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A RELIGIÃO DEJESUS,

O JUDEU
Geza Vermes
“Este volume completa uma trilogia
que se iniciou em 1973 com Jesus the
Jew e prosseguiu, dez anos mais tar­
de, com a publicação de Jesus anã the
World o f Judaism.
Como os livros que o antecederam,
A Religião de Jesus, o Judeu é uma
leitura pessoal dos Evangelhos Sinó-
ticos de Marcos, Mateus e Lucas. Não
proporciona aos leitores um status
quaestionis, não é uma visão geral de
opiniões eruditas nem se engaja em
discussão sistemática com os propo­
nentes de teorias divergentes.
Este livro é dirigido primeiramente
a leitores cujo campo de estudo se
encontra fora da Bíblia, do Novo Tes­
tamento e da teologia, isto é, a estu­
diosos de religiões, de história e cul­
tura antiga, particularmente do ju ­
daísmo, embora tenha esperança de
que pesquisadores bíblicos e teólo­
gos lhe concedam ao menos alguma
atenção. Leitores cristãos, não afeitos
ao estudo académico das origens de
sua religião, poderão achar muitas
destas páginas, principalmente o ca­
pítulo final, particularmente pertur­
badores, mas espero que também se
sintam instigados à reflexão.
Ao longo dos anos, ao fazer confe­
rências sobre Jesus, o Judeu, sempre
encontrei uma objeção, freqüente-
mente levantada logo no início da
discussão: não sendo Jesus nem um
agitador político nem um mestre que
atacava as doutrinas fundamentais
da religião judaica, por que foi execu­
tado?
A prisão e execução de Jesus não se
deveram diretamente a suas palavras
e atos, mas às conseqüências revolu­
cionárias temidas pelas inseguras au­
toridades incumbidas de manter a lei
e a ordem naquele barril de pólvora
que era Jerusalém no primeiro sécu­
lo, superpovoada de peregrinos. Se
Jesus não tivesse provocado um tu­
multo no Templo, virando as mesas
de mercadores e cambistas, ou se
tivesse escolbido fazê-lo em outra
ocasião que não o Pessah — momento
em que se espera que o ansiado Mes­
sias, libertador final dos judeus, faça
sua aparição — ele teria, muito pro­
vavelmente, escapado com vida. Ele
morreu na cruz por ter praticado o
gesto errado (provocar um tumulto)
no lugar errado (no Templo) e no
momento errado (às vésperas do
Pessah). Esta é a verdadeira tragédia
de Jesus, o Judeu.”
G. V.

GEZA VERMES é membro da Academia


Britânica e Professor de Estudos Ju ­
daicos na Universidade de Oxford.
Geza Vermes
A Religião de Je su s,
o Ju d eu

Tradução
Ana Mazur Spira

Revisão Geral
JAYME Salomão , Monique Balbuena
C arlos Alves e F ernanda Abreu

Imago
Título Original
The Religion o f Jesus, the Jew

Copyright ® Geza Vermes 1993

Capa:
V eronica d ’O rev

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Vermes, Geza, 1924-


V622r A religião de Jesus, o judeu/Geza Vermes; tradução,
Ana Mazur Spira. — Rio de Janeiro: Imago ed., 1995
228p. (Coleção Bereshit)

Tradução de: The religion of Jesus, the Jew


Inclui bibliografia.
ISBN 85-312-0446-1

1. Jesus Cristo - Ensinamentos. 2. Jesus Cristo


Interpretações judaicas. I. Título. II. Série.

CDD - 232
95-0713 CDU - 232

Reservados todos os direitos.


Nenhuma parte desta obra poderá ser
reproduzida por fotocópia, microfilme,
processo fotomecânico ou eletrônico
sem permissão expressa da Editora

1995

IMAGO EDITORA LTDA.


Rua Santos Rodrigues, 201-A — Estácio
20250-430 — Rio de Janeiro — RJ
Tel.: (021) 293-1092

Impresso no Brasil
Printed in Rmril
S u m ário

Prefácio

1 Jesus o Judeu, e seu Evangelho 9

2 Jesus e a Lei: O Judaísmo de Jesus 19

3 Jesus, o Mestre; Autoridade Escriturai e Carismática 49

4 Provérbios e Parábolas 75

5 Jesus e o Reino de Deus 113

6 “Abba, Pai”; O Deus de Jesus 141

7 Jesus, o Homem Religioso 169

8 A Religião de Jesus e o Cristianismo 191

Abreviações 199

Bibliografia 203

índice de Nomes 209

índice de Referências 213


P refácio

Este volume completa uma trilogia que se iniciou em 1973 com Jesus th ejew e
prosseguiu, dez anos mais tarde, com a publicação de Jesus and the World o f
Judaism.
Como os livros que o antecederam, A Religião de Jesus, o Judeu é uma leitura
pessoal dos Evangelhos Sinóticos de Marcos, Mateus e Lucas. Não proporciona
aos leitores um status quaestionis, não é uma visão geral de opiniões eruditas
nem se engaja em discussão sistemática com os proponentes de teorias diver­
gentes. Opiniões de outros escritores são apresentadas apenas quando realmente
me serviram de inspiração ou me desafiaram a um debate proveitoso.
Este livro é dirigido primeiramente a leitores cujo campo de estudo se
encontra fora da Bíblia, do Novo Testamento e da teologia, isto é, a estudiosos
de religiões, de história e cultura antigas, particularmente do judaísmo, embora
tenha esperança de que pesquisadores bíblicos e teólogos lhe concedam ao
menos alguma atenção. Leitores cristãos, não afeitos ao estudo acadêmico das
origens de sua religião, poderão achar muitas destas páginas, principalmente o
capítulo final, particularmente perturbadores, mas espero que também se sintam
instigados à reflexão.
Em benefício daqueles que não têm familiaridade com os Evangelhos e/ou
com livros não bíblicos sobre o antigo judaísmo, a evidência literária será sempre
citada, de preferência à simples menção nas referências.
Ao longo dos anos, ao fazer conferências sobre Jesus, o Judeu, sempre
encontrei uma objeção, freqüentemente levantada logo no início da discussão:
não sendo Jesus nem um agitador político nem um mestre que atacava as
doutrinas fundamentais da religião judaica, por que foi executado? Sem repetir
o argumento apresentado no Prefácio de Jesus and the World o f Judaism (pp.
viii-ix), eu gostaria de apresentar brevemente minha opinião.
A prisão e execução de Jesus não se deveram diretamente a suas palavras e
atos, mas às conseqüências revolucionárias temidas pelas inseguras autoridades
incumbidas de manter a lei e a ordem naquele barril de pólvora que erajerusalém
no primeiro século, superpovoada de peregrinos. Sejesus não tivesse provocado
um tumulto no Templo, virando as mesas de mercadores e cambistas, ou se
tivesse escolhido fazê-lo em outra ocasião que não o Pessah — momento em que
se espera que o ansiado Messias, libertador final dos judeus, faça sua aparição
— ele teria, muito provavelmente, escapado com vida. Ele morreu na cruz por
ter praticado o gesto errado (provocar um tumulto) no lugar errado (no Templo)
8 A Religião de Jesus, o Judeu

e no momento errado (às vésperas do Pessah). Esta é a verdadeira tragédia de


Jesus, o Judeu.
O falecido professor Sir Godfrey Driver me perguntou, ao me surpreender,
cerca de vinte e cinco anos atrás, cometendo um erro de inglês: "Como se explica
quê seu inglês seja perfeito quando você escreve?" A resposta era fácil: "Minha
esposa é inglesa e trabalha comigo", disse eu. Na verdade, por trinta anos Pam
e eu trabalhamos juntos tanto no conteúdo quanto na forma de artigos e livros.
Sua considerável ajuda, apesar de seu precário estado de saúde, aperfeiçoou em
muito A Religião de Jesus, o Judeu e me permitiu cumprir o prazo do editor. A ela
ofereço todo o fruto de nosso trabalho criativo conjunto.

Oxford, 15 de outubro de 1992 G. V.

P.S. Pam faleceu em paz, em casa, a 10 de junho de 1993, enquanto eu recitava


seu verso favorito do Salmo 73: quanto a mim, estou sempre contigo. Um dos
poemas que ela escreveu se revelou profético.

Ao partir

Lembrando a acolhida
de um doce amigo
por um longo e carinhoso Braço,
ela partiu muito suavemente, você o disse,
ela partiu muito docemente,
como passando de um quarto ao outro.
Mas não, não, não, não,
não foi antes como passando
de um canto familiar
para outro canto familiar
do mesmo quarto familiar?
Jesus, o Judeu, e seu Evangelho

Na era otimista que precedeu a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a maioria


dos eruditos do Novo Testamento acreditava firmemente que, por meio de uma
pesquisa racional e crítica, seria possível redescobrir o Jesus histórico. The Life
o f Jesus de Ernest Renan, 1863, e The Quest o f the Historical Jesus de Albert
Schweitzer (publicado em alemão em 1906 e em inglês em 1910) são os dois
marcos importantes neste terreno. Juntamente com esta expectativa ingênua
aparecia a certeza igualmente cândida de que uma apresentação abrangente da
mensagem de Jesus não era menos possível. L ’évangile de Jésus-Christ de Marie-
Joseph Lagrange, o renomado dominicano fundador da Escola Bíblica de Jeru­
salém e, aqui na Inglaterra, The Teaching o f Jesus de T. W. Manson, publicados
respectivamente em 1929 e 1931, podem ser considerados como os últimos
exemplos desse tipo de literatura.
Nuvens de dúvida começaram a se acumular após 1914, e o ano de 1926
marcou o início de um novo período de profundo pessimismo com o apareci­
mento de um livro, Jesus (Jesus and the Word, 1934, em inglês) no qual Rudolf
Bultmann, pesquisador que deveria dominar o campo de estudo do Novo
Testamento por vários anos, declarava que a vida e a personalidade de Jesus
estavam além do reino do conhecimento histórico porque “as primeiras fontes
cristãs”, isto é, os Evangelhos — “não demonstram nenhum interesse em nenhum
desses aspectos” (op. cit., p. 14).
Na opinião de Bultmann, a voz do Evangelho, e não o pensamento e as
aspirações dejesus porém as necessidades espirituais e de organização da igreja
primitiva foram responsáveis por sua redação e transmissão. Sem dúvida, alguns
destes ensinamentos são autênticos, mas ao lado deles, nos mesmos documen­
tos, encontram-se pronunciamentos daqueles que Paulo denomina “profetas”
cristãos, (ICor 12,28; 14,29, 32, etc.), falando em nome do Senhor “ressuscitado”
em reuniões da igreja, durante o culto. A crítica formal, Formgeschichte, a
disciplina de Bultmann, se propõe distinguir os elementos literários das narra­
tivas e determinar sua natureza por meio da identificação do papel que deveríam
desempenhar na vida do cristianismo primitivo. Com a ajuda de narrativas
10 A Religião de Jesus, o Judeu

paralelas nos Evangelhos Sinóticos, o objetivo de Bultmann era encontrar a


pré-história de cada tradição que levava, em suas palavras, “em muito poucos
casos” ao próprioJesus.‘Já que sua especialidade era no dominio do grego e não
no semita (hebraico-aramaico), tal resultado não era de todo supreendente.
Devido à colossal influência de Bultmann no estudo do Novo Testamento
na Alemanha e, subseqüentemente, através de seus ex-discípulos, na América do
Norte, 0 relógio da verdadeira pesquisa histórica parou por quase meio século,
mas, nos anos 50, uma modesta “nova pesquisa” foi iniciada na Alemanha e, em
1956, um aluno de Bultmann, Günter Bornkamm, ousou publicar um livro
intitulado Jesus o f Nazareth.
Numa era ainda dominada pela crítica formal, este esforço deve ter parecido
temerário. Na verdade, a ansiedade de Bornkamm diante da grande hostilidade
potencial pode explicar sua frase de abertura que aparentemente contradiz o
objetivo do livro; “Ninguém se encontra mais em condições de escrever uma
biografia dejesus.”^
Naturalmente, os Evangelhos não preenchem os requisitos necessários para
uma verdadeira biografia de Jesus nem para uma explanação completa, detalha­
da e sistemática de seus ensinamentos. Mas este fato está muito longe da
afirmação de Bultmann e de seus colegas céticos de que “quase nada” podemos
conhecer em relação a Jesus. A pergunta sensata a ser feita é se podemos perceber
algo de significativo e central sobre sua vida e personalidade e sobre sua mensa­
gem. Vários livros, escritos durante os últimos vinte anos, três deles em Oxford,
asseguram que é possível. Ao contrário de Bultmann e seus seguidores, os
autores desta pesquisa histórica mais recente, ao investigar o assunto no texto
dos Evangelhos (Sinóticos), não prestam homengens vazias à contribuição
essencial da literatura judaica pós-bíblica para uma percepção genuína de Jesus,
como também, cada um a seu modo, fazem uso substancial dessa literatura.
Porém, antes de nos voltarmos a eles, pode ser salutar examinar as sábias
palavras de meu sucessor em Oxford, Martin Goodman, especialista do judaísmo

The History o f the Synoptic Tradition [HST] (1963), 105. Embora eu discorde freqüentemente de
suas inferências históricas, HST será regularmente usada neste volume devido a seu alto nível de
análise literária.
fesus von N azareth (1956). [Tradução inglesa: Jesus o f Nazareth (I960).] Do ponto de vista da
compreensão de Bornkamm sobre Jesus, o livro não apresenta nenhuma novidade. Ele soa, de
fato, como uma canção muito familiar, a tradicional antipatia dos pesquisadores alemães, até
recentemente, para com o judaismo. Bornkamm se sentia constrangido em admitir que Jesus
tenha surgido no mundo judaico, mas pretendia que ele, sem nenhuma dúvida, se situava fora
desse mundo, como um estranho, porque o judaísmo pós-exílico, estreito e rígido, era uma
perversão da religião israelita. Sob a influência dos escribas e fariseus, ela teria se transformado
num légalisme formalístico, uma antecipação da religião talmúdíca face à qual Jesus sobressai
em nítido contraste!
Jesus. 0 Judeu, e seu Evangelho 11
da Galiléia bem como notável historiador da antiguidade, que coloca a incoerên­
cia da linha de pensamento de Bultmann em perspectiva apropriada:

Quaisquer que sejam os problemas na reconstrução da vida e carreira de


Jesus (e são imensos), é mais plausível que o esboço geral de sua carreira,
tal como apresentada nas biografias do Evangelho esteja correto,
simplesmente porque a hipótese de que estas narrativas foram
inteiramente compostas e não apenas parcialmente alteradas para marcar
um ponto teológico é mais implausível que a crença de que os traços
gerais da carreira de Jesus estejam descritos corretamente. Entre outras
objeções à opinião anterior (adotada geralmente) encontram-se a
sobrevivência, em cada Evangelho, de perspectivas contraditórias de
Jesus e a singularidade da biografia como veículo de uma didática
teológica.^

Deixando de lado Jesus the Jew (1973), e Jesus and the World o f Judaism (1983)
cuja seqüência é o presente volume, permitam-me começar com as obras de dois
amigos muito próximos e ex-colegas de Oxford, A. E. Harvey e E. P. Sanders.
Em Jesus and the Constraints o f History (1982), Harvey, embora concordando
até certo ponto com o ceticismo acadêmico generalizado em relação à confiabi­
lidade histórica geral dos Evangelhos, abre novas perspectivas ao estudo da vida
de Jesus ao escrever: “Existem igualmente certos fatos sobre Jesus dos quais seria
totalmente irracional duvidar por qualquer critério normal de evidência históri­
ca. Tais fatos são quejesus era conhecido tanto na Galiléia quanto emjerusalém;
que era um mestre; que operou curas de diversas doenças, particularmente de
possessão demoníaca e que estas curas eram geralmente consideradas como
miraculosas; que se envolveu em controvérsias com seus correligionários em
questões sobre a Lei de Moisés e que foi crucificado no governo de Pôncio
Pilatos.” (p. 6)
Por outro lado, enquanto estipula uma autenticidade histórica limitada aos
Evangelhos, como a maioria dos teólogos ele nega a possibilidade de saber “algo
de real importância”, por exemplo, “a consciência messiânica [de Jesus], sua
perfeição moral ou seu relacionamento com seu pai celeste” (ibid). Em outras
palavras, aceita traços do esboço biográfico de Jesus mas se declara totalmente
cético em assuntos que, em seu entender são da mais grave importância
doutrinai.
Ed Sanders não é definitivamente um teólogo e bem menos temeroso de se
aventurar no perigoso terreno da mensagem religiosa de Jesus. Em Jesus and

The RuUing Class o j Judcea (1987), 22seg. Ver também seu State and Society in Roman Galilee,
132-212 A.D. (1983).
12 A Religião de Jesus, o Judeu

Judaism (1985), classifica os ensinamentos do Evangelho e lhes atribui o grau


de certo, altamente provável, possível, concebível e inacreditável (isto é, negati­
vamente certo). À primeira categoria pertencem, entre outros, os argumentos de
que Jesus proclamou o Reino de Deus para todos, inclusive aos iníquos; que
pregou em situação escatológica; que nem ele nem nenhum de seus discípulos
eram movidos por objetivos políticos ao proclamar o Reino; e que ele não se
opunha, explicitamente, à Lei de Moisés (p. 326).
Minha primeira contribuição, Jesus the Jew, se apóia numa dupla convicção:
(I) que os historiadores têm o direito e o dever de prosseguir em sua pesquisa
independentemente de crença, e (2) que é possível extrair, graças ao nosso
conhecimento, consideravelmente aumentado da realidade do tempo de Jesus,
uma informação historicamente fiel a partir de fontes não históricas tais como
os Evangelhos.
A pesquisa teve de se restringir a Marcos, Mateus e Lucas e excluir João
porque, apesar de algum detalhe histórico ocasional que possa oferecer, seu
retrato de Jesus é tão envolvido em teologia a ponto de se tornar inteiramente
impróprio à investigação histórica. Em contraste, uma leitura dos Evangelhos
Sinóticos, isenta de preconceitos doutrinais, revela a figura de Jesus como um
mestre popular, operador de curas e exorcista, que se enquadra perfeitamente
na Galiléia do primeiro século, conhecida diretamente através de Josefo e
indiretamente pela literatura rabínica. Ele representa o judaísmo carismático de
homens santos, operadores de milagres, no primeiro século a.C., tais como Honi
e o contemporâneo mais jovem de Jesus, Hanina ben Dosa, calcados em profetas
bíblicos tais como Elias e Eliseu. Eles alimentam os famintos, curam doenças
tanto físicas quanto mentais, freqüentemente atribuídas ã possessão demoníaca.
A pesquisa na segunda metade de Jesus the Jew está centrada nos títulos
conferidos a Jesus nos Evangelhos: Profeta, Senhor, Messias, Filho do Homem e
Filho de Deus. Sua análise filológica e histórica indicaram que, com exceção da
expressão aramaica “filho do homem” cujo emprego como título não é atestado
na literatura judaica existente, e “Messias”, que Jesus parece não ter reivindicado
nem aceito, eles se aplicavam facilmente a homens santos com os quais era
possível tratar ou descrever como Profeta, Senhor e mesmo, figurativamente,
“Filho de Deus”. Desta forma, a relação do taumaturgo Honi com Deus é
comparável à relação de um filho e seu pai e Hanina ben Dosa, como Jesus no
momento de seu batismo, é descrito como “meu filho” por um bat kol, uma voz
divina vinda dos céus. (JJ 206-10).
O principal achado de Jesus the Jew é o reconhecimento de Jesus na tradição
mais primitiva do Evangelho, anterior à especulação teológica, como um prega­
dor profético, carismático e operador de milagres, o destacado “Hassid da
Galiléia” que, graças á “sublimidade, perceptibilidade e originalidade” de seu
Jesus, 0 Judeu, e seu Evangelho 13

ensinamento ético Qoseph Klausner)"^ sobressaía entre os representantes conhe­


cidos desta classe de personalidade espiritual. Um forte apoio a esta percepção,
simultaneamente positivo e negativo, vem da caracterização de Jesus como “um
homem sábio” e “realizador de atos surpreendentes” do historiador do primeiro
século, Flávio Josefo (Ant. xviii, 63), descrição que expressa em termos neutros
o retrato positivo do Evangelho e, em sua imagem simétrica negativa, a posterior
representação talmúdica de Jesus como “sedutor” e “feiticeiro”.^
A pesquisa erudita publicada durante os anos intermediários confirmou
minha teoria básica de modos diferentes e em diferentes graus. J. B. Segai
proporcionou um contexto histórico mais amplo ao “Hassid carismático”, como
outra representação familiar da figura do “homem de Deus”, bem atestada no
judaismo popular da era biblica e pós-bíblica.® Em seu minucioso exame das
tradições relativas a Honi, o desenhador de circulos, e a Hanina ben Dosa, W.
S. Green e o falecido B. M. Bokser esclareceram e suplementaram minha
apresentação da evidência rabinica.^ Séan Freyne e Martin Goodman incremen­
taram nosso conhecimento da Galiléia antiga, proporcionando-nos assim um
quadro mais refinado para a compreensão histórica dejesus e dos Evangelhos.*’
Embora útil e complementar de muitas maneiras, considero o capitulo de J. D.
Crossan sobre “Mago e Profeta”, em seu recente livro, desprovido de sensibili­
dade histórica já que o título “Mago” aplicado a Jesus (pace Morton Smith), é
muito impróprio, bem como o epíteto “camponês” no subtítulo do volume.®

Há exatamente setenta anos, Joseph Klausner, o primeiro especialista moderno judeu a dedicar
um livro a Jesus, concluía seu volume com os mais altos louvores ao ensinamento moral dejesus:
“Em seu código ético encontramos sublimidade, perceptibilidade e originalidade de forma sem
paralelo em nenhum outro código ético hebreu; igualmente inexiste, nessa literatura, qualquer
paralelo com a notável ane de suas parábolas. A perspicácia e concisão de seus provérbios e fortes
epigramas servem, em grau excepcional, para popularizar idéias éticas. Se acaso chegar o dia em
que este código ético for desembaraçado de suas vestes de milagre e misticismo, o Livro da Ética
d ejesus tornar-se-á um dos tesouros mais preciosos da literatura de Israel em todos os tempos.”
(Jesus o f N azareth: His Life, Times and Teaching (1925), 414,
Para uma visão geral da bibliografia completa do Testimonium, ver L. H. Feldman, Josephus and
Modern Scholarship 1937-1980 ( 1 ^ 4 ) , 673-99. Cf. também meu ensaio The Jesus Notice o f Josephus
re-examined, JJS 38 (1987), 1-10. Minha reconstrução hipotética do Testimonium diz: “Por volta
desta época viveu Jesus, um homem sábio ... Ele realizou feitos espantosos (literalmente,
paradoxais)... Ele atraiu muitos judeus... Era [chamado] Cristo. Quando Pilatos, segundo a
acusação apresentada pelos nossos principais, o condenou à cruz, aqueles que o amavam desde
o início não deixaram de permanecer unidos a ele... E a tribo dos cristãos, assim denominados
por sua causa, não desapareceu até o dia de hoje” (Ant. xviii. 63seg.).
“Popular Religion in Ancient Israel”, JJS 27 (1976), 1-22.
Green, “Palestinian Holy Men; Charismatic Leadership and Rabbinic Tradition”, ANRW ii. 19.2
(1979), 619-37; Bokser, “Wonder-working and Rabbinic Tradition. The Case of Hanina ben
Dosa”, JS J 16 (1985), 42-92.
Freyne, Galilee from Alexander the Great to Hadrian (1980); Galilee, Jesus and the Gospels (1988);
Goodman, State and Society in Roman Galilee, A.D., 132- 212 (1983).
The Historical Jesus: The Life o f a Mediterranean Jewish Peasant (1991), 137-67. Cf. Smith, Jc.sus
the Magician (1978). |Ed. bras.: O Jesus Histórico (1994), Imago Ed.]
14 A Religião de Jesus, o Judeu

Tudo considerado, quando chegamos ao ponto de identificar o caráter do


Jesus histórico, minha opção pelo carismático operador de curas — mestre —
profeta é agora sustentada por quase as mesmas definições breves que aparecem
na obra de dois dos mais importantes especialistas do Novo Testamento hoje em
dia, Martin Hengel e E. P. SandersJ® É desnecessário dizer que este exame da
religião de Jesus terá esse enfoque como ponto de partida.
A pesquisa do autêntico ensinamento de Jesus é, em certo sentido, ainda
mais arriscada que a tentativa de descobrir seus contornos históricos. Realmente,
o único ponto com o qual os estudiosos concordam é que os Evangelhos incluem
muito material que não encontra sua origem em Jesus. Minha primeira tentativa,
rudimentar e esquemática, de desemaranhar o verdadeiro do inautêntico resul­
tou em The Gospel o f Jesus the Jew que consiste de minhas três conferências no
Riddell Memorial, pronunciadas na Universidade de Newcastle upon Tyne em
1981 e publicadas, no mesmo ano, com o titulo mencionado. Estas conferências,
ligeiramente revisadas, estão incluidas em Jesus and the World o f Judaism,
capítulos 2-4 (1983). Algumas diretrizes são fixadas para ajudar na busca, ao
longo de uma trilha muito árdua, da mensagem genuína de Jesus e abrangem
certos princípios tomados de empréstimo à crítica formal, adaptados e comple­
mentados quando necessário (/WJ 21-25). Entretanto, não seria apropriado
atribuir a estas diretrizes o grandiloqüente rótulo de metodologia, tão em moda.
Em minha opinião, uma pesquisa que tenha como objetivo a inovação não deve
ser cerceada por regras estritas e predeterminadas. Na verdade, embora esta
afirmação, vinda de alguém nascido na Hungria, educado na Bélgica e na Erança
e cidadão do Reino Unido apenas por naturalização, possa provocar uma ligeira
reação divertida, orgulho-me de ser um verdadeiro pragmatista Britânico
A metodologia me enfurece, sem dúvida irracionalmente, talvez porque mais
de uma vez eu tenha sido censurado por dogmáticos do além-Atlântico por
chegar ilegitimamente à conclusão correta seguindo um caminho não sanciona­
do pelo sagrado livro de regras de meus críticos. Meu procedimento preferido,
ao qual aderirei nas páginas seguintes, começa com a fixação dos limites externos
de um problema antes de tentar preencher, fragmento por fragmento, após muita
tentativa e erro, as áreas vazias no interior destes limites. A única vez, no passado,
em que estive envolvido numa pesquisa que tocava o terreno da metodologia.

10 Hengel, The Charismatic Leader and his Followers (1981); Sanders, Jewúh i.aw from Jesus to the
Mishnahh (1990), 3.
11 Quando Sir Isaiah Berlin, antigo Diretor da minha Faculdade, tomou conhecimento, há alguns
anos, de que eu tinha sido descrito nestes termos durante uma conferência, tendo sido
mencionado mesmo meu gosto de “alcançar o objetivo de qualquer maneira”, ele murmurou em
minha direção: “O enxerto pegou, não é? Por vezes acontece”.
Jesus, o Judeu, e seu Evangelho 15

foi quando desejava esclarecer minha própria mente em vez de fixar leis
universalmente limitadoras.^^
Eu sabia, por experiência pessoal, que a literatura rabínica, quando traba­
lhada com sensibilidade e critério, pode lançar uma luz valiosa e por vezes única
no estudo dos Evangelhos. Na realidade, seu uso para esta finalidade tem sido
habitual desde o século XVII, quando Horae Hebraicae et Talmudicae (1658-78),
de John Lightfoot, veio à luz, e especialmente após a publicação, entre 1922 e
1 9 2 ^ 9 6 famoso Commentary to the New Testament from Talmud and Midrash
(Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch), em quatro volu­
mes, por Hermann Strack e Paul Billerbeck. Esta obra parecia gozar de uma
autoridade quase maior que os próprios Evangelhos entre os estudiosos do Novo
Testamento; estes não tinham escrúpulos em criticar os Evangelhos mas não os
Kommentar. Entretanto, mais recentemente, esta obra perdeu muito de sua
reputação QWJ 62-64). Sabia-se, há muito tempo, que a comparação do Novo
Testamento, datando do final do primeiro século A.D. com a literatura rabínica,
compilada aproximadamente entre os anos 200 e 500, se defronta com um sério
embaraço cronológico. É legítimo, deve-se perguntar, fazer uso da Mishná, do
Talmude e do Midrash, mais recentes, para interpretar o Novo Testamento, mais
antigo? O dilema é percebido mais agudamente hoje em dia, já que, com os
Pergaminhos do Mar Morto, os especialistas dispõem agora de um corpus
considerável de material comparativo, contemporâneo dos primeiros escritos
cristãos ou apenas ligeiramente mais antigos, enquanto, antes de 1947, esta
documentação não era conhecida.
Nas novas circunstâncias, é ainda justificável voltar à Mishná, Tosefta,
Talmude, Midrash ou Targum, em busca de ajuda para estabelecer o significado
dos Evangelhos? Não, respondem unanimemente os pan-qumranistas. Apenas
os Pergaminhos pertencem à época correta; os escritos rabínicos devem ser
ignorados, já que muitos (a maioria?) dos partidários desta escola não estão
geralmente familiarizados com os textos talmúdicos, mostram-se por demais
ansiosos em acolher esta dispensa abrangente da necessidade de travar relações
com escritos tão difíceis!
Para esclarecer a questão, deve-se avançar passo a passo. É permissível fazer
uso da literatura rabínica mais tardia para explicar os Evangelhos, de data
anterior? A resposta é claramente negativa caso o material contido nos documen­
tos rabínicos seja posterior, em um século ou mais, em relação ao Novo
Testamento, quanto ao conteúdo e não apenas na formulação ou redação, ou se

12 “Jewish Studies and New Testament Interpretation”, JW J 74-88, 173-5. Publicado originalmente
e m JJ5 3 3 (1 9 8 2 ), 361-76.
16 A Religião de Jesus, o Judeu

a similaridade entre eles é devida à dependência dos rabinos em relação aos


evangelistas.
Entretanto, é muito improvável e mesmo inconcebível que os sábios judeus
tomassem empréstimos diretamente dos Evangelhos. Realmente, com exceções
esporádicas e questionáveis, nenhum conhecimento dos Evangelhos e mais
ainda, nenhum desejo de aprendê-los, pode ser comprovado na literatura
rabínica. Mesmo as reações negativas ao Novo Testamento são raras e pertencem
a um período relativamente tardio, ao terceiro ou quarto século, quando íflgrej a
cristã já constituía uma ameaça ao judaísmo. Igualmente improvável é a teoria
de que todos os conteúdos registrados nas compilações rabínicas foram criados
na idade talmúdica. Tanto a evidência incluída nos próprios escritos quanto a
pesquisa crítica tendem a mostrar que estes documentos consistem, em grande
parte, de ensinamentos datados de séculos anteriores e retomados, freqüente-
mente reformados e revisados, pelos redatores do Talmude, etc.
Além disso, como é impossível afirmar, com algum grau de certeza, que
trabalhos judaicos similares ou idênticos quanto à forma ou conteúdo ao Targum
e ao Midrash rabínicos existissem em forma escrita no primeiro século A.D. ou
antes, seria inteiramente infundado postular que os evangelistas tivessem usado
esta literatura puramente conjectural, e mais ainda, assumir que este material
era substancialmente o mesmo que textos muito mais recentes e que nos são
conhecidos.
A hipótese que prefiro consideraria uma fonte comum, escrita ou oral —
pode ser chamada de tradição judaica (doutrinal, legal, exegética) — coerente
quanto ao conteúdo porém variável quanto à forma, fonte essa da qual depen­
deriam seja os evangelistas seja os escritos rabínicos em época mais tardia.
Se, além disso, o Novo Testamento, particularmente os Evangelhos Sinóticos
e a literatura rabínica deixem de ser considerados como entidades auto-suficien­
tes e autônomas e passem a ser olhados como produtos de uma criatividade
judaica literária e religiosa em contínua evolução, então a mensagem de Jesus e
suas reverberações em solo da Palestina podem ser percebidas dinamicamente
como um estágio, no primeiro século A.D., de um longo processo de desenvol­
vimento em que Bíblia, Apócrifos, Pseudo-epígrafos, Pergaminhos do Mar Morto,
Filo, Novo Testamento, Josefo, Mishnd, Tosefta, Targum, Midrash, Talmude,
liturgia e misticismo judaico inicial se completam, corrigem, esclarecem e
explicam mutuamente.
Em resumo, em vez de elevar o Novo Testamento ao status de um corpus
independente e doutrinalmente superior, de cunho central, final e conclusivo
como os teólogos freqüentemente costumam fazer, e relegar a literatura rabínica
a um mero papel ancilar, nós os trataremos, neste estudo da religião pregada e
praticada por Jesus, como um setor particular do mapa geral da história da
Jesus, 0 Judeu, e seu Evangelho 17

cultura judaica. E se nosso esforço for frutífero, talvez alguém se sinta tentado a
desentranhar deste estudo princípios metodológicos gerais para uso posterior!
A tarefa com a qual nos defrontamos é nova, pelo menos relativamente
falando, porque, após a revolução de Bultmann, o pensamento de Jesus’passou
a ser considerado tão inacessível quanto sua vida. Os pesquisadores evitavam
reconstruir o ensinamento do Mestre e passaram a investigar a teologia do Novo
Testamento (no livro de Bultmann, Theologie des Neuen Testaments (1965), a
pregação de Jesus, a pressuposição e não uma parte da teologia do Novo
Testamento é apresentada em 34 páginas no total de um volume de 620 páginas).
Mais recentemente, uma tendência ainda menos aventureira passou a prevalecer
e, em vez de investigar o ensinamento de todo o Novo Testamento, a atenção se
estreitou para se focalizar em evangelistas individuais ou em Paulo.
Nossa investigação se desenvolverá em três estágios. Em primeiro lugar, o
relacionamento de Jesus com o judaísmo vivo de sua época e a natureza, estilo
e conteúdo de suas próprias pregações serão apresentados à luz de uma análise
histórica minuciosa (capítulos 2, 3 e 4). Em seguida, a idéia de Deus como Rei
e Pai será investigada na atmosfera do entusiasmo escatológico de Jesus (capí­
tulos 5-6), levando naturalmente ao capítulo intitulado “Jesus o Homem Religio­
so”. Finalmente, um breve epílogo com a finalidade de colocar em nítido relevo
a diferença entre a religião de Jesus e o Cristianismo histórico e eclesiástico.
Jesus e a Lei:
O Judaísmo de Jesus

Qualquer estudo sobre Jesus, empreendido no quadro geral da especialidade do


Novo Testamento, mais cedo ou mais tarde é obrigado a se confrontar com as
atitudes de Jesus quanto à “Lei”. Jesus observava ou não a Torá de Moisés? Mais
importante ainda, ele a considerava ainda vigente ou tencionava ab-rogar,
substituir ou transformá-la? Estas questões parecem tão simples e as respostas
tão previsíveis que poucos pesquisadores se dão o trabalho de investigar o que
delas realmente decorre e, como resultado, segue-se um debate amplamente mal
concebido, confuso por definição, e levando frequentemente a enganos.

1 O Significado de “a Lei”‘

Consideremos os fatos. A Lei de Moisés não se restringe a minúcias ritualisticas


mas abrange toda a esfera da vida judaica. Determina regras para a agricultura,
comércio e posse de propriedades imóveis e móveis. Ocupa-se do casamento e
suas implicações financeiras; de compensações por danos materiais sofridos por
uma pessoa ou do prejuízo físico infligido por homens ou por animais que a eles
pertencem. A Torá legisla sobre roubo, violação, homicídio e muitas outras
matérias civis ou criminais para as quais juizes e tribunais tinham competência.
Resumindo, um roteiro de uma vida civilizada constitui grande parte das leis
mosaicas. Jesus rejeitava estas leis? Os Evangelhos Sinóticos, nossa principal
testemunha, não oferecem apoio para esta teoria. Mais ainda, já que não está
expresso nem sugerido nos Evangelhos que Jesus deixou de pagar suas dívidas,
feriu seus oponentes ou cometeu adultério, é razoável inferir que ele aceitava.

1 Sobre o problema geral, ver “Law and Society in Jesus’ World", AlNRW 25,1 (1982), 477-564 de
J. D. M. Derrett e, especialmente, Jewish Law from Jesus to the Mishnah: Five Studies (1990) de E.
P. Sanders.
20 A Religião de Jesus, o Judeu

respeitava e observava as leis e costumes que regulavam a existência privada e


pública vigentes entre seus compatriotas à sua época.^
Além desses setores da vida social que hoje chamaríamos de seculares,
emhora judeus e outros povos da antiguidade acreditassem que estes setores
eram governados por estatutos divinos, a Torá se ocupava também de questões
“religiosas”. Estas questões abrangiam, para começar, o Templo e seus sacrifícios
e, obviamente, o dízimo, taxas de culto e outras contribuições a sacerdotes e
levitas. Já que estes eram os principais organizadores da sociedade judaica na
idade bíblica, seus cargos, direitos e privilégios recebiam muita atenção na
escritura e subsequentemente ganharam uma importância aparentemente exa­
gerada aos olhos dos redatores sacerdotais do Pentateuco e suas posteriores
interpretações sacerdotais e leigas. A pureza ritual e as normas dietéticas eram
também essencialmente associadas ao culto. Pessoas que tivessem tido contato
com uma nidá (mulher menstruada) ou com um cadáver ou que simplesmente
tivessem tido relações sexuais permitidas, não eram obrigadas a comparecer
perante a corte. A consequência de tais atos ou infrações era que as pessoas
envolvidas eram excluídas, ou, mais precisamente, se excluíam da participação
em cultos no Templo até retornarem ao estado de pureza, usualmente por meio
de um banho ritual, embora nenhuma cerimônia de purificação seja prescrita
na Bíblia por ingerir alimento proibido (c f Sanders, Jevvish Law, 24).
A legislação do Shabat pertence basicamente ao mesmo domínio cúltico
embora não esteja diretamente relacionada ao Templo de Jerusalém. Mesmo
assim, representa uma categoria inteiramente diferente já que, de acordo com a
Bíblia e com a lei pós-bíblica, os infratores do Shabat, melhor dizendo, alguns
deles, podiam incorrer em pena de morte.^
Como Jesus distinguia entre o lícito e o ilícito no sétimo dia terá de ser
discutido mais tarde; mas podemos observar, imediatamente, que não existe
nenhum registro de que ele tenha sido denunciado às autoridades encarregadas

Enquanto a autenticidade histórica das polêmicas do Evangelho com os fariseus e outros grupos
seja mais que duvidosa é, mesmo assim, altamente significativa para a representação geral de
Jesus que, quando perguntado se os judeus deveriam pagar impostos a Roma, ele é mostrado
como defensor das exigências imperiais (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25).
O Decálogo (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15) proíbe simplesmente trabalhar no Shabat. Os atos proibidos
são especificados apenas incidentalmente na Bíblia: viajar (Ex 16,29), arar (Ex 34,21), acender
fogo (Ex 35,3), apanhar gravetos (Nm 15,32-36) e comerciar (Ne 10,31). A penalidade por não
guardar o Shabat é indicada apenas uma vez, no caso particular do homem que recolhia gravetos
no deserto (Nm 15,35-36). Temos de esperar até o Livro dos Jubileus (50,6-9), de meados do
segundo século a.C. e os estatutos do Documento de Damasco (10,14-12.6), meio século após,
até encontrar as primeiras tentativas de sistematização e até a seção relevante da Mishná (Shab.
7.2), antes de obter uma lista detalhada das trinta e nove classes de ações proscritas. Tanto Jubileus
(50.8) quanto a Mishná (Sanh. 7.4) declaram que a não observância do Shabat é passivel de pena
de morte, isto é, por apedrejamento ao fim de um julgamento, de acordo com a Mishná. Ver
também Sanders, Jewísh Law, 16-19.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 21

da lei criminal judaica por mau comportamento público a este respeito. Ele nem
é criticado abertamente por operar curas no Shabat. O comentário mais próximo
relatado a este respeito é uma censura endereçada pelo dirigente de uma
sinagoga da Galiléia a seus congregados que pediam para ser curados no Shabat
de preferência a qualquer outro dia da semana (Lc 13,14). Se, como se argumenta
freqüentemente, os evangelistas tivessem como intento inculcar, em membros
da igreja gentia, uma doutrina cristã tal como a revogação da legislação do Shabat
por meio de um relato ficticio da vida de Jesus, eles fizeram um trabalho
lastimável e não conseguiram provar a tese que defendem.

II A Imagem de Jesus no Evangelho


como um Judeu Observante

Mais positivamente, a representação geral de Jesus que emerge dos Evangelhos


Sinóticos é a de um judeu que observa as principais práticas religiosas de sua
nação. Não é essencial, neste momento, investigar a autenticidade das passa­
gens em questão. O mais importante é a impressão geral transmitida pelos
narradores, principalmente porque conflita com a antipatia da igreja paulina
por todas formas de “judaização”.
De início, Jesus é regularmente associado com sinagogas, centros de culto e
de ensino. Encontramos referências gerais à sua presença nestes centros da
Galiléia, por vezes especificamente no Shabat. Duas dessas sinagogas, uma em
Cafarnaum (M c l,2 1 ;L c 4 ,3 1 )e a outra em Nazaré (Lc 4,15), são especificamente
designadas. Ao que parece, ele era uma figura familiar nesses círculos, como mestre
e pregador de grande originalidade muito solicitado, bem como operador de curas,
carismático e exorcista altamente admirado (Mc 1,39; Mt 4,23; Lc 4,44, etc.).“*
Se nos atermos aos Evangelhos Sinóticos e deixarmos de lado a narrativa
não histórica da infância que encontramos em Lucas, o elo entre Jesus e o Templo
de Jerusalém é tenuemente documentado, já que apenas uma visita à capital é
mencionada. Mesmo assim, ele aparece em todos os três Evangelhos como um
homem que, em obediência à lei bíblica, vinha a Jerusalém no Pessah, um dos
festivais de peregrinação obrigatória. Visitava o santuário, onde a atmosfera
profana que reinava na área dos mercadores o incitou a uma intervenção violenta
que pode ter contribuído substancialmente para decidir seu destino. Entretanto,
quando se acalmou, é relatado que ensinava todos o dias no pátio do Templo,
aparentemente sem ser molestado, embora provavelmente vigiado pelas autori­
dades (Mc 11,15;14,49; Mt 21,12; 26,55; Lc 19,45; 22,53, etc.).

4 Cf. JJ, 22-31.


22 A Religião de Jesus, o Judeu

Pode ser de interesse ressaltar que ele não é representado, em nenhum lugar,
participando de atos de culto. De fato, isto também se aplica à sua presença na
sinagoga, com uma exceção. Lc 4,16-21 relata um episódio em Nazaré quando
Jesus participou publicamente do serviço: leu um trecho profético da Bíblia (Is
61) e continuou com uma interpretação de cunho de cumprimento de profecia,
reminiscente da espécie de exegese da Bíblia pela qual os Pergaminhos do Mar
Morto são famosos (cf. abaixo, “Jesus o Mestre”, 61-66). Tanto no Templo quanto
na sinagoga, desempenhou o papel de mestre e, embora todos os três Sinóticos
lhe atribuam uma doutrina profética identificando o santuário como uma casa
de oração (Mc 11,17; Mt 21,13; Lc 19,46), não encontramos em seus Evangelhos
nenhuma menção de que ele tenha recitado os salmos e bênçãos usuais nem no
Templo nem em nenhuma outra sinagoga.
Antecipando nosso exame do local de oração no comportamento religioso de
Jesus, deve-se ressaltar que os escritores do Evangelho procuram descrevê-lo,
provavelmente de forma correta, como interessado principalmente na oração
não-comunitária. Freqüentemente encontramos Jesus dirigindo-se a Deus em locais
solitários, ou pelo menos, a alguma distância de outras pessoas: no deserto (Mc
1,35; Lc 5,15), no topo de uma montanha (Mc 6,46; Mt 14,23; Lc 6,12), no jardim
de Getsêmani, longe de seus discípulos (Mc 14,32-41; Mt 26,36-44; Lc 22,41-45).
Sua única bênção não litúrgica em público segue-se à colocação de suas mãos sobre
crianças, mas mesmo neste caso a referência ã oração é encontrada apenas em Mt
19,13 e não aparece nos versículos correspondentes em Marcos e Lucas. Esta
consistente omissão de participação no culto pode ser atribuída à ênfase dada por
Jesus ao caráter particular, não ostensivo e mesmo secreto da oração (Mt 6,5-6; Mc
12,40; Mt 23,14; Lc 20,47). Em contraste, depois da Ascensão, os apóstolos “ficavam
continuamente no Templo, louvando a Deus” (Lc 24,53); “dia após dia, todos juntos,
mostravam-se assíduos no Templo” (At 2,46); “Pedro e João subiam ao Templo na
hora da oração” (At 3,1). Entretanto, o judeu mais conservador entre eles era Paulo
que não só cultuava no santuário (At 22,17) como é o único cristão a ser descrito se
submetendo a uma purificação ritual e fazendo uma oferenda no Templo (At 21,26)!
Além de frequentar sinagogas e ser um peregrino do Templo, Jesus é retratado
como observante de mandamentos particulares de importância ritual. O principal
entre estes é guardar, ou, falando mais concretamente, comer o Pessah (Mc 14,12-16;
Mt 26,17-19; Lc 22,7-15). O Pessah era uma celebração familiar, embora à época
do Segundo Templo estivesse também ligado ao santuário onde era sacrificado o
cordeiro de Pessah. Assim, apesar dos problemas relativos à cronologia da crucifi­
cação, os evangelistas não hesitaram em fazer crer a seus leitores quejesus cumpria
fielmente os mandamentos referentes a este festival.^

5 Para um estudo detalhado do festival, cf. J. B. Segal, The Hebrew Passover from the Earliest Time
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 23

Neste momento caberia a observação de que a historicidade da Última Ceia


como refeição pascal é um assunto ardentemente debatido, cuja solução não nos
concerne diretamente. O fato de os três evangelistas sinóticos afirmarem que
Jesus deu instruções para a preparação do ritual pascal basta para provar que
eles o consideravam como observante da Lei. João, é verdade, não se refere ao
evento; mesmo assim, menciona várias peregrinações de Pessah de Jesus o que
implicaria que esta observação dos ritos essenciais do festival eram consideradas
com naturalidade.
Abrindo um parêntese, a autenticidade histórica do estabelecimento da
eucaristia como instituição permanente depende não apenas da determinação
da refeição como uma ceia de Pessah, celebrada na data correta — com o
decorrente problema da crucificação ocorrendo em dia festivo, como também se
Jesus tenha jamais considerado a fundação de uma igreja duradoura (d .JW J, x,
50-51, e pp. 173-178, 196-197 adiante). Em todo caso, a idéia de ingerir o corpo
de um homem e especialmente de beber seu sangue (Mc 14,22-24; Mt 26,26-28;
Lc 22,17-20), mesmo admitindo que se trate de linguagem metafórica, parece
algo de totalmente estranho ao contexto cultural judaico e palestiniano (cf. Jo
6,52). Com seu tabu do sangue profundamente enraizado, a audiência de Jesus
seria tomada de náuseas ao ouvir tais palavras.
Duas outras passagens do Evangelho, uma descritiva e a outra narrativa,
contribuirão ainda mais para a definição geral das tendências religiosas de Jesus.
Em diferentes momentos, os evangelistas revelam, como que fortuitamente, que,
em conformidade com o preceito de Moisés (Nm 15,38-40) Jesus usava uma
túnica cuja borda era guarnecida de “franjas” (kraspeda = tsitsiyot). Em ambos
casos, trata-se de narrativas de cura (Mt 9,20; Lc 8,44 e Mc 6,56; Mt 14,36). Se
a menção de tocar a extremidade inferior das vestes do carismático indica
simplesmente humildade e admiração por parte da pessoa que busca uma cura
sobrenatural ou se, na imaginação popular, as franjas eram dotadas de poder
miraculoso, a questão não precisa ser esclarecida neste ponto.*
Outro indicador acidental da observância de Jesus quanto à Lei, ou seja, o
dever de pagar a didracma da taxa do Templo, aparece em Mt 17,24-27. O
episódio é introduzido como de importância secundária; ocorre apenas num

10 A.D. 70 (1963). Casojesus tenha participado da ceia de Pessah na data correta, seu julgamento
e execução, com a ajuda e consentimento de dirigentes judeus, ocorreram no próprio dia festivo,
eventualidade praticamente impossível.
As crianças que pediam o fim de uma estiagem ao carismático operador de milagres Hanan, neto
de Honi, o desenhador de círculos, pegaram a borda de seu manto (shippule gelimeh) e gritaram
“Abba, Abba, dá-nos chuva!” (bTaan. 23b). Uma história rablnica preservada no Midrash tanaitico
Sifre referente a Nm 115 (ed. S. H. Horovitz, 128-9) e no Talmude (bMen 44a) relata como um
jovem judeu, preparando-se para ir para a cama com uma bela prostituta de alta classe, foi
impedido de pecar pela intervenção miraculosa das franjas de sua roupa.
24 A Religião de Jesus, o Judeu

único Evangelho e é narrado, se não estou enganado, com um certo humor


dissimulado. O primeiro peixe que Pedro pescasse teria na boca uma moeda de
uma dracma, suficiente para que Jesus e Pedro cumprissem sua obrigação, de
modo que os publicanos não ficassem escandalizados. Histórica ou não em sua
essência, a narrativa mostra Jesus disposto a contribuir, tal como (pelo menos
em princípio) todos os adultos judeus da Palestina e da Diáspora, para a
manutenção legalmente ordenada do Templo de Jerusalém.^

III O Ensinamento Autêntico e Presumido de Jesus sobre a Lei

Grandes bibliotecas têm sido escritas sobre o problema de como discernir o


genuíno ensinamento de Jesus, separando a mensagem autêntica de dizeres
formulados pela igreja primitiva e colocados nos lábios do Mestre. Foram
estabelecidos critérios para distinguir os dois, embora a pesquisa profissional
do Novo Testamento durante os últimos cinqúenta ou sessenta anos mostrasse
uma tendência pessimista sobre tal possibilidade e tenha revelado mais interesse
na teologia do Novo Testamento ou de um evangelista em particular do que no
prístino ensinamento do próprio Jesus.®
Admitindo que a certeza, na maioria dos casos, se encontra além do alcance
do pesquisador e que o melhor que ele pode usualmente esperar é alcançar um
alto grau de verossimilhança, eu gostaria de prefaciar minha pesquisa com duas
hipóteses básicas. Ambas derivam, positiva ou negativamente, do princípio do
cui bono: quem pode ganhar inventando o ensinamento em questão? Um
pronunciamento que serve aos interesses da cristandade gentílica em seus
primórdios e não se harmoniza com a perspectiva geral de Jesus é provavelmente
produto da igreja primitiva. Em contraste, se nos defrontamos com uma doutrina
contrária e de impossível conciliação com as necessidades eclesiásticas, pode-se
presumir sua autenticidade histórica.
Muitos dps pronunciamentos de Jesus a respeito da Lei pertencem demons-
travelmente a esta categoria, contanto que seja afastada uma objeção especial­
mente levantada contra sua autenticidade. Uma boa proporção da doutrina
pertinente de Jesus sobreviveu apenas em Mateus. Mas, objeta-se por vezes, este
evangelista judeu-cristão superpôs uma coloração judaica a certos pronuncia­
mentos de Jesus, originalmente expressos em termos universais. Embora tal
compreensão do desenvolvimento doutrinal da cristandade palestina seja, em

Sobre a taxa da didracma, ver HJP II, 271-2. Para evidência adicional de Qumran, ver DJD VII
(4Q 513) e DSSE (3), 297-8, Cf. também Sanders, Jewish Law, 49-51.
Cf. JW J, 18-25. Como tentativa interessante porém não inteiramente bem-sucedida, ver N. Perrin,
Rediscovering the Teaching o f Jesus (1967).
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 25

minha opinião, intrinsecamente infundada, não a rejeitarei sem discussão mas


tentarei, em primeiro lugar, estabelecer o ponto de vista de Jesus com a ajuda de
fontes encontradas não exclusivamente em Mateus e, em seguida, examinar como
o material especial transmitido por este evangelista se relaciona com a tradição
preservada em outras fontes.

1. Adesão de Jesus à Lei cultual (Mc 1,44; Mt 8,64; Lc 5,14)

Além da representação de Jesus como um judeu observante da Torá,


inclusive em detalhes não éticos como o uso de franjas nas vestes ou o pagamento
da taxa do Templo, os três Evangelhos Sinóticos relatam que, após curar um
leproso, ele lhe ordenou que se apresentasse ao sacerdote para ser examinado
e, quando declarado “purificado”, desempenhasse os ritos de sacrifício prescritos
em Levítico 14,1-7.

Não digas nada a ninguém; mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por
tua purificação aquilo que Moisés prescreveu (Mc 1,44).

O quadro reflete perfeitamente a situação relatada num dos Pergaminhos do Mar


Morto, onde ênfase especial é dada ao monopólio sacerdotal do tratamento da
lepra (CD 13,3-7). Jesus recomenda expressamente ao homem não apenas de se
apresentar perante um sacerdote qua funcionário da saúde pública, bem como
cumprir a injunçào mosaica. O episódio, apesar da menção de Mateus (8,1),
numa expressão editorial (cf .HST, 351), da presença de “grandes multidóes”,
parece ter acontecido sem observadores; do contrário, a injunçào do segredo não
teria sentido. Daí, a única inferência lógica é quejesus espontaneamente insistiu,
mesmo num contexto puramente ritual, numa aderência estrita à Torá.®

2. A validade da Torá como um todo

A assim chamada fonte Q (cf. ÍDBS, 715-6), constituída de declarações


doutrinais ausentes em Marcos porém comum a Lucas e Mateus, embora apare­
cendo freqüentemente em contextos diferentes, contém um pronunciamento
proverbial de Jesus que, prima fa d e , contradiz de forma irreconciliável o antino-
mismo paulino e cristão. De forma não surpreendente, os redatores dos dois
Evangelhos tentam enfraquecer seu impacto, mas a própria continuação do
pronunciamento implica que Jesus não considerava possível qualquer revoga­
ção, seja por inteiro ou em parte, das prescrições mosaicas durante o limitado

A correção desta interpretação é apoiada pelas diferenças notadas no relato de Lucas da cura de
dez leprosos (Lc 17.11-19) que não contém nenhuma referência à observância das prescrições
rituais. Também é típica de Lucas a observação de que apenas um samaritano, e nenhum dos
nove judeus, voltou para agradecer a Jesus.
26 A Religião de Jesus, o Judeu

futuro que, em sua opinião, pertencia à idade de então. Aversão de Lucas (16,17)
diz:

É mais fácil passar o céu e a terra do que cair um título da Lei.

A sentença assevera a permanência do menor detalhe da Toró.'® A asserção de


Lucas é absoluta; na ordem do mundo, divinamente predestinada, a desintegra­
ção do cosmo é menos difícil de conjeturar que a perda de um único “título” da
Lei. Já que, a não ser a judeu-cristandade que o terceiro evangelista não poderia
concebivelmente representar, nenhum ramo da igreja primitiva acolheria de bom
grado a afirmação direta da permanência da Lei, é verdadeiramente supreenden-
te que esta asserção tenha sobrevivido em sua brusca simplicidade. Lucas não
modificou a afirmação na edição, mas como logo veremos, tentou outros meios
de fixar um limite para a duração da validade da Lei.
Em sua formulação paralela Mateus declara:

Em verdade vos digo, até que desapareçam céu e terra, não desaparecerão
nem um iota nem um título da Lei, até que tudo seja cumprido (Mt 5,18).

Aqui, o evangelista, além de empregar uma expressão idiomática em hebraico,


apesar da forma helenizada (iota),^^ introduziu ainda uma cláusula temporal “Até
que tudo seja cumprido”.
Tomada separadamente, a expressão “até que tudo seja cumprido” pode
simplesmente enfatizar a natureza continuamente obrigacional da Torá, o que
atenderia perfeitamente às necessidades da igreja palestiniana. O mesmo se
aplica ao versículo seguinte, geralmente considerado como sendo uma criação
judeu-cristã: “Aquele, porém, que violar um só desses mandamentos menores e
ensinar aos homens a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino do Céu.

10 Para o uso, cm grego, ver Filo, Flacc, 1 3 1 .0 termo faz alusão aos ornamentos artísticos das letras
hebraicas usados por escribas da Bíblia e conhecidos como qots (espinho, gancho) ou keter
(coroa). Uma história irônica, preservada no Talmude Babilónico (bMen. 29b), descreve Deus
como um escriba da Torá que coloca “coroas” nas letras. Ele explica a Moisés que o propósito da
decoração é permitir que o futuro Rabi Akiba, no segundo século A.D., dependure quantidades
de refinamentos legais em cada “gancho”.
11 O iota e o titulo, ou seja yod e qots em hebraico, aparecem lado a lado numa história rabínica
independente da tradição do Evangelho; nesta história o rei Salomão é retratado se imiscuindo
com a Lei. “Ele disse: Por que o Senhor Todo-Poderoso - bendito seja, disse (referindo-se ao rei),
‘Ele não multiplicará (yrbh) suas mulheres’ (Dt 17,17)? Apenas para que ‘o coração do rei não se
desencaminhe’. Eu as multiplicarei ( ’rbh) mas meu coração não se desencaminhará. Nossos sábios
disseram: Naquele momento, a letra yod levantou-se e se prostou diante do Senhor - bendito
seja — e disse: Senhor do universo, não dissestes que nenhuma letra da Torá será jamais
destruída? Vede, Salomão me destruiu, substituindo um _yod por um aleph, quer dizer, mudando
yrbh por ’rbh. Uma Iletra) hoje, outra amanhã até que toda a Torá seja destruída. O Senhor —
bendito seja - respondeu: Salomão e outros mil como ele podem tentar destruir mas eu não
permitirei que um título da Torá seja destruído”. (Ex R. 6,1).
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 27

Aquele, porém, que os praticar e ensinar, esse será chamado grande no Reino
do Céu” (Mt 5,19). Entretanto, no quadro mais amplo da cristandade gentia, que
proporcionou um abrigo duradouro para este Evangelho, é possível interpretar
o texto acima como uma alusão ou ao fim da Torá e do Antigo Testamento em
virtude do estabelecimento de uma Nova Aliança ou a uma situação judeu-cristã
prevalente depois da destruição de Jerusalém em 70 A.D., quando um segmento
substancial da Lei e toda a legislação do Templo tomaram-se impraticáveis.*^
Lucas, como já foi notado, reproduz em seu Evangelho uma declaração
incondicional quanto à continuidade da Lei, criando assim uma séria dificuldade
para a igreja gentílica. Ele tenta, então, contornar essa dificuldade ligando-a a
um pronunciamento separado com o objetivo de determinar a posição de João
Batista e da Torá na ordem escatológica:

A Lei e os Profetas vigoraram até João. Daí em diante, é anunciada a boa


nova do reino de Deus, e todos entraram nele, com violência. (Lc 16,16)

Isto significaria que no período pós-João a Torá pertenceria ao passado, de modo


que o impacto chocante do versículo que se segue é esvaziado em grande parte.
Mt 11,13 é similar, porém formulado mais habilmente, considerando a Lei como
investida do papel de profecia; “Pois todos os profetas bem como a Lei profeti­
zaram até João”. Uma idéia semelhante de cumprimento de profecia está
incorporada na frase introdutória de Mateus, anteposta a 5,18. “Não penseis que
vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumpri­
mento” (Mt 5,17).’^
Em resumo, guardando em mente o sentido óbvio das palavras de Lc 16,17
(e Mt 5,18), comparado com a artificialidade confusa do esforço de Lucas em
esvaziá-lo de seu conteúdo e a sagaz habilidade editorial de Mateus no sentido
de provê-lo de sentido após a destruição do mundo judeu-cristão no final do
primeiro século A.D., o leitor desta passagem, munido de instrução histórica,
deve concluir que alguma espécie de restrição à natureza da obrigatoriedade
permanente da Lei mosaica era uma absoluta necessidade para a igreja primitiva
e que, como conseqüência, a única explicação aceitável para sua inclusão
incondicional em Lucas e mesmo em Mateus é que se trata de afirmação autêntica
de Jesus que o evangelista se sentiu incapaz de suprimir. Obrigado a passá-la
adiante, ele o fez em forma “de interpretação”.

12 Cf. W. D. Davies, The Sermon on the Mount (1964), 334; JWJ, 161, n. 16.
13 Cf. JW J, 161, n. 16. Os antônimos “revogar/cumprir” correspondem ao hebraico-aramaico
lebattel-khattela/ leqqayem-ieqqayema. Um bom paralelo c fornecido pela Mishná: “Aquele que
cumpre a Torá na pobreza, a cumprirá mais tarde na riqueza; e aquele que revoga a Torá (quer
dizer, não a observa como se ela estivesse nula e vazia) a revogará mais tarde na pobreza” (mAb.
4,9).
28 A Religião de Jesus, o Judeu

3. Alguma vezjesus se opôs à Lei?

Uma resposta direta a esta pergunta deve ser firmemente negativa (a questão
de equacionar o perdão dos pecados com blasfêmia será tratada mais tarde
(pp.175-6). Em nenhum trecho do Evangelho Jesus é visto tomando deliberada-
mente a iniciativa de negar ou de alterar substancialmente qualquer mandamen­
to da Torá em si. As declarações controvertidas giram em torno seja de leis
conflitantes, quando uma cancela a outra, seja na compreensão precisa de toda
a extensão de um preceito. Ambas categorias podem ter ingredientes rituais bem
como ético-religiosos.
Para ser mais explícito, a atitude de Jesus quanto à legislação do Shabat,
especialmente em conexão com a realização de curas, mas também no episódio
em que os discípulos colhem espigas de milho, ocasionou, como tem sido
observado, alguma preocupação. Do mesmo modo, sua atitude em relação à
kashrut, isto é, os preceitos relativos a alimentos puros e impuros, é freqüente-
mente tomada pelos intérpretes cristãos dos Evangelhos como não sendo
tradicional. Deslocando-se do domínio ritual para o moral, sua ordem a um
futuro discípulo de segui-lo imediatamente, à custa do dever de enterrar o pai,
é também interpretada por especialistas do Novo Testamento como uma impie­
dade na perspectiva judaica. Finalmente, o contraste entre “Ouvistes o que foi
dito”, introduzindo um mandamento bíblico e, “mas eu vos digo”, é interpretado
como prova de que ele estava realmente pronto a desdenhar a Torá ou, ainda
mais grave, a revogar a “velha” Lei e substituí-la por um novo código.

(a) Jesus e as leis rituais.

(i) O Shabat

As curas atribuídas a Jesus no Shabat são poucas e não muito freqüentes.


Dos três eventos registrados, o caso do homem com a mão atrofiada é atestado
por todos os três evangelistas sinóticos (Mc 3,1-6; Mt 12,9-14; Lc 6,6-11) mas a
cura da mulher encurvada (Lc 13,10-17) e do homem que sofria de hidropisia
são testemunhados apenas em Lucas (Lc 13,10-17; 14,1-6). Observadores con­
servadores e hostis julgaram perturbador o comportamento de Jesus, embora
não patentemente ilegal. Daí, algumas questões tinham de ser levantadas. De
acordo com os relatos do Evangelho, estas questões foram formuladas seja por
críticos de Jesus, “É permitido curar no Shabat?” (Mt 12,10), seja pelo próprio
Jesus para finalidades didáticas, “É permitido, no Shabat, fazer o bem ou fazer
o mal, salvar a vida ou matar?” (Mc 3,4; Lc 6,9; cf. Lc 14,3).'“'

14 A pergunta é retórica e a fórmula antitética é quase auto-explicativa. Não é permitido praticar o


Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 29

Confrontamo-nos aqui com o habitual conflito entre mandamentos e com a


questão de qual dos dois é preponderante. O principio geral nunca esteve em
dúvida no judaísmo; salvar vidas sempre teve a prioridade. Em relação a Ex
31,13-16, o midrash tanaítico, Mekhilta de Rabi Ishmael (ed. Lauterbach 111,
197-9) faz a pergunta: “Como sabemos que o dever de salvar uma vida é mais
importante que as leis do Shabat?” Dois rabis do segundo século A.D. respondem
afirmativamente por meio de um raciocínio a fortiori: a circuncisão, que afeta
apenas uma parte do corpo, é lícita no Shabat (Eleazar ben Azariá); a execução
de um assassino (ou seja, tirar uma vida) é mais importante que o serviço do
Templo; o serviço do Templo tem precedência sobre o Shabat (R. Akiba); que
dizer então de salvar todo um corpo, uma vida. Ou, mais concisamente,
“Consideração pela vida prevalece sobre o Shabat” (bYoma 85b). Além disso, no
caso de qualquer dúvida quanto à gravidade potencial de uma doença, a
presunção legal favorece uma intervenção e a Mtshná (Yoma 8,6) cita o princípio:
“Sempre que houver dúvida relativa a perigo de vida (o caso discutido é uma
dor de garganta!), a questão é mais importante que o Shabat.” Caso o próprio
Jesus sentisse ser necessário defender suas ações verbalmente, ou, mais prova­
velmente, seus seguidores judeu-cristãos o fizeram mais tarde, a atitude básica
de Jesus e seus argumentos — ou de seus discípulos, são os mesmos que os dos
rabis; um judeu pode levantar, no Shabat, uma ovelha que caiu numa vala; a
fortiori uma vida humana pode ser salva (Mt 12,11-12); pode tirar de um poço
tanto seu filho quanto um boi (Lc 14,5).
Resumindo, de acordo com as palavras colocadas por Mateus (12,12) nos
lábios de Jesus, “É lícito praticar o bem no Shabat”. Todo o debate, entretanto,
parece ser uma tempestade em copo de água já que nenhuma das curas de Jesus
demandava “trabalho” mas eram operadas por meio de palavras ou, no máximo,
pela imposição de mãos ou outro contato físico simples.^®
É digno de nota que, no relato de Lucas (13,10-17), a cura da mulher que
sofria de curvatura da espinha, retratada em linguagem de mágica como uma
pessoa “atada” pelo diabo, é descrita como um ato de “liberação”: “Cada um de
vós, no sábado, não desata seu boi ou seu asno do estábulo para levá-lo a beber?
E esta filha de Abraão que Satanás atou há dezoito anos, não convinha desatá-la

mal, nem ferir nem matar no Shabat ou em qualquer outro dia. Deve-se pois dar ênfase ao ato
positivo: fazer o bem, isto é, salvar a vida. Na realidade, aqueles que se abstêm de fazê-lo são, por
implicação, culpados de homicídio.
15 Esta era, ao que parece, a opinião de conciliação. O Documento de Damasco sugere que os
essênios, conhecidos por sua observância rigorosa do Shabat, adotavam uma linha de ação muito
mais dura, proibindo cuidar de um animal ao dar cria e prestar socorro a um animal caído numa
cisterna ou numa vala no sagrado dia de descanso (CD 11,13-14). Cf. L. H. Schiffman, The
H alakhah at Qumran (1975), 122-3.
16 C i.JW J, 46-7; Sanders, Jewísh Law, 19-23.
30 A Religião de Jesus, o Judeu

no Shabat?” É interessante notar que, aqui, a expressão metafórica de atar e


desatar é usada num argumento a fortiori contra o costumeiro amarrar e
desamarrar de animais domésticos no Shabat embora, em principio, ambos os
atos sejam caracterizados como trabalho na Mishná (Shab. 7,2).
A segunda alegação, de que Jesus teria desrespeitado a opinião geral no
mesmo terreno do repouso sabático, prende-se a um episódio, sem dúvida mais
didático que histórico, que figura em todos os sinóticos (Mc 2,23-28; Mt 12,1-8;
Lc 6,1-5). Atravessando um campo no Shabat, os discipulos, mas não Jesus,
arrancaram espigas de milho, possivelmente as debulharam com as mãos (Lc
6,1) e as comeram. Embora este ato, praticado em campo alheio, não fosse
considerado crime segundo a lei bíblica (Dt 23,25), poderia ser compreendido
como transgressão ás normas do Shabat que, juntamente com trinta e oito outros
atos de “trabalho”, proíbe “colher” (mShab.7,2), o que poderia se aplicar a
arrancar espigas de milho. O argumento principal, preservado nos três sinóticos
(Mc 2,25-26; Mt 12,3-4; Lc 6,3-4), segundo o qual a violação do Shabat é relevada,
é que a fome (que pode levar à inanição e portanto à morte), se insere na categoria
do perigo de vida. Logo, aliviar a fome é mais importante que a lei do Shabat,
do mesmo modo que é relevada, no caso de Davi e de seus soldados famintos,
a proibição de leigos comerem do pão consagrado, destinado apenas aos
sacerdotes (cf. Lev 24,5-9 e lSm21,l-7).^^
A resposta sucinta atribuída a Jesus em Mc 2,27. “O Shabat foi entregue ao
homem e não o homem ao Shabat”, tem firmes raízes no pensamento rabínico.
Ainda no mesmo extrato da Mekhilta, não influenciada pelo Novo Testamento,
R. Simão ben Menasiá, mestre tanaítico do final do segundo século A.D., apregoa
a mesma doutrina em relação a Ex 31-14, “Guardarás o Shabat porque é santo
para ti “; “O Shabat é dado a t i e não tu ao Shabat”. A mesma exegese é transmitida
em nome de R. Jônatas ben José, discípulo de R. Ishmael (bYoma 85b). A
declaração atribuída a Jesus certamente não é a fonte da declaração rabínica; ela
na verdade sugere que a idéia era corrente por algum tempo, antes que os tanaim
do segundo século lhe dessem uma justificação exegética. De maneira geral, a
observação do Shabat no segundo século, e provavelmente também no primeiro,
era subserviente ao bem-estar essencial de um judeu. Nas palavras de Rabi Natã,
“Vede o que é dito, ‘Portanto, os filhos de Israel guardarão o Shabat e o
observarão de geração a geração’ (Ex 31,16) - Um Shabat pode ser profanado

17 Mt 12,5 introduz outra justificação; arrancar espigas de milho com uma finalidade válida, não
constitui maior violação ao Shabat que o “trabalho” executado pelos sacerdotes no dia de
descanso. Na passagem da Mekhilta acima citada (p. 29), Rabi Akiba apresenta o mesmo
argumento, isto é, que o serviço do Templo anula as regras do Shabat. Finalmente, em Mt 12,7,
o célebre axioma profético é invocado quando exigências de moralidade assumem precedência
quanto a regras cerimoniais; “Desejo compaixão e não sacrifício” (Os 6,6).
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 31

para que se possa guardar muitos (outros) Shabats” (Mekhilta, ed. Lauterbach
III, 198-9).

