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O dia estava frio e nublado. A chuva fina caía lentamente.

Kaya gostava de
dias assim, gostava do frio e da calma que esse clima lhe trazia.

— Como vocês estão? – Ela disse, se dirigindo às flores de seu jardim. —


Estão gostando da chuva?

O jardim da casa Pontonner já teve dias melhores. Hoje ele é só um reflexo


pífio do local onde um dia existiram enormes roseiras de diversas cores, além
de um longo gramado de um verde extremamente vivo. O Jardim hoje possui
um gramado verde-amarela do e as únicas rosas que restaram possuem uma
cor amarelada ao invés do vermelho vibrante de outrora.

Apesar de não possuir mais a beleza de antes, o jardim continua sendo o


local favorito de Kaya em toda a casa. Ela passa a maior parte de seus dias
nele, lendo, cuidando de suas flores e, em dias chuvosos como esse, ela
também dança na chuva.

Alguns a definiam como “estranha” ou talvez, se quisessem ser gentis, a


chamavam de “excêntrica”, mas uma coisa era verdade, Kaya não se
importava com isso, aprendeu com o
pai a aproveitar cada momento da vida, por mais simples que eles fossem.
O pai de Kaya havia morrido 15 anos atrás, e a mãe morreu durante seu parto.
Foi pouco antes da morte do pai que a casa começou a definhar, como se
reagisse à iminente morte de seu dono. Rachaduras começaram a surgir no
teto, mofo começou a se espalhar em alguns cômodos, as paredes perderam
a cor.

A casa Pontonner era imponente, com sua fachada Marrom e vermelha


incrustada de detalhes dourados, seu interior com piso de jatobá polido, lustres
e adornos de ouro e peroba rosa, altas janelas que faziam a casa estar
sempre bem iluminada. Mas hoje a casa se encontra em um estado
decadente. Reformas foram feitas, mas ainda assim a casa não parecia capaz
de voltar a sua glória antiga. Era como se ela tivesse morrido junto ao seu
dono.

Já era por volta das nove e meia. Kaya estava trocando de roupa após
dançar na chuva quando de repente ouviu batidas na porta da frente,
“estranho”, pensou ela, “uma visita a está hora da noite?”. Apesar do receio,
ela foi até a porta e viu que era apenas um senhor que, a julgar pelas
roupas, era provavelmente um viajante.

— Desculpe incomodar, senhorita. – ele disse. Sua roupa molhada tinha


aparência velha. Ele usava um casaco preto, longo e desbotado, além de um
chapéu que cobria seus olhos, de modo que era impossível vê-los. – Estou
viajando para a cidade vizinha, mas temo que, como a chuva está ficando
cada vez mais forte, eu não consiga chegar lá. Você permitiria que eu passe
uma noite aqui, minha jovem?
Kaya pensou por um instante, sabia que não era seguro deixar qualquer
estranho entrar em sua casa, ainda mais tão tarde da noite.

— Desculpe, mas não o conheço e não sei de onde vem. – ela disse – Não
faço por mal, mas sim pela minha segurança.

— Sim, sim. Eu compreendo totalmente. Uma dama não permite que qualquer
um entre em sua casa. Mas por favor, estou congelando nesta chuva e já está
escuro demais para andar na estrada – Ele disse, olhando para cima.

Naquele momento Kaya conseguiu ver os olhos do velho homem, olhos


cansados e tristes. Talvez ele não fosse uma ameaça, afinal.

— Poderia me dizer qual o seu nome?

— É Robert, minha jovem.

Kaya estremeceu por um segundo, aquele era o mesmo nome do seu falecido
pai. Talvez pelos olhos ou por essa coincidência, não se sabe ao certo, mas
Kaya criou simpatia pelo estranho visitante e permitiu que ele passasse a
noite ali.
O velho ficou admirando a fachada da casa por alguns segundos, mas mesmo
olhando para cima, não era mais possível ver seus olhos como antes, era
como se as sombras mudassem para esconde-los. Apesar de estranho, já era
tarde da noite, então Kaya não deu muita importância para isso.

