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O VESTIDO DA

PRINCESA
Virgínia Allan

Ilustrações de Jean Okada


Era uma vez, em tempos que lá se
vão, uma velha mãe viúva e suas três
filhas.
Para garantir o seu sustento e o de
sua pequena família, a velha senhora
trabalhava como costureira, ofício este
herdado de sua mãe, que, por sua vez o
herdara da mãe de sua mãe.
Mas, além de coser, a velha senhora
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também sabia fiar e bordar com extrema
perfeição e durante anos a fio trabalhou
duro, conseguindo, enfim, depois de um
longo tempo, desfrutar de um certo
conforto e uma sólida reputação que,
felizmente, ultrapassava os limites da
aldeia em que vivia, chegando, inclusive,
aos ouvidos da linda filha do rei.
Um dia, parou à sua porta uma bela
carruagem, toda ornamentada com fitas
coloridas e penduricalhos dourados,
puxada por dois garbosos cavalos,
guiados por um elegante cocheiro, de
onde saltou um pajem que trazia consigo
uma mensagem da princesa para a velha
costureira: “Eu vos saúdo senhora, em
nome da princesa Anna, a filha do rei
que, muito delicadamente, pede-lhe que
me acompanhe até o palácio, pois é de
seu desejo conferir sua fama de hábil

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costureira e fina bordadeira”.
Ao ouvirem isso, é claro que as três
filhas da costureira queriam ir também
junto com mãe, porém, a velha senhora
as proibiu terminantemente de a
acompanhar.
“Minhas filhas”, disse ela, “preciso
que vocês fiquem em casa para que
aqueles que vierem me procurar não se
vejam privados de meus serviços. Eu
ensinei-lhes o ofício, portanto estão bem
preparadas para ocupar o meu lugar em
caso de alguma necessidade. Tratem bem

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nossos vizinhos; tratem bem nossos
fregueses, e lembrem-se... o coração e a
atenção devem estar presentes em tudo
o que forem fazer. Logo voltarei e conto
encontrá-las em boa disposição”.
Assim a mãe beijou as filhas e partiu
em companhia do pajem ao encontro da
princesa.
Lá fora, o povo, admirado, reuniu-se
em volta da rica carruagem, cujas
insígnias reais resplandeciam ao sol,
esperando, impaciente, pelas novidades
que, certamente, sairiam da casa da
costureira. Porém, o espanto foi ainda
maior quando viu a frágil costureira da
aldeia levando nas mãos apenas a sua
caixinha de costura, sair de casa e subir,
amparada pelo pajem, na vistosa
carruagem e partir em direção ao palácio
real.

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Quando a princesa e a velha
senhora se encontraram, fizeram-se
muito amigas, apesar da grande di-
ferença de idade que havia entre elas,
mas os sentimentos ignoram esses
detalhes e fato é, que as duas mulheres
se quiseram feito mãe e filha.
A princesa era uma jovem bastante
sábia e encontrou na costureira a fiel
confidente de suas horas solitárias, e
então, no calor nascente dessa amizade,
pediu que esta permanecesse em sua
companhia por mais algum tempo.
Ao retornar para a casa, na aldeia, a
costureira estava muito feliz e trouxe
para suas meninas, preciosos presentes
dados pela princesa; presentes estes que
as jovens, correram, ávidas, a receber.
Porém, que decepção sentiu a velha e
boa se-nhora, ao encontrar as filhas do
mes-mo modo que as havia deixado. As
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três meninas, eram, na verdade, muito
preguiçosas e briguentas (brigavam com
os vizinhos; com os empregados, enfim,
brigavam com todo mundo e até mesmo
entre si) e isto deixava a velha senhora,
por demais preocupada. Afora o
transtorno de encontrar a sua casa
coberta de musgo, com todo o trabalho
doméstico ainda por fazer. As entregas
também estavam atrasadas e a pobre
costureira, de todos os lados, só ouvia
reclamações.
Suas filhas não tinham amigos;

