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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitora
Nilcéa Freire

Vice•reitor
Celso Pereira de Sá
Línguas Gerais
Política Lingüística e Catequese
na América do Sul no Período Colonial
/

edJ
uer1
Organizadores

José Ribamar Bessa Freire


e Maria Carlota Rosa
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Comelho Editorial
César Benjamin
Ferreira Gullar
Francisco Caruso Neto
Ivo Barbieri (Presidente)
José Augusto Messias
Luiz Bernardo Leite Araújo

Rio de Janeiro
""3
·.
Copyright @ 2003, dos autores
Sumário
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
A reprodução in1egral ou parcial do texto poderá ser feita mediante autorização da editora.
1
i
1 Apresentação ............................................................................................ 7
EdUERJ
'
o
Josl Ribamar Bessa Freire e Luiz C. Borges
Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO OE JANEIRO
'e
I Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã
CEP 20550-900 - Rio de Janeiro - RJ
Tel./Fax.: (21) 2587-7788 / 2587-7789
www.uerj.t,rleduerj
~
1. A Arte de· gramática da língua mais usada na costa do Brasil
e as línguas indígenas brasileiras ......................................................... li
eduerj@uerj.br Yonne Leite ·

Suptrvisílo Edirorial Dau Bastos 2. Fontes para a historiografia lingüística do Brasil quinhentista:
Cm1rde11ador de Publicações Renato Casimiro materiais de análise ..................................... ."....................................... 25
Coordenadora de PraduçlJa Rosania Rolins
Revisão Andrea Ribeiro, Marcelo Rodrigues e Shir\ey Lima Luciana Gimenes
Projeto Grdf/ço/Diagranuiçllo Oilvan F. Silva
Capa Heloisa Fortes
3. Elementos de política lingüística colonial hispânica: o Terceiro
Apoio Administrativo Maria Fátima de Mattos
Concílio Limense ................................................................................. 43
Consuelo Alfaro Lagorio

4. As línguas gerais sul-americanas e a empresa missionária:


linguagem e representação nos séculos XVI e XVII.......................... 57
Cristina Altman

5. Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia


(séculos XVII-XVIII).......................................................................... 85
CATALOGAÇÃO NA FONTE Maria Cdndida D. ·M. Barros ·
UERJ/REDE SIRIUSIPROTAT
C719 Colóquio sobre Uquu Gerai•: política lingilfstlca e caiequese
ao Am&íca do Sul no pería<I<> colonial(l. : 2000) 6. A língua gera1: revendo margens em sua deriva ................................. 113
1 Colóquio sobre Llnguas : polírica linzlllstica e catequese oa Lujz C. Borges
Am&íça do Sul no per(odo coloAial / Orgaoiiadores, Jlm Ribamar
Busa Freme Marill Carlota Rosa- - Rio do Jaoeiro : EdUERJ, 2003.
212p.
7. A língua mais geral do Brasil nos séculos XVI e XVII ...................... 133
ISBN SS-7511-036-5 Maria Carlota Rosa
1. Am&lca utiDa - História - Periodo colonial - Conpsoa. 2.
índiosda Amxrica do Sul - Upguu - COJlgreaos. 3. l.lngua tupi
8. Condições da mudança em nheengatu: pra8mática e
- Congrnsos. 1. Freire, JOII! Rlhamar 8aSL li. R<lSa. Maria Carlota.
m. ntu10. contatos lingüísticos ............................................................................. 147
CDU 111.87(063) Roland Schmidt-Riese

\
9. Mudança sintática e pragmática na Língua Geral Amazônica (LGA):
marcação de caso e sistema pronominal............................................. 167
Apresentação
Uli Reich
José Ribamar Bessa Freire
tO.OtupidoséculoXVIIl(tupi-médio) ................................................... 185 Luiz C. Borges
Ruth Maria Fonini Monse"at

11. Língua Geral Amazônica: a história de um esquecimento ................. . 195 1


i
José Ribamar Bessa Freire
'• Os trabalhos reunidos neste volume foram, originariamente, apresen-
tados na forma de comunicação no I Colóquio sobre Línguas Ger~s: Política
Lingüística e Catequese na América do Sul no Peóodo Colonial, realizado no
período de 29 a 30 de agosto de 2000. O evento foi uma atividade do Grupo
de Trabalho de Historiografia da Lin~ística Brasileira, da Associação Na-
cionaJ de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL).
Duas universidades públicas reuniraJll-se para organizá-lo: a Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por meio de seu Programa de Estudos dos
Povos Indígenas e da Coordenação de Pós-Graduação em Letras, e a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por seu Departamento de
Lingüística e Filologia e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística.
Os estudos sobre as línguas gerais ainda ocupam um espaço peque-
no de reflexão, como se pode observar pela escassa produção acadêmica
existente, incompatível com a relevância do tema, sobretudo se considerar-
mos que a compreensão histórica e lingüística dessas línguas pode constituir
uma chave para obter informações sobre nossas sociedades e compreender
o processo, ainda obscuro, de hegemonia das línguas européias em nosso
continente.
O colóquio teve por objetivo possibilitar o encontro de pesquisadores
de várias nacionaJidades e procedências que trabalham sobre a questão, para
articularem dados históricos e princípios lingüísticos capazes de dar inteligibilidade
às políticas de difusão de algumas línguas ameríndias, identificadas pelos co-
lonizadores como "línguas gerais", em face ~ extensão e posição de seus
falantes, bem como pelas funções que elas desempenham.
Os trabalhos discutidos durante o encontro procedem de horizonte
acadêmico diverso: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal
do Pará, Centro de Documentação Histórica de São Paulo, Museu Paraense
Emílio Goeldi, Museu de Astronomia e Universidade de Munique, o que pode
dar uma idéia das dimensões do interesse, em âmbito nacional e intema-
ciona], que o tema desperta.
.,,,,._ 9

Os artigos contribuem para expor o problema e dar conta da situação


em que se encontram os estudos realizados, ou em processo de elaboração, Podemos acompanhar, com alguma comprovação documental, a pas-
em alguns centros de pesquisa e universidades. A discussão principa] se sagem da língua indígena à língua geral, ou a sua expansão territorial e
ancora no campo da política lingüística e missionária na América Latina do étnica, à medida que essa nova língua vai adquirindo falantes e se fixando
quer em aldeias indígenas, quer em aldeamentos e povoamentos. Também
período colonial, considerando que esta representa uma força de ordenamento ! podemos, razoavelmente, acompanhar o vaivém das medidas do governo
sociaJ e instrumento de poder, e, nesse sentido, a catequese opera como
agente principal em decisões tomadas pelo Estado e em fonnulações de pla- português e da Igreja que visavam nonnatizar o uso e a abrangência dessa
nejamento de lfuguas: artes, dicionários, alfabeto e ortografia, entre outros. língua na colônia. No que tange especificamente à Amazônia, onde o uso da
Os trabalhos examinam questões relativas à política lingüística e língua geral era predominante na população em geral, além de língua mater-
missionária na América Latina e as bases de formação das línguas gerais, 1 na - e muitas vezes a única - da grande maioria dos falantes, as evidências
assim como centram o foco em uma delas, falada na Região Norte do Brasil:
a Língua Geral Amazônica (LGA), que ficou conhecida como nheenga,tu.
1 de que dispomos nos levam a considerar que ela era a língua mais falada
até o período da cabanagem.
Quanto ao primeiro tópico, abre-se debate interessante sobre repre-
t Contudo, ainda nos sobram mais perguntas que respostas. As prin-
sentações e conceitos acionados nas descrições lingüísticas, destacando as 1 cipais indagações dizem respeito à própria estrutura e funcionamento
lingüístico dessa língua, suas variantes e áreas geográficas. Quem eram seus
qualidades do trabalho de José de Anchieta, assim como sua precisão e rigor
(Leite). As questões metodológicas dos instrumentos de pesquisa merecem falantes? Quais as relações entre a língua geral e o português? Afora uns
uma abordagem à parte (Gimenes), com uma reflexão acerca de elementos
de política lingüística hispânica/ibérica em relação às detenninações de pla-
1 poucos registros escritos em língua geral, ainda estamos por descobrir a
língua geral escrita por aqueles que a falavam e dispunham de uma fo~-
nejamento lingüístico e suas conseqüências na atividade de catequese na '''
;,
ção escolar. Mas principalmente, como ocorre seu desaparecimento da
América andina (Alfaro) e na América Latina em geral (Altman). memória brasileira, que se segue à cabanagem e à hegemonização do por-
A abordagem da chamada LGA ou nheengatu ocupa grande parte tuguês? Esse é um fenômeno para o qual nos voltamos com mais curiosi-
dos trabalhos, buscando analisar as linhas de política jesuítica a ela relacio- dade. Afinal, se nos lembrannos que a área lingüisticamente tupi mais dire-
nadas nos séculos XVI e XVII (Barros) e discutir algumas dimensões his- tamente relacionada à formação de línguas gerais estendia-se do· norte do
tóricas da política e suas conseqüências sociolingüísticas (Borges), bem como
' Paraná à fronteira .ocidental da Amazônia, ficamos nos perguntando pelas
representações sobre essa língua e atitudes das instâncias de decisão que lhe
fazem frente nos referidos séculos (Rosa). Numa perspectiva descritiva
diacrônica, há u~ trabaJho - com um debate teórico sobre línguas em con-
tato - que discute o caso da LGA (Schmidt-Riese); uma abordagem prag-
!
;
'!
razões que levaram a seu apagamento quase completo.
Essa situação aparece em toda sua complexidade e desafio quando
nos lembramos que a proibição de 1755, decretada pelo Marquês de Pombal,
não elimina a língua geral do uso cotidiano na Amazônia. Francisco Xavier
mática de dados lingüísticos da LGA sob o mesmo prisma (Reich); e o de Mendonça Furtado, então governador do Grão-Pará e irmão de Sebastião
registro de 1;1m corpus para estudar as mudanças no campo fonológico t José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pomba). escreve-lhe uma carta,
datada de 21.11.1751, na qual constata que a língua em uso por todo o
(Monserrat). Por último, há um estudo sobre a história externa da LGA, em

l
que se questionam as razões históricas que levaram ao apagamento e ao Estado era o nheengatu ou, em su11;5 palavras, ''uma gíria a que chamam
esquecimento do papel dessa língua na memória de seus falantes e descen- lí~gua geral". A situação diglóssica perdura. De tal modo que, em 1853, 0
dentes (Freire). bispo de Belém vê-se compelido a aprender o nheengatu e, em 1894 0
Os temas relacionados à língua geraJ constituem um campo de pes- primeiro bispo de Manaus ordena que os padres de sua diocese aprend:UO
quisas que pode ser explorado por diferentes linhas de investigação, da a (ainda) "língua da terra". A par disso, verificamos que a língua portuguesa
história à literatura comparada. Mesmo se considerarmos o conjunto docu- penetra e se fixa na Amazônia de modo mais abrangente no século XIX, no
mental já produzido sobre o assunto, desde o período colonial verificamos período pós-cabanagem, e por incentivo do ciclo da borracha, colocando-se
que pouco sabemos sobre esse típico fenômeno do processo de colonização. em um novo espaço enunciativo, interpondo-se entre as áreas de língua geral
e as de línguas indígenas.
to Lfrq.ias GeraiS

Nesse particular, temos de ir além da historiografia, da literatura ou


A Arte de gramática da língua
das ramáticas históricas, pois em grande parte desses .estu~os não h~ mais usada na costa do Brasil
g lí a geral Somos induzidos a pensar a h1stóna do Brasil
espaço para a ngu . í . d 1 t e as línguas indígenas brasileiras
· idade cultural e lingüística de pleno dom mo o e emen o
como uma contmu
português. . . · · · estões Yonne Leite·
Daí a importância de encontros mult1d1sc1plmares nos quais qu
· debatidas e esmiuçadas. A tarefa de encontrar os
dessa natureza se1am .
fatos e interpretá·los requer tempo e maturação. Mas requer, igua1mente, a
troca de informações e discussões abertas. . . . Como todos sabemos, o século XVI foi o da expansão territorial da
Os trabalhos aqui reunidos são um passo m1c1al. Esperamos qu: eles Europa, da conquista, da colonização e do domínio do chamado Novó Mun.
·, novas ·,nvestigações debates, contestações, complementaçoes e do. Época de deslumbramento nesse encontro com o "Outro" e também de
SUSCI em ' 'b í -
. amentos Entendemos que é desse modo que contn u mos nao ape· violências na submissão e no extermínio do mais fraco. Castelos e abadias
t
ques 10n • • Amé · do Sul
nas ara o debate franco a respeito das línguas gerais na nca , . ' se desmoronavam, os cavaleiros andantes e suas damas enclausuradas
mas ~ambém para estimular o avanço das investigações sobre a memona e desapareciam. Os desejos, as crenças, as convicções de um velho mundo se
a identidade brasileira. desvaneciam, para nunca mais voltar, afundados no grande abismo aberto
pela entrada em cena de novos céus, novas árvores, novos animais, novos
povos. As mudanças sociais e políticas que se operaram com o reconheci·
mento de outros mundos tiveram conseqüências diretas nos caminhos da
lingüística, que se tomaram mais numerosos e complexos.
Época de renascimento das letras e das artes, em que se decreta a
morte do "obscurantismo" medieval e se redimensiona o estudo do grego e
do latim. Os horizontes lingüísticos também se ampliaram com as análises do
hebraico e do árabe - línguas semíticas, cujas estruturas e categorias dife.
rem das existentes nas línguas indo-européias, em tomo das quais se havia
fixado a tradição descritiva gramatical. Em De rudimentis Hebraicis, J.
Reuchlin - um dos líderes do movimento renascentista alemão - chamou a
atenção para o sistema categorial radicaJmente diferente do hebraico, no
quaJ só são necessárias as classes de substantivo, verbo e partícula (as duas
primeiras declináveis e a última não.declinável). Apesar do reconhecimento
do que constitui a tradição gramaticaJ hebraica, Reuchlin procurou contem.
porizar a tradição greco-latina com a do hebraico, subdividindo o substantivo
em substantivo, pronome e particípio, e as partículas em advérbios, conjun·
ções e preposições. Os estudos do hebraico desenvolverarn·se sob a égide
da tradição árabe, devido à sua supremacia política. Os gramáticos árabes,
apesar de conhecedores da tradição greco-latina, suas rivaJidades e contro·
vérsias, criaram perspectivas lingüísticas próprias para a descrição de sua
língua, jamais lhe impondo o modelo ocidental.

• CNPq/Museu Nacional - UFRJ.


12 Yonnelelte 13

O horizonte lingüístico se ampliou não só com a convivência de Em primeiro lugar, esclareço que não sou especialista em tupinambá
tradições gramaticais diferentes, mas com o estudo sistemático das línguas tampouco conheço in totum a obra do padre José de Anchieta. Portanto'.
vivas da Europa. Novas linhas de pensamento lingüístico surgiram, fazendo não posso fazer uma exegese - segundo os modelos da filologia clássica _
com que o estudo do latim e do grego passasse ao domínio de especialistas, ou uma leitura ecdótica de sua gramática, Posso apenas compará-la com 0
não sendo mais essas línguas as ó.nicas opções reconhecidas e válidas. que sei de línguas da família tupi-guarani, ainda faladas e já descritas, e
No final do século XVI - nesse contexto em que a diversidade já c~mparar alJl:leles fenômenos que considero tipologicamente cruciais para
havia encontrado seu lugar-, precisamente em 1595, surge a Arte de gra- sua caracterização, usando esses dados atuais com os que se podem
mdtica da língua mais usada na costa do Brasil, feita pelo padre José de depreender da gramática de Anchieta, para que se possa avaliar se houve
Anchieta, da Companhia de Jesus, impressa em Coimbra por Antonio de simplificação, distorção e se o suposto modelo latino invalidou a primeira
Mariz, mediante licença do Ordinário e do Prepósito Geral da Companhia de descrição d~ que hoje se cha~a tupinambá. Guia-me o pressuposto de que
Jesus em Coimbra. É o segundo documento sobre as lfuguas do Novo Mundo, uma gra~áuca é boa na medida em que o material que ela apresenta possa
sendo precedido apenas pela Gramática do quechua, datada de 1560. ser reanahsado, a fim de responder a algumas perguntas feitas em um outro
A gramática de Anchieta tem sido alvo de valorações diferenciadas e modelo teórico.
opostas. Para alguns estudiosos, e entre estes incluo o professor Carlos ~ssa forma, faz-se necessário delimitar o âmbito e o título que me
r
Drummond, na introdução à edição da Gramática (São Paulo, 1990, p. 8), foram atnbuídos no presente trabalho. Não se trata de pôr elTl foco A
gramá~ica de Anc~ieta e as línguas indígenas brasileiras, mas apenas a
representa a sistematização do legítimo tupi falado pelos grupos indígenas gramática de Anchieta e algumas línguas da família tupi-guarani descritas
do litoral brasileiro, nos primórdios da colonização, antes de se tornar a mais recentemente.
língua geral falada pelos colonizadores e seus descendentes. Anchieta, O primeiro contato que tive com a gramática de Anchieta me reme-
graças a seu magnífico trabalho de valor lingüístico e filológico indiscutível, teu imed_iatamente - pela sua composição um tanto ou quanto desorganizada
que é a gramática publicada cm tupi, realizou um dos princípios básicos da e pelo tipo de fenômenos tratados - à gramática de Fernão de Oliveira,
Companhia de JCSus, qual seja, a de que todos os missionários deviam sobre a qual não pairam dó.vidas acerca da excelência, e prontamente con-
aprender a língua da terra onde exerciam seu ministério, para empregá-la em quistou minha extrema simpatia: dela tem o sabor e o gosto. Foi um momen-
vez de sua própria língua to .de g:"°~e encantamento e memória, por me levar de volta aos bancos
umvers1tários, quando me deliciava com o estudo das primeiras gramáticas
Para outros, inclusive o professor Mattoso Camara Jr., Anchieta, ao do português, com a belíssima narrativa histórica de Fernão Lopes Creio
empregar o modelo latino, deturpou a verdadeira língua indígena, usando que não há estudioso do português, qualquer que seja a teoria que ad~te que
categorias para ela inexistentes, e, mais ainda. simplificou-~. Na avali~ão não encontre, em Fernão de Oliveira, material para confirmar ou infi~ar
da obra de Anchieta, há também o descrédito de seu propósito, qual seJa, o argumentações contra ou a favor de determinada posição, Daí se segue que
de ser apenas um livro didático, destinado a ensinar uma língua aos jesuítas, a gram~tica de Anchieta deve ser também calcada, ao menos em seu estilo
para que pudessem realizar, com mais eficácia, sua missão :at~uétic~ não e organização, ~a gramática latina, como o foram todas aquelas das línguas
sendo, pois, um trabalho meramente descritivo, com um obJettvo prático e, vernáculas surg1?85 àquela época. Acrescente-se a isso o fato de que Anchieta
portanto, não científico. era P ~ e .~ev1a conhecer bem o latim, suas descrições, seus gramáticos,
Neste artigo, não examinarei o mérito da última questão. Parece-me c~mo Qum.t1~ano e Varrão: Valho-me aqui das palavras, contidas na introdu-
que todas as gramáticas têm a finalidade de ensinar alguma coisa a algu~m r
çao à ed1çao da Gramática, de Edith Pimentel Pinto, professora e doutora
ou de mostrar a superioridade de determinado modelo sobre outro. HoJe, em língua portuguesa da USP, conhecedora da obra de Anchieta e que tem
elaboram-se gramáticas que possam atender a um público, a uma necessi- entre suas publicações, o estudo do "Auto da Ingratidão": '
dade - seja salvar a língua em risco de extinção, pelo "mau uso" dos
falantes da língua padrão arbitrada pela academia_, seja "ilu~· ~ púb~ico Anchieta não cita o mais seguido dos gramáticos latinos, Quintiliano, como
com uma visão teoricamente correta e verdadeira do fenomeno hngüísttco. o fazem os outros gramáticos do século, inclusive Fernão de Oliveira, 0
A Atte de gramMlca da /fngua mais usada na costa do Brasil... 15
14 Yonneleile
mo era profundo conhecedor de latim, que
. . iadº de1e.
Ivfas, co . .
perientes e era capaz de produzir hteratura permt·,·odo
1
depreender que

não se trata de fonemas diferentes, mas de
mais d1stanc enos ex • . · 0-,, livres ou alofômcas de um mesmo fonema. Já no caso da variação
vanaç
. os jflllãoS 111 aramatical que usa e mesmo a sua hnguagem entre estas consoantes e p, trata-se de uma variação morfofonêmica:
ensinava a ctatura o·
, ua a nomen senr<> do modelo latino. Já no plano da obra
nessa !ing ' forte pre r- . . . .
f co acusalll . de O ajustamento à nova realidade hngüfst1ca P. M, MB muitas vezes se usam uma por outra, desta maneira: as duas
de gram á I aténa. on . .
mento da 111 é aior. Nesse ponto, como Fernão de Ohve1ra, dicções principiadas por p, tornadas em sentido indeterminado, se pronun-
e no trata ento m
. oba o afasta111 . loi necessariamente, um inovador (p. to). ciam com m ou mb corno m6, mbó "mão". Se precede o detenninativo ou
se 1mpu , • p._ncb1eUl •
além de pioneiro, . complemento de posse, muda-se em p, corno Pedro pó "mão de Pedro", xe-
ão entre os traços característicos das
Ç
compara I t 1 . p6 ''minha mão"[ ... ] (p. 152).
Vejamos agora a mática de Anchieta. Comecemos ~ a ~no og1a:
• dados da gra trUturalista, as línguas da família tupi-guaram
5
línguas tuS p1 e ~o uma análise ades 1 os seguintes tipos de sistemas vocálicos: o inovador é que Anchieta usa também a noção d.e agramaticalidade
egun qu ro , . · · ao afirmar que "conforme a isso, nunca se pronuncia b em principio da
como mostra 0 .. cinco vogais orais e cmco nasais; cmco
po dem te r, ·s nasais, dicção sem sempre se lhe há de prepor, baê diz-se mbaê, porque se o
. ·,s e se• .
seis vogais ora gais onus. genitivo é precedente ou adjetivo não é sofrível pronunciar-se sem m, isto
vogais orais; e sete vo é, xebae, se não xembae" (p. 152).
fupinambá, Tapirapé Em suma, a variação permitida é entre m e mb, e não m e b.
Kamayurá, Guara1d,tiJIÜP Anchieta é extremamente cauteloso ao assinalar as variações quer geográ- ·
Urubu, parln

i 1 u í í ü
õ
1
e
• o
i t
ê õ
ficas, quer estruturais, como faz a sociolingüística moderna, conforme se
pode ver na prom1ncia das consoantes finais.

