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Kaya gostava de
dias assim, gostava do frio e da calma que esse clima lhe trazia.
Já era por volta das nove e meia. Kaya estava trocando de roupa após
dançar na chuva quando de repente ouviu batidas na porta da frente,
“estranho”, pensou ela, “uma visita a está hora da noite?”. Apesar do receio,
ela foi até a porta e viu que era apenas um senhor que, a julgar pelas
roupas, era provavelmente um viajante.
— Desculpe, mas não o conheço e não sei de onde vem. – ela disse – Não
faço por mal, mas sim pela minha segurança.
— Sim, sim. Eu compreendo totalmente. Uma dama não permite que qualquer
um entre em sua casa. Mas por favor, estou congelando nesta chuva e já está
escuro demais para andar na estrada – Ele disse, olhando para cima.
Kaya estremeceu por um segundo, aquele era o mesmo nome do seu falecido
pai. Talvez pelos olhos ou por essa coincidência, não se sabe ao certo, mas
Kaya criou simpatia pelo estranho visitante e permitiu que ele passasse a
noite ali.
O velho ficou admirando a fachada da casa por alguns segundos, mas mesmo
olhando para cima, não era mais possível ver seus olhos como antes, era
como se as sombras mudassem para esconde-los. Apesar de estranho, já era
tarde da noite, então Kaya não deu muita importância para isso.
Dentro da casa, Kaya ofereceu uma toalha e permitiu que ele ficasse no quarto
de hóspedes. Ele se trocou, porém continuou com o chapéu. Ele estava
sentado na sala de estar próximo à lareira, se aquecendo. Kaya estava lendo
sentada numa poltrona não muito distante da lareira.
O velho era pálido e encurvado, como se o peso dos anos já pudesse ser
sentido. Ele de repente perguntou:
— Foi meu pai que pintou. — ela respondeu, apesar do assunto lhe
lembrar de coisas das quais ela gostaria de esquecer.
— Oh, perdoe-me. Eu sinto muito, minha jovem. Ele pintou apenas esse
quadro? – ele disse, como se quisesse mudar de assunto, sua voz era calma e
gentil.
— Ele pintou mais de vinte quadros, porém vendemos todos quando ele
estava doente, apenas esse sobrou. – o rosto de Kaya exibiu uma triste
expressão ao se lembrar do pai ainda vivo.
O quadro em questão era um autorretrato. Kaya não vendeu porque queria
poder lembrar do rosto do pai, mesmo com o passar dos anos. E além disso
aquele quadro possuía algo de especial, como se seu pai ainda observasse
pelos olhos de tinta.
— Foi durante uma caçada. Caí ao perseguir um cervo e feri minha cabeça. –
o modo de falar dele era envolvente, quase hipnótico.
— Bom... O que o senhor está procurando em sua viagem? Veio para caçar?
– Aquele homem despertava em Kaya uma espécie de medo e curiosidade. –
Acho que essa época do ano não é muito boa para isso.
Kaya não gostava daquele assunto, mas era quase impossível não responder
as perguntas do velho. Era como estar hipnotizada.
— Ele teve uma doença no coração. Pouco a pouco foi ficando mais
fraco, esforços antes normais eram quase impossíveis para ele – ao
falar, ela lembra do pai ainda
vivo, deitado na cama. – Apesar de estar doente, ele nunca deixou de sorrir.
Ele era um homem incrível.
— Sim, sim. Eu imagino. Mas e você, minha jovem, é alguém que sorri mesmo
na dificuldade? – ele perguntou, se remexendo na poltrona. Suas costas
pareciam ainda mais curvadas.
— Eu... Acho que sim. – Kaya não entendia o porquê daquela
pergunta.
— Posso ser sincero, minha jovem? Você não é. Pude sentir de longe o
cheiro da amargura, do medo e da dor que você esconde. – ele falou de
forma tão sinistra que até o mais corajoso dos seres estremeceria ali. – E eu
ainda estou sentindo o cheiro.