Dentro da casa, Kaya ofereceu uma toalha e permitiu que ele ficasse no quarto
de hóspedes. Ele se trocou, porém continuou com o chapéu. Ele estava
sentado na sala de estar próximo à lareira, se aquecendo. Kaya estava lendo
sentada numa poltrona não muito distante da lareira.

O velho era pálido e encurvado, como se o peso dos anos já pudesse ser
sentido. Ele de repente perguntou:

— Quem pintou esses quadros? São muito bonitos.

— Foi meu pai que pintou. — ela respondeu, apesar do assunto lhe
lembrar de coisas das quais ela gostaria de esquecer.

— Vejo que ele é um homem realmente habilidoso, as pinturas


transmitem sentimentos. Onde ele está?
— Ele... Faleceu... Há 15 anos — ela respondeu, tentando não olhar para
o chão, coisa que ela fazia quando não estava confortável.

— Oh, perdoe-me. Eu sinto muito, minha jovem. Ele pintou apenas esse
quadro? – ele disse, como se quisesse mudar de assunto, sua voz era calma e
gentil.

— Ele pintou mais de vinte quadros, porém vendemos todos quando ele
estava doente, apenas esse sobrou. – o rosto de Kaya exibiu uma triste
expressão ao se lembrar do pai ainda vivo.
O quadro em questão era um autorretrato. Kaya não vendeu porque queria
poder lembrar do rosto do pai, mesmo com o passar dos anos. E além disso
aquele quadro possuía algo de especial, como se seu pai ainda observasse
pelos olhos de tinta.

Enquanto estava envolta em pensamentos, Kaya percebeu que a roupa que o


homem usava parecia se mexer, como se algo além do senhor estivesse
dentro dela. Ele passava a estranha sensação de um espantalho cheio de
ratos.

— Por que o senhor continua de chapéu mesmo aqui dentro? – Ela


perguntou, com certo receio.
— Oh, me desculpe, é devido a uma grande cicatriz que tenho no alto da
cabeça – ele falava olhando do para o chão, de modo, que não era possível
ver seus olhos — por favor, permita-me continuar com ele, a cicatriz é
realmente horrível.

— Posso perguntar como conseguiu ela?

— Foi durante uma caçada. Caí ao perseguir um cervo e feri minha cabeça. –
o modo de falar dele era envolvente, quase hipnótico.

— Bom... O que o senhor está procurando em sua viagem? Veio para caçar?
– Aquele homem despertava em Kaya uma espécie de medo e curiosidade. –
Acho que essa época do ano não é muito boa para isso.

— Eu viajo em busca de iguarias para saborear, não apenas caço – um


súbito sorriso surgiu em seus lábios, como se pudesse sentir o gosto de tais
iguarias.
— Que... Interessante... Qual iguaria o senhor planejava encontrar... Ou
caçar na cidade vizinha. – ela estava assustada com o modo estranho da
qual ele falou.

— Presumo que você não conheça, infelizmente, mas garanto que é


algo delicioso. – ele falou de maneira
estranha – Inclusive, você por acaso pode pagar um pouco de água para
mim? Estou morrendo de sede

Após pegar o copo de água, Kaya continuou conversando com o estranho


velho. E cada vez mais ele tomava o controle da conversa. Apesar do modo
curvado e do esquisito chapéu que cobria seus olhos, ele possuía uma lábia
estranha. Sabia dialogar. Mais que isso, ele sabia usar as palavras.

— Como seu pai morreu, jovenzinha? – ele perguntou. Havia algo


estranho na sua voz, um som rouco.

Kaya não gostava daquele assunto, mas era quase impossível não responder
as perguntas do velho. Era como estar hipnotizada.

— Ele teve uma doença no coração. Pouco a pouco foi ficando mais
fraco, esforços antes normais eram quase impossíveis para ele – ao
falar, ela lembra do pai ainda
vivo, deitado na cama. – Apesar de estar doente, ele nunca deixou de sorrir.
Ele era um homem incrível.

— Sim, sim. Eu imagino. Mas e você, minha jovem, é alguém que sorri mesmo
na dificuldade? – ele perguntou, se remexendo na poltrona. Suas costas
pareciam ainda mais curvadas.
— Eu... Acho que sim. – Kaya não entendia o porquê daquela
pergunta.
— Posso ser sincero, minha jovem? Você não é. Pude sentir de longe o
cheiro da amargura, do medo e da dor que você esconde. – ele falou de
forma tão sinistra que até o mais corajoso dos seres estremeceria ali. – E eu
ainda estou sentindo o cheiro.