o ê a ã
e ã Há alguma diferença na pronunciação, e o uso das diversas partes do Brasil
a
será o melhor mestre. Porque desde os Potiguares do Paraíba do Norte até
GuaJajara os Tamoios do Rio de Janeiro, pronunciam inteiros os verbos acabados em
Asurlni
consoante, como a-páb "eu me acabo", a-sém "eu saio", a-pén "eu me
í i ü
quebro", a-iúr "eu venho", mas os Tupis de São Vicente, que são além dos
õ
i
e
i

a.
o • ã
Tamoios do Rio de Janeiro, nunca pronunciam a 11ltima consoante no verbo
afinnativo, como apá em vez de apáb, asé em vez de asém, ap'ê. em vez de
apén, aiú em vez de aiúr [... J (p. 149).
Quadro 1

a1 há três traços bem típicos das línguas tupi: Outra questão crucial na descrição fonológica das línguas tupi é o
Na fonologia gegmentst;rlor alto não-arredondado [i]; de canso.antes estatuto das vogais nasa1izadas. Em araweté, por exemplo, a oposição vogal
. tê .,·a de um fonema pai e de vogais nasais que não podem ser mter- oral versus vogal nasalizada não é fonológica, podendo a nasalização vocálica
a exts n., id e fJg asai 11 d
·zadas [nib, 1 • de voga1 oral mais travamento n
pré-nasalt ··Anc1a a1 . o ·as ser representada pela seqüência vogal oral mais travamento consonantal
retadas como a seque_ bem descritas por Anchieta. 1:'- vog postenor nasal. Pelo que nos diz Anchieta, essa solução não se aplica à língua mais
0
p terlsticas esta . mo "vogal que em muitos vocábulos se usada na costa do Brasil, pois "algumas partes da oração se acabam em til,
essas carac de.senta co fi
- ---'ondada anta. bem se lhe pode escrever g, no 1m o qual não é m nem n, ainda que na prom1ncia diferiam pouco, vt, ti, anupã,
alta nao-au= 111
a garg
ronuncia áspero eo mesmo i" (p. 152). . _ ruã" (p. 150).
p d a dicção no i·zadas _ ,nb nd, r,g - e suas vanaçoes com Na verdade, nas línguas em que a nasalização vocálica é fonêmica,
acaban o-se ré-nasll t • . .
oantes P .~,.. descritas de maneira muito consistente,
As co.s e '1 eswv em tapirapé e guarani, não é possível uma representação bifonemática das
. . Jes m. 11
as nasais s1mP
16 Yormel.ele AAste de gramática da lfngua maís usada na costa cio Brasil ... 17

vogais nasais, porque há o contraste entre voga1 ora1, voga1 nasal e vogal Essa possibilidade é atestada em tapirapé pela existênc·1 d . -
kw/ko: ekwe
"d · - a opos1çao
epo1s, açao em seu desenvolvimento, coisa chata deitada n0
ª
seguida de consoante nasa1, como em ape "caminho", ap'e "está torto" e
chão" versus ekue "ontem".
apen "quebrou-se".
Assim, para três áreas significativas da fonologia das línguas tupi, Não tratarei do acento porque o tema exige uma série de conside-
encontram-se na gramática de Anchieta dados significativos que permitem rações que conduza a um real entendimento da questão, o que, nos limites
classificar, tanto sincrónica quanto diacronicamente, a língua da costa, co- deste trabalho, não será possível fazer,
nhecida hoje como tupinambá. Por exemplo, na classificação genética feita : A simplicidade do sistema fonológico segmentai e dos padrões silá-
por Miriam Lemle, o tupinambá aparece na configuração arbórea como uma bicos (CV, CVC, VC, V) é compensada por uma produtiva e rica
língua do chamado grupo B, em que se mantém a nasa1ização das vogais morfofonêmica, da qual Anchieta também se ocupa, do mesmo modo minu-
cioso com que . tratou
,, da variação dia1eta1. Exemplificarei com apenas um
nasais, e o protofonema *py que, no grupo A, no qua1 se inclui o tapirapé,
caso de sând1, ut1hzando o exemplo das alterações que surgem com O acrés-
passou à africada palatal.
cimo dos morfemas de passado e futuro nos nomes.
As línguas da família tupi-guarani possuem sistemas fonológicos
A fim de ressaltar essa acuidade de Anchieta faz-se necessária
segmentais bastante simples. Por exemplo, o tapirapé tem cinco vogais orais,
uma interrupção. De maneira geral, nas línguas tupi-gu~ni. o tempo não é
cinco vogais nasais e treze fonemas consonantais. Os mais "exóticos" são
expresso .n~s verb~s. Há. um .morfema que significa ação a ser realizada,
a já referida vogal posterior alta não-arredondada e, nas consoantes, a oclusão
melhor dma, uma . mtenc1onalidade. A linha divisória não é temporal, mas
glotal. Não encontramos em Anchieta a descrição de um som que possa ser
as~ectua1, ~ a pnncipal diferenciação é a evidencialidade, isto é, se a ação
interpretado como oclusão glota1. Em tapirapé, a ocorrência de uma oclusão foi presenciada ou não pelo falante.
glotal é que faz a diferença entre "minha água" e "minha mãe", xe'y versus
Voltemos ao passado e ao futuro nos nomes. Transcrevo fragmento
xey, respectivamente. Verifiquei até certo ponto se, nas pa]avras que sabia do texto para mostrar não só o cuidado com as alternâncias de morfemas
apresentarem a oclusão glotal, havia algo correspondente em tupinambá que fonol~gicamente condicionadas, mas também o zelo e a propriedade de
permitisse a identificação desse som naquela língua. Nada encontrei. No especificar, dentro do horizonte da língua, o significado das formas.
entanto, é preciso que se diga que a oclusão glotal não é encontrada em
todas as línguas da família tupi e, quando ocorre, sua articulação é Iene, Em_ todo~ os ~ornes há passado e futuro: o passado se faz com a partícula
pouco perceptível para um ouvido que não seja muito bem treinado. Porém, puera, .uera, era; o futuro com rima, áma, uáma, como mbaé, puéra, "coisa
Anchieta assinala a existência de consoantes labializadas monofonemáticas, que foi, velha antiga"; mbaé ráma "coisa que será, futura". E daqui se
muito provavelmente em oposição às bifonemáticas. O cuidado demonstrado form~ ~~ ve~~ sem prefi~o verba], como i-puer "ele foi já ou passou já",
quando assina1a as palavras escritas com as seqüências oe ou ao, se são xe-puer eu fui , nde puer "tu foste", 1 puér tekó aíba "passou-se a
dissílabas ou trissílabas, é uma boa pista para se verificar o estatuto dessa m~dade': [... ]. Formam-se desta maneira: os que têm acento na última fazem
variação: ~uera, rama, como tobá "rosto", tobá puéra "o rosto que foi", tobá ráma
o ro:to que será"; os que têm acento na penúltima mudam a última vo ai
Oá, oé não são contratos, mas dissílabos, como: koéma "manhã" e moéma em uera, como óka "casa", okuera "casa que foi", e no futuro em uá g
ók' " ma
"''mentira" são trissílabas e outros que houver. O, quando é prefixo do verbo , ~ .,~ c_as8 Jue .~erá": se têm.! ~ última sílaba, mudam-no em g, como
ou recíproco, claro está que faz silaba por si só, como o-ár ''ele nasce", o- túba pai túguera o pru que foi , túguáma "o pai que será"; se têm O ou
ára "o que nasce". r ac~centam no futuro ma somente, como ména ''marido" (menáma) "o
Uá, ué em algumas palavras são dissílabos, como apuã "ponta", alrué "esse, mando que será"; Jára "senhor'', járáma "o senhor que será"[ ...]. Esses
aquele", unguá ''almofariz" (trissílabas). Tumbém alguns que se pronunciam futuros , ,significados de o que há de ser, o que havi aser.araa
. . têm de p
dissílabos é porque se muda k em ng, como abaixo se verá, e assim como pnmeua
. c aro: xe jaráma "meu senhor que há do ••"' p
_,,· . ara a segunda
tendo k são dissílabos, assim como ng, como: mikuába se muda em ainda
. que se fale de coisas passadas ' não tem re,=,··· ,, -
..-- '"" nao ao tempo que ·
haviam de ser e não ao presente ou ..-- n<1<>sado • como·· •• ,.
...., 0 n...,m p-• -
=ro nao
minguába "conhecido" (quadrissílabo) (p. 151).
era meu senhor e fez alguma coisa, não digo eu hoje Pedro meu senhor fez sistema morfossintático ativo em tupinambá estão em sua gramática. No
isto, mas digo: Pedro, meu senhor que havia de ser, porque quando fez, não quadro abaixo, comparam-se os dados do tapirapé com os da gramática,
era meu senhor: Pedro :xejaráma (... ] (p. 160). primeiro quando o objeto é de 3• pessoa e, em seguida, quando o sujeito o
é. Observe-se que apenas um argumento é marcado no verbo: sujeito ou
Na citação acima, mostra-se o cuidado de especificar com ponne- objeto. A escolha é regida por uma hierarquia de referência de pessoa, em
nores as alterações dos morfemas que se combinam, cuidado esse que se que 1>2>3. Assim, se o sujeito é de i- pessoa, usa-se a fonna de sujeito de
tomou bem pouco comum nos trabalhos estruturalistas. Outra informação )ª'pessoa; se o sujeito é de 3• e o objeto, de t• ou 2" pessoa, usa-se a fonna
altamente importante aí contida é a de que qualquer classe de palavra pode específica do objeto.
tomar-se um verbo ou vice-versa. É o que ocorre com as "partículas"
indicadoras de passado ou futuro nos nomes, que podem também ser inde- Marcadores de pessoa tapirapé/ tupinambá
pendentes e funcionar como verbos. Aí, tem-se um exemplo bem.patente da Sujeito transJ lntrans. Objeto Sujeito verbo estado
maleabilidade das chamadas classes de palavras. Essa característica das 1" sg, ã/ a xe / xe xe / xe
línguas tupi-guarani é tão marcante que Márcia Dámaso Vieira, em sua tese 2" sg. ere / ere ne / nde ne / ndé
de doutorado (onde trata da sintaxe do asurini do Trocará), 1 propõe que, nas 1• pi. lncl. xi / áõa xane / jandé xane / jandé
línguas tupi-guarani, o léxico seria neutro em tennos das c~tegorias grama- 1• pi. excl. ara / oro are / ore are / oré
ticais a classe de palavra sendo atribuída quando de sua mserção na con- r~ ~,~ ~,~ ~,~
figur~ção sintática. Mais uma vez se autentica em Anchieta a capacidade 3"pl. a/o 0/s,i 1/s,i,t
de observação isenta do viés ocidental. . Quadro 2
Se O verbo não apresenta uma flexão temporal significativa, o siste-
ma de marcas pessoais é extremamente complexo. Segundo uma taxinomia
morfossintática, as línguas tupi, quanto ao sistema referencial de pessoa, são Quando a relação transitiva é entre sujeito de 1• ou 2ª pessoa agindo
do tipo ativo, isto é, o sujeito dos verbos de estado - a que Anchieta chama sobre uma não-terceira pessoa, outras marcas referenciais são usadas. Assim,
de neutro - tem a mesma forma do objeto dos verbos transitivos (e dos se o sujeito é de 1• do singular e o objeto é de 2• do singular, tem-se ara
possessivos), sendo diferente da dos verbos transitiv?s e do~ i~transitivos em tapirapé e oro em tupinambá; se o objeto é de 2• do plural, tem:se ãpa
ativos, estas duas iguais (vide quadro 2). As línguas attvas se d1stmguem ?~s em tapirapé e opo em tupinambá.
nominativas/acusativas e das ergativas. Nas nominativas/acusativas, o SUJet- Anchieta também assinala a função expressiva dos pronomes livres
to dos verbos de estado, intransitivos e transitivos, tem a mesma marca,. que que se podem antepor aos verbos, ao dizer que "as segundas formas de
vem expressa no ~aso nominativo, enquant? se sin~lariza o o.bjeto. direto alguns ixé, endé, jepé, apê servem de sujeitos, reforçativos em todos os
expresso no caso acusativo. As línguas do tipo ergat1vo/ab~olut1vo .s~ngula- tempos que têm prefixos como ixé a-s6 'eu vou', endé ere-só 'você vai',
rizam o agente dos verbos transitivos com uma forma especial, o su1e1to dos pê pe-só 'vós ides': são reforçativas" (p. 162). A série de marcas de sujeito
intransitivos - quer ativos, quer de estado - e o objeto direto, com uma dos verbos de estado é também usada como possessivo.
marca que os agrupa numa mesma categoria. Repare-se que, numa língua do tipo ativo em geral, cada forma
Anchieta não expõe o sistema de referência pessoal com essa ter- verbal por si já indica todas as relações pessoais envolvidas na ação: xe-
minologia, pois a proposta de um tipo ativo autônomo foi feita por G.A. nop'e, se já indica que é um sujeito de 3" agindo sobre um objeto de t•;
Klimov (lingüista russo da segunda metade do século XX) e é pouco conhe- ãnop"é, por sua vez, aponta que se trata de um sujeito de i- agindo sobre
cida pelos lingüistas ocidentais. Porém, todos os dados para depreender um um objeto de 3ª. Uma conseqüência desse tipo de marcação é que a ordem
sintagmática não tem função gramatical, como em português, mas apenas
O problema da conjiguracionalidade na lingua asurini: uma conseqliincia da projeç/Jo pragmática. A ordem dos sintagmas pode ser livre e exercer funções
dos argumentos do predicado verbal. Campinas: Unicamp, Instituto de Estudos da discursivas, como, por exemplo, indicar informação nova, o protagonista,
Linguagem, 1993 (polio). marcar o elemento enfático etc. Em várias línguas tupi-guarani, isso acon-
tece. E tudo indica que também ocorre na língua da costa, como se pode ver sujeito e objeto pronominal: "Je l'ai lavée et je !'ai donnée à Marie". A
nas informações que nos dá implicitamente Anchieta: resposta sem esses pronomes é agramatical: "*ai lavée et ai donnée à
Marie".
Sendo a 3• pessoa nominativo e acusativo, ainda que possa haver alguma As línguas tupi diferem do francês e se assemelham ao português.
anfibologia, contudo, pela matéria que se trata, comumente fica claro, como Porém, dele diferem por terem uma ordem livre e o processo de incorpo·
de coisa animada com inanimada, ou de maior qualidade com menor; assim ração nominal, pelo qual o objeto de um verbo é incluído em sua raiz.
Pedro come pão, bebe, planta, derruba árvores etc; está claro que Pedro há Abaixo, há alguns exemplos do tapirapé, para facilitar o entendimento desse
de ser nominativo, de qualquer maneira que se ponha, como Pedro o-ú processo.
miapé "Pedro come pão", Pedro miapé o-ó, mlapé Pedro o-ó, o-ú Pedro
miapé; e por aqui se entende o mais: Pedro pirá o-ú "Pedro come peixe"; ã- ma- pen we-pa
Pedro jaguára o-juká "Pedro matou a onça". Quando há igualdade, então l ªsg.-caus.-quebrar r
refl. mão
é a dúvida, como "Pedro matou a João", Pedro João o-juká, porque ambos ã-xe-pa-ma-pen
podem ser nominativo e acusativo (p. 189). lªsg.-refl.-mão-caus.-quebrar

Neste texto, encontra-se o procedimento-alvo das maiores críticas a A existência de incorporação nominal - além da ordem sintagmática
Anchieta: o uso de casos morfológicos para expressar relações sintáticas. livre e da anáfora zero (apagamento dos sintagmas nominais) - torna uma
Ora, no modelo atualmente em voga e que constitui o paradigma que suce- língua não-configuracional candidata a pertencimento ao parâmetro da
deu o estruturalismo - a gramática gerativa-, usa-se a terminologia de caso, polissíntese.
mesmo que este não tenha uma expressão morfológica (caso abstrato), que, Para que uma língua possa ser considerada incorporativa, é preciso
juntamente com o papel temático, identifica os sintagmas oracionais. Dessa que as duas construções - a não-incorporada e a incorporada - sejam
forma, a crítica em termos atuais é infundada. Acrescente-se que, no sis- possíveis. E, para ser polissintética, no sentido que lhe é dado por Mark
tema de marcação pessoal, a expressão de caso é explícita, como em por- Baker,2, é preciso que o processo seja produtivo. Essa informação consta da
tuguês: eu "nominativo", me "acusativo", mim "dativo"; tapirapé: ie gramática de Anchieta. Como se pode inferir pelos exemplos dados, também
"nominativo", xe "acusativo", xe-we "dativo". a produtividade da construção está presente:
Voltemos à possibilidade de apagamento dos sintagmas nominais,
aliada à ordem livre sintagmática que se verifica em tupinambá e em várias [...] quando o objeto direto não é somente tocante a coisas humanas, mete-
línguas da família tupi-guarani. Esse tipo de constatação é importantíssimo se qua1quer nome (grifo nosso, YL) e ficam também indeterminados, como
nos dias atuais e muita atenção tem sido dada à análise dessas línguas, a-ú "eu como"; a•mbaé-ú "como coisas, alguma coisa"; a-pirá-ú "eu como
denominadas não-configuracionais, vez que se trata de determinar a nature- peixe"; a-i-lrutúk "eu o furo"; a-nambi-kutúk "eu furo orelhas"; a-t-esá-
za sintática desses elementos. Há uma possibilidade de análise: considerar kutúk "eu furo olhos de gente"; a-mbo-kutuk "e~ furo mão de gente"[... ]
os sintagmas nominais de sujeito e objeto um adjunto, as marcas pessoais (p. 205).
passando a ser os verdadeiros argumentos do verbo. Na teoria da regência
e vinculação, línguas desse tipo pertencem a um parâmetro diferenciado, A importância do processo advém do fato de que a existência desse
uma vez que a projeção dos sintagmas nominais é feita de modo diferente tipo de construção - aliada a outras características que daí decorrem - é a
do que ocorre em línguas como o português, francês, inglês etc. Atente-se postulação de um novo parâmetro, o da polissíntese. É evidente que Anchieta
também ao fato de que parametricamente o português difere do francês, não nos fala nesses tennos: o importante é que a informação está lá, dita
embora sejam ambos configuracionais: em português é possível cancelar o de alguma fonna.
sujeito e o objeto de um verbo; em francês, não. Por exemplo: em português,
posso dizer: "Lavei e dei para Maria", em reposta a uma pergunta como: "O
que você fez com o vestidor'. Em francês, é obrigatória a presença do The Polysynthesis Parometer. Oxford: Oxford University Press, 1995.