(ii) As leis dietéticas

Deixando de lado a controvérsia em Mc 7 e Mt 15, referente às regras


tradicionais no que toca lavar as mãos antes das refeições e que pode ser devida a
uma maior estima pela Bíblia que a costumes ancestrais — os culpados são, mais
uma vez, os discipulos e não Jesus — a atenção pode ser focada na afirmação crucial
de Marcos de que Jesus tinha declarado todos os alimentos puros (Mc 7,19),
revogando assim um segmento substancial da Torá de Moisés (cf JW J 46 e n. 19).
O debate ainda não estã encerrado e argumentos eruditos continuam a ser expostos
com a finalidade de determinar a posição de Jesus face à Halahá corrente em sua
época.'” Poderia, no entanto, parecer que os pesquisadores do Novo Testamento se
envolvem aqui em discussões laterais. Por um lado, consideram Jesus como um
rabi, preocupado com filigranas legais, quando qualquer leitura séria dos Evange­
lhos deveria revelar que ele não pertencia a essa estirpe. Mais particularmente, o que
quer que fosse que ele desejava transmitir por “Ouvi e entendei: nada há no exterior
do homem que, penetrando nele, o possa tomar impuro; mas o que sai do homem,
é o que o toma impuro” Mt 15,11-12; Mc 7,14-15), máxima interpretada magistral­
mente por Sanders (Jewish Law, 28), não se tratava certamente de uma ab-rogação
das leis dietéticas. Na verdade, se a expressão “purificar todos os alimentos”, que
aparece em Mc 7,19, mas não em Mt 15,17, estiver corretamente parafraseada como
“Assim declarou puros todos os alimentos”, só pode ser vista como uma glosa
introduzida pelo redator de Marcos, não tendo nada a ver com a narrativa original
e muito menos com Jesus. Esta é a hipótese mais provável, já que a primeira geração
dos seguidores de Jesus viviam em total ignorância da revogação da distinção entre
alimento puro e impuro. A reação de Pedro ã ordem de uma voz celeste, “Mata e
come!”, no decorrer de uma visão em que todas as espécies de animais desciam do
céu seguros por um lençol, é instintiva e explosiva: “De modo nenhum. Senhor, pois
jamais comi coisa alguma profana ou impura” (At 10,13-14). Mais uma vez, para
aborrecimento de Paulo e Bamabé, Pedro “e o resto dos judeus”, na igreja cristã de
Antioquia, sentiram-se obrigados a abandonar o convívio à mesa com cristãos
gentios, o que faziam prazerosamente antes da visita dos “homens de Tiago” isto é,
membros estritamente praticantes ou “judaizantes” da comunidade de Jerusalém
(G1 2,11-14). Estes relatos não teriam nenhum sentido se Jesus tivesse de fato
“declarado puros todos os alimentos”.'®

18 Roger P. Booth, Jesus and the Laws o f Purity: Tradition History and Legal History in M ark 7 (1986)
e panicularmenie E. P. Sanders, Jewish Law, capítulos 1, 111 e IV.
19 Quanto à interpretação de Mc 7,14-22, ver J J 28-29, 232. Observar também a exegese de Julius
32 A Religião de Jesus, o Judeu

Em suma, quer no âmbito das leis do Shabat ou dos regulamentos dietéticos,


não se pode sustentar quejesus se opunha à sua observância. Sua abordagem e
percepção da mensagem principal da Torá podem trazer uma marca individual
mas, nem de modo geral nem em qualquer ponto particular, ele pode ser
identificado como um mestre antinomiano.“

(b) Jesus e as leis morais

(i) A devoção filial

A maior parte do ensinamento de Jesus em matéria ética se prende a uma


interpretação direta ou indireta do Decálogo. Sua adesão implícita ao quinto
mandamento manifesta-se em suas admoestações quanto à irreligiosidade, diri­
gidas a um grupo de fariseus em Jerusalém ou a escribas que visitavam a Galiléia
(Mc 7,1; Mt 15,1). Eles são acusados de terem elevado o cumprimento de um
voto que requeria uma doação ao Templo, regra tradicional conhecida como
qorhan, acima do dever de prestar assistência aos pais, embora este último derive
de uma injunçào divina “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12; Dt 5,16).^^
De qualquer modo, e apesar da ênfase habitual de Jesus ao caráter essencial
dos Dez Mandamentos (cf. abaixo), não se pode negar que lhe são atribuídas
três afirmações que não são de todo consoantes com a devoção filial. Assim, ele
proclama que ouvir a palavra de Deus tem precedência sobre o mero parentesco
natural, e também que mãe e irmãos não ocupam lugar especial quando se trata
de pregar o Reino do céu. Assim, Jesus declara:

Quem cumprir a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe
(Mc 3,35; cfMt 12,50).

Welhausen na qual o grego aphedron, bem como seu substituto achetas no códice D, é tomado
no sentido de “canal intestinal’’: “Der Darmkanal reinigt die Speisen, indem er das Unreine von
ihnen ausscheidet. Naturalia non sunt turpia’’ (Das Evangelium Marci (1903), 58).
20 À luz desta discussão, é desconcertante 1er, em trabalhos escritos por estudiosos de renome em
círculos ligados a estudos do Novo Testamento, declarações tais como a seguinte: “Não pode
haver dúvida de que Jesus, em toda a sua conduta, transgrediu repetidas vezes o mandamento
do Antigo Testamento de observar o Shabat e demonstrava pouca preocupação quanto às leis do
Antigo Testamento pertinentes à pureza ritual (Eduard Schweizer, Jesus (1971), 32). A acusação
de quejesus cometia blasfêmia ao perdoar pecados será tratada mais adiante, p. 76.
21 O detalhe, dispensável pelo desenrolar da história, de que peritos legais eram visitantes vindos
da capital, empresta alguma verossimilhança quanto à historicidade da narrativa. No primeiro
século A.D. a presença de fariseus quase não era atestada na Galiléia. Cf. JJ, 56-7. Por outro lado,
pode-se assinalar que o problema do qorhan é assunto relativo a Jerusalém, o que não parece ser
a associação de pensamento mais natural para um pregador popular da Galiléia.
Consequentemente, em sua forma atual, o argumento provavelmente deriva de polêmicas
antifarisaicas da igreja judeu-cristã (cf. Bultmann, HST, 17-18). Quanto à declaração sobre qorhan
ver JW J, 78-9, 174,
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 33

Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a
obedecem (Lc 8,21).

Do mesmo modo, assim como no pensamento rabínico o respeito ao mestre


quase se iguala ao respeito ao céu (mAb. 4,12), de acordo com Jesus, um mestre
reconhecido como mensageiro de Deus deve ter precedência sobre a família. Ou,
seguindo as densas formulações de Lucas, que são provavelmente as expressões
originais de Q, comparadas com a versão mais serena de Mateus, onde a
expressão “amar mais” é substituída por “odiar”:

Se alguém vier a mim e não odiar seu próprio pai e mãe e mulher e filhos,
irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26;
cf. Mt 10,37).

Embora estes dois pronunciamentos possam ser lidos como irremediavelmente


em conflito com a devoção devida aos pais, é uma terceira — igualmente
atribuída a Q e geralmente reconhecida como declaração genuína de Jesus —
que se tornou, em anos recentes, a principal fonte a partir da qual os pesquisa­
dores se esforçam em deduzir que Jesus desobedecia a um dos preceitos básicos
da Torá. Trata-se da ordem notória dirigida a um homem que desejava tornar-se
discípulo mas se sentia impedido de seguir Jesus até que pudesse enterrar seu
pai.

Disse [Jesus] a outro: “Segue-me”. Este respondeu: “Permite-me ir primeiro


enterrar meu pai”. “Deixa que os mortos enterrem seus mortos; quanto a
ti, vai anunciar o Reino de Deus”. (Lc 9,59-60; cf. Mt 8,21-22.)

Uma opinião comum se estabeleceu entre os exegetas do Novo Testamento, que


as palavras de Jesus não só pareceram chocantes a seus contemporâneos mas
também que, efetivamente, elas ab-rogavam a Torá. Já que esta opinião foi
exposta não só por estudiosos da velha_ escola, mas mesmo por um escritor de
profundos conhecimentos e também simpatizante quanto aos estudos judaicos
e ao judaísmo como E. P. Sanders, ela merece ser considerada seriamente.
Colocando o “Segue-me” de Jesus em relação ao dever mais fundamental,
sólida e universalmente atestado no judaísmo e fora dele, de assegurar que pai
ou mãe mortos recebam um enterro reverente, Sanders é levado, ao fim de um
exame minucioso, a formular uma “modesta conclusão”.

22 Cf. particularmente A. Schlatter, Der Evangelist Matthaus (1929/1959), 288; N. Perrin,


Rediscovering the Teaching of Jesus (1967), 144; M. Hengel, Nachfolge und Charisma (1968),
16 [ET The Charismatic Leader and his Followers (1981). 15]; A. E. Harvey, Jesus and the
Constraints of History (1982), 59-61; E. P. Sanders, Jesus andjudaism (1985), 252-5. Ver também
JW J, 51, 167 (n. 57).
34 A Religião de Jesus, o Judeu

Ao menos por uma vez Jesus quis dizer que acompanhá-lo se sobrepunha
às exigências da devoção e da Torá. Isto pode mostrar sua disposição,
caso necessário, de desafiar a adequação do ensinamento mosaico. (J &
J, 225).

O que Sanders e seus colegas consideram é o caso de um homem cujo pai acabara
de morrer e a quem Jesus ordena de juntar-se a ele e aos seus discípulos
imediatamente, sem esperar as poucas horas necessárias para preparar e execu­
tar os rituais fúnebres que deveriam acontecer no mesmo dia da morte, antes do
anoitecer, mesmo no caso de criminosos executados (Dt 21,23). Sanders distin­
gue dois impulsos no pronunciamento, um positivo e o outro negativo. O
primeiro, “o chamado ao discipulado ... que tem precedência sobre outras
responsabilidades” (J & J, 253), é considerado no contexto do Evangelho como
lógico e compreensível por si mesmo. O segundo, entretanto, tem implicações
mais profundas que são usualmente negligenciadas, tal como determinar se a
“desobediência às prescrições quanto aos deveres fúnebres a serem prestados ao
pai ou à mãe constitui efetivamente uma desobediência a Deus” (ibid.).
Tal dicotomia é, creio, muito desnorteadora. Como anteriormente, defron-
tamo-nos com um conflito entre prescrições; deve-se ao mesmo tempo honrar (e
logo enterrar) o pai, e estar pronto para se devotar ã rápida realização do Reino
de Deus; este é o problema real, e não uma simples afiliação ao grupo dos
discípulos de Jesus. No caso destes deveres conflitantes, a responsabilidade pela
inevitável “desobediência” a um dos preceitos pode ser unicamente atribuída a
Deus.^^
Quanto à escolha a ser feita para a solução do dilema, os exemplos dados
acima, bem como todo o ensinamento dejesus referente ao Reino, não nos deixa
em nenhuma dúvida sobre onde, em sua opinião, deveria se encontrar a
prioridade (ver cap. 6 adiante). Se, neste contexto, o “movimento negativo” tenha
sido sentido conscientemente, o evangelista poderia ter tratado dele na forma de
um questionamento hostil. Porém não o fez.
Dito isto, e tendo reconhecido que o “movimento positivo” da declaração faz
sentido, ainda me pergunto se a compreensão literal do episódio — o chamado
de Jesus a um homem que tinha acabado de perder o pai — deveria ser aceito
como evidente por si só. Porque, apesar da ausência de detalhes circunstanciais
tanto em Lucas quanto em Mateus, a presumida realidade do diálogo requer um
contexto válido, do ponto de vista histórico e psicológico.

23 A desunião da família durante os tumultos que assinalam a aproximação do fim é considerada


nas passagens de Elias em Ml 3,24 (=4,5) e Eclo 48,10. Cf. também Mq 7,6 e seu emprego em Mt
10,34-6; Lc 12,51-3, onde se afirma que pai e mãe ficarão divididos contra filho e filha.
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 35

Provavelmente o homem não era um desconhecido, abruptamente interpe­


lado por Jesus; de fato, Mt 8,21 o identifica como um “discípulo”. Mas o que
estava fazendo este homem entre os seguidores de Jesus quando deveria estar se
ocupando com assuntos fúnebres, já que seu pai deveria ser enterrado dentro
de poucas horas? Poderia ocorrer que as palavras do discípulo tivessem um
significado menos direto? Acaso, de maneira levemente confusa e tímida, ele
tencionasse sugerir que não desejava seguir Jesus imediatamente, e usou seu
eventual dever filial de enterrar o pai (velho e doente?) como uma desculpa para
a procrastinação, a resposta cortante de Jesus não surpreenderia ninguém.
Deixem os mortos (isto é, os outros membros de tua família que não demons­
traram nenhum interesse em procurar a vida no Reino de Deus) cuidar de seus
mortos.^“*
Mesmo admitindo que esta exegese não possa ser considerada imperativa,
ela certamente proporciona um sentido não menos satisfatório, e provavelmente
mais, que as interpretações comumente sustentadas. Não é necessário dizer, ela
nos liberta da falsa pista do desafio dejesus quanto à “adequação do ensinamen­
to mosaico”, ou, mais exatamente e mesmo incrivelmente, à validade do Decá­
logo.

(ii) As assim chamadas antíteses

O Sermão da Montanha contém 6 seções (ou cinco, se as máximas sobre


adultério e divórcio forem tomadas como uma seção) nas quais uma lei bíblica,
introduzida pela expressão, “Ouvistes o que foi dito aos homens de antigamen­
te”, ou simplesmente “Ouvistes o que foi dito”, é contrastada pela declaração de
Jesus “Mas eu vos digo”. As palavras em questão estão preservadas nesta forma
apenas pelo evangelista Mateus. A atitude dos pesquisadores em relação a elas
varia: sua autenticidade, completa ou parcial, é reconhecida por alguns porém
questionada por outros. Curiosamente, os julgamentos críticos são frequente­
mente baseados nas razões mais inesperadas. As antíteses são consideradas
genuínas por pesquisadores que nelas descobriram munição para suas teses
“antijudaicas”, ou seja, quejesus rejeitou a Torá, enquanto alguns daqueles que
adotaram uma posição “pró-judaica” as declaram inautênticas porque refletem
um retrato de Jesus não suficientemente distinto do de um fariseu.^’

24 Para o emprego metírfórico de “os mortos” em vez de “os ímpios”, ver yBer. 2,4c; ITm 5,6, etc.
25 Cf., como extremos opostos, E. Kãsemann, Essays on New Testament Themes (1964), 37-38 e E. P.
Sanders, Jesus and Judaism (1985), 260-4. Tr6s das antíteses — homicídio, adultério e falso
juramento - são mais frequentemente reconhecidas como sendo provavelmente de Jesus: ver
Bultmann, HST, 147.
36 A Religião de Jesus, o Judeu

De nossa perspectiva, a autenticidade verbal realmente não importa se


pudermos nos certificar que a essência do ensinamento pode ser seguramente
atribuida a Jesus. Em outras palavras, estamos mais interessados na mensagem
ad sensum do que nas ipsissima verba do mensageiro. Além disso, a principal
tarefa é determinar a atitude de Jesus para com a Torá; a efetiva inclinação
doutrinal revelada nessas passagens será investigada mais tarde, no decorrer de
nossa tentativa de delinear o retrato da personalidade religiosa de Jesus (cf.
cap. 7)
Jesus e 0 homicídio (Mt 5,21-26) A forma desta declaração e das que seguem
é muito particular e sem paralelo quer no Novo Testamento quer em nenhuma
outra parte na antiga literatura judaica. A fórmula “Ouvistes, etc.” introduz uma
citação do Pentateuco, “Não matarás” (Ex 20,13; Dt 5,17) à qual aqui (como em
Mt 5,43) um suplemento parafrástico, do tipo Targum é acrescentado; “e quem
matar terá de responder no tribunal”. A assim chamada antitese não deve ser
compreendida, em seu significado verdadeiro, como uma contradição. Não é
relatado que Jesus, após a expressão solene “eu porém vos digo”, afirmasse que
o homicídio é permissível ou mesmo obrigatório, mas que “todo aquele que se
encolerizar contra seu irmão terá de responder no tribunal”. Ele antecipa, em
outras palavras, a possibilidade de homicídio ao condenar sua principal causa
interna, a cólera, que pode primeiramente levar a insultos verbais e em seguida
à violência física. A correção deste raciocinio é reforçada pelo modelo rabínico.
Uma linha similar de raciocínio, formulada explicitamente e por meio de citações
da escritura, figura no midrash tanaítico, Sifre de Dt 19,10-11 (186-7):

Para que sangue inocente não seja derramado ... e assim a culpa do
derramamento de sangue recairá sobre ti ... Mas se um homem odeia seu
vizinho, 0 espera no caminho e o ataca ... A este respeito foi dito: Um
homem que transgredir um mandamento leve acabará por transgredir um
mandamento pesado. Se transgredir Amarás o teu próximo como a ti mesmo
(Lv 19,18), acabará por transgredir Não te vingarás e não guardarás rancor
(ibid.) e Não odiarás teu irmão (Lv 19,17), e Que teu irmão possa viver a
teu lado (Lv 25,36) até quando ele derramar sangue.^®

A panaceia prescrita por Jesus para neutralizar sentimentos de hostilidade e


eliminar suas conseqüências é uma reconciliação rápida.

Portanto, sq estiveres para trazer tua oferenda ao altar e ali te lembrares


de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferenda diante
do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão e depois virás

26 A sequência implícita é que a falta de amor pode levar a sentimentos de vingança e em seguida
ao ódio que culmina no homicídio.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 37

apresentar tua oferenda. Reconcilia-te logo com aquele que te acusa ...
(Mt 5,23-25)

Como estas palavras de Jesus e outras parecidas puderam ser compreendidas


como equivalentes a “destruir a letra da Lei” nas palavras de Emst Kàsemann,
não pode ser explicado apenas em bases de pesquisa.^^
Incidentalmente, as antíteses de Jesus não diferem, do ponto de vista
estrutural, daquelas em que, segundo Mc 7,10-13 (Mt 15,4-6), se diz que os
fariseus expuseram sua doutrina a propósito do qorban “Moisés disse ... vós
porém dizeis” (Mc) ou, mesmo com mais força, “Deus ordenou ... vós porém
dizeis” (Mt). Não é necessário dizer que é possível debater a natureza dos
contrastes em questão, mas aqui a questão central é que, se o ensinamento de
Jesus “destrói a letra da Lei”, o ensinamento dos fariseus parece fazer o mesmo,
o que é, realmente, um contra-senso.^®
Jesus sobre o adultério (Mt 5,27-30) Assim como a cólera deve ser evitada ou
controlada antes que leve ao homicídio, olhar uma mulher com desejo sexual
deveria ser igualmente evitado não só porque leva ao adultério mas porque o
próprio pensamento equivale ao adultério. Mais uma vez, a Torá (Ex 20,14; Dt
5,17) é reforçada e eomo que protegida ao invés de ser declarada obsoleta por
implicação.
Ao identificar a culpa incorrida através da imaginação com a que correspon­
de ao próprio ato, Jesus reflete a visão religiosa básica, distinta da legal, do
judaísmo rabínico contemporâneo e posterior. As expressões “cobiçar com os
olhos”, “caminhar com o coração cheio de pecado e olhos cobiçadores”, “seguir
a inclinação da culpa e com olhos cobiçadores” para significar a fonte radical da
ação pecaminosa, são familiares aos leitores dos Pergaminhos do Mar Morto
(IQpHab 5,7; IQ S 1,6; CD 2,16; IIQ T S 59,14). A mesma perspectiva, expressa
em termos mais gerais, é também testemunhada por Flávio Josefo quando
escreve no seu sumário da Lei mosaica em Contra Apionem (ii. 183): “Para nós
... a única sabedoria, a única virtude consiste em se abster de toda ação, de todo
pensamento que seja contrário às leis originalmente formuladas”. E novamente
(ibid. 217), “A mera intenção de fazer o mal aos próprios pais ou de cometer
impiedade contra Deus é seguida de morte imediata”.^®

27 Cf. op. cit. em n. 25. Uma inteqiretação exegética judaica da “antítese” é proporcionada por D.
Daube, The New Testament and Rabbinic Judaism (1956), 55-62. Para a importância geral do
pronunciamento, cf. JW J, 47.
28 Nas palavras de um estudioso muito conhecido do Novo Testamento, os escribas e os fariseus
estavam “adulterando a Lei de Deus” enquanto, no caso dejesus, tratava-se de “o Filho elucidando
seu significado real” (C. E. B. Cranfield, The Gospel according to Saint Mark (1959), 237).
29 Cf. G. Vermes, “A Summary of the Law by Flavius Josephus”, NT 24 (1982), 303.
38 A Religião de Jesus, o Judeu

A mesma tendência é também refletida nos escritos rabínicos posteriores.


“Seguir teus olhos” é equacionado com “fomicação” por um exegeta anônimo
em Sifre de Nm 15,39 (115). Exagerando o caso, o Talmude Bahílônico (Yoma
29a) considera pensamentos luxuriosos como mais pecaminosos que sua reali­
zação. E o tratado pós- talmúdico Kalá (I) apresenta a fórmula perfeita; “Aquele
que olhar com luxúria para uma mulher é como aquele que manteve relações
sexuais ilícitas com ela.^°
Jesus sobre o dixórcio (Mt 5,31-32) A fórmula introdutória “Também foi dito”,
precedendo a paráfrase da injunção mosaica relativa ao get, documento mediante
o qual o divórcio é efetuado (Dt 24,1), é mais breve do que as duas anteriores e
pode sugerir, como uma expressão similar, “e aquilo que Ele disse”, nos
comentários pesher de Qumran, que a citação deve ser associada á passagem
bíblica precedente. De modo que Mt 5,31-32 deveria ser lido em conjunção com
os versiculos 27-30, indicando que o divórcio é considerado como uma subseção
do adultério. Para compreensão mais completa, a passagem deve ser considerada
juntamente com as outras afirmações sobre o divórcio no Evangelho, em Mt
19,3-12; Mc 10,2-12; (Lc 16,18), que têm sido sujeitas a um exame freqüente e
exaustivo no contexto das idéias intertestamentárias judaicas referentes ao
assunto.^'
Sem tentar expor todos os detalhes da questão, devemos notar que Jesus,
assim como os essênios, segundo o Documento de Damasco (CD 4,21), viu em
Gn 1,27 (“macho e fêmea ele os criou”) e 2.24 (“eles se tomaram uma só carne”)
a quintessência do casamento estabelecido por princípio divino (Mt 19,4-5; Mc
10,6-8). Novo casamento após o divórcio conflita com esta unidade quase
metafísica e, num mundo ideal, equivale ao adultério, quer dizer, à destruição
do elo original. Poderia parecer que, implicitamente, a mesma idéia fundamenta
a legislação do divórcio em Dt 24,1-4, onde o caso especifico do intento de um
homem de casar novamente com sua primeira mulher a qual, após o divórcio,
ou tinha se casado com outro homem que a repudiou ou tinha enviuvado. Esta
união não é permitida, já que o vínculo sexual com o segundo marido a tinha
tomado impura em relação ao primeiro, tomando-a então incapacitada para a
restauração dos vínculos maritais.^^

30 Cf. S-B I, 298-301; L. Abrahams, Studies in Pharisaism and the Gospels II (1924), 205-6.
31 Para uma visão mais recente de material do Novo Testamento, ver Sanders, ] &J, 256-60; cf.
também JW/, 70-71, 87; J. A. Fitzmyer, “The Matthean Divorce Texts and some new Palestinian
Evidence”, Theological Studies 37 (1976), 197-226. Sobre divórcio em geral, ver D. Daube, NTR]
(1956), 362-72; Z. W. Falk, Introduction to Jewish Law in the Second Commonwealth II (1978),
307-16; J. D. M. Derrett, The Law in the NT (1979), 363-88.
32 A mesma situação se verifica na história de Abraão e Sara no relato da Gênese Apócrifa de
Qumram. O patriarca roga a Deus que não permita que o faraó consuma seu “casamento" com
Sara porque a impureza decorrente a separaria dele (IQApGn 20-15). O autor tacitamente assume
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 39

Na versão de Marcos (10,11-12), ecoada em Paulo, que formula esta regra


como um mandamento de Deus (IC or 7,10-11), qualquer casamento com um
novo parceiro equivale a adultério enquanto que, no relato de Mateus (19,9),
existe uma cláusula de exceção, a saber, o adultério anterior da mulher, mediante
o qual a unidade do casal já tinha sido destruída. Neste caso, Jesus é mostrado
por Mateus como aderindo à posição mais estrita da escola de Shamai, que
autorizava o divórcio apenas com base em transgressões sexuais, contra o
super-benevolente ensino da escola de Hilel, que permitia o divórcio pratica­
mente por “qualquer causa” (Mt 19,3).^^
Porém, qualquer que seja o modo pelo qual Jesus considerava o vínculo
conjugal, se o via como absoluta e incondicionalmente indissolúvel, sua mensa­
gem, tal como se apresenta, não pode, em nenhuma circunstância, ser equacio­
nada com uma condenação da concessão divina do divórcio, outorgada por Deus
através de Moisés devido à fraqueza da natureza humana.^“'
Jesus e juramentos (Mt 5,33-37) O mandamento relativo ao perjúrio é ainda
menos citado na Bíblia do que a lei referente ao homicídio. “Não jurarás em falso
mas cumprirás teus juramentos para com o Senhor” é, novamente, uma versão
alterada, do tipo Targum, parafraseando Lv 19,12 (“Não jurareis falsamente em
meu nome”) combinado com Dt 23,24 (23) (“Cuidarás de cumprir o voto que
teus lábios proferiram uma vez que com tua própria boca ofereceste espontanea­
mente um voto ao Senhor teu Deus”). De modo que, estritamente falando, a
“antítese” não se refere ao preceito mosaico. No final dos tempos, Jesus tenciona
descartar toda a parafernália ligada a juramentos e votos como desnecessária.
Por esta razão, ele declara redundante a multidão de termos substitutos para
Deus, comumente usados. Existem alusões a estes kinnuyim, como os chamavam
os rabis, na Regra de Damasco (15,1); foram adotados pelos fariseus segundo
Mt 23,16-22, e recomendados, quando juramentos eram inevitáveis, por Filo
(Spec.Leg. ii, 2-5). Estas medidas protetoras adicionais foram introduzidas para
assegurar que o nome divino nunca fosse tomado em vão, nem mesmo por erro
ou inadvertência. Mas o centro da doutrina de Jesus é que, em meio a pessoas
sinceras, solenidades especiais não são necessárias; um “sim” ou um “não”
deveriam bastar (Tg 5,12)

que o novo casamento de Sara seguiu-se a um divórcio o que tornaria ilícita qualquer reunião do
casal original.
33 Cf. mGit 9,10; Josefo, Ant. iv, 253; Life 426; JW J, 70.
34 Que a rejeição de Jesus ao divórcio não era considerada absoluta pode ser deduzido da boa
vontade de Paulo em permiti-lo no caso de casamento entre cristão e “infiel”. Se este último,
homem ou mulher, não concordasse em viver pacificamentc com o novo convertido, o divórcio
era pronunciado legal e já que Paulo não ordenou expressamente que ele ou ela tinham de
permanecer solteiros (como em ICor 7,11), poderia parecer que novo casamento seria permitido
ou pelo menos tolerado.
40 A Religião de Jesus, o Judeu

A abstenção deliberada de juramentos não é exclusividade do pensamento


de Jesus. A mesma atitude é atribuída aos essênios, tanto por Filo quanto por
Josefo;

Eles mostram seu amor a Deus . abstendo-se de juramentos, por sua


veracidade ... (Omnis probus 84).

Tudo o que eles dizem é mais certo que um juramento. Na verdade, jurar
é rejeitado por eles como sendo pior que o perjúrio. Porque aquele que
não merece crença sem invocar Deus já está condenado (Guerra ii. 135).

Além disso, Filo apresenta o excesso de juramentos como parte integral da vida
virtuosa e conseqüência natural da moralidade:

A palavra de um homem bom... deveria ser um juramento, firme,


inabalável, completamente livre de falsidade, firmemente plantado na
verdade (Spec. Leg. ii. 2; cf. Decai. 84).

A aceitação dos Dez Mandamentos pelos israelitas foi marcada, de acordo com
os sábios rabínicos, por um solene sim ou sim, sim, não ou não, não. Acredita-se
que as palavras possuam a força obrigatória de um juramento.^^ Mais uma vez,
o que é característico de Jesus é a grande ênfase que atribui a idéias que estão
presentes, porém menos destacadas de forma absoluta, na antiga devoção
judaica.
Jesus e a retaliação (Mt 5,38-42) Numa hiperbólica negação da vingança, a
vetusta lex talionis - “Ouvistes que foi dito, um olho por um olho, um dente
por um dente” (Ex 21,24) é contrastada não apenas com a resistência passiva —
“Eu porém vos digo: não resistais ao homem mau” — mas com uma espécie de
submissão provocativa, transmitida pelo conselho de oferecer a face esquerda a
alguém que tinha sido golpeado na face direita (cf. Lc 6,29). O fato que os dois
exemplos seguintes em Mateus, um deles ecoado em Lc 6,29, isto é, entregar uma
túnica a alguém que pede apenas uma camisa ou andar o dobro da distância
pedida, indica que a supererrogação é o tema central.
É quase desnecessário lembrar que no ensinamento pós-bíblico, Ex 21,24
não era interpretado literalmente como exigindo que um dano correspondente
fosse infligido à pessoa culpada de causar injúria corporal. Uma vingança
sangrenta era substituída por uma compensação monetária judicialmente esta­
belecida. Josefo conhecia e;ste procedimento (Ant. iv. 280), e este princípio é
pressuposto na Mishná (cf. mBQ 8,1). A Mekhilta de Ex 21,24 (III, 67) equaciona
simplesmente “olho por olho” com mamõn, isto é (olho-)dinheiro. Os Targums

35 Cf. Mekh. de Ex 20,1-2 (II, 229-30); bShebu. 36a; ver S-B I, 336-7.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 41

palestinianos oferecem uma paráfrase muito clara: “O valor de um olho por um


olho; o valor de um dente por um dente; o valor de uma mão por uma mão; o
valor de um pé por um pé”, etc.^®
Para melhor compreensão dessa declaração impraticável — afinal, nem
mesmo o Novo Testamento, na pessoa do quarto evangelista, faz Jesus aceder a
ela literalmente, já que, quando golpeado por um guarda do Templo, ele não é
descrito oferecendo a outra face mas protestando com dignidade (Jo 18,23) —
ela deve ser examinada juntamente com a próxima e última “antítese”. De fato,
em Lc 6,27-36 “oferece a outra face” e “ama teus inimigos” se fundem para formar
uma doutrina dentro de umá^^única perspectiva.
Jesus e 0 am or aos inimigos (Mt 5,43-48)

Ouvistes o que foi dito “Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo”.
Porém eu vos digo “Ama teus inimigos...”

O versículo da escritura citado é Lv 19,18, “Amarás teu próximo”.’^Está separado


de sua conclusão “como a ti mesmo” ou talvez “pois ele é igual a ti” mas é seguido,
por outro lado, de uma declaração complementar ausente na Bíblia, “e odeia teu
inimigo”. O ensinamento derivado do preceito encontrado em Mt 5,45-8, para­
fraseado livremente em Lc 6,32-6, é usualmente atribuído a Q. Seu significado
fundamental é que o amor humano deve se esforçar em imitar o amor de Deus
pela humanidade; deve ser desinteressado, não procurando recompensa, refle­
tindo assim a generosidade, compaixão e perfeição divinas. A oportunidade
extrema e hiperbólica para a demonstração desta bondade altruísta e como que
sobre-humana, aparece naquele a quem nada é devido e do qual nenhuma
compaixão, de qualquer espécie, pode ser esperada. O comportamento caridoso
para com um inimigo é a receita para alguém que procura se tornar perfeito do
mesmo modo que o Pai celestial é perfeito.
Embora “odeia teu inimigo” possa ser visto como a contrapartida negativa
de “ama teu próximo” — e os dois, amor pelos filhos da Luz e ódio pelos filhos
das Trevas, encontram-se instintivamente acoplados na Regra da Comunidade
de Qumran (IQ S 1,9-10) — a associação não tem fundamento bíblico e provém,
mais provavelmente de Mateus do que de Jesus. A opinião de que possa ter sido
tirada de um Targum perdido é pura especulação.’® O paralelo mais próximo

36 Josefo (loc. cit.) se refere à indenização como uma opção: “a não ser que o homem ferido aceite
receber dinheiro”. Este enfoque pode ter sido influenciado pela lei romana. Cf. D. Daube NTRJ,
256.
37 Para compreender este mandamento no judaismo pós-biblico, ver a tese de Paola Paliais, MPhil.
Oxford, Exegesis o j Lev. 19,18 and the Love Command in Judaism : Variations on a Theme (1988).
Contém igualmeme valiosa informação referente â regra de ouro, discutida mais abaixo.
38 Cf. M. Smith, “Matt. V.43: ’Hate Thine Enemy”, HTR45 (1952), 71-3. Uma seqücncia mais natural
de idéias é: amai-não odieis. Esta seqüência está bem atestada cm T. Gad 6.1: “Agora, meus filhos.
42 A Religião de Jesus, o Judeu

deste ensinamento de Jesus, tão debatido, pode ser encontrado na declaração,


sem dúvida menos colorida de Josefo, que Moisés inculcava epieikeia (generosi­
dade, consideração, gentileza) mesmo para com inimigos declarados (C. Ap. ii,
211 ).
Em resumo, pode-se concluir que, enquanto as seis “antíteses”, apesar da
possibilidade de Mateus ter introduzido alterações na redação, possam ser aceitas
como transmitindo o sentido geral senão as palavras reais do ensino correspon­
dente de Jesus, elas não podem, de modo algum, ser identificadas como um
ataque frontal de Jesus à Lei de Moisés ou ao judaísmo tradicional.

4. Jesus e os sumários da Lei

Existia uma tendência entre mestres religiosos judeus da era intertestamen-


tária e mishnaica-talmúdica de pesquisar os princípios centrais da Torá, e mesmo
sua essência, e reduzir as muitas injunções, as seiscentas e treze regras, positivas
e negativas, segundo a contagem dos rabis, a um número mais manejável, e se
possível, unificá-las.^^

(a) O Decálogo (M cl0,17-19; Mt 19,16-19; Lc 18,18-20)

A primeira das três tentativas de descobrir o cerne da Torá registrada nos


Evangelhos Sinóticos em nome de Jesus, ê apresentada como uma resposta a
alguém (Mc 10,17), especificado como um homem jovem (Mt 19,22) ou impor­
tante (Lc 18,18), que perguntou como ganhar acesso à “vida eterna”. A breve
resposta de Jesus é: observar os mandamentos éticos e sociais do Decálogo.
Todos os três evangelistas apresentam os mandamentos referentes ao homicídio,
adultério, roubo, falso testemunho e devoção filial, começando com as proibições
e terminando com o mandamento positivo “Honra teu pai, etc”. Marcos insere
“Não defraudes” (cf. Eclo 4,1) como o último preceito negativo, possivelmente
substituindo as diversas cláusulas de “Não cobiçarás”, enquanto Mateus termina
a série com “Amarás teu próximo” (Lv 19,18). A espontaneidade da resposta
pode ser atribuída ao fato de que o recitar dos Dez Mandamentos era parte das
preces diárias durante o período do Segundo Templo (mTam. 5.1; yBer. 3c).
Estes mandamentos se destacam como supremos, não apenas porque só eles
foram proclamados por Deus (Filo, D ecai 175; Josefo, Ant. iii. 89), mas também
porque “eles são sumários das leis especiais registradas nas Santas Escrituras”
(Filo, Decai. 154; Spec. Leg. i. I). Portanto, embora a formulação da narrativa.

que cada um de vós ame vosso irmão. Expulsai o ódio de vossos corações”.
39 Cf. JW J, 4 5 ,1 6 0 . As principais fontes citadas são Filo, Spec. Leg. i I; bShab. 31a; Filo, Hypoth. 7,6;
bMak, 24a. Estas e outras passagens serão discutidas abaixo.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 43

juntamente com suas variações introdutórias, seja sem dúvida obra dos evange­
listas, não existe nenhuma razão para que sua substância não seja aceita como
ensinamento autêntico de Jesus.“"

(b) A Regra de Ouro (Mt 7,12; Lc 6,31)

Em duas declarações paralelas, presumivelmente originárias de Q, Mateus e


Lucas transmitem o código de ética de Jesus constante de um único artigo
regularmente mencionado como a “Regra de Ouro”. A versão de Lucas (6,31),
que precede imediatamente a declaração sobre amar seus próprios inimigos, é
considerada como a mais original:

Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles.

Mateus (7,12) a inseriu no Sermão da Montanha e a explanou por meio de um


comentário apenso;

Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós
a eles, pois esta é a Lei e os Profetas.

A mensagem básica transmite a boa vontade universal para com os próximos.


Colocando-a em prática, as preferências individuais devem ser consideradas
como parâmetros fáceis ou mesmo instintivos. Não deve ser olhada, como faz
Bultmann, como um preceito que empresta “expressão moral a um egoísmo
ingênuo” (HST, 103); esta Regra de Ouro “positiva” também não deveria ser
declarada como constituindo uma formulação espiritualmente mais elevada do
que sua contrapartida negativa (judaica), como costumam fazer os apologistas
cristãos.“*' Ambas são regras gerais, simples e práticas, sobre a moralidade
universal, razão de todas as injunções, positivas ou negativas.
Como no caso do Decálogo, não há razão de duvidar — ao contrário, estamos
em posição de postular — que Jesus conhecia e efetivamente empregava este

40 Apesar de seu costumeiro ceticismo, Bultmann parece ter admitido algo a este respeito. “É
altamente provável, por si só, que perguntas foram dirigidas a Jesus sobre o caminho da vida, ou
sobre o mandamento mais importante, mas é completamente diferente perguntar se as cenas
referentes a estas perguntas são ou não relatos históricos. Elas o são apenas no sentido em que
a Igreja formulou tais cenas inteiramente no espírito de Jesu s” (ênfase minha), HST, 54.
41 “Existe verdade na descrição de Bultmann da Regra de Ouro ... e na descrição de Tillich desta
regra como sendo uma “justiça calculista" que necessita que o amor seja transformado em “justiça
criativa", tomando-se assim verdadeiramente “justa". Nos Evangelhos, ocorreu esta espécie de
transformação da Regra de Ouro" (V.P. Furnish, The Love Command in the New Testament (1973),
63-64). — “Um programa ético que consiste em não fazer ... só dificilmente pode ser comparado
a outro que convoca à benevolência positiva e ilimitada” como escreve G. B. Caird em seu Saint
Luke [Ed. Pélican] (1963), 104. A maioria dos pesquisadores reconhece hoje que esta é uma
opinião teologicamente preconceituosa.
44 A Religião de Jesus, o Judeu

método de simplificação da ética minuciosa da Torá. Não é necessário reiterar


que declarações semelhantes às de Jesus são largamente atestadas na literatura
judaica pós-exilica, intertestamentária e rabínica bem como em outras culturas
mediterrâneas. A monografia pioneira de Albrecht Dihle Die goldene Regei. Eine
Einführung in die Geschichte der antiken und frühchristlichen Vulgárethic (1962),
fornece toda a informação necessária a este respeito. Alguns poucos exemplos
selecionados de fontes judaicas serão suficientes. Todos eles representam a regra
negativa.
A atestação mais antiga se encontra num dos Apócrifos, Tb 4,15: “Não faças
a ninguém o que tu mesmo detestarias”. O autor de Tobias pode, na realidade,
se ter valido das máximas de Aicar; “Filho, o que te parece mau, não o faças a
teu próximo” (8,88, em armênio).“^^
Mais próximo da época de Jesus, a mesma estrutura aparece em Hypothetica
(7,6) de Filo — “Aquilo que alguém detestaria sofrer, não deve fazer a outros”
— e na literatura rabínica. A famosa máxima atribuída a Hilel no Talmude (bShab.
31a), é regularmente reproduzida em todos os estudos sobre a Regra de Ouro.
Ela ocorre num contexto semi-irônico, revelando a irascibilidade de Shamai e a
falta de intento sério ou de tolice da parte de seu interlocutor gentio.

Fazei de mim um prosélito (pede ele) com a condição de me ensinar toda


a Torá enquanto eu puder ficar de pé em uma só perna.

O mal-humorado Shamai o expulsou. Então ele se aproximou do tolerante e


benevolente Hilel que o recebeu na religião judaica fazendo-o aceitar um
ensinamento contido numa única sentença;

O que te é odioso, não o faças a teu semelhante.

E acrescenta Hilel; “Isto é toda a Torá. O resto é interpretação. Vai! Estuda!”


Apartado de seu contexto anedotal, o conselho de Hilel ecoa a Regra de Ouro
negativa, acompanhada por sua explícita identificação como a recapitulação
mais abreviada possível da doutrina mosaica no que se refere ao comportamento
correto para com o próximo. Neste aspecto, assemelha-se ao comentário de
Mateus (7,12), “Porque esta é a Lei e os Profetas”, onde a cláusula “e os Profetas”
é uma expansão cristã quasi automática, ou um eco das antigas idéias judaicas
de que os Profetas eram transmissores e expositores da Torá (mAb. 1,1).
A mesma doutrina é repetida em contexto não sarcástico em Abot de-R.
Nathan (Recensão B, cap. 26). Hilel é substituído por Akiba e o gentio atrevido
por um “alguém” indefinido que pede respeitosamente:

42 Cf. J. M. Lindenberger em OTP II, 490. Com referência a Tobias e Aicar, c f HJP 111,1, 222-39.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 45

Mestre, ensina-me toda a Torá de uma só vez (em uma única sentença).
Ele lhe respondeu, Meu filho, nosso Mestre Moisés, que descanse em paz,
levou quarenta dias e quarenta noites no topo da montanha para
aprendê-la, e tu dizes: Ensina-me toda a Torá numa (sentença)! Mas, meu
filho, este é o princípio da Torá: Aquilo que tu mesmo odeias, não o faças
a teu semelhante.“*^

Deve-se notar que o judaísmo, antes e depois do primeiro século A.D., conhecia,
ao sumariar a Lei, tanto o aspecto positivo quanto o negativo de seu ensinamento
moral. Jesus ben Sira, em inícios do segundo século a.C. aconselhava seus
leitores (31[34],15):

Sede benévolos para com vosso próximo como a vós mesmos, e (quanto
a ele), atentai a tudo que odiais.

Nos escritos rabínicos, também, a Regra de Ouro negativa é vista como a


contrapartida do mandamento de amor para com o próximo. Assim, a proposição
“Amor da humanidade”, que introduz o capítulo 26 em Abot de-R. Nathan B,
capítulo que contém o ensinamento de Akiba sobre a Regra de Ouro (negativa),
é tirada da máxima de Hilel em mAb.1,12, “Sede como os discípulos de Aarão,
amando e procurando a paz, amando a humanidade... “. Mas a expressão mais
admirável do vínculo entre os dois conceitos ocorre na redação de Lev 19,18 no
Targum Pseudo-Jõnatas:

E amarás teu próximo: tudo o que tu mesmo detestares, não o faças a ele.

Igualmente nos escritos rabínicos, a Regra de Ouro negativa é compreendida


como a contrapartida do mandamento de amor para com o próximo. Assim o
lemma, “Amor à humanidade”, introduzindo o capitulo 26 em Abot de-R. Nathan
B, o capítulo que contém o ensinamento de Akiba sobre a Regra de Ouro
(negativa), é tomado de empréstimo à máxima de Hilel em mAb. 1,12, “Sede
como os discípulos de Aarão, amantes da paz e procurando a paz, amando a
humanidade ... “. Mas a expressão mais forte do elo entre os dois conceitos
ocorre na interpretação do Lv 19,18 no Targum Pseudo-Jõnatas:

E amarás teu próximo: aquilo que tu próprio odeias, não afaças a ele.

Para resumir, a ampla-familiaridade da Regra de Ouro nos meios judaicos do


período intertestamentário e rabínico pode ser interpretada tanto a favor quanto
contra a autenticidade do texto do Evangelho. Entretanto, o próprio fato de que

43 Ver ed. S. Schechter, Abot de Rabbi Nathan (1887, repr. 1967), 53. Cf. A. J. Saldarini, The Fathers
according to Rabbi Nathan (1975), 155.
46 A Religião de Jesus, o Judeu

a expressão distintamente positiva é usada de preferência à formulação negativa


mais comum, deve — assim nos parece — contar como um argumento definitivo
em favor de Jesus a ter realmente formulado como uma declaração abreviada
dos mandamentos da Tord que governam todo o dominio das relações humanas.

(c) O primeiro grande mandamento (Mc 12,29-31; Mt 22,37-40; Lc 10,26-28)

O terceiro pronunciamento doutrinai atribuido a Jesus, referente à Torá


como um todo, é o mais abrangente. Relatado nos três Evangelhos Sinóticos, é
apresentado como resposta a uma pergunta. Mas, enquanto em Mateus e Lucas
a abordagem é indireta, com a intenção de “testar” o orador, em Marcos a pessoa
que pergunta é retratada como sincera e, no final, recebe de Jesus a certeza de
“não estar longe do Reino de Deus” (12,34). O cenário de Marcos tem toda a
aparência de ser o mais antigo.
A resposta de Jesus assume duas formas principais. Ou o grande manda­
mento é subdividido em primeiro e segundo (Marcos e Mateus), ou o preceito,
embora combinado, é apresentado como um só (Lucas). Guardando em mente
que o propósito é de estabelecer uma doutrina abrangente, um mandamento
principal, a estrutura apresentada em Lucas deveria ser a preferida, embora o
texto de Marcos, começando com o Shemá, “Ouve ó Israel...” (Dt 6,4), prosse­
guindo com “E amarás o Senhor teu Deus... “ (Dt 6,5), e continuando com a
principal prece diária dos judeus, reflete uma maneira natural de citar de cor.“*^
O mandamento de amar a Deus é seguido por “Amarás teu próximo” ... (Lv
19,18), já discutido em referência às “antiteses” (cf. acima). Segundo R. Akiba,
é este “o maior princípio da Torá” (Sifra de Lv 19,18; GR 24,7).'*'’
A associação necessária do dever básico do homem para com Deus e seus
semelhantes deriva, quasi automaticamente daquele outro sumário da Torá, o
Decálogo, que precedia a recitação litúrgica de Dt 6,4-9 (cf mTam. 5,1).
O vínculo fundamental entre o amor a Deus e o amor à humanidade está
claramente expresso em vários escritos intertestamentários, particularmente nos

44 A nuance pejorativa em Mateus e Lucas representa a tendência geral de “pergunta maliciosa” por
fariseus, herodianos e saduceus em seções próximas do Evangelho: c f Mc 12,13-17; Mt 22,15-22;
Lc 20,20-26 (pagamento de taxas imperiais); Mc 12,18-27; Mt 22,23-33; Lc 20,27-40 (status
marital após a ressurreição); Mc 12,35-37; Mt 22,41-46; Lc 20,41-44 (o Messias como filho ou
senhor de Davi). É muito improvável que a apresentação de Mc 12,28-34 resulte de um processo
de “lavagem”.
45 Sobre o Shemá, ver HJP II, 454-5. No Papiro de Nash, o Shemã vem após o Decálogo. C f E.
Würthwein, The Text o f the Old Testament (1980), 33 e ilustração 6.
46 É digno de nota que Mateus conclui com a frase “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei
e os Profetas” (22,40) como tinha feito em 7,12, refletindo parcialmente as palavras atribuídas
pelo Talmude a Hilel em bShab. 3b.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 47

Testamentos dos Doze Patriarcas. Issahar, por exemplo, exorta seus filhos a amar
a Deus e a seus próximos (T.Iss. 5,2) e oferece seu próprio exemplo a ser imitado:

Agi com devoção e verdade em todos os meus dias. Amei o Senhor com
toda a minha força; Do mesmo modo, amei todos os homens como a meus
filhos. Segui meu exemplo, meus filhos ... (T.Iss. 7,6)

Filo, em estilo mais sofisticado, apresenta a mesma mensagem. Discutindo a


transição no Decálogo entre os deveres para com Deus e os deveres para com os
homens, comenta:

Temos conhecido algumas pessoas que se associam a um dos dois lados


e negligenciam o outro. Elas beberam do puro vinho das aspirações
piedosas e, voltando as costas a todas as outras preocupações, devotaram
sua vida pessoal inteiramente ao serviço de Deus. Outras, concebendo a
idéia de que não existe o bem além de fazer justiça para com os homens,
não têm disposição para nada além da companhia dos homens ... Estas
pessoas podem ser chamadas, com justiça, de amantes dos homens; as
primeiras de amantes de Deus. Ambos estão a meio caminho da virtude;
só conseguirá virtude integral aquele que obtiver honra nos dois aspectos
(Decálogo;108-10DecflI. 108-10).

Enquanto o vínculo entre as duas formas de amor esteja inquestionavelmente


presente no pensamento intertestamentário e rabínico, sua expressão simplifi­
cada, fundindo Dt 6,5 com Lv 19,18, é uma característica do Novo Testamento
e provavelmente do próprio Jesus. Assim fazendo, ele conseguiu cunhar um
único princípio, incorporando todos os conteúdos teológicos e éticos da ToráJ^

IV A Ética da Lei

A Mishná e o Talmude apresentam, como se ensina habitualmente, uma aborda­


gem legal da Lei. Isto é geralmente verdadeiro no que diz respeito ao detalhe,
mas não se aplica necessariamente quando está em jogo uma compreensão
radical. Talvez o exemplo mais marcante figure na tentativa de R. Simlai, no
terceiro século (bMak. 24a), de reduzir a um único, em estágios sucessivos e em
termos exclusivamente não haláhicos, os diversos mandamentos de Moisés.

47 Uma fusão paralela quanto a deveres mais e menos elevados aparece no segundo século a.C na
Carta de Aristeas (228), referindo-se a honrar Deus-pais-amigos e em Josefo, Contra Apionem II,
206: “A Lei coloca honrar os pais logo após a honra a Deus ... Ordena que seja mostrado respeito,
pelos mais novos, às pessoas mais velhas, porque Deus é o mais Antigo de todos”.
48 A Religião de Jesus, o Judeu

Foram dados a Moisés seiscentos e treze mandamentos ... Veio Davi e os


reduziu a onze. Pois está escrito: Salmo de Davi. Senhor, quem pode
hospedar-se em tuas tendas? Quem pode habitar em teu monte sagrado? (1)
Quem anda com integridade (2) e pratica a justiça (3) e fala a verdade no
coração (4) e não calunia com sua língua (5) e não faz mal a seu próximo
(6) e não difama seu vizinho (7) despreza o ímpio com o olhar (8) mas honra
aos que temem o Senhor (9) é responsável por seus juramentos sem se retratar
(10) não empresta dinheiro com usura, (11) nem aceita suborno contra o
inocente. Aquele que assim fizer jamais vacilará, (SI 15,1-5) ... Veio Isaías
e reduziu os mandamentos a seis, como está escrito: (1) Aquele que pratica
ajustiça (2) efala o que é reto; (3) despreza o ganho da opressão, (4) recusa-se
a aceitar suborno, (5) tampa os ouvidos para não ouvir falar em crimes de
sangue, (6) e fecha os olhos para não ver o mal (Is 33,15) ... Veio Miquéias
e os reduziu a três, como está escrito: O Senhor te mostrou, ó homem, o cjue
é bom e o que o Senhor exige de ti: (1) apenas praticar a justiça, (2) e amar
a bondade, (3) e caminhar humildemente com teu Deus (Mq 6 ,8 )... Veio
novamente Isaías e os reduziu a dois, como está escrito: Assim diz o Senhor:
(1) Praticai a justiça (2) observai o que é direito. Veio Amós e os reduziu a
um, como está escrito: Assimfalou o Senhor à casa de Israel: procurai-me e
vivereis (Am 5,4).

Enquanto os sábios rabínicos são retratados como especialistas práticos nos


detalhes mais finos daquilo que é proibido ou permitido, melhor dizendo, a
maneira correta de implementar a Torá, e apenas menos freqüentemente como
moralistas ou teólogos, o traço mais importante na atitude de Jesus é uma
preocupação abrangente com o propósito final da Lei que ele percebia, de forma
primária, como essencial e positiva, não como uma realidade juridica mas como
uma realidade ético-religiosa, revelando o que pensava ser o comportamento
justo e divinamente ordenado para com os homens e para com Deus.“*®

48 Neste ponto, a Carta de Aristeas (234) apresenta novamente um precedente significativo quando
proclama que honra é feita a Deus, no final, por um coração puro e por disposição devota de
preferência a dons e sacrifícios.
Jesus o Mestre:
Autoridade Escriturai e Carismática

I Jesus como Mestre

Qualquer que tenha sido sua ação, Jesus era inquestionavelmente um mestre
influente. Era uma figura antes popular que profissional, um mestre itinerante
que não anunciava sua mensagem em local fixo tal como numa escola (bet
midrash) ou numa sinagoga determinada. Ao invés, rodeado por um grupo de
discipulos cujo núcleo estava estabelecido, viajava pelos campos da baixa
Galiléia, proclamando seu evangelho e operando curas. Escritos rabínicos
posteriores mencionam um “galileu errante” como intérprete da Biblia (bSanh.
70a; bHul. 27b), mas a evidência é por demais tênue para nos permitir falar de
pessoas representativas de uma instituição e nos perguntar se Jesus era um deles.
Ele foi ouvido pelo menos num Pessah, e, segundo o quarto evangelista, em
diversas festas judaicas no decorrer de dois ou três anos, em Jerusalém e no
santuário. Como não pertencia a nenhum grupo de ensino reconhecido tais
como os “escribas” (soferim) e nem mesmo aos “pregadores” (darshanim), menos
claramente definidos, que pronunciavam homilias sobre leituras da Bíblia nas
sinagogas, a natureza de sua missão deveria ser questionada em sua própria
época e através dos séculos. A história registrada nos três Evangelhos Sinóticos,
segundo a qual altos sacerdotes, escribas e anciãos questionam a autoridade do
ensinamento de Jesus pode ser fictícia, mas faz eco a um problema genuíno.'
Na narrativa do Evangelho, Jesus se recusou a responder a não ser que seus
interlocutores estivessem dispostos a declarar sua posição no que diz respeito à
origem, divina ou humana, do ministério de João Batista. Como eles aparente­
mente se refugiaram por detrás de um “não sabemos” conveniente, Jesus emergiu
como o vencedor da polêmica, o que lhe assegurava o direito de evitar a questão.

1 Lc 20,lseg.; Mc ll,27se g .; Mt 21,23. A respeito dos escribas, precursores dos rabis ou sábios, e
dos pregadores, cf. H JP 11, 322-36, 453.
50 A Religião de Jesus, o Judeu

Mesmo assim, o caráter de seu ensinamento deve ser inquirido por todos,
inclusive o estudioso crítico.
No campo da religião, regras e doutrinas geralmente aceitas são considera­
das axiomáticas e não requerem prova. A questão da validade de um ensinamen­
to surge apenas quando a mensagem do mestre ou o significado do ensinamento
é fora do comum ou conflita com outras leis ou crenças geralmente aceitas. Não
é necessária nenhuma justificação para declarar que o homicídio é errado, porém
se um homem que, em sua própria casa, defendendo sua propriedade, matar um
ladrão em flagrante, será ele culpado de homicídio? A doutrina da ressurreição
corpórea é discutida apenas se for considerada como fato novo, ou se, embora
aceita pela maioria da sociedade, ainda assim for negada por um grupo signifi­
cativo de incrédulos, minim (heréticos) ou “epicuristas” (céticos). Mais uma vez,
como foi explicado no capítulo precedente, a flexibilidade dejesus com referên­
cia a uma estrita interpretação do repouso sabático deve ser considerada do
ponto de vista do carismático, para o qual curar os doentes supera todas as
obrigações, por mais legítimas que possam ser por si mesmas.
Quanto à autoridade doutrinai no judaísmo, esta depende de se o período
em consideração é bíblico ou pós-bíblico. Em termos gerais, os ensinamentos
bíblicos se dividem em duas categorias principais. Os que são considerados de
origem divina são descritos ora como publicamente proclamados por Deus,
como o Decálogo, anunciado desde o alto e gravado em pedra por dedos celestes
ou revelados a um indivíduo, tal como as leis e os mandamentos ditados no
Monte Sinai a Moisés, escriba terreno de preceitos celestiais e eternos, e subse-
qüentemente explanados e aplicados por seus guardiães designados, os sacer­
dotes levitas.
O mesmo se aplica aos profetas que, prefaciando sua mensagem com as
expressões “Assim disse o Senhor” ou “Estas são as palavras do Senhor”, e
terminando-a com “Oráculo do Senhor”, se declaravam portadores de uma
comunicação divina direta, transmitida por palavras proferidas pelos lábios do
Todo-Poderoso ou por visões sobrenaturais. O ensinamento de sabedoria na
escritura é apresentado, por outro lado, como proveniente dos sábios, sendo o
discernimento de Salomão o primeiro e mais importante, por si mesmo um dom
de Deus e reflexo de sua eterna Hohmá ou Sabedoria (Pr 8). No tempo dejesus
ben Sira, autor do Eclesiástico, nas primeiras décadas do segundo século a.C, a
divina Hohmá e a Torá de Moisés se fundiram numa única entidade conceituai
(Eclo 24).
Na idade pós-bíblica, apareceram novos critérios de validade ou autoridade,
acabando por superar os prevalentes durante a criação da escritura. As compo­
sições mais antigas se modelam na Bíblia e pseudo-epigraficamente atribuem
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 51

novos ensinamentos a Enoque, Moisés (Livro dos Jubileus e Assunção de Moisés),


Esdras, Baruc, Salomão, etc.^
Esses pseudo-autores recebem suas mensagens, tal como nos livros biblicos,
através de revelações, aparições e o dom da sabedoria. Enoque tem visões. Moisés
e Esdras ouvem palavras, às vezes por intermédio de anjos. Os salmos pós-bibli-
cos, como seus predecessores escriturais, são atribuídos a Davi. Salomão, não
mencionado mas apenas disfarçado no trabalho apócrifo a ele atribuído (Sb
9,7seg.) continua a herdar sabedoria.
Uma vez que o cânone, isto é, a relação reconhecida de livros que formam
as escrituras hebraicas foi estabelecido em seus pontos essenciais na primeira
metade do segundo século a.C., o conceito de que a autoridade final em matéria
religiosa se encontra na palavra escrita de Deus começou a se impor. Os essênios
de Qumran tentaram combinar exegese com conhecimento profético e introdu­
ziram a noção de uma interpretação do significado oculto da Lei e dos Profetas,
revelado por Deus ao Mestre da Justiça e a outros mestres oficiais, e transmitido
aos iniciados da comunidade.
É verdade que o desenvolvimento da lei comum continuou como antes e
grande parte da Mishná, sua primeira forma redigida, é composta de preceitos
sem fundamentação biblica. Entretanto, uma quantidade crescente de ensina­
mento nâo-escritural, seja legal, ético ou teológico, tomou a forma de Midrash,
isto é, uma expansão ou comentário da Biblia. Conformidade com a escritura
era a condição final quanto à verdade religiosa e nenhuma formulação doutrinai
poderia ser aceita a não ser quando fundamentada em textos autorizados.^ O
processo de amalgamação da forma de mishná e midrash pode ser observado nos
midrashim haláhicos, embora outra espécie de sanção para os conteúdos legais
da Mishná e do Talmude, que constituem adições à Biblia, tenha sido encontrada
na idéia de revelações suplementares concedidas por Deus a Moisés no Monte
Sinai. Transmitida oralmente por uma cadeia de testemunhas escolhidas, como
Josué, os Juizes, os Profetas, sábios e rabis, a assim chamada Torá oral, comple­
mento da que foi escrita pelo Legislador Supremo, e em pé de igualdade com
ela, permaneceu em sua forma oral até os primeiros séculos da presente era.'^

A pseudo-epigrafia não é uma invenção pós-biblica. Nenhum pesquisador sério aceitaria hoje em
dia que todas as palavras atribuídas na escritura a Daniel, Isaías, Salomão ou Moisés sejam
genuínas. Em muitos casos, a autoria seria considerada em grande parte ficlicia, ou mesmo
completamente. Cf. H JP III, 241 e n. 1.
No caso dos Pergaminhos do Mar Morto, ver “Biblical Proof-Texts in Qumran Literature” de minha
autoria, JSS 34 (1989), 493-508.
Cf. G. Vermes, “Bible and Midrash”, CHB 1 (1970), 199-231 [= PB]S, 59-91] Scripture and
Tradition in Judaism; Written and Oral Torah, in G. Baumann (org). The Written Word; Literacy
in Transition (1986), 79-95. Ver também, de Davi W eiss Halivni, Midrash, Mishnah and C em ara
(1986), e a penetrante análise de Sanders encontrada em Jewish Law, 97-130.
52 A Religião de Jesus, o Judeu

0 uso da escritura no ensinamento tradicional judaico, tanto na época


intertestamentária quanto na rabínica, é atestado em várias formas e estilos. Na
categoria descrita como a Biblia reescrita, representada por Antiguidades de
Josefo, Livro de Antiguidades Bíblicas de pseudo-Filo, os Targums da Palestina,
etc., o texto canônico é mesclado de glosas e suplementos exegéticos, no esforço
de oferecer uma única narrativa, ampliada e coerente. Em outros lugares,
palavras e expressões tiradas do texto sagrado estão rearranjadas e portanto
investidas de novo significado. Alternativamente, uma história escriturai é citada
como exemplo para justificar uma doutrina proposta recentemente. Ou ainda,
uma declaração biblica pode ser enfatizada de forma criativa ou contrastada com
outra passagem escriturai. Nos escritos de Qumran e, menos frequentemente,
na literatura rabínica, o significado de uma previsão profética é indicada pela
alusão a seu “cumprimento”. Finalmente, chegamos ao Midrash propriamente
dito, um encadeamento de versículos da Bíblia tomados de contextos separados,
ou a associação desses versículos com princípios teológicos ou legais, resultando
numa formulação mais desenvolvida.^
Voltando à questão original, devemos perguntar onde e como a maneira de
ensinar de Jesus se encaixa neste quadro geral e qual sua atitude pessoal frente
às sagradas escrituras ancestrais? É possível esperar que uma análise literária
das passagens do Evangelho que incluem citações da Bíblia possa auxiliar na
busca da genuína mensagem do mestre da Galiléia.

II O Emprego da Biblia no Ensinamento de Jesus

Aparentemente Jesus não se ajusta a nenhum dos modelos bíblicos quanto à


origem de sua autoridade doutrinal, como também não é herdeiro de uma escola
de pensamento passada de mestre a discípulo.
Não que os Evangelhos e o restante do Novo Testamento desconheçam
revelações e visões: Zacarias e Maria vêem anjos (Lc 1,8-23; 1,26-38); José é
instruído em sonho por mensageiros celestes (Mt l,20seg.; 2,13; 2,19). Pedro,
em êxtase, testemunha uma aparição que prepara a entrada dos pagãos na
comunidade cristã (At 10,9-16); Paulo é cego por uma manifestação celestial ao
se aproximar de Damasco (At 9,3-9); em outro lugar ele se “vangloria” a respeito
de “visões e revelações”, incluindo uma relativa a sua assunção ao “terceiro céu”
ou “paraíso”, e de ouvir “coisas que não podem ser contadas e que o homem não
pode proferir” (2Cor 12,2-4). Quanto ao autor do Apocalipse, ele se confronta
com mistérios divinos visuais e verbais. Mas, surpreendentemente, Jesus nunca

5 Para a classificação da evidência de Qumran, ver G.Vermes, “Bible Interpretation at Qumran” no


Yigad Yadin Memorial Volume, Eretz-lsrael XX (1989), 184*- 191*.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 53

aparece como beneficiário de tais dons espirituais. Aparentemente, não é neste


tipo de carisma que se fundava a autoridade de seu ensinamento.
Em nenhuma parte nos é dito que sua mensagem sobre a Lei e a ética foi
transmitida em resposta a um mandamento sobrenatural, e nenhum de seus
enunciados de cunho profético é introduzido como tendo sido ordenado por
Deus ou vindo de Deus. A única declaração a que podemos atribuir esta
característica é Mt 11,27/Lc 10,22, “Tudo me foi entregue por meu Pai ...”
implicando uma revelação completa da mensagem e planos de Deus a Jesus.
Entretanto, em sua forma atual, poucos críticos do Evangelho estão prontos a
reconhecer a passagem como genuína.®
Se Jesus não invocava Deus como fiador de seu ensinamento, seria ele
representado como um intérprete da Bíblia ou um pregador que busca habitual­
mente confirmação na divina palavra escrita? Os Evangelhos Sinóticos passam
definitivamente esta impressão, e o exame e a análise de excertos relevantes nos
ajudará a compreender o propósito dos evangelistas e determinar a confiabili­
dade ou a invalidade dessas atribuições.
Nas diferentes formas didáticas referentes à escritura que listamos acima
(ver p. 51-2), cinco figuram nos Evangelhos Sinóticos no quadro geral do ensino
de Jesus: (1) reemprego de palavras ou sentenças bíblicas; (2) citação de
precedentes escriturais; (3) derivação de novo significado por ênfase ou contras­
te; (4) interpretação de tipo pesher de cumprimento de profecia; e (5) modelo
midráshico levando à combinação de diferentes passagens da Bíblia para funda­
mentar a doutrina proposta.