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muito menos, pretendentes. Feias não
eram, mas afugentavam qualquer um
devido ao mau gênio. Que seria delas,
pensava a costureira, quando ela lhes
viesse a faltar? Precisava achar, o quanto
antes, uma solução... as jovens
precisavam desenvolver a paciência,
deixando de lado, confusões e
ansiedades, para que desse modo,
pudessem compreender então a vida e os
seus destinos... Mas, o que ela poderia
fazer? E além de tudo, será que daria
tempo?
A pobre mulher pensou e pensou,
mas, a morte, sempre impiedosa, a
rondava já há algum tempo. Então, certa
noite, foi dormir e não mais acordou.
Suas filhas ficaram completamente
perdidas e não achavam mais consolo na
vida que levavam.
Após o enterro, feito às pressas, as
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moças voltaram para casa e acharam no
pequeno ateliê, em cima da mesa de
costura uma breve carta, com os
seguintes dizeres: “Queridas filhas, nesta
casa existe um tesouro; se conseguirem
encontrá-lo, ele proverá seu sustento até
o fim de seus dias. Não direi onde está.
A busca competirá a vocês. Procurem-no
com cuidado e não se esqueçam de sua
mãe, que muito as amou”.
As jovens, rapidamente, largaram a
carta e correram a procurar o tal
tesouro. Reviraram a casa de cima a
baixo, porém, encontraram somente
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umas poucas jóias e alguns objetos, tais
como uma tesoura e agulhas de ouro,
que foram imediatamente vendidos.
O dinheiro logo se foi, pois é como
dizem, que “aquilo que vem fácil, mais
fácil se vai”, e assim, com o dinheiro, se
foram os empregados e o parco sustento
da casa, e, outra vez, as moças tornaram
a se preocupar. Todo dia se levantavam e
não pensavam em outra coisa, a não ser
encontrar o bendito tesouro.
Contudo, apesar da antipatia e da
péssima fama que as jovens, sem muito
esforço, haviam granjeado para si,
sempre havia um freguês à sua porta,
desejoso de uma roupa nova ou de um
bordado perfeito, mas as moças,
empenhadas em outra causa, apenas iam
acumulando os serviços de costura e os
afazeres domésticos. No fim do dia,
exaustas pela busca infrutífera, não
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desejavam outra coisa que não fosse
apenas deitar e adormecer e sonhar com
o tão desejado tesouro.

Um dia, entretanto, cansadas de


tanto procurar e nada encontrar as
jovens resolveram exercer o oficio
ensinado por sua mãe, já que o tal
tesouro, provavelmente, não existiria
mais, pois a velha senhora, generosa
como era, talvez o tivesse
“desperdiçado”, dando de comer e de
vestir aos mais necessitados. Todavia,

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mesmo cientes de sua precária situação,
como eram desajeitadas e faziam o
serviço sem cuidado e atenção, as
reclamações não demoraram a se ouvir,
fosse por um botão solto ou um bordado
mal acabado, ou, ainda, uma costura
arrebentada. Em pouco tempo, os
fregueses desapareceram. A casa da boa
costureira, logo se cobriu de heras e o
seu jardim, outrora tão carinhosamente
zelado, foi tomado pelo mato e pelas
ervas ruins. Mesmo o sol e a chuva
deixaram de por lá aparecer e o
esquecimento se abateu sobre aquela
casa. Só a lua, penalizada com a situação
em que se encontravam as três meninas,
vez ou outra, ia lá e espiava pelas frestas,
enfiando por elas, um ou dois raios
prateados para não deixá-las na mais
completa escuridão. Estavam solitárias,
amargas; magras e abatidas, e nenhum
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rapaz as desejava como esposas. E em
toda a aldeia, ninguém fazia a menor
questão de visitá-las ou sequer de recebê-
las em casa fosse para um dedo de prosa
ou para apreciar uma deliciosa e quente
xícara de chá.
As moças já não sabiam o que fazer
e constantemente entravam numa
discussão que nunca tinha fim.
Cogitavam entre si coisas impossíveis,
tais como pedir auxílio à princesa que
tão bem se dera com sua mãe. Talvez ela
lhes pudesse arranjar um bom casamento
com um nobre do reino; um duque ou
um conde, assim, poderiam viver à larga
para o resto da vida usufruindo, do bom
e do melhor, sem ter que se preocupar
em ganhar o pão de cada dia. Aliás, pão
este que andava escasso; quase não o
tinham mais sobre a mesa. A farinha
acabara e os poucos cobres também já se
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tinham ido. No mínimo, a princesa
poderia lhes dar um serviço; serviço não,
emprego e muito bem pago, como dama
de honra ou aia de seus filhos, posto
que, conforme os proclamas dos arautos,
que corriam aos quatro cantos, em breve
a princesa ia se casar.
Estavam as coisas nesse pé, quando,
numa tarde ensolarada, a própria
princesa Anna saltou da carruagem

