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O JUDEU
Geza Vermes
“Este volume completa uma trilogia
que se iniciou em 1973 com Jesus the
Jew e prosseguiu, dez anos mais tar
de, com a publicação de Jesus anã the
World o f Judaism.
Como os livros que o antecederam,
A Religião de Jesus, o Judeu é uma
leitura pessoal dos Evangelhos Sinó-
ticos de Marcos, Mateus e Lucas. Não
proporciona aos leitores um status
quaestionis, não é uma visão geral de
opiniões eruditas nem se engaja em
discussão sistemática com os propo
nentes de teorias divergentes.
Este livro é dirigido primeiramente
a leitores cujo campo de estudo se
encontra fora da Bíblia, do Novo Tes
tamento e da teologia, isto é, a estu
diosos de religiões, de história e cul
tura antiga, particularmente do ju
daísmo, embora tenha esperança de
que pesquisadores bíblicos e teólo
gos lhe concedam ao menos alguma
atenção. Leitores cristãos, não afeitos
ao estudo académico das origens de
sua religião, poderão achar muitas
destas páginas, principalmente o ca
pítulo final, particularmente pertur
badores, mas espero que também se
sintam instigados à reflexão.
Ao longo dos anos, ao fazer confe
rências sobre Jesus, o Judeu, sempre
encontrei uma objeção, freqüente-
mente levantada logo no início da
discussão: não sendo Jesus nem um
agitador político nem um mestre que
atacava as doutrinas fundamentais
da religião judaica, por que foi execu
tado?
A prisão e execução de Jesus não se
deveram diretamente a suas palavras
e atos, mas às conseqüências revolu
cionárias temidas pelas inseguras au
toridades incumbidas de manter a lei
e a ordem naquele barril de pólvora
que era Jerusalém no primeiro sécu
lo, superpovoada de peregrinos. Se
Jesus não tivesse provocado um tu
multo no Templo, virando as mesas
de mercadores e cambistas, ou se
tivesse escolbido fazê-lo em outra
ocasião que não o Pessah — momento
em que se espera que o ansiado Mes
sias, libertador final dos judeus, faça
sua aparição — ele teria, muito pro
vavelmente, escapado com vida. Ele
morreu na cruz por ter praticado o
gesto errado (provocar um tumulto)
no lugar errado (no Templo) e no
momento errado (às vésperas do
Pessah). Esta é a verdadeira tragédia
de Jesus, o Judeu.”
G. V.
Tradução
Ana Mazur Spira
Revisão Geral
JAYME Salomão , Monique Balbuena
C arlos Alves e F ernanda Abreu
Imago
Título Original
The Religion o f Jesus, the Jew
Capa:
V eronica d ’O rev
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD - 232
95-0713 CDU - 232
1995
Impresso no Brasil
Printed in Rmril
S u m ário
Prefácio
4 Provérbios e Parábolas 75
Abreviações 199
Bibliografia 203
Este volume completa uma trilogia que se iniciou em 1973 com Jesus th ejew e
prosseguiu, dez anos mais tarde, com a publicação de Jesus and the World o f
Judaism.
Como os livros que o antecederam, A Religião de Jesus, o Judeu é uma leitura
pessoal dos Evangelhos Sinóticos de Marcos, Mateus e Lucas. Não proporciona
aos leitores um status quaestionis, não é uma visão geral de opiniões eruditas
nem se engaja em discussão sistemática com os proponentes de teorias diver
gentes. Opiniões de outros escritores são apresentadas apenas quando realmente
me serviram de inspiração ou me desafiaram a um debate proveitoso.
Este livro é dirigido primeiramente a leitores cujo campo de estudo se
encontra fora da Bíblia, do Novo Testamento e da teologia, isto é, a estudiosos
de religiões, de história e cultura antigas, particularmente do judaísmo, embora
tenha esperança de que pesquisadores bíblicos e teólogos lhe concedam ao
menos alguma atenção. Leitores cristãos, não afeitos ao estudo acadêmico das
origens de sua religião, poderão achar muitas destas páginas, principalmente o
capítulo final, particularmente perturbadores, mas espero que também se sintam
instigados à reflexão.
Em benefício daqueles que não têm familiaridade com os Evangelhos e/ou
com livros não bíblicos sobre o antigo judaísmo, a evidência literária será sempre
citada, de preferência à simples menção nas referências.
Ao longo dos anos, ao fazer conferências sobre Jesus, o Judeu, sempre
encontrei uma objeção, freqüentemente levantada logo no início da discussão:
não sendo Jesus nem um agitador político nem um mestre que atacava as
doutrinas fundamentais da religião judaica, por que foi executado? Sem repetir
o argumento apresentado no Prefácio de Jesus and the World o f Judaism (pp.
viii-ix), eu gostaria de apresentar brevemente minha opinião.
A prisão e execução de Jesus não se deveram diretamente a suas palavras e
atos, mas às conseqüências revolucionárias temidas pelas inseguras autoridades
incumbidas de manter a lei e a ordem naquele barril de pólvora que erajerusalém
no primeiro século, superpovoada de peregrinos. Sejesus não tivesse provocado
um tumulto no Templo, virando as mesas de mercadores e cambistas, ou se
tivesse escolhido fazê-lo em outra ocasião que não o Pessah — momento em que
se espera que o ansiado Messias, libertador final dos judeus, faça sua aparição
— ele teria, muito provavelmente, escapado com vida. Ele morreu na cruz por
ter praticado o gesto errado (provocar um tumulto) no lugar errado (no Templo)
8 A Religião de Jesus, o Judeu
Ao partir
Lembrando a acolhida
de um doce amigo
por um longo e carinhoso Braço,
ela partiu muito suavemente, você o disse,
ela partiu muito docemente,
como passando de um quarto ao outro.
Mas não, não, não, não,
não foi antes como passando
de um canto familiar
para outro canto familiar
do mesmo quarto familiar?
Jesus, o Judeu, e seu Evangelho
The History o f the Synoptic Tradition [HST] (1963), 105. Embora eu discorde freqüentemente de
suas inferências históricas, HST será regularmente usada neste volume devido a seu alto nível de
análise literária.
fesus von N azareth (1956). [Tradução inglesa: Jesus o f Nazareth (I960).] Do ponto de vista da
compreensão de Bornkamm sobre Jesus, o livro não apresenta nenhuma novidade. Ele soa, de
fato, como uma canção muito familiar, a tradicional antipatia dos pesquisadores alemães, até
recentemente, para com o judaismo. Bornkamm se sentia constrangido em admitir que Jesus
tenha surgido no mundo judaico, mas pretendia que ele, sem nenhuma dúvida, se situava fora
desse mundo, como um estranho, porque o judaísmo pós-exílico, estreito e rígido, era uma
perversão da religião israelita. Sob a influência dos escribas e fariseus, ela teria se transformado
num légalisme formalístico, uma antecipação da religião talmúdíca face à qual Jesus sobressai
em nítido contraste!
Jesus. 0 Judeu, e seu Evangelho 11
da Galiléia bem como notável historiador da antiguidade, que coloca a incoerên
cia da linha de pensamento de Bultmann em perspectiva apropriada:
Deixando de lado Jesus the Jew (1973), e Jesus and the World o f Judaism (1983)
cuja seqüência é o presente volume, permitam-me começar com as obras de dois
amigos muito próximos e ex-colegas de Oxford, A. E. Harvey e E. P. Sanders.
Em Jesus and the Constraints o f History (1982), Harvey, embora concordando
até certo ponto com o ceticismo acadêmico generalizado em relação à confiabi
lidade histórica geral dos Evangelhos, abre novas perspectivas ao estudo da vida
de Jesus ao escrever: “Existem igualmente certos fatos sobre Jesus dos quais seria
totalmente irracional duvidar por qualquer critério normal de evidência históri
ca. Tais fatos são quejesus era conhecido tanto na Galiléia quanto emjerusalém;
que era um mestre; que operou curas de diversas doenças, particularmente de
possessão demoníaca e que estas curas eram geralmente consideradas como
miraculosas; que se envolveu em controvérsias com seus correligionários em
questões sobre a Lei de Moisés e que foi crucificado no governo de Pôncio
Pilatos.” (p. 6)
Por outro lado, enquanto estipula uma autenticidade histórica limitada aos
Evangelhos, como a maioria dos teólogos ele nega a possibilidade de saber “algo
de real importância”, por exemplo, “a consciência messiânica [de Jesus], sua
perfeição moral ou seu relacionamento com seu pai celeste” (ibid). Em outras
palavras, aceita traços do esboço biográfico de Jesus mas se declara totalmente
cético em assuntos que, em seu entender são da mais grave importância
doutrinai.
Ed Sanders não é definitivamente um teólogo e bem menos temeroso de se
aventurar no perigoso terreno da mensagem religiosa de Jesus. Em Jesus and
The RuUing Class o j Judcea (1987), 22seg. Ver também seu State and Society in Roman Galilee,
132-212 A.D. (1983).
12 A Religião de Jesus, o Judeu
Há exatamente setenta anos, Joseph Klausner, o primeiro especialista moderno judeu a dedicar
um livro a Jesus, concluía seu volume com os mais altos louvores ao ensinamento moral dejesus:
“Em seu código ético encontramos sublimidade, perceptibilidade e originalidade de forma sem
paralelo em nenhum outro código ético hebreu; igualmente inexiste, nessa literatura, qualquer
paralelo com a notável ane de suas parábolas. A perspicácia e concisão de seus provérbios e fortes
epigramas servem, em grau excepcional, para popularizar idéias éticas. Se acaso chegar o dia em
que este código ético for desembaraçado de suas vestes de milagre e misticismo, o Livro da Ética
d ejesus tornar-se-á um dos tesouros mais preciosos da literatura de Israel em todos os tempos.”
(Jesus o f N azareth: His Life, Times and Teaching (1925), 414,
Para uma visão geral da bibliografia completa do Testimonium, ver L. H. Feldman, Josephus and
Modern Scholarship 1937-1980 ( 1 ^ 4 ) , 673-99. Cf. também meu ensaio The Jesus Notice o f Josephus
re-examined, JJS 38 (1987), 1-10. Minha reconstrução hipotética do Testimonium diz: “Por volta
desta época viveu Jesus, um homem sábio ... Ele realizou feitos espantosos (literalmente,
paradoxais)... Ele atraiu muitos judeus... Era [chamado] Cristo. Quando Pilatos, segundo a
acusação apresentada pelos nossos principais, o condenou à cruz, aqueles que o amavam desde
o início não deixaram de permanecer unidos a ele... E a tribo dos cristãos, assim denominados
por sua causa, não desapareceu até o dia de hoje” (Ant. xviii. 63seg.).
“Popular Religion in Ancient Israel”, JJS 27 (1976), 1-22.
Green, “Palestinian Holy Men; Charismatic Leadership and Rabbinic Tradition”, ANRW ii. 19.2
(1979), 619-37; Bokser, “Wonder-working and Rabbinic Tradition. The Case of Hanina ben
Dosa”, JS J 16 (1985), 42-92.
Freyne, Galilee from Alexander the Great to Hadrian (1980); Galilee, Jesus and the Gospels (1988);
Goodman, State and Society in Roman Galilee, A.D., 132- 212 (1983).
The Historical Jesus: The Life o f a Mediterranean Jewish Peasant (1991), 137-67. Cf. Smith, Jc.sus
the Magician (1978). |Ed. bras.: O Jesus Histórico (1994), Imago Ed.]
14 A Religião de Jesus, o Judeu
10 Hengel, The Charismatic Leader and his Followers (1981); Sanders, Jewúh i.aw from Jesus to the
Mishnahh (1990), 3.
11 Quando Sir Isaiah Berlin, antigo Diretor da minha Faculdade, tomou conhecimento, há alguns
anos, de que eu tinha sido descrito nestes termos durante uma conferência, tendo sido
mencionado mesmo meu gosto de “alcançar o objetivo de qualquer maneira”, ele murmurou em
minha direção: “O enxerto pegou, não é? Por vezes acontece”.
Jesus, o Judeu, e seu Evangelho 15
foi quando desejava esclarecer minha própria mente em vez de fixar leis
universalmente limitadoras.^^
Eu sabia, por experiência pessoal, que a literatura rabínica, quando traba
lhada com sensibilidade e critério, pode lançar uma luz valiosa e por vezes única
no estudo dos Evangelhos. Na realidade, seu uso para esta finalidade tem sido
habitual desde o século XVII, quando Horae Hebraicae et Talmudicae (1658-78),
de John Lightfoot, veio à luz, e especialmente após a publicação, entre 1922 e
1 9 2 ^ 9 6 famoso Commentary to the New Testament from Talmud and Midrash
(Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch), em quatro volu
mes, por Hermann Strack e Paul Billerbeck. Esta obra parecia gozar de uma
autoridade quase maior que os próprios Evangelhos entre os estudiosos do Novo
Testamento; estes não tinham escrúpulos em criticar os Evangelhos mas não os
Kommentar. Entretanto, mais recentemente, esta obra perdeu muito de sua
reputação QWJ 62-64). Sabia-se, há muito tempo, que a comparação do Novo
Testamento, datando do final do primeiro século A.D. com a literatura rabínica,
compilada aproximadamente entre os anos 200 e 500, se defronta com um sério
embaraço cronológico. É legítimo, deve-se perguntar, fazer uso da Mishná, do
Talmude e do Midrash, mais recentes, para interpretar o Novo Testamento, mais
antigo? O dilema é percebido mais agudamente hoje em dia, já que, com os
Pergaminhos do Mar Morto, os especialistas dispõem agora de um corpus
considerável de material comparativo, contemporâneo dos primeiros escritos
cristãos ou apenas ligeiramente mais antigos, enquanto, antes de 1947, esta
documentação não era conhecida.
Nas novas circunstâncias, é ainda justificável voltar à Mishná, Tosefta,
Talmude, Midrash ou Targum, em busca de ajuda para estabelecer o significado
dos Evangelhos? Não, respondem unanimemente os pan-qumranistas. Apenas
os Pergaminhos pertencem à época correta; os escritos rabínicos devem ser
ignorados, já que muitos (a maioria?) dos partidários desta escola não estão
geralmente familiarizados com os textos talmúdicos, mostram-se por demais
ansiosos em acolher esta dispensa abrangente da necessidade de travar relações
com escritos tão difíceis!
Para esclarecer a questão, deve-se avançar passo a passo. É permissível fazer
uso da literatura rabínica mais tardia para explicar os Evangelhos, de data
anterior? A resposta é claramente negativa caso o material contido nos documen
tos rabínicos seja posterior, em um século ou mais, em relação ao Novo
Testamento, quanto ao conteúdo e não apenas na formulação ou redação, ou se
12 “Jewish Studies and New Testament Interpretation”, JW J 74-88, 173-5. Publicado originalmente
e m JJ5 3 3 (1 9 8 2 ), 361-76.
16 A Religião de Jesus, o Judeu
cultura judaica. E se nosso esforço for frutífero, talvez alguém se sinta tentado a
desentranhar deste estudo princípios metodológicos gerais para uso posterior!
A tarefa com a qual nos defrontamos é nova, pelo menos relativamente
falando, porque, após a revolução de Bultmann, o pensamento de Jesus’passou
a ser considerado tão inacessível quanto sua vida. Os pesquisadores evitavam
reconstruir o ensinamento do Mestre e passaram a investigar a teologia do Novo
Testamento (no livro de Bultmann, Theologie des Neuen Testaments (1965), a
pregação de Jesus, a pressuposição e não uma parte da teologia do Novo
Testamento é apresentada em 34 páginas no total de um volume de 620 páginas).
Mais recentemente, uma tendência ainda menos aventureira passou a prevalecer
e, em vez de investigar o ensinamento de todo o Novo Testamento, a atenção se
estreitou para se focalizar em evangelistas individuais ou em Paulo.
Nossa investigação se desenvolverá em três estágios. Em primeiro lugar, o
relacionamento de Jesus com o judaísmo vivo de sua época e a natureza, estilo
e conteúdo de suas próprias pregações serão apresentados à luz de uma análise
histórica minuciosa (capítulos 2, 3 e 4). Em seguida, a idéia de Deus como Rei
e Pai será investigada na atmosfera do entusiasmo escatológico de Jesus (capí
tulos 5-6), levando naturalmente ao capítulo intitulado “Jesus o Homem Religio
so”. Finalmente, um breve epílogo com a finalidade de colocar em nítido relevo
a diferença entre a religião de Jesus e o Cristianismo histórico e eclesiástico.
Jesus e a Lei:
O Judaísmo de Jesus
1 O Significado de “a Lei”‘
1 Sobre o problema geral, ver “Law and Society in Jesus’ World", AlNRW 25,1 (1982), 477-564 de
J. D. M. Derrett e, especialmente, Jewish Law from Jesus to the Mishnah: Five Studies (1990) de E.
P. Sanders.
20 A Religião de Jesus, o Judeu
Enquanto a autenticidade histórica das polêmicas do Evangelho com os fariseus e outros grupos
seja mais que duvidosa é, mesmo assim, altamente significativa para a representação geral de
Jesus que, quando perguntado se os judeus deveriam pagar impostos a Roma, ele é mostrado
como defensor das exigências imperiais (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25).
O Decálogo (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15) proíbe simplesmente trabalhar no Shabat. Os atos proibidos
são especificados apenas incidentalmente na Bíblia: viajar (Ex 16,29), arar (Ex 34,21), acender
fogo (Ex 35,3), apanhar gravetos (Nm 15,32-36) e comerciar (Ne 10,31). A penalidade por não
guardar o Shabat é indicada apenas uma vez, no caso particular do homem que recolhia gravetos
no deserto (Nm 15,35-36). Temos de esperar até o Livro dos Jubileus (50,6-9), de meados do
segundo século a.C. e os estatutos do Documento de Damasco (10,14-12.6), meio século após,
até encontrar as primeiras tentativas de sistematização e até a seção relevante da Mishná (Shab.
7.2), antes de obter uma lista detalhada das trinta e nove classes de ações proscritas. Tanto Jubileus
(50.8) quanto a Mishná (Sanh. 7.4) declaram que a não observância do Shabat é passivel de pena
de morte, isto é, por apedrejamento ao fim de um julgamento, de acordo com a Mishná. Ver
também Sanders, Jewísh Law, 16-19.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 21
da lei criminal judaica por mau comportamento público a este respeito. Ele nem
é criticado abertamente por operar curas no Shabat. O comentário mais próximo
relatado a este respeito é uma censura endereçada pelo dirigente de uma
sinagoga da Galiléia a seus congregados que pediam para ser curados no Shabat
de preferência a qualquer outro dia da semana (Lc 13,14). Se, como se argumenta
freqüentemente, os evangelistas tivessem como intento inculcar, em membros
da igreja gentia, uma doutrina cristã tal como a revogação da legislação do Shabat
por meio de um relato ficticio da vida de Jesus, eles fizeram um trabalho
lastimável e não conseguiram provar a tese que defendem.
Pode ser de interesse ressaltar que ele não é representado, em nenhum lugar,
participando de atos de culto. De fato, isto também se aplica à sua presença na
sinagoga, com uma exceção. Lc 4,16-21 relata um episódio em Nazaré quando
Jesus participou publicamente do serviço: leu um trecho profético da Bíblia (Is
61) e continuou com uma interpretação de cunho de cumprimento de profecia,
reminiscente da espécie de exegese da Bíblia pela qual os Pergaminhos do Mar
Morto são famosos (cf. abaixo, “Jesus o Mestre”, 61-66). Tanto no Templo quanto
na sinagoga, desempenhou o papel de mestre e, embora todos os três Sinóticos
lhe atribuam uma doutrina profética identificando o santuário como uma casa
de oração (Mc 11,17; Mt 21,13; Lc 19,46), não encontramos em seus Evangelhos
nenhuma menção de que ele tenha recitado os salmos e bênçãos usuais nem no
Templo nem em nenhuma outra sinagoga.
Antecipando nosso exame do local de oração no comportamento religioso de
Jesus, deve-se ressaltar que os escritores do Evangelho procuram descrevê-lo,
provavelmente de forma correta, como interessado principalmente na oração
não-comunitária. Freqüentemente encontramos Jesus dirigindo-se a Deus em locais
solitários, ou pelo menos, a alguma distância de outras pessoas: no deserto (Mc
1,35; Lc 5,15), no topo de uma montanha (Mc 6,46; Mt 14,23; Lc 6,12), no jardim
de Getsêmani, longe de seus discípulos (Mc 14,32-41; Mt 26,36-44; Lc 22,41-45).
Sua única bênção não litúrgica em público segue-se à colocação de suas mãos sobre
crianças, mas mesmo neste caso a referência ã oração é encontrada apenas em Mt
19,13 e não aparece nos versículos correspondentes em Marcos e Lucas. Esta
consistente omissão de participação no culto pode ser atribuída à ênfase dada por
Jesus ao caráter particular, não ostensivo e mesmo secreto da oração (Mt 6,5-6; Mc
12,40; Mt 23,14; Lc 20,47). Em contraste, depois da Ascensão, os apóstolos “ficavam
continuamente no Templo, louvando a Deus” (Lc 24,53); “dia após dia, todos juntos,
mostravam-se assíduos no Templo” (At 2,46); “Pedro e João subiam ao Templo na
hora da oração” (At 3,1). Entretanto, o judeu mais conservador entre eles era Paulo
que não só cultuava no santuário (At 22,17) como é o único cristão a ser descrito se
submetendo a uma purificação ritual e fazendo uma oferenda no Templo (At 21,26)!
Além de frequentar sinagogas e ser um peregrino do Templo, Jesus é retratado
como observante de mandamentos particulares de importância ritual. O principal
entre estes é guardar, ou, falando mais concretamente, comer o Pessah (Mc 14,12-16;
Mt 26,17-19; Lc 22,7-15). O Pessah era uma celebração familiar, embora à época
do Segundo Templo estivesse também ligado ao santuário onde era sacrificado o
cordeiro de Pessah. Assim, apesar dos problemas relativos à cronologia da crucifi
cação, os evangelistas não hesitaram em fazer crer a seus leitores quejesus cumpria
fielmente os mandamentos referentes a este festival.^
5 Para um estudo detalhado do festival, cf. J. B. Segal, The Hebrew Passover from the Earliest Time
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 23
10 A.D. 70 (1963). Casojesus tenha participado da ceia de Pessah na data correta, seu julgamento
e execução, com a ajuda e consentimento de dirigentes judeus, ocorreram no próprio dia festivo,
eventualidade praticamente impossível.
As crianças que pediam o fim de uma estiagem ao carismático operador de milagres Hanan, neto
de Honi, o desenhador de círculos, pegaram a borda de seu manto (shippule gelimeh) e gritaram
“Abba, Abba, dá-nos chuva!” (bTaan. 23b). Uma história rablnica preservada no Midrash tanaitico
Sifre referente a Nm 115 (ed. S. H. Horovitz, 128-9) e no Talmude (bMen 44a) relata como um
jovem judeu, preparando-se para ir para a cama com uma bela prostituta de alta classe, foi
impedido de pecar pela intervenção miraculosa das franjas de sua roupa.
24 A Religião de Jesus, o Judeu
Sobre a taxa da didracma, ver HJP II, 271-2. Para evidência adicional de Qumran, ver DJD VII
(4Q 513) e DSSE (3), 297-8, Cf. também Sanders, Jewish Law, 49-51.
Cf. JW J, 18-25. Como tentativa interessante porém não inteiramente bem-sucedida, ver N. Perrin,
Rediscovering the Teaching o f Jesus (1967).
