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Introdução às Aplicações da Matemática

Epidemiologia
Biblio: Britton §3.1 –3.3
Brauer e Castillo-Chávez §9.1 – 9.2

Isabel S. Labouriau

25 de Maio de 2020
Em um modelo para uma doença contagiosa que confere
imunidade, queremos descrever a evolução no tempo do número
I(t) de pessoas que estão infectadas e contagiosas. Dividimos a
população em três classes:
I os suceptı́veis que podem ser contaminados,
I os infectados que são contagiosos,
I os resistentes, que já se curaram da doença (ou foram
vacinados, veremos adiante) e por isso não adoecem mais.
O mais importante é que os elementos desta última classe não
contaminam nem são contaminados. Por isso também
podemos incluir nesta classe os que morrem da doença.
O modelo está feito para analisar a evolução de uma epidemia que
dura um intervalo de tempo relativamente curto, em que não deve
haver grandes mudanças na população total , exceto as causadas
pela infecção. Consideramos a população total P constante.
A variável independente é o tempo t, em geral medido em dias.
Há 3 variáveis dependentes:

I a proporção S de suceptı́veis na população, que podem ser


contaminados;

I a proporção I de contagiosos na população;

I a proporção R de na população.

No modelo queremos obter as funções S(t), I(t), R(t) que


descrevem a evolução dessas proporções.
Como S, I e R são proporções de subconjuntos da população
total, procuramos S, I, R : R −→ [0, 1].
Multiplicadas por 100, estas variáveis representam porcentagens da
população total P.
Modelo SIR (com imunidade)

S = suceptı́veis I =infectados βI γI
R =resistentes (imunes e mortos) S I R


 Ṡ = −βIS β, γ > 0
(SIR) İ = βIS − γI dX
 Ẋ =
Ṙ = γI dt

Parâmetros do modelo
β > 0 é a taxa de contágio (difı́cil de estimar)
1
γ > 0 é a taxa de recuperação, dada por γ = onde C é a
C
duração do perı́odo contagioso da doença.
Propriedades do modelo (SIR)
A soma das três funções, S, I e R é dada por

T (t) = S(t) + I(t) + R(t)

logo
dT dS dI dR
(t) = (t) + (t) + (t).
dt dt dt dt
Substituindo os valores das derivadas dados na equação (SIR) fica:

dT
(t) = [−βI(t)S(t)] + [βI(t)S(t) − γI(t)] + [γI(t)] = 0
dt
Com isto provamos:
Teorema
No modelo (SIR) a soma, T = S + I + R, é constante.

Isto é razoável porque dividimos a população completamente nas


três classes e tomamos as proporções na população total, suposta
constante.
Uma consequência do teorema anterior é que podemos escrever
R(t) = 1 − (S(t) + I(t)) e eliminar a função R(t) do modelo.
Passamos a ter

Ṡ = −βIS β, γ > 0
(SIR) com dx
İ = βIS − γI ẋ =
dt
e procuramos soluções com S(t), I(t) ∈ [0, 1] e S(t) + I(t) ≤ 1
Podemos sempre recuperar o valor de R(t) como
R(t) = 1 − S(t) − I(t).
Mudança de escala no tempo

Para reduzir o número de parâmetros das equações, passamos a


medir o tempo, não em dias, mas em número de perı́odos
contagiosos.
τ dx 1 dx
τ = γt ⇒ t = ⇒ =
γ dτ γ dt
As equações ficam:

dS
 dτ = −R0 IS



0≤S ≤1 β
(SIR) com onde R0 =
 dI
 0≤I≤1 γ

 = I (R0 S − 1)

A partir daqui usaremos t para o tempo na nova escala e
voltaremos à notação ẋ = dx
dt .
Resumindo:

Queremos fazer o gráfico das funções S(t), I(t) com


S, I : R −→ [0, 1] e S(t) + I(t) ≤ 1 que satisfazem o sistema de
equações diferenciais:

Ṡ = −R0 IS β
(SIR) com R0 = > 0
İ = I (R0 S − 1) γ
I
1
Chamaremos de espaço de fase o triângulo
T = {(S, I) 0 ≤ S ≤ 1 0 ≤ I ≤ 1 − S}.
Vamos conseguir representar as curvas
T
(S(t), I(t)) de soluções de (SIR) sem
S
calcular as soluções.
1
Análise do modelo (SIR)
Começamos por encontrar os pontos de equilı́brio (soluções
constantes).
Teorema
As soluções constantes de (SIR) no triângulo T são
(S(t), I(t)) = (S0 , 0) com 0 ≤ S0 ≤ 1.