1. Reemprego de palavras bíblicas

Citações implícitas da Bíblia aparecem comumente nas narrativas dos


Evangelhos. Sugerem, sem afirmar claramente, que o evento descrito se segue a
uma profecia, e que, consequentemente, foi providencialmente predestinado.
Exemplos característicos podem ser encontrados nas alusões a versículos de SI
22 e 69 no relato Sinótico da Paixão. Assim, Mc 15,24 (Mt 27,35), “E repartiram
as suas vestes, lançando sorte sobre elas, para saber com o que cada um ficaria”
ecoa SI 22,18 “Repartem entre si as minhas vestes / e sobre minha túnica tiram
sorte”. Mais adiante, Mc 15,29 (Mt 27,39), referindo-se aos espectadores que
zombam de Jesus na cruz, “meneando a cabeça”, retoma SI 22,7, “Todos os que
me vêem zombam de mim... e meneiam a cabeça”. As últimas palavras do
crucificado, Eloi, Eloi, lama sabachtani, “Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?” correspondem à versão em aramaico do SI 22,1 em Mc 15,34 (Mt

5 Cf. JJ, 201; H5T, 159 (“a Hellenistic revelation saying”); C. K. Barrett, Jesus and the Gospel Tradition
(1967), 27.
54 A Religião de Jesus, o Judeu

27-46)/ Finalmente, o episódio que narra como um dos espectadores tentou


aliviar a sede de Jesus, “um deles, correndo, embebeu uma esponja no vinagre
e, fixando-a numa vara, deu-lhe de beber” (Mc 15,36; Mt 27,48), está expresso
de acordo com 51 69,21, “na minha sede deram-me vinagre para beber”.®
Um número de citações similares ou de paráfrases, sem nenhuma indicação
de que provêm da Bíblia, aparecem em passagens doutrinais ou preces atribuídas
a Jesus. Se são deliberadamente tomadas de empréstimo ou introduzidas sub­
conscientemente, se têm a intenção de infundir uma santidade particular ao
pronunciamento, dotando-o assim de uma dignidade sobrenatural, ou se repre­
sentam simplesmente um estilo literário, é impossível decidir de modo geral. Os
exemplos podem ser classificados em três categorias: parábolas, pronunciamen­
tos apocalipticos e orações.
Três das parábolas possuem incidentalmente um sabor bíblico. A descrição
da vinha confiada aos vinhateiros maus começa com uma reconhecível alusão a
Is 5,1-2 (Mc 12,1; Mt 21,33, mas não Lc 20,9). A parábola da semente de
mostarda (Mc 4,30-32; Mt 13,31seg.; e, de forma mais breve, Lc 13,18seg.) pode
plausivelmente se inspirar no imaginário de Dn 4,21, referente a uma árvore “sob
a qual os animais do campo encontram sombra e em cujos galhos habitam os
pássaros que voam”. Finalmente, a parábola da semente que germina em segredo
(Mc 4,26-29), simbolizando o Reino de Deus, termina com uma frase tirada de
J1 3 ,1 3 .‘'
No caso dos pronunciamentos apocalípticos atribuídos a Jesus pelos evan­
gelistas, estes são freqüentemente salpicados de símiles escatológicos dos profe­
tas. O fenômeno é tão abundantemente atestado no Discurso Escatológico (Mc
13; Mt 24; Lc 21) que uma única ilustração será suficiente.
É dito que o dia do julgamento será anunciado por sinais vindos do céu e
pela aparição do “filho do homem”: “Depois daquela tribulação, o sol escurecerá,
a lua não dará sua claridade e as estrelas cairão do céu ... E então verão o filho

Não é explicado por que a frase é citada em aramaico e não em hebraico. Talvez fosse uma
exclamação proverbial de pessoas em desespero? Em Lc 23,46, Jesus expira com as palavras “Pai,
em tuas mãos entrego meu espírito; parafraseando SI 31,5, “em tuas mãos entrego meu espírito;
tu me redimiste, Senhor, Deus verdadeiro".
O autor do Quarto Evangelho não precisa mais de linguagem alusiva. Ele apresenta formalmente
os detalhes a que se refere como a realização de profecias. Jo 19,23seg.; “A túnica de Jesus era
inconsútil... então eles (os soldados) disseram entçe si: ‘Não a rasguemos mas tiremos a sorte
para ver com quem ficará’. Isso a fim de cumprir a escritura “Repartiram entre si minhas roupas/e
sortearam minha veste’ (SI 22,18). Jo 19,28seg.; “Depois, Jesus ... disse [para que se cumprisse a
Escritura até o fim]: ‘Tenho sede ”. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Fixando então uma esponja
embebida de vinagre num ramo de hissopo, levaram-na a sua boca (SI 69,21)”
Notar, entretanto, que o contexto profético é diferente e que a ordem das palavras do grego se
afasta da Septuaginta. Mt 13,41, ao interpretar a parábola das ervas daninhas, pode estar fazendo
alusão a Sf 1,3, mas a questão é por demais complicada e, no momento, não serve a nenhum fim
útil.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 55

do homem vindo entre nuvens . . (Mc 13,24-26; Mt 24,29seg.)- A representação


é inspirada em traços tomados de Is 13,10, “Com efeito, as estrelas dos céus e
suas constelações não darão sua luz; o sol escurecerá ao nascer e a lua não dará
sua claridade” — combinado com Is 34,4, “Todo o exército celeste ... cairá”,
seguido de uma transcrição livre de Dn 7,13, “E vi, vindo como as nuvens do
céu, alguém como um filho do homem.”'*’
Uma terceira classe de citações implicitas é associada a orações. As palavras
dejesus em Getsêmani, “Minha alma está triste até a morte” (Mc 14,34; Mt 26,38)
soa ao longe como SI 42,5seg., e a instrução no Sermão da Montanha, “Quando
orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no
segredo” (Mt 6,6) emprega, em contexto inteiramente diferente, Is 26,20, “Vem,
meu povo, entra nos teus aposentos e fecha tua porta sobre ti; esconde-te por
um pouco tempo, até que a cólera tenha passado”.
A repetição informal da escritura no ensino efetivo só ocorre raramente. O
próximo ponto (Mt 18,15seg.) mostra como uma passagem biblica é entretecida
num regulamento da igreja. A passagem trata do conflito entre dois membros da
comunidade e emite instruções sobre como resolver a questão. Primeiro, é
necessário tentar a reconciliação, em particular, pela parte prejudicada, e caso
as duas partes concordem, não é necessário fazer mais nada. Caso contrário, ele
tem de apresentar dois ou três “irmãos” antes de enunciar uma segunda
admoestação, no sentido que “cada palavra pode ser confirmada pela evidência
de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15). Caso não se arrependa, o “pecador”
pode ser referido “à igreja”.
A introdução da citação do Deuteronômio é tangencial e apenas justificada
por uma referência ao número de assistentes externos. A finalidade da legislação
bíblica, ao estipular que num julgamento uma única testemunha é sem valia, é
completamente diferente desta regra referente a uma disciplina comunitária
interna, levando possivelmente à excomunhão. Já que a conexão entre citação e
doutrina é tênue, nenhuma conclusão significativa pode ser tirada deste exem­
plo. Nem é necessário investigar se a seção se enquadra nos ensinamentos
autênticos dejesus, ponto do qual duvida a maioria dos pesquisadores."

10 Exemplos algo semelhantes podem ser vistos em Mt 10,34-36/Lc 12,51-53, em alusão a Miquéias
7,6, ou em Mc 9,47seg. no qual a noção da geena se toma vivida por meio de uma interpretação
da versão de Is 66,24, levemente reformulada. Mais uma vez, o futuro destino (escatológico) de
Cafamaum, jogado no Hades depois de ter sido exaltado ao céu (Mt 11,23; Lc 10,15), é
representado com a ajuda de Is 14,13,15, onde as palavras se referem originalmente à Babilônia.
Dn 7,13, combinado com SI 110,1, é livremente empregado na resposta que Jesus supostamente
deu ao Sumo Sacerdote em Mc 14,62/Mt 26,64/Lc 22,69. É de se notar que, enquanto SI 110 é
introduzido formalmente em Mc 12,36/Mt 22,44/Lc 20,42seg. (ver p. 61 n. 19), Dn 7,13 é citado
nos Evangelhos apenas de forma indireta.
11 Cf. H5T, 146 (declaração criada independentemente pela Igreja). Sobre a passagem, ver K.
Stendahl, The School o f St Matthew (1954),138seg. Sobre exprobaçào, testemunhas e excomunhão
56 A Religião de Jesus, o Judeu

Em retrospecto, as três principais categorias — parábolas, pronunciamentos


apocalípticos e orações — parecem representar o uso de textos bíblicos seja para
finalidades literárias ou estilísticas ou para a criação de uma atmosfera apropria­
da à mensagem. É provável que a utilização destas passagens, sem referência à
sua origem, possa ser creditada a Jesus? Enquanto, em princípio, a adoção do
estilo bíblico por um mestre da era intertestamentária é perfeitamente possível,
de modo geral o julgamento deveria ser negativo. Os excertos considerados não
nos parecem universalmente conhecidos entre os judeus da Palestina do primei­
ro século, e muito menos nos círculos ignorantes da Galiléia, onde, conseqüen-
temente, teriam passado despercebidos por uma ampla maioria da audiência de
Jesus. Portanto, mesmo que se possa argumentar que ele tinha grande familiari­
dade com as escrituras, que palavras de profetas pouco ilustres como Joel ou
Sofonias lhe saíam instintivamente da boca — e esta hipótese não é fundamen­
tada de todo pelo Novo Testamento — o emprego de citações implícitas não pode
ser reconhecido como desempenhando um papel didático efetivo nem convali-
dando, de forma alguma, os ensinamentos nos quais figuram. Na verdade, não
pode haver nenhuma dúvida de que estas passagens devem sua existência ao
trabalho literário/editorial dos evangelistas.

2. Precedentes escriturais

Entre as declarações doutrinais atribuídas a Jesus, várias têm a forma de um


debate no qual a prova conclusiva consiste simplesmente de um exemplo tirado
da história bíblica. Este procedimento interpretativo não era, é claro, invenção
de Jesus e pertence à tradição literária do judaísmo intertestamentário e rabínico.
Eis um exemplo bastante elaborado porém típico, baseado em Ex 14. Os
israelitas, perseguidos de perto pelos cavalos e bigas do faraó, chegam ao mar.
Neste momento crítico. Deus admoesta Moisés perguntando-lhe por que “clama­
va”. Ele deveria, antes, “levantar seu bastão” (Ex 14,15seg.). R. Yose o Galileu,
de fins do primeiro e início do segundo século, aponta o significado dramático
da cena, comparando o destino dos judeus ao tempo do êxodo do Egito com o
de Isaac, amarrado no altar e pronto para ser sacrificado por seu pai.

Quando os israelitas estavam a ponto de entrar no mar, o monte Moriá


já tinha se movido, com o altar para Isaac construído e preparado (para
o sacrifício), e Isaac amarrado e estendido sobre ele e Abraão estendendo
a mão e segurando a faca para sacrificar seu filho.

na seita de Qumran, cf. QIP, 92seg., lOOseg., 113seg.; G. Forkman, The Limits o j the Religious
Community: Expulsion fro m the Religious Community within the Qumran Sect, within Rabbinic
Judaism and within Primitive Christianity (1972); Lawrence H. Schiffman, Sectarian Law in the
Dead Sea Scrolls: Courts, Testimony and the Penal Code (1983).
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 57

O perigo, a urgência e a iminência implicitas da divina intervenção redentora se


fazem presentes pela alusão à narrativa de Gn 22. A tensão é tão grande que,
para aliviá-la, o pregador se sente justificado em injetar uma leve ironia em seu
relato.

Deus disse a Moisés: “Moisés, meus filhos estão em perigo. O mar corta
(seu caminho). O inimigo os persegue. E tu permaneces aí clamando!”
Moisés respondeu; “E o que deveria eu fazer?” Deus disse [usando um
jogo de palavras em hebraico] “Levanta [HaReM] teu bastão, etc. (Ex
14,16): deves exaltar (MeRoMeM), louvar e glorificar, proferir cantos de
glorificação e enaltecimento e louvor e graças e exaltação àquele a quem
pertencem as guerras (Mekh. II, 222seg.).

Na apresentação do R. Yose, a referência ao episódio do sacrifício de Isaac é


apenas um artifício homilético, empregado para prover de significado mais
completo a história do Êxodo. A doutrina teológica subjacente, que a redenção
junto ao mar era uma conseqüência da Akedá, pode ser inferida, mas não está
declarada.'^
A autenticação de um ensinamento por meio de exemplos ou de precedentes
escriturais figura nos Evangelhos Sinóticos, referindo-se tanto à prática quanto
a idéias.
Com relação á prática, como a permissibilidade de colher espigas de milho
num campo durante o Shabat, a história do Evangelho já foi mencionada no
capítulo anterior (pp. 29seg,). Ao discutir Mc 2,23-26 (Mt 12,1-7; Lc 6,1-4), foi
argumentado que a fome, primeiro estágio da inanição, desculpa a leve trans­
gressão do repouso sabático, pelo qual os discípulos são criticados por observa­
dores hostis. Jesus defende sua ação com a ajuda de um precedente encontrado
em ISm 21,1-7.

“Nunca lestes” replica Jesus, “o que fizeram Davi e seus homens, quando
necessitavam e tinham fome, e como [Davi] entrou na casa de Deus ... e
comeu dos pães consagrados, que só os sacerdotes podem comer, e os
deu também aos homens?” (Mc 2,25seg.)

O raciocínio tácito inserido na resposta pode se tornar explícito. Se a fome


concedia a Davi, o eleito de Deus, a possibilidade de não respeitar a regra que
proibia a um leigo comer de um alimento tão sagrado que apenas aos sacerdotes
do Templo era permitido, a desobediência, muito menos significativa, á inter­
pretação do Shabat não pode ser considerada seriamente. O mesmo princípio,
quer dizer, que a legislação do Templo prepondera sobre as leis do Shabat, é

12 Cf. S &" T, 206-8.


58 A Religião de Jesus, o Judeu

expressamente declarado no suplemento de Mateus ao relato de Marcos: “Ou não


lestes na Lei que, com seus deveres sabáticos, os sacerdotes no Templo violam
o Shabat (“trabalhando”) e nenhuma culpa lhes é imputada?” (Mt 12,5).
Existem paralelos válidos para este tipo de ensinamento na era intertes-
tamentária e início do período rabínico nos quais, como nos Evangelhos, o
exemplo de Davi é apresentado como final e decisivo. Quando se quer
esclarecer o significado de Dt 17,17, “Que ele [o rei] não multiplique o número
de suas mulheres” a Mishná (Sanh 2,4), que compreende a proibição de
“multiplicar” como significando que o rei não deve exagerar, como fez
Salomão, com suas setecentas mulheres sem mencionar as concubinas, mas
se contentar com um número razoável de mulheres, isto é, um máximo de
dezoito, inferido ironicamente de uma interpretação rabínica da história de
Davi em 2Sm.^’
Por outro lado, quando um escritor de Qumran declara que qualquer coisa
que seja mais do que um é um “múltiplo” e conseqüentemente o rei deve ser
monógamo, ele também se vê ás voltas com os bem conhecidos hábitos poligâ-
micos de Davi. O rei é excusado devido a uma ignorância intransponível; em seu
tempo a Torá era um “livro selado”, cuja mensagem estava oculta e inacessível
(CD 5,2-5).’"
Abandonando agora a prática e voltando às idéias religiosas, defrontamo-nos
com o problema do mestre carismático, cuja audiência cética clama por “sinais”,
costume judaico corrente na época, se acreditarmos no contraste estereotipado
entre os judeus que “buscam sinais” e os gregos que “buscam a sabedoria” (IC or
1,22). Todos os três Sinóticos tratam do assunto, sendo que Marcos fornece uma
resposta negativa direta, “Em verdade vos digo que a esta geração nenhum sinal
será dado”, o que, no contexto do Evangelho, deve significar que não se obtêm
“sinais” a pedido, reação instintiva de um “operador de milagres” verossímil,
tanto do ponto de vista histórico quanto psicológico.
Em contraste, Lucas e Mateus (ou Q) reproduzem um pronunciamento que,
na forma mais direta e provavelmente mais original no texto de Lucas, é expresso
com a ajuda de um exemplo escriturai.

Esta geração é uma geração má; procura um sinal mas nenhum sinal lhe
será dado, exceto o sinal dejonas; pois assim comojonas foi um sinal

13 Segundo 2Sm 3,2-5, Davi tinha seis esposas; em 12,8, o profeta Natâ, ao repreendê-lo depois do
episódio de Betsabéia e do assassinato de Urias, marido de Betsabéia, observa que se Davi
considerava seu harém “muito pequeno”. Deus podería aumentá-lo em “tanto mais tanto”, quer
dizer, seis mais seis mais seis!
14 Cf. PJBS, 41,54.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 59

para os habitantes de Nínive, assim também o filho do homem será um


sinal para esta geração.'^

O significado mais provável deste símile não se prende à aventura marítima do


profeta pela qual ele é notório, e sobre a qual, como será mostrado, Mateus tem
algo a dizer. Encontramos este significado na história relatada em Jn 3, a saber,
que seu apelo de arrependimento dirigido aos habitantes de Ninive era tão
carregado de poder sobrenatural que foi aceito como um sinal de Deus e todos
abandonaram sua iniquidade. Jesus — o filho do homem que, em dados
contextos, era uma referência habitual ao próprio orador — descreve sua própria
missão como a antítese lógica da dejonas. Mais desdobramentos do mesmo tema
em Lc ll,31seg./M t 12,41seg. atestam a ênfase editorial da superioridade de
Jesus: “Olhai, algo de maior quejonas (ou maior que Salomão) está aqui”.
Uma distorção doutrinal muito diferente é introduzida por Mateus em sua
versão da declaração. Longe de se contentar com uma vaga alusão a Jonas como
um sinal que resultou na conversão dos habitantes de Nínive, Jesus é repre­
sentado pela identificação dos três dias e noites passados pelo profeta dentro do
“grande peixe”, para empregar a expressão genérica da Bíblia Hebraica (]n 1,17),
com o período que Jesus supostamente passou em seu túmulo.

Pois como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do monstro
marinho (kêtos) assim ficará o filho do homem três dias e três noites no
coração da terra (Mt 12,40).

Esta interpretação da passagem de Jonas requer alguma explanação já que os


números dados não estão de acordo com a cronologia do Evangelho, segundo a
qual Jesus não ficou enterrado por três noites. A exegese técnica do midrash, se
bem que atestada apenas em época posterior (quarto/quinto século A.D.), em
sua formulação definitiva, pode ajudar a compreender a expansão de Mateus.
Ela implica por um lado que, de acordo com a lei haláhica, parte de um dia ou
de uma noite é considerada como o período completo de doze horas (yShab 12a;
bPes. 4a), e por outro que o “terceiro dia” está associado com a idéia de
ressucitação e salvação.
O melhor sumário rabínico sobre o “terceiro dia”, reunindo todas as
passagens relevantes da Bíblia, encontra-se no comentário midráshico. Gênese
Rabá 56,1, sobre Gn 22,4 “No terceiro dia Abraão levantou os olhos e viu ao
longe o lugar” (do sacrifício de Isaac).

15 Lc ll,19seg . Cf. Mt 16,4, onde o sinal dejonas é mencionado sem maior explanação.
60 A Religião de Jesus, o Judeu

No terceiro dia, etc. (Gn 22,4)- Está escrito: Depois de dois dias nos fará
reviver, no terceiro nos levantará e viveremos em sua presença (Os 6,2).

Sobre o terceiro dia das tribos: No terceiro dia José lhes disse, (Fazei isso e
vivereis”] (Gn 42,18).

Sobre o terceiro dia da entrega da Torá: Na manhã do terceiro dia (Ex


19,16, implicando o ensinamento de que a Tord é a fonte da vida).

Sobre o terceiro dia dos espiões: Escondei-vos lá durante três dias [até que
voltem aqueles que vos perseguem] (Js 2,16).

Sobre o terceiro dia de Jonas: E Jonas permaneceu três dias nas entranhas
do peixe (Jn 2,1).

Sobre o terceiro dia dos que retornavam do exílio: Chegamos a Jerusalém


e lá ficamos por três dias (Esd 8,32).

Sobre o terceiro dia da ressurreição dos mortos: Depois de dois dias nos
fará reviver, no terceiro dia nos levantará (Os 6,2).

Embora esta sofisticada especulação teológica possa dificilmente ser a fonte


histórica do texto de Mateus, é ainda menos possível concluir que derive deste
último. Pode, entretanto, ser tratada como um modelo didático preexistente que
inspirou o evangelista.
Mesmo não trazendo informações novas, alguns outros exemplos pertencen­
tes à mesma classe merecem ser mencionados. Em Lc 17,26seg./Mt 24,38, o
inopinado dos “dias do filho do homem” é comparado à situação reinante
imediatamente antes do dilúvio. A geração de Noé é retratada como calma e
tranqüila: “Eles comiam, bebiam, casavam, eram dados em casamento, até o dia
em que Noé entrou na arca, e o dilúvio veio e destruiu a todos” (cf. Gn 7,7). A
declaração, que não tem vinculo visível com as idéias encontradas habitualmente
em escritores judaicos do período, ou seja, que os contemporâneos de Noé eram
particularmente iníquos e que ele foi designado como pregador do arrependi­
mento (cf. mesmo 2Pd 2,5), é parte do discurso escatológico que reflete antes as
opiniões da igreja primitiva do que as dejesus. Comentário semelhante aplica-se
também a Lc 17,28-30, que ilustra a mesma doutrina a partir da história da
destruição de Sodoma nos “dias de Ló” (Gn 19).^^
Mais um exemplo ocorre no discurso contra os fariseus em Mt 23,34seg./Lc
ll,49seg., onde a predição da perseguição de “profetas e apóstolos” cristãos

16 Na tradição judaica, tanto a geração do dilúvio quanto os homens de Sodoma são pecadores por
excelência. Cf. CD 2,19seg.; mSanh 10,3.
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 61

(Lucas) ou “profetas, sábios e escribas” (Mateus) é mostrada como a culminação


de uma longa série de assassinatos de justos, começando com Abel e levando a
Zacarias (filho de Barahiá [Mateus]), morto no Templo. A identidade deste último
permanece obscura, mas já que a natureza da passagem leva dificilmente à crença
em sua autenticidade — polêmicas antifarisaicas detalhadas refletem a situação
da igreja palestiniana no período pós-70 A.D. — não cabe mais discussão sobre
o assunto.
Teria Jesus recorrido a precedentes bíblicos para fundamentar seu ensina­
mento? Não existe razão teórica para negar esta possibilidade. Entretanto, ao
investigar o tema da provável autenticidade, uma questão preliminar — comple­
mentar aos assuntos relativos à narrativa dos Sinóticos — deve ser levantada, a
relação entre a argumentação e a audiência ã qual era dirigida.
Deveriamos notar, em primeiro lugar, que nas discussões sobre halahá pelos
rabis, estritas regras hermenêuticas, as chamadas midot (isto é, um raciocínio
analógico ou ajortiori) eram obedecidas.*® Um exemplo poderia ser empregado
apenas como ilustração, sem verdadeiro valor de evidência, mas perfeitamente
aceitável e efetivo no ensino e na pregação popular, contanto que a história citada
fosse conhecida de todos. Portanto, o exemplo de Davi não poderia ter conven­
cido os sábios fariseus de que colher espigas de milho num campo, no Shabat,
constituía transgressão, mas pode ter satisfeito os simples habitantes da Galiléia.
Da mesma forma Jonas, o pregador de Nínive, — ou melhor, a formulação de
Lucas da passagem relativa ao sinal de Jonas — poderia facilmente simbolizar a
função de Jesus como alguém clamando por arrependimento em preparação ao
advento do reino de Deus. Porém a argumentação apresentada por Mateus do
relato d e Jonas vinculado à ressurreição de Jesus acarreta pressuposição escolás-
tica demasiada para resultar em convicção sem maiores explicações.
Resumindo, ã luz dos Evangelhos Sinóticos, pode-se aceitar que Jesus podia
utilizar — e assim o fez — o dispositivo homilético do precedente bíblico; que
ele o fez de uma maneira muito simples e, se pudermos confiar nos dados
existentes, apenas ocasionalmente e não como um meio regular de dotar seu
ensino de autoridade escriturai.

3. Exegese por meio de ênfase ou contraste

Eoi mostrado, no decorrer do capítulo anterior, nas seções intituladas “As


assim chamadas antíteses” e “O Decálogo”, que Jesus desenvolveu seu ensina-

17 Cf. T. W. Manson, The Sayings o f Jesus [1937] (1979), 103-5; K. Stendahl, The School o f St Matthew
(1954), 92seg, e S. H. Blank, “The Death of Zechariah in Rabbinic Littérature”, HUCA 12-13
(1937-38), 327-46.
18 Sobre as midot, c f H JP 11, 344.
62 A Religião de Jesus, o Judeu

mento ético sobre assuntos tais como homicídio, adultério, divórcio, juramentos,
retaliação e amor para com os inimigos, acentuando o significado implícito em
certos mandamentos ou proibições bíblicas ou pela introdução de um elemento
de contraste com a finalidade de fazer sobressair sua própria abordagem de
aspectos básicos da moralidade. Já que todas as passagens relevantes foram
discutidas nessas seções (pp.35-43), torna-se supérfluo continuar a examiná-
las.

4. Exegese do tipo pesher ou interpretação de cumprimento de profecias

Uma das formas mais comuns de utilização da escritura nos Evangelhos


Sinóticos é a que costumava ser chamada, em tempos passados e menos
refinados, de argumentação profética. Um versículo do Antigo Testamento é
citado para indicar que um evento associado com a vida de Jesus tinha sido
vaticinado, de modo que pode agora ser reconhecido como a realização de um
pronunciamento de Isaías, Daniel ou Davi, o salmista, ou seja, o cumprimento
de profecia messiânica. Com a chegada da idade da crítica, estas profecias
passaram a ser consideradas como posteriores aos fatos, prophetiae ex eventu,
outra maneira simplista de tratar um importante fenômeno cultural. Hoje em
dia, entretanto, com os Pergaminhos do Mar Morto aclarando o horizonte do
judaísmo intertestamentário, esta categoria de interpretação da Bíblia é facilmen­
te classificada como um pesher do Novo Testamento. Está claro que esta é ainda
uma classificação sumária. O pesher de Qumran é essencialmente um gênero
literário no qual um livro bíblico de cunho profético, ou considerado como
profético, é submetido à exposição sistemática com a ajuda de incidentes
pertencentes à história da seita essênia. A explanação do versículo bíblico 1 é o
evento A, a do versículo 2 é o evento B e assim por diante, até o fim do capítulo
ou do livro. Faz-se desnecessário dizer que os Evangelhos não se encaixam nesta
espécie de literatura exegética. Entretanto, tanto nos escritos de Qumran quanto
nos rabinicos, encontramos raciocínios teológicos que ou utilizam extratos de
peshers existentes ou fabricam uma demonstração ad hoc. Tais textos constituem
material apropriado para uma compreensão genuína dos paralelos do Novo
Testamento.^®
Passagens doutrinais atribuídas a Jesus pelos evangelistas contêm cerca de
10 casos em que o significado ou o caráter de predestinação de um acontecimen­
to é explanado ou demonstrado com a ajuda dessas citações “proféticas”.

19 o argumento de Jesus transformando Sl 110,1, “Deus disse ao meu senhor: senta-te à minha
direita”, em instrumento polêmico ao atribuir um significado especial à expressão “meu senhor”
poderia ser classificado na mesma categoria. Cf. Mc 12,35-37/Mt 22,41-45/Lc 20,41-44.
20 No que se refere à evidência de Qumran, ver meus estudos citados anteriormente nas notas 3 e 5.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 63

Ocorrem em todos os tipos de tradição do Evangelho, em Marcos, em Q, bem


como em pronunciamentos atestados apenas por Mateus ou Lucas e se dividem
em três categorias.
(a) A primeira, uma interpretação de cumprimento de profecia num contexto
de controvérsia, figura em Mc 7,1-8/Mt 15,1-9: Jesus qualifica como hipócritas
os fariseus de Jerusalém que discutem sobre o hábito dos discípulos de comer
sem lavar as mãos. Os críticos consideram um costume tão elevado quanto — e
senão mais elevado — os mandamefttòs divinos, dando assim cumprimento às
palavras de Isaías: “Este povo me honra com seus lábios, mas seu coração está
longe de mim; em vão eles me cultuam, ensinando como doutrinas os preceitos
dos homens” (Is 29,13). O texto bíblico tem como intento enfatizar que a
verdadeira religião brota do coração e a preocupação exagerada com observân­
cias externas se constitui em empecilho, atitude inteiramente de acordo com a
espiritualidade carismática.
(b) A segunda classe de citações do tipo pesher serve para fazer derivar uma
conclusão prática ou doutrinal a partir do presumido cumprimento de uma
predição profética. Mc 13,14, e ainda mais explicitamente Mt 24,15seg. exem­
plificam o caso. A instalação de um objeto sacrílego no Templo (Dn 9,27)
indicará a chegada do cataclisma final e assinalará o momento em que os fiéis
discípulos devem fugir.

Quando, portanto, virdes a abominação da desolação de que fala o profeta


Daniel instalada no lugar santo (que o leitor entenda) então os que
estiverem na Judéia fujam para as montanhas (Mt 24,15seg.).

Mais uma vez, no jardim de Getsêmani, Jesus anuncia que seus apóstolos o
abandonarão em virtude da profecia de Zacarias (Zc 13,7).

Todos vós vos afastareis de mim; porque está escrito: “Ferirei o pastor e
o rebanho se dispersará” (Mc 14,27/M t 26,31).^*

Em outro lugar, Mateus (9,12 seg.), diferentemente dos dois outros Sinóticos,
representa Jesus sugerindo que sua abordagem heterodoxa dos “publicanos e
pecadores” é a realização de um pronunciamento de Oséias (6,6).

Não são os que têm saúde que precisam de médico mas sim os doentes.
Ide, pois, e aprendei o que significa “Quero misericórdia e não
sacriflcio”.^^

2 1 0 mesmo versículo é citado por inteiro no Documento de Damasco (CB 19,5-9) vaticinando a
punição dos iníquos e a salvação dos humildes (“Estenderei minha mão sobre os pequeninos")
de preferência à perda do “pastor” como nos Evangelhos.
64 A Religião de Jesus, o Judeu

Finalmente, de modo inusitado e algo desajeitado, e apenas numa ocasião,


o ponto principal de uma parábola é caracterizado como sendo o cumprimento
de um salmo. A história dos vinhateiros homicidas é seguida de um comentário
de Jesus em Mc 12,10seg./Mt 21,42/Lc 20,17.

Não lestes esta escritura: “A pedra que os construtores rejeitaram


tornou-se a pedra angular ...” (SI 118,22).

As metáforas da citação nada têm a ver com a história em si e a justaposição das


duas parece puramente artificial. O versiculo pertence ao arsenal apologético do
cristianismo primitivo (At 4,11; IPd 2,6); dai sua adição à parábola, e pode-se
presumir que mesmo a própria parábola é de origem eclesiástica.
(c) A terceira categoria, a exegese de tipo pesher, quer dizer, a representação
de um evento como o cumprimento de uma profecia, pode, por sua vez, ser
subdividida em citações que Jesus teria aplicado a outras circunstâncias ou
indivíduos além dele próprio e aquelas que declara ter realizado pessoalmente.
Com referência à primeira variedade, atestada por Marcos, Q e Mateus, há o
caso dos mercadores e cambistas cuja presença no Templo representa o cumpri­
mento da profecia de Is 56,7, com um eco de Jr 7,11.

E ele pregou e lhes disse, “Não está escrito, ‘Minha casa será chamada
casa de oração para todas as nações’ (Is), vós porém fizestes dela ‘um covil
de ladrões’” Qr)? (Mc 11,17; Mt 21,13; Lc 19,46).

Quase ao lado desta última citação, encontramos, em Mateus (21,15seg.), a


justificação de Jesus, como se necessitasse de justificação, apesar das reclama­
ções mesquinhas das autoridades do Templo, da presença de um grupo de
crianças que o saudaram com “Hosana ao filho de Davi”, citando aos altos
sacerdotes e escribas as palavras de SI 8,2,

Nunca lestes que “Das bocas dos pequeninos e das criancinhas de peito
preparaste um louvor perfeito?” (Mt 21,16)

O pesher mais destacado do Evangelho está preservado numa passagem de Q,


na qual Jesus identifica João Batista como a pessoa predita pelo profeta Mala-

22 A propriedade da citação é um tanto questionável, já que apenas a primeira metade do versículo


de Oséias, a noção de misericórdia, é relevante. O mesmo extrato parece se prestar melhor em
outro suplemento de Mt (12,5-7 a Mc 2,26/Lc 6,1-4) em relação ao episódio em que os discípulos
colhem espigas de milho e as comem no Shabat, onde a argumentação assim procede: O culto
no Templo tem prioridade sobre o Shabat porém um ato de misericórdia é preferido por Deus a
um sacrifício. Deve-se notar que a expressão “Ide/vinde e aprendei/ouvi/vede!” ocorre com
frequência na terminologia exegética judaica.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 65

quias (3,1), cujas palavras estão convenientemente modificadas com a ajuda de


Ex 23,20

Que fostes ver no deserto?... Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais
que um profeta. É dele que está escrito: “Eis que vos envio meu
mensageiro, ele preparará vosso caminho diante de vós” (Mt 11,7-10).^^

A segunda espécie de interpretação de cumprimento de profecias é peculiar a


Lucas. O evangelista gentio, em passagem sem paralelos nos Sinóticos, por duas
vezes apresenta Jesus aplicando profecias a si mesmo. O primeiro exemplo é o
episódio da leitura pública de Jesus de Is 6,1, “O espirito do Senhor está sobre
mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres...” seguido pelo
momentoso comentário: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da
escritura” (Lc 4,16-21). Além disso, na passagem de Lucas sobre as duas espadas
(22,35-38), Jesus se vê cumprindo o oráculo referente ao Servo Sofredor:

Pois eu vos digo, é preciso que se cumpra em mim o que está escrito, “E
ele foi contado entre os iníquos” (Is 53,12); porque o que foi escrito sobre
mim tem seu cumprimento (Lc 22,37).

À luz desses dados, não pode haver dúvida no que se refere à familiaridade da
exegese do tipo pesher nos círculos responsáveis pela criação dos Evangelhos.
Mas existem boas razões de referi-la ao próprio Jesus? Isto não se verifica
necessariamente e é evidente que este tipo de prova não está indissoluvelmente
ligado a Jesus, não apenas segundo o precedente de Qumran — a maioria dos
Pergaminhos são anteriores ao primeiro século A.D. — como também pela
freqüência de seu emprego pelos evangelistas, especialmente Mateus, sem colo­
car as palavras na boca de Jesus.
A pregação de João Batista no deserto da Judéia é descrita na tripla tradição
(Mc 1,2-4/Mt 3,1-3/Lc 3,2-6) como o cumprimento de Is 40,3 com a leitura,
“Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho para o Senhor” em vez de
deslocar a cesura, resultando em, “Uma voz clama: ‘No deserto, preparai o
caminho para o Senhor’”.^“*
O restante da evidência vem de Mateus e diz respeito ao “nascimento virgem”
(Mt l,22seg. /Is 7,14); a Belém como o lugar de nascimento do Messias (Mt
2,3-5/Mq 5,2); ao massacre dos meninos de até dois anos de idade na região (Mt
2,16-18/Jr 31,15; Gn 35,19); ao papel de Jesus como operador de curas.

23 O mesmo argumento aparece, embora não na boca de Jesus, em Marcos 1,2, onde a composição
de M alaquias cum Êxodo é prefixada a Is 40,3.
24 Esta divisão, consoante com o significado do texto hebraico, sublinha a prova do pesher que
justifica a instalação da seita de Qumran no deserto (IQ S 8,12-14).
66 A Religião de Jesus, o Judeu

exercendo literalmente e não espiritualmente a missão do Servo no Dêutero-


Isaías (Mt 8,18/Is 53,4; Mt 12,18/Is 42,1-4); ao seu ensinamento por parábolas
(Mt 13,35/Sl 78,2); à sua entrada em Jerusalém montado num burro (Mt
21,5seg./Zc 9,9, revisto e combinado com Is 62,11);^^ e finalmente, à compra do
Campo de Sangue com as trinta moedas de prata de Judas (Mt 27,7-10, declarada
como sendo o cumprimento de uma profecia inexistente de Jerem ias; Mateus
possivelmente mistura, neste ponto, Jr 32 com Zc ll,12seg.).
Além disso, a exegese de Mateus e o pesher de Qumran, bem como relíquias
semelhantes nos escritos rabínicos — tais como a predição de Yohanan ben Zakai
que Vespasiano se tomaria imperador como pressagiado em Is 10,34, ou a
identificação de R. Akiba, à luz de Nm 24,17, de Simão bar Kohba como o Messias
real (S & T, 34seg.; 165seg.) — indicam que o terreno apropriado para esta
espécie de argumentação é antes a apologética do que o ensino, pregação ou
exposição e, enquanto a hipótese de que Jesus se voltava, ocasionalmente, à
interpretação do tipo de cumprimento de profecias não pode ser excluída
absolutamente, sua plausibilidade em larga escala é mínima. Nem existe nenhu­
ma razão que nos force a acreditar que qualquer delas deva ser considerada
genuína. Particularmente, a autenticação por meio do pesher do papel divina­
mente predestinado de Jesus é atestada apenas em Lucas, cuja sensibilidade
quanto a assuntos judaicos não é particularmente desenvolvida. Apenas alguém
com a vaidade de Alexandre, o Grande poderia ser representado por um judeu
(p.ex. Josefo) orgulhando-se do cumprimento, em sua pessoa, daquilo que
acreditava ser um vaticínio antigo.

E quando o livro de Daniel lhe foi mostrado [a Alexandre, o Grande] no


qual ele [Daniel] declarara que um dos gregos destruiria o império dos
persas, ele [Alexandre] acreditou ser ele próprio o indicado (Ant., 337).

5. O Midrash do Evangelho

Os evangelistas sinóticos transmitem alguns exemplos de prova escriturai


em apoio a declarações legais ou doutrinais que podem ser mais bem descritas
como midrash, ou seja, quer a interpretação de um texto bíblico com a ajuda de
outro ou a exegese de uma passagem em combinação com um princípio geral.
Ambos procedimentos figuram habitualmente em escritos rabínicos. O primeiro
é representado por mandamentos referentes à devoção filial e ao divórcio, em
contraste com a regra do qorban e o modelo divino do casamento, o segundo

25 Para tomar a passagem mais convincente, os evangelistas omitiram as palavras do texto hebraico
que aludem ao poder triunfal do Messias, “justo e vitorioso", antes de descrever sua condição
como “humilde e montado num burro”.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 67

pela dedução da doutrina da ressureição com base na terminologia do


Pentateuco.
O primeiro caso diz respeito a um conflito potencial entre a lei divina e o
costume ancestral. Num contexto de controvérsia, Jesus opõe um dos manda­
mentos do Decálogo, “Honra teu pai e tua mãe" a uma interpretação contempo­
rânea de regras escriturais que dizem respeito a um voto pelo qual uma soma
de dinheiro é dedicada ao uso do Templo, prática conhecida como qorban
(oferenda).
Na versão de Marcos (7,9-13), a argumentação de Jesus assim se desenvolve:

Sabeis muito bem rejeitar o mandamento de Deus para observar vossa


tradição! Pois Moisés disse: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12; Dt 5,16);
e “Aquele que maldisser pai ou mãe certamente deve morrer” (Ex 21,17;
Lev 20,9), mas vós dizeis: “Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: Os
bens com que poderia te ajudar são Qorban (quer dizer, oferenda sagrada)
— vós não 0 deixareis fazer mais nada por seu pai ou por sua mãe,
invalidando assim a palavra de Deus pela tradição que transmitistes”.

O paralelo em Mateus (15,3-6) curiosamente omite o termo técnico hebraico/ara-


maico e diz:

Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe, “Aquilo que de mim poderias
receber foi consagrado a Deus”, esse não está obrigado a honrar pai nem
mãe (Mt 15,5).

O significado implícito desta contradição é que para Jesus o preceito divino de


cuidar dos pais necessitados prepondera sobre uma compreensão ultra-rigorosa
da legislação do Templo. Pareceria que nem o judaísmo rabínico, nem mesmo
a estrita escola dos essênios de Qumran foi tão longe quanto os fariseus dos
evangelistas.“ É digno de nota que, enquanto o texto bíblico, tomado dos Dez
Mandamentos, devia ser familiar a todos, a lei ritual do qorban se encontra em
categoria muito diferente. Mesmo assim, o ponto marcado por este raciocínio
exegético bastante avançado é inteiramente congruente com a visão religiosa
básica de Jesus.

26 Sobre qorban, ver JWJ, 78seg. A passagem mais relevante da Mishná t Ned 3,2: “Caso alguém vir
(à distância] pessoas comendo figos e disser, ’Olhai, estes são qorban para ti’, se acaso forem seu
pai e seus irmãos, de acordo com a escola de Shamai, se houvesse outros [não parentes] com eles,
eles estavam obrigados [pelo voto], porém eles [os membros da família] eram isentos mas segundo
a escola de Hilel, ambos eram isentos." Em Qumran, por sua vez, é simplesmente proibido
consagrar ao Templo o alimento necessário para o bem-estar da família (CD 16,14seg ).
68 A Religião de Jesus, o Judeu

O segundo midrash do Novo Testamento, atribuído ajesus em Mc 10,2-9 (e


Mt 19,3-8), reinterpreta a legislação do divórcio de Dt 24, colocando-o contra
Gn 1,27; 2,24.

Alguns fariseus aproximaram-se dele e, para pô-lo à prova, perguntaram-lhe;


“É licito a um marido repudiar sua mulher?” Ele respondeu; “Que vos
ordenou Moisés?” Eles disseram; “Moisés permitiu escrever uma carta de
divórcio e depois repudiar”. Jesus então lhes disse; “Por causa da dureza
de vossos corações ele escreveu para vós este mandamento. Mas desde o
princípio da criação Ele os ‘fez homem e mulher’ (Gn 1,27). ‘Por esta razão
o homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher e os dois serão uma
só carne.’ De modo que já não são dois mas uma só carne. Portanto, o
que Deus uniu o homem não separe”.

A permissão de escrever um documento mediante o qual um casamento é


terminado — o get rabínico — resulta de uma tolerância divina (ou mosaica),
que não seria ou não deveria ser necessária se os judeus obedecessem as
instruções contidas em Gênesis I, onde se diz que Deus criou e uniu para toda
vida um homem e uma mulher, sem nenhuma sugestão de uma eventual
separação. Este assunto e sua relação com o Documento de Damasco já foram
tratados no capítulo precedente (cf. pp.38seg.). Não é necessário dizer, o assunto
comporta uma elaborada argumentação exegética.
O caso restante, referente a esta classe, procura demonstrar a doutrina da
ressurreição dos mortos com a ajuda de uma citação da Torá, explanada por
meio de um princípio teológico, que é o seguinte: Deus não é o Deus dos mortos
mas dos vivos. Numa alegada controvérsia com os saduceus que rejeitavam a
crença da vida após a morte, Jesus supostamente declarou;

Quanto aos mortos que hão de ressurgir, não lestes no livro de Moisés,
na passagem sobre a sarça, como Deus lhe disse: “Eu sou o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Ora, ele não é Deus de mortos,
mas sim de vivos (Ex 3,6) Errais muito! (Mc 12,26seg.; Mt 2 2 ,3 Iseg.; Lc
20,37seg.).

A paráfrase que esclarece a lógica desta declaração podería ser a seguinte;


constitui axioma que Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos. Mas Abraão,
Isaac ejacó, enterrados numa caverna em Hebron, já não estão vivos. Se, mesmo
assim, ele se denomina o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, é porque no final todos
ressurgirão. Portanto, a Torá, o “Livro de Moisés”, contém a doutrina da
ressurreição.
O estilo do raciocínio é tipicamente rabínico, embora este versículo particu­
larmente não tenha sido empregado para esta finalidade, tanto quanto se saiba,
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 69

no Talmude nem no Midrash. Devemos lembrar, entretanto, que o Talmude


Babilõnico, no tratado Sanhedrin (90b) reúne várias tentativas de provar a
doutrina da ressurreição com base na Bíblia, e primariamente no Pentateuco, por
meio de inferências semelhantes às que fundamentam a passagem do Evangelho.
Novamente, os exemplos provêm de uma idade mais tardia, mas obviamente não
são relacionados ao Novo Testamento nem dele dependem. O primeiro é
atribuído ao R. Yohanan, mestre palestino do terceiro século, que procurava
deduzir a ressurreição dos mortos a partir de Nm 18,28 (bSanh. 90b):

Está escrito, “E dela (da oferenda de dízimos), dareis a parte do Senhor a


Aarão, o sacerdote”. Mas é fato que Aarão vive para sempre — certamente
ele nunca entrou na terra de Israel — para que lhe façam uma oferenda?
Porém isto ensina que ele reviverá e Israel lhe fará uma oferenda. Portanto,
a ressurreição dos mortos pode ser inferida da Torá.

Como nos Evangelhos, a lógica interna do texto parece demandar uma interpre­
tação que leve mais além do significado literal de Números.
Outro exemplo, atribuído a Rabi Simai, que viveu circa 200 A.D., é ainda
mais apropriado já que usa Abraão, Isaac e Jacó para chegar à conclusão de que
o Pentateuco se refere ã ressurreição.

“Eu também estabelecí minha aliança com eles (os três patriarcas), para
dar a eles a terra de Canaã” (Ex 6,4). Não está escrito “vós” mas “eles”.
Logo, a ressurreição dos mortos pode ser inferida da Torá (bSanh. 90b).

Novamente, a implicação é que a divina promessa a Abraão, Isaac e Jacó, no que


tange à possessão da terra, exige crença na ressurreição, já que a conquista da
Palestina não ocorreu durante a vida dos patriarcas. A técnica é característica da
exegese rabínica, determinada em descobrir na Torá idéias que lhe são estranhas,
técnica pouco apropriada para instruir os ignorantes.
Tudo considerado, a principal impressão que emerge deste exame das cinco
classes de didática que emprega textos escriturais como prova é que, em geral,
elas aparecem apenas em pequena escala no ensinamento de Jesus tal como
apresentado pelos evangelistas, e que a maioria dos exemplos carecem da força
necessária para construir uma hipótese bem fundamentada, e menos ainda, uma

27 Outra peculiaridade, desta vez gramatical, que os rabis viam como indicadora da doutrina da
ressurreição consiste no emprego do imperfeito (ou futuro) dos verbos, no lugar do passado. “É
ensinado: R. Meir disse, Como podemos saber que a ressurreição dos mortos se encontra na Torá?
Está escrito, ‘Então Moisés e o povo de Israel ^^ashir (literalmente, cantarão) este hino ao Senhor’
(Ex 15,1). Não está dito, ‘cantaram’ mas ‘cantarão’: logo, a ressurreição dos mortos pode ser
inferida na Torá" (bSanh. 91b). O mesmo principio aplica-se igualmente a Js 8,30, IRs 11,7; SI
84,5; Is 5,8 (bSanh ibid.).
70 A Religião de Jesus, o Judeu

demonstração de autenticidade. Pesher e midrash quase sempre pressupõem


uma estrutura polêmica, com fariseus ou saduceus e, enquanto tal realidade é
facilmente admissivel no caso de controvérsias entre os grupos judeus em
questão e os representantes do judeu-cristianismo do primeiro século, eles são
muito questionáveis no contexto do ministério de Jesus, pregado principalmente
na Galiléia. Como mencionei em Jesus the Jew, antes de 70 A.D. havia pouca
presença de fariseus fora da Judéia, e o mesmo se aplica aos saduceus. Em
contraste, fica patente pelos Atos dos Apóstolos que, desde os primeiros anos do
movimento de Jesus, existia em Jerusalém uma comunidade bem definida, com
membros instruídos nos assuntos relevantes do judaísmo e formando um
cenário apropriado para debates com as outras escolas da Palestina.
Não obstante, não seria razoável duvidar que Jesus tenha jamais recorrido
a argumentos bíblicos, e entre estes, como foi sugerido, gozam das pretensões
mais fortes de autenticidade a adoção da expressão bíblica, o emprego de
precedentes escriturais e a interpretação enfática ou hiperbólica dos mandamen­
tos com os quais todos os seus contemporâneos estavam familiarizados. Mas
estas instâncias são poucas e isoladas e de modo nenhum formam um corpus
bastante sólido para dotar a pregação de Jesus de poder excepcional. Ainda
assim, desde o início da primeira referência ao seu ensinamento na sinagoga de
Cafarnaum, todos os três sinóticos o retratam como um homem que fala com
exousia, vale dizer, com autoridade. Esta notável afirmação necessita de investi­
gação posterior.

111 A Autoridade Carismática de Jesus

Max Weber, o mais proeminente expositor do século vinte da idéia da autoridade


carismática, encarando o assunto em termos gerais, descreve a pessoa que possui
este poder como se segue;

O herói carismático não deriva sua autoridade de códigos ou de estatutos,


como é o caso da jurisdição de ofício; também náo deriva sua autoridade
do costume tradicional ou de votos feudais de fé, como é o caso do poder
patrimonial.

O líder carismático conquista e mantém autoridade apenas provando sua


força em- vida. Se quiser ser um profeta, deve operar milagres; se quiser
ser um guerreiro, deve realizar feitos heróicos.^®

28 From Max W eber: Essays in Sociology, org. por H. H. Gerth e C. Wright Mills (1979), 248seg.
O conceito carismático é expressamente aplicado a Jesus por Rudolf Otto na última seção de
The Kingdom o f God and the Son o/M an (1938), 333-76, intitulada “The Kingdom of God and the
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 71

A principal evidência quanto à força pessoal e à autoridade doutrinai particulares


de Jesus aparece logo no início do Evangelho, no relato de seus primeiros
pronunciamentos públicos na Galiléia. O episódio é descrito em dois dos
Sinóticos (Mc l,21seg./Lc 4,31seg.), com um comentário suplementar colocado
depois do relato da cura de um homem possuido por um “mau espírito” (Mc
1,27/Lc 4,36). O paralelo de Mateus a Mc l,21seg. figura como a conclusão do
Sermão da Montanha (Mt 7,28seg.) com uma variante menor porém significativa.
Esta alteração da posição da passagem, claramente secundária, resulta na
ausência da referência suplementar. A narrativa de Marcos, inquestionavelmente
a versão original, servirá de base a nossa análise, mas as outras variantes
Sinóticas também serão lembradas.

Entraram em Cafamaum e logo, no Shabat, ele entrou na sinagoga. E ali


ensinava. Ficaram espantados com o seu ensinamento, pois ele ensinava como
quem tem autoridade (hos exousian echon) e não como os escribas. (Mc
l,21seg.) [Segue-se aqui a seção relativa ao exorcismo.]

Todos então se admiraram, perguntando uns aos outros: “Que é isto? Um


novo ensinamento com autoridadel [kat’ exousian). Até mesmo aos espíritos
impuros ele dá ordens e eles lhe obedecem! (Mc 1,27).^®

Que o método de instrução de Jesus não consistia de citações escriturais de apoio


se manifesta (a) por estas serem contrastadas com o estilo dos escribas; (b) na
asserção positiva de que era uma “nova” maneira de ensinar; (c) na ênfase
repetida da “autoridade” revelada, e (d) no “espanto” e “admiração” resultantes
na audiência.

Charisma”. O autor examina, particularmente, a questão do dom de curar e de exorcizar e da


pregação carismática. Todos eles são relevantes numa investigação do modo de ensinar do Jesus
histórico e sua relação com a autoridade escriturai.
Curas e exorcismos praticados por Jesus em pessoas que parecem estar sofrendo de doenças
histéricas são discutidos em JJ, 22-25, e todo um capítulo desse livro é dedicado a “Jesus and
charismatic Judaism” (pp. 58-82, 239-43). Martin Hengel tem muitos comentários pertinentes a
fazer sobre este tópico em The Charismatic Leader and his Followers (1981), 63-66, e mais
recentemente Irving M. Zeitlin adotou o conceito do carisma como o princípio orientador de sua
análise em Jesus and the Judaism o f his Time (1988), vii. E. P. Sanders também concorda com a
definição de Jesus como um “carismático” ou “profeta carismático” (Jewish Law, 3).
29 As principais variantes se referem à omissão da referência aos “escribas” em Lc 4,32 que diz, “pois
falava com autoridade (en exousia)”, e a especificação em Mt 7,29 que os escribas eram vinculados
à congregação da sinagoga, literalmente, que eram os escribas deles. Lc 4,36 reedita também o
comentário final e associa “autoridade e poder” não com o ensinamento de Jesus mas com seus
atos milagrosos; “Qual é este ensinamento? Porque com autoridade e poder (en exousia kai
dunamei) ele comanda os espíritos impuros e eles saem”. Esta parece ser uma simplificação da
expressão de Marcos e deveria ser classificada como secundária. Alguns manuscritos mais antigos,
fontes de Marcos, também omitem a menção dos escribas, enquanto outros harmonizam a leitura
de Marcos com a expressão “escribas deles” em Mateus.
72 A Religião de Jesus, o Judeu

A marca distintiva dos “escribas” (soferim/grammateis) como mestres con­


sistia, como é de conhecimento geral, em sua especialidade como intérpretes da
Bíblia (HJP II, 322-5), e não há dúvida de que, neste aspecto, Jesus diferia deles.
Tal parece ser a clara implicação de Mc 1,22. Se Mt 7,28 tenta abrandar a
oposição e sugere que a maneira de Jesus de comunicar sua mensagem divergia
tão-somente das técnicas didáticas dos escribas comuns é porque, como já foi
observado, a declaração aparece no final do Sermão da Montanha que incorpora
bom número de interpretações bíblicas, e porque o próprio Mateus tem em alta
estima a posição oficial do escriba, quando este tenha recebido a educação
“escatológica” correta. Esta posição transparece nas palavras que atribui a Jesus
em Mt 13,52, “Por isso, todo escriba que se tomou discípulo do Reino do Céu é
semelhante a um pai de família que do seu tesouro tira coisas novas e velhas”.
Aos olhos do primeiro evangelista, Jesus era um tipo novo de “mestre tradicio­
nal”, que ensinava de um modo diferente do escriba comum da Galiléia. De fato,
o próprio Mateus é visto por mais de um estudioso do Novo Testamento como
um antigo “rabi”, que introduziu uma nova espécie de ofício de escriba em sua
igreja.“
Comparada à pregação à qual os membros da sinagoga de Cafarnaum
estavam habituados, a de Jesus é definida como “nova” (didachê kainé), e sua
novidade é atribuída ao fato de ser pregada “com autoridade”. Já que esta
“exousia” é paralela a “autoridade e poder” (en exousia kai dunamei) com os quais
Jesus é retratado em Lc 4,36 como exorcista e operador de milagres, ele era
primariamente percebido como um carismático, isto é, uma pessoa cuja princi­
pal autoridade era de natureza espiritual. Do mesmo modo, atos de cura e
exorcismo eram vistos como a confirmação tangível da validade e da obrigato­
riedade de seu ensinamento. Daí, ambos provocavam espanto (Mc 1,22/Lc 4,32)
e admiração (Mc 1,27/Lc 4,36), reação natural a um fenómeno inesperado,
incomum e enigmático. Nas palavras de Rudolf Otto, “Pregação e poder sobre
os demónios são considerados ... como pertencentes ao mesmo nível, isto é, ao
nível do poder carismático sobrenatural.”^^Ambos os aspectos estão conjugados
em Mc 6,2/Mt 13,54, indicando desta forma uma primitiva representação-mo­
delo de Jesus, particular á Galiléia.

E no Shabat ele começou a ensinar na sinagoga (em Nazaré); e muitos


que o ouviram ficaram maravilhados (exeplêssonto), dizendo, “De onde
lhe vem tudo isso? Qual sabedoria (sophía) lhe é dada? E como se fazem
tais milagres por sua mão!”

30 Cf. G. D. Kilpatrick, The prigins o f the Gospel according to St Matthew (1946), 136seg.; K. Stendahl,
The School o f St Matthew (1954), 30-35.
31 The Kingdom o f God and the Son o f Man: A Study in the History o f Religion (1938), 351.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 73

No falar judeu-palestino — charisma é um conceito grego, ausente dos Evange­


lhos e usado apenas por Paulo no Novo Testamento — uma pessoa dotada de
tal autoridade é conhecida como profeta, termo que aparece um pouco adiante
na mesma passagem (Mc 6,4/Mt 13,57) referindo-se a Jesus. Um mensageiro
divino desta grandeza não precisava corroborar seus pronunciamentos por meio
de provas textuais bíblicas adequadas. Sua personalidade, sua presença, o poder
de sua voz, sua reputação de operador de milagres, inspiradora de espanto,
asseguravam que suas palavras eram aceitas.^^
Para reforçar esta conclusão, pode ser útil lembrar quejoão Batista, o outro
pregador carismático de importância nos Evangelhos, era igualmente repre­
sentado proclamando sua mensagem sem buscar apoio bíblico, embora lhe
tivesse sido fácil fornecer bom número de argumentos escriturais apropriados.
Sem que, de fato, os evangelistas o dissessem, eles também retratam João como
alguém que falava com autoridade.

Vós, raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que está por vir?
Produzi, então, fruto digno de arrependimento ... O machado já está
posto às raizes das árvores; e toda árvore, portanto, que não produzir
bons frutos será cortada e lançada ao fogo ... Eu vos batizo com a água
do arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso
que eu; de fato, eu não sou digno nem ao menos de tirar-lhe as sandálias;
ele vos batizará com o espírito santo e com água ... (Mt 3,7-11/Lc
3,7-9,16/M c 1,7-8; cf. Lc 3,10-14; M t3,12/L c 3,17).

Mesmo na famosa ocasião da reprimenda administrada ao tetrarca da Galiléia,


Herodes Antipas, devido à sua situação marital irregular, quando teria sido ao
mesmo tempo mais fácil e apropriado citar capítulo e versículo, por exemplo,
Lv 18,16 ou 20,21, os evangelistas simplesmente fazemjoão asseverar com uma
destemida candura; “Não é legal que te cases com a mulher de teu irmão” (Mc
6,18/Mt 14,4).
Em resumo, era a crença do povo na origem celeste do ensinamento de Jesus
e de João, reforçada, no caso de Jesus, por seu aparente domínio sobre males
físicos e mentais, que os dispensava a ambos da necessidade de demonstrar a
verdade de sua doutrina. Suas palavras eram dotadas de autoridade, não por
serem confirmadas pelas escrituras, mas porque ambos eram reverenciados
como profetas, inspirados pelo espírito de Deus. Usando novamente a linguagem
de Rudolf Otto, era a constante experiência, pelos discípulos dejesus, do sagrado
e do divino que emanavam de suas palavras e atos, que tornava supérflua
qualquer forma tradicional de argumento ou prova bíblica.

32 Sobre Jesus como profeta, ver JJ, 86-99, Cf. também ibid., 27seg.
74 A Religião de Jesus, o Judeu

Alguns toques muito leves do retrato de Jesus pintado pelos Sinóticos


confirmam expressamente o fato (por exemplo, uma experiência real ou
presumida de verdadeira santidade] em casos particulares ...
Especialmente adequada neste caso é a passagem em Marcos 10,32 [em
seguida a uma longa seção doutrinai]; “E Jesus ia à frente deles. Estavam
admirados e o acompanhavam temerosos”. Esta passagem traduz com
suprema simplicidade e força a impressão imediata do transcendental
que se desprendia do homem Jesus e nenhuma arte de caracterização
poderia fazê-lo com tanta força quanto estas poucas palavras magistrais
e plenas de significado.^^

33 The Idea o j the Holy (1959), 175seg. — Vale a pena notar também que no Testimonium Flavianum,
isto é, o breve parágrafo de Josefo sobre Jesus (Ant. xviii.63), ele é retratado como um mestre de
sabedoria, um sophos ariêr, que operava feitos espantosos (paradoxõn ergõn poiêtês) e um mestre
(didaskalos), sendo que as duas funções estavam unidas. Ver G. Vermes, “The Jesus Notice of
Josephus re-examined),JJS 38 (1987), 1-10; cf. também “Josephus’ Portrait ofjesus Reconsidered”,
em Orient and Occident: A Tribute to the Memory o f A. Scheiber (1988), 'ilT S l.
Provérbios e Parábolas

o exame do papel — relativamente restrito, como já foi visto — da Bíblia


Hebraica na formação do ensino de Jesus nos leva quase automaticamente a
prosseguir na análise de sua função didática. Qualquer leitor atento dos Evan­
gelhos Sinóticos é obrigado a se perguntar sobre o estilo dessa pregação e o lugar
e circunstâncias em que foi enunciada. As formas tradicionais da instrução
judaica, — interpretação da Bíblia (Targum, Midrash, homilia) e exposição de
leis e costumes (Mishná, halahá) — tinham na escola (bet ha-midrash), na
academia (yeshivá) e na sinagoga (bet ha-kenesset) seu lugar de expressão. A estas
pode ser acrescentado, antes de 70 A.D., o pátio do templo em Jerusalém onde,
segundo a tradição rabínica, o supremo corpo doutrinai e judicial do judaísmo,
0 Grande Sinédrio, se reunia na assim chamada Sala das Pedras Lavradas (lishkat
ha-gazzit). O mesmo pátio parece ter servido também como uma espécie de foro
aberto ou tribuna para pregadores e mestres judeus que desejavam transmitir
uma mensagem religiosa.'
Jesus está associado, nos Evangelhos, com dois dos lugares costumeiros de
instrução; a sinagoga e o Templo. Ele “ensinava” (didaskein), “pregava” (kêrus-
sein) ou, na terminologia de Lucas, “proclamava o evangelho” (euangelizesthai)
em anônimas sinagogas da Galiléia (Lc 6,6; Mt 9,35/Lc 4,15; Mt 4,23/Lc
4,43seg.; 13,10) bem como em sinagogas de Nazaré (Mc 6,2/Mt 13,54) e de
Cafarnaum (Mc 1,21/Lc 4,31). Ele também “ensinava” mas não “pregava” no
Templo (Mc 11,17/Mt 21,13; Lc 19,46 - Mt 11,23/Lc 20,1; Mc 12,35 - L c
19,47; 21,37 — Mc 14,49/Mt 26,55/Lc 22,53). Além disso, ele é visto ministran­
do ao ar livre: nas ruas de cidades e aldeias (Mc 1,38/Lc 4,43; 8,1 — Mc 6,6;
10,1), numa encosta de montanha na Galiléia (Mt 5,2/Lc 6,20), e dirigindo-se.

Quanto à sede do Sinédrio, cf. mSanh II.2: mMid 5,4. ver HJP II, 224seg. Segundo tSanh 7,1 e
tHag 2,9, no Shabat e dias festivos, os membros do Sinédrio examinavam questões doutrinais no
“Bet Midrash”, no Monte do Templo, Foi no Templo que Jesus, filho de Ananias, proferiu
calamidades apocalipticas (Josefo, Guerra vi.300), e Yohanan ben Zakai é mencionado ensinando
“à sombra do Templo” (yAZ 43b; bPes. 26a). No Novo Testamento, não só Jesus como também
Pedro e os apóstolos pregavam para os espectadores nos recintos do Santuário (At 3,12-26;
5,20seg„ 42).
76 A Religiãx) de Jesus, o Judeu

de uma barca, às multidões aglomeradas nas margens do lago de Genesaré (Mc


4,1/Mt 13,2 - Lc 5,3).
Na maioria das passagens citadas, os tópicos de ensinamento não estão
especificados. Nos eventos na sinagoga que se seguem, o argumento usualmente
se volta para o problema de curar no Shabat, já discutido no capítulo 2. Em
Cafamaum, a mensagem de Jesus é denominada simplesmente como um “novo
ensinamento” (cf. pp 71 seg.), e da barca, ele pronunciou parábolas (Mc 4,2/Mt
13,3; Lc 8,4). Sua pregação “diária” no Templo (Lc 19,47; 21,37; Mc 14,49/Mt
26,55/Lc 22,53) também não é explicitada. É mencionada em termos gerais,
embora ocasionalmente a exegese escriturai lhe esteja vinculada (Mc 11,17;
12,35). Subseqüentemente, os evangelistas registram que, no santuário, Jesus
entrava em polêmicas com os representantes oficiais dejerusalém. Mesmo assim,
como já foi sugerido repetidamente, a autenticidade dessas discussões é duvido­
sa e, segundo a opinião informada geral, são mais provavelmente reflexos das
controvérsias entre representantes da igreja judeu-cristã e mestres rabinicos nas
décadas finais do primeiro século do que conflitos reais entre Jesus e as
autoridades do Templo. Apenas o Sermão da Montanha inclui uma quantidade
substancial de material didático, boa parte do qual pode pertencer à mensagem
genuína de Jesus, embora, como concorda a maioria dos estudiosos, a composi­
ção do “sermão” seja característica de Mateus.
O assunto do querigma, quer dizer, da pregação, é melhor definido. Em
primeiro lugar e principalmente, contém um chamado ao arrependimento como
é óbvio dos exemplos do Evangelho relativos ao profeta Jonas (3,2), cuja
“pregação” motivou o “arrependimento” dos habitantes de Ninive (Mt 12,41/Lc
11,32) e de João Batista. Este último é mencionado por todos os três Sinóticos
como tendo proclamado um “batismo de arrependimento para a remissão dos
pecados” (Mc 1,4/Lc 3,3), cuja razão era o iminente advento do Reino de Deus.’
Os mesmos dois temas caracterizam a proclamação dejesus, referida como
seu “evangelho de Deus”:

Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e


crede no evangelho! (Mc 1,14)

Por sua vez, Mt 4,17 simplesmente reitera as palavras da exclamação do Batista:

Arrependei-vos pois o reino dos Céus está próximo! (Mt 3,2)^

Os sobretons escatológicos são conspícuos em Mt 3,7-10, 12/Lc 3,7-9, 17 e a própria expressão


aparece em Mt 3,2.
Lucas tem sua própria fraseologia; “para anunciar o evangelho do Reino de Deus" (4,43; 8,1). Em
Mc 1,14, existe evidência manuscrita substancial tanto para o “evangelho de Deus” e “evangelho
do Reino de Deus”. A julgar por Mt 21,23, Jesus “ensinava” mas não evangelizava no Templo de
Provérbios e Parábolas 77

Existe um acordo geral de que um apelo de teshuvá ou arrependimento e um


anúncio da chegada iminente do Reino divino (ver cap. 5 e 8) constituem os
temas centrais da mensagem de Jesus. Ainda assim, nenhum deles é desenvolvi­
do detalhadamente em nenhum lugar. A explanação mais provável é que ele não
ensinava sistematicamente, mas de forma aleatória, de modo ad hoc, e que suas
explanações e descrições resultavam de perguntas a ele dirigidas por ouvintes
ocasionais ou por um de seus discípulos regulares. É por isso que o grosso das
doutrinas a ele atribuídas foram preservadas na forma de pronunciamentos
incidentais (logia) e símiles, ou, como no título deste capítulo, provérbios e
parábolas.
Estes recursos retóricos são comuns nos escritos judaicos fora dos Evange­
lhos e constituem a substância da literatura de sabedoria bíblica e pós-bíblica e
do m ashal rabínico (cf. adiante pp. 89-94). De fato, muitos dizeres ou imagens
do Evangelho coincidem total ou parcialmente com exemplos atestados em
fontes cognatas. Entretanto, mesmo que sejam materialmente mais ou menos os
mesmos, o leitor avisado notará frequentemente um viés na formulação do Novo
Testamento, como já observamos anteriormente em conexão com a formulação
positiva ou negativa da Regra de Ouro (cf. p.45). Em nosso estudo dos provérbios
e parábolas de Jesus será dada atenção particular a tais peculiaridades.

1 Ensinando por Provérbios

Provérbios e axiomas são universalmente empregados para transmitir o ensino


de sabedoria. Já que, em regra, são caracterizados pela brevidade e vigor,
possuem um duplo papel didático: proporcionam um ponto de partida impres­
sionante ou uma conclusão poderosa. Sem introdução ou subsequentes comen­
tários explanatórios, não são apropriados à instrução. Uma série de
pronunciamentos de sabedoria, vagamente conectados ou independentes, pro­
clamados oralmente, não atrairão, provavelmente, a atenção dos ouvintes.
Qualquer tentativa em vista de um enunciado oratório do Sermão da Montanha
fornecerá involuntariamente uma prova tangível da artificialidade da composi­
ção de Mateus.
Conscientes do que foi exposto, descobre-se que, apesar da quantidade
substancial de logia proverbiais que sobrevivem no Evangelho, o gênero, èm si,
não é muito adequado para a determinação da mensagem genuína de Jesus. Já
que muitos desses pronunciamentos derivam da sabedoria popular, eles podem
ser vistos simplesmente como clichês literários, possivelmente introduzidos ou

Jerasalém. Marcos (ll,2 7 se g .) evita ambos os termos. (Para discussão posterior, ver pp .l29 seg.
adiante.)
78 A Religião de Jesus, o Judeu

desenvolvidos pela igreja em seus primórdios, e atribuídos, por pseudonímia, a


Jesus.“*
Ainda assim, a própria escolha de um provérbio testemunha do estilo de
ensinamento de Jesus. Na verdade, enunciados judaicos alterados e/ou explana­
ções a eles acrescentadas proporcionam provavelmente percepções mais autên­
ticas da mente do mestre. Segue-se um exemplo ilustrativo, disposto em oito
categorias (a)-(h).

(a) A porta estreita

Para começar com fórmulas inalteradas, a metáfora da porta estreita e o


acesso difícil que leva à “vida” e à salvação (Mt 7,13seg./Lc 13,24) é empregada
igualmente em IV Esd 7,6-8:

Existe uma cidade construída e instalada numa planície, cheia de boas


coisas, mas sua entrada é estreita e colocada ao lado de precipícios, de
modo que há fogo à direita e águas profundas à esquerda e existe apenas
um caminho entre eles.

A versão de Marcos “Porque a porta estreita e o caminho difícil que conduzem à


vida” é mais sucinta e retoricamente mais forte.

(b) Exaltação — Humilhação

Mais uma vez, as palavras do provérbio “Aquele que se exaltar será humi­
lhado e aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23,12/Lc 14,18; 18,14) reflete
a omissão costumeira da menção a Deus. Os exemplos em hebraico que
sobreviveram usam igualmente verbos na terceira pessoa do plural sem sujeito,
forma comum de referência indireta à Deidade:

Aquele que se exaltar acima das palavras da Torá, no fim será humilhado
[literalmente, eles o humilharâoj, mas quem se humilhar por causa das
palavras da Torá, no fim será exaltado [= eles o exaltarão] (ARN A, 11 e B,
22, ed. Schechter, p. 46).

Mas o Talmude tem menos escrúpulos em mencionar Deus: “Aquele que se


humilhar, o Altíssimo, bendito seja, o exaltará, e quem se exalta a si mesmo, o
Altíssimo ... o humilhará” (bEr. 13b).

R. Bultmann, HST 69-108 contém muita informação valiosa. G. Dalman, Jesus-Jeshua: Studies in
the Gospels (1929), 223-32, inclui duas listas de provérbios do Evangelho, a primeira com
paralelos rablnicos, a segunda sem estes paralelos, Para um estudo recente, ver Alan P. Winton,
The Proverbs o f Jesus: Issues o f History and Rhetoric (1990).
Provérbios e Parábolas 79

(c) Cisco e trave

Freqüentemente a imagem permanece a mesma, mas a finalidade é alterada.


Assim, o Talmude repetidamente observa a má vontade das pessoas em aceitar
a mais leve crítica. Se é dito a alguém, “Tira o cisco de teu olho!”, a pessoa retruca,
“Tira a trave do teu!” (bArakh. 16b; bBB 15b). A expressão correspondente do
Evangelho apresenta uma mensagem moral.

Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão quando não
percebes a trave que está no teu?, etc. (Mt 7,3-5/Lc 6,41seg.).

Jesus busca objetividade e verdade ao julgar as falhas em si próprio e nos outros.


O toque pessoal parece ser a marca que caracteriza sua abordagem.