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 25
Não digas nada a ninguém; mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por
tua purificação aquilo que Moisés prescreveu (Mc 1,44).
A correção desta interpretação é apoiada pelas diferenças notadas no relato de Lucas da cura de
dez leprosos (Lc 17.11-19) que não contém nenhuma referência à observância das prescrições
rituais. Também é típica de Lucas a observação de que apenas um samaritano, e nenhum dos
nove judeus, voltou para agradecer a Jesus.
26 A Religião de Jesus, o Judeu
futuro que, em sua opinião, pertencia à idade de então. Aversão de Lucas (16,17)
diz:
Em verdade vos digo, até que desapareçam céu e terra, não desaparecerão
nem um iota nem um título da Lei, até que tudo seja cumprido (Mt 5,18).
10 Para o uso, cm grego, ver Filo, Flacc, 1 3 1 .0 termo faz alusão aos ornamentos artísticos das letras
hebraicas usados por escribas da Bíblia e conhecidos como qots (espinho, gancho) ou keter
(coroa). Uma história irônica, preservada no Talmude Babilónico (bMen. 29b), descreve Deus
como um escriba da Torá que coloca “coroas” nas letras. Ele explica a Moisés que o propósito da
decoração é permitir que o futuro Rabi Akiba, no segundo século A.D., dependure quantidades
de refinamentos legais em cada “gancho”.
11 O iota e o titulo, ou seja yod e qots em hebraico, aparecem lado a lado numa história rabínica
independente da tradição do Evangelho; nesta história o rei Salomão é retratado se imiscuindo
com a Lei. “Ele disse: Por que o Senhor Todo-Poderoso - bendito seja, disse (referindo-se ao rei),
‘Ele não multiplicará (yrbh) suas mulheres’ (Dt 17,17)? Apenas para que ‘o coração do rei não se
desencaminhe’. Eu as multiplicarei ( ’rbh) mas meu coração não se desencaminhará. Nossos sábios
disseram: Naquele momento, a letra yod levantou-se e se prostou diante do Senhor - bendito
seja — e disse: Senhor do universo, não dissestes que nenhuma letra da Torá será jamais
destruída? Vede, Salomão me destruiu, substituindo um _yod por um aleph, quer dizer, mudando
yrbh por ’rbh. Uma Iletra) hoje, outra amanhã até que toda a Torá seja destruída. O Senhor —
bendito seja - respondeu: Salomão e outros mil como ele podem tentar destruir mas eu não
permitirei que um título da Torá seja destruído”. (Ex R. 6,1).
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 27
Aquele, porém, que os praticar e ensinar, esse será chamado grande no Reino
do Céu” (Mt 5,19). Entretanto, no quadro mais amplo da cristandade gentia, que
proporcionou um abrigo duradouro para este Evangelho, é possível interpretar
o texto acima como uma alusão ou ao fim da Torá e do Antigo Testamento em
virtude do estabelecimento de uma Nova Aliança ou a uma situação judeu-cristã
prevalente depois da destruição de Jerusalém em 70 A.D., quando um segmento
substancial da Lei e toda a legislação do Templo tomaram-se impraticáveis.*^
Lucas, como já foi notado, reproduz em seu Evangelho uma declaração
incondicional quanto à continuidade da Lei, criando assim uma séria dificuldade
para a igreja gentílica. Ele tenta, então, contornar essa dificuldade ligando-a a
um pronunciamento separado com o objetivo de determinar a posição de João
Batista e da Torá na ordem escatológica:
12 Cf. W. D. Davies, The Sermon on the Mount (1964), 334; JWJ, 161, n. 16.
13 Cf. JW J, 161, n. 16. Os antônimos “revogar/cumprir” correspondem ao hebraico-aramaico
lebattel-khattela/ leqqayem-ieqqayema. Um bom paralelo c fornecido pela Mishná: “Aquele que
cumpre a Torá na pobreza, a cumprirá mais tarde na riqueza; e aquele que revoga a Torá (quer
dizer, não a observa como se ela estivesse nula e vazia) a revogará mais tarde na pobreza” (mAb.
4,9).
28 A Religião de Jesus, o Judeu
Uma resposta direta a esta pergunta deve ser firmemente negativa (a questão
de equacionar o perdão dos pecados com blasfêmia será tratada mais tarde
(pp.175-6). Em nenhum trecho do Evangelho Jesus é visto tomando deliberada-
mente a iniciativa de negar ou de alterar substancialmente qualquer mandamen
to da Torá em si. As declarações controvertidas giram em torno seja de leis
conflitantes, quando uma cancela a outra, seja na compreensão precisa de toda
a extensão de um preceito. Ambas categorias podem ter ingredientes rituais bem
como ético-religiosos.
Para ser mais explícito, a atitude de Jesus quanto à legislação do Shabat,
especialmente em conexão com a realização de curas, mas também no episódio
em que os discípulos colhem espigas de milho, ocasionou, como tem sido
observado, alguma preocupação. Do mesmo modo, sua atitude em relação à
kashrut, isto é, os preceitos relativos a alimentos puros e impuros, é freqüente-
mente tomada pelos intérpretes cristãos dos Evangelhos como não sendo
tradicional. Deslocando-se do domínio ritual para o moral, sua ordem a um
futuro discípulo de segui-lo imediatamente, à custa do dever de enterrar o pai,
é também interpretada por especialistas do Novo Testamento como uma impie
dade na perspectiva judaica. Finalmente, o contraste entre “Ouvistes o que foi
dito”, introduzindo um mandamento bíblico e, “mas eu vos digo”, é interpretado
como prova de que ele estava realmente pronto a desdenhar a Torá ou, ainda
mais grave, a revogar a “velha” Lei e substituí-la por um novo código.
(i) O Shabat
mal, nem ferir nem matar no Shabat ou em qualquer outro dia. Deve-se pois dar ênfase ao ato
positivo: fazer o bem, isto é, salvar a vida. Na realidade, aqueles que se abstêm de fazê-lo são, por
implicação, culpados de homicídio.
15 Esta era, ao que parece, a opinião de conciliação. O Documento de Damasco sugere que os
essênios, conhecidos por sua observância rigorosa do Shabat, adotavam uma linha de ação muito
mais dura, proibindo cuidar de um animal ao dar cria e prestar socorro a um animal caído numa
cisterna ou numa vala no sagrado dia de descanso (CD 11,13-14). Cf. L. H. Schiffman, The
H alakhah at Qumran (1975), 122-3.
16 C i.JW J, 46-7; Sanders, Jewísh Law, 19-23.
30 A Religião de Jesus, o Judeu
17 Mt 12,5 introduz outra justificação; arrancar espigas de milho com uma finalidade válida, não
constitui maior violação ao Shabat que o “trabalho” executado pelos sacerdotes no dia de
descanso. Na passagem da Mekhilta acima citada (p. 29), Rabi Akiba apresenta o mesmo
argumento, isto é, que o serviço do Templo anula as regras do Shabat. Finalmente, em Mt 12,7,
o célebre axioma profético é invocado quando exigências de moralidade assumem precedência
quanto a regras cerimoniais; “Desejo compaixão e não sacrifício” (Os 6,6).
Jesus e a Lei: 0 Judaísm o de Jesus 31
para que se possa guardar muitos (outros) Shabats” (Mekhilta, ed. Lauterbach
III, 198-9).
18 Roger P. Booth, Jesus and the Laws o f Purity: Tradition History and Legal History in M ark 7 (1986)
e panicularmenie E. P. Sanders, Jewish Law, capítulos 1, 111 e IV.
19 Quanto à interpretação de Mc 7,14-22, ver J J 28-29, 232. Observar também a exegese de Julius
32 A Religião de Jesus, o Judeu
Quem cumprir a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã e minha mãe
(Mc 3,35; cfMt 12,50).
Welhausen na qual o grego aphedron, bem como seu substituto achetas no códice D, é tomado
no sentido de “canal intestinal’’: “Der Darmkanal reinigt die Speisen, indem er das Unreine von
ihnen ausscheidet. Naturalia non sunt turpia’’ (Das Evangelium Marci (1903), 58).
20 À luz desta discussão, é desconcertante 1er, em trabalhos escritos por estudiosos de renome em
círculos ligados a estudos do Novo Testamento, declarações tais como a seguinte: “Não pode
haver dúvida de que Jesus, em toda a sua conduta, transgrediu repetidas vezes o mandamento
do Antigo Testamento de observar o Shabat e demonstrava pouca preocupação quanto às leis do
Antigo Testamento pertinentes à pureza ritual (Eduard Schweizer, Jesus (1971), 32). A acusação
de quejesus cometia blasfêmia ao perdoar pecados será tratada mais adiante, p. 76.
21 O detalhe, dispensável pelo desenrolar da história, de que peritos legais eram visitantes vindos
da capital, empresta alguma verossimilhança quanto à historicidade da narrativa. No primeiro
século A.D. a presença de fariseus quase não era atestada na Galiléia. Cf. JJ, 56-7. Por outro lado,
pode-se assinalar que o problema do qorhan é assunto relativo a Jerusalém, o que não parece ser
a associação de pensamento mais natural para um pregador popular da Galiléia.
Consequentemente, em sua forma atual, o argumento provavelmente deriva de polêmicas
antifarisaicas da igreja judeu-cristã (cf. Bultmann, HST, 17-18). Quanto à declaração sobre qorhan
ver JW J, 78-9, 174,
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 33
Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a
obedecem (Lc 8,21).
Se alguém vier a mim e não odiar seu próprio pai e mãe e mulher e filhos,
irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26;
cf. Mt 10,37).
Ao menos por uma vez Jesus quis dizer que acompanhá-lo se sobrepunha
às exigências da devoção e da Torá. Isto pode mostrar sua disposição,
caso necessário, de desafiar a adequação do ensinamento mosaico. (J &
J, 225).
O que Sanders e seus colegas consideram é o caso de um homem cujo pai acabara
de morrer e a quem Jesus ordena de juntar-se a ele e aos seus discípulos
imediatamente, sem esperar as poucas horas necessárias para preparar e execu
tar os rituais fúnebres que deveriam acontecer no mesmo dia da morte, antes do
anoitecer, mesmo no caso de criminosos executados (Dt 21,23). Sanders distin
gue dois impulsos no pronunciamento, um positivo e o outro negativo. O
primeiro, “o chamado ao discipulado ... que tem precedência sobre outras
responsabilidades” (J & J, 253), é considerado no contexto do Evangelho como
lógico e compreensível por si mesmo. O segundo, entretanto, tem implicações
mais profundas que são usualmente negligenciadas, tal como determinar se a
“desobediência às prescrições quanto aos deveres fúnebres a serem prestados ao
pai ou à mãe constitui efetivamente uma desobediência a Deus” (ibid.).
Tal dicotomia é, creio, muito desnorteadora. Como anteriormente, defron-
tamo-nos com um conflito entre prescrições; deve-se ao mesmo tempo honrar (e
logo enterrar) o pai, e estar pronto para se devotar ã rápida realização do Reino
de Deus; este é o problema real, e não uma simples afiliação ao grupo dos
discípulos de Jesus. No caso destes deveres conflitantes, a responsabilidade pela
inevitável “desobediência” a um dos preceitos pode ser unicamente atribuída a
Deus.^^
Quanto à escolha a ser feita para a solução do dilema, os exemplos dados
acima, bem como todo o ensinamento dejesus referente ao Reino, não nos deixa
em nenhuma dúvida sobre onde, em sua opinião, deveria se encontrar a
prioridade (ver cap. 6 adiante). Se, neste contexto, o “movimento negativo” tenha
sido sentido conscientemente, o evangelista poderia ter tratado dele na forma de
um questionamento hostil. Porém não o fez.
Dito isto, e tendo reconhecido que o “movimento positivo” da declaração faz
sentido, ainda me pergunto se a compreensão literal do episódio — o chamado
de Jesus a um homem que tinha acabado de perder o pai — deveria ser aceito
como evidente por si só. Porque, apesar da ausência de detalhes circunstanciais
tanto em Lucas quanto em Mateus, a presumida realidade do diálogo requer um
contexto válido, do ponto de vista histórico e psicológico.
24 Para o emprego metírfórico de “os mortos” em vez de “os ímpios”, ver yBer. 2,4c; ITm 5,6, etc.
25 Cf., como extremos opostos, E. Kãsemann, Essays on New Testament Themes (1964), 37-38 e E. P.
Sanders, Jesus and Judaism (1985), 260-4. Tr6s das antíteses — homicídio, adultério e falso
juramento - são mais frequentemente reconhecidas como sendo provavelmente de Jesus: ver
Bultmann, HST, 147.
36 A Religião de Jesus, o Judeu
Para que sangue inocente não seja derramado ... e assim a culpa do
derramamento de sangue recairá sobre ti ... Mas se um homem odeia seu
vizinho, 0 espera no caminho e o ataca ... A este respeito foi dito: Um
homem que transgredir um mandamento leve acabará por transgredir um
mandamento pesado. Se transgredir Amarás o teu próximo como a ti mesmo
(Lv 19,18), acabará por transgredir Não te vingarás e não guardarás rancor
(ibid.) e Não odiarás teu irmão (Lv 19,17), e Que teu irmão possa viver a
teu lado (Lv 25,36) até quando ele derramar sangue.^®
26 A sequência implícita é que a falta de amor pode levar a sentimentos de vingança e em seguida
ao ódio que culmina no homicídio.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 37
apresentar tua oferenda. Reconcilia-te logo com aquele que te acusa ...
(Mt 5,23-25)
27 Cf. op. cit. em n. 25. Uma inteqiretação exegética judaica da “antítese” é proporcionada por D.
Daube, The New Testament and Rabbinic Judaism (1956), 55-62. Para a importância geral do
pronunciamento, cf. JW J, 47.
28 Nas palavras de um estudioso muito conhecido do Novo Testamento, os escribas e os fariseus
estavam “adulterando a Lei de Deus” enquanto, no caso dejesus, tratava-se de “o Filho elucidando
seu significado real” (C. E. B. Cranfield, The Gospel according to Saint Mark (1959), 237).
29 Cf. G. Vermes, “A Summary of the Law by Flavius Josephus”, NT 24 (1982), 303.
38 A Religião de Jesus, o Judeu
30 Cf. S-B I, 298-301; L. Abrahams, Studies in Pharisaism and the Gospels II (1924), 205-6.
31 Para uma visão mais recente de material do Novo Testamento, ver Sanders, ] &J, 256-60; cf.
também JW/, 70-71, 87; J. A. Fitzmyer, “The Matthean Divorce Texts and some new Palestinian
Evidence”, Theological Studies 37 (1976), 197-226. Sobre divórcio em geral, ver D. Daube, NTR]
(1956), 362-72; Z. W. Falk, Introduction to Jewish Law in the Second Commonwealth II (1978),
307-16; J. D. M. Derrett, The Law in the NT (1979), 363-88.
32 A mesma situação se verifica na história de Abraão e Sara no relato da Gênese Apócrifa de
Qumram. O patriarca roga a Deus que não permita que o faraó consuma seu “casamento" com
Sara porque a impureza decorrente a separaria dele (IQApGn 20-15). O autor tacitamente assume
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 39
que o novo casamento de Sara seguiu-se a um divórcio o que tornaria ilícita qualquer reunião do
casal original.
33 Cf. mGit 9,10; Josefo, Ant. iv, 253; Life 426; JW J, 70.
34 Que a rejeição de Jesus ao divórcio não era considerada absoluta pode ser deduzido da boa
vontade de Paulo em permiti-lo no caso de casamento entre cristão e “infiel”. Se este último,
homem ou mulher, não concordasse em viver pacificamentc com o novo convertido, o divórcio
era pronunciado legal e já que Paulo não ordenou expressamente que ele ou ela tinham de
permanecer solteiros (como em ICor 7,11), poderia parecer que novo casamento seria permitido
ou pelo menos tolerado.
40 A Religião de Jesus, o Judeu
Tudo o que eles dizem é mais certo que um juramento. Na verdade, jurar
é rejeitado por eles como sendo pior que o perjúrio. Porque aquele que
não merece crença sem invocar Deus já está condenado (Guerra ii. 135).
Além disso, Filo apresenta o excesso de juramentos como parte integral da vida
virtuosa e conseqüência natural da moralidade:
A aceitação dos Dez Mandamentos pelos israelitas foi marcada, de acordo com
os sábios rabínicos, por um solene sim ou sim, sim, não ou não, não. Acredita-se
que as palavras possuam a força obrigatória de um juramento.^^ Mais uma vez,
o que é característico de Jesus é a grande ênfase que atribui a idéias que estão
presentes, porém menos destacadas de forma absoluta, na antiga devoção
judaica.
Jesus e a retaliação (Mt 5,38-42) Numa hiperbólica negação da vingança, a
vetusta lex talionis - “Ouvistes que foi dito, um olho por um olho, um dente
por um dente” (Ex 21,24) é contrastada não apenas com a resistência passiva —
“Eu porém vos digo: não resistais ao homem mau” — mas com uma espécie de
submissão provocativa, transmitida pelo conselho de oferecer a face esquerda a
alguém que tinha sido golpeado na face direita (cf. Lc 6,29). O fato que os dois
exemplos seguintes em Mateus, um deles ecoado em Lc 6,29, isto é, entregar uma
túnica a alguém que pede apenas uma camisa ou andar o dobro da distância
pedida, indica que a supererrogação é o tema central.
É quase desnecessário lembrar que no ensinamento pós-bíblico, Ex 21,24
não era interpretado literalmente como exigindo que um dano correspondente
fosse infligido à pessoa culpada de causar injúria corporal. Uma vingança
sangrenta era substituída por uma compensação monetária judicialmente esta
belecida. Josefo conhecia e;ste procedimento (Ant. iv. 280), e este princípio é
pressuposto na Mishná (cf. mBQ 8,1). A Mekhilta de Ex 21,24 (III, 67) equaciona
simplesmente “olho por olho” com mamõn, isto é (olho-)dinheiro. Os Targums
35 Cf. Mekh. de Ex 20,1-2 (II, 229-30); bShebu. 36a; ver S-B I, 336-7.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 41
Ouvistes o que foi dito “Amarás teu próximo e odiarás teu inimigo”.
Porém eu vos digo “Ama teus inimigos...”
36 Josefo (loc. cit.) se refere à indenização como uma opção: “a não ser que o homem ferido aceite
receber dinheiro”. Este enfoque pode ter sido influenciado pela lei romana. Cf. D. Daube NTRJ,
256.
37 Para compreender este mandamento no judaismo pós-biblico, ver a tese de Paola Paliais, MPhil.
Oxford, Exegesis o j Lev. 19,18 and the Love Command in Judaism : Variations on a Theme (1988).
Contém igualmeme valiosa informação referente â regra de ouro, discutida mais abaixo.
38 Cf. M. Smith, “Matt. V.43: ’Hate Thine Enemy”, HTR45 (1952), 71-3. Uma seqücncia mais natural
de idéias é: amai-não odieis. Esta seqüência está bem atestada cm T. Gad 6.1: “Agora, meus filhos.
42 A Religião de Jesus, o Judeu
que cada um de vós ame vosso irmão. Expulsai o ódio de vossos corações”.
39 Cf. JW J, 4 5 ,1 6 0 . As principais fontes citadas são Filo, Spec. Leg. i I; bShab. 31a; Filo, Hypoth. 7,6;
bMak, 24a. Estas e outras passagens serão discutidas abaixo.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 43
juntamente com suas variações introdutórias, seja sem dúvida obra dos evange
listas, não existe nenhuma razão para que sua substância não seja aceita como
ensinamento autêntico de Jesus.“"
Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós
a eles, pois esta é a Lei e os Profetas.
40 Apesar de seu costumeiro ceticismo, Bultmann parece ter admitido algo a este respeito. “É
altamente provável, por si só, que perguntas foram dirigidas a Jesus sobre o caminho da vida, ou
sobre o mandamento mais importante, mas é completamente diferente perguntar se as cenas
referentes a estas perguntas são ou não relatos históricos. Elas o são apenas no sentido em que
a Igreja formulou tais cenas inteiramente no espírito de Jesu s” (ênfase minha), HST, 54.
41 “Existe verdade na descrição de Bultmann da Regra de Ouro ... e na descrição de Tillich desta
regra como sendo uma “justiça calculista" que necessita que o amor seja transformado em “justiça
criativa", tomando-se assim verdadeiramente “justa". Nos Evangelhos, ocorreu esta espécie de
transformação da Regra de Ouro" (V.P. Furnish, The Love Command in the New Testament (1973),
63-64). — “Um programa ético que consiste em não fazer ... só dificilmente pode ser comparado
a outro que convoca à benevolência positiva e ilimitada” como escreve G. B. Caird em seu Saint
Luke [Ed. Pélican] (1963), 104. A maioria dos pesquisadores reconhece hoje que esta é uma
opinião teologicamente preconceituosa.
44 A Religião de Jesus, o Judeu
42 Cf. J. M. Lindenberger em OTP II, 490. Com referência a Tobias e Aicar, c f HJP 111,1, 222-39.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 45
Mestre, ensina-me toda a Torá de uma só vez (em uma única sentença).
Ele lhe respondeu, Meu filho, nosso Mestre Moisés, que descanse em paz,
levou quarenta dias e quarenta noites no topo da montanha para
aprendê-la, e tu dizes: Ensina-me toda a Torá numa (sentença)! Mas, meu
filho, este é o princípio da Torá: Aquilo que tu mesmo odeias, não o faças
a teu semelhante.“*^
Deve-se notar que o judaísmo, antes e depois do primeiro século A.D., conhecia,
ao sumariar a Lei, tanto o aspecto positivo quanto o negativo de seu ensinamento
moral. Jesus ben Sira, em inícios do segundo século a.C. aconselhava seus
leitores (31[34],15):
Sede benévolos para com vosso próximo como a vós mesmos, e (quanto
a ele), atentai a tudo que odiais.
E amarás teu próximo: tudo o que tu mesmo detestares, não o faças a ele.
E amarás teu próximo: aquilo que tu próprio odeias, não afaças a ele.
43 Ver ed. S. Schechter, Abot de Rabbi Nathan (1887, repr. 1967), 53. Cf. A. J. Saldarini, The Fathers
according to Rabbi Nathan (1975), 155.
46 A Religião de Jesus, o Judeu
44 A nuance pejorativa em Mateus e Lucas representa a tendência geral de “pergunta maliciosa” por
fariseus, herodianos e saduceus em seções próximas do Evangelho: c f Mc 12,13-17; Mt 22,15-22;
Lc 20,20-26 (pagamento de taxas imperiais); Mc 12,18-27; Mt 22,23-33; Lc 20,27-40 (status
marital após a ressurreição); Mc 12,35-37; Mt 22,41-46; Lc 20,41-44 (o Messias como filho ou
senhor de Davi). É muito improvável que a apresentação de Mc 12,28-34 resulte de um processo
de “lavagem”.
45 Sobre o Shemá, ver HJP II, 454-5. No Papiro de Nash, o Shemã vem após o Decálogo. C f E.
Würthwein, The Text o f the Old Testament (1980), 33 e ilustração 6.
46 É digno de nota que Mateus conclui com a frase “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei
e os Profetas” (22,40) como tinha feito em 7,12, refletindo parcialmente as palavras atribuídas
pelo Talmude a Hilel em bShab. 3b.