Kaya estava ficando nervosa, ou melhor, estava ficando com medo. Queria
expulsar aquele velho dali imediatamente. Queria pedir ajuda, mas estava
sozinha na casa com ele. De repente ela olhou o relógio e viu a hora:

— São duas da manhã?! – sua expressão era um misto de dúvida e medo.

Como a conversa havia demorado tanto? Pareciam apenas poucos minutos.


Nada ali fazia sentido.

Ela tentou se levantar e não conseguiu. Olhou pra baixo e sentiu o mais puro
horror. Suas pernas estavam cobertas até os joelhos por ratos. Mas não eram
ratos normais, eram ratos gordos e sem pelo, sangrando, como se a pele
estivesse derretendo.

Kaya soltou um grito terrível que ecoou por toda a casa.


Na outra poltrona o visitante apenas ria. Não era uma risada normal, mas
sim uma gargalhada sinistra e sádica.

— Sabe, eu não menti quando disse que estava a procura de um iguaria para
provar. E nem quando disse que me machuquei em uma caçada – seu corpo
se remexia de forma estranha. Como se algo estivesse preso ali dentro. – Mas
eu não caço animais... Não, minha jovem. A carne humana é muito mais
deliciosa. Ela possui um gosto único! – ele se levantou – Sabe como conseguir
esse gosto único?
Kaya não ouvia mais. Estava agonizando de dor. Os ratos não apenas
seguravam como também arranhavam e mordiam suas pernas. Ela precisava
encontrar um jeito de sair dali. Mas como? Não conseguia se mexer e, de
alguma forma, o velho parecia maior, mais torto e macabro.

— Os temperos especiais que tanto gosto – ele fez uma pausa dramática,
enquanto tirava seu chapéu lentamente – são a tristeza, o desespero, a dor...
E O MEDO!

Se não fosse a dor infernal em suas pernas, Kaya teria desmaiado com a
terrível visão que teve: Os olhos dele eram totalmente negros como a noite,
e eram maiores do que os olhos de qualquer ser humano comum; os dentes
eram irregulares e afiados; seu nariz agora era apenas um buraco
esquelético, como o de um cadáver em decomposição; e sua cabeça... Sua
cabeça era uma imensa
ferida aberta onde vermes e ratos entravam e saíam de forma grotesca.

— ME SOLTE POR FAVOR! – Kaya estava quase chorando – POR FAVOR


EU LHE IMPLORO, EU... POR FAVOR... POR FAVOR – lágrimas rolaram do
seu rosto.

— SIM, É ISSO QUE EU QUERO! QUE BANQUETE VOCÊ SERÁ! – ele


estava retirando toda a roupa, revelando sua pele seca e solta, como um saco
velho – AH, HÁ TEMPOS EU NÃO SENTIA AGONIA TÃO PURA. LHE DAREI
UMA CHANCE, MINHA JOVEM: CORRA O MAIS RÁPIDO QUE PUDER! –
seu rosto tinha um sorriso macabro de dentes afiados e irregulares. E ele
exalava o mais puro cheiro de morte.

Os ratos que estavam nas pernas de Kaya se dispersaram e voltaram um a um


para dentro da pele do velho. Eles roíam e abriam buracos para entrar. A cada
rato o velho ficava maior, mais torto e mais macabro. Ele começou a contar:
— UM. – a voz dele era como o raspar de metal.

Kaya estava com os olhos fixos no chão. Sua mente ainda não conseguia
entender o que estava acontecendo ali.

— DOIS. – ele exibia um sorriso sádico.


Kaya se levantou, lutando contra o medo e a dor. Ela disparou em
direção à porta.

— TRÊS.

Kaya nunca havia percebido o quanto a casa era grande. Ela corria na maior
velocidade que podia, mas as pernas estavam fracas e sangrando.

— QUATRO.