Prova
(S(t), I(t)) é uma solução constante se e só se
Ṡ(t) = 0 e İ(t) = 0.
É imediato das equações que se I(t) ≡ 0 então Ṡ(t) = 0 e
İ(t) = 0, logo (S(t), I(t)) = (S0 , 0) são soluções constantes das
equações para qualquer valor de S0 .
Para ver que estas são as únicas soluções constantes:
Da equação Ṡ = −R0 IS = 0 concluı́mos que ou S = 0 ou I = 0.
Se S = 0 então İ = −I = 0 ⇒ I = 0, logo S = I = 0.
Se I = 0 então İ = 0 (R0 S − 1) = 0 para qualquer valor de S.
Interpretação do teorema

Podemos tirar as seguintes conclusões sobre o modelo (SIR):


I O modelo prevê que se ninguém estiver infectado, ninguém
será contaminado (ainda bem que prevê isso).
I Também prevê que a única maneira de não haver novos
infectados é que ninguém esteja infectado.
Análise do modelo (SIR)
Há uma situação especial que vamos analisar separadamente, que é
o que acontece quando não há suceptı́veis:
Teorema
Dado I0 ∈ [0, 1], a solução de (SIR) que satisfaz a condição inicial
(S(0), I(0)) = (0, I0 ) é (S(t), I(t)) = (0, I0 e−t ).

Prova
Basta substituir a solução nas equações (SIR).

Interpretação do teorema
Se não houver suceptı́veis, a proporção de 1
I

infectados na população tende para zero.


Todos os infectados passam para a classe
dos resistentes, ao fim de muito tempo. T

Até aqui temos o diagrama de fase parcial S

da figura ao lado. 1
Análise do modelo (SIR)

Este modelo tem uma propriedade em comum com os sistemas


conservativos: existe uma função f (S, I) cujas curvas de nı́vel
contém as soluções (S(t), I(t)). Para isto vamos reduzir um
pouquinho o espaço de fase, que passa a ser
T0 = {(S, I) 0 < S ≤ 1 0 ≤ I ≤ 1 − S}.
Teorema
1
Seja f : T0 −→ R dada por f (S, I) = S + I − ln S.
R0
Se (S(t), I(t)) for uma solução de (SIR) que satisfaça a condição
inicial (S(t0 ), I(t0 )) = (S0 , I0 ) ∈ T0 ,
então g (t) = f (S(t), I(t)) é constante.
Prova do Teorema

dg
A função g (t) é constante se e só se (t) ≡ 0.
dt
Pela regra da derivada da função composta, temos
dg ∂f dS ∂f dI
(t) = (S(t), I(t)) (t) + (S(t), I(t)) (t)
dt ∂S dt ∂I dt
∂f 1 ∂f
onde (S, I) = 1 − e (S, I) = 1.
∂S R0 S ∂I
Substituindo os valores das derivadas de S(t) e I(t) dados na
equação (SIR) fica:
 
dg 1
(t) = 1 − (−R0 I(t)S(t)) + I(t) (R0 S(t) − 1) ≡ 0
dt R0 S(t)

provando o teorema.
Consequências do teorema

Se (S(t), I(t)) for uma solução de (SIR) que satisfaça a condição


inicial (S(t0 ), I(t0 )) = (S0 , I0 ) ∈ T0 ,
então a curva (S(t), I(t)) está contida no conjunto:
{(S, I) ∈ T0 : f (S, I) = f (S0 , I0 )}.

Usando
 a expressão de f (S, I), o conjunto
 é:
1
(S, I) ∈ T0 : S + I − ln S = C1 com C1 = f (S0 , I0 ).
R0

Ainda melhor, a curva está contida no gráfico I = ϕ(S) + C1 com

1
ϕ(S) = ln S − S
R0
O que resta fazer agora é analisar o gráfico de ϕ(S)..
Exercı́cio

1
Verifique que a função ϕ : R+ −→ R ϕ(S) = ln S − S tem as
R0
seguintes propriedades:
Gráfco de ϕ(S)
I lim ϕ(S) = −∞
S→0
I O único ponto crı́tico de
ϕ(S) é S = 1/R0 , que é
um máximo global de ϕ 1/R 0

I lim ϕ(S) = −∞.


S→+∞
O que sabemos até aqui

Comportamento
Curvas de nı́vel de f (S, I)
para S = 0 e para I = 0: I
I
1

S 1/R 0 S
1

As curvas de nı́vel de f (S, I) cruzam o eixo S em pontos de


equilı́brio.
O resto da intersecção de cada curva com o triângulo T é uma
curva de fase.
Mais conclusões sobre o modelo (SIR)

Se (S(t), I(t)) for uma solução de (SIR) que satisfaça a condição


inicial (S(t0 ), I(t0 )) = (S0 , I0 ) ∈ T com S0 > 0 e I0 > 0 então:
I S(t) > 0 e I(t) > 0 para todo t ≥ t0 ;
I S(t) decresce com t;
I limt→∞ (S(t), I(t)) = (S∗ , 0) onde ϕ(S∗ ) = ϕ(S0 ) − I0 .

