de desânimo
e tentou me encorajar do seu jeito:
- Não vai terminar sua história sem ao menos deixar na metade, certo? Veio me procurar e
estamos aqui pelo mesmo motivo. Se ele fez isso, significa que podemos fazer algo maior do
que ele imagina..., algo que deve estar distante do mundo em que vivemos. Algo que notei
quando comentou sobre Seteálem – Cecília caminhou a frente enquanto falava, com a mão no
queixo; rumo à sua casa – ele sempre tenta afastar você do mundo que estava como se quisesse
cortar vínculos e dar vantagem a ele, já que esse mundo ele conhece. Não somente isso: ele
pode controlar os espíritos que estão aqui.
- Acha que somos especiais?
- Acho que você tem alguma coisa além da vida alegre que você tem, só não sabe.
- Então sou especial?
Cecília só bufou e bradou:
- Só vamos até minha casa!
Ao chegarmos no destino, casa sumiu sem deixar rastros, como se nunca estivesse ali. Todas as
residências do bairro estavam ali, exceto a casa de Cecília e o restante de seus pertences que ela
mencionou no percurso que iria precisar para lidar com o local. Sua expressão mudou
repentinamente para algo mais preocupado que ainda tentava afugentar-se no autocontrole de
tudo. Cecília apenas nos fitou. Quando estava prestes a falar, escutamos um barulho de algo
rastejando em nossa direção. Todos paramos e encaramos o local escuro, cautelosos e
amedrontados esperando pelo pior e se preparando. O barulho fica mais alto e outros sons
vinham, como cochichos e até alguns risos. Olhávamos em voltaa em busca de saída além do
caminho de volta, mas não havia muitas opções. Quando eu e Caio gritamos “VAMOS SAIR
DAQUI”, Cecília gritou para esperarmos e completou um pouco preocupada, como se soubesse
quem realmente é:
- Não é quem estão pensando que é...,
- Não quero pagar pra ver!
- Calma! É mais um espírito aprisionada por Victor. Deve ter sido condenado a rastejar por aí
com algum artifício para torturá-lo.
Ficamos alerta e prontos para correr, Caio ainda dizia “vamos logo, estamos ficando sem
tempo”, mas Cecília dava de ombros e apenas esperou a criatura entrar na luz amarelada para
enxergarmos ela. Quando finalmente chegou, pudemos ver ela acorrentada arrastando-se de
joelhos, com sua boca costurada e chorando sangue com seus olhos negros. Ela parecia implorar
por algo, mas era inaudível. Caio gritou “PUTA MERDA, MATEM ELE”, mas Cecília o
repreendeu enquanto se aproximava da criatura:
- E se fosse você no lugar?! Não enxerga alguém desesperado por ajuda, não é?
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- De repente eu vejo todos os dias algo assim, não é? Além disso, por que ele veio do nada até
nós?
- Porque somos os únicos que podem ajudar.
Cecília se aproximou do indigente acorrentado aterrado em sôfrego, clamando em grunhidos
por sua liberdade. Ela tocava seus lábios costurados, suas correntes e olhava para o restante de
suas úlceras. Após olhar tudo, ela nos chamou para ajudá-lo sentar-se, enquanto descosturava
sua boca com uma pequena faca que tinha na bolsa. Quando finalmente tirou todas as costuras,
a criatura apenas olhou para cima em busca de alguma coisa pelo céu apático. Seu olhar para lá
era tão curioso e misterioso que logo ganhou nossa atenção. Era proporcionalmente profundo,
como se buscasse respostas ou estivesse lendo algo que ninguém mais podia enxergar.
Continuamos a cuidar dele como podíamos enquanto ele encarava o céu. Não demorou muito
para Caio se incomodar e questionar Cecília sobre o caso:
- Por que ele está olhando para cima?
- Não sei..., mas ele está aliviado.
- Fizemos a coisa certa então?
- Deguste a sensação, se possível em silêncio. – Retrucou rispidamente Cecília enquanto
mantinha sua concentração.
A criatura, ou o espírito de seja lá quem for, logo fez uma expressão diferente: ele sorriu
exibindo seus dentes pontiagudos, ainda com suas lágrimas ensanguentadas despencando de
seus olhos, e disse solenemente com suas palavras misteriosamente fantasmagóricas e
perturbadores:
- Esses olhos continuarão mortos mesmo livres, continuarão em profunda agonia e desespero
porque se arrependeram mais que viveram. Quem dera pudesse vislumbrar tudo mais uma vez...
antes de tudo..., antes que ele viesse, pelo menos. – Entrando em prantos por relembrar onde
estava e o que tinha acontecido.
A criatura ficava ainda mais inquieta, trêmula como se estivesse com frio. Aos poucos nos
afastávamos enquanto a criatura começara vomitar sangue com uma coloração ainda mais
escura, acompanhado de outras coisas que não podíamos distinguir. Encarávamos Cecília em
busca de respostas quanto aquilo, mas estava tão perplexa quanto nós. A criatura soltou um
grito tão estridente que fez com que tapássemos nossos ouvidos rapidamente, mas ainda
podíamos escutar e o som ecoava interminavelmente. Ela levantava forçando seus braços contra
a corrente a fim de rompê-las, causando ainda mais ferimento. As correntes apertavam ainda
mais seus braços e seu corpo, a ponto que começara adentrá-lo. Cecília recuou um pouco mais
até onde estávamos e disse horrorizada:
- Eu senti..., ele, mas ele..., estava em agonia, estava sendo honesto...
Caio pegou no ombro de Cecília e disse precisamente:
- Não temos tempo para perguntar agora, temos que sair daqui imediatamente.
Quando estávamos prestes a sair do local, escutamos um assobio calmo se alastrar, juntamente
com passos calmo. O assobio cessou, os passos se aproximaram mais com a sensação familiar
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de do que estava por vir. A voz penetrante e pomposa soou por todo lugar, mencionando
primeiramente nossos nomes:
- Cecília, Caio e..., Marcos. Admito que não esperava vê-la aqui, tão próxima de mim. Inúmeras
vezes tentei contactá-la, Fabrício contou – Seus passos cessaram e seu rosto ficou visível para
todos nós. Era ele... Victor.
- Vocês cantarolam tanto como sabiá, mas agora suas vozes dissiparam-se com o nevoeiro que
estava aqui. Imaginei que fossem mais fortes, mas são só uns cachorrinhos que latem sem parar,
sendo ainda mais irritante – Victor andava em volta da criatura, que só choramingava e dizia
“por favor” repetidamente. De forma impaciente, Victor segurou a cabeça da criatura com as
duas mãos e bradou quase salivando:
- CALA A BOCA E PARA DE CHORAR! – e o arremessou contra o chão.
- Você soltou a boca desse chorão que só serviu para trazer-me até aqui. Essas... – Victor foi
em direção a cabeça da criatura e recostou seu pé: eles só servem pra se lamentarem, chorar e
sonhar. São mais fúteis que vocês, TODOS vocês. Aliás..., você me deu dor de cabeça, Marcos.
Seu amigo está bagunçando tudo por aí. Não é simples quando – enquanto falava, mais
pressionava a cabeça da criatura, que só choramingava mais – todos devem simplesmente
aceitar e seguir em frente?! NÃO! Todos têm que complicar tudo, tudo e tudo – Victor
pressionou tanto que logo seus olhos soltaram e a cabeça da criatura explodiu, emitindo um
som estridente que ecoava pelo lugar inteiro, um som similar a um grunhido de porco. Logo,
Victor prosseguiu: Talvez transforme todos em Atormentados e condene todos a chorar por aí
e implorar por um vislumbre de liberdade, de vida..., o que acham? De qualquer forma... –
Victor preencheu seus olhos com a mesma cor preta da criatura, pressionou seus punhos
enquanto olhava para cima e respirou fundo, tentando absorver algo além da própria atmosfera
ou que não podíamos enxergar e exclamou:
- Decidi para de brincar. Daqui não sairão mais e darei um fim nessa desordem que estão
causando.
Victor nos fitou profundamente, expondo suas palmas e sinalizando para outras coisas virem
até onde estava. Em seguida, enquanto as outras criaturas com olhos negros e bocas costuradas
se aproximavam emitindo sons de agonia, enquanto algumas proclamavam “LIBERDADE”,
Victor preparava-se para avançar para atacar-nos.
Sua velocidade era estupenda, não foi possível enxergar seu movimento que era acobertado por
fumaça que se dissipava em sincronia com seus movimentos. Quando chegou até nós, senti sua
mão fria tocar-me e puxar em sua direção, também senti sua mão fria com um sentimento vazio
transbordando-me. As palavras escapavam de qualquer tipo de distinção sobre aquilo, mas
como um naufrágio, aquilo afundava-me cada vez mais para algum lugar que mais escurecia,
já estava pronto para afogar-me, quando de repente, ouço um grunhido de dor indistinguível,
mas não era humano. Senti apenas meu corpo declinando rapidamente e a sensação de acordar
de um sonho – antes da dor que estava prestes a sentir ao despencar no chão. Foi uma dor
estridente atrás da cabeça que senti após o impacto com uma leve tontura, assim que olhei em
volta e a minha dor foi perdendo a significância ao repassar a situação como um filme, olhei a
minha volta e só vi Victor se contorcendo como se estivesse em chamas e vi seus “lacaios”
correndo em nossa direção. Cecília e Caio me puxaram de forma abrupta, sem realizar pergunta
alguma e saímos correndo o mais rápido que podíamos. As criaturas grunhiam sem parar, a rua
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ficava mais estranho conforme corríamos; as casas ficavam tortas, assim como a rua. As luzes
piscavam sem parar e o som das criaturas e nossas respirações pareciam mais alto que o normal.
Corríamos, corríamos e corríamos sem rumo em busca de um porto seguro para nos abrigar da
própria noite e suas criaturas das trevas famintas. Corremos tanto que nem percebemos quando
simplesmente todos aqueles estardalhaços desapareceram do nada. Só paramos quando
encontramos uma casa qualquer aparentemente abandonada, com a porta aberta e com um
pouco de luz.
Adentramos sem pensar duas vezes e nos recostamos na parede para recuperar o fôlego.
Descansamos muito mais que nossos corpos durante aqueles minutinhos, degustamos até cada
segundo também para pensar nos próximos passos e o que tudo aquilo se tratava. Cecília,
mesmo ciente de tudo, estava diante de uma novidade, mas não sobre esse mundo, e sim sobre
tudo que o compõem. Olhei a face de Caio tão punida, de tão abatida que estava pela quantidade
de informação que ele digeriu, pois momentos atrás, estava mais fácil questionar a veracidade
dos fatos que emiti, não a realidade em que estávamos. Cecília estava aparentemente sob
controle, plácida mesmo diante do caos em que a arrastei e determinada com sua sagacidade
em sair. Ficamos por muitos minutos em silêncio, cada um digerindo da sua forma o que
aconteceu. Eu estava inquieto ainda mexendo em algumas coisas e os fitando, pensando até
aonde iriam com seus pensamentos e vontades. Quando comecei a batucar meu pé contra o chão
lembrando de uma música do Elvis, Caio fecha seu rosto e contorna agressivamente em minha
direção fazendo “shhhhhhh”:
- Quer chamar atenção dele?! Se for o caso, vá só.
- Só queria pensar em algo legal além do problema – retruquei um pouco ressentido com suas
duras palavras.
- E quero que pense em algo relacionado ao problema, porque você sabe que não estamos fora
disso! Ainda estamos do Setelem – Cecília exclamou de repente, o interrompendo:
- SETEÁLEM!
- Que seja! NÃO IMPORTA. Não estamos a salvos, não temos uma vida e nem o celular tem
sinal aqui pra chamar a polícia.
- Os policiais podem lidar com isso? – retruquei com aquele leve ar de deboche.
- E você pôde?
Recolhi o que restava de minhas palavras e dignidade em meu singelo silencio, que agora estava
flagelado por ser importunado com inúmeras informações que não nos levava a nada, nem essa
discussão nos levou a nada além de um desconforto maior. Cecília apenas nos fitou, mas nem
atreveu intervir, somente quando acabamos nossa discussão, ela foi até mim:
- Hey..., parece idiota perguntar isso, mas tudo bem?
- É melhor coisa que aconteceu até agora, não foi idiota.
Cecília soltou aquele seu sorriso lindo que servia como nosso astro, naquele momento. Algo
que mencionei também ao encarar nossas circunstâncias:
- E esse sorriso é tudo que temos de bom agora. Sempre o apreciei.
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- Obrigada – disse enquanto sorria timidamente e mexia o cabelo.


Ficamos em silêncio novamente e adentrei meus pensamentos novamente para contornar todo
aquele horror, mas Cecília disse descontraidamente:
- O que sentiu quando ele o tocou?
- Ah..., é estranho, mas senti como se estivesse afundando. Talvez afogando com o nada. Era
tudo tão vazio, morbidamente sufocante
- Entendi...,
- O que fez ele soltar?
- Ah, sim! Foi isso aqui:
Cecília revirou um pouco sua bolsa e puxou um frasco com a tampa frouxa:
- Isso é um pó de pedra do sol.
- Hã?
- A Pedra do Sol é tipo um selo, só que não..., ela te guarda de energias negativas, purifica
vossos corpos e alma, e com sua energia solar, atrai o melhor de nós: como alegria e felicidade.
- Então ele é infeliz? – questionei descontraidamente, arrancando novamente o sorriso de
Cecília.
- Quem dera fosse só isso – retrucou com seu sorriso gracioso –, mas apenas usei a lógica:
Victor não se expõe em horários matutinos ou vespertinos, somente a noite ele finalmente sai
da sua toca e rasteja pelos bares por aí. Aquele espírito queria o sol, mas é impossível encontrá-
lo. O mais próximo do sol que estão, está nesse frasco.
- Victor pode ser derrotado então? Ou..., morto?
- Acho que sim, ele recuou mesmo quando fiz isso.
Respirei aliviado quando Cecília confirmou tal feito, parecia água para o sedento ou o Saara.
Durante todo nosso percurso, só agora reconhecemos nossos avanços e seus efeitos contra ele...,
Os Olhos Mortos. Não me contive e sonhei acordado com o melhor desfecho pra tudo aquilo;
seria eu e minha vida monótona de trabalho, entrando na faculdade e realizando meus sonhos.
Sendo livre e vivendo do jeito que eu achar melhor depois de tanto esforço, talvez eu até escreva
sobre tudo isso e venda. Como chamaria esse conto? Penso nisso quando for a hora, mas esses
pensamentos se esvaneceram com as palavras mortais repletas de realismo:
- Mas isso não será o suficiente, não estamos em casa e nem sabemos como sair daqui. Ele tem
um poder descomunal quando se trata de manipular e mesclar os dois mundos, fez tudo que eu
sei parecer nada.
Fiquei brevemente em silêncio, mas fui bombardeado com a informação que Caio apresentou
ainda no bar e após. Quem era Victor, de fato? Como Cecília soube de sua existência e sabe
tanto sobre essas coisas ocultistas? Ela sabia de algo que fazia ela se envergonhar, na hora de
falar, ou só de perguntar sobre ele. Pensei em muitas formas de perguntar à ela sem sofrer um
corte ou coisa assim, só pra sanar essa dúvida e entender o que há aqui. Pensar sobre isso não
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

trará respostas, tampouco criar teorias sobre isso, então tomei atitude e quando estava prestes a
falar, todos olharam para uma só direção que emitia um som de madeira sendo pisoteada, que
mais se aproximara. Cecília se levantou e preparou seu frasco, Caio uniu-se a nós e aguardamos
a oportunidade de correr. Quando finalmente chegou e seu rosto ficou visível para todos,
reconheci imediatamente aquele rosto domado de arrependimento, fúria e vingança, só que
menos de abatido. Era João e sua forma fantasmagórica, ou forma Olhos Mortos. Precisa e
estranhamente ele estava na mesma casa que a gente. Assim que eu o reconheci, pedi para todos
se conter e me aproximei dele:
- Você sumiu..., achava que tentaria me matar.
- Estava procurando Victor..., mas soube que se eu encontrar você, posso encontrar ele.
João emitiu um som tão alto e estridente, que fez com que caíssemos no chão. Tapamos nossos
ouvidos e nos contorcemos de dor. Assim que João terminou, pude ainda usar o que restou da
minha audição para escutar o mesmo som como resposta, só que mais distante. João fitou-me e
somente disse, com seus olhos vingativos:
- Perdão, mas não irei desperdiçar o que desperdicei na outra vida. Isso custa minha paz. Você
pode sobreviver ainda, se for sua hora.
Ficamos ainda atordoados no chão tentando se levantar, mas quando estava prestes a levantar,
João golpeou-me na barriga em cheio. Fiquei tonto, quase desmaiando e com uma dor
insuportável na boca do estômago. Contorcendo de dor ainda aos sons de meus choramingo,
tentava rastejar até a saída, mas lembrei do que Cecília tinha e pensei em um plano para agir,
mas ela já estava um passo a frente usando sua perspicácia. Ela estava recostada na parede com
as mãos para trás, parece estar atordoada ainda, mas apenas esperava, como a cobra, o momento
certo destilar seu veneno no infeliz. João olhou para o alto como se escutasse algo e virou seu
rosto imediatamente para saída. Caio tentou se aproveitar do momento e sair correndo pela
mesma, mas João tentou ser mais rápido e pegá-lo, falhando miseravelmente quando Cecília
arremessou o que ainda tinha do pó da pedra do sol. Todos saímos correndo, mas fomos parados
pela trupe de Victor. Estavam cercando o local e ansiosamente nos aguardando. A feição de
Victor não podia estar pior: as queimaduras em seu rosto ainda regenerando, seus olhos
ensanguentados como se estivesse chorando e sua postura como se estivesse pronto para deferir
sua fúria em todos nós. Ficamos parados encarando-o, quase aceitando nosso destino de que
agora tudo seria o fim e nada pode poderia ser feito, mas vi Cecília mencionar algumas palavras
e correr na direção de Victor com o que restava de seu frasco. Movidos pelo impulso, eu e Caio
corremos com ela enquanto as criaturas grunhiam avançando até nós, mas Victor estava mais
precavido e não hesitou em empurrar bruscamente todos nós contra parede. Ficamos estirados
na parede sofrendo tentando se recompor para lutar até nos esgotarmos, mesmo feridos. O que
irritava ainda mais Victor e podíamos ver sua fúria crescer ainda mais. Aos passos curtos e
suaves, vinha João como se não tivesse feito nada, sereno como o vento entre as folhas das
árvores e sem peso na consciência. Cecília se levantou novamente e andou até Victor com o
resquício de força que ainda tinha, quase rastejando de tanto que não se aguentava em pé. Assim
que se aproximou o suficiente, uma das criaturas morderam sua perna e a outra jogou com toda
força contra o chão. Victor apenas disse “basta” e se aproximou de Cecília no chão machucada
gravemente. Sua perna sangrava sem parar e estava com grandes marcas de mordida, seu rosto
estava completamente ensanguentado e a dúvida era se ainda estava consciente. Tentei
reencontrar minhas forças naquele momento, não quero sair daqui como inútil, morrer sem ter
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

feito nada significante como salvar a vida de quem abraçou meu problema sem me conhecer.
Se ela morresse, nunca teria a chance de agradecer ou pagar adequadamente como ela quisesse,
ou pior..., jamais apreciaria sua dança graciosa, cheia de pompa e calmaria que adentrava no
coração dos seus admiradores. A noite seria vazia como nesse lugar e o bar morreria com a
minha vontade de seguir adiante só pela culpa. Usei minha força para avançar, só que fui parado
ao sentir uma dor dilacerante na perna, olhei de imediato e vi que minha perna estava quebrada
com o osso exposto. Gritei não alto o suficiente, foquei em ir até Cecília e ajudá-la, mas a dor
estava insuportável, então caminhava lentamente. Victor apenas sorria desdenhando da minha
determinação. Ele a puxou pelos cabelos ondulados e curtos dela para olhar sua feição de
abatida e zombar, quando me aproximei mais um pouco vociferando “FIQUE LONGE DELA,
SEU MALDITO!”, a outra criatura empurrou contra o chão também, caindo ao lado de Cecília,
apenas vendo Victor ri. João andou mais um pouco em direção a Victor graciosamente,
desdenhando tudo a sua volta:
- Não é tão intocável assim, sua besta.
- Não se trata disso, Atormentado. – A mão de Victor soltou os cabelos de Cecília, fazendo com
que ela acertasse com tudo o chão – É uma pena, ela é uma feiticeira em tanto. Agora está aqui...
bem sob meus pés. Não abuso tanto do meu poder para lhe pisar. Tenho respeito por você,
ainda.
João fechou seu rosto e avançou tão rápido que olhou algum captou aquilo, era simplesmente
sobre humano, era como se misturasse com o vento ou até quaisquer tipos de matéria dali.
Surpreendentemente, Victor nem demonstrou dificuldade para contê-lo, o infeliz o agarrou pelo
pescoço com suas mãos de unhas negras a afiadas, fitando e sorrindo para menosprezando sua
força:
- Você é tão previsível, todos vocês! Não achou que fosse capaz de me arranhar ou coisa assim?
Está corrompido, está cego e sem caminho. Seus pecados pesam mais que sua própria vida,
talvez nem se você nascer de novo será capaz de pagar o que deve. O mundo não dá tempo para
quem vive se arrependendo, mas deixarei você me arranhar ou tentar mais algum truque,
Atormentado.
João tentava de todas as formas golpeá-lo, e quando finalmente o atingia, Victor sorria como
se tivesse deixado. Nada o afetava, a não ser comicamente. Victor então enfiou suas garras bem
no peito de João e o ergue facilmente. O fitou e disse:
- Será como aqueles soterrados pelos escombros da alma miserável, como os Carniceiros que
anseiam por vida ou aqueles que choramingam, implorando pela liberdade. Lembre-se: seus
olhos já morreram!
Uma névoa revestiu João e se dissipou com ele diante de nossos olhos. Victor limpou suas mãos
e foi onde eu estava e dirigiu suas palavras a mim:
- Foi forte, na verdade..., todos foram, mas relutar contra o Cosmos não leva nada. Aceite seu
destino, talvez ainda haja tempo. Não tenho nada contra vocês, culpo muitas outras coisas. –
Victor se levantou enquanto preparava para deferir o golpe final e prosseguiu – É como dizem:
basta repetir uma mentira até se tornar uma verdade!
Quando sua mão ia descer, Cecília pulou até ele, mordendo seu pescoço. O máximo que pude
fazer foi segurar seus pés para desequilibrá-lo, mas as criaturas já estavam a caminho e não
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tínhamos nada para lidar com elas. Inusitado como sempre, Caio apareceu e o derrubou, fazendo
Victor cair sobre Cecília – que ainda estava com quase nada do pó da pedra do sol. Ela tacou o
que restava goela abaixo do miserável, fazendo-o se contorcer e emitir um som estranho. Assim
que Victor vociferou indescritivelmente sua dor, esguichando um grito infernal, as demais
criaturas repetiram o som. Corremos para ajudar Cecília, mas Caio voltou para casa que
estávamos para buscar a bolsa dela tão rápido quanto os mortos. Cecília com extrema
dificuldade, apenas disse quase inaudível
- Tenho um..., pingente..., uma mandala e um..., outro com os 6 domínios da existência – Cecília
tossiu um pouco, expelindo sangue, mas prosseguiu – se eu estiver certa, isso funcionara..., a...,
aqui também..., balance 3x e sairemos daqui.
Caio chegou com sua bolsa em busca de mais daqueles frascos, mas logo disse para ele buscar
somente uma coisa e que devia entregar-me para podermos sair desse inferno. Caio procurou,
procurou e procurou, mas ainda não encontrávamos. Perguntei desesperado a Cecília:
- Você realmente trouxe isso?!
- Estamos... Contando com isso...
- MERDA! OLHA LÁ!! – bradou olhando em direção das criaturas.
Victor estava se levantando completamente deformado emitindo som de um monstro sedento
por vingança. Mesmo ferido, sua regeneração era nitidamente rápida e logo estaria pronto para
contra-atacar. Caio derrubou tudo que estava na bolsa e possibilitou que eu enxergasse a
mandala. Gritei quase saltando de alegria “ALI, balança 3x vezes AGORA!”, Caio ainda
derrubou nos atrasando, e Victor já parecia estar pronto para atacar. Ele nos fitou e preparou-se
para uma investida com suas criaturas que estavam mais próximas, gritei desesperado, quase
sem voz:
- CAIO, VAI LOOOOGO!
- JÁ PEGUEI, PORRA, PEGUEI!
Victor avançou até nós rapidamente e sua força foi tanto que até o chão quebrou com seu salto
até nós. Caio sacudiu 2x, quando foi na 3º, Victor ainda foi rápido suficiente para nos alcançar,
pude sentir suas garras tocar meu peito ainda e senti o medo e minha vida esvair, mas senti uma
estranha vibração e minha visão escureceu. Tive a sensação de ter desmaiado, não enxerguei o
que houve e não podia entender..., apenas... e simplesmente..., apagou.
Acordei na cama, especificamente em quarto que nunca frequentei antes, mas o aroma era
família..., aquele aroma doce que adentrava minhas narinas infestando meu corpo com uma leve
energia. Senti o sol de uma manhã de um tempo nublado tocar-se sem estar nessa situação.
Fiquei tão relaxado que não parecia ter vivenciado aquilo..., aquele..., momento de quase morte.
Não senti dor alguma, estava em perfeitas condições e até mais revigorado. Respirei fundo para
deleitar-me mais do ar, só meus pensamentos foram invadidos com a preocupação que estava
por Cecília. Levantei-me quase saltando, corri abruptamente até a porta para abri-la.
Identifiquei que estava na casa dela e realizei minha busca até encontrar seu quarto, e lá estava
ela dormindo tranquilamente e com cheiro de álcool. Me aproximei devagar dela para buscar
seus hematomas, mas ela estava aparentemente bem, do mesmo jeito que estávamos. Fiquei
com medo de acordá-la, evitei tocar nela para inspecionar mais para garantir que ela estava
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bem. Saí com calma e um pouco confuso, fui até a sala e fiquei recostado processando tudo.
Fechei os olhos tentando pensar em como cheguei aqui e o que poderia ter acontecido, mas
assim que vi que Cecília estava bem e retirei a descarga de preocupação que estava sobre meus
ombros, meu relaxamento não durou tanto quando chegou uma terrível dor de cabeça. Era
insuportável, fazia com que eu entrasse em posição fetal e de forma fracassada pressionava
minha cabeça para aliviar a dor. Doía tanto que latejava, parecia que algo estava perfurando
minha cabeça, dessa vez. Era diferente da dor que senti na primeira vez, essa era pior, até minha
audição foi afetada com um zumbido. A passos calmos, somente enxerguei Caio se aproximar
para tocar-me, mas não podia escutá-lo direito, sua voz parecia distante. Ele saiu de onde eu
estava procurar algo pela cozinha, talvez água. Não demorou tanto, entretanto, minha dor estava
cessando e o zumbido sumia mais depressa. De qualquer forma, pedi que ele procurasse algum
remédio pela cozinha para eu tomar mesmo assim, somente para prevenir.
Caio se sentou ao meu lado e fitava-me esperando que eu falasse algo com aquele seu olhar
ousado e chato. Assim que terminei minha água, indaguei sobre o que aconteceu ontem ou em
algum momento do tempo:
- Aquilo foi sufocante...
- É..., sobre isso, ainda é surreal. Você está ferido?
- Ele ainda me tocou, senti aquelas..., aquelas mãos pontiagudas.
- Nossa..., - ficamos um pouco em silêncio. Caio logo aproximou-se de mim animado e disse
cochichando – mas você viu aquilo? Ele acreditou que estava lá desmaiado, apenas aceitando
meu destino no combate enquanto vocês o distraíam, mas só esperei o momento certo para agir.
Você é muito louco!
- Acho que você falando assim, muito perto, tá intensificando minha dor. – Respondi com
rispidez.
- Tem que admitir que foi o melhor. – O ar de prepotência emanava de suas palavras e irritava
ainda mais.
- Não consigo sentir orgulho de nada daquilo, sem falar que você quase nos matou quando
deixou aquilo cair. Victor é rápido, bastava 1 segundo a mais para levar um de nós.
- Você tá um saco..., esclarecendo isso: estava sob pressão, não tava fácil, você sabe onde
estávamos.
Olhei em volta da casa procurando algum traço para garantir que estávamos em casa, longe de
tudo aquilo. Fiquei atordoado porque senti que morreria ali, ou pior..., veria todos morrer sem
fazer nada. Caio incomodou-se com meu silêncio misterioso e decidiu com suas palavras
nefastas, afastá-lo:
- João estava diferente, né...
- Talvez aquele realmente fosse ele.
- Concordo, acho que ele sempre foi um babaca egoísta, só que carregando uma grande culpa
pelo que houve. Acho que estava desesperado para se redimir.
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- Também estávamos desesperados. Eu estava desesperado quando estava no ônibus fugindo