(d) Médico — Profeta

Duas máximas citadas no contexto do embate de Jesus com seus concida­


dãos de Nazaré fornece um bom ponto de partida para o estudo de provérbios
reformulados. O primeiro, “Médico, cura a ti mesmo” (Lc 4,23), era corrente
numa ou noutra forma tanto no mundo judaico quanto no helenístico. O
segundo, “Um profeta só é desprezado em sua própria terra” (Mc 6,4; Mt 13,57;
Lc 4,24) ressoa familiarmente, porém não tem equivalentes claros na literatura
judaica.
“Médico, cura a ti mesmo” e seus paralelos na Gênese Rabá 23,4 — “Médico,
médico cura teu claudicar” — e num fragmento de Euripedes (1086) — “Médico
para os outros, mas ele próprio coberto de feridas” é um aviso sarcástico a: um
médico doente não inspira confiança a seus potenciais pacientes. Mas no
contexto de Lucas, o provérbio é totalmente inapropriado. Jesus coloca o
enunciado na boca do povo de sua cidade natal, invejoso das curas miraculosas
realizadas por ele em Cafarnaum. Porém o provérbio não se aplica ao caso. Para
que seja significativo, necessitaria de uma formulação inequívoca na qual “a ti
próprio” fosse substituído por algo como “o teu próprio”, isto é, o povo de tua
cidade. Esta obliqüidade deliberada que favorecería a autenticidade da expressão
não é mais perceptível na tradução grega da expressão aramaica. Entretanto, a
inadequação da fraseologia de Lucas não deixou de ser notada, como mostrare­
mos, em breve, na reformulação do verso num Papiro de Oxirrinco.
A principal tradição do Evangelho, representada por todos os Sinóticos (Mc
6,4 e par.) emprega outra declaração quase proverbial para explicar a impopu­
laridade de Jesus em Nazaré; profetas nunca são respeitados em sua terra natal.
Naquele tempo, o acesso ao poder carismático de cura pressupunha uma espécie
de reverência e admiração que não eram facilmente manifestados por membros
80 A Religião de Jesus, o Judeu

do clã nem por conhecidos próximos e a submissa confiança necessária é


encontrada mais facilmente longe de casa.^
Existe, além disso, um duplo pronunciamento, atestado no grego em P.
Oxirrinco I, hgion 6, e no Evangelho Cóptico de Tomé, logion 31, que combina
astuciosamente as alusões de Lucas tanto ao médico quanto ao profeta:

Jesus diz: Um profeta não é bem aceito em sua própria terra [aldeia; GTh],
nem um médico opera curas entre aqueles que o conhecem.

Esta formulação pode ser interpretada antes como uma racionalização inteligente
da redação desajeitada de Lucas do que como um pronunciamento original de
Jesus.

(e) Lâmpada — Sal

Os provérbios referentes à lâmpada e ao sal, quando analisados em suas


variações sinóticas e comparados com sua ocorrência na literatura judaica fora
do Novo Testamento, proporcionam uma percepção interessante na evolução de
seu significado.
Dois símiles de Jesus estão vinculados à lâmpada. O primeiro, Mt
6,22seg./Lc 11,34, a compara ao olho que é “a lâmpada do corpo”. Se o olho
estiver são, enche o corpo de luz, ao contrário, reina a escuridão. O par
olho/lâmpada é representado, pois, como a principal fonte de percepção espiri­
tual e a este respeito o Evangelho encontra seu eco num dito de Eliezer ben
Hircano, para o qual o “bom olho” é sinônimo do “bom caminho” (mAb. 2,9),
significando o comportamento religioso apropriado. O mestre enfoca o indiví­
duo e sem dúvida implica que o olho bom ou são é um dom divino bem como
a luz por ele refletida.®

Os paralelos talmúdicos citados por Strack-Billerbeck são mal selecionados e pouco convincentes.
A roupagem honorifica usada pelos sábios babilônios não se destinava a distingui-los localmente,
mas entre estrangeiros (bShab.l45b). Igualmente, a relutância de lehuda ha-Nasi de ordenar
rabino um homem da cidade de Séforis que tinha sido criticado por seus concidadãos (yTaan
68a) não equivale a declarar que todos os habitantes daquela cidade são inadequados à liderança
religiosa em sua própria terra. No contexto biblico, não é em sua localidade, mas longe dela que
o profeta perde a autoridade. A proclamação de Amós, da Judéia, de uma mensagem impopular
no santuário de Betei, ao norte, resulta na ordem do alto-sacerdote local de “ir para tua terra e
profetizar lá” (Am 7,10-12), De forma semelhante, um fragmento de Qumran (4Q 375) considera
o caso de uma pessoa reconhecida como um “profeta justo e fiel” dentro de sua própria tribo mas
rejeitado como pregador de apostasia pelo resto dos israelitas (]. Strugnell, “Moses
Pseudepigrapha at Qumran” em L. H. Schiffman, Archaeology and History in the Dead Sea Scrolls
(1990), 226, 228). Dado o fato de Jesus ser reconhecido como profeta e muito provavelmente se
identificar como tal (JJ, 87-90), a máxima em questão pode ser diretamente atribuída a ele.
De acordo com os “horóscopos” de Qumran (4Q 186), as pessoas consistem de uma mistura
variável de nove partes de luz e trevas; a proporção nos dois exemplos é de 6:3 e 8:1, sendo a luz
mencionada em primeiro lugar. Cf. DSSE, 306; HJP III, 364seg., 464seg.
Provérbios e Parábolas 81

No segundo símile (Mc 4,21; Mt 5,15; Lc 8,16), o cerne da mensagem é que


a lâmpada não deve ser escondida mas colocada em lugar destacado. Em Marcos,
a expressão toma a forma de uma pergunta sucinta e não respondida, “Quem
traz uma lâmpada para colocá-la debaixo de um alqueire ou debaixo de uma
cama, e não no castiçal?” Enquanto a tradição Q enuncia a conseqüência: “que
aqueles que entram possam ver a luz” (Lucas); “e ela dá luz a toda a casa”
(Mateus). O ensinamento implícito é que a luz é o objetivo da lâmpada e os
beneficiários da luz são as pessoas que se encontram na escuridão. O contexto
de Mateus, começando com “Vós sois a luz da terra” (Mt 5,14), se dirige de forma
patente aos propagadores do evangelho cristão. O fato proporciona um contraste
impressionante com o uso da imagem numa fonte rabínica, onde a ênfase é dada
à futilidade de uma lâmpada à luz do sol ou mesmo da lua. Quando Moisés pede
a Jetró que não parta, ele responde: “Qual o uso de uma lâmpada a não ser em
lugar escuro? Qual seria a utilidade de uma lâmpada com o sol ou a lua? Tu és
o sol e Aarão é a lua.” (Mekh. de Ex 18,27 [11, 185seg.]).
O provérbio referente ao sal aparece igualmente em diversas formulações.
Em Mc 9,50, lemos, “O sal é bom; mas se o sal perder seu sabor, como
retemperá-lo? Tende sal em vós mesmos, e ficai em paz uns com os outros”. A
frase parece conter um aviso. Atentai para que o valor espiritual simbolizado
pelo sal não se deteriore porque o processo é irreversível. A qualidade interna
do efeito produzido e preservado pelo “sal” se manifesta pela expressão final,
proclamando que aqueles que foram “salgados” terão pensamento unânime. O
comentário explanatório de Q (Mt 5,13/Lc 14,35) desenvolve desnecessariamen­
te, ao que poderia parecer, a inutilidade do sal “não salgado” e Mateus, como no
caso do símile da lâmpada, aplica a metáfora aos ministros da igreja. Mais uma
vez, a fórmula individual de Marcos aparece como a original. De fato, o provérbio
judaico correspondente é uma descrição pitoresca de uma impossibilidade.
Assim, a história talmúdica se refere a uma mula, estéril por natureza, produzin­
do cria, e prossegue com a pergunta, “Se o sal apodrecer, com o que poderão
salgar?” A resposta jocosa é, “Com a placenta de uma mula”. A originalidade
inventiva do uso da máxima por Jesus consiste em considerar a corrupção do
sal ao mesmo tempo possível e irreparável, e conseqüentemente algo que deve
ser absolutamente impedido.

(f) Colheita — Lavradores

A máxima, “A colheita é abundante mas os lavradores são poucos” (Mt


9,37/Lc 10,2) recebe igualmente viés especial por parte de Q, e sem dúvida por
Jesus, ao vinculá-la à reunião escatológica onde os lavradores são escassos,
“Rezai portanto”, acrescenta, “ao Senhor da colheita para que mande lavradores
a esta colheita”. Em contraste, a sentença atribuída ao Rabi Tarfon (mAb. 2,15)
82 A Religião de Jesus, o Judeu

considera o tempo limitado, os lavradores preguiçosos e o senhor impaciente.


“O dia é curto. A tarefa é grande. Os lavradores são preguiçosos, o salário é
abundante. O senhor é impaciente.”

(g) Mó

O provérbio relativo à grande mó^ amarrada ao pescoço é visto de diversos


ângulos nos Evangelhos e no Talmude. O fraseado do Novo Testamento figura
em duas versões e encabeça uma coleção de máximas relativas à tentação. Em
Mc 9,42/Mt 18,6 o pecado em questão é a sedução dos “pequeninos”; em Lc
17,lseg. (c f também Mt 18,7), ele é mais genérico: “Tentações ao pecado
ceriamente virão, mas ai daquele pelo qual elas vêm”. Esta frase é seguida pela
alusão ao provérbio, “Seria melhor que tivesse uma grande mó pendurada no
pescoço e fosse lançado ao mar”. A ameaça é solene e a atmosfera escatológica.®
Em comparação, a citação rabínica é sarcástica: “Um pai deve ensinar a Tord
a seu filho e provê-lo de uma esposa ... diz Samuel. Segundo a halahá, ele deve
primeiramente provê-lo de uma esposa e em seguida mandá-lo estudar. R.
Yohanan diz, Com tal mó em volta de seu pescoço, ele se ocupará da Torá?”
(bKid 29b).
O contexto escatológico do fraseado Sinótico e a intenção específica de
proteger os “pequeninos” chamados ao Reino são inteiramente consistentes com
a atribuição da passagem ao próprio Jesus.

(h) Pássaros, animais e flores

Um grupo final de máximas do Novo Testamento se centra na fauna e na


flora. A natureza dessas imagens aponta antes para um habitante dos campos
do que para um citadino e o viés particular que nelas se descobre é importante
para julgar o mestre que as emprega. Estes símiles são comuns tanto na Bíblia
quanto na literatura rabinica, daí seu significado só pode ser estabelecido em
base comparativa.
De início, a associação metafórica de um animal de grande porte — um
camelo no Evangelho, um elefante no Talmude — com o buraco de uma agulha.

Literalmente “pedra do asno,” isto é, a pedra movida por um asno, em oposição à “pedra do
homem” de um moinho manual (cf. mOhol. 8,3).
O tom escatológico é manifesto no pronunciamento subsequente (Mc 9,43-48/Mt 18,8seg.)
quando referência explicita é feita ao “Reino de Deus” ou à “vida" e à “geena” ou “geena de fogo”.
O “ai de” em Lc 17,1/Mt 18,7 tem a mesma implicação em Mc 13,17/Mt 24,19/Lc 21,23 (Ai
daquelas que estiverem grávidas ... naqueles dias!); c f ainda Mt 11,21/Lc 10,13(Ai de ti
Quorazim!) e o quádruplo “ai de ti” de Lucas (Lc 6,24-26), contrastando com as beatitudes. Os
clamores apocalípticos de Jesus, filho de Ananias, fornecem prova adicional: “Ai de Jerusalém”
(Guerra vi.304, 306) e “Ai de novo da cidade e do povo e do Templo... e também ai de mim!”
(vi.309).
Provérbios e Parábolas 83

passa a idéia de uma quase impossibilidade. Os rabinos antigos, inocentes da


psicanálise freudiana, afirmavam que os sonhos eram inteiramente construídos
sobre o pensamento racional (hirhUre lev) não contendo nunca referências a fatos
irreais tais como uma tamareira de ouro ou um elefante passando pelo buraco
de uma agulha (bBer 55b). Apenas aos minuciosos rabinos de Pumbedita,
famosos por sua capacidade de excessiva discussão, são ironicamente creditados
tais vôos de fantasia (bBM 38b).
No ensinamento de Jesus, ao contrário, a máxima é antes moral e escatoló-
gica do que psicológica e satírica. A porta estreita (cf. Mt 7,13seg./Lc 13,24),
aqui reduzida por exagero a um quase invisível buraco de agulha, supostamente
impede os ricos de entrarem no novo mundo.

É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico
entrar no Reino de Deus (Mc 10,25; Mt 19,24; Lc 18,25).

O grave sentido de urgência do fim dos tempos, mesmo excluindo o pensamento


da menor frivolidade, — Jesus nunca é representado rindo — novamente
argumenta a favor da autenticidade da expressão.®
Um raciocínio proverbial afortiori, aparentemente corrente entre os judeus,
se desenrola da seguinte maneira; pássaros e plantas se alimentam e “se vestem”
sem produzir os materiais para tanto, ou, mais exatamente, a providência deles
se ocupa, quanto mais deveríam os seres humanos confiar em Deus? Um
exemplo rabínico muito antigo, atribuído a Simeon ben Eleazar (segunda metade
do segundo século A.D.), aparece em mKíd. 4,14.

Já viram um animal selvagem ou um pássaro se ocupando em produzir


alguma coisa? Mesmo assim, eles são cuidados sem problemas, como se
tivessem sido criados apenas para me servir. E eu fui criado para servir
o meu Senhor, não deveria eu, com mais razão, ser provido sem
dificuldade? Mas eu pratiquei o mal e perdi meu sustento.

O argumento subjacente assume que, enquanto as condições prevalentes no


jardim do Éden — acesso ao alimento sem ter de trabalhar para produzi-lo —
tenham continuado de algum modo abaixo do nível do homem, os seres
humanos se encontram em posição inferior apesar de sua superioridade no
plano divino.
O mesmo tipo de imaginário e algumas das pressuposições pertinentes
caracterizam igualmente vários dizeres do Evangelho. Jesus aconselha seus

9 Tanto esta sentença quanto a que se refere â porta estreita figuram entre os “muito poucos casos”
que, segundo Bultmann, “podem ser atribuídos a Jesus com alguma medida de certeza” (HST,
105).
84 A Religião de Jesus, o Judeu

seguidores rurais galileus a não se preocuparem com alimento, bebida e vestuá­


rio.

Olhai os pássaros do ar: eles não plantam nem colhem nem acumulam
nos celeiros, e mesmo assim, nosso Pai celeste os alimenta. Não sois mais
merecedores do que eles? (Mt 6,26)

A ênfase difere da da Mishnã, na qual os pecados do homem justificam sua


situação desfavorecida, apesar de sua superioridade em relação às outras cria­
turas. A formulação de Mateus, com sua pergunta apensa, assume a mesma
perspectiva antropocêntrica mas a lição é que a ansiedade por necessidades
terrenas essenciais deveria ser vencida pela confiança que, por implicação, deixa
o homem livre para se consagrar inteiramente aos assuntos do Reino.
Uma idéia bem diferente inspirou a expressão da fonte Q a respeito dos
pardais. Embora dois desses pássaros possam ser adquiridos por um assarion
(Mt 10,29), ou cinco por dois “assaria” (Lc 12,6), “nenhum deles cairá por terra
sem a vontade de vosso Pai” (Mt) ou “nenhum deles é negligenciado por Deus”
(Lc). “Não tenhais medo, portanto; valeis mais que muitos pardais” (Mt 10,31/Lc
12,7). A mensagem parece ser que, se a divina providência se preocupa com o
destino de tais criaturas insignificantes, os seres humanos deveriam certamente
se sentir seguros.
Mesmo assim, comparada com a máxima anterior, esta soa falso. Não se
ajusta nem no contexto escatológico nem no ímpeto geral do ensinamento de
Jesus. Uma apresentação rabínica da história do pássaro é mais apropriada
porque termina numa nota de encorajamento. Tendo passado treze anos escon­
dido, durante a perseguição de Hadriano no segundo século A.D., Simeon ben
Yokai chegou à entrada de sua caverna e viu um caçador tentando pegar
pássaros. Um bat kol ou voz celestial bradou: Dismissio (Solta), e o pássaro
escapou. “Nem mesmo um pássaro perece sem a vontade do céu,” — observou
Simeon — “quanto menos o filho do homem!” (ySheb. 38d). Comparado a esta
história, o texto do Evangelho, pelo menos no enunciado de Mateus, parece ter
sido distorcido no processo de transmissão. Ninguém pode derivar muito
conforto do conhecimento de que Deus está ciente da morte de cada passari-
nho.‘°
A mesma categoria de enunciados pertencem duas máximas de Q, a primeira
sobre flores silvestres (Mt 6,28seg./Lc 12,27) e a segunda sobre raposas e

10 Um relato paralelo à história de Simeon ben Yokai aparece em GR 79,6 (Th-A 942), onde, além
do “Dismissio” celestial, ouvimos igualmente a ordem Specula (Execução), resultando na captura
do pássaro. Entretanto, o comentário de Simeon é o mesmo: “Nem mesmo um pássaro é capturado
sem a vontade do céu; quanto menos a alma do filho do homem (ou: minha alma)!” Para a
interpretação da expressão “filho do homem”, ver PBJS, 162seg. e n. 39.
Provérbios e Parábolas 85

pássaros (Mt 8,20/Lc 9,58). A segunda é uma mera extensão de Mt 6,25/Lc


12,24. Assim como os pássaros encontram alimento sem trabalhar, do mesmo
modo os lírios do campo ultrapassam a proverbial pompa e glória de Salomão“
embora “não trabalhem nem fiem”. A conclusão é ainda mais colorida e enfática
que no caso do alimento. Se Deus provê tão abundantemente para a “erva” que
fenece tão rapidamente, “não vos vestirá muito melhor, ó homens de pouca fé”
(Mt 6,30/Lc 12,28)?
Comparado à máxima anterior, Mt 8,20/Lc 9,58 é manifestamente um
exagero; neste exemplo, animais selvagens e pássaros são mais bem tratados que
“o filho do homem”.

Raposas têm tocas e pássaros do ar têm ninhos; mas o filho do homem


não tem onde descansar a cabeça.

A lição transmitida se refere à completa confiança em Deus, necessária a todos


que desejem se engajar num ministério itinerante visando o Reino. Mais despro­
vidos que raposas e pássaros que têm suas “casas”, eles devem estar preparados
para se defrontar com as tormentas dos últimos dias. Resumindo, todo o grupo
de provérbios da natureza desenvolvidos nos Evangelhos se encaixa perfeitamen-
te no contexto do entusiasmo e renúncia escatológicos. Não existe nenhuma
razão de questionar sua autenticidade.
Um grupo final de símiles trata seja de animais indesejados ou desprezados
(cães, porcos), ou contrasta criaturas amistosas com as perigosas ou temidas
(ovelha, pombo — lobo, serpente). Ambas as classes se referem ao problema dos
servidores do Reino num mundo hostil.

(a) Não dês aos cães aquilo que ê sagrado


(b) e não jogues tuas pérolas aos porcos, para que não as espezinhem e
se voltem contra ti. (Mt 7,6).

Várias tentativas foram feitas para reconstruir um provérbio aramaico do qual


derivou esse texto. Gustaf Dalman (Jesus-Jeshua, 232) inclui a parte designada
por (b) entre provérbios e máximas usados por Jesus mas não encontrados na
literatura judaica. Matthew Black, por sua vez, nas pegadas de A. Meyer e F.
Perles, apresenta tanto para (aj e (b), e mais recentemente J. A. Fitzmyer só para
(a), um original aramaico presumidamente “mal traduzido” no Evangelho grego.
Assim Black (depois de Perles), propõe;

11 Cf. por exemplo, a alusão em mBm 7.1 a um banquete “como de Salomão no seu tempo”. Ver
também Josefo, Aní. viii. 40, baseado em IRs 5,2seg. (4,22seg,Trad. ing.).
86 A Religião de Jesus, o Judeu

Não adornes cães com anéis (preciosos),


nem o focinho de porcos com tuas pérolas.

Enquanto Fitzmyer sugere apenas a substituição de “anéis” por “aquilo que é


sagrado”.'^
O imaginário animal pertence à linguagem comum da literatura rabínica. O
provérbio, “Nada é mais pobre que um cão e mais rico que um porco” (bShab.
155b), menciona os dois na mesma frase. As associações pejorativas de “porcos”
não requerem explanação e é também muito sabido que cães não gozavam de
tanta popularidade no antigo mundo judaico quanto na Inglaterra de hoje em
dia. A história do amigo quadrúpede do jovem Tobias é uma exceção (Tb 5,16;
11,4). Os cães simbolizam os detestados samaritanos (BR 81,3) e, mais geral­
mente, os gentios (Midr. sobre Salmos 4,11, ed. Buber 47seg.). Mas embora em
Mt 15,26seg. cães seguramente descrevem os não judeus, esta associação não é,
de modo algum, absoluta. De fato, a metáfora do cão é explicitamente aplicada
em mSot. 9,15 a judeus que viverão na idade messiânica; “Jovens envergonharão
os mais velhos e os mais velhos se levantarão contra os jovens, porque o filho
desonra seu pai e a filh a se levanta contra sua m ãe e a nora contra sua sogra: os
inimigos do homem são os homens de sua própria casa (Mq 7,6). A face da geração
é como a de um cão”.
O último paralelo ajuda a inserir firmemente o texto no contexto escatoló-
gico. O objetivo da dupla sentença é proibir a divulgação dos segredos do Reino
aos que não se arrependeram. Em resumo, estamos mais uma vez no centro da
mensagem básica de Jesus. Nestas circunstâncias, parece ser aconselhável tomar
a versão grega “o que é sagrado” como reflexo verdadeiro de suas palavras; isto
é, se existia um provérbio aramaico associando os conceitos de “cão” e “anel”,
não é menos fácil, e mais significativo, imaginar que Jesus estava fazendo um
jogo de palavras (anel/sagrado) do que postular uma tradução falsa por parte
do compilador do Evangelho grego.
O duplo símile contrastante de provérbios é atestado numa passagem de Q
(Mt 10,16/Lc 10,3), reforçado por um texto adicional ao mesmo verso apenas
em Mateus:

Vede que vos envio como ovelhas entre lobos (Q).


Sede então sábios como serpentes e inocentes como pombos (Mt).

12 M. Black, Aramaic Approach, 200seg., citando A. Meyer, Jesu Muttersprache (1896), 80seg. e F.
Perles, “Zur Erklärung von Mt 7,6”, ZNW 25 (1926), 163seg. Cf. tambémj . A. Fitzmyer, Wandering
Aramean (1979), 14seg. e G. Vermes, JW J 80, Para solucionar o enigma criado pelo paralelismo
aparentemente inapropriado entre “o sagrado” e “pérolas”, propõe-se que o aramaico qdsh’ seja
lido como qedasha’ (= anel) em lugar de qudsha’ (= sagrado). Acredita-se que a máxima é calcada
em Pr 11,22.
Provérbios e Parábolas 87

Ambas as metáforas eram, podería parecer, de uso comum na literatura judaica.


É freqüentemente notado que em lEnoque 90,6-17, os israelitas escolhidos (os
hassidim) são retratados como cordeiros atacados por aves predatórias. Na
literatura rabínica, por outro lado, a oposição “cordeiros — lobos” aparece na
conversa fictícia entre o imperador Hadriano e Rabijoshua, no decorrer da qual
o primeiro exclama, “Grandes são os cordeiros (os israelitas) que resistem em
meio de setenta lobos (as nações)”; a que Joshua responde, “Grande é o pastor
que salva e preserva os cordeiros e destrói os lobos entre eles” (Tanh. Toledot
5). Mais uma vez a formulação do Evangelho demonstra um viés exagerado
característico de Jesus: os cordeiros são mandados para o meio dos lobos, e sem
dúvida só os possuidores de uma confiança ilimitada têm a coragem de obedecer.
O suplemento de Mateus sobre a sabedoria comparável à da serpente (Gn
3,1) e a inocência dos pombos (o pombo tolo em Os 7,11 é transformado num
simples pombo na exegese rabínica) não revela nenhum viés específico. Os
adjetivos empregados em Mateus figuram também num pronunciamento atribuí­
do ao Amorá palestino, R. Judá bar Simon, em seu comentário do Cântico dos
Cânticos 2,14 (em SSR in loc.);

Assim falou Deus com referência aos israelitas; Para comigo eles são
inocentes como pombos, mas entre as nações do mundo são sábios como
serpentes.

Já que a citação não acrescenta nada de particular a nossa informação sobre


Jesus, a questão da autenticidade — para a qual as probabilidades parecem se
igualar — é de pouca importância.
Provérbios são construídos sobre imagens simples. Levam naturalmente ao
segundo dispositivo retórico adotado por Jesus, mais elaborado e característico
do Evangelho, a parábola.

II Ensinando por Parábolas

1. Da Bíblia a Qumran

No pensamento judaico o provérbio e a parábola bíblica e pós-bíblica


integram a mesma categoria e são recobertos por um único conceito, o de mashal,
denotando toda uma variedade de idéias baseadas na comparação: máxima,
provérbio propriamente dito, pronunciamento de sabedoria, similitude e a assim
chamada parábola-história, seja em prosa ou em poesia. Com uma noção tão
ampla quanto esta, semelhante aos gêneros da fábula bíblica, adivinhações,
alegorias proféticas bem como as ocasionais parábolas escriturais, em sentido
88 A Religião de Jesus, o Judeu

mais restrito, algumas palavras de esclarecimento podem não ser supérfluas


apesar da considerável quantidade de literatura sobre o assunto.
Já que praticamente todos os estudos das parábolas de Jesus incluem uma
reivindicação de alguma ordem de que, apesar de todas as alterações ocorridas
no decorrer de sua transmissão e redação, elas representam “um fragmento da
rocha original da tradição” e assim “uma fundamentação histórica particular­
mente firme” (Jeremias, Parables 11), ou possuem um “timbre de autenticidade”
(Dodd, Parables 13), é essencial descobrir se essas parábolas se enquadram num
processo evolucionário da literatura judaica ou são tão diferentes a ponto de
constituir uma novidade eompleta e servir de fonte e modelo para as parábolas
rabinicas como forma narrativa. Esta última é a estranha opinião defendida por
Joachim Jeremias (Parables, 12); a primeira é a opinião da maioria dos especia­
listas.
Não é necessário dizer que as formas desenvolvidas do ensinamento meta­
fórico (parábola, comparação, alegoria) podem ser observadas em todos os
estágios da história literária do judaísmo, desde a Bíblia até os rabinos e mais
além.*'* Assim, de modo geral, o fenômeno do Novo Testamento é simplesmente
uma parte de um todo mais amplo, uma fase de uma evolução contínua. Por
outro lado, a fim de possibilitar que os traços individuais dos Evangelhos possam
ser vistos em maior relevo, eles devem ser comparados com seus paralelos

13 Quanto à fábula, ver Jz 9,7-15 sobre as árvores que procuram um rei, ou 2Rs 14,9 sobre o
espinheiro que pretende casar com a filha do cedro. Para a adivinhação, ver Jz 14,12-18 e IRs
10,1. josefo faz alusão a uma grande soma de dinheiro ganha por Salomão numa competição de
adivinhações com Hiram, rei de Tiro (Ant. viii. 148seg.). Com referência à alegoria profética, ver
Ez 17,3-10, a respeito de grandes águias, o cedro e a trepadeira. Quanto à parábola escriturai, ver
2Sm 12,1-4, a história de Natá sobre o cordeirinho e a canção do vinhedo em Is 5,1-7. Sobre
parábolas em geral, cf. diversos anigos de dicionários (TDNT V, 747-51 [F. Hauckl; IDB 111,
649-54 (L. Mowry]; IDBS 641seg. [C. E. Carlston]; Enc. Jud. Tl-11 [L. I. Rabinowitz e R. B. Y. Scott].
Entre monografias, ver em especial A. jülicher. Die Gleichnisreden Jesu l-II (1886-1910); j. Ziegler,
Die Königglcichnisse des Midrasch (1903); P. Fiebig, Altjüdische Gleichnisse und die Gleichnisse Jesu
(1904); Die Gleichnisreden Jesu im Lichte der rabbinischen Gleichnisse des neutestamentlichen
Zeitalters (1912); A. Feldmann, The Parables and Similes o f the Rabbis, Agricultural and Pastoral
(1927); C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom (1935, 1961); J. Jeremias, The Parables o f Jesus
(1 9 5 4 ,1 9 6 3 ,1 9 7 2 ); D. Flusser, Die rabbinischen Gleichnisse und der Gleichnisezähler Jesus (1981);
B. H. Young, Jesus and his Jew ish Parables: Reconsidering the Roots o f Jesu s’ Teaching (1989); e mais
recentemente D. Stem, Parables in Midrash: Narrative and Exegesis in Rabbinic Literature (1991),
em especial pp. 188-206 (“The Parables in the Synoptic Gospels”). Para uma revisão do status
quaestionis, ver C. L. Blumberg, “Interpreting the Parables of Jesus: Where are we and where do
we go from here?” CBQ 53 (1991), 50-78.
14 Jeronimo, em seu Commentary on Matthew (18.23), acentua a popularidade das parábolas entre
os judeus. “Familiäre est Syris et maxime Palsestinis ad omnem sermonem suum parabolas
lungere: ut quod per simplex praeceptum teneri ab auditoribus non potest, per similitudinem
exemplaque teneatur” (PL xxvi, 132C). (Os sírios e especialmente os palestinos estão
acostumados a acrescentar parábolas a todos seus discursos de modo que aquilo que não é
completamente compreendido pelos ouvintes por meio de uma declaração simples deveria ser
compreendido por meio de comparações e exemplos.)
Provérbios e Parábolas 89

rabínicos e pré-rabínicos. O que devemos determinar são os traços comuns, as


relações formais e estruturais entre as parábolas. Os objetivos que motivam os
narradores são muito variáveis e indicam suas posições particulares. De fato,
mesmo em conexão com a mesma parábola do Evangelho, a critica textual
contemporânea identifica finalidades distintas nos relatos dos vários evangelis­
tas.
O gênero literário da parábola, pelo menos em seu sentido mais amplo, é
atestado não apenas na Bíblia, como também nos Pseudo-epígrafos e no material
de Qumran. Os exemplos escriturais não obedecem a requisitos formais mas são
usualmente acompanhados de uma interpretação. O relato do profeta Natã
referente a um homem rico que tomou e matou o único e estimado cordeiro do
homem pobre, embora transparentemente claro, é seguido pelo dramático, “Tu
és o homem!” dirigido a Davi (2Sm 12,7). O Cântico da Vinha, igualmente
transparente, contém ainda uma declaração de que se refere a Israel (Is 5,7),
enquanto a parábola histórico-profética mais complexa de Ez 17,2-10 é acompa­
nhada de um comentário direto, em prosa, nos versículos 11-18, identificando
a águia com o rei da Babilônia. Do mesmo modo, a parábola da floresta e do mar
em -íEsdras 4,13-18, escrito contemporâneo aos Evangelhos, é esclarecida, até
certo ponto, em 4,20seg. Em contraste, as três parábolas escatológicas altamente
elaboradas em lEnoque 37-71, aparentemente também da mesma época, estão
destinadas a ser e permanecer visões de mistério e, como tais, são “muito
diferentes das ... parábolas do NT” (TDNT V, 750).
Poesia de cunho de parábolas figura na Regra da Comunidade de Qumram
e nos Hinos de Agradecimento, descrevendo a Comunidade como uma cidade
fortificada construída em volta de uma fonte (IQ H 8). Ainda assim, a diferença
entre os gêneros é por demais marcada para que se faça uma comparação mais
minuciosa.

2. Parábolas rabínicas

Características formais aparecem regularmente, embora não universalmen­


te, nas parábolas dos rabis. Usualmente se iniciam com o título m ashal (parábola)
ou 'emshol lekha m ashal (permitam-me contar-lhes uma parábola), freqüentemen-
te seguido pela pergunta, lemah hadavar dõmeh (ao que isto pode ser compara­
do?). Segue-se então a história: este é um rei, etc. Certo número de unidades
literárias nos Evangelhos também empregam um ou vários desses elementos.
Não menos que oito passagens começam com o termo “parábola” e em nove
casos, três dos quais se superpõem à primeira série, o narrador usa a expressão
“é como” ou algo de semelhante. Mc 4,30seg. assim lê:
90 A Religião de Jesus, o Judeu

E ele [Jesus] disse, “Com o que podemos comparar o reino de Deus, ou


qual parábola usaremos com este fim? É como um grão de mostarda ..

Voltando agora à estrutura das parábolas rabínicas, a maioria parece ocorrer


num contexto exegético e servem ora como ilustração do significado da citação
escriturai ora introduzem, em forma de narrativa, algum ensinamento bíblico.
Por exemplo, na Mehhilta de Rabi Ishmael, uma parábola atribuída ao Rabi
Eleazar ben Azariá, de fins do primeiro século A.D., serve para explicar Jr 23,7-8,
onde o profeta anuncia que no futuro a forma do juramento que menciona a
libertação de Israel do Egito será substituída por outra, aludindo ao retorno dos
exilados.

Pode ser explicado por uma parábola. A que isto pode ser comparado? A
um homem que queria filhos. Teve uma filha e fez um voto pela vida da
filha. Depois teve um filho. Então libertou a filha e fez um voto pelo nome
do filho (sobre Ex 13,2; ed. Lauterbach I, 132seg.).

A ordem estrutural pode ser invertida. Assim, ao astuto raciocínio apresentado


pelo Imperador Antonino, argumentando ser possível tanto para o corpo quanto
para a alma escapar ao castigo, após a morte, pelos pecados cometidos, Rabi
Judá, o Príncipe, primeiro responde por uma parábola e em seguida confirma
sua mensagem por meio de uma citação da Bíblia e a respectiva exegese.

Antonino disse a Rabi; O corpo e a alma podem se libertar do julgamento.


Como? O corpo diz; foi a alma que pecou porque, já que está separada
de mim, eu estou deitado no túmulo como uma pedra. Mas a alma diz;
Foi o corpo que pecou porque, já que estou separada dele, estou voando
no ar como um pássaro. Ele [Rabi] lhe disse [a Antonino]. Vou contar-lhe
uma parábola. A que isto se assemelha? A um rei de carne e sangue que
tinha um belo pomar. Nele havia belos figos. O rei postou no pomar dois
guardas, um coxo e um cego. O coxo disse ao cego; Vejo belos figos no
pomar. Deixe-me subir em seus ombros e poderemos colhê-los e comê-los.
O coxo subiu nos ombros do cego e colheram e comeram os figos. Mais
tarde, veio o proprietário do pomar. Disse aos guardas; Onde estão meus
belos figos? O coxo disse-lhe: não tenho pernas para andar. O cego
disse-lhe: Não tenho olhos para ver. Que fez o dono? Fez o coxo subir nos
ombros do cego e os julgou como a um só.

15 Os paralelos em Mt 13,31 e Lc 13,18seg. abreviam o estilo rablnico. O termo “parábola” aparece


ainda em Mc 4,2par.; 12,lpar.; 13,28par.; Mt 13,33; 22,1; 13,24; Lc 19,11. Quanto à expressão
“é como" ou “se assemelha”, ver Mt. 7,24 par.; ll,16p ar.; 13,24; 13,51; 18,23; 20,1; 22,2; 25,1.
As parábolas que figuram apenas em Lucas, o gentio, não incluem nenhuma das duas expressões.
Provérbios e Parábolas 91

O Altíssimo, bendito seja, também trará a alma e a lançará no corpo e


os julgará como a um só, como está escrito, D o a lto e le co n v o ca o céu e a
terra , p a r a ju lg a r seu p o v o (SI 50,4).

“Do alto ek convoca” esta é a alma. “E a terra para julgar seu povo” -
este é o corpo, (b Sanh. 91ab; para uma versão resumida, cf. Mekh. sobre
Ex 15,1; ed. Lauterbach II, 21).

Esta mistura simples do texto da Bíblia e uma interpretação em forma de


parábola se encontra num dos extremos da evolução literária. No outro extremo,
no midrash homilético altamente formalizado, encontramos todo um tecido de
citações entremeadas com a exposição de uma parábola. É ilustrado por um
extrato de um sermão pregado pelo famoso hagadista, Rabi Levi, em Pesiqta de
Rav K ahana 3,1, sobre a seção “Lembra” (Dt 25,17).

Rabi Levi disse: Com o que se parecem os filhos de Israel? Com um


bomem que tinha um filho. Colocou-o em seus ombros e o levou ao
mercado. O filho viu um objeto que desejava e disse ao pai, Pega isto para
mim. O pai comprou o que o filho desejava uma, duas, três vezes. Então
o filho viu outro homem e disse-lhe. Viu o meu pai? O pai lhe disse Menino
tolo, você está sobre meus ombros e tudo que você pede eu compro para
você e mesmo assim você pergunta a este homem. Viu meu pai? Então,
que fez o pai? Tirou o menino de sobre seus ombros e veio um cão e o
mordeu.
Deste modo, quando Israel saiu do Egito, o Altíssimo — bendito seja
— o envolveu em sete nuvens de glória, como está escrito, E le o cer co u e
cu idou d ele (Dt 32,10). Pediram-lhe maná e ele o deu, codornas e ele as
deu. Quando lhes tinha dado tudo de que precisavam, começaram a
pensar e dizer. E stá o S en h o r en tre nós ou n ã o ? (Ex 17,7). O Altíssimo —
bendito seja — lhes disse. Meditastes contra mim. Por vossas vidas, vos
farei saber [que estou em vosso meio]. Aqui vem um cão e vos morderá.
O que é esse cão? É Amalec, pois está escrito, E A m a lec veio e lutou co n tra
Isr a e l (Ex 17,8). Portanto está escrito. L e m b ra -te d o q u e A m a lec te f e z
(Dt 25,17).

Podemos presumir com segurança que a parábola, em sua função interpretativa,


era parte integral do sermão da sinagoga, que, em regra geral, começava com
uma passagem apropriada da escritura. Num exemplo famoso que será discutido
mais adiante, constitui a parte central da oração fúnebre pronunciada pelo Rabi
Zeira no enterro do Rabi Bun (yBer. 2.8, 5c). Habilidade em manipular parábolas
parece, portanto, ter sido um pré-requisito de qualquer pregador ou mestre de
sucesso. Jerônimo, como vimos, confirma a evidência rabínica existente (cf. n.
14 antes). Mesmo assim, não surpreendentemente, alguns eram mais hábeis
92 A Religião de Jesus, o Judeu

que outros. A tradição reza que o mestre tanaítico, Rabi Meir (meado do segundo
século A.D.), era o mestre por excelência do gênero. É relatado que seus discursos
consistiam de halahá, hagadá e mashal - parábola, em proporções iguais (bSanh
38b), e com exagero retórico conta-se que sua morte marcou o fim do ensina­
mento por parábolas:

Desde a morte do R. Meir os contadores de parábolas (rnõshele meshalim)


se calaram (mSot. 9,15).

A lenda lhe atribui trezentos símiles com raposas, que não sobreviveram, mas
fontes rabínicas existentes preservaram, em seu nome, um número menor de
parábolas.'* Dos dois exemplos que se seguem, o primeiro é exegético e o
segundo não tem referência à Bíblia.

R. Meir disse, Que quer dizer a Escritura por Pois um enforcado é uma
maldição de Deus (Dt 21,23). É como irmãos gêmeos que se parecem. Um
deles era o rei de todo o universo; o outro pôs-se a praticar o roubo. Depois
de algum tempo, o que praticava o roubo foi preso e crucificado. E cada
passante dizia. Parece que o rei foi crucificado. Por isso está escrito, Pois
um enforcado é uma maldição de Deus.^^

Comparado a esta exegese da parábola, simetricamente construída, com a


mesma citação da Bíblia como abertura e conclusão, o segundo exemplo é
simples e sem técnica. É também permeado de humor.

R. Meir disse: Assim como as atitudes das pessoas diferem quanto ao


alimento, do mesmo modo diferem quanto às mulheres.
Considerem este homem. Uma mosca sobrevoa seu copo. Ele o esvazia
sem ao menos tocar no conteúdo. Ele não é bom para as mulheres porque
seus olhos estão fixos em sua mulher com a intenção de repudiá-la.
Considerem este outro homem. Uma mosca cai em seu copo. Ele o
deixa de lado sem provar o conteúdo. Ele é como Papos ben Judá que
tranca a mulher em casa antes de sair.
Considerem este [terceiro] homem. Cai uma mosca em seu copo. Ele
joga a mosca fora e bebe [o conteúdo]. É este o comportamento do homem
médio. Permite que sua mulher fale com seus parentes homens e com os
vizinhos.

16 W. Bacher (Die Agada der Tannaiten II (1890), 57-60) lista mais de doze itens. A validade das
atribuições não pode ser demonstrada nem refutada. As ilustrações são escolhidas nas atestações
tanaíticas.
17 tSanh. 9,7. A citação do Deuteronõmio foi traduzida para se ajustar ao argumento, como já ficou
claro em mSanh. 6,4. Não é fornecida nenhuma interpretação da parábola, mas é dado um indício
pela idéia subjacente de que o homem é feito à imagem de Deus. Cf. M. Wilcox, “Upon the Tree
- Deut. 21.22-23 in the New Testament”, JBL 96 (1977), 85-99.
Provérbios e Parábolas 93

Considerem este [quarto] homem. Cai uma mosca em seu prato. Ele a
pega, suga-a e come o que está no prato. É um homem mau. Permite que
sua mulher saia com a cabeça descoberta, que use de familiaridade com
seus servidores e vizinhos homens e se banhe com homens (tSot. 5,9).

Nesta história, Rabi Meir exemplifica as múltiplas potencialidades da parábola,


oferecendo, como faz também Jesus ocasionalmente nos Evangelhos, uma
completa explanação para cada variedade.^®
O objetivo dessas observações preliminares é fazer compreender, de maneira
concreta, o papel das parábolas no pensar rabínico, primariamente tanaitico.
Deveria ser notado que nas parábolas rabinicas é comum uma explanação das
imagens, fato que deve ser guardado em mente no estudo dos Evangelhos, onde
a exposição alegórica apensa é regularmente compreendida como secundária.
Como seria de se esperar, a maior parte dos exemplos é posterior ao Novo
Testamento e portanto a Jesus, mas isto é válido para todo o corpus do Talmude
e do Midrash. Concluir com jacob Neusner que a parábola é uma técnica didática
pós-70 A.D.^® e, o que é pior, sugerir, como faz Joacbim Jeremias, que a adoção
da forma da parábola pelos rabis foi seriamente influenciada pelo “modelo de
Jesus”, constitui uma leitura errônea da evidência.“ A teoria de Jeremias poderia
se sustentar apenas se fosse possivel provar que Jesus produziu um impacto
positivo e duradouro nos mestres judeus de seu tempo ou de qualquer outro, e
este, patentemente, não é o caso. Quanto ao argumento de Neusner, este depende
da validade de certas atribuições e de se o exemplo de Yohanan ben Zakai é visto
como pré- ou pós-70 A.D. De todo modo, um apêndice sobre “Parables among
the Pharisees and Early Rabbis”, compilado por Robert M. Johnston, foi inserido
num dos volumes de Neusner, considerando tacitamente possível, deste modo,
uma datação do primeiro século A.D.^‘ Sua pertinente conclusão geral de que
“os exemplares cristãos e rabínicos por volta da época da destruição de Jerusalém
mostram acentuada semelhança de tendências literárias e formais” (art. cit. in n.

18 Igualmente digna de lembrança é a parábola exegética de Meir referente ao grão de milho, próxima
d ejo 12,24. “A rainha Cleópatra perguntou a R. Meir, Sei que aqueles que dormem viverão, como
está escrito. Possam eles [os homens} florescer na cidade como o capim do campo (SI 72,16). Mas
quando se levantarem, estarão nus ou vestidos? Ele lhe respondeu: [Podeis raciocinar] a fortiori
a partir do grão de milho que é enterrado nu mas brota com muitas roupas. Quanto mais os justos
que são enterrados com suas roupas? (bSanh. 90b).
19 Ver J. Neusner, “Types and Forms in Ancient Jewish Literature: Some Comparisons”, History o f
Religions II (1972), 354-90, esp. 360seg., 368.
20 J. Jeremias, The Parables o f Jesus (1972), 12.
21 A History o f the Mishnahic Law o f Purities. Part XIII (1976), 224-6. As autoridades listadas do
primeiro século A.D. são Hilel (Lev.R. 34: e ARNa 15,3); as Escolas de Hilel e Shamai (Gen. R.
1,14); Yohanan ben Zakai (bShab. 153a); Eliezer ben Hircano (Mekh. sobre Ex. 15,1; ed.
Lauterbach II, 22seg.); Eleazar ben Azariá (Mekh. sobre Ex. 13,2; ibid. 1,132seg.); Gamaliel (Mekh.
sobre Ex. 20,5; ibid. II, 245seg.).
94 A Religião de Jesus, o Judeu

19, 390), deveria igualmente se estender ao gênero da parábola. É por essa razão
que as parábolas de Jesus devem ser consideradas neste contexto.^^

III As Parábolas de Jesus

Os Evangelhos Sinóticos incluem, se estou correto, trinta e nove parábolas


atribuídas a Jesus. Marcos conta com seis. Nove derivam da fonte comum a
Mateus e Lucas. Outras dez são peculiares a Mateus e outras catorze a Lucas. Uma
listagem detalhada, em forma de apêndice, aparece no final deste capítulo.
Enquanto a substância da mensagem de Jesus, a religião por ele pregada, serão
discutidas separadamente no capítulo 7, o objetivo do presente apanhado é
compreender o estilo e a tendência geral de seu ensinamento por meio de
parábolas e apontar traços comuns de sua mensagem que são igualmente os
princípios centrais da doutrina passível de ser atribuída a Jesus.
De acordo com seus temas principais, as parábolas dos Evangelhos Sinóticos
se separam facilmente em cinco grupos: (a) parábolas sobre lavradores; (b)
parábolas baseadas em episódios da vida cotidiana; (c) parábolas sociais; (d)
parábolas relacionadas ajuizes e cortes de lei; e (e) parábolas sobre bodas.

(a) Parábolas sobre lavradores

Esta primeira classe desenvolve imagens familiares aos habitantes da Gali-


lêia, camponeses ou pescadores, entre os quais Jesus se sentia em casa.
1. A Parábola do Semeador (Mc 4,3-8; Mt 13,3-8; Lc 8,5-8) abre a série em
todos os Evangelhos. Não há nada de particular nas imagens, 4Esdras 8,41,
descrevendo o destino da humanidade, fornece um paralelo próximo.

Porque tal como o cultivador semeia muitas sementes na terra e planta


um grande número de plantas, nem todas as que foram semeadas
brotarão na estação devida, e nem todas as que foram plantadas criarão
raizes, do mesmo modo nem todos os que foram plantados no mundo
serão salvos.

Entretanto, apesar do título costumeiro, o protagonista da parábola do Novo


Testamento não é o semeador. Ele é antes um anti-herói, não muito competente
em seu trabalho e desperdiça, por descuido, uma grande quantidade de semen-

22 A familiaridade do gênero da parábola na Palestina do primeiro século A.D. pode também ser
inferida da alusão de Josefo a uma agadà da fabulosa produção literária de Salomão. “Salomão
também compôs 1005 livros de odes e canções e 3000 livros de parábolas e símiles: porque ele
fazia uma parábola a respeito de toda espécie de árvore, desde o hissopo até o cedro e do mesmo
modo sobre pássaros e todas espécies de criaturas terrestres e das que nadam e das que voam”
(Ant. viii.44).
Provérbios e Parábolas 95

tes. A atenção do narrador está centrada, ao invés, nas várias partes do chão: o
caminho, a superfície pedregosa, o canto espinhento do campo e o solo fértil.^^
O sucesso da semeadura é determinado pela resposta do solo, ou seja, do
ouvinte. A explicação dada em Mc 4,13-20 — a semente representa a palavra, o
bom solo aqueles que acolhem o ensinamento, etc. — é um eco direto e genuíno
da história de Jesus. Caso, como tem sido freqüentemente sugerido, a interpre­
tação em sua expressão grega presente é produto da igreja primitiva, a possibi­
lidade de uma formulação não-eclesiástica anterior à luz dos paralelos rabínicos
permanece inegável.
2. A primeira parábola do Reino, a da Semente que Germina em Segredo (Mc
4,26-29), contrasta as ações do semeador e as do milho. Uma vez semeada e
germinada, a semente progride sem intervenção do semeador até que o milho
esteja maduro para a colheita. A mensagem parece enfatizar que mesmo no
trabalho preparatório ao advento do Reino, que é a essência da missão de Jesus,
o ministro, uma vez completada sua tarefa, deve deixar que as coisas tomem seu
curso misterioso, dirigido por Deus. Esta compreensão do crescimento invisível
da semente corresponde ao texto e aos paralelos melhor que a exegese histórica,
ainda repetida por J. Jeremias (Parables, 152), segundo a qual Jesus se opõe,
neste ponto, à política dos zelotes.
3. Um ponto de vista quase oposto é revelado na história da Figueira. Seus
galhos, cobertos de folhas, marcam o início do verão. Se o jogo de palavras
verão/qaiz =fim/qez é intencional, como em Am 8,2, não pode ser tomado como
certo. Mesmo assim, o verão faz alusão óbvia à proximidade da colheita,
simbolizando a iminente chegada do Reino (Lc 21,31) ou do Messias (Mc 13,29;
Mt 24,33). Defrontamo-nos assim, nesta parábola, com a busca de sinais
precursores do eschaton, fenômeno desaprovado por Jesus, o que favorece muito
pouco a autenticidade da parábola.“

23 Em Esdras, ao contrário, o personagem principal é o semeador, isto é, Deus. O destino da semente


depende de sua ação: da distribuição que faz da quantidade correta de água no tempo correto.
Cf. 4Esdras 8,42-45.
24 O emprego do verbo “explicar” (diasaphein) a propósito da parábola das Ervas Daninhas (Mt
13,36) associa este fenômeno exegético não apenas à interpretação do sonho em Gn 40,8
(diasaphêsis = pitrõn) como também ao tipo de comentário biblico de Qumran denominado peslier
que se propõe revelar o significado oculto de um texto (cf, antes p. 62). No quadro esotérico da
seita dos essênios, esta exposição era considerada indispensável para que a escritura pudesse ser
compreendida corretamente.
25 Sobre a “aversão” de Jesus por “sinais”, cf. Mc 8,12; Lc 17,20. Ver também JW J 38. As máximas
associadas referentes à figueira que, apesar de coberta de folhas, não dava frutos e não podia
satisfazer a fome de Jesus, faz sentido na versão de Mateus (21,18seg.), mas não em Mc 11,12-14,
onde se afirma, incorretamente, que não era a estação de figos. Esta última história, com sua
maldição à árvore, deveria ser contrastada cora a agadá de bXaan. 24a. Um certo Rabi Yose deixou
de levar alimento para seus lavradores, de modo que seu filho ordenou a uma figueira que
produzisse frutos para os trabalhadores famintos. Quando o pai, que tinha tardado devido a
alguma atividade caridosa, descobriu o que seu filho tinha feito, irou-se contra ele dizendo, “Meu
96 A Religião de Jesus, o Judeu

4. O espantoso crescimento da proverbialmente pequenina Semente de


Mostarda, num arbusto de porte em que os pássaros podem fazer ninho, fornece
uma excelente base para uma parábola do Reino (Mc 4,30-32; Mt 13,30-32; Lc
13,18seg.). A história é construída sobre metáforas familiares. A semente de
mostarda exemplifica a menor quantidade de sangue (yBer. 5,8d; bBer. 31a) e o
galileu Rabi Simeonben Halafta (fins do segundo século A.D.) afirma que subiu
num arbusto de mostarda que era tão alto quanto uma figueira (yPe’ah 7, 20b).
5. A última parábola de tema agrícola, a das Ervas Daninhas, (Mt 13,24-30),
é uma revisão da parábola do semeador da boa semente cujo milharal, enquanto
seus homens dormiam, foi semeado com ervas daninhas por um inimigo. A
destruição das ervas tem de esperar o tempo da colheita. Os camponeses não
são responsabilizados por sua falha em evitar o crime. Sua tarefa, no final, será
de distinguir entre o bom e o inútil e queimar as ervas daninhas. A mensagem é
paciência, abstenção de ações prematuras porque no fim tudo será separado.
Uma interpretação inteiramente apocalíptica com uma redação alegórica é dada
por Mateus 13,36-43: semeador=o filho do homem; inimigo=demônio; boa
semente=filhos do Reino; ervas daninhas=filhos de Satã; colheita=fim dos tem­
pos; segadores=anjos. Já que a parábola é por si só primariamente uma exposição
da coexistência do bem e do mal e um encorajamento a deixar a resolução do
problema a Deus, a interpretação anexada pelo primeiro evangelista, com sua
posição essencialmente escatológica e o emprego incoerente, na mesma passa­
gem, de “filhos do Reino”, “Reino do filho do homem” e “Reino do Pai”, parecem
ser adições desajeitadamente inseridas pelos editores eclesiásticos da parábola.
6. Além da agricultura, o campo da Galiléia proporciona imagens relativas
ao trabalho de pastores e pescadores. Os primeiros constituem o pano de fundo
da Parábola da Ovelha Desgarrada (Mt 18,12-14; Lc 15,3-7) na qual o pastor deixa
seu rebanho de noventa e nove ovelhas numa montanha (Mt) ou no deserto (Lc)
para procurar uma única ovelha desgarrada. Quando a encontra, enche-se de
júbilo.
A idéia de que uma pessoa responsável por animais deva abandonar os que
estão agrupados para ir em busca daquele que se encontra em perigo é também
atestada numa parábola amoraica em Gênese Rabá 86,4, referente a um mercador
de vinho que conduzia doze animais de carga. Um deles se desgarra, entrando
na propriedade de um gentio, expondo assim o vinho a uma possível impureza
ritual. Então, o judeu deixa seus onze animais numa praça pública, onde
ninguém pode interferir com sua carga às escondidas e se apressa a encontrar o
décimo segundo. No midrash, a história é interpretada como uma exegese

filho, importunaste teu Criador para que fizesse a figueira produzir frutos prematuramente. Que
sejas tu também colhido antes de teu tempo!”
Provérbios e Parábolas 97

figurativa pragmática de Gn 39,2, “E o Senhor estava com ele Gosé)”, porque,


sendo jovem e sozinho, ele precisava da proteção divina enquanto seus onze
irmãos mais velhos estavam seguros na casa dejacó.
A parábola do Evangelho é mais dramática mas os dois evangelistas derivam
dela lições diferentes. Jesus, retratado por Lucas, afirma que um único pecador
arrependido provoca mais alegria no céu do que noventa e nove justos enquanto
em Mateus, Jesus enfatiza a paternal solicitude de Deus que assegura “que
nenhum destes pequeninos perecerá”. A conclusão de Lucas, embora típica do
pensamento de Jesus, não se resolve: não se menciona, no relato dos perdidos,
ou mais exatamente, dos desgarrados, a volta da ovelha ao rebanho. A mensagem
de Mateus se depreende facilmente da parábola e é, conseqüentemente, a mais
autêntica das duas.^®
7. A última parábola campestre da Galiléia é tomada de empréstimo à
experiência dos pescadores. Na formulação de Mt 13,47-50, a Rede lançada ao
mar recolhe toda espécie de peixes, que têm de ser separados e os impróprios
ao consumo jogados fora. A lição daí tirada é escatológica: no momento real do
estabelecimento do Reino de Deus, vale dizer, por ocasião do Julgamento, os
anjos separarão os justos e lançarão os iníquos “na fornalha”. Novamente neste
ponto, a conclusão cria uma dupla metáfora, sem dúvida através da contamina­
ção pela parábola das Ervas Daninhas (Mt 13,30,41seg.). Mas se o propósito da
história é o de inculcar uma atitude religiosa necessária no momento presente,
a verdadeira intenção de Jesus de recrutar trabalhadores para o Reino é encora­
já-los a lançar a rede e recolher o peixe bom. O eterno destino dos justos e
injustos confiado aos anjos se superpõe a estas imagens e deve ser considerado
secundário.

(b) Parábolas baseadas em episódios da vida cotidiana

A matéria-prima do segundo grupo de parábolas é fornecida por diversos


aspectos da existência diária na Palestina do primeiro século.
8. Para começar pelas tradições comuns a Mateus e Lucas, tomemos a
Com paração do Construtor Sábio com o Insensato (Mt 7,24-27; Lc 6,47-49); o
primeiro lança os alicerces da casa na rocha, o outro na areia (Mt) ou na terra.

26 O interesse primário, mesmo exclusivo, pelas “ovelhas desgarradas de Israel” por parte de Jesus
e dos doze apóstolos é apresentado enfaticamente na pregação judeu-cristã (Mt 10,6; 15,24). A
total incompatibilidade do ensinamento com as necessidades da igreja gentia dos primeiros
tempos é um forte argumento em favor de sua autenticidade.
27 As expressões “pescadores de homens” (Mc 1,17; Mt 4,19) e “colhedores de homens” atribuída a
Jesus num contexto de pescaria (Lc 5.,10) refletem a mesma imagem positiva. Em contraste, o
objetivo do pescador e dos caçadores a que se faz alusão no Hino de Graças de Qumram (IQH
5,7seg.) como em seus modelos bíblicos em J r 16.16, é de capturar “os filhos da iniquidade”.
98 A Religião de Jesus, o Judeu

sem nenhum alicerce (Lc). A primeira construção suporta tempestades e enchen­


tes, a segunda desaba. Os dois construtores representam os discípulos devotados
e os superficialmente engajados: aqueles que aprendem e agem de acordo com
o que aprenderam e aqueles que apenas ouvem. A imagem arquitetural é familiar.
Os Hinos de Agradecimento de Qumran mencionam uma “fundação” feita “na
rocha” (IQ H 6,26) ou de uma edificação “estabelecida ... sobre a rocha”
(7,8seg.). Além disso, atribui-se a Elisha ben Abuyá, o rabi tanaítico do início do
segundo século que se tornou herético, uma parábola semelhante à de Jesus:

Um homem praticante de atos meritórios, que estudou muito a Torá, a


que se deve compará-lo? A alguém que primeiro assenta pedras e depois
tijolos. Mesmo se vier a enchente e se lançar contra eles, não os
deslocará... (ARN A, 24, p.77).

Não há razão de duvidar da possibilidade de Jesus ter adotado tal clichê. Sua
ênfase na capital importância do ato religioso dificilmente pode ser questiona­
da.'«
9. A Parábola das Crianças na praça pública que tencionam estragar as
brincadeiras de seus amigos representa a falta de reação dos contemporâneos
de Jesus seja quanto a seu apelo severo ou amistoso de buscar a admissão no
Reino (Mt 11,16-19; Lc 7,31-35). A aplicação histórica à pregação dejoão Batista
e de Jesus é claramente afirmada:

Porque veio João, que não come nem bebe, e eles dizem, Ele tem um
demônio! Veio o filho do homem, que comia e bebia, e eles dizem, Olhai
um glutão e beberrão, amigo dos coletores de impostos e pecadores! (Mt
ll,1 8 se g .)'‘’

10. O Retorno de um Demônio Expulso, do deserto à sua moradia anterior,


uma idéia que sem dúvida perseguia exorcistas como Jesus, emprega a imagem
de uma casa completamente purificada depois de um ocupante impuro (satâni­
co) e que se torna muito desejável para o antigo ocupante que reside agora em

28 o mesmo ensinamento metafórico, substituindo a imagem da casa construída sobre a rocha com
a de uma árvore de raízes fortes que resiste à mais pesada tempestade nos é passado na tradição
de Eleazar ben Azariá, de fins do primeiro século AD. Ele cita J r 17,6,8 em seu apoio. O parágrafo
inicial diz: “Um homem cujas obras excedem sua sabedoria, com o que se parece?" Cf. mAb. 3,18.
A mesma doutrina foi exposta por Hanína ben Dosa: “Qualquer homem cujas obras excedem sua
sabedoria, sua sabedoria persistirá” (mAb. 3,9; ARN B 32 (p. 35).
29 j. Jeremias (Parables, 161 seg.) parece ter descoberto uma mensagem completamente diferente.
Para ele, as crianças que “tocavam flauta” e “gritavam” e incitavam seus companheiros de jogos
a se juntar à brincadeira são “dominadoras e importunas”. Esta interpretação faz perder o sentido
e arruina a lógica da parábola.
Provérbios e Parábolas 99

alojamento sem conforto (Mt 12,43-45; Lc 11,24-26). A lição implícita, dirigida


à pessoa exorcizada, é de manter sempre a porta bem fechada.^'’
11. Passando à cozinha, o fermento na Parábola do Fermento simboliza a
transformação oculta quando o trabalho do estabelecimento do Reino do céu/de
Deus começar a agir (Mt 13,33; Lc 13,20seg.). Sua mensagem lembra as
parábolas da semente que cresce (Mc 4,26-29) e da semente de mostarda (Mc
4,30-32; Mt 13,31seg.; Lc 13,18seg.). Este advento tranqüilo do Reino deve ser
contrastado com sua irrupção violenta em Mt 11,12; Lc 16,16.^'
12. A versão doméstica da busca da ovelha perdida é a Parábola da Dracma
Perdida, na qual uma dona-de-casa acende uma lâmpada e ao fazer uma limpeza
na casa encontra a moeda que tinha perdido (Lc 15,8-10). A lição que se
depreende da história é que mesmo uma única moeda é muito preciosa e tem
de ser recuperada. No caso da ovelha perdida, Lucas não entende o ponto e fala
da alegria experimentada pelos anjos por um pecador arrependido.

(c) Parábolas sociais

Muitas das parábolas do Evangelho refletem a vida social da Palestina entre


proprietários e trabalhadores, senhores e servos, pais e filhos, ricos e pobres.
Outras aludem ã descoberta de um tesouro escondido, ao roubo, ou ao estado
de alerta necessário ao guardião da porta, à noite. Outras parábolas enfocam
grupos tais como os samaritanos, fariseus e publicanos.
13. A Parábola do Proprietário Rico porém Tolo, que deseja aumentar seus
celeiros para acomodar uma colheita particularmente abundante e, contemplan­
do um futuro seguro, prevê uma súbita desgraça apocalíptica em forma de morte
(Lc 12,13-21). O evangelista prefacia a história com uma condenação da ambição
(v .l5) e a conclui com um contraste entre grande riqueza e generosidade
religiosa. Entretanto, a lição implícita, típica do pensamento de Jesus, diz respeito
à impropriedade fundamental do planejamento antecipado na era escatológica.^^

30 O deserto é o lar dos maus espíritos. O demônio de Sara fugiu para a área deserta do Alto Egito
(Tb 8,3); Azazel é lançado no deserto em Dudael (lEnoque 10,4). Ao pacificar dois homens que
moravam sob o mesmo teto e que o demônio fazia se desentenderem continuamente, R. Meir
expulsa este último de “casa” (bGit. 52a). Josefo faz alusão a encantamentos compostos por
Salomão ordenando ao demônio de “nunca voltar” (Aní. vüi.45).
31 A metáfora do fermento pode também designar uma tendência enraizada para o erro ou a
maldade. Em Mc 8,15; Mt 16,6; Lc 12,1, os discípulos dejesus são prevenidos contra o “fermento”
dos fariseus e herodianos (Marcos), fariseus e saduceus (Mateus) ou fariseus (Lucas). Segundo
yAZ 2, 41a, o “fermento” que permaneceu num astrólogo-barbeiro gentio convertido, levou-o ao
seu paganismo original. Em ICor 5,7, diz-se que os cristãos de Paulo não são “levedados”, isto é,
estão libertos do “antigo fermento de corrupção”.
32 Cf. Mt 6,34: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã! ” e Lc 17,20: “O Reino de Deus não chegará
com sinais que possam ser observados”. Ver também JW J, 38,50. Uma máxima rablnica não
escatológica ecoa as mesmas idéias: “Não vos preocupeis com os problemas de amanhã, pois não
sabeis nem o que traz o dia de hoje.- Amanhã ê'i53ssível qiie não estejais aqui, logo para que se
100 A Religião de Jesus, o Judeu

14. A Parábola dos Vinhateiros Maus (Mc 12,1-12; Ml 21,33-46; Lc 20,9-19),


uma das três histórias que tratam de vinhas e seus empregados, é peculiar de
dois pontos de vista. A vinha é descrita com ajuda de expressões tomadas de
empréstimo a Is 5,2 e conclui, como a maioria das parábolas rabínicas, com uma
citação direta da Biblia: SI 118,22seg. O segundo ponto de vista, uma prova
textual “antijudaica” (cf. At 4,11; IPd 2,7), é totalmente estranha e inadequada
à narrativa. No que parece constituir uma alegoria gentia-cristã, os ocupantes do
vinhedo (os líderes de Israel), em vez de cumprir com suas obrigações legais de
pagar o aluguel ao proprietário ausente (Deus), maltratam ou matam os mensa­
geiros (os profetas), enviados para receber o que era devido e, finalmente,
assassinam o filho do dono Oesus). Mas no final eles próprios são executados e
o aluguel passa para novos inquilinos (a igreja gentia). Resumindo, a composi­
ção, em sua forma atual, é de origem eclesiástica e não pode ser atribuída a
Jesus.^^
15. A Parábola dos Dois Filhos, enviados pelo pai para trabalhar no vinhedo
(Mt 21,28-32) louva a virtude do arrependimento. O filho que primeiramente se
recusa a obedecer mas em seguida aceita é preferível aos outros que concordam
mas deixam de praticar o que assumiram. A aplicação da doutrina aos coletores
de impostos e às prostitutas penitentes que aceitaram o convite de João ao
batismo e aos convencidos de sua retidão (fariseus e homens de lei de acordo
com Lc 7,29-30) que não o fizeram, contradiz os elementos da parábola e lhe
está patentemente superposta.
16. A Parábola dos Trabalhadores no Vinhedo (Mt 20,1-16) enfatiza a igual­
dade da recompensa, um denário, concedida pelo Mestre a todos aqueles que
trabalham para o Reino. Ele paga a quantia combinada a todos, aos mais antigos
como aos mais novos. A mensagem primária é de encorajamento: nunca é tarde
demais para começar a trabalhar. Inversamente, é dado um aviso contra o ciúme
por parte dos discípulos mais antigos, aos quais a parábola parece ser dirigida.^'^
A história paralela do Talmude Palestino, yBer 2, 5c, é freqüentemente citada
(cf. Jeremias, Parables, 138seg.). Rabi Zeira iniciou a oração fúnebre de Rabi Bun
bar Hiya com as palavras, “Doce é o sono do trabalhador” (Ecl 5,11) e desenvol­
veu a citação com a ajuda de uma parábola sobre um rei que empregava muitos
operários. Um deles era extremamente rápido e diligente e, notando o fato, o rei

preocupar com um dia que não é vosso” (bSanh. 100b).


33 O tema desse desfecho sangrento é introduzido na versão de Mateus (mas não de Lucas) do festim
das bodas reais (Mt 22,7). A parábola de um rei que aluga um campo a inquilinos desonestos e
a seus filhos ainda menos honestos antes de se desfazer deles todos em favor de seu próprio filho
(Sifre sobre Deut. 32,9, 312), emprega os mesmos ingredientes que a narrativa do Evangelho
porém com finalidade muito diferente.
34 Ver, por exemplo, a exigência ambiciosa dos apóstolos Tiago e João a respeito dos melhores
ljjgg{g^j)t^i8lH M sM n^gico (Mc 10,35-37, 40seg. Cf. também Lc 14,7-11, p. 108).
Provérbios e Parábolas 101

o conservou em sua companhia pelo resto do dia e pagou-lhe o mesmo salário


que aos outros, embora ele tivesse trabalhado por apenas duas horas. Quando
os outros trabalhadores se queixaram o rei lhes disse que não tinha sido
praticada injustiça, já que o companheiro deles tinha feito mais em duas horas
do que eles durante todo o dia. Do mesmo modo, conclui Rabi Zeira, Rabi Bun
praticou mais a Torá durante sua breve vida de vinte e oito anos do que
estudiosos diligentes conseguem aprender mesmo se alcançarem a idade de cem
anos. A comparação revela um viés específico em cada versão: a generosidade
divina no ensinamento de Jesus, e a devoção sincera ã prática da Torá no relato
talmúdico.
17. A compósita Parábola do Servo Cruel (Mt 18,23-35), longe do ambiente
campestre familiar de Jesus, se passa numa corte real, provavelmente numa capital
gentia, já que o tratamento infligido pelo rei a seus súditos é completamente estranho
aos costumes judaicos, como J. Jeremias observou corretamente (Parables, 211). O
tema principal é o pagamento de uma dívida: um oficial do rei (coletor de impostos,
governador de província?), impossibilitado de pagar uma enorme quantia devida a
seu senhor — dez mil talentos ou seis milhões de denários — pede mais tempo para
juntar o dinheiro. O rei, normalmente impiedoso, mostra-se tolerante e cancela a
dívida. Mas o “servo” não aprende, e recusa ser paciente com um de seus próprios
subalternos que lhe deve cem denários. O tema central do perdão pertence ao âmago
da pregação de Jesus, embora os detalhes da história sejam estranhos a sua
mentalidade tal como é conhecida.
18. A mesma mensagem é expressa na Parábola do Credor que cancela duas
dívidas, uma de quinhentos e a outra de cinqüenta denários. Aqui a ênfase é
dada ã gratidão do devedor, simbolizando a prostituta que se diz ter ungido os
pés de Jesus (Lc 7,36-50).
19. A Parábola dos Talentos, preservada em duas recensões, é outro tópico
distante do pensamento habitual no mundo de Jesus. Antes de iniciar uma
jornada, um homem rico confia seu dinheiro a seus servos e os instrui a
multiplicarem o capital por meio de um comércio vantajoso. Em Mt 25,14-28,
são entregues várias quantias, “a cada um de acordo com sua habilidade”; em
Lc 19,12-26, eles todos recebem a mesma quantia. Os servos habilidosos
aumentam o capital, mas dois casos incluem uma pessoa desprovida de espírito
de aventura que esconde o dinheiro. Os servos diligentes são altamente elogia­
dos, o que escondeu o dinheiro é reprovado. Naquilo que parece ser o significado
original da parábola, a lição comunicada é que, no trabalho para o estabeleci-

35 O Pai Nosso em Mt 6,12 pede e promete a remissão da dívida (ophêüemata), enquanto a versão
de Lucas pede a Deus o perdão dos pecados e oferece perdão aos nossos devedores (Lc 11,4). Cf.
também Mc ll,25seg .; Mt 6,14seg.
102 A Religião de Jesus, o Judeu

mento do Reino, é necessário um esforço destemido, sem reservas e sem cálculos.