Jesus e a Lei: O Judaísm o de Jesus 47
Testamentos dos Doze Patriarcas. Issahar, por exemplo, exorta seus filhos a amar
a Deus e a seus próximos (T.Iss. 5,2) e oferece seu próprio exemplo a ser imitado:
Agi com devoção e verdade em todos os meus dias. Amei o Senhor com
toda a minha força; Do mesmo modo, amei todos os homens como a meus
filhos. Segui meu exemplo, meus filhos ... (T.Iss. 7,6)
IV A Ética da Lei
47 Uma fusão paralela quanto a deveres mais e menos elevados aparece no segundo século a.C na
Carta de Aristeas (228), referindo-se a honrar Deus-pais-amigos e em Josefo, Contra Apionem II,
206: “A Lei coloca honrar os pais logo após a honra a Deus ... Ordena que seja mostrado respeito,
pelos mais novos, às pessoas mais velhas, porque Deus é o mais Antigo de todos”.
48 A Religião de Jesus, o Judeu
48 Neste ponto, a Carta de Aristeas (234) apresenta novamente um precedente significativo quando
proclama que honra é feita a Deus, no final, por um coração puro e por disposição devota de
preferência a dons e sacrifícios.
Jesus o Mestre:
Autoridade Escriturai e Carismática
Qualquer que tenha sido sua ação, Jesus era inquestionavelmente um mestre
influente. Era uma figura antes popular que profissional, um mestre itinerante
que não anunciava sua mensagem em local fixo tal como numa escola (bet
midrash) ou numa sinagoga determinada. Ao invés, rodeado por um grupo de
discipulos cujo núcleo estava estabelecido, viajava pelos campos da baixa
Galiléia, proclamando seu evangelho e operando curas. Escritos rabínicos
posteriores mencionam um “galileu errante” como intérprete da Biblia (bSanh.
70a; bHul. 27b), mas a evidência é por demais tênue para nos permitir falar de
pessoas representativas de uma instituição e nos perguntar se Jesus era um deles.
Ele foi ouvido pelo menos num Pessah, e, segundo o quarto evangelista, em
diversas festas judaicas no decorrer de dois ou três anos, em Jerusalém e no
santuário. Como não pertencia a nenhum grupo de ensino reconhecido tais
como os “escribas” (soferim) e nem mesmo aos “pregadores” (darshanim), menos
claramente definidos, que pronunciavam homilias sobre leituras da Bíblia nas
sinagogas, a natureza de sua missão deveria ser questionada em sua própria
época e através dos séculos. A história registrada nos três Evangelhos Sinóticos,
segundo a qual altos sacerdotes, escribas e anciãos questionam a autoridade do
ensinamento de Jesus pode ser fictícia, mas faz eco a um problema genuíno.'
Na narrativa do Evangelho, Jesus se recusou a responder a não ser que seus
interlocutores estivessem dispostos a declarar sua posição no que diz respeito à
origem, divina ou humana, do ministério de João Batista. Como eles aparente
mente se refugiaram por detrás de um “não sabemos” conveniente, Jesus emergiu
como o vencedor da polêmica, o que lhe assegurava o direito de evitar a questão.
1 Lc 20,lseg.; Mc ll,27se g .; Mt 21,23. A respeito dos escribas, precursores dos rabis ou sábios, e
dos pregadores, cf. H JP 11, 322-36, 453.
50 A Religião de Jesus, o Judeu
Mesmo assim, o caráter de seu ensinamento deve ser inquirido por todos,
inclusive o estudioso crítico.
No campo da religião, regras e doutrinas geralmente aceitas são considera
das axiomáticas e não requerem prova. A questão da validade de um ensinamen
to surge apenas quando a mensagem do mestre ou o significado do ensinamento
é fora do comum ou conflita com outras leis ou crenças geralmente aceitas. Não
é necessária nenhuma justificação para declarar que o homicídio é errado, porém
se um homem que, em sua própria casa, defendendo sua propriedade, matar um
ladrão em flagrante, será ele culpado de homicídio? A doutrina da ressurreição
corpórea é discutida apenas se for considerada como fato novo, ou se, embora
aceita pela maioria da sociedade, ainda assim for negada por um grupo signifi
cativo de incrédulos, minim (heréticos) ou “epicuristas” (céticos). Mais uma vez,
como foi explicado no capítulo precedente, a flexibilidade dejesus com referên
cia a uma estrita interpretação do repouso sabático deve ser considerada do
ponto de vista do carismático, para o qual curar os doentes supera todas as
obrigações, por mais legítimas que possam ser por si mesmas.
Quanto à autoridade doutrinai no judaísmo, esta depende de se o período
em consideração é bíblico ou pós-bíblico. Em termos gerais, os ensinamentos
bíblicos se dividem em duas categorias principais. Os que são considerados de
origem divina são descritos ora como publicamente proclamados por Deus,
como o Decálogo, anunciado desde o alto e gravado em pedra por dedos celestes
ou revelados a um indivíduo, tal como as leis e os mandamentos ditados no
Monte Sinai a Moisés, escriba terreno de preceitos celestiais e eternos, e subse-
qüentemente explanados e aplicados por seus guardiães designados, os sacer
dotes levitas.
O mesmo se aplica aos profetas que, prefaciando sua mensagem com as
expressões “Assim disse o Senhor” ou “Estas são as palavras do Senhor”, e
terminando-a com “Oráculo do Senhor”, se declaravam portadores de uma
comunicação divina direta, transmitida por palavras proferidas pelos lábios do
Todo-Poderoso ou por visões sobrenaturais. O ensinamento de sabedoria na
escritura é apresentado, por outro lado, como proveniente dos sábios, sendo o
discernimento de Salomão o primeiro e mais importante, por si mesmo um dom
de Deus e reflexo de sua eterna Hohmá ou Sabedoria (Pr 8). No tempo dejesus
ben Sira, autor do Eclesiástico, nas primeiras décadas do segundo século a.C, a
divina Hohmá e a Torá de Moisés se fundiram numa única entidade conceituai
(Eclo 24).
Na idade pós-bíblica, apareceram novos critérios de validade ou autoridade,
acabando por superar os prevalentes durante a criação da escritura. As compo
sições mais antigas se modelam na Bíblia e pseudo-epigraficamente atribuem
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 51
A pseudo-epigrafia não é uma invenção pós-biblica. Nenhum pesquisador sério aceitaria hoje em
dia que todas as palavras atribuídas na escritura a Daniel, Isaías, Salomão ou Moisés sejam
genuínas. Em muitos casos, a autoria seria considerada em grande parte ficlicia, ou mesmo
completamente. Cf. H JP III, 241 e n. 1.
No caso dos Pergaminhos do Mar Morto, ver “Biblical Proof-Texts in Qumran Literature” de minha
autoria, JSS 34 (1989), 493-508.
Cf. G. Vermes, “Bible and Midrash”, CHB 1 (1970), 199-231 [= PB]S, 59-91] Scripture and
Tradition in Judaism; Written and Oral Torah, in G. Baumann (org). The Written Word; Literacy
in Transition (1986), 79-95. Ver também, de Davi W eiss Halivni, Midrash, Mishnah and C em ara
(1986), e a penetrante análise de Sanders encontrada em Jewish Law, 97-130.
52 A Religião de Jesus, o Judeu
5 Cf. JJ, 201; H5T, 159 (“a Hellenistic revelation saying”); C. K. Barrett, Jesus and the Gospel Tradition
(1967), 27.
54 A Religião de Jesus, o Judeu
Não é explicado por que a frase é citada em aramaico e não em hebraico. Talvez fosse uma
exclamação proverbial de pessoas em desespero? Em Lc 23,46, Jesus expira com as palavras “Pai,
em tuas mãos entrego meu espírito; parafraseando SI 31,5, “em tuas mãos entrego meu espírito;
tu me redimiste, Senhor, Deus verdadeiro".
O autor do Quarto Evangelho não precisa mais de linguagem alusiva. Ele apresenta formalmente
os detalhes a que se refere como a realização de profecias. Jo 19,23seg.; “A túnica de Jesus era
inconsútil... então eles (os soldados) disseram entçe si: ‘Não a rasguemos mas tiremos a sorte
para ver com quem ficará’. Isso a fim de cumprir a escritura “Repartiram entre si minhas roupas/e
sortearam minha veste’ (SI 22,18). Jo 19,28seg.; “Depois, Jesus ... disse [para que se cumprisse a
Escritura até o fim]: ‘Tenho sede ”. Estava ali um vaso cheio de vinagre. Fixando então uma esponja
embebida de vinagre num ramo de hissopo, levaram-na a sua boca (SI 69,21)”
Notar, entretanto, que o contexto profético é diferente e que a ordem das palavras do grego se
afasta da Septuaginta. Mt 13,41, ao interpretar a parábola das ervas daninhas, pode estar fazendo
alusão a Sf 1,3, mas a questão é por demais complicada e, no momento, não serve a nenhum fim
útil.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 55
10 Exemplos algo semelhantes podem ser vistos em Mt 10,34-36/Lc 12,51-53, em alusão a Miquéias
7,6, ou em Mc 9,47seg. no qual a noção da geena se toma vivida por meio de uma interpretação
da versão de Is 66,24, levemente reformulada. Mais uma vez, o futuro destino (escatológico) de
Cafamaum, jogado no Hades depois de ter sido exaltado ao céu (Mt 11,23; Lc 10,15), é
representado com a ajuda de Is 14,13,15, onde as palavras se referem originalmente à Babilônia.
Dn 7,13, combinado com SI 110,1, é livremente empregado na resposta que Jesus supostamente
deu ao Sumo Sacerdote em Mc 14,62/Mt 26,64/Lc 22,69. É de se notar que, enquanto SI 110 é
introduzido formalmente em Mc 12,36/Mt 22,44/Lc 20,42seg. (ver p. 61 n. 19), Dn 7,13 é citado
nos Evangelhos apenas de forma indireta.
11 Cf. H5T, 146 (declaração criada independentemente pela Igreja). Sobre a passagem, ver K.
Stendahl, The School o f St Matthew (1954),138seg. Sobre exprobaçào, testemunhas e excomunhão
56 A Religião de Jesus, o Judeu
2. Precedentes escriturais
na seita de Qumran, cf. QIP, 92seg., lOOseg., 113seg.; G. Forkman, The Limits o j the Religious
Community: Expulsion fro m the Religious Community within the Qumran Sect, within Rabbinic
Judaism and within Primitive Christianity (1972); Lawrence H. Schiffman, Sectarian Law in the
Dead Sea Scrolls: Courts, Testimony and the Penal Code (1983).
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 57
Deus disse a Moisés: “Moisés, meus filhos estão em perigo. O mar corta
(seu caminho). O inimigo os persegue. E tu permaneces aí clamando!”
Moisés respondeu; “E o que deveria eu fazer?” Deus disse [usando um
jogo de palavras em hebraico] “Levanta [HaReM] teu bastão, etc. (Ex
14,16): deves exaltar (MeRoMeM), louvar e glorificar, proferir cantos de
glorificação e enaltecimento e louvor e graças e exaltação àquele a quem
pertencem as guerras (Mekh. II, 222seg.).
“Nunca lestes” replica Jesus, “o que fizeram Davi e seus homens, quando
necessitavam e tinham fome, e como [Davi] entrou na casa de Deus ... e
comeu dos pães consagrados, que só os sacerdotes podem comer, e os
deu também aos homens?” (Mc 2,25seg.)
Esta geração é uma geração má; procura um sinal mas nenhum sinal lhe
será dado, exceto o sinal dejonas; pois assim comojonas foi um sinal
13 Segundo 2Sm 3,2-5, Davi tinha seis esposas; em 12,8, o profeta Natâ, ao repreendê-lo depois do
episódio de Betsabéia e do assassinato de Urias, marido de Betsabéia, observa que se Davi
considerava seu harém “muito pequeno”. Deus podería aumentá-lo em “tanto mais tanto”, quer
dizer, seis mais seis mais seis!
14 Cf. PJBS, 41,54.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 59
Pois como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do monstro
marinho (kêtos) assim ficará o filho do homem três dias e três noites no
coração da terra (Mt 12,40).
15 Lc ll,19seg . Cf. Mt 16,4, onde o sinal dejonas é mencionado sem maior explanação.
60 A Religião de Jesus, o Judeu
No terceiro dia, etc. (Gn 22,4)- Está escrito: Depois de dois dias nos fará
reviver, no terceiro nos levantará e viveremos em sua presença (Os 6,2).
Sobre o terceiro dia das tribos: No terceiro dia José lhes disse, (Fazei isso e
vivereis”] (Gn 42,18).
Sobre o terceiro dia dos espiões: Escondei-vos lá durante três dias [até que
voltem aqueles que vos perseguem] (Js 2,16).
Sobre o terceiro dia de Jonas: E Jonas permaneceu três dias nas entranhas
do peixe (Jn 2,1).
Sobre o terceiro dia da ressurreição dos mortos: Depois de dois dias nos
fará reviver, no terceiro dia nos levantará (Os 6,2).
16 Na tradição judaica, tanto a geração do dilúvio quanto os homens de Sodoma são pecadores por
excelência. Cf. CD 2,19seg.; mSanh 10,3.
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 61
17 Cf. T. W. Manson, The Sayings o f Jesus [1937] (1979), 103-5; K. Stendahl, The School o f St Matthew
(1954), 92seg, e S. H. Blank, “The Death of Zechariah in Rabbinic Littérature”, HUCA 12-13
(1937-38), 327-46.
18 Sobre as midot, c f H JP 11, 344.
62 A Religião de Jesus, o Judeu
mento ético sobre assuntos tais como homicídio, adultério, divórcio, juramentos,
retaliação e amor para com os inimigos, acentuando o significado implícito em
certos mandamentos ou proibições bíblicas ou pela introdução de um elemento
de contraste com a finalidade de fazer sobressair sua própria abordagem de
aspectos básicos da moralidade. Já que todas as passagens relevantes foram
discutidas nessas seções (pp.35-43), torna-se supérfluo continuar a examiná-
las.
19 o argumento de Jesus transformando Sl 110,1, “Deus disse ao meu senhor: senta-te à minha
direita”, em instrumento polêmico ao atribuir um significado especial à expressão “meu senhor”
poderia ser classificado na mesma categoria. Cf. Mc 12,35-37/Mt 22,41-45/Lc 20,41-44.
20 No que se refere à evidência de Qumran, ver meus estudos citados anteriormente nas notas 3 e 5.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 63
Mais uma vez, no jardim de Getsêmani, Jesus anuncia que seus apóstolos o
abandonarão em virtude da profecia de Zacarias (Zc 13,7).
Todos vós vos afastareis de mim; porque está escrito: “Ferirei o pastor e
o rebanho se dispersará” (Mc 14,27/M t 26,31).^*
Em outro lugar, Mateus (9,12 seg.), diferentemente dos dois outros Sinóticos,
representa Jesus sugerindo que sua abordagem heterodoxa dos “publicanos e
pecadores” é a realização de um pronunciamento de Oséias (6,6).
Não são os que têm saúde que precisam de médico mas sim os doentes.
Ide, pois, e aprendei o que significa “Quero misericórdia e não
sacriflcio”.^^
2 1 0 mesmo versículo é citado por inteiro no Documento de Damasco (CB 19,5-9) vaticinando a
punição dos iníquos e a salvação dos humildes (“Estenderei minha mão sobre os pequeninos")
de preferência à perda do “pastor” como nos Evangelhos.
64 A Religião de Jesus, o Judeu
E ele pregou e lhes disse, “Não está escrito, ‘Minha casa será chamada
casa de oração para todas as nações’ (Is), vós porém fizestes dela ‘um covil
de ladrões’” Qr)? (Mc 11,17; Mt 21,13; Lc 19,46).
Nunca lestes que “Das bocas dos pequeninos e das criancinhas de peito
preparaste um louvor perfeito?” (Mt 21,16)
Que fostes ver no deserto?... Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais
que um profeta. É dele que está escrito: “Eis que vos envio meu
mensageiro, ele preparará vosso caminho diante de vós” (Mt 11,7-10).^^
Pois eu vos digo, é preciso que se cumpra em mim o que está escrito, “E
ele foi contado entre os iníquos” (Is 53,12); porque o que foi escrito sobre
mim tem seu cumprimento (Lc 22,37).
À luz desses dados, não pode haver dúvida no que se refere à familiaridade da
exegese do tipo pesher nos círculos responsáveis pela criação dos Evangelhos.
Mas existem boas razões de referi-la ao próprio Jesus? Isto não se verifica
necessariamente e é evidente que este tipo de prova não está indissoluvelmente
ligado a Jesus, não apenas segundo o precedente de Qumran — a maioria dos
Pergaminhos são anteriores ao primeiro século A.D. — como também pela
freqüência de seu emprego pelos evangelistas, especialmente Mateus, sem colo
car as palavras na boca de Jesus.
A pregação de João Batista no deserto da Judéia é descrita na tripla tradição
(Mc 1,2-4/Mt 3,1-3/Lc 3,2-6) como o cumprimento de Is 40,3 com a leitura,
“Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho para o Senhor” em vez de
deslocar a cesura, resultando em, “Uma voz clama: ‘No deserto, preparai o
caminho para o Senhor’”.^“*
O restante da evidência vem de Mateus e diz respeito ao “nascimento virgem”
(Mt l,22seg. /Is 7,14); a Belém como o lugar de nascimento do Messias (Mt
2,3-5/Mq 5,2); ao massacre dos meninos de até dois anos de idade na região (Mt
2,16-18/Jr 31,15; Gn 35,19); ao papel de Jesus como operador de curas.
23 O mesmo argumento aparece, embora não na boca de Jesus, em Marcos 1,2, onde a composição
de M alaquias cum Êxodo é prefixada a Is 40,3.
24 Esta divisão, consoante com o significado do texto hebraico, sublinha a prova do pesher que
justifica a instalação da seita de Qumran no deserto (IQ S 8,12-14).
66 A Religião de Jesus, o Judeu
5. O Midrash do Evangelho
25 Para tomar a passagem mais convincente, os evangelistas omitiram as palavras do texto hebraico
que aludem ao poder triunfal do Messias, “justo e vitorioso", antes de descrever sua condição
como “humilde e montado num burro”.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 67
Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe, “Aquilo que de mim poderias
receber foi consagrado a Deus”, esse não está obrigado a honrar pai nem
mãe (Mt 15,5).
26 Sobre qorban, ver JWJ, 78seg. A passagem mais relevante da Mishná t Ned 3,2: “Caso alguém vir
(à distância] pessoas comendo figos e disser, ’Olhai, estes são qorban para ti’, se acaso forem seu
pai e seus irmãos, de acordo com a escola de Shamai, se houvesse outros [não parentes] com eles,
eles estavam obrigados [pelo voto], porém eles [os membros da família] eram isentos mas segundo
a escola de Hilel, ambos eram isentos." Em Qumran, por sua vez, é simplesmente proibido
consagrar ao Templo o alimento necessário para o bem-estar da família (CD 16,14seg ).
68 A Religião de Jesus, o Judeu
Quanto aos mortos que hão de ressurgir, não lestes no livro de Moisés,
na passagem sobre a sarça, como Deus lhe disse: “Eu sou o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Ora, ele não é Deus de mortos,
mas sim de vivos (Ex 3,6) Errais muito! (Mc 12,26seg.; Mt 2 2 ,3 Iseg.; Lc
20,37seg.).
Como nos Evangelhos, a lógica interna do texto parece demandar uma interpre
tação que leve mais além do significado literal de Números.
Outro exemplo, atribuído a Rabi Simai, que viveu circa 200 A.D., é ainda
mais apropriado já que usa Abraão, Isaac e Jacó para chegar à conclusão de que
o Pentateuco se refere ã ressurreição.
“Eu também estabelecí minha aliança com eles (os três patriarcas), para
dar a eles a terra de Canaã” (Ex 6,4). Não está escrito “vós” mas “eles”.
Logo, a ressurreição dos mortos pode ser inferida da Torá (bSanh. 90b).
27 Outra peculiaridade, desta vez gramatical, que os rabis viam como indicadora da doutrina da
ressurreição consiste no emprego do imperfeito (ou futuro) dos verbos, no lugar do passado. “É
ensinado: R. Meir disse, Como podemos saber que a ressurreição dos mortos se encontra na Torá?
Está escrito, ‘Então Moisés e o povo de Israel ^^ashir (literalmente, cantarão) este hino ao Senhor’
(Ex 15,1). Não está dito, ‘cantaram’ mas ‘cantarão’: logo, a ressurreição dos mortos pode ser
inferida na Torá" (bSanh. 91b). O mesmo principio aplica-se igualmente a Js 8,30, IRs 11,7; SI
84,5; Is 5,8 (bSanh ibid.).
70 A Religião de Jesus, o Judeu
28 From Max W eber: Essays in Sociology, org. por H. H. Gerth e C. Wright Mills (1979), 248seg.
O conceito carismático é expressamente aplicado a Jesus por Rudolf Otto na última seção de
The Kingdom o f God and the Son o/M an (1938), 333-76, intitulada “The Kingdom of God and the
Jesus o Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 71
30 Cf. G. D. Kilpatrick, The prigins o f the Gospel according to St Matthew (1946), 136seg.; K. Stendahl,
The School o f St Matthew (1954), 30-35.
31 The Kingdom o f God and the Son o f Man: A Study in the History o f Religion (1938), 351.
Jesus 0 Mestre: Autoridade Escriturai e Carismática 73
Vós, raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que está por vir?
Produzi, então, fruto digno de arrependimento ... O machado já está
posto às raizes das árvores; e toda árvore, portanto, que não produzir
bons frutos será cortada e lançada ao fogo ... Eu vos batizo com a água
do arrependimento, mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso
que eu; de fato, eu não sou digno nem ao menos de tirar-lhe as sandálias;
ele vos batizará com o espírito santo e com água ... (Mt 3,7-11/Lc
3,7-9,16/M c 1,7-8; cf. Lc 3,10-14; M t3,12/L c 3,17).
32 Sobre Jesus como profeta, ver JJ, 86-99, Cf. também ibid., 27seg.
74 A Religião de Jesus, o Judeu
33 The Idea o j the Holy (1959), 175seg. — Vale a pena notar também que no Testimonium Flavianum,
isto é, o breve parágrafo de Josefo sobre Jesus (Ant. xviii.63), ele é retratado como um mestre de
sabedoria, um sophos ariêr, que operava feitos espantosos (paradoxõn ergõn poiêtês) e um mestre
(didaskalos), sendo que as duas funções estavam unidas. Ver G. Vermes, “The Jesus Notice of
Josephus re-examined),JJS 38 (1987), 1-10; cf. também “Josephus’ Portrait ofjesus Reconsidered”,
em Orient and Occident: A Tribute to the Memory o f A. Scheiber (1988), 'ilT S l.
Provérbios e Parábolas
Quanto à sede do Sinédrio, cf. mSanh II.2: mMid 5,4. ver HJP II, 224seg. Segundo tSanh 7,1 e
tHag 2,9, no Shabat e dias festivos, os membros do Sinédrio examinavam questões doutrinais no
“Bet Midrash”, no Monte do Templo, Foi no Templo que Jesus, filho de Ananias, proferiu
calamidades apocalipticas (Josefo, Guerra vi.300), e Yohanan ben Zakai é mencionado ensinando
“à sombra do Templo” (yAZ 43b; bPes. 26a). No Novo Testamento, não só Jesus como também
Pedro e os apóstolos pregavam para os espectadores nos recintos do Santuário (At 3,12-26;
5,20seg„ 42).
76 A Religiãx) de Jesus, o Judeu
Jerasalém. Marcos (ll,2 7 se g .) evita ambos os termos. (Para discussão posterior, ver pp .l29 seg.
adiante.)