daquelas criaturas... – suspirei um pouco exausto ainda e chateado com todo aquele desfecho –
Sabe..., talvez eu nem devesse ter falado algo. Matei tudo que ainda prestava nele. Se você
tivesse visto, entenderia. Ele estava pronto pra ir, ele tinha aceitado, Caio.
- Ei, ei! Não é hora pra se culpar. Você fez o que achava certo, mas tenho certeza de que jamais
faria algo assim de novo. – Retrucou Caio enquanto pressionava meu ombro com sua mão.
Acenei com a cabeça concordando, mas logo retruquei ainda insatisfeito:
- Como será agora? Ainda temos uma vida? Tudo aqui está tão...
- Mórbido? – complementou Caio como se lesse minha mente.
- É..., olhando tudo minha volta, parece que nem iremos nos recuperar ou ter uma vida para se
orgulhar. Tenho medo de que a única opção seja viver aqui, escondidos...
Caio ficou em silêncio, entrando de cabeça em minhas palavras deprimentes sobre uma
realidade mórbida. Era duro encarar, mas o fato é que agora isso seria nossa realidade: lidar
com o oculto para sobreviver. Isso não é vida, como se não bastasse nossos demais sofrimentos
que temos que arcar, agora teríamos de fato uma luta da qual custaria nossa paz – se já não
custa. É deprimente, mas frustrante também. Pensei em várias formas de como eliminar Victor
e ganhar minha liberdade a qualquer custo. Viveria como um desvairado e sem arrependimento,
seria como Cecília... Cecília..., como ela se sente diante de tudo isso? Será que ela, no fundo,
se arrependeu de ajudar um rapaz tolo como eu, pagando tudo pelas suas lindas aventuras e
festas que tanto amava? Ela dormia e sonhava com a possibilidade de retomar sua vida ou com
a chance que tomem sua vida para atingir sua liberdade? Às vezes, sinto que deixar Victor
acabar com tudo seja mais adequado do que viver lidar com a ideia de conviver com isso todos
os dias, essa caçada.
Enquanto nos silenciávamos, também aos passos serenos, lá estava ela um pouco abatida
aparentemente confusa, mas não a ponto de questionar se aquilo aconteceu mesmo, e sim sobre
qualquer outra coisa que eu estaria longe de descobrir. Ela nos fitou e apenas disse com suas
palavras carregadas de amargura:
- E agora?
Ficamos estonteados por ela questionar isso a nós, meros ignorantes que dependia de seu
conhecimento e sua prática para sair dessa situação, pensar que ela mesma não tem ideia para
tomar iniciativa – assim como nós –, era mais assustador e trazia à tona ainda mais meus
pensamentos obscuros que quer desviar dessa luta exaustiva.
Caio fitou-me confuso e atônito ao escutar indagação quase que profana para nosso desespero,
nossa única resposta ao terror. Não a estressei bombardeando de perguntas, apenas suspirei e
caminhei até ela um pouco titubeante, sem saber o que fazer. Ofereci um abraço e disse para
tentar acalentá-la:
- Não sei o que seria necessário nesse momento, mas..., caso queira, ofereço de bom grado. Às
vezes ajuda mesmo.
Cecília apenas abraçou-me sem dizer sequer uma palavra. Seu abraço ficava mais apertado e
mais aconchegante, era o único lugar que ainda ousaria dizer “estamos seguros” ou “estamos
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bem aqui”. Abraçava, apertava para fugir a aterrar todos aqueles ou os nossos demônios que
sondavam nosso melhor. Afinal, ainda estava certa tendo em vista de como estávamos: com
nossas energias drenadas a ponto de questionar a realidade das coisas, graças a ele... Victor, os
olhos mortos!
Caio levantou-se agressivamente e estirou seus braços enquanto arremessava suas palavras feito
ventos cortantes:
- É assim?! Tipo..., “e agora?”, depois um abraço de consolo porque estamos mortos, é isso?
Isso não ajuda em nada!
- Caio..., pensar só nisso está nos deixando cansados, você não vê? Desde aquela noite é...,
Victor, olhos mortos, Seteálem, mundos dos quais nem imaginamos que existia. – Cecília
desprendeu-se do meu abraço e caminhou lentamente até a cozinha, enquanto eu discutia com
Caio.
- Acontece, está acontecendo e não temos escolha, assim como não tivemos por ter a vida
medíocre como estudantes e operadores de telemarketing!
- EU SINTO FALTA DESSA VIDA MEIODCRE PORQUE NÃO PENSAVA O TEMPO
TODO EM ACABAR COM TUDO! – Bradei explodindo feito estopim soltando toda aquela
sobrecarga naquelas palavras, mesmo que tenha sido resumido. Caio mudou subitamente seu
semblante e engoliu suas palavras naquele momento, sentou-se e pôs se coçar sua cabeça por
estar nervoso e entender como eu estava.
O silêncio tomou conta, o silêncio mais eloquente que nossas palavras de alguns minutos atrás.
Este silêncio estava carregando todos os segredos, sentimentos e dúvidas sobre o que dizer, o
que não devia ter dito, o que fazer. Sentimentos e ressentimentos..., tudo! E nada.
Inesperadamente, chega Cecília com uma bandeja de chá, ainda caminhando até a mesa para se
sentar. Cecília não demonstrava, mas víamos o quanto estava afetada, por mais tranquila que
demonstrasse estar. Ela nos serviu, assim que terminou, deleitou-se de seu chá com aroma
agradável. Caio ainda impaciente, se sentou na mesa fitando cada um nós, esperando alguém
falar alguma coisa. Sua notável inquietude me incomodava cada vez que eu olhava, mas tentava
pensar em outra coisa. Depois de alguns minutos em silêncio, Cecília disse algo ainda
cabisbaixa:
- Victor sabe como nos rastrear, pelo visto. Mesmo com o selo e descobrimos isso ontem.
Nossos avanços são isso e a pedra do sol.
Caio libertou finalmente sua inquietude:
- Sim, então temos como lutar. Talvez o único o mistério seja o seu “e agora?”
- Não é um mistério – Cecília pegou seu bule e derramou mais chá em sua xícara e prosseguiu
–, realmente devemos pensar tantas vezes caso algo daquele gênero aconteça, você acha que
ele simplesmente deixará acertar ele? Outra coisa! Aquilo não foi suficiente para matá-lo.
- É só usar mais. – Retrucou prepotentemente Caio.
Cecília soltou sua gargalhada, desdenhando do que Caio disse, como se fosse uma criança
conhecendo alguma novidade e apresentando a mais inocente solução:
- Você conseguiu mudar meu dia com algo tão idiota. Se é tão simples, por que não faz?
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- Você é a bruxa.
- Isso mesmo..., e você não é nada. – Retrucou rispidamente Cecília a fim de colocar Caio no
devido lugar, o que de fato o silenciou. A seguir, Cecília retomou sua fala com os planos que
esteve pensando até agora, mas antes que prosseguisse, fiz um questionamento sobre seus
pingentes:
- Aquilo nos faz viajar para outros universos ou coisa assim?
Cecília sorriu como se eu tivesse falado algo idiota, mas logo respondeu gentilmente:
- É tipo um talismã. É necessário muito mais para fazer uma viagem entre os 6 mundos ou afetar
dessa forma o Cosmos. O que eu tenho nos leva somente para casa porque é o único item com
apego emocional que me liga aqui.
- Ah..., achei que fosse algo mais elaborado – disse enquanto sorria.
- Na próxima, fique com isso na mão – bradou Caio ainda aborrecido, mas Cecília perdeu seu
olhar, perdida em seus pensamentos lembrando de alguma coisa que a afetou. Talvez uma doce
lembrança, uma saudade que jamais seria sanada por alguma ocasião que jamais ousaria
perguntar. Ela apenas tossiu de forma descontraída e continuou o que estava falando sobre as
melhores soluções para o que estávamos lidando.
- Existem duas formas de a gente sair dessa, e uma delas..., bom, na verdade TODAS, são
complicadas e terríveis. Uma delas é matar Victor. Usaria tudo que eu tivesse por aqui, nos
equiparíamos com tudo; desde ensinamentos até materiais que nos ajudariam na hora. Seria
uma missão suicida, não sei dizer se todos poderíamos sair com vida e tampouco como seria.
Vocês teriam que saber o mínimo para poder ir até o Seteálem e entender como funciona.
- Tem algo mais suicida do que ir em um mundo sobrenatural e matar o chefão? – indagou Caio
sarcasticamente.
- Marcos se antecipou ao mencionar viagem entre mundos, mas basicamente, poderíamos nos
selar em outro local e separados; onde Victor não teria acesso. O problema é que não temos
ligações com outro mundo fora Seteálem, então usaríamos o Seteálem ainda como nossa
fronteira para outro local. – Cecília se levantou, mudou seu rosto de algo relaxado, mas
deprimido, para preocupação:
- Deem ênfase em não termos ligações com outros mundos, o que resultaria no fato de cairmos
em qualquer lugar, tais quais como: o inferno, um lugar frio e cheio de raiva, o mundo dos
animais, que é o lugar dos ignorantes, o mundo dos fantasmas famintos repleto de desejo de
comida e bebida, o mundo dos asura, um reino com seres poderosos em guerra e frustrações
eternas com os deuses, o mundo dos humanos, o nosso e o mundo dos deuses. Podemos cair
em qualquer um de acordo com nossa essência ou o que pensamos. Mas o poder maior será
nossa essência. O fato é que ficaremos separados e podemos sofrer ou nos livrarmos disso.
- Isso é loucura... – Caio olhou para baixo frustrado, e incrédulo ao ouvir aquilo, mas Cecília
ainda tinha o que falar:
- E a 3ª opção seria nos entregarmos a Victor e selar tudo isso.
- Nunca. – Retruquei sem titubear.
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- Sabe que de um jeito ou de outro passaremos por Seteálem e corremos riscos, não é...?
- O que devemos saber para lutar e colocar um dos planos em prática? – Perguntei a Cecília.
- Primeiro, devemos fazer uma incursão experimental até lá e descobrir o local que se conecta
a tudo, e esse local é o ponto de ônibus. São raros de se encontrar e sempre estão mudando. A
pista que temos até agora é que onde mais estiver concentrado espíritos, é onde ele está..., isso
também é perigoso. Infelizmente, muitos espíritos estão sedentos por vida, então já sabem...
- Merda..., - Caio bateu com força na mesa em que estava balançando até nossas xícaras na
mesa – quanto mais você explica, mais difícil fica.
Ficamos em silêncio pensando sobre as alternativas que temos, algumas vezes minha inquietude
proporcional aos meus pensamentos agitados, faziam com que eu andasse sem rumo pela casa,
batucasse meus dedos em algo, batesse meu pé contra o chão ou fazia eu sentir uma coceira
repentina. Cecília soltou sua doce voz e sugeriu o que achou mais bem baseado em fatos e na
nossa segurança:
- Fugir para outro lugar é melhor do que tentar a sorte tentando matá-lo. Temos chances para
duas investidas: a 1ª deve ser exploratória para saber o que podemos usar e a 2ª será nossa saída
pra tudo. Devemos escolher sabiamente porque o que tenho aqui é escasso.
- Podemos sair durante o dia e comprar mais.
- Ele conseguiu levar Marcos para o outro lado em plena luz do dia, só com uma ligação. Ele
também sabe como nos encontrar.
- Nem tentamos fazer isso agora, de repente podemos evitar falar com ele – Retrucou Caio
mesmo sem saber de algo, mas Cecília até considerou essa hipótese e completou ainda:
- Farei os preparativos para nossa incursão (caso aconteça hoje). Se der certo, podemos tentar
matá-lo ou fugir.
Quando estava pronto para concordar, lembrei de uma informação sobre o que Cecília
comentou a respeito de nos preparar e indaguei:
- Espera, mas você disse que ainda iria nos preparar.
- Era só aquilo, o resto é com a bruxa aqui, amores.
Caio sorriu como se desdenhasse, mas concordou. Enquanto Cecília se preparava com os
materiais necessário, Caio se aproximou para conversar com dois copos d’água, com um sorriso
tímido e sem ideia de como conversar. Todo enrolado, ainda fez esforço para falar:
- É..., então..., pode ser um finalmente.
- Sim. – Retruquei com frieza.
- Olha, sei que não estamos nos dando ultimamente e tudo porque você se dispõe a defender
ela. Você acredita e eu respeito isso – Caio olhou para todos os lados e se preparou para contar
algo, como se fosse um segredo:
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- Mas isso não deve impedir seu verdadeiro propósito, o seu DEVER! – Disse enquanto
pressionava meu peito com o dedo indicador. Você é meu melhor amigo, somos praticamente
irmãos e noto o quanto isso o afetou agora..., por isso quero compartilhar isso com você.
- O quê...?
- Temos uma outra opção e essa seria entregar a Cecília para os olhos mortos.
Fiquei abismado! Aquilo parecia alguma brincadeira de mau-humor, porém notei a seriedade
em cada aspecto de seu rosto, e fiquei imediatamente enojado.
- Você ficou louco, porra? Perdeu o que restava de humanidade em você?!
- Shhhhhh! Pensa comigo: podemos fazer um acordo para que ele fique com ela e a gente fique
livre. Talvez ela valha muito mais do que possamos saber. Diga AGORA: quem Victor ia matar;
você ou ela?
- Você é um monstro..., como não percebi isso.
- Estou sobrevivendo, estou só dizen...! – antes que Caio terminasse sua fala inescrupulosa,
movida a ganância, mentira e covardia, o interrompi:
- Guarde isso para você e espero que não interfira com nosso plano. Não destrua o que tanto
estávamos ansiando.
Cecília apareceu de repente e disse alegremente, despreocupada com tudo como se fosse uma
simples viagem, e não um risco de sermos mortos ou aprisionados.
- Vamos comprar os ingredientes!
Sua determinação destruiu qualquer tipo de atmosfera pesada e plantou a esperança que
precisávamos para agir naquele momento desvairadamente como loucos e suicidas. Ela deu o
poder que seria a resposta para aquele momento sufocante, aquele momento de estresse e
ansiedade. Jamais esqueceria que naquele dia, enquanto me sentia morto, que o vislumbre da
vida estava em você...
Ela abriu a porta sem quaisquer tipos de preocupação, completamente determinada e
contagiante com aquele seu jeito singelo de ser feliz consigo. Antes que partíssemos, Caio
indagou desconfiado, enquanto me olhava, embora a pergunta tenha sido para Cecília:
- Hãa..., aonde vamos? Num mercadinho mesmo?
- Se for pra comprar comida, talvez. Compro em um lugar muito específico e talvez – ela
começou a revirar sua bolsa em busca de alguma coisa, enquanto dizia: nunca tenham passado
por lá, acho quase impossível. É só uma pessoa e as coisas de lá são uma fortuna, mas talvez
seja exagero meu. De qualquer forma, reduzirá nossa viagem e poderemos comprar tudo que
for necessário.
- Entendi..., bom, se não se importam, sinto segurança suficiente pra ir em casa.
- Acho que podemos fazer uma parada lá. – Retruquei enquanto fitava-o.
- Quero só pegar algumas coisas e acho que vocês estão bem. Será rápido e estamos protegidos
pelo deus só – disse sarcasticamente Caio enquanto se distanciava mais de nós.
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- Ok, - respondeu Cecília despreocupada com a atitude de Caio, quase como se estivesse segura
por estarmos em pleno dia – só não esqueça de nos ligar, caso algo aconteça. O ponto de
encontro é em casa. Uma pena que não vem conosco.
- Acho que não lamento por isso... – rebateu Caio com um leve ar de tristura e desdenho,
partindo de uma direção oposta a nós.
Fomos sem Caio aonde Cecília ia, não era, de fato muito longe. Quando ela disse “chegamos”
sondei todos os detalhes em busca de uma casa, um beco ou coisa assim para seguirmos, mas
era só um terreno baldio repleto de entulho. Questionei comigo se estávamos esperando alguém
chegar até nós ou..., como nos filmes, talvez, esperar alguém sinalizar que somos confiáveis e
nos levar para algum lugar. Cecília se abaixou e posicionou 3 pedras, em distâncias iguais e
empilhada do mesmo jeito, depois derrubou. Assim que ela fez isso, ouvi um barulho de alguns
tijolos sendo arrastados, mas não enxerguei de onde vinha. Cecília segurou minha mão
carinhosamente e “vamos logo”. Uma pilha enorme de entulhos, um pouco mais afastada das
demais estava aberta e possibilitava nossa ultrapassagem, lá era escuro e só seguimos reto, mas
o que era mais estranho, é o fato do corredor nunca se estreitar. Paranoicamente até temi o pior
de deparar-me com Victor de repente e puxar-me para o inferno, mas não passou de paranoia
ou medo. Andamos no breu ainda, até que Cecília parou e bradou “Sombra? O sol não toca
aqui”, as luzes acenderam imediatamente, dando vida para uma enorme casa decorada com
inúmeros tapetes, cortinas, runas estendidas (ou selos, não sei). Tudo era mágico e
simplesmente vivo. No meio de tudo aqui, tinha uma cadeira e um homem sentado com as
pernas cruzadas e vários anéis em suas mãos, vestido de preto com óculos escuros e com
umas..., bolinhas estranhas na mão..., não sabia o que era. Na verdade, não sabia o nome. Ele
as rodava sem parar sem dificuldade alguma. Ele bateu essas bolinhas duas vezes, fazendo as
luzes piscarem e aparecer repentinamente na nossa frente, sem demonstrar espanto algum ou
interesse em nós. Tomei um susto por ter péssimas experiências com isso, mas Cecília parecia
acostumada com isso, então me apoiei em sua postura e aguardei até que ela falasse, mas o
homem se antecipou:
- Quanto tempo, achava que não precisava mais fugir.
- Não preciso mesmo, Sombra... Nosso problema é outro – disse enquanto me fitava e usava-se
como resumo do que se tratava. O homem apenas verificou rapidamente, de cima a baixo,
respirou fundo e disse:
- Esse rapaz tem um cheiro esquisito...
- Ele é parte do que quero resolver. Vim aqui cobrar um favor que fiz anos atrás, lembra?
A feição do homem... do Sombra... Mudou de repente, reconhecendo a gravidade daquela
cobrança. Embora dentro dessa mesma feição estivesse seu incômodo também. Ambos se
penetraram com seus olhares sérios e destemidos, pareciam estar se comunicando, mas não
podia interpretar nada. Tudo que soube de Cecília estava dentro daquele bar. Depois da breve
pausa, Sombra bateu aquelas bolinhas novamente e fomos a um vasto local de variedade – desde
amuletos a ingredientes que nem podia imaginar sua utilidade.
Cecília disse o que precisava além da pedra do sol em pó, runas e selos de proteção e banimento,
dentre outras que não puder entender. O homem só concordou e desapareceu, deixando-me com
Cecília. Desfrutei do momento de espera para conversar com ela sobre algumas dúvidas, ou...,
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miseravelmente descobrir mais sobre ela e como aquele homem a tratou como se tivesse lidado
ao seu lado com coisas dessa magnitude. Entendo o fato dela estar ligada a isso, mas
incomodava o fato de estarmos ligados só por causa de um problema em comum, mais nada! E
aquilo ficava mais estranho, mas antes de perguntar algo dessa magnitude, tinha outra
curiosidade sobre o Sombra:
- O que são aquelas bolinhas?
- São chamadas de Bolas baoding, e não são mágicas. Ela é a única coisa que liga ele com esse
mundo. – disse enquanto olhava para o nada.
- Entendi, então ele não é daqui?
- Mais ou menos...
- Hmm... – cruzei meus braços e esfreguei, com uma das mãos, meu cotovelo um pouco
nervoso, tomando coragem para perguntar o que realmente queria. Engoli a seco e indaguei
quase gaguejando:
- Ah..., tipo... Você nunca disse, não que eu esteja obrigando! De forma alguma, mas nunca
disse sobre você e Os Olhos Mortos.
Cecília exibiu aquele seu sorriso esbelto mais uma vez, vislumbrava todo aquele são, mais que
as cortinas e retrucou:
- É estranho contar isso, mas entendo como se sente..., tipo como se fossemos estranhos, como
se sacrificasse por alguém imprevisível.
- Nem tanto isso, acho que jamais isso iria interferir na minha vontade de salvar alguém. Ver
alguém morrer e não agir por medo, é pior que a morte, a meu ver.
- Entendo... – objetou demonstrando peso em suas palavras, parecia adentrar um lar de
desavenças das quais nunca lidou bem, das quais nunca pode entender e enfrentar como enfrenta
tudo hoje. Logo, prosseguiu: Quando vi pela primeira vez Victor, foi estranho. Era noite e ele
não falou nada, parecia esperar por algo, ele só estava à espreita. Estava de carro com meus
pais, quando de repente..., acordei com ele observando tudo em volta. Não estava mais no carro,
eu estava em mesa com uma bela vista para o jardim. Perguntei a ele sobre meus pais e ele
simplesmente disse que haviam morrido e foram para algum lugar que nenhum pensamento
escapa. Então disse a ele que faria de tudo para ir e dizer pelo menos um adeus, pela última vez;
mas ele disse: como um morto oferece tudo se não tem nada? Então disse que estaria disposta
a servi-lo.
Fiquei embasbacado com que fui bombardeado, quer dizer...! Cecília estava morta ou Victor
fez acreditar, por um segundo, naquilo? Não me precipitei, deixe-a continuar e perguntei:
- Você..., morreu?
- Não! Claro que não! Ele só quis me usar. Servi ele por anos, aprendi de tudo sobre ocultismo,
mas havia coisas que ele nunca se atreveu ensinar, tipo as fraquezas ou as coisas que ele fazia.
- E por que ele escolheu você?
- Não sei..., mas a melhor coisa foi quando fugi finalmente e roubei seu grimório – disse
enquanto emanava com seu sorriso de triunfo –, só assim aprendi sobre os selos, runas que
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protegiam contra qualquer coisa. Também tem outras informações sobre Espreitadores, que são
os espíritos oportunistas. Eu estava com dois grimórios quando fugi de sua toca com o mesmo
pingente que meu pai me presenteou, mas o derrubei no caminho.
- Então o que exatamente ele é? Digo..., é fato que ele possui vasto conhecimento sobre muitas
coisas, tendo em vista o que você disse agora. – perguntei ainda surpreso.
- Não sei, como eu disse..., certas coisas eu não tive acesso, mas aprendi o que pude.
Cecília segurou minhas mãos e olhou profundamente em meus olhos, trazendo ondas de
emoções com escalas que eu mal pude filtrar. Meu coração disparou e meus lábios congelaram,
tive a sensação de borboletas em meu estômago e tão subitamente... nada mais importava em
volta, tudo resumia-se naqueles olhos cristalinos esverdeados. Suas palavras adiante eram
traçadas com inúmeras fantasias. Imaginava sim, mil vez, milhões de vezes além do lapso de
vida, daquela beldade; o maior conforto que poderia:
- Sei que está tudo tão difícil, mas espero que acredite no poderemos fazer. Desde aquele
momento, senti que podia confiar em você para lidar com ele e com tudo até..., - Cecília fez
uma breve pausa, respirou fundo e disse – você lembra quem eu fui antes, isso faz eu ser mais
forte, porque mesmo com medo, você avançou. Quase perdeu sua vida, mas em momento algum
foi egoísta, até quando sua vida estava em jogo. Obrigada por acreditar mesmo quando tudo
ficou de cabeça para baixo, longe da esperança e de tudo que aspirava. Seja como for, espero
que possamos sair juntos disso.
Eu apenas sorri congelado buscando quaisquer palavras além de um pobre obrigado, mas tudo
era tão pequeno quando eu pensava nela agora. Era como se ela me entendesse, não demorou
muito para ela me abraçar como no começo do dia. Novamente pensei “estou em casa” e retribui
o abraço, descarregando tudo que perturbava minha mente. Não ousaria, nem que custasse
minha paz, causar uma calamidade do tipo que tirasse aquilo de mim. Não importa quantas
vezes tivesse que fazer isso, mas me sacrificaria sem parar só para ter isso.
Cecília desfez o abraço e fez um semblante diferente, em busca de algo. Ela olhou para um lado
e outro, até para cima e disse:
- Ele devia ter voltado já..., isso não demora tanto.
- Bom..., ah..., não tenho experiência com ele, mas podemos buscá-lo.
- Aqui é um labirinto, nunca andei por aqui, mas ele falou alguma coisa sobre cheiro, certa vez...
Não sei por que, mas tive uma sensação estranha, e não era boa. Não era possível Os Olhos
Mortos atacar-nos agora, mas ainda sim estava com medo disso porque o mais improvável,
como forças sobrenaturais, já estava acontecendo e estava nos caçando sem parar. O que
impediria espíritos de aparecer por aí, em qualquer lugar, mesmo que em pleno dia? O medo
parecia irracional quando nada era real, mas quando tudo se mistura dificultando distinguir isso,
era sufocante.
Andamos a passos largos direto, sem fazer curvas, por ora; em busca de alguma coisa que
servisse como ponto de referência. Andamos rápidos, e ainda mais rápido, entrando naquela
variedade de cortinas e tapetes iguais, sem mudar nada! Conforme andássemos, parecíamos
voltar sempre para o mesmo lugar com os mesmos artefatos. Corremos então futilmente em
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frente sem parar, batendo nas cortinas! Na mesma droga de cortina. Paramos um pouco para
recuperar o fôlego, olhamos em volta de novo, nos fitamos:
- Estamos perdidos?
- Não sei, quero acreditar que não. Droga! Por que não consigo lembrar?
Ficamos calados pensando em alguma solução, olhamos mais uma vez em volta desesperados,
até torcendo que tivesse acontecido só um imprevisto que ele não pôde lidar. No meio do
silêncio, senti um calafrio e escutei alguns cochichos, quase inaudíveis da direita – com a
mesma cortina. Quando Cecília estava prestes a falar, fiz um sinal com mão a interrompendo e
segui os cochichos estranhos e misteriosos com ela. Andamos lentamente para que pudéssemos
escutar atentamente de onde vinham os cochichos sinistros, abafados e acompanhado de um
vento que dava calafrio. Dessa vez, o som e as sensações vinham da esquerda. Corremos até a
esquerda e sentimos violentamente uma sensação carregada com cochichos de inúmeras vozes,
algumas mais grossas, outras mais finas e alguns ranger também. Dessa vez, a direção era
direita. Escutamos choramingo, vozes atormentadas gritando “eu não sabia..., eu não sabia”,
“por favor, por favor”, o clima ficava mais pesado e sentíamos essa pressão decair conforme
seguíamos a trajetória, perturbava nossa paz causando sensações de desespero, angústia,
insegurança e agonia. Me sentia sufocado e até perdido, as vozes gritavam de dor como se
estivessem queimando. Senti o cheiro das chamas e comentei com Cecília se era esse o cheiro,
ela retrucou:
- Agonia, desespero e calamidade são labaredas que crescem repentinamente, surgem do nada
e levam tudo. Sinto o cheiro dos infames, dos inocentes que clamam todo santo dia, se é que
isso seja santo, seu benfeitor: o libertador. Lembrei o que ele havia dito..., os gritos de agonia,
as chamas que purificam é o caminho!
- Acho que é meio tarde para lembrar, mas vamos!
- Ele deve ter usado algum selo para que eu esquecesse. Vamos!
Seguimos até de onde vinham os gritos que ecoavam mais e mais, demonstrando uma dor
aparentemente indescritível. Quem berrava sentia a pior das dores e não tinha, e só crescia. Os
gritos ficavam mais alto e entrava em nossas mentes afagando todos nossos pensamentos que
nos afastava daquele grito. Quando finalmente parecíamos ter alcançado, tudo de repente parou,
apagou deixando a gente em completo breu, e escutamos os cochichos novamente. A visão não
podia ser mais assustadora, terrível! Meus olhos queriam ter sido adocicados com a beleza de
Cecília novamente, mas não podia deixar de focar na visão do inferno que permeava minha
humanidade e sanidade. Eram corpos estirados e estendidos acima, ainda frescos e
ensanguentados..., algemados, dilacerados. Eram várias cóleras a mostra, expurgando (se algum
dia tivera) qualquer vestígio de sanidade. Mas Cecília ficou ainda mais perplexa quando viu um
homem vestindo-se de preto, completamente pálido, como se estivesse morto e com garras
cobertas pelas trevas, segurando seu amigo querido e nosso confiável comerciante... O Sombra.
As bolinhas estavam jogadas no chão com a bolsa, com os materiais saindo como alguns já
estirados por lá. Seu braço se movia de uma forma estranha, parecia drenar O Sombra, enquanto
ele agonizava e golpeava inutilmente para soltá-lo. Quando Cecília correu para apanhar o pó da
pedra do sol, a criatura virou rapidamente, expondo sua boca costurada e aqueles malditos olhos
escuros! O desgraçado matou nossa única esperança? Como sabia onde contra-atacar? E o pior:
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

talvez agora estejamos encurralados e só podíamos escolher pouquíssimas coisas. O maldito


desumano somente nos fitou, fez os olhos brilharem e emitiu um som para dentro de nossas
mentes, e era sua voz amaldiçoando, conjurando com uma única palavra e nos atirando para a
mesma sensação que tivemos naquele dia... o afogamento, o vazio e o perdido. A voz adentrou
calmamente, em alto e claro som dizendo: afoguem-se!

Espero que entenda meu lado um dia, mas agora ficará inexplicável porque sua devoção o
cegou, e isso é irritantemente impertinente. Antes da minha parada, solicitarei perdão a quem
ainda puder, só pra ter a sensação de que algo ainda me escuta..., mesmo com um falso deus, a
falsa ideia de algo superior possa me escutar, mas acho que já não estou mais apto para
questionar a existência deles depois de tudo isso. É foda perceber que tudo aquilo foi ignorância
da minha parte, um equívoco, uma BLASFÊMIA! Tudo alguns dias atrás faria sentido
questionar, mas agora..., eu quem não tem sentido em existir. Se ele não me escuta como antes,
preciso me redimir de alguma forma, mesmo que isso faça eu ir à igreja e vestir a máscara de
um religioso. Caminhei até uma igreja católica nas proximidades, sentei-me em um banco
qualquer e mantive minha cabeça baixa dirigindo minhas palavras, minhas súplicas a deus
algum pelo que eu faria; trairia meu amigo na primeira oportunidade que surgisse, mesmo que
eu tivesse que vender minha alma ao demônio, ou necessariamente a Victor. Tentarei, com
unhas e dentes, realizar o acordo de nossas vidas para sairmos dessas e sair das mãos dela. É
fato que ela não está ajudando como esperávamos, agora ela vem com a ideia de mexer com
viagem entre mundos? Sair daqui e cruzar os dedos para cair no melhor? Isso parece mais errado
do que tentar matar alguém que nem conhecemos. Posso ser ateu-agnóstico, mas reconheço do
meu jeito quando algo está mal explicado. Victor está mais interessado nela do que em nós e
isso pode ser aproveitado.
Enquanto iniciava minha oração com Ave Maria, pensava nos meus próximos passos. A partir
de agora, irei mentir para meu melhor amigo para salvar nossas vidas, e nos libertar de uma
mentirosa que não confiou nada em nós. Por mais que parecesse que ela iria ensinar algo,
sempre vinha uma causa maior que fazia ela mudar de ideia. Apertava e amaciava minhas mãos,
cada vez, expondo minha fúria e indignação por tudo aquilo. Ao terminar minha oração, olhei
por cada canto na igreja, ainda fazia e escura, sendo iluminada somente pela luz do sol que
escapava por algumas janelas e brechas, tornando o local sombrio e melancólico para um
pecador clamar por atenção e perdão, na verdade suplicar até que não aja mais como suplicar.
Olhei para baixo novamente e rezei como condenado em busca de salvação, mas logo fui
interrompido por alguns passos calmos e um perfume que se alastrava conforme os passos se
aproximara de onde eu estava. O cheiro era agradável, mas enjoativo também e tirava minha
atenção. O intrometido se sentou no mesmo lugar que eu estava quase colado em mim e logo
apoiou-se no banco a frente para rezar também. Seus sapatos eram bonitos, pareciam caros o
suficiente para gritar com alguém, caso pisem. Olhei para frente de novo e continuei minha
oração com aquele perfume brega e desejando que ele saísse – minhas preces repentinamente
mudaram.
Quando finalmente terminei, outra pessoa se sentou do outro lado e pediu desculpa. Quando ia
dizer tudo bem e o fitar com minha cara de poucos amigos, reconheci o indigente e sua faceta
de quase morto; era ele... Os Olhos Mortos, O Victor diante de mim com aquele sorriso cínico.
Por mais assustado que eu estivesse, apenas o fitei enquanto um de seus lacaios segurava meu
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

braço com muita força, para certificar que minha fuga fracassaria. Victor não estava tão
aborrecido como daquela vez e estava convencido daquela situação, dessa vez. Ele tirou seus
olhos de mim por alguns segundos para sinalizar ao seu lacaio para soltar-me, mas ele não o
fez. A criatura pressionou ainda meu braço e ficou tremula, Victor olhou mais uma vez para ela
e disse com um pouco mais de autoridade:
- Solta... AGORA! Ou soterro você nas paredes para arranhar todos os dias, desesperadamente,
clamando por ajuda.
A criatura tremeu mais um pouco, mais logo soltou, fazendo um som estranho com sua
respiração. Parecia que seus pulmões estavam cheio de secreção, o ruido sair conforme
respirava e ficava pior quando respirava fundo. Victor sorriu novamente e disse, educadamente:
- Sente-se, cavalheiro – e assim fizemos, eu ainda desconfiado, sentei-me lentamente, enquanto
fitava aquela criatura com a boca costurada e olhos negros lacrimejando sangue, que por
nenhum momento, nem milésimo, tirava seus olhos de mim – encontrar pessoas como você na
igreja é quase um “fim da linha”, e reconheço pessoas que não fogem das coisas como são.
- Reconhece levando-as daqui com menos sofrimento? – respondi um pouco titubeante.
Victor gargalhou tão alto que olhei imediatamente para trás com medo de alguém ouvir, depois
o fitei e questionei incomodado:
- Não entendi a graça.
- Você ou..., vocês são hilários! Você ouviu o que ele disse ou..., droga, esqueci seu nome. Mas
sei que é um Caçador, disso eu sei. – Victor o fitou novamente, um pouco constrangido dessa
vez e prosseguiu: olha isso..., limpe essas lágrimas, vai, tá uma sujeira. Enfim, acho que você
não entenderia mesmo. Uma pena. Sofrimento, sôfrego, tristura, morte, dor, tormento, isso que
deve querer dizer, não é?
- Encare como quiser.
- Engraçado que seus amigos não estão aqui. O trio se desfez assim – disse enquanto estalava
seus dedos –, em um passe de mágica? Engraçado, muito engraçado..., ou você está pronto para
ir ou tem algo que talvez eu queira.
Contemplei Jesus crucificado no altar da igreja, enquanto mergulhava nas palavras do Victor e
nos meus pensamentos. Reconheço a genialidade do desgraçado, ele sabia que meu descuidado
estava relacionado com algo, e era a negociação. Respirei fundo para lapidar cada palavra minha
e realizar a proposta, talvez mais desumana que já fiz na vida, mas seria o necessário para
reconquistar minha paz. Mantive meu olhar firme nos olhos de Victor e disse com um só golpe:
- Posso ajudar você a ter Cecília, mas quero que livre eu e meu amigo disso tudo e devolva
nossas vidas.
- Uau, isso é justo mesmo? Uma no preço de duas? Isso está equilibrado mesmo? – seu ar de
deboche incomodava, fazia eu me sentir um idiota, que nem quando Cecília apresentava alguma
informação que eu desconhecia e eu questionava como uma criança sem noção da realidade.
Bradei um pouco mais agressivo para que levasse ainda mais a sério meu esforço sobre a
captura:
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Sei o quanto quer ela e que não valemos nada, comparados à ela. Pode se fazer de difícil ou
aceitar meu trabalho.
- Sabe..., não sei se dou tanta credibilidade, você parecia determinado a deter-me, em nosso
último encontro.
- Deve porque fui capaz de derrubar você e ainda fugir.
- E agora? – disse com uma expressão um pouco mais desafiadora.
- Estou desarmado, só e demonstrando minha lealdade temporária. Isso mesmo: estou a venda!
- Nossa... Palavras fortes, cachorrinho. Vocês são engraçados..., que seja. Acredito que esteja
falando a verdade e muito sério, mas quero garantia. Sabe que a casa da bruxa é selada, e nada
passa por lá.
Soltei um sorriso de alívio enquanto mandava minha mão para o bolso para retirar um dos selos
que removi da casa:
- Esse é um deles, acho que deve haver alguma brecha que possibilita sua entrada, eu acredito.
- Você é mais esperto que eu imaginava ser – Victor pegou o selo que estava na minha mão e
observou-o atentamente – ela usa os selos do meu grimório, então. São fortes, por isso não
consegui rastrear.
- E como garante que eu não serei enganado por você?
Victor aproximou o rosto domado com sua ira por duvidar de sua palavra, ele segurou e puxou
com muita força minha argola e retrucou:
- Posso ser um maldito aproveitador, mas jamais falto com minha palavra! E outra coisa –
Victor cheirou o selo que estava na sua mão e o pôs dentro do paletó que trajava –, não
concordei com sua proposta, mas..., agora está feito. Aceito sua oferenda em troca de Cecília,
mas com uma condição.
Victor cochichou suavemente as palavras que esclareciam tudo aquilo: os problemas, esses
mundos e essa perseguição aparentemente gratuitos. Tudo estava explicado e os verdadeiros
vilões e tormento de tudo..., minha nossa, quero refazer agora meus passos e ter pensado nesse
acordo o mais cedo possível! Entendi muito mais o que Victor falou do que Cecília e suas
palavras vagas inexplicadas até agora. Engoli a seco e apenas retruquei “aceito”, assim selamos
nosso acordo. Victor sorriu e até bateu palmas, e novamente fitou seu lacaio que estava
ofegante e disse:
- Você me enoja, sabe? Me envergonhando na frente dos outros. Passarei um trabalho para você
e logo irá desaparecer da minha frente, Caçador. Caio, essa atitude... – em seguida, segurou
minhas mãos e começou a me bajular, enchendo-me de pompa – é reconhecida por mim, e
acredite: ninguém fez algo igual – depois soltou e prosseguiu. Não quero exigir muito de você,
mas..., não faço ideia de onde ela está. Sabe o que poderia dizer exatamente a localização?
- Você pôde me encontrar, qual a diferença entre mim e ela?
- Ela usa selos, e eu perdi seu rastro assim que partiu. Na verdade, meus Farejadores auxiliam
nessa parte.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Ainda desconfiado, apenas retruquei o que vi, naquele momento:


- Eles dobraram na direita, direção oposto ao bar. Ela disse que era por perto, então não deve
ser longe mesmo. E se vasculhássemos a casa dela?
- Está dizendo pra eu entrar em uma casa cheia de selos? Deixo isso com você, aliás, não fui eu
quem fez o acordo de entregar Cecília em troca da sua vida. Posso ajudar apenas com isso –
Victor retirou um fragmento estranho, e disse que era melhor que uma chave e seria útil.
Fiquei calado pela resposta, mas aceitei seu golpe deferido de bom grado como um lembrete,
assim como o presente. Levantei-me do banco e disse que iria procurar qualquer informação
que fosse útil para localizar ela, e assim que tivesse, voltaria pra igreja. Saí de lá um pouco mais
feliz e esperançoso até a casa de Cecília, caminhei rapidamente para chegar até lá e agilizar
minha busca. O portão estava trancado, como de se esperar, então pulei e fui até a porta – que
também estava trancada. Pensei se devia jogar uma pedra e inventar uma desculpa qualquer,
mas de fato ela notaria, então pensei em comprar clips, mas não tinha dinheiro, entretanto,
lembrei da chave estranha que ele me deu. Sua textura era estranha, era macia e parecia pele e
osso. Apenas encaixei na fechadura e escutei alguns ruídos e murmúrios vindo da fechadura,
mas ignorei. A porta abriu e iniciei minhas buscas pela casa repletas de falcatruas, mistério e
manipulação. Sondei tudo, revirei do papel ao sofá, até encontrar qualquer coisa que apontasse
sua localização de agora, e fiz isso às pressas para que não me pegassem em flagrante. Até
explicar, me crucificariam, e tenho certeza de que Marcos seria o primeiro. Não me dei por
vencido, nunca! JAMAIS se deitaria sem esgotar minhas forças, foi dentro desse pequeno
colapso de empenho e desespero que lembrei quando Cecília mencionou suas anotações.
Revirei seu quarto cuidadosamente, inspecionei cada parte do cômodo, mas não estava tão
escondido. Lá eu encontrei um pequeno caderno, mas não li. Arrumei exatamente do jeito que
estava e saí correndo até à igreja. Gritei seu nome enquanto rodava pela igreja, até o desgraçado
aparecer. Em meio ao meu desespero, ele surgiu na minha frente do nada, com seus olhos
mortos e uma feição alegre. Apenas mostrei o caderninho e estendi para que ele pegasse:
- Aqui – disse ofegante por correr durante todo o percurso.
- Noooossa, você é surpreendente, como pude subestimar você, hein? – Victor inspecionou o
caderno, cheirou como se estivesse tragando-o da forma mais estranha possível, mas o mais
bizarro foi quando ele passou sua língua com muita vontade pelo caderno, se tremeu como se
tivesse ficado arrepiado e ficou calmo. Em seguida, recostou sua cabeça nele e disse:
- Você..., é..., TUDO! Você..., é..., mágico. Pode sentir? – A veia de seu pescoço soltou, ficando
em destaque assim como as demais. Victor ficou pálido e seus olhos lacrimejaram sangue.
Contemplei aquilo estarrecido, olhando ao meu redor tentando compreender tudo isso, até temi
minha vida, parecia que algo estava agindo dentro dele ou absorvido algum poder oculto do
qual não entendi. Após toda essa cerimonia, ele agradeceu e disse “achei vocês”, logo me
preocupei e questionei:
- Espera, mas lembre-se que Marcos está fora disso!
- Calma..., está tudo..., sob..., controle. CAÇADOOOR, FAÇA SEU TRABALHO! – bradou
Victor, depois começou a gargalhar dispersando e deixando eles abertos.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Tudo que pude interpretar, era que ele havia encontrado e talvez tivesse feliz, mas sua
comemoração era no mínimo estranha. Ele se aproximou de mim e disse aliviado:
- Isso é um grande trabalho em equipe. Fez o que não podemos fazer, e sou grato. Em breve, se
capturarmos ela, terá sua parte do acordo, Caio. Por que não vai para casa e relaxa um pouco?
Acho que você merece..., ou prefere se juntar a nós no outro lado? Até que é bom, você pode
enxergar melhor.
Pensei por alguns segundos e acenei com a cabeça dizendo sim, Victor sorriu e não disse mais
nada, deixando aquele momento na minha cabeça e oficializado que minha alma foi comprada.