De repente Kaya chegou a porta da frente, mas percebeu algo aterrorizante ao


abri-la: A porta levava ao seu quarto, e não para a saída.

— CINCO.

Ao atravessar a porta, Kaya parou no seu quarto e tentou sair pela janela,
porém acabou chegando ao banheiro.

— SEIS
O que ela faria? A casa agora era um labirinto infernal criado pelo próprio
diabo. Escadas estavam no teto, janelas estavam no chão. Nada ali fazia
sentido.
— SETE

Kaya começou a ouvir vozes. Seu pai estava chamando-a. “Junte-se a mim,
querida”, ele dizia. A voz era extremamente real.

— OITO

Kaya começou a andar em direção à voz de seu pai. Naquele


momento ela queria se sentir segura com ele.

—NOVE

“Não”, pensou ela, “Isso não é real”. De alguma forma o velho estava
tentando atraí-la, da mesma forma que a hipnotizou por horas apenas com
a voz.

— DEZ! – Passos pesados puderam se ouvidos quando ele começou a


correr.

Kaya então disparou, correndo e atravessando todas a as portas e janelas


em seu caminho. Lágrimas caíam de seu rosto e sangue caía de duas
pernas. Ela sabia que se não conseguisse correr rápido o suficiente seria
devorada viva.
— CORRA! CORRA! – a criatura soltou uma risada vinda do próprio inferno
– EU VOU TE MUTILAR MEMBRO A MEMBRO. E A CADA GRITO, A
CADA LÁGRIMA, A CADA GOTA DE SANGUE, SEU SABOR SÓ IRÁ
MELHORAR!

Kaya continuava correndo. As paredes começaram a se mexer e de


dentro delas ratos começaram a sair, ratos gordos e sem pele. Ele
começaram a morder Kaya.

— Eu não posso parar. Eu não posso parar. Eu não posso parar – ela falava
em voz alta como forma de não sucumbir ao medo.

Ela se livrou dos ratos, chutando e pisoteando-os. E então correu até a porta
da biblioteca que, para sua surpresa, a fez parar em seu jardim. Kaya sentiu
um alívio momentâneo, estava do lado de fora, só precisava correr até o muro
da casa.

Ela correu. E correu. Correu mais rápido do que em toda sua vida. Correu
com as pernas sangrando e com ratos que ainda a perseguiam. Ela correu,
apesar do medo que sentia.

De repente, na frente do muro, o velho – ou algo que já havia sido um


velho – estava esperando ela. Ele exibia agora a mesma aparência dos
ratos. A pela fora rasgada
tantas vezes que agora ele já não a possuía. Era um ser com carne velha,
ossos, vermes e ratos.

— Não. Por favor me deixe ir! – Kaya implorava enquanto lágrimas caíam no
chão.

— JÁ É TARDE, ESTOU COM MUITA FOME, E VOCÊ PARECE


DELICIOSA COM TODO ESSE MEDO.

Ele pulou em cima de Kaya, imobilizando-a. Então, membro a membro, ele


esquartejou Kaya. A cada membro arrancado ele olhava a feição de dor da
jovem moça. Seu rosto já estava despedaçado pelos ratos, de modo que suas
lágrimas eram sangue. Ela chorava e implorava, mas a cada súplica o diabo
apenas ria e arrancava outro membro do corpo dela com uma lentidão e
meticulosidade extremamente sádicas. Pouco a pouco Kaya morria, passando
pelo inferno em vida antes de poder dar seu último suspiro.

Naquela madrugada gritos terríveis foram ouvidos ecoando pela cidade. Gritos
agonizantes de uma jovem moça. Também era possível ouvir uma risada que
parecia ser do próprio diabo.

Quando foram investigar a casa, todo que encontraram foi uma pilha de
ossos e pele rasgada, em uma trilha que levava até o jardim. Lá fora a visão
era extremamente
perturbadora: A pele de Kaya foi pendurada como um pano sobre uma
árvore; os ossos que restaram de seus membros estavam espalhados
pelo jardim; e o sangue pintava tudo.

As tão amadas rosas, que antes estavam desbotadas, agora estavam em


vermelho vibrante novamente, banhadas no sangue de Kaya, manchadas e
amaldiçoadas pelo próprio diabo.

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