78 A Religião de Jesus, o Judeu
Mais uma vez, as palavras do provérbio “Aquele que se exaltar será humi
lhado e aquele que se humilhar será exaltado” (Mt 23,12/Lc 14,18; 18,14) reflete
a omissão costumeira da menção a Deus. Os exemplos em hebraico que
sobreviveram usam igualmente verbos na terceira pessoa do plural sem sujeito,
forma comum de referência indireta à Deidade:
Aquele que se exaltar acima das palavras da Torá, no fim será humilhado
[literalmente, eles o humilharâoj, mas quem se humilhar por causa das
palavras da Torá, no fim será exaltado [= eles o exaltarão] (ARN A, 11 e B,
22, ed. Schechter, p. 46).
R. Bultmann, HST 69-108 contém muita informação valiosa. G. Dalman, Jesus-Jeshua: Studies in
the Gospels (1929), 223-32, inclui duas listas de provérbios do Evangelho, a primeira com
paralelos rablnicos, a segunda sem estes paralelos, Para um estudo recente, ver Alan P. Winton,
The Proverbs o f Jesus: Issues o f History and Rhetoric (1990).
Provérbios e Parábolas 79
Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão quando não
percebes a trave que está no teu?, etc. (Mt 7,3-5/Lc 6,41seg.).
Jesus diz: Um profeta não é bem aceito em sua própria terra [aldeia; GTh],
nem um médico opera curas entre aqueles que o conhecem.
Esta formulação pode ser interpretada antes como uma racionalização inteligente
da redação desajeitada de Lucas do que como um pronunciamento original de
Jesus.
Os paralelos talmúdicos citados por Strack-Billerbeck são mal selecionados e pouco convincentes.
A roupagem honorifica usada pelos sábios babilônios não se destinava a distingui-los localmente,
mas entre estrangeiros (bShab.l45b). Igualmente, a relutância de lehuda ha-Nasi de ordenar
rabino um homem da cidade de Séforis que tinha sido criticado por seus concidadãos (yTaan
68a) não equivale a declarar que todos os habitantes daquela cidade são inadequados à liderança
religiosa em sua própria terra. No contexto biblico, não é em sua localidade, mas longe dela que
o profeta perde a autoridade. A proclamação de Amós, da Judéia, de uma mensagem impopular
no santuário de Betei, ao norte, resulta na ordem do alto-sacerdote local de “ir para tua terra e
profetizar lá” (Am 7,10-12), De forma semelhante, um fragmento de Qumran (4Q 375) considera
o caso de uma pessoa reconhecida como um “profeta justo e fiel” dentro de sua própria tribo mas
rejeitado como pregador de apostasia pelo resto dos israelitas (]. Strugnell, “Moses
Pseudepigrapha at Qumran” em L. H. Schiffman, Archaeology and History in the Dead Sea Scrolls
(1990), 226, 228). Dado o fato de Jesus ser reconhecido como profeta e muito provavelmente se
identificar como tal (JJ, 87-90), a máxima em questão pode ser diretamente atribuída a ele.
De acordo com os “horóscopos” de Qumran (4Q 186), as pessoas consistem de uma mistura
variável de nove partes de luz e trevas; a proporção nos dois exemplos é de 6:3 e 8:1, sendo a luz
mencionada em primeiro lugar. Cf. DSSE, 306; HJP III, 364seg., 464seg.
Provérbios e Parábolas 81
(g) Mó
Literalmente “pedra do asno,” isto é, a pedra movida por um asno, em oposição à “pedra do
homem” de um moinho manual (cf. mOhol. 8,3).
O tom escatológico é manifesto no pronunciamento subsequente (Mc 9,43-48/Mt 18,8seg.)
quando referência explicita é feita ao “Reino de Deus” ou à “vida" e à “geena” ou “geena de fogo”.
O “ai de” em Lc 17,1/Mt 18,7 tem a mesma implicação em Mc 13,17/Mt 24,19/Lc 21,23 (Ai
daquelas que estiverem grávidas ... naqueles dias!); c f ainda Mt 11,21/Lc 10,13(Ai de ti
Quorazim!) e o quádruplo “ai de ti” de Lucas (Lc 6,24-26), contrastando com as beatitudes. Os
clamores apocalípticos de Jesus, filho de Ananias, fornecem prova adicional: “Ai de Jerusalém”
(Guerra vi.304, 306) e “Ai de novo da cidade e do povo e do Templo... e também ai de mim!”
(vi.309).
Provérbios e Parábolas 83
É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico
entrar no Reino de Deus (Mc 10,25; Mt 19,24; Lc 18,25).
9 Tanto esta sentença quanto a que se refere â porta estreita figuram entre os “muito poucos casos”
que, segundo Bultmann, “podem ser atribuídos a Jesus com alguma medida de certeza” (HST,
105).
84 A Religião de Jesus, o Judeu
Olhai os pássaros do ar: eles não plantam nem colhem nem acumulam
nos celeiros, e mesmo assim, nosso Pai celeste os alimenta. Não sois mais
merecedores do que eles? (Mt 6,26)
10 Um relato paralelo à história de Simeon ben Yokai aparece em GR 79,6 (Th-A 942), onde, além
do “Dismissio” celestial, ouvimos igualmente a ordem Specula (Execução), resultando na captura
do pássaro. Entretanto, o comentário de Simeon é o mesmo: “Nem mesmo um pássaro é capturado
sem a vontade do céu; quanto menos a alma do filho do homem (ou: minha alma)!” Para a
interpretação da expressão “filho do homem”, ver PBJS, 162seg. e n. 39.
Provérbios e Parábolas 85
11 Cf. por exemplo, a alusão em mBm 7.1 a um banquete “como de Salomão no seu tempo”. Ver
também Josefo, Aní. viii. 40, baseado em IRs 5,2seg. (4,22seg,Trad. ing.).
86 A Religião de Jesus, o Judeu
12 M. Black, Aramaic Approach, 200seg., citando A. Meyer, Jesu Muttersprache (1896), 80seg. e F.
Perles, “Zur Erklärung von Mt 7,6”, ZNW 25 (1926), 163seg. Cf. tambémj . A. Fitzmyer, Wandering
Aramean (1979), 14seg. e G. Vermes, JW J 80, Para solucionar o enigma criado pelo paralelismo
aparentemente inapropriado entre “o sagrado” e “pérolas”, propõe-se que o aramaico qdsh’ seja
lido como qedasha’ (= anel) em lugar de qudsha’ (= sagrado). Acredita-se que a máxima é calcada
em Pr 11,22.
Provérbios e Parábolas 87
Assim falou Deus com referência aos israelitas; Para comigo eles são
inocentes como pombos, mas entre as nações do mundo são sábios como
serpentes.
1. Da Bíblia a Qumran
13 Quanto à fábula, ver Jz 9,7-15 sobre as árvores que procuram um rei, ou 2Rs 14,9 sobre o
espinheiro que pretende casar com a filha do cedro. Para a adivinhação, ver Jz 14,12-18 e IRs
10,1. josefo faz alusão a uma grande soma de dinheiro ganha por Salomão numa competição de
adivinhações com Hiram, rei de Tiro (Ant. viii. 148seg.). Com referência à alegoria profética, ver
Ez 17,3-10, a respeito de grandes águias, o cedro e a trepadeira. Quanto à parábola escriturai, ver
2Sm 12,1-4, a história de Natá sobre o cordeirinho e a canção do vinhedo em Is 5,1-7. Sobre
parábolas em geral, cf. diversos anigos de dicionários (TDNT V, 747-51 [F. Hauckl; IDB 111,
649-54 (L. Mowry]; IDBS 641seg. [C. E. Carlston]; Enc. Jud. Tl-11 [L. I. Rabinowitz e R. B. Y. Scott].
Entre monografias, ver em especial A. jülicher. Die Gleichnisreden Jesu l-II (1886-1910); j. Ziegler,
Die Königglcichnisse des Midrasch (1903); P. Fiebig, Altjüdische Gleichnisse und die Gleichnisse Jesu
(1904); Die Gleichnisreden Jesu im Lichte der rabbinischen Gleichnisse des neutestamentlichen
Zeitalters (1912); A. Feldmann, The Parables and Similes o f the Rabbis, Agricultural and Pastoral
(1927); C. H. Dodd, The Parables o f the Kingdom (1935, 1961); J. Jeremias, The Parables o f Jesus
(1 9 5 4 ,1 9 6 3 ,1 9 7 2 ); D. Flusser, Die rabbinischen Gleichnisse und der Gleichnisezähler Jesus (1981);
B. H. Young, Jesus and his Jew ish Parables: Reconsidering the Roots o f Jesu s’ Teaching (1989); e mais
recentemente D. Stem, Parables in Midrash: Narrative and Exegesis in Rabbinic Literature (1991),
em especial pp. 188-206 (“The Parables in the Synoptic Gospels”). Para uma revisão do status
quaestionis, ver C. L. Blumberg, “Interpreting the Parables of Jesus: Where are we and where do
we go from here?” CBQ 53 (1991), 50-78.
14 Jeronimo, em seu Commentary on Matthew (18.23), acentua a popularidade das parábolas entre
os judeus. “Familiäre est Syris et maxime Palsestinis ad omnem sermonem suum parabolas
lungere: ut quod per simplex praeceptum teneri ab auditoribus non potest, per similitudinem
exemplaque teneatur” (PL xxvi, 132C). (Os sírios e especialmente os palestinos estão
acostumados a acrescentar parábolas a todos seus discursos de modo que aquilo que não é
completamente compreendido pelos ouvintes por meio de uma declaração simples deveria ser
compreendido por meio de comparações e exemplos.)
Provérbios e Parábolas 89
2. Parábolas rabínicas
Pode ser explicado por uma parábola. A que isto pode ser comparado? A
um homem que queria filhos. Teve uma filha e fez um voto pela vida da
filha. Depois teve um filho. Então libertou a filha e fez um voto pelo nome
do filho (sobre Ex 13,2; ed. Lauterbach I, 132seg.).
“Do alto ek convoca” esta é a alma. “E a terra para julgar seu povo” -
este é o corpo, (b Sanh. 91ab; para uma versão resumida, cf. Mekh. sobre
Ex 15,1; ed. Lauterbach II, 21).
que outros. A tradição reza que o mestre tanaítico, Rabi Meir (meado do segundo
século A.D.), era o mestre por excelência do gênero. É relatado que seus discursos
consistiam de halahá, hagadá e mashal - parábola, em proporções iguais (bSanh
38b), e com exagero retórico conta-se que sua morte marcou o fim do ensina
mento por parábolas:
A lenda lhe atribui trezentos símiles com raposas, que não sobreviveram, mas
fontes rabínicas existentes preservaram, em seu nome, um número menor de
parábolas.'* Dos dois exemplos que se seguem, o primeiro é exegético e o
segundo não tem referência à Bíblia.
R. Meir disse, Que quer dizer a Escritura por Pois um enforcado é uma
maldição de Deus (Dt 21,23). É como irmãos gêmeos que se parecem. Um
deles era o rei de todo o universo; o outro pôs-se a praticar o roubo. Depois
de algum tempo, o que praticava o roubo foi preso e crucificado. E cada
passante dizia. Parece que o rei foi crucificado. Por isso está escrito, Pois
um enforcado é uma maldição de Deus.^^
16 W. Bacher (Die Agada der Tannaiten II (1890), 57-60) lista mais de doze itens. A validade das
atribuições não pode ser demonstrada nem refutada. As ilustrações são escolhidas nas atestações
tanaíticas.
17 tSanh. 9,7. A citação do Deuteronõmio foi traduzida para se ajustar ao argumento, como já ficou
claro em mSanh. 6,4. Não é fornecida nenhuma interpretação da parábola, mas é dado um indício
pela idéia subjacente de que o homem é feito à imagem de Deus. Cf. M. Wilcox, “Upon the Tree
- Deut. 21.22-23 in the New Testament”, JBL 96 (1977), 85-99.
Provérbios e Parábolas 93
Considerem este [quarto] homem. Cai uma mosca em seu prato. Ele a
pega, suga-a e come o que está no prato. É um homem mau. Permite que
sua mulher saia com a cabeça descoberta, que use de familiaridade com
seus servidores e vizinhos homens e se banhe com homens (tSot. 5,9).
18 Igualmente digna de lembrança é a parábola exegética de Meir referente ao grão de milho, próxima
d ejo 12,24. “A rainha Cleópatra perguntou a R. Meir, Sei que aqueles que dormem viverão, como
está escrito. Possam eles [os homens} florescer na cidade como o capim do campo (SI 72,16). Mas
quando se levantarem, estarão nus ou vestidos? Ele lhe respondeu: [Podeis raciocinar] a fortiori
a partir do grão de milho que é enterrado nu mas brota com muitas roupas. Quanto mais os justos
que são enterrados com suas roupas? (bSanh. 90b).
19 Ver J. Neusner, “Types and Forms in Ancient Jewish Literature: Some Comparisons”, History o f
Religions II (1972), 354-90, esp. 360seg., 368.
20 J. Jeremias, The Parables o f Jesus (1972), 12.
21 A History o f the Mishnahic Law o f Purities. Part XIII (1976), 224-6. As autoridades listadas do
primeiro século A.D. são Hilel (Lev.R. 34: e ARNa 15,3); as Escolas de Hilel e Shamai (Gen. R.
1,14); Yohanan ben Zakai (bShab. 153a); Eliezer ben Hircano (Mekh. sobre Ex. 15,1; ed.
Lauterbach II, 22seg.); Eleazar ben Azariá (Mekh. sobre Ex. 13,2; ibid. 1,132seg.); Gamaliel (Mekh.
sobre Ex. 20,5; ibid. II, 245seg.).
94 A Religião de Jesus, o Judeu
19, 390), deveria igualmente se estender ao gênero da parábola. É por essa razão
que as parábolas de Jesus devem ser consideradas neste contexto.^^
22 A familiaridade do gênero da parábola na Palestina do primeiro século A.D. pode também ser
inferida da alusão de Josefo a uma agadà da fabulosa produção literária de Salomão. “Salomão
também compôs 1005 livros de odes e canções e 3000 livros de parábolas e símiles: porque ele
fazia uma parábola a respeito de toda espécie de árvore, desde o hissopo até o cedro e do mesmo
modo sobre pássaros e todas espécies de criaturas terrestres e das que nadam e das que voam”
(Ant. viii.44).
Provérbios e Parábolas 95
tes. A atenção do narrador está centrada, ao invés, nas várias partes do chão: o
caminho, a superfície pedregosa, o canto espinhento do campo e o solo fértil.^^
O sucesso da semeadura é determinado pela resposta do solo, ou seja, do
ouvinte. A explicação dada em Mc 4,13-20 — a semente representa a palavra, o
bom solo aqueles que acolhem o ensinamento, etc. — é um eco direto e genuíno
da história de Jesus. Caso, como tem sido freqüentemente sugerido, a interpre
tação em sua expressão grega presente é produto da igreja primitiva, a possibi
lidade de uma formulação não-eclesiástica anterior à luz dos paralelos rabínicos
permanece inegável.
2. A primeira parábola do Reino, a da Semente que Germina em Segredo (Mc
4,26-29), contrasta as ações do semeador e as do milho. Uma vez semeada e
germinada, a semente progride sem intervenção do semeador até que o milho
esteja maduro para a colheita. A mensagem parece enfatizar que mesmo no
trabalho preparatório ao advento do Reino, que é a essência da missão de Jesus,
o ministro, uma vez completada sua tarefa, deve deixar que as coisas tomem seu
curso misterioso, dirigido por Deus. Esta compreensão do crescimento invisível
da semente corresponde ao texto e aos paralelos melhor que a exegese histórica,
ainda repetida por J. Jeremias (Parables, 152), segundo a qual Jesus se opõe,
neste ponto, à política dos zelotes.
3. Um ponto de vista quase oposto é revelado na história da Figueira. Seus
galhos, cobertos de folhas, marcam o início do verão. Se o jogo de palavras
verão/qaiz =fim/qez é intencional, como em Am 8,2, não pode ser tomado como
certo. Mesmo assim, o verão faz alusão óbvia à proximidade da colheita,
simbolizando a iminente chegada do Reino (Lc 21,31) ou do Messias (Mc 13,29;
Mt 24,33). Defrontamo-nos assim, nesta parábola, com a busca de sinais
precursores do eschaton, fenômeno desaprovado por Jesus, o que favorece muito
pouco a autenticidade da parábola.“
filho, importunaste teu Criador para que fizesse a figueira produzir frutos prematuramente. Que
sejas tu também colhido antes de teu tempo!”
Provérbios e Parábolas 97
26 O interesse primário, mesmo exclusivo, pelas “ovelhas desgarradas de Israel” por parte de Jesus
e dos doze apóstolos é apresentado enfaticamente na pregação judeu-cristã (Mt 10,6; 15,24). A
total incompatibilidade do ensinamento com as necessidades da igreja gentia dos primeiros
tempos é um forte argumento em favor de sua autenticidade.
27 As expressões “pescadores de homens” (Mc 1,17; Mt 4,19) e “colhedores de homens” atribuída a
Jesus num contexto de pescaria (Lc 5.,10) refletem a mesma imagem positiva. Em contraste, o
objetivo do pescador e dos caçadores a que se faz alusão no Hino de Graças de Qumram (IQH
5,7seg.) como em seus modelos bíblicos em J r 16.16, é de capturar “os filhos da iniquidade”.
98 A Religião de Jesus, o Judeu
Não há razão de duvidar da possibilidade de Jesus ter adotado tal clichê. Sua
ênfase na capital importância do ato religioso dificilmente pode ser questiona
da.'«
9. A Parábola das Crianças na praça pública que tencionam estragar as
brincadeiras de seus amigos representa a falta de reação dos contemporâneos
de Jesus seja quanto a seu apelo severo ou amistoso de buscar a admissão no
Reino (Mt 11,16-19; Lc 7,31-35). A aplicação histórica à pregação dejoão Batista
e de Jesus é claramente afirmada:
Porque veio João, que não come nem bebe, e eles dizem, Ele tem um
demônio! Veio o filho do homem, que comia e bebia, e eles dizem, Olhai
um glutão e beberrão, amigo dos coletores de impostos e pecadores! (Mt
ll,1 8 se g .)'‘’
28 o mesmo ensinamento metafórico, substituindo a imagem da casa construída sobre a rocha com
a de uma árvore de raízes fortes que resiste à mais pesada tempestade nos é passado na tradição
de Eleazar ben Azariá, de fins do primeiro século AD. Ele cita J r 17,6,8 em seu apoio. O parágrafo
inicial diz: “Um homem cujas obras excedem sua sabedoria, com o que se parece?" Cf. mAb. 3,18.
A mesma doutrina foi exposta por Hanína ben Dosa: “Qualquer homem cujas obras excedem sua
sabedoria, sua sabedoria persistirá” (mAb. 3,9; ARN B 32 (p. 35).
29 j. Jeremias (Parables, 161 seg.) parece ter descoberto uma mensagem completamente diferente.
Para ele, as crianças que “tocavam flauta” e “gritavam” e incitavam seus companheiros de jogos
a se juntar à brincadeira são “dominadoras e importunas”. Esta interpretação faz perder o sentido
e arruina a lógica da parábola.
Provérbios e Parábolas 99
30 O deserto é o lar dos maus espíritos. O demônio de Sara fugiu para a área deserta do Alto Egito
(Tb 8,3); Azazel é lançado no deserto em Dudael (lEnoque 10,4). Ao pacificar dois homens que
moravam sob o mesmo teto e que o demônio fazia se desentenderem continuamente, R. Meir
expulsa este último de “casa” (bGit. 52a). Josefo faz alusão a encantamentos compostos por
Salomão ordenando ao demônio de “nunca voltar” (Aní. vüi.45).
31 A metáfora do fermento pode também designar uma tendência enraizada para o erro ou a
maldade. Em Mc 8,15; Mt 16,6; Lc 12,1, os discípulos dejesus são prevenidos contra o “fermento”
dos fariseus e herodianos (Marcos), fariseus e saduceus (Mateus) ou fariseus (Lucas). Segundo
yAZ 2, 41a, o “fermento” que permaneceu num astrólogo-barbeiro gentio convertido, levou-o ao
seu paganismo original. Em ICor 5,7, diz-se que os cristãos de Paulo não são “levedados”, isto é,
estão libertos do “antigo fermento de corrupção”.
32 Cf. Mt 6,34: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã! ” e Lc 17,20: “O Reino de Deus não chegará
com sinais que possam ser observados”. Ver também JW J, 38,50. Uma máxima rablnica não
escatológica ecoa as mesmas idéias: “Não vos preocupeis com os problemas de amanhã, pois não
sabeis nem o que traz o dia de hoje.- Amanhã ê'i53ssível qiie não estejais aqui, logo para que se
100 A Religião de Jesus, o Judeu
35 O Pai Nosso em Mt 6,12 pede e promete a remissão da dívida (ophêüemata), enquanto a versão
de Lucas pede a Deus o perdão dos pecados e oferece perdão aos nossos devedores (Lc 11,4). Cf.
também Mc ll,25seg .; Mt 6,14seg.
102 A Religião de Jesus, o Judeu
36 Esta expressão e uma referência anterior à “fortuna injusta” evocam as associações de Qumran
com as expressões “filho da luz” (passim) e “abundância de iniquidade” (CD 6,15; 8,5; 19,17).
37 O tema folclórico do tesouro oculto pode ser ilustrado pelo Rolo de Cobre de Qumran (3Q 15)
'rt5ffrS'ettS'^tsséftra‘êt)uatro esconderijos. Cf. DSSE 308-10; HJP 467-9.
Provérbios e Parábolas 103
39 A observação de J. Jeremias (Parables, 142seg.) que a prece do fariseu em Lucas é “tirada da vida”
e é provida de um comentário paralelo no Talmude não pode deixar de ser contestada. Porque,
enquanto as palavras em Lc 18,llseg . transpiram vaidade, as atribuídas ao R. Nehunya ben
Haqaná, em bBer. 28b são inspiradas por humildade e gratidão. O mesmo comentário se aplica
também ao Hino de Agradecimento de Qumran (IQH 7.34), citado por Jeremias. A dicotomia do
estado de graça dos justos e a desgraça dos maus remonta à poesia biblica, começando com SI
1.
40 A noção do bom samaritano pode ter sido tomada de empréstimo de 2Cr 28,15. Prisioneiros de
guerra da Judeia, levados para Samaria no reinado do rei de Israel Peká, filho de Remalià, foram
libertados após a intervenção do profeta Oded e confiados a samaritanos escolhidos para cuidar
deles. “Os homens ... vieram e tomaram os cativos, e com os espólios vestiram todos os que
estavam nus entre eles; vestiram-nos, deram-lhes sandálias, os assistiram com comida e bebida e
os ungiram e, carregando todos os fracos entre eles sobre asnos, levaram-nos às suas famílias em
Jerico, a cidade das palmeiras. Então voluram a Samaria.” A razão pela qual o sacerdote e o levita
que se dirigiam a Jerusalém evitaram contato com o que acreditavam ser um cadáver è que
ficariam sem condições de realizar seus deveres no Templo.
Provérbios e Parábolas 105
das examinadas até agora e dúvidas relativas a sua autenticidade são justificadas.
De fato, podemos nos defrontar, neste ponto, com um midrash cristão invertido
sobre o mandamento de Jesus de amar o inimigo.