Quando a criatura disse aquilo, o quarto começou inundar, as águas escorriam de todo lugar,
trazendo corpos dilacerados, sangue e um odor terrível de putrefação. A criatura desapareceu e
largou Sombra machucado, quase não aguentando rastejar até a parede. Cecília foi correndo até
ele para carregá-lo enquanto eu corria para pegar a bolsa, mas a água estava escorrendo rápido
demais, formando até mesmo correntezas. Não consegui avistar antes que a correnteza levasse
nossos acessórios para exploração do Seteálem, nessa altura, fui auxiliar Cecília carregar seu
amigo. O caminho seria longo e devíamos repetir os mesmos passos, quando Cecília indagou,
me senti pressionado e não souber ser específico quantos aos caminhos. Antes que ela bradasse,
expurgando toda sua ira e fazendo decaí-la tudo sobre mim, Sombra com extrema dificuldade
começou disse:
- Os caminhos abrem..., e..., fecham..., nunca é a mesma..., mesma coisa.
- Diga rápido, tudo está inundando! – retruquei ansioso.
Sombra apenas apontava a direção e íamos, e foi assim durante todo o percurso. O caminho
parecia mais longo, para piorar tudo, ficávamos lentos a cada minuto que andávamos. Carregá-
lo também nos deixava lentos, mas nada morreria por nossa causa, ninguém ficaria para trás
por causa de nossos pecados. Caminhamos até voltarmos para onde devíamos, mas ficava com
medo conforme ele apontava. A água estava no nosso tronco e a velocidade parecia aumentar
mais! O odor piorava e tropeçávamos em corpos ou partes dele. Quando finalmente
encontramos a saída, enxergamos a criatura sobrevoando nossa possível saída. Por mais que
Victor não estivesse aqui, sabíamos quem estava por trás de tudo. A criatura tremia sem parar,
olhava para cima fixamente enquanto fazia pequenos sons, no intervalo de 10 segundos – que
era quando acelerava as inundações, aumentava a intensidade das correntezas e piorava mais o
odor. Cecília fitou curiosamente tudo ao redor e caminhou às pressas dizendo:
- Vamos logo, não temos tempo!
- Como assim?
- Ele está prestes a afundar isso tudo, temos que aproveitar cada segundo!
- Mas e a bolsa?
- Não podemos! Vamos logo!
Corremos o mais rápido que podíamos e encontramos uma pequena plataforma cilíndrica, que
parecia levar para o esgoto. Alguém tinha que passar para o outro lado e puxar Sombra e ajudar
o outro se fosse necessário. Cecília foi a primeira subir e eu a ajudei levar Sombra pra cima,
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quando eu estava prestes a pular, encontrei a bolsa logo a frente aparentemente cheia. Estava
certo de que tinha coisas lá ainda, por mais que não fosse tudo, e estava perto. Corri até com
muito esforço e rapidez, Cecília gritou desesperada e confusa:
- QUÊ? O que está fazendo, Marcos?! Volta aqui!
- A bolsa está ali, posso pegar ainda!
- Não, não pode! Volta logo!
- PEGUEI – quando segurei a bolsa, a Criatura se tremeu ainda mais e fez um barulho agudo,
Cecília bradou:
- Não temos tempo, vamos logo!
Quando corri até lá, a parede ao meu lado explodiu derrubando-me naquele lamaçal de vísceras,
deixando-me atordoado. Escutei o grito de Cecília clamando meu nome, quando finalmente
levantei, estava inundando mais rápido, tinha sido somente a explosão que sinalizara algo
maior. Tentei alcançar a plataforma, mas por via das dúvidas, disse A Cecília:
- Vão na frente! Conseguirei subir sozinho.
- VOCÊ É LOUCO! Esperarei você lá...
- Estarei lá!
- Promete? – indagou Cecília um pouco insegura com nossa situação, mas não fiquei intimidado
e estava determinado a cumprir aquela promessa, custe o que custar. Precisava dela, tanto no
começo quanto no fim disso tudo.
- Prometo!
Cecília saiu com Sombra às pressas, ela ainda olhou rapidamente para trás, mas depois seguiu
compelida em ir um pouco, mas ainda sim mantendo sua inabalável determinação e acreditando
em mim. Corri sem olhar para trás atracado com a bolsa, banhado de sangue, sendo arrastado
pela correnteza. Depois de muito sacrifício, apreciei todo aquele lugar destruído pela última vez
e me preparei para subir, felizmente a água me ajudaria, mas quando pulei, senti algo preso em
meu pé puxando-me ainda mais. Quanto mais eu chutava, mas eu sentia essa força me puxar.
Tentei desprezar isso e pulei novamente, segurei ainda a plataforma, mas fui puxado com mais
intensidade a ponto de enfraquecer-me. De relance, olhei o que seria e para meu espanto, eram
várias mãos me puxando e só vinham mais. Tentei várias vezes subir, a ponto de ferir minhas
mãos, só que quanto mais olhava para baixo, mais mãos me puxavam. Só pude pensar, “não
aguento mais”, enquanto forçava até não aguentar mais, porém foi apenas uma tentativa falha
fantasiada de esperança. Fui puxado rapidamente, e só pude debater-me contra essas mãos que
só cessaram quando a criatura tremeu mais uma vez. Ela ficou em posição fetal, ainda no ar,
emitindo um agudo. Depois ela esticou por completo e emitiu o som pela última vez, tive o
desprazer de escutar só isso antes de tudo explodir com aquela fossa, inundando todo aquele
lugar em segundos! Fui arremessado contra parede, atingindo em cheio minha cabeça.
Desacordei assim que senti o impacto, e o flash que tive foi minha falha tentativa ainda de
proteger-me conta o impacto que só piorou a situação quando acertou minha cabeça..., enquanto
estava entre desmaiado e acordado, vi inúmeros corpos e uma pequena luz dando vida a toda
aquela poça avermelhada. Depois só afundei..., afundei..., e não parei de afundar. Em baixo,
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

imaginei que aquelas mãos estavam ansiando que eu chegasse até o final e finalmente desse um
fim a toda aquela cansativa jornada, caçada entre os mortos e os vivos. Aos poucos meus olhos
fechavam aos sons de alguns cochichos indistinguíveis, o único que ouvi foi “afunde” quando
meus olhos finalmente fecharam.
Amedrontado, com o coração disparado, acordei completamente confuso procurando tudo a
minha volta no meio de um breu. Estava nevando em um céu sem luar, sem estrela e nada. O
local era vazio, tão vazio que aquilo me tocava como a música que me marcou naquela tarde,
durante minha viagem. Corri por todo local gritando o nome de Cecília e Caio, corri gritando
por horas, talvez? Minutos? Nada parecia ajudar ter noção do tempo, tudo era igual: somente
uma escuridão sem fim com a sensação de vazio. Estava esfalfado, abatido e completamente
perdido, e não importa o quanto eu caminhasse por aí, nada mudava..., eram os mesmos
caminhos. Derrotado pelo cansaço, frustrado por senti que tudo que fiz foi em vão, recostei
sobre o chão nevado, olhando o céu vazio e escuro enquanto respirava profundamente,
questionando o motivo de estar ali. Estava farto de tudo isso..., meus olhos estavam tão pesados
quanto o clima de tudo aquilo, não demorou muito para apagar novamente. Quando acordei, vi
alguém sem olhos fitando com um sorriso cínico com roupas simples. Era pálido também, mas
não era como aquelas criaturas que Victor enviava para nos atacar. Seus olhos simplesmente
não existiam, mas ele ainda me olhava como se fosse alguma novidade de estar ali. Ele estendeu
sua mão e disse:
- Eu te ajudo.
Desconfiado como estava, não quis apertar sua mão e decidi me levantar sozinho. Havia uma
capela quase na minha frente, algumas casas ao redor, mas eram pouquíssimas, e as pessoas
estavam no lado de fora ajoelhada, murmurando baixinho alguma coisa, não fiquei atraído o
suficiente para escutar e sim fiquei com medo de seguir em frente e fazer alguma coisa errada.
O homem ainda sorria e insistia em conversar:
- Você realmente devia estar aqui? Parece tão perdido.
- Talvez esteja – retruquei rispidamente.
- Nossa..., você é tão seco.
Ignorei ele e caminhei até a capela, que era a única que estava sem alguém ou coisa na frente
lamentando. Ela estava vazia, sem vida, somente com um homem em frente ao altar
murmurando também. Me aproximei dele e me posicionei o suficiente para escutá-lo, ver seu
rasto pálido sem vida suplicando “me desculpe, por favor..., me desculpe..., não foi minha
culpa”, depois recuei para o banco mais próximo para mergulhar em meus pensamentos e
entender do que se tratava tudo isso. O mesmo homem se aproximou de mim e juntou-se a mim,
em silêncio, entendendo minha confusão sobre tudo aquilo, mas o silêncio desse ser inquieto
era quase impossível. Não demorou muito para o indigente profanar com suas palavras em meu
silêncio:
- Você deve tá se perguntando sobre todas essas pessoas ajoelhadas que não param de
choramingar, né?
Continuei calado pensando, e ele falando:
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Essas pessoas estão sempre lamentando seus crimes hediondos movidos a ira, a cobiça,
vingança. É deprimente, mas tudo que restou é lamentar aqui, sem parar. Esse carinha aí fez
uma coisa terrível que nem a vida aqui pode pagar. Todos estão sedentos aqui e condenados a
lamentar. Sentem dores, cansaço, fome, mas nunca podem saciar essas vontades. Aqui tudo é
mórbido e a mesma coisa, só vem mais pessoas querendo pagar seus pegados. É tão chato...
- Então..., só os mortos estão aqui? – questionei assustado.
- Nammmm, relaxa, pelo menos podemos conversar, não?
- Desculpe, mas não estou determinado a ficar aqui – levantei-me do banco e fui em direção a
saída da capela.
- Espera! – O homem me segurou desesperado, impedindo com que eu saísse – Acha que eu
não tentei? Acha que isso é suficiente? Escutar todos os dias, se é que isso existe aqui,
choramingo, sofrimento, arrependimento? Pense!
- Você já aceitou isso, me solta!
O homem me soltou, ficou cabisbaixo e disse com a voz domada de raiva:
- Você..., é tão mesquinho. Acha que tudo gira em torno de você? Seu lugar é aqui: condenado
a ficar chorando e se arrependendo!
O homem avançou até mim e me puxou violentamente para capela, eu soquei seu rosto para
ganhar tempo e sair correndo daquele lugar. Assim que fiz isso, todos que estavam murmurando
levantaram-se agora e apontavam seus dedos para minha face, chorando e gritando
“mesquinho”. Corri para fora daquele lugar, mas senti alguns tremores enquanto eu corria. Meu
arrependimento foi ainda maior que aqueles tremores ao olhar para trás e me deparar com uma
criatura parecida com uma aranha, correndo em minha direção com uma voz distorcida. A
criatura era horrível, babava como se estivesse sedenta. Ainda pude escutá-la berrar:
- VOLTE AQUI E FALE COMIGO, NÃO SEJA MESQUINHO..., NÃO SEJA
MESQUINHO! VOLTE AQUI E SEJA MEU AMIGO!
Miseravelmente, ainda cansado tanto mentalmente como fisicamente, corri ainda mais, tentei
impulsionar meus passos mais que já estavam, apressei domado pelo medo a ponto de afugentar
aquele sentimento vazio. Não demorou muito pra eu sentir o cansaço chegar mais rápido e
permitir que aquela coisa asquerosa chegasse. Droga, maldição que vivo por cair de forma
viciada em infernos diferentes, tão inconveniente. É como se estivesse destinado e aprisionada
a tudo isso: nunca..., nunca..., NUNCA ACABA! Quando penso que estamos quase lá, nada
avança, é sempre a mesma coisa com os mesmos motivos. A peste finalmente me alcançou e
apanhou como se fosse seu brinquedinho. Apenas aceitei e disse
- Faça logo o que tiver de fazer, acabe com isso! Já estava cansado.
Ela gargalhou e retrucou desdenhando:
- Como se merecesse! Você lamentará como todos, TODOS, TODOS! ESPERA..., NÃO,
NÃOOOOOOO!
Uma luz estranha cintilante rasgou o céu, feito sol durante um tempo nublado quando consegue
escapar da nuvem. Ela brilhava ainda mais quanto mais passava o tempo, até chegar em um
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

ponto que não pude enxergar mais nada além dela. Senti aquilo me tocar carinhosamente,
parecia uma massagem quando chegava aquele momento que pressionavam um ponto que você
exatamente queria, senti estar flutuando e um calor envolvendo-me por completo e destruindo
todo aquele sentimento de vazio e desespero. Brilhava..., brilhava..., brilhava...
Estava no mesmo quarto de antes, mas sem dor na cabeça – dessa vez faria sentido sentir. Não
escutei nada, a casa parecia estar vazia. Olhei do lado e Caio não estava comigo dessa vez.
Levantei-me e tive uma leve sensação de desequilíbrio, mas continuei caminhando até para
fora. Reconheci desde quando acordei no quarto, que estava na casa da Cecília, mas tive certeza
quando saí. O único cômodo iluminado era a sala, não ousei abrir a porta do seu quarto, fui
direto para sala para sentar-me de novo e contemplar cada canto. Quando cheguei, vi Cecília
arrumando alguma coisa na janela impaciente. Ela estava nervosa e deixava cair um pingente
com algum selo, andei mais um pouco e com calma para sentar-me no sofá e relaxar, mas
Cecília revirou-se instantaneamente e correu em minha direção, antes que eu me sentasse, para
me abraçar. Aquele abraço que já descrevi tantas vezes, com tanto carinho, por estar de fato em
casa e destruir o pior de mim. Quero morar nele, quero estar e apagar tudo que estivesse fora
dele. Escutei seu choro abafado, senti seu abraço apertar-me mais, como se tivesse medo de me
perder ou experenciado algo próximo disso. Isso fez com que eu questionasse: quantas pessoas
Cecília conhece, além de mim e Caio e essas pessoas estranhas? Quero dizer, quem ela pode
confiar a ponto de ter medo de perder? Talvez ela não tenha esse sentimento desde quando
perdeu seus pais naquela vez. Retribui subitamente seu abraço, sem questionar nada, apenas me
deleitei daquele momento doce.
Cecília olhou ainda com suas lagrimas passeando pelo seu rosto lindo e tão bem esculpido,
agraciou-me com sua voz doce e disse, aos choros:
- Quase quebrou sua promessa! Isso não seria justo comigo! Morreria como um mentiroso, sabe
como me senti quando esperei, esperei e esperei? Nunca ensinaram que é feio deixar alguém
esperando?
- Opa, opa, terá que explicar! Porque não lembro de quase nada, até porque eu estava
desacordado. Terá que ser mais específica.
- Ok – Cecília enxugou suas lágrimas e se sentou ao meu lado – você demorou muito e já achei
estranho, eu e o Sombra, na verdade. Saímos por muito pouco mesmo! Sentimos a vibração de
tudo. Acho que isso chamou atenção até de quem estava ao redor, mas ainda esperamos você,
só que... – Cecília fez uma expressão triste e disse um pouco titubeante, como se estivesse
assombrada ao relembrar – você não apareceu, Sombra disse que sentia você sumir, foi então
que ele deu uma grande solução!
- Espero que não tenha envolvido vocês...
- Mais ou menos, ele só sentiu com as bolinhas de baoding sua presença por perto. Aquilo foi
um grande acaso, parece que o destino não estava pronto para deixar você ir. Quando trouxe
você até nós, estava desacordado e sangrando, estava quase morto, mas trouxemos você a tempo
para cá.
- Espera, espera! Ele não estava ferido?
- Está, mas conseguiu carregar você antes que chamássemos atenção de alguém. Explicar tudo
aquilo seria complicado, sabe?
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Onde está bolsa? Quase morri por ela... – disse para descontrair.
- Está em cima da mesa, graças a você, estamos abastecidos o suficiente para atacar, mas não
para ir até lá uma 2ª vez. Então..., nossos planos ainda deve ser um daqueles.
- Droga..., me desculpa... – fiquei abatido, esperava que tivesse pelo menos o suficiente para
uma 3ª investida, mas só alimentei um conflito que queria evitar o máximo.
Cecília segurou minhas mãos, com seus olhos brilhantes e esperançosos e disse:
- Não precisa por hipótese alguma pedir desculpa. Você fez mais que o suficiente quando se
arriscou e quase morreu. Isso foi incrível..., e..., não há palavras que caibam para descrever o
que fez, mas garantiu que nossas vidas sejam salvas. Só não quebre sua promessa...
Sorri um pouco desconcertado, mas grato por ser reconhecido e ser tratado com tanta
importância, mas ser enxergado como nobre por alguém que você admira mais que tudo, é
impagável. Fiquei em silêncio com um sorriso bobo ainda, tocando várias vezes, como uma
fita, aquela música que ela cuspiu em mim. Ela fitou-me novamente e chacoalhou minha mão
para que eu voltasse minha visão para ela e disse:
- É sério! Não quebre sua promessa, relembrarei você sempre que possível. Precisamos estar
juntos quando for a hora. Não desista..., prometa que ficará comigo até o fim, mesmo que os
caminhos acabem se embaraçando dentre os fios que prescreve nossas vidas e nos leve pro mais
tortos dos destinos, o mais distante um do outro, tente me encontrar, porque também tentarei.
Fiquei estonteado com suas palavras, apenas mergulhei no vislumbre de seus olhos, mas dei a
resposta sobre a promessa:
- Eu prometo, estarei com você até quando tudo estiver distante.
Cecília sorriu, pressionou ainda mais minhas mãos, parando sua massagem, depois soltou e
abraçou-me de novo aliviada, depositando toda sua fé na nossa promessa nova. Estava
determinado a cumprir a primeira, mas essa era além de nossas vitalidades, e valeria mais que
tudo agora. Ela olhou novamente para meus olhos, sorriu e disse:
- Lembre-se, Marcos..., essa é nossa promessa!
Sorri abobalhado por ela ressaltar a relevância da nossa promessa e colocá-la em um patamar
acima de tudo aquilo, e se tinha alguma coisa do que eu preciso, ou do que precisamos; é de
uma luz que brilhe mesma diante da morte, isso é reconfortante. E não falo de um vislumbre,
mas sim de algo a repiscar que cintile eternamente, como uma gravura que nunca se desgaste,
uma estrela que nunca morre e nos leve sempre para onde queremos estar. Por toda aquela
sensação de segurança, doce de tão reconfortante, ainda sentia um ar de mistério, apenas sentia,
mas não era nada específico, mas queria saber mais de Victor e o que toda aquela vasta de ideia
dos mundos realmente era, além de suas simples descrições. Ainda não sabia por que éramos
tão importantes pra ele, enquanto eu estava aprisionado naquele buraco rodeado de tapetes e
cortinas, tive a certeza do quanto valíamos quando ele arriscou nos buscar em pleno dia, fazendo
muito barulho para restringir nossos movimentos. Não foi suicida, mas foi..., arriscado? Se
expor daquela forma atraindo atenção do que não devia, esse era o risco. Mas tenho certeza de
que ele não sentaria e conversaria conosco a essa altura, ele não fez isso da última vez e escolheu
levar João e Stefanny, ao invés de mim. Repassando todas essas lembranças enquanto apreciava
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

aquele momento delicioso, tive de fato a noção e a certeza pelo que lutar, mesmo com algumas
dúvidas.
Olhei para janela de relance, voltei meus olhos para Cecília e questionei o motivo de estar
inquieta e nervosa:
- O que houve com sua janela?
- Ah..., – Cecília se levantou rapidamente e foi até a janela, depois apontou para eu pegar um
fio – pega isso, por favor? E respondendo sua pergunta, um dos selos estava fora daqui.
Fiquei em silencio atônito, mudando repentinamente minha expressão. Aquilo..., não!
Realmente inconcebível que Victor fosse idiotar a ponto de invadir uma casa que seria capaz
de aprisioná-lo. Ultraje enganar-me do mais provável das causas de isso ter acontecido, e não
caiu; Cecília obviamente procuraria e teria encontrado, se o selo perdido estivesse em casa.
Permeei todas as entrelinhas que fizesse eu negar esse fato, por respeito, pelo resquício de amor
que ainda tinha pelo meu melhor amigo, meu irmão. Apenas fiquei em silencio mantendo minha
expressão de negação, assustado e frustrado tentando negar que ele fosse capaz disso. Cecília
estava concentrada em colocar o selo, mas antes que olhasse para meu rosto abatido com a
informação que soltou, virei as costas para evitar sua pergunta. Eu estava constrangido, e não,
não podia esconder isso para sempre, uma hora meu dever de falar isso viria, isso se ela não
estiver achando estranho e o veredito dela for...
- Acho que seu amigo nos deve uma explicação, não é? – Cecília foi rápida e deferiu seu golpe
depressa com suas palavras diretas. Fiquei desconcertado, busquei formas de falar aquilo sem
titubear, mas...
- Ah..., eu...!
- Senti o ressentimento e o arrependimento dele sobre alguma coisa, isso não posso saber, então
só cabe interpretações. Ele nos deve uma explicação.
Me senti culpa por não a alertar disso, mas também questionei comigo o motivo de ela não falar
comigo sobre o que sentiu, talvez fosse respeito ou medo de como eu reagiria, mas ainda devia
falar mesmo que não fizesse diferença agora:
- É..., ele é culpado, devia ter falado antes, mas fiquei com medo de isso afetar nossa jornada.
- Se afetasse, não teria ido, mas mesmo sentido o que sentir e sem saber o que ele faria (o que
é pior), fomos ainda, e agimos.
Suas palavras pesaram em minha consciência porque fizeram reconhecer que evitar falar sobre
aquilo era desnecessário, mas não é tão simples relembrar que tem alguém que sente vibrações
ou suas emoções. Retruquei diante suas informações:
- Ele disse que deveríamos te vender em troca das nossas vidas de volta, nossa paz. – Me
distanciei dela e fiquei andando de um lado pro outro, um pouco nervoso e gesticulando – eu
recusei imediatamente porque era uma atitude covarde, porque você confiou em nós e está nos
ajudando. Ele ficou constrangido...
- Ou ficou magoado por incluir uma estranha assim do nada? – rebateu Cecília com os braços
cruzados.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Calado e quieto, e foi só com essa pergunta que parecia exigir minha resposta que apagou minha
inquietude e tudo que eu pretendia falar porque não sabia responder. Não reconheço mais quem
esteve comigo durante muito tempo, quem tive uma amizade franca e quem esteve comigo em
tantas situações. Devo me sentir culpa assim? Por não reconhecer mais um amigo inestimável,
alguém que parece ser tão valioso? Devia sentir culpa por não sentir..., que ele..., devia mais
fazer parte de mim e seguir em frente? Mesmo que por momento, parecia mais conformado e
disposto a abandoná-lo do que o entender de fato, escutar seus anseios do que dar uma chance.
Enquanto me perdia em meus silêncios, Cecília apenas me fitava aguardando minha resposta.
Tão grande foi o desconforto entre ambos que decidi mudar de assunto, e ela consentiu sem
titubear. Quis falar sobre qual seria nosso passo agora:
- Bom, o que faremos agora? Temos o suficiente para ir com tudo, não é?
- É..., mas temos um grande problema agora. – Cecília disse isso com tanto pesar de decepção
enquanto dirija até a mesa para se sentar: Caio está com você sabe quem..., ele deve...
Cecília ficou em silêncio, e subitamente, como a chuva que desce rasgando o céu e transborda
todo chão, sua mente foi transbordada e rasgada com uma expressão de espanto inusitada.
Depois correu até seu quarto, como se lembrasse de algo importantíssimo. Fiquei aguardando
seu retorno, que não foi tão demorado, e nem tão agradável. Ela estava furiosa, indignada e com
seu olhar perdido. Batendo em todos os ângulos da sala, antes de encontrar meus olhos e
desaguar aquele mar revolto em mim e meu olhos. Ela disse, embora calma, com sua expressão
de medo e fúria:
- Ele roubou minhas anotações.
- O que tinha lá?
- Tudo que precisaríamos para agir e sair daqui.
Esse é aquele momento em você sente sua esperança esvaindo, que cada sacrifício foi em vão.
Nesse caso, minha esperança não foi sumindo, ela se dissipou quase instantaneamente.
Esfreguei a mão na minha cabeça, uma coceira misteriosa, inexistente antes, agora veio e estava
forte como se fosse uma reação alérgica, mas eu só estava muito nervoso. Fitei Cecília, que
também estava aparentemente desesperada, pensando no que fazer agora além de simplesmente
ir a Seteàlem:
- O seu grimório pode nos ajudar?
- O grimório, pelo menos esse, não diz nada a respeito dos mundos, a passagem e como lidar.
As anotações eram necessárias justamente porque perdi o outro grimório.
- Achei que tínhamos tudo que precisávamos...
Cecília respirou fundo, nervosa, nada a fim de esclarecer dúvida de ninguém agora. Então me
calei e deixei minha pergunta no ar sobre o que tinha lá, sem pressioná-la. Sabia que ela
precisaria pensar agora e meu silêncio era elementar, por mais que precisasse saber. Levantei-
me desconfortável, sem cerimônia e quase que discretamente para não perturbar seu raciocínio:
- Preparei algo para bebermos.
- NÃO! – exclamou Cecília enquanto estivara suas mãos para me parar – você não sabe como
mexer lá, o que usar e como usar. Cada chá não é só um chá.
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- Então é só dizer qual é qual, você não parece estar bem pra isso mesmo.
Cecília bufou, deu de ombro e retrucou nervosa:
- Mas você relembrou-me de algo muito importante, que é tomar o chá. Isso é importante para
nós agora. Poderemos relaxar e falar sobre o que podemos para contornar essa situação.
- Ah...., certo.
- E outra coisa! Terei que mudar alguns ingredientes para garantir que Victor não nos rastreie.
É fato que ele, de alguma forma, consegue nos sentires, mas também notei que em alguns
momentos ele não é capaz disso; quando está com raiva.
- Por quê?
- Isso fica pra depois, o que acha de focarmos no chá e o que faremos para recuperar minhas
anotações? – contrapôs Cecília contra minha pergunta, se dirigindo até a cozinha aparentemente
nervosa ainda.
Fiquei apenas no aguardo, ainda em pé e caminhando lentamente até a janela. Já era noite e eu
tinha boa visão da rua e um pouco do céu, e esse foi um dos poucos momentos que revi o céu.
Parece ter passado tanto tempo, tanto, tanto tempo mesmo que quando revi o céu, parecia
novidade enxergar a lua e as estrelas. Também notei que a rua não tinha tanto movimento e que
as demais casas aparentavam estar vazias, por não ter iluminação alguma. Quando achei que
alguém tinha passado, notei a pessoa estava ensanguentada, andando com muita dificuldade.
Automaticamente pensei em ligar para ambulância, até puxei meu celular do bolso, mas
relembrei que agora isso era comum, e que não se tratava de alguém, era somente um espírito...,
e não estava só. Assim que passou, outros seguiram também e pareciam perdidos. Alguns
completamente machucados, outros sem sequer um arranhão, outros chorando e assim por
diante. Apenas andavam sem rumo, e através de um vislumbre, pensei nas histórias que cada
um tinha para contar de como chegaram aqui, ou também pensava em ajudar para evitar Victor
e sua fome por mortos e vivos. Perdi meu olhar naquele desfile mórbido de ambulantes, junto
com meus pensamentos que logo foi interrompido com Cecília e seu estrondo ao descarregar
sua bandeja sobre a mesa. Ela estava menos preocupada que antes. Saí da janela e fui até a mesa
para continuarmos nossa conversa e me servir chá:
- Estava olhando os ambulantes? – perguntou Cecília, não tão surpresa.
- Sim, são estranhos, mas me pergunto como morreram, quais suas histórias... – rebati enquanto
depositava chá na minha xícara.
- Acho que não gostaria de saber, e você deve saber o porquê.
- Sim..., sou um invasor que tem o que eles não têm.
Cecília notou um pesar e arrependimento em minha voz, reconhecendo minha angústia de estar
escondido e parecermos mais distante de toda aquela problemática. Inacreditavelmente, parece
que a cada um passo, dois voltam ou até três. Ela não continuou, não comentou sobre o que viu
e nem o que sentiu quando retruquei:
- Bom, talvez o que eu fale agora não o agrade tanto, mas..., acho que podemos demorar um
pouco para concluirmos nossos planos. Esse acontecimento nos atrasará pra valer, graças ao
seu amigo.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- É..., ficaremos aqui por mais um bom tempo, estou quase me acostumando. – Retruquei
sarcasticamente, mas Cecília notou com sua perspicácia.
- Quero sair daqui tanto quanto você, acredite. Enfim; teremos que realizar essa investida não
somente pra fins exploratórios, teremos que dar um jeito de obter de volta aquele bloco de notas.
- Caraca, isso parece... – antes que eu terminasse, Cecília completou meu raciocínio.
- Complicado? É sim, porque devemos encontrar onde ele está, ou a casa dele.
- Nossa! Atacar a toca do lobo? E roubá-lo? Nossa..., nossa!
- Não temos outra ideia, infelizmente não, o que tem lá, custa nossa saída. É uma rota para onde
devemos ir, e por isso a incursão de reconhecimento. Sem ele, sem incursão.
- Mas achei que o acesso fosse pelo ônibus...
Cecília ficou calada, enquanto fitava meus olhos um pouco perdida, mas logo retrucou:
- É..., esse é o acesso para os outros mundos, mas você acha que é simplesmente entrar e dizer
seu destino? Entrando lá, você cairá automaticamente em um filtro, baseado na sua essência.
Podemos cair no melhor ou pior lugar, sem que tenhamos a oportunidade de escolher. O que eu
tenho lá, vai garantir que fiquemos juntos.
- Então é tipo um passe? Nossa..., eu não sabia, desculpa – contrapus um pouco ressentido por
achar que dessa vez eu não devia desculpa. Aquilo era necessário para sabermos.
- Tudo bem, devia ter contado antes, mas realmente não imaginei que isso fosse acontecer. Seu
amigo era de se desconfiar, não imaginei até esse ponto.
- Acredite..., nem eu sabia. Acho que isso tudo o mudou.
- Ou isso sempre foi dele, aqui nada está além de você mesmo, ainda continua sendo você.
- Então é ele. Queria não acreditar nisso, sabe? Mas não pareço importar-me o suficiente com
isso.
- Acho que sua vontade de sair daqui é maior que a decepção – redarguiu Cecília enquanto
sorria e degustava do seu chá, depois prosseguiu:
- Não podemos esperar muito, queremos nos libertar logo disso tudo, não é?
- Mal posso esperar.
- Vamos terminar o chá e logo discutiremos nosso plano, que é..., praticamente invadir a casa
dele.
- Ainda fico espantada que existe algo que ele chame de casa.
- É mais complicado do que parece. Temos que ficar com nosso amuleto para voltar, porque
isso envolve duas viagens. Você terá que entreter ele até eu voltar, e quando digo isso..., quero
dizer sobreviver.
- Espera..., o que exatamente fará?
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

- Irei arrumar minhas coisas e iremos ainda hoje, no caminho falo melhor. Tente sobreviver até
eu voltar.
Cecília foi até seu quarto, enquanto isso, tomei o que restava do meu chá e voltei apreciar a
vistas dos mortos na janela. A rua estava mais calma, agora nem os mortos passavam por lá e a
lua não aparecia mais, sobrou as estrelas e a ansiedade por querer saber o que faremos de tão
perigoso que exigiria a palavra “sobreviva”. O medo de morrer como inútil era como um açoite
que marcou até meus melhores pensamentos, mas sabe o que mais crescia dentro de mim, muito
mais que a própria esperança e a força de vontade de lidar com tudo isso, e as dúvidas e a
vontade mais intensa de viver tudo que não pude até agora..., minha vontade que não parava de
crescer, era de ceifar meu destino de uma vez! Me entregar para Victor e acabar com isso. Não
entendia o porquê, mas só..., sei lá, parecia melhor. Soa repetitivo, eu sei! Reclamei sobre isso
antes, mas isso tá vindo com mais frequência, e acho que conforme eu acorde, isso crescerá.
Perdi a noção dos dias que se passaram aqui, acho que foram 3 dias só ou 4, mas parece uma
eternidade e isso intensifica minha angústia e minha vontade de pôr um fim nisso. Talvez lutar
não seja o meu forte. Rodeados de pensamentos pessimista, escutei alguns barulhos e passos
impacientes vindo até mim, era Cecília com sua bolsa e pronta para batalha. Ela não fez muita
cerimônia: apenas abriu a porta e saiu, e fez o sinal para segui-la:
- Não parece estar conversadora, hein. Qual será o plano para recuperar seu livreto?
- Entrar nele. – Cecília disse isso como se fosse a coisa mais simples, com um sorriso cínico e
e a feição determinada. Era possível até desfazer-se da ideia que aquilo era suicídio, mas por
mais confiante que fosse, ainda questionei:
- Como é?! Você disse entrar nele, no Victor? É isso mesmo? Como faremos um absurdo
desses?! – perguntei ainda perplexo, exigindo a resposta de como entraria nele como se fosse
uma casa, e dando ênfase que ele tem vários lacaios pronto para atacar. Estava seguindo-a,
indicando que íamos ao bar de seu Fabrício e esperaríamos Os Olhos Mortos aparecerem.
- Isso mesmo que você escutou, e acho que não é tão necessário saber – disse enquanto colocava
sua mão na boca e aproximara seu rosto de mim.
- Ah..., Que? Espera, então como saberei quando devo voltar, como lutar com aquilo ou...,
aquelas coisas?
- Darei materiais suficiente para resistir, o importante é impedir que eles cheguem perto de
Victor enquanto eu estiver trabalhando, então quero que faça um círculo ao redor dele, sem
brecha ou coisa do tipo. Não importa se ficou torto, só deve estar fechado, sem falhas!
- Ah..., isso parece difícil, mas dou um jeito.
- Claro que sim. Enquanto ele não der o ar da graça, podemos desfrutar dessa noite lá, ou prefere
ficar em casa contando às horas para podermos agir?
Cecília toda faceira, fez o rosto mais falso de tristeza, descendo os lábios e a sobrancelha, como
se estivesse implorando. Devolvi com um sorriso, sendo contagiado com seu jeito alegre e me
envolvendo com sua euforia.
Assim que chegamos ao bar, completamente lotado e Fabrício andando pra lá e pra cá feito
louco, brandando “Peraí”, Cecília colocou sua bolsa na cadeira da mesa que ficaríamos e foi
para o meio do bar todo seduzente com seu olhar destemido e preparando sua voz. Alguns
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

homens no fundo com alguns instrumentos notaram sua ilustre presença quase
instantaneamente, seus rostos se preencheram de alegria, como se ela fosse a vida de tudo
aquilo. Os músicos dali fizeram alguns barulhos com seus instrumentos com intuito de parar a
conversação e entregar os holofotes para ela. Todos que estavam conversando, bebendo e rindo
alto, fitaram os músicos e depois olharam para o centro e fitaram Cecília tão apaixonadamente
que imaginei as inúmeras declarações que discorreriam nobremente sua beleza imensurável,
que nem palavras a exaltaria o suficiente. Cecília desfilava lentamente olhando todos, bem nos
olhos! Penetrando suas almas com toda sua beldade e seu olhar transbordando mistério. Ela
desfilava e espalhava seu perfume por todo lugar, o cheiro que antes não estava forte, alastrou-
se por todo canto. Sua voz enfeitiçava todos e levava atenção para onde ele se movesse:
- Hoje, após ter ficado ausente por um dia, acumulei história suficiente para contar, de um
conquistador cujo reino infinito não pôde controlar e afundou a própria vida na discórdia. O
reino era da escandinava, mas foi de terras anglo-saxônicas e terras da península itálica. Seu
amor aprisionou uma alma livre desvairada, que viajava sem parar até onde o sol não pôde
tocar, e isso o fez abdicar da sua prole e do seu reino, que a cada dia consumia o que um dia
chamou de liberdade.
Cecília fez uma breve pausa para pegar sua bebida que estava no balcão, virou tudo que estava
no copo goela abaixo e fez um som como se ingerisse água gelada em pleno verão:
- Sua maldição não ceifou o maior traidor, que foi seu amigo e protetor, mas ambicioso que o
reino, mas sim o início e fim onde seu nome tocou.
Todos contemplavam sua história como a maior obra literária já vista, ou escutado. Ficavam
em silêncio, mas quando Cecília terminava, todos conversam dentre cochichos sobre o que
acabaram de ouvir. A noite só estava começando, mas conseguiu preencher o que os outros dias
não conseguiram.
Cecília não parou por aí! Ela pediu mais uma dose da sua favorita, sinalizou para os músicos
detrás. A música começou sorrateiramente: bem calma, chegando devagar, com ritmos
fúnebres, mas a música tinha a química diferente do ritmo, ela era alegremente inebriante. Sua
dança que parecia conduzir a música e seu corpo embelezava cada movimento, até mesmo o
som. Eram as misturas ideais e tudo aquilo era incorporado com sua beleza, a música ganhou
corpo com sua presença. Aos poucos, o ritmo ficava mais alegre e se desprendia do ritmo
fúnebre de antes para algo cheio de vivacidade, sedutoramente charmoso. O ritmo acelerava
mais, trazendo ainda mais vida. Todos então enchiam seus olhos de vigor e esplendor de todo
aquele ritmo, batiam seus pés que encaixara no ritmo dos instrumentos e dava mais
personalidade a dança deslumbrante, e de repente..., o ritmo tornou-se fúnebre novamente e sua
dança se desfez com os demais instrumentos como flauta e violão. Cecília foi até mim e me
puxou para o meio para dançar a próxima música, que era mais calma. Ela estava suada e
aparentemente cansada, mas todo aquele vigor era inabalável, ela tinha energia suficiente para
dançar sem parar ou até contar seus contos, porém, sem dizer sequer uma palavra, apenas
recostou-se sobre meu ombro e dançou lentamente comigo. Não ousei desfazer aquele momento
perguntando sobre coisas do “trabalho”, mas devo admitir que viver como fugitivos têm
vantagens até, como por exemplo: esses momentos são ainda mais desfrutados como devem
ser, não como namorar ou ter vida de casado e se prender as rotinas como aniversário de
casamento e algo esperado do tipo: jantar, uma viagem e afins só para concluir uma tarefa. Aqui
é porque não sabemos quando teremos outra oportunidade, nem se teremos! O melhor de ter
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

esses momentos, era que nada..., fazia relembrar a vida comum que tínhamos. Não nego o fato
de ter pensado em uma vida pós caos, uma vida com Cecília: dois boêmios desvairados que
traziam vida por onde quer que passássemos, dois viajantes explorando um mundo novo e sem
a sensação de sermos perseguidos – espero que meu subconsciente não se acostume com isso,
pois sentir falta dessa adrenalina não faz parte dos meus planos. Enfim, enquanto estávamos
embalados, Cecília envolveu-me com seus braços macios e cheirosos, pondo-os no meu
pescoço. Ela fitou-me com seu sorriso aliviado e seus olhos repletos de tenência e felícia, e
disse suavemente:
- Aposto que pensou nessa situação melhor do que qualquer um... – enquanto continuava fitar-
me.
- Como assim? – questionei um pouco confuso.
Cecília se aproximou gentilmente do meu ouvido, deixando-me arrepiado com o som doce de
sua voz e seu abraço fervoroso:
- Deve ter pensado..., hmmmmmmmm..., que tudo aqui é diferente enquanto corremos riscos,
acertei? – em seguida, retirou seus lábios do meu ouvido.
- Ha..., acertou. Sabe..., é outra sensação quando você tem momentos assim, faz com que
queiramos desfrutar até o limite.
- Ou além – respondeu Cecília com seu sorriso e olhar malicioso, e eu..., bom..., apenas devolvi
aquele sorriso sagaz e pecaminoso, com entrelinhas que davam a tantas opções. E uma delas
me tentava.
- Já pensou no que fazer, depois disso tudo? – indaguei.
- Talvez possamos ter uma vida juntos, quem sabe. Desfrutar do nosso jeito. Creio que
aprendemos tantas coisas por aqui, então devemos viver e morrer satisfeitos, porque isso tudo
não deve ser em vão, não é? Aliás..., tem forma melhor do que pisar assim em Victor?
Esfregando nosso triunfo?
Soltei uma gargalhada abafada e continuei fitando-a ainda mais devoto, entregue de corpo e
alma solenemente, e talvez já não fosse mais mistério. Ficamos unidos por motivos em comum,
talvez terminando juntos pelo mesmo motivo, e isso eu devia agradecer, seguindo todas as leis
da atratividade e sua filosofia, agradecer e reconhecer Victor, ou Os Olhos Mortos por nos unir
dessa forma. Talvez o melhor da minha vida tenha sido o pior, lado a lado. Quando ela estava
se aproximando com sua respiração ofegante, que a cada segundo parecia mais alta e intensa,
com seu rosto entregue ao que estava prestes a fazer. Relaxada e sendo levada, como as ondas
no mar que nos arrasta e leva, sendo arrastada por suas emoções sem titubear. Estava certa e eu
também, meu coração já estava na boca, meu corpo congelado e já ansiando por aqueles lábios
tão bem desenhados. Eu ficava quente, praticamente fervendo, enquanto meu coração palpitava
mais alto que todo ambiente! Eu desejei, ansiei, e com os mais profanos pensar, violei tocar
aqueles lábios como o músico que harpeja lenta e precisamente os mais calmos dos sons, como
o vento do luar e o mar. Profanei isso mais que qualquer coisa, senão tudo, desde quando trouxe
o que me faltava reconhecer e sentir. Ela foi o meu melhor de tudo isso e hoje estava tendo
certeza de que talvez ela pensasse o mesmo..., as palavras que vinham como um sonho do qual
não quero acordar, era chamar-te de minha amada, mas infortunadamente, uma tragédia, um
ultraje de tão inconveniente que foi. Seja quem for, citei todo tipo de maldição quando ocorreu
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