' 11
Cada época e cada teoria terão seu modo de dizer as coisas, o Haveria muitos outros fatos que se poderiam analisar aqui. Porém,
importante é que haja o registro do fato. Anchieta só poderia usar o modelo não faço isso para não ultrapassar os limites deste artigo. Até o momento,
latino, uma vez que era o de sua época. No entanto, esse modelo não insisto, os fatos que expus não permitem dizer que Anchieta simplificou a
impediu que fatos totalmente diferentes dos que ocorrem em latim, francês, língua mais usada na costa do Brasil e que o uso do modelo latino tenha
inglês etc. fossem descritos de maneira tal que a sua utilização em outros prejudicado o entendimento de sua caracterização e dos processos fonológicos,
modelos não-latinos seja possível. Assim, o pressuposto básico para a qua- morfológicos e sintáticos nela existentes. Trabalhei com dados, com fatos -
lificação de uma gramática se cumpre: os dados nela contidos são passíveis por me ser muito difícil falar de urna língua sem estar neles apoiada - e com
de análise em outro modelo. uma teoria que me permite vê-los. A teoria que me guiou esse olhar da
Anchieta descreve a incorporação como um processo que muda um gramática de Anchieta foi a paramétrica, ou da regência e vinculação, cujo
verbo ativo (transitivo) em um verbo não-ativo (intransitivo), isto é, um formulador é Noam Chomsky. Escolhi uma teoria a seguir em minha pes-
processo que muda a valência do verbo que se intransitiviza. Em outras quisa sobre as línguas tupi não apenas por um gosto pesSoal, mas porque
palavras, perde um de seus argumentos. Outro processo também ligado à julguei que a teoria gerativa permite, além de descrever os fatos - alcançar
mudança de valência é aquele em que a um verbo neutro (intransitivo) se apenas o nível observacional (obtido pela gramática de Anchieta) -, tentar
acrescenta um argumento e o verbo resulta transitivizado. O processo de explicá-los e correlacioná-los. Não intento converter ninguém. Creio apenas
transitivização que será examinado a seguir, também central para a moderna que se deva dar as bases para que cada um faça conscientemente sua
visão paramétrica, é o da causativização, em que um verbo intransitivo própria opção acadêmica.
ganha um argumento extra. Ao escolher esse caminho, tive também uma segunda intenção. Não
A causativização muda as relações argumentais do verbo, pois o que pretendi apenas avaliar, com uma conclusão positiva, o que fez Anchieta. Os
é o sujeito do verbo intransitivo passa a objeto do novo verbo transitivo. fatos que aqui mostrei nos permitem constatar quão complexas e diferentes
Como se pode ver nos seguintes exemplos do tapirapé e do tupinambá: são ess~s línguas em rei~ às que usualmente estudamos. A vantagem
tapirapé - a-xe'eg "ele fala", ã-ma-xe'eg "eu faço ele falar" (eu ligo o que veJo no modelo gerativo é poder dar conta dessas diferenças sem
rádio); tupinambá (Anchieta) - xe-maar "estou doente", a-i-mo-maar "eu est.igmat~zá-las, fazendo isso formalmente pela parametrização de princípios
o faço adoecer''. umversais.
Em todas as línguas tupi-guarani, há morfemas diferentes para se E acho que assim fica demonstrado que, ao contrário do que muitos
formar o causativo com verbos intransitivos e transitivos. Em tupinambá, mo dizem, es~as línguas não são pobres, sem flexão, simplificadas, e que teriam
só se emprega com raízes intransitivas. Com as raízes transitivas, usa-se desaparecido por terem os falantes aberto mão voluntariamente delas devi-
ukár e o processo pode ser recursivo, causativiza-se com o morfema mo do à superioridade da língua portuguesa. Desapareceram porque seus' falan-
o verbo intransitivo, transitivizando-o, e causativiza-se com ukár o transitivo tes morreram, ou foram aprisionados pelos bandeirantes tomados cativos ou
que daí resulta de tal forma. São alguns exemplos tirados de Anchieta: a- mortos violentamente na conquista da terra que lhes pe~encia por direito: ou
só "eu vou", a-i-mo-ndó "eu o faço ir'', a-i-mo-ndó-ukár "eu faço que P?r. doenças que lhes levamos e para as quais não tinham resistência e os
outrem o faça ir". dtztmaram. Na grande maioria dos casos, os que sobreviveram ainda as
Há um outro tipo de causativização que difere da feita com mo e fa]a~, nu_ma prova de resistência cultural e lingüística impressionante. E
ukár, em que o sujeito, como se viu nos exemplos acima, não é quem executa contmuarao a morrer se persistirmos em nossa política perversa, se não
a ação expressa no verbo principal. É a feita com ero, ro, no, r- ou, nas resolvermos a questão da terra e a questão de atendimento à saúde. Ainda
próprias palavras de Anchieta, "os compostos com mo e ro diferem nisto: nos
~entemente, índ!os _morre~. de fome no Rio Grande do Sul. Como pre-
compostos com mo não participa a pessoa do que faz, como ejebyr 'eu
s1d~nte da ~soctaçao Brasdeua de Antropologia, tenho recebido vários
volto', a-i-mo-jebyr 'eu o faço voltar', não voltando eu. Nos de ro, sim, a-
pedidos de mterferência e relatórios (que vêm aumentando geometricamen-
ro jebyr 'eu o faço voltar comigo' ou 'voltando eu também"' (p. 203).
te) ac~rca de 1.°ortes de c~anças indígenas, causadas pela fome e por
Esse tipo de causativização é conhecido como causativo-comitativo,
au~nc1a ~~ vacmas e remédios contra a malária, doença ainda endêmica em
tenninologia que Anchieta não usa, mas nem por isso o entendimento e a
várias regtoes do país. Quando a mortalidade infantil é alta, 0 grupo, por falta
descrição do processo ficam prejudicados.
de reprodução, está fadado a desaparecer. Há algum tempo recebi um
pedido comovente: tentar o retomo de três índios juma - os remanescentes, . .. , J:ontes para a historiografia
cujo único desejo e esperança que podiam ter era o de morrer e ser enter- bngu1stica do Brasil quinhentista:
rados junto a seus ancestrais - a seu lugar de origem.
Em 2000, comemoramos quinhentos anos de descoberta do Brasil ou materiais de análise
quinhentos anos de língua portuguesa. Para esses índios, que trazem consigo
uma história de espoliação e de mortes, e para nós, pesquisadores que com Luciana Gimenes."
eles aprendemos, que participamos de seu cotidiano, que temos neles uma
família que nos adotou, nada há a celebrar.

Referências bibllogrlificas
. . Do ponto de vista da elaboração de uma historiografia lingüística
ANCHIETA, J. Arte de gramática da língua mais usada na costa do brasd~1ra, o mapeament~ das fontes primárias para o estudo do Brasil qui-
Brasil (edição fac-similar do original de 1595 e versão em português nhentista alerta o pesquisador para a existência de uma multiplicidade de
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BAKER, M. The Polysynthesis Parameter. Oxford: Oxford University Press, explorad~ sob esta pers~ctiva metodológica: narrativas de viagens, cartas,
1995. comentários, notas, ensatos, descrições, registros, catecismos. Isso significa
CAMARA JR., Joaquim. Mattoso. Introdução às línguas indígenas bra- que, paralelamente às descrições calcadas no modelo latino teria h vid
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uz1 ~ a partir ªº
' não domi-
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original de 1595 e versão em português atual). São Paulo: Loyola, 1990. muito. diferente do contemporâneo e o recurso a uma documentação não-
KLIMOV, G. A. "On the Character of Languages of Active Typology". canônica se toma condição necessária.
ünguistics, n. 131, pp. 11-25, 1974. . A ~neologia do conhecimento de Foucault (I 966) nos auxilia na
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D. João o• e 2• partes). Porto: Livraria Civilização, s.d. ":8ba1ho, se tentou resgatar. No século XVI, o conhecimento se teria' orga-
OLIVEIRA, F. Gramatica da linguagem portugueza (2ª edição confonne m~do ~a forma ~ sem~lhança, ou seja, a apreensão· do mundo e a siste-
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e Tito Noronha). Porto: Imprensa Portuguesa, 187I. as~1m como qualquer outro tipo de linguagem, funcionava como espelho
PINTO, E. Introdução à Arte de gramática da língua mais usada na re eto.r do mundo concreto. Com a percepção das semelhanças _ mai
costa do Brasil (edição fac-similar do original de 1595 e versão em domínio da experiência do que de um código de regras consciente ~
português atual). São Paulo: Loyola, 1990. compreender a realidade -, o homem deveria desvendar marcas e sinais
REUCHLIN, J. De rudimentis Hebraicis. Pforzeheim, 1506. esp~h~os por Deus no planeta, a fim de se orientar. O princípio da con-
VIEIRA, Márcia D. O problema da conjlguracionalidade na lfngua vemência - forma de simiHtude decorrente da proximidade - autorizava a
asurini: uma conseqüência da projeção dos argumentos do presunção de pontos comuns a coisas vizinhas. De acordo com essa idéia,
predicado verbal. Tese de doutorado. Instituto de Estudos da Lingua-
gem, Unicamp (polia), 1993.
' Universidade de São Paulo.


26 1.1Jcillfl3 Gimenes

as formas divisoras do mesmo espaço são aparentadas, compartilham da Fontes para recuperação do saber
mesma natureza e têm traços comuns. A vizinhança, ao mes~o tempo em sobre as línguas do Brasil quinhentista
que indica terem as formas próximas propri:~es e características comuns,
dra essas propriedades num círculo v1c1oso. Para o século XVI, dispomos de apenas dois documentos organiza-
engen De fato, ao se observarem os primeiros registros de lugare~, plantas, dos em formatos clássicos de gramática e vocabulário: a Arte de grammatica
. . d B . reconhecem-se os traços da eptsteme do da lingua mais vsada na costa do Brasil, de José de Anchieta (1534-97),
an1ma1s, povos e línguas O ras,1' . · r fielmente publicada em 1595, e o Vocabulário na língua brasílica, um dicionário
,_ 1 XVI tal como proposta por Foucault: o mtutto de retrata .
s=u o . - rod çã 0 seJa, buscar- português-tupi compilado no século XVI pelos missionários jesuítas, mas que
a realidade por meio da observação, descnçao, rep u ?·
~ _
só veio a ser publicado em 1938. No contexto dos descobrimentos, prolife-
se re istrar a própria realidade - só acessível pela expen~nc1a -, .nao. uma
visãogdela. A título de ilustração, observe-se a "Advertência ao 1_e1tor' • ~ue raram descrições e relatos das viagens ao Novo Mundo, em que se descre-
.mtegra o re1a to de André Thevet (1502-90), em seu texto As smgularida- veram fauna, flora e geografia da nova terra, além dos povos indígenas
encontrados. Nessas fontes, lêem-se impressões sobre a aparência dos ín-
des da França Antártica, de 1576:
dios, informações sobre ornamentos, hábitos e costumes - geralmente com
destaque para os rituais antropofágicos -, bem como, de forma diluída e
Igualmente não deverás estranhar que a descrição de diversas .árvores (as
fragmentada, sobre sua língua. De maneira geral, contudo, os relatos de
palmeiras, por exemplo) e de determinadas feras e aves esteja em total
viagens contêm elementos que permitem recuperar a visão européia sobre
desacordo com a de nossos modernos estudiosos do assunto. Estes, por
as línguas do Brasil quinhentista, em tentativas relativamente bem-sucedidas
não terem visitado aquelas terras (e pela pouca experi~ncia e_ ~ultura que
de representá-las e/ou descrevê-las de maneira sistemática ou parcial. Como
possuem), não merecem ser inteiramente dignos de crédito. S0hc1tamos que
exemplo desse tipo de material, podem-se citar os textos de Cardim (1925
recorras aos "'t"ra'·s dessas regiões , ora vivendo entre nós, ou. àqueles
. (16251), Sousa (1938 [18251) e as cartas referentes às atividades da Com-
dentre os nossos que também realizaram a mesma viagem, pms só tais
panhia de Jesus, que circularam entre a Europa e a América, sobre a
pessoas poderão estabelecer a indubitável verdade (Porte, Thevet, 1978
América portuguesa e seus habitantes (Leite, 1940, 1956 [1954], a, b, c).
[1558), p. 15).
Níveis de formas lingiifsticas observadas e registradas
Nesse contexto, analogamente, a represen tação do conhecimento .
· fite1 e ·mn.
sobre a(s) língua(s) deveria retratar de maneira ·taro que se ouvia·
. .. As primeiras representações das línguas do Brasil foram construídas
ãmb't
1 0 da descrição gramat1cal, não é dtfíctl
sons palavras, frases. N 0 .d. . em diferentes níveis de elaboração metalingüística. Assumindo que o registro
ima~inar o conflito que logo se instalaria entre uma episteme ven _1ct_iva; a escrito de uma língua ágrafa é, por si só, uma forma de conhecimento sobre
metodologia descritiva disponível naquele momento para que o nuss1on ~ essa língua (ainda que pouco elaborada), teríamos, para o período de análise
.
registrasse as novas línguas·· o modelo da gramática latina, pouco compatíve aqui proposto, além de uma série de documentos que permitem, em seu
com a nova realidade lingüística observada. . conjunto, reconstruir as primeiras transcrições dos sons e vocábulos das
d traço da episteme foucaultiana reconhecido nessa docu-
O segun ° . ..
mentação diz respeito à poss1b1hdadc de estender a p.ercepça
-
o de um ele-
. -
línguas, outros que sistematizam, em graus variáveis de elaboração, seus
usos, formas e funções.
mente do mundo a outros elementos que lhe são próx1mos. N_as descnçoes No esforço de resgatar a prática desses primeiros lingüistas, sem
_ . pressões causadas por determmados aspec- distorcer sua visão original (cf. a questão da metalinguagem em Koerner,
aqui examinadas, nao raro as un _ . d realidade
tos se generalizaram e influenciaram a percepçao do conjunto a . 1996), estabeleci as seguintes categorias para a organização dos dados
que se buscava conhecer. Tudo no Brasil - assi~ como tud~ que:: situava lingüísticos contidos no material: a) distinção de informações e comentários
em um ambiente exterior à cristandade - parecia comparttlhar a mesma referentes aos sons da(s) língua(s), ao vocabulário e às relações
natureza primitiva: os habitantes, a fauna, a flora, a língua, como se procu- morfossintáticas; b) observações e comentários de certos mecanismos re-
rará demonstrar nas seções seguintes. guladores da conversação, registro e tradução das histórias, lendas e textos
28 Luciana Girnenes Fontes para ahlsloriografia lnQUística do Brasil qtjrtlentista... 29

religiosos; c) práticas lingüfsticas que ocorreram no contexto histórico A "inferioridade" do Novo Mundo era visível na "inferioridade" da
em questão. língua falada pelos nativos. Sem dúvida, tal argumento era conveniente aos
propósitos colonizadores, uma vez que lhes interessava que o índio não fosse
Sons da Ungua considerado humano ou ao menos não "tão humano" quanto o europeu.
Porém, importa notar que o comentário foi registrado também por Gândavo
A descrição dos sons da língua dos índios do Brasil foi feita por (1965 [1576], pp. 180-1), o que sugere que tal interpretação era pelo menos
comparação com o alfabeto latino e/ou vernáculo. Os autores trataram desse aceitável naquele momento.
nível lingüístico a partir dos aspectos que diferenciavam a língua indígena de
uma língua européia tomada como referência. Assim, quando mencionaram Grafia
sons ou letras da língua indígena, fizeram-no para registrar os sons que, em
relação ao alfabeto latino, "faltavam" na língua observada. A percepção dos fonemas indígenas esteve sujeita a variações indi-
É possível afinnar que, no nível da descrição dos sons, podemos viduais, por isso a representação dos sons - a grafia da língua - ocorreu de
perceber mais nitidamente a estratégia descritiva de tentar enquadrar a maneira heterogênea. Até onde pudemos verificar, Anchieta foi o único
língua "exótica" em um modelo predetenninado - o quadro das letras do autor a propor regras para a grafia: 1 "Em lugar do s. in principio, ou media
alfabeto latino. Assim, sabemos que a ausência das letras F, L e R (dobrado) dictionis serue, ç. Com zeura, vt. Açô, çatâ" (Anchieta, 1990 [1595], p. 23).
foi citada por diferentes autores. Esse fenômeno foi explorado inclusive Porém, quando fonna sílaba com E ou I, estabelece a grafia com C: "Ce,
como índice de uma realidade maior e extralingüística, em que a linguagem Ci, hão se de pronunciar como que tiuesem zeura como no Portugues, cera
foi tomada como código, cuja decifração pennitiria a correta interpretação cidra, vt acém, acic" (Idem, p. 31).
da natureza de seus falantes - não no sentido estrito de que as línguas Para se avaliar a heterogeneidade da grafia, examina-se a utilização
reflitam uma visão de mundo, mas conforme o prisma da similitude e da de S, Ç e Cem três autores do período: Anchieta (1990 [1595]), Cardim
conveniência descritos por Foucault (1966). Sob essa perspectiva, leia-se a (1980 [16251) e Léry (1980 [1576]) são um bom exemplo (ver tabela p. 6).
conhecida descrição dos sons do tupinambá: . Mesmo como jesuíta, Cardim não adotou a grafia estabelecida por
Anchieta, que propôs Ç mesmo em principio dictionis.
Têm muita graça quando falam, mormente as mulheres, são mui A representação dos sons indígenas foi realizada de maneira hete-
compendiosas na forma da linguagem, e muito copiosos no seu orar; mas rog~nea, inclusive por autores falantes de uma mesma língua. O quadro
faltam-lhes três das letras do ABC, que são F, L, R grande ou dobrado, abaixo reproduz alguns vocábulos, tais como foram grafados por dois auto-
coisa muito para se notar; porque, se não tem F, é porque não têm fé em res: ambos franceses -1;-éry (1980 (1576]) e Thevet (1978 (15581) - que
nenhuma coisa que adorem; nem os nascidos entre os cristãos e doutrina- esttveram na mesma região da colônia:
dos pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor, nem têm
verdade, nem lealdade a nenhuma pessoa que lhes faça bem. E, se não têm Ury Thevet
L na sua pronunciação, é porque não têm lei alguma que guardar, nem
preceitos para se governarem; cada um faz lei a seu modo, e ao som de sua Petyn Petum
vontade; sem haver entre eles leis com que se governem, nem têm leis uns Margaiá Margageas
com os outros. E se não têm esta letra R na sua pronunciação, é porque Arabutan Oraboutan
não têm rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecem a ninguém, nem Cauim CalUm
ao pai o filho, nem o filho ao pai, e cada um vive ao som de sua vontade; Saguim Sagouin
para dizerem Francisco, dizem Pancice; para dizerem Lourenço, dizem
Rorenço; para dizerem Rodrigo, dizem Rodigo; e por este modo pronunciam
todos os vocábulos em que entram essas três letras (Sousa, 1938 [1825),
Nav~rro (1997, p. 661) sugere que Anchieta. ao distinguir s de ç, estaria informando
pp. 364-5). a e:ust!ncia do som africado sibilante no tupi.
. ~ Principio
dictionis
Medio
dictionis
Exemplos/pãgina Observações Mesmo levando·se em conta a possibilidade de a grafia original
haver sido corrompida nas sucessivas edições dos textos, a comparação
ç Çóca, çullba (43). seguido de A, O, dessas formas sugere o descompasso entre o modo de representação auto·
u. rizado - o modo da veridicção - e um modelo de representação arbitrário
AnChiela e eec&,roço (110). seguido de E, I e inadequado aos sons observados. Neste sentido, observe·se a seqüência
de exemplos:
ç seguido de A, O,
u Por isso pera conhecer ser este i. aspero se escreve com um ponto em baixo
& ficarâ, jota, subscrito, i. porque faz muyto differente significação [, .. ) se
e Acém, ac't (31) seguido de E, I
há de deixar ao uso porque a1gus muito bõs lingoll$, o não podem pronun•
c,,dJm s Sugoaçú (25), seguido de A, O,
ciar: mas 'ex adiunctis', se entende o que quer dizer (Anchieta, 1990 [1595),
suaçuapara (25), u
p. 34, grifo meu).
sarigué (26),
surucucu (31 ),
Os selvagens chamam a água doce 'uh•ete' e a água salgada 'uh•een'; esta
soballra(43).
dicção, obtim·na com a garganta, como os hebreus fazem com as guturais
e Cicd (104). quando seguido
e por isso era para nós a mais penosa de reproduzir entre todas as do
a. 1 idioma indígena (Léry, 1980 [1576), p. 133, grifo meu).
nunca usa Ç em
início de palavra Quando íamos a suas aldeias ou vinham elas ao nosso fortim, apresenta-
e Boicininga (31 ), quando seguido vam-nos frutas e outros produtos da terra, propondo trocá·los por tais