Porque?
Como chegamos a estas conclusões

Como S0 > 0 e I0 > 0, então S(t) > 0 e I(t) > 0 para todo
t ≥ t0 , porque para uma das funções mudar de sinal teria que ser
igual a zero para algum valor de t o que entraria em contradição
com a unicidade das soluções.
dS
Como S(t) > 0 e I(t) > 0, então dt = −R0 S(t)I(t) < 0, logo
S(t) é decrescente.
Os pontos (S(t), I(t)) estão sobre a curva de nı́vel de f (S, I) que
contém o ponto (S0 , I0 ). Como S(t) decresce, a curva de nı́vel é
percorrida para a esquerda e a solução se aproxima do ponto
(S∗ , 0) onde a curva de nı́vel cruza o eixo S. Este ponto também
está contido na mesma curva de nı́vel.
A curva de nı́vel é f (S, I) = f (S0 , I0 ), logo f (S∗ , 0) = f (S0 , I0 ).
Como f (S, I) = I − ϕ(S), então temos 0 − ϕ(S∗ ) = I0 − ϕ(S0 ).
Previsões do modelo (SIR)

I o número de suceptı́veis sempre diminui.


I a infecção desaparece sem que todos tenham sido infectados
(imunidade de grupo ou de bando).
Análise do modelo (SIR) com R0 < 1
I
1

Neste caso nenhuma das cur-


vas I = ϕ(S) + C1 atinge seu

S+
I=
1
máximo dentro do triângulo T ,
porque 1/R0 > 1.
S

1 1/R 0

Teorema
No modelo (SIR) com R0 < 1 os pontos de equilı́brio (S∗ , 0) são
atratores. Se (S(t), I(t)) for uma solução de (SIR) que satisfaça a
condição inicial (S(t0 ), I(t0 )) = (S0 , I0 ) ∈ T com S0 > 0 e I0 > 0
então:
(S(t), I(t)) ∈ T para todo t ≥ t0 ;
S(t) e I(t) decrescem com t;
limt→∞ (S(t), I(t)) = (S∗ , 0) onde ϕ(S∗ ) = ϕ(S0 ) − I0 .
Prova do teorema
Quase todas as afirmações do teorema já estavam provadas.
Como nenhuma das curvas I = ϕ(S) + C1 atinge seu máximo
dentro do triângulo T , e como já vimos que S(t) decresce com t,
então os pontos (S(t), I(t)) se deslocam para a esquerda sobre a
curva, e por isso I(t) decresce com t - veja a figura - e nunca
saem do triângulo T .

I
1

S+
I=
1

1 1/R 0
Previsões do modelo (SIR) se R0 < 1

I o número de suceptı́veis e de infectados sempre diminui.


I o número de resistentes sempre aumenta.
I se inicialmente houver suceptı́veis, a infecção desaparece sem
que todos tenham sido infectados (imunidade de grupo ou de
bando).
Análise do modelo (SIR) com R0 > 1
1 I

Neste caso algumas das curvas


S+
I = ϕ(S) + C1 atingem seu I=
1

máximo dentro do triângulo T ,


porque 1/R0 < 1.
S

1/R 0 1

Teorema
Se R0 > 1 e se (S(t), I(t)) for uma solução de (SIR) que satisfaça
a condição inicial (S(t0 ), I(t0 )) = (S0 , I0 ) ∈ T com S0 > 0 e
I0 > 0 então:
(S(t), I(t)) ∈ T para todo t ≥ t0 ;
S(t) decresce com t;
se S0 ≤ 1/R0 então I(t) decresce com t;
se S0 > 1/R0 então I(t) inicialmente cresce com t, atinge um
máximo e depois decresce;
limt→∞ (S(t), I(t)) = (S∗ , 0) onde ϕ(S∗ ) = ϕ(S0 ) − I0 .
Prova do teorema
Quase todas as afirmações do teorema já estavam provadas, só
falta verificar o que acontece a I(t).
Como já vimos que S(t) decresce com t, então os pontos
(S(t), I(t)) se deslocam para a esquerda sobre a curva
se S0 ≤ 1/R0 então I(t) decresce com t;
se S0 > 1/R0 então I(t) inicialmente cresce com t, atinge um
máximo e depois decresce
1 I

S+
I=
1

1/R 0 1
Previsões do modelo (SIR) se R0 > 1

I O número de suceptı́veis sempre diminui.


I O número de resistentes sempre aumenta.
I Se inicialmente houver menos de 1/R0 suceptı́veis, o número
de infectados diminui sempre.
I Se inicialmente houver mais de 1/R0 suceptı́veis, o número de
infectados aumenta e depois diminui (epidemia).
I Se inicialmente hover suceptı́veis, a infecção sempre
desaparece sem que todos tenham sido infectados (imunidade
de grupo ou de bando).
I Para evitar uma epidemia é preciso que, no mı́nimo, uma
fração 1 − 1/R0 esteja imunizada.
β
Exemplos de estimativas de R0 = γ
Sarampo 12 a 18
Tosse convulsa 12 a 17
Difteria (crupe) 6 a 7
Varı́ola 5 a 7
Poliomielite 5 a 7
Rubéola 5 a 7
Papeira 4 a 7
SIDA 2 a 5
Dengue 2 a 3
Gripe 2 a 3
Ebola 1.5 a 2.5

A Varı́ola foi erradicada por um programa mundial de vacinação.

Na próxima aula veremos como usar o modelo (SIR) para entender


os mecanismos de controle de epidemias e evitar surtos de doenças
contagiosas conferentes de imunidade.

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