seja lá quem fosse. Desejei que os mortos o levassem e até pisoteasse nele por ter interrompido
com algumas palmas inconveniente, como se desejássemos aquilo, como se ninguém tivesse
trocado afeto ou carícia com quem ama. Cecília, na verdade: ambos! Paramos e viramos em
direção das palmas, e o serzinho inconveniente, desprezível e crápula INCOVENIENTE..., de
novo, era ele, quem tanto queríamos encontrar nesta noite perfeita, todo pomposo com seu
sorriso prepotente nos encarando..., Victor, Os Olhos Mortos diante de nós, debochado e
interrompendo nossa cena dessa história infame cheio de amor, vida e morte.
Paramos tudo, até nosso abraço desfez, assim como nossa dança. Observamos ele como nossa
pressa e ele fez o mesmo, quase não pisquei. Não queria por segundo sequer tirar os olhos desse
infeliz. Ele fez um sinal para Fabrício, ainda mantendo seu sorriso cínico como se também
esperasse por nós. O clima era de guerra, eram duas grandes energias guerreando sem se tocar,
e era nítido de ver em seus olhares de ódio, um querendo avançar no outro. Aparentemente,
ninguém além de mim e Fabrício sentiu o peso daquelas ilustres personalidades prestes a entrar
em batalha.
Saí do meio e fui me sentar, ainda sem tirar os olhos dele, esperando que ele fizesse sua
esquisitice e nos levasse para sua toca de horror, mas Cecília não se sentou e continuou
encarando-o, só mudou um pouco sua expressão acrescentando um sorriso. Victor olhou em
volta e disse, ainda sorrindo:
- Hoje é uma noite de muuuuuita alegria, pessoal, principalmente para vocês. Olha quem está
aqui..., diante dos meus, a ilustre, magnânima, MINHA QUISTA CECÍLIA. Achei que custaria
mais que uma vida te encontrar.
Olhos se olhavam sem entender e murmuravam, somente nós o compreendíamos. Victor foi até
onde estava sentado, junto com Cecília e nos fitou sem parar com um sorriso que eu desejei
tanto tirar, na verdade..., desejo ardor que emanava só em meu olhar, por ora, e em meus punhos
contraídos:
- Vocês são incrivelmente previsíveis, às vezes até esqueço porque são tão fascinantes, mas
lembro da minha obrigação. – Fabrício se aproximara com nossas bebidas e saiu rapidamente,
sem querer interromper Victor, que logo prosseguiu: Vou adivinhar, depois podem dizer se
acertei. Hã... – Victor virou seu copo de bebida e continuou – querem recuperar um diário, um
livreto, um bloco idiota de anotações composto por coisas muuuuuito valiosas, dentre essas
coisas valiosas, acho que tem algo tipo um..., o quê mesmo? Espera..., deixa eu pensar – Victor
olhava para todos os lados, realizando uma falsa busca para intensificar sua zombaria com seu
triunfo, tentando nos irritar mais – tinha um passe, para algum lugar, um lugar, qualquer lugar,
talvez um lugar que nem podem mais, mas por quê? Ah, SIM! Droga..., não tem mais isso, e
isso quer dizer que só resta uma coisa... se entregar. Acabou. Não tem mais como lutar, não há
nada que possa fazer, só aceitar o destino inconveniente de vocês. Tenha respeito pelo que
restou de dignidade.
Cecília apenas ficou em silêncio apenas retribuindo com seu sorriso guardando o que ela tinha
para esse maldito prepotente.
- Espero que mantenha esse sorriso enquanto acabou com o que restou de você! – respondeu
Victor com um leve tom de fúria.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Cecília virou o copo de bebida e desfilou até o centro do bar novamente, e os músicos fizeram
um barulho para entregar os holofotes à ela, que se preparava graciosamente com o mesmo
olhar, só que agora desafiador e pronto para derrubar Victor. Ele era a atração principal para a
plateia que eram seus olhos:
- Hoje é uma grande noite, pois finalmente veremos a queda de um tirano, um manipulador e o
verdadeiro atormentado. Contarei a vocês o inacabável, e tão esperado conto dos Olhos Mortos.
Ah, mal sei ou bem sei sobre alguém tão perdido que se esconde nossos mortos e em uma vida
que nunca terá. Chega a dar pena quando o vejo cercado de seus lacaios tão vazios quanto seu
mestre perdido..., ignorante..., solitário..., A qualquer custo tenta preencher sua miserável vida
com os abnóxios e o desespero que lhe resta para lutar, mas em uma noite, quando ele acordou
sorrindo achando que seu triunfo chegou, foi quando sua queda veio e libertou todos que
vivenciavam seus tormentos. Os Olhos Mortos, por mais que tivesse pompa, não tinha
escrúpulo e não é mais livre que a formiga que deve trabalhar todos os dias para rainha. Assim
como seus lacaios, está sempre gritando por dentro e incomodando todos a sua volta com
choramingo – Cecília colocou suas mãos no rosto como se enxugasse suas lágrimas, fazendo
uma expressão de falsa tristeza – “ME LIBERTA, POR FAVOR... POR FAVOR!”
Alguns sorriram, mas Victor não escondeu sua raiva nem quando sorriu de seu teatro e sua
declamação de escárnio. Seus olhos ficaram mais cheios de raiva, quase avançando até ela, mas
as correntes de relembrar onde estava, fazia ele se abster de atacar ou agir para ele ficasse
calada, e o risos o incomodava ainda mais. Cecília não satisfeita, completou:
- Olhos Mortos, quem é você que está por baixo de meu vestido, invade minha privacidade e
assombra nossas vidas sem parar? Quem é você que se esconde nas sombras e nunca nos encara
como eu te encaro agora?
Victor fitou-me furioso, inclinando seu corpo sobre a mesa em minha direção e disse:
- Espero que tenham gostado meu show naquele lugar, espero que tenha lidado muito bem com
seus fantasmas.
Eu não fiquei tímido de entrar para o show e reforcei:
- Aquilo quase me matou, realmente..., você é cheio de surpresa, aquela explosão então...
NOSSA! Quase me matou mesmo, mas não foi e nem será como o que faremos com você agora.
Espero que chame todos os seus lacaios antes que possamos agir, quem sabe não tenhamos
piedade – fui domado de ousadia e provoquei ele a ponto de bufar e seus olhos escorrerem o
sangue e ficarem escurecidos novamente.
Victor foi domado pela fúria, mas rapidamente desfez aquele semblante e embebeceu a si com
sarcasmo, como se estivesse ainda mais a beira do seu triunfo, e disse:
- E são nesses momentos que esqueço da genialidade de vocês, porque até o fim... – continuou
enquanto se levantava mantendo sua prepotência – continuaram sendo previsíveis.
Em seguida todo o cenário mudou, sendo preenchido por uma densa neblina que impossibilitava
com que eu enxergasse, mas pude escutar os passos de Cecília vindo até mim e seu chamado.
Ficamos juntos até a neblina se dissipar, nos preparamos como pudemos! Tive o reflexo
necessário para apanhar a bolsa, dando grande alívio à ela quando notou que eu estava com a
bolsa e os materiais necessários para sobreviver, e determinados a acabar com ele.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

No aguardo do show de horrores dos Olhos Mortos, Cecília disse aflita e um pouco insegura,
por mais que alguns segundos atrás estivesse confiantemente ousada:
- Lembra de sobreviver, tá? Essa parte é importante.
- E lembra de sair, seja lá de onde for, porque também é importante.
Entreguei a bolsa à ela depressa, olhei por cada pedaço da neblina com ela em busca de algum
ponto que possibilitava com que eu enxergasse, mas aos poucos a neblina se desfazia. Cecília
se preparava colocando a mão em sua bolsa com seus olhos assassinos: serrilhados, cheios de
veneno e perspicácia, no aguardo do menor sinal que resultasse em sua hostilidade. Aos poucos
a neblina se dissipava, juntamente com seu cheiro de morte. Assim que sumiu, não havia mais
ninguém e nem mesmo Victor. Era só nós dois completamente cautelosos e buscando, de cima
a baixo, sinal dos Olhos Mortos e seus lacaios. Não tinha morte, nem cheiro e tampouco vida.
Tudo novamente estava envelhecido com as luzes amareladas e coberto pelas trevas, trazendo
um calafrio e a sensação desconfortável que vinha com uma pressão dentro de mim. Não
enxergávamos ninguém por enquanto, mas me sentia sendo bisbilhotado de algum lugar onde
meus olhos não alcançavam. Ficamos mais um pouco ainda no bar ainda no aguardo de algum
outro sinal para atacar ou se defender, mas depois saímos com cuidado olhando para todos os
lados. O céu perdeu toda sua beleza, ficou sem vida e vazio sem a lua, nem as nuvens existiam
no céu, e a rua sumiu com seu pingo de beleza que ainda restava. No momento de puro conflito,
pura aflição, ainda pensei nas pobres almas, tive empatia me perguntando se chegaram em
segurança para onde estavam indo e torci para que os olhos mortos não tenham chegado a
tempo, embora eu estivesse apertado e em um momento que eu deveria pensar só em mim, não
devia pisar nos outros assim.
Caminhamos um pouco pela rua desconfiados, olhando do lado pro outro. Cecília não tirava
sua mão da bolsa quase em momento nenhum, seu estado alerta só aflorava mais, se
intensificava mais como a defesa de uma fortaleza impenetrável, como Kuélap:
- Ele sumiu tão rápido, tão de repente, mas ainda sinto que estão nos observando – acrescentei
a fim de sanar a dúvida se estávamos ou não sendo sondados.
- Também sinto, talvez não seja Victor, e acho que sei qual é o plano que ele tem em mente...
– rebateu enquanto segurava minhas mãos, me conduzindo para rua abaixo do bar certa de sua
decisão. Ela parecia ter compreendido de fato o que aconteceria e estava convencida de como
agir, somente eu fiquei confuso:
- Ah..., então me diga, qual é o plano dele?
Cecília apontou com a cabeça e seu olhar destemido para cima e disse:
- Aquilo responde sua pergunta?
O bar, bem no telhado, assim como em outras casas nas redondezas. Além de toda aquela
escuridão, aquele vazio, havia coisas parecidas com estrelas repiscando pelo céu como estrelas,
tudo simultâneo. Meus olhos massacrados por lutar e ter que compreender tudo através das
entrelinhas, naufragado no mar da calamidade mediu esforço até que tudo ficasse nítido para
analisar de forma precisa, em meio aquele aspecto nada sadio, emanando energia daqueles que
almejam suspirar mais uma vez além daquilo que o soterra, afaga; piscavam em meio ao breu,
como estrelas e, como disse, cheguei a pensar que fosse, mas lembrei do inferno onde eu estava
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

e o que lidamos quase dia a dia agora. Aqueles lumes quase sucumbidos a escuridão com o
vestígio de luz perdido, parecendo riscos no céu que piscavam sem parar, miravam para onde
estávamos sem perder nossos movimentos. Miravam sedentos e cada vez representava as
estrelas que nos seguiam. Agora elas desejam algo, além disso, e emitiam um sonido com uma
voz presa na garganta, uma voz roca obstruída, sufocada e aprisionada de poder falar qualquer
coisa que quiser. Tudo que sobrou foi grunhir sem parar para aliviar seu tormento de não falar
nada. Esses flashs de luz minúsculos, quase invisíveis dentro daquele breu vasto, se se
mobilizavam, lento, aos poucos em nossa direção, ainda pelos telhados. Ouvia o ruído do peso
sobre o teto ranger, com minha respiração apreensiva e ofegante, prevendo o pior prestes a
acontecer. Os olhos famintos e miseráveis estavam se movendo ainda mais depressa,
conversando entre si, correndo! Emitindo alguns gritos, murmurando aos sons de seus pisos
sobre os telhados frágeis. Cecília me puxou com mais força e corremos o máximo que podíamos
tentando despistar eles, que pareciam mais rápidos. O som que emitiam era terrível, repleto de
tormento e somente eles compreendiam, avançavam calculando seus passos, observando tudo
com estratégia. Nada era precipitado apesar da rapidez e eficácia de como se moviam, tornando
nossas movimentações fúteis e desesperadas. Ela olhava de um lado para o outro querendo
abrigo, mas Cecília corrigiu meu raciocínio capturando minha ideia no ar e arremessando-a
longe:
— Precisamos entrar em uma casa que tenha escadas, e estou falando na parte dentro. Podemos
restringir os movimentos deles em local curto e selar todos do jeito que te falei.
— Certo, mas realmente vai funcionar, não é?
— Claro que vai, sei disso porque estamos com o corpo fechado. Na verdade, só você. Isso quer
dizer que eles podem me sentir a distância daqui. Quero que vá para porta e tente se esconder
em qualquer lugar. Não deve ser descoberto por hipótese alguma, senão nosso plano sofrerá
gravemente com esse imprevisto. Sabe a importância de isso funcionar, não é?
Titubeei para responder, incerto; ainda disse:
— Faça o que for necessário, pois cuidarei da minha parte.
Corremos com velocidade máxima, quase esgotados, mas os olhos de águia dela e seu
conhecimento pela rua, nos ajudou identificar o domicílio que precisávamos. Ela entregou a
mim uma vasilha com bastante pó da pedra do sol e correu para casa com sua bolsa. Fiquei no
lado de fora. Avistei de relance um lamaçal com um odor forte que se formou, talvez, por
alguma inundação como a que enfrentamos no depósito. Aproveitei e me afundei, deixando-me
integrado com o cheiro do local, disfarçando o cheiro de vida que eu emanava. Não demorou
muito para que as criaturas chegassem e entrasse, como uma manada descontrolada até a casa.
Poucas se dividiram, e quando falo da escassez, deveras pude notar outros pensarem diferente
do avanço. Porém, uma delas foi até onde eu estava, farejando feito louco, desesperado tentando
encontrar o rastro que relutei para esconder. O exército, melhor; a manada desses seres, estava
terminando de adentrar a casa. Meu tempo estava se encurtando mais e eu não tinha uma ideia
de que me tirasse daquela situação e poder salvar nosso plano. Ficava afoito, estonteado de tão
aflito que eu ficava ao ver seus números diminuírem e o serzinho não saía de perto. Ela chegou
tão perto que quase pisoteou minha face! E não parava fungar em busca do que seria o odor.
Tive que parar de respirar e torcer para que ela se distanciasse de mim logo. De modo repentino
chegou o raciocínio de sair, brusco, derrubá-lo e despejar o suficiente do pó no maldito curioso,
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

assim o fiz. Depois que o último entrou na casa, contei os segundos de segurança respirei o
máximo que meus pulmões puderam aguentar, e agi. Derrubei o inditoso amaldiçoado,
IMPIEDOSO. Avancei para impedir ele de se levantar, segurei todo feroz seu pescoço e subi
nele. Em fração de segundos, peguei a vasilha e um punhado de pó. A criatura tinha os olhos
mais vagos que o céu, ou como a abóbada celeste trevosa, e os dentes pontiagudos com seu
rosto pavoroso e mortífero. Com o mesmo punhado, derramei tudo em um golpe deferido em
sua boca com seus dentes amolados, machucando minha mão. Senti minha dilacerar com a
força, mas não hesitei e depositei tudo que estava em minha palma. Ela soltou um grito agudo
exacerbado, temi o pior; achei elas voltassem, mas agi rápido. Assim que o infeliz afrouxou
minha mão, levantei-me às pressas e corri até a porta para selar a entrada do local e percorri até
a saída para encontrar Cecília.

Assim que cheguei no local, avistei Cecília ofegante, suada e exausta:

— Você está bem? — perguntei preocupado enquanto a via tentando recuperar o fôlego,
fitando-me.

— Difícil de dizer, mas; consegui! Coloquei em todas as saídas ou aberturas da casa. Foi muito
difícil

— Ufa! Ainda bem! peço perdão pela demora e quase ter afundado o plano.

Cecília sorriu aliviada, mas ainda preocupada quando observou minha mão ensanguentada e
dilacerada. Esqueci do meu ferimento por estar sob efeito da adrenalina, porém, quando dei
devida atenção.

— O que foi isso? — disse domada de preocupação, indo em minha direção para segurar minha
mão.

— Isso foi o imprevisto. Ele não saía de perto e eu estava ficando sem tempo, então tive que
agir logo, não foi nada.
Cecília se aproximou de mim, pegou minha mão examinando direitinho, tocando em cada parte
do ferimento. Depois rasgou um pedaço de sua blusa, da parte da sua manga, e tentou enfaixar
minha mão. Por mais inútil que parecesse, a intenção já ofuscava minha dor.
— Não se arrisque assim. – Notei seu rosto preocupado, mas queria esconder.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Você disse que não teríamos como lidar com imprevisto, foi questão de tempo e viu que
quase não chego na saída.

Cecília se absteve de falar algo sobre não porque eu estava errado, mas sim pelo fato dela deixar
seu sentimento de zelar sobrepor o de dever. Ela rasgou a outra manga de sua blusa para garantir
que a ferida fosse coberta. Por infortúnio, não tínhamos nada para colocar sobre ela, então era
o máximo que podíamos fazer um pelo outro. Assim que terminou, seguimos para o beco para
retornar a entrada da casa. Escutava muito bem as criaturas berrando dentro, ainda mais
atormentadas. Tudo que faziam era gritar sem parar, enquanto transpassávamos. Durante o
percurso, questionei o fato da rapidez de Cecília:

— Você conseguiu selar tudo muito rápido, temi que não desse tempo.

— Acredite, você não foi o único. Cada segundo que meu coração palpitava era audível, ele
pulava para fora e volta — retrucou enquanto sorria.

Estávamos próximos da saída, prestes a repassar o plano de como aprisionaríamos Victor e ela
entraria na mente dele:

— Ainda lembra como será, certo?

— Sim, e ainda pude praticar — retruquei sarcasticamente, e prossegui —, quando ele aparecer,
gar...!

Antes de eu terminar, um estrondo enorme rasgou minhas palavras e partiu a casa ao meio bem
onde estávamos. Era uma criatura enorme feita de sombras com garras afiadas e feroz. Sua
força, seu poder de destruição foi imenso, tão inimaginável que só lembro de pensar “quando
achei que não estaria mais surpreso”. Depois ser agarrado de forma brutal por suas garras e
Cecília gritando meu nome.

A besta grasnava alto atraindo hordas de espíritos comigo e abaixo de mim. Entrei em pânico
logo quando pensei em Cecília. Me movimentei para que fosse solto, mas era muito forte e me
apertava mais, escutei o som dos meus ossamento estralando e a dor que jamais imaginei sentir.
Quanto mais grasnava, mais os bichos saltitantes de baixo com Cecília e em volta do pássaro
das sombras. Rastejando pelo seu tronco moldado com as trevas, sedentos e lentos, sem tirar
aqueles lumes amaldiçoados de onde eu estava. Eles salivavam como seu eu fosse seu banquete,
eu tentava sem parar de me debater e me libertar, escolhendo morrer com a queda, mas isso
ficou tão inútil quando ela apertou mais. Senti meus próprios ossos me perfurando! Gritei ainda
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

mais intenso que seu grasno de corvo. Comecei a cuspir sangue, enfraqueci a ponto de ficar
tonto e sem forças para se debater, nem gritar eu podia mais. Ele me alcançava mais, e tudo que
estava a minha altura era sofrer e morrer aqui, no alto, sem poder responder como queríamos,
sem tocar os lábios de quem amava. E lá estava eu desejando ter o melhor destino, digladiando
por um resquício de liberdade que por mais efêmera que fosse, valia a pena? Me enxergando
ensanguentado, eu encarava como desperdício do que restava da minha vida lutando, mas em
meio a esse desperdício, tinham coisas que valeram a pena para viver enquanto estive lutando.
Meu olhar esvanecia, e mal conseguia enxergar as criaturas que se aproximavam de mim.
Naquele momento, as garras que pressionavam mais o meu corpo, já não doía tanto, nem mesmo
os ossos que me perfuravam estava incomodando como antes. Aceitei o destino ceifado a partir
do momento que decidi entrar em uma luta que já tinha acabado há tempo, talvez. Aquele
horror, todo aquele terror, já não parecia afetar-me como antes, e até estava pronto para encarar
meu fim que parecia. Enquanto fechava meus olhos, e as criaturas se aproximavam, um grasno
eloquente que adentrou minha audição quase apagada. Junto com a minha visão, me manteve
acordada e fez com que eu observasse uma luz misteriosa acima dela, daquele corpo horrendo.
Era ela, acima daquela ave como uma heroína estendendo a bandeira após conquistar as terras
inimigas, como se estivesse erguendo sua espada banhada de sangue, só que com nada disso.
Cecilia estava bem na cabeça do monstro, com o pó da pedra do Sol esbanjado em cima da
besta causando a dor mais indescritível com um estardalhaço. Aos poucos, a criatura foi
decaindo grasnando de sôfrego. Cecília se segurava na cabeça do monstrengo até sua queda,
enquanto lidava com as demais almas sedentas se aproximando. Eu estava como um pobre
coitado ensanguentado nas garras dela apenas aguardando o meu fim. Quando a ave alcançou
o chão, apenas apaguei e não senti o impacto de nada que aconteceu, nem ao menos acordei
com o estrondo que aquilo ocasionou. Enquanto estive desacordado, relembrei diversas vezes,
repassei como uma fita gravada o momento no bar antes de toda essa desgraça acontecer, e foi
a única coisa boa que tive durante o caos. Era quando eu e Cecília estávamos dançando,
estávamos nos deleitando da presença um do outro trocando carícias e olhares, e um beijo
interrompido por um crápula perturbado. Ao invés de relembrar o fato de ter sido interrompido
e evitado meu deleite. Ou tocar os lábios dela como o Sol e a Lua fazem durante o eclipse,
imaginei repetidas vezes um momento em que eu pudesse tocá-la. Meu corpo mergulhou nas
chamas e tive uma sensação tão viva de prazer que não cabiam palavras para distinguir tamanha
paixão do que pude sentir, só de pensar nessa possibilidade de beijar. No final de tudo isso, era
só o que eu imaginava, era só o que eu desejava... Amar alguém no meio de todo esse caos,
mesmo que parecesse impossível eu só queria viver da forma que eu realmente gostaria.

Tonto, desorientado por não entender o que aconteceu, senti o toque quente de suas mãos, a
musicalidade de sua voz ao falar mesmo que fosse aflita. Aquilo brilhava dentro de mim com a
esperança que me faltava quando esfaleceu com a queda ou quando a fera me agarrou.
Devagarinho eu abria meus olhos, e enxergava o seu rosto aflito, preocupado, domado pelo
medo que nunca tinha presenciado, vivenciado. Nunca imaginei que apreciar o seu rosto
preocupado fosse me trazer tamanho alívio só por relembrar o fato de que ainda estou vivo e
ainda ter a chance de viver com você, ou sobreviver. Assim que ela viu meus olhos abrindo, de
imediato, me segurou e me deu um abraço mais apertado que afagou os meus pensamentos
sombrios. Apagou tão repentino as memórias daquele momento sombrio de quase morte, não
pensei duas vezes quando devolvi o abraço com que me restava de força. Suas lágrimas
banhavam meu rosto parecendo chuva durante um trágico acidente levando e trazendo toda
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

tristeza. Ela me soltou um pouco e me amparou com seus braços macios de amor, deixando em
seu colo acalentado. Minha respiração estava enfraquecendo aos poucos, e não sabia como eu
deveria aproveitar o que me restara de força. Cecília fitava-me do mesmo jeito, em prantos,
buscando o que fazer ou o que falar, mas o pior era sentir que minha vida se esvaia. Seu
desespero lutando para manter uma sobra viva de uma vida prestes a acabar, e o fato de não
poder fazer nada, me entorpecia. O silêncio bastava, talvez, mas saí assim, sem pronunciar nada
para eternizar em suas lembranças, parece cruel, então:

— Não achava que surgiriam mais surpresas — disse sorrindo, com muita dificuldade sentindo
minha respiração enfraquecer mais.

— Não fale! Preciso cuidar de seus ferimentos — ela examinou com os olhos meu corpo
ensanguentado, depois com leves toques em minhas feridas.

Apenas retirei sua mão de meu machucado, quase esgotado, com muita dificuldade para mexer
qualquer parte de mim. A única coisa que estava ativa e revigorado como de costume, eram
meus pensamentos turbulentos e ansiosos, sempre imaginando e falando coisas. Palavras nunca
pronunciadas em casos nunca existiria:

— Sabe que não há o que fazer, não trouxemos nada que trate, e nem temos nada me ajude.

— Cala boca! — rebateu de forma agressiva e nada pronta para deixar-me partir.

— Sabe que é verdade. Por favor, deve agir agora. Aquele pássaro é ele, eu sinto que é e agora
você deve agir.

— Mas tudo isso não pode ser em vão, lutamos tanto para que finalmente pudéssemos escapar
juntos, VOCÊ prometeu.

— Há promessas que não podemos cumprir, diante do acontecimento. O sacrifício de agora não
pode ser em vão. — Fui interrompido pela minha tosse intensa expelindo sangue, mas tentei
continuar — Você... Deve terminar o que começamos, Cecília.

Ela abraçou-me novamente o mais delicado possível. Preencheu a abertura de seus dedos com
meus cabelos acariciando-os e bem devagar deitou-me, como se eu fosse um bebê prestes a cair
no sono. Cecília colocou sua mão na bolsa e tirou o frasco para cercar-nos, caminhando em
direção a criatura que aos poucos encolhia. Meus olhos pensavam toneladas, mal podia erguê-
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

los para ver ela e nosso triunfo. Ela despejou, nos cercando, o pó com uma linha grossa para
garantir que nada ultrapassasse. Cecília respirou fundo, recostou sua bolsa ao meu lado com
seu olhar sobrecarregado de tristura. Caminhando em direção Victor que já estava visível e
machucado ainda. Quando ela tocou no infeliz, o furtador de almas e atormentador, bem na
cabeça dele com ambas as mãos, emitindo um rápido flash. Ele gritou, se contorceu de dor! E
atirou, como sinalizador, uma grande luz para cima. De forma constante, a luz era arremessada,
feito um feixe. Lembro que quando olhei para cima, vi várias criaturas, olhos ocupando o céu
como se fossem astros. Olhei de volta para ela e Victor e vi que sua mão estava brilhando com
uma coloração avermelhada. Ele estava de joelhos e ela com os olhos mortos, sorrindo e sem
retirar sua visão dele, que ainda se contorcia. Logo atrás de nós, ou melhor; ao nosso redor,
todos eles! Os monstros carniceiros que ansiavam pela vida, chegavam às pressas. Gritavam
sem parar “por favor, POR FAVOOOOR” e se empurravam com medo de ultrapassar o círculo.
Seus berros eram de fúria, querendo ultrapassar o selamento, mas nenhum tinha coragem
suficiente. Rodeavam, sondavam sem parar! Se esbarravam e gritavam mais. Outros com suas
bocas costuradas, transmitiam um som agudo que penetrava em minha mente. O caos
predominou tanto, que alguns se esmurravam e se matavam para passar e só nos encarar. Mais
nada.

Por mais que estivesse tumultuado, só um dos passos era mais coordenado que os demais, suave
e paciente. Caminhava de tão distante, mas tinha pressa. Os sapatos eram impecáveis quanto o
charme ao caminhar entre os mortos. Quando mais se aproximou, meu olhar aliviara-se do peso
que estava antes e quase soltaram da cara. Medi o maior esforço para ao menos sentar-se,
mesmo mal conseguindo falar. Meu coração dizia não, mas meus olhos nunca me enganaram,
e eu estava diante que não esperava por hipótese alguma. Ele... era ele que estava detrás das
sombras, à espreita e como a tacada final para vir até nós. Tudo parte de um plano que não era
nosso. Calcularam até o menor dos passos? Não, recuso que isso seja possível. Esse ser que um
dia foi meu consolo para essa desolação, ele... ELE! Caio. Estava diferente com os olhos
fúnebre, mas o rosto com amargura estampada, que tirava toda sua elegância de agora.
Observou atento círculo que estava desenhado e não ficou nada preocupado, apenas examinou
para desdenhar e ultrapassar sem pestanejar. O miserável antes de ir até Cecília, adentrou com
seu olhar e aterrou-me com a névoa de cólera, de mágoa e julgamento, como se estivesse com
o controle de tudo. Depois continuou seu caminho até Cecília enquanto estirava lentamente sua
mão. Numa tentativa desesperada, motivado pela inconsequência e inconsistência, peguei uma
adaga na bolsa que usaríamos para realizar o ritual, e tentei me reerguer. Caí de forma brutal e
senti uma dor infernal, mas meu frenesi dava forças, minha vontade de matá-lo era meu melhor
remédio. Me aproveitei tanto dessa fúria que levantei quase revigorado e partir para cima dele
como louco. Ele colocou seus braços na frente para defender, mas pensei rápido e tentei golpear
sua barriga, mas pegou de raspão. Então quando sua guarda em baixou, bati com a cabeça nele,
nos arremessando um pouco afora do círculo. Fiquei por cima dele golpeando inúmeras vezes
seu rosto, sentindo a dor da decepção esvaindo e sendo preenchido pelo ódio. Para se defender
do golpe que eu ia deferir com a adaga, esquivou bem na hora sua cabeça, e me empurrou. Caio
estava fora do círculo se preparando, se mantendo cauteloso e contando que eu não avançaria
por ele estar do lado de fora, mas eu estava imparável, e seria necessário mais que isso. Manquei
destilando todo meu veneno em uma investida inesperada! Ele ergueu seus braços em direção
a sua face para se resguardar. O nefando ainda segurou a lâmina pondo-a entre os braços em x
que o protegia, depois a segurou enquanto eu pressionava mais com meu rosto coberto de
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

sangue. Meu avanço não pararam as criaturas, pelo contrário: elas avançaram e fizeram incisões
com suas garras em todas as partes do meu corpo. Eu ignorava apenas pressionando mais e
ganhando tempo para que Cecília conseguisse o necessário. Me senti arremessado aos lobos me
devorando vivo enquanto tentava eliminar o líder da alcateia. Durante tudo aquilo, o que Caio
pôde dizer foi:

— MARCOS, PARE! VOCÊ NÃO ENXERGA O QUE ESTÁ ACONTECENDO?! VOCÊ


ESTÁ SENDO IDIOTA E COMETENDO UM ERRO GRAVE ACORDA!

Ignorei este inclemente e gritei bem alto emanando toda minha fúria, rugir como leão para
demonstrar minha força, em sua frente ainda mais obstinado a matá-lo a qualquer custo. Minha
força se sobrepôs a dele, cantei minha vitória com o sorriso mais sádico que tinha, mas ele me
atirou contra as almas ferozes e saiu com um arranhão em sua face, quase no olho. Os monstros
que nos rodavam me seguraram, outros ainda mordiam minhas pernas para me imobilizar, assim
como os que mordiam meus braços. Gritei libertando minha fúria, e isso foi minha cartada final
quando outro serzinho veio de algum lugar e me perfurou pelas costas, adentrando com suas
garras bem em meu coração. Fiquei com meus braços estendidos, com meus pulsos segurados
pela boca dos monstros: um em cada lado. Estava de joelho suspirando pela última vez com um
belo sorriso de triunfo, sádico e crente de que fiz algo maior que qualquer um. Fitei o indigente
pela última vez, e disse:

— É tarde demais... Ela conseguiu, seu babaca!

Caio olhou para trás e se deparou com Cecília flutuando com Victor trêmula, inquieta; sendo
ofuscada por uma escuridão que vinha dela agora, e saía de Victor. Quando Caio correu até
eles, uma voz calma que se alastrou como o raio por todo canto, tal como a que ouvi no depósito,
dizendo: AFOGUEM-SE!

O chão estremeceu, o círculo se desfazia e as criaturas corriam em direção a Victor. Caio apenas
olhava em volta, buscando algo com seus olhos desamparados, que logo avistou algo assustador
o suficiente para fazê-lo colocar suas mãos contra os olhos e gritar “MERDA!”. De relance, vi
uma grande onda cobrindo casas com suas águas sepulcrais, prestes a nos levar com os demais
corpos. Levou nada menos que segundos para nos atingir e nos afundar. Fiquei boiando como
tanto os outros corpos que estavam por lá, nadando, se afogando, se debatendo sem parar. Não
enxergava muito as coisas, exceto a luz acima que antes não tinha, mas não tive potestade para
nadar até lá, nem para me manter a salvo. Ainda localizei em meio aos corpos, Cecília cintilando
entre os cadáveres, com sua mão em Victor, mas logo se desprendeu. Nadei até ela com meu
resto de determinação, sem titubear e remoendo minhas dores. Como afortunado, e para meu
alívio, ainda alcancei ela e segurei sua mão. Não pude disfarçar meu alívio ao estampar meu
sorriso para esfalecer ao seu lado, por ter lutado com todas as nossas forças. Abracei meu amor,
me envolvi com seu calor intenso emanando na água fria, imunda e vazia. Olhei bem em sua
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

face e proclamei a mim mesmo “estamos prontos para ficar em paz”, dei um beijo de despedida
— algo que sempre detestei, demonstrar o melhor sentimento em uma despedida. Torcendo
para que em algum mundo jamais ela aceitasse isso como uma violação. Jamais ousaria profanar
seu corpo sem seu consentimento, nem descansaria sabendo que isso foi ultrajante para você.
Fiz isso na esperança de que caso questionasse minha atitude covarde, viria até mim e reclamar
o quão indignada estar por eu profanar seus lábios, minha amada Cecília. Fechei meus olhos
enquanto degustava pela primeira e última vez seus lábios doces como mel, carnudos e tão bem
desenhados que instigava meu desejo de tê-los. Vedei e reproduzi o filme curto, mas com tanta
história e cobiça, que vislumbrei do que tinha de felicidade no caos. Eram nossos momentos de
planejamento, de piadas e até quando eu estava com Caio. Ele questionando e ela rebatendo de
forma feroz e perspicaz, sem hesitar. Dando de ombros para que sua vontade inabalável andasse
sem impedimentos, mas minha parte favorita, foi nossa promessa e o quanto ela estava
determinada que selasse dizendo “prometo!”. Seus olhos esverdeados emanando sua força, sua
esperança e trazendo a luz que brilhou mesmo na morte. Nossa promessa foi minha vontade
para tudo porque desde então tive a certeza do que queria, e era além da minha vida. Se baseava
em nós. A noite no bar foi perfeita, até nas minúsculas imperfeições incorporam mais nossa
noite. Sua voz e animação contando aqueles contos, sua ousadia ao enfrentar Victor viveu e
morreria comigo agora. Não somente essas singelas lembranças profundas se afogariam comigo
ou se eternizariam enquanto eu relembrasse. Até mesmo minha expectativa de rever ela em
algum outro lugar morreria, mas renasceria com a eterna fênix. Esse é o mais alto cume da
minha felicidade desemaranhada do pudor, do medo de viver. Esse é o fim que desejei mais que
minha sobrevivência, porque nada foi em vão. A faísca do nosso beijo e nosso amor,
resplandeceu pela última vez e então eu disse e encerrei nosso destino: — Agora podemos
descansar, minha amada.

Fechei meus olhos, nem ousei abrir mais uma vez, tampouco pensar mais uma vez. Decidi que
tudo acaba nesse mar fúnebre, foi minha escolha. NOSSA escolha.

Senti um leve toque em meu rosto, como se não quisesse incomodar e vozes distantes, ou
pareciam distantes. Só ficava mais esquisito porque não estava no fundo daquelas águas
avassaladoras, nada mais doía de forma constante após o pique de adrenalina passar com o
efeito da noradrenalina. Estava dormindo? Estava numa espécie de conforto para partir?
Hesitante por completo para abrir meus olhos e enxergar o próprio inferno, ou só algo do qual
me arrependeria. Abri devagar, hesitante, com muito medo do que eu veria agora. Fui apenas
um medroso, isso não estava nem perto do que vi. Fiquei incrédulo e nervoso, e muito assustado.
Respirei fundo para aliviar-me, mas minha respiração estava rápida, assim como meu coração
ao se deparar com o quarto que eu dormi. O mesmo quarto de hóspede que Cecília arrumou no
início de tudo, só que com um detalhe diferente: ela estava do meu lado, intacta e como se tudo
fosse um sonho, uma ilusão, e ela estava muito feliz. Estava segurando minha mão enquanto
me encarava aliviada, trazendo a obra prima que era seu sorriso consigo. Seus olhos saltitaram
e brilharam quando me viu acordar. Infelizmente não pude responder de forma equivalente; eu
estava assustado e confuso ainda, tentando entender como saí de lá e vim para cama, como se
nada tivesse acontecido.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Cecília mudou seu semblante quando notou meu assombro, ficou preocupada e apertou minha
mão como se estivesse dizendo “ei, estou aqui”. Indaguei um pouco ríspido:

— Que porra acabou de acontecer?! Tipo... Estávamos mortos, não é? Pode explicar o que é
isso tudo?!

Cecília levantou-se e deixou seu chá na cômoda que estava no quarto, se aproximou de novo e
se sentou na cama comigo:

— O chá é uma proteção. Toda vez que bebemos, temos a chance voltar para cá, mas Sombra
garantiu que se encarregaria de nos trazer.

— Então estávamos protegidos? Podemos morrer quando quisermos?

— Na verdade, é uma possibilidade... Por isso devemos tomar cuidado, senão podemos nos
perder. Ah! Cecília olhou de um lado para o outro, como se buscasse algo, depois mostrou toda
eufórica, tentando me confortar: nosso passe para irmos ao mundo que queremos; está aqui. Eu
consegui... Na verdade, conseguimos. Espero que esteja pronto para dizer adeus e usarmos o
Seteálem pela última vez. Agora é para valer e digo... Nada foi em vão, e logo estaremos livres
para vivermos e descansar.
Contemplei-a desconfiado e confuso com o rumo de toda essa situação. A meu ver, talvez
estivéssemos mortos afundado naquele lamaçal de cadáveres. Isso seria apenas minha mente
voltando para cá tentando confortar minha passagem pro próximo mundo. Como eu poderia
descobrir se era real ou não? É possível que eu esteja trancafiado na minha mente ou, sei lá,
passando por um teste. Testei do meu jeito para garantir que ela e esse mundo era real:
— Fiz uma viagem com Caio, sabe onde foi?
Cecília ficou confusa, serrilhou seus olhos confusa contra os meus. Ela pensou, mas questionou:
— Como posso saber de algo assim? — redarguiu com um sorriso descontraído.

— Sabe o que aconteceu lá?

— Seja mais específico, meu bem!