30. A Parábola do Filho Pródigo é um relato muito familiar de arrependimen
to-perdão, consistindo de dois atos (Lc 15,11-32). A primeira parte, essencial,
trata da aventura de um filho mais novo irresponsável que, tendo obtido sua
parte da herança em vida do pai, a dissipa inteiramente, longe de casa, com
prostitutas. Sem um tostão e faminto, é atingido por um profundo remorso e
procura o perdão do pai, que lhe é concedido com grande bondade. A segunda
metade da parábola se refere às queixas do primogênito, que ressente a genero
sidade do pai para com o irmão transviado e provavelmente também o pronto
perdão paterno. É-lhe assegurado que sua própria herança não está ameaçada
mas que é necessário se alegrar quando um filho perdido é encontrado. Em
resumo, todos os elementos morais da história ecoam o ensinamento de Jesus,
sendo o arrependimento-fesJiuvá o tema principal; mesmo assim, a parábola
como um todo, apoiando a moralidade convencional e não criticando a atitude
do irmão mais velho, não traz a marca registrada do ensinamento de Jesus.
31. O Episódio do Homem Rico e do Pobre Lázaro (Lc 19,19-31) é mais um
relato que uma parábola. Contém uma dupla mensagem: o sofrimento do
homem mau no inferno não pode ser aliviado por uma visita de seu antigo
cliente. Lázaro, agora gozando da felicidade etema no “seio de Abraão”; Lázaro
também não pode ser interpretado como um miraculoso mensageiro vindo de
além-túmulo para convencer os irmãos do homem rico a se arrepender. “Se não
ouvem Moisés e os profetas tampouco ficarão convencidos se alguém ressurgir
dos mortos” (v. 31). Pareceria que nos defrontamos aqui com a adaptação de
uma lenda judaica pela igreja judeu-cristã e que nada contém que possa
vinculá-la diretamente ajesu s.“*^
41 Uma parábola similar é transmitida em nome de R. Meir (meados do segundo século A.D.) em
Dt R. 2,3 sobre Dt 4,30, “Quando estiveres em tribulação, ... voltarás ao Senhor, teu Deus [outro
motivo de teshuvó ]. A que podemos comparar isto? Ao filho de um rei que passou a trilhar o
caminho do mal. O rei mandou seu preceptor pedir-lhe que voltasse para casa. O filho respondeu
que, indigno e envergonhado, ele não podería voltar. O pai enviou o preceptor com a mensagem,
Meu filho, pode um/ilho se envergonhar de voltar a seu pai? E se tu voltares, não é ao teu pai que
voltas?” A principal diferença entre as duas versões da parábola é que aqui a iniciativa vem do
pai, o filho se sentindo por demais culpado para tomar a iniciativa. Na versão de Lucas, os papéis
estão invertidos. C f.JW J,82.
42 Cf. Bultmann, HST, 203. A lição subjacente pode ser resumida como a história da ausência de
arrependimento. Um paralelo rabínico parcial pode ser encontrado em ySanh. 6, 23c; yHag.
2,77d; ver adiante, p. 107.
106 A Religião de Jesus, o Judeu
O penúltimo tópico geral das parábolas do Evangelho tem a ver com a função
judicial, tanto histórica quanto escatológica. Os três exemplos têm uma interes
sante peculiaridade em comum: todos consideram um único juiz. A legislação
rabínica, a partir da Mishná, reconhece apenas três, vinte três ou setenta e dois
juizes, o primeiro grupo julgando casos civis, o segundo casos capitais. O terceiro
é o Supremo Sinédrio, que aparece também no Novo Testamento como um
colegiado judicial. Entretanto, na Galiléia de antes de 70 A.D., magistrados
isolados parecem ter tratado de assuntos de propriedades (dinê mamõriõt). A esta
falta de respeito à lei judaica como os rabinos a entendiam foi atribuída a
subseqüente devastação do distrito.“*^
32. No fragmentário Paralelo do Litígio perante um Ju iz (Mt 5,25seg.; Lc
12,58seg), a doutrina da súbita reconciliação entre irmãos em disputa (na idade
da urgência escatológica e do julgamento iminente?) é inculcada com a ajuda do
relato de dois homens em litígio sobre uma dívida. A lição é que eles devem
entrar em acordo fora do tribunal de modo que o Juiz não tenha de mandar a
parte culpada para a prisão. O perdão não é explicitamente mencionado mas
também não é formalmente excluido. Existe, portanto, um vínculo possível com
as parábolas anteriores referentes á remissão das dívidas (cf. Mt 18,23-35 e Lc
7,36-50 na p. 101 antes).
33. A Parábola do Injusto Juiz da Cidade, espelhando negativamente Deus,
sublinha o significado da confiança ilimitada e persistente (Lc 18,2-5). Quando
uma pobre viúva continua a apelar a ele, o Juiz, para se livrar dela, finalmente
julga em seu favor. O tema básico é o da história do amigo importuno em Lc
11,5-8 (p.I03 antes). Tal parece ser o ensinamento que pode ser atribuído ajesus,
embora Lucas o transforme numa oração para apressar a parusia e o julgamento
final (18,6-8).
34. A Parábola do Julgamento Final, antes de ser remanejada em Mateus de
modo a se aplicar à parusia do Cristo (Mt 25,31-46), examina como menos
surpreendente que um único Juiz divino (o Rei) presida no tribunal escatológico,
recompensando e punindo a humanidade.
O ensinamento, embora não seu contexto universalista (cf. p.108 adiante),
sem nenhuma menção aos judeus, e sem dúvida derivado da manipulação
eclesiástica, pertence ao núcleo da doutrina da verdadeira devoção de Jesus.“^“^
43 Cf. tBQ 8,14. Ver M. D, Goodman, State and Society in Roman Galilee (1983), 126seg. Sobre o
sistema judiciário rabínico, cf. H JPII, 186-88. bSanh. 4b-5a também alude ao costume dos rabis
de tratar sozinhos de casos civis, contanto que fossem reconhecidos como peritos no aspecto
relevante da lei.
44 Para a doutrina implícita da imitatio Dei, ver JWJ, 83 seg., e 182-188 adiante.
Provérbios e Parábolas 107
A última das ocasiões sociais que servem de material para várias parábolas
é um casamento real (em Mateus, mas rebaixado em Lucas), e os costumes que
o acompanham.
35. A Parábola do Festim de Bodas de um Príncipe tem como tema a revisão
da lista de convidados em Mt 22,2-10. Na versão de Lucas (Lc 14,16-24), a
ocasião aparece como um grande jantar organizado por “um homem” (v. 16) ou
“um proprietário” (v. 21). Todos os convidados excusam de comparecer, de
modo que os indignos e desabrigados, “os pobres e deformados e cegos e coxos”
são trazidos para encher o salão do banquete.
A substância da parábola figura numa história relatada no Talmude Palestino
(ySanh. 6, 23c; yHag. 2, 77d), onde um publicano, de nome Bar Mayan, prepara
uma grande festa para os cidadãos mais importantes. Quando estes não apare
cem ele convida os pobres e, por ocasião de sua morte, é recompensado por este
bom ato praticado em vida. Aversão do Novo Testamento, sem o viés de Mateus
(22,6,11-14),'^^ corresponde ao ensinamento básico dejesus sobre a reversão das
prioridades terrenas na iminência do Reino e inclui uma insistência indireta
sobre a constante necessidade de prontidão.
36. A Parábola das Dez Virgens (Mt 25,1-13) também é desenvolvida em volta
do tema de uma festa de bodas. Um cortejo de dez moças espera o noivo que
deve chegar ã festa das bodas depois do anoitecer: dai, a necessidade das
lamparinas. As tolas gastam todo o óleo mas as virgens sábias, ou antes egoistas,
se recusam a ajudá-las e entram no salão do banquete, enquanto as outras ficam
do lado de fora, e embora batam ã porta, esta não é aberta.
Em sua forma presente, a parábola é obviamente uma formulação tardia da
igreja, acentuando a necessária vigilância e prontidão enquanto a parusia se faz
esperar. Tanto o egoísmo calculista das virgens “sábias” quanto a recusa desal
mada do “noivo” em deixar entrar aqueles que não estavam apropriadamente
preparados, contradiz frontalmente a devoção ensinada por Jesus. A única
compreensão possível da história, compatível com sua visão religiosa básica,
sublinharia a necessidade de autoconfiança durante a grande sublevação que
precederá o fim. As heroínas da parábola são as “virgens tolas”, e a mensagem
a elas dirigida é que, nas circunstâncias, elas não devem confiar em suas irmãs
“sábias”.
45 O assassinato dos servos que trazem o convite é estranha a esta história e resulta de uma fusão
com a parábola dos vinhateiros maus (Mc 12,1-12, etc., cf. antes, pp. 99 seg). O apêndice de
Mateus, referente aos convidados que comparecem sem as roupas apropriadas, novamente não
se enquadra na história. Como se poderia esperar que desocupados e passantes vestissem “roupas
de casamento”?
108 A Religião de Jesus, o Judeu
de Jesus do dos rabis. Estes dois traços negativos deixam transparecer que, pelo
menos em sua forma original, as parábolas do Evangelho são dotadas de uma
existência antes autônoma que auxiliar e investidas de um significado imediata
mente discernivel.
Isto nos leva à questão do objetivo das parábolas porque, se é verdade que
elas transmitem uma mensagem como que automaticamente, prescindindo de
uma explanação regular, segue-se que elas próprias devem ser aceitas como uma
comunicação isolada. Esta opinião, entretanto, contradiz diretamente uma de
claração explícita do Novo Testamento referente à escolha do gênero da parábola
por Jesus.
Entre a parábola do Semeador (Mc 4,1-9, etc.) e a interpretação a ela atribuida
por Jesus (Mc 4,13-20, etc.), os três Sinóticos inserem o que parece ser uma
declaração geral (Mc 4,10-12) sobre o objetivo desta forma didática. Ao círculo dos
iniciados é dado o conhecimento do “ segredo (ou segredos) do Reino de Deus ou
do Céu”, mas os menos favorecidos recebem o evangelho apenas “em parábolas”.
Contrastando o sentido interno oculto (isto é, o “mistério” ou raz) de uma doutrina
com o ensinamento “em parábolas”, estas últimas recebem um sentido definitiva
mente pejorativo em grego, que seu equivalente em hebraico (mashal) não possui.
A sugestão semântica é positivamente confirmada pela frase de conclusão;
A fim de que vendo não percebam e ouvindo não entendam; para que não
se convertam e sejam perdoados. (Mc 4,12).“*^
Mateus, por sua vez, expande o texto de Marcos, coloca-o na primeira pessoa
e confirma-o com uma completa citação direta de Isaías 6,9-10.
É por esta razão que lhes falo em parábolas, pois vendo, eles não
percebem, e ouvindo, não escutam nem compreendem. Neles, na verdade,
cumpre-se a profecia de Isaías que diz: “Na verdade, vós ouvireis mas
nunca compreendereis e vereis mas nunca percebereis. Porque o coração
deste povo se embotou e seus ouvidos ficaram moucos, e seus olhos se
fecharam para que não percebessem com os olhos e ouvissem com os
ouvidos, e compreendessem com seu coração, e se voltassem a mim para
curá-los”.
47 O texto é uma reprodução livre e abreviada de Is 6,9seg. Por sua vez, Lc 8,10 é um resumo de
Marcos: “a fim de que vendo não percebam e ouvindo não entendam”. Marcos conclui por adotar
a paráfrase do Targum “ser perdoado” para o hebraico “ser curado”. Para uma visão total do
problema, ver Craig A. Evans,To See and not Perceive: Isaiah 6.9-10 in Early Jew ish and Christian
Interpretation (1989).
110 A Religião de Jesus, o Judeu
48 O emprego equivoco do termo é atestado no grego Ben Sira. Em 3,29 parabole traduz mashal, mas
em 47,17 corresponde a hidah. De modo semelhante, em Nm 21,27 mõshel é traduzido por
ainigmatistés, enquanto em Nm 12,8 ainigma equivale a hïdah.
49 Cf. D. Stem, Parables tn Midrash (1991), 200-1. SegundoJosefo (Guerra ii.141), cada essênio fazia
um juramento de “não revelar nada a estranhos” e o Mestre da Regra da Comunidade de Qumran
devia “ocultar o ensinamento da Lei aos homens falsos" (ix.16) e se conduzir para com eles num
“espirito de segredo" (9,21).
Provérbios e Parábolas 111
Concluindo com uma nota polêmica, foi afirmado por um estudioso inter
nacionalmente conhecido do Novo Testamento, Eduard Schweizer, em seu livro
intitulado Jesus (1971) - já exposto no pelourinho no capítulo sobre “Jesus e a
Lei” (p. 32, n.20) — que as parábolas explicam por que Jesus foi executado. O
parágrafo sobre a parábola do Filho Pródigo merece ser citado por inteiro.
Com uma segurança que deve ter impressionado seus ouvintes como sem
precedente, ele equaciona a conduta caridosa de Deus com sua própria
conduta para com os publicanos. Quem, a não ser Jesus, poderia se
aventurar a descrever um comportamento tão incrivel e absolutamente
inesperado por parte do pai para com o filho fanfarrão? Quem, a não ser
Jesus, teria tido a autoridade de assumir o papel do próprio Deus em sua
parábola e proclamar a celebração em honra do pecador que tinha sido
restituído à companhia de Deus? Aqueles que o pregaram na cruz porque
encontraram blasfêmia em suas parábolas - que proclamavam uma conduta
tão escandalosa por parte de Deus - compreendiam suas parábolas melhor
que aqueles que nelas não viam nada além da mensagem óbvia, que deveria
ser auto-evidente para todos, da paternidade e bondade de Deus, destinada a
substituir a crença supersticiosa num Deus de ira [grifo meu] (pp. 28seg.;
p. 32 em alemão).
Marcos-Mateus-Lucas
O semeador [1] Mc 4,3-8 Mt 13,3-8 Lc 8,5-8
A semente de mostarda [4] Mc 4,30-32 Mt 13,31-32 Lc 13,18-19
Os vinhateiros maus [14] Mc 12,1-4 Mt 21,33-44 Lc 20,9-18
A figueira [3] Mc 13,28-29 Mt 24,32-33 Lc 21,19-31
Marcos-Lucas
O guardião da porta [37] Mc 13,33-37 Lc 12,35-38
Marcos
A semente que germina [2] Mc 4,26-29
Mateus-Lucas
Litígio perante um juiz [3] Mt 5,25-26 Lc 12,58-59
Os dois construtores [8] Mt 7,24-27 Lc 6,48-49
112 A Religião de Jesus, o Judeu
Mateus
As ervas daninhas [5] Mt13,24-30
O tesouro oculto [23] Mt 13,44
A pérola [24] Mt13,45-46
A rede [7] Mt13,47-48
O proprietário avisado [25] Mt 13,51-52
O servo cruel [17] Mt18,23-35
A vinha [16] Mt 20,1-16
Os dois filhos [15] Mt21,28-37
As dez virgens [36] Mt 25,1-13
O julgamento final [34] Mt25,31-36
Lucas
O credor [18] Lc 7,41-43
O bom samaritano [29] Lc 10,29-37
O hóspede inesperado [27] Lc 11,5-8
O proprietário rico [13] Lc 12,16-21
A porta fechada [38] Lc 13,25-26
A escolha de um assento [39] Lc 14,7-11
O proprietário e o rei [21] Lc 14,28-32
A dracma perdida [12] Lc 15,8-10
O filho pródigo [30] Lc 15,11-21
O administrador injusto [20] Lc 16,1-8
O homem rico e Lázaro [31] Lc 16,19-31
A recompensa do servo [22] Lc 17,7-10
O injusto juiz da cidade [33] Lc 18,1-8
O fariseu e o publicano [28] Lc 18,9-14
Jesus e o Reino de Deus
Pela simples freqüência das expressões “Reino de Deus” e “Reino do Céu” — que
figuram não menos de duzentas vezes nos Evangelhos Sinóticos — é razoável
inferir que os conceitos que refletem desempenharam papel importante no
ensinamento de Jesus. Esta afirmação simples representa o terreno comum da
especialidade contemporânea do Novo Testamento.
Assim, a primeira frase do capitulo introdutório de Théologie des Neuai
Testaments (p. 3) de Rudolf Bultmann, apresenta o “Reino de Deus” como o
conceito dominante (“der beherrschende Begriff’) da pregação de Jesus. Chris
topher Rowland vê nele “um pilar fundamental” (Christian Origins, 133) e
Norman Perrin, “o aspecto central” do ensinamento de Jesus (Rediscovering, 54).
Para E. P. Sanders, é um dos tópicos “mais discutidos” do Novo Testamento
(Jesus and Judaism, 123). Por sua vez, Anthony Harvey (Constraints, 86), ecoando
Joachim Jeremias (NT Theology, 32-34), enfatiza a natureza sem paralelo das
expressões que a ele se referem.
Este consenso é, entretanto, puramente superficial e desaparece logo que os
pesquisadores se defrontam seriamente com perguntas básicas tais como “o
que?”, “como?” e especialmente “quando?”. Para apreender o verdadeiro sentido
do ponto central da religião de Jesus, não evitaremos estas perguntas, mas
procuraremos respondê-las, com a ajuda de uma análise minuciosa da evidência
do Evangelho comparada com a doutrina do Reino de Deus, preservada evii
fontes judaicas paralelas.^
No tempo em que Jesus se pôs a meditar sobre ela, a idéia do Reino de Deus já
era uma longa história na Bíblia hebraica e na antiga literatura pós-biblica ou
intertestamentária. Ela continuou a florescer no começo da era cristã nos
trabalhos dos rabis dos primeiros dois séculos (os tanaim), e nas primeiras
camadas da liturgia sinagogal.
Sendo “Reino” essencialmente um conceito político, não é de surpreender
que sua associação metafórica com Deus retenha, de início, um elemento de seu
significado original, isto é, uma nação e território governados por um rei (divino),
antes de se transformar na noção mais abstrata da soberania universal e do
ilimitado poder da Deidade.
Atenta à voz do povo ... porque não é a ti que rejeitam, mas a mim, porque
não querem mais que eu seja seu Rei.^
Caso apenas Deus fosse reconhecido como o governante de facto de Israel, seu
reinado de ju re como Criador da humanidade era reconhecido como universal
e persistia a esperança de que, um dia, um monarca judeu governaria todas as
nações e as conduziria ao conhecimento e culto do verdadeiro Senhor do
universo. No mesmo Salmo (2,8), o rei de Israel é instruído:
2 Esta postura antimonarquista é expressamente excluída pelo Cronista pós-exílico, que atribui a
Davi a seguinte citação, “(Deus) escolheu Salomão, meu filho, para se assentar no trono do Reino
do Senhor como rei de Israel” (IC r 28,5; cf. 17,14).
Jesus e 0 Reino de Deus 115
Pouco adiante, no mesmo poema (SI 2,11), os governantes gentios são admoes
tados a “servir o Senhor com temor”. Em outro Salmo (99,1), o Rei divino é
representado como objeto de terror e espanto entre os estrangeiros.
A perspectiva geral sofreu uma mudança substancial com a derrota do Reino
de Judá pelos babilônios em 586 a.C. e a conseqüente perda da autonomia
politica judaica. Na ausência de governantes nacionais, nasceu o messianismo,
que aguarda o advento de um rei que restabelecerá o dominio visível e institu
cional de Deus sobre todos os judeus libertados dos impérios estrangeiros.
Alguns dos Salmos reais (SI 2; 110, etc.) foram reinterpretados nesse sentido e
Ezequiel (34,24) prediz explicitamente um novo Davi que será o pastor de Israel;
A tradição transforma o personagem único de Gog, rei de Magog (Ez 38,2) no par Gog e Magog.
Cf. Enc. Jud. 7, 691-3. A antiguidade da duplicação é provada por sua menção na forma de uma
glosa interpretativa facilmente compreensível em Ap 20,8; “E quando terminarem os mil dias,
Satã será solto de sua prisão e sairá para confundir as nações ..., quer dizer, Gog e Magog, para
reuni-los para a batalha.”
116 A Religião de Jesus, o Judeu
Eles te seguirão;
Virão em grilhões e se prosternarâo diante de ti.
Eles te suplicarão, dizendo;
“Deus está contigo e não existe outro,
nenhum deus além dele” (Is 45,14).
4 Segundo Abdias 21, Edom será julgado por guerreiros de Sion e como resultado a melühá
pertencerá a Deus. Mais uma vez, em SI 22,29 [Trad. Ing. 22,28], Deus será o senhor dos gentios
convertidos e a melühá lhe pertencerá.
Jesus e o Reino de Deus 117
Esta estrutura de restauração no final dos tempos pelo novo Davi atinge seu
clímax na proclamação da eterna ordem divina (17,46). O messianismo real e o
Reino divino, portanto, podem caminhar lado a lado, mas não necessariamente.
De fato, no início do mesmo salmo (verso 3), a sujeição das nações ã divina
5 Trad. S. P. Brock em H, F. D. Sparks (ed.), The Apocryphal Old Testament [A O T] (1984), 678seg.
Sobre os Salmos de Salomão, ver H JP111, 192-97.
118 A Religião de Jesus, o Judeu
6 Cf. A O T, 657.
7 Trad. J. J. Collins, em J. H. Charlesworth, O TP 1, 363. Sobre os Oráculos Sibilinos, ver H]P III,
618-54. Imagens paralelas figuram em 4Esdras 12,31-34, onde o Messias, o rei davídico,
simbolizado por um leão, condena a “águia" (os romanos) no julgamento, antes de aniquilá-los.
8 C f L. Dequeker, “The ’Saints of the Most High’ in Qumran and Daniel”, Oudtestamenlische Studien
18 (1973), 108-87. Uma noção muito parecida com Dn 7 é atestada no fragmento chamado “Filho
de Deus” (4Q 246), de Qumran, mencionando o Reino do “povo de Deus”. C f G. Vermes,
Jesus e 0 Reino de Deus 119
Enquanto esta inclinação mística não deixe de ter repercussões no Novo Testa
mento, especialmente em Apocalipse, e mesmo, talvez surpreendentemente, em
S. Paulo (IC o r 15,25-28), resta ver se é reconciliável com a mentalidade de Jesus.
Existem, entretanto, outros aspectos da teologia intertestamentária do Reino que
devem ser definidos visando sua potencial relevância quanto ao ensinamento do
Evangelho.
Para começar, o Livro de Jubileus, de meados do segundo século a.C. (50,9-11
[HJP 111, 308-18]) descreve o Shabat como “um dia do Reino santo para sempre”.
Em outras palavras, a abstinência sabática de “todo trabalho de ocupações dos
filhos dos homens” e uma total devoção ao culto por meio de oferendas de
incenso, dons e sacrifício no santuário, simbolizam e misticamente implantam
o reino de Deus na terra.
10 Trad. J. P. M. Sweet em Sparks, A O T, 612seg. Sobre a Assunção de Moisés, ver HJP III, 282seg.
Jesus e 0 Reino de Deus 121
Que vos seja permitido assistir ao serviço rto Templo do Reino e decretar
o destino em companhia dos Anjos da Presença ... por idades sempiternas
e tempo sem fim (4,25seg.).
11 Cf. 4QEnoque g I iv em J. T. Milik, The Books o f Enoch: Aramaic Fragments o f Qumran Cave IV
(1976), 266. A reconstituição torna-se plausivel por 4 Q En Giants a 9 (ibid. 316) onde a expressão
mlkwt rhwtkh (Reino de tua grandeza) está bastante bem preservada. A dignidade real de Deus é
repetidamente confirmada em lEnoque. Em 9.4 os quatro arcanjos se dirigem a “Seu Senhor, o
Rei: ’Senhor dos senhores. Deus dos deuses. Rei dos reis! Vosso trono permanece por todas as
gerações do mundo’ “. Cf. 84,2. Sobre lEnoque, ver HJP III, 250-68.