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dourada, e seguida por suas aias e damas
de honras, passou rapidamente pelo
jardim sem flores, foi até a porta e
chamou: “Por ventura, haverá, aqui
nesta casa, alguém para me receber?”.
As jovens ficaram desconfiadas, pois
há muito que não recebiam uma visita.
Então, sem meias palavras, dis-se a mais
velha as outras duas irmãs: “Quem será
esta mal-educada que chega assim,
exigindo atenção?”
“Psiu... Não fales assim”. Disse a
irmã do meio. “Pelo visto é gente
educada e importante; senão não se
expressaria deste jeito. Talvez, uma
antiga freguesa de mamãe, que tenha
sabido de nossa precária situação, queira
nos ajudar”.
“Ora deixemos de falar e vamos à
porta, irmãs”, disse a mais nova e
“vejamos se tendes ou não razão?”.
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Abriram a porta que gemeu nos
gonzos, pois estava sem lubrificação, e
ficaram muito espantadas ao se
depararem com a linda e altiva princesa,
mas, embora sem graça, pelo estado de
pobreza e confusão em que se achavam,
fizeram uma reverência e a convidaram a
entrar.
A princesa Anna adentrou a casa
sem cerimônias e foi logo dizendo: “Sua
mãe era uma excelente pessoa e uma
maravilhosa costureira. Não havia nesta
aldeia e nem nas cercanias do reino,
melhor ou sequer, igual artesã. À ela
encomendei o vestido de meu casamento
e é por isso que aqui estou. Antes de
morrer, escreveu-me dizendo que o
vestido já estava pronto. Um vestido
especial; digno da mais exigente das
princesas, finamente bordado com fios
de ouro e prata e enfeitado por delicados
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botões de brancas pérolas.”.
“Com todo respeito... princesa;
perdoe-nos, mas, o que queres dizer?
Não sabemos de vestido algum feito para
vossa alteza, por mãos de nossa mãe”.
Disse, constrangida, a irmã do meio.
“Exijo o meu vestido e não aceito
desculpas”.
“Princesa”.... disse a irmã mais
nova, “já reviramos esta casa por inteiro
e nunca vimos nada sequer parecido.
Talvez vosso vestido já tenha sido
consumido pelas traças ou mesmo tido
outro destino”.
“Não quero saber. Exijo o vestido,
pois o mesmo me custou muito ouro dos
cofres reais. Se até as vésperas de meu
casamento, eu não o receber, estarão
vocês, jovens descuidadas, com os dias
contados”.
A princesa se retirou, subiu na
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carruagem e imediatamente partiu.
O povo outra vez se juntou para
saber o que estava acontecendo, mas a
resposta das moças aos curiosos foi
bater-lhes, violentamente, com a porta
no nariz.
Os aldeões se foram, especulando
entre si o que poderia ter acontecido
para que a própria princesa Anna viesse
ter à casa esquecida.
Com as vidas por um fio, ou melhor,
por vários fios, as moças tornaram a
revirar a casa, desta vez, a procura do tal
vestido e na pressa de encontrá-lo quase
destruíram o que ainda lhes restava, ou
seja o pequeno ateliê de costura.
Finalmente, exaustas, desistiram,
além do quê, a noite logo cairia e sem
luz, não poderiam mais procurar. Antes,
porém, que saíssem do ateliê, a moça
mais nova tropeçou em uma tábua mais
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frouxa que as outras e, ao cair, deparou-
se com a tampa de um alçapão,
escondida sob as longas franjas de um
antigo tapete; que elas, em sua ânsia,
esqueceram-se de o retirar. A esperança
piscou com sua luz verde e brilhante e as
irmãs, então, crentes de que
encontrariam lá embaixo o precioso
vestido juntamente com o tesouro
escondido, abriram o alçapão e desceram
alguns lances de escada, mas para o seu
crescente desespero, encontraram
somente agulhas; linhas de bordados e
de costuras; botões; tesouras e tudo o
mais que fosse necessário para a
confecção de qualquer tipo de costura.
De precioso mesmo, apenas vários tipos
de tecidos, de todas as cores, cada um
mais fino e rico que o outro. Então,
finalmente, caíram em si. Para elas só