— Quando estávamos no fundo do mar, do rio, sei lá. O importante é que nos afogamos, pelo
menos, foi o que pareceu.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Está falando de quando agiu feito um pervertido?

— Ahn...! Na verdade.

Cecília caiu na risada de forma súbita, e por mais que eu quisesse rir, estava confuso ainda.
Então apreciei sua felicidade em silêncio e envergonhado, porque sei o que ela lembrou.
— Apenas brinquei com você. Teria feito a mesma coisa, se eu fosse você. Fomos atrapalhados,
afinal.

— Foi como um adeus, não é legal.


Me levantei ainda estonteado, indo em direção à porta. Cecília falou comigo um pouco
aborrecida, me questionando:
— Ouviu o que eu disse antes? Pegamos o passe.

— Achei que eu estaria pulando de alegria quando soubesse disso, para ser ainda mais honesto,
jurava que estaria aprontando tudo para partir. Se você entrasse na minha cabeça, entenderia
minha “indiferença”.

— Ok. O que você precisa saber? — perguntou rispidamente.

— Uou, calma lá, não estou achando ruim nossa conquista. Era tudo que queríamos desde
quando coloquei os pés aqui, o fim. Entenda que ainda to processando o fato de termos morridos
e ressurgidos. A explicação foi simplesmente chá. Isso quer dizer muita coisa...

Disse isso pensando nas vezes que senti a morte agarrar-me. Quando seu sussurro veio em
calafrio, os momentos quando acordarmos e gritamos vitoriosos por estarmos vivos graças aos
nossos esforços. Na verdade, era um chá que nos trouxe aqui, e foi isso também, ao ligar aos
poucos os pontos em um curto tempo. Isso não me incomodava de forma alguma, pelo
contrário; era esplendido. Então por que esconder um selo tão poderoso assim? Omitir os fatos
dizendo que tínhamos que fazer isso ou aquilo? O que mais eu achava saber. Não atrevi
perguntar em uma só tacada, apenas disse:

— Aquela vez de balançar aquele chaveiro foi o chá? Não precisa responder, se não quiser, mas
saiba que acho importante.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Cecília pensou um pouco, perdendo seu olhar apreciando os cantos do cômodo que estávamos.
Respirou fundo, olhando para baixo se preparando para falar, selecionado as palavras mais
objetivas:
— Também, mas o pingente funciona, e graças a ele sobrevivemos e não nos perdemos por aí.

— O que realmente aconteceu naquele dia...?

Cecília hesitou um pouco para falar, silenciando-se por alguns instantes, mas insisti que falasse:
— Por favor, isso não alterará nossos planos. Só preciso saber do seu poder e a magnitude dele.

Acabei pressionando-a e eu reconhecia isso, mas precisava saber da situação para lidar melhor
com tudo, até mesmo com ela. Não vou mentir que me escorei no fato dela poder me retirar do
perigo a qualquer momento com o Sombra, agora. Por isso toda informação atrelava em uma
cautela e melhoria. Além disso..., Caio disse algo que perturba agora meus pensamentos, mas
acredito que tudo agora deve ser explicado melhor. Ela sabia que oscilar agora não era uma boa
ideia, porque era primordial para nossa relação. Em seu curto silêncio que logo foi ofuscado
pelas suas palavras e sua voz, respondeu:
— Naquele dia... — Cecília respirou fundo mais uma vez e olhou bem em meus olhos —
devíamos ter morrido. Todos nós.

Fiquei atônito, mas nem tanto. Depois de me preparar para o que poderia ser a resposta, aquilo
foi reconfortante para minha ansiedade. Não saber e especular dentro de mim o que poderia ser
e ter nenhuma solução era pior. Isso desencadeou uma série de questionamentos ligados a nós,
não pelo fato de Caio falar aquilo, mas tudo em volta. A morte era uma delas, agora. Engoli a
seco antes de reagir e acabar com aquele silêncio eloquente:

— Você pôde ver como morremos?

— Sim.

Ambos titubearam para prosseguir com a conversa, mas o silêncio era torturador e repleto de
medo. Antes que eu perguntasse, Cecília se antecipou:

— Quer saber como foi?


OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Acho que sim... — retruquei inseguro e perdido em meus questionamentos.

— Vamos para a sala, pelo menos? Irei preparar chá.

— Certo, vamos. Posso ver o caderno?

— Acho melhor não.

— É só nossa passagem, o que poderia afetar tanto assim?

— É que têm outras informações que podem deixar você mais assustado.

— A ponto de afetar nossa viagem?

— Sim.

Expirei o ar e soltei um sorriso, tentando me desprender da frustração de me tratar como


passarinho que precisa esperar a mãe transformar o alimento em papa. Era pior! Pelo menos o
pássaro pode voar depois, mas eu só agora enxergava minha situação como “sim, senhora, não
senhora”. Não escondi e ela saberia, de qualquer forma, como me senti. Saí dali ressentido, sem
falar mais nada acatando novamente suas palavras. Ela ainda gesticulou para me segurar, mas
hesitou assim que notou eu partir sem nem olhar para ela. Fui para sala e fiquei encarando os
mortos desfilando até Cecília chegar com o chá. Ela estava lidando com o fato de eu duvidar
agora, e eu com o fato de estar encarando tudo às cegas, ainda. Não estou sendo mal-agradecido
por estar a salvo. De forma alguma. Só quero saber de vez com o que estamos lidando.

Não demorou tanto dessa vez para ela chegar. Seus olhos estavam tímidos para encarar-me, ela
me olhava de relance, rápido como se estivesse envergonhada. Quando ela colocou o chá, me
juntei à mesa com ela, sem trocar uma palavra. O clima estava tenso, e ninguém parecia à
vontade para conversar e quebrá-lo. Cecília estava com as mãos baixas segurando algo, seus
olhares também estava baixo e ela parecia tomar coragem. Ela ergueu suas mãos e as estirou na
mesma, com o mesmo livrinho que mostrou no quarto. O mesmo que eu disse que desejava ler:

— Talvez eu tenha exagerado...


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Fiquei calado apenas encarando suas mãos postas com livro a mesa, esperando o seu próximo
passo. Não interrompi, dessa vez nem acrescentei nada:
— Tratei você como alguém frágil e indefeso por não saber, mas sei que nem queria estar
envolvido nisso. Tudo é uma novidade ainda e agir de forma impaciente e resguardada só vai
deixar você confuso. Se quiser ler... — Completou embaraçada, engolindo a seco em quase
cada palavra, realizando algumas pausas.

— Acha que eu devo ler? Preciso saber alguma coisa daí? — Me senti mal após ter pressionado
a ponto de ela ceder assim.

— Quero que descubra, estamos lutando por nossa liberdade, então... Seria irônico controlar as
coisas assim só porque acho que não vai entender. — Seu sorriso para descontrair toda aquela
tensão me deixava ainda mais desconfortável a tal ponto que nem sabia como olhar para ela.

Não estava arrependida, apenas se sentia mal e sua fraqueza foi como a minha: se apaixonar e
amar. Essas foram as pouquíssimas palavras que dissemos um ao outro, depois ficamos em
silêncio e a bravura para se pronunciar era escassa. Na verdade, sumiu e ficava mais difícil se
desvincular daquele ressentimento.

Segurei o livro e afundei meus olhos na capa, me perguntando se devo, o que tinha? Seria um
choque? Processar tudo aquilo realmente me deixaria com um pé atrás para seguir? Um livreto
simples, mas com segredos profanos, talvez? O mundo de Seteálem inteiro nas minhas mãos.
Desfiz minha cerimônia e folhei as páginas depressa, apressado para encontrar as informações
promiscuas a meu senso comum. Olhei tudo tão rápido que não demorou muito para que eu
finalizasse o livreto, e não achei nada de mais. Eram só alguns símbolos, coisas parecidas com
receitas e uma imensa runa, de fato. Virei as páginas mais devagar, não descobri nada que me
deixasse surpreendido o suficiente, mas me deparei só com baboseiras — o meu ver. O mais
chamativo era o símbolo enorme que logo indaguei Cecília sobre:

— Esse é nosso passe?

— Ah! Sim, sim, esse mesmo.

— Não encontrei nada que me deixasse assustado o suficiente, como disse. Não acha que
exagerou? — Estava mais aliviado e eu até sorri por mais uma vez ela acreditar em mim.
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— Sei lá... São várias coisas sobre feitiçaria. Vai que isso te afastasse ou pensasse que eu sou
como ele. — E novamente a vi com medo de afastar-me, esse era o principal motivo de querer
que eu não pegasse o livro. Não entendi nada daquilo, nem como se usa, mas isso a deixou
insegura. Me senti um babaca por pressioná-la por algo assim, mas isso tem muito mais a ver
que só uma paixão. Era parceria.

Avistei o livro pela última vez e devolvi. Ainda sorrindo e penetrando em seus olhos cristalinos
esverdeados aliviados. Os mesmos que estavam sobrecarregados e a espera do meu alvará,
transbordavam de novo sua alegria. Antes que eu falasse com ela novamente para sugerir nosso
avanço e pôr um fim nessa batalha exaustiva, ela previu de novo meus passos e convidou:
— Vamos acabar logo com isso? Estou ficando ansiosa já. — Disse enquanto segurava minha
mão.

— Iria dizer a mesma coisa. — Beijei suas mãos macias e cheirosas, tão delicadas, mas firmes
e continuei — Temos uma vida para viver.

— Não iremos sobreviver nessas circunstâncias mais, agora sim, estaremos livres para sermos
quem quisermos. Tenho tanta saudade do mundo...

— Agora que comentou isso, parece fazer anos que não vejo o mundo lá fora. Acho que
precisarei de um novo emprego que sair daqui.

— Acharemos um novo. Juntos. — Respondeu sorrindo, repleta de euforia e com uma


ansiedade contagiante.

Ela estava tão radiante que não me imaginava fazendo nada que a abalasse, não queria fazê-la
esperar mais. Então só disse que estaria esperando-a na frente do portão, e dei ênfase para que
não esquecesse do livreto com nosso passe. Meu alívio estava mais intenso comparado com as
outras vezes, não senti dificuldade alguma encher meus pulmões de ar. Meus pensamentos
estavam mais cintilantes que a luz acima de nós — isso se não fosse meus pensamentos ali. O
sorriso que eu tinha, nunca se desfazia. Tudo em meu eu estava inabalável, e o que me
incomodava era minha inquietação que dava um leve desconforto em meu estômago. O melhor
calafrio que senti foi dessa noite, porque era também da minha ansiedade para sair daqui. O
ponto final que queríamos, chegou, e nosso incomodo agora era minha efervescência. Nem
mesmo Victor, Caio, atormentados, ou seja, lá o que for. Era só a imensa vontade de dizer adeus
a tudo isso.

Cecília veio às pressas. Nos abraçamos com intuito de confortar ansiedade um do outro, e ela
me deu um selinho repentino. Apreciei seus lábios e mergulhei em seus olhos mais uma vez,
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meus dedos permearam seus lábios perfeitos. Desejado desde aquele bar me deleitar em sua
boca, não fiz muitos rodeios para naufragar minha boca na dela e sentir aquele calor. Paramos
nosso beijo, recostamos nossa testa um no outro com nossas respirações ofegantes. Ela olhou
para mim tão apaixonada quanto eu e disse:

— Quero muito mais que isso quando sairmos daqui.

Respondi seu sorriso pecaminoso, repleto de malícia somente com um riso do tipo “pode
apostar que terá”. Fomos de mãos dadas até o bar, caminhando em passos largos para chegar
logo. Não preciso descrever que quase sempre o bar estava lotado, sempre com rostos novos.
Cecília desvairada foi até o centro e disse domada de empolgação:

— HOJE É TUDO POR MINHA CONTA, MEUS AMORESSS!

Todos berraram em comemoração, e eu nem queria saber como ela ia pagar isso depois, mas
estávamos felizes demais pensarmos em gastos. Fabrício se contagiou facilmente com nossa
euforia e já foi nos servi. Escolhemos a mesa do lado de fora, dessa vez. Éramos invencíveis,
imparáveis! Nada poderia nos derrubar, agora — só a quantidade de bebida que iriamos ingerir.
Já estava perdendo a conta de quanto tínhamos bebidos em curto tempo, mas não queria sair de
lá. O afago estava fervoroso, dançavam, sapateavam e cantarolavam. Era como uma festa pagã
cultuando seus deuses o festejando com muita fartura. A música estava tão intensa que todos
os instrumentos adentravam meus pensamentos fazendo meu pé acompanhar o ritmo. A festa
brilhava agora mais que a lua, e não tinha dúvida alguma de como isso estava sublime! Eles
riam, contavam as piores piadas e gargalhavam. A bebida vinha, caía e derrubava quem bebia.
A noite era eterna e aquele bar só atraia mais gente. Cecília não dançava mais só nem cantava.
Até os músicos foram para o meio. O bar lotou a ponto de fecharmos uma rua com várias mesas,
pessoas bêbadas e sem pudor algum. O maior pecado daquele anoitecer era quem não
desfrutasse o máximo daquela noite. Chegou um certo ponto que Fabrício trouxe bebida e
realmente tive que recusar, mas ele insistiu e acabei cedendo. Só ficava apreciando aquele clima
todo com minha cara de bobo de tão felizardo e aliviado. Não demorou muito para fitar a bolsa
com o instrumento da nossa vitória, com a merda do nosso livreto bem ali que iria garantir que
nossa saída. Lembrar disso instigava tantas emoções que não cabiam palavras! Puxei a bolsa e
coloquei no meu colo. Procurei o livro e que não demorou muito para encontrar. Dei um abraço
de urso e gritei “EU TE AMO, SUA COISA VELHA E ASQUEROSA QUE PARECE NÃO
TER UTILIDADE MAIS TEM!”. Não escondi minha alegria, estava estampada no meu rosto
para que todos dali também pudessem se divertir e apreciar minha sensação de liberdade. Quem
precisa se esconder desse momento? Quem oculta felicidade? Quem deveria se abster daquele
momento divino? Isso era um soco naquele desgraçado do Victor. O maldito Victor! VICTOR,
os olhos mortos... Derrotado. Estava ali na passarela nos servindo de tapete para limparmos
nossos pés. Tenho medo de pisar muito forte agora. Claro, não pensei nisso com intuito de lutar
contra ele e sim de sair e não ser torturado por ele. Peguei aquele livro com muita vontade e
abri, mas... Assim... Tinha algo de diferente. Eu abri e a primeira coisa que notei foi a capa, o
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cheiro forte e a página inicial. Tudo bem que eu só passei os olhos, mas estava diferente. Não
tinha mais o pequeno sumário, não encontrei mais aquele símbolo destacado e tudo: do começo
ao fim, eram só anotações. O final estava inacabado com “meu erro foi desejar uma liberdade
que eu nunca poderia alcan”

O mundo dos mortos não era uma novidade, afinal. Desde quando era novo, aprendi a lidar com
ela e o rancor. Recentemente busquei escrever aqui como válvula de escape, pois é um único
momento que atinjo o que tanto falam da liberdade. Essa é a finta, pelo menos.
Quando descobrimos mais e mais de Seteálem, você fica mais assustado com os aspectos disso
estar ligado a nós, tanto mental quanto no espírito. O mundo é quase todo maleável e age em
sincronia conosco, podemos interferir sem sabermos de nada, mas o pior é quando alguém
descobre sobre as coisas do Seteálem. As leis que ligam a mente a alma podem ser catastróficas,
e descobri isso enquanto “vivia” como vândalo e aprendendo com um mentor que só vigiava o
cosmos.
Minha família eram proprietários de grandes terras e sempre notáveis com a qualidade de seus
produtos e a oportunidade que davam. Não posso desacreditar que isso atraiu
proporcionalmente maus olhares também, porque onde estávamos era uma constante briga por
poder.
Em uma tarde de almoço com minha família, presenciei algo que nunca uma criança desejaria.
Era o dia do meu prato predileto: carne de porco. Estávamos reunidos para celebrar nossa
conquista como fazendeiros e empregadores, várias pessoas foram convidadas para festejar. No
início, quando encontrei o Vigia do Cosmos, ele ficou surpreso quando vim aqui, porque
ninguém lembra quando morreu. Há condições, mas são raríssimas, e eu fui uma delas porque
sabia e estava pronto para morrer, e ansioso para retribuir o que me causaram. Nossa festa
estava maravilhosa, estavam todos bêbados. Nossa família sempre se desentendeu com a rival
por causa de seus métodos mais atrativos. Eram os Bragança contra os Ferraci e suas posses e
riquezas duelando, mas isso estava passando dos limites quando houvera incêndios criminosos.
A justiça sempre nos negligenciava porque éramos morais, digamos. Isso chegou a um ponto
em que todos da minha família foram sequestrados, e “ninguém” viu. Levaram eu, meu pai e
minha mão para um local distante, onde o sol não passava, os sons não saiam e ninguém ousou
pisar para civilizar. Ficamos vendados, boca silenciadas e amarrados, fomos torturados, com
exceção de mim que eu era uma criança. Vi coisas brutais antes deles morrerem só por causa
de jogo de poder, coisas que queria esquecer, mas isso atormentou minhas memórias até o meu
fim e um pouco no meu recomeço aqui. Quando terminaram o que fizeram, me olharam com
aqueles olhos carregados de morte, frieza e nojo, como se eu fosse criminoso. Todos tinham
ódio de mim porque carregava um sobrenome e nasci por acaso em um tempo como esse. O
líder pareceu simpático, mas era só fachada. Me sedaram para aliviar minha dor, costuraram
minha boca para que eu não pudesse gritar e amarraram meus pés e mãos. Me deixaram
abandonado naquela neblina fria, esquecido, sem como beber água e nem como comer. Não
durei muito tempo, e me entreguei ao pior, mas acreditei que; custe o que custar, eu estaria
esperando-os em algum lugar, pronto para sofrerem mesmo depois de mortos. Jurei amaldiçoar
eles a eterno sofrimento e eu daria um jeito de garantir isso pessoalmente, não daria paz e
tampouco liberdade. Ficariam em eterno entre céu e inferno. Morri crendo que um dia iria rever-
los e sentira quando estivesse onde eu estaria.
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Foi quando, pela primeira vez, tive contato com Seteálem. Jamais esqueci minha promessa e
meu desfecho. O local não era vazio, só a sensação que era diferente, talvez por estarmos
mortos? Ou talvez seja uma zona diferente do qual eu estava acostumado. O ambiente tem
manhãs, tarde e noites. Fiz inúmeras sondas andando só e me apoiando em informações avulsas,
por exemplo: O bar do Fabrício. Esse local, dia após dia, mudavam as facetas, exceto esse
demônio. É um ponto de encontro dos mortos recentes, que forma inconsciente chegam lá. Não
há explicação de como chega lá, nem do porquê você se apega aquela ambientação. Muitos tem
um preconceito desse maldito lugar, mesmo que nunca tenha frequentado um bar antes, esse
será seu lugar com uma falsa memória. Quando apareci por aqui, estava adulta, com uma roupa
simples e ridícula. Todos sorriam sem parar de tão entorpecidos que estavam. Os bebuns, na
verdade, estão buscando euforia que nunca pode ser encontrada em suas vidas pacatas. Fabrício
só é o cara do equilíbrio, dança conforme a música. Tudo que fez-me atualizar do mundo, foi
através das altas conversas que esses desgraçados cuspiam, era impossível deixar de escutar
falando tão intensamente. Certa vez, uma moça apareceu e todos os dias ela falava sobre o
mundo e sobre seus sonhos. Ela era coisa mais viva naquele bar, e até uma pessoa amarga como
eu notei. Sonhava mais alto que os prédios que tanto falavam, que tocava e arranhava o céu.
Sua paixão estava além que ela mesma descrevia, e nos contagiava, e sua despedida era o que
mais doía. Houve o dia em que ela não precisou mais se despedir, nem nos transbordar com
suas histórias e sonhos, e preencher nossas almas vazias com saudade. Ela partiu e eu soube o
porquê, nada além de; aceitar que jamais iria tão longe enquanto morta. Houve momentos em
que Fabrício me olhava atravessado, como a maçã podre daquele local, mas minha verdadeira
intenção, era reencontrar os malditos e me vingar.

Em uma noite fria e desolada, cheguei com mesmo olhar mórbido e sobrecarregado de mágoa,
procurando os indigentes. Fabrício me fitou com uma cara mais feia que de costume e dirigiu-
se às pressas até mim. Me puxou meu braço para dizer “está infestando o bar com essa sua
energia”, mas ele não conseguiu pronunciar a última palavra, depois terminei para ele. Ainda
proclamei que o lugar era morto, vazio e fantasioso. Quanto mais minha fúria e angústia se
intensificava, mais atraia atenção das almas perdidas, e aquilo incomodava demais. Então fui
me retirando e encarando todos dali, mas quando eu dei as costas irritado, escutei uma voz que
rasgou meu pingo de racionalidade. A voz congelou-me não porque temi, mas sim por ser
tomado pelo frenesi ao reconhecer de quem era. Virei lentamente com um semblante diferente,
ofegante e estagnado, em busca de como reagir. Ele perguntou se tava tudo bem e se tinha
algum problema, mas antes que Fabrício respondesse, segurei seu ombro com muita força e
trouxe vários olhares comigo de quem estava no bar. Ele apenas disse “aqui não”, e vi, em
seguida, uma densa neblina e o mundo mais envelhecido. Assim descobri Seteálem e como ele
funcionava. Nada deve interferir ou perturbar o mundo dos mortos nem dos vivos, mas Seteálem
é como se fosse um trem que parava em inúmeras estações, e em um curto intervalo, o que eu
pudesse fazer, era lá. Não descobri isso nesse dia porque era minha primeira vez, mas fiz tudo
do meu jeito para realizar o máximo de sofrimento para ele. Assim que a neblina se dissipou e
trouxe um lugar envelhecido do nada, junto com o miserável que eu segurei o ombro, deferi um
golpe em sua face, mas ele se defendeu. Ele sabia lutar, então levei uma surra e mal conseguia
ficar de pé após nossa breve luta. Seu golpe na boca do meu estomago foi em cheio e quase
nocaute. Fiquei no chão me contorcendo de dor, como se eu estivesse vivo e sendo pisoteado,
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mas lembrei de algo: eu já estou morto. Foi nesse momento que me levantei enquanto era
esmurrado e quis assombrá-lo ainda mais. Me concentrei o suficiente para voltar a minha idade
de quando fui assassinado, e como estava meu corpo de quando fui assassinado. O assassino
ficou estupefato, recuou tão depressa que senti sua personalidade viril e destemida esvair e
aquilo me inundou de prazer. Ele não encontrou palavras para se expressar, sua cor estava ainda
mais pálida e eu ainda mais satisfeito por sentir seu desespero. Quando estava quase colado
nele, finalmente teve coragem de falar “você morreu”, e eu respondi “e você também, mas irie
garantir que sofra mais do que pôde sofrer em uma vida”. Esgotei todas as minhas forças nele,
mas sempre lembrava que tudo era ilimitado, quando se estava morto, até mesmo o sofrimento.
Então da mesma forma que morri, assegurei que ele ficasse do mesmo jeito e a minha mercê.
Sua boca costurada iria garantir que nunca berrasse por aí sem meu consentimento e que
ninguém conseguisse ajudá-lo. Andaria por aí acorrentado para que jamais ousasse desfazer
meu trabalho e de seu sofrimento. Naquele dia, fiz meu primeiro atormentado. Ele aceitou que
estava morto, mas me certifiquei com que acreditasse que eu era o portador de sua alma e só eu
cogitaria em libertá-lo, portanto que cumprisse minhas ordens. Não cansava de torturá-lo e fazia
com que farejasse por outros como ele para torturar. Cada dia que eu buscava por almas como
essas, mais compreendia como Seteálem funcionava com o mundo dos fúnebres. Não demorou
muito para que algo maior viesse até mim. O ser se aproximou do nada enquanto eu estava na
frente do bar conversando como se me conhecesse há anos, e eu o cortava sem querer descobrir
suas histórias impertinentes e sem sentido. Seu carisma não ofuscava meu coração de pura raiva,
mas sim minha concentração para canalizar os sentimentos de todos que estava no bar, até
encontrar quem eu queria. Estava prestes a dizer adeus a esse idiota. Mas ele ganhou minha
atenção quando declarou sua ciência de saber sobre quem somos: mortos em busca de redenção,
inocentes e que desconhecia a própria morte. Antes que eu continuasse minha “justiça”, ele
disse que eu gostaria de saber mais desse mundo, entender e aprender como aplicar cada coisa.
Lógico que questionei a veracidade do assunto, mas o que eu poderia perder? E ele
complementou que eu estava ajudando ele agilizar as coisas entre os mortos.

Fui em um parque quase sem movimento, com algumas almas repletas de melancolia vagando
por lá. Lá, eram mortos que vagavam e sabiam que estavam mortos, mas que só queria desfrutar
mais um pouco do mundo. O ser disse que eu deveria ser uma ameaça a construção cósmica,
mas meus atos limpavam e triplicavam, agilizando o retardo e a desordem que os mortos
causavam. Melhor: eu me livrara dos piores que atormentavam as almas inocentes como se
ainda estivessem vivos, e dos comuns que achavam que trabalhavam, achando que são seres
seguindo só rotina diária. O fato de respeitar o tempo de aceitação dos mortos era essencial,
mas não era saudável por ter uma imensa sobrecarga. Pensei que tudo fosse instantâneo, mas
até aqui era exigido paciência e compreensão. Então ele decidiu criar um cargo, algo como
regente dos mortos. Em troca, viveria aqui sem problemas e ainda teria as informações que eu
precisava. Seu jeito misterioso era estranho como esse mundo, a forma que ele trouxe
conhecimento foi “dando um lar onde sempre estaria comigo”, depois tocou em mim, bem na
minha testa e disse que eu só teria que me concentrar e acessar minha mente. Lá estariam
anotações, o grimório com selos, proteção, rastreamento e outras coisas para entender esse
mundo e Seteálem.
Fiquei pouco tempo afastado para estudar o que ele me presentou, e entendi em curto tempo
porque lembrei: já estou morto. Então só bastava fazer contato com tudo aquilo, organizar em
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minha mente e fazer funcionar, como uma engrenagem. E assim me tornei Victor, Os Olhos
Mortos. A melhor parte, foi aprimorar minha mente para se misturar com Seteálem, criando
seres que estavam conectados a mim. Todos gritavam o que minha alma sentia, que é ódio,
raiva e vingança. Depois, no mesmo bar, fui até Fabrício, só que mais leve. Até bebia, o que o
incomodava mais. Quando sentia as energias certas, emboscava na saída e os atormentava,
depois os “matava”. O fato de acreditar que o que fiz os matava, sempre foi suficiente para tirá-
los desse mundo e ir para um dos 6. Aqueles dias faziam eu me sentir vivo e esquecer o fato de
que eu estava morto. Aquelas pobres almas egoístas decaiam em meus pés, imploravam até
perdão e alguns até lutavam, mas sempre ganhava. Sempre desconfiei dessas almas porque
todos estavam em suas formas puras, ou seja, egoístas. Não existe empatia dentro deles, nunca
houve, e o fato não estava só nos livros, isso era visível. Ao invés deles partirem, só queriam
festejar e nem questionar por que estavam lá. Fazia questão deles se arrependerem de
permanecer aqui e achar que tudo era simples, que podiam se enganar assim. Quanto mais eu
trabalhava, o mundo parecia ficar integrado a mim e eu agia de forma autônoma diante de tudo.
Depois de alguns anos, finalmente encontrei quem eu tanto esperava naquele bar. Os criminosos
que eu desejei atormentar e transformar em meu brinquedo. Não fiz muita cerimonia quando
cheguei lá e nem dei tempo para que Fabrício falasse. Só eu os enxergava naquela neblina, e
por coincidência, vi esses pestes unidos! Então julguei: morreram juntos enquanto faziam
alguma merda. Acessei suas mentes e entrei na última lembrança que tiveram, e só precisei me
aproximar e tocar naquela cabeça putrefata. Vi e não podia ser mais cômico; um deles teve o
olho maior que a barriga e lidaram com uma família de mafiosos que responderam com
retaliação. Assim que fiz isso, joguei eles para um local familiar e muito especial, algo onde o
sol não alcançasse, onde nem o som poderia sair. Seteálem não tem sol, mas logo esse local se
tornaria o palco de show horrores, com gritos, choros e inúmeras solicitações de clemencia.
Que peçam piedade a quem achar necessário, e esperem até não poder mais, porque nem
liberdade teriam mais.
Brinquei com eles como gato brinca com o rato, soltava e pegava. Eu era o felino farto
esperando o momento certo para dar um fim, que seria quando estivesse faminto novamente. E
quando pareceu o fim, suturei suas bocas e os aprisionei comigo. Nunca deixei de humilhar
eles, dar esperança e rebaixá-los durante minhas caçadas. Projetava seres como eu para zombar
de sua insignificância, e até ordenava ele realizar coisas idiotas. Construí uma vida, em meio
ao desespero e da morte. Tinha tudo o que eu precisava.
Em mais um dia comum, como todos os outros de caça, agora era vez uma garotinha. Seus pais
morreram num acidente de carro enquanto discutiam. Estavam a caminho da escola de dança
da Cecília e era um dos eventos mais importantes da sua vida. Ela seria pequeninha estrela que
brilharia na frente de todos, mas um descuidado custou tudo. O mais engraçado é que estavam
vivos, mas por um fio. Quando a encontrei, ela estava chorando procurando os pais, surgi de
repente e disse a triste notícia de que ela morreu e eles não voltariam — a não ser que eles
morressem também. Ela não foi dissimulada e nem teve vergonha de dizer “morri sem saber do
meu desempenho no palco?”, e isso fez eu rir muito. Por alguns segundos, até esqueci de ter
que levá-la daqui, mas seu jeito era curioso, e um risco por ter essência similar com a minha.
Ela falava pelos cotovelos e sempre indignada por não poder se apresentar como devia, e eu
mandava calar a boca e que evitasse sua voz irritante e estridente. Ela me acompanhava e fazia
inúmeros questionamentos sobre tudo, tanto que eu ficava entediado e, às vezes, levava ela até
Seteálem só para calar ela. Ela tirava minha paz e meu foco sempre que aparecia, e sempre que
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