Kaya estava ficando nervosa, ou melhor, estava ficando com medo. Queria
expulsar aquele velho dali imediatamente. Queria pedir ajuda, mas estava
sozinha na casa com ele. De repente ela olhou o relógio e viu a hora:
Ela tentou se levantar e não conseguiu. Olhou pra baixo e sentiu o mais puro
horror. Suas pernas estavam cobertas até os joelhos por ratos. Mas não eram
ratos normais, eram ratos gordos e sem pelo, sangrando, como se a pele
estivesse derretendo.
— Sabe, eu não menti quando disse que estava a procura de um iguaria para
provar. E nem quando disse que me machuquei em uma caçada – seu corpo
se remexia de forma estranha. Como se algo estivesse preso ali dentro. – Mas
eu não caço animais... Não, minha jovem. A carne humana é muito mais
deliciosa. Ela possui um gosto único! – ele se levantou – Sabe como conseguir
esse gosto único?
Kaya não ouvia mais. Estava agonizando de dor. Os ratos não apenas
seguravam como também arranhavam e mordiam suas pernas. Ela precisava
encontrar um jeito de sair dali. Mas como? Não conseguia se mexer e, de
alguma forma, o velho parecia maior, mais torto e macabro.
— Os temperos especiais que tanto gosto – ele fez uma pausa dramática,
enquanto tirava seu chapéu lentamente – são a tristeza, o desespero, a dor...
E O MEDO!
Se não fosse a dor infernal em suas pernas, Kaya teria desmaiado com a
terrível visão que teve: Os olhos dele eram totalmente negros como a noite,
e eram maiores do que os olhos de qualquer ser humano comum; os dentes
eram irregulares e afiados; seu nariz agora era apenas um buraco
esquelético, como o de um cadáver em decomposição; e sua cabeça... Sua
cabeça era uma imensa
ferida aberta onde vermes e ratos entravam e saíam de forma grotesca.
Kaya estava com os olhos fixos no chão. Sua mente ainda não conseguia
entender o que estava acontecendo ali.
— TRÊS.
Kaya nunca havia percebido o quanto a casa era grande. Ela corria na maior
velocidade que podia, mas as pernas estavam fracas e sangrando.
— QUATRO.
— CINCO.
Ao atravessar a porta, Kaya parou no seu quarto e tentou sair pela janela,
porém acabou chegando ao banheiro.
— SEIS
O que ela faria? A casa agora era um labirinto infernal criado pelo próprio
diabo. Escadas estavam no teto, janelas estavam no chão. Nada ali fazia
sentido.
— SETE
Kaya começou a ouvir vozes. Seu pai estava chamando-a. “Junte-se a mim,
querida”, ele dizia. A voz era extremamente real.
— OITO
—NOVE
“Não”, pensou ela, “Isso não é real”. De alguma forma o velho estava
tentando atraí-la, da mesma forma que a hipnotizou por horas apenas com
a voz.
— Eu não posso parar. Eu não posso parar. Eu não posso parar – ela falava
em voz alta como forma de não sucumbir ao medo.
Ela se livrou dos ratos, chutando e pisoteando-os. E então correu até a porta
da biblioteca que, para sua surpresa, a fez parar em seu jardim. Kaya sentiu
um alívio momentâneo, estava do lado de fora, só precisava correr até o muro
da casa.
Ela correu. E correu. Correu mais rápido do que em toda sua vida. Correu
com as pernas sangrando e com ratos que ainda a perseguiam. Ela correu,
apesar do medo que sentia.
— Não. Por favor me deixe ir! – Kaya implorava enquanto lágrimas caíam no
chão.
Naquela madrugada gritos terríveis foram ouvidos ecoando pela cidade. Gritos
agonizantes de uma jovem moça. Também era possível ouvir uma risada que
parecia ser do próprio diabo.
Quando foram investigar a casa, todo que encontraram foi uma pilha de
ossos e pele rasgada, em uma trilha que levava até o jardim. Lá fora a visão
era extremamente
perturbadora: A pele de Kaya foi pendurada como um pano sobre uma
árvore; os ossos que restaram de seus membros estavam espalhados
pelo jardim; e o sangue pintava tudo.