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havia uma única solução; teriam, elas
mesmas que fazer o vestido; um vestido a
altura da mais bela e digna das princesas;
um vestido que fizesse honra a maestria
de sua mãe, a melhor artesã que já
houve em todo reino... mas, ai meu
Deus, onde encontrar fios de ouro e
prata e preci-osos, delicados e brancos
botões de pérola? Bem... Chorar, brigar
e se descabelar, não ia adiantar e
resolveram pensar nisto depois.
Começariam pelo princípio e sem mais
perda de tempo. Um passo depois do
outro; uma coisa de cada vez.
Na manhã seguinte, antes mesmo
do galo cantar e acordar o sol; as jovens
se levantaram e prepararam com o que
sobrara dos mantimentos, o café da
manhã. Depois do café, arrumaram a
casa e deram inicio aos trabalhos.
O povo da aldeia e os antigos
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fregueses, após a visita da princesa,
voltaram a procurá-las e isso foi bom,
pois não havia mais dinheiro e elas
precisavam comer.
No princípio, tiveram muitas
dificuldades, e levantar antes do galo
cantar era a maior de todas elas, posto
que sentiam muita preguiça e brigavam
por qualquer motivo. Mas com o tempo,
foram percebendo que isto em nada as
ajudava. Agora, mais pacientes, faziam o
possível e o impossível para entregarem
as encomendas em dia, sem nunca
esquecer da tarefa maior; que era coser e
bordar o vestido da princesa.
Passaram-se algumas semanas e
elas, na constante preocupação de
aprontarem o vestido a contento,
esqueceram-se do tesouro e dos planos
mirabolantes; tinham deixado de brigar e

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até de sentir preguiça. Ao contrário,
todas as manhãs, fizesse sol ou desabasse
a chuva, lá estavam elas, entretidas em
seu trabalho.
Mudaram-se as estações e aos
poucos, a vida das meninas foi mudando
também. A casa já não se encontrava
desarrumada, e o jardim voltou a
florescer. Dentre tantos fregueses,
apareceram também os pretendentes,
mas as jovens não podiam pensar nisso
agora. Estavam preocupadas demais,
uma vez que apesar dos seus esforços em
economizar uma parte do dinheiro que
ganhavam, jamais teriam o suficiente
para comprar fios de ouro e prata e
delicados e brancos botões de pérolas. O
vestido estava quase pronto e o dia do
casamento cada vez mais perto. O que
fariam?
A lua, que bem discretamente, ouvia
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aquelas conversas, resolveu ajudá-las.
Para isso, entregou alguns raios de luar a
aranha tecedeira; que para deixar os fios
mais resistentes e brilhantes, misturou-os
com os fios de sua própria teia. O
mesmo fez o sol, que, no começo não
confiou na mudança das moças, mas
vendo que elas trabalhavam a valer sobre
si mesmas, compadeceu-se e fez como a
lua; dando alguns de seus raios a aranha
para os tecer. A neve, branca e fria, caiu
e cobriu pedras pequeninas e roliças, tão
lindas e delicadas como as pérolas, e o
tempo, que tudo cura e tudo apaga, mas
que também ensina e fortalece, soprou
sobre elas o seu segredo de silêncio e
eternidade.
As vésperas do dia tão esperado,
quando as moças, tristes e desanimadas,
abriram a janela do ateliê, encontraram
os presentes ofertados pela lua e pelo
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sol; pela neve e pelo tempo. No mesmo
instante, um rouxinol cantou no jardim e
uma brisa perfumada encheu-as de
inspiração. Em poucas horas,
trabalhando com afinco, terminaram o
vestido.

No dia seguinte, não esperaram a


chegada da carruagem. Alugaram, elas
mesmas um modesto coche e, com suas
melhores roupas, costuradas com as
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linhas da certeza e bordadas com
sabedoria e encanto, rumaram, cheias de
júbilo, para o palácio.
Foram recebidas pela princesa, que
estranhamente não ficou surpreendida
com a visita, mas, sim radiantemente
feliz e mais ainda quando as moças lhe
apresentaram o vestido em toda a sua
beleza e perfeição. Então, a princesa
Anna, iluminada por um doce sorriso,
disse-lhes: “A beleza desse vestido leva-
me a concluir que vocês aprenderam três
coisas importantes: A primeira delas é
não querer antes da necessidade. A
segunda; não desejar nada mais além do
necessário e por fim, a terceira e última;
não desejar para si, coisas que, na
verdade, pertenceriam a outros”.
Dando um passo a frente das
demais, disse a irmã mais velha: “Sim,
princesa, aprendemos muitas coisas que
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nos ajudarão a seguir nosso caminho
corretamente. Graças a este
aprendizado, trouxemos-te o vestido
mais belo e precioso que se poderia
imaginar, pois é fruto do amor e da
extrema dedicação. Ele é feito de raios
de sol e de luar; precioso como a pérola,
suave e branco como a neve e mágico
como o tempo. Em nossa cobiça, quase
nos perdemos de nós mesmas. A nossa
debilidade e ignorância é que nos faziam

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agir assim. Felizmente, nossa velha e
sábia mãe não nos abandonou, e graças
a ela e vossa amizade devotada, após
uma árdua jornada, finalmente pudemos
compreender onde se encontrava o
verdadeiro tesouro”.

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