A ênfase sobre o risco ap'arece também nos paralelos do tesouro oculto e da
pérola preciosa.
20. A Parábola do Administrador Injusto (Lc 16,1-9) empresta um eco
negativo a esta instrução: a sabedoria sem moral dos “filhos desta idade” é
apresentada como um modelo inverso para os “filhos da luz”.^*
21. A Parábola do Proprietário e do Rei é igualmeme inspirada por uma
sabedoria mundana: o primeiro tem de calcular se pode pagar a construção de
uma torre, sem dúvida no seu vinhedo, e o segundo se pode encarar a eventua­
lidade de uma batalha contra um oponente mais poderoso (Lc 14,28-32). Ambos
os casos se enquadram antes numa situação organizada, estabelecida e calma da
igreja primitiva do que na época de Jesus, marcada pelo tumulto escatológico.
22. A Parábola da Recompensa ao Servo, também aparentemente estranha às
idéias de Jesus, representa um proprietário (Deus?) desejoso de manter as
distinções de classe (Lc 17,7-10). Seu único servo, ao mesmo tempo lavrador,
pastor e cozinheiro, ao voltar de um longo dia de trabalho, é obrigado primeira­
mente a preparar a ceia do senhor (sem receber agradecimento), antes que ele
próprio possa comer. O propósito da história é aparentemente o de lembrar aos
discipulos sua própria posição subalterna. A parábola pode ser uma reapresen-
tação negativa de um paralelo de Jesus que mostra a apreciação do senhor a seus
servos fiéis servindo-os à mesa (Lc 12,37).
Dois eventos pouco usuais, referentes à vida na Palestina no primeiro século
fornecem as imagens para a doutrina característica de Jesus.
23. Na Parábola do Tesouro Oculto (Mt 13,44), Jesus compara o Reino de
Deus a um tesouro escondido num campo; aquele que descobre o tesouro se
dispõe a adquirir o campo ao preço de todas as suas posses (Mt 13,44), insistindo
sem dúvida num contrato que especifique a venda da terra “com tudo o que nela
se encontra” (mBB 4,9).
24. Do mesmo modo, a Parábola da busca das Pérolas finas (Mt 13,45seg.)
apresenta um mercador que vende tudo que possui para comprar um objeto de
grande valor. A lição dos dois paralelos é a entrega total, sem reservas, aos
assuntos do Reino. A principal diferença entre as duas histórias é que na
primeira, o achado é acidental, enquanto na segunda, a busca é deliberada.’^
25. O curto Paralelo do Senhor Sábio, capaz de utilizar tanto os objetos velhos
quanto os novos de seu tesouro, reflete o escriba tipicamente descrito em Mateus,
“preparado para o Reino do céu”, isto é, sem dúvida alguém completamente

36 Esta expressão e uma referência anterior à “fortuna injusta” evocam as associações de Qumran
com as expressões “filho da luz” (passim) e “abundância de iniquidade” (CD 6,15; 8,5; 19,17).
37 O tema folclórico do tesouro oculto pode ser ilustrado pelo Rolo de Cobre de Qumran (3Q 15)
'rt5ffrS'ettS'^tsséftra‘êt)uatro esconderijos. Cf. DSSE 308-10; HJP 467-9.
Provérbios e Parábolas 103

versado na interpretação tradicional da Bíblia de todas as idades (Mt 13,5 Iseg.)-


Como foi observado no capítulo anterior (cf. p. 71-2), não é provável que a
narrativa possa ser atribuída a Jesus.
26. O Paralelo do Ladrão que ameaça invadir uma casa num momento
imprevisível e a incessante vigilância imposta ao dono (Mt 24,43; Lc 12,39)
representa um paralelo negativo porém apropriado. O significado original do
pronunciamento, antes de ser reinterpretado pela igreja primitiva no contexto
do retorno ou parusia do Cristo, aponta para o repentino advento do Reino.
27. Na Parábola do Hóspede Inesperado que chega tarde da noite, quando
não há nada a oferecer na casa, o hospedeiro, procurando desesperadamente
tomar alimentos emprestados, importuna tanto um amigo que este é obrigado a
se levantar da cama e emprestar três pães (Lc 11,5-8). O ensinamento aqui
transmitido, em forma de hipérbole, é que uma determinação semelhante à de
uma criança persuade mesmo Deus a dar ao suplicante tudo aquilo de que
realmente necessita.
Esta atitude, recomendada porjesus a todos os seus discípulos, era tolerada
pelos rabis apenas no caso de homens reconhecidamente santos, como o
carismático Honi, do primeiro século a.C., que “ameaçou” Deus de permanecer
dentro de um círculo que tinha desenhado no pó até que a chuva, pela qual
rezava, fosse concedida. Ele é mostrado, portanto, como um filho que importuna
o pai até conseguir o que quer (mTaan. 3.8). Daí decorre o ditado talmúdico
mais tardio, “A impertinência (huzpa) produz resultados mesmo quando se trata
do céu!” (bSanh. 105a).
Outras quatro parábolas-narrativas, refletindo aspectos ou caricaturas da
vida social e religiosa judaica, sobrevivem apenas em Lucas.
28. A Parábola do Fariseu e do Publícano (Lc 18,9-14) reforça o contraste das
duas atitudes religiosas, uma na linha da devoção de Jesus, a outra representando
seu oposto. É quase irrelevante se o primeiro dos dois tipos, fariseu-publicano,
faz parte do núcleo original da narrativa. O fariseu poderia, por outro lado, ser
um representante posterior de uma pessoa satisfeita com ela mesma, vaidosa e
ostentadora, enquanto, por outro lado, estereótipos pejorativos podem ter
alcançado a Galiléia mesmo antes que qualquer presença substancial de fariseus
pudesse ser presumida na região. Quanto ao coletor de impostos, ele é freqüen-
temente uma figura central no pensamento de Jesus. Os dois caracteres são
retratados em Jerusalém, rezando no Templo. O fariseu exibe vanglória excessi­
va, não apenas ao se congratular por suas virtudes supérfluas mas também ao

38 A descrição do protagonista da parábola como um indivíduo “imoral”, semelhante ao


administrador injusto em Lc 16,1-9, (cf. E. P. Sanders e Margaret Davies, Studying the Synoptic
Gospels (1989), 289seg.) não é justificada pela leitura da narrativa.
104 A Religião de Jesus, o Judeu

se comparar a “este publicano”, agradecendo por não ser rapace, adúltero e


injusto como ele e como outras pessoas. Sua jactância contrasta com a prece
contrita do publicano: “Deus, sê piedoso para comigo, um pecador”. A parábola,
louvando implicitamente o arrependimento, serve de ilustração apropriada à
máxima familiar, “Aquele que exalta a si mesmo será humilhado, mas aquele
que se humilhar será exaltado” (cf. Mt 18,4; 23,12; Lc 14,11).^^
29. A Parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) é introduzida, em seu
contexto atual, como uma explanação interpretativa do conceito do “próximo”,
apenso ao ensinamento de Jesus sobre o primeiro ou grande mandamento (Mc
12,28-31; Mt 22,34-40; Lc 10,25-38. Cf. “Jesus e a Lei” p. 46). De fato, o elo é
totalmente artificial. Se “Amarás teu próximo como a ti mesmo” se referir apenas
aos que foram bons para conosco, a ênfase de Jesus sobre a generosidade
desinteressada (cf. ibid., 41) se esvazia. Nem a visão moderna, mais recentemente
apregoada por E. P. Sanders e Margaret Davies (Studying, 181seg.), de que a
história é um ataque a sacerdotes e levitas, é mais apropriada à narrativa. Os
Evangelhos não oferecem nenhuma evidência séria para sugerir que Jesus era
particularmente hostil à classe sacerdotal, com a qual tinha pouco ou nenhum
contato, nem era ele especialmente atraido pelos samaritanos (Mt 10,5). Em
contraste, Lucas parece considerá-los de especial interesse, já que podem ser
representados como “estranhos” associados ajesu s (Lc 17,11-19).
Considerando a parábola em si, sua lição básica parece ser que caridade e
compaixão para com o viajante deixado por morto pelos ladrões provém, não
de líderes religiosos — os quais, por razões aparentemente boas mas na realidade
enganosas, permanecem afastados — mas da parte mais inesperada, de um
samaritano.“*®Normalmente presumido como hostil, ele foi o autor de um gesto
de amor e bondade, um dos três pilares sobre os quais acreditava-se que o mundo
repousa (mAb.1.2). Em sua totalidade, a estrutura da parábola difere em muito

39 A observação de J. Jeremias (Parables, 142seg.) que a prece do fariseu em Lucas é “tirada da vida”
e é provida de um comentário paralelo no Talmude não pode deixar de ser contestada. Porque,
enquanto as palavras em Lc 18,llseg . transpiram vaidade, as atribuídas ao R. Nehunya ben
Haqaná, em bBer. 28b são inspiradas por humildade e gratidão. O mesmo comentário se aplica
também ao Hino de Agradecimento de Qumran (IQH 7.34), citado por Jeremias. A dicotomia do
estado de graça dos justos e a desgraça dos maus remonta à poesia biblica, começando com SI
1.
40 A noção do bom samaritano pode ter sido tomada de empréstimo de 2Cr 28,15. Prisioneiros de
guerra da Judeia, levados para Samaria no reinado do rei de Israel Peká, filho de Remalià, foram
libertados após a intervenção do profeta Oded e confiados a samaritanos escolhidos para cuidar
deles. “Os homens ... vieram e tomaram os cativos, e com os espólios vestiram todos os que
estavam nus entre eles; vestiram-nos, deram-lhes sandálias, os assistiram com comida e bebida e
os ungiram e, carregando todos os fracos entre eles sobre asnos, levaram-nos às suas famílias em
Jerico, a cidade das palmeiras. Então voluram a Samaria.” A razão pela qual o sacerdote e o levita
que se dirigiam a Jerusalém evitaram contato com o que acreditavam ser um cadáver è que
ficariam sem condições de realizar seus deveres no Templo.
Provérbios e Parábolas 105

das examinadas até agora e dúvidas relativas a sua autenticidade são justificadas.
De fato, podemos nos defrontar, neste ponto, com um midrash cristão invertido
sobre o mandamento de Jesus de amar o inimigo.
30. A Parábola do Filho Pródigo é um relato muito familiar de arrependimen­
to-perdão, consistindo de dois atos (Lc 15,11-32). A primeira parte, essencial,
trata da aventura de um filho mais novo irresponsável que, tendo obtido sua
parte da herança em vida do pai, a dissipa inteiramente, longe de casa, com
prostitutas. Sem um tostão e faminto, é atingido por um profundo remorso e
procura o perdão do pai, que lhe é concedido com grande bondade. A segunda
metade da parábola se refere às queixas do primogênito, que ressente a genero­
sidade do pai para com o irmão transviado e provavelmente também o pronto
perdão paterno. É-lhe assegurado que sua própria herança não está ameaçada
mas que é necessário se alegrar quando um filho perdido é encontrado. Em
resumo, todos os elementos morais da história ecoam o ensinamento de Jesus,
sendo o arrependimento-fesJiuvá o tema principal; mesmo assim, a parábola
como um todo, apoiando a moralidade convencional e não criticando a atitude
do irmão mais velho, não traz a marca registrada do ensinamento de Jesus.
31. O Episódio do Homem Rico e do Pobre Lázaro (Lc 19,19-31) é mais um
relato que uma parábola. Contém uma dupla mensagem: o sofrimento do
homem mau no inferno não pode ser aliviado por uma visita de seu antigo
cliente. Lázaro, agora gozando da felicidade etema no “seio de Abraão”; Lázaro
também não pode ser interpretado como um miraculoso mensageiro vindo de
além-túmulo para convencer os irmãos do homem rico a se arrepender. “Se não
ouvem Moisés e os profetas tampouco ficarão convencidos se alguém ressurgir
dos mortos” (v. 31). Pareceria que nos defrontamos aqui com a adaptação de
uma lenda judaica pela igreja judeu-cristã e que nada contém que possa
vinculá-la diretamente ajesu s.“*^

41 Uma parábola similar é transmitida em nome de R. Meir (meados do segundo século A.D.) em
Dt R. 2,3 sobre Dt 4,30, “Quando estiveres em tribulação, ... voltarás ao Senhor, teu Deus [outro
motivo de teshuvó ]. A que podemos comparar isto? Ao filho de um rei que passou a trilhar o
caminho do mal. O rei mandou seu preceptor pedir-lhe que voltasse para casa. O filho respondeu
que, indigno e envergonhado, ele não podería voltar. O pai enviou o preceptor com a mensagem,
Meu filho, pode um/ilho se envergonhar de voltar a seu pai? E se tu voltares, não é ao teu pai que
voltas?” A principal diferença entre as duas versões da parábola é que aqui a iniciativa vem do
pai, o filho se sentindo por demais culpado para tomar a iniciativa. Na versão de Lucas, os papéis
estão invertidos. C f.JW J,82.
42 Cf. Bultmann, HST, 203. A lição subjacente pode ser resumida como a história da ausência de
arrependimento. Um paralelo rabínico parcial pode ser encontrado em ySanh. 6, 23c; yHag.
2,77d; ver adiante, p. 107.
106 A Religião de Jesus, o Judeu

(d) Parábolas relativas a juizes e cortes de lei

O penúltimo tópico geral das parábolas do Evangelho tem a ver com a função
judicial, tanto histórica quanto escatológica. Os três exemplos têm uma interes­
sante peculiaridade em comum: todos consideram um único juiz. A legislação
rabínica, a partir da Mishná, reconhece apenas três, vinte três ou setenta e dois
juizes, o primeiro grupo julgando casos civis, o segundo casos capitais. O terceiro
é o Supremo Sinédrio, que aparece também no Novo Testamento como um
colegiado judicial. Entretanto, na Galiléia de antes de 70 A.D., magistrados
isolados parecem ter tratado de assuntos de propriedades (dinê mamõriõt). A esta
falta de respeito à lei judaica como os rabinos a entendiam foi atribuída a
subseqüente devastação do distrito.“*^
32. No fragmentário Paralelo do Litígio perante um Ju iz (Mt 5,25seg.; Lc
12,58seg), a doutrina da súbita reconciliação entre irmãos em disputa (na idade
da urgência escatológica e do julgamento iminente?) é inculcada com a ajuda do
relato de dois homens em litígio sobre uma dívida. A lição é que eles devem
entrar em acordo fora do tribunal de modo que o Juiz não tenha de mandar a
parte culpada para a prisão. O perdão não é explicitamente mencionado mas
também não é formalmente excluido. Existe, portanto, um vínculo possível com
as parábolas anteriores referentes á remissão das dívidas (cf. Mt 18,23-35 e Lc
7,36-50 na p. 101 antes).
33. A Parábola do Injusto Juiz da Cidade, espelhando negativamente Deus,
sublinha o significado da confiança ilimitada e persistente (Lc 18,2-5). Quando
uma pobre viúva continua a apelar a ele, o Juiz, para se livrar dela, finalmente
julga em seu favor. O tema básico é o da história do amigo importuno em Lc
11,5-8 (p.I03 antes). Tal parece ser o ensinamento que pode ser atribuído ajesus,
embora Lucas o transforme numa oração para apressar a parusia e o julgamento
final (18,6-8).
34. A Parábola do Julgamento Final, antes de ser remanejada em Mateus de
modo a se aplicar à parusia do Cristo (Mt 25,31-46), examina como menos
surpreendente que um único Juiz divino (o Rei) presida no tribunal escatológico,
recompensando e punindo a humanidade.
O ensinamento, embora não seu contexto universalista (cf. p.108 adiante),
sem nenhuma menção aos judeus, e sem dúvida derivado da manipulação
eclesiástica, pertence ao núcleo da doutrina da verdadeira devoção de Jesus.“^“^

43 Cf. tBQ 8,14. Ver M. D, Goodman, State and Society in Roman Galilee (1983), 126seg. Sobre o
sistema judiciário rabínico, cf. H JPII, 186-88. bSanh. 4b-5a também alude ao costume dos rabis
de tratar sozinhos de casos civis, contanto que fossem reconhecidos como peritos no aspecto
relevante da lei.
44 Para a doutrina implícita da imitatio Dei, ver JWJ, 83 seg., e 182-188 adiante.
Provérbios e Parábolas 107

(e) Parábolas do festim de bodas

A última das ocasiões sociais que servem de material para várias parábolas
é um casamento real (em Mateus, mas rebaixado em Lucas), e os costumes que
o acompanham.
35. A Parábola do Festim de Bodas de um Príncipe tem como tema a revisão
da lista de convidados em Mt 22,2-10. Na versão de Lucas (Lc 14,16-24), a
ocasião aparece como um grande jantar organizado por “um homem” (v. 16) ou
“um proprietário” (v. 21). Todos os convidados excusam de comparecer, de
modo que os indignos e desabrigados, “os pobres e deformados e cegos e coxos”
são trazidos para encher o salão do banquete.
A substância da parábola figura numa história relatada no Talmude Palestino
(ySanh. 6, 23c; yHag. 2, 77d), onde um publicano, de nome Bar Mayan, prepara
uma grande festa para os cidadãos mais importantes. Quando estes não apare­
cem ele convida os pobres e, por ocasião de sua morte, é recompensado por este
bom ato praticado em vida. Aversão do Novo Testamento, sem o viés de Mateus
(22,6,11-14),'^^ corresponde ao ensinamento básico dejesus sobre a reversão das
prioridades terrenas na iminência do Reino e inclui uma insistência indireta
sobre a constante necessidade de prontidão.
36. A Parábola das Dez Virgens (Mt 25,1-13) também é desenvolvida em volta
do tema de uma festa de bodas. Um cortejo de dez moças espera o noivo que
deve chegar ã festa das bodas depois do anoitecer: dai, a necessidade das
lamparinas. As tolas gastam todo o óleo mas as virgens sábias, ou antes egoistas,
se recusam a ajudá-las e entram no salão do banquete, enquanto as outras ficam
do lado de fora, e embora batam ã porta, esta não é aberta.
Em sua forma presente, a parábola é obviamente uma formulação tardia da
igreja, acentuando a necessária vigilância e prontidão enquanto a parusia se faz
esperar. Tanto o egoísmo calculista das virgens “sábias” quanto a recusa desal­
mada do “noivo” em deixar entrar aqueles que não estavam apropriadamente
preparados, contradiz frontalmente a devoção ensinada por Jesus. A única
compreensão possível da história, compatível com sua visão religiosa básica,
sublinharia a necessidade de autoconfiança durante a grande sublevação que
precederá o fim. As heroínas da parábola são as “virgens tolas”, e a mensagem
a elas dirigida é que, nas circunstâncias, elas não devem confiar em suas irmãs
“sábias”.

45 O assassinato dos servos que trazem o convite é estranha a esta história e resulta de uma fusão
com a parábola dos vinhateiros maus (Mc 12,1-12, etc., cf. antes, pp. 99 seg). O apêndice de
Mateus, referente aos convidados que comparecem sem as roupas apropriadas, novamente não
se enquadra na história. Como se poderia esperar que desocupados e passantes vestissem “roupas
de casamento”?
108 A Religião de Jesus, o Judeu

37-38. A Parábola do Guardião da Porta, em forma fragmentária, (Mc


13,33-37; cf. Mt 24,45-51; Lc 12,42-46), na qual o senhor deve encontrar o
guardião acordado no momento de sua volta inesperada é caracterizada pelo
mesmo tema da vigilância. O mesmo ocorre com a Parábola da Porta Fechada
(Lc 13,25seg.) que, em sua presente versão gentia-cristã considera as rejeições
dos Judeus (os “filhos do Reino” em Mt 8,12) e sua substituição por homens “do
leste e oeste e do norte e sul” (Lc 13,27-29).
39. A última das parábolas sobre o festim de bodas se refere à Escolha de um
Assento (Lc 14,7-11). Aqueles que modestamente ocupam os lugares mais baixos
serão provavelmente encaminhados a posições mais elevadas e vice-versa. A
história é um remanejo de Pr 25,6seg., despojado de seu cenário real. A lição
ensinada é a humildade que, assim parece, deve ser enfatizada não apenas em
circunstâncias normais — os escribas procuram “os melhores assentos nas
sinagogas e os lugares de honra nas festas” (Mc 12,38seg.; Lc 20,46) — mas
mesmo no contexto do banquete escatológico. É relatado que os filhos de
Zebedeu, os apóstolos Tiago e João, pediram a Jesus que lhes fosse permitido
sentar um à sua mão direita e o outro ã sua mão esquerda, em sua glória (Mc
10,37).“^

IV Objetivo e Ensinamento das Parábolas de Jesus

Continuando este esboço do conteúdo e lições das parábolas do Evangelho,


resta-nos agora tentar delinear seu impacto no evangelho de Jesus. Neste ponto,
de início, duas observações negativas devem ser feitas. Primeiramente, à diferen­
ça da maioria das parábolas rabínicas, aquelas que foram examinadas nas
páginas precedentes não são de natureza exegética; isto significa que não
interpretam nem introduzem uma passagem da Bíblia. Nos dois casos que
podemos assim classificar, a Parábola dos Vinhateiros Maus (Mc 12,1-12, etc.),
citando implicitamente Is 5,2 e concluindo explicitamente com SI 118,22seg., e
as Parábolas do Bom Samaritano (Lc 10,29-37), vinculadas a Lv 19,18, citado em
Lc 10,27 esta vinculação demonstrou ser um fenômeno secundário, aposto de
maneira pouco experiente à história propriamente dita (cf. pp. 99 seg. e 104).
Mais uma vez, com a exceção das parábolas do Semeador, das Ervas Daninhas e
da Rede, nenhuma das unidades literárias subsequentes é enriquecida com
detalhes expositórios. Este é outro traço que distingue o estilo de ensinamento

46 A mesma instrução moral é transmitida na forma de uma interpretação de Pr 25,7 na literatura


rablnica, em nome do Taná R. Simeon ben Azai: “Desce dois ou três passos de teu lugar e senta-te
aí. É melhor que te digam para subir que para descer, como está escrito, ‘Porque é melhor que
seja dito. Sobe para cá, do que ser colocado mais abaixo na presença do príncipe”’. Cf. Ex. R
45,5; Lev. R. 1,5.
Provérbios e Parábolas 109

de Jesus do dos rabis. Estes dois traços negativos deixam transparecer que, pelo
menos em sua forma original, as parábolas do Evangelho são dotadas de uma
existência antes autônoma que auxiliar e investidas de um significado imediata­
mente discernivel.
Isto nos leva à questão do objetivo das parábolas porque, se é verdade que
elas transmitem uma mensagem como que automaticamente, prescindindo de
uma explanação regular, segue-se que elas próprias devem ser aceitas como uma
comunicação isolada. Esta opinião, entretanto, contradiz diretamente uma de­
claração explícita do Novo Testamento referente à escolha do gênero da parábola
por Jesus.
Entre a parábola do Semeador (Mc 4,1-9, etc.) e a interpretação a ela atribuida
por Jesus (Mc 4,13-20, etc.), os três Sinóticos inserem o que parece ser uma
declaração geral (Mc 4,10-12) sobre o objetivo desta forma didática. Ao círculo dos
iniciados é dado o conhecimento do “ segredo (ou segredos) do Reino de Deus ou
do Céu”, mas os menos favorecidos recebem o evangelho apenas “em parábolas”.
Contrastando o sentido interno oculto (isto é, o “mistério” ou raz) de uma doutrina
com o ensinamento “em parábolas”, estas últimas recebem um sentido definitiva­
mente pejorativo em grego, que seu equivalente em hebraico (mashal) não possui.
A sugestão semântica é positivamente confirmada pela frase de conclusão;

A fim de que vendo não percebam e ouvindo não entendam; para que não
se convertam e sejam perdoados. (Mc 4,12).“*^

Mateus, por sua vez, expande o texto de Marcos, coloca-o na primeira pessoa
e confirma-o com uma completa citação direta de Isaías 6,9-10.

É por esta razão que lhes falo em parábolas, pois vendo, eles não
percebem, e ouvindo, não escutam nem compreendem. Neles, na verdade,
cumpre-se a profecia de Isaías que diz: “Na verdade, vós ouvireis mas
nunca compreendereis e vereis mas nunca percebereis. Porque o coração
deste povo se embotou e seus ouvidos ficaram moucos, e seus olhos se
fecharam para que não percebessem com os olhos e ouvissem com os
ouvidos, e compreendessem com seu coração, e se voltassem a mim para
curá-los”.

A intenção do significado é claramente que, adotando o estilo da parábola, Jesus


deliberadamente mantinha afastada a multidão de seus ouvintes e reservava sua

47 O texto é uma reprodução livre e abreviada de Is 6,9seg. Por sua vez, Lc 8,10 é um resumo de
Marcos: “a fim de que vendo não percebam e ouvindo não entendam”. Marcos conclui por adotar
a paráfrase do Targum “ser perdoado” para o hebraico “ser curado”. Para uma visão total do
problema, ver Craig A. Evans,To See and not Perceive: Isaiah 6.9-10 in Early Jew ish and Christian
Interpretation (1989).
110 A Religião de Jesus, o Judeu

mensagem apenas aos iniciados. O termo “parábola” é tomado no sentido de


“adivinhação” ou “enigma” Tal atitude faria sentido apenas se Jesus fosse um
mestre esotérico como os essênios ou gnósticos, mas para isso, nem a tradição
do Evangelho em geral, nem a análise das parábolas, não fornece nenhuma
evidência que lhe sirva de apoio.“*®
Uma explanação mais provável de Mc 4,10-12par., com seu uso de Is 6,9seg.
é que a tradição sinótica, antecipando a descrença dos judeus desde o inicio da
história do Evangelho, retrata Jesus como prevendo a má vontade da maior parte
de seus compatriotas em ouvir as boas novas do Reino e recusa-lhes fácil acesso
a esse Reino. Camadas mais tardias do Novo Testamento, como por exemplo,
At 28,23-28 e Jo 12,37-41, testemunham do uso de Is 6 como prova textual
demonstrativa da obstinação dos judeus. A apresentação das parábolas como
um obstáculo à compreensão pertence antes à apologética da igreja do que a uma
abordagem histórica do ensinamento de Jesus. Além disso, se a teoria parábo-
la=enigma fosse seriamente considerada como se aplicando a toda instrução
metafórica por ele ministrada, poder-se-ia esperar encontrar cada parábola, e não
apenas a do Semeador, das Ervas Daninhas e da Rede acompanhadas de uma
chave para a adivinhação.
Mas se, como é geralmente aceito, o objetivo das parábolas era não de
restringir mas facilitar a compreensão da pregação de Jesus, como era alcançado
este objetivo? Nosso exame de todo o corpus indica que, possivelmente com a
única exceção dos Vinhateiros Maus, que consiste de uma exposição alegórica,
elas todas pregam uma única mensagem ético/religiosa e a maioria pressupõe
uma atmosfera e contexto escatológicos. O objetivo da parábola é, conseqüente-
mente, fazer sentir ao ouvinte, de maneira viva e colorida, a obrigação de adotar
uma atitude ou realizar um ato de fundamental importância.
A mensagem central das parábolas pode ser reduzida a três pontos especí­
ficos que serão mais desenvolvidos no capitulo 7. Estes são, em ordem lógica,
teshuvá (arrependimento/perdão), emuná (fé em Deus) e a forma superlativa
dessa fé que consiste em assumir altos riscos visando o Reino. Todos refletem,
como seria de esperar, a simples e profunda devoção escatológica de Jesus, o
Judeu.

48 O emprego equivoco do termo é atestado no grego Ben Sira. Em 3,29 parabole traduz mashal, mas
em 47,17 corresponde a hidah. De modo semelhante, em Nm 21,27 mõshel é traduzido por
ainigmatistés, enquanto em Nm 12,8 ainigma equivale a hïdah.
49 Cf. D. Stem, Parables tn Midrash (1991), 200-1. SegundoJosefo (Guerra ii.141), cada essênio fazia
um juramento de “não revelar nada a estranhos” e o Mestre da Regra da Comunidade de Qumran
devia “ocultar o ensinamento da Lei aos homens falsos" (ix.16) e se conduzir para com eles num
“espirito de segredo" (9,21).
Provérbios e Parábolas 111

Concluindo com uma nota polêmica, foi afirmado por um estudioso inter­
nacionalmente conhecido do Novo Testamento, Eduard Schweizer, em seu livro
intitulado Jesus (1971) - já exposto no pelourinho no capítulo sobre “Jesus e a
Lei” (p. 32, n.20) — que as parábolas explicam por que Jesus foi executado. O
parágrafo sobre a parábola do Filho Pródigo merece ser citado por inteiro.

Com uma segurança que deve ter impressionado seus ouvintes como sem
precedente, ele equaciona a conduta caridosa de Deus com sua própria
conduta para com os publicanos. Quem, a não ser Jesus, poderia se
aventurar a descrever um comportamento tão incrivel e absolutamente
inesperado por parte do pai para com o filho fanfarrão? Quem, a não ser
Jesus, teria tido a autoridade de assumir o papel do próprio Deus em sua
parábola e proclamar a celebração em honra do pecador que tinha sido
restituído à companhia de Deus? Aqueles que o pregaram na cruz porque
encontraram blasfêmia em suas parábolas - que proclamavam uma conduta
tão escandalosa por parte de Deus - compreendiam suas parábolas melhor
que aqueles que nelas não viam nada além da mensagem óbvia, que deveria
ser auto-evidente para todos, da paternidade e bondade de Deus, destinada a
substituir a crença supersticiosa num Deus de ira [grifo meu] (pp. 28seg.;
p. 32 em alemão).

Esta distorção magisterial da doutrina da imitatio Dei do judaísmo (a ser discutida


no capítulo 7) é acompanhada de uma incompreensão fundamental da estrutu­
ração mental de Jesus, o Hassid e da natureza e verdade de suas parábolas
judaicas.

Apêndice: A Distribuição das Parábolas nos Evangelhos Sinóticos

Marcos-Mateus-Lucas
O semeador [1] Mc 4,3-8 Mt 13,3-8 Lc 8,5-8
A semente de mostarda [4] Mc 4,30-32 Mt 13,31-32 Lc 13,18-19
Os vinhateiros maus [14] Mc 12,1-4 Mt 21,33-44 Lc 20,9-18
A figueira [3] Mc 13,28-29 Mt 24,32-33 Lc 21,19-31

Marcos-Lucas
O guardião da porta [37] Mc 13,33-37 Lc 12,35-38

Marcos
A semente que germina [2] Mc 4,26-29

Mateus-Lucas
Litígio perante um juiz [3] Mt 5,25-26 Lc 12,58-59
Os dois construtores [8] Mt 7,24-27 Lc 6,48-49
112 A Religião de Jesus, o Judeu

Crianças no mercado [9] Mt 11,16-19 Lc 7,31-35


O retorno de um demônio [10] Mt 12,43-45 Lc 11,24-26
O fermento [11] Mt 13,33 Lc 13,20-21
A ovelha desgarrada [6] Mt 18,12-14 Lc 15,4-7
A festa de bodas [35] Mt 22,1-14 Lc 14,16-24
O ladrão [26] Mt 24,43-44 Lc 12,39-40
Os talentos [19] Mt 25,14-30 Lc 19,11-17

Mateus
As ervas daninhas [5] Mt13,24-30
O tesouro oculto [23] Mt 13,44
A pérola [24] Mt13,45-46
A rede [7] Mt13,47-48
O proprietário avisado [25] Mt 13,51-52
O servo cruel [17] Mt18,23-35
A vinha [16] Mt 20,1-16
Os dois filhos [15] Mt21,28-37
As dez virgens [36] Mt 25,1-13
O julgamento final [34] Mt25,31-36

Lucas
O credor [18] Lc 7,41-43
O bom samaritano [29] Lc 10,29-37
O hóspede inesperado [27] Lc 11,5-8
O proprietário rico [13] Lc 12,16-21
A porta fechada [38] Lc 13,25-26
A escolha de um assento [39] Lc 14,7-11
O proprietário e o rei [21] Lc 14,28-32
A dracma perdida [12] Lc 15,8-10
O filho pródigo [30] Lc 15,11-21
O administrador injusto [20] Lc 16,1-8
O homem rico e Lázaro [31] Lc 16,19-31
A recompensa do servo [22] Lc 17,7-10
O injusto juiz da cidade [33] Lc 18,1-8
O fariseu e o publicano [28] Lc 18,9-14
Jesus e o Reino de Deus

Pela simples freqüência das expressões “Reino de Deus” e “Reino do Céu” — que
figuram não menos de duzentas vezes nos Evangelhos Sinóticos — é razoável
inferir que os conceitos que refletem desempenharam papel importante no
ensinamento de Jesus. Esta afirmação simples representa o terreno comum da
especialidade contemporânea do Novo Testamento.
Assim, a primeira frase do capitulo introdutório de Théologie des Neuai
Testaments (p. 3) de Rudolf Bultmann, apresenta o “Reino de Deus” como o
conceito dominante (“der beherrschende Begriff’) da pregação de Jesus. Chris­
topher Rowland vê nele “um pilar fundamental” (Christian Origins, 133) e
Norman Perrin, “o aspecto central” do ensinamento de Jesus (Rediscovering, 54).
Para E. P. Sanders, é um dos tópicos “mais discutidos” do Novo Testamento
(Jesus and Judaism, 123). Por sua vez, Anthony Harvey (Constraints, 86), ecoando
Joachim Jeremias (NT Theology, 32-34), enfatiza a natureza sem paralelo das
expressões que a ele se referem.
Este consenso é, entretanto, puramente superficial e desaparece logo que os
pesquisadores se defrontam seriamente com perguntas básicas tais como “o
que?”, “como?” e especialmente “quando?”. Para apreender o verdadeiro sentido
do ponto central da religião de Jesus, não evitaremos estas perguntas, mas
procuraremos respondê-las, com a ajuda de uma análise minuciosa da evidência
do Evangelho comparada com a doutrina do Reino de Deus, preservada evii
fontes judaicas paralelas.^

A literatura sobre o assunto cresceu enormemente desde os trabalhos pioneiros de Johannes


Weiss (Die Predigt Jesu vom Reiche Gottes, 1900) e Albert Schweitzer (Von Reimarus zu Wrede,
1906, mais conhecido como The Quest o f the Historical Jesus 3^ ed. 1954). Felizmente, o livro dc
Norman Perrin, The Kingdom o f God in the Teaching o f Jesus proporciona um exame critico e a
discussão das teorias até a época da publicação, em 1963, de grande utilidade. Ver também, de
Martin Buber, Kingship o f God (1967); de N. Perrin, Jesus and the Language o f the Kingdom (1976);
de J. Schlosser, Le règne de Dieu dans les dits de Jesus 1-11 (1980); de O. Camponovo, Königtum,
Königsherrschaft und Reich Gottes in den frühjüdischen Schriften (1984). Unia discussão abrangente
pode ser encontrada no artigo basileus, etc., em TDNT 1,564-93 de G. von Rad, K. -G. Kuhn e K.
-L. Schmidt. Para uma exposição mais recente do assunto por um eminente especialista do Novo
Testamento, cf. E. P. Sanders, Jesus and Judaism (1985), 123-241.
114 A Religião de Jesus, o Judeu

I O Reino de Deus fora do Novo Testamento

No tempo em que Jesus se pôs a meditar sobre ela, a idéia do Reino de Deus já
era uma longa história na Bíblia hebraica e na antiga literatura pós-biblica ou
intertestamentária. Ela continuou a florescer no começo da era cristã nos
trabalhos dos rabis dos primeiros dois séculos (os tanaim), e nas primeiras
camadas da liturgia sinagogal.
Sendo “Reino” essencialmente um conceito político, não é de surpreender
que sua associação metafórica com Deus retenha, de início, um elemento de seu
significado original, isto é, uma nação e território governados por um rei (divino),
antes de se transformar na noção mais abstrata da soberania universal e do
ilimitado poder da Deidade.

1. O Reino de Deus na Bíblia Judaica

Durante a existência de uma monarquia israelita independente, desde Davi


até a queda de Jerusalém sob Nabucodonosor no início do sexto século a.C., o
Reino de Deus era concebido primariamente como um aspecto oposto ou como
uma contrapartida celestial do reino terreno. O povo judeu, governado por uma
Lei divinamente outorgada e vivendo de acordo com esta Lei, constituía a
província sobre a qual de facto Deus governava vicariamente, por meio de um
monarca humano instalado como representante do Senhor no dia de sua
ascensão ao trono (SI 2,7). É desnecessário dizer, o elo entre o Reino celestial e
o terreno não se foijava instantaneamente. Na realidade, dever-se-ia crer, se
acreditarmos no testemunho de ISm (8,7 e 12,12) que, ao tempo do nascimento
da monarquia hebraica, a facção anti-realista identificava o pedido do povo de
um rei israelita como um repúdio automático da soberania divina. Este é o
significado óbvio das palavras dirigidas por Deus a Samuel, segundo ISm 8,7.

Atenta à voz do povo ... porque não é a ti que rejeitam, mas a mim, porque
não querem mais que eu seja seu Rei.^

Caso apenas Deus fosse reconhecido como o governante de facto de Israel, seu
reinado de ju re como Criador da humanidade era reconhecido como universal
e persistia a esperança de que, um dia, um monarca judeu governaria todas as
nações e as conduziria ao conhecimento e culto do verdadeiro Senhor do
universo. No mesmo Salmo (2,8), o rei de Israel é instruído:

2 Esta postura antimonarquista é expressamente excluída pelo Cronista pós-exílico, que atribui a
Davi a seguinte citação, “(Deus) escolheu Salomão, meu filho, para se assentar no trono do Reino
do Senhor como rei de Israel” (IC r 28,5; cf. 17,14).
Jesus e 0 Reino de Deus 115

Pede-me e eu farei das nações a tua herança,


E dos confins da terra a tua possessão.

Pouco adiante, no mesmo poema (SI 2,11), os governantes gentios são admoes­
tados a “servir o Senhor com temor”. Em outro Salmo (99,1), o Rei divino é
representado como objeto de terror e espanto entre os estrangeiros.
A perspectiva geral sofreu uma mudança substancial com a derrota do Reino
de Judá pelos babilônios em 586 a.C. e a conseqüente perda da autonomia
politica judaica. Na ausência de governantes nacionais, nasceu o messianismo,
que aguarda o advento de um rei que restabelecerá o dominio visível e institu­
cional de Deus sobre todos os judeus libertados dos impérios estrangeiros.
Alguns dos Salmos reais (SI 2; 110, etc.) foram reinterpretados nesse sentido e
Ezequiel (34,24) prediz explicitamente um novo Davi que será o pastor de Israel;

E eu, o Senhor, serei o seu Deus


e meu servo Davi será príncipe entre eles.

Entretanto, o mesmo Ezequiel também prevê o próprio Deus, sem vice-rei


terreno, como o grande conquistador no final dos tempos, que aniquilará os
exércitos de Gog e a terra de Magog, o inimigo final de Israel.

Farei cair teu arco de tua mão esquerda,


e tuas flechas de tua mão direita.
Cairás por sobre as montanhas de Israel,
tu e todos teus exércitos e os povos que te acompanham.
Eu te entregarei a toda espécie de aves de rapina
e aos animais selvagens para seres devorado.
Cairás em campo aberto (Ez 39,3-5).^

Com um intermediário messiânico ou sem ele, vale dizer, o estabelecimento do


Reino divino estava indissoluvelmente vinculado à expectativa de uma batalha
que culminaria na vitória de Deus e, pelo menos indiretamente, de Israel.
A profecia exílica e pós-exílica, o trabalho de Deutero- e Tri-ísaías (Is 40-66),
datando da segunda metade do sexto século a.C., era a fonte do conceito de um
estabelecimento não belicoso do Reino universal. No contexto da liberação não
prevista e não previsível dos judeus do cativeiro babilónico, seus senhores

A tradição transforma o personagem único de Gog, rei de Magog (Ez 38,2) no par Gog e Magog.
Cf. Enc. Jud. 7, 691-3. A antiguidade da duplicação é provada por sua menção na forma de uma
glosa interpretativa facilmente compreensível em Ap 20,8; “E quando terminarem os mil dias,
Satã será solto de sua prisão e sairá para confundir as nações ..., quer dizer, Gog e Magog, para
reuni-los para a batalha.”
116 A Religião de Jesus, o Judeu

pagãos, tendo descoberto no Deus de Israel o verdadeiro Salvador, se submetem


a ele e testemunham seu poder de salvação. Nas palavras de Deutero-Isaías,

Eles te seguirão;
Virão em grilhões e se prosternarâo diante de ti.
Eles te suplicarão, dizendo;
“Deus está contigo e não existe outro,
nenhum deus além dele” (Is 45,14).

Esperava-se que este reconhecimento do Deus de Israel pelos gentios fosse


acompanhado de uma submissão simultânea aos judeus — “eles se curvarão
diante de vós e lamberão o pó de vossos pés” (Is 49,23), e cultuarão no Templo
de Jerusalém.

E as nações virão à tua luz ...


Trarão ouro e franquincenso,
e proclamarão o louvor do Senhor ...
e virão com aceitação ao meu altar ...
(Is 60,3, 6seg.).

Aqui, o advento do Reino implica um elemento de mistério: a salvação de Israel


é apresentada como um magneto que atrai o restante da humanidade para Deus.
Um traço negativo estranho é compartilhado por todas as evidências até
agora consideradas, com exceção de duas referências cronologicamente tardias
de ICrônicas 17,14 e 28,5 (p-114 n.2), isto é, que todas as imagens reais estão
baseadas no substantivo “Rei” e no verbo “tornar-se Rei/reinar”, enquanto a
palavra “Reino”, dominante na terminologia dos Evangelhos, ainda não tinha
aparecido.
Se as passagens aramaicas do Livro de Daniel forem excluídas — elas serão
discutidas com maior propriedade em outros exemplos do segundo e primeiro
séculos a.C. na próxima seção (cf. p .ll8 ) — o “Reino (malhut ou meluhá) de
Deus” em hebraico bíblico, delineando o estado final da humanidade, ecoa tanto
a poderosa imposição da regra divina sobre as nações quanto uma resultante de
meios pacíficos.“^
Mais ênfase é atribuída ao poder universal e á eterna soberania: a malhut de
Deus “reina sobre todos” (SI 103,19) e “Tua malhut é uma malhut eterna e Teu
domínio perdura por todas as gerações” (SI 145,13). Entretanto, é notável a
escassez do emprego do conceito abstrato comparado com o imaginário hebraico

4 Segundo Abdias 21, Edom será julgado por guerreiros de Sion e como resultado a melühá
pertencerá a Deus. Mais uma vez, em SI 22,29 [Trad. Ing. 22,28], Deus será o senhor dos gentios
convertidos e a melühá lhe pertencerá.
Jesus e o Reino de Deus 117

concreto, bem como a freqüência do grego basileia em exemplos do Evangelho.


Porque, mesmo se as duas ocorrências da palavra em ICrônicas seja incluída,
existem apenas seis casos do uso de rnalhut e melühá em toda a Bíblia hebraica!

2. O Reino de Deus no período intertestamentário

Durante o período altamento criativo da literatura judaica que se inicia com a


era dos macabeus na primeira metade do segundo século a.C., e termina com a vida
de Jesus e a redação dos Evangelhos, a ideologia do Reino se desenvolve em parte
ao longo das linhas do pensamento bíblico anterior mas também, em parte, abre
novas perspectivas. Os pseudo-epígrafos do Antigo Testamento e os Pergaminhos
do Mar Morto proporcionam a evidência, mas o livro canônico de Daniel, que passou
por sua redação final nos anos 160 a.C., também se insere neste estágio da evolução
doutrinal. Quase não é necessário sublinhar seu significado para o pesquisador que
investiga os ensinamentos dos Evangelhos; Jesus e os autores das outras obras
discutidas nesta seção eram filhos do mesmo período.
Todas as fontes judaicas em questão revelam, de um modo ou de outro, uma
atmosfera de excitação escatológica e apocalíptica. O elemento político do
conceito do Reino original ainda sobrevive, mas torna-se aparente uma tendência
crescente em direção do transcendental.
Para começar, o messianismo real, desenvolvido primeiramente por profetas
e salmistas pós-exílicos, encontrou sua expressão mais poderosa nos poemas do
primeiro século a.C., conhecidos como os Salmos de Salomão. O Salmo 17,
particularmente, representa um rei e salvador judeu estabelecendo o governo
divino sobre os gentios.

Olhai, ó Senhor, e erguei para eles o seu rei,


o filho de Davi ...
E cinge-o com força,
para que possa dizimar governantes injustos;
E purificar Jerusalém entre as nações
que a espezinham na destruição ...
E ele terá os povos dos gentios
para servi-lo sob seu jugo (17,21seg., 30).^

Esta estrutura de restauração no final dos tempos pelo novo Davi atinge seu
clímax na proclamação da eterna ordem divina (17,46). O messianismo real e o
Reino divino, portanto, podem caminhar lado a lado, mas não necessariamente.
De fato, no início do mesmo salmo (verso 3), a sujeição das nações ã divina

5 Trad. S. P. Brock em H, F. D. Sparks (ed.), The Apocryphal Old Testament [A O T] (1984), 678seg.
Sobre os Salmos de Salomão, ver H JP111, 192-97.
118 A Religião de Jesus, o Judeu

hasileia é considerada sem mediação humana. Do mesmo modo, em Salmos de


Salomão 2, é Deus, e não um príncipe judeu, o vencedor do invasor pagão cheio
de si (Pompeu), miticamente descrito como o dragão (2,25seg.).

Ele disse, “Serei o senhor da terra e do mar”;


e não reconheceu que Deus é grande,
poderoso em sua grande força.
Ele é o rei nos céus,
e julga juizes e dominios (2,29seg.)*

Um quadro histórico misterioso semelhante, aludindo ao domínio romano no


Egito, cheio de messianismo real representado por um príncipe sagrado e com
a escatologia apocalíptica de um dilúvio de fogo, é empregado para a revelação
do Reino de Deus numa famosa passagem dos Oráculos Sibilinos judaicos
(3,46-54).

Então, na verdade, o maior Reino


do Rei imortal se revelará aos homens.
Porque o principe santo tomará a dominar
sobre os cetros da terra
para sempre à medida que o tempo se aproxima ...
Todos os homens perecerão em suas moradas
quando a catarata flamejante descer do céu.^

As duas noções bíblicas, o reconhecimento do Deus de Israel pelos gentios e a


infinita glória de seu domínio, aparecem acentuadamente no Daniel aramaico.
Nele, os reis da Babilônia e da Pérsia, personificados por Nabucodonosor e Dario,
exaltam a grandeza do Deus de Daniel e proclamam a eternidade de seu Reino
(Dn 3,33; 4,31; 6,27).
A visão onírica de Dn 7 merece também uma breve menção. Embora as
palavras Rei ou Reino não apareçam, a figura designada como “o Ancião dos
dias”, sentado em trono celeste e julgando os quatro impérios do mundo,
representa obviamente o Senhor divino. Deve-se notar, entretanto, que o reino
por ele concedido a “alguém como o filho do homem" não é descrito como o
Reino de Deus, mas dos “santos do Altíssimo” (Dn 7,18, 22) ou “o povo dos
santos do Altíssimo” (7,27)*. (Enquanto este capítulo de Daniel contribui

6 Cf. A O T, 657.
7 Trad. J. J. Collins, em J. H. Charlesworth, O TP 1, 363. Sobre os Oráculos Sibilinos, ver H]P III,
618-54. Imagens paralelas figuram em 4Esdras 12,31-34, onde o Messias, o rei davídico,
simbolizado por um leão, condena a “águia" (os romanos) no julgamento, antes de aniquilá-los.
8 C f L. Dequeker, “The ’Saints of the Most High’ in Qumran and Daniel”, Oudtestamenlische Studien
18 (1973), 108-87. Uma noção muito parecida com Dn 7 é atestada no fragmento chamado “Filho
de Deus” (4Q 246), de Qumran, mencionando o Reino do “povo de Deus”. C f G. Vermes,
Jesus e 0 Reino de Deus 119

apenas indiretamente à compreensão da ideologia do Reino de Deus, ele tem de


ser introduzido neste ponto devido ao papel significativo que iria desempenhar
na criação da doutrina do Segundo Advento, ou Parusia, nos Evangelhos,
doutrina esta que, como será argumentado, está em contraste total com o
autêntico ensinamento de Jesus.
Mais ainda, a partir de Daniel, particularmente na Assunção de Moisés e em
alguns dos manuscritos de Qumran, o conceito do Reino se encontra cada vez
mais enriquecido de outros traços mundanos. No Pergaminho da Guerra (IQM ),
a vitória final sobre as forças das trevas e o concomitante estabelecimento do
Reino divino constituem o resultado da batalha escatológica travada pelos
exércitos aliados dos “filhos da Luz” angélicos e humanos, sob o comando do
celeste Principe Miguel, contra a coligação dos “filhos das trevas” demoniacos e
humanos (IQ M 17,6seg.).^
A aniquilação simbólica do inimigo no campo de batalha pela “espada de
Deus” é representada em cores mais fortes neste documento (IQM 12,1 Iseg.;
19,4, 11) do que provavelmente em qualquer outro na antiga literatura judaica.
Os extratos seguintes são apenas característicos.

A meluhá pertencerá ao Deus de Israel e ele realizará grandes feitos pelos


santos de seu povo (IQM 6,6).

Pois Tu és [terrível], ó Deus, na glória de Tua malhut, e a congregação de


Teus santos está entre nós para o eterno socorro ... Porque nosso Senhor
é santo, e o Rei da glória está entre nós ... Valentes [guerreiros] do exército
angelical estão entre nossos homens e o Herói da guerra em meio de nossa
congregação; o exército de seus espíritos reside com nossos soldados e
nossos cavaleiros (IQM 12,7-9).

Do mesmo modo, no capitulo 10 da Assunção ou Testamento de Moisés, prova­


velmente obra anterior a Macabeus, revista no final da era, o advento do Reino
de Deus é apresentado como a sequela do julgamento apocalíptico do Diabo por

“Qumran Forum Miscellanea l",JJS 43 (1992), 301-3.


O papel de Miguel como o protetor celestial de Israel pode ainda ser traçado a Daniel 10,21; 12,1.
Sua identidade como o “Príncipe da Luz”, antagonista do “Anjo das Trevas” (IQ S 3,20-22), é
geralmente reconhecida (cf. Y. Yadin, The Scroll o f the Guerra o f the Sons o f Light against the Sons
o f Darkness (1962), 235seg.). Daniel e os Kitim também figuram nos fragmentos de uma Regra
de Guerra de Qumran. Cf. G. Vermes, “The Oxford Forum for Qumran Research: Seminar on the
Rule of Guerra (4Q 285)”, JJS 43 (1992), 85-90. A liderança de Miguel do exército celestial contra
o domínio do demônio é magnificamente descrita em Ap 12,7-10: “Agora se iniciou a guerra no
céu, Miguel e seus anjos lutando contra o dragão; e o dragão e seus anjos lutaram, mas foram
derrotados ... E ouvi uma voz forte vinda do céu, dizendo, ‘Agora chegaram a salvação e o poder
e o reino de nosso Deus’...” Outro paralelo interessante pode ser encontrado em IB aruc (grego)
11,2 onde Miguel é representado como o detentor das chaves do reino do céu.
120 A Religião de Jesus, o Judeu

Deus em pessoa, em meio a terremotos e perturbações entre os corpos celestes


e a destruição simultânea dos pagãos e de todas suas abominações.

Então seu Reino aparecerá em toda sua criação;


e então o Diabo encontrará seu fim ...
Pois o ScT Celestial se erguerá de seu trono real ...
E a terra tremerá ...
E o sol não dará sua luz;
e os cornos da lua se transformarão em escuridão ...
Porque o Altíssimo ... aparecerá para punir os gentios,
E destruirá todos os seus ídolos (10,1, 3-7). 10

O tema transcendental na representação do Reino culmina na assim chamada


Liturgia Angélica ou Cantos [celestiais] do Sacrifício de Shabat no material de
Qumran (4QShirShab, HJP III, 462seg.). Este documento inclui cerca de vinte e
cinco exemplos do termo malhüt, representando, freqüentemente em contexto
fragmentário, a glória da corte celestial do divino Rei. Os poemas refletem visões
místicas e, como tais, diferentemente dos exemplos previamente discutidos, não
têm vínculo com o espaço real, mas afirmam que o Shabat, acima ou abaixo, é
celebrado ao mesmo tempo. Em linguagem pesadamente repetitiva, o salmista
canta o esplendor do céu.

Estes são os Príncipes daqueles maravilhosamente vestidos para a


celebração, os Príncipes dos Reinos (mamlahõt), o Reino dos santos do
Rei da santidade em todas as alturas dos santuários de seu glorioso Reino
(malhüt).

Enquanto esta inclinação mística não deixe de ter repercussões no Novo Testa­
mento, especialmente em Apocalipse, e mesmo, talvez surpreendentemente, em
S. Paulo (IC o r 15,25-28), resta ver se é reconciliável com a mentalidade de Jesus.
Existem, entretanto, outros aspectos da teologia intertestamentária do Reino que
devem ser definidos visando sua potencial relevância quanto ao ensinamento do
Evangelho.
Para começar, o Livro de Jubileus, de meados do segundo século a.C. (50,9-11
[HJP 111, 308-18]) descreve o Shabat como “um dia do Reino santo para sempre”.
Em outras palavras, a abstinência sabática de “todo trabalho de ocupações dos
filhos dos homens” e uma total devoção ao culto por meio de oferendas de
incenso, dons e sacrifício no santuário, simbolizam e misticamente implantam
o reino de Deus na terra.

10 Trad. J. P. M. Sweet em Sparks, A O T, 612seg. Sobre a Assunção de Moisés, ver HJP III, 282seg.
Jesus e 0 Reino de Deus 121

Idéia semelhante é expressa em outro texto do segundo século a.C., 1


Enoque (91,11-17). Na oitava semana de uma história do mundo dividida em
dez semanas, os justos julgarão os iníquos e, no final, “uma casa será construída
para o grande Rei, na glória e para sempre” (91,13). No contexto de uma versão
etíope, a casa é o novo Templo restaurado. Entretanto, se corretamente recons­
tituído, o original fragmentário em aramaico que sobrevive em 4Q introduz um
tom definitivamente escatológico na forma do “Templo do [Reijno do Altíssi­
mo”."
Ainda na estrutura de referência litúrgica e como contrapartida terrestre do
culto celestial, os sacerdotes de Qumran são descritos nas Bênçãos da Caverna I
(IQ Sb; cf. H JP III, 457seg.) como os líderes cúlticos no “Templo do Reino”.

Que vos seja permitido assistir ao serviço rto Templo do Reino e decretar
o destino em companhia dos Anjos da Presença ... por idades sempiternas
e tempo sem fim (4,25seg.).

Em acréscimo à adoção de um simbolismo não real para a representação do


Reino de Deus, os Pseudo-epígrafos também se referem às dimensões éticas do
conceito do Reino de Deus. Assim, o Testamento de Benjamin (9,1), que data,
em minha opinião, do segundo/primeiro século a.C. (cf. HJP 111.2, 744seg.),
associa a remoção do “Reino de Deus” da tribo de Benjamin com o reinicio de
“relações desregradas com mulheres”. O significado da alusão pode simplesmen­
te se referir à deposição de Saul, da tribo de Benjamin, em favor de Davi, da tribo
de Judá, como também pode, o que é mais provável, implicar igualmente que a
soberania divina não pode residir onde existe desregramento sexual. Neste caso,
o contexto é espiritual/moral sem ser necessariamente escatológico.
Ainda um exemplo de Qumran é de particular interesse para o estudo dos
Evangelhos. Num poema sapiencial da Caverna IV, o Cântico do Sábio (4Q510,
1,4; cf. HJP III, 213, n .l), cujo tom lembra os Cânticos do Sacrifício do Shabat, a
idéia do Reino figura numa cerimônia de exorcismo;

Palavras de agradecimento ... ao Deus do saber... o Deus dos deuses,


Senhor de tudo que é santo. [Seu] dom[ínio] é sobre todos os poderosos
e pelo poder de sua grande força todos ficarão aterrorizados ... pelo
esplendor da mor[ada] de glória de seu reino. E eu ... proclamo a

11 Cf. 4QEnoque g I iv em J. T. Milik, The Books o f Enoch: Aramaic Fragments o f Qumran Cave IV
(1976), 266. A reconstituição torna-se plausivel por 4 Q En Giants a 9 (ibid. 316) onde a expressão
mlkwt rhwtkh (Reino de tua grandeza) está bastante bem preservada. A dignidade real de Deus é
repetidamente confirmada em lEnoque. Em 9.4 os quatro arcanjos se dirigem a “Seu Senhor, o
Rei: ’Senhor dos senhores. Deus dos deuses. Rei dos reis! Vosso trono permanece por todas as
gerações do mundo’ “. Cf. 84,2. Sobre lEnoque, ver HJP III, 250-68.
122 A Religião de Jesus, o Judeu

majestade de sua beleza para amedrontar e ater[rorizar] todos os espíritos


dos anjos destruidores e os espíritos dos bastardos, os demônios, Lilit...

Tal associação do Reino de Deus com o terror e o medo infligidos a maus espíritos
é particularmente digno de nota em vista das curas e dos exorcismos operados
por Jesus, ligados à noção do advento do Reino de Deus.
Finalmente, uma visão político-religiosa inteiramente diferente surge do
relato de Josefo sobre a mensagem de Judas, o Galileu, criador do movimento
de resistência que causou incessante inquietação na Palestina do primeiro século
A.D. até a primeira guerra contra Roma e mais além. Denominada “a Quarta
Filosofia”, seguindo a doutrina dos fariseus, saduceus e essênios, a proclamação
de Judas lembra estranha e exageradamente a posição antimonárquica adotada
pelos israelitas na idade de Samuel (cf. acima, pp. 114 seg.). Para Samuel, a
elevação de Saul ao trono equivalia a uma traição a Deus como Rei; para Judas,
o reconhecimento da soberania divina não se conciliava com a tolerância de
quaisquer “senhores mortais” (Guerra ii.118).
A mesma idéia é atribuída por Josefo ao comandante rebelde de Massada,
Eleazar ben Jair, num discurso de exortação ã sua guarnição para que se
matassem:

Desde há muito, meus bravos homens, nos determinamos a não servir


nem aos romanos nem a qualquer outro a não ser Deus, porque só ele é
o Senhor justo e verdadeiro do homem (Guerra vii.323).

Durante e após a vida de Jesus, portanto, existia uma teologia política entre
alguns judeus, que condenava a submissão não só ao domínio imperial como a
qualquer autoridade humana, incluindo, poderia até parecer, a do Rei Messias!

3. O Reino de Deus na literatura rahínica e na liturgia da sinagoga

(a) Literatura rabinica

No fluxo dinâmico do pensamento escatológico judaico, os sábios rabínicos


dos primeiros séculos da era cristã consideravam o problema do Reino de Deus
de dois pontos de vista diferentes que, por falta de melhor distinção, podem ser
denominados teórico e prático. O primeiro se concentra nos aspectos tempo-
ral/eterno e celeste/terreno; o segundo, mais pragmático, trata da ação humana
que assegura o acesso ao Reino.

12 Os textos relevantes foram coletados e analisados em trabalhos e dicionários estandardizados.


Ver, em particular, G. Dalman, Die W orte Jesu (2* ed., 1930), 75-83 [Trad. Ing. The Words o f Jesus
(1902, 96-101]; K. -G. Kuhn, basileus, TDNT 1, 571-4;Jew. Enc. VII, 502seg. Poderia parecer que
por teocracia, neologismo grego por ele inventado (C Ap. ii,165), e que desde então se tomou
Jesus e 0 Reino de Deus 123

Como se podería esperar, algumas das explanações rabínicas “teóricas” se


prendem a ensinamentos encontrados na Biblia e em escritos intertestamentários
e os ampliam. Assim, o caráter escatológico do Reino sobressai quando contras­
tado com a realidade política do império romano de então, a “perversa m alhüt”
secular. Sua queda no final dos tempos, embora proclamada com menor força
durante a idade talmúdica do que na ideologia em voga durante a era do Segundo
Templo, permanecia continuadamente como parte da esperança escatológica do
povo judeu. Como proclama uma antiga homilia:

É chegado o tempo de demolir o reino da iniqüidade; é chegado o tempo


da revelação do Reino do céu (Pes. R., ed. Buber, 51a).

No mesmo espírito, os Targums palestinianos sobre o Cântico de Moisés (Ex


15,18) especificam que a duração do Reino de Deus “para todo o sempre” deve
ser compreendida como se aplicando a ambos os “mundos”, o presente e o
futuro. Segundo o Ms de Paris 110, o texto reza;

Os filhos de Israel dirão, “O Reino deste mundo é do Senhor, e seu é [o


Reino] no mundo que virá”.

Mais uma vez no domínio “teórico”, a dimensão celestial/terrena do Reino, nesta


seqüência particular, é impressionantemente prenunciada, com referência espe­
cial à instrumentalidade humana no midrash tanaítico Sifre sobre Deuteronômio
3 2 ,1 0 (3 1 3 ):

Até que Abraão, nosso pai, veio ao mundo, o Santíssimo, bendito seja, era
(como se fosse) o único rei do céu, pois está escrito, “O Senhor, o Deus
do céu, que me tomou...” (Gn 24,7). Mas quando Abraão, nosso pai, veio
ao mundo, ele o fez rei sobre o céu e a terra, pois está escrito “Eu te farei
jurar pelo Senhor, o Deus do céu e da terra” (Gn 24,2).

No pensamento bíblico e intertestamentário, quando o estabelecimento do Reino


de Deus é visto como já mediado, ele é usualmente atribuído ao Messias,
vitorioso na batalha, com ou sem o suporte angélico. Aqui ele é creditado ao
prosélito Abraão, sendo que a idéia subjacente é que o pai de Israel, ele próprio
convertido da idolatria e do culto astral, era responsável pela disseminação da
verdadeira religião e, com ela, do reconhecimento progressivo do domínio de
Deus sobre a humanidade.'^

internacionalmente corrente, Josefo heleniza até mesmo a idéia do Reino de Deus.


13 Cf. S &T, 79seg. Abraão como o primeiro pregador do monoteísmo já figura em Josefo, Aní. i.l5 5 .
É interessante notar que em Tanhuma Leh lehá 6, 63, um prosélito é mais querido de Deus do
que um judeu de nascimento porque os israelitas abraçaram a Lei no Sinai somente como
124 A Religião de Jesus, o Judeu

Além da questão teórica referente à natureza do Reino de Deus, os rabis


tinham de se defrontar também com o problema prático de como indivíduos
podiam se relacionar com este Reino, como deveríam assumir “o jugo do Reino
do céu” (“õl màlhüt shamayim).
A atitude rabínica básica parece ser que a aceitação do Reino é idêntica a
um ato inicial de fé no Deus único e verdadeiro, e é realizado, de fato, pela
recitação do Shemd. (Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um”.)
Esta expressão de fé representa de modo positivo um reconhecimento da
soberania de Deus e, ao mesmo tempo, negativamente, uma rejeição da idolatria
(Sifre sobre Nm. 15,39 [116]. Raban Gamaliel II, apesar de sua própria dispensa
de que o noivo recitasse obrigatoriamente o Shemá na “primeira noite”, decidiu
ignorar esta isenção por ocasião de seu próprio casamento, porque não desejava
“deixar de lado o Reino do céu nem por um momento” (mBer 2,5).
É necessário enfatizar que o reconhecimento da soberania de Deus não é
apenas o primeiro e principal ato de religião, mas tem prioridade lógica e
cronológica sobre o cumprimento, por parte do indivíduo, dos preceitos da Torá.
A maneira como esta questão exercitou a mente dos tanaim é indicada na
discussão de Rabi Josué ben Qorhan, no mesmo capítulo da Mishná, sobre elo
entre o Shemá e suas bênçãos:

Porque a seção “Ouve, ó Israel” precede “E obedecerás os meus


mandamentos”? É para que se aceite primeiro o jugo do Reino do céu e
depois o jugo dos mandamentos (mBer 2,2).''*

O mesmo ensinamento está incluído num comentário tanaítico anônimo sobre


o primeiro dos Dez Mandamentos e ê passado na forma de uma parábola real.

Não terás outros deuses perante mim (Ex 20,3). Por que isto é dito? Porque
Ele disse, Eu sou o Senhor teu Deus (Ex 20,2). Eis uma parábola sobre um
rei de carne e sangue que entrou numa província. Seus ministros lhe
disseram: Publicai decretos relativos a eles (os habitantes)! Ele lhes disse,
Não, quando aceitarem minha malhut, eu publicarei decretos para eles,
pois, se não aceitarem minha malhut, como cumprirão meus decretos?
Do mesmo modo Deus disse a Israel: Eu sou o Senhor teu Deus: não terás
outros deuses: Eu sou aquele cuja malhut aceitaste no Egito. Eles Lhe
disseram: Sim, sim. Agora, como aceitaste minha malhut, aceita também

resultado de fenômenos assustadores em tomo da teofania, enquanto o prosélito aceita o Reino


de Deus sem sinais e acontecimentos maravilhosos!
14 Outro Taná, Rabi Eleazar ben Azaria, parece propor uma opinião diferente quando identifica fuga
da transgressão, isto é, obediência aos mandamentos com a aceitação do jugo do Reino. Cf. Sijra
(ed. Weiss) 93d.
Jesus e 0 Reino de Deus 125

também meus decretos; Não terás outros deuses diante de mim (Mekhilta
sobre Ex. 20,3, II, 237seg.)-

(b) A liturgia da sinagoga

Se a literatura rabínica ecoa a idéia do judeu pensante, a liturgia reflete a do


judeu em prece. É pois conveniente lançar um rápido olhar sobre os conceitos
do Rei e do Reino divino no antigo culto judaico. Já que a maioria das fórmulas
litúrgicas foi transmitida anonimamente, sua datação é ainda mais difícil do que
a dos pronunciamentos preservados na literatura talmúdica. Mas mesmo assim,
a antiguidade de alguns textos relativos ao Reino de Deus é razoavelmente
segura.
Desses textos, a prece conhecida como “Reinos” (malhí^íõí ou malhüiyõt),
uma coleção de dez versos bíblicos relevantes, é provavelmente anterior ã
destruição de Jerusalém em 70 A.D. Dois pesquisadores de primeira linha, Adolf
Büchler e Joseph Heinemann, argüiram que era parte do serviço do Ano-Novo
(Rosh ha-Shaná) no próprio santuário.'^
O objetivo da oração, que é parte da chamada Amidá durante o Festival do
Ano-Novo e discutida na Mishná (mR.Sh. 4.5), é a proclamação litúrgica da
supremacia de Deus sobre o universo. Em sua forma atual, é uma composição
dividida em três partes, incluindo três versículos da Torá (Ex 15,18; Nm 23,21;
Dt 33,5), três dos Salmos (22,29; 93,1; 24,7) e três dos Profetas (Is 44,6; Ab 8,21;
Zc 14,9) e culmina, previsivelmente, com o Shemá (Dt 6,4). Sua associação com
a festa de Rosh ha-Shaná, a comemoração anual da criação, é muito apropriada,
porque é em sua capacidade de criador do céu e da terra que se fundamenta, em
última instância, o Reino universal de Deus.
Outras fórmulas litúrgicas antigas, tais como “Nosso Pai, nosso Rei” (Avinií
malkenü) e especialmente o Kádish, são consideradas tanaíticas em sua essência,
mas não necessariamente anteriores a 70 A.D. (Heinemann, ibid. 24, 150). O
Kádish aramaico, de que trataremos novamente em relação ao Pai Nosso (cf. p.
178 adiante), se inicia com um fervente apelo para a rápida instituição da
malhütá. Como isto deve se concretizar, se através da devoção universal ou de
um ato escatológico, infelizmente não é explicado.

Possa ele estabelecer seu reino em tua vida e nos teus dias e em vida de
toda a casa de Israel, depressa e dentro em pouco!

15 A. Büchler, Types o f Jew ish Palestinian Piety (1922), 236-40; J. Heinemann, Prayer in the Talmud
(1977), 94, n. 2 6 ,1 2 8 .
126 A Religião de Jesus, o Judeu

Finalmente, deveria ser lembrado que a expressão “Rei do universo (mélech


ha-"õlam) é parte integral da abertura de todas as fórmulas de bênçãos: Bendito
sejas Tu, ó Senhor nosso Deus, Rei do Universo. A crença num Deus soberano
pareceria, portanto, pertencer ao núcleo da devoção judaica tradicional. Mas
ainda assim, sugere-se que sua ausência da Amidá (ou Dezoito Bênçãos) que,
como nos dizem, ainda estava sendo reformulada em fins do primeiro século
A.D., indica que as palavras são posteriores ao Segundo Templo, mas, já no
terceiro século, qualquer bênção que não mencionasse o Reino de Deus não era
reconhecida como uma berahá genuína (bBer.lTa).*®
Contra a teoria de Heinemann, questionando o uso regular, no primeiro
século A.D., de mélech ha-õlam (“Rei do universo” ou “Rei da idade”), pode ser
útil notar que a expressão grega, “o Rei das idades" (tõn aíõnon), correspondendo
ao hebraico mélech ha-õlamim e ao aramaico mélech ‘almaya, é empregado por
três vezes em contextos litúrgicos no Novo Testamento (ITm 1,17; 6,15; Ap
15,3), textos que datam do final do primeiro século A.D.
Esta visão de conjunto da noção do “Reino de Deus” seguiu o desenvolvi­
mento histórico das imagens desde a Bíblia até os tanaim. Como vimos, alguns
dos traços são limitados a períodos determinados, enquanto outros abrangem
várias épocas, modificando-se mutuamente no processo. É somente num quadro
desta espécie que o ensinamento dejesus pode ser apreendido apropriadamente
como parte da evolução da ideologia religiosa no judaísmo.