me aguardava no bar com seus questionamentos. Houve um dia que eu decidi responder uma
de suas indagações, e era o dia que eu estava tentando detectar quem deveria atacar, mas cessei
e quis dar um basta. Ela tinha dúvidas quanto minha felicidade nisso, e eu retruquei somente
que era prazeroso fazer essas almas embebecidas de ilusão aceitar a realidade, e cortar suas
esperanças. Entretanto, logo reformulou sua pergunta e disse que seria desse mundo. Quando
repassei meus feitos, tive uma visão mais monótona e realista sobre minhas coisas diárias. Não
me mantive pusilânime e contornei sua afirmação dizendo que sim e que era meu dever, que
nasci para servir a este propósito. Ela disse então que parece legal mesmo, mas depois descreveu
sua saudade do outro mundo e destacou as coisas que tinha lá. Pessoas e suas rotinas de
trabalhos enfadonhas, das imensas construções e ruas que levavam até o sol. O fato de poder
ver o sol, e não somente ele, e sim as demais estrelas bem de perto com uma ferramenta. A
chance de amar, se apaixonar e sentir borboletas no estomago, escrever ou ler coisas lindas para
demonstrar seu amor. Até as falhas do mundo eram belas. Morri novo e por quase sempre ficar
em casa, não tive muitos amigos, não pude me apaixonar e nem ver a evolução do mundo. Não
escondi minha curiosidade ao perguntar sobre como podemos enxergar as estrelas de tão perto,
nem minha felicidade em descobrir o telescópio. A forma que ela descreve tão vivida o mundo,
lembra aquela outra moça, e fazia com que eu tivesse esperança ou... Imaginar como estaria
agora. Quanto mais ela falava, mais eu me perdia em suas palavras, mais eu me sonhava e
imaginava como um grande empresário viajando pelo mundo todo, graças ao avião. Depois de
tanto falar, quando alguns dias se passaram, ela resolveu cobrar com respostas cada coisa que
ela poderia falar do mundo. Claro que aceitei, e tive motivos: ela era egoísta, mas nunca
escondia seus propósitos. Suas perguntas não era nada demais, era coisa do tipo “os mortos
sabem disse? Você é o mestre dele? Você manda aqui?” ou coisa assim, mas um dia, ela
perguntou se eu era livre e respondi que sim, então me desafiou sair daqui e volta. Era proibido
e jamais deveria ousar fazer isso, porque era contra o Cosmos. Devo reconhecer sua
inteligência, aos poucos aperfeiçoava suas perguntas, e as respostas. Nesse dia, ela retrucou que
eu não era de fato livre, só estava como um lacaio de algo quase insignificante. Emudeci nesse
dia, mas depois conversamos mais.
Às vezes, ela ia comigo em algumas missões e até me ajudava identificar alguns. Foi então que
tive a brilhante ideia de ela dançar no bar. Ela sempre explicava de forma apaixonada sua
ligação com o mundo artístico, como: dançar, escrever, contar histórias e cantar. Essa paixão
era necessária e forte o suficiente para ser liberta no bar, porque era um sentimento forte e iria
atrair de forma mais eficaz as almas perdidas. Quando fiz proposta à ela, não demorou para
aceitar, claro, mas fiz um adendo de nunca falar de forma bruta sobre os mortos, que o jeito que
eu falei. Também acrescentei o fato de nunca esquecer onde ela estar. Depois disso, ela
frequentava o bar todos os dias para dançar, somente. Os contos vieram depois que aumentei a
frequência de nossas caças, graças ao nosso plano de atrair eles. Éramos uma dupla perfeita e
acabava com qualquer alma perdida, mas atraiu também atenção de quem reconhecia como
mentor. Ele veio conversar comigo sobre meus métodos, de novo, me parabenizar com seu
mesmo carisma e perguntou sobre Cecília e o motivo de mim ainda a mantê-la aqui. Rebati sua
dúvida afirmando que sua ajuda foi de suma importância para lidar com muitos andarilhos, e
que a recrutei, mas poderia me desfazer dela quando fosse a hora. Ele brincou comigo, e não
esqueço sua expressão de relaxado por hipótese alguma, e parecia até zombar de mim — o que
eu odiava. Antes que ele partisse, disse sem titubear quanto custaria para eu viver no mundo
dos vivos novamente. Ele parou por um momento e mesmo de costas, notei sua preocupação,
mas logo disse que Cecília era minha aprendiz e que ajudaria ele lidar com tudo, em meu lugar.
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Ele voltou seu olhar pra mim, pensou um pouco e disse que não é tão caro e reconhece, em dada
circunstância, meu direito, já ajudei de forma exacerbada. Entretanto, teria que resolver isso a
treiná-la sem erros, do mesmo jeito que fui. A meu ver, não era problema, ela sempre se
demonstrou interessada no mundo dos mortos, mas nunca ousou perguntar de forma detalhada
sobre meu trabalho. Desde quando disse que queria saber como eu fazia tudo, nunca se enjoar
e ficar mais forte, mas não gostei de tanta ousadia por achar que ela queria usar isso para o
próprio benefício. Sabe quando pensamos depois de ter agido de uma forma que julgamos
errado? Ou exagerado? Era como me sentia. Sua curiosidade era monstruosa e talvez tenha me
sentido desafiado, porque no fundo eu me via nela, e ela era capaz de ter o que eu tenho e ser
ainda melhor. Intimidado ou não, era como eu enxergava baseado na realidade, mas precisava
de um alvará e barganhar. Os contos baseados na experiencia de cada um, fez eu aos poucos
largar minha visão retrógada desse mundo repetitivo, minha rotina não mudava e não tinha
sonhos. A vida deles, toda aquela energia, a beleza, me inspirava a viver uma vida que não era
minha, mesmo que fosse chato. Em Setálem, podia ver em curtos momentos como as pessoas
faziam tudo aquilo, e até pessoas que queriam morrer. Achava isso tamanha ingratidão, mas era
só inveja por não poder ficar sobrecarrego a esse ponto com minha própria vida, apreciando
minha liberdade do meu jeito. Temi que minha barganha fosse negada e eu seria exilado,
deportado depois de tanto tempo de serviço, mas ele consentiu e eu já sonhava com o dia que
finalmente poderia ser livre.
Treinei Cecília do meu jeito, dei-lhe inúmeros códigos sobre quando devemos agir e o porquê.
Ela ficou fascinada quando expliquei sobre o cosmos todas suas leis regentes, sobre nosso astral
e até qual teria sido o fim dela. Sabia que seu questionamento a seguir seria “por que me manteu
viva?”, então me antecipei dizendo que ela já está morta, e que ela tinha uma força que se
equipara a minha. Ela ligou rápido os pontos muito antes de eu ter falado algo, apresentando
como prova, a frequência que ela estava comigo até quando ia pra Seteálem. Ela mostrava os
melhores locais quando íamos até lá, somente para que eu apreciasse o mundo que não pude.
Achava que jamais sentira aquele alívio, aquela força que senti no início de tudo estava em
sonho que antes acreditaria ser idiota. Cecília se sentiu honrada e até se emocionou quando
soube da minha confiança, exigi postura e que se atentasse a tudo que fosse ensinado por ser de
suma importância para lidar com esse mundo. Mencionei tudo e até um espírito que ficava se
alimentando de outros nas sombras, os raivosos que podem se tornar perigosos, um dia e que
são os primeiros a expurgar. Nunca devíamos sentir compaixão com nenhuma, nem se um dele
der uma justificativa barata de vingança — muito familiar, não é.
Em certas caçadas, no dividíamos, outras ela resolvia só rastreando eles. Ela se virava bem, e
ainda frequentava o bar para atrair muito mais — não que seja relevante, mas Fabrício gostava
mais dela. Teve dia que eu só tinha que estudar o que apresentar para ela, e foi em um desses
dias, que algo estranho ocorreu — dia que ensinei. Ela acompanhava cada passo, cada
gesticulação minha e nunca perdia a oportunidade de penetrar seus olhos nos meus. Sorria toda
boba, seus olhos brilhavam mais que o normal. Seu desempenho estava sendo afetado e tinha
situações que ela tinha dificuldade de lidar, e antes não tinha.
Estávamos lutando contra um espírito vingativo e ela estava instruída se guardar com algumas
conjurações de selo, e atacar com pó da pedra do sol. Tudo fugiu do nosso controle quando a
chamei e ela teve que olhar para mim mais que o normal. Deu tempo suficiente para o espírito
fugir e contra-atacar, mas fui mais rápido e o bani daqui. Fiquei aborrecido e muito assustado
por quase perdê-la, e junto, perder minha melhor discípula. Se ela se fosse, seria o fim e eu
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perpetuaria minha vida aqui até encontrar um novo. Parece que um espírito matar outro não faz
diferença, mas isso é péssimo. Se caso um espírito mata outro, ele dará a chance do outro se
perder em outro mundo ou nunca mais pode existir. De modo geral, acabam absorvendo o
resquício de vitalidade que resta e já vi isso acontecer.
Na aula, pude ter a confirmação que eu precisava. Parei e conversei com ela, e não enrolei ao
perguntar, fui até um pouco mais seco. Questionei o motivo dela estar diminuindo seu
desempenho e agir como alguém idiota. Até citei que se algo em uma situação séria, como a
que lidamos há alguns dias, se repetisse e causasse uma catástrofe, terminaria tudo ali. Nada de
dança, nada de passeio pelo Seteálem e tudo que estávamos fazendo juntos seria em vão.
Desperdiçaria meu tempo e morreria sendo estupida. Ela ficou um pouco envergonhada, mas
depois sorriu como se eu dissesse algo legal, e isso foi muito irritante, mas depois entendi. Ela
retruca algo como “esqueci que você nunca teve experiência com essas coisas”, e ficou
lagrimando. Minhas palavras não foram feitas para ser gentis, nem para acoitar erros com
perdão, e sim para desenvolver responsabilidade, para disciplinar — acima de tudo, me libertar.
Foi constrangedor descobrir o verdadeiro motivo depois, não tinha nada a ver com desatenção
ou zombaria, era só o que chamavam de paixão, amor ou coisa assim. Novamente: minhas
palavras são breves, nada de rodeios, então expliquei à ela que não poderíamos nos...
Apaixonar, nos amar. Nesse mundo, coisas mundanas como essas, devem ser descartadas, e
são inexistentes. Aqui é o outro local com outras regras, uma espécie de triagem e não de
convívio. Assim como enquanto vivos o tempo não para e nada ao redor para, aqui tudo segue
em frente. Não há espaço para esboços para sentimentos como esses. O foco aqui é aprender,
se fortalecer ou ir embora para não atrapalhar esse mundo. Disse quase algo assim, lembro que
foi isso porque é como penso até agora. Os sentimentos mundanos não devem jamais afetar
meu discernimento, nem o de ninguém sobre como funciona aqui. Ela pareceu entender, mas
notei sua tristura. Outra regra que tinha que seguir a risca era jamais ter empatia por almas, nem
nesses momentos. E ela deve entender, senão eu mesmo teria que me afastar e procurar outro
aprendiz por aqui.
Seguimos nossas vidas, continuei ensinando, mas quanto o selo, partes para compreender como
Seteálem funcionava, eu tive que usar uma pulseira para restringir qualquer anormalidade, tal
coisas do gênero: afetar Seteálem com o uso do temos. Como disse antes, o mundo é quase todo
maleável, e a mente errada por aqui seria terrível. Não sabia como ela iria processar a
informação ao seu redor, e já estava correndo riscos. Tomar cuidado nunca era demais nesses
momentos. Realizamos expedições exploratórias com mais frequência, testamos selos juntos e
descobrimos juntos. Tudo consistia na minha supervisão para julgar como adequado e agir de
forma prudente.
Seu avanço notável, fez com que eu apenas assistisse sua luta e banimento de alguns seres que
deveriam partir daqui. Assisti até lutas, preparos de selos, runas, feitiços reconhecidos como
ancora que garantia que o espírito voltasse, caso acontecesse um desastre do tipo ser “morto”.
O termo “morrer” era usado para ela entender, mas o correto era exilado, uma vez que já
estamos sem vida, e só com resquícios. Ela era destemida, corajosa e até suicida, se arriscou
inúmeras vezes para testar selo com efeito âncora, que sempre funcionavam, mas o mais
relaxante de todos era o chá a mistura com espada de São Jorge, com Eucalipto e Alfazema.
Em todas as nossas expedições ela o ingeria e partíamos. Quando terminávamos nossa missão,
voltávamos para o bar para festejar e seguíamos nossos caminhos.
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Um dia; essa trajetória foi diferente, e ela veio comigo em uma casa. Conversamos sobre nossos
destinos, o caminho da mentoria e todo o desempenho dela. Elogiei com base em fatos sobre o
quanto ela melhorou em pouco tempo, que com certeza seria superior a mim e lidaria melhor
com as coisas, talvez com menos complicações que eu — que sempre agia com alvoroço e
trazendo medo a esses idiotas. E até disse que talvez o meu fim estaria mais próximo que eu
imaginava. Seu silencio inundado com palavras que sobrevoavam sua mente, que desejam sair,
era perceptível. Não conseguia esconder quase nada do que sentia e pensava, então questionei
isso. Ela teve como resposta outra pergunta delicada, que foi como vim parar aqui. Parecia ser
doloroso ainda, mas... Acho que lidei com tanta coisa, que isso estava morto. Não me afligia
como antes. Contei os detalhes da história e que estavam aprisionados e condenados a cada
palavra minha, cada ato. Seu espanto foi o que mais me impressionou, dado ao que já
enfrentamos, e ao que já expliquei à ela. Suas palavras de conforto, com piedade, me
incomodaram, mas... Escolhi o silencio e aceitei do jeito que eu pude. Depois perguntei se ela
continuaria a dançar, cantar e contar suas histórias depois de assumir tudo, e ela sinalizou com
sua cabeça e desviando seu olhar, hesitando. Talvez tenha errado nesse momento bombardear
ela com tantas perguntas, mas precisava saber de seus passos e preparar até seus próximos
passos, como encontrar um mentor. Questionei quais seriam seus passos, como ela gostaria de
agir, por mais que eu tenha visto, quem sabe ela não queria ser totalmente diferente? E era
importante saber. E falei que no futuro, ela também precisaria de alguém para ficar em seu
lugar, porém não tive retorno como de costume, ela só concordava em silencio ou dizia “uhum”.
Olhava perdido pelos cantos esperando seu esclarecimento ou opinião. Não demorou para ela
despir de sua vergonha, e deferir sua dúvida que talvez tenha afetado muita coisa, e mentir não
era meu estilo, principalmente se tratando de nossa situação. Ela questionou se sempre seria
assim e se ela teria outra chance viver, se faria sentido lidar com tudo isso e ser um lacaio
porque alguém preguiçoso e impaciente não respeita nem os mortos. Contei a verdade de que
ela era o motivo de eu lutar pela minha liberdade, minha motivação, incentivo para treiná-la de
forma dedicada e ríspida até aprender a coisa mais inútil desse mundo. Cecília era meu passe
para um mundo de liberdade que tanto cantavam enquanto estavam bêbados com suas curtas
felicidades e falsas esperanças. Meu passe para viver o que não pude porque a humanidade tem
sua parte terrível, no mundo dos espíritos você enxergava melhor essas coisas através do acesso
que eu tinha para adentrar a memória. Pensar no mundo só com coisas ruins, atrapalhava todos
e ninguém vivia. Se arrependiam, se lamentavam, choravam e ficavam deprimidos culpando
tudo. Eu viveria de forma adequada, sem ressentir e agradeceria todos os dias, jamais perderia
tempo. Óbvio que não mencionei isso, para Cecília, disse que ela era importante de algo maior
pra mim, e que eu seguiria seu conselho e seria livre, mas ela perguntou “enquanto a mim?”.
Bom, responder isso era complicado, mas simples. Ela ficaria aqui e eu sairia. Com toda certeza
ela acharia outro para ficar em seu lugar, seu poder ajudaria identificar a pessoa certa. Ela não
gostou do que eu disse e se ofendeu por ela ser só uma ferramenta para meus fins, que era nada
mais que coisas pessoais. Retruquei que as coisas são como são, e isso não era um fim para ela.
No início seria divertido e ela acharia o mais rápido possível alguém para ajudar. Cecília só se
levantou, se despediu e partiu, e isso não fazia diferença para mim. Estava quase feito, mas...
Ela negar tudo... Seria angustiante, como não haveria troca justa, ela teria que ir.
Dias se passaram, e seu sumiço me preocupava. Não havia sinal nos bares, não havia nada que
ajudasse encontrar ela, nem seu rastro pude detectar. Fabrício era um imbecil e não ajudava.
Até que certo dia, Cecília reapareceu sem mais nem menos, pediu perdão por desaparecer sem
dar explicação. Suas palavras pesavam mais que seu espírito. Estava mais retraída, ressentida e
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com mais dúvidas que o comum, entretanto, não falava nada. Só dissimulava, e isso era um
comportamento incomum. Quanto mais eu falava, mais ela recuava. Estive me sentindo o dia
todo como se estivesse falando com andarilhos, ou a parede, ou esse diário. Isso não era nem o
pior, os agravantes vieram nas batalhas que estávamos juntos. Nossa sincronia estava cheia de
desavenças, dúvidas ou movimentos individualistas. Senão circunstâncias que ela me fitava,
tentando criar uma postura de superioridade, achando que estava me supervisionando e
opinando meus meios de agir. Eu a reprendia, brigava, para ser específico e disse que era melhor
ela se concentrar em como ela estava agindo. Nossos atritos estavam piorando, nem parecia a
mesma pessoa que confiei minha trágica história. Ela frequentava o bar, mas em começou a
agir de forma independente, se baseando no que achava melhor. Seu rastro sempre estava
sumindo, e só aparecia quando ela achava melhor. Até que a madame deu o prazer de sua
aparição e a sinfonia de sua voz, com desculpas, mentiras e mais mentiras, que logo eu
descontruía. Ela notara minha frustração e tentava zombar discretamente com seu sarcasmo, até
que então perguntei se ela ainda estava disposta a assumir ou se queria partir de vez. Eu posso
fazer isso a qualquer momento e não queria sentir que estava desperdiçando meu tempo. Minha
ansiedade para sair daqui estava intensa, e não iria admitir atrasos por alguém com birra e sem
escrúpulo.
Em uma missão que fomos, até simples, agimos corretamente e detivemos um espírito
vingativo. Usamos o Seteálem e trabalhamos bem levando o infeliz para onde devia, depois ela
me conduziu para outro lugar, um lapso que partiu com que eu enxergasse Paris e a torre Eiffel.
Era tudo luminoso e lindo, vivo, e foi uma das cidades que desejei mora, aquele parecia tanto
meu lar e estava certo disso. A garota pediu perdão, no caso, Cecília e até comentou o quanto
esse país era rico em paisagens que nos transbordasse paz, até disse que muitos artistas se
encontraram aqui. O que aumentou meu fascínio e o esplendor que aquele lugar já tinha.
Mostrou onde estava e não poderia ser o local mais desconfortável. Sua casa estava repleta de
selos, senti de longe e até meus passos travaram. Obvio que questionei se eu podia entrar, mas
ela disse que era só pra despistar os mortos, pois eles ficavam espionando o tempo todo, e até
tentavam invadir, mas os selos eram exagerados e fortíssimos. Inclusive eu me sentia mal, me
senti enfraquecido, mas se até Cecília conseguia entrar, então também teria mesma força.
Ao adentar sua casa com inúmeras decorações, selos, runas e tudo que tinha ensinado à ela,
desconfiei muito, mas... Ela estava com a pulseira ainda, então achei não teriam riscos, e esse
foi meu maior equívoco morto. Essa garota preparou seu maldito chá, mas antes de partir,
indaguei se ela ainda estava interessada no acordo de dirigir tudo que eu tinha. Controlar a
triagem dos mortos, garantir estabilidade e ainda aproveitar o máximo que podia. Ela disse que
iria falar logo, assim que terminasse de preparar o chá. Aguardei com meu pingo de paciência,
ansioso pela resposta só contanto cada maldito segundo. Parecia uma droga de eternidade, mas
lá vinha ela tranquila. Não esperei ela terminar de me servir e exigi resposta, mas a maldita
ficava em calada despejando o chá nas malditas xícaras. Minha fúria ficava mais intensa, só
que eu tinha que ficar no controle, pois isso era uma fraqueza minha — ela pareceu ter
descoberto. Assim que ela acabou, convidou-me para beber e disse que daria a resposta agora,
após refletir muito. Sua enrolação só me deixava mais nervoso, tomei o chá tão rápido que nem
percebi. Tudo isso só para realizar seus elogios vagos sobre minha paciência, dedicação e
principalmente confiança, minha habilidade e a oportunidade de ela poder ser livre, mesmo que
seja servindo. Fiquei tão nervoso que arremessei a xícara contra parede e exigi logo a resposta,
pois meu tempo era precioso e eu queria saber se teria que encontrar outro para me suceder.
Assim que fui me sentar novamente, senti meu corpo enfraquecer e fiquei, pela primeira vez,
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tonto. Essa sensação era nova porque era efeito de um selo que eu ensinei à ela. Questionei o
porquê de a pulseira não funcionar e alertar, ou coisa assim. Então raciocinei mais um pouco e
compreendi que essa dissimulada adulterou usando, possivelmente, o curto momento de morte
em seus testes. Era o único momento que era impossível detectar quando fosse removida,
adulterada e que seu sumiço não era rastreável. Tudo aquilo estava predeterminado por ela?
Sim e não, ela chegou rápido à conclusão de que minha posição era pior os infernos que
mencionei. Estava bem embaixo do meu nariz que sua vontade de viver é maior que sua honra,
maior que sua palavra também. Quando surgisse a oportunidade, ela lutaria até contra quem
estava ajudando-a. No final, era uma grande oportunista e sua vantagem desde quando iniciou
seus questionamentos, é que ela não era movida a vingança, raiva, e eu sim. Meu início para
tudo, minha motivação... Era o maior dos sentimentos mundanos: o frenesi. Enquanto
enfraquecia mais, ela se aproximava com seu rosto tranquilo que mais me enfurecia, até
acariciou meu rosto e disse “lamento que tenha que ser assim, e acho que sabe como será”. Sua
mão lentamente foi até minha testa, seus olhos me perfuraram assim como sua traição. Ela
estava tentando entrar em um único lugar que era minha casa, meu lar, e que sempre estava
comigo. Ela leu até meu diário quando teve chance, isso se não foi em um momento que não
esperava. Estava pronta e determinada a invadir meus pensamentos, consumir o grimório,
TODOS os grimórios essenciais para lidar com o mundo e os espíritos, mas o pior seria os
segredos de Seteálem. Imóvel, somente esperando o momento de ela fazer isso, tudo que eu
poderia fazer era imaginar relutar com minha mente. Nem trazer Seteálem resolveria, porque
foi selado. Não demorou para que ela entrasse e conseguisse meus grimórios, mas eu prestei
atenção e detectei uma falha ao entrar e sair. Algo que deixei por ser precavido, e consistia no
primeiro toque, e só poderia dar o primeiro toque. Assim que minha mente se defendeu, pude
impedir que ela levasse, mas nem todos. Ela trouxe consigo meu diário e meu grimório dos
selos, logo voltamos pra sua casa ela ficou estirada no chão, cansada e também sem forças. Eu
saí do local antes que recuperasse, mas o portão estava trancado. Os selos estavam em sua casa,
então estava fora de perigo. Essa cobra dissimulada se recuperou rápido e caminhou com
ternura, cantando vitória, pronta para deferir o golpe final, mas como os selos se limitavam até
sua casa, usei minha melhor cartada para momentos como esse. Estava tão obcecada em me
pegar que não notou que já estávamos em Seteálem e eu estava pronto para recuperar meu
grimório e meu diário. Isso eu não poderia perder, pois era a única coisa que me restou para
falar abertamente sem ser traído, sem ter desconfianças. Olhei para ela com o maior sorriso de
desprezo, prazer com meus olhos mortos, e disse que o maior erro cometido por ela, foi achar
que venceu. Apaguei em seguida, e logo chamei a calamidade que resolveria tudo, com uma
simples palavra: “afoguem-se”. Esse ser ele era um dos infelizes, e tinha um poder enorme de
destruição... para as almas, eu o domei, então não tinha problema. E eu poderia me salvar.
Cecília deve ter escutado, pois logo olhou a sua volta buscando o autor da voz, mas não
encontrou, mas logo sentiu os tremores e viu a água que arrasta a morte, vida, esperança; TUDO
de uma vez. Ela só podia observar e aceitar que estava um passo a frente, ainda. Em uma
tentativa desesperada, correu até mim tirando de seu bolso um frasco que continha pó da pedra
do sol dizendo “não preciso usar seus métodos lentos para ter o quero, o que sei será suficiente
para sair daqui”, e eu apenas disse que ela poderia tentar, antes de fracassar, antes que ela
respondesse e me atacasse, as águas foram rápidas e nos levou. Esse foi meu momento oportuno
para resgatar minhas coisas e sair dali, e selar ela no inferno congelado onde todos só sentem
raiva, inveja ou em lugar para ser condenada a se sentir vazia.
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Tempos se passaram e depois do nosso pior e grande conflito, ela decidiu viver nas sombras e
à espreita de algum outro espírito como nós. Isso não era tão difícil, e ela sabia quando aparecer
para evitar-me a qualquer custo. Para caçoar de mim, espalhou a falsa notícia de que eu era um
vilão que causava desordem e estava apenas querendo me aproveitar da vida de quem
escolhesse, dando esperança e vendendo a ideia de que todos estavam vivos. Ela disseminou o
caos, vendeu a minha imagem como se eu fosse um vilão, e não alguém que agia em prol do
cosmos.
Tudo que fiz ao decidir ser livre, meu tempo dedicado para ela lutar com a chance de ser livre
foi desperdiçado. Suas palavras que afirmavam ter um novo jeito de sair daqui fizeram eu
entender que ela conseguiu também ler uma parte do grimório de Seteálem. Então ela sabia
como sair daqui de forma indevida, da forma que abalaria as regras de renascença e do cosmos.
Algo que causaria entropia por não passar devidamente pela triagem e o filtro. Sua ambição
cresceu a ponto de pisotear tudo isso aqui e era culpa minha, nem o meu mentor deu às caras,
mas eu poderia resolver isso sozinho. Indignado de como fui ingênuo de nunca supor que ela
se revoltaria com essa ideia, de que ela gostaria de ser livre usando atalhos dos quais eram
proibidos. Fato de que ela iria se apoiar em outros para querer alcançar sua ambição, e eu
deveria redobrar minha atenção a tal ponto que até os mais calmos e conformados sofreriam.
Esse foi meu erro... E foi o maior erro que cometi. Não só o fato de acreditar nela. Hipótese
alguma isso foi só por causa dela. Isso foi culpa minha, a maior parcela, o principal fator de
tudo isso está acontecendo era eu e minha vontade. Meu desejo de profanar esse mundo com
coisas corriqueiras. Dói e tira o tapete que eu tinha estirado, mas o fato é que meu erro foi
desejar uma liberdade que eu nunca poderia alcan.

Depois disso, o livreto continha anotações sobre nós. Sobre a traição de Caio, sobre como a
Cecília estava conduzindo tudo muito bem ao manipular todos nós e que ele temia que ela
acabasse alcançando o que tanto almejava e abalasse essa tal lei. Dizia que o egoísmo e as
mentiras delas fizeram com que ele se arrependesse amargamente de ter desejado ser livre.
Fiquei tão assustado, com raiva e nojo até de mim por, na verdade, ser o grande vilão da situação
e estar agindo mais às cegas do que pude imaginar. O livreto que ela tinha dado era o verdadeiro,
mas sem as páginas ocultadas. Os feitiços ainda estavam lá e o selo também. Tudo no lugar, só
que com a história dos Olhos Mortos nas minhas mãos. Fiquei tão atônito que senti minha
audição esvair, não escutava mais nada ao meu redor além dos meus pensamentos e um ruído.
Senti um imenso desconforto e raiva, decepção por descobrir que do início até agora, eu estava
sendo manipulado por ela. Nunca senti uma raiva tão intensa como essa, que atraiu até alguns
olhares de quem estava a minha volta. Fiquei sem e minha vontade era de rasgar em pedaços
aquele maldito livreto. Se eu apresentasse isso à ela, certeza que iria buscar outra desculpa pra
eu ser o idiota da historia mais uma vez, como sempre. Só pensava em alguma forma de sair
dali correr e me perder. Morrer e esquecer que isso estava acontecendo, mas nem conseguia me
mover, e só sentia raiva e nojo. Desgosto. Fitava aquele livro com a maior fúria já presenciada,
olhava sem parar. Em seguida, senti alguém me observar — além dos demais —, alguém que
parecia ter sentido que eu soube a verdade depois de tanto tempo ser engando com seus contos.
Bem devagar, frio e com fervendo no vulcão do frenesi, olhei para ela como nunca olhei antes
e com vontade de matá-la ali mesmo. Fitei bem devagar e depois mirei bem nos seus olhos,
com a faceta que talvez ela nunca tenha imaginado ver. Mostrei o livro para Cecília, sorri
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enquanto minhas sobrancelhas caiam de raiva, apreciando seu espanto após estar diante dos
seus olhos com a verdade, pronto para intimidá-la com provas. Parecia que tudo e todos tinham
sumido, mais ninguém estava lá, nem mesmo a festa existia mais. Era eu e ela, olhando um para
o outro. Ela estava paralisada assim como eu e eu via o quanto sua respiração estava ofegante,
e o quanto estava nervosa diante da minha ira, mas não propriamente disso. Seja o que for, não
queria saber e estava determinado a terminar o trabalho que nem os Olhos Mortos foi capaz de
terminar.
Cecília veio correndo até mim assustada, com os olhos raso d’água por entender o que ela devia,
e o que faltou para evitar aquela situação. Assim que ela tocou em minhas, eu puxei de volta
minha mão e olhei para ela como nunca. Ela tentava argumentar, mas devido ao barulho, não
pude escutar coisa nenhuma e nem queria. Ainda estava atônito. Digerir aquilo foi demais,
porque tinha outras coisas também a se enxergar. Nada é pior que lutar por uma mentira, quase
morrer ou sacrificar o que quer que seja por algo que nem existe. Cecília sinalizou para que eu
a seguisse quando viu que não pegaria sua mão. Um pouco hesitante, desconfiado, me
perguntando “devo, de fato, ir e escutá-la, depois de tudo?”, pensei sem parar enquanto ela me
esperava um pouco distante. Depois de refletir, mesmo que tenha sido uma decisão tendenciosa,
pelo fato de eu gostar muito dela ainda. Talvez... Tenha que ter mais empatia, não posso ser
como Victor e agir sem escutar o outro lado. Nosso caminho foi melancólico,
perturbadoramente silencioso e frio, não falamos nada durante o percurso. Sentia alguns olhares
seus repletos de dizeres que resguardavam, louco explicar e atropelar meus raciocínios, mas me
mantive firme até chegarmos em casa para conversarmos direito e ela explicar tudo. Sem temer
a presença repentina de Victor.

Ao chegarmos, sem cerimônia, ela abriu o portão e entramos na sua casa. Sentei-me na mesma
mesa, só aguardando que trancafiasse a porta. Ela colocou sua bolsa em uma cadeira e fitou-me
um pouco envergonhada, mas seu medo fez com que agisse com mais ousadia. Não demorou
para explicar-se:

— Olha... Sei o quanto pode estar aborrecido porque acha que o que fiz não há explicação.

— Sendo otimista? Sim, é o que pensei. — Retruquei rispidamente.

— Como assim “otimista”? — ela estava confusa, domada pela frustração e medo, então
qualquer fala abstrata da minha parte seria incomodo.

— Não acho que o que você fez haja explicação, tenho certeza. Você mentiu até quando
entregou o caderno. Você mentiu sobre tudo. Por isso você não explicava sobre certas coisas
desse mundo.

— Temi que você descobrisse, já que era quase nítido.


OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Como assim?

— Nunca percebeu? Você não sente fome, nem sede. Seu celular nunca descarrega. Suas dores,
sua queda, tudo passa rápido e não tem o mesmo impacto que teria. Até os danos que Victor
infligiu são suportáveis, mas é mais complicado. Nem eu sei ainda lidar.

Pensei por momento em suas palavras, e talvez, bem lá, no fundo, não quis estar disposto a
enxergar isso, assim como agora não estou. Nem quando li aquelas anotações de Victor sobre
sua trajetória. Isso nos tornava como errados da história, e pelo que entendi, Victor só está
fazendo o trabalho dele, mas me veio uma dúvida ainda. Ignorei por um momento sua
informação e a questionei de forma instantânea:
— Como descobriu sobre esse lance do portal, do ônibus?

— Ele não colocou no caderno? — replicou Cecília um pouco confusa.

— Ah! Disse que ensinou a você muitas coisas, mas não foi preciso em quase nada. Provável
que ele colocou aquilo que mais marcou. Não sabia que, no fundo, ele queria o mesmo que a
gente...

— Mas ele preferiu ficar aqui e agir de forma decente às regras, nisso somos diferentes. Não
queria, e não quero ser um escravo como ele.

— Não muda o fato de ter me enganado. — Retruquei ainda indignado, exigindo sua explicação.

— Olha, sei que vacilei, tá? Mas é que não podia correr riscos.

— Você domina as regras desse lugar, que diferença faria?

— Por isso mesmo preciso de ajuda. Victor saberia como encontrar e até como lutar, mas você
viu o tamanho do exército dele, viu a força dele e sua capacidade de rastrear. Não sou como
ele, fui a aprendiza e, muitas coisas, não pude aplicar. E o que descobri foi através de uma
rápida lida no grimório. Preciso de sua ajuda porque lidar com um mestre das almas ou sei lá o
que, não é trabalho para um.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Você difamou ele, para quê?

— As almas resistiam mais, tinham mais cautela sobre ele, e isso me dava tempo. Minhas
incursões demoravam muito, não como agora.

— Talvez seja desconfiança, mas é difícil lidar com isso sem duvidar. Ocultou as folhas
anotações e... — Antes que eu terminasse de falar, Cecília com os olhos lacrimejando exaltada,
bradou:

— PORQUE EU TIVE MEDO DE TE PERDER!

Nos calamos, mas no meu caso, só me achei um babaca insensível por não cogitar nessa
possibilidade. Não se trata também do nosso envolvimento afetuoso, e sim de você nunca poder
conversar com alguém. Como ela não deve se sentido quando se afastou dele? Enquanto seguia
minha linha de raciocínio, ela continuou ainda em prantos, se explicando como pôde:

— Você leu, então deve saber como é. Quando as pessoas aceitam que estão mortas, acabam
cedendo e partindo. Você estava com dúvidas antes, e eu sentia. Depois de o fato de estarmos
assim, temi mais que partisse. Antes, reconheço que foi puro egoísmo da minha parte, pois
vocês agilizariam muita coisa, me ajudaria demais. Só que você começou significar muito para
mim. Me perdoa, sei que ao te proteger, tomei decisões equivocadas e deveria dar detalhes.

— Não precisa falar assim, sei lá... Perdão, deveria ter questionado primeiro ao invés de ficar
com raiva. Não foi fácil ficar aqui sozinha, imagino.

Cecília emudeceu, enxugou suas lágrimas incessantes com seus olhos avermelhados, e fitou-
me um pouco aliviada, embora hesitante. Ela sabe que eu ainda tenho dúvidas, porém tínhamos
a mesma ambição que era ter uma vida. Questionar minha índole, nossa índole de como se
portar era crucial, se tratando de como afetaria tudo, mas... Não estou disposto ao menos a se
conformar com isso, não depois de lutar tanto. Continuei dizendo:
— Pedi só uma coisa antes, e foi honestidade. Tentarei perdoar tudo isso, mas não quero fazer
nada de errado, só desejo viver. Admito que não sei como recomeçar tudo, começando pelo
ânimo de lutar. De qualquer forma, ainda não explicou a real necessidade desse livreto.

— Nada mudou, é um passe. Aquele símbolo que você viu for desenhado por mim de um
grimório.
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— Por que ele não arrancou isso, sabendo dos riscos de você capturar?

— Essas páginas não podem ser arrancadas. — Retorquiu Cecília expressando seu ceticismo
ao me contar, mas dessa vez não fiquei inseguro para questioná-la:

— Por quê? Parece não querer comentar sobre isso.

— Não entendi muito bem, mas interpretei o que tem nas entrelinhas e isso faz parte dele. Então
podemos machucar ele arrancando.

Não escondi minha decepção, bufei retirando ar das narinas e desviei o olhar, mas ele explicou:

— Sei que estamos muito empenhados em conseguir o que quereremos, e é por isso que sou
diferente dele. Tenho empatia e jamais usaria isso desnecessariamente. Estamos nos virando
bem, até agora. O pó é o suficiente para lidarmos com ele e avançar.

— Entendi, então parece ser algo ainda mais forte rasgar as páginas. Se nem você ousou, então
prefiro ser cauteloso. Temos nosso passe, é o que interessa, mas ele sabe que você tem isso,
como será?

Cecília se levantou e pôs se a encarar a janela preocupada e enunciou, com um tom tenso:

— É isso que me preocupa, porque sei que não será nada simples. Ele tem seu amigo agora,
sabe o que estamos procurando e fará de tudo: do mais limpo ao sujo para nos impedir. Você
viu o poder dele fazer, o que ele permanece em seu alcance para movimentar. E isso evolui
mais. Não mentirei dessa vez dizendo que será simples e será muito arriscado. Então por isso
que selei um acordo com Sombra.

— Sombra? Achava que ele tinha seguido o caminho dele por aí. Nunca mais falou dele.

— Não tinha o porquê, então não comentei. Enquanto você estava desacordado, conversamos
sobre os próximos passos.

Cecília fitou-me de forma breve e voltou para janela, se preparando para falar sobre minha noite
do afogamento e parte do plano que ainda desconhecia.
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Quando retirei ele do túnel, machucado e quase incapacitado para andar, escutei um imenso
estrondo vindo de dentro. Pensei na hora, e quase gritei, mas meu olhar já foi bastante claro
sobre o que gritei naquele momento, foi “Marcos”. Encarei aquele monte de entulho fedorento
escorrendo água, refletindo na volta dele, mas desacreditei desde a explosão, desde quando vi
escorrer essa poça. Meu outro raciocínio foi “não poderia ser pior que eu imaginava; ele morreu
e corre risco de partir, e o Sombra estava incapacitado de ajudar agora por estar ferido. É
possível que terei que contar com que ele resista o máximo que conseguir”. Quando estava
prestes a voltar, Sombra falou comigo com muita dificuldade:
— Um perdido no mar da morte, com espíritos arrependidos uma vez transcendido, há
possibilidade de aprisionamento ou libertação. Dois não mudam essa adversidade, essa
probabilidade, e não importa seus sentimentos, Cecília.

— Tem que haver uma maneira para retirá-lo dali você deve conhecer!

Sombra se recostou sobre o muro e disse, se desfazendo da minha ideia e me indagando por
outra situação diferente:
— Ele sabe do estado dele ou esse é como os outros?

— Ele não pode saber por isso, pois temeria o pior. Ele tem força até agora para lidar com isso,
mas os demais sentiram medo e cederam para morte. Me ajude ocultar isso, por enquanto. Ainda
não respondeu como eu queria.

— Eu sei, pensei bem no que pretende fazer. Tudo isso existe por um motivo, Victor não
descansará sabendo que vocês querem destruir uma lei do cosmos, sabe disso. Ajudar você pode
ser péssimo pra mim, e sobrevivi por longo tempo intocado ali. Esconder você enquanto estava
com dúvidas foi uma boa ideia? Pode se manifestar de forma imparcial sobre isso?

Fiquei pensativa, procurei as melhores respostas para o que indagou, pois sabia que qualquer
coisa seria pretexto para ele voltar atrás de qualquer decisão tomada antes. Então enunciei:
— Não quis destruir você e sua casa, e o que almejo alcançar é a vida. Nos ajude a realizar
nosso desejo de viver como queremos e darei a você minha casa selada, junto com algumas
anotações.

Sombra sorriu reconhecendo minha barganha como vantajosa, mas ainda completei:
— E outra coisa: pode nos enxergar como dois idiotas egoístas, mas você vende coisas roubadas
infringindo uma regra do cosmos. Ultrapassar o mundo dos vivos é uma delas, também se
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alimentar das almas para se manter forte não é uma boa conduta. Salvei você quando pude,
então me deve, Victor deveria matar você naquele dia.
— Minha dívida foi paga quando forneci minhas raras mercadorias.

— Isso não chega perto do que eu fiz. Nadei contra as regras, como estou fazendo agora. Ambos
estamos cavando um buraco fundo que não permite o fluxo adequado das coisas, então acha
que deve avaliar minha conduta agora?

Sombra tentou esconder sua raiva e o fato de como o questionei, mas não conseguiu. Sabia o
quanto eu estava certa e a perca de tempo de encontrar agora erro no que estava sendo efeito:
— Você é ardilosa como uma cobra.

— Sobreviver acima de tudo.

— Percebo... Aceito seu acordo, ajudarei você e seu namorado a sair daqui.

— Ele não é... meu namorado — respondi envergonhada e não querendo dizer aquilo mesmo.
Sombra notou, sorriu e continuou:

— Claro que não. Seja o que for pedir, fará sua parte e fornecerá tudo que sabe a mim, junto
com sua casa. A fuga não será simples, então preciso me fortalecer o máximo que eu puder.

— Sei que você é capaz de se alimentar sem parar daquelas coisas, conjurar, mesmo que
temporário, seres das trevas para lutar. Você é um ser de Seteálem com poder similar a ele.
Garanta que ocorrerá do jeito que planejaremos e eu garanto minha parte, sem furos.

Sombra ficou me silencio, refletiu diante do que eu disse e do acordo que estávamos prestes a
selar. Seus olhos brilharam com seu sorriso e estirou a mão. Ele parecia estar revigorado, mais
forte e até se levantou:

— Vantagem para nós. Gostei. Começarei com minha parte agora. Seu amigo acaba de tocar
algo sagrado para mim e posso trazê-lo de volta.

Apertei sua mão com ambas e retruquei eufórica:


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— Traga-o, por favor!

Ele fechou seus olhos por alguns minutos, franziu as sobrancelhas se concentrando mais e
depois abriu seus lumes radiantes que se apagavam aos poucos, e revelou:

— Ele está selado a uma casa, não posso colocá-lo até mim. Pode me dizer alguma coisa?

— É minha casa, pode deixá-lo ir até lá.

Sombra sorriu de uma forma sinistra e declarou seu anseio para finalmente tocar nas minhas
anotações e ensinos sobre selos e outras magias. Ele se concentrou outra vez, se tremeu e trouxe
em sua vista os luzeiros de novo, que aos poucos se apagavam. Depois anunciou “está feito”.

Assim que disse isso, corremos até minha casa, ainda ajudei o mercenário que demonstrava ter
dificuldades. Não era muito longe e não parecia ter ninguém a espreita por ele camuflar nossa
presença com seus próprios feitiços. Ao chegarmos, abri bem rápido o portão e a porta e
adentrei. Senti o cheiro e a energia de Marcos pairar pelo ar e fui depressa até ele. Ainda estava
se debatendo, preso em outro lugar. Voltei às pressas até onde Sombra estava e o questionei
sobre sua garantia:

— Disse que ele voltaria! Não ouse quebrar seu acordo.

— E eu o trouxe de volta, acontece que ele tem dúvidas e está titubeante. Acredite, esse foi o
máximo de pude fazer por ele. Agora depende dele também.

Fiquei calada ainda o fitando desconfiada, não sabia, mesmo conhecendo-o há anos, dessa
fraqueza de seu feitiço. Enfim, me ajuntei a ele na mesa sem muito atamento, sem tirar meus
olhos dele e com as mãos entrelaçadas. Ele falou primeiro sobre o que eu já ia mencionar, nosso
acordo:

— Então... O que quer que eu faça? Sei que tirar ele de lá não é o suficiente, não para Cecília.
Pela forma que conversou comigo, será um grande problema.
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— Não se preocupe com isso. Meu objetivo é simples, você ficará com o mais fácil. Eu e Marcos
ficaremos com o mais difícil. Você será um alicerce importante, mas seremos o motivo de você
está lá.

— Isso até que faz sentido. — Retrucou cheio de sarcasmo, o Sombra.

— Engraçadinho... Sabe o que eu quis dizer. Quero que lide com Victor nos dando cobertura
enquanto rastreamos o ponto de partida dos espíritos para o outro mundo. Esse local é muito
aleatório e então não será simples. O ônibus pode estar em qualquer lugar, então enquanto o
entretemos, você fará a busca e nos ajudará na cobertura ao avançarmos.

Sombra ficou rindo, parecia uma piada, mas o desdém do coitado não era nada. Por mais que
soasse isso, ele completou seu raciocínio;

— Você é genial, uma verdadeira víbora. Quer que eu lute contra ele enquanto vocês correm
até a saída, sem garantia que ele me atacará? Isso é insano até, mas ele fará uma escolha. E essa
será...?

— Você sabe como se espreitar, mas ele notará logo que tem alguma coisa de errada e tentará
te localizar. Quer dizer que você ficará distraído por alguns momentos, é o que ele deseja, mas
você evitará.

— Como sabe? — questionou enquanto cruzara seus braços aguardando minha resposta com
muita pompa.

— Ele ficará nervoso, mas ainda decidirá de forma estratégica os próprios ataques e futuros
passos. Assim que ele notar sua fuga, tentará encurralar você com os Atormentados.

— E então...?

— É aí que você vai devorar o primeiro que aparecer. Será assim durante todo o percurso até
ficar quase irracional. O suficiente para distinguir quem deve guardar.

— Você sabe como dar um show, garota. — Exclamou enquanto encarava o chão com um
sorriso, um pouco inseguro e pensativo. Tomei a dianteira e resolvi questionar:
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— Sei que sua maior preocupação está ligada se poderá nos distinguir, caso contrário, posso
matar você. Entretanto, creio que sim. Reconhece seu limite?