ç
iguacini (29).
'"
Araçá, jaçapucaya quando seguido
missangas [... ].O mesmo faziam para obter pentes, a que chamavam 'guyap'
ou 'kyap', espelhos, que denominavam aruá e outras mercadorias que lhes
(36), deA,0,U agradavam (Léry, 1980 [1576], p. 120, grifo meu).
caarobmoçorandi
gba (38), Ainda que Ury não tenha proposto soluções para a grafia, como fez
tucanuço (103), Anchieta, utilizou.se de certos expedientes para resolver seus problemas ao
canduaçu (27). transcrever a língua - problemas que, ao que parece, teriam sido ignorados
lguaruçu (28). em outros registros, ou por terem sido interpretados como alofones, ou
simplesmente por não terem sido percebidos pelo ouvido europeu. Portanto,
s Soó (13.5), sarigd
"" (138), saguim as tentativas de estabelecimento de uma grafia para a língua foram isoladas
e não alcançaram o estatuto de nonnas.
(144).
ss Mussacá (132), entre vogais
Vocabulário
soo-uas.slls (137),
ussa (1.58), taiassd
Para uma amostra de como o léxico foi registrado no contexto do
(137),
Brasil quinhentista, tomei os vocábulos dispersos em três relatos de viagens
e jacy(ll4). com y - meoos
constantes da documentação que examinei. A escolha desses textos não
freqüente que SS
seguiu um critério rígido, mas tão-somente busquei exemplos que proporcio·
,
OrafiM utilitadas em Anchieta ( 1990 { 1595]), Cardun (1980 [ 1625]) e Léry ( 1980 l 1576]), nassem boa visão do conjunto. Nesse esforço, selecionei duas narrativas
relafii-a,nente às formas S, Ç e C feitas por autores portugueses - um missionário, Cardim, e um não-missio-
Fontes para a histoliogralia lingüística do Brasil qurll'lentista ..
33

nário, Gândavo - e uma narrativa de um autor francês, Léry. Assinalo que do léxico indígena foi um procedimento complementar à tarefa de descrição
levei em conta que a maioria dos relatos examinados na pesquisa foi escrita de outros elementos componentes deste mundo.
por franceses e portugueses. O levantamento realizado nas três obras resul- A tabela a seguir resume o número de ocorrências de vocábulos
tou num total de 434 vocábulos distintos, assim distribuídos: Ury, 143; Cardim, indígenas nos textos dos três autores referidos, conforme as estratégias de
272; e Gândavo, 19. registro e descrição preestabelecidas:
As estratégias de representação/descrição dos vocábulos foram clas-
sificadas conforme as seguintes categorias: Estratégia de descrição Número de ocorrências Porcentagem
I 1 31,26
lt 38
a) Imitação (1), quando houve somente transcrição da forma lingüís- 8,74
rr 10 2,3
tica, isto é, quando o vocábulo foi apenas transcrito, utilizando-se, para tanto, 1D 233 ·53,56
o alfabeto matemo. Por exemplo: "por uma corda do Rio de São Francisco ItT 2 0,46
vivia outra nação a que chamavão Caaété (...]" (Cardim, 1980 [1625], p. IID 15 3,45
102, grifo meu); ItD 1 0,23
Total 435 100
b) Tradução (T), para a tradução literal, morfema por morfema,
como em: "outros se chamam 'Tayaçupigta', se. porco que aguarda [...}" .. Imitação (1) e em seguida descrição (D) foram as estratégias mais
(Cardim, 1980 [1625], p. 26, grifo meu); ut~h~das pelos autores na representação do léxico indígena, ou seja, 0 léxico
foi incorporado à experiência dos primeiros descritores da língua assim
c) Tradução (t), para a tradução aproximada: ''Tapyretê - Estas são co~o os objetos, animais e costumes do Novo Mundo. A segunda es~tégia
as antas [... ]" (Cardim, 1980 [1625], p. 25, grifo meu); ou então, "( ...] vou mais utilizada consistiu apenas em transcrever o vocábulo indígena sem
contar uma história tragicômica que em sua aldeia me contou um 'mussacá', escl~cimentos sobre seu significado. Em terceiro lugar, verificam-se 'ocor-
isto é, um bom e hospitaleiro pai de familia" (Ury, 1980 [1576], p. 132, rênct~s de ~ução (t), mas já em número bem menor que as anteriores. As
grifo meu); demais combinações de estratégias foram menos freqüentes.
Um trabalho que ilustra a prática de coleta de vocábulos está no
d) Descrição (D), entendida aqui como a enumeração das proprie- relato do italiano Pigafetta (1922 [I801J, p. 193), que, em sua volta ao
dades do referente: mundo, c?mpilo~ ~equenos vocabulários de diversos lugares visitados. o
vocabulário brasileiro é o seguinte:
Tamanduá - Este animal he de natural admiração: he do tamanho de hum
grande cão, mais redondo que comprido; e o rabo será de dous comprimen- Vocabulario Brasileõo
tos do corpo, e cheio de tantas sedas, que pela calma, e chuva, frio, e
Rey ................................................ Cacich
ventos, se agasalha todo debaixo delle sem lhe apparecer nada[ ... ] (Cardim, Bueno ........................................... Twn
1980 [1625), p. 27). Casa .............................................. Boi
Cama ............................................. Hrunac
O exame dos vocábulos dispersos nos três textos indica que as Peine ............................................. Chipag
palavras da(s) língua(s) nativa(s) utilizadas para designar novos referentes Cuchillo ......................................... Tarse
inexistentes na Europa foram as mais numerosas: plantas e animais particu- Cascabeles .................................... Hanmaraca
Tijeras ........................................... Pirarne
lares e diferentes, ornamentos, artefatos e instrumentos indígenas, além de
Anzuelo ........................................ Pinda
nomes próprios e de lugares. Enfim, aquilo que o europeu julgou interessante
descrever, por ser inédito e exótico, não raro foi acompanhado dos nomes ~3;:::.·::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: ~oe
originais. A seleção de vocábulos operada pelos autores indica que o registro Harina ........................................... Hui
Mesmo sendo pequena a lista, provavelmente elaborada com o au- O segundo modo de abordagem diz respeito às relações
xílio de algum intérprete, é interessante notar que os dados lingüísticos foram morfossintáticas enquanto objeto de descrição interna, como, por exemplo,
apresentados em separado. Evidentemente não se trata de interesse pela no famoso diálogo que acompanha a narrativa de Ury:
linguagem como objeto autônomo de estudo, mas é significativo que a des-
crição lingüística encontre lugar próprio e distinto no mundo. Tupi Português (originalmente francês)
Descrições mais elaboradas que as de Cardim, Sousa, Ury e Pigafetta Francês: ? Mamópe setã? F: ? Onde é sua moradia?
estão presentes no Vocabulário na língua brasllica, compilado pelos jesuí- Tupinambá: ? Kariók-pe. T: ??Em Carioca (este nome é o de um pequeno rio
tas no século XVI - até onde se sabe, a descrição mais sistemática do léxico próximo, que assim se interpreta: casa de kariós;
de uma língua do Brasil. Trata-se de um dicionário português-tupi feito para composto desta palavra kariós e ók, que significa
servir aos missionários europeus, que precisavam aprender "a língua brasílica". casa. Tirando os e adicionado ók, dará kariók. O pe
Nesse documento, pouco se utilizou a estratégia da tradução termo (be) i partícula de ablativo que indica o lugar pelo
a tenno. Para a captação de traços de significado - que no português não qual se perguntou ou aonde se desejou ir) (Léry, 1980
se marcam no nível morfossintático, como ocorre no tupi -, os autores {1576), pp. 279-80, grifo meu).
utilizaram diferentes estratégias descritivas: explicações, ressalvas,
exemplificações. Observem-se os verbetes: No vocabulário jesuítico, de fonna análoga, foi freqüente a explicitação
dos mecanismos morfossintáticos específicos da língua: "Fingir q. não faz.
Useiro, e uiseiro ser. - Cecobae yxe, ende etc. Cecoabanhe, mas este - Eigmaubi no fim do uerbo negatiuo ut. Nacepiaqui. l. não o ui, não
segundo significa também antigo, ou natural como se hum estranhase 0 o uejo. Nacepiaceímaubi, faço que não o uejo (Anônimo, 1952 [1938], p.
sinal m Purchas his Pirosto, ou a fenda q. estâ em algua peça, responder- 139, grifo meu).
lhe-ia. Cecoabanhe .s. natural he, ou não he nouo, mas sempre assi foy Se, em detenninados materiais, foram indicadas e/ou sugeridas as
(Anônimo, 1952-53 [1938], p. 140, grifo meu). diferenças entre a morfossintaxe da língua indígena e a das línguas dos
autores, essas diferenças foram também apagadas. Observe-se a seguinte
No Vocabulário, verificam-se também comentários gramaticais, e passagem:
esta é a propriedade que distingue claramente este trabalho das listas de
palavras. Veja-se mais um exemplo: O hospede neste tempo não fala palavra, mas depois de chorarem por bom
espaço de tempo limpão as lagrimas, e ficam Ião quietas, modestas, serenas
Outro dia, e não já agora. - Erimbae. Caramocee. Jrãeira. Bipeeirã. Ambipeê. e alegres que parece nunca chorarão, e logo se saudão, e dão seu 'Ereiupe',
Ambipeeira. O mesmo he Amonume, 1, Amonumee. A mesma significação faz e lhe trazem de comer etc.[ ... ] (Cardim, 1980 [1625], p. 91, grifo meu).
E. no fim de qualquer uerbo ut, AimbõbeU .i. digo. Taimõbeune, 1,
Taimombeoêirã .i. outro dia o direi (Anônimo, 1952-53 (1938), p. 61, grifo meu). Nesse exemplo, uma frase indígena foi tomada como se fosse um
vocábulo com valor nominal, algo como "boas-vindas", desconsiderando-se
Relações morfossintáticas a estrutura morfossintática e o valor frasa! e verbal da seqüência lingüística
em questão. 2
Nos textos examinados, as relações morfossintáticas da língua dos
índios foram abordadas basicamente de duas maneiras distintas. A primeira, Atos de fala e textos
de modo implícito, pelo confronto das fonnas lingüísticas da língua indígena
com a européia, propondo equívalênêias entre os tennos que indicam a Para caracterizar o índio e melhor retratar seus costumes, os euro-
adequada compreensão do caráter polissintético da língua: "Há outra {cobra] peus utilizaram o expediente de transcrever pequenas estratégias de diá1o~
que chamão 'Guigraupiagoára', se. commedora dos ovos dos passaras"
(Cardim, 1980 [1625], p. 30, grifo meu). 1
Ere-tur-y-pe?: Vieste? (Navarro, 1998, p. 19S).
36 Luaa:;3Gimenes 37

gos, em especial os proferidos em contextos situacionais específicos, colo- falantes. Assim, os bons modos dos nati . _
permitiram ao autor afinnar que tinham vo~ em situaçao de conversação
quiais, como no exemplo seguinte: europeus. me or índole que os camponeses

[...] Quando alguém entra pela primeira vez cm suas cabanas, logo os Nos trab_alhos em que a língua indígena foi abordada c
lendas e cantos mdígenas foram transcritos lí . . orno texto,
selvagens perguntam: "Marabissere" (Como é o seu nome?).[ ... ] Só depois O t . em ngua ongmal ou européia
de conversar um pouco com o visitante é que perguntam se ele deseja ~ a~n:s :uro;:u; mtere~saram-se, por exemplo, por histórias transmitid~
alguma coisa (- "Marapipô?") (Thevet, 1978 [1558], p. 106). pe a iç o o os nativos, como no trecho que segue:

Celebravam ainda em suas canções O fato do as águas terem transbordado


E também as falas proferidas durante os rituais indígenas, pelos quais
por tal forma, em certa época, que cobriram toda a terra, afogando todos os
os autores demonstraram especial interesse:
homens do mundo, à exceção de seus antepassados, que se salvaram trepan-
do nas árvores mais altas do pafs. Este u'/timo
· ponto, que muito se aproxima
O prisioneiro, mais altivo do que nunca,"responde em seu idioma (margaiás
das Santas
, . Escrituras, tive a oportunidade .,,_ ouvir
ue . m. úm eras vezes. É
e tupiniquins se entendem reciprocamente) pa, che tan tan ajucá atuparé -
ve~oss1mil que de pais a filhos ouvissem contar alguma coisa do dilúvio
sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos" (Léry, 1980 (1576],
um~ersal e do tempo de Noé e tivessem deturpado a verdade, como é o
p. 196). hábito dos homens; e isso é tanto mais natural quanto, como vimos, não
tendo nenhuma espécie de escritas, difícil se lhes toma conservar a pureza
Outros aspectos observados pelos europeus são as maneiras e as
estratégias de conversação dos índios, como a seguir:
dos /fatos · transmiti-los; da.( terem adicionado a fiabula das árvores, tal
fi ao
qua o ·,mam os poetas (Ury, 1980 [1576], pp. 215·6, grifo meu).

Lembro mais uma vez que os selvagens não costumam interromper os


Mais uma vez, a episteme da similitude orienta a interpretação do
discursos de ninguém; por isso, me ouviam atentos pelo espaço de meia autor, que reconhece no mito indígena aquele do dilúvio uni ai
hora, proferindo apenas de quando em quando sua habitual interjeição: tempo em q ·b . vers , ao mesmo
ue am ut o que não reconhece à perda da pureza original e à
Teh. E afinal, disseram-me: - "Como vós, os mairs, sois felizes por saberdes deturpação provocada pelo tempo.
tantos segredos ocultos a nós, entes mesquinhos, pobres miseráveis!". E, Os cantos indí~enas também foram objeto de interesse, registrad
para me agradar, deram-me um pequeno aguti que traziam, dizendo: ''Toma algumas vezes por meto de tradução (t), caso em que o autor se interesso:
lá, já que cantas tão bem". Entendi dever contar este episódio por entender ªf":s pelo conteúdo do texto, e não por outros aspectos lingüísticos já que
que, por mais bárbaros que sejam com seus inimigos esses selvagens, me n o ouve preocupação em transcrever a passagem na língua origi~al:
parecem de melhor índole que a maioria dos campônios da Europa. E.
com efeito, discorrem melhor do que estes que, no entanto, se reputam Tenho e~ meu poder o canto de um desses prisioneiros. Eis o que diz: "Que
inteligentes (Léry, 1980 (1576), p. 170, grifo meu). se aproximem ~os com coragem e se juntem para comê-lo; em o fazendo
comerão seus pais e seus avós que já serviram de alimento a ele -< • ,
Nesse comentário, o autor afirma que os índios "discorrem melhor" deles seu ,-.nrn 0 • · p,vpno e
---,.. se constitum. Estes músculos, esta carne estas · d.
lhes são pob , veias, 1z-
que certos europeus e registra passagens que lhe pennitiram tal conclusão. ' vossas, res 1oucos. Não reconheceis a substância dos membros
Por exemplo, diz que o índio não costuma interromper o discurso alheio, :e~oss_os antepassados que no entanto ainda se encontram em mim?
ouvindo com atenção o que lhe é falado, e este é um comportamento per- a re&-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne" H _;
cebido como positivo pelo autor - o hábito de ouvir atentamente, sem inter- algo de bárbaro n ta . · ave,,.
es composição? (Montaigne, 1972 {1580], p. 267).
romper o falante. Mais uma vez, cabe notar que a detecção de um aspecto
positivo em relação à linguagem dos índios autoriza o autor, por similitude e Em outras vezes, os cantos foram tran . .
como os registrados por Ury dos qu . scntos em língua mdfgena,
conveniência - tal qual aquele que detectou na língua aspectos apenas De bé ' ais apresentou também as partituras
negativos, de "inferioridade" -, a estender seu julgamento à natureza dos screveu tam m a expressão gestual dos nativos durante o ritual· .
'Heu heura heura heura heura heura heura heura heura ouêch!' Se, como Em contraste, pode-se tomar uma informação de 1560, quando a
disse, no inicio dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto língua mais falada no Brasil já havia sido codificada (ainda que a Arte de
em coro, ouvindo os acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência Anchieta só viesse a ser publicada em 1595, consta que já estava escrita em
e o estribilho repetido a cada copla: 'Hê, he ayre, heyrá, hcyrayre, hcyra, 1560), existindo um público receptor para este material Em relação ao nível
heyre, eêh'. Para tenninar, bateram com o pé direito no chão com mais força de domínio da língua indígena pelos colonizadores, tratava-se de momento
e, depois de cuspirem para a frente, unanimemente pronunciaram duas ou três bastante distinto daquele retratado no primeiro exemplo.
vezes com voz rouca: 'Hê, hyá, hyá, hyá' (Léry, 1980 [1576], pp. 214-5).
No tempo cm que o Padre [Luís da Grã] chegou a esta Bahia estavão as
Provavelmente, uma variável que interferiu na opção pelo registro na cousas algum tanto feas, as quaes logo com a sua vinda se aquietarão,
língua original, ou diferente da forma traduzida, foi o domínio da língua. assim em casa como fora, porque em cosa logo deo ordem a que todos os
Tomando como referência os dois exemplos acima, Montaigne, o primeiro lrmlios se dessem [a] aprender a lingoa, cousa que até ahy ninguem avya
autor, não conhecia o tupi. Léry, ao contrário, teve mais contato com os feito, tirando alguns que andavão fora; e assy deo ordem que viesse a
índios e certamente apresentava um domínio da língua maior que aquele. escravaria a aprender a doutrina na nossa igreja, cousa que não se fazia.
E elle mesmo a ensina e os cousas da Fee na lingoa às escravas e no
Considerações nnais portugues a muytos molheres que folgão de saber cousa que nunca lhes
foi ensinada. É elle tão sofrego nisto que assi em casa como nas aldeas não
As fontes primárias para o estudo do Brasil quinhentista transmitem consinte a ningucm ensinar. Não deixo eu de entender que elle nam queria
ainda informações sobre o contexto lingílístico que então se estabeleceu. De que os outros insinassem, mas creo que o faz para nos envergonhar e para
acordo com Swiggers (1990), o historiógrafo deve explorar não apenas fon- nos fazer inveja, como na verdade a mym me envergonha, que hd XII annos
tes que veiculam dados lingüísticos, mas também aquelas que documentam que qud ando e não sei nada. Agora começo por os nominativos por a
a situação lingílística de um contexto estudado, o desenvolvimento de traba- arte para poder aprender (Pires apud Leite, 1956, pp. 310-1).
lhos com as línguas e a instância do receptor do conhecimento produzido.3
Nas fontes aqui examinadas, estão disponíveis muitas informações sobre tais O exame das infonnações lingüísticas (dados, observações, impres-
aspectos, como, por exemplo, sobre os primeiros contatos oficiais de euro- sões e comentários, dispersas em diferentes gêneros de fontes primárias
peus com os índios do Brasil, em 1500, quando a comunicação ocorria para o estudo do Brasil quinhentista) confirma a hipótese de que a situação
apenas por meio de gestos: de contato entre culturas e línguas diferentes estimularia o aparecimento de
especulações sobre língua/linguagem com base na consciência do falante,
Viu um deles umas contas de rosário brancas; acenou que lhes dessem, nem sempre intermediada por uma metalinguagem predefinida. De fato,
folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou- informações sobre a visão dos autores a respeito das línguas observadas e/
as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar ou da linguagem encontram-se nas descrições lingüísticas sistemáticas em
do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos forma de gramática e vocabulário, nas descrições de caráter gera] e nas
n6s assim por assim o desejarmos. Mos se ele queria dizer que levaria as cartas. A partir desses materiais, cabe ao historiógrafo inferir os pressupos-
comas e mais o colar; isUJ niJo o queríamos n6s entender; porque não lho tos subjacentes à produção de conhecimento sobre a língua, o que nos deve
havkwws de dar (Caminha, 1943 [1827], p. 15, grifo meu). levar a entender melhor conceitos e práticas do trabalho de análise lingüís-
tica desenvolvidos na atualidade.
Uma leitura da situação linguística no Brasil de 1550 a 1650- centrada principalmente
na documentação jesuítica - foi realizada por Rodrigues (1996). Nesse trabalho, o autor
enfocou a situação de diversidade lingüística original do Brasil, a ocupação portuguesa
- a utillzação de inttrpretes na comunicação e o aprendizado da língua indígena de maior
difusão -, a confecção de materiais pedagógicos (gramáticas), bem como a recepção
desses materiais.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em }587 3 ed
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Elementos de política
lingüística colonial hispânica:
o Terceiro Concílio Limense
Consuelo Alfaro Lagorio •

O Terceiro Concílio Limense (1582-1583) representou uma tentativa


de ordenamento das práticas pastorais, a1ém de ter servido como instrumen-
to de apaziguamento dos conflitos gerados por problemas de jurisdição cível
e de legitimação do poder real em assuntos eclesiásticos. Significou também
um esforço no sentido de encaminhar e delinear bases para uma série de
políticas, especialmente no que se refere às questões indígenas na América
hispânica. Adquiriu caráter supra-regional, com a convocação dos prelados
da Nicarágua, Panamá, Popayán, Colômbia, Quito, Cusco, La Plata e
Tucumán, assim como a presença dos bispos de Santiago e de Assunção no
início dos trabalhos. Seu objetivo foi instaurar uma linha pastoral para orde-
nar as práticas de catequese, recolhendo as experiências dos cinqüenta anos
de ocupação e tentando estabelecer linhas claras de atuação. Para isso,
elaborou propostas que seguiram aJguns lineamentos do modelo peninsular
de ordenamento no âmbito das línguas, sobretudo na implementação e esco-
lha de uma língua geral regional.
Nesse evento, foram tomadas decisões que deixaram sem efeito
aJgumas das propostas do Primeiro Concílio (1551-1552), como, por exem-
plo, a de criar duas repúblicas separadas: a de espanhóis e a de "naturais".
Ao mesmo tempo, revigoraram-se algumas detenninações do Segundo Con-
cílio (1567-1568), que destacavam a necessidade premente de o clero apren-
der as línguas indígenas. A lnstrucción (1545-1549) - documento-base da
ação missionária e referência obrigatória em todos os concílios - preocupou-
se com a redação de catecismos em línguas Indígenas, decidindo pela uni-
fonnidade de critérios quanto à tradução e à escolha das línguas.

• Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Representação das línguas e ensino nários que forem "servir en el oficio de curas [... ] sepan las lenguas de las
provindas en donde residieren" (1565). Já seu sucessor, Felipe II, que co-
Na preparação do material, embora se houvesse decidi~~ ~las lín- meça com disposições semelhantes na linha da castelhanização, em 1570
guas indígenas, a representação do castelhano como língu~ c1vd1~adora e declara as línguas indígenas como "vehículos de catequesis", atendendo
instrumento de salvação já era um forte componente 1deológ1~~· ~a assim às reivindicações de setores "ilustrados" do clero.
hierarquização das línguas, o latim ainda ocupava um }ugar de .pnv1lég10 Entretanto, o processo de flexibilidade lingüística possui outras nuances.
como língua de saber, guardando os princípios doutrinais da lgreJ3:_ mesmo Se a língua-romance é civilizadora, a contrapartida é a representação das
frente às línguas-romance, tanto nas práticas quanto na documentaçao le.gal. línguas indígenas como reduto das idolatrias. E esse será um dos temas mais
Em 1525, no México, o cronista franciscano Mendieta apontava tentativas debatidos em todos os encontros, a ponto de, no Terceiro Concílio, já se
de ensinar os índios a rezarem em latim, prática recomendada nas Leyes de constituir pressuposto, de maneira que o objetivo pastora] principal seja
Burgos (1512), de Fernando, el Católico, e ridicularizada por Bartolomé de encaminhar soluções para tal questão. Dessa forma, medidas políticas e
Jas Casas: "Les daban las dichas o raciones en latín o en romance, que [ os planejamento de línguas estão motivados principalmente pela erradicação
índios} no entendían (e repetiam} como papagaios". . .. dessas práticas heréticas, inerentes à língua.
Essa linha de ocidentalização sustentava as D1spos1ctones A propósito de um catecismo em língua indígena da Guatemala,
complementarias de las leyes de lndias, de Carlos V, em 1550, determi- publicado pelos franciscanos no México, os dominicanos promovem uma
nando que os filhos dos caciques polêmica envolvendo questões teológicas e lingüísticas em tomo da tradução.
Criticam o catecismo franciscano por usar o tenno Dios em espanhol e
sean ensei'íados en nuestra lengua castellana y que tomen nuestra polida
optam por usar na catequese "el nombre que significaba Dios en la lengua
y buenas costumbres, porque esta vfa con más faci!idad podrán se entender
[indígena]", com o argumento de que, "como los indios no formaban concepto
y ser doctrinados en las cosas de la religión cristiana. de lo que significaba esta palabra 'Dios', andaban desatinados porque no
podian concebir a Dios en romance". No entanto, será o próprio superior
A determinação é amenizada depois, por meio de normas marcadas
dominicano que, após uma visita, proibirá o nome Cabahuil, ordenando sua
por uma certa tolerância, deixando a escolha aos índios e permitindo que
substituição pelo nome Dios, o "verdadeiro", nas ações de catequese na
somente os voluntários aprendessem a língua castelhana.
região (Solano,1991, p. 56).
Pode-se observar a representação dessa aprendizagem pela interação
Este episódio ilustra não só os conflitos internos, como também a
"natural" entre índios e espanhóis nas seguintes recomendações:
relação estabelecida entre retórica e ideologia na representação das línguas.
[...] Para introducir nuestra lengua y aún nuestra policfa y costumbres entre No mundo andino, as divindades, as práticas religiosas e os ritos nas línguas
CStos [índios}, será lo primero que no se prohiba la conversación Y trato indígenas constituem objeto de grande perseguição, por serem considerados
de espaiíoles [...J bablen y conversen con ellos y espaí'ioles que entre ellos veículos de idolatrias. Podem-se observar preocupações e cuidados espe-
hablen siempre nuestra lengua y por fin con ellos, que acertando o ciais na composição de léxicos e vocabulários. Frei Domingo de Santo Tomás
tropezando o como quiera hablen la nuestra [... J y cada dia aprenderan más compõe o Lexic6n (1560), seguindo as entradas do Vocabulário hispano-
[...J y con la continua conversaci6n aprenderfan nuestra polícia de comer, latino, de Nebrija (1495). A tarefa encomendada é construir um universo de
de beber, de vestir, de limpiarnos y de tratar nuestras personas. Y nuestraS conceitos cristãos, adequando o léxico quechua.
cortesfas, y ceremonias en el hab)ar y nuestras crianzas y finalmente nuestra
Jengua que es lo que pretendemos (Carta ao Rey de Tomás Lopes, reco- Alli donde las hubiese o por perffrasis y remantizaciones [...] 'desconstruir',
mendando o ensino de espanhol, Guatemala, 1550). paralizar, la tradici6n andina en todo aquello que contrariase la imposici6n
dei Evangelio y dei dominio hispano, silenciando el léxico quechua de
Quinze anos depois, o monarca, em nome do Conselho das ~di:15, contenido religioso indígena cuando no pudiese ser remantizado [...]
revoga a cédula real anterior "castelhanizante", ordenando que os m1ss10- (Torero, 1997).
46 Consuelo Allaro Lagolio

No prólogo do Uxico, frei Domingo de Santo T~más observa que hubo quien se acordase de cosa tan [...] necesaria. [...] Por lo cual [...]
deve omitir "cosas que no tenian ni se usauan en aquellas t1erras [...) mochos muchas províncias ignoran dei todo la lengua general que hablavan y todos
términos de frutas, de aves, animales, officios, vestidos [.. :] delas cosas d.e los Collas y Puquinas, contentos con sus lenguajes particulares y propios
la fe católica, de ornamento de iglesias (...]'', termos e~ra1zados n~ tradi- desprecian e! de Cuzco.
ções religiosas andinas também são omiti~os, po~s são objeto de erradtcação,
como parte da política de extirpação de 1dolatnas. Ao evocar o quadro de línguas, o cronista compara as políticas
Entradas lexicais do modelo de Nebrija eram desdobradas, para que incaicas com a situação da época: "aquella confusión y multitud de lenguas
o contato tivesse êxito. O termo sacerdote terá duas entradas: sacerdote de que los Incas con tanto cuidado procuraron quitar há buelto a nascer de
dolos traduzida pelo termo quechua homo; e sacerdote de christiano: nuebo". Ainda que houvesse representação idealizada de uma unificação
~na diospa cococ, criando/adaptando uma formulação quechua. Na p~e lingüística que não existiu - pelo menos total ou hegemonicamente -, o
quechua do Uxico, o termo que corresponde a sacerdote homo é traduzido cronista assinala como a ruptura da ordem social mudou o quadro e o curso
como agorero, hechizero, passando por ressemantizaçã? .':. difere~ciaç~s das línguas.
explicativas entre as concepções cristãs e as das rehgioes andmas, Já Todavia, o processo de penetração continua no final do século XVI
indicadoras, àquele momento, da presença da Inquisição. O termo quechua e o contato com populações indígenas apresenta situações variadas. As
para divindade, guaca, é correspondido por ydolo (Torero, ~997). . novas versões, que propõem o ensino de espanhol, estão na Consulta dei
A identificação das idolatrias com a língua consta da bsta de práticas Consejo de Índias com Felipe li, documento que discute as causas que
condenadas no Segundo Concílio. Como uma das estratégias d~lineadas, os levam a ordenar os índios a falarem em espanhol (1596). Argumenta que
"experts" em línguas indígenas são convocados a ela~orar. m_strume~tos
catequéticos nas línguas gerais, úteis à difusão da doutrina cnstã, segumdo hay mucha variedad de lenguas: porque aunque en el Perú se platica y
a linha do Concílio de Trento (1545-1563). Uma das principais ~~as da habla comunmente la general que llaman Inca, hay en provindas y lugares
organização do trabalho de catequese consiste na p.rodução de matenats nas particulares de indios otras lenguas diferentes que no entienden los que
duas línguas gerais mais importantes da área andma: quechua e aymara. saben la general, como en Espaiía la vizcaína, portuguesa y catalana y otras
[.. .].
Língua geral versus diversidade
Ao lado disso, o documento reitera os questionamentos já fonnulados
A diversidade do mundo andino, resultante da expansão territorial e nas lnstrucciones, de 1596, sobre a "impropriedade" do léxico das línguas
da conquista de várias populações pelos incas, havia sido ordenada pelo indígenas para expressar a doutrina cristã: "en Ia mejor y más perfecta
império por meio de uma bem cuidadosa administração que c~ntrolava g~n- lengua de los índios no se pueden explicar bien y com propiedad los misterios
des extensões. Um dos meios de controle - parte da eficiente máq~1~a de la fé, sino com grandes absurdos e imperfecciones".
administrativa - era a língua. A tolerância da diversidade lingüística coex~stm
com uma língua comum, que serviu não só como instrumento de conquista, Catecismo e língua geral
mas também como meio de manutenção do poder.
Entretanto, a conquista européia, ao desestruturar o aparelho incaico, . No mundo andino, a língua mais geral de todas, por ser compreen-
havia interrompido a função de comunicação e coesão interna da língua dida em todo o território que fora o império incaico, é identificada desde
geral, a qual estava perdendo terreno. O jesuíta mestiço B. Valera (1609) cedo por cronistas e missionários como lengua general, Jengua dei Jnga
descreve o processo: ou Jengua dei Cuzco. No entanto, essa língua é uma koiné, que servia de
comunicação na administração incaica. Tal variante é a escolhida pelos
Muchas províncias que cuando los primeros espaiioles entraron a conquistadores, a fim de facilitar a empresa de penetração. Sobre ela, 0
Cassamarca sabían esta lengua común como los demás indios, ahora la cronista Cieza de León disse que "fue harto beneficio para los espafioles
tienen olvidada dei todo, porque acabándose el mando[...] de los Incas, no aver esta lengua pues podian com ella andar por todas partes". Isto repre-
. ad lít' lingüística anterior à Entretanto, deverá circular ainda a discussão sobre a possibilidade de
sentava o resultado de uma longa e cu1d osa po ica . traduzir o ideário cristão a línguas "pobres", visto que a penetração continua
. . . . p suas múltiplas vantagens,
sua chegada, ainda durante o 1mpéno mcaJ.cO. or . e a administração colonial encontra nas províncias mais longínquas a situa-
a variante koiné havia sido escolhida para a comunicação. . d ção de variedade e fragmentação agravada pela perda da LG. Em resposta
Muitas das práticas catequísticas de alguns religiosos provinham . e! a um pedido do bispo de Charcas, uma cédula real de 1586 ordena ao vice·
iniciativas independenteS das auton.dades ec1est·ásu·cas, improvisando
. matena rei do Peru que proceda ao ensino de espanhol entre os índios,
. d d' ersidade dialetal. Por
- catecismo confessionários - dentro de gran e iv .
' bl de produzir nessas
outro lado a forma como se enfrentava o pro ema . dada la pobreza idiomática de sus idiomas [... ] que los de una provinda no
' . . . - id tal apresentava riscos à integn- entienden a los otros y ser lenguas pobres de vocablos, nombres y verbos
lfnguas um discurso teológ1co cnstao-oc en
. ·at
dade do dogma católico. Assim, maten manuscn1
· sem controle das dau-
° . para significar muchas cosas importantes, con a ressalva de sin dejar por
. . .. . . d s conhec1mentos e as
tondades e escolha hnguíst1ca ficavam por con1a o ello de exigir a los curas el conocimiento de las lenguas aborígenes (Real
afinidades do doutrinador. ff , ma Cédula, 1586).
A tarefa de uniformização proposta pelo Terceiro Cone 10 e u .
d·retas no "planeJa-
resposta à diversificação pastoral. com consequencias 1 A composição de discursos eclesiásticos nas línguas indígenas para
.. A •

_
. .
mento" da língua. A p0Ift1ca homogene1zante - um
a língua, uma versao. - dar conta das traduções, guardando os princípios dessa retórica, é conside-
. d d. rs ·dades De maneira rada tarefa difícil. A Gramática [da língua quechua], Qe frei Domingo de
exige tomar decisões frente a esse conjunto e 1ve 1 • • •
. ... u·
enfática, as disposições pedagógicas e !mgu1s cas O
d Terceiro Concíllo obn-
• Santo Tomás (1560), inclui uma tradução da Plática para todos los índios,
gam sob pena de excomunhão, "a todos los párrocos que de aqut m~b~sedn com a avaliação que a tradução "se hizo con no pequefio trabajo, por la
'
el catecismo . de cualqu1er
autorizado com exclus1ón · out ro [J"pro1mo
··· , . mucha difficultad que ay en declarar cosas tan diffíciles y desusadas a los
. mará de las orac1ones lndios". O jesuíta José de Acosta faz um paralelo entre as lenguas índicas
"que se baga outra traducc1ón en lengua cuzquense o ay "
rudimentos de doctrina cristiana". O documento ainda contempla los que e o hebreu, o grego e o latim, para provar a simplicidade e a facilidade de
Y · J" mandando
hablan una lengua diversa de tas arriba mencionadas [genus • aprendê-la e ainda afirma que, apesar dos sons "bárbaros", são capazes de
"modos de decir tan bellos y elegantes". No entanto, essas línguas "tienen
que os bispos
una gran penuria de palabras, porque como bárbaros (os índios] carecian dei
.d 1 stantes lenguas de sus conocimiento de estos conceptos" (Procuranda indorum salute, 1588).
provean que este catecismo sea verti o en as re .
. . d que Ja traducc1ón sea
diócesis por traductores idóneos y pia osos Y• .ó
aprohada por el obispo sca adoptada s1n. d.1scus1·•n [...] (De la redacc1 n Codificação e escrita
y edición de un catecismo, 1591, cap. 3).
Contudo, embora a Jengua general servisse para diversos tipos de
O documento concihar. faz uma declaraç ão pnnctpi
· · · sta, destinada a interação, inclusive a catequética, a variedade de língua proposta para a
escrita não será essa LG. Uma língua "prestigiada" como o quechua
sentar cátedra e resolver a polêmica em tomo da língua de catequese:
cusquenho - considerada "elegante e perfeita" (Jerónimo de Ore, 1598) -
. · · d la catequesis es também não será a variante escolhida para tal função. A preocupação era
La finalidad fundamental de la instrucc1ón cnstlana Y e . . .
obtener JUSllc1a atingir o máximo de intercompreensão dialetal, com a maior cobertura espa-
la percepción de la fe, pues creemas con el corazÓn para
·ón Por ello cada uno cial, especialmente dirigida às províncias do norte.
lo que confesamos con la boca para alcanzar 1a sa1vaci · ' . . Neste sentido, algumas das características da variante cusquenha
.
ha de ser instruído de manera que enllenda: e1 esp... ,o en
-• J ospaiiol·• el md10
. · ú · dio a aprender las são rejeitadas porque, "siendo de suyo difflciles de entender las sentencias
en su lengua. [...] Por tanto, no se obhgue a mng n m . de la Doctrina Christiana no [era] bien obscureceria con lenguaje exquisito
ho mejor que to diga
oraciones o el catecismo en latín porque basta Yes muc y de pocos usado". Dessa forma, tentava fugir do "modo tosco y corrupto
. • • ........4..,s gar también en espaiiol, que
en su idioma· y s1 alguno qu1s1ere, l"'.... " agre de hablar que ay en algunas provindas", provavelmente referidos à LG e às
' ·n4·
ya dominan muchos de ellos (Que los I ws sean adoctrinados en su falas do norte, e buscava evitar
lengua, cap. 6).
.
la demasiada curios1dad con que algunos de1 eu"º y su comarca usan los língua. já era uma das estratégias usadas, desde 1560, pelo frei Tomás, que,
. ..
vocablos y modos de dezu tan exqws1tos Y
obscuros que salen de los no oferecimento da Gramática quechua ao rei Fe1ipe II, disse:
. que prop1amente
límites del lenguaJe . se 11am, Quichua• introduziendo
vocabJos que por ventura se usavan antiguamcnte Y ahora no t...]. [oferece] este artez.illo [... ] para que por él veais [... ] quan falso es lo que
muchos os han querido persuadir ser los naturales de los reynos dei Perú
O Concílio propõe huyr de esos dos extremos. As Annotaciones bárbaros & indignos de ser tratados con la suavidad y libertad que los
fazem um levantamento minucioso da dialetologia quechua. com dados. nos demás vasallos vuestros son. Lo qual V. M claramente conoscerá ser falso
moldes de um Appendix probi, com anotações e observações fonológicas, si viere por esta Arte la gran policfa que esta lengua tiene, la abundancia
sintiticas, morfológicas, léxicas e até de retórica. rí . de vocablos, la conveniencia que tienen con las cosas que significan, las
· se as caracte stt-
0 Concílio sugere encontrar uma língua que tives maneras diversas y curiosas de hablar, e! suave y buen sonido ai ofdo dela
cas de ser geral, de fácil compreensão e sobretudo propriedade. A LG pronunciación della, la facilidad para escrivirse con nuestros caracteres y
atendia jus1amente à primeira qualidade. em grande parte à segund~, ~rém letras; quan fácil y dulce sea a la pronunciación de nuestra lengua el estar
.
era desquahficada .
na terceira. ·
Assim, como a ![ngu a "ideal" não existia, ela ordenada y adornada com propiedad y declinación.
foi "criada" por decisão dos tradutores do Concílio, seguindo algu~ caril':·
terfsticas da nonnatização lingüística ibérica. À maneira da padromzação da O prólogo da Gramáiica expressa uma afetividade próxima à iden-
escrita em língua espanhola, que tinha sido feita a partir da variante tol~a, tificação de um nativo. Nesse discurso, já se fazem presentes os valores de
a composição do modelo arquetípico da língua quechua se fez a parttr da erudição que acompanham a construção de prestígio das línguas. Uma língua
variante cusquenha, que ideologicamente é representada como a língua do com arte, vocabulário, ortografia e sujeitos falantes e enunciadores de dis-
centro de poder ou das elites, Porém, devia passar por process~ de depu- cursos eruditos é digna do status de uma "verdadeira" língua; portanto, serve
ração das "esquisitices", fonnas arcaizantes e obscuridades. As.sim, .º pro- como elemento de identidade. Tentam-se atribuir valores, a princípio confe-
cesso de pfaneJ· amento produziu uma língua escrita que não se 1dent1ficava ridos às línguas de poder - à maneira das línguas vulgares emergentes,
totalmente com qualquer das línguas faladas pelos povos and'mos. Entretanto' provenientes das línguas gerais-romance -, como forma de transferir status
era uma língua que podia ser lida tanto por setores "'II u strados" do clero a essas línguas gerais indígenas. Entretanto, embora sejam línguas com usos
quanto pelas autoridades, e ainda por índios ladinos: a leitura era compreen- "nobres", não há Estados que as respaldem.
dida ao longo de todo o extenso território. d. O conhecimento de línguas indígenas já ganhava importância no
Por outro lado, a proposta de uma escnta · h.1pod'f
I ere
nciada. ten ta a
exercício profissional do sacerdócio, de tal forma que, em 1576, uma bula
unificar um sistema de representação que pudesse resolver as d~fe~nças papal assinada por Gregório XIII autorizou o ordenamento de Ulegitimis
dialetais. Junto à imposição de uma versão/uma língua, o Concflto impôs genis [filhos ilegítimos], sob a condição de saberem "el idioma de los
normas ortográficas a serem seguidas até o século seguint~. Desse modo, índios". Para isso, invocou os princípios do Concílio de Trento e mostrou a
no nível da escrita a fragmentação dialetal pareceria resolvida pelos tradu- força de pressão dos setores indigenistas do clero frente aos castelhanistas.
tores da doutrina. Êssa língua, "universal" ao ~un~o qu~hu~ e_depurad:rd: Paralelamente, o fato de as cédulas e ordenanças reais explicitarem a
suas "imperfeições" servia então para traduzir o ideário cnstao e vert obrigatoriedade do conhecimento das Unguas gerais indígenas para o exer-
retórica sennonária.' litúrgica, doutrinária. No entanto, e~a não se preS tºu cício do sacerdócio vai criando condições de profissionalização no métier.
apenas aos discursos religiosos, pois esses não são os único~ a serem pro-
Na década de oitenta do século XVI, certamente se consolida essa
duzidos e reproduzidos; em processos judiciais e argumentaçoes d~ nature; tendência. Neste sentido, a medida mais emblemática está contida nas qua-
jurídica, também se encontra documentada tal língua (Cerrón-Palonuno, 199 ·
tro cédulas reais que criam as cátedras de línguas gerais, tanto para serem
ministradas no Colégio da Companhia de Jesus (janeiro de 1580), quanto no
Funções da língua geral âmbito da Universidade de Lima, com o objetivo de legitimar o ofício e, ao
mesmo tempo, dar uma função social ao ensino das línguas gerais, dirigida
A construção de um discurso destinado a legitimar o status de língua
a "muchahos de todas las naciones, procediendo [ai estudio) de Ias gramá-
"completa", com todas as funções sociais, incluídas as mais elevadas da