II O Conceito dejesus sobre o Reino de Deus

Nos documentos examinados até agora, o Rei divino e o Reino divino apareceram
como noções recíprocas, com a preponderância dos termos concretos, “Rei” e
“reinar”. Como foi sugerido, o substantivo abstrato “Reino” é uma raridade. O
caso dos Evangelhos é o reverso, mesmo no Novo Testamento como um todo.
Jesus nunca se dirige a Deus como “Rei”; na verdade, este título aparece muito
raramente mesmo fora de citações diretas. A terminologia judaica usual de prece,
“Senhor, Deus do universo”, em nenhum ponto é associada a Jesus, embora
figure em fórmulas litúrgicas em dois escritos mais tardios do Novo Testamento,
ITm 1,17; 6,15 e Ap 15,3.'^

16 Cf. J. Heinemann, op. cit., 92-94. É curioso observar que, enquanto na recensão palestina da
Amidá o termo “Rei” nunca se refere a Deus, ele figura oito vezes na versão babilônia. Um
precedente um tanto diferente pode ser encontrado em Tb 13,1, onde a prece de Tobit começa
com a seguinte bênção: “Bendito seja Deus que vive eternamente e bendito o seu reino”.
17 A última passagem é atestada em duas formas, “Rei das idades” e “Rei das nações” (cL p . 126
acima).
Jesus e 0 Reino de Deus 127

As duas únicas designações de Deus como “Rei” estão preservadas no


Evangelho de Mateus, sendo o primeiro caso no Sermão da Montanha, quando
Jesus dissuade seus seguidores de fazer votos, mesmo usando um substituto para
o nome de Deus, como, por exemplo, Jerusalém (cf. capítulo 2, pp. 39 seg.);

Mas eu vos digo: Nào jureis de todo, nem pelo céu ... ou por Jerusalém,
porque é a cidade do grande Rei (Mt 5,34seg.).

Já que a expressão em itálico é uma citação livre da versão grega de SI 48,2,


atribuindo ressonância escriturai à sentença, ela representa, provavelmente,
muito mais um conhecimento de Mateus do que qualquer expressão original de
Jesus.
A segunda ocorrência se encontra na parábola do Julgamento Final (Mt
25,31-46). Em sua forma atual é uma cena de Parusia, com a volta do Cristo no
papel principal. Mas se a interpretação proposta anteriormente (cf. cap. 4, p.
106) for adotada, a forma antiga da parábola alude a procedimentos escatológi-
cos, liderados por um Juiz divino identificado como “o Rei” (Mt 25,24,40).^®
Mesmo se essas duas passagens fossem parte do autêntico ensinamento de
Jesus, seria difícil de argüir que Deus qua Rei era uma idéia central em seu
pensamento. Mas enquanto nenhuma das duas pode ser atribuída a ele com
alguma certeza, surge a surpreendente situação na qual um mestre religioso, cuja
mensagem se concentra na pregação do Reino de Deus, evita deliberadamente,
mesmo em suas preces —onde poderia aparecer mais naturalmente —, a aplicação
da metáfora real comumente empregada para a Deidade. Esta observação
demonstra a necessidade de investigar a estrutura de um “Reino” ao qual falta o
símbolo complementar de um “Rei”, especialmente quando este fenômeno
combina com a conclusão apresentada em Jesus the Jew (pp. 128-56) de quejesus
não estava ansioso em se identificar como o “Rei-Messias”.
A evidência do Evangelho será, pois, examinada em três seções: (1) o Reino
nas parábolas de Jesus; (2) o Reino nas suas proclamações proféticas; e (3) o
Reino em suas sentenças e ordens.

I. O Reino nas parábolas de Jesus

Enquanto as duas noções “parábola” e “Reino de Deus” são quase sempre


associadas automaticamente pelos intérpretes do Novo Testamento, como fiCa
evidente no titulo da renomada monografia de C. H. Dodd, The Parables o f the
Kingdom, a análise que segue se restringe às unidades literárias nas quais as

18 A reformulação da parábola por Mateus (e pela igreja cristã) já tinha sido observada por Bultmann
(HST, 124).
128 A Religião de Jesus, o Judeu

expressões “a basíleia (Reino) do céu" ou “a basíleia de Deus” realmente figurem.


Já que no capítulo anterior examinamos estas e todas as outras parábolas de
maneira geral, deve-se focalizar a atenção exclusivamente em seu aspecto de
“Reino”. A tarefa não é tão fácil, como se poderia esperar, porque nenhuma
parábola se propõe definir a natureza do Reino de Deus. Talvez isto não seja
surpreendente. Jesus, o mestre existencial, se preocupava mais com a atitude e
o comportamento do homem para com o Reino do que com a essência e a
estrutura desse Reino.
Num primeiro grupo de textos, o tema comum é a evolução que leva o Reino
de Deus desde a latência até a revelação completa.
Na Parábola da Semente que Cresce em Segredo (Mc 4,26-29), o Reino não
é o semeador, nem a semente, e menos ainda o campo. É antes a ação combinada
de todos os três, o plantio do semeador, o germinar da semente e o campo que
proporciona abrigo e alimento. Os três em conjunto constituem uma realidade
oculta que se tornará manifesta em tempo próprio. Da mesma forma, a semente
de mostarda (Mc 4,30-32, etc.), enterrada no solo e brotando até se tornar um
grande arbusto, reflete secretamente um crescimento paradoxal. Assim como no
caso do fermento (Mt 13,33; Lc 13,20seg.), aquele pedacinho de massa fermen­
tada, acrescentada pela dona da casa a uma quantidade muito maior de farinha,
faz com que, estranhamente, a mistura se torne o pão que dá a vida.
Todas as três parábolas enfatizam a misteriosa natureza da realização do
Reino, algo que já é real, embora também esteja sub-repticiamente avançando
para seu final predeterminado. Mas esta realidade que evolui de modo enigmá­
tico requer a colaboração humana. A semente deve ser plantada e o fermento
misturado por homens e mulheres. As qualidades éticas e religiosas exigidas das
pessoas envolvidas não são reveladas aqui, mas aparecerão em outros contextos.
O fator tempo desempenha um papel crucial. As parábolas das Ervas
Daninhas e da Rede consideram o Reino no presente como oposto ao futuro. A
boa semente e as ervas daninhas coexistirão até a colheita (Mt 13,24-30; 36-43);
o peixe próprio ou impróprio ao consumo, que enche a rede do pescador, deve
ser separado quando esta chegar às margens (Mt 13,47-50). Em ambas as
narrativas, Mateus introduz o que parece ser um clímax escatológico secundário
à custa da mensagem existencial imediata.
Duas parábolas sobre festas de bodas sugerem um fim iminente, mas o
julgamento final é ainda esperado com um elenco indiferenciado de atores. A
história das bodas reais (Mt 22,2), uma das raras parábolas do Reino em que
figura um rei ou, na apresentação de Lucas, as bodas arranjadas por um
proprietário de terras para seu filho (Lc 14,16,21) e o incidente das dez virgens
que esperam a chegada do noivo e da noiva (Mt 25,1-13), consideram o símile
do Reino como incluindo participantes dignos e indignos. Mas mesmo aqui, o
Jesus e o Reino de Deus 129

desenrolar temporal é vago. A única instância na qual um marco temporal


específico é mencionado é na versão de Lucas da parábola da Figueira, cujas
folhas revelam a proximidade do verão, vale dizer, o início do Reino (Lc
21,29-31). Sua mensagem é conflitante, como foi mostrado (cf. cap. 4, p. 99, n.5),
com a genuína antipatia de Jesus para aqueles que tinham fome de sinais. Talvez
não seja por acidente que tanto o termo “parábola” quanto a expressão “Reino
de Deus” não apareçam nas passagens paralelas em Mc 13,28seg. e Mt 24,32seg.
Um segundo grupo de parábolas focaliza a atitude correta a ser adotada
pelos colaboradores do Reino. Deverá ser notado que todas as passagens provêm
do Evangelho de Mateus. Apesar disso, embora não expressamente vinculadas
ao tema do Reino, as idéias que contêm são comuns a todas as camadas da
tradição do Evangelho.
A primeira qualidade moral, e talvez a mais importante, é a absoluta
dedicação à tarefa, um empenho em concentrar deliberadamente todos os
esforços a esta tarefa e em tudo sacrificar para conseguir realizá-la, o que é
exemplificado nas parábolas do Tesouro Oculto e da Pérola Preciosa (Mt
13,44-46; cap. 4, pp.l02 seg.). Outras referências explícitas a virtudes éticas e
religiosas aparecem na parábola do Servo Cruel (Mt 18,23-35; cf. cap. 4, p.lO l
seg.), dos Lavradores no Vinhedo (Mt 20,1-16; cf cap. 4, pp.lOO seg.) e a parábola
dos Dois Filhos (Mt 21,28-32; cf. cap. 4, p.lOO). A primeira enfatiza a generosi­
dade; a segunda transmite uma dupla mensagem de liberalidade e uma denúncia
paralela do ciúme; na terceira, a palavra-chave é arrependimento/teshuvá.
Além das parábolas que mostram exigências explicitas quanto à correta
reação moral, muitas parábolas do Reino contêm sugestões não formuladas
quanto aos diversos aspectos do comportamento correto. A mais importante é
emuná, a confiança total na intervenção de Deus; o semeador, tendo plantado a
semente, o pescador, tendo lançado a rede, a mulher, tendo levedado a massa,
devem confiar a Deus, com toda segurança, o resultado bem-sucedido de seus
trabalhos.*®

2. O Reino em proclamações proféticas

Como se pode lembrar do capítulo anterior (4, p.75), a quintessência do


querigma ou pregação tanto de João Batista quanto de Jesus era a iminência, na
verdade, a nascente presença do Reino de Deus:

19 As expressões “segredo(s) do Reino de Deus/céu” ou “palavra do Reino” opostas a parábolas (Mc


44,11
11 nar
par.;M
■Mtt 13,19) e “o escriba preparado para o Reino do céu”, não contribuem especialmente
ao nosso problema
blema.
130 A Religião de Jesus, o Judeu

Arrependei-vos, pois o Reino do céu está próximo (Mt 3,2 [João]; 4,17
[Jesus]).

O tempo está esgotado, e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos


e acreditai no evangelho (Mc 1,15).

O verbo “estar próximo” empregado tanto por Marcos quanto por Mateus
(engizein) é parte do vocabulário escatológico da profecia biblica (cf. Is 50,8;
51,5; Ez 7,7[4]). Expressa uma iminência dramática, só igualada pela expressão
“consumação do tempo” de Marcos. Como nas parábolas estudadas anteriormen­
te, o Reino, embora ainda não inteiramente presente, não é considerado como
uma realidade futura. Seu pronto estabelecimento deve ser realizado pela teshuvá
que já nos é familiar. A mesma nota de urgência soa ainda mais alto numa
sentença de Q, na qual um exorcismo divinamente apoiado é representado como
indicando o início do Reino. Em contexto polêmico, Jesus exclama;

Mas se é pelo espírito (Mt)/o dedo (Lc) de Deus que eu expulso demônios,
o Reino de Deus chegou para vós (Mt 12,28/Lc 11,20).

Geralmente reconhecida como autêntica, mesmo por Bultmann (HST, 162), a


declaração equaciona maestria carismática das forças do mal com a súbita
manifestação da vitória e dominação divinas, a revelação do Reino de Deus já
em ação.“
Outro anúncio “profético” da chegada do Reino é transmitido em outra
passagem de Q (Mt 11,12/Lc 16,16) de alguma notoriedade, pois determina
especificamente o momento representativo do início da nova era.

Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do céu sofreu violência
e homens violentos o tomaram pela força (Mt).

A Lei e os Profetas existiram até João; desde então, é pregada a boa nova
do Reino de Deus, e todos entram nele com violência (Lc).

A maioria dos estudiosos toma as frases associadas ã violência em sentido


pejorativo, aludindo a inimigos satânicos ou humanos, mas especificamente aos
zelotes/sicários, cuja atividade prejudica o domínio real de Deus (Cf. TDNT I,
609-14). É possível que estejam enganados, não reconhecendo o costumeiro

20 Pensa-se que o verbo empregado nos Evangelhos, phthánein, ecoa o aramaico m eta’ com fortes
conotações escatológicas. Cf. G. Dalman, Worte, 87seg.; M. Black, Aramaic Approach, 211. Da
mesma forma a instrução dada por Jesus aos setenta discípulos, embora seja provavelmente uma
formulação da igreja, segue o mesmo esquema, associando a iminência do Reino à cura
carismática (Mt 10,7; Lc 10,9). Sobre a cura como fenômeno escatológico, cf. IQS 4,6; 4Q 521
(JJS 43 (1992), 303); Tg Neof, Ps-jon sobre Gn 3,15, etc.
Jesus e 0 Reino de Deus 131

exagero de Jesus em retratar seu próprio sucesso, e o de João antes dele, ao


proclamar o advento do Reino. As multidões excitadas de judeus, abrindo o
caminho a cotoveladas para se aproximar do famoso pregador, sugerem ajesu s
a cena dos guerreiros, avançando para conquistar. Dal, mais uma vez, nos
confrontamos enfaticamente, desde o ministério do Batista, e especialmente o de
Jesus, com um Reino de Deus tanto imaginado comojá realizado (cLjW J, 157seg.
n. 57).
A mesma idéia, se bem que sem as imagens e com a rejeição de indicadores
sobrenaturais, é adiantada fortemente, numa declaração preservada apenas em
Lucas.

O Reino de Deus não chegará com sinais que possam ser observados; nem
será dito, Ei-lo aqui, ei-lo ali! Pois o Reino de Deus está entre vós (Lc
17,20).“

Não pode haver dúvida de que Jesus afirmou, repetidas vezes, que o Reino de
Deus pertencia aos seus, neste momento e lugar ou, em hipótese pior, estava
muito próximo. Assim sendo, que devemos fazer com as afirmações a ele
atribuídas e que conotam um futuro mais distante? De inicio, Mc 9,1 e seus
paralelos apregoam que, enquanto era esperado que a manifestação do Reino
ocorresse em vida dos contemporâneos de Jesus, apenas “alguns” deles teriam
o privilégio de testemunhá-lo, assegurando assim, implicitamente, que os outros
seriam excluídos.

Em verdade vos digo, alguns dentre os aqui presentes não provarão a


morte antes de ver que o Reino de Deus chegou com força (Marcos).

A declaração é passada sem contexto literário-religioso, desligada do que precede


ou se segue. Bultmann estava correto ao descrevê-la como uma “fórmula conso­
ladora comunitária em vista do atraso da Parousia” (HST, 121) no cristianismo
primitivo, sendo enfatizada a promessa de que pelo menos “alguns” viveriam o
bastante para testemunhar o dia.
Novamente, a suposta menção dejesus, na última ceia, de não tornar a beber
vinho até sua chegada “ao Reino de Deus” (Mc 14,25; cf. 26,29; Lc 22,16),
provoca imediatamente no leitor a sensação de uma “lenda de culto” sem base
histórica, para empregar, mais uma vez, a terminologia de Bultmann (HST, 265).

21 Cf, Mc 8,12;13,21/M t 24,23. Contra esta doutrina da não existência de sinais extraordinários a
não ser curas e exorcismos carismáticos, a descrição apocalíptica da volta do Cristo, o “sinal do
filho do homem", se manifesta como contraditória e estranha, com seus tumultos celestes c
terrenos (Mc 13,24seg./Mt 24,29seg./Lc 21,25seg.). Se provas da inautenticidade das imagens
de Parousia vinculadas ajesu s forem necessárias, não é preciso ir adiante.
132 A Religião de Jesus, o Judeu

Finalmente, o estabelecimento do Reino após o Julgamento, combinado com


a rejeição dos judeus e sua substituição pelos gentios, formando uma doutrina
eclesiástica, se jamais existiu, é atestada em Mt 8,llseg./Lc 13,28seg.:

Muitos virão do oriente e do ocidente e se sentarão ... no Reino do céu,


enquanto os filhos do Reino serão lançados às trevas (Mt).

No que tange a Jesus, aceitar ou rejeitar a autenticidade desta declaração não se


constitui em negação de um lugar positivo para os gentios em seu pensamento.
Elementos universais vêm á tona na passagem relativa ao amor ao inimigo,
estereotipadamente um não-judeu, à imitação de Deus que “faz surgir o sol sobre
o mal e o bem, e faz chover sobre o justo e o injusto” (5,45/Lc 6,36). Uma posição
semelhante está implícita na célebre máxima atribuida a Hilel, contemporâneo
mais velho de Jesus, e que sobreviveu na Mishná, na qual a simpatia deve ser
mostrada não para com Israel, mas a todos os seres humanos:

Sede como os discípulos de Aarão, amando a paz, buscando a paz, amando a


humanidade (ha-beriyõt) e trazendo-os para perto da Torá (mAb 1,12).

3. O Reino nos pronunciamentos e mandamentos de Jesus

Ainda outra coletânea de citações do Evangelho trata do pensamento de


Jesus quanto à atitude a ser tomada em relação ao Reino, assunto já mencionado
em algumas das parábolas. Estando a questão no cerne da mensagem de Jesus,
os sinóticos, como era de se prever, preservaram uma boa quantidade de
instrução a este respeito.
A primeira questão a ser examinada é como Jesus encarava a “entrada” no
Reino de Deus. Uma precondição diz respeito a bens mundanos. Expressa
negativamente, é quasi impossível que um rico tenha acesso ao Reino, como é
vividamente patente no pronunciamento relativo à passagem de um camelo pelo
buraco de uma agulha (Mc 10,23-25 par.; cf. cap. 4, p. 83), cuja autenticidade é
tão certa quanto a de outra qualquer (cf. Bultmann, HST, 105). Positivamente, a
pobreza real parece constituir um sine qua non. Na primeira bem-aventurança,
especialmente na versão de Lucas, Jesus declarou absolutamente que os pobres
por ele instruídos eram cidadãos do Reino:

Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso será o Reino de Deus


(Lc 6,20).

Como se sabe, a versão de Mateus acrescenta a qualificação “em espírito” aos


“pobres” de Lucas, e transforma o discurso direto numa declaração descritiva:
Jesus e 0 Reino de Deus 133

Bem-aventurados os pobres em espírito porque deles é o Reino do céu


(Mt 5,3).

A alteração é sem dúvida deliberada e pode ter antecedentes literários. A julgar


pelos paralelos de Qumran, os “pobres em (ou de) espírito” ( ‘nwy rwh) no Rolo
da Guerra (cf. IQM 14,7) são os dóceis e humildes da idade final. A mesma
expressão aparece também numa seção fragmentária do Rolo dos Hinos, recons­
tituído por E. Puech, e que pode representar a série das bem-aventuranças dos
essênios, o que ocorre também com uma composição de cunho sapiencial da
Caverna 4 (4Q Beat);

[Bendito é] ... com um coração puro


e não calunia com sua língua.
Benditos aqueles que obedecem a Teus preceitos
e não seguem os caminhos da iniquidade.
Benditos aqueles que juram por Teus preceitos
e não se desviam nos caminhos da insensatez.
Benditos aqueles que os procuram com mãos puras
e não com um coração traidor.
Bendito o homem que alcançou a sabedoria
e caminha na Lei do Altíssimo ..

É digno de nota que os exegetas do Novo Testamento tendem a atribuir um


significado escatológico à versão de Mateus das Bem-Aventuranças, apontando
para o tempo futuro dos verbos subseqüentes (os enlutados, os dóceis, os
famintos serão confortados, herdarão a terra, serão saciados).
Resumindo, enquanto a formulação de Lucas — “pois vosso é o Reino” —
reflete corretamente a perspectiva de premência de Jesus, o hino de Qumran
apóia a interpretação do futuro de Mateus.
A segunda condição essencial para a submissão ã soberania de Deus é uma
atitude interior da mente, a simplicidade de uma criança. Em formulação que
varia ligeiramente, a mensagem é repetida nos três Evangelhos Sinóticos, sendo
que Marcos e Lucas prescrevem uma atitude de criança como uma precondição
para a verdadeira participação.

22 Cf. E. Puech, “Un hymne essénien en partie retrouvé et les Béatitudes”, Mémorial Jean Carmignac,
R Q13, nos 49-52 (1988), 59-88. A principal diferença estrutural entre Mateus e 4 Q Beat é que
no primeiro, cada bênção é acompanhada pela menção de sua recompensa, enquanto 4 Q Beat
consiste de paralelismos comuns, na maioria antitélicos. Mateus (5,10) também representa os
“perseguidos por sua retidão” como possuidores do Reino.
23 Cf. recentemente, W. D. Davies e D. C. Allison, The Gospel according to St Matthew I (1988), 445seg.
Observar que a passagem de Mateus 7.21 — Nem todos os que clamam Senhor, Senhor, entrarão
no Reino de céu — contém igualmente uma conotação de Parusia. C f Davies e Allison, op. cit.,
711-14.
134 A Religião de Jesus, o Judeu

Em verdade vos digo, quem não receber o Reino de Deus como uma
criança não entrará nele (Mc 10,15/Lc 18,17).

A frase é interessante porque reflete uma expressão rabínica típica “receber [o


jugo] do Reino do céu” (cf. acima pp. 123 seg.), ao lado da terminologia corrente
do Evangelho, “entrar”. Mt 18,3, em contraste, substitui “receber o Reino de Deus
como uma criança” pela expressão mais concreta “se não vos converterdes e não
vos tomardes como as crianças”. Mas a mensagem essencial permanece inalte­
rada, a confiança, a emuná de uma criança é a conditio sine qua non do acesso ao
Reino.
Se a falta de refinamento do imaginário referente à pobreza e à confiança
incondicional pode ser tomada como marca do pensamento de Jesus, a classifi­
cação especulativa, distinguindo entre “o maior e o menor no Reino”, pareceria
mostrar uma mentalidade eclesiástica, como é evidente em Mt 5,19seg., onde a
negligência do menor dos mandamentos da Torá relega uma pessoa a ser a menor
no Reino do céu. Mesmo assim, segundo a polêmica de Mt 11,11/Lc 7,28,
dirigida a João Batista, o menor no Reino tem precedência sobre o Batista, o
maior “entre os nascidos de mulher”. ! 24
Um grupo final de pronunciamentos define, geralmente em forma de um
exagero de expressão típico de Jesus, a disposição exigida daqueles que se
voluntariam para o trabalho do estabelecimento do Reino, vale dizer, uma
devoção sem reserva exigida pelo final dos tempos. Lembrando a interpretação,
sugerida anteriormente (cf. cap. 2, pp. 33-35), da injunção “Deixa que os mortos
enterrem seus próprios mortos, mas quanto a ti, vai e proclama o Reino de Deus”
(Lc 9,60; cf. Mt 8,22): este provérbio, se é um provérbio, bem como a proibição
ao arador de olhar para trás (Lc 9,62), sugere que sem uma entrega incondicio­
nal, instantânea e resoluta à causa do Reino de Deus, ninguém é um colaborador
digno. A implicação moral das parábolas do Tesouro Oculto e da Pérola Preciosa
(cf. acima pp. 102 seg.) é que o acesso ao Reino ultrapassa em valor todas as
posses. A mesma idéia é expressa, em sentido contrário, quando Jesus assegura
àqueles que buscam o Reino que todas as suas necessidades materiais serão
satisfeitas (Mt 6,33/Lc 12,31). Ainda mais surpreendente é sua declaração,
esplendidamente preservada em Mc 9,47;

24 A atividade criativa da igreja de Mateus deveria também ser creditada com as passagens nas quais
a mãe dos apóstolos Tiago e João pede lugares privilegiados para seus filhos no Reino de Jesus
(Mt 20,21) e a estipulação teológica de que a retidão m aior que a dos escribas e dos fariseus basta
para entrar no Reino (Mt 5,20). Esta afirmação contrasta gritantemente com a declaração
atribuída a Jesus em Mc 12,32-4 de que um escriba que aprovasse seu sumário do judaísmo
consistindo apenas do Shemá, combinado com o amor a Deus e ao próximo, “não estava longe
do Reino de Deus".
Jesus e 0 Reino de Deus 135

Se teu olho te faz pecar, arranca-o; é melhor para ti que entres no Reino
de Deus com um olho só do que ser lançado ao inferno com dois.^’

Porém a hipérbole mais chocante e pitoresca que descreve a entrada no Reino é


aquela que propõe, como meio de alcançá-la, o ato de castração, proibido pela
Bíblia (Dt 23,1). Está aposta como uma advertência de Jesus à reação de
desapontamento de seus discípulos ao ouvirem sua determinação de que o
divórcio é legal apenas por motivo de “falta de castidade” (Mt 19,1-10).

Ele lhes disse: Nem todos os homens sâo capazes de receber esta palavra,
mas só aqueles a quem é concedido. Pois há eunucos que o sâo desde o
nascimento e há eunucos que foram feitos eunucos pelos homens e há
eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino do céu (Mt 19,1 Iseg.).

A sentença parece imprópria no contexto e é preferível considerá-la inde­


pendentemente. Caso, como é usualmente explicado, o significado pretendido
seja que na era escatológica os verdadeiros devotos deveriam renunciar ao
casamento, a força da metáfora do Evangelho sugere um autor com a originali­
dade e poder retórico de Jesus. Em contraste, Rabi Simeon ben Azai, que não era
casado, justificou seu estilo de vida “heterodoxo”, em conflito com o mandamen­
to “Crescei e multiplicai-vos!”, com uma apologia poética;

Minha alma está enamorada da Torá. O mundo pode continuar com


outros. (yYeb. 63b).

III A Verdadeira Mensagem do Verdadeiro Jesus

Passemos agora a uma breve síntese em forma de respostas às três perguntas


que figuram na página de abertura deste capítulo; “o que é o Reino?”, “quando
virá?” e “como entrar nele?”.

1. Que vem a ser o “Reino de Deus” de Jesus?

Em retrospecto, não é necessário enfatizar que Jesus, em parte alguma,


esclarece distintamente seu conceito de “reino”; mesmo na linguagem metafórica
das parábolas, sua abordagem é oblíqua e sua descrição indistinta. O Reino de
Deus é um mistério atingível apenas com a cooperação humana. O clímax é
inesperado, súbito e imediato, numa manifestação não anunciada, mas triunfan-

25 o paralelo em Mt 18,9 substitui o Reino por “vida". Em Mt 5,29seg. o termo é omitido. Na


formulação de Mateus, a automutilação tem o intento de evitar a Geena; Jesus a encoraja, é
desnecessário dizer, com exagero retórico, para assegurar a salvação.
136 A Religião de Jesus, o Judeu

te, do poder divino. No pensamento de Jesus, a natureza do Reino vem após o


papel a ser desempenhado pelos atores do drama, ele próprio e seus adeptos,
para introduzi-lo. O “que” do filósofo cede o lugar ao “quando” e “como” do
profeta e mestre de sabedoria. Não é, pois, surpreendente que grande parte do
material conservado se refira às qualidades morais e religiosas requeridas
daqueles que buscam o Reino e a exigência da missão que os confronta.
Talvez o aspecto mais paradoxal do ensinamento sobre o Reino do céu que
pode seguramente ser atribuido ajesu s é que, diferentemente do Deus da Biblia
e da literatura rabinica, o Deus de Jesus não é uma figura régia, mas é modelado
em escala menor e logo mais acessivel. É concebido na forma do homem
influente, familiar ajesus e a seus ouvintes, o proprietário abastado e paterfam i­
lias da Galiléia rural. Como argumentei em outro lugar, a principal característica
da doutrina de Jesus é que ela “transforma em realidade os ingredientes “irreais”
do imaginário herdado sobre o Reino” (JWJ, 36).

2. Quando Jesus esperava o advento do Reino?

Uma vez que no ensinamento cristão a manifestação do Reino de Deus deve


coincidir com a Parusia ou segundo advento de Cristo, a princípio acreditado
como iminente mas progressivamente adiado e finalmente relegado a um final
dos tempos infinitamente remoto (cf. JW J, 24), é de esperar que se possa
descobrir as origens deste desenvolvimento doutrinai nos próprios Evangelhos.
Alguns traços podem ser detectados. Jesus não deve tocar vinho até que possa
bebê-lo novamente no Reino (Mc 14,25par.); alguns de seus discípulos morrerão
sem testemunhar o advento do Reino (Mc 9,1); e, ainda adiante, o Reino será
herdado pelos gentios depois que os judeus forem privados de seu direito nativo
de nele participar (Lc 13,27-29/Mt 8,llseg .). Mas estas são versões cristãs do
Evangelho. O ensinamento que pode ser genuinamente atribuído ajesu s teste­
munha uma posição diferente.
Em proclamações explícitas, o Reino de Deus não é uma realidade distante,
mas, desde que João Batista o anunciou, “está próximo” (Mc l,15par.), “chegou
para vós” (Mt 12,28par.) e está “em meio de vós” (Lc 17,20seg.). Sua presença
oculta, porém ativa, sublinha também as parábolas de cunho agrícola, de pesca
e de trabalhos domésticos. Imbuído de entusiasmo escatológico, Jesus via a si
próprio e a sua geração como já pertencentes aos estágios iniciais do Reino e
chamados a apressar sua manifestação final. A mensagem dos textos está patente,
e o único obstáculo que impede os cristãos de aceitá-la sem reservas é que, após
mais de mil e novecentos anos, ela ainda não se concretizou.
Renomados exegetas do Novo Testamento neste século propuseram slogans
impressionantes ao descrever a doutrina escatológica dejesus relativa ao Reino.
Albert Schweitzer a denominou de “escatologia consistente (konsequente)”, se-
Jesus e 0 Reino de Deus 137

gundo a qual o advento do Reino de Deus deveria ter ocorrido no decorrer do


primeiro ano do ministério de Jesus e, quando não ocorreu, ele revisou ligeira­
mente sua cronologia e datou o advento divino para o futuro próximo. C. H.
Dodd fala de “escatologia realizada” porque reconhecia o Reino como (poten­
cialmente?) cumprido em vida de Jesus. Joachim Jeremias procurou um compro­
misso ao propor uma escatologia em processo de realização (“sich realisierende
Eschatologie”), e dividindo o estabelecimento do Reino de tal modo que este
ocorria, em parte, durante a vida de Jesus, e, em parte, no futuro (tão longínquo
quanto necessário).^®
Entretanto, as categorias empregadas por Schweitzer e seus seguidores não
se coadunam com a mentalidade de Jesus (Cf. JWJ, 38). Ele e seus discípulos
entraram de todo coração na idade escatológica e reconheceram a diferença
fundamental entre seu próprio tempo sem futuro e os séculos que os precederam.
Desde o momento em quejesus obedeceu ao apelo ao arrependimento dejoão
Batista, o tempo para ele tornou-se o tempo final, exigindo uma teshuvá decisiva
e irrevogável que criava a necessidade, para ele e seus seguidores, de um novo
caminho de vida.^^

3. Como Jesus concebia o “ingresso no Reino”?

Um número de traços salientes, positivos e negativos, se destacam quando


são investigados os imperativos éticos que Jesus vinculou ao tópico do Reino.
Ainda uma vez, da perspectiva do cristianismo primitivo, com a Parusia ainda
irrealizada, é possível identificá-los, ou pelo menos seus desafios mais exagera­
dos, como uma moralidade criada para o período que deve culminar com o
Segundo Advento, um Interimsethik na terminologia de Albert Schweitzer, visan­
do apenas o período muito curto e atormentado que precede “o dia do Senhor”.
Mas esta visão parece dificilmente compatível com a que tem sido reconstituída
como a verdadeira perspectiva de Jesus. Seria possível dizer, entretanto, que
mesmo se sua mensagem permanece objetivamente irrealizada no sentido
coletivo, o que era de sua intenção, em nível individual seu ensino pode parecer
totalmente relevante para pessoas de todas idades.

26 Cf. A. Schweitzer, The Quest f o r the Historical Jesus (3- ed. 1954); C. H. Dodd, The Parables o f the
Kingdom (1935); J. Jeremias, The Parables o f Jesus (2- ed. 1972). Para uma discussão proveitosa
destes e de outros escritores, ver Norman Perrin, The Kingdom o f God in the Teaching o f Jesus
(1963).
27 Em minha interpretação da evidência, a reivindicação de E. P. Sanders no sentido de que não é
possivel nenhuma compreensão clara do conceito de Jesus quanto ao Reino (Jesus and Judaism,
(1985), 123-56), parece-me injustificada, e também estou cético sobre a asserção de Paula
Fredriksen que qualquer anúncio do Reino como presente, por parte de Jesus, deve se
fundamentar em camadas mais tardias da tradição do Evangelho (From Jesus to Christ (1988),
101).
138 A Religião de Jesus, o Judeu

Para ser breve, o exame da pregação de Jesus por meio de parábolas,


declarações e máximas mostrou que os requisitos essenciais são o desligamento
de posses materiais, confiança sem reserva em Deus e absoluta submissão a ele.
O fato de que os deveres impostos são geralmente expressos de preferência em
termos éticos e não “legais” não deveria nos levar a imaginar que a pregação
escatológica de Jesus conllita com sua dedicação à Lei. É a aprovação de sua
recapitulação da Torá como amor a Deus e amor aos homens que conduz aquele
simpático escriba para “perto do Reino” (Mc 12,34). Talvez, mesmo de forma
mais completa, no Pai Nosso (Mt 6,10) a petição, “Venha a nós o Vosso Reino”,
é seguida por, “Seja feita a Vossa vontade”, uma vontade divina, percebida pelo
judaísmo de todas as idades, expressa e manifesta nos mandamentos recebidos
por Moisés no Monte Sinai.

IV A Mensagem do Reino de Jesus


e a Escatologia Judaica

Uma comparação da idéia do Reino de Deus proclamada por Jesus com o


desenvolvimento geral do pensamento escatológico judaico (cf. pp. 114-126
acima), proporciona duas contribuições positivas: ajuda a confirmar a autenti­
cidade de alguns ensinamentos atribuídos a Jesus e dá relevo à individualidade
de muitos aspectos de sua mensagem.
A primeira observação negativa se refere à total ausência de um dos traços
mais distintivos da doutrina bíblica e intertestamentária do Reino divino. Segun­
do a história narrada por Jesus, não mais existem as sangrentas batalhas
escatológicas lideradas por um Deus Guerreiro. Também não existe a interven­
ção de anjos e arcanjos no combate final, tão vividamente descritos em Daniel,
na Assunção de Moisés e especialmente no Rolo da Guerra de Qumran, e mesmo
no Livro do Apocalipse no Novo Testamento.
Por outro lado, certas idéias não belicosas, reminiscentes da visão de Jesus,
tais como o Reino simbolizado por atos de devoção, ou sua incompatibilidade
com uma vida dissoluta (cf. pp. 121 seg. acima), aparecem em Jubileus e no
Testamento de Benjamin; mas as semelhanças são poucas e isoladas.
Se bem que as expressões em si sejam diferentes, a perspectiva de Jesus é
mais próxima da noção defendida pelos rabis tanaíticos. A visão cósmica da
Bíblia e dos escritos intertestamentários é reduzida a uma dimensão humana,
mais assimilável. Abraão é visto como o mediador que estabelece o Reino na
terra por reconhecer e proclamar Deus (cf. p. 123). De forma ainda mais
democrática, todo judeu que aceitar “o jugo do Reino do céu” se entrega à
soberania de Deus. Subsequentemente, ele coloca sua subordinação em prática
pela observação dos mandamentos. Neste ponto Jesus parece repetir a mesma
Jesus e o Reino de Deus 139

atitude espiritual. A coincidência mais notável se encontra no papel atribuido à


recitação do Shemá como ato pelo qual a submissão ao Rei divino se efetua,
seguida pela aceitação do “jugo dos mandamentos” (mBer 2,2), considerado em
relação à formulação de Jesus do primeiro mandamento;

Jesus respondeu; O primeiro é “Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o


Senhor é um; e amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração O
segundo é este, “Amarás teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,29-31).

Já que não seria razoável mas, na realidade, bem tolo, declarar que a Mishná se
inspira em Jesus, a única inferência lógica deve ser que ambos derivam de uma
corrente comum de tradição religiosa que, em conseqüência, deve ser vista como
já estabelecida no primeiro século A.D.
O terreno comum entre Jesus e o pensamento tanaítico referente ao Reino
é, entretanto, limitado. Distingue-se pelo extremo fervor dos dias finais que
inspira toda a mensagem autêntica do Evangelho. Embora vinculado tanto ao
que antecede quanto ao que se segue, o ensinamento de Jesus sobre o Reino de
Deus é uma criação substancialmente nova, portando o selo de uma escatologia
individual, ao mesmo tempo quietamente oculta e espetacularmente ascendente.

Apêndice: o Reino de Deus no Restante do Novo Testamento

Para possibilitar ao leitor a compreensão completa dos traços peculiares da


autêntica mensagem de Jesus, poderá ser útil uma breve comparação da noção
do reino de Deus nos Evangelhos Sinóticos e nos outros livros do Novo
Testamento, onde esta noção desempenha papel menos importante.
No Quarto Evangelho ela aparece apenas duas vezes, no diálogo de Jesus
com Nicodemo Qo 3,3; 5), onde a terminologia original do arrependimento
empregada nos Sinóticos é renovada como “renascimento” por meio da “água e
do espirito”, simbolizando o batismo cristão.
O autor de Atos também segue o modelo tradicional (cf. Mt 4,23; 9,35; Lc
4,23, etc.) ao apresentar o Reino como o tema principal do ensinamento dejesus
ressurrecto (At 1,3), e de Paulo (e Barnabe) na Ásia Menor, Antióquia e Roma
(At 14,22; 19,8; 28,23; 31). As alusões são vagas, embora na primeira citação,
bem como em 2Ts 1,5 e Ap 1,9, o acesso ao Reino está associado com sofrimento
como em Mt 5,10. Em Cl 4,11, é feita referência aos judeus (“homens da
circuncisão”) que são os “colaboradores [de Paulo] no Reino de Deus”!
A atividade carismática na igreja corintiana leva Paulo a declarar que “o
Reino de Deus não consiste de fala mais de dunamis /força” (IC or 4,20).
Entretanto, em geral, Paulo retrata o Reino num contexto moral; o Reino não é
comida e bebida, mas retidão (Rm 14,17); não pode ser herdado pelos injustos
140 A Religião de Jesus, o Judeu

(IC o r 6,9seg.; 15,50; ITs 2,12). Tg 2,5, fazendo ressoar a primeira bem-aventu­
rança, exorta sua igreja a respeitar os pobres.

Deus não escolheu aqueles que são pobres no mundo para serem ricos
em fé e herdeiros do Reino que ele prometeu àqueles que o amam?

Mas em toda esta literatura, o Reino aparece como uma realidade futura,
verdadeiramente a realidade celestial absoluta do eschaton:

Então chega o fim, quando ele (Cristo) entrega o Reino a Deus Pai, após
destruir toda regra e toda autoridade e poder (IC or 15,24).

E foram ouvidas vozes altas no céu, dizendo; O Reino do mundo tornou-se


o Reino do nosso Senhor e do seu Cristo (Ap 11,15).

Embora fragmentos da mensagem genuína de Jesus sobrevivam nesses textos,


devido ao atraso da Parusia sua urgência e sentido de iminência aos poucos se
fanaram. Penso que Alfred Loisy foi o primeiro a observar que os apóstolos
esperavam o retorno de Cristo, mas tiveram de aceitar, em vez disso, o advento
da igreja.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus

Como vimos na discussão do Reino de Deus, a idéia de um Soberano celestial


era fundamental para os judeus na idade bíblica, intertestamentária e rabínica.
Este também era o conceito do Deus/Pai. Os dois títulos estão vinculados na
famosa prece litúrgica Avinu, malkenu (Nosso Pai, nosso Rei), cuja origem é
atribuída pela tradição talmúdica (bTaan 25a) à invocação de Rabi Akiba (d.c.
A.D. 135) diante da arca da sinagoga, o que fez terminar uma severa estiagem:

Nosso Pai, nosso Rei, pecamos diante de Ti.


Nosso Pai, nosso Rei, não temos outro Rei além de Ti.
Nosso Pai, nosso Rei, tem devoção de nós.

Enquanto em pronunciamentos públicos e em preces, o divino epíteto “Rei”


pareça predominar na antiga literatura judaica, como foi enfatizado, está sur­
preendentemente ausente de pronunciamentos atribuídos a Jesus (c f pp.I26-
128). Em contraste, os Evangelhos Sinóticos o representam como se dirigindo a
Deus, ou falando dele, como “Pai” em cerca de sessenta ocasiões e, ao menos
uma vez, proferindo o título aramaico Abba. Não é passível de discussão que esta
idéia seja essencial para uma percepção precisa da religião de Jesus e, como de
modo geral, não é necessário dizer que para perceber sua mensagem de forma
dinâmica, a evidência do Evangelho deverá ser considerada em perspectiva.

I O Pai Celeste no Ensino de Jesus

O conceito de Deus como Pai de Jesus, de seus seguidores e de todo o mundo


criado está profundamente implantado nos Evangelhos. Figura em várias formas
literárias —parábolas, sentenças, preces —e em todas as camadas da tradição
sinótica —em Marcos e a tripla transmissão, em Q e em versões separadas de
Mateus e de Lucas. Como de costume, o propósito não é místico nem teológico,
mas existencial e prático: ao considerar a Deidade como um Pai atento, Jesus
tenciona passar a seus discípulos a atitude apropriada para com Deus, e já que
142 A Religião de Jesus, o Judeu

a noção de Pai e de filho são correlatas, ele propõe um modelo para o compor­
tamento dos “irmãos e irmãs”.

I. O Pai nas parábolas

Comparada à freqüência do tema do Reino divino, a imagem do Pai é


relativamente rara neste gênero literário, aparecendo apenas nas parábolas dos
Dois Filhos e na do Filho Pródigo.
Na primeira, Mt 21,28-32, ou, mais exatamente, 28-3la (cf. p.lOO), compa­
rado ao papel desempenhado pelos filhos, o pai é o personagem menos impor­
tante, limitando-se a dar ordens. Por outro lado, o principal traço paterno é o
perdão não formulado ao filho rebelde quando este se arrepende. Na segunda,
a Parábola do Filho Pródigo, Lc 15,11-32 (cf. pp.l05 seg.), o pai reconhece
intuitivamente o arrependimento do filho antes que seja expresso, corre ao seu
encontro, abraça-o e proclama publicamente seu regozijo por aquele que estava
perdido e morto, mas que agora foi encontrado e está vivo.
O imaginário restrito do conceito de Deus que sublinha estas parábolas
reflete amor e paciência para com um filho verdadeiramente arrependido e
corresponde ao profundo anseio espiritual dos publicanos e dos pecadores,
clientes preferidos de Jesus.

2. O Pai nas máximas

Como habitualmente nas máximas de Jesus, a questão de sua provável


autenticidade depende de um exame combinado de traços literários, redacionais
e ideológicos, aliado à coerência com sua mensagem em geral e seu significado
e relevância frente á audiência original, essencialmente galiléia. Guardando em
mente o fato de que o conteúdo doutrinal de Mateus e Lucas, quer derivado da
fonte comum Q ou do material específico de cada um, excede consideravelmente
o de Marcos, e que apenas Mateus fornece boa parte do ingrediente “judaico”
significativo, o material de Marcos receberá sempre uma ênfase particular. Do
mesmo modo, à luz da falta de sensibilidade de Lucas em relação às nuances do
judaísmo palestiniano, quando sua versão entra em conflito com a de Mateus,
este último será preferido, a não ser que existam boas razões de suspeitar algum
viés específico por parte do primeiro evangelista.
Não há dúvida de que esta posição será considerada prejudicada por aqueles
que vêem o caráter judaico da mensagem de Mateus como um “judaicismo”
deliberado, superposto por seu autor ou redator à pregação original de Jesus,
que eles presumem ter sido de conteúdo mais universal. Entretanto, esta posição
é inteiramente insustentável; choca-se não somente com a tendência caracteris-
ticamente crítica de Mateus em relação aos partidos religiosos judaicos da época
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 143

de Jesus, como também deixa de justificar a sobrevivência do colorido judaico


num escrito dirigido e transmitido à igreja gentia. De modo geral, uma linha de
desenvolvimento postulada por esta teoria é ao mesmo tempo sem paralelo e
sem justificação. Em consequência, as assim chamadas tradições “judaizantes”
transmitidas exclusivamente por Mateus não serão consideradas ipso facto como
suspeitas.

(a) O Pai que perdoa

Em linha com o ensinamento das parábolas, um dos traços salientes da


pregação de Jesus é o pronto perdão a seus filhos transviados.
Começando com uma rara máxima de Marcos 11,25, uma entre apenas as
três ocorrências neste Evangelho onde Deus é chamado de Pai, a versão mais
breve, que aparece em alguns dos códices mais antigos (Sinaítico e Vaticano),
assim se apresenta:

E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres contra alguém, para que
teu Pai que está no céu possa perdoar tuas faltas (11,25).'

O texto mais longo, que se segue a 11,26, inclui também uma formulação
negativa calcada em Mt 6,14seg., ela mesma acrescentada, como uma reflexão
tardia, ao versículo relevante (Mt 6,12) do Pai Nosso.

Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também perdoará
as tuas; mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste
também não perdoará as tuas.^

De qualquer forma, subsiste pouca dúvida de que a noção do perdão é um dos


ingredientes centrais da imagem do Pai em Jesus.

(b) O Pai atento

Outra característica do Pai celestial é sua solicitude paternal, doutrina


central do material Q e reforçada por outras instâncias peculiares a Mateus. Mais
uma vez, a costumeira falta de apreciação de Lucas quanto aos pontos mais finos

Deve-se notar que estas palavras, embora provavelmente independentes em sua origem, estão
anexadas a um texto de prece que aparece em Marcos 11,24.
A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt
18,35). O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no
Templo, é enfatizada igualmente em Mt 5,23seg., sem referência a um Pai celeste benevolente. A
alusão ao santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe
a existência do sistema sacrificial em Jerusalém (HST, 132), é mais provavelmente derivada de
Mateus do que de Jesus, cujo interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.
144 A Religião de Jesus, o Judeu

da mentalidade judaica de Jesus revela-se por várias vezes em sua substituição


de “Pai” por “Deus”.
Na maioria dos exemplos, esta benevolente paternidade divina vincula-se ao
ambiente palestiniano de Jesus e faz ecoar a perspectiva religiosa particular de
sua época; assim, a preocupação por elementos essenciais tais como alimento,
bebida e roupas é vista como a marca distintiva dos gentios (Mt 6,32)!^
Em pronunciamentos preservados no Sermão da Montanha, Jesus repetida­
mente tranqüiliza seus discípulos ansiosos; “Olhai os pássaros do ar; eles não
plantam nem colhem nem amontoam nos celeiros e, mesmo assim, vosso Pai
celestial os alimenta” (Mt 6,2611.0 12,24). E mais uma vez, “Olhai os lírios do
campo ... eles não trabalham nem fiam; entretanto ... nem Salomão em toda sua
glória jamais se vestiu como um deles” (Mt 6,28seg./Lc 12,27) ... “Portanto, não
vos preocupeis dizendo, ‘O que comeremos?’ ou... ‘O que vestiremos?’ Porque
os gentios procuram todas essas coisas; e vosso Pai celeste sabe que necessitais
de tudo isto” (Mt 6,31seg./Lc 12,29seg.).“*
Outro argumento afortiori (Mt 7,9-11/Lc 11,11-13) compara a benevolência
essencial de Deus com a atitude dos pais humanos. Embora hiperbolicamente
descritos como “maus”, mesmo assim eles não substituiriam pão por pedra para
seus filhos; “Quanto mais boas coisas vosso Pai que está no céu não dará àqueles que
lhe pedem!” (Mt 7,11/Lc 11,13). Seu carinho para com “os pequeninos”, cujos anjos
da guarda, segundo Jesus, “contemplam a face de meu Pai que está no céu”, é
apresentado como a atitude quintessencialmente divina em Mt 18,10, 14.^
Naturalmente, o Pai assim apresentado aparece em regra no contexto
humano e especificamente judaico, mas em diversos pronunciamentos ele trata

Uma alegação semelhante aparece em Mt 6,7seg., onde a prece-petição dos não-judeus é


caracterizada como verbosa. Ela não é necessária já que “vosso Pai sabe do que necessitais antes
de pedir-lhe”. Mesmo o agente terrestre de Deus, o operador de milagres, é retratado como dotado
de conhecimento antecipado das necessidades do requerente. Cf., por exemplo, Haninaben Dosa
e os enviados de Raban Gamaliel (em bBer 34b; yBer 9 d :JJ 75; e adiante n. IO).
A tradução acompanha Mateus. As variantes em Lucas são de pouca monta, com uma exceção.
Em 12,30 “nosso Pai” substitui o “vosso Pai celeste” de Mateus, e em 12,24, “Deus” é substituído
por “vosso Pai celeste” (cf. também Lc 12,6 e 12,12, comparado com Mt 10,29 e 10,20). A exceção
aparece em 12,14, onde “pássaros do ar” de origem semítica são identificados como “corvos”.
Atribui-se frequentemente esta leitura a Q, mais recentemente por W. D. Davies e D. C. Allison,
The Gospel According to St. Matthewl (1988), 654, masé altamente improvável. O termo não figura
em nenhum outro lugar no Novo Testamento e é abandonado por Lucas na expressão conclusiva
do versículo (“De quanto mais valor sois vós do que os pássaros?). Além disso, todo o imaginário
parece sugerir comedores de sementes. Finalmente, o corvo, antes de mais nada carniceiro e ave
de rapina, portanto um animal impuro, não é o exemplo mais apropriado, na mente de um
camponês da Galiléia, de uma criatura alimentada por um Deus caridoso, pace os exemplos
freqüentemente citados de SI 147,9 e jó 38,41, significativos apenas em círculos de conhecedores.
Os cuidados do Pai celeste com os pardais é reiterado em Mt 10,29-31/Lc 12,6seg.
Referências ao Pai celeste, em conexão com uma controvérsia antifarisaica (Mt 15,13) e a futura
perseguição dos discípulos (Mt 10,20) são provavelmente inautênticas em termos gerais.
“Abba, Pai’’: O Deus de Jesus 145

também de plantas e animais. Entretanto, pelo menos uma expressão, na qual


Jesus ordena a seus seguidores a amar seus inimigos (cf. pp. 41 seg.), percebe o
amor paterno de Deus abrangendo a humanidade como um todo.

Mas eu vos digo, Amai vossos inimigos ... para que sejais os filhos de
vosso Pai que está no céu, pois ele faz surgir o sol sobre os maus e sobre
os bons e faz chover sobre os justos e os injustos ... E se saudais apenas
vossos irmãos ... mesmo os gentios não fazem o mesmo? (Mt 5,44-47/Lc
6,27seg., 33, 35seg.)

O modelo é universal. O termo “inimigo”, a não ser que seja definido de outra
forma, sugere normalmente um estranho à comunidade de Israel. Daí, embora
falando de maneira geral, a visão de Jesus não alcance além do mundo judaico,
uma tendência não formulada, cosmopolita e quase ecológica, levando à repre­
sentação de Deus como Pai de todos os seres vivos, não lhe é absolutamente
alheia.

(c) O Pai que vê segredos

Deus o Pai, segundo Jesus, busca a religiosidade interior, pessoal. Tanto o


tema quanto sua apresentação de forma exagerada são inteiramente consoantes
com a essência da pregação autêntica. Conseqüentemente, o fato de que todos
os pronunciamentos pertencem ao material peculiar a Mateus não deveria ser
interpretado como evidência contra a autenticidade.
Em resumo, as três manifestações eentrais da devoção judaica — esmolas,
prece e jejum — devem ser praticadas sem ostentação e possivelmente, no
espírito dos antigos Hassidim, estritamente em particular. A generosidade para
com o pobre não deve ser alardeada; a esquina ou mesmo a sinagoga não são os
ambientes mais adequados para a prece interior; e a mortificação pelo jejum não
deve ser tornada óbvia por uma aparência abatida (Mt 6,2-4; 6,5-8; 6,16-18).
Àqueles que deixarem de exibir estes sinais públicos é prometido que “vosso Pai,
que \ê em segredo vos recompensará” (Mt 6,4;6,18).‘’

(d) Imitatio Patris

Tanto Q quanto Mateus representam Deus quase sempre indiretamente mas,


por uma vez, muito abertamente, como o exemplo par excellence a ser emulado.
Visto que o interesse dejesus é primariamente didático, as implicações teológicas
de seus pronunciamentos podem ser indiretas e vagas. Assim, por exemplo, Mt

6 Para paralelos literários, ver JW J, 164, n. 33. Cf. também W. D. Davies e D. C. Allison, Matthew
I (1988), 579,
146 A Religião de Jesus, o Judeu

5,9 abençoa os “pacificadores” e os designa “filhos de Deus”, expressão sinônima


de “filhos do Altíssimo” e “filhos de vosso Pai” (Lc 6,35/Mt 5,45), insinuando
que aqueles que imitarem a fonte celestial de shalom podem se esforçar, com
sucesso, para estabelecer a paz sobre a terra e merecer ser chamados “filhos de
Deus”.
Do mesmo modo, as “boas obras” dos discípulos de Jesus, refletindo a
generosidade do Pai celeste para com seus filhos (cf. Mt 7,11/Lc 11,13 na p. 144
acima), aumentam, ao que se diz, o louvor de Deus: “Deixai que vossa luz brilhe
perante os homens, para que eles vejam vossas boas obras e dêem glória a vosso
Pai que está no céu “ (Mt 5,16).
Porém, uma expressão direta e sucinta da doutrina da “imitatio Patris”
proposta por Jesus é calcada, como será argumentado em detalhe (pp. 182-188)
em Lv 19,2, “Serás santo, pois eu, O Senhor teu Deus, sou santo”. Este conceito
figura numa formulação dual: “Pois deves ser perfeito, como teu Pai celestial é
perfeito “ (Mt 5,48), e “Sê caridoso, como teu Pai é caridoso” (Lc 6,36). Aqui,
Jesus e os rabis falam em uníssono como demonstra poderosamente a paráfrase
aramaica de Lv 22,28: “Meu povo, filhos de Israel, assim como vosso pai é
misericordioso no céu, do mesmo modo deveis ser misericordiosos na terra”
(Targum Ps.-Jõnatas).^
Deve-se notar que um pronunciamento dejesus parece estar em conflito com
a doutrina aqui delineada. Segundo esta doutrina, a preeminência da deidade é
tão absoluta e infinita que não só é inimitável humanamente, mas mesmo o título
de “Pai” é privilégio de Deus e qualquer aplicação deste título a seres humanos
é uma usurpação. “Não chames a nenhum homem na terra teu pai, pois tens um
Pai que está no céu “ (Mt 23,9). A sugestão que esta frase tem um aspecto
polêmico, criticando os sábios rabínicos que levavam o nome de Abba, não
acarreta convicção. Parece que este tenha sido o nome de carismáticos tais como
Abba Hilkiá, neto de Honi, o desenhador de círculos, e de seu primo Hanan,
filho da filha de Honi. Este último, quando lhe pediam que fizesse acabar uma
estiagem, (cf. p.l64), fazia uma nítida distinção entre o Abba celestial, capaz de
fazer cair a chuva, e ele próprio, apenas capaz de persuadir Deus a fazê-lo.
A frase, “Não chames a nenhum homem na terra teu pai” (Mt 23,9), não
contradiz a doutrina da imitação da divina solicitude paternal. Sua negação da
aplicabilidade a seres humanos de atributos primariamente reservados a Deus
relembra a pergunta de Jesus ao jovem rico que a ele se dirigiu como “bom
mestre”: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom a não ser Deus” (Mc

Dificilmente encontraremos melhor exemplo do que chamei anteriormente de uma Lei ética (cf.
pp. 47 seg. acima), pois, enquanto o texto hebraico do Levítico lê: “E se a mãe for uma vaca ou
uma ovelha, não matarás a mãe e sua cria no mesmo dia”, o Targum eleva a regra a um
mandamento moral universal.
“Abba, Pai”: 0 Deus de Jesus 147

10,18/Lc 18,19). Um exagero semelhante está contido nas palavras do Rabi


tanaítico do segundo século, Ismael, filho de Yose, que negava o exercido da
função judicial a um único homem no seguinte aforisma: “Não julgues só (yahidi)
pois ninguém pode julgar sozinho exceto o “Único” (ehad) (mAb 4,8). Melhor
do que entrar em conflito com a mensagem básica do Evangelho, as duas
sentenças, acentuando a transcendência divina, ajudam a reequilibrar a balança
na representação de Deus por Jesus.

(e) O Pai nos pronunciamentos apocalipticos

Para sermos breves, quer julgando pelos critérios crítico-formais de Rudolf


Bultmann ou por meus pressupostos histórico-religiosos que o conceito da Parusia
é uma criação da igreja, as passagens que figuram nesta seção dificilmente serão
rastreadas atéjesus. Assim, no pronunciamento apocalíptico de Mc 8,38/Mt 16,27/
Lc 9,26, o “filho do homem” atipicamente diz àqueles que se envergonham dele
“nesta geração adúltera e pecaminosa” que ele igualmente os rejeitará no momento
de seu solene advento, cercado pelos santos anjos, na glória de seu Pai. O mesmo
tema é repetido em forma de reconhecimento e negação em Mt 10,32seg./Lc 12,8seg.
É desnecessário dizer que a imagem do “Pai” não é apropriada ao contexto.
Da mesma forma, a associação de “Pai”, não “Pai que está no céu” ou “Pai
celeste” com o futuro Reino escatológico não é natural e sugere uma interferência
editorial por parte da igreja primitiva. Assim, Mt 13,43, “Os justos brilharão
como o sol no Reino de seu Pai “ é um comentário escriturai cristão das Parábolas
das Ervas Daninhas (Bultmann, H5T,187). A atribuição ao Pai, em Mt 20,23, da
responsabilidade da distribuição de lugares no banquete escatológico é uma
adição “editorial” (HST, 326). A herança do Reino pelos abençoados pelo Pai (Mt
25,34) é parte da “edição cristã” de Mt 25,31-46 (HST, 125). A referência, no
relato da Última Ceia (Mt 26,29) a Jesus bebendo vinho novo “no Reino do meu
Pai “ (no Reino de Deus em Mc 14,25) é qualificada como “lenda de culto” (HST,
265), e “mais de doze legiões de anjos” que o Pai poderia enviar se Jesus pedisse
ajuda ao tempo de sua prisão, conta como uma “prova dogmática”, introduzida
em Mt 26,53 pela igreja primitiva (HST, 284).®
Quanto à passagem que assevera que só o “Pai”, não os anjos nem o “Filho”
conhece “aquele dia ou aquela hora”, do advento do Reino em Mc 13,32/Mt
24,36, não apenas Bultmann está justificado em qualificá-la como um pronun­
ciamento judaico com uma conclusão cristã (HST, 159), mas a idéia de um pai

As três menções de Lucas do Pai em contexto similar (Lc 12,32; 22,29; 24,49) sào todas
corretamente descritas por Bultmann como formulações eclesiásticas (HST, 111, 158, 157); do
mesmo modo, é claro, a expressão trinitária. Pai, Filho e Espírito Santo, no primitivo mandamento
cristão do batismo que conclui o Evangelho de Mateus (28,9).
148 A Religião de Jesus, o Judeu

que guarda ciumentamente seu privilégio mesmo de um filho ressoa como uma
nota discordante. Este Deus náo é o Deus de Jesus.®

3. O Pai nas preces de Jesus

Os Evangelhos Sinóticos contêm cinco preces de Jesus nas quais ele invaria­
velmente se dirige à Deidade como “Pai”, “nosso Pai” ou “Abba”. Elas pertencem
à tradição especial de Marcos, de Q e de Lucas. Três outras passagens de Mateus
se propõem transmitir o ensinamento dejesus sobre a prece, mas sem reproduzir
as fórmulas relevantes. Elas previnem contra a ostentação (Mt 6,5) e insistem no
isolamento por detrás de portas fechadas (Mt 6,6) e sobre a superfluidade de
apresentar a Deus, como aparentemente faziam os gentios, uma extensa lista d .:
objetos (Mt. 6,7): “vosso Pai, que vê no segredo” e “sabe do que necessitais ante:
de pedirdes” requer apenas uma disposição interna apropriada.“’
A súplica dejesus reproduzida em Mc 14,36, “Abba, Pai... afasta de mim este
cálice...” provavelmente preserva seu modo genuíno de se dirigir a Deus ao pedir
ajuda. A fórmula aramaica era corrente na igreja primitiva mesmo, por estranho que
pareça, entre os gentios-cristãos, de lingua grega, das congregações de Paulo (cf. Rm
8,15; G14,6). Seu significado será discutido no Apêndice nas pp. 165-167). Os outros
cinco pronunciamentos que sobrevivem, entre os quais apenas a passagem de
Marcos e o Pai Nosso têm boa probabilidade de serem genuinos, permitem uma
breve visão da percepção existencial dejesus em relação a Deus.

(a) O material de Lucas

Para simplificar o exame, as duas citações de Lucas — ambas, para dizer c


mínimo, de autenticidade duvidosa — podem ser eliminadas sem discussão. A

9 A negação do conhecimento divino aos anjos é definitivamente contrária à tradição judaica bem
estabelecida, segundo a qual Deus sempre consulta sua corte celeste, que é também denominada
sua “família do alto”. Cf. ySanh i, 18a; bSanh 38b; E. Urbach, The Sages: Their Concepts and Beliefs
(1975), 179.
10 A literatura rabinica preservou paralelos diretos e indiretos do ensinamento dejesus em relação
à prática de judeus particularmente devotos, geralmente referidos como os “primeiros Hassidim”
(hasidim rishõnim). O tema do segredo é mencionado a respeito das esmolas: “os tementes ao
pecado” piedosos costumavam depositar seus donativos na “câmara de hashshalm ” isto é, das
doações secretas que permitiam aos timidos “senhores em necessidade” (“aniyim bene tõvim”) de
se servirem das esmolas sem confrontar seus benfeitores face a face (mShek 5,6). O conselho de
se retirar para um quarto fechado é exemplificado na história de Hanina ben Dosa, o carismático
operador de curas da Galiléia no primeiro século sobre o qual se diz que se retirou para seu
quarto do “primeiro andar” para pronunciar uma prece que curou miraculosamente o filho do
Gamaliel na distantejerusalém (yBer 9d; bBer 34b). A história talmúdica sugere que Hanina subiu
ao primeiro andar, isolou-se e se dirigiu a Deus antes que os enviados de Gamaliel tivessem a
oponunidade de falar com ele, ou seja, ele sabia antecipadamente o que lhe seria pedido. Como
o Pai celestial (Mt 6,7), o carismático é visto como possuidor de conhecimento prévio das
necessidades dos suplicantes.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 149

prece posta nos lábios de Jesus crucificado, “Pai, perdoa-lhes porque não sabem
o que fazem” (Lc 23,34) ecoa um artifício missionário judeu-cristão claramente
formulado em Atos 3,17, segundo o qual qualquer culpa potencial dos contem­
porâneos judeus de Jesus, incluindo as autoridades envolvidas em sua queda,
deveria ser imputada à ignorância.''
Quanto ao último apelo de Jesus ao morrer na cruz, enquanto em Mc
15,37/Mt 27,50 é descrito apenas como uma “voz alta”, Lucas, que sem dúvida
por razões teológicas deixou de incluir a frase perturbadora “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?”, em Mc 15,34/Mt 27,46, introduz neste ponto
uma citação menos desconfortável de SI 31,6, proporcionando assim um fim
piedoso à vida do sofredor;

Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc 23,46).

(b) O material de Q e de Mateus

A prece de agradecimento de Jesus (Mt 11,25-27/Lc 10,21seg.) já foi


mencionada em capítulo anterior (cf. p. 53). O âmago da passagem “ninguém
conhece o Filho a não ser o Pai e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e
alguém a quem o Filho escolhe para revelar”, é geralmente considerado, em sua
forma redigida, como uma criação eclesiástica, provavelmente helenístico-cristã.
Mas a prece em si e a idéia subjacente de um Pai celestial repartindo seus
segredos com os filhos são genuinamente judaico-palestinas, embora contrárias
à ideologia de Qumran. Na verdade, a noção de receber e transmitir revelações,
além da passagem em discussão, de autenticidade duvidosa, é estranha ao
genuíno ensinamento de Jesus.
A noção de um Pai que revela, embora desta vez os destinatários não sejam
criancinhas, aparece também no relato de Mateus da confissão de Pedro em

11 o versículo é omitido em alguns dos manuscritos mais antigos (P. Bodmer XIV, Vaticanus, etc.).
Não obstante, embora seja improvável que as palavras tenham sido realmente pronunciadas por
Jesus, sua omissão pela igreja primitiva que não se mostrava disposta, por definição, a tolerar no
Evangelho uma prece pelo perdão divino em favor dos odiados judeus, é mais provável que sua
interpolação tardia.
12 O conhecimento revelado concedido por Deus ao Mestre da Justiça e comunicado aos iniciados
da seita constitui o centro da teologia dos Pergaminhos. IQpHab 2,2seg. se refere à mensagem
por ele recebida “da boca de Deus”, identificada em 7,5seg. como um saber divinamente
concedido dos “mistérios das palavras de seus servos, os profetas”. IQS fala do significado
“revelado” dos mandamentos da Lei de Moisés (5,9; 8,1); uma “revelação” referente aos “tempos
designados” (1,9; 9,13). CD 15,13 também se refere a “revelações” no que se refere à Lei. Os
recipientes sectários dessas revelações são por muitas vezes descritos como “os simples” (peíiJm),
termo correspondente ao grego nêpioi deMt 11,25/Lc 10,21 (cf. IQpHab 12,4; IQH 2,9; seg. 15,4).
Ver igualmente o salmo não canônico de 4Q381 1, Iseg., provavelmente anterior à Comunidade
do Mar Morto, que menciona instrução, julgamento e compreensão transmitidos aos “simples”
(cf. Eüeen M. Schuller, Non-Canonical Psalms from Qumran (1986), 71, 75, 77).
150 A Religião de Jesus, o Judeu

Cesaréia de Filipe “porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso (a
identidade messiânica de Jesus), e sim o meu Pai que está no céu” (Mt 16,17).
Entretanto, comparada às versões do episódio em Marcos e em Lucas (Mc
8,29seg./Lc 9,20seg.), a passagem de Mt 16,17-19 é manifestamente um suple­
mento apologético que pode ser atribuido à igreja primitiva (c f.JJ, 146seg.).
O Pai Nosso (Mt 6,9-13/Lc 11,2-4), que se inicia com “Pai nosso que estais
no céu “ ou apenas “Pai” é geralmente considerada como uma das principais
fontes para o estudo de nosso tema. O título é algo enganoso, já que o fraseado,
embora formulado por Jesus, não se destinava ã recitação pelo próprio Jesus mas
por um grupo de discípulos que se referem a si mesmos como “nós”, “nos” e
“nosso”. A versão de Lucas é mais curta, e, diferentemente da de Mateus, cuja
redação é bastante estável, tirante a doxologia anexada a 6,13 em alguns
m a n u scrito s,a te sta um bom número de variantes gregas, algumas das quais
com a intenção óbvia de aproximar Lucas de Mateus.
Entretanto, este não é o lugar apropriado para uma discussão detalhada do
Pai Nosso, já que nos propomos examinar apenas sua contribuição à compreen­
são de Jesus em relação a Deus como Pai celeste. Não obstante, alguns comen­
tários preliminares se fazem necessários, inclusive uma avaliação da relação
entre as versões de Mateus e de Lucas.

Mateus Lucas
Pai nosso que estais no céu, Pai,
santificado seja vosso nome. santificado seja vosso nome.
Venha a nós o vosso Reino, Venha a nós o vosso reino.
Seja feita a vossa vontade
Na terra como no céu.
Dai-nos hoje nosso pão cotidiano; Dai-nos a cada dia nosso pão cotidiano;
e perdoai as nossas dívidas, e perdoai-nos nossos pecados porque nós
como também perdoamos aos nossos mesmos perdoamos aos que nos devem;
devedores; e não nos conduza à tentação.
e não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal.