122 A Religião de Jesus, o Judeu
Tal associação do Reino de Deus com o terror e o medo infligidos a maus espíritos
é particularmente digno de nota em vista das curas e dos exorcismos operados
por Jesus, ligados à noção do advento do Reino de Deus.
Finalmente, uma visão político-religiosa inteiramente diferente surge do
relato de Josefo sobre a mensagem de Judas, o Galileu, criador do movimento
de resistência que causou incessante inquietação na Palestina do primeiro século
A.D. até a primeira guerra contra Roma e mais além. Denominada “a Quarta
Filosofia”, seguindo a doutrina dos fariseus, saduceus e essênios, a proclamação
de Judas lembra estranha e exageradamente a posição antimonárquica adotada
pelos israelitas na idade de Samuel (cf. acima, pp. 114 seg.). Para Samuel, a
elevação de Saul ao trono equivalia a uma traição a Deus como Rei; para Judas,
o reconhecimento da soberania divina não se conciliava com a tolerância de
quaisquer “senhores mortais” (Guerra ii.118).
A mesma idéia é atribuída por Josefo ao comandante rebelde de Massada,
Eleazar ben Jair, num discurso de exortação ã sua guarnição para que se
matassem:
Durante e após a vida de Jesus, portanto, existia uma teologia política entre
alguns judeus, que condenava a submissão não só ao domínio imperial como a
qualquer autoridade humana, incluindo, poderia até parecer, a do Rei Messias!
Até que Abraão, nosso pai, veio ao mundo, o Santíssimo, bendito seja, era
(como se fosse) o único rei do céu, pois está escrito, “O Senhor, o Deus
do céu, que me tomou...” (Gn 24,7). Mas quando Abraão, nosso pai, veio
ao mundo, ele o fez rei sobre o céu e a terra, pois está escrito “Eu te farei
jurar pelo Senhor, o Deus do céu e da terra” (Gn 24,2).
Não terás outros deuses perante mim (Ex 20,3). Por que isto é dito? Porque
Ele disse, Eu sou o Senhor teu Deus (Ex 20,2). Eis uma parábola sobre um
rei de carne e sangue que entrou numa província. Seus ministros lhe
disseram: Publicai decretos relativos a eles (os habitantes)! Ele lhes disse,
Não, quando aceitarem minha malhut, eu publicarei decretos para eles,
pois, se não aceitarem minha malhut, como cumprirão meus decretos?
Do mesmo modo Deus disse a Israel: Eu sou o Senhor teu Deus: não terás
outros deuses: Eu sou aquele cuja malhut aceitaste no Egito. Eles Lhe
disseram: Sim, sim. Agora, como aceitaste minha malhut, aceita também
também meus decretos; Não terás outros deuses diante de mim (Mekhilta
sobre Ex. 20,3, II, 237seg.)-
Possa ele estabelecer seu reino em tua vida e nos teus dias e em vida de
toda a casa de Israel, depressa e dentro em pouco!
15 A. Büchler, Types o f Jew ish Palestinian Piety (1922), 236-40; J. Heinemann, Prayer in the Talmud
(1977), 94, n. 2 6 ,1 2 8 .
126 A Religião de Jesus, o Judeu
Nos documentos examinados até agora, o Rei divino e o Reino divino apareceram
como noções recíprocas, com a preponderância dos termos concretos, “Rei” e
“reinar”. Como foi sugerido, o substantivo abstrato “Reino” é uma raridade. O
caso dos Evangelhos é o reverso, mesmo no Novo Testamento como um todo.
Jesus nunca se dirige a Deus como “Rei”; na verdade, este título aparece muito
raramente mesmo fora de citações diretas. A terminologia judaica usual de prece,
“Senhor, Deus do universo”, em nenhum ponto é associada a Jesus, embora
figure em fórmulas litúrgicas em dois escritos mais tardios do Novo Testamento,
ITm 1,17; 6,15 e Ap 15,3.'^
16 Cf. J. Heinemann, op. cit., 92-94. É curioso observar que, enquanto na recensão palestina da
Amidá o termo “Rei” nunca se refere a Deus, ele figura oito vezes na versão babilônia. Um
precedente um tanto diferente pode ser encontrado em Tb 13,1, onde a prece de Tobit começa
com a seguinte bênção: “Bendito seja Deus que vive eternamente e bendito o seu reino”.
17 A última passagem é atestada em duas formas, “Rei das idades” e “Rei das nações” (cL p . 126
acima).
Jesus e 0 Reino de Deus 127
Mas eu vos digo: Nào jureis de todo, nem pelo céu ... ou por Jerusalém,
porque é a cidade do grande Rei (Mt 5,34seg.).
18 A reformulação da parábola por Mateus (e pela igreja cristã) já tinha sido observada por Bultmann
(HST, 124).
128 A Religião de Jesus, o Judeu
Arrependei-vos, pois o Reino do céu está próximo (Mt 3,2 [João]; 4,17
[Jesus]).
O verbo “estar próximo” empregado tanto por Marcos quanto por Mateus
(engizein) é parte do vocabulário escatológico da profecia biblica (cf. Is 50,8;
51,5; Ez 7,7[4]). Expressa uma iminência dramática, só igualada pela expressão
“consumação do tempo” de Marcos. Como nas parábolas estudadas anteriormen
te, o Reino, embora ainda não inteiramente presente, não é considerado como
uma realidade futura. Seu pronto estabelecimento deve ser realizado pela teshuvá
que já nos é familiar. A mesma nota de urgência soa ainda mais alto numa
sentença de Q, na qual um exorcismo divinamente apoiado é representado como
indicando o início do Reino. Em contexto polêmico, Jesus exclama;
Mas se é pelo espírito (Mt)/o dedo (Lc) de Deus que eu expulso demônios,
o Reino de Deus chegou para vós (Mt 12,28/Lc 11,20).
Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do céu sofreu violência
e homens violentos o tomaram pela força (Mt).
A Lei e os Profetas existiram até João; desde então, é pregada a boa nova
do Reino de Deus, e todos entram nele com violência (Lc).
20 Pensa-se que o verbo empregado nos Evangelhos, phthánein, ecoa o aramaico m eta’ com fortes
conotações escatológicas. Cf. G. Dalman, Worte, 87seg.; M. Black, Aramaic Approach, 211. Da
mesma forma a instrução dada por Jesus aos setenta discípulos, embora seja provavelmente uma
formulação da igreja, segue o mesmo esquema, associando a iminência do Reino à cura
carismática (Mt 10,7; Lc 10,9). Sobre a cura como fenômeno escatológico, cf. IQS 4,6; 4Q 521
(JJS 43 (1992), 303); Tg Neof, Ps-jon sobre Gn 3,15, etc.
Jesus e 0 Reino de Deus 131
O Reino de Deus não chegará com sinais que possam ser observados; nem
será dito, Ei-lo aqui, ei-lo ali! Pois o Reino de Deus está entre vós (Lc
17,20).“
Não pode haver dúvida de que Jesus afirmou, repetidas vezes, que o Reino de
Deus pertencia aos seus, neste momento e lugar ou, em hipótese pior, estava
muito próximo. Assim sendo, que devemos fazer com as afirmações a ele
atribuídas e que conotam um futuro mais distante? De inicio, Mc 9,1 e seus
paralelos apregoam que, enquanto era esperado que a manifestação do Reino
ocorresse em vida dos contemporâneos de Jesus, apenas “alguns” deles teriam
o privilégio de testemunhá-lo, assegurando assim, implicitamente, que os outros
seriam excluídos.
21 Cf, Mc 8,12;13,21/M t 24,23. Contra esta doutrina da não existência de sinais extraordinários a
não ser curas e exorcismos carismáticos, a descrição apocalíptica da volta do Cristo, o “sinal do
filho do homem", se manifesta como contraditória e estranha, com seus tumultos celestes c
terrenos (Mc 13,24seg./Mt 24,29seg./Lc 21,25seg.). Se provas da inautenticidade das imagens
de Parousia vinculadas ajesu s forem necessárias, não é preciso ir adiante.
132 A Religião de Jesus, o Judeu
22 Cf. E. Puech, “Un hymne essénien en partie retrouvé et les Béatitudes”, Mémorial Jean Carmignac,
R Q13, nos 49-52 (1988), 59-88. A principal diferença estrutural entre Mateus e 4 Q Beat é que
no primeiro, cada bênção é acompanhada pela menção de sua recompensa, enquanto 4 Q Beat
consiste de paralelismos comuns, na maioria antitélicos. Mateus (5,10) também representa os
“perseguidos por sua retidão” como possuidores do Reino.
23 Cf. recentemente, W. D. Davies e D. C. Allison, The Gospel according to St Matthew I (1988), 445seg.
Observar que a passagem de Mateus 7.21 — Nem todos os que clamam Senhor, Senhor, entrarão
no Reino de céu — contém igualmente uma conotação de Parusia. C f Davies e Allison, op. cit.,
711-14.
134 A Religião de Jesus, o Judeu
Em verdade vos digo, quem não receber o Reino de Deus como uma
criança não entrará nele (Mc 10,15/Lc 18,17).
24 A atividade criativa da igreja de Mateus deveria também ser creditada com as passagens nas quais
a mãe dos apóstolos Tiago e João pede lugares privilegiados para seus filhos no Reino de Jesus
(Mt 20,21) e a estipulação teológica de que a retidão m aior que a dos escribas e dos fariseus basta
para entrar no Reino (Mt 5,20). Esta afirmação contrasta gritantemente com a declaração
atribuída a Jesus em Mc 12,32-4 de que um escriba que aprovasse seu sumário do judaísmo
consistindo apenas do Shemá, combinado com o amor a Deus e ao próximo, “não estava longe
do Reino de Deus".
Jesus e 0 Reino de Deus 135
Se teu olho te faz pecar, arranca-o; é melhor para ti que entres no Reino
de Deus com um olho só do que ser lançado ao inferno com dois.^’
Ele lhes disse: Nem todos os homens sâo capazes de receber esta palavra,
mas só aqueles a quem é concedido. Pois há eunucos que o sâo desde o
nascimento e há eunucos que foram feitos eunucos pelos homens e há
eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino do céu (Mt 19,1 Iseg.).
26 Cf. A. Schweitzer, The Quest f o r the Historical Jesus (3- ed. 1954); C. H. Dodd, The Parables o f the
Kingdom (1935); J. Jeremias, The Parables o f Jesus (2- ed. 1972). Para uma discussão proveitosa
destes e de outros escritores, ver Norman Perrin, The Kingdom o f God in the Teaching o f Jesus
(1963).
27 Em minha interpretação da evidência, a reivindicação de E. P. Sanders no sentido de que não é
possivel nenhuma compreensão clara do conceito de Jesus quanto ao Reino (Jesus and Judaism,
(1985), 123-56), parece-me injustificada, e também estou cético sobre a asserção de Paula
Fredriksen que qualquer anúncio do Reino como presente, por parte de Jesus, deve se
fundamentar em camadas mais tardias da tradição do Evangelho (From Jesus to Christ (1988),
101).
138 A Religião de Jesus, o Judeu
Já que não seria razoável mas, na realidade, bem tolo, declarar que a Mishná se
inspira em Jesus, a única inferência lógica deve ser que ambos derivam de uma
corrente comum de tradição religiosa que, em conseqüência, deve ser vista como
já estabelecida no primeiro século A.D.
O terreno comum entre Jesus e o pensamento tanaítico referente ao Reino
é, entretanto, limitado. Distingue-se pelo extremo fervor dos dias finais que
inspira toda a mensagem autêntica do Evangelho. Embora vinculado tanto ao
que antecede quanto ao que se segue, o ensinamento de Jesus sobre o Reino de
Deus é uma criação substancialmente nova, portando o selo de uma escatologia
individual, ao mesmo tempo quietamente oculta e espetacularmente ascendente.
(IC o r 6,9seg.; 15,50; ITs 2,12). Tg 2,5, fazendo ressoar a primeira bem-aventu
rança, exorta sua igreja a respeitar os pobres.
Deus não escolheu aqueles que são pobres no mundo para serem ricos
em fé e herdeiros do Reino que ele prometeu àqueles que o amam?
Mas em toda esta literatura, o Reino aparece como uma realidade futura,
verdadeiramente a realidade celestial absoluta do eschaton:
Então chega o fim, quando ele (Cristo) entrega o Reino a Deus Pai, após
destruir toda regra e toda autoridade e poder (IC or 15,24).
a noção de Pai e de filho são correlatas, ele propõe um modelo para o compor
tamento dos “irmãos e irmãs”.
E quando estiveres rezando, perdoa o que tiveres contra alguém, para que
teu Pai que está no céu possa perdoar tuas faltas (11,25).'
O texto mais longo, que se segue a 11,26, inclui também uma formulação
negativa calcada em Mt 6,14seg., ela mesma acrescentada, como uma reflexão
tardia, ao versículo relevante (Mt 6,12) do Pai Nosso.
Se perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste também perdoará
as tuas; mas se não perdoares aos homens as suas faltas, teu Pai celeste
também não perdoará as tuas.^
Deve-se notar que estas palavras, embora provavelmente independentes em sua origem, estão
anexadas a um texto de prece que aparece em Marcos 11,24.
A máxima negativa é incluída também como sumário doutrinal da Parábola do Servo Cruel (Mt
18,35). O ensinamento relativo à reconciliação necessária, mesmo fazendo uma oferenda no
Templo, é enfatizada igualmente em Mt 5,23seg., sem referência a um Pai celeste benevolente. A
alusão ao santuário, que na opinião de Bultmann atesta a forma mais original porque “pressupõe
a existência do sistema sacrificial em Jerusalém (HST, 132), é mais provavelmente derivada de
Mateus do que de Jesus, cujo interesse em assuntos do Templo parece ter sido um tanto periférico.
144 A Religião de Jesus, o Judeu
Mas eu vos digo, Amai vossos inimigos ... para que sejais os filhos de
vosso Pai que está no céu, pois ele faz surgir o sol sobre os maus e sobre
os bons e faz chover sobre os justos e os injustos ... E se saudais apenas
vossos irmãos ... mesmo os gentios não fazem o mesmo? (Mt 5,44-47/Lc
6,27seg., 33, 35seg.)
O modelo é universal. O termo “inimigo”, a não ser que seja definido de outra
forma, sugere normalmente um estranho à comunidade de Israel. Daí, embora
falando de maneira geral, a visão de Jesus não alcance além do mundo judaico,
uma tendência não formulada, cosmopolita e quase ecológica, levando à repre
sentação de Deus como Pai de todos os seres vivos, não lhe é absolutamente
alheia.
6 Para paralelos literários, ver JW J, 164, n. 33. Cf. também W. D. Davies e D. C. Allison, Matthew
I (1988), 579,
146 A Religião de Jesus, o Judeu
Dificilmente encontraremos melhor exemplo do que chamei anteriormente de uma Lei ética (cf.
pp. 47 seg. acima), pois, enquanto o texto hebraico do Levítico lê: “E se a mãe for uma vaca ou
uma ovelha, não matarás a mãe e sua cria no mesmo dia”, o Targum eleva a regra a um
mandamento moral universal.
“Abba, Pai”: 0 Deus de Jesus 147
As três menções de Lucas do Pai em contexto similar (Lc 12,32; 22,29; 24,49) sào todas
corretamente descritas por Bultmann como formulações eclesiásticas (HST, 111, 158, 157); do
mesmo modo, é claro, a expressão trinitária. Pai, Filho e Espírito Santo, no primitivo mandamento
cristão do batismo que conclui o Evangelho de Mateus (28,9).
148 A Religião de Jesus, o Judeu
que guarda ciumentamente seu privilégio mesmo de um filho ressoa como uma
nota discordante. Este Deus náo é o Deus de Jesus.®
Os Evangelhos Sinóticos contêm cinco preces de Jesus nas quais ele invaria
velmente se dirige à Deidade como “Pai”, “nosso Pai” ou “Abba”. Elas pertencem
à tradição especial de Marcos, de Q e de Lucas. Três outras passagens de Mateus
se propõem transmitir o ensinamento dejesus sobre a prece, mas sem reproduzir
as fórmulas relevantes. Elas previnem contra a ostentação (Mt 6,5) e insistem no
isolamento por detrás de portas fechadas (Mt 6,6) e sobre a superfluidade de
apresentar a Deus, como aparentemente faziam os gentios, uma extensa lista d .:
objetos (Mt. 6,7): “vosso Pai, que vê no segredo” e “sabe do que necessitais ante:
de pedirdes” requer apenas uma disposição interna apropriada.“’
A súplica dejesus reproduzida em Mc 14,36, “Abba, Pai... afasta de mim este
cálice...” provavelmente preserva seu modo genuíno de se dirigir a Deus ao pedir
ajuda. A fórmula aramaica era corrente na igreja primitiva mesmo, por estranho que
pareça, entre os gentios-cristãos, de lingua grega, das congregações de Paulo (cf. Rm
8,15; G14,6). Seu significado será discutido no Apêndice nas pp. 165-167). Os outros
cinco pronunciamentos que sobrevivem, entre os quais apenas a passagem de
Marcos e o Pai Nosso têm boa probabilidade de serem genuinos, permitem uma
breve visão da percepção existencial dejesus em relação a Deus.
9 A negação do conhecimento divino aos anjos é definitivamente contrária à tradição judaica bem
estabelecida, segundo a qual Deus sempre consulta sua corte celeste, que é também denominada
sua “família do alto”. Cf. ySanh i, 18a; bSanh 38b; E. Urbach, The Sages: Their Concepts and Beliefs
(1975), 179.
10 A literatura rabinica preservou paralelos diretos e indiretos do ensinamento dejesus em relação
à prática de judeus particularmente devotos, geralmente referidos como os “primeiros Hassidim”
(hasidim rishõnim). O tema do segredo é mencionado a respeito das esmolas: “os tementes ao
pecado” piedosos costumavam depositar seus donativos na “câmara de hashshalm ” isto é, das
doações secretas que permitiam aos timidos “senhores em necessidade” (“aniyim bene tõvim”) de
se servirem das esmolas sem confrontar seus benfeitores face a face (mShek 5,6). O conselho de
se retirar para um quarto fechado é exemplificado na história de Hanina ben Dosa, o carismático
operador de curas da Galiléia no primeiro século sobre o qual se diz que se retirou para seu
quarto do “primeiro andar” para pronunciar uma prece que curou miraculosamente o filho do
Gamaliel na distantejerusalém (yBer 9d; bBer 34b). A história talmúdica sugere que Hanina subiu
ao primeiro andar, isolou-se e se dirigiu a Deus antes que os enviados de Gamaliel tivessem a
oponunidade de falar com ele, ou seja, ele sabia antecipadamente o que lhe seria pedido. Como
o Pai celestial (Mt 6,7), o carismático é visto como possuidor de conhecimento prévio das
necessidades dos suplicantes.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 149
prece posta nos lábios de Jesus crucificado, “Pai, perdoa-lhes porque não sabem
o que fazem” (Lc 23,34) ecoa um artifício missionário judeu-cristão claramente
formulado em Atos 3,17, segundo o qual qualquer culpa potencial dos contem
porâneos judeus de Jesus, incluindo as autoridades envolvidas em sua queda,
deveria ser imputada à ignorância.''
Quanto ao último apelo de Jesus ao morrer na cruz, enquanto em Mc
15,37/Mt 27,50 é descrito apenas como uma “voz alta”, Lucas, que sem dúvida
por razões teológicas deixou de incluir a frase perturbadora “Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?”, em Mc 15,34/Mt 27,46, introduz neste ponto
uma citação menos desconfortável de SI 31,6, proporcionando assim um fim
piedoso à vida do sofredor;
11 o versículo é omitido em alguns dos manuscritos mais antigos (P. Bodmer XIV, Vaticanus, etc.).
Não obstante, embora seja improvável que as palavras tenham sido realmente pronunciadas por
Jesus, sua omissão pela igreja primitiva que não se mostrava disposta, por definição, a tolerar no
Evangelho uma prece pelo perdão divino em favor dos odiados judeus, é mais provável que sua
interpolação tardia.
12 O conhecimento revelado concedido por Deus ao Mestre da Justiça e comunicado aos iniciados
da seita constitui o centro da teologia dos Pergaminhos. IQpHab 2,2seg. se refere à mensagem
por ele recebida “da boca de Deus”, identificada em 7,5seg. como um saber divinamente
concedido dos “mistérios das palavras de seus servos, os profetas”. IQS fala do significado
“revelado” dos mandamentos da Lei de Moisés (5,9; 8,1); uma “revelação” referente aos “tempos
designados” (1,9; 9,13). CD 15,13 também se refere a “revelações” no que se refere à Lei. Os
recipientes sectários dessas revelações são por muitas vezes descritos como “os simples” (peíiJm),
termo correspondente ao grego nêpioi deMt 11,25/Lc 10,21 (cf. IQpHab 12,4; IQH 2,9; seg. 15,4).
Ver igualmente o salmo não canônico de 4Q381 1, Iseg., provavelmente anterior à Comunidade
do Mar Morto, que menciona instrução, julgamento e compreensão transmitidos aos “simples”
(cf. Eüeen M. Schuller, Non-Canonical Psalms from Qumran (1986), 71, 75, 77).
150 A Religião de Jesus, o Judeu
Cesaréia de Filipe “porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso (a
identidade messiânica de Jesus), e sim o meu Pai que está no céu” (Mt 16,17).
Entretanto, comparada às versões do episódio em Marcos e em Lucas (Mc
8,29seg./Lc 9,20seg.), a passagem de Mt 16,17-19 é manifestamente um suple
mento apologético que pode ser atribuido à igreja primitiva (c f.JJ, 146seg.).
O Pai Nosso (Mt 6,9-13/Lc 11,2-4), que se inicia com “Pai nosso que estais
no céu “ ou apenas “Pai” é geralmente considerada como uma das principais
fontes para o estudo de nosso tema. O título é algo enganoso, já que o fraseado,
embora formulado por Jesus, não se destinava ã recitação pelo próprio Jesus mas
por um grupo de discípulos que se referem a si mesmos como “nós”, “nos” e
“nosso”. A versão de Lucas é mais curta, e, diferentemente da de Mateus, cuja
redação é bastante estável, tirante a doxologia anexada a 6,13 em alguns
m a n u scrito s,a te sta um bom número de variantes gregas, algumas das quais
com a intenção óbvia de aproximar Lucas de Mateus.
Entretanto, este não é o lugar apropriado para uma discussão detalhada do
Pai Nosso, já que nos propomos examinar apenas sua contribuição à compreen
são de Jesus em relação a Deus como Pai celeste. Não obstante, alguns comen
tários preliminares se fazem necessários, inclusive uma avaliação da relação
entre as versões de Mateus e de Lucas.
Mateus Lucas
Pai nosso que estais no céu, Pai,
santificado seja vosso nome. santificado seja vosso nome.
Venha a nós o vosso Reino, Venha a nós o vosso reino.
Seja feita a vossa vontade
Na terra como no céu.
Dai-nos hoje nosso pão cotidiano; Dai-nos a cada dia nosso pão cotidiano;
e perdoai as nossas dívidas, e perdoai-nos nossos pecados porque nós
como também perdoamos aos nossos mesmos perdoamos aos que nos devem;
devedores; e não nos conduza à tentação.
e não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal.