l
Elementos de política ~ngüística colonial hispãrica... 53

ticas de las lenguas y desde allí a las artes y basta las supremas facultades". Bilingilismo e resistência
Institui-se que "sean bien enseíiados", porque é "nuestro deseo .com~ es de
procurar el ennoblecimiento destos Reinos y que en la dicha Umvers1dad se Nos séculos XVI e XVII, os efeitos dessa linha podem ser avaliados
ejercite la juventud [... ] en virtuosa ocupación" (~ter~1bro de _1580). . no discurso de dois cronistas, falantes nativos da língua quechua, bilíngües
As práticas discursivas mais "elevadas" - hturg1a, sermoes e .oratóna com espanhol, ambos intelectuais: o mestiço cusquenho Inca Garcilaso de la
da doutrina cristã - têm na língua geral um instrumento de retónca com Vega e o índio Guamán Poma de Ayala. O primeiro conquista seu lugar
propriedade e, da mesma forma, a catequese consiste em colocá-la à dis- como testemunha e fruto dos primeiros contatos, num discurso erudito em
posição dos recém-cristãos. . que domina literariamente a língua espanhola, enquanto o segundo constrói
O estabelecimento das cátedras nas Universidades de Lima e Mé- a representatividade da identidade andina num texto construído em espanhol
xico, por meio de concurso público e de um soldo para esse fim, cris~~za pidgin, recorrendo também às diferentes variantes dialetais, regionais e so-
a função catequética das línguas gerais e outorga um statu.s aos profissio- ciais da língua quechua. Os dois reivindicam, por meio da língua, sua legi-
nais; o soldo é estipulado em quatrocentos ducados anuais (setembro de timidade e autenticidade testemunhal frente às narrativas do gênero da crô-
1580). Pouco depois, uma Ordenanza Real sobre as Cátedms de Lengua nica, monopolizadas pelos espanhóis.
General estipula a obrigatoriedade do .:.onilecimento das línguas para 0 O sentimento de expropriação referente às versões históricas e à
desempenho de qualquer cargo eclesiástico, solicitando que língua pode ser observado na abordagem crítica do uso e do ensino da língua
geral pela administração colonial hispana. Inca Garcilaso de la Vega, em
no ordenen [...] ni den licencia[...} a ninguna persona que no sepa la lengua Comentarios reales, narra um episódio em que encontra, na Espanha, um
general de los indios y sin que lleve fé y certificación dei catedrático que dominicano que havia sido catedrático de língua geral no Peru. Garcilaso
Jeyere la dicha cátedra de que ha cursado [...} por lo menos un afio. exibiu a série de oclusivas glotalizadas, características da variante cusquenha,
as quais apresentavam dificuldades para os espanhóis e, por isso, eram
Ao mesmo tempo, propõe exames lingüísticos de proficiência para se chamadas bárbaras. Surpreso pelo desconhecimento do dominicano, o cro-
candidatar, assim como uma avaliação para quem já está no cargo nista mestiço conclui:
(Ordenanzas, setembro de 1580). En lo que se ha dicho se ve largamente cuánto ignoran los espaiioles los
Se, do ponto de vista político, criam-se condições materiais e até uma
secretos de aquella lengua; pues este religioso, con haber sido maestro de
infra-estrutura para a institucionalização do ensino e reprodução da ~G, do
ella, no los sabía; por do vienen a escribir muchos versos, interpretándola
ponto de vista ideológico há um investimento doutrinário para isso. O Jesuíta
mal, como decir que los Incas y sus vasallos adoraban por dioses todas
José de Acosta desenvolve elementos teológicos para reprovar a conduta do
aquellas cosas que llaman 'huaca', no sabiendo las diversas significaciones
"sacerdote que sin saber la lengua índica acepta el oficio de párroco {...]
que tiene (Comentarios reales, 1600).
sostengo que le espera la ruina de su alma", argumentando que
No caso de Guamán Poma - um índio ladino, falante nativo da
la fé no la pueil.e ensei'iar y predicar el qt•e no sabe la kmgua; el sacramento variedade chinchay, iniciado na escrita e no espanhol por meio do contato
de la penitencia tampoco lo puede administrar el que no entiende lo que com o clero, que escreve Nueva crónica e buen gobierno (1616) -, os
el indio confiesa, ni cl indio entiende a 61 lo que 1e manda; Yque 61 no puede efeitos do Terceiro Concílio são mais evidentes. O autor, que escreve em
instruir en la fé ni ayudar en la penitencia a las ovejas que le están espanhol quechuizado, com glossas em língua quechua e aimara, usa as
confiadas tome el nombre de pastor, cualquiera ve que no puede ser sin estratégias da oratória religiosa, tendo como modelo o sermão para seus
grave crimen e injuria. objetivos persuasivos, conforme as normas conciliares de catequese. Tam-
bém cria sennões, discursos e sátiras, refletindo diferentes registros do quechua
Acosta usa o peso de sua investidura para julgar e condenar a da época. Algumas sátiras ficam por conta da reprodução de discursos de
prática missionária sem o conhecimento da língua geral indígena, reforçando, autoridades e de exploração por parte do clero, ironizando o elemento eu-
assim, essa linha política de catequese. ropeu no contexto andino:
54 Coosuel0Alfarot.agorio

Y le dize el padre: Hijo lisenciayuan ripui [...} cabrayta, ouejayta, 11amayta. veículo de catequese leva autores como Anderson (1989) a afirmar que a
ata guallpayta alli uaycaychanca so]teronacuna [...} [Com mi licencia ándate Coroa espanhola não formulou uma política lingüística ao longo do processe
. .
alli ( ... ] que las solteras cuiden bien mis cabras, ovejas, mis llamas mis de conquista, mas sim as ordens religiosas - jesuítas, dominicanos e
gallinas]. franciscanos, principalmente-, que interagiam com a administração em seus
diferentes estamentos, de forma casuística, por meio de requerimentos que
Ao reproduzir a fala quechua dos espanhóis, satiriza ainda: Apomuy fundamentavam as decisões. Assim, não havia linearidade ou organicidade
cauallo. Mana miconqui [Trae el caballo. No vas a comer] - uma tra- nas disposições. Entretanto. a legislação aponta tendências em que podem
dução literal, sem as marcas quechuas de objeto, tampouco a parte descontínua ser reconhecidos elementos de política, entendida não só como intervenção
do morfema de negação, obrigatórias em quechua, mas que, por não exis- deliberada do Estado, mas como processo histórico que envolve diferentes
tirem em espanhol, o hispano falante não consegue usá-las. tipos de mudanças lingüísticas nas sociedades. Os aspectos intervencionistas,
Embora setores clericais indigenistas considerassem a LG como ins- observados nas decisões lingüísticas quanto às escolhas na América indíge-
trumento especialmente útil para a catequese, os nativos letrados viam na na, seguem princípios e modelos normativos das escolhas na península
língua um espaço emblemático para a identidade coletiva, a memória e
sobretudo uma possibilidade de reconstrução da coerência do mundo andino.
Referências bibliográficas
Reflexões finais
ANDERSON, Benedict. Na'çllo e consciência nacional. São Paulo: Ática,
O Terceiro Concílio Limense representou um acionamento 1989.
institucionalizado de medidas de catequese para dar peso a uma escolha que CERRÓN-PALOMINO, Rodolfo. "Diversidad y unificación léxica". ln: El
já provinha de uma práxis, ainda que de forma não-orgânica, com conse- quechua en debate - ideologia, normalización y enseiianza. Cusco:
qüências no destino das línguas. A escolha das línguas gerais indígenas Centro de Estudos Bartolomé de las Casas, 1992.
colocou em pauta uma visão da língua não só como conjunto de fonnas, mas GUAMÁN POMA, Felipe. ''Nueva crónica y buen gobierno". Histon·a, n.
como lugar de significados, e ainda como instituições sociais, onde são exer- 16, Madri, 1987 [1616].
citadas suas práticas. HAMEL, Rainer Enrique. ''La política del lenguaje y el conflicto interétnico
A política conciliar impôs modelos e processos que orientaram a - problemas de investigación sociolingüística". ln: Política Lingüística
detenninação de usos e funções das línguas gerais. No âmbito público, na América Latina. Campinas: Pontes, 1988.
guardou relação com a criayão de um conjunto de discursos eclesiásticos, NINYOLES, Rafael Luis. Idioma y poder social. Madri: Tecnos, 1976.
jurídicos e eruditos que legitimaram esse status; na área interna, estabelece- SANTO TOMÁS, Fray Domingo. Grammotica: arte de la Jengua general
ram-se normas gramaticais e elaboraram-se dicionários e alfabetos dessas de los indlos de los reynos dei Perú. Cusc.o: Centro de Estudos
línguas. A opção era escolher uma língua indígena como veículo de catequese, Bartolomé de las Casas, 1995 (1560].
mas passando por uma intervenção, de fonna a possibilitar a circulação do SOLANO, Francisco. Documentos sobre política lingUística en
ideário cristão. Hisparwamérica - 1492-1800. Madri: Conselho Superior de Investi-
No campo pedagógico, fixaram-se metas quanto a programas e gações Científicas, 1991.
metodologia de ensino. A formação de línguas (tradutores), os currículos das TORERO, Alfredo. La historia social dei quechua. Lima: Universidade
escolas para filhos de caciques e a criação das cátedras de línguas indígenas Ricardo Palma, 1968.
nas universidades americanas (1580), no Peru e no México, por intermédio
de cédula real (carta régia), referendam o prestígio que alcançaram essas
línguas e geram espaço de debate de sua produção.
O caráter oscilante da documentação que legisla as línguas entre a
orientação castelhanizante e em favor das línguas gerais indígenas como
As línguas gerais sul-americanas
e a empresa missionária:
linguagem e representação
nos séculos XVI e XVII·
Cristina Altman ••

Na atuaJidade, mesmo sendo inviável saber o número exato das


línguas existentes quando da chegada dos primeiros europeus ao continente
americano, certamente não estaremos exagerando se admitinnos a existên-
cia de centenas delas, superpostas umas às outras e variáveis no que diz
respeito à extensão e ao prestígio (Tovar, 1963). Gray (1999, p. 10) cita
fontes que estimam entre mil e duas mil línguas faladas nas Américas, no
século XVI. Rodrigues (1993, p. 90; 1997, p. 372), a partir de informações
da época, como, por exemplo, a de Cardim (1980 {1625), pp. 101-6), estima
que, apenas no tenitório que hoje corresponde ao Brasil, eram faladas mais
de mil línguas. Dependendo do critério utilizado para se distinguir "língua" de
"variedade de língua", o número pode variar na literatura sobre as línguas
sul-americanas, mas nunca será de baixas proporções.
Ainda que extremamente complexa, a situação lingüística do conti-
nente não oferecia propriamente novidade aos olhos (e aos ouvidos) euro-
peus dos séculos XVI e XVII, que já haviam experienciado a diversidade
das línguas africanas e asiáticas, além daquela manifestada pelas variedades
nacionais européias. Entretanto, vale lembrar que o contato com o "Novo
Mundo" amplificou sobremaneira a cultura lingüística do homem renascentista,

Este ensaio é uma versão revista e ampliada de texto anterior, apresentado pela primeira
vez, on Une, na página do GT de Historiografia da LingUfstica Brasileira (ANPOU),
com o título "As Línguas Gerais e a Empresa Missionária Colonial. Linguagem e
Representação MetalingOística". Como tal, foi debatido durante o I Colóquio sobre
Línguas Gerais: Política Lingüística e catequese na América do Sul no Perfodo Colonial,
organizado pelos colegas Maria Carlota Rosa e José Bessa Freire, e promovido pelos
Depanamentos de Lingüística da UFRJ, de Literatura Comparada da UERJ e pelo
próprio GT, em 29 e 30 de agosto de 2000. A eles e aos demais participantes, meus
sinceros agradecimentos pelas criticas e sugestões, várias deJas incorporadas a esta
versão. Nunca será demais acrescentar que os erros restantes são meus.
•• Universidade de São Paulo.
tanto do ponto de vista quantitativo - com dados de línguas ti~ologica_me~te das a regras", na metalinguagem da época, e objeto de elaboração dos
bastante diferentes das indo-européias-, quanto do ponto de vista quahtatlvo primeiros vocabulários, dicionários e gramáticas feitos pelos missionários
_ com estratégias originais de descrição lingüística. Acrescente-se ainda católicos. Tipicamente foi o caso do náhuatl (ou lengua mexicana), falado
que, além do universo inumerável de línguas "exóticas", um dos maiores na Nova Espanha (grande parte do México de hoje), língua do império
desafios que a América impôs à tradição ocidental foi a conciliação de seu asteca que, antes do início da conquista espanhola em 1519, já se havia
sistema de crenças, tal como o proposto pela teodicéia bíblica, com os superposto a várias outras línguas locais como a da administração e do
interesses da empresa colonial e as novas realidades que lhe apresentava o comércio (Roca, 1992, p. 65). De fato, os náhuas (ou astecas) já haviam
universo americano (Zimmermann, 1997, p. 16; Gray, 1999, p. 13). penetrado consideravelmente no território que hoje conhecemos como me-
Este trabalho levanta a hipótese de que, na conjunção de três aspec- xicano pelo menos desde 1428, portanto quase um século antes da chegada
tos - metalingüístico, missionário e empresarial -, a comparação e a clas- de Hemán Cortés (1485-1547) à cidade do México, em 1520. Durante cerca
sificação de línguas sul-americanas se tomaram tarefas viáveis, ao mesmo de cem anos de expansão pré-colombiana, esse povo conquistou a maioria
tempo em que se fizeram acompanhar de uma incipiente relativização na das províncias do norte do país e dominou toda a região compreendida entre
interpretação de suas diferenças: primeiro passo para o gradual abandon~ do Tuxpan, no Atlântico, e Cihuatlan, no Pacífico, sem penetrar, entretanto, na
modelo greco-latino como instrumento privilegiado de descrição gramatical, região Maia. Ao sul, ocuparam a área constituída pelo que se conhece hoje
na tradição de estudo dessas línguas, e para a paulatina autonomização dos como os estados de Oaxaca, Guerrero, pelo Istmo de Tehuantepec e pela
1
conceitos de "língua" e "nação" na reflexão sobre a diversidade lingüística. Costa de Chiapas e da Guatemala, ao lado do Oceano Pacífico (Cuaron e
Proponho que os primeiros registros das línguas sul-americanas de Lastra, 1996, pp. 97-100).
grande difusão geográfica - as chamadas línguas gerais - representem a
primeira etapa do que se configurará, na tradição americanista, como as
práticas emergentes de descrição da diversidade lingüística, a viabilizarem,
nos séculos seguintes, a compilação, a classificação e a tipologização lingüís-
ticas como programa de investigação autônomo, processo que ocorreu de
forma descontínua e periférica em relação aos interesses europeus do
momento e um tanto quanto errático pelo menos durante os três séculos
seguintes. Por hipótese, esse processo só pode ser reconstruído de forma
tentada e a posteriori, como no presente ensaio.

As línguas chamadas gerais

--~ . . . .
.......-...-... ~-
No contexto colonial americano, as chamadas línguas gerais foram

1 ............................
as línguas autóctones inicialmente escolhidas pela administração e pela Igre-
ja como veículo supra-regional de contato entre as diversas populaçõ~s
coloniais. Como se sabe, foram também aquelas preferencialmente "reduzi- .,_
·-
"' """"
A idéia de comparar formas e sentidos de diferentes línguas para estabelecer rela_ções
genéticas entre elas remonta evidentemente a períodos e tradições basta_nte ~nt~~ores
""-
Mapa 1 - Zona de influência asteca e maia no século XVI (adaptado de Hernández-
(Koerner, 1995b). O que a tradição missionária acrescentou a essa idéia foi a viab1hdade
Sacristán, 1997a).
de usar também a estrutura gramatical como termo de comparação (Hervás, 1800, P· 65),
já que semelhanças na forma podem ser acidentais. Faz-se necessário ~xplorar '.11el_h~r
até que ponto essa guinada metodológica causou algum impacto na histonografia hngu1s- Caso de expansão semelhante teria sido o das línguas da regiao
tica ocidental (Hassler, 1994). andina, como o quechua (ou lengua peruana), língua do império inca falada
61
Cristina Altman

na costa oeste da América do Sul, aproximadamente do Equador até o norte


do Chile, incluindo Peru, Bolívia e parte da Argentina de hoje (Vargas, 1947,
p. 28; Tovar, 1961, p. 53; Moya, 1992, p. 7; López, 1993, pp. 14-5). Os incas,
habitantes da costa do Pacífico, constituíam elite política, religiosa e militar,
originariamente falante de várias línguas, que adotou o quechua como língua
geral, quando obteve a hegemonia em todo o território de Tahuantinsuyo
(Moya, 1992, p. 12). O jesuíta D. Alonso de Huerta, (?-1640), na introdução
de Arte quéchua, de 1616, explicita os domínios do Reino do Peru à época:

Este nueuo Reyno dei Pirú es tan estendido y grande que, continene en si
muchas Prouincias, y Reinos distinctos vnos de otros, como son el Reyno
de Chile. La Prouincia de Tucuman. La delos Charcas y Potosf. El Cuzco,
Lima, Llanos, y, Sierra, Truxillo, Huanuco, Xau-ja, Caxamarca, Chachapoyas
YQuito (Huerta, 1993 [1616), p. 1).