13 A doxologia omitida na mais antiga tradição manuscrita e em Lucas, varia consideravelmente em


seu fraseado: “pois teu é o Reino e o poder e a glória para sempre, [Amen.]“/”pois teu é o poder
e a glória para sempre. lAmen)“/"pols teu é o Reino e a glória. Amen.” De modo geral e, em minha
opinião, corretamente, considerada como uma ampliação litúrgica tardia, a expressão ainda é
atribuída a Jesus por Joachim Jeremias (The Prayers o f Jesus (1967), 106). Cf. M. Black, “The
Doxology of the Pater Nosier with a Note on Matthew 6.13B” em P. R. Davies e R. T. White, A
Tribute to Geza Vermes (1990), 327-38.
14 Para um exame recente do problema, ver W. D. Davies e D. C. Allison, Matthew 1 ( 1988), 590-615
com uma substancial bibliografia nas pp. 621-24. Os termos e expressões comuns a Mt e Lc estão
grafados em itálico.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 151

No que diz respeito à comparação da versão de Mateus e a de Lucas,


desconsiderando se ambas se referem, finalmente, a uma fonte comum, Q, ou a
fontes especiais (M e L), a opinião especializada tende a declarar que o texto
mais curto de Lucas é o “mais original” (Davies-Allison, 592) e julga o material
adicional como sendo criação de Mateus. Sublinhando esta suposição, é opinião
da maioria que o Pai Nosso original possa ser realmente atribuído a Jesus,
embora nenhum acordo tenha sido alcançado quanto à língua em que foi
formulado. Como regra, o aramaico é o preferido, mas o hebraico (de Qumran)
encontrou um partidário convicto na pessoa de Jean Carmignac (Recherches sur
le Notre Père, 1969). É possível construir um forte argumento em favor da
autenticidade ad sensum senão ad litteram da substância de ambas as versões,
não apenas com base na conformidade geral dos conteúdos com a mensagem
de Jesus mas em particular porque uma prece pelo advento do Reino de Deus,
sem referência à Parusia, reflete melhor a perspectiva de Jesus do que a da igreja
primitiva.
Deixando de lado, por enquanto, a tese que a maneira de se dirigir de Lucas,
“Pai”, é mais genuína do que a expressão de Mateus “Pai Nosso que estais no
céu”, seria necessário enfatizar que nenhuma das adições de Mateus nada contém
que possa ser intrinsecamente atribuível a Jesus. Em contraste, a substituição de
Lucas do termo genérico “nossos pecados” pela metáfora semita “nossas dívidas”,
apesar da menção subseqüente de perdoar “àqueles que nos devem”, sugeriria
que o texto mais curto não é necessariamente o mais coerente.
Um comentário final, de caráter introdutório, diz respeito à natureza da
prece em si, o que não deixa de ter implicações em nossa avaliação da relação
de Lucas com Mateus. De início, o Pai Nosso é ao mesmo tempo coletivo (“nós”
não “eu”) e ritual, e como tal, difere da petição solitária de um indivíduo ou de
uma prece proferida a portas fechadas “em segredo” (Mt 6,6). Esta última é
provavelmente mais espontânea, sem texto fixo, tal como a prece pela cura do
Hassid carismático.
O Pai Nosso era destinada a um grupo e provavelmente deveria ser recitado
em voz alta e em público embora não contenha nada que possa apontar para o
contexto do culto formal. Entretanto, é óbvio, pela adição da doxologia final,
atestada pela tradição manuscrita e pela Didache ou Ensinamento dos Doze
Apóstolos (8,2), o manual eclesiástico cristão mais antigo (datado de entre 60 e
150 A.D.), que logo se tornou uma prece litúrgica e estatutária. As palavras

15 Segundo mBer 5.5, Hanina ben Dosa sabia que sua intercessão em favor de uma pessoa doente
produzia efeito à distância quando tivesse a liberdade de improvisar íluentemente. Cf, PBJS,
179seg. A literatura rabinica (yBer v, 9c) distingue entre uma formulação ad hoc e uma outra
preestabelecida.
152 A Religião de Jesus, o judeu

introdutórias de caráter redacional em Mt 6,9 e especialmente era Lc 1 l,lseg . já


prenunciam este desenvolvimento.'®
Mas, assim sendo, uma outra conseqüência tem de ser considerada. Das
cinco preces de Jesus preservadas nos Evangelhos Sinóticos, todas, com exceção
da presente, pertencem à classe individual particular e, por aposição, dirigem-se
a Deus com “Pai”/Abba. No caso de uma prece comunal, “Nosso Pai” {avínú/avW
nan) [que estais no céu] parece mais apropriado.'^ Acaso isto implicaria que, ao
contrário da opinião geral, é mais uma vez Lucas quem não acerta o alvo, e que
a expressão de Mateus, “Pai nosso que estais no céu”, ou mais precisamente “nos
céus”, é a abertura mais “original” e significativa? Em todo caso, já que nos
ocupamos apenas da autenticidade ad sensum e não com as ipstssima verba, as
palavras originais, o uso do texto mais longo num estudo do conceito do Pai em
Jesus não parece objetável.
Este conceito do Pai pode ser reconstituído por uma análise das diversas
petições, pois acredita-se que o Pai é o que se espera que o Pai faça. Das duas
unidades introdutórias da prece, comum ãs duas versões, a primeira devolve
uma dignidade transcendental à imagem antropomórfica familiar. A santificação
do divino nome pelo devoto ecoa na terra o hino “Santo, santo, santo” dos
querubins no templo celestial (Is 6,3). Quanto ao segundo pedido, “Venha a nós
o vosso Reino”, o versículo associa o Pai celeste ao Senhor Divino, desfazendo a
tensão entre as duas ideias, e coloca a prece, como um todo, dentro da expectativa
dominante de Jesus de uma ordem escatológica iminente. O estreito paralelismo
entre ambas as noções será demonstrado na antiga prece judaica, o Kádish (cf.
p. 163 adiante).
Embora omitido da versão mais curta, o cumprimento do desejo filial “Seja
feita a vossa vontade”, é um elemento bem atestado da compreensão existencial
por parte dejesus do relacionamento Filho-Pai (c f acima, p. 141). É igualmente
necessária para quem aspire pertencer à família espiritual dejesus; “Todo aquele
que fizer a vontade de meu Pai no céu [a vontade de Deus, Marcos] é meu irmão
e irmã e mãe” (Mt 12,50/Mc 3,35). O elo entre a obediência e a idéia do Reino
vindouro implica, como foi sugerido, que a absoluta submissão filial a Deus é
essencial: “Nem todos os que me dizem Senhor, Senhor, entrarão no Reino do
céu, mas aquele que faz a vontade do meu Pai que está no céu” (Mt 7,21; cf. Mt
18,19).

16 Sobre a natureza “particular e nâo estatutária” e a prece “estatutária fixa’’, ver Joseph Heinemann,
Prayer in the Talmud: Forms and Patterns (1977), capítulos VII e IX. Heinemann classifica
explicitamente o Pai Nosso como uma “prece judaica particular” (p. 191) que podería tomar a
forma de “eu” ou de “nós” (ibid.).
17 Para a fórmula “Nósso Pai” da prece judaica, ver acima p. 152 e Heinemann, 150-55, 189-91.
“Abba, Pai”: 0 Deus de Jesus 153

Aquela harmonia entre a obediência celeste e a terrena é o objeto da súplica,


sendo que a primeira é apresentada como modelo da segunda. Ela indica que
“este mundo” e “o mundo vindouro” ainda são considerados distintos. Uma
estrutura semelhante pode ser observada na prece de R. Eliezer (ben Hircano)
na Tosefta:

Faz a tua vontade no céu e concede paz de espírito àqueles que te temem
na terra (tBer. 3.ii).*®

As três petições restantes ao Pai celestial, atendimento das necessidades huma­


nas, remissão dos pecados e proteção do perigo, combinam perfeitamente com
as imagens do cuidado e perdão divinos já descobertos nas parábolas e pronun­
ciamentos de Jesus e com uma exceção possível, embora improvável em minha
opinião, representa as necessidades temporais e espirituais dos discípulos às
vésperas do advento do Reino. A exceção ocorre se ao adjetivo epiousios,
definindo o “pão” pedido ao Pai, for dada uma conotação futura, como é
usualmente o caso na exegese contemporânea de Mt 6,11.*®
As duas teorias que gozam de maior prestígio, ligando a palavra grega a diversos
originais semíticos possíveis, interpretam o termo seja como o pão “cotidiano”, vale
dizer “de boje” (lahma deyõma ou leyõma em aramaico) ou como o pão “de amanhã”.
A segunda acepção pode indicar literalmente o futuro imediato mas é também
interpretado por Joachim jeremias e outros como significando “o grande Amanhã,
a consumação final”.^° Enquanto nenhuma das duas espécies de “amanhã” pode ser
definitivamente afastada, a importância do momento presente no quadro do
entusiasmo escatológico ou de estresse desesperado favoreceria o tempo presente,
isto é, “hoje”. Esta interpretação seria apoiada pela passagem muito conhecida que
desencoraja os seguidores de Jesus a se preocuparem quanto ao futuro: “Não vos

I S A mesma espécie de paralelismo figura cm outra prece pela paz, atribuída ao Amorá babilônico
R. Safra, do inicio do quarto século: “Que seja de tua vontade, ó Senhor nosso Deus, que
estabeleças a paz na família do alto e na família da terra!” (bBer. 17a). No contexto de uma Parusia
meta-histórica, o reconhecimento ou rejeição de Jesus “face aos homens” são considerados como
correlatos ao reconhecimento ou rejeição da parte dele “perante meu Pai que está no céu” ou
“perante os anjos de Deus” (Mt 10,32seg.; Lc 12,8seg.; Mc 8,38; Mt 16,27; Lc 9,26). Para uma
estrita correspondência entre o culto terreno e o celestial no pensamento religioso da
Comunidade de Qumran, ver G. Vermes, QIP, 175seg.; Carol Newsom, Songs o f the Sabbath
Sacrifice (1985), 59-72. Cf. também Beate Ego, Studien zum Verhältnis von himmlischer und
irdischer Welt im rabbinischen Judentum (1989).
19 Para um estudo detalhado dos diversos significados ver de W. Foerster, “Epiousios” em TDNTII,
590-99; cf. também Davies e Allison, Matthew 1, 607-9.
20 Cf. Prayer, 100. A mesma exegese pode ter sido antecipada por Jeronimo {Commentary on Matthew
6,11) com base no Evangelho [agora perdido] segundo os Hebreus: “In evangelic quod appellatur
secundum Hebraeos pro supersubstantiali pane reperi mahar, quod dicitur crastinum, ut sit
sensus. Panem nostrum crastinum, id est futurum, da nobis hodie.” (No Evangelho denominado
“segundo os Hebreus”, para “pão cotidiano” encontrei m ahar que significa “de amanhã”, de modo
que o significado é “Nosso pão de amanhã”, isto é, nosso pão futuro “dai-nos hoje” )
154 A Religião de Jesus, o Judeu

preocupeis com o amanhã, porque o amanhã se preocupará consigo mesmo. Que


a cada dia baste sua pena (Mt 6,34).^‘

4. O filho do Pai celestial

Para completar o estudo da imagem do Pai no ensinamento do Evangelho,


as passagens sinóticas que descrevem Jesus como filho de Deus devem ser
reexaminadas rapidamente.^^ Ao fazê-lo, deve-se ter em mente que as únicas
testemunhas que declaram, primeiro indiretamente e depois diretamente, que o
próprio Jesus usou este título são os zombeteiros no Calvário.

Que Deus o liberte agora ... pois ele disse, “Eu sou o filho de Deus”
(Mt 27,43)

Em todas as passagens restantes ele é chamado “filho de Deus” por outras


pessoas. Esses textos, portanto, não refletem o pensamento de Jesus no que se
refere ao Pai do céu mas antes o contexto religioso no qual este pensamento foi
transmitido. Deixando de lado, por anacrônica, a fórmula eclesiástica da confis­
são — “Na verdade, este era um filho de Deus” — atribuída ao centurião romano
no momento da morte de Jesus (Mc 15,39) — este foi movido, segundo Mt
(27,54), pelos extraordinários acontecimentos provocados pela morte do cruci­
ficado, tais como o rasgar da cortina do Templo, o terremoto, os corpos
ressurgidos — o resto da evidência se divide em três categorias: (a) proclamações
messiânicas; (b) pronunciamentos por uma voz celeste (bat q õ lf e (c) pronun­
ciamentos por demônios e discípulos.

(a) Messias — filho de Deus

Além da alusão a Jesus, filho de Davi, como sendo igualmente o filho do


Altíssimo na narrativa da Anunciação (Lc l,31seg.), os dois famosos excertos do
Evangelho nos quais o emprego de “filho de Deus” como epíteto se encontra
ligado a “Cristo” são a declaração de Pedro em Cesaréia de Filipe e a pergunta
feita pelo Sumo Sacerdote quando interrogava Jesus perante o conselho:

Simão Pedro respondeu, “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16,16;
o Cristo, Mc 8,29; o Cristo de Deus, Lc 9,20).

21 O aviso contra o otimismo exagerado é parte da prudência bíblica: “Nâo te regozijes pelo dia de
amanhã pois não sabes o que este dia pode trazer”, Pr 27,1 e encontra eco na sabedoria rabínica:
“Não te preocupes com os problemas de amanhã pois não sabes o que o amanhã trará. O amanhã
chegará mas talvez ele não esteja aqui, ele se preocupa com o mundo (variante: o dia) que nâo é
seu” (bYeb 63b; bSanh 100b). A passagem da segunda para a terceira pessoa é empregada para
evitar a menção da morte da pessoa referida.
22 Para uma análise anterior, ver JJ, 200-06, 263seg.
“Abba, Pai”: o Deus de Jesus 155

És tu o Cristo, 0 filho do Deus Bendito? (Mc 14,6; o filho de Deus,


Mt 25,63).

Embora patentemente derivado do Salmo 2,7, onde Deus se dirige ao (messiâ­


nico) rei de Israel como “meu filho”, a fraseologia completa não é atestada na
literatura judaica pré-cristã. A mais antiga evidência deriva de uma das leituras
de 4Esdras 7,28-29 (“meu filho, o Messias”: duas vezes em siríaco, mas em latim,
“filius meus lesus”, no versículo 28 e “filius meus Christus” no versículo 29,
“meu Messias” em etíope e “o Messias de Deus” em armênio) mas no decorrer
da transmissão o texto pode ter sido contaminado por copistas cristãos.^^
A associação rabínica mais clara do Messias real com a entidade “filho”
divina e metafórica, por meio do Salmo 2,7, está preservada num ensinamento
tanaítico anônimo em bSukkah 52a;

Nossos rabis ensinaram; O Altíssimo, bendito seja, diz ao Messias, filho


de Davi, que será revelado logo em nossos dias, como está escrito, “Eu
contarei o decreto [do Senhor. Ele me disse. Tu és meu filho, hoje eu te
gerei”] (Sl 2,7); Pede-me e eu te revelarei, como está escrito, “Pede-me e
farei das nações a tua herança” (Sl 2,8).

Resumindo, no contexto especificamente messiânico do pensamento do Novo


Testamento e no pensamento rabínico, Deus é representado como o Pai e
Guardião do redentor eleito de Israel. Comparado com o status do judeu comum,
acredita-se que o Messias seja o filho de Deus em sentido elevado, e que,
vice-versa. Deus é visto como seu Pai de forma distinta.^'*

23 “Meu filho" sem menção a “o Messias” aparece várias vezes em 4Esdras 13,32,37, 52;14,9, é
igualmente encontrado em 1 Enoque 105,2 de autenticidade duvidosa. “Eu e meu filho ” pode se referir
aqui não a Deus e ao Messias, mas a Enoque e Matusalém. Cf. M. Black - J. C. Vanderkan, The
book o f Enoch or 1Enoch (1985), 319
24 O assim denominado texto do “Filho de Deus” da Caverna 4 de Qumram (4Q 246, previamente
4QpsDand, atualm ente Apocalipse Aramaico), contendo as expressões “filho de Deus" (bereh d i’el)
e “filho do Altíssimo” (b a r’ elyõn) foi citado por J. A. Fitzmyer em relação a Lc 1, 32, 35 (A
Wandering Aramean: Collected Aramaic Essays (1979), 93). Davi Flusser, ao contrário, interpreta
os titulos como aplicados ao Anticristo (Judaism and the Origins o f Christianity (1988), 207-13,
enquanto F. Garcia Martinez, em Qumran and Apocalyptic (1992), 162-79, identifica a figura como
um ser angélico, Melquizedec ou Miguel, o Principe da Luz. Todas estas teorias se fundamentam
em evidências parciais e dependem principalmente de várias restaurações hipotéticas das
lacunas.
Agora que o texto integral pode ser consultado, parecería que a pessoa que se denomina a si
mesma, ou é chamada por outros de “filho de Deus” é um usurpador desse título. Na verdade, é
dito que o reino por ele governado é caracterizado por guerras intestinas entre as nações.
Aparentemente ele é calcado no rei de Daniel 11,36, que se torna deus. A paz só pode ser esperada
após a emergência do “povo de Deus", ao qual “o Grande Deus" concede poder universal e
“dominio eterno”. Resumindo, 4Q246 não é relevante para o estudo do conceito Messias/filho
de Deus. Por outro lado, pode representar a evidência bíblica mais antiga para a compreensão
coletiva de “alguém como o filho do homem” de Dn 7,13. Este tipo de exegese é atestado
primeiramente no Daniel bíblico (7,27). Cf. G. Vermes, “Qumran Forum Miscellanea 1”, JJS 43
156 A Religião de Jesus, o Judeu

(b) Jesus proclamado filho de Deus por uma voz celeste

O bat qõl ou voz celeste é um artifício intermediário na especulação religiosa


judaica que substitui não apenas o discurso direto de Deus ao homem como
também a comunicação divina através dos profetas. Sua incepção é datada pelos
rabis tanaiticos em começos da era pós-exílica;

Com a morte de Hagai, Zacarias e Malaquias, os últimos profetas, o


espírito santo se retirou de Israel, entretanto [Israel] pode ouvir
(proclamações) por meio de uma voz celeste (tSotá 13,2; bSotá 48b; Yoma
9a; bSanh 11a).

Uma anunciação por meio de um bat qõl freqüentemente transmite a


aprovação divina a um indivíduo ou a um ensinamento segundo os rabis, como
será demonstrado logo adiante. O discurso é na primeira pessoa e presume-se
que a voz seja de Deus.
Os dois exemplos dos Evangelhos têm também o objetivo de dotar a missão de
Jesus da aprovação celestial embora os evangelistas discordem entre si sobre se esta
comunicação se destinava apenas a Jesus ou igualmente a outras testemunhas.
No caso da proclamação por ocasião de seu batismo por João, no Jordão, a
mensagem principal é clara, mas sua forma, e até certo ponto, mesmo a escolha
das palavras, são variáveis. Em Mc 1,10-11, apenas Jesus vê o céu aberto, com o
espírito descendo em forma de pomba, e ouve as palavras que lhe revelam sua
eleição pelo Pai celeste.

E uma voz veio do céu, “Tu és meu filho amado; contigo estou bem
contente”.

Em Lucas 3,21-22, a visão não é especificamente limitada a Jesus, mas apenas


ele recebe a mensagem.^^
Mateus 3,16-17, por outro lado, restringe a visão a Jesus, mas a voz emprega
a fórmula da terceira pessoa, que encontra paralelos igualmente na literatura
rabínica, implicando que a revelação era dirigida ou a João ou a todos os
circunstantes:

(1992), 301-3. Duas outras contribuições apareceram em 1992. De Emile Puech “Fragment d’une
apocalypse en araméen (4Q246=pseudo-Dan d) e “Royaume de Dieu”, RB 99 (1992), 98-131,
propondo uma exegese messiânica real ou outra que identifica o “filho de Deus” corn Antioco
Epifanes. A outra exegese aparece em The Dead Sea Scrolls Uncovered (1992), 68-71 de Robert
Eisenman e Michael Wise, que optam por uma interpretação messiânica.
25 O texto ocidental de Lucas (Codex Bezae, latim antigo, etc.) cita aqui SI 2,7. “Tu és meu filho,
hoje eu te gerei”, revestindo assim a declaração de um tom messiânico. É digno de nota que
também em Jo ã o 1,32-33, o Batista parece ser o único beneficiário tanto da visão quanto da
revelação.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 157

E vede, uma voz veio do céu dizendo, “Este é meu filho amado, em quem
me comprazo”.

Os relatos da Transfiguração repetem a referência à voz, a qual, desta vez, vem


de uma nuvem e, em Mc 9,7 e Mt 17,5, reproduz também a sentença “Este é meu
filho amado”. “Amado”, entretanto, é substituído por “eleito” em Lc 9,35. Todos
os três Sinóticos acrescentam: “Ouvi-o!”, indicando assim que a voz era dirigida
aos companheiros de Jesus na montanha.^*
Tanto as narrativas do Batismo e da Transfiguração como as passagens
messiânicas retratam um pai celestial amante, testemunhando a eleição de seu
“filho”, primeiramente num estado de humildade e após de exaltação antecipada.
Estes textos são inspirados por idéias e terminologia judaicas correntes, pesada­
mente recobertas pela especulação teológica posterior da igreja primitiva. O
quadro que descreve o aparecimento do Messias sacerdotal no Testamento de
Levi 18,6-7 contém os traços salientes das passagens do Evangelho, sendo que
a questão não resolvida é qual dos dois depende do outro. O final de 18,7, em
todo caso, é geralmente julgado como uma interpolação cristã:

Os céus se abrirão e do Templo da glória a santificação virá a ele [o novo


Sacerdote], com uma voz paternal como a de Abraão a Isaac. E a glória
do Altíssimo se derramará sobre ele. E o espírito da compreensão e da
santificação repousará sobre ele [na água].^^

(c) Filho de Deus — exorcista e operador de milagres

O grupo final de textos se encontra reunido na estrutura carismática e se


dirige como “filho de Deus” ajesus qua participante no domínio do Pai celestial
sobre os poderes do mal e das forças hostis da natureza. O contexto mais comum
é o das narrativas de exorcismo:

E quando os espíritos impuros o viam, caíam perante ele e gritavam: Tu


és o filho de Deus (Mc 3,11; Lc 4,41).

E eis que eles [os dois Gadarenos endemoniados] gritaram: “Que tens a
ver conosco, ó filho de Deus? Vieste antes do tempo para nos atormentar?
(Mt 8,29).

26 A expressão é um mosaico de excertos bíblicos. “Este é meu filho amado com o qual me comprazo”
é uma combinação de Gn 22,2 (“teu filho ... que tu amas” —Abraão/Isaac) e Is 42,1 (“meu eleito
que deleita minha alma” — Deus/o Servo do Senhor). “Ouvi-o” é tomado de empréstimo de Dt
18,15 (Deus/ profeta como Moisés).
27 As últimas palavras são inseridas para amalgamar a história com o Batismo de Jesus. Elas não se
encontram na maioria dos manuscritos.
158 A Religião de Jesus, o Judeu

Gritando em voz bem alta, ele (o Geraseno endemoniado) disse; Que tens
a ver comigo, Jesus, filho do Deus Altíssimo? (Mc 5,7; Lc 8,28).^®

Finalmenle, uma historieta legendária é registrada em Mt 14,33 quando, por


ocasião de uma tempestade no lago da Galiléia, os discípulos reconheceramjesus
como “filho de Deus”, vale dizer, aquele que compartilhava do domínio de Deus
sobre o vento porque sua chegada acalmou as ondas e salvou os que estavam
no barco.
Tomadas conjuntamente, as três representações, a filiação divina do
Messias, o testemunho da voz celeste e a dos demônios e dos homens,
demonstram claramente que o relacionamento filial de Jesus com Deus era
representado pelos criadores da tradição sinótica não como parte da paterni­
dade geral de Deus, mas como um fenômeno fora do comum, que merecia
uma atenção especial.

II O Ensinamento de Jesus sobre o Pai Celeste


na História do Judaísmo Antigo

O ensinamento de Jesus a respeito de Deus, o Pai, reflete, por um lado, as idéias


religiosas do judaísmo bíblico, e mais particularmente as de sua própria época,
mas apresenta igualmente traços individualistas identificáveis. A fim de distin­
guir os diferentes elementos, a história do conceito do Pai divino deve ser
esboçada e a contribuição de Jesus a esta história deve ser inserida no lugar certo.

1. O Pai divino na Bíblia

Embora a imagem não seja abundantemente atestada na escritura, sua


familiaridade subjacente é manifesta numa variedade de nomes teofóricos que
contêm o elemento Ab (Pai).^° Empregam tanto os títulos divinos do hebraico.

28 o mesmo reconhecimento do filho de Deus por Satã caracteriza o relato da Tentação em Mt 4,3,
6; Lc 4,3; 9.
29 Uma tendência similar, distinguindo o elo especifico entre Jesus e o Pai daquele existente entre
seus discípulos e Deus é visto por muitos intérpretes cristãos do Novo Testamento no emprego
dos pronomes possessivos, meu Pai e vosso Pai. Nosso Pai aparece apenas em Mt 6,9. A diferença
é principalmente estilística e quase certamente não possui significado doutrinai. É pouco provável
que Jesus realmente se referisse a Deus como “meu Pai”. A formulação nunca ocorre em Marcos,
e muito infreqüentemente em Q e Lucas. Em contraste, é frequente na camada redacional de
Mateus e j o ã o .j o 20,18 é a única passagem do Evangelho que pode estipular a diferença real entre
“meu” e “vosso": “Estou ascendendo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Por
outro lado, a passagem pode simplesmente enfatizar um relacionamento recíproco.
30 O imaginário mitológico de um “deus-pai”, cercado de “filhos de deus" (ben ê’ elohïm ou hen ê’
eïim) comum na Bíblia, parece ter perdido em grande parte suas conotações originais e não
necessitam de um exame detalhado neste ponto.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 159

YH (W) e ‘EL e resultam em AbiYAH ou Abbi Y ahu (Yah ou Yahu significam meu
Pai), ou Y oab (Y o é o Pai). Do mesmo modo temos Abbi eL e Euab (Deus é o
Pai) em nomes judaicos da era pré-exilica e do Segundo Templo. ABram e Asiram
(Pai excelso e Meu Pai é exaltado), que podem ser rastreados à idade patriarcal,
representam o mesmo tipo. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” perma­
necem vagas, não pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o
relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de família.
Essa antiga atitude subjacente é explicitamente expressa, principalmente em
termos coletivos que se aplicam a membros da nação judaica. Descrevem Deus
como seu Pai e Deus faz alusão a eles como seus filhos. A mais antiga atestação
é a célebre passagem de Ex 4,22 onde, segundo a tradição J, Moisés se dirige ao
Faraó:

Assim disse o Senhor, “Israel é meu filho, meu primogênito”.

Em Dt 32,6, o Cântico de Moisés formula a seguinte pergunta:

Não é ele teu Pai que te criou, te fez e te estabeleceu?

Em outros exemplos do Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, “Vós sois os
filhos do Senhor vosso Deus” (14,1), ora transmite a mesma mensagem por meio
de uma comparação:

Sabei pois, em vosso coração, que assim como o homem disciplina seu
filho o Senhor vosso Deus vos impõe sua disciplina (8,5).

O mesmo tipo de imagem é usado em SI 103,13, em relação aos devotos:

Assim como um pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor
tem devoção daqueles que o temem.

Na literatura profética. Deus é representado proclamando o vínculo Pai-filho


entre ele mesmo e Israel:

Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).

E onde lhes foi dito; “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus
vivo” (Os 2,1 [Trad. Ing. 1,10]

Pois sou um pai para Israel e Efraim é meu primogênito (]r 31,9).

A aplicação individual da reciprocidade Pai-filho é limitada à relação entre Deus


e o rei de Israel na profecia de Natã a Davi e na poesia do saltério. No primeiro
caso, a promessa divina de adoção refere-se a Salomão:
160 A Religião de Jesus, o Judeu

Eu serei seu Pai e ele será meu filho (2Sm 7,14).

Nos Salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização,
declaração dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da
soberania politica judaica;

Tu és meu filho, hoje eu te gerei (SI 2,7).

Entretanto, enquanto a metáfora parece familiar, a referência comunitária a


Deus, em forma de prece, como “nosso Pai” ocorre relativamente tarde, em
passagens da literatura pós-exílica;

Pois tu és nosso Pai,


já que Abraão não nos conhece
e Israel não nos reconhece,
Tu, ó Senhor és nosso Pai,
nosso Redentor; este é teu nome desde a antigüidade. (Is 63,16)

O paralelismo entre Deus e Abraão é do maior significado e a associação de Pai


e Redentor também é reveladora.

O Senhor, tu és nosso Pai; somos a argila e tu és nosso oleiro, somos o


trabalho de tuas mãos (Is 64,7 [Trad. Ing. 64,8]).

Como mostra o contexto, “Pai” e “Oleiro” são intercambiáveis. Ao mesmo tempo,


não é ao poder supremo do Criador mas ao amor e à compaixão do “Pai” que o
suplicante apela.
Ainda num sentido coletivo, mas reduzido do nivel nacional ao sacerdotal,
o profeta Malaquias escreve:

Um filho honra seu pai e um servo seu senhor. Se sou um Pai, onde está
minha honra? E se sou um Senhor, onde está meu temor? — diz o Senhor
dos exércitos a vós, ó sacerdotes (1,6).

Não temos todos um Pai? Não foi um único Deus que nos criou (2,10)?

Dirigir-se a Deus como Pai por um indivíduo é limitado na Bíblia ao rei


(Messias?), como é aparente em SI 89,26-28, onde se diz que Deus citou a
confissão de Davi e expressa sua reação benevolente a esta confissão;

Ele me invocará, “Tu és meu Pai,


meu Deus e a Rocha de minha salvação”
E eu farei dele meu primogênito
o mais alto entre os reis da terra.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 161

Guardarei para ele meu constante amor para sempre,


e minha aliança com ele permanecerá firme.

2. O Pai na literatura intertestamentária

Passando aos Apócrifos, a Sabedoria de Ben Sira proporciona três exemplos


de um apelo a Deus como Pai; um em grego, “ó Senhor, Pai e Soberano de minha
vida” (23,1); um em hebraico, “Eu te louvarei, ó meu Deus, minha salvação, eu
te agradecerei meu Deus, meu Pai (51,1)] e uma em ambas as línguas, “Exaltei
o Senhor: tu és meu Pai” (51,10). A expressão “Deus, Pai e Soberano” ocorre
igualmente nas palavras introdutórias de um discurso de Josué aos judeus,
reproduzido porjosefo em Ant. v. 93.
Entre os Pseudo-epígrafos, a literatura do Testamento parece favorecer o
simbolismo do Pai embora a evidência disponível seja escassa. No Testamento
de Ju dá 24,2, os céus se abrem e “o espírito do santo Pai” se derrama sobre o
Messias descrito como a Estrela que surge d ejacó e como o sol da retidão. O
Testamento de Jó (HJP 111, 552-5) fala do esplendor do trono de Jó que se
materializa da mão direita do “Pai” (33,3) e descreve seu “reino” entre “as
carruagens do Pai” (33,9); seus louvores são igualmente dirigidos ao “Pai” (40,2).
Finalmente, o Testamento de Abraão em grego (recensão A; cf. HJP 111, 761-7)
por três vezes associa “Deus e Pai” em contextos de preces.
Dever-se-ia notar, de passagem, que Filo reveste regularmente seu conceito
do “Pai” de um colorido definitivamente judaico, no sentido em que seu
Deus-patêr não aparece meramente como a causa primeira dos gregos, mas
também como “o protetor amante e que ajuda seus filhos”.^*
Nos escritos de Qumran, o imaginário do Pai também é escassamente
atestado. O Florilégio ou Midrash dos Últimos Dias da Caverna 4 reemprega 2Sm
7,14 (cf. acima p .l60) em contexto messiânico ao mencionar “o Ramo de Davi
que surgirá com o Intérprete da Torá [para governar] em Sião [no final] dos
tempos” (4Q 174 l,lls e g .). Além desse texto e do Cântico do Sábio da Caverna
4, em estado muito fragmentário, onde Deus é por duas vezes invocado como
’avínü (4Q 502 39 3, 511 127 1),^^ e outras passagens que contêm a invocação
“Meu Pai e meu Deus” no Apócrifo de José (4Q 372), o único exemplo importante
aparece num Hino de Graças (IQ H 9,34seg.):

Até eu envelhecer Tu cuidarás de mim;


pois o meu pai não me conheceu

31 E. R. Goodenough, An Introduction to Philo Judaeus (1962), 38, 85seg. Cf. Moses ii. 238-41; Opif.
81, 171.
32 Cf. Eileen M. Schuller, “The Psalm of 4Q 372 1 within the Context of Second Temple Prayer”, CBQ
54/1 (1992), 67-79.
162 A Religião de Jesus, o Judeu

e minha mâe me abandonou a Ti.


Pois tu és um
para todos [os filhos] de Tua verdade ...

O poeta parece comparar a indiferença do seu pai humano ao cuidado e amor


de Deus. O elemento mais importante desta descrição de Deus como Pai é a
ênfase dada à afeição dos pais e mesmo ao amor materno, manifesto na
continuação do Hino: “E como uma mulher que ama seu bebê com ternura, assim
Tu te alegras com eles (IQ H 9,35seg.).^^

3. O Pai nos escritos rabínicos

Um olhar de relance á atribuição do termo Pai a Deus pelos sábios da Mishná,


do Midrash e do Talmude levará primeiramente em consideração as referências
ao “Pai que está no céu” e, em segundo lugar, apontará alguns poucos exemplos
do conceito em contextos hassídicos, carismáticos e de “voz celestial”.
A alusão a Deus como “Pai celeste”, determinada por diversos pronomes
possessivos, é comum na literatura tanaítica e encontra-se usualmente associada
à prece. Eis alguns exemplos;

A cada vez que os israelitas dirigiam seus pensamentos aos céus e


submetiam seu coração a seu Pai que está no céu, eles saiam vitoriosos ...
eles eram curados (mRSh 3,8).

Em quem confiaremos? Em nosso Pai que está no céu (mSot 9,15).

Judá ben Tema disse: Sede fortes como o leopardo e ligeiros como a águia,
velozes como a gazela e bravos como o leão para fazer a vontade de vosso
Pai que está no céu (mAb 5,20).

A fórmula “meu Pai que está no céu” ocorre também em textos midráshicos,
quase automaticamente no discurso de primeira pessoa. Assim, ao fim de sua
célebre exposição de Ex 20,6: “daqueles que me amam e guardam meus
mandamentos”, referindo-se aos mártires judeus da perseguição de Adriano,
depois de citar Zacarias 13,6, R. Natã, do início do segundo século, conclui:

Estas feridas fizeram com que eu fosse amado por meu Pai que está no céu
(Mekh sobre Ex 20,6, Lauterbach II, 247).

33 Utn imaginário algo similar pode ser encontrado no Targum Fragmentário (Vaticano 440) sobre
Ex 15.2. “Ao seio de suas mâes os bebês apontam o dedo para seus pais e dizem: Este è nosso Pai
que nos amamentou com [mel tirado] das rochas e nos proveu com o óleo da pedra lascada. Cf.
Michael Klein, “The Targumic Tosefta to Exodus 15.2”, JJS 26 (1975), 61-67; ver também idem,
The Fragment-Targums o f the Pentateuch according to their Extant Sources (1980), in loc.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 163

Outro exemplo impressionante figura em Sifra sobre o Levítico (ed. Weiss 93d):

Disse R. Eleazar ben Azariá; que ninguém declare, “Não desejo ... carne
de porco ou sexo proibido, mas deve-se dizer, embora os deseje, que
posso fazer se meu pai que está no céu me deu este mandamento”

Por último, deve-se mencionar o Kádish, a antiga prece aramaica, definitivamente


existente na idade dos tanaim e semelhante, quanto à ideologia, à parte da
introdução do Padre Nosso. Os excertos relevantes são;

Exaltado e santificado seja seu grande nome ...


Que ele estabeleça seu Reino em vossa vida ...
Que as preces e súplicas de todo Israel sejam
aceitáveis perante seu Pai que está no céu ...

Voltando agora à relação Pai-filho no contexto das tradições dos homens


santos, assunto já abordado em Jesus the Jew (pp. 206-10), vista da perspectiva
celestial, ela é expressa em termos filiais, e como nos relatos do Novo
Testamento sobre o batismo e a transfiguração de Jesus, por intermédio de
uma voz celestial. Uma história talmúdica, atestada na tradição amoraica
atribuída a Rab, do início do terceiro século, mas referente ao carismático do
primeiro século, Hanina ben Dosa, se enquadra perfeitamente no contexto
galileu dos Evangelhos.

A cada dia uma voz celestial (bat qõl) vem [do Monte Horeb (bBer 17b)j,
dizendo; “Todo o mundo é sustentado apenas devido a Hanina, meu filho,
entretanto para Hanina, meu filho, apenas uma medida de alfarroba é
suficiente na véspera de um sábado até a próxima (bTaan
24b/bHul 86a).”

Do ponto de vista terreno, o hassid em prece é retratado quase automaticamente


na Mishná como alguém que pensa em Deus como seu Pai.

Os antigos hassídim esperavam uma hora antes de iniciar as orações para


concentrar seu coração em seu Pai que está no céu (mBer 5,1).

34 Segundo Joseph Heinemann, ao rezar em particular, o indivíduo se vê como um filho e se dirige


a Deus como “Nosso Pai”, “Nosso Pai que estás no céu”, “Nosso Pai, nosso Rei”, “Pai Caridoso”,
etc. (Prayer in the Talmud (1977), 189seg.).
35 Hanina ben Dosa é descrito como o provedor da humanidade devido a sua prece que,
miraculosamente, acabou uma estiagem. Em bHag 14a, é dito que sua geração foi favorecida pelo
céu. Para tornar claro que a voz é realmente de Deus, a menção do Horeb é incluída em bBer 17b
e bHul 86a.
164 A Religião de Jesus, o Judeu

Mais especificamente, um relato aramaico referente ao outro carismático causa­


dor de chuvas, Hanan, bisneto de Honi, inclui num contexto de prece a forma
de tratamento Abba, dirigida tanto a Deus quanto ao homem santo.

Quando o mundo precisava de chuva, nossos rabis costumavam mandar


as crianças de escola a ele (Hanan); estas agarravam as franjas de seu
manto e diziam, “Abba, Abba, dai-nos chuva!” Ele disse [a Deus]: “Senhor
do mundo, fazei algo por aqueles que não sabem distinguir entre o Abba
que dá a chuva e o Abba que não o faz”.^®

4. Elementos tradicionais e individuais na doutrina de Jesus quanto ao Pai celeste.

Nâo é de todo surpreendente que a compreensão de Deus como o Pai celeste,


típico da pregação de Jesus, se enquadre no desenvolvimento do pensamento
religioso judaico precisamente onde é de esperar. Num esboço esquemático que
vai desde a Bíblia até os rabis, a idéia do Pai divino se desloca para o nível coletivo
a partir do Criador/Gerador do povo judeu (dentro da humanidade) em direção
ao Protetor amante e afetuoso do membro individual da família. A transformação
se inicia com os Apócrifos/Pseudo-epígrafos, desde os inícios do segundo século
a.C. em diante, com Criador-Gerador-Senhor ainda intercambiáveis. Àépoca dos
sábios tanaíticos, no segundo século A.D., o Pai celeste é o Deus providencial,
distinto do Deus Rei-Juiz-Soberano, e a imagem paternal é nitidamente muito
familiar no meio hassídico-carismático. A majestosa liturgia do Templo de
Jerusalém é o solo nativo genuíno da noção augusta do Senhor do universo, justo
e todo-poderoso.
Procurando enquadrar o ensinamento de Jesus na história religiosa do
judaísmo, não se pode deixar de notar o quanto este ensinamento está mais
próximo do antigo hassidismo ou mesmo dos rabis da idade da Mishná do que
da ideologia da comunidade de Qumran. Como foi mostrado, toda a literatura
dos Pergaminhos do Mar Morto quase não oferece qualquer uso direto da idéia
do Pai divino e apenas um único exemplo de um Pai amante. Nenhum dos hinos
de Qumran, embora sua maioria consista de preces individuais, dirige-se ao Pai,
mas começam, como regra, com “Agradeço-te, ó Senhor”. Os especialistas que
ainda insistem na idéia de Qumran como a principal fonte comparativa para o
estudo da mensagem de Jesus deveríam ter em mente este ponto crucial dos
respectivos conceitos de Deus.
Um traço negativo, porém significativo, repetidamente enfatizado nas pági­
nas anteriores, da representação de Deus por Jesus consiste na ausência de
qualquer figura real e de uma autodesvalorização e auto-rebaixamento corres-

36 bTaan 23b. C f.JJ, 211. Ver também acima, pp. 23, n.6 e M6).
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 165

pondentes diante do Senhor divino. Pelo contrário, a devoção praticada e


pregada por Jesus, como a dos hassidim de antigamente, caracteriza-se pela
confiança e esperança simples. Antes que a tremenda majestade de um Juiz
divino fosse vaticinada em seguida ao advento do Dia do Senhor, Jesus e seus
seguidores, no estabelecimento do Reino, voltavam-se para inspiração, ajuda e
força de propósito ao Abba celeste.
É desnecessário dizer que a representação de um Pai amante e solícito não
se ajusta à experiência humana de um mundo duro, injusto e cruel. Naquela
época como agora, os filhotes implumes ainda caem do ninho, os pequeninos
morrem e, como o próprio Jesus logo iria experimentar, os inocentes sofrem.
Seria engano imaginar que ele oferecesse a seus seguidores uma espécie de
imagem sentimentalmente antropomórfica. Mas o que se encontra no âmago de
sua intuição e empresta individualidade e caráter de novidade a sua visão é a
convicção de que o eterno, distante, dominador e terrível Criador é também
primariamente um Deus próximo e que pode ser alcançado.

Apêndice; Abba não é Papai!^^

Em Abba. Studien zur neutestamentlichen Theologie und Zeitgeschichte (1966),


publicado em sua substância em inglês com o título The Prayers o f Jesus (1967),
Joachim Jeremias apresenta várias teses inovadoras que provocaram profunda
impressão entre os estudiosos do Novo Testamento durante o último quarto de
século. Seu argumento bastante complexo que, segundo Barr (p. 30), “mostra
certos sinais de inconsistência”, pode ser resumido como se segue:
(a) O termo aramaico abba é “uma expressão puramente exclamatória”,
como em Pai\, e não um aspecto enfático correspondente em inglês a um
substantivo acompanhado do artigo definido (=o pai) (Prayers, 58).
(b) A origem de abba se encontra no balbuciar do “falar infantil”. A
geminação ab-ba (“Dadá”) tem como modelo o chamado mais freqüente do bebê
à Im-ma (“Mama”), (ibid.).
(c) Esta forma de invocação é de tom tão familiar que sua associação com a
Deidade chocaria os judeus comuns de língua aramaica como “desrespeitosa”
(p. 60).
(d) Seu emprego por Jesus era “algo de novo e inaudito” (p. 62).
(e) Abba, no aramaico da Palestina, tornou-se uma expressão polivalente. As
diversas expressões nos Evangelhos em grego, como “o Pai”, “Pai!” (vocativo) e

37 As palavras deste cabeçalho reproduzem o título irônico de um excelente artigo publicado por
James Barr em JTS 39 (1988), 28-47.
166 A Religião de Jesus, o Judeu

também “meu/teu/nosso Pai” (substantivo acompanhado de sufixo pronominal)


(pp. 59seg.) podem todas ser rastreadas ao Abba de Jesus.
Esta teoria, e especialmente a derivação do termo da linguagem infantil,
influenciou em muito a recente literatura sobre o Novo Testamento, apesar do
fato que o próprio jeremias tivesse reservas sobre o assunto.^®
Lançando um olhar não seletivo a livros publicados entre 1979 e 1991,
encontrei as seguintes explicações para o termo “Abba”: “Chamado familiar de
uma criança a seu pai terreno” (C. Rowland); “Abba significa ‘querido pai’” (I.
M. Zeitlin); “meu Pai querido” 0- P- Meier); “O termo de Jesus ... é Abba ... que
pode também ter a conotação familiar de ‘Papai’” Q- H. Charlesworth); “Abba,
‘Papai’” (C. Perrot).^^
As implicações são de grande monta porque, se Jeremias estiver correto, o
estilo babitual de Jesus ao se dirigir a Deus e ao se referir a ele seria tão peculiar
a ponto de representar uma idiossincrasia. Da perspectiva histórico-crítica,
poderia significar que a tradição doutrinal judaica seria incapaz de lançar alguma
luz sobre os usos do Evangelho.
À luz dos exames que acabamos de fazer, pode-se dizer que Jeremias
definitivamente compreendeu mal a evidência e talvez até a interpretou mal por
teimosia. De maneira sumária, eu já argumentei (JWJ, 42) que no aramaico
empregado pelos judeus o termo Abba pertencia não apenas ao falar de crianças
como também podia ser usado no contexto solene, “religioso”, de um juramento,
como por exemplo no Targum Neofiti sobre Gênesis 44,18, onde o Patriarca Judá,
enfurecido, jura “pela vida e pela cabeça de Abba (=Jacó) matar todos os egípcios,
ou, na linguagem “adulta” ainda mais explícita das filhas de Ló, ao planejar um
segundo incesto com o “pai”, segundo o Targum Neofiti sobre Gênesis 19,34.

No dia seguinte, a filha mais velha disse à mais nova: Vê, eu dormi com
Abba ontem. Vamos fazê-lo beber vinho também hoje. Vai e dorme com
ele para termos filhos de nosso pai.

38 “Lemos frequentemente (e eu mesmo acreditei até certo tempo) que, quando Jesus se dirigia a
seu Pai celeste, ele assumia o balbuciar de uma criança. Admitir isto seria uma mostra de
ingenuidade inadmissivel” (p. 62). Entretanto, nas pp. 59 e 109 ele escreve: “... nunca foi
esquecido que abba deriva da linguagem de crianças pequenas” e “... em sua forma vocativa,
originalmente um exemplo do falar infantil que então passou a ser usado geralmente .... em bora
a m emória de sua humilde origem nunca se tenha perdido “ (grifos meus).
39 Cf. C. Rowland, Christian Origins: An Account o f the Setting and Character o f the most important
Messianic Sect o f Judaism (1985), 255; I. Zeitlin, Jesus and the Judaism o f his Time (1988), 62; John
P. Meier, A Marginal Jew : Rethinking the Historical Jesus (1991), 175; J. H. Charlesworth, Jesus
withinjudaism : New Light fro m Exciting Archaeological Discoveries (1989), 134; C. Perrot, Jesus ei
I’histoire (1979), 280. A edição revisada da Biblia de Lutero traduz Abba em alemão por “lieber
Vater” [“querido Pai”).
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 167

De maneira muito independente, James Barr, em seu minucioso exame filosófico,


chegou à mesma conclusão básica. Ele observa ironicamente que a teoria de
Jeremias, vinculando Abba a crianças, considera uma situação que antedata Jesus
em “alguns milênios”. “Como explanação de Abba nos tempos do Novo Testa­
mento, o balbuciar infantil não faz sentido” (p. 34).““
O segundo argumento de Barr contra Jeremias enfatiza que o testemunho
dos seguidores dejesus não indica nenhuma percepção de algo de extraordinário
na maneira dejesus se dirigir a Deus. Os Evangelhos gregos empregam regular­
mente (ho) patêr, isto é, (o) pai, e não o diminutivo papas ou pappas (pai ou
papai). Estas palavras nunca figuram no Novo Testamento porque são “muito
inapropriadas ao estilo bíblico” (p. 38).
Em terceiro lugar, a afirmação de Jeremias — cf. acima — que Abba tem uma
função vocativa e que representa “pai!” bem como “meu paii”, etc., também é
incorreta. Nas três passagens do Novo Testamento onde o termo aramaico
aparece (Mc 14,36; Rm 8,15; G1 4,6) e é seguido de sua tradução grega, esta
tradução é sempre ho patêr, isto é, o nominativo precedido pelo artigo definido
e não o vocativo grego patêr (p. 40).
Finalmente, desde que o próprio Jeremias aceita que a expressão “Nosso Pai
que estás no céu” era corrente no primeiro século A.D., sua asserção “reforçada”
no sentido de que dirigir-se a Deus como “Pai” era extremamente raro antes de
Jesus perde todo o sentido (p. 45). Conseqüentemente, escreve Barr, “não se
pode impedir de sentir que Jeremias fez do não-uso de Abba ... um assunto
apologético” (p. 46).
Resumindo, a teoria de Jeremias, popular até agora, não encontra fundamen­
to filológico. A conclusão literário-histórica dessa teoria, vale dizer, que antes de
Jesus os judeus não se dirigiam a Deus como Abba, não é apenas incomprovada
como também implausível.

40 Atitude semelhante é revelada na tese de Jeremias de que os rabis talmúdicos teriam copiado
Jesus ao formular suas parábolas narrativas. Cf. The Parables o f Jesus (1972), 12. Cf. acima p. 97).
Jesus, o Homem Religioso

Estamos tão habituados ... a fazer de Jesus o objeto da religião que nos
tornamos capazes de esquecer que em nossos registros mais antigos ele
é retratado não como o objeto da religião, mas como um homem religioso.
(Thomas Walter Manson, The Teaching of Jesus (1953), 101.)

Esta declaração incisiva, feita por um renomado especialista inglês do Novo


Testamento define com muita precisão o ângulo pelo qual a sintese da religião
pregada e praticada por Jesus deve ser abordado.
Os elementos essenciais desta religião foram identificados e analisados nos
capítulos precedentes. Tudo que resta agora é completá-los quando necessário
e dar relevo à inspiração central de Jesus e aos traços salientes de seu ensina­
mento e ação.
A religião de Jesus é autenticamente judaica. Mas mesmo assim, sua própria
espécie de judaismo demonstra traços específicos parcialmente atribuíveis ao
espírito escatológico-apocalíptico que permeava a idade na qual ele viveu e, em
parte, no nível subjetivo, à sua própria maneira de pensar. Para fazer ressaltar
as diferenças tão claramente quanto possível, farei um esboço da corrente
principal do judaísmo do primeiro século A.D., o qual, se forem feitas as devidas
concessões ao estado alterado das circunstâncias (por exemplo, a destruição do
Templo), se encontra em linha com a religião dos últimos rabis, e sua versão
escatológica paralela é representada pela comunidade essênia de Qumran.
I. O judaísmo do fim do Segundo Templo é resumido com notável concisão
num pronunciamento atribuído a Simão, o Justo, provavelmente o Alto Sacerdote
saduceu Simão II (c. 200 a.C.). Ele foi elogiado pelo sábio Jesus ben Sira (Eclo.
50), e definido em PirkeAbot como o elo final na cadeia que une os homens da
Grande Sinagoga, desde Esdras e Neemias aos protofariseus do segundo século
a.C. Segundo Simão, os pilares que sustentam o mundo são a Torá, o culto e os
atos de misericórdia (mAb 1,2); em outras palavras, a tríplice prática judaica de
obediência aos mandamentos de Deus, desempenho do ritual do Templo e ação
moral resumida como caridade com amor.
170 A Religião de Jesus, o Judeu

No que diz respeito ao culto no Templo, é importante enfatizar que,


embora considerado como o mais sagrado de todos os propósitos religiosos
pelas autoridades sacerdotais, tais como Simão, o Justo, e seus seguidores,
este culto representava o menor significado tangível para os judeus leigos que
residiam longe de Jerusalém. Para os habitantes da Terra Santa, a visita ao
Santuário era, em teoria, um evento que se repetia a cada três anos, com a
duração de sete dias. Quantos realmente compareciam, é impossível de
assegurar, especialmente quando se considera que a viagem para Jerusalém
e a respectiva volta poderia, para muitos, representar mais que o dobro do
tempo passado longe dos campos de cultivo ou das oficinas; e para aquela
maioria do povo judeu que vivia na Diáspora e como tal era isenta da
peregrinação obrigatória, esta pareceria como um sonho que se esperava
realizar talvez uma única vez na vida. Este fato deveria ser levado em conta
quando se considera a falta particular de interesse da parte dejesu s pelo culto
no Templo, e a fortiori, em qualquer tentativa séria de compreender a relativa
facilidade com a qual os judeus de fins do primeiro século e inícios do
segundo sobrepujaram a crise criada pela destruição do Santuário.‘
Escritores judeus, tais como Filo e Flávio Josefo, que viveram no início da
era comum e foram, falando de modo geral, contemporâneos de Jesus e dos
evangelistas, percebiam sua religião como um fenômeno histórico. Eles a viam
como prefigurada na história dos patriarcas antes da revelação a Moisés no Sinai.
Considerada como enraizada no passado bíblico, esperava-se que continuasse
por toda a idade atual do mundo. Mesmo assim, quando tentavam descrevê-la
brevemente, eles instintiva e regularmente a resumiam como o cumprimento de
um código de comportamento, divinamente ordenado e transmitido, para com
Deus e os homens. Destinada ao mesmo tempo ao indivíduo e à sociedade, esta
Tord/Instrução ou Nomos/Lei era concebida como o judaísmo essencial, o
melhor de todos os sistemas religiosos. Idealmente, este conhecimento das leis
de Deus e a obediência a elas constituíam uma segunda natureza do judeu.
Assim, Josefo escreve:

Pois é bom que estas leis sejam gravadas nos corações e na memória para
que nunca sejam apagadas ... Que as crianças também comecem por
aprender as leis, a mais bela das lições e fonte de felicidade [Ant. iv. 210
seg.).

1 Neste ponto discordo frontalmente da tese de E. P. Sanders, tanto em Jesus and Judaism quanto
em Judaism : Practice and Belief, onde a importância do papel do Templo é, em minha opinião,
grandemente superestimada.
Jesus, 0 Homem Religioso 171

Acima de tudo, nós ... consideramos a tarefa mais essencial da vida a


observância de nossas leis e as práticas piedosas nelas fundamentadas
(C. Ap. i.60).

Josefo assegura que a familiaridade com a Torá era tão profunda como se
estivesse escrita no coração de cada israelita e a decorrente ação religiosa era
vista quase como instintiva.

Acaso alguém de nosso povo seja questionado a respeito das leis, ele as
repetirá muito mais prontamente que seu próprio nome. O resultado,
pois, de nosso completo embasamento nestas leis desde o primeiro raiar
da inteligência é que as possuímos como que gravadas em nossas almas
(C. Ap. ii. 178).

A mesma idéia, expressa quase em palavras idênticas, já aparecia em Filo.

Sustentando que as leis são oráculos concedidos por Deus e tendo sido
treinados nesta doutrina desde os primeiros anos, eles (os judeus) levam
a cópia dos mandamentos como um relicário em suas almas (Legat. xxxi.
210 ).

Ambos autores enfatizam que toda a vida do judeu é um ato ininterrupto de


obediência religiosa aos mandamentos divinos, do berço ao túmulo (Legat. xvi.
115).^
Esta incessante preocupação com os estatutos divinos era claramente incom­
preendida, pace Paulo de Tarso, como um mero desempenho das “ações” da Lei.
Josefo infunde todos os mandamentos com um poderoso conteúdo religioso-mo­
ral,^ e Filo, como é bem conhecido, descobre profundos mistérios espirituais nos
estatutos mais prosaicos. Entretanto, mesmo ele, o arquialegorizador, enfatiza
uma prática do judaísmo que, embora buscando a verdade transcedental,
observa também o significado simples da Torá. Em seu estilo ornado, o sábio de
Alexandria insiste na realidade dual da religião judaica.

Existem alguns que, considerando as leis em seu sentido literal, à luz dos
símbolos de matérias que pertencem ao intelecto, são por demais
escrupulosos sobre estas últimas, enquanto tratam as primeiras com uma

Josefo se orgulha de seu aprendizado precoce. “Quando eu era apenas um menino, por volta dos
catorze anos, obtive aplauso universal por meu amor às letras; a tal ponto que os principais
sacerdotes e os homens influentes da cidade me procuravam constantemente para receber
informação precisa sobre algum caso particular em nossos mandamentos” (Life 9). Comparada
a esta afirmação, a lenda de Jesus aos doze anos de idade, sentado no Templo entre os mestres,
ouvindo suas lições, fazendo-lhes perguntas e os surpreendendo com sua compreensão e
respostas (Lc 2,46seg.), aparece como um semiclichê, expresso em termos moderados.
Cf. G. Vermes, “The Summary of the Law by Flavius Josephus”, NT 24 (1982), 289-303.
172 A Religião de Jesus, o Judeu

fácil negligência. A estes homens, eu, por minha parte, os reprovaria por
manipular o assunto de modo ligeiro e descuidado; eles deveriam prestar
uma atenção cuidadosa a ambos os objetivos, a uma investigação mais
completa e exata daquilo que não é visto e no que é visto como sendo os
guardiães impecáveis (Migr. xvi.89).

Além da pressuposição de uma cultura urbana, normal em Jerusalém ou Alexan­


dria, mas improvável entre os pescadores e lavradores nas aldeias da Galiléia, o
que distingue este ponto de vista da visão religiosa de Jesus é a ausência de uma
perspectiva escatológica. O judaísmo de Filo e dejosefo, antecipando o dos rabis
do pós-70 A.D., era primeiramente abordado por um ângulo comunal, e era
distinguido por uma religiosidade nomocêntrica, vale dizer, fundamentada antes
na Torá /Lei do que no Templo.“'
2. Quanto à variedade essênia ou de Qumran de judaísmo, sua essência era
igualmente comunal e nomocêntrica, mas, como era igualmenie imbuída de um
espírito de expectativa escatológica, sua atitude para com a Torá tomou uma
forma peculiar. Porque, se os sectários acreditavam que a mensagem de Moisés
era o único caminho que levava a Deus (IQ S 1,1-3), que a admissão à Comuni­
dade era condicionada a um retomo integral à Lei mosaica (IQ S 5,8), e qualquer
transgressão deliberada ou mesmo involuntária de um único mandamento
resultava em expulsão irrevogável (IQ S 8,21-23), eles também estavam conven­
cidos de que a obediência genuína à Torá só era possível por meio de revelações
adicionais e indispensáveis no tocante ao fim dos tempos e transmitidas, seja
pelos Sacerdotes, filhos de Sadoque (IQ S 5,9) ou pela Congregação (4QSd).^
Sem a chave escatológica para o livro fechado da Lei, e em particular para o
calendário religioso, qualquer obediência era julgada ilusória, uma armadilha
oferecida por Satã como uma espécie de retidão (CD 4,15-17) para apanhar
judeus pouco esclarecidos. E, enquanto os Pergaminhos declaram claramente a
necessidade da devoção interior, eles enfatizam substancialmente, do mesmo
modo que a ortodoxia farisaica e rabínica, assuntos relativos à pureza ritual de
origem cultuai. Resumindo, a Comunidade ensinava que a única devoção que
conduz ao Reino de Deus era a inspirada pelas revelações divinas suplementares
ás da Torá, comumente conhecidas, e outorgadas ao Mestre da Justiça e aos
outros mestres carismáticos essênios. O ingrediente profético, conspiquo nos
escritos do Mar Morto, serviu para enriquecer e fortalecer o centro mosaico do
judaísmo de Qumran.

A superioridade da Lei em relação ao Templo é tanto mais notável já quejosefo era certamente,
e Filo possivelmente, de descendência sacerdotal. Cf. Josefo, Life I; jerõnimo. De viris illustribus
II: “Philon... de genere sacerdotum”. Ver HJPIII, 814seg.
C f G. Vermes, “Preliminary Remarks... ”,JJS 42 (1991), 250-55; “Qumran Forum Miscellanea I”,
JJS 43 (1992), 300seg.
Jesus, 0 Homem Religioso 173

Finalmente, é digno de nota que, sem dúvida devido às circunstâncias


históricas que criaram uma brecha temporária entre a seita e o santuário de
Jerusalém antes do início real da última fase (escatológica) da idade atual, o
oferecimento de sacrifícios, parte integral da religião do Segundo Templo, era
simbolicamente substituído pela prece, “a oferenda dos lábios” (IQ S 8-9), como
se tornaria igualmente, após 70 A.D., no judaísmo rabínico e posterior.

1 O Judaísmo Escatológico de Jesus

O exame realizado no capítulo 2 demonstrou que, em seu ensinamento e


observação religiosa, Jesus não só não demonstrava hostilidade à Torá, em
principio, nem recusava obedecê-la na prática, pronto, quando necessário, a
escolher entre obrigações conflitantes, como também que ele reconhecia a Lei
de Moisés como a pedra fundamental de seu judaísmo. Esta atitude geral não
implica, entretanto, que seus interesses se igualavam aos da corrente principal
do pensamento e das práticas judaicas ou do essenismo de Qumran. Ele não se
preocupava com preceitos particulares nem com seus limites específicos, com
sua exegese tradicional, ou racional ou escriturai ou com base em revelação, mas
concentrava sua atenção no impacto geral da Torá na devoção religiosa indivi­
dual.
Quanto ao vocabulário relevante, o termo nomos figura 195 vezes no corpus
do Novo Testamento, mas, nos Evangelhos Sinóticos, está completamente au­
sente em Marcos, aparece apenas duas vezes em Mateus e se as cinco ocorrências
da palavra no evangelho da Infância de Lucas forem descontadas, duas vezes em
Lucas. A maior parte das atestações provêm dos assim chamados escritos
paulinos (135, se Hebreus forem incluídos), seguidos de Atos (18), o Quarto
Evangelho (15) e Tiago (10). A própria distribuição das ocorrências indica que,
enquanto o papel da Lei era central nas polêmicas doutrinais da igreja paulina
com o judaísmo liderado pelos fariseus no período pós-70 A.D. e com a
cristandade-judaica que obedecia a Torá, sua função na versão escatológica de
Jesus da iminência do Reino de Deus era de espécie bem diferente.
Esta diferença de perspectiva pode ser devida a uma concatenação de causas
mas a visão escatológica é provavelmente a principal. Uma religião tal como o
judaísmo tem uma dimensão social como centro e considera um futuro continuo
tanto para o grupo quanto para seus membros de maneira a poder corrigir erros
existentes e se esforçar à perfeição ao longo de um caminho intemporal e
divinamente preestabelecido. Numa atmosfera escatológica verdadeira, a mu­
dança é total. O futuro, para todos os fins e objetivos, é abolido e substituído
pela iminência, proximidade e urgência. Em sua ausência, o coletivo é fragmen­
tado em suas partes constituintes, e em vez de uma busca do progresso e do
174 A Religião de Jesus, o Judeu

aperfeiçoamento da sociedade, homens e mulheres isolados têm de se defrontar


imediatamente com uma opção e escolha derradeiras. Não existe uma segunda
oportunidade para alguém que está convencido de que o Reino de Deus está
próximo. Um otimismo tranqüilo não encontra lugar na idade final de crise e
tumulto. A paz é enganosa: é apenas um intervalo antes da guerra final.
O entusiasmo escatológico® perde inevitavelmente sua intensidade quando
o fim é postergado. A interpretação da procrastinação divina é que se trata seja
de uma período voltado para provar a paciência e a perseverança das pessoas,
ou um ato favorável, que concede mais tempo para o arrependimento. Assim, o
intérprete sectário de Qumran da profecia de Habacuc descreve o prolongamento
da idade final como se estendendo além de toda expectativa profética e urge os
membros da Comunidade para que não esmoreçam no “serviço da verdade”,
firmes no conhecimento de que “todas as idades de Deus chegarão ao seu fim
previsto, tal como é determinado nos mistérios de sua sabedoria” (IQpHab
7,7-14). Esta aquiesciência essênia faz vislumbrar um desapontamento seme­
lhante, ligado a uma esperança renovada senão revisada, no final da era, no Novo
Testamento, magnificamente retratado no capítulo 3 da Segunda Epístola de
Pedro:

Antes de mais nada, deveis compreender que nos últimos dias virão os
escamecedores com seus escárnios ... e dizendo “Em que ficou a
promessa de sua vinda?... Mas não ignoreis este fato, amados, de que para
o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos apenas um dia. O Senhor
não tarda em cumprir suas promessas ..., mas usa de paciência para
convosco, por não desejar que ninguém pereça, mas que todos alcancem
o arrependimento. (2Pd 3,3-9).

A partir daí, com o dia do Senhor ainda não realizado, as chamas moribundas
da espera se apagam e onde, em teoria, a epifania de Deus ainda era esperada,
apenas um simulacro de devoção voltava-se para a crença escatológica. Na
prática, a vida voltava ao normal e a religião revertia à sua costumeira e segura
realidade social. O cristianismo eclesiástico representa este estado final da
evolução. A religião de Jesus, o Judeu, é uma manifestação rara, possivelmente
única do entusiasmo escatológico em sua forma pura. Se a missão de Jesus teve
a duração de três anos, ou dois ou mais provavelmente apenas um, foi por demais
breve para abrir espaço a um desenvolvimento gradual de dúvida e mesmo de

A expressão é uma tradução livre do “entusiasmo da presença escatológica” (Enthusiasmus


eschatologischer Gegenwärtigkeit) de Martin Buber, cunhado em Zwei Glaubensweisen (1959) em
W erke I (1962), 707. A tradução para o inglês de Norman P. Goldhawk o interpreta como
“entusiasmo da atualidade escatológica". Cf. Two Types o f Faith: a Study o f the Interpenetration o f
Judaism and Christianity (1961), 76.
Jesus, 0 Homem Religioso 175

desencantamento quanto à iminência da intervenção decisiva de Deus nos


assuntos deste mundo.

II Os Corolários do Entusiasmo Escatológico de Jesus

Se Jesus realmente acreditava que o Reino de Deus estava próximo — e toda a


evidência disponivel aponta que ele assumiu todos os riscos a este respeito —
sua convicção de que restava muito pouco tempo para que as pessoas alterassem
seu rumo e se dedicassem sem reservas a “buscar o Reino”, permeava todos os
seus atos e definia a natureza especifica da devoção que procurava inculcar.
Diferentemente da visão religiosa que considera o futuro garantido e a vida num
contexto grupai solidamente estabelecido, o ardor escatológico exige uma com­
pleta ruptura com o passado, concentrando-se exclusivamente no momento
presente e agindo não em perspectiva comunitária mas pessoal.

I. Individualismo escatológico

Uma religião puramente escatológica sendo, pois, pessoal em sua natureza,


começa com um ato individual essencial e decisivo; o arrependimento. No
pensamento semita de Jesus, o judeu, isto não implicava em mudança de
mentalidade, como a metanoia dos Evangelhos gregos poderia sugerir, mas uma
reversão completa da orientação ao pecado, segundo o conceito dual hebraico
bíblico e pós-bíblico de “voltar-se”, isto é, “afastar-se do” ou “voltar a”, transmitido
pelo verbo shuv e pelo substantivo teshuvá.
A precondição de qualquer ato verdadeiramente religioso, seja seu próprio
batismo de arrependimento no Jordão ou de seus discípulos, representa a muito
mencionada teshuvá, o afastamento genuino de todos os empreendimentos não
centrados em Deus e “conversão” ao “Reino do céu”. Jesus nunca definiu a
essência, os requisitos e as consequências da teshuvá. Pouco familiar com
assuntos do Templo, não se poderia esperar que ele tivesse elaborado se o perdão
divino era precedido pela oferenda do “sacrifício do pecado” ou se a ela se seguia.
Em sua visão de mundo, esses particulares eram insignificantes.^

Podemos tomar como certo que as pessoas, mesmo o povo simples do campo, que obedeciam ao
seu chamado e, anteriormente, ao de João, sabiam instintivamente o que era esperado deles e
agiam de acordo. A questão do relacionamento informal entre arrependimento e perdão não os
incomodava muito. Tem sido questionado se Jesus se desviava do caminho ortodoxo ao declarar
os pecados de um homem perdoados sem arrependimento prévio, sem mencionar as prescritas
“oferendas do pecado", embora os sacerdotes do Templo, movidos por uma solidariedade dc
classe e por interesses próprios tivessem certamente insistido quanto a estas últimas (tai.s
sacrifícios formavam parte importante de seu rendimento: cf. HJPII, 260), pois para os discípulos
galileus de Jesus a questão era antes escolástica do que de significado real.
176 A Religião de Jesus, o Judeu

Diferentemente do ato comunal de arrependimento, parte integral da liturgia


como a cerimônia de Qumran de renovação da Aliança, a teshuvá oferecida por
Jesus por ocasião de seu batismo por João era pessoal.® Do mesmo modo o apelo
de Jesus ao arrependimento, poderia até se assemelhar a um movimento antico-
munidade já que deveria ser obedecido, se necessário, à custa de conflito no
interior da família ou do grupo social, como os Evangelhos, no rasto da profecia
biblica, claramente sugerem (Mt 10,21, 34-37; Lc 12,51-53; 14,26; cf. Mq 7,6).
A mensagem subjacente de Jesus é que cada homem ao se devotar a uma busca
integral do Reino de Deus, está essencialmente só.
Sendo a teshuvá pessoal, o perdão que se segue também o era, naturalmente.
O papel do próprio Jesus, neste ponto, quer dizer, que ele reivindicava para si
mesmo o direito de Deus do perdão dos pecados tem sido mal compreendido
por companheiros tão estranhos de causa quanto os hostis escribas da Galiléia
e cristãos piedosos de todos os tempos. Os primeiros o acusavam de blasfêmia
enquanto os últimos empregaram as mesmas palavras dejesus em apoio de sua
reivindicação no tocante à sua divindade. Mas este assunto não deve nos deter
por muito tempo. A principal passagem relevante nos Evangelhos Sinóticos, a
cura de um paralítico em Cafarnaum, pinta Jesus não perdoando mas declarando
que os pecados do doente estavam perdoados. Empregando a forma passiva e
uma expressão impessoal a qual, no pensamento semita de seu tempo era
automaticamente atribuída a Deus, ele certamente não reclama para si um status
divino. Ao minimizar seu papel de operador de curas carismático, ele atribui a
cura à fé do paralítico. A súbita capacidade de andar deste último, após anos de
imobilidade é prova de que seus pecados tinham sido perdoados (por Deus).®

2. A urgência escatológica

Numa religião animada pelo verdadeiro zelo escatológico, o tempo se


focaliza no presente. É verdade que a literatura escatológica está repleta de

A confissão essênia de pecados é formulada na primeira pessoa do plural. “Temos nos transviado!
Temos [desobedecido!] Nós e nossos antepassados antes de nós pecaram e agiram iniquamente
caminhando [contra os preceitos] da verdade e da retidão” (IQ S 1,24-26). Dever-se-ia observar,
no entanto, que o ingresso de Qumran na Aliança em forma de um juramento obrigando o novo
membro a “retomar” à Lei de Moisés (IQ S 5,8), e acompanhado, ao que parece, por alguma forma
de batismo essénio (IQ S 3,9-11; 5,13seg.), é igualmente, por definição, um compromisso
individual mas que ocorre, como no Confiteor da missa católica, no interior da estrutura formal
de uma cerimônia pública.
Esta passagem, (Mc 2,1-12; Mt 9,1-8; Lc 5,17-26; c f também Lc 7,47) e um notável paralelo de
Qumran da Prece de Nabônido, no qual se diz que um exorcista judeu perdoou os pecado do rei
e portanto o livrou de uma longa doença, são discutidos em J J 67-69, 240seg., no contexto da
relação entre demônio/pecado/doença e operador de curas-exorcista/perdão/cura no judaísmo
carismático intertestamentário. Nas duas histórias do Evangelho, a do paralítico e da “mulher da
cidade que era uma pecadora” (Lc 7,37), a declaração d ejesus de que seus pecados tinham sido
perdoados escandaliza os judeus convencionais.
Jesus, 0 Homem Religioso 177

especulações dirigidas à determinação das etapas à frente. O capitulo 9 de Daniel


declara que a idade de seus leitores pertence à última “semana” (isto é, um
período de sete anos) das setenta semanas de anos do fim da era do mundo, e
que este fato está patentemente marcado pela introdução da “abominação da
desolação” no Templo de Jerusalém (cf. também Mc 13,14; Mt 25,15). A visão
escatológica de Paulo, delineada em 2Ts 2,3-8, é ainda mais minuciosa. Entre­
tanto, o que parece ser a mensagem genuína de Jesus é avessa aos sinais (Lc
17,20). Ela julga fúteis os cuidadosos planos do rico proprietário no tocante ã
colheita que ele espera (Lc 12,16-21) e situa o advento do Reino em primeiro
lugar, insistindo numa concentração exclusiva nas necessidades de hoje (Mt
6,33seg.; Lc 12,31).
Num mundo no que o agora é sacrossanto, toda ociosidade é banida. Deveres
relativos ao Reino de Deus devem ser realizados imediatamente e os mortos são
deixados para enterrar seus próprios mortos (Mt 8,22; Lc 9,60). Os olhos
daquele que procura devem fitar adiante: “Quem põe a mão ao arado e olha para
trás não é digno do Reino de Deus” (Lc 9,62).