15 Segundo mBer 5.5, Hanina ben Dosa sabia que sua intercessão em favor de uma pessoa doente
produzia efeito à distância quando tivesse a liberdade de improvisar íluentemente. Cf, PBJS,
179seg. A literatura rabinica (yBer v, 9c) distingue entre uma formulação ad hoc e uma outra
preestabelecida.
152 A Religião de Jesus, o judeu
16 Sobre a natureza “particular e nâo estatutária” e a prece “estatutária fixa’’, ver Joseph Heinemann,
Prayer in the Talmud: Forms and Patterns (1977), capítulos VII e IX. Heinemann classifica
explicitamente o Pai Nosso como uma “prece judaica particular” (p. 191) que podería tomar a
forma de “eu” ou de “nós” (ibid.).
17 Para a fórmula “Nósso Pai” da prece judaica, ver acima p. 152 e Heinemann, 150-55, 189-91.
“Abba, Pai”: 0 Deus de Jesus 153
Faz a tua vontade no céu e concede paz de espírito àqueles que te temem
na terra (tBer. 3.ii).*®
I S A mesma espécie de paralelismo figura cm outra prece pela paz, atribuída ao Amorá babilônico
R. Safra, do inicio do quarto século: “Que seja de tua vontade, ó Senhor nosso Deus, que
estabeleças a paz na família do alto e na família da terra!” (bBer. 17a). No contexto de uma Parusia
meta-histórica, o reconhecimento ou rejeição de Jesus “face aos homens” são considerados como
correlatos ao reconhecimento ou rejeição da parte dele “perante meu Pai que está no céu” ou
“perante os anjos de Deus” (Mt 10,32seg.; Lc 12,8seg.; Mc 8,38; Mt 16,27; Lc 9,26). Para uma
estrita correspondência entre o culto terreno e o celestial no pensamento religioso da
Comunidade de Qumran, ver G. Vermes, QIP, 175seg.; Carol Newsom, Songs o f the Sabbath
Sacrifice (1985), 59-72. Cf. também Beate Ego, Studien zum Verhältnis von himmlischer und
irdischer Welt im rabbinischen Judentum (1989).
19 Para um estudo detalhado dos diversos significados ver de W. Foerster, “Epiousios” em TDNTII,
590-99; cf. também Davies e Allison, Matthew 1, 607-9.
20 Cf. Prayer, 100. A mesma exegese pode ter sido antecipada por Jeronimo {Commentary on Matthew
6,11) com base no Evangelho [agora perdido] segundo os Hebreus: “In evangelic quod appellatur
secundum Hebraeos pro supersubstantiali pane reperi mahar, quod dicitur crastinum, ut sit
sensus. Panem nostrum crastinum, id est futurum, da nobis hodie.” (No Evangelho denominado
“segundo os Hebreus”, para “pão cotidiano” encontrei m ahar que significa “de amanhã”, de modo
que o significado é “Nosso pão de amanhã”, isto é, nosso pão futuro “dai-nos hoje” )
154 A Religião de Jesus, o Judeu
Que Deus o liberte agora ... pois ele disse, “Eu sou o filho de Deus”
(Mt 27,43)
Simão Pedro respondeu, “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16,16;
o Cristo, Mc 8,29; o Cristo de Deus, Lc 9,20).
21 O aviso contra o otimismo exagerado é parte da prudência bíblica: “Nâo te regozijes pelo dia de
amanhã pois não sabes o que este dia pode trazer”, Pr 27,1 e encontra eco na sabedoria rabínica:
“Não te preocupes com os problemas de amanhã pois não sabes o que o amanhã trará. O amanhã
chegará mas talvez ele não esteja aqui, ele se preocupa com o mundo (variante: o dia) que nâo é
seu” (bYeb 63b; bSanh 100b). A passagem da segunda para a terceira pessoa é empregada para
evitar a menção da morte da pessoa referida.
22 Para uma análise anterior, ver JJ, 200-06, 263seg.
“Abba, Pai”: o Deus de Jesus 155
23 “Meu filho" sem menção a “o Messias” aparece várias vezes em 4Esdras 13,32,37, 52;14,9, é
igualmente encontrado em 1 Enoque 105,2 de autenticidade duvidosa. “Eu e meu filho ” pode se referir
aqui não a Deus e ao Messias, mas a Enoque e Matusalém. Cf. M. Black - J. C. Vanderkan, The
book o f Enoch or 1Enoch (1985), 319
24 O assim denominado texto do “Filho de Deus” da Caverna 4 de Qumram (4Q 246, previamente
4QpsDand, atualm ente Apocalipse Aramaico), contendo as expressões “filho de Deus" (bereh d i’el)
e “filho do Altíssimo” (b a r’ elyõn) foi citado por J. A. Fitzmyer em relação a Lc 1, 32, 35 (A
Wandering Aramean: Collected Aramaic Essays (1979), 93). Davi Flusser, ao contrário, interpreta
os titulos como aplicados ao Anticristo (Judaism and the Origins o f Christianity (1988), 207-13,
enquanto F. Garcia Martinez, em Qumran and Apocalyptic (1992), 162-79, identifica a figura como
um ser angélico, Melquizedec ou Miguel, o Principe da Luz. Todas estas teorias se fundamentam
em evidências parciais e dependem principalmente de várias restaurações hipotéticas das
lacunas.
Agora que o texto integral pode ser consultado, parecería que a pessoa que se denomina a si
mesma, ou é chamada por outros de “filho de Deus” é um usurpador desse título. Na verdade, é
dito que o reino por ele governado é caracterizado por guerras intestinas entre as nações.
Aparentemente ele é calcado no rei de Daniel 11,36, que se torna deus. A paz só pode ser esperada
após a emergência do “povo de Deus", ao qual “o Grande Deus" concede poder universal e
“dominio eterno”. Resumindo, 4Q246 não é relevante para o estudo do conceito Messias/filho
de Deus. Por outro lado, pode representar a evidência bíblica mais antiga para a compreensão
coletiva de “alguém como o filho do homem” de Dn 7,13. Este tipo de exegese é atestado
primeiramente no Daniel bíblico (7,27). Cf. G. Vermes, “Qumran Forum Miscellanea 1”, JJS 43
156 A Religião de Jesus, o Judeu
E uma voz veio do céu, “Tu és meu filho amado; contigo estou bem
contente”.
(1992), 301-3. Duas outras contribuições apareceram em 1992. De Emile Puech “Fragment d’une
apocalypse en araméen (4Q246=pseudo-Dan d) e “Royaume de Dieu”, RB 99 (1992), 98-131,
propondo uma exegese messiânica real ou outra que identifica o “filho de Deus” corn Antioco
Epifanes. A outra exegese aparece em The Dead Sea Scrolls Uncovered (1992), 68-71 de Robert
Eisenman e Michael Wise, que optam por uma interpretação messiânica.
25 O texto ocidental de Lucas (Codex Bezae, latim antigo, etc.) cita aqui SI 2,7. “Tu és meu filho,
hoje eu te gerei”, revestindo assim a declaração de um tom messiânico. É digno de nota que
também em Jo ã o 1,32-33, o Batista parece ser o único beneficiário tanto da visão quanto da
revelação.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 157
E vede, uma voz veio do céu dizendo, “Este é meu filho amado, em quem
me comprazo”.
E eis que eles [os dois Gadarenos endemoniados] gritaram: “Que tens a
ver conosco, ó filho de Deus? Vieste antes do tempo para nos atormentar?
(Mt 8,29).
26 A expressão é um mosaico de excertos bíblicos. “Este é meu filho amado com o qual me comprazo”
é uma combinação de Gn 22,2 (“teu filho ... que tu amas” —Abraão/Isaac) e Is 42,1 (“meu eleito
que deleita minha alma” — Deus/o Servo do Senhor). “Ouvi-o” é tomado de empréstimo de Dt
18,15 (Deus/ profeta como Moisés).
27 As últimas palavras são inseridas para amalgamar a história com o Batismo de Jesus. Elas não se
encontram na maioria dos manuscritos.
158 A Religião de Jesus, o Judeu
Gritando em voz bem alta, ele (o Geraseno endemoniado) disse; Que tens
a ver comigo, Jesus, filho do Deus Altíssimo? (Mc 5,7; Lc 8,28).^®
28 o mesmo reconhecimento do filho de Deus por Satã caracteriza o relato da Tentação em Mt 4,3,
6; Lc 4,3; 9.
29 Uma tendência similar, distinguindo o elo especifico entre Jesus e o Pai daquele existente entre
seus discípulos e Deus é visto por muitos intérpretes cristãos do Novo Testamento no emprego
dos pronomes possessivos, meu Pai e vosso Pai. Nosso Pai aparece apenas em Mt 6,9. A diferença
é principalmente estilística e quase certamente não possui significado doutrinai. É pouco provável
que Jesus realmente se referisse a Deus como “meu Pai”. A formulação nunca ocorre em Marcos,
e muito infreqüentemente em Q e Lucas. Em contraste, é frequente na camada redacional de
Mateus e j o ã o .j o 20,18 é a única passagem do Evangelho que pode estipular a diferença real entre
“meu” e “vosso": “Estou ascendendo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”. Por
outro lado, a passagem pode simplesmente enfatizar um relacionamento recíproco.
30 O imaginário mitológico de um “deus-pai”, cercado de “filhos de deus" (ben ê’ elohïm ou hen ê’
eïim) comum na Bíblia, parece ter perdido em grande parte suas conotações originais e não
necessitam de um exame detalhado neste ponto.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 159
YH (W) e ‘EL e resultam em AbiYAH ou Abbi Y ahu (Yah ou Yahu significam meu
Pai), ou Y oab (Y o é o Pai). Do mesmo modo temos Abbi eL e Euab (Deus é o
Pai) em nomes judaicos da era pré-exilica e do Segundo Templo. ABram e Asiram
(Pai excelso e Meu Pai é exaltado), que podem ser rastreados à idade patriarcal,
representam o mesmo tipo. Enquanto as nuances exatas do termo “Pai” perma
necem vagas, não pode haver dúvida de que mesmo em nível individual o
relacionamento entre Deus e os israelitas era visto de uma perspectiva de família.
Essa antiga atitude subjacente é explicitamente expressa, principalmente em
termos coletivos que se aplicam a membros da nação judaica. Descrevem Deus
como seu Pai e Deus faz alusão a eles como seus filhos. A mais antiga atestação
é a célebre passagem de Ex 4,22 onde, segundo a tradição J, Moisés se dirige ao
Faraó:
Em outros exemplos do Deuteronômio, Moisés ora diz aos judeus, “Vós sois os
filhos do Senhor vosso Deus” (14,1), ora transmite a mesma mensagem por meio
de uma comparação:
Sabei pois, em vosso coração, que assim como o homem disciplina seu
filho o Senhor vosso Deus vos impõe sua disciplina (8,5).
Assim como um pai tem devoção de seus filhos, do mesmo modo o Senhor
tem devoção daqueles que o temem.
Gerei e criei filhos, mas eles se revoltaram contra mim (Is 1,2).
E onde lhes foi dito; “Não sois meu povo” lhes será dito: “Filhos do Deus
vivo” (Os 2,1 [Trad. Ing. 1,10]
Pois sou um pai para Israel e Efraim é meu primogênito (]r 31,9).
Nos Salmos, Deus proclama o rei seu filho no momento de sua entronização,
declaração dotada de significado messiânico depois do desaparecimento da
soberania politica judaica;
Um filho honra seu pai e um servo seu senhor. Se sou um Pai, onde está
minha honra? E se sou um Senhor, onde está meu temor? — diz o Senhor
dos exércitos a vós, ó sacerdotes (1,6).
Não temos todos um Pai? Não foi um único Deus que nos criou (2,10)?
31 E. R. Goodenough, An Introduction to Philo Judaeus (1962), 38, 85seg. Cf. Moses ii. 238-41; Opif.
81, 171.
32 Cf. Eileen M. Schuller, “The Psalm of 4Q 372 1 within the Context of Second Temple Prayer”, CBQ
54/1 (1992), 67-79.
162 A Religião de Jesus, o Judeu
Judá ben Tema disse: Sede fortes como o leopardo e ligeiros como a águia,
velozes como a gazela e bravos como o leão para fazer a vontade de vosso
Pai que está no céu (mAb 5,20).
A fórmula “meu Pai que está no céu” ocorre também em textos midráshicos,
quase automaticamente no discurso de primeira pessoa. Assim, ao fim de sua
célebre exposição de Ex 20,6: “daqueles que me amam e guardam meus
mandamentos”, referindo-se aos mártires judeus da perseguição de Adriano,
depois de citar Zacarias 13,6, R. Natã, do início do segundo século, conclui:
Estas feridas fizeram com que eu fosse amado por meu Pai que está no céu
(Mekh sobre Ex 20,6, Lauterbach II, 247).
33 Utn imaginário algo similar pode ser encontrado no Targum Fragmentário (Vaticano 440) sobre
Ex 15.2. “Ao seio de suas mâes os bebês apontam o dedo para seus pais e dizem: Este è nosso Pai
que nos amamentou com [mel tirado] das rochas e nos proveu com o óleo da pedra lascada. Cf.
Michael Klein, “The Targumic Tosefta to Exodus 15.2”, JJS 26 (1975), 61-67; ver também idem,
The Fragment-Targums o f the Pentateuch according to their Extant Sources (1980), in loc.
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 163
Outro exemplo impressionante figura em Sifra sobre o Levítico (ed. Weiss 93d):
Disse R. Eleazar ben Azariá; que ninguém declare, “Não desejo ... carne
de porco ou sexo proibido, mas deve-se dizer, embora os deseje, que
posso fazer se meu pai que está no céu me deu este mandamento”
A cada dia uma voz celestial (bat qõl) vem [do Monte Horeb (bBer 17b)j,
dizendo; “Todo o mundo é sustentado apenas devido a Hanina, meu filho,
entretanto para Hanina, meu filho, apenas uma medida de alfarroba é
suficiente na véspera de um sábado até a próxima (bTaan
24b/bHul 86a).”
36 bTaan 23b. C f.JJ, 211. Ver também acima, pp. 23, n.6 e M6).
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 165
37 As palavras deste cabeçalho reproduzem o título irônico de um excelente artigo publicado por
James Barr em JTS 39 (1988), 28-47.
166 A Religião de Jesus, o Judeu
No dia seguinte, a filha mais velha disse à mais nova: Vê, eu dormi com
Abba ontem. Vamos fazê-lo beber vinho também hoje. Vai e dorme com
ele para termos filhos de nosso pai.
38 “Lemos frequentemente (e eu mesmo acreditei até certo tempo) que, quando Jesus se dirigia a
seu Pai celeste, ele assumia o balbuciar de uma criança. Admitir isto seria uma mostra de
ingenuidade inadmissivel” (p. 62). Entretanto, nas pp. 59 e 109 ele escreve: “... nunca foi
esquecido que abba deriva da linguagem de crianças pequenas” e “... em sua forma vocativa,
originalmente um exemplo do falar infantil que então passou a ser usado geralmente .... em bora
a m emória de sua humilde origem nunca se tenha perdido “ (grifos meus).
39 Cf. C. Rowland, Christian Origins: An Account o f the Setting and Character o f the most important
Messianic Sect o f Judaism (1985), 255; I. Zeitlin, Jesus and the Judaism o f his Time (1988), 62; John
P. Meier, A Marginal Jew : Rethinking the Historical Jesus (1991), 175; J. H. Charlesworth, Jesus
withinjudaism : New Light fro m Exciting Archaeological Discoveries (1989), 134; C. Perrot, Jesus ei
I’histoire (1979), 280. A edição revisada da Biblia de Lutero traduz Abba em alemão por “lieber
Vater” [“querido Pai”).
“Abba, Pai”: O Deus de Jesus 167
40 Atitude semelhante é revelada na tese de Jeremias de que os rabis talmúdicos teriam copiado
Jesus ao formular suas parábolas narrativas. Cf. The Parables o f Jesus (1972), 12. Cf. acima p. 97).
Jesus, o Homem Religioso
Estamos tão habituados ... a fazer de Jesus o objeto da religião que nos
tornamos capazes de esquecer que em nossos registros mais antigos ele
é retratado não como o objeto da religião, mas como um homem religioso.
(Thomas Walter Manson, The Teaching of Jesus (1953), 101.)
Pois é bom que estas leis sejam gravadas nos corações e na memória para
que nunca sejam apagadas ... Que as crianças também comecem por
aprender as leis, a mais bela das lições e fonte de felicidade [Ant. iv. 210
seg.).
1 Neste ponto discordo frontalmente da tese de E. P. Sanders, tanto em Jesus and Judaism quanto
em Judaism : Practice and Belief, onde a importância do papel do Templo é, em minha opinião,
grandemente superestimada.
Jesus, 0 Homem Religioso 171
Josefo assegura que a familiaridade com a Torá era tão profunda como se
estivesse escrita no coração de cada israelita e a decorrente ação religiosa era
vista quase como instintiva.
Acaso alguém de nosso povo seja questionado a respeito das leis, ele as
repetirá muito mais prontamente que seu próprio nome. O resultado,
pois, de nosso completo embasamento nestas leis desde o primeiro raiar
da inteligência é que as possuímos como que gravadas em nossas almas
(C. Ap. ii. 178).
Sustentando que as leis são oráculos concedidos por Deus e tendo sido
treinados nesta doutrina desde os primeiros anos, eles (os judeus) levam
a cópia dos mandamentos como um relicário em suas almas (Legat. xxxi.
210 ).
Existem alguns que, considerando as leis em seu sentido literal, à luz dos
símbolos de matérias que pertencem ao intelecto, são por demais
escrupulosos sobre estas últimas, enquanto tratam as primeiras com uma
Josefo se orgulha de seu aprendizado precoce. “Quando eu era apenas um menino, por volta dos
catorze anos, obtive aplauso universal por meu amor às letras; a tal ponto que os principais
sacerdotes e os homens influentes da cidade me procuravam constantemente para receber
informação precisa sobre algum caso particular em nossos mandamentos” (Life 9). Comparada
a esta afirmação, a lenda de Jesus aos doze anos de idade, sentado no Templo entre os mestres,
ouvindo suas lições, fazendo-lhes perguntas e os surpreendendo com sua compreensão e
respostas (Lc 2,46seg.), aparece como um semiclichê, expresso em termos moderados.
Cf. G. Vermes, “The Summary of the Law by Flavius Josephus”, NT 24 (1982), 289-303.
172 A Religião de Jesus, o Judeu
fácil negligência. A estes homens, eu, por minha parte, os reprovaria por
manipular o assunto de modo ligeiro e descuidado; eles deveriam prestar
uma atenção cuidadosa a ambos os objetivos, a uma investigação mais
completa e exata daquilo que não é visto e no que é visto como sendo os
guardiães impecáveis (Migr. xvi.89).
A superioridade da Lei em relação ao Templo é tanto mais notável já quejosefo era certamente,
e Filo possivelmente, de descendência sacerdotal. Cf. Josefo, Life I; jerõnimo. De viris illustribus
II: “Philon... de genere sacerdotum”. Ver HJPIII, 814seg.
C f G. Vermes, “Preliminary Remarks... ”,JJS 42 (1991), 250-55; “Qumran Forum Miscellanea I”,
JJS 43 (1992), 300seg.
Jesus, 0 Homem Religioso 173
Antes de mais nada, deveis compreender que nos últimos dias virão os
escamecedores com seus escárnios ... e dizendo “Em que ficou a
promessa de sua vinda?... Mas não ignoreis este fato, amados, de que para
o Senhor um dia é como mil anos, e mil anos apenas um dia. O Senhor
não tarda em cumprir suas promessas ..., mas usa de paciência para
convosco, por não desejar que ninguém pereça, mas que todos alcancem
o arrependimento. (2Pd 3,3-9).
A partir daí, com o dia do Senhor ainda não realizado, as chamas moribundas
da espera se apagam e onde, em teoria, a epifania de Deus ainda era esperada,
apenas um simulacro de devoção voltava-se para a crença escatológica. Na
prática, a vida voltava ao normal e a religião revertia à sua costumeira e segura
realidade social. O cristianismo eclesiástico representa este estado final da
evolução. A religião de Jesus, o Judeu, é uma manifestação rara, possivelmente
única do entusiasmo escatológico em sua forma pura. Se a missão de Jesus teve
a duração de três anos, ou dois ou mais provavelmente apenas um, foi por demais
breve para abrir espaço a um desenvolvimento gradual de dúvida e mesmo de
I. Individualismo escatológico
Podemos tomar como certo que as pessoas, mesmo o povo simples do campo, que obedeciam ao
seu chamado e, anteriormente, ao de João, sabiam instintivamente o que era esperado deles e
agiam de acordo. A questão do relacionamento informal entre arrependimento e perdão não os
incomodava muito. Tem sido questionado se Jesus se desviava do caminho ortodoxo ao declarar
os pecados de um homem perdoados sem arrependimento prévio, sem mencionar as prescritas
“oferendas do pecado", embora os sacerdotes do Templo, movidos por uma solidariedade dc
classe e por interesses próprios tivessem certamente insistido quanto a estas últimas (tai.s
sacrifícios formavam parte importante de seu rendimento: cf. HJPII, 260), pois para os discípulos
galileus de Jesus a questão era antes escolástica do que de significado real.
176 A Religião de Jesus, o Judeu
2. A urgência escatológica
A confissão essênia de pecados é formulada na primeira pessoa do plural. “Temos nos transviado!
Temos [desobedecido!] Nós e nossos antepassados antes de nós pecaram e agiram iniquamente
caminhando [contra os preceitos] da verdade e da retidão” (IQ S 1,24-26). Dever-se-ia observar,
no entanto, que o ingresso de Qumran na Aliança em forma de um juramento obrigando o novo
membro a “retomar” à Lei de Moisés (IQ S 5,8), e acompanhado, ao que parece, por alguma forma
de batismo essénio (IQ S 3,9-11; 5,13seg.), é igualmente, por definição, um compromisso
individual mas que ocorre, como no Confiteor da missa católica, no interior da estrutura formal
de uma cerimônia pública.
Esta passagem, (Mc 2,1-12; Mt 9,1-8; Lc 5,17-26; c f também Lc 7,47) e um notável paralelo de
Qumran da Prece de Nabônido, no qual se diz que um exorcista judeu perdoou os pecado do rei
e portanto o livrou de uma longa doença, são discutidos em J J 67-69, 240seg., no contexto da
relação entre demônio/pecado/doença e operador de curas-exorcista/perdão/cura no judaísmo
carismático intertestamentário. Nas duas histórias do Evangelho, a do paralítico e da “mulher da
cidade que era uma pecadora” (Lc 7,37), a declaração d ejesus de que seus pecados tinham sido
perdoados escandaliza os judeus convencionais.
Jesus, 0 Homem Religioso 177
3. O absoluto escatológico
10 o Rolo de Cobre de Qumram (3Q 15) lista sessenta e quatro locais onde ouro, prata e objetos
valiosos estariam enterrados. Segundo a lei rabínica, sem dúvida já em vigor no primeiro século,
o comprador de um campo e “tudo que se encontra nele” (mBB 4.9) seria o proprietário legal
desse tipo de tesouro.
178 A Religião de Jesus, o Judeu
11 Na literatura rabínica, antigos hassidim como Abba Hilkiá, neto do carismático Honi, e Hanina
ben Dosa são descritos se retirando para o terraço superior ou para um quarto isolado para orar
(bXaan 23b; yBer v, 9d; bBer 34b). Nestas representações não aparece o ingrediente escatológico.