Em certa medida, também foi o caso do aimará, que se generalizou


ao lado do quechua cuzquefio até, pelo menos, o final do século XVII, no
t~rritório que hoje corresponde em grande parte à Bolívia e ao Peru, como
lmgua de diversas nações, como aimaraes, canchis, canas, contes, collas,
lupacas, pacases, charcas, carangas e quillacas (Cerrón-Palomino, 1997).
De igual modo, o guarani, falado principalmente na região oeste do estado
brasileiro do Paraná, antiga Província de Guairá (Dietrich, 1995, p. 288),
para citar apenas as línguas que tiveram maior prestígio e que foram alvo
do maior número de publicações no período. Não sem razão, Pottier (1983,
~- 22) menciona que "[e]n 1600, Giovanni Botero publica en Venecia un libro
titulado La relazioni universali, en el que afirma que, con las lenguas
guaraní, cuzcana (quechua) y mexicana (náhuatl), se podía viajar por todo
e! Novo Mundo".
Embora na América portuguesa inexistisse nação indígena compará-
vel cultural ou politicamente aos impérios asteca ou inca, narrativas como as
~e Pero Magalhães Gandavo (?-depois de 1579) atestam que uma única
hn~a era falada ao longo de toda a costa (Gandavo, 1858 [1576], p. 119).
Na informação de 1584, o jesuíta José Anchieta (1534-97) explicita o que
se devia possivelmente entender pela costa brasileira àquela época: Mapa 2 - Zonas de influência quechua, tupi e guarani no século XVI (adaptado
de Al,den, 1996).
Desde o rio do Maranhão, que está além de Pernambuco para o norte, até
a terra dos carijós, que se estende para o sul, desde a Lagoa dos Patos até Por essa razão, tratarei aqui também o tupi antigo como língua geral,
perto do rio que chamam de Martim Afonso, em que pode haver 800 léguas embora, neste caso, e diferentemente da América espanhola, o termo se
de costa, em todo o sertão dela que se estenderá com 200 ou 300 léguas, referisse mais à amplitude territorial em que a língua era usada na costa
tirando o dos carijós, que é muito maior e chega até as serras do Peru, há brasileira, nos séculos XVI e XVII, do que a eventuais funções na adminis-
uma só língua (Anchieta, 1989 [1584], p. 59).
tração ou na política coloniais (fovar, 1961, p. 84; :rvtcQ~own.' 1976; R°?rigues, catecismos, as biografias dos santos e, para os próprios missionários, as
1996). De acordo com Rodrigues (1958, 1994), foi o tupi antigo, ou tupmambã, gramáticas, os sermonários e os confessionários (Navarro, 1995).
ou língua brasílica, como foi denominado no século XVII, a língu~ q~e No que diz respeito especificamente à América Latina, ainda que os
passou a ser fa1ada por toda a população colonial ao longo da costa brasileira interesses das Américas espanhola e portuguesa fossem em grande parte
e que originou a língua geral da América portuguesa ou, ao menos, de parte coincidentes - ao menos oficia1mente fonnaram uma só Coroa entre 1580
dela. Voltarei a esta questão na seção seguinte. e 1640, sob o domínio espanhol -, a produção lingüística missionária desse
Como se vê, essa espécie de língua franca, que se nomeou gera1, período foi bastante desigua]. As gramáticas da América espanhola foram
embora tenha sido um fenômeno característico de todo o território america- bem mais numerosas, certamente devido a uma política de ensino de línguas
no, designava funções e práticas lingüísticas nem sempre coincidentes ao indígenas bem mais agressiva (os três Concílios Limenses, em 1551, 1567 e
longo do extenso continente sul-americano. Há fatores contingentes na his- 1582-83) do que a da América portuguesa, cujos interesses estavam, àquele
tória dessas colônias que eventualmente poderiam estar na origem dessas momento, mais a oriente. Observe-se ainda que a cidade do México possuía
diferenças: tipo de cultura autóctone, modelo de colonização, política lingüís- imprensa própria desde 1539 (Sedola, 1994, p. 86) e Lima(= Ciudad de los
tica e pedagógica adotada, loca1ização geográfica, fatores econômicos, ad- Reyes) já contava com uma universidade desde 1551, com cátedra de língua
ministrativos e assim por diante. Entretanto, de modo geral, a codificação da indígena desde 1580 e, a partir de 1582, também com imprensa própria
variedade lingüística supratribal - ao lado de sua conseqüente adoção como (Cerrón-Palomino, 1997, p. 198).
instrumento de colonização e catequese - foi a primeira resposta do homem Ao contrário, o Brasil só teria sua própria casa impressora no início
europeu ao que lhe pareceu a maior de todas as a1garavias pós-babélicas.2 do século XIX e, somente no século XX, uma cátedra para o estudo do tupi
antigo. Assim, não é de se estranhar que, das eventuais centenas de línguas
Babel americana originalmente existentes em território português nos séculos XVI e XVII, só
tenhamos tido a descrição gramatical de duas delas: do tupi (= tupinambá),
Manuais de história da lingüística geralmente ressaltam a inegável elaborada pelos jesuítas José de Anchieta e Luís Figueira (1575-1643), e do
contribuição das primeiras descrições vemaculares européias para a cultura kiriri, elaborada pelo também jesuíta Luís Vincencio Mamiani (1652-1730)
lingüística renascentista (Robins, 1988; Auroux, 1992a, b). Entretanto, nem (Anchieta, 1990 [1595); Figueira, 1880 [1687] e Mamiani 1877 (1699]), todas
sempre parece suficientemente enfatizado (à exceção talvez de Swiggers escritas em português e publicadas, pela primeira vez, em Portuga1. 4
{1997]) que a produção gramatica1 mais extensa desse período foi a dos Já os dados relativos à América espanhola são bem diferentes. Embora
missionários católicos do "Novo Mundo" americano. Ao longo de três sécu- antigos, os números apresentados por Wonderly e Nida (1963, p. 117) dão
los, franciscanos (O.F.M.), dominicanos (0.P.), agostinianos (0.S.A.) e prin- ainda boa medida do volume da produção hispano-americana. Só para o
cipa1mente jesuítas (S.J.) 3 vieram à América cumprir a dupla função do século XVI, afinnam ter registrado 212 traba1hos de missionários. Desses,
trabalho missionário: catequese e ensino da leitura e escrita. Para isso, como 30 sobre línguas sul-americanas; 27 sobre línguas da América Centra] e 155
sabemos, produziram para os índios e colonos a1fabetizados as cartilhas, os sobre línguas do México, sendo o náhuatl clássico - IÍngua dos astecas do
México centra] - a mais descrita, com 92 trabalhos. No século XVII, regis-
traram mais de 250 traba1hos sobre as mesmas línguas; no XVIII, 21 O.
Neste ensaio, ao incluir o náhuatl, evidentemente ultrapasso o que se compreende hoje Segundo McQuown (1976, p. 105) e Pottier (1983, p. 21), só entre 1524 e
por território sul-americano. Tal imprecisão geográfica se justifica pelos pontos em
1572 os franciscanos produziram mais de 80 traba1hos sobre o náhuatl, entre
comum entre a colonização mexicana e grande parte da colonização sul-americana. A
colonização norte-americana, isto ~. a de origem inglesa ou francesa, seguiu outros gramáticas, dicionários, catecismos, breviários e traduções; dominicanos e
parâmetros. Para a questão da língua geral em território norte-americano, consultem-se agostinianos, outros 30, apenas sobre o náhuatl.
os uabalhos de Wonderly e Nida (1963), Hanzeli (1969). Rowe (1974), Salmon (1985),
Koemer (1995) e Hovdhaugen (1996). Mereceria ser feito um estudo paralelo entre a
lingüística missionária das tt!s Américas. Há referências a um trabalho conjunto de Pe. José de Anchieta e Pe. Manuel Viegas
Respectivamente, Ordem dos Frades Menores, Ordem dos Pregadores, Ordem de Santo ( 1533-1608) sobre a língua dos índios maromomi (= maromemim, marumimi, guarumimim,
Agostinho e Sociedade de Jesus (Backer e Backer, 1891). guarulho), de que não restou cópia (Rodrigues, 19J.8, p. 61).
De um lado, guardadas as devidas proporções, é razoável imaginar 1579/85) encabeçam a longa lista de autores de gramáticas náhuatl deste
que, para ambas as Américas - tanto a espanhola quanto a portuguesa -, período: Pe. jesuíta Antonio dei Rincón (1556-1601); Fr. Diego de Galdo
as línguas locais das várias nações americanas fossem alvo de certa curi- Guzmán (1569-1612), 0.S.A.; Pe. jesuíta Horacio Carochi, (1579-1662); Fr.
osidade por parte dos europeus e, em conseqüência, objeto de coleções, ao franciscano Agustin de Vetancurt (ou Betancurt) (1620-1700); Fr. franciscano
lado de plantas, animais, costumes e instituições exóticas (cf. a extensa Juan Guerra(?) (Olmos, 1972 (1547); Molina, 1571, Rincón, 1967 (1595];
literatura dos viajantes de ambas as Américas). Por outro lado, é razoável Galdo Guzmán, 1642; Carochi 1983 [1645]; Vetancourt, 1673; Gastelu, 1969
admitir que tal diversidade lingüística induzisse a políticas voltadas para as [1689]; Guerra, 1692).'
línguas nativas, em consonância com os interesses das metrópoles. Sem Mais ao sul, nos territórios propriamente sul-americanos, a variante
dúvida, o domínio dessas línguas era indispensável ao sucesso da empresa primeiramente registrada pelo frei dominicano Domingo de Santo Tomás
colonial, o que favoreceu a implantação de uma série de medidas que visas- (1500-1570) foi aquela que se desenvolveu a partir da costa central do Peru,
sem ao conhecimento (e, por extensão, ao controle) da heterogeneidade na altura de Lima, em direção ao sul, sob a fonna denominada quechua
lingüística das colônias. É aqui que os interesses da empresa missionária e chfnchay, ou "dei Cuzco" -variante tida como de maior prestígio em relação
da empresa colonial se associam, visto que o acesso à população autóctone às demais, hoje extinta, e, segundo Torero (1974, pp. 84, 96, 132 e 144),
- seja por meio da proficiência da(s) língua(s), de seu ensino nas escolas, Moya (1992, p. 14) e Cerrón-Palomino (1995, p. 192), aquela que se chamou
do domínio da arte gramatical, seja pela fonnação de aldeias, de distribuição geral.7
da carga de trabaJho e demais obrigações para com a metrópole - estava No primeiro capítulo de sua gramática, frei Tomás adverte que, aJém
nas mãos dos missionários (Bessa Freire, 1983). de usada em grande extensão territoriaJ, a variedade que descrevia também
Uma vez tomada a decisão de adotar uma língua autóctone como era a dos senhores e principais da terra:
língua franca, supõe-se que uma das primeiras dificuldades das missões
recairia sobre a escolha da(s) variedade(s) lingüística(s) a ser(em) Principalmente si afiadieremos a esto, que es lengua que se comunicaua y
codificada(s), aquela, ou aquelas, que iriam, em conseqüência, assumir o de que se vsaua y vsa, por todo el seii.orio de aquel gran seõor llamado
status de língua representativa da ordem coloniaJ. Guaynacapac que se estiende por espacio de mas de mil leguas en largo,
Das línguas estudadas pela tradição gramatical ibérica, certamente, y mas de ciento en ancho. En toda la qual se vsava generalmente della de
o náhuatl foi a mais trabalhada. No momento da chegada dos europeus, todos os sefiores y principales de la tierra, y de muy gran parte de la gente
embora pelo menos duas outras línguas tivessem sido preservadas como comun della (Santo Tomás, 1992 [1560], p. 9).
representantes exclusivas de duas importantes culturas mesoamericanas - a
maia, falada na península de Yucatan, e a tarasca, fa]ada no reino de Frei Tomás é o único dominicano da tradição descritiva do quechua:
Michoacan -, não é difícil perceber por que o interesse recaiu em primeiro à sua gramática, segqiram-se, no século XVII, as dos jesuítas Diego Gonzales
lugar sobre o náhuatl. Mesmo não sendo a língua nativa de todos os mexi-
canos, ela já era usada como língua franca pela grande maioria deles e se
Roca (1992, pp. 65 e ss.) e Canger (1997, p. 59) referem-se à existência de outras
apresentava, assim, como a variedade ideal a ser adotada como língua de gra!m1ica.s anteriores à de Olmos, que provavelmente se perderam; a de Fr. Francisco
comércio, administração e evangelização, ao menos em um primeiro momen- Jiménez (?) e a de Fr. Alonso Rengel (?). Por sua vez. estes teriam sido precedidos pelos
to. Essa variedade do México central foi iniciaJmente descrita pelos missi- flamengos, os primeiros efetivamente a estudarem a língua mexicana: Fr. franciscano Juan
onários e tomou-se clássica (Roca, 1992, e Hemández-Sacristán, I997a).' Tecto (?-1525), Fr. franciscano Juan de Aora e Fr. franciscano Pedro de Gane, (1520-
1572). Ao lado disso. o texto de Olmos seria publicado pela primeira vez apenas no
Os franciscanos Andrés de Olmos (1491-1571) e Alonso de Molina (1513· século XIX, pelo mexicanista francês R~mi Sim6Jn (1827-1889). Embora pertinentes do
ponto de vista documental, estes fatos não alteram a direção de meu argumento, jã que
trato dessas gramãticas como produção coletiva, constitutiva de tradição descritiva,
A rigor, o náhuatl também se fragmentava em outros tantos dialetos, conhecidos como resgatãvel apenas a posteriori.
náhuatl, náhual, náhuat. pipil. pinotl (mapa 1). Aqueles que mais correspondiam à Moya (1993) ramb6m faz referência a outras gramãticas que antecederam à de Santo
modalidade clássica foram os da zona central do México de hoje: Distrito Federal, Tomás e que se perderam; a de Fr. Martín de Victoria (?), Cristóbal de Pardave (?) e
estados do México, Tiaxcala e Puebla (Hemánde:i:-Sacristán, 1997a, p. IS). Gabriel de Minaya (?).