— Essa pergunta foi idiota, claro que reconheço, mas me preocupo com algo... Há possibilidade
de ocorrer imprevistos.

— Seja o que for, apenas faça e não perca seu tempo refletindo sobre essas possibilidades. Seja
como o tempo:

Olhamos um para o outro e respondemos simultaneamente “avance sempre para frente, não
pare, não volte”. Sombra se levantou e ergue sua mão para chamar suas bolinhas de baoding.
Virou um pouco seu rosto para mim e disse, se despedindo, próximo da porta:

— Faça além do necessário, garanta seu acordo. Trarei em pouco tempo a possível localização
donde os espíritos andarilhos estão vindos. Prepare seu namorado, amigo sei lá o quê.

Acenei com a cabeça concordando enquanto contemplava ele com bastante admiração. Escutei
um ruído, a luz piscou e Sombra sumiu diante dos meus olhos. Sua presença esvaiu-se e eu
aproveite para ver Marcos de novo, que já se encontrava quieto e mais relaxado. Logo depois,
seus olhos abriam-se aos poucos.
Ao término da explicação de Cecília, admirei o chão enquanto afundava minha cabeça em meus
pensamentos, questionando novamente o porquê de não ter me contado nada depois de tudo
aquilo. Talvez porque estava abatido ainda e processaria com extrema dificuldade, mas agora
sabia e questionei:

— Que plano louco, por que não contou antes?

— Bom, imagina quanta coisa eu teria que esclarecer? E contar naquele momento não afetaria
tanto como agora. Tudo está como o próprio destino quer. — Retrucou Cecília firme com sua
afirmação.

— Seja o que for, se dependesse do destino, nem estaríamos mais aqui. Não vem ao caso. Então
estamos a mercê dele, do (Sombra)? Ele nem deu um sinal de vida até agora.
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Assim que eu disse isso, escutei um passo pesado em do lado de fora, próximo à porta, como
se despencasse, saltado ou coisa assim. Depois batidas impacientes, exigindo que abrisse.
Cecília correu para abrir a porta, mas não havia mais ninguém. Ela virou-se lentamente com
um sorriso de desprezo e declamou:

— Não gosto quando usa seus truques em casa. Espero que isso se repita quando for sua.

Sombra me assustou com aquela sua voz misteriosa, bem atrás de nós e suas vestimentas das
trevas. Ele ainda me fitou antes cravar seu olhar nela, erguendo sua pompa com um sorriso
pronto para anunciar a boa notícia:

— Espero que estejam prontos para agir, porque tenho a localização de onde devem ir. Está um
pouco longe, mas fica onde esse serzinho achava que estava trabalhando.

— Não creio, então o local se repetiu? Ele pode nos guiar facilmente.

— É..., mas eu vi, na verdade; senti muitas presenças só nas redondezas do bar. Foi difícil não
atac...! — antes que Sombra terminasse, de forma violenta Cecília o interrompe e o repreende:

— Não deve evitar suspeitas! Não atacou ninguém, certo?! — Sombra andou devagar até a
cadeira erguendo suas palmas demonstrando sua honestidade, até se sentar.

— Antes de me interromper, como estava dizendo; foi tentador, mas me contive, ok? Trato é
trato, então confie em mim. Victor tem uma boa ideia do passo de vocês, isso será mais difícil
do que pode imaginar.

— Eu sei, foi fácil deduzir a triplicação de sua cautela. Agora Caio está com ele, o rapaz que
estava conosco. É possível que esse infeliz tente se basear no que Marcos está pensando para
nos interromper.

— Imagino que tenha cuidado disso também.

— Claro, ele acha que Marcos não sabe, perderá o precioso tempo tentando convencer ele
enquanto age contra Victor. Caso também isso não aconteça e ele tenha ficado mais agressivo,
o plano não muda detalhe algum. Iremos atravessar isso da seguinte forma...
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Eu olhei para Sombra e ele também devolveu seu olhar, como se estivesse com dúvidas sobre
qual seria o passo dela, e o porquê daquele sorriso tenebroso malicioso. Ela correu até um quarto
que estava quase imperceptível, assim que percebeu que estávamos atrás, apenas aguardando
ela nos chamou através de um grito de onde estava. Corremos até lá e adentramos o quarto que
não tinha avistado antes. Assim que entramos, vi alguns instrumentos dispersos pelo local e
Cecília pegando alguns tambores. Ela nos deu e disse para ir até lá fora e começar a tocar para
o verdadeiro show. Não questionamos, nem pensamos nisso, apenas nos dirigimos até a parte
de fora já anoitecida, coberta pelas trevas. Demorou um pouco, mas ela veio e estava um
vislumbre com seu vestido. Se descrevesse de forma específica — ou tentasse especificar —,
perderia meu tempo ou sempre faltariam palavras que se encaixassem. Me mantive focado e
parei de encarar ela como um bobo apaixonado e me mantive focado em suas palavras:

— Comecem a tocar e espero que não quebrem o ritmo. Quero seja meu último número aqui e
deve ser sensacional, TRIUNFANTE! — Disse enquanto erguia suas mãos para cima, toda
radiante, mas lembrei de um detalhe, e foi:

— Isso parece legal mesmo, mas não sei como se toca isso.

— Eu sei como resolver isso. — Sombra invocou um doppelgänger que foi onde eu estava e
me empurrou para assumir em meu lugar.

Ela respirou fundo, encarou o céu como se absorvesse a energia daquele celeste vazio.
Canalizou o ambiente inteiro para dentro de si, e aos poucos, foi bamboleando: balançando sua
cintura perfeita de um lado para outro. Sombra tocava seguindo seu corpo, foi um pouco difícil
no início se adaptar, mas logo ambos se amalgamaram-se e surgiu a junção perfeita. O batuque
estava alto, mal escutava meus pensamentos, mas Cecília bailava de forma sedutora e mágica.
Seu rebolar, seu corpo escultural bailava sem qualquer falha. Senti e capturei a essência do que
estava a minha ao meu redor, de tão contagiante que era, quase dancei. Era intenso, me sentia
atraído para ir até lá e me libertar. Aquilo emanava cada vez, nos puxava como o buraco negro
ao capturar qualquer luz. Quando olhei a minha volta, em menos de alguns minutos, seres
estavam no portão, do lado de fora, nos encarando e tentando entrar. Por mais que não sucesso
em adentrar, ainda bailavam conosco, expressavam como devia com os pés inquietos, palmas
e pisados fortíssimos. Mais deles estavam vindos, criando um tumulto maior, com pessoas se
empurrando, ou seguindo o fluxo da música e o ritmo de Cecília, complementando. A graça de
todo ambiente só expandia sem parar, crescia e dispersava como a aurora boreal. Era mágico,
indescritível e contemplar aquilo, foi como estar vivo para muitos! Por alguns segundos, fechei
meus olhos para apreciar mais. Quando reabria, o local estava lotado, com muitos a nossa a
volta de todo portão. Cecília gritou enquanto se movimentava e eu quase não escutei, mas foi
algo como “abra o portão”. Corri rápido e abri de imediato. Eles inundaram com suas presenças,
a nossa volta, dançando sem parar, afundando seus pés e sorrindo. A festa estava maravilhosa
e quanto mais venerava, mais se embelezava e mais pessoas estavam a caminho. Brilhávamos
mais que o sol de quando estávamos vivos, mais que qualquer outra luz existente naquele local.
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Quando fui rever de novo a dupla mais sublime daquele mundo, apenas vi suas sombras
dançando. Fiquei confuso e busquei por eles dentre a multidão. Alguém puxou de forma
violenta meu braço, era Sombra, que apontou para Cecília que encarava em uma parte acima,
sem piscar. Era ele... Victor, nos buscando entre a multidão. Li seus lábios se moverem
lentamente, dizendo “este é o sinal para tudo ou nada, Olhos Mortos”.

Quando entrei na mente dele, estava como antes: vazio e domado por trevas. O local mais vivo,
sem sombra de dúvidas, era sua casa. O lugar que sempre estava com ele e sempre chamava de
lar. Corri até lá sem constrangimento, sem rodeios. Busquei dentre vários locais pelo grimório
que tanto desejava. Ele tinha muitos, mas ainda assim ele se destacava entre os demais. Procurei
pela estante, pelo baú e seu quarto, mas estava em uma gaveta em sua escrivaninha. O grimório
estava com o caderno que eu havia roubado daquela vez. Guardei tudo em minha bolsa e saí
correndo, mas fui parada por alguém só de sentir a presença, a força. Não poderia ser ninguém
mais e ninguém menos que ele... Victor. Estava bem atrás de mim apenas me encarando com
um sorriso cínico, os olhos negros e perturbados. Assim que contornei lentamente, olhei para
ele sem me intimidar e perguntei:

— Não imaginei que isso fosse possível, Victor. Está enfeitiçado, como uma estátua e sob meu
domínio do selo da alma.

— Fico infeliz ao reconhecer a eficácia dos meus trabalhos, sei que estou imóvel, mas isso não
me impede de aparecer por aqui. O único lugar que ainda pude me manifestar.

Na frente dele, pensando no que falar em meio ao silêncio eloquente, seu olhar de fúria, o ódio
que estava nele escorria como veneno. Ele piscava de forma lenta, aguardando minha deixa,
mas logo indagou:

— Você pegou meu caderno, meu grimório... E agora? Qual seu próximo passo, Cecília? Ir até
o ponto de ônibus? Sair daqui e voltar para lá?

— Exato.

— Acha que o você certa disso então?

— Tenho direito a uma segunda chance e escolher se quero ir para outro mundo que não seja o
meu. Não estou disposta a abrir mão tão fácil como você.
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— Coitadinha... Acha que funciona do jeito que imagina, do jeito que essa sua mente artística
lida. Está na hora de acordar. Você morreu, esse mundo é seu agora, essa triagem levará você
para o lugar adequado. Acabou... Treinar você foi um erro e deveria ter imaginada isso. Para
fantasiar essa liberdade inatingível e aceite seu destino. O que você decidiu é uma catástrofe e
irar nos fadar a destruição! Vale a pena? — Victor estava um pouco preocupado, mas sua raiva
era mais intensa, naquele momento. Sua tentativa de me convencer estava mais motivada de
inveja, angústia pelo fato de eu pensar diferente dele do que ele pensava sobre o correto.

— Não interessa o que ocorrerá daqui para a frente, isso não é problema meu. Até porque não
sou uma lacaia de um tal guardião. Vocês farão o que foi necessário para conter quaisquer
catástrofes, senão... O que eu puder viver, será eterno enquanto eu estiver sobrevivendo. No
máximo, prestarei minha homenagem a vocês tocando uma bela música enquanto embelezo o
ambiente com meu corpo e dança.

Victor soltou uma gargalhada alta, pressionou sua barriga enquanto olhava para cima com seus
olhos mortos e retrucou:

— Essa foi boa, palavras bravas e heroicas. Não esperava menos da Cecília. Perca de tempo
falar com você mesmo, por isso tive um plano B. A sua comemoração à derrota. Toque e dance
sem cansar, caso saia com algo. Entenderei seu prenúncio de guerra ou batalha final. O nosso
tudo ou nada, mas garanto que sairá daqui de mãos vazias.

— Você está preso, Victor, aceite.

— Por quanto tempo?

Senti um forte tremor e presumi que fosse do lado de fora, olhei por cada canto até encará-lo
de novo. Sorri de volta e assim que me preparei para partir, fui arremessada e o grimório fugiu
da minha bolsa. Não tive poder suficiente para apanhar, deduzi que algo forte tinha nos separado
e rompido meu selo, então segurei minha bolsa como pude para não perder os materiais
importantes, incluindo o passe. Victor foi se levando aos poucos, em puro frenesi e prestes a
me atacar, mas assim que avançou com toda sua velocidade, fui puxada de volta de forma bruta.
Acordei submersa em um mar com partes corpóreas, corpos que boiavam e Marcos me beijando
quase morto. Foi quando me concentrei e nos salvei de Seteálem graças ao selo. Lidei com tudo
estando um passo adiante. Morrer era quase nulo, não desacreditava de forma completa, mas o
início e o fim estavam sob meu controle. O melhor resultado estaria nesse meio. Voltamos pra
casa e oficializei, naquele momento que estive na mente dos Olhos Mortos, nossa batalha final
de perseverança, de conquista poderia ser a qualquer momento. Só precisaria dele... Do Sombra.
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Cecília o encarava sedenta enquanto ele buscava entre a multidão. Ela devorou e o destruiu de
formas que eu não poderia imaginar, mas junto vinha seu olhar de triunfo. Logo ele se
aproximou da gente e disse, bem em nossos ouvidos:
— Essa é nossa chance. Aqui tem muita energia pra prestar atenção em nós. Levará uma
eternidade, e tenho certeza de que ele virá até os tambores. Assim que caminharmos em uma
certa parte dessa cidade, um de suas sentinelas notificará ele, considerando que ele descobrirá
que são apenas silhuetas nossas dançando por aqui. Porém, nossa atenção está voltada para a
sentinela.

— Tem como saber quando isso ocorrerá?

— Sim, os sons que eles emitem são altos. Você sabe, Marcos.

— Nesse caso, o tempo é nossa melhor ferramenta. Considerando isso, espero que saibam que
ele desceu.

Cecília olhou rápida para cima, serrilhando seus olhos e apanhou sua bolsa às pressas, correndo
rumo a multidão e andando o mais depressa possível, mas com cautela para não chamar atenção
dele. Vigiamos o local de cabo rabo, tentando localizar seu par de olhos a mais: Caio. Não
houve sequer um misero sinal dele, só dos Olhos Mortos, então seguimos sem olhar para trás.
A multidão se estendia até além do boteco, mas depois de uma certa parte rua, no seu fim, era
quando a multidão não existia mais. Então esse seria o momento em que seria pura adrenalina
e que contaríamos com Sombra, mas um passo de cada. Isso seria preocupação para mais tarde,
agora nosso foco em atravessar essa quantidade absurda de mortos. Espíritos andarilhos ou sei
lá o que. Percorremos dentro os empurrões, os tumultos finalmente chegamos onde queríamos.
Naquele momento, nos separamos. Cecília ficou comigo e sombra escolheu um caminho que
iria nos acobertar melhor. Olhamos um para o outro, acenamos com a cabeça sinalizando nossa
prontidão. Assim que chegamos no final da rua, corremos depressa. Fiquei na frente para guiar
melhor o caminho. Avistamos alguns andarilhos pelo caminho indo em direção de onde
estávamos fugindo. Usamos todo o tempo a nosso favor, não desperdiçamos um milésimo
sequer e até contávamos com o alerta que daríamos. Ao alcançarmos um local mais inóspito,
sentimos a vibração como se estivéssemos sendo sondados. Quando avançamos mais um pouco,
escutamos um grito agudo ecoar por todo aquele quarteirão, e foi nesse momento que tudo
começou!

“Você e seu amigo estão mortos, tomou a decisão certa quando veio falar comigo e se unir a
mim, garoto. Cecília está usando vocês para realizar uma tarefa absurda, que é viver no mundo
dos vivos sem passar para triagem dos mortos. Posso dar o detalhe de como tudo aconteceu
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

depois, mas saiba que tudo isso tá acontecendo porque estão nadando contra a maré. Graças à
ela, mas tive culpa também”
Essas palavras foram breves, mas fazia sentido. Não sentia fome, os ferimentos que Marcos e
Cecília eram gravíssimos, e de repente estavam bem. Celular nunca descarregou, não senti sede,
NADA. Tudo que aparecia, como bens materiais ou coisas de valores sentimentais, não passava
de coisa da mente. Era o resquício de vida que ainda tem nela. O mais estranho era Victor e
Cecília, mais tarde ele explicou sobre seu trabalho para equilibrar o mundo dos mortos e que
ela foi só uma maça podre que fez ele acreditar na possibilidade de viver o que não pôde. Não
entrou em detalhes, mas isso bastou para compreender a situação. Não foram meias-palavras
como aquelazinha, dessa vez tinha direção, uma explicação. Enquanto conversávamos, a
criatura chegou ensopada com um odor terrível, e babando ainda mais, e como única forma de
limpar a sujeira de seu rosto eram os vestígios de lágrimas que estavam caindo. Victor olhou
para ela com desdém e questionou:
— Como foi lá? Trouxe novidades? Você está horrível.

A criatura só emitiu alguns sons e entrou em prantos, Victor franziu a testa enquanto lubrificava
seus lábios com a língua, e retrucou de forma impaciente:
— Tá bom, tá bom! Suma daqui, está me atrapalhando. Fez o que pode, pelo menos. Vá se
limpar.

— O que houve? — Minha curiosidade foi maior, não aguentei um segundo sequer e nem
hesitei em perguntar. Estava preocupado com meu amigo ainda, e com o mundo.

— Bom — Victor se levantou, foi até uma janelinha do casebre que estávamos, com
iluminações defasadas pelo local, repleto de lampião — seu amigo foi pego pelo ataque, mas a
pessoa que eu realmente quis conseguiu fugir com um ser misterioso. É um dos que caço,
provável.

— Tá dizendo que Marcos foi acertado? Ele morreu? — Questionei desesperado, exigindo sua
posição de imediato, enquanto me dirigia até ele.

— Talvez, depende dele. Não foi conforme o planejado, mas reconheço meu erro. A criatura
não agiu conforme o plano. O foco era Cecília, ou os dois, mas essa 3ª pessoa atrasou um pouco.

— Temos um acordo!
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— E EU SEI! — anunciou Victor bradando, domado de raiva, por questionar sua conduta, mas
logo reparou sua postura e prosseguiu: não era minha intenção ferir seu amigo e nosso acordo.
Sou integro nesse quesito, mas saiba que farei o necessário para impedir eles, e quero que faça
o mesmo. O que sei agora pode nos deixar um pouco mais na defensiva, pelo menos, é o que
eles acreditarão.

— Desculpa, não quis ofender.

Victor deu de ombros, fitou-me e deu continuidade a sua fala:


— Concentre-se, o que estou a dizer é importante. O Caçador afirmou que estavam em busca
de suprimentos. Eles estavam violando muito antes a passagem entre o mundo dos mortos e
vivos, e isso quer dizer que estão ainda mais preparados. Então temos uma força ainda mais
bruta para interrompê-los que pode prejudicar seu amigo, se ele acreditar que morreu. Mas se
você agir da forma correta, poderá salvá-lo.

— Então iremos atacá-los?

— Não... Eles atacarão. Cecília tem armas para nos combater, então ela acredita que pode
realizar uma investida agora. Então essa será uma batalha quase decisiva.

— Como saberemos onde eles estão?

— Eles estão confiantes, então não terá mistério. Quando for a hora, só agiremos e deduziremos
seus passos. Tudo que deve saber é que ela tentará encontrar-me a qualquer custo e entrar na
minha mente.

— Isso é possível então?

— Sim, aqui sim. O que tenho guardado é muito valioso. Por isso conto com sua ajuda para
caso haja um imprevisto.

— Como saberei como ajudar?

— Não deve deixá-la tocar minha cabeça, não importa o que aconteça. Posso garantir que seu
amigo fique incapacito de lutar, assim como quero garantia que você saberá como agir na hora.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Imagine um cenário do qual ela consiga me derrubar e isolar meu corpo com um selo. Somente
você poderá ultrapassar e interromper o ritual, antes que ela consiga o que quer. Porém,
imaginei o cenário do qual não posso contar com você também.

Fiquei ofendido pela forma que ele questionou minhas eficácias, franzi a testa enquanto
encarava o chão e retruquei firma:

— Não irei desapontá-lo, não precisa se preocupar.

— Não encare isso como uma ofensa. Entenda que essa possível situação requer muito cuidado.
Não há tempo para desqualificar quaisquer possibilidades. Se programar é o melhor, se tratando
da gravidade.

Fiquei emudecido pelo sermão e concordei do mesmo jeito. Não acrescentei nada mais, apenas
mergulhei em suas informações.

Depois daquele momento, fiquei reflexivo e aceitei meu desfecho, mas quis ajudar até onde
estava meu alcance. Ele me treinou o suficiente, só com algumas coisas para lutar, rastrear e se
proteger. Enquanto aguardava seu retorno no Seteálem, praticava algumas coisas para distrair
minha ansiedade para quando fosse o momento. De repente, no casebre que estávamos, Victor
abre às pressas a porta e brada:

— Vamos, É AGORA!

— Quê?!

— Eles farão suas investidas agora. Quero que sonde o local onde avançarão, a habilidade de
rastreamento que ensinei não falhará, então saiba agir conforme o tempo de tudo.

— Por que não enfrentou eles quando os viu?

— Não há tempo para isso. Quero que saia daqui para que minha deixa flua. Pode ser?

Fiquei com um pé atrás, mas não deveria desperdiçar o tempo. Agora cada segundo contava.
Apenas me retirei e aguardei do lado de fora. Enquanto estava ali, muitos espíritos escurecidos
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estavam a caminho da casa que Victor estava, com tumulto, mas sem empurrar. Era um grupo
imenso, uma hora que se dirigia até lá. Demorou alguns minutos até cessarem suas vindas, mas
quando acabou, escutei um grasno alto vindo de cima. Era um pássaro enorme, preto e revestido
com as trevas! Alguns caiam dela, mas não era o suficiente para desmanchar o pássaro. Victor
voou até o Norte, e eu corri para onde ele ia, mas sua velocidade era absurda, então acompanhei
como podia. Isso ele poderia avisar, ao menos. Como que eu estaria ciente de algo desse porte?
Não tenho velocidade para alcançá-lo, nem atalho.

Assim segui o sentimento coordenava a mim, senão a todos, o sentimento do vazio, o abismo
que ninguém era capaz de sair. As trevas que jamais espreitariam a luz. Segui os vestígios com
a técnica que ele ensinou e, logo depois, lá avistei ele sofrendo ataques em cima. Fiquei confuso
e perplexo. Como algo assim pode ser alcançado? Reconheci aquele brilho, mas não a caligem
que ergueu acima do pássaro, como se fosse um esforço para voar ou uma espécie de impulso
para pegá-lo. Ainda coberto pelas sombras que aos poucos esvaneciam, identifiquei Cecília de
longe com sua pedra do sol. O grasno de dor do pássaro me deixou aflito, mas estava atônito
ainda e congelei, mas suas palavras para minha iniciativa foram cruciais. Assim que Victor
caiu, tentei ultrapassar tranquilamente o motim que por consequência se formou ao escutar ele.
Estava difícil, mas era esse o momento que ele tanto queria. Minha vez de retribuir o favor e
restaurar esse mundo. Aquele vigor, aquele vazio me domaram e deram a podestade que eu
precisava, a calma e a firmeza que necessitei. Caminhei ao centro deles, por conseguinte, avistei
Marcos se rastejando, imóvel e sem forças. Suas condições eram precárias, triste. Pensei até em
ajudá-lo, mas seus olhos se inundaram de ira, como naquele dia que morremos. Parei bem diante
dele e daquela linha, adentrei seus olhos de ignorância que se sentiam traídos, esbanjei minha
capacidade na frente dele e em sua fraqueza. Realizei algo com para que ele reconhecesse o
próprio fim. Depois fui até ela e o deixei lamentar em silêncio sua futilidade e derrota, como
aquele vislumbre que temos, ao passar uma ideia que logo se apaga nos demais afazeres, ou
como a vida diante da morte. Porém, ao avançar mais um pouco, ele buscou forças do que
estava esgotado. Nada do que eu fizesse, seria o suficiente para fazê-lo mudar de ideia, estava
obcecado e pronto para me matar. Mesmo quando o alertei, não serviu de nada. Tive que usar
meu apelo, que foram as criaturas das sombras, para contê-lo e eu poder agir. Quando estava
prestes a fazer meu ilustre trabalho, senti as vibrações e reconheci: Victor se sentiu ameaçado
suficiente para acabar com tudo agora e nos arrastar para o desespero. As ondas estavam a
caminho, agora era questão de sorte para saber se isso teria nos salvados ou não. Ele destacou
o quanto é necessário lidar com Cecília e impedir que conseguisse os livros. Pois, daria
continuidade a uma batalha mais sangrenta, que correria contra o tempo e o destino do mundo,
do Cosmos.

Não lembro de nada quando a onda me atingiu, talvez não haja o que se recordar. Sei que sumi
com um clarão, um flash. Quando me dei conta, não era mais Seteálem. Lá estava Victor
ofegante, as veias enegrecidas e saltando. Ele reclamava algumas vezes de dor, se contorcia,
mas tentava se manter firme. Seus olhos estavam escuros e sua boca cuspia algo preto, estava
mais pálido que o rápido feixe que apareceu. Seja o que for, mas o que tinha naquelas veias
estava longe de ser sangue. Poderia ser qualquer coisa como trevas, forças obscuras que regiam
aquele o mundo, mas aquilo sinalizava algo, principalmente quando ele sentia dor ou estava
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com raiva. Victor estava machucado, mas não pude perder tempo para perguntar a ele sobre os
imprevistos de nosso plano e isentar de qualquer culpa:

— Sei que está bem ferido mesmo, mas tudo que aconteceu não imaginei que fosse possível.
Começando pelo pássaro, e perguntando se ela fracassou?

Victor ainda um pouco ofegante, secou sua boca suja e fitou-me dizendo com sua voz arrastada
de desgosto pelo que iria pronunciar:

— Ela conseguiu recuperar o caderno, mas não levou o mais importante: o Grimório dos
Mundos. Caí em uma pequena armadilha e fui forçado escolher entre um e outro, ela obteve
triunfo e obteve o livreto, que não tem nada da magnitude do grimório. O livreto tem poucos
segredos. Não é um problema menor, mas a gravidade não se equipara caso ela capturasse o
grimório.

De forma breve, fiquei em silêncio e disse, empolgado, pronto para detalhar meu relatório com
base no que vi. Por mais que estivéssemos com um problema, acreditava veementemente que
aquilo que eu vi e lidei poderia nos preparar para recuperar o que perdemos.

— Sei que talvez seja nada, ou tudo, mas notei alguns imprevistos enquanto estava sendo
atacado. Primeiro que não imaginei que alguém seria capaz de te alcançar, segundo; Marcos
estava debilitado o suficiente para deixar eu interferir no ritual da Cecília, mas ele conseguiu
alguma força sobrenatural para lutar. Não deu a mínima para meu aviso, só fez tudo com
impulso.

— E o que se elevou tanto a ponto de me derrubar?

— Uma sombra enorme, meio que isso deu impulso necessário a ela. Não sei o que era, mas
talvez a 3.ª pessoa seja mais problemática do que podíamos imaginar. Essas variantes
impossibilitaram nosso triunfo, ou cheguei atrasado.

— Você está certo, foram variantes que temi. Imaginei essa coisa absurda dela ter algum
reforço, mas esqueci nesse momento e nem acreditei que seria algo que combatemos juntos.
Você agiu bem, mas ela conseguiu estar um passo a nossa frente.
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Victor continuou sentado, encarando o chão digerindo tudo que ocorreu, as informações
enquanto ainda murmurava de dor. Depois aos poucos se reergueu, com um pouco de
dificuldade ainda, e aproveitei para dizer:
— Sabendo disso, então podemos lutar melhor? O 3.º elemento aparece em momentos dos quais
reconhecerá que não podem lidar, como a questão do voou. Marcos conseguiu me atrasar por...!
— Victor me interrompeu, mas com sua voz mais calma, suave sem demonstrar preocupação.
Em poucos minutos seu autocontrole voltou. Só fez olhar para trás e dizer:

— Seu amigo está prestes a descobrir que esse mundo é mais maleável do que parece. Ele pode
ligar os pontos, conhecer e usar isso contra nós. A sombra está acobertando-os, mas ainda temos
força e estratégia. Quanto mais retardamos isso, mais temos dificuldades com eles. Não
podemos esperar mais. Será nossa vez de atacar e será a última, o tudo ou nada. Se falharmos...
Falhamos. — respondeu enquanto sorria — Se prepare, Caio, de todas as formas. Essa luta será
devastadora, épica. Procure e encontre suas forças.

— Então Sombra será problema?

— Será um grande problema. Por isso devemos analisar de forma meticulosa. Um ser capaz de
profanar esse mundo dessa forma não é um qualquer. Seja qual for a estratégia deles, estou
tentando garantir um passo a frente. Teremos distrações para perca tempo e ajudar na
locomoção deles. Sei qual será a última parada deles.

Victor fez um olhar assustador, junto com seu sorriso, e voltou a andar. Me levantei também e
o segui para perguntar mais, só que optei pelo silêncio. Tudo que podemos fazer era, de fato,
analisar a situação no momento. A última parada? Deles ou de nós, olhos mortos?

Esse era o momento que todos aguardávamos ansiosos. Estávamos diante do fim e do começo,
bem aqui. Conter todas as desavenças, conquistar depois de uma árdua luta a liberdade, a vida,
era um preço imensurável. Cada passo que dávamos, meu coração pulava. Em certos períodos,
até apagava que grito que sinalizava para Victor, e até despreza seu aparecimento. Estava
confiante, pela primeira vez, que tudo fosse ocorrer sem falhas. E, no fundo, talvez até o próprio
“Olhos Mortos” aceitou que não há nada mais em seu alcance, considerando que descobrimos
algo igual a ele.

Quando recapturei a cena e olhei ao meu redor, vi as criaturas se aproximarem e uma velocidade
inacreditável, mas ainda éramos mais rápidos, só não podíamos perder o ritmo. Sombra nos
acompanhava para que isso não acontecesse, e foi quando tive convicção do nosso poder, e o
luxo de não deixar até o tempo a nosso favor. A situação estava favorável de forma exacerbada.
Sombra percebia os ataques, previa em questão de milésimo e despejava seu veneno misterioso
que trazia um comportamento diferente. Os seres das trevas, os mortos em agonia, não ficavam
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mais sem propósito, desesperados pela liberdade correndo atrás de nós. Eles se infectaram com
algo que jamais sentiram. Assim que pularam de surpresa, um deles que estava em uma casa
próxima de nós, avançou de repente, mas Sombra foi capaz de nos defender. Deferiu um golpe
fortíssimo se transformando em algo de 4 patas para melhor locomoção, mas depois
desapareceu com a penumbra do local. O seu alvo se levantou, gritou tão alto, mas tanto! Que
escutei o eco dispersa por todo aquele universo!

O monstro entrou em frenesi e começou agredir os outros, e conforme ele atacava, por serem
“importais”, elas voltam da mesma forma, só que contaminadas, e contagiava os demais. O
efeito fazia com que elas se adaptassem ao adverso modo de sobrevivência, uma fome
insaciável que fazia elas se alimentarem dos mortos em busca de redenção. Não éramos mais
seus alvos, desconsideram em totalidade o fato de corrermos e só atacam os demais do próprio
bando. Eu e Cecília, enquanto estávamos caminhando, olhamos um para o outro, banhado com
o ar da nossa fé e esperança, ambos com sorrisos presunçosos, sem trocar uma palavra. Mesmo
com ausência do que falar, a mensagem era evidente e clara “obtivemos sucesso”.

A adrenalina estava tão enorme, que nem percebi que estávamos na metade do caminho e ainda
tranquilos. Foi uma longa contagem regressiva, meus sonhos preencheram o lugar por inteiro
junto com meu alívio. Coloquei na minha cabeça que era questão de tempo até dar o fim nisso,
realizar nossa última parada. De repente, senti a energia de quem transbordou, de forma
simbólica, a saudade. Desacreditei que darias as caras e que aceitou e mandou seus lacaios só
para nos atrasar, mas o infeliz não esteve, e nem queria aceitar nosso desfecho. Sua energia
emanava seu poderio avassalador, sua velocidade era quase impossível de enxergar. Era ele...
Os Olhos Mortos com fúria total. Cecília me puxou e sinalizou dizendo, em silêncio, “vai dar
tudo certo, não desfoca” e continuou correndo. Parei de olhar para trás algumas vezes e só segui
em frente com todos aqueles atormentados ainda na minha cola. Sombra cessou também, nem
notei e tampouco tinha noção da sua localização, mas o arrepio da presença dele crescia mais.
Através disso, reconheci que ele estava se aproximando mais depressa, a um passo de mim,
talvez? Por cima, por baixo, ou os lados! Aquele desconforto aumentava junto com seu grito.
Prestes a absorver o impacto de suas garras da ira, da morte e sofrimento, notei um vulto se
movimentar como se eu tivesse piscado, e um estrondo de vários escombros caindo. Olhei
curioso para trás e era Victor arremessado com toda brutalidade em uma casa próxima. Sombra
usou com tanta euforia sua força que fez, de forma cômica, esquecer que já estava morto, e não
parou por aí! Depois uma imensa fumaça escura subiu e atingiu o chão como um meteoro,
destruindo quase tudo ao redor do impacto. Antes de esvanecer mais uma vez, sombra atacou
alguns lacaios de novo, e sumiu. Victor não aparecia em nenhum dos lados, mas sabia que caso
ele desse as caras, Sombra não teria piedade e nem dúvida para exercer sua força que iria
trucidá-lo. Voltamos a correr, mais próximos do nosso destino, mas um imenso barulho voltou
dos escombros, era algo que nos surpreendeu, até mesmo com o Sombra: O Corvo. Grasnou
intensa e estridentemente, e preparou uma investida em nossa localidade. Ele, utilizou o motim
que criou e se revestiu, assim como os olhos mortos, em uma grande cobra rápido, que vinha
em nossa direção. Era difícil distinguir quem chegaria primeiro, os “Olhos Mortos” estava mais
próximo, mas a serpente alongava-se de forma ágil e causando alvoroço, levando tudo que
estava no seu caminho. Quando ele estava prestes a nos pegar, a cobra, de forma repentina,
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ergueu-se em formato de S e pulou alto na direção de Victor, mordendo uma de suas patas. Ele
não soltou, e nem faria isso, mas suas garras eram revestidas com aquelas criaturas das trevas.
Logo ele se recuperou e soltou alguns de seus fiéis súditos em cima de nós, mas ele também
estava guardado com seus novos brinquedinhos roubado do infeliz. Ele tentou mirar bem na
cabeça da nossa serpente, mas ele foi mais célere e perspicaz. Saiu sem dificuldade de sua
investida e ainda o golpeou com outro bote. A luta estava tão tensa, e perturbadora, que esqueci
que não estávamos mais na triagem. Agora era Seteálem, o forte do infeliz, que parece anulado
e contido. Victor pareceu reconhecer que ele estava nos guardando muito bem, então usou mais
uma de suas cartadas: a voz que cochichava em nossas mentes “afoguem-se”. Cecília gritou
“não”, me senti desamparado só de pensar que seriamos impedidos de novo, por causa de uma
força que não poderíamos lidar. Segurei a mão de dela, apressei ainda mais meus passos
enquanto o chão tremia e as ondas se aproximavam. Gritei mais alto que toda aquela barulheira,
dizendo “quase lá!”, usando meu corpo e espírito no meu máximo, mas Sombra, com toda sua
agilidade, nos devorou.

Fiquei assustado, não cogitei em hipótese alguma que seria nosso fim, mesmo não protegido
pelo selo. O interior era escuro, um pouco úmido, mas não estava inundado, o que quer dizer
que nos pegou bem a tempo de toda aquela água nos pegar. Cecília revirou algumas coisas em
sua bolsa, depois de tanto mexer, tirou um frasco. O pó da pedra do sol tinha uma luz forte e
logo se alastrou por todas aquelas “entranhas”. Inspecionando ainda mais seu interior, tudo do
seu corpo era revestido com aquelas criaturas que ele transformou, repleto de sombra e nada
mais. Cecília chamou pelo seu nome, depois logo ele apareceu e disse, com um sorriso, se
divertindo com tudo:

— Está alagado, ele não está a fim de entregar fácil o prêmio pela luta de vocês, não é?

— Não me diga — retrucou Cecília com seu ar de sarcasmo — isso não será o suficiente. Logo
essa inundação vai dissipar, assim como foi com a neblina. Depois que Marcos me contou o
que viu, prova que isso é efêmero. — Ajudaria se descobríssemos onde está a criatura e atacar.

— Posso rastrear, caso queira.

— É uma armadilha, Sombra.

— Não, ele quer que pensemos assim. Ele terá que fazer uma escolha, entre repor as próprias
forças ou proteger a criatura. Os dois será perda de tempo.

Cecília refletiu um pouco hesitante, mas por conseguinte concordou com sua ideia louca e disse
que teria um plano, caso algo saísse dos eixos. Ele detectou intrépido e nadou, impulsionado
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subindo para onde ele estava. Apenas disse para nos segurarmos e nos prepararmos. Assim que
ele abriu a boca para morder, junto a um salto, o fluxo daquela poça estranha adentrou um
pouco, mas logo foi expelida. O ser que causava aquilo estava bem em nossos pés. Corri para
segurar e garantir que ela não agisse e exclamei “agora”, para ela despejar o pó nela. Ela
relutava, mas depois imobilizei com pernas e braços, depois minhas mãos para que ela digerisse
o pó, sem machucar Sombra — se é que aquilo machucava. Ela derramou e o monstro se
contorceu sem parar, emitindo um som de dor estranho, de pura agonia, gritando também
“afoguem-se”, depois desapareceu. Sentimos o nível da água baixar, assim como ele se
movimentar, como se estivesse aterrissando, mas logo veio um impacto forte por cima, e a
mesma energia que soube distinguir quem era. Golpeou algumas vezes, se aproveitando da
desvantagem de estarmos na água. Ele tentou voltar para o fundo para que os “Olhos Mortos”
não pudesse mais deferir outro golpe, mas o infeliz causou um rasgo e pegou Cecília. Gritei seu
nome de imediato e para que Sombra atacasse, mas o buraco precisava ser reparado para que
ele ganhasse seu equilíbrio de novo. Fiquei aflito e pensei no que eu poderia fazer, mas antes
que chegasse a algum lugar, escutei o mesmo grasno de dor do pássaro. Ele, com intuito de me
acalmar, anunciou de forma precisa:

— Ela está preparada, não se preocupe. Ela derramou o pó nele e agora está caindo. Vou nada
o mais rápido possível, antes que o nível da água caia. Permaneça inabalável, pois ela precisa.