Do mesmo modo, os terapeutas ou os essênios contemplativos, segundo Filo (Vit. Coní. 25)
passavam suas horas de prece num “santuário” (semneion) ou “quartinho" (monasCêrion). Segundo
mBer 5.1, a atenção dos homens piedosos (hassidim) ficava tão fortemente concentrada na oração
que mesmo se fossem saudados pelo rei ou tivessem uma serpente enrolada no tornozelo, eles
não se dariam conta. C f.JW J, 164seg.
12 A generosidade é considerada como digna de louvor por Jesus ben Sira (Eclo 31,11), e o ramo
dos essênios representado pelo Documento de Damasco taxava abertamente seus membros para
fins de caridade (CD 14,10-16). Mas a prática da esmola escondida aparece também no Testamento
(9,7seg. e mShek 5,6. Os dois casos são apresentados da perspectiva do pobre envergonhado:
ele pode receber a esmola sem ter de se defrontar com o benfeitor. No caso do jejum formal, a
Mishná (Taan 1.6) prescreve manifestações exteriores de penitência: há as proibições de se lavar,
se ungir e usar calçados (as relações sexuais são igualmente proibidas). Em contraste, os
construtores do Reino de Deus são exortados por Jesus a disfarçar seu jejum sob uma aparência
limpa e bem cuidada (Mt 6,17).
180 A Religião de Jesus, o Judeu
1. Fé
Eu vos digo, mesmo em Israel não encontrei tal fé (Mt 8,10; Lc 7,9).
13 A fé da mulher é tanto mais admirável já que Jesus aparentemente tentou ignorá-la em primeiro
lugar: “Não é certo tomar o pão das crianças e lançá-lo aos câes” (Mc 7,27).
14 Mais uma vez Lucas (17,6) confunde as metáforas c fala de uma figueira plantada no mar pela
força da fé!
Jesus, 0 Homem Religioso 181
Existem eunucos que se fizeram eunucos pelo Reino do céu (Mt 19,12).**
15 Entretanto, ainda não se aproxima da ameaça petulante do carismático Honi do primeiro século
a.C., também conhecido como Onias, o Virtuoso, como era chamado por Josefo, que declarou a
Deus que não se movería do circulo que tinha traçado em volta de si mesmo até que seu pedido
de acabar com a estiagem fosse atendido. Cf. mXaan 3,8. A passagem de Josefo se encontra em
Ant. xiv. 22; ver também JW J 49 e p. 103 antes.
16 A óbvia intenção metafórica desta sentença não impediu Orígenes, o maior erudito bíblico da
igreja primitiva, de aplicar estas palavras a si próprio, literalmente, num excesso de entusiasmo
ascético em princípios do terceiro século!
182 A Religião de Jesus, o Judeu
2. Imitatio Dei
Sede como ele, por favor! Assim como ele é caridoso e cheio de graça
devereis ser caridosos e cheios de graça (Mekh. sobre Ex 15,2 [Lauterbach
II, 25]).
De maneira mais direta, um mestre tanaitico anônimo oferece uma exegese muito
mais completa relativa ao midrash Sifre sobre Dt 11,22, “que andeis em seus
caminhos”.
20 (Sifre sobre Dt 11,22 [49], ed. L. Finkelstein, 114). Notar a sutil diferença entre D eus ser chamado,
mas o homem deve ser caridoso, cheio de graça, etc.
Jesus, 0 Homem Religioso 185
“Após a morte de Abraão Deus abençoou seu filho Isaac” (Gn 25,11), vós
também deveis confortar os enlutados. Como o Senhor, bendito seja,
enterrou os mortos, como está escrito “E ele o enterrou (Moisés) no vale”
(Dt 34,6), vós também deveis enterrar os mortos (bSotha 14a).
Bendito seja o nome do Senhor do mundo que nos ensinou seus caminhos
corretos. Ele nos ensinou a vestir os nus ao vestir Adão e Eva. Ensinou-nos
a unir noivos e noivas ao unir Adão e Eva. Ensinou-nos a visitar os doentes
ao se revelar por uma visão da Palavra (Memra) a Abraão, quando este
estava doente. Ensinou-nos a confortar os enlutados ao se revelar
novamente a Jacó na volta deste de Padam, no lugar em que sua mãe tinha
morrido. Ensinou-nos a alimentar os pobres fazendo pão cair do céu para
os filhos de Israel. Ensinou-nos a enterrar os mortos através de Moisés,
ao qual se revelou por sua Palavra (Memra), e com ele, companhias de
anjos auxiliares.^'
Meu povo, filhos de Israel, como Pai nosso é caridoso no céu, do mesmo
modo deveis ser caridosos na terra.
Meu povo, filhos de Israel, como eu sou misericordioso no céu, deveis ser
misericordiosos na terra.
21 Uma seqüência de atos divinos de caridade para com o patriarca José, prefigurando as listas
rabinicas, aparece no Testamento de Jo sé 1,4-7, onde as ações de Deus são constrastadas com os
correspondentes atos maus dos irmãos de José. “Estes meus irmãos me odiavam, mas o Senhor
me amava. Eles queriam matar-me, mas o Deus de meus pais me preservou. Eles me jogaram num
poço, mas o Altissimo me trouxe de volta. Fui vendido como escravo, mas o Senhor me libertou.
Fui levado ao cativeiro, mas sua mão forte me sustentou. Fui presa da fome, mas o próprio Senhor
me alimentou. Eu estava sozinho, mas Deus me confortou. Eu estava doente, mas o Altissimo veio
em minha ajuda. Eu estava na prisão, mas o Salvador me favoreceu. Em ferros, e ele me libertou.
Difamado, e ele advogou minha causa. Aviltado pelos egípcios e ele me libertou.”
186 A Religião de Jesus, o Judeu
Mas mesmo este conceito de “perfeição” pode ser visto como por demais abstrato.
Portanto, a formulação concreta de Lucas sobre a mesma instrução, que antecipa
as palavras de Abba Sha’ul e o Targum Palestiniano, é de autenticidade mais
provável:
Mas o ponto central da religião de Jesus não é a observância da Torá como tal —
embora ela não esteja, de modo nenhum, excluída e promova a espiritualidade
interior. Não é uma busca de pureza — ritual ou ética. Não é uma auto-santifi
cação na forma de uma vida de preces e de culto — no Templo ou na sinagoga.
Não parece nem mesmo ter sido uma busca de Deus, em sua essência, mas por
Jesus, 0 Homem Religioso 187
À pergunta de quando Deus encontrou tanta bondade, vem a resposta que foi
apenas quando se mostrava a pessoas de nenhuma importância, aos “pequeni
nos” (Mt 25,40). Tanto o ponto de vista introduzido sub-repticiamente na
narração e a imitatio Dei vista como bondade para com Deus e o estender de
uma mão caridosa aos aflitos, são típicos de um estilo do ensinamento e da
perspectiva religiosa de Jesus e constituem um todo coerente.
Estes “pequeninos” também são os impossibilitados de reciprocar. Quando
Jesus mandou seus discípulos para “curar e exorcizar”, ao serem bem-sucedidos
eram-lhes habitualmente oferecida uma doação, mas ele lhes proibiu de aceitar
o que quer que fosse. “Vós recebestes (vossos poderes carismáticos) sem pagar,
dai sem pagamento! (Mt 10,89). Do mesmo modo, segundo a bem conhecida
parábola, nenhum amor caridoso, imaculado pela esperança de uma retribuição,
é impossível exceto quando o rol dos convidados inclui apenas “os pobres, os
aleijados, os coxos e os cegos” (c f Lc 14,12-14) — precisamente aqueles que são
banidos da assembléia messiânica segundo a Regra da Congregação de Qumran,
a não ser “os pobres” que não são mencionados (IQ Sa 2,5seg.).
Finalmente, nada ilustra melhor a verdadadeira visão de bondade de Jesus
do que a hipérbole p ar excellence, na qual ele amplia o mandamento bíblico de
amar os próximos, inclusive os inimigos. Sem desejar repetir a discussão de Mt
5,39-45; Lc 6,27-35 (c f antes pp. 40 seg.), basta observar que, sendo esta a forma
mais pura de altruísmo, ela pode ser verificada no caso em que Deus faz brilhar
o sol e cair a chuva para justos e injustos (Mt 5,46). De maneira mais concreta,
a doutrina de Jesus sobre a imitatio Dei culmina no acolhimento amante dos
“inimigos” de Deus, tais como os coletores de impostos e, indiretamente, mesmo
os gentios (Mt 5,45seg.; Lc 6,32-34) que são vistos também como adversários
dos justos.
188 A Religião de Jesus, o Judeu
22 Cf. HJP 1, 374-76; ver também E. Badian, Publicans and Sinners( 1972).
Jesus, 0 Homem Religioso 189
Ele salvou outros e não pode se salvar ... Ele acredita em Deus; que Deus
o liberte agora se esta for sua vontade (Mt 27,42seg.; Mc 15,31seg.; Lc
23,35).
Sem presumir saber o que se passava na mente agonizante de Jesus, não pode
ser muito errado imaginar que, mesmo a caminho do Gólgota, mesmo na cruz,
sua emuná permaneceu firme até o terrível momento em que percebeu que Deus
o tinha abandonado e gemeu:
“Eloi, Eloi, lama sabachtani?”, que significa, “Meu Deus, Meu Deus, por
que me abandonaste?” (Mc 15,34)
Com este grito de desespero, vindo do coração partido de um homem de fé, ele
“exalou o último suspiro” (Mc 15,37).
Apesar do pesado golpe nos seus seguidores por sua execução, os discípulos
logo se convenceram de que Jesus não tinha morrido, mas continuava a viver,
já que em seu nome conseguiam sucesso como operadores de curas, exorcistas
e pregadores. Esperando seu iminente retorno na glória, pois sua mensagem
escatológica permanecia viva, e assistidos, antes de serem encobertos pelo gênio
estrangeiro de Paulo de Tarso, eles continuaram entusiasticamente o que acre
ditavam ser a própria missão de Jesus, pregando o Evangelho como se fosse o
de Jesus e fundando a religião que veio a ser conhecida como o cristianismo.
8
Jesus, 0 Judeu histórico, teria julgado as três primeiras e as duas linhas finais do
credo cristão familiares e, embora não sendo de mentalidade teológica, não teria
dificuldade em concordar com elas, mas sem dúvida ficaria intrigado pelas
outras vinte e quatro linhas. Elas parecem ter pouco a ver com a religião pregada
e praticada por ele. Ainda assim, as doutrinas que proclamam o status divina
mente eterno e a encarnação corpórea, a redenção da humanidade conseguida
pela crucificação, sua subseqüente exaltação e, acima de tudo, a Trindade da
Divindade, Pai, Filho, Espírito Santo, formam a base da fé da qual supostamente
ele foi o arquiteto.
Hoje, como em séculos passados, a principal fonte de fé do cristão se
encontra, nem tanto em Marcos, Mateus e Lucas e seu Jesus ainda bastante
terreno, mas em séculos de especulação pela igreja sobre o Evangelho teológico
de João, com seu eterno Verbo, que se tomou carne e talvez, ainda mais, nas
cartas de Paulo com seu drama de morte, arrependimento e ressurreição. O
A Religião de Jesus e o Cristianismo 193
Vós sois o demônio de vosso pai, e vosso desejo é o desejo de vosso pai.
Ele foi um homicida desde o início ... Qo 8,44).
Pouco tempo antes de sua morte, o grande estudioso inglês do Novo Testamento
C. H. Dodd, publicou um excelente livro sobre a vida de Jesus. Mas se a tese
desenvolvida neste estudo for ao menos parcialmente verdadeira, o título esco
lhido por Dodd, The Founder o f Christianity (1970), deve ser julgado como
incorreto. Embora admitidamente não totalmente desconectados, a religião de
Jesus e o cristianismo são tão basicamente diferentes em forma, propósito e
orientação que seria historicamente pouco seguro fazer derivar o último direta
mente do primeiro e atribuir as mudanças a um evolução doutrinal direta.^
Não pareceria menos injustificável continuar a representar Jesus como o
fundador da igreja (ou igrejas?) cristã. Pois, permitam-me dizê-lo por uma última
vez, se ele era sincero e acreditava no que pregava — e eu, por minha parte, estou
convencido que sim — vale dizer, que o eterno Reino de Deus estava realmente
Dum volunt et ludaei esse et Christiani nec ludaeí sunt, nec Christiani” (Epist. 89 a Agostinho,
Patrologia Latina XXII). Esses assim chamados Ebionitas ou Nazarenos não podem ser
comparados com os atuais “judeus messiânicos” ou “judeus para Jesus” que, sob o disfarce das
observações ordinárias do judaismo parecem ser cristãos comuns, fundamentalistas e
evangélicos.
Sem dúvida, em um nível meta-histórico, a fé cristã e a teologia atribuem estas mudanças aos
trabalho do “Espírito Santo”: “Quando o Espirito da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade”
üoão 16,13).
A Religião de Jesus e o Cristianismo 197
próximo, ele simplesmente não poderia nutrir a idéia de fundar e fazer funcionar
uma sociedade organizada, destinada a sobreviver pelas idades vindouras. Um
grande desafio, talvez o maior de todos, com o qual o tradicional cristianismo
da variedade “paulino-joanística” ainda não teve de se confrontar não deriva do
ateísmo, ou agnosticismo, ou puro materialismo, mas de dentro, das três antigas
testemunhas Marcos, Mateus e Lucas, através dos quais fala o principal desafian
te, Jesus, o judeu.
A aceitação desse desafio será constatada nas décadas e mesmo nos séculos
vindouros, embora leves sinais indiquem que a maior parte dos estudiosos
cristãos dotados de maior percepção do Novo Testamento já têm consciência da
tarefa que os espera. Porém pareceria também que alguns sons abafados são
audíveis nos círculos eruditos judeus, sugerindo que o antigo tabu de Jesus,
enganadamente responsabilizado pelo anti-semitismo cristão, está começando a
esmaecer e que passos hesitantes estão sendo tomados para reintegrá-lo entre
os antigos Hassidim, num início de cumprimento da “profecia” de Martin Buber;
“Um lugar destacado lhe pertence na história da fé de Israel”.
E isto também não é tudo. O apelo magnético do ensinamento e do exemplo
de Jesus oferece esperança e orientação àqueles que não estão integrados numa
religião organizada, as ovelhas desgarradas da Humanidade, que anseiam por
um mundo de misericórdia, justiça e paz, nele vivendo como filhos de Deus.
4 Two Types o f Faith: A Study o f the Interpenetration o f Judaism and Christianity (1951), 13.
Abreviações
Ab. Abot
ANRW Ausfstieg und Niedergang der Römischen Welt, ed. H. Temporini and
W. Haase
Ant. Antiguidades Judaicas, de Flávio Josefo
AOT Apochryphal Old Testament, H.F.D. Sparks
apGen Genesis Apochryphon
ar Aramaico
Arakh. Arakhin
ARN Abot de-Rabbi Nathan
AZ Avodah Zarah
b bavli (Talmude Babilónico)
BB Bava Batra
Beat Bem-Aventuranças
Ber. Berakhot
BM Bava Mesi‘a
BQ Bava Qamma
BR Bereshit Rabbah (cf. GR and GenR)
C. Ap. Contra Apionem, de Flávio Josefo
CBQ Catholic Biblical Quarterly
CD Cairo Damascus Documento
CHB Cambrigde History o f the Bible, P. R. Ackroyd e C. F. Evans (orgs.)
Decal. De Decálogo, de Filo
DJD Discoveries int the Judaean Desert
DSSE Pergaminhos do Mar Morto, de G. Vermes
Er. Eruvin
Ex.R. Exodus Rabbah
Flac. In Flaccum, de Filo
fr. Fragmento
GenR/GR Genesis Rabbah (cf. BR)
Gitt. Gittin
H Hodayot (Thanksgiving hymns)
Hag. Hagigah
200 A Religião de Jesus, o Judeu
HJP History o f the Jewish People in the Age o f Jesus Christ, de E. Schtirer-G
Vermes-Millar-M. Black-M. Goodman
HST The History o f the Synoptic Tradution, de R. Bullltmann
HUCA Hebrew Union College Annual
Hul. Hullin
IDBS Interpreter’s Dictionary o f the Bible: Supplementary Volume
Iss. Issachar
JB L Journal o f Biblical Literature
J& J Jesus and Judaism by E. P. Sanders
JJ Jesus the Jew by G. Vermes
JJS Journal o f Jewish Studies
JS J Journal fo r the Study o f Judaism
JSS Journal o f Semitic Studies
JTS Journal o f Theological Studies
JW J Jesus and the World o f Judaism by G. Vermes
Jub. Jubilees
LAB Pseudo-Philo’s Liber Antiquitatum Bibbcarum
Legat. Legatio ad Gaium by Philo
Lev.R. Leviticus Rabbah
Life Autobiografia dejosefo
LXX Septuaginta
m Mishná
M Milhamah (Rolo da Guerra)
Mak. Makkot
Mekh. Mekhilta
Men. Menahot
Mid. Middot
Migr. De migratione Abraham, de Filo
Moses De vita Mosis, de Filo
MS Manuscrito
Ned. Nedarin
Neof. Neofiti
Ohol. Oholot
Opif. De opificio mundi, de Filo
OTP The Old Testament Pseudepigrapha, org. por J.H.
p Pesher
PBJS Post-biblical Jewish Studies, de G. Vermes
Pes. Pesahim
Pes.R. Pesiqta Rabbati
PL Patrologia Latina
Abreviações 201
Enoc, 51, 155, 193 Isaac, 56, 68, 69, 157, 185
•Esdras, 51, 94, 169 Isaias, 62, 63, 193
Euripedes, 79
Eva, 184, 185 Jacó, 68, 69
Evans, C. A., 109 Jeremias, 66
Ezequiel, 115 Jeremias,]., 88, 93, 98, 1 0 0 ,1 0 1 ,1 0 4 ,
137, 150, 153, 165, 167
Feldman, L. H., 13 Jeronimo, 91, 196
Feldmann, A., 88 Jesus [de Nazaré], passim
Fiebig, P., 88 Jesus ben Sira, 45, 50, 169, 179
Filo, 1 6 ,3 9 , 40, 47, 170, 171 Jesus, filho de Ananias, 82
Filo [pseudo-], 52 João, 12, 23, 100, 1 0 8 ,1 3 4 , 1 5 6 ,1 9 2 ,
Finkelstein, L., 184 195
Fitzmyer, J. A., 85, 155 João Batista, 27, 64, 65, 73, 76, 129,
Flusser, D., 88, 155 134, 136, 137, 156, 175
Foerster, W., 153 Joel, 56
Forkman, G., 56 Johnston, R. M., 93
Fredriksen, P., 137, 191 Jonas, 59, 60, 61
Freyne, S., 13 Jônatas ben José, 30
Furnish, V. P., 43 José, 52
Josefo [Flávio], 13, 16, 3 7 , 3 9 , 40, 42,
Gamaliel, 93, 148 6 6 , 85, 9 9 , n o , 1 2 3 , 1 7 0 , 1 7 1 ,
Gamaliel 11 [Raban], 124, 148 181
Garcia, Martinez, F., 155 Josué, 51
Gerth, H. H., 70 Josué ben Qorhá, 124
Gog, 115 Judá bar Simão, 87
Goldhawk, N. P., 174 Judas, 66
Goodenough, E. R., 161 Judas, o Galileu, 122
Goodman, M. D., 10, 13, 106 Jülicher, A., 88
Green, W. S., 13
Käsemann, E., 35, 37
Habacuc, 174 Kilpatrick, G. D. 72
Hagai, 156 Klausner,]., 13
Hama [R.j, 185 Klein, M., 162
Hanan, 146, 164 Kohba [Simão bar], 66
Hanina ben Dosa, 12, 98, 148, 151, 163, Kuhn, K. G., 113
179, 184
Harvey, A. E., 11, 33, 113 Lagrange, M .J.,9
Hauck, F., 88 Lauterbach, ]., 90, 91, 93
Heinemann,]., 125, 152, 163 Levi [Mateus], 188
Hengel, M„ 14, 33, 71 Levi [R.], 91
Hilkiá [Abba], 146, 179 Lightfoot, ]., 15
Hilel, 39, 44, 45, 67, 93, 132 Lindenberger, J. M., 44
Honi, 12, 146, 164, 179, 181 Loisy, A., 140
índice de Nomes 211
Lucas, 12, 21, 22, 25, 26, 27, 29, 46, 58, Otto, R., 72, 73
61, 76, 79, 97, 9 9 ,1 0 0 , 1 0 6 ,1 0 7 ,1 3 3 ,
141, 142, 143, 144, 147, 148, 150, Paliais, P., 41
151, 158, 173, 192, 197 Papos ben Judá, 92
Paulo [de Tarso], 9, 17, 31, 39, 52, 73, 99,
Magog, 115 139, 171, 177, 178, 189, 192, 194
Malaquias, 65, 156 Perles, F., 86
Manson, T. W., 9, 61, 169 Perrin, N., 24, 33, 113, 137
Marcos, 12, 21, 22, 25, 30, 31, 46, 58, 64, Perrot, C., 166
78, 81, 109, 130, 133, 141, 142, 143, Pedro, 22, 24, 31, 52, 75, 193
148, 150, 158, 173, 192, 197 Pilatos [Pôncio], 11
Maria, 52 Puech, E., 133, 156
Marmorstein, A., 183
Mateus, 12, 21, 22, 25, 26, 27, 29, 30, 33, Rabinowits, L. I., 88
39, 40, 42, 44, 46, 58, 59, 60, 64, 65, Rad, G. von, 113
66, 72, 76, 78, 85, 96, 97, 100, 106, Renan, E., 9
107, 127, 130, 133, 141, 142, 143, Rowland, C., 113, 166
144, 145, 149, 150, 151, 158, 173,
192, 197 Safra, 153
Meier,J. P., 166 Saldarini, A. J., 45
Meir [Rabi], 92, 93, 99, 105 Salomão, 50, 51, 58, 59, 85, 94, 114, 117,
Melquizedec, 155 118, 144, 159
Meyer, A., 85 Samuel, 82, 122
Miguel, 119, 155 Sanders, E. P., 11, 14, 19, 20, 29, 31, 33,
Milik,J. T„ 121 35,3 8 , 51, 7 1 , 1 0 3 , 1 0 4 , 1 1 3 , 1 3 7 , 1 7 0
Mills, C. W., 70 Sara, 38, 39, 99
Moisés, 11, 19, 31, 42, 50, 51, 56, 67, 81, Saul, 121, 122
119, 159, 172, 173, 176, 183, 185, Schechter, S., 183
186, 193 Schiffman, 29, 56
Moore, G. F., 183 Schlatter, A., 33
Mowry, L., 88 Schlosser, J., 113
Schmidt, K. L„ 113
Nabucodonosor, 114, 118 Schuller, E. M., 161
Natã [profeta], 58, 88, 159 Schweitzer, A., 9, 113, 137, 196
Natã [Rabi], 30 Schweitzer, E., 32, 111
Neemias, 169 Scott, R. B. S., 88
Nenunya Haqaná, 104 Segai, J. B„ 13
Neusner,J., 93 Shamai, 39, 44, 67, 93
Newsom, C., 153 Sha’ul [Abba], 183, 186
Nicodemos, 139 Simão ben Azai, 108, 135
Noé, 60 Simão ben Eleazar, 83
Simão ben Halafta, 96
Obadias, 116 Simão ben Menasiá, 30
Origenes, 181 Simão ben Yohai, 84
212 A Religião de Jesus, o Judeu