3. O absoluto escatológico

A devoção escatológica de Jesus é unidirecional, implacável e resoluta. Como


foi demonstrado sobre as parábolas da pérola preciosa e do tesouro oculto num
campo (Mt 13,44)‘“ não só devem ser adquiridos sem demora, como também a
qualquer preço. Aquele que os descobre deve dar por eles tudo o que tem. Esta
generosidade sem reservas caracteriza a pobre viúva mencionada por Jesus, a
qual, entregando sua fortuna de duas moedas ao tesouro do Templo, faz dom
de todas suas posses a Deus (Mc 12,41-44; Lc 21,1-4). Conduzindo seus recrutas
em direção do Reino nascente, Jesus lhes ordena renunciar a todo interesse
pessoal e ficar prontos a perder suas vidas para alcançar o objetivo final (Mc
8,34-91; Mt 16,24-28; Lc 9,23-27).

III A Ação Religiosa e Escatológica de Jesus

Partindo dessas premissas de urgência e de total devoção, seguem-se as qualida­


des escatológicas da ação religiosa. Como já foi claramente demonstrado no
capítulo 2, Jesus não fez nenhuma tentativa de restringir a lo r á ou de interferir
com ela; antes a abraçou como a estrutura reconhecida do judaísmo. O que ele

10 o Rolo de Cobre de Qumram (3Q 15) lista sessenta e quatro locais onde ouro, prata e objetos
valiosos estariam enterrados. Segundo a lei rabínica, sem dúvida já em vigor no primeiro século,
o comprador de um campo e “tudo que se encontra nele” (mBB 4.9) seria o proprietário legal
desse tipo de tesouro.
178 A Religião de Jesus, o Judeu

se esforçou em enfatizar era a devoção interior para o devoto individual do Reino


do céu. Em resumo, ele adotou, intensificou e tentou corajosamente injetar no
judaismo do povo comum o magnífico ensinamento profético da religião do
coração (cf. Is 29,13).
Como digressão introdutória, deveria deixar claro que a representação do
judaísmo, na esteira de Paulo — e quase dois mil anos de cristianismo — como
uma religião de obras legalisticamente motivada, contrastada com a religião
profética de caridade de Jesus é uma caricatura, e por sinal, muito mal feita. Tudo
depende dos antolhos do observador. Existem judeus que usufruem um enri­
quecimento espiritual genuíno pela observação dos mandamentos, do mesmo
modo que existem cristãos cuja devoção se encontra ligada a uma preocupação
persistente, mesmo escrupulosa, de traçar o limite preciso entre o lícito e o ilicito.
Católicos antiquados, particularmente monjes e freiras, e os protestantes que
observam o sétimo dia vivem segundo uma halahá não muito diferente da do
judeu estritamente ortodoxo.
A definição da natureza de um antigo sistema religioso depende, além do
mais, da escolha das fontes literárias sobre as quais o diagnóstico se alicerça.
Se o judaísmo for descrito exclusivamente na base destes documentos legais
ou quase legais como a Mishná, o Talmude ou o Shulhan Aruh, ele parecerá
mais legalístico e casuísta do que espiritual; mas o mesmo aconteceria ao
cristianismo se fosse visto unilateralmente espelhado nos códigos da lei
canônica, livros penitenciais ou manuais de teologia moral das diversas
igrejas. Mesmo a variedade extremamente estrita do judaísmo do Segundo
Templo, refletida nos Pergaminhos do Mar Morto, mescla regularmente
assuntos terrenos do dia a dia da religião organizada com os elevados
preceitos de santidade, ética e sabedoria. Se os mestres podem, por um lado,
se apegar à especificação da quantidade mínima de água necessária para
tornar o banho ritual válido (CD 10,10-13) mas por outro lado insistem que
nenhuma cerimônia de purificação é efetiva a não ser que seja acompanhada
de um ato autêntico de renovação interior: “pois eles não se purificarão a não
ser que se voltem contra sua iniqüidade" (IQ S 5,13seg.).
Diferentemente dos rabis e dos mestres essênios que insistiam tanto
quanto à letra como ao espírito da Lei, Jesus caminhou nas pegadas dos
grandes profetas de Israel ao colocar uma ênfase quase exagerada nos aspectos
interiores e nas causas radicais da ação religiosa, motivado como era em
fomentar o fervor escatológico do indivíduo. Em vez de formular solenemente
as diretivas de uma sociedade ordeira e de uma vida moral dentro da
comunidade dos eleitos, ele procurou aperfeiçoar suas personas espirituais
no aspecto interior.
Jesus, 0 Homem Religioso 179

Não existe razão de presumir que ele se opusesse ao culto e às preces


formais. Entretanto, antes de exortar seus discípulos a concentrar suas mentes
para que pudessem focalizar sua atenção em Deus, antes de recitar uma bênção
ou de participar do culto, ele os encorajou a se retirar para um quarto escondido
(Mt 6,6), longe do olhar do público, onde cada um pudesse comungar sozinho
com o Pai celeste. Como se observou no capítulo 2, em nítido contraste com o
comportamento dos apóstolos, que continuaram a visitar o Templo nas horas
determinadas para os serviços (At 2,46; 3,1; 22,17), jesus é representado como
um homem que reza só.*^
A mesma pureza é prescrita quanto às esmolas e ao jejum. Ambos devem
ser feitos “em segredo”, observados apenas por Deus, e não apenas para afastar
a tentação de parecer publicamente devoto, o que também é aconselhado pelos
rabis, como também transformar a caridade e automortificação exclusivamente
em passos para trilhar o caminho do Reino do céu.'^

IV As Fontes da Religião de Jesus

Esta descrição do judaísmo escatológico de Jesus, inevitavelmente teórico até


certo ponto, está muito longe da realidade existencial de sua atitude tanto em
relação a Deus quanto ao homem. Nas páginas que precedem, foi descrito que
não era de seu hábito construir torres de sabedoria ou catedrais de teologia; ao
invés, ele se direcionava sem reservas ao progresso do trabalho de Deus e de seu
Reino, em acender, ou pelo menos tentar implantar seu próprio ardor nos
corações e mentes de seus seguidores. Mas para assegurar uma compreensão
confiável de sua maneira de pensar, devemos tentar identificar as fontes de sua
religião.

11 Na literatura rabínica, antigos hassidim como Abba Hilkiá, neto do carismático Honi, e Hanina
ben Dosa são descritos se retirando para o terraço superior ou para um quarto isolado para orar
(bXaan 23b; yBer v, 9d; bBer 34b). Nestas representações não aparece o ingrediente escatológico.
Do mesmo modo, os terapeutas ou os essênios contemplativos, segundo Filo (Vit. Coní. 25)
passavam suas horas de prece num “santuário” (semneion) ou “quartinho" (monasCêrion). Segundo
mBer 5.1, a atenção dos homens piedosos (hassidim) ficava tão fortemente concentrada na oração
que mesmo se fossem saudados pelo rei ou tivessem uma serpente enrolada no tornozelo, eles
não se dariam conta. C f.JW J, 164seg.
12 A generosidade é considerada como digna de louvor por Jesus ben Sira (Eclo 31,11), e o ramo
dos essênios representado pelo Documento de Damasco taxava abertamente seus membros para
fins de caridade (CD 14,10-16). Mas a prática da esmola escondida aparece também no Testamento
(9,7seg. e mShek 5,6. Os dois casos são apresentados da perspectiva do pobre envergonhado:
ele pode receber a esmola sem ter de se defrontar com o benfeitor. No caso do jejum formal, a
Mishná (Taan 1.6) prescreve manifestações exteriores de penitência: há as proibições de se lavar,
se ungir e usar calçados (as relações sexuais são igualmente proibidas). Em contraste, os
construtores do Reino de Deus são exortados por Jesus a disfarçar seu jejum sob uma aparência
limpa e bem cuidada (Mt 6,17).
180 A Religião de Jesus, o Judeu

1. Fé

Se o arrependimento (teshuvd) com sua correspondente confiança no perdão


divino é sua conditio sine qua non, a fé confiante (emuná), implicando uma entrega
completa de si próprio a Deus, é seu sangue vital. Manifesta nas narrativas de
cura, nas parábolas bem como nas máximas de Jesus, ela permeia toda a
mensagem do Evangelho como uma esperança confiante que ele recomenda a
seus seguidores e louva quando a encontra.
A emuná anima todas suas ações. Central em seu trabalho como operador
de curas/exorcista, ele a expressa pungentemente numa resposta a um homem
que, à beira do desespero, assiste à impotência dos discípulos de Jesus em livrar
seu filho do “demônio” da epilepsia (Mc 9,14-27; Mt 17,14-18; Lc 9,37-43). “Se
podes fazer alguma coisa” — implora o pai a Jesus — “Tem piedade de nós e
ajuda-nos!” (Mc 9,22). A resposta, que abrange o suplicante e o operador de
curas carismático, constitui um dos principais princípios da religião de Jesus,
resposta essa que parece excluir qualquer necessidade de um Mediador ou
Redentor;

Tudo é possível àquele que acredita (Mc 9,23).

Entretanto, o círculo mais próximo dos seguidores dejesus freqüentemente falha


quanto à emuná e são admoestados como “homens de pouca fé”. Em contraste,
a presença da emuná n os raros gentios que Jesus relatou ter tratado, tais como
o servo paralítico de um centurião romano judeófilo de Cafamaum, aparente­
mente um benemérito da sinagoga local (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10) e a mulher do
distrito de Tiro e Sidon (hoje sul do Líbano) com a filha possuída pelo demônio
(Mc 7,24-30; Mt 15,21-28) evocam a aprovação perplexa dejesus;

Eu vos digo, mesmo em Israel não encontrei tal fé (Mt 8,10; Lc 7,9).

Ó mulher, grande é tua fé! (Ml 15,28; cf. Mc 7,29).^^

A religião pregada por Jesus exala confiança. As pessoas são continuamente


exortadas a perguntar, procurar e bater à porta (Mt 7,7seg.; Lc 1 l,9seg.). Ele opta
constantemente pela hipérbole para dar ênfase a capital importância e poder da
emund. A fé, tão pequena quanto um grão de mostarda — proverbialmente a
menor quantidade — pode mover uma montanha (Mt 17,20), ou, melhor ainda,
levantá-la e lançá-la ao mar (Mc 11,23; Mt 21,21).*'* Mais uma vez, fé na boa

13 A fé da mulher é tanto mais admirável já que Jesus aparentemente tentou ignorá-la em primeiro
lugar: “Não é certo tomar o pão das crianças e lançá-lo aos câes” (Mc 7,27).
14 Mais uma vez Lucas (17,6) confunde as metáforas c fala de uma figueira plantada no mar pela
força da fé!
Jesus, 0 Homem Religioso 181

vontade de Deus em responder a súplicas em casos de extraordinária necessida­


de inspira e justifica uma prece que pode mesmo ser considerada importuna (Lc
11,5-8).'=
Emuná exige a entrega total de si próprio a Deus, mesmo ao preço de riscos.
Servir dois senhores é autocontraditório: a pessoa tem de fazer a opção entre
Deus ouMamon (M t6,24; Lc 16,13). Mesmo quando o serviço do senhor implica
uso de dinheiro, como na parábola dos talentos (Mt 25,14-30; Lc 19,12-27,
exorta-se a assumir o risco com confiança. Procurar uma proteção total contra
o risco, escondendo o talento-“semente”, arruina o empreendimento e equivale
a uma falta de devoção religiosa. Da mesma forma, uma aceitação resoluta de
riscos é enfatizada nas parábolas sobre a aquisição do tesouro escondido ou da
pérola preciosa (Mt 13,44-46), e ainda mais na narrativa do pastor que deixa
noventa e nove ovelhas desprotegidas e expostas ao perigo enquanto vai procurar
um único animal perdido (Mt 18,12seg.; Lc 15,4-7). Na verdade, mesmo quando
valores derradeiros estão em jogo, Jesus recomenda, novamente falando hiper-
bolicamente, como foi observado anteriormente (pp. 134 seg.), o pronto ofere­
cimento de uma mão, um pé ou um olho (Mc 9,43-48; Mt 5,29seg., 18,8seg.):

É melhor entrares no Reino de Deus com um único olho do que seres


lançado ao inferno com dois (Mc 9,47).

De forma ainda mais dramática, a autocastração com tudo que simboliza é


sugerida aos obcecados pelo sexo quando o fim escatológico, a consumação dos
tempos estiver próxima;

Existem eunucos que se fizeram eunucos pelo Reino do céu (Mt 19,12).**

A tendência de Jesus de enfatizar a mensagem por meio de expressões exageradas


é, como já foi notado por muitas vezes, parte essencial de sua retórica popular.
Além das passagens que acabam de ser citadas, a lista poderia incluir a derrubada
das hierarquias existentes, sendo que o primeiro se tomaria o último e vice-versa
(Mc 10,31; Mt 19,20; 20,16; Lc 13,30), os exaltados sendo humilhados e os
humildes exaltados (Mt 18,4; 23,12; Lc 14,11; 18,14); e os chefes transformados
em servos (Mc 10,43seg.; Mt 20,26seg.; Lc 22,26). A mesma lógica produziu o

15 Entretanto, ainda não se aproxima da ameaça petulante do carismático Honi do primeiro século
a.C., também conhecido como Onias, o Virtuoso, como era chamado por Josefo, que declarou a
Deus que não se movería do circulo que tinha traçado em volta de si mesmo até que seu pedido
de acabar com a estiagem fosse atendido. Cf. mXaan 3,8. A passagem de Josefo se encontra em
Ant. xiv. 22; ver também JW J 49 e p. 103 antes.
16 A óbvia intenção metafórica desta sentença não impediu Orígenes, o maior erudito bíblico da
igreja primitiva, de aplicar estas palavras a si próprio, literalmente, num excesso de entusiasmo
ascético em princípios do terceiro século!
182 A Religião de Jesus, o Judeu

equacionamento dos sinais de interesse sexual (ou divórcio) com o adultério e


da cólera com o homicídio (Mt 5,27-30; Mc 10,2-12; Mt 19,3-10; Mt 5,32; Mt
5,21-23). A declaração de que os escribas exploram viúvas (Mc 12,40; Lc 20,47);
a ordem de que a mão esquerda da pessoa caridosa não saiba o que faz a direita
(Mt 6,3); apresentar a outra face (Mt 5,39; Lc 6,29) e amar os inimigos (Mt
5,39-48; Lc 6,20-23), completam o painel dos exageros mais conhecidos dejesus.
O reverso da emuná é a ansiedade, a previsão cautelosa, precaução, provisão
planejada para o futuro. Estes ingredientes da vida familiar e social ordenada
não encontram lugar num mundo movido por zelo escatológico. Desta forma,
aquele que pratica a religião pregada por Jesus pede apenas a necessidade do
dia (Mt 6,11; Lc 11,3). Se Deus pode prover as necessidades de pássaros e de
flores silvestres, afortiori o fará por aqueles humanos que têm fé (Mt 6,25-33;
Lc 12,22-31). Contrariamente à sabedoria moderna, Jesus declara que nenhum
plano cuidadoso pode acrescentar “um cúbito” ao tempo de vida de um homem
(Mt 6,27; Lc 12,25). Daí:

Não fiqueis ansiosos a respeito do amanhã, porque o amanhã ficará


ansioso por si mesmo. Que a cada dia baste a sua pena (Mt 6,34).

Um indicador final do Evangelho a alguém infundido pelo conceito de Jesus


sobre a emuná é que esta pessoa deve chegar a se assemelhar a uma criancinha,
inteiramente dependente, não da mãe, como diriamos, mas do Pai celeste, segura
de que, como os habitantes das margens do lago da Galiléia, ele não apresentará
uma serpente a um filho ou filha que clama por peixe (Mt 7,10; Lc 11,11).
À semelhança do carismático Hanan, provavelmente conhecido como
Abba Hanan, mencionado anteriormente (p. 164), que dizia às crianças que
pediam a vinda da chuva após muitas estações de estiagem, que seus pedidos
deveríam ser dirigidos ao outro Abba (celeste) (bTaan 23b), a representação
d ejesu s de uma genuína espiritualidade infantil caminha lado a lado prima­
riamente com a representação da Deidade como um Pai amante e carinhoso.
A religião d ejesu s é feita de um só bloco. Ele e seus seguidores devem apelar
a Deus como Abba. O terrível Senhor do céu, o Rex trem endae m ajestatis, se
encontra além do limite de sua visão, fazendo parte da nova idade do Reino
que está por vir.

2. Imitatio Dei

Em minha última conferência do Riddel Memorial, pronunciada na


Universidade de Newcastle em 1981, levantei uma questão que deve ser
confrontada novamente neste momento: qual era o princípio, em última
instância, abraçado por Jesus e passado a seus seguidores, que lhes daria a
Jesus, 0 Homem Religioso 183

possibilidade, nos dias finais, de viver perfeitamente como os filhos de seu


Pai celeste?^^
A resposta que foi dada na ocasião ainda me parece válida. Iniciada na
teshuvá e alimentada pela emuná, a religião de Jesus pode, em última instância,
ser resumida como um incansável esforço de seguir Deus como um modelo, uma
constante imitatio Dei. Esta doutrina é parte essencial de uma das correntes do
judaísmo bíblico, intertestamentário e rabínico e, como tal, constitui o apogeu
de nossa descrição da religião de Jesus, o judeu.
Esta noção de calcar a ação humana segundo um molde estabelecido pela
Deidade é, ao mesmo tempo, fácil e difícil de compreender e, como será
mostrado, fazia surgir reações conflitantes entre os rabis.'® Ela tem um duplo
fundamento bíblico. O primeiro está contido na história da criação, com sua
asserção de que o homem é feito à imagem de Deus (Gn 1,27) e, conseqüente-
mente, é capaz de um comportamento “à imagem de Deus”. O segundo está
implícito na solene injunção proferida por Moisés representando Deus: “Sereis
santos; pois eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). Este elevado ideal
deve ser alcançado “amando ... Deus” e “andando em todos seus caminhos” (Dt
11 ,22 ).
Os sábios tanaíticos do segundo século mostravam grande interesse no
problema da “imitação”. S u a formulação positiva da questão é semelhante à
devoção de Jesus. A doutrina se prende, em nome de Abba Sha’ul, mestre do
início do segundo século, a Lv 19,2, “Sereis santos como eu, o Senhor vosso
Deus, sou santo” na Sifra sobre este versículo;

Qual é o dever da família e dos servos do rei (pamilyah — familia)? É de


seguir nas pegadas do rei.

O mesmo Abba Sha’ul oferece idêntico ensinamento ao interpretar o Cântico de


Moisés em Ex 15,2,

Este é meu Deus we’anwehu.

17 The Gospel o f Jesus the Jew (1981), 43; JW J 52.


18 Cf. S. Schechler, Some Aspects o f Rabbinic Theology (1909), 199-218 (“Law of Holiness and Law
of Goodness”); A. Marmorstein, “The Imitation of God (Imitatio Dei) in the Haggadah”, Jeschurun
14 (1927), reimpresso em Studies in Jewish Theology (1950), 106-21; G. F. M oore, Judaism in the
First Centuries o f the Christian Era (1930) 1, 441; II, 109-11; M. Buber, “Imitatio Dei", Israel and
the World (1963), 66-77; Encyclopaedia Judaica 8 (1971), 1292seg,; E. E. Urbach. The Sages: Their
concepts and Beliefs (1975), 383-5; Pamela Vermes, Buber on God and the Perfect Man (1980),
141-44.
19 Solomon Schechter observou, com pertinência, que esses sábios freqüentemente apresentam uma
espécie de imitatio hominis por parte de Deus. C f “God and the World” in op. cit. [na nota anterior],
y r .
184 A Religião de Jesus, o Judeu

Contrariando a compreensão da expressão hebraica, segundo a tradição exegé­


tica comum, como “e eu o louvarei”, Abba Sha’ul a substitui por ‘ani wa-hu: “Este
é meu Deus, eu e ele A segunda cláusula, que soa de modo estranho, é então
ainda mais desenvolvida na direção da imitatio Dei.

Sede como ele, por favor! Assim como ele é caridoso e cheio de graça
devereis ser caridosos e cheios de graça (Mekh. sobre Ex 15,2 [Lauterbach
II, 25]).

De maneira mais direta, um mestre tanaitico anônimo oferece uma exegese muito
mais completa relativa ao midrash Sifre sobre Dt 11,22, “que andeis em seus
caminhos”.

Estes sáo os caminhos de Deus: “O Senhor, Deus caridoso e cheio de


graça” (Ex 34,6). Também é dito, “Todos os que forem chamados pelo
nome do Senhor serão salvos” Q1 3,5 [Trad. Ing. 2,32]). Mas como pode
um homem ser chamado pelo nome do Senhor? Assim como Deus é
caridoso, também deveis ser caridosos. O Santo Senhor, bendito seja, é
chamado de cheio de graça, e assim deveis ser cheios de graça, como está
escrito, “O Senhor é cheio de graça e caridoso ...” (SI 145,8), e distribui
seus dons com liberalidade. Deus é chamado de justo, como está escrito,
“Pois o Senhor é justo, ele ama os feitos justos” SI 11,7), e assim deveis
ser justos. O Senhor é chamado “hassid” (amante, devoto), como está
escrito “Pois eu sou um Hassid, assim vós também deveis ser hassidim. É
por isso que está escrito, "Todos os que forem chamados pelo nome do Senhor
serão salvos” 01 3,5 [2,32]).^°

A descrição mais completa, em hebraico, da imitatio Dei vem do amorá palestino,


Rabbi Hama, do terceiro século, filho de R. Hanina. Explanando Dt. 13,5, “Segui
o Senhor vosso Deus”, ele ensina:

É possível que um homem siga a Sehiná? Não está escrito, “O Senhor


vosso Deus é um fogo devorador” (Dt 4,24)? Porém segui os atributos
(qualidades) do Sagrado Senhor, bendito seja. Já que ele veste os
desnudos, como está escrito, “E o Senhor Deus fez para Adão e sua mulher
roupas de pele e os vestiu” (Gn 3,21), deveis também vestir aqueles que
estão nus. Já que o Senhor, bendito seja, visitou os doentes, como está
escrito, “E o Senhor apareceu a ele (Abraão, após sua circuncisão) sob os
carvalhos de Mamre” (Gn 18,1), vós também deveis visitar os doentes.
Como o Senhor, bendito seja, confortou os enlutados, como está escrito.

20 (Sifre sobre Dt 11,22 [49], ed. L. Finkelstein, 114). Notar a sutil diferença entre D eus ser chamado,
mas o homem deve ser caridoso, cheio de graça, etc.
Jesus, 0 Homem Religioso 185

“Após a morte de Abraão Deus abençoou seu filho Isaac” (Gn 25,11), vós
também deveis confortar os enlutados. Como o Senhor, bendito seja,
enterrou os mortos, como está escrito “E ele o enterrou (Moisés) no vale”
(Dt 34,6), vós também deveis enterrar os mortos (bSotha 14a).

Não menos detalhada é a recitação aramaica dos caminhos de Deus ensinada a


Israel e apensa ao Targum Pseudo-Jônatas sobre Dt 34,6, a narrativa do enterro
de Moisés por Deus. Se bem que existam muitas superposições, o relato do
Targum não é pura repetição do ensinamento de R. Hama.

Bendito seja o nome do Senhor do mundo que nos ensinou seus caminhos
corretos. Ele nos ensinou a vestir os nus ao vestir Adão e Eva. Ensinou-nos
a unir noivos e noivas ao unir Adão e Eva. Ensinou-nos a visitar os doentes
ao se revelar por uma visão da Palavra (Memra) a Abraão, quando este
estava doente. Ensinou-nos a confortar os enlutados ao se revelar
novamente a Jacó na volta deste de Padam, no lugar em que sua mãe tinha
morrido. Ensinou-nos a alimentar os pobres fazendo pão cair do céu para
os filhos de Israel. Ensinou-nos a enterrar os mortos através de Moisés,
ao qual se revelou por sua Palavra (Memra), e com ele, companhias de
anjos auxiliares.^'

Finalmente, em versão duplicada, Pseudo-Jônatas formula muito sucintamente a


lei da imitatio Dei como expressa por Moisés ou pelo próprio Deus. A primeira,
contida na Bíblia Poliglota de Londres, de Brian Walton (1654-57), sobre Lv.
22,28;

Meu povo, filhos de Israel, como Pai nosso é caridoso no céu, do mesmo
modo deveis ser caridosos na terra.

A segunda figura no manuscrito da Biblioteca Britânica (Add. 27031) sobre o


mesmo verso;

Meu povo, filhos de Israel, como eu sou misericordioso no céu, deveis ser
misericordiosos na terra.

21 Uma seqüência de atos divinos de caridade para com o patriarca José, prefigurando as listas
rabinicas, aparece no Testamento de Jo sé 1,4-7, onde as ações de Deus são constrastadas com os
correspondentes atos maus dos irmãos de José. “Estes meus irmãos me odiavam, mas o Senhor
me amava. Eles queriam matar-me, mas o Deus de meus pais me preservou. Eles me jogaram num
poço, mas o Altissimo me trouxe de volta. Fui vendido como escravo, mas o Senhor me libertou.
Fui levado ao cativeiro, mas sua mão forte me sustentou. Fui presa da fome, mas o próprio Senhor
me alimentou. Eu estava sozinho, mas Deus me confortou. Eu estava doente, mas o Altissimo veio
em minha ajuda. Eu estava na prisão, mas o Salvador me favoreceu. Em ferros, e ele me libertou.
Difamado, e ele advogou minha causa. Aviltado pelos egípcios e ele me libertou.”
186 A Religião de Jesus, o Judeu

Todos esses textos concordam em acentuar os aspectos positivos do divino


Modelo que é repetidamente representado como caridoso e cheio de graça
embora experiências reais nem sempre possam assim representá-lo. As qualida­
de negativas são isoladas apenas ocasionalmente, como por exemplo, que os
homens não devem roubar porque Deus odeia o roubo (bSuk 30a), mas estas
qualidades negativas são claramente menos atraentes que as virtudes dos
homens. Além do mais, nunca se propõe que um homem procure, para seu
próprio uso, as divinas prerrogativas da justiça e muito menos da vingança.
Por outro lado, alguns rabis do período amoraico, achando perigosa a idéia
da possibilidade de imitação de Deus, já que poderia colocar em questão sua
transcendência, determinou algumas regras. Apressaram-se em enfatizar que a
imitação humana é apenas uma pálida sombra do original: “Pensais que podeis
ser tão santos como eu? Não, apenas eu sou santo” (LvR 24,9). Em outra
passagem, sugerem mesmo a impossibilidade de qualquer imitação de Deus,
argumentando que apenas o indivíduo capaz de criar pode ser reconhecido como
um imitador do Criador (Tanh.B. iii, 111).
Torna-se desnecessário dizer que, com a possível exceção de Mt 23,9 onde
o título de Pai é reservado apenas a Deus (cf. p .I46 antes), a evidência existente
no Evangelho não revela nenhum sinal de tais preocupações teológicas por parte
de Jesus e nem seria de se esperar que um mestre popular, imbuído de zelo
escatológico prestasse uma atenção regular a refinamentos doutrinais desta
espécie. No meio do que se acreditava ser as convulsões finais da idade, a crença
num Deus considerado como benevolente fazia sentido, o único sentido.
O âmago do ensinamento judaico sobre a possibilidade de imitar o amor-
bondade de Deus e o dever de segui-lo em seus caminhos formam a qualidade
quintessencial da religião de Jesus e pode ser reduzida — como os seiscentos e
treze mandamentos de Moisés — a um único preceito:

Sede perfeitos como vosso Pai do céu é perfeito (Mt 5,48).

Mas mesmo este conceito de “perfeição” pode ser visto como por demais abstrato.
Portanto, a formulação concreta de Lucas sobre a mesma instrução, que antecipa
as palavras de Abba Sha’ul e o Targum Palestiniano, é de autenticidade mais
provável:

Sede caridosos como vosso Pai é caridoso (Lc 6,36).

Mas o ponto central da religião de Jesus não é a observância da Torá como tal —
embora ela não esteja, de modo nenhum, excluída e promova a espiritualidade
interior. Não é uma busca de pureza — ritual ou ética. Não é uma auto-santifi­
cação na forma de uma vida de preces e de culto — no Templo ou na sinagoga.
Não parece nem mesmo ter sido uma busca de Deus, em sua essência, mas por
Jesus, 0 Homem Religioso 187

meio de devoção aos irmãos, segundo o exemplo de um misericordioso Pai


celeste. Ele chega ao ponto de afirmar que, no Julgamento Final, o único critério
do divino Rei será se uma pessoa imitou ou deixou de imitá-lo em seus atos de
amor. Na parábola original do Julgamento (cf. antes, 106), o prêmio da salvação
é concedido àqueles que agiram com generosidade para com um Deus disfarça­
do:

Eu tinha fome e tu me deste de comer.


Tinha sede e me deste de beber.
Era um forasteiro e tu me acolheste.
Estava nu e tu me vestiste.
Eu estava doente e tu me visitaste.
Eu estava na prisão e tu vieste a mim (Mt 25,35seg.).

À pergunta de quando Deus encontrou tanta bondade, vem a resposta que foi
apenas quando se mostrava a pessoas de nenhuma importância, aos “pequeni­
nos” (Mt 25,40). Tanto o ponto de vista introduzido sub-repticiamente na
narração e a imitatio Dei vista como bondade para com Deus e o estender de
uma mão caridosa aos aflitos, são típicos de um estilo do ensinamento e da
perspectiva religiosa de Jesus e constituem um todo coerente.
Estes “pequeninos” também são os impossibilitados de reciprocar. Quando
Jesus mandou seus discípulos para “curar e exorcizar”, ao serem bem-sucedidos
eram-lhes habitualmente oferecida uma doação, mas ele lhes proibiu de aceitar
o que quer que fosse. “Vós recebestes (vossos poderes carismáticos) sem pagar,
dai sem pagamento! (Mt 10,89). Do mesmo modo, segundo a bem conhecida
parábola, nenhum amor caridoso, imaculado pela esperança de uma retribuição,
é impossível exceto quando o rol dos convidados inclui apenas “os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos” (c f Lc 14,12-14) — precisamente aqueles que são
banidos da assembléia messiânica segundo a Regra da Congregação de Qumran,
a não ser “os pobres” que não são mencionados (IQ Sa 2,5seg.).
Finalmente, nada ilustra melhor a verdadadeira visão de bondade de Jesus
do que a hipérbole p ar excellence, na qual ele amplia o mandamento bíblico de
amar os próximos, inclusive os inimigos. Sem desejar repetir a discussão de Mt
5,39-45; Lc 6,27-35 (c f antes pp. 40 seg.), basta observar que, sendo esta a forma
mais pura de altruísmo, ela pode ser verificada no caso em que Deus faz brilhar
o sol e cair a chuva para justos e injustos (Mt 5,46). De maneira mais concreta,
a doutrina de Jesus sobre a imitatio Dei culmina no acolhimento amante dos
“inimigos” de Deus, tais como os coletores de impostos e, indiretamente, mesmo
os gentios (Mt 5,45seg.; Lc 6,32-34) que são vistos também como adversários
dos justos.
188 A Religião de Jesus, o Judeu

Jesus mostrou compaixão não apenas aos infortunados, doentes e aleijados,


elogiados pelos profetas bíblicos, mas aos párias de sua sociedade, desprezados
por pessoas instruídas e respeitáveis. Os Evangelhos o apresentam regularmente
em contato com os “impuros”, isto é, pessoas afligidas por doenças contagiosas,
ou “possuídas por demônios”, às quais, como exorcista-operador de curas ele
não podia evitar, como também os renegados sociais, políticos e morais, conhe­
cidos no Novo Testamento como “publicanos e pecadores”, de quem era acusado
de ser “amigo” (Mt 11,19; Lc 7,34). Não só ele acolhia sua presença ao seu
ensinamento (Lc 15,1), como escolheu um coletor de impostos, ou antes, um
funcionário da alfândega, Levi-Mateus, como um de seus apóstolos, e sentou à
sua mesa rodeado pelos colegas de Levi e por outros “pecadores” (Mc 2,14seg.;
Mt 9,9seg.; Lc 5,27-29). Lucas (19,1-6), provavelmente tentando aperfeiçoar os
outros sinóticos, mostrava Jesus se fazendo convidar à casa do diminuto Zaqueu,
o architelõnês, ou publicano-em-chefe. Estes funcionários extorquem com fre-
qüência os servidores civis empregados pelos romanos na Judéia e por Herodes
Antipas na Galiléia,^^ são regularmente mencionados nos Evangelhos como
“pecadores”. Da mesma forma, na historieta que pode ser de criação de Lucas,
provavelmente em base real, é a mulher da cidade, usualmente identificada como
uma prostituta que, profundamente comovida pelo arrependimento, lavou os
pés de Jesus com suas lágrimas. A disposição de Jesus em acolher o gesto com
calor chocou os judeus burgueses não sintonizados com as necessidades dos
últimos dias, que exigem que o operador de curas e pastor devotado procure
aqueles que se desencaminharam (Mc 2,17). Os sãos e os convencionalmente
bons não o preocupavam. “Haverá mais alegria no céu por um pecador que se
arrepende”, faz-lhe dizer Lucas (15,7) do que por noventa e nove justos.”

V Jesus, o Homem Santo

Esta é, pois, da maneira mais resumida, a religião de Jesus, o judeu.

Um poderoso “médico” de doentes físicos e mentais, amigo dos


pecadores, ele era um pregador de grande magnetismo sobre o que se
esconde no coração da Torá, incondicionalmente engajado na salvação,
não de comunidades mas de pessoas necessitadas.
Ele também tinha consciência da aproximação do fim dos tempos e,
em momento conhecido apenas por Deus, da iminente intervenção do Pai
nosso que está no céu e que logo deveria ser revelado, o temível e justo
Juiz, Senhor dos Mundos.

22 Cf. HJP 1, 374-76; ver também E. Badian, Publicans and Sinners( 1972).
Jesus, 0 Homem Religioso 189

O Reino de Deus que Jesus firmemente acreditava “estar próximo” não se


concretizou em seu curto espaço de vida. Ele não se encontrava ã frente de seus
adeptos para prestar homenagens ao Rei dos Reis e ser acolhido por ele. Morreu,
ao invés, numa cruz romana, em agonia, traido por todos seus discípulos
pusilânimes, desassistido a não ser — como é relatado — por algumas poucas
mulheres e escarnecido por circunstantes cruéis e estúpidos que podem muito
bem ter falado as palavras provocadoras que os evangelistas colocaram em sua
boca:

Ele salvou outros e não pode se salvar ... Ele acredita em Deus; que Deus
o liberte agora se esta for sua vontade (Mt 27,42seg.; Mc 15,31seg.; Lc
23,35).

Sem presumir saber o que se passava na mente agonizante de Jesus, não pode
ser muito errado imaginar que, mesmo a caminho do Gólgota, mesmo na cruz,
sua emuná permaneceu firme até o terrível momento em que percebeu que Deus
o tinha abandonado e gemeu:

“Eloi, Eloi, lama sabachtani?”, que significa, “Meu Deus, Meu Deus, por
que me abandonaste?” (Mc 15,34)

Com este grito de desespero, vindo do coração partido de um homem de fé, ele
“exalou o último suspiro” (Mc 15,37).
Apesar do pesado golpe nos seus seguidores por sua execução, os discípulos
logo se convenceram de que Jesus não tinha morrido, mas continuava a viver,
já que em seu nome conseguiam sucesso como operadores de curas, exorcistas
e pregadores. Esperando seu iminente retorno na glória, pois sua mensagem
escatológica permanecia viva, e assistidos, antes de serem encobertos pelo gênio
estrangeiro de Paulo de Tarso, eles continuaram entusiasticamente o que acre­
ditavam ser a própria missão de Jesus, pregando o Evangelho como se fosse o
de Jesus e fundando a religião que veio a ser conhecida como o cristianismo.
8

A Religião de Jesus e o Cristianismo

Os seguidores do ensino propagado pelos apóstolos e discípulos de Jesus


começaram a ser conhecidos, nos inícios dos anos quarenta A.D., como “cristãos”
(At. 11,26), não apenas em suas próprias comunidades (IPd 4,16) como também
entre estrangeiros (At 26,28). Se, como acredito, parte do Testimonium de Josefo
é genuíno, sua alusão à “tribo de cristãos” que, por ocasião de escrever as
Antiguidades Judaicas nos anos noventa do primeiro século “ainda não tinha
desaparecido” (Ant. xviii, 63), representaria a mais antiga atestação do título fora
do Novo Testamento. Inácio, bispo de Antioquia, denominava Christianismos a
religião ã qual pertencia e pela qual deu a vida em c. 107 A.D. A partir do segundo
século, a nova fé se espalhou e floresceu cada vez mais para além dos confins
do judaísmo, principalmente, embora não exclusivamente, entre os escravos e
oprimidos do mundo Mediterrâneo, em primeira instância. Perseguidos repeti­
das vezes por mais de dois séculos pelo Estado romano, tornou-se eventualmen­
te, a partir do quarto século, primeiramente a religião dominante e mais tarde a
religião oficial do império. Atualmente, em fins do vigésimo século, as diversas
igrejas de Jesus, ou antes, de Cristo, continuam a comandar a fé nominal ou real
de uma substancial porção da humanidade. A jornada do primeiro nome ao
segundo, isto é, a representação da evolução das imagens Cristológicas no Novo
Testamento, é soberbamente analisada e esplendidamente descrita por Paula
Fredriksen em From Jesus to Christ (1988).
A complexa realidade que ainda constitui, passados quase dois milênios de
desenvolvimento, o cristianismo de hoje em dia foi formulada em credos
peremptórios e desde que igrejas do Este e do Oeste continuam a recitar em suas
liturgias uma dessas confissões quase intemporais, transcrevo abaixo o Credo
Niceno-Constantinopolitano, composto no quarto século e revisado no quinto,
como uma expressão breve da ortodoxia eclesiástica. O texto inglês é tirado do
Book o f Common Prayer da igreja da Inglaterra.

Creio em um só Deus, o Pai Todo-Poderoso


Criador do céu e da terra,
E de todas as coisas visíveis e invisíveis:
192 A Religião de Jesus, o Judeu

E em um Senhor Jesus Cristo, único filho gerado por Deus,


Gerado por seu Pai antes dos mundos.
Deus de Deus, Luz da Luz.
Verdadeiro Deus do Deus verdadeiro.
Gerado, não criado,
Começando com uma substância do Pai,
Pelo o qual foram feitas todas as coisas;
Que por nós, homens, e por nossa salvação desceu do céu,
E foi encarnado do Espírito Santo da Virgem Maria,
Fez-se homem,
E foi crucificado por Pôncio Pilato.
Sofreu e foi enterrado,
E no terceiro dia ressurgiu, segundo as Escrituras,
E subiu ao céu,
E aí se senta à mão direita do Pai.
E virá de novo, com glória, para julgar tanto os vivos quanto os mortos:
E seu reino não terá fim.

E creio no Espírito Santo,


Senhor e fonte de vida,
Que procede do Pai e do Filho,
O qual, juntamente com o Pai e o Filho, é cultuado e glorificado.
Que fala pelos Profetas.

E creio na Igreja Católica e Apostólica


E reconheço o Batismo para a remissão dos pecados.
E espero a Ressurreição dos mortos,
E a vida do mundo que virá. Amém.

Jesus, 0 Judeu histórico, teria julgado as três primeiras e as duas linhas finais do
credo cristão familiares e, embora não sendo de mentalidade teológica, não teria
dificuldade em concordar com elas, mas sem dúvida ficaria intrigado pelas
outras vinte e quatro linhas. Elas parecem ter pouco a ver com a religião pregada
e praticada por ele. Ainda assim, as doutrinas que proclamam o status divina­
mente eterno e a encarnação corpórea, a redenção da humanidade conseguida
pela crucificação, sua subseqüente exaltação e, acima de tudo, a Trindade da
Divindade, Pai, Filho, Espírito Santo, formam a base da fé da qual supostamente
ele foi o arquiteto.
Hoje, como em séculos passados, a principal fonte de fé do cristão se
encontra, nem tanto em Marcos, Mateus e Lucas e seu Jesus ainda bastante
terreno, mas em séculos de especulação pela igreja sobre o Evangelho teológico
de João, com seu eterno Verbo, que se tomou carne e talvez, ainda mais, nas
cartas de Paulo com seu drama de morte, arrependimento e ressurreição. O
A Religião de Jesus e o Cristianismo 193

Cristo de Paulo e de João, a caminho da deificação, sombreia e obscurece o


homem da Galiléia.
O desaparecimento do Senhor necessitava de um repensamento e reorien-
tação radicais durante os anos e décadas que se seguiram ao Gólgota, quando
os discípulos de Jesus tinham de explicar entre si, e então a seus ouvintes, o
significado da cruz e da “ressurreição”. Sendo judeus, e, no início, se dirigindo
apenas a judeus, eles voltavam sempre à mesma explicação dos inovadores
religiosos judeus; estes eventos tinham sido predestinados por Deus e repre­
sentavam o cumprimento da profecia bíblica. Sua tarefa não era fácil, como
vimos em Jesus the Jew, devido à ausência de evidência contemporânea da
expectativa de um Messias sofredor e agonizante, nem de alguém que tivesse
sido executado mas ressurgido antes do Julgamento final. O esforço laborioso
de Pedro em descobrir a predição da ressurreição de Jesus de entre os mortos
em Sl. 16,8-11 [15,8-11 nas Bíblias gregas] não deve ter surtido muito efeito, de
modo que Paulo, inteligentemente, se absteve de fatos especificos e assegurou
aos gentios cristãos de Corinto, os quais, em todo caso, não teriam percebido a
diferença, que Jesus morreu pelos pecados do homem, foi enterrado e ressurgiu
no terceiro dia kata tas graphas, “segundo as escrituras” (IC r 15,3), sem citar
livro, capítulo ou versículo.
Entretanto, incapazes de considerar Jesus em nenhum outro contexto a não
ser no do esperado Messias, a primeira geração dos cristãos reinterprelou a
noção do redentor de Israel, o Ungido de Deus, à luz da vida de Jesus, um Cristo
crucificado e ressurrecto que, após uma curta e esotérica existência de pós-“res-
surreição” sobre a terra, ascendeu a seu trono celestial. ^ Judeus da Judéia e da
Galiléia devem ter achado estranha esta nova espécie de Messias, não tradicional
e ... pouco atraente, e não pode provocar surpresa que, na Jerusalém cosmopo­
lita, com sua substancial população de imigrantes da Diáspora, o Novo Testa­
mento se cale em relação a qualquer progresso do novo movimento na Palestina,
terra natal do cristianismo.

A reivindicação de que um fragmento dos Pergaminhos do Mar Morto alude a um Messias


executado é infundada. Esta idéia c agora proposta com maior cuidado por R. Eisenman e M.
Wise, em The Dead Sea Scrolls Uncovered (1992), 24-29. Para o caso que advoga uma interpretação
messiânica triunfante, ver G. Vermes, “Seminar on the Rule of Guerra from Qumran Cave 4
(4Q 285)”, JJS 43 (1992), 85-90. A noção de um Messias ressurgido parece ser desconhecida na
antiga literatura judaica conhecida. Decorre que não pode haver questão da realização de uma
expectativa tradicional e a ser verdade que Jesus repetidamente previu sua morte e subsequente
ressurreição o profundo espanto de seus companheiros mais próximos antes e depois da
crucificação necessitaria alguma explicação. Além do mais, o que acrescenta a reivindicação da
ressurreição corporal de Jesus à crença de sua sobrevivência espiritual, se o “Senhor ressurrecto”
é visto apenas por aqueles que têm fé, e quando se manifesta, é sob tais disfarces que ninguém
pode reconhecê-lo a não ser que ele se identifique! Em contraste, a doutrina menos enfática da
ascensão de Jesus ao céu, prefigurada na Bíblia por Enoque e Elias e na literatura pós-bíblica por
Moisés e Isaías, evoca ressonâncias familiares aos ouvidos dos judeus do primeiro século.
194 A Religião de Jesus, o Judeu

Outro elemento importante da religião de Jesus, seu ensinamento referente


ao eschaton, o dia do Senhor, a vinda de seu Reino, requeria uma significativa
redistribuição de papéis. Como foi freqüentemente sublinhado nas páginas
precedentes, o grande evento que Jesus estava convencido que iria se produzir
durante sua vida deixou de se materializar, mas já que o cristianismo da primeira
geração ainda estava imbuído de entusiasmo escatológico, o fim tinha de ser
reprogramado para coincidir com a iminente Parusia, a volta triunfante dos
exércitos de anjos. Embora o novo cenário não tivesse sido mais bem sucedido
que o primeiro, ele abriu, de fato, a porta para infinitos adiamentos e a extinção,
na prática, da verdadeira esperança escatológica, mas apesar disso, “a nova vinda
de Cristo, na glória”, para inaugurar seu Reino ainda se encontra nos lábios de
todo devoto eucarístico.
Esta edição revista da mensagem de Jesus traz em seu bojo, igualmente, uma
mudança total no pensamento religioso. Os olhos de Jesus estavam fixos em
Deus e no seu Reino. Os de seus seguidores, particularmente Paulo, se fixavam
no Senhor ressurrecto e glorificado. A religião puramente teocêntrica de Jesus
tomou-se uma fé Cristocêntrica na qual o Pai celeste não tem mais, praticamente,
nenhum papel. Para Jesus, teshuvá e emund tomavam tudo possível: nenhum
mediador era necessário. No cristianismo, nada é possível, nem mesmo teshuvá
nem emunâ, sem que a morte redentora do Cristo traga a salvação ao mundo. A
urgência de Jesus praticando e exortando à imitatio Dei também está diluída e,
enquanto apareça ainda como um conselho espiritual em “Sede imitadores de
Deus como filhos amados” (Ef 5,1), o homem de Tarso se apresenta como um
imitador, não de Deus mas de Cristo, e como tal oferece-se como modelo aos
membros de suas igrejas (IC or 11,1).
A imaginação poderosa, brilhante e poética de Paulo cria um drama magní­
fico, fazendo ecoar os cultos misteriosos de sua idade, nos quais, desde o batismo
até a morte e ressurreição de Jesus Cristo, os novos iniciados comungam com o
grande ato da salvação, por meio do qual o Novo Adão remove de sua humana
natureza aquele estado de pecado inicial que resultou da queda do primeiro
homem no jardim do Éden.
A migração da cristandade do mundo judaico ao greco-romano, outra
conseqüência do apostolado magistral de Paulo, precisava de mais uma interfe­
rência drástica na religião de Jesus. Já que a imposição obrigatória da Torá aos
gentios, incluindo a circuncisão teria impedido a muitos de se juntar à igreja, a
Lei judaica, fonte mais interior da devoção de Jesus, não apenas foi tomada
opcional, mas tinha de desaparecer e ser abolida em nome de Cristo. No
“paulinismo”, que é amplamente idêntico ao cristianismo ocidental, a Torá é
perversamente metamorfoseada de uma fonte subterrânea de vida num instru­
mento de morte: “Enquanto vivíamos na came, nossas paixões pecaminosas.
A Religião de Jesus e o Cristianismo 195

provocadas pela Lei, operavam em nossos membros produzindo o fruto da


morte. Mas agora estamos liberados da Lei...” (Rm 7,5seg.). “Cristo é o fim da
Lei” (Rm 10,4). Será exagerado sugerir que oceanos separam o Evangelho cristão
de Paulo da religião de Jesus, o judeu?
O lugar de Israel, cujas ovelhas desgarradas Jesus foi enviado para salvar,
deve ser avaliado nesta nova perspectiva. Os judeus que não crêem, cegos por
sua Torá, foram julgados e considerados culpados de obstinação e privados de
seus privilégios qua povo eleito, em favor do novo “Israel de Deus” (G1 6,15).
Para sermos justos, devemos dizer que Paulo, apesar de vários duros comentá­
rios polêmicos contra o judaísmo, se retrai, no fim, de condenar seu povo para
sempre. Sua inventiva mente poética imagina que a rejeição de Cristo é um lapso
terrível como também temporário. O apóstolo dos gentios, tentando enxertar
todo o mundo convertido de não-judeus no tronco judaico, fazendo deles os
herdeiros de todas as promessas divinas concedidas a Abraão e sua posteridade,
secretamente esperava que a elevação dos gentios excitaria o ciúme dos judeus
e os traria à teshuvá e à submissão a Cristo, de modo que “todo Israel” pudesse
ser salvo (Rm 11,26).
O autor do Quarto Evangelho não tinha tais sentimentos judeófilos. O termo
loudaioi, originalmente aplicado, talvez, apenas aos habitantes dajudéia, mas ao
tempo da redação do trabalho no fim do primeiro século, incorporando todos
os companheiros não convertidos dos evangelistas, isto é, a quase totalidade do
povo judeu, adquiriu traços ominosos. No relato de João da vida de Jesus, eles
são um bando sedento de sangue que desde o início procurou matar Jesus e não
desistiu até ter sucesso em seus planos nefandos. O Cristo de João, que nada
tem em comum com o Jesus real, declara a seus compatriotas:

Vós sois o demônio de vosso pai, e vosso desejo é o desejo de vosso pai.
Ele foi um homicida desde o início ... Qo 8,44).

Eis a origem da tendência cristã de demonizar os judeus, a origem do antijudaís-


mo religioso, tanto moderno quanto medieval, que direta ou indiretamente
conduz ao Holocausto. Tragicamente, foram necessárias seis milhões de vidas
para persuadir as maiores igrejas cristãs a anular a acusação de deicídio, lançada
por tanto tempo contra o povo de Jesus.
A desjudeização do prístino evangelho do mundo greco-romano era sem
dúvida intencionalmente ajudada pelo subjacente universalismo da doutrina da
imitado Dei de Jesus, um Deus cuja providência inclui a todos em sua preocu­
pação primária com o indivíduo, permitindo assim uma dispensa mais fácil dos
aspectos principalmente comunais e sociais da Lei de Moisés. Esta intenção
caminhava lado a lado com o declínio do judeu-cristianismo dos primeiros
tempos, consistindo em judeus observantes da Torá que seguiam o ensinamento
196 A Religião de Jesus, o Judeu

de Jesus sem esses acréscimos “cristãos”, como a doutrina do nascimento virgem


ou da deificação de Cristo. Estas pessoas eram impopulares tanto no campo dos
judeus quanto entre os membros da igreja gentia; provavelmente, embora
tivessem permanecido mais próximos a Jesus, os judeus os consideravam como
cristãos e os cristãos como heréticos. “Enquanto quiserem ser ao mesmo tempo
judeus e cristãos”, escreveu Jerônimo a Agostinho “eles não são nem judeus nem
cristãos”. ^ Eles desapareceram de cena, sendo que os poucos núcleos sobrevi­
ventes sem dúvida reverteram ao judaísmo. Com eles, os últimos e então
indubitavelmente já distorcidos vestígios da religião praticada por Jesus e
pregada aos judeus desapareceram, deixando aberto o caminho para o triunfal
progresso da cristandade helenizada no mundo não judaico da Antiguidade em
suas últimas fases.
Apesar de tudo, para sermos justos, devemos enfatizar que, apesar de todos
os seus traços estranhos, dogmáticos e eclesiásticos, o cristianismo ainda possui
elementos fundamentais da devoção de Jesus, como sua ênfase na pureza de
intenção e generosidade do coração exemplificadas em Francisco de Assis, que
abandonou a riqueza pelos pobres, e, mesmo em nosso século, em Albert
Schweitzer, que abandonou a fama para curar os doentes no longínquo e
abandonado Lambarene, e Madre Teresa que, muito idosa, cuida dos moribun­
dos nas imundas ruas de Calcutá.

Pouco tempo antes de sua morte, o grande estudioso inglês do Novo Testamento
C. H. Dodd, publicou um excelente livro sobre a vida de Jesus. Mas se a tese
desenvolvida neste estudo for ao menos parcialmente verdadeira, o título esco­
lhido por Dodd, The Founder o f Christianity (1970), deve ser julgado como
incorreto. Embora admitidamente não totalmente desconectados, a religião de
Jesus e o cristianismo são tão basicamente diferentes em forma, propósito e
orientação que seria historicamente pouco seguro fazer derivar o último direta­
mente do primeiro e atribuir as mudanças a um evolução doutrinal direta.^
Não pareceria menos injustificável continuar a representar Jesus como o
fundador da igreja (ou igrejas?) cristã. Pois, permitam-me dizê-lo por uma última
vez, se ele era sincero e acreditava no que pregava — e eu, por minha parte, estou
convencido que sim — vale dizer, que o eterno Reino de Deus estava realmente

Dum volunt et ludaei esse et Christiani nec ludaeí sunt, nec Christiani” (Epist. 89 a Agostinho,
Patrologia Latina XXII). Esses assim chamados Ebionitas ou Nazarenos não podem ser
comparados com os atuais “judeus messiânicos” ou “judeus para Jesus” que, sob o disfarce das
observações ordinárias do judaismo parecem ser cristãos comuns, fundamentalistas e
evangélicos.
Sem dúvida, em um nível meta-histórico, a fé cristã e a teologia atribuem estas mudanças aos
trabalho do “Espírito Santo”: “Quando o Espirito da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade”
üoão 16,13).
A Religião de Jesus e o Cristianismo 197

próximo, ele simplesmente não poderia nutrir a idéia de fundar e fazer funcionar
uma sociedade organizada, destinada a sobreviver pelas idades vindouras. Um
grande desafio, talvez o maior de todos, com o qual o tradicional cristianismo
da variedade “paulino-joanística” ainda não teve de se confrontar não deriva do
ateísmo, ou agnosticismo, ou puro materialismo, mas de dentro, das três antigas
testemunhas Marcos, Mateus e Lucas, através dos quais fala o principal desafian­
te, Jesus, o judeu.
A aceitação desse desafio será constatada nas décadas e mesmo nos séculos
vindouros, embora leves sinais indiquem que a maior parte dos estudiosos
cristãos dotados de maior percepção do Novo Testamento já têm consciência da
tarefa que os espera. Porém pareceria também que alguns sons abafados são
audíveis nos círculos eruditos judeus, sugerindo que o antigo tabu de Jesus,
enganadamente responsabilizado pelo anti-semitismo cristão, está começando a
esmaecer e que passos hesitantes estão sendo tomados para reintegrá-lo entre
os antigos Hassidim, num início de cumprimento da “profecia” de Martin Buber;
“Um lugar destacado lhe pertence na história da fé de Israel”.
E isto também não é tudo. O apelo magnético do ensinamento e do exemplo
de Jesus oferece esperança e orientação àqueles que não estão integrados numa
religião organizada, as ovelhas desgarradas da Humanidade, que anseiam por
um mundo de misericórdia, justiça e paz, nele vivendo como filhos de Deus.

4 Two Types o f Faith: A Study o f the Interpenetration o f Judaism and Christianity (1951), 13.
Abreviações

Ab. Abot
ANRW Ausfstieg und Niedergang der Römischen Welt, ed. H. Temporini and
W. Haase
Ant. Antiguidades Judaicas, de Flávio Josefo
AOT Apochryphal Old Testament, H.F.D. Sparks
apGen Genesis Apochryphon
ar Aramaico
Arakh. Arakhin
ARN Abot de-Rabbi Nathan
AZ Avodah Zarah
b bavli (Talmude Babilónico)
BB Bava Batra
Beat Bem-Aventuranças
Ber. Berakhot
BM Bava Mesi‘a
BQ Bava Qamma
BR Bereshit Rabbah (cf. GR and GenR)
C. Ap. Contra Apionem, de Flávio Josefo
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CD Cairo Damascus Documento
CHB Cambrigde History o f the Bible, P. R. Ackroyd e C. F. Evans (orgs.)
Decal. De Decálogo, de Filo
DJD Discoveries int the Judaean Desert
DSSE Pergaminhos do Mar Morto, de G. Vermes
Er. Eruvin
Ex.R. Exodus Rabbah
Flac. In Flaccum, de Filo
fr. Fragmento
GenR/GR Genesis Rabbah (cf. BR)
Gitt. Gittin
H Hodayot (Thanksgiving hymns)
Hag. Hagigah
200 A Religião de Jesus, o Judeu

HJP History o f the Jewish People in the Age o f Jesus Christ, de E. Schtirer-G
Vermes-Millar-M. Black-M. Goodman
HST The History o f the Synoptic Tradution, de R. Bullltmann
HUCA Hebrew Union College Annual
Hul. Hullin
IDBS Interpreter’s Dictionary o f the Bible: Supplementary Volume
Iss. Issachar
JB L Journal o f Biblical Literature
J& J Jesus and Judaism by E. P. Sanders
JJ Jesus the Jew by G. Vermes
JJS Journal o f Jewish Studies
JS J Journal fo r the Study o f Judaism
JSS Journal o f Semitic Studies
JTS Journal o f Theological Studies
JW J Jesus and the World o f Judaism by G. Vermes
Jub. Jubilees
LAB Pseudo-Philo’s Liber Antiquitatum Bibbcarum
Legat. Legatio ad Gaium by Philo
Lev.R. Leviticus Rabbah
Life Autobiografia dejosefo
LXX Septuaginta
m Mishná
M Milhamah (Rolo da Guerra)
Mak. Makkot
Mekh. Mekhilta
Men. Menahot
Mid. Middot
Migr. De migratione Abraham, de Filo
Moses De vita Mosis, de Filo
MS Manuscrito
Ned. Nedarin
Neof. Neofiti
Ohol. Oholot
Opif. De opificio mundi, de Filo
OTP The Old Testament Pseudepigrapha, org. por J.H.
p Pesher
PBJS Post-biblical Jewish Studies, de G. Vermes
Pes. Pesahim
Pes.R. Pesiqta Rabbati
PL Patrologia Latina
Abreviações 201

PRK Pesiqta de-Rab Kahana


Ps-Jon Pseudojônatas
Q Qumran (IQ, etc.) Caverna Ide Qumran, etc.
Q[NT) Fonte hipotética do Evangelho de ‘Quelle’
QIP The Dead Sea Scroll: Qumran in Perspective, de G. Vermes
R. Rabi
RB Revue Biblique
RQ Revue de Qumrân
S 1 QSerek (Regra da Comunidade); 4QSa,b,c etc. = vários manuscritos
da Regra da Caverna 4
Sa Regra da Congregação ou Regra Messiânica
S& T Scripture and Tradition in Judaism, G. Vermes
Sanh. Sanhedrin
Sb IQ S Benedictions
Shab. Shabbat
Shebu. Shebuot
Shek. Shekalim
Sot. Sotah
Suk. Sukkah
t Tosefta
Taan. Taanit (Fast)
Tanh. Tanhuma
TDNT Theological Dictionary o f the New Testament
Tg Tar gum
Th-A Genesis Rabbah, ed. J. Theodor — H. Albeck
TS Rolo do Templo
V. C. De vita contemplativa, de Filo
War Guerra dos Judeus, de Flávio Josefo
y yerushalmi (Talmude de Jerusalém ou Palestiniano)
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indice de Nomes

Aarào, 69, 81 Bultmann, R., 9 ,1 0 , 1 1 ,1 7 , 32, 43, 78, 83,


Abel, 61 105, 113, 132, 147
Abraão, 38, 68, 69, 123, 138, 157, 160, Bun bar Hiyya, 91, 100, 101
184, 185
Abrahams 1., 38 Caird, G. B„ 43
Adão, 184, 185 Camponovo, O., 113
Agostinho, 196 Carlston, C. E., 88
Aicar, 44 Carmignac, J., 151
Akiba, 44, 45, 66, 141 Charlesworth, J. H., 118, 166
Alexandre, o Grande, 66 Collins, J.J,, 118
Allison, D. C., 133, 144, 145, 150, 151 Cranfield, C. E. B., 37
Antíoco Eplfanes, 156 Cristo, 103, 106, 127, 131, 135, 136, 140,
Antipas [Herodes], 73, 188 193, 194, 195, 196
Antonino, 90 Crossan,]. D., 13

Bâcher, W., 92 Dalman, G., 130


Badian, E., 188 Daniel, 62, 63, 66, 117, 118, 119, 138
Bar Kohba [Simão], 66 Dario, 118
Bar Ma’yan, 107 Daube, D., 32, 41
Barnabe, 31, 139 Davi, 30, 58, 61, 62, 121, 154, 159, 160
Barr, J,, 165, 167 Davies, M., 103, 104
Barret, C. K., 53 Davies, P. R., 150
Baruc, 51 Davies, W. D., 27, 133, 144, 145, 150
Benjamin, 121 Dequeker, L., 118
Berlin, Sir I., 14 Derrett, J. D. M., 19, 38
Betsabéia, 58 Dihle, A., 43, 44
Billerbeck, P., 15, 80 Dodd, C. H., 88, 127, 137, 196
Black, M , 86, 130, 150, 155 Driver, Sir G., 8
Blank, S. H., 61
Blumberg, C. L., 88 Ego, B., 153
Bokser, B. M., 13 Eisenman, R., 1 5 6 ,1 9 3
Bornkamm, G., 10 Eleazar ben Azaria, 90, 93, 98, 124, 163
Brock, S. P., 117 Eleazar ben Hircano, 80, 93, 153
Buber, M., 113, 174, 183, 197 Eleazar benjair, 122
Buber, S., 86, 123 Elias, 34, 193
Büchler, A., 125, 127 Elisha ben Abuya, 98
210 A Religião de Jesus, o Judeu

Enoc, 51, 155, 193 Isaac, 56, 68, 69, 157, 185
•Esdras, 51, 94, 169 Isaias, 62, 63, 193
Euripedes, 79
Eva, 184, 185 Jacó, 68, 69
Evans, C. A., 109 Jeremias, 66
Ezequiel, 115 Jeremias,]., 88, 93, 98, 1 0 0 ,1 0 1 ,1 0 4 ,
137, 150, 153, 165, 167
Feldman, L. H., 13 Jeronimo, 91, 196
Feldmann, A., 88 Jesus [de Nazaré], passim
Fiebig, P., 88 Jesus ben Sira, 45, 50, 169, 179
Filo, 1 6 ,3 9 , 40, 47, 170, 171 Jesus, filho de Ananias, 82
Filo [pseudo-], 52 João, 12, 23, 100, 1 0 8 ,1 3 4 , 1 5 6 ,1 9 2 ,
Finkelstein, L., 184 195
Fitzmyer, J. A., 85, 155 João Batista, 27, 64, 65, 73, 76, 129,
Flusser, D., 88, 155 134, 136, 137, 156, 175
Foerster, W., 153 Joel, 56
Forkman, G., 56 Johnston, R. M., 93
Fredriksen, P., 137, 191 Jonas, 59, 60, 61
Freyne, S., 13 Jônatas ben José, 30
Furnish, V. P., 43 José, 52
Josefo [Flávio], 13, 16, 3 7 , 3 9 , 40, 42,
Gamaliel, 93, 148 6 6 , 85, 9 9 , n o , 1 2 3 , 1 7 0 , 1 7 1 ,
Gamaliel 11 [Raban], 124, 148 181
Garcia, Martinez, F., 155 Josué, 51
Gerth, H. H., 70 Josué ben Qorhá, 124
Gog, 115 Judá bar Simão, 87
Goldhawk, N. P., 174 Judas, 66
Goodenough, E. R., 161 Judas, o Galileu, 122
Goodman, M. D., 10, 13, 106 Jülicher, A., 88
Green, W. S., 13
Käsemann, E., 35, 37
Habacuc, 174 Kilpatrick, G. D. 72
Hagai, 156 Klausner,]., 13
Hama [R.j, 185 Klein, M., 162
Hanan, 146, 164 Kohba [Simão bar], 66
Hanina ben Dosa, 12, 98, 148, 151, 163, Kuhn, K. G., 113
179, 184
Harvey, A. E., 11, 33, 113 Lagrange, M .J.,9
Hauck, F., 88 Lauterbach, ]., 90, 91, 93
Heinemann,]., 125, 152, 163 Levi [Mateus], 188
Hengel, M„ 14, 33, 71 Levi [R.], 91
Hilkiá [Abba], 146, 179 Lightfoot, ]., 15
Hilel, 39, 44, 45, 67, 93, 132 Lindenberger, J. M., 44
Honi, 12, 146, 164, 179, 181 Loisy, A., 140
índice de Nomes 211

Lucas, 12, 21, 22, 25, 26, 27, 29, 46, 58, Otto, R., 72, 73
61, 76, 79, 97, 9 9 ,1 0 0 , 1 0 6 ,1 0 7 ,1 3 3 ,
141, 142, 143, 144, 147, 148, 150, Paliais, P., 41
151, 158, 173, 192, 197 Papos ben Judá, 92
Paulo [de Tarso], 9, 17, 31, 39, 52, 73, 99,
Magog, 115 139, 171, 177, 178, 189, 192, 194
Malaquias, 65, 156 Perles, F., 86
Manson, T. W., 9, 61, 169 Perrin, N., 24, 33, 113, 137
Marcos, 12, 21, 22, 25, 30, 31, 46, 58, 64, Perrot, C., 166
78, 81, 109, 130, 133, 141, 142, 143, Pedro, 22, 24, 31, 52, 75, 193
148, 150, 158, 173, 192, 197 Pilatos [Pôncio], 11
Maria, 52 Puech, E., 133, 156
Marmorstein, A., 183
Mateus, 12, 21, 22, 25, 26, 27, 29, 30, 33, Rabinowits, L. I., 88
39, 40, 42, 44, 46, 58, 59, 60, 64, 65, Rad, G. von, 113
66, 72, 76, 78, 85, 96, 97, 100, 106, Renan, E., 9
107, 127, 130, 133, 141, 142, 143, Rowland, C., 113, 166
144, 145, 149, 150, 151, 158, 173,
192, 197 Safra, 153
Meier,J. P., 166 Saldarini, A. J., 45
Meir [Rabi], 92, 93, 99, 105 Salomão, 50, 51, 58, 59, 85, 94, 114, 117,
Melquizedec, 155 118, 144, 159
Meyer, A., 85 Samuel, 82, 122
Miguel, 119, 155 Sanders, E. P., 11, 14, 19, 20, 29, 31, 33,
Milik,J. T„ 121 35,3 8 , 51, 7 1 , 1 0 3 , 1 0 4 , 1 1 3 , 1 3 7 , 1 7 0
Mills, C. W., 70 Sara, 38, 39, 99
Moisés, 11, 19, 31, 42, 50, 51, 56, 67, 81, Saul, 121, 122
119, 159, 172, 173, 176, 183, 185, Schechter, S., 183
186, 193 Schiffman, 29, 56
Moore, G. F., 183 Schlatter, A., 33
Mowry, L., 88 Schlosser, J., 113
Schmidt, K. L„ 113
Nabucodonosor, 114, 118 Schuller, E. M., 161
Natã [profeta], 58, 88, 159 Schweitzer, A., 9, 113, 137, 196
Natã [Rabi], 30 Schweitzer, E., 32, 111
Neemias, 169 Scott, R. B. S., 88
Nenunya Haqaná, 104 Segai, J. B„ 13
Neusner,J., 93 Shamai, 39, 44, 67, 93
Newsom, C., 153 Sha’ul [Abba], 183, 186
Nicodemos, 139 Simão ben Azai, 108, 135
Noé, 60 Simão ben Eleazar, 83
Simão ben Halafta, 96
Obadias, 116 Simão ben Menasiá, 30
Origenes, 181 Simão ben Yohai, 84
212 A Religião de Jesus, o Judeu

Simao, o Justo, 170 Vermes, P., 183


Simai [Rabi], 47, 69
Smith, M., 13, 41 Weber, M., 70
Sofonias, 54 W eiss,;., 113, 163
Sparks, H. D. F., 117, 120 Weiss Halivni, D., 51
Stendahl, K., 55, 61, 72 W e l l h a u s e n , 32
Stern, D., 88, 110 White, R. T„ 150
Strack, H., 15, 80 Winton, A. P., 78
Strugnell, J-, 80 Wise, M„ 156, 193
Sweet, J. P. M., 120 Wiirthwein, E., 46

Tarfon [Rabi], 81 Yadin, Y„ 119


Tiago, 31, 100, 108, 134 Yohanan [Rabi], 69, 82
Tillich, P., 43 Yohanan ben Zakai, 66, 75, 93
Tobias, 86 Yose, [Rabi], 95
Tobit, 126 Yose, o Galileu, 56
Young, B. H., 88
Urbach, E. E., 148
Urias, 58 Zacarias, 52, 156
Zaqueu, 188
Vanderkam,;. C., 155 Zeira, 91, 100, 101
Vermes G., 3 7 , 5 1 , 1 1 8 , 1 1 9 , 1 5 0 , 1 5 3 , 1 5 5 , Zeitlin, I. M., 71, 166
171 Ziegler,;., 88

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