Permaneci em silêncio, mordi meus lábios e disse “sim”. Seu corpo regenerou o suficiente para
que ele agisse, conseguisse impulso para dar um bote e pegar ela, mas Victor usou toda sua
força restante para se arremessar contra a cabeça do (Sombra). Ele capturou Cecília, mas logo
foi desequilibrado. A água estava baixando depressa, tirando o risco de ficamos submersos até
nos afogarmos. Assim que Sombra caiu de forma abrupta, afundando sua cabeça no que tinha
daquele pequeno mar, corri para segurar Cecília e aguardar o perigo passar. O tempo foi
insuficiente e afundamos por alguns minutos e tivemos que esperar a água secar. Meus olhos
ficarão um pouco cansados, não consegui mais conter minha respiração e estava quase
apagando, mas devia entender que era uma ilusão. Minha mente se conformou com a realidade,
desencadeou esse efeito nesse mundo, e sair dessa ideia era difícil, tendo em conta que lutava
para viver de fato isso, só que em outro mundo. Ao desaparecer aquela poça imunda, de corpos
e odor de podridão, me sentindo exausto, localizei Sombra retomando sua forma natural. Estava
fraco devido a luta e o dano, quando estava de pé, se apoiou em destroço qualquer enquanto
nos olhava e buscava ameaça iminente pelo lugar. Nos meus braços, estava ela, a vontade e
toda encolhida desejando em momento algum trazer o brilho do seu olhar para mim. Balance-
a algumas vezes e disse, com aquele sorriso triunfante:

— Estamos diante da nossa vitória, foi só um susto.

Ela trouxe a luz dos seus olhos esverdeados, sorriu para mim e me abraçou forte e aliviada, mas
não podíamos nos descuidar. Ele ainda estava por perto e a qualquer momento, nos
surpreenderia. Me levantei com calma, um pouco desequilibrado e auxiliando ela. Sombra
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sorriu e assim que dirigiu sua palavra, algo rápido aproveitou-se de sua baixa guarda e arrancou
suas pernas. Um ataque fatal para que não pudesse nos acobertar. Gritei para Cecília “vamos!”,
indo em direção da parada, mesmo que em passos sofridos e carregados. Nos arrastávamos,
contando cada passo, tentando se desvencilhar da herança que o outro mundo deixou na minha
mente para correr. Entretanto, prestes a conseguir isso e ganhar mais movimento, a frente estava
ele... Com seus Olhos Mortos, apenas esperando. Caio, com seu olhar deprimido e sereno,
paciente. Ele parou bem no meio da rua suja, com vários destroços e disse, com toda arrogância:

— Acabou, Marcos. Esse é o fim. Desista dessa luta em vão com o destino fadado. Sei que é
difícil aceitar como as coisas se apagam. Parece o término de tudo, mas é só o começo. Aceite,
Marcos... Fim da linha, meu amigo.

Olhei quase de relance para ele, mas voltei minha atenção para trás, tentando suplicar através
de um sinal desesperado, para que Sombra viesse. Ele estava se recuperando devagar, e apenas
rastejando. E em passos calmo, trazendo o ar e glamour da sua conquista, que pairava envolta
de nós e dos demais espíritos, vinha o desgraçado com aquele sorriso amaldiçoado e prepotente.
Estava quase cantarolando, e se recuperando por completo. Suas roupas estavam sujas
enxarcadas de sangue, com alguns rasgos. Seu rumo era até nós, mas seus olhos desviavam-se
para Sombra, quase o tempo todo e ainda mais sobrecarregado de raiva. Victor respirou fundo,
continuou caminhando do meu jeito, até alcançar ele. Durante o percurso, anunciou de forma
ávida para chegar onde queria, e estar prestes terminar o que nunca deveria ter começado:
— Sabe, aqui, ou até certo ponto não imaginei até onde vocês poderiam surpreender. Esse foi
o QUASE, estavam próximos. Você cometeu um erro grave, Cecília — Victor flexionou seus
joelhos onde estava Sombra rastejando, olhando com desprezo e pena por ele ainda lutar —
Você anotou o que eu precisei saber no seu caderno. Sabia que era questão de tempo até você
tomar uma iniciativa do gênero. Talvez tuuuudo, que fizeram depois daquele evento não passou
de um verdadeiro show de marionetes, como os que vi na minha cidade.
Os “Olhos Mortos” cravou suas garras encoberta de trevas e sofrimento, empalou sem piedade
próximo a nuca do Sombra enquanto pude ver seus olhos mudarem. Ele continuou a dizer:
— Deve ser chato saber que estavam presos em círculo. Todas as suas ideias não tinham
extremidades, não passava de um raio para um lado ou outro, dentro da mesma área. Nada era
como um ciclo, estavam aprisionados, como ainda estão. Vocês só tornaram as coisas menos
tediosa para mim. As lutas, os selos, as maldições e os esconderijos. Chega de jogos... Chega
de lutar por algo que não podem alcançar.

— Você não tem mais autoridade sobre mim, Victor... Nunca teve. — Retruquei coberto de
amargura, enquanto encarava o chão. Falando com intensidade suficiente para ele escutar.

— Que sonzinho insolente é esse?! Que desafiador, que voraz! Não disse? Vocês sabem me
surpreender. — Redarguiu ele desdenhando de mim e da minha ousadia sobre sua autoridade
inexistente, fraca e mais inóspita que minha vontade de ficar aqui. Ele ainda prosseguiu: —
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Você lembra como veio parar aqui, não é? — seu sorrisinho me tirava do sério, me despertava
a imensa vontade de não somente matá-lo, e sim torturar. Até quando ele implorasse, não pararia
e encontraria outros meios de fazê-lo sofrer.

Victor gritou com uma voz endemoniada que ecoou por todo lado, erguendo e empalando
Sombra com suas garras e braço. Ele gritava de dor e se debatia sem parar, utilizando suas
técnicas que agora estavam ineficazes. De forma desesperada, ele ainda tentava realizar algo
como conjuração para atrair suas criaturas convertidas, mas nada. E com seu jeito sádico, Victor
disse:

— Você profanou um mundo do qual não era bem-vindo, deu o que não devia a meus
condenados. Não obstante, estava ajudando ambos a quebrar a lei que rege o Cosmos. Sua
magia, sua força são inúteis agora.

Ele realizou seu último suspiro enquanto tentava falar alguma coisa para respondê-lo, mas por
conseguinte feneceu. Ceder a seja lá o que for, estava mais viável? Agora? Não tinha nada que
pudéssemos fazer, senão escutar sua voz irritante e sua “dança” sobre nossa derrota. Ele teve o
término do qual jamais contaria, nunca aceitarei por alguém covarde não entregar um duelo
digno. Enquanto nadava em meus pensamentos, um rápido movimento desceu ao chão,
acertando com muito impulso. Era ele transmutando seu corpo ao solo e arremessando a cabeça
de dele com muita intensidade contra o concreto. Logo foi retribuído com a rapidez do “Olhos
Mortos” que o golpeou diversas vezes, mas isso não foi o fim. E pelo visto, estava longe! A
luta dos dois estava árdua, eram golpes, contragolpes e poderes. O todo movimento emanava
uma energia adversa aquele lugar, era algo diferente. Notei também que ele deixava, de forma
proposital, sua guarda total aberta, recebendo em cheio muitos ataques: desde mágicos a ataques
“simples”. Cada passo estava, de forma aparente, calculado, não era desleixo dele receber
qualquer golpe, e ele estava ficando maior, seu aspecto estava mudado, robusto. Até que em
um deslize, talvez por cansaço ou algo que passou batido da sua percepção de Victor. Já que
exigia sua energia e atenção, mas isso foi afetado quando enxergou a estranheza da facilidade
em golpear. Um golpe forte, bastante preciso no peito dos “Olhos Mortos”, cravando suas mãos
nele. Victor apenas segurou e atrasava sua força e a intenção de abri-lo ao meio, isso mesmo!
Sombra estava prestes matar bem em nossos olhos esse infeliz, que agora gritava de dor, dando
um fim naquela sua prepotência toda que dantes reinava. Sua força era somente em manter suas
garras dentro das mãos de dele para que ele fosse enfraquecido, mas óbvio que isso não durou
por muito tempo. Estava prestes a ser protegido por Caio, que logo foi interrompido por Cecília
ao arremessar uma adaga esbelta e diferente, que o acertou bem no estomago. Ele caiu no chão
se contorcendo de dor, mas piorou ao tentar remover. Cecília apenas disse “VAMOS!”,
entretanto, Caio ergue-se de novo, mesmo com a adaga presa nele e dirigiu-se depressa até o
combate. Quando ia falar alguma coisa, ela só disse “esse é o nosso tempo, Sombra dará um
jeito. VAMOS!”, então engoli a seco minhas palavras e só corri para onde estava estacionada
o ônibus. Abandonando, Caio, Victor e Sombra, que estavam em uma luta sangrenta com berros
e estrondos mais intensos. Virei quando escutei o gritar dele dentre as reclamações de agonia,
mas ele estava maior, crescendo sem parar. Meu ex melhor amigo estava em cima dele, no seu
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pescoço exercendo força para arrancar sua cabeça. Victor ainda estava anulando sua fúria,
contendo com que restava, mas foi perdendo seu equilíbrio por causa da estatura do (Sombra).
Não contei vitória dessa vez, meu foco era o ônibus que estava logo lá. A liberdade estava
diante de nossos olhos, e não era decepcionante. Pelo fato de lidar com incerteza pelo que
ocorreu antes, mesmo que breve, os e se faziam nos remediar e agir melhor diante da
adversidade. Certo; está na nossa frente, só, é aqui que acordo e olho para o relógio e penso
“droga, estou atrasado para o trabalho”. Mostraria nosso passe e seguiríamos adiante, mas... A
ideia de um raio dentro da mesma área, que era o círculo, essa migalha dentro do meu anseio
de pôr um fim nisso e acordar nas nossas lindas vidas, fez eu olhar para trás de novo.

Os infortúnios devem ser um raio fora da circunferência, uma falha da qual só pode ser apagada
para que tudo retorne aos eixos. Uma linha que não tem alicerce, nada, só apareceu e
desgovernou um sistema que permite que tudo coexista sem que nada desequilibre. E olhar para
Sombra, fez eu ter a ideia de infortúnio.

Caio desceu em milésimo, cortou bem na região posterior do joelho, a poplítea, e foi de ambas
as pernas. O seu peso foi seu pior inimigo e o fez ceder, deixando no chão. Victor retirou suas
mãos e segurou sua cabeça fitando seus olhos, com os mesmos lumes repleto de morte e sôfrego.
Dessa vez, emitiram uma luz intensa que era coberta por um lençol que se dispersou das suas
costas, uma grande escuridão que duelava contraluz e o guardava. Parecia asas, até chamaria
de lindo. Enquanto emitia essa luz bem nos olhos do (Sombra) através da própria visão, trazia
consigo gritos estridentes e misturados entre agudos e grave. Vozes distorcidas das quais não
conseguia distinguir, nem entender. Depois, as vozes e tudo foi cessando enquanto o som de
“shhhhhh” se intensificava, até que chegou em um limite que, desapareceu com os outros
fatores daquele estranho fenômeno. Sombra apenas ficou parado, agora com a boca costurada
como os demais espíritos que emergiam de onde estavam. Corremos sem parar, mesmo que
nossas pernas quisessem ceder, mesmo que nossos espíritos permanecessem ali e fosse
capturado. Nossas mentes atingiriam e nos guiariam para onde quiséssemos. Apostamos nossas
cabeças que hoje era o dia que seríamos livres, como quando me senti nas alturas, preso aquelas
garras. Estava morrendo, mas olhar do alto de tudo, e relembrar desse detalhe, era até bom e
cômico. Seja qual fosse o momento, nunca soubemos de fato qual seria o desfecho. De mãos
dadas, unidos, focados como bravos guerreiros em busca da liberdade rumo a nossa última
parada. Eu o senti, ó deus... Senti aquele calafrio da sua presença intrépida e cheia de fúria em
mim, a um passo. Minhas lágrimas começaram a despencar e minha visão desejou se esvair. E
pestanejar tampouco, nada mais! Era só chegar, só mais alguns passos. Céus... Era tudo no ritmo
do meu coração imaginário, da minha respiração irritantemente ofegante. Sua presença estava
bem perto, não pretendi me perturbar mais repassando o filme de suas unhas no (Sombra). Mas
crescia de forma constante, em uma velocidade do qual seria decisiva e fecharia nosso destino
pelo resto de nossas vidas. Me desliguei como minha mente queria, e ao único som que escutei,
como a bela harmonia de uma música do qual entra na cabeça e não sai mais. Era doce,
confortante e aliviante deixar aquilo me preencher e fazer com que eu sucumba a tamanho
prazer de me agraciar em momento tão difícil. Não seria nada mais que meu amor, Cecília,
sussurrando entre os ventos com sua voz rouca e marcante que inundava como aquela... Quê?
Sim... Algum mar. Era prazeroso. Ela disse “chegamos, estamos em casa. Fique aconchegado
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

em meu embalo, meu amor, a viagem será longa como a fome de te desejar mais como nunca
pude. Afetos do quais não trocamos. Abra os olhos..., ou durma, mas saiba que estará comigo,
e estamos a caminho de onde sempre queríamos estar o tempo todo. O que acabou de começar”

Fiquei em silêncio, não me atrevi de me desfazer esse luxo. Senti a suave movimentação do
local, o clima longe de toda aquela zona de conflito perpétua. Estava em casa de vez?
Relaxando? Dormindo ainda após um dia cansativo de trabalho, e ela sabia, e por isso quer que
eu tenha amor a meu limite. A mente é nosso principal alicerce para quaisquer atividades, e as
mais complexas e elaboradas precisam disso. Não se atrevam a se odiar a tal ponto de deixar de
jogar fora até a oportunidade de caçoar dos ideais de destino, Cosmos e afins. O mundo está
quebrado, por que você tem que ser a peça que ajusta tudo? Por que não ir contra tudo por você.
Quer saber? Citei o círculo e a reta que não devia estar lá. “Os infortúnios devem ser um raio
fora da circunferência, uma falha da qual só pode ser apagada para que tudo retorne aos eixos.
Uma linha que não tem alicerce, nada, só apareceu e desgovernou um sistema que permite que
tudo coexista sem que nada desequilibre. E olhar para Sombra, fez eu ter o pensamento do que
é infortúnio”. Foi o que eu afirmei, e nesse caso, daí tive a ideia dessa linha. Pensar em nós,
complementou a ideia do imprevisto, e do raio. Chegar a esses inúmeros devaneios, se dá ao
fato de estar pelo qual lutamos... Aqui. Enquanto corri, ainda lembrei da voz das sombras que
falou quase sussurrando, entrando na minha mente questionando:

— Você lembra... Não é? Ah! Claro que você lembra, como esquecer?

Era para ser só um passeio que afogaria todos os ressentimentos de raiva, dúvida ou decepção.
Seria melhor se entender separado daquele sentimento desgostoso. Conversar sem ser abalado
por essas coisas retrógradas e instáveis, tão primitivo que nos assola. Isso sim, nos ceifa, nos
aterra mais que os caixões a sete palmos, os mortos têm luxo e mal sabem por que não há mais
atividade cerebral. Espairecer nunca é quando não lidamos com a fonte do problema, e descobrir
isso tarde demais pode mudar seu cenário com o mundo e pessoas. Por acreditarmos que tudo
é frágil, agimos optando pelo pior.

Aaaahhh, sim! Foi naquele dia, ele viajou com seu amiguinho. Você viajou com seu melhor
amigo para Bolton Strid, Inglaterra, tentando aproveitar o melhor que tinha. (A voz se engasgou
no próprio riso, se sufocando com alguma coisa além do respectivo ar, era alguma secreção, ou
coisa do gênero). A viagem contava com tudo, menos com o pior dos desfechos em uma
amizade tão frutífera. Ah!.. Amo narrar desgraças que ocorrem algo que tinha tudo para dar
certo. A esperança esvaindo dos olhos dos outros é sublime. Faltam palavras para preencher tal
grandiosidade, descrever a perfeição daquilo que morre. Esses dois, desde quando decidiriam
isso, Marcos ainda era consumido pela própria ira que tinha contra seu irmão que só queria
cuidar dele. Ele foi internado várias vezes em uma clínica para tratar seus comportamentos
explosivos de uma infância difícil. Ele feriu muitas pessoas para valer, pode apostar! Só porque
lembravam a escuridão que pairava sua casa, a vida sombria da qual não tinha controle e quanto
mais ajeitava, mais se embaraçava na teia de uma aranha que o envenenava. Caio sempre
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tentava mantê-lo nos eixos, e seus surtos de fato diminuíram, mas nunca apagaram o que era de
fato sua natureza. Caio era de família humilde, Marcos era de uma família rica e perturbada. Os
detalhes do que ele já viveu não cabe aqui, não arriscaria amaldiçoar esse livro, tampouco
profanar esse mundo com trivialidade dessas. Entretanto, esse cuidado começou incomodar seu
amigo, e um dia, isso chegou no limite quando envolveu um amor negado, uma paixão da qual
não pôde se deleitar. Isso machucou para valer, e COMO machucou. Que tristura deste rapaz
amargo, que chateação cair na mesma teia da aranha que o envenena todos os dias.

Caio, tão doce, não é? Tão gentil, se preocupou com seu amigo, coisa de rotina. Durante todo
o percurso ele naufragou seus pensamentos sombrios em uma paixão não conquistada, na raiva
e a vontade louca que tinha para ser quem quisesse. Olhou para Marcos que se encontrava
diferente que costuma ser, indagou “tudo bem? Durante a viagem toda você se calou. Costuma
falar mais”. Ele não respondeu seu amigo, apenas pressionava seu punho mais e mais, preso em
suas reflexões angustiadas mais perdidas que o rumo da sua vida amarga. Caio persistiu, ó
coitadinho, questionando “Seus pensamentos estão te assombrando de novo? A gente pode
procurar alguém por aqui, sabe?”, e a resposta ríspida de Marcos foi “estou bem, cuide de você.
Essa viagem não pode ser estragada por causa de meus contratempos, não gosto de desperdiçar
minha vida com trivialidade”. Então se calaram, dando a ideia que não restava mais o que ser
dito, mas tinha tanta coisa que não cabia que naquele curto tempo.

Desceram do avião, com a dúvida e a energia que pairava de preocupação que seu amigo Caio
tinha. Mas todo frio, fazia de conta que não notava. Imbecil, egoísta, mais pobre que ele não
existe. O dinheiro só agravou sua situação, a terapia só trouxe aversão a sua melhora.
Infelizmente, ele se apegou a ser o quem era: um monstro.

Ambos se organizaram, falando pouco, trocando breves palavras que eram informações sobre
o local, onde trilhariam com suas bagagens. Quando tinha alguma pergunta emocional no meio
disso, Marcos dava de ombro e só apagava suas palavras com outras coisas, dizendo “essa
viagem valerá muito a pena. Tem um riacho que devemos conhecer”. Então, seu pobre amigo
ceifado a um trágico destino em ter que conviver com esse estrupício, se compadecia toda vez,
mesmo que aquilo o incomodasse. Intrépido, Caio era ofuscado pelo jeito de Marcos, e muitos
percebiam. Era inconveniente falar disso, bombardeando com inúmeras perguntas sobre a
amizade.

Em uma manhã, Marcos foi o primeiro a se levantar a acordar o amigo com algumas tapas.
Estava bem-humorado dessa vez, trazendo um lindo sorriso que até cativou seu amigo o
suficiente para esquecer o dia anterior. Ele revirava algumas coisas, enquanto falara:

— Hoje será magnífico. Preparamos tudo ontem, não é? Garante que não teremos contratempos
desnecessários, dessa vez?
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— Ah! Sim, dessa vez sim. Não acha que está muito cedo?

— Na vida, nada é cedo demais ou tarde. Apenas existe o nosso tempo, que é agora. Tudo
programado, celular carregado, mochila feita com alguns lanches e é isso. Falta só nosso banho.
Ou quer ficar aí procrastinando?

— Não tem nada a ver com procrastinação.

— Não ligo. Vou primeiro. Não me atrase.

Marcos saiu como um idiota, pressionando o amigo com seu jeito agir baseado só no que ele
queria. Não demorou muito no banho e logo deu a vez para seu queridinho irmão, que logo
ficou incomodado por notar sua mudança e não saber o porquê. Fizeram os preparativos finais,
olharam um para o outro e disseram “É agora”. Saíram do quarto quase saltitando, e quando
falo assim; é que Caio não queria estar conformado com uma situação que ele sabia que tinha
coisa errada. Seu amigo não estava bem, o que ele poderia fazer? Dar as costas e ser dissimulado
como ele? Esse não era caio, o intrépido, com conhecimento fugaz e perspicaz.

Pegaram o táxi que estava a vista, o primeiro, mas o passeio estava mais “leve”, posso assim
dizer. Marcos comentava daquilo, disso sem pausas! Durante o percurso todo falou, e só cessou
quando caminharam tranquilamente pelo bosque. Fotografavam o máximo de coisa que
podiam, na mísera tentativa de aprisionar aquele momento falso de que era perfeito. Estava
longe disso. A viagem foi induzida pelo ressentimento, com a fraca intenção de espairecer e
lidar com os conflitos que ainda existiam. Os passos estavam mais intranquilos, o clima ficava
ainda mais tenso em meio a toda aquela mentira, Caio só ficava mais ansioso, e até a fala de
Marcos passou a incomodar mais. Chegou ao ponto em que ele foi ousado, na frente de um
riacho, parou sua caminhada e de se comunicar com seu amigo. Tentando colocar um basta e
descobrir o que estava acontecendo, questionou:

— Cara... Para. Tem alguma coisa acontecendo, sabe que não vou dizer “eu sinto que é isso”.
Você realmente não está legal, eu conheço você.

Marcos respirou fundo enquanto colocava suas mãos brutas sobre a sobrancelhas franzidas,
encarando o chão. Óbvio que ele não queria, mas também, desejava conversar e desabafar sobre
seu incomodo. Entretanto, foi agressivo e retrucou:
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— Você nunca está satisfeito com nada, tem que estar sob seu controle idiota. Tem que saber,
tem que encaixar tudo nesse seu mundinho farejador de problema. Não acha que esquece o
tempo todo que está esquecendo de viver a própria vida?

— O quê? Marcos, eu te amo, irmão. Estou preocupado com você, só quero ajudar. A viagem
toda mal deu bola sobre o que eu falava. Me senti muito mal, sei que você é o que é e por isso
precisa dar atenção a seu celular. Aliás, trabalha com um pai super rico e exigente.

— Tá vendo? Tenho que ficar no seu controle porque não consegue lidar do jeito com
mudanças, tem que estar tudo igual como ontem. Nessa chatice, perpetuar minhas ações e me
diminuir as rotinas de bem-estar. Tudo porque VOCÊ não consegue ser realista.

— Eu não consigo ser realista? Então vamos lá: você não é alguém sã o suficiente para lidar
com coisas “triviais”, você fala que não consigo viver minha vida sem deixar as coisas no meu
controle. Mas você vive sem “controle” e mal consegue lidar com o mundo. Estou estudando,
estou erguendo minha vida. — Caio ficou magoado, e com raiva e jogou tudo contra seu amigo,
que logo respondeu:

— Sim, ó meu deus! Não tenho dúvida alguma de que você está bem. Então me diga: por que
pediu para ela sair? Por que disse que ela não era para mim e que seria melhor parar, antes que
tudo ficasse mais intenso?

Caio soltou uma gargalhada enquanto dava uma volta, fazendo a mesma expressão do amigo,
colocando as mãos sobre a sobrancelha:

— Ah? Meu deus! Você só pode estar brincando, isso foi há meses, e você deveria agradecer.

— Por interrompeu mais uma vez as experiências que a vida me proporciona?

— Ela é diferente. Você é mais fechado, ela é mais solta. O que você pensa não tem nada a ver
com você e ela se apaixonou pelo pouco que você mostrou? Assim como você. MARCOS!
Acorda, você estava melhorando e isso poderia ser um regresso enorme. Conheço ela e aquilo
ali é um vendaval. Vive em dúvidas, poderiam romper rápido.

— Você só falou ideias. Estava apaixonado, não? Não pôde se conformar que ela prefere seu
melhor amigo bagunçado, do que alguém como você. Isso feriu você?
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

— Quer saber?

— Ah! Sem sombra de dúvidas QUERO!

— Fiz isso sim, por ela, mas não porque estou apaixonado por ela. Você é uma das últimas
pessoas que deve pensar em relacionamento, em paixão. Você é um perigo em potencial até
para seu melhor amigo, Marcos — Disse Caio ainda mais aborrecido, impaciente, colocando
seu dedo no peito do seu amigo e cutucando. Impondo sua autoridade.

— Encosta assim em mim de novo e nada acabará bem. Fale assim de novo comigo, e com
certeza vou mostrar como pessoas como você deve estar.

— Vai fazer como fez com as pessoas que o questionaram?

Marcos deferiu uma cabeçada bem no nariz do seu amigo, depois catou uma pedra próxima
para acertá-lo. Entretanto, ele virou bem rápido e se jogou contra ele, atirando ambos no riacho
fundo e com um fluxo de corrente que não seria possível nadar contra. Assim que caíram, ele
continuou tentando acertar ele, Caio defendia, tentava como podia, mas não dava. Ele, em meio
ao desespero, dizia “PARE, MARCOS, TEMOS QUE SAIR DAQUI!”, mas sua fúria estava
além do resquício de racionalidade. Seu desejo de matar o seu próprio melhor amigo era
inabalável. Porém, mesmo sendo golpeado várias vezes, Caio se agarrou em um forte raiz e
ainda conseguiu segurar seu estimado irmão. Sua força estava distribuída, então o tempo era
curto e tinham que agir em conjunto se desejavam sair de lá com vida. Ele olhou para Marcos
e disse:
— Temos que sair daqui, podemos resolver isso melhor. Não queria interromper sua vida, não
imaginei que iria magoar você a esse ponto!

Marcos apenas o fitava, ainda com seu semblante de ira. Caio continuou:

— MARCOS! TEMOS QUE SAIR DAQUI!

— Não..., tenho chance de sair daqui, mas você será inútil se estiver com um braço incapaz de
se movimentar.
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

Marcos deferiu um golpe forte no braço de Caio, que o soltou imediatamente, deixando ser
levado pelas correntezas. Ele pode ver seu amigo se golpeado com muita força em pedras pelas
redondezas desse riacho, antes de soltar a raiz e ser puxado com toda força. Ambos morreram
e seus paradeiros se perderam ali. Inúmeras buscam foram realizadas, mas nada trouxe a eles.

A ira de Marcos não afundou somente a si, mas sim seu amigo. Talvez ele jamais devesse se
importar além do suficiente, sabendo como ele era. O seu maior pecado, o erro e angústia que
fez tudo aquilo acontecer, foi só fato de Marcos ser incapaz de ter uma vida como a de Caio.
Talvez estivesse com inveja, quem sabe? Mas o pior foi Caio morrer ainda tentando acreditar
no seu amigo, mesmo em apuros e com motivos suficientes para deixá-lo ir. Dói... Fazer o quê.

Relembrei dessa história e até questionei o fato de relutar contra a morte. Fui alguém terrível e
pode ser que eu nem tenha pensado nisso, nos meus últimos momentos, para não trazer isso
para cá. Foi meu ápice, não tenho dúvida, mas refleti tanto sobre essa ideia de ter a vida que
mereço, na luta que eu e Cecília travamos para chegar aqui. Não me senti digno pela conquista
que obtive, e um forte débito se sobrepôs ao meu merecimento pelo que lutamos. Estava pior
que o porco no chiqueiro, pelo menos ele não fez nada, ele só se deitou na sujeira pelo fato de
ser agradável. Fui dissimulado, travei uma batalha achando que o mundo estava sendo injusto
comigo. Pior, e mesmo ciente da minha situação, roubei um direito de tentar de novo burlando
as regras porque não estava condizendo com minha natureza egoísta. Concordo com o que
ambos disseram sobre espíritos egoístas, provável que o motivo de eu simplesmente esquecer
toda aquela barbárie tenha sido porque isso afetaria minha decisão. Na realidade torna-se ainda
mais cômico: lembrei disso quando estava dentro do ônibus, quando nossos passes nos
conduziram para o mundo dos vivos. Os “Olhos Mortos” não têm permissão para cometer
nenhuma atrocidade dentro dele, mas antes de partirmos, avistei uma imensa sombra negra
emanando do (Sombra). Talvez não estivesse morto e seu aspecto era assustador. Victor
contornou aos poucos, enquanto sorria, dessa vez, de raiva. Libertamos algo pior, criamos um
caos na triagem das almas para furtar uma vida da qual eu não merecia. Guardei essas
indagações para mim, não desabafei com Cecília durante o caminho. Quando foi a hora de
sairmos, foi estranho. Descemos em um lugar deserto, ainda de noite. Se eu falar do peso que
senti, do cansaço que decaiu bem em mim, não caberia em uma palavra como “cansaço”.

A fadiga foi tanto que só lembramos de apagar, mas não como chegamos a esse quarto. Olhei
para o relógio e era tarde. Cecília não estava ao meu lado, mas escutei ela cantarolando no
chuveiro. Nossas roupas fediam a morte, assim como nossas almas dissimuladas fediam a
mentira. Era um lindo quarto em lugar bem alto, e a melhor coisa que senti foi o sol tocar minha
pele. Sua radiação caia como as gotículas de chuva causando choque térmico entre frio e calor.
Essa sensação era boa para mim. Aquilo fez eu reconhecer meu trabalho para estar aqui, esse
radiante astro que me abraçava e tirava as trevas de mim. E não parou por aí! Tínhamos vista
para praia. A combinação se aperfeiçoava conforme eu buscasse os detalhes daquele céu, da
areia e o mar. Contemplei até minha amada sair do chuveiro aquela obra por inteiro, e ela me
surpreendeu com seu corpo molhado e gelado, com um belo abraço e um beijo no rosto. Segurei
uma de suas mãos e dei um beijo, apreciando aquele momento gracioso e de pura paz. Nos
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

silenciamos e apenas olhamos aquele lindo horizonte. Ela estava ainda mais satisfeita que eu e
disse, com um belo sorriso que fez cócegas em meu rosto e me arrepiou:

— Existe algo mais lindo que isso?

— Acredito que não. Essa tarde está perfeita, os elementos se... — Antes que eu terminasse
minha fala, Cecília foi mais rápida com seu raciocínio, ainda rindo:

— Complementam?

— Sim, exato.

— Bobo — ela abriu um sorriso lindo, como se eu tivesse dito alguma besteira, alguma coisa
idiota talvez, e anunciou: — Quis dizer sobre o que nos fez estar aqui. A liberdade é linda, não
é? O fato de ir para qualquer lugar, sem tempo, sem bens que o prenda em qualquer cousa.
Fazemos de algo maior, algo impalpável, imensurável. As paisagens tornam-se mais belas por
sentimos isso, capturarmos essa essência.

— É a coisa mais linda que já vi. Apaga todo aquele horror que vivenciamos.

— Ainda tem mais, não para por aí. Pretende tomar banho ou ir comigo até à praia, já que
acordou, dorminhoco.

Sorri descontraído, transbordando meu espírito com euforia e alívio por poder absorver a
canalizar essa energia nova.

O mundo parecia ainda mais novo, o ar menos pesado. Os barulhos dos carros como buzina,
pneus cantando era minha nova música. Os pássaros, o falatório das pessoas sobre coisas banais
e coisas seríssimas. Cada passo que dávamos era paciente, degustávamos da forma correta
nossas vidas. Sem pressas, sem se frustrar.
Quando chegamos naquele mar de areia que cintilava graças aquele astro enorme, Cecília
escolheu o lugar mais próximo do mar. Era uma tenda com duas cadeiras de praia, parecia está
nos esperando. Ela chamou um moço e entregou certa quantia para que nos permitisse ficar ali.
Apenas fitei toda a situação, até ela me sinalizar para se juntar a ela. Fui um pouco contraído
de ir, nervoso e trêmulo, mas por refletir “isso mesmo é real? Como posso estar tão feliz assim?
Tão sossegado?”. Talvez por algumas horas, dias ou sei lá, isso não passava de uma ilusão, um
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

sonho quase inatingível. Ah! E meus pés beijando essa areia macia e sedosa, se entrelaçando
aos meus dedos, que sensação mágica. As novidades não paravam, cada coisa que eu fazia ou
reparava, deixava-me emocionado, meus olhos ficavam rasos d’água de saber que isso não se
tratava de um vislumbre. Era real. Cecília ria da minha cara de bobo e entendia o que eu estava
sentindo e ela entrava em êxtase comigo. Sentei-me ao seu lado, acompanhado de um drink que
estava em uma pequena mesa ao lado de cada. Bebi devagar, não mais como um sedento; em
busca de água no deserto. Ela pegou na minha mão de forma delicada e soltou sua voz doce:

— Surreal, deve tá pensando.

— No mínimo, para ser exato. — Retruquei todo alegre, enquanto fitei de forma breve seus
olhos esverdeados.

— Têm tantas coisas para fazermos, não caberia em uma lista. Pratos, peças teatrais, bebidas,
locais turísticos daqui. Há mais países, novas culturas para conhecermos. A terra onde o sol
nunca se põe, e o seu adverso. A terra onde o sol não alcança. Fora o romance que podemos
nos deleitar, tendo um ao outro. É extenso, mas acredita que temos a vida toda, não é?

— É... Incrível, a vida inteira.

Fiquei em silêncio, me preparando para comentar sobre um detalhe daquele mundo. Minhas
lembranças, a conduta e a dívida que estava na minha alma. Questionei:

— Sabia como cheguei lá, não é?

— Sim. — Cecília mudou sua entonação, demonstrando não estar a vontade com o assunto.

— Nunca teve medo de mim? É visível que eu tinha uma falha enorme, isso pode estar aqui
ainda.

— Isso depende de você. Seu passado não age no seu eu do presente, nem do futuro. Se você
preocupar com um tempo que passou, jamais pode desfrutar como deve do mundano.

— Uau... é que pesa pensar que talvez tenha fugido da minha punição, mas meu sentimento de
lutar pelo que eu quero é maior. No caso, de permanecer aqui. Tudo parecia injusto, a realidade
não tendia a ser decepcionante, mas agora tudo está questionável.
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— Meu amor — Cecília se levantou, dirigindo até meu colo para envolver seus braços em mim
e encarar meus olhos com aquelas esmeraldas. — Entendo sua inquietude, sei como se sente
mal por estar aqui depois de relembrar do seu pesadelo. Isso se foi, você é o novo Marcos.
Todos merecem uma chance, e essa é a sua nova. Não coloque pressão o suficiente para se
desfazer do que tanto desejava. Está em casa de verdade, longe daquele pesadelo sem fim.

— Temi que enxergasse que eu fosse um erro. Estar aqui, tudo isso, mas novamente me
surpreende.

Retribui sua empatia com um sorriso enquanto pensava “caraca, quando tomaremos um banho
naquele mar”. Victor estava certo do começo ao fim sobre com deve agir, relutamos contra a
natureza, o Cosmos para alcançar o estado supremo de nossas almas ceifadas. O “Olhos
Mortos” não é um vilão, agora que me disponho de enxergar através de um contexto. Ele foi
vítima da circunstância, e eu o beneficiário. Sua morte indolor enquanto vivo foi uma injustiça,
fatalidade que trouxe a chance dele restaura o mundo. Talvez agora possamos ser amigos até,
estou torcendo, inclusive, para ele não tenha mais dificuldades com a tal triagem. Viver essa
vida não era mais por mim ou Cecília, mas por respeito daqueles que almejam estar aqui onde
até a morte significa algo. E o sol? Ah! Essa bola gigante não ofuscava nada, e sim carregava
mais vida. Brilhava sem parar, tão intenso. Me hipnotizava e trazia diversas ideias, até escrever,
compor algo para poder ver a graça da dança da minha amada. Todo instante passava em câmera
lenta para mim, o aroma da tarde e da praia infestava minha cabeça, e o perfume de Cecília,
intensificava minha paixão e o ardor de amá-la. Ela se levantou e me puxou com seu jeito alegre
e disse:

— Venha. Vamos nada, a água deve estar perfeita para gente.

Caminhamos de um jeito ávido, ela bailava com areia e o brilho solar de forma descontraída.
Parecia que ela era um elemento de todo aquele clima, seu espírito sem pudor é tão inspirador.
Ao chegar na beira do mar, absorver direito aquele contato refrescante em meus pés castigados
de tanto correr, respirei fundo aquele cheirinho de alga. Aquela infinidade azul bem na minha
frente, o corpo de Cecília banhado por ele, era um retrato perfeito para relembrar todos os dias,
ou o resto dela. Mas de tudo, o que fazia eu esquecer de vez, destruir os piores acontecimentos
que tivemos juntos. Os meus pensamentos obscuros, meu refúgio, era contemplar o sol e
absorver de forma correta sua luz. Aquele contato fazia eu me perder, a luz resplandece mais
que observo junto com a sensação de estar em paz. Ele é lindo, ele era meu caminho que me
guaria até quando eu estivesse perdido. Desejo ter falado em seus olhos vazios e perdidos que
só queriam uma chance de estar aqui e se desprender daquele terror, ver seu alívio e podermos
nos entender, Victor. Olhos Mortos... Essa é minha resposta para seu comportamento cruel,
vago e dolorosa cheio de ressentimento: obrigado. Em homenagem ao seu fracasso, gozarei
dessa vida através da minha ilimitada liberdade e de um mundo finito que traz a ideia de se
igualar com o universo por fazer parte dele. Todo dia que fitar o sol, lembrarei dos olhos que
OS OLHOS MORTOS – ADAM FONSECA

lacrimejaram de dor e agradecerei como devido. Esse é seu memorial, seu legado. Até mesmo
onde a vida toca, estará aqui, “Olhos Mortos”.

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