~ - - _i_
Holgufn (1552-1618), Alonso de Huert~ (?-1640), Juan Roxo Mexí~ y de Espaiía: mejor en Florencia la lengua italiana que en los de mas pueblos
Ocón (1602-1648), Diego de Torres Rub10, (1547-1638), Juan de ':g~11lar de ltalia, por estar el uno de ellos en medio de Espaiia, y el otro en medio
( 1690) e Esteban Sancho de Melgar (?), além das que restaram anommas de Italia, como estan los Pacases y Lupacas en medio de todos los Aymaraes
(Anônimo, 1586; Gonzáles Holguin, 1698 [1607]; Hue~, 1993 [1616]; [... ] (Bertonio, 1879 (1603], pp. I0-1).
Torres Rubio, 1700 (1619]; Roxo Mexía y Ocón, 1648; Agmlar, 1939 [1690];
Melgar, 1691). Ao selecionar a variante lupaca, Bertonio reiterou sua opção pela
A expansão do quechua para o norte - a variante .cham"?a quic~ua variedade de maior expressão demográfica, ao mesmo tempo em que
nortenho ou quichua andino do Equador, de menor prestígio - tena ocorrido reproduziu a concepção européia de que a variedade nacional situada no
mais em razão da expansão colonial do que da expansão incaica (Masson, centro geográfico da região em que era falada (no caso, a pacasa),
1997, p. 342) e não escapou à observação (e ao registro) dos primeiros presumivelmente eqüidistante das regiões de contato, era a melhor, crité-
missionários. As duas variantes são objeto de exemplificação na gramática rios aparentemente adotados em toda a América espanhola para a escolha
de Huerta, que assim se justifica: da variante autóctone "oficial".
Na América portuguesa, a questão da escolha da variedade a ser
Aunque la lengua Quichua, y General de el lnga, es vna, se ha de aduertir descrita assumiu outras nuanças. Embora também fosse a mais "pulida",
primero, que esta diuidida en dos modos de vfas de ella, que son, el vno segundo Sousa (1938 [1587]), 8 o tupinambá estava longe de exercer as
muy pulido y congruo, y este llaman de el Inga, que es la lengua que se mesmas funções do náhuatl ou do quechua. José de Anchieta chegou à
habla enel Cuzco, Charcas, y demas partes dela Prouincia de arriua, que se Bahia em 1553, indo quase imediatamente para São Vicente e para o Pla-
dice /ncasuyo. La otra lengua es corrupta, que la llaman Chinchaysuyo, en nalto de Piratininga, onde permaneceu poc onze anos, até 1565. Foi nesse
este Arte y se enseílando algunos para que se entienda la diferencia que período que aprendeu a língua indígena, o tupi de São Vicente (ou tupiniquim),
ay de hablar entre las dos Prouincias, que empieçan, la dei lnga desde língua em que provavelmente escreveu a primeira versão da gramática
Guamanga arriua, y la Chinchaysuyo desde alli abajo hasta Quito (Huerta, encomendada pelo Pe. Luís da Grã (1523-1609) para o Colégio da Bahia,
1993 [1616], p. 1). para onde, de fato, foi levada por volta de 1560 (Rosa, 1998 [ 1995), p. 276;
Rodrigues, 1998, p. 73).9
A situação lingüística da costa peruana não era menos complexa do Esta variante, o tupiniquim, falada na região de São Paulo e São
que a do México. Na região de Quito, além do quechua oficial (= meridi- Vicente, é que teria dado origem à chamada Língua Geral Paulista (LGP), io
onal), falavam-se dezenas de outras línguas regionais, mas nem por isso mais usada na expansão bandeirante do sul e sudoeste do país: São Paulo, Minas
homogêneas, uma vez que se desdobravam também em outros tantos dia-
letos locais (Moya, 1992, p. 16). Lembre-se ainda da existência de outras ''Tupinaes é uma gente do Brazil semelhante no pa=r, vida e costumes dos tupinambás,
línguas da região cuzquenha, mais gerais, como a puquina e a aimará, que e na linguagem não tem mais diíferença uns dos outros, do.que tem os moradores de
competiram em aJgum momento com o quechua (Torero, 1974, p. 136). A Lisboa dos de entre Douro e Minho; mas a dos tupinamb.ás é a mais pulida; e pelo nome
propósito, va1e reproduzir a explicação que o jesuíta Ludovico Bertonio (1555- tão semelhante d'estas duas castas de gentio se parece bem claro que antig8.mente foi
esta gente toda uma, como dizem os ·índios antigos d'esta naç.ão; mas tem-se por tão
1628) forneceu para a escolha da variedade que descreveu em sua gramá- contrarios uns dos outros que se comem aos bocados[... ]" (Sousa. 1938 {1587], p. 406).
tica do aimará, de 1603, a primeira que dela se fez. Observe-se: Anchieta também não teria sido o primeiro a descrever o rupinambá. mas sim Jean de
Léry (1534-1611) (Léry, 1980 [1578)). Há ainda referências a uma gramática do tupinambá
[ ...] principalmente se enseii.a en esta arte la lengua Lupaca, la qual no es feita pelo Pe. João de Azpilcueta Navarro (1522-1557), manuscrita e também desapa-
recida (Dietrich, 1995, p. 287).
inferior da Pacasa, que entre todas las lenguas Aymaraicas tiene el primer 'º Para Rodrigues (1996), a documentação mais relevante desta variedade da língua da
lugar; y es mucho mas elegante, que todas las de mas, que arriva hemos costa brasileira, o tupi austral, é um dicionário de verbos, provavelmente do século
nombrado. La razon desto puede ser: porque ordinariamente hablan mejor XVJII, publicado por [Carl Friedr Phil] von Martius, em seus Gfossaria linguarum
brasiliensium [Glossarios de Diversas Ungoas e Dialectos, que falla,n os indios no
la lengua materna los que [non ?J estan en los extremos, como es verdad
Jmperio d;:, Brazil]. Wõrtersammlung brasilianischer Sprachen. Erlanger: Druck von
que mejor se habla en Toledo la lengua castellana, que en otros pueblos Junge Sohn, 1863.
Gerais, sul de Goiás, Mato Grosso, norte do Paraná, de meados do século representa um número respeitável. Em três séculos, a empresa missionária
XVII a meados do século XVIII (Rodrigues, 1994), Como tal e à exceção havia acumulado infonnação suficiente sobre a diversidade lingüística ameri-
do dicionário de von Martins (1863), não lhe restam outros documentos. A cana, para notar o quanto poderia haver de "afinidade" entre elas: na pronún-
versão publicada da gramática de Anchieta, de !595, f~ra muito p':°vavel- cia, no vocabulário e, nos tennos de Hervás, também no "artifício gramatical".
mente reformulada depois, quando ele passou a viver mats ao norte, Junto ao A mesma prática descritiva aplicada às variedades nacionais euro-
povo tupinambá. péias, às línguas africanas, asiáticas e americanas viabilizava a comparação
A língua tupinambá, stricto sensu, falada pelos índios tupinambá do de dados de línguas, mesmo que geográfica ou historicamente dispersas.
Maranhão, onde a colonização portuguesa só se iniciou um século mais Assim, foi possível a Hervás, a partir das infonnações que obteve dos
tarde, em meados do século XVII, foi o ponto de partida para a formação missionários e das várias gramáticas por estes produzidas, resgatar, entre
de uma outra língua geral, o nheengatu, língua da colonização portuguesa da inúmeras outras, a história de algumas das famílias lingüísticas sul-america-
Região Amazônica - Maranhão, Pará, vale do rio Amazonas, parte da nas e propor-lhes matrizes, pela recorrência de fonnas e sentidos em seus
Colômbia e Venezuela - nos séculos XVII e XVIII (Bessa Freire, 1983; dialetos, como na amostra de vocábulos das línguas guarani (Paraguai), tupi
Rodrigues, 1996). (Brasil) e omágua (Peru), que exemplifica em seu Catdlogo (Figura 1).
Para o guarani, aparentemente a questão da dialetação não se co- Hervás reconheceu que a afinidade entre pronúncia, ordem e número
locou como problema, ao menos para aqueles que a descreveram (Dietrich, de "letras" podia ser apenas acidental, como a que apontou entre o tamanaco
1995, p. 288). O jesuíta Afonso de Aragona (1585-1629), o primeiro a (Caribe) e o kiriri (Brasil) (Hervás, 1800, p. 153). Para esse autor e para o
descrevê-la, foi enviado à província do Paraguai, em 1617. A maior parte do tipo de estudo comparativo que com ele se inicia, seria preciso verificar, além
tempo viveu na redução de Concepción (margem ocidental do Uruguai), de da história dos povos que falaram essas línguas, o vocabulário fundamental e
modo que o guarani que aprendeu foi o dessa região. Entretanto, Metiá as regras de artifício gramatical (Parada, 2002, e Parada e Altman, 2000),
(1979, p. 26) observa que a variedade que registrou é "la general dei tarefa perfeitamente viável, já que a concentração em Roma - onde também
Paraguay", donde conclui que não deveria haver diferenças dialetais consi- se encontrava Hervás - de jesuítas expulsos de todos os tenitórios espanhóis
deráveis entre as duas variantes. Antonio Ruiz de Montoya (1585-1652), e portugueses espalhados pelo mundo significou também a concentração pri-
reconhecido autor da monumental obra sobre o guarani (Ruiz de Montoya, vilegiada de trezentos anos de know-how em descrição gramatical.
1876 [1640]), viveu entre 1612 e 1637 nas reduções da antiga Província de
Lenguas Guarani Tupi o Brasil Omágua
Guairá, correspondente hoje ao noroeste do estado do Paraná (Grannier-
11 Arena ................... Ibi-cujtj ................. Ibi-cui .................. . Itini ............... .
Rodrigues, 1997, p. 401) e certamente foi esta a variedade que registrou. Carne.................... Zoo ....................... C[Ç)oo ................. . Zu ...................... ..
Na medida em que os missionários foram sentindo necessidade de Hijo (quando lo .. , Tatay ..................... Taurá .................... Telgra ................ ..
documentar a dialetação das línguas gerais ao longo do século XVII e início nombra el padre)
do século XVIII, bem como a diversidade das lfnguas regionais e locais, Hijo (quando lo... Membi .................. Membira .......... ,.... Memuera ............ .
várias outras gramáticas de outras línguas sul-americanas foram surgindo, nombra la madre)
como, por exemplo, araucano, yucateca, pirinda, chiapaneca, cahita, mame, Lobo..................... Aguara-guazu ...... Yagua-rucu[ruçu] . Yahuara~puana .. ..
Luz ....................... Hend ..................... C[Ç]endi .............. . QÇ)ana .............. .
morocosi, yunga, zapoteca, guasteca, tarasca, izoque, matlaltzinga, mame,
Marido ................. Mê ........................ Mêna ................... . Mena .................. .
mosca, chibcha, tagala, kiriri, totoneca, otomi, timuqvuana (Swiggers, 1997). Muger .................. [Te]mbirecó .......... [Te]mericó .......... .. Merecua ............. .
O Catálogo, de 1800, do jesuíta Lorenzo Hervás (1735-1809), men- Perro ..................... Yagua.................... Yaguara ............... . Yahuara ............. ..
ciona 218 designações diferentes, relativas a línguas e a dialetos que hoje Tabaco ................. Petj ........................ Petima ................... Petema .................
situaríamos no território sul~americano (Parada, 2000, ms, inédito), o que
Figura 1 - Relação comparativa de vocábulos das línguas guarani, tupi e omágua,
segundo Hervds (1800, p. 148).'1
11 Certamente, uma questão mais in1eressante a este respeito é a diferença entre o tupi
brasileiro e o guarani paraguaio, esiabelecida no contexto nacionalista do século XIX, n As alterações sugeridas para a grafia são de Eduardo Navarro (USP), em comunicação
acirrado pela guerra conlra o Paraguai (Dietrich, 1995, p. 290). pessoal.
Adequada ou não, a prática missionária de registrar línguas nativas ção de línguas tipologicamente ~ diferentes sob um "mesmo" molde abriu
americanas em forma de vocabulários e gramáticas nos mesmos moldes, margem, a um só tempo, à relativização da universalidade desse molde e à
trezentos anos depois, possibilitaria a Hervás compará-las e classificá-las. apreciação, também relativa, das diferenças lingüístico-culturais, mas nunca
para a criação de uma língua artificial como um "tupi-jesuítico" (Mattoso
'Escrivir como pronunciamos camara, 1965, pp. 102-3; também Edelweiss, 1969, p. 40) ou para uma
pronunciar como escrivimos' (Nebrija, 1492) "gramática geral" das línguas gerais.
Os primeiros missionários que aprenderam as línguas gerais o fize-
Como é consenso na historiografia lingüística, essas gramáticas, em ram de modo prático, em convivência com os falantes nativos. Como é
sua quase totalidade, organizaram-se como reza a tradição latina: estudo das
sabido, os registros efetuados tinham caráter eminentemente prático, peda-
letras, do acento, da palavra e da sintaxe, embora não obrigatoriamente
gógico. Nesta tarefa, era necessário criar métodos, estratégias de como
nessa ordem, ou com igual ênfase. De maneira geral, pode-se afinnar que,
realizar trabalho de campo, elicitar dados e registrá-los, pois as línguas sul-
de fato, na maior parte das gramáticas das línguas gerais, às regras de
americanas, além de não possuírem descrições lingüísticas prévias, não eram
pronúncia das línguas, seguiam-se regras de declinação dos nomes, adjetivos
faladas, ao menos em um primeiro momento, por quem as descrevia. Não
e pronomes; regras de formação e conjugação de verbos e uma lista das
se pode esquecer que as descrições das artes de gramática foram
outras partes de la oracion: preposições, advérbios, interjeições e conjun-
mediatizadas não apenas pelo conhecimento fonnal que os missionários ti-
ções. Dada a natureza ágrafa das línguas sob descrição, é compreensível a
inexistência de uma parte da gramática especificamente dedicada à etimologia. nham da gramática latina, mas também pelo conhecimento dos modos de
No contexto dessas gramáticas, o estudo da palavra assumiu a feição de descrição de seu vernáculo (Barros, 1994, p. 8; Gonzáles, 1992, p. 106) e
uma morfossintaxe, e a sintaxe propriamente dita consistiu, freqüentemente, por uma certa intuição da língua sob descrição, que os missionários acaba·
em uma prática cujas "regras" se reduziam a hábitos de repetição, de ram por adquirir ao longo do intercurso com os falantes nativos (Hernández-
"maneiras de dizer''. Sacristán, 1992, p. 129).
Reconhecer o modelo latino como ponto de partida para o molde de Das eventuais dificuldades enfrentadas pelos missionários na busca
todas essas gramáticas não deve implicar, entretanto, a existência de um de adequação entre o modelo descritor e os dados novos apresentados por
modelo único. Neste sentido, é interessante notar que, àquele momento, essas línguas - trata-se de línguas com quantidade vocálica, com parada
diferentemente de Portugal e Espanha, em boa parte da Europa a linha de glotal; sem declinação e sem conjugação; sem marcação morfológica de
reflexão sobre a linguagem ia na direção de uma gramática filosófica, gêne~o ou caso; com freqüentes interposições, incorporações (do argumento
escolástica, baseada na lógica (cf. inter alia os gramáticos-filósofos de Port nommal na forma verbal) e posposições -, valho-me, no presente texto, da
Royal e, por exemplo, Francisco Sánchez de las Brozas (1523-1601), El questão da representatividade dos sons, como ilustrativa do argumento que
Brocense, de leitura proibida na Ibéria do final do século XVI [Zimmermann, aqui tento construir. ·
1997, p. 14). Nesse quadro de trabalho, como se sabe, a busca de solução Dentre os trabalhos da tradição latina, disponíveis no contexto inte-
para a diversidade lingüística efetivou-se em outra direção. Aqui emergiram lectual europeu, o exemplar autorizado pelos missionários católicos sul•ame·
pfogramas de investigação que propunham a construção de sistemas univer- ricanos foi o de Elio Antonio de Nebrija (1444-1522) e outro, de um de seus
sais de comunicação {Eco, 1995) ou a construção de teorias dos elementos comentadores, Pe. Juan Luis de la Cerda (?-?), cujo manual, segundo Roca
comuns, universais a todas as línguas, para além do uso. Nessa tradição, não (1992, p. 77), foi o mais popular e o mais reeditado na Nova Espanha. A
houve espaço para a comparação lingüística empírica, a não ser já no final crer n~ dezenas ~e edições citadas no NUC, deve-se também computar a
do século XX, quando a diversidade estrutural, intra-sistêmica, também foi populandade do hvro de Emmanuel Alvarez (1526-1582), especialmente no
considerada uma propriedade universal a todas as línguas (cf. o programa que concerne à América portuguesa,
de investigação chomskyano dos Princípios e Parâmetros). Logo no início de sua gramática castelhana, Nebrija instruiu seus
Nada em comum entre essa orientação filosófico-universalista e os futuros aprendizes em como começar a descrever uma língua, no método
processos envolvidos na codificação de uma língua geral, ao menos tal como que creditou a "nuestro Quintiliano enel primcro libra de sus Oratorias
se deram em contexto sul-americano (Rosa, 1995; Altman, 1997). A descri- lnstituciones". Observem-se suas instruções:
[ ... ] el que quiere reduzir en artificio algun lenguaje, primero es menester la C. y CH, y la P, y la T, no solamente como nos otros las pronunciamos,
que sepa si de aquellas letras, que estan enel uso, sobran algunas, i si, sino tanbien de otras manieras [... ] (Bertonio, 1879 [1603], p. 20).
por el contrario, faltan otras. E por que las letras de que nos otros usamos
fueron tomadas dei latin, veamos primero cuantas son las letras que estan En esta lengua [quechua] no ay vso destas letras nuestras B, D, F, G, X,
nel uso dela lengua latina, i si de aquellas sobran o faltan algunas, para que ni V consonante (va) sino (hua) por (va) y de la L senzilla no ay vso, sino
de alli mas ligera mente vengamos alo que es proprio de nuestra consideracion doblada (li) y ai reues de la R no ay uso de dos RR sino de vna R. Por estas
(Nebrija, 1946 [1492], p. 18, grifo meu). que !e faltan tiene otras muchas que en romance no vsamos, y nos hemos
de ensefiar a pronunciarias, que son, cc, K, chh, pp, qq, tt. [ ... ] (Holguin,
Não se trata de mero acaso que, quase invariavelmente, a lista dos 1608, 'Allector').
sons das gramáticas aqui citadas se faz por referência ao conjunto das
"letras" da língua latina, ou das "letras" do vernáculo de seu autor. Desse Los Indios en su lengua [Quechua] vsan delas letras de el A. B. C. de que
modo, é válido incluir como modelo descritor desses missionários também as vsan los Castellanos, saluo seys, que son, B. D. F. G. X. Z [...] (Huerta, 1993
primeiras gramáticas vemaculares, tanto do espanhol quanto do português
(1616], p. 1).
(Barros, 1994, p. 3). No conjunto de exemplos a seguir, tipicamente a com-
paração com o quadro alfabético latino está pressuposta em todos os casos,
Evidentemente, tal método pressupunha que o aprendiz da língua co-
seja na descrição do náhuatl, seja na do quechua, do aimará, do tupi ou do
nhecesse petfeitamente os traços fonéticos representados por cada letra uti-
guarani. Observe-se: "Primeramente es de saber, que esta lengua (náhuatl]
lizada, donde o interesse em não se criarem caracteres ex nihilo - pense-se,
carece de seys letras, que son b, d, f, g, r, s, y, [... ]" (Molina, 1571, p. 5);
por exemplo, nos sons sem representação no alfabeto latino ou vernáculo -,
"Escrivese esta lengua [náhuatl] con las letras dei alphabeto Castellano,
ao sabor das exigências do momento. Não parecia conveniente fugir muito
aunque le faltan siete letras que son b, d, f, g, r, s, y, [...]'' (Carochi, 1983
das "figuras" conhecidas, que, bem ou mal, haviam sido fundamentadas nas
[1645), p. 1). Ou ainda:
propriedades fonéticas e prosódicas da modalidade oral do espanhol ou do
Nesta lingoa do Brasil [tupi] não há f. 1. s. z. rr. dobrado nem muta com português dos séculos XVI e XVII. O comentário de Anchieta transcrito
liquida, vt era, pra, ec. Em lugar do s. in principio, ou medio dictionis serue, abaixo é ilustrativo:
ç. com zeura, vt Aç6, çatá (Anchieta 1990 [1595], p. 23, grifo meu).
Seguindose, a vogal, melhor precede, ypsilon, e pronüciase como em
Las letras que faltan [no guarani] son F. I. K. L. rr. doblada S. V consonante castelhano, ya, ye, vi yeçóca, ec. Do qual se dise em cima que se vsa as
X. Z. no tiene muta cum liquida, vt era, pra, por S. vsan C. Iene, y por V. vezes por, nh. com todas as vogaes, e ainda que ya, no affirmatiuo seja
B. Iene (Ruíz de Montoya, 1876 [1640), p. 93). consoante, com tudo no negatiuo, precedente consonante fica vogal, vt
nhamanô, 1. yamanô, negayiuo, nyamanói. Mas nisto vay pouco, por que
As letras, de que se usa n'esta lingua [tupi], são as seguintes: A, B, C, D, confunde scepissime, com i. jota, e cada hum o pronuncia mais portugues,
E. G, H. 1, Y. K,M, N, O, P, Q, R, T, U,X. til. Ficamexcluidas, F, L, S. Tambem ou castelhano como quer vt ja, ya, ec. [...] (Anchieta, 1990 [1595], p. 33,
se não usa rr dobrado, ou aspero. O i, jota, serve como no latim, ora de grifo meu).
vogal, ora de consoante. Coswmárão os antigos linguas usar d'este mesmo
i. jota, com dous pontos, um na cabeça, e outro no pé, e lhe chamavão i O conceito de "letra" adotado por esses missionários incluía tanto o
grosso: porque a pronunciação é como entre u e i (Figueira, 1880 [1687), conceito de ''fone" quanto o de "grafema", em tennos contemporâneos. Daí,
p. li). o poder descritivo, naquele momento, da simples referência à letra de um
dos alfabetos conhecidos, estratégia utilizada na tradição de estudo dessas
[ ... ] Las consonantes son menos en esta lengua [aimará] que en la Castellana, línguas até, pelo menos, o século XVIIl. Consulte-se o modelo de Nebrija
porque no ay B, ni D, ni F, ni G, y es de saber, que los Indios pronuncian ainda uma vez:
[... ) no es otra cosa la letra sino figura por la cual se representa. la ~z i aios que sauen, como se a de pronunciar, por no dezir vna cosa por otra. Dien
pronunciacion. [... ] que la diversidad delas letras no esta e11la d1vers1dad se que esto se remediara mucho con inuentar alguMs caracteres nueuos
dela figura. sÍllo en ladiversidad delapronunciacion (Nebrija, 1946 [1492], para la [s]uso dichas pronunciaciones: pero porque esto no esta introdu-
p. 21, grifo meu). zido, no he querido ser yo el primero a introduzirlo, contentandome con
solamiente auerlo apuntado (...] (Bertonio, 1879 (1603], p. 20, grifo meu).
A historiografia lingüística contemporânea (Roca, 1992; Hovdhaugen,
1996; Zimmerman, 1997; Launay, 1997; Hemández-Sacristán, 1997a e 1997b; Parece que a transferência do molde latino para as gramáticas das
Swiggers, 1997) é mais generosa com esta produção lingüística do que foi línguas gerais provocou dois efeitos aparentemente paradoxais. Se, de um
com a do século passado. Segundo os especialistas, ao longo de edições e Jado, permitiu o acúmulo de dados descritos a partir de uma mesma
reedições dessas gramáticas, os missionários foram perfeitamente capazes metalinguagem, de outro favoreceu o acúmulo de "anomalias" (Kuhn, 1962).
de descrever, e com precisão, vários fenômenos que eram exclusivos e Evidentemente, após três séculos, os alfabetos das variedades européias
estranhos às variedades nacionais européias até então descritas. Portanto, deixaram de corresponder aos sons que originariamente representaram. Roca
parece razoável admitir que, na tarefa de descrever línguas tão diferentes (1992, p. 85), por exemplo, menciona o "x" que, no século XVI, represen-
das então já descritas, e principalmente diferentes do latim, os missionários tava tanto em espanhol quanto em náhuatl a fricativa palatal surda. Ao longo
tenham sido desafiados a buscar soluções descritivas originais, a partir de do século XVII, o "x" se converteu, em castelhano, em um fonema velar
sua observação e intuição, o que, cumulativamente, terminaria por relativizar /x/, alteração que não se produziu em náhuatl. Um dos problemas que os
a universalidade das categorias propostas pelo modelo latino. autores do século XVIII em diante tiveram de enfrentar foi a forma de
Estar "do lado de" Nebrija (contra uma certa tradição escolástica) representar a fricativa palatal do náhuatl. Na minha interpretação, o
trouxe certos comprometimentos a essas gramáticas. O alfabeto latino, distanciamento inevitável entre essas várias representações está a um passo
enquanto quadro descritivo privilegiado pela fonética missionária, é um modelo da busca de uma nova metalinguagem descritiva, desvinculada da represen-
··-. estático de representação que permite, com dificuldades, dar conta da tação ortográfica de uma variedade nacional.
dinamicidade da articulação oral da fala, donde deriva a tendência, em al-
gumas dessas gramáticas, a não registrar as diferenças fonéticas não refl:- Considerações finais
tidas no alfabeto latino, principalmente as geradas pelo acento e pela entonaçao
(Anchieta, por exemplo, não dá sinais de que percebera a funcionalidade do A ampliação quantitativa do universo empírico de conhecimento
som glotal do tupi). O processo pedagógico, porém, só reforçará essa ten- lingüístico, isto é, de dados lingiifsticos compilados a partir de um mesmo
dência, na medida em que buscar correspondências cada vez mais idealiza- modelo descritivo, possibilitaria, a longo prazo, a emergência de um progra-
das entre letra e som (Harris, 1986). ma de investigação comparativo. A ampliação qualitativa do universo teórico
Com O passar do tempo, é certo que o valor descritivo do tipo de desse conhecimento, ou seja, de dados de línguas estruturalmente diferentes,
representação utilizado - o alfabeto vernáculo - decresceu. As. primeiras com características lingüfsticas originais em relação às européias, relativizaria
descrições de caráter fonético-articulatório aparentam te~ emergido n~ .tra- a ''universalidade" do modelo gramatical latino e/ou vemacular de descrição
dição de estudo dessas línguas gerais enquanto procedimento. descntt~o, e propiciaria a alteração da cultura lingüística ocidental, que se tomaria
quando a defasagem entre a grafia e a pronúncia da letra foi percebida menos clássica, mais empírica. A este respeito, é interessante acrescentar
como tal, isto é, quando se corre o risco de deixar de identificar a que sons a crítica que Hervás remeteu àqueles que airida se sustentavam apenas na
das línguas gerais as grafias do espanhol e do português do século XVI Bíblia para justificar a diversidade lingüística:
correspondiam. Os exemplos dessas dificuldades de representaçã~ são inú-
meros. Observe-se apenas um comentário de Bertonio para o rumará: Las dichas ideas [ideas poco exactas que se tienen 6 forman de las Ienguas]
se jundan ya en las opiniones de aquellos autores que pretemlen deter-
[ ...] por esto quando el que va aprendiendo, viere que los vocablos estan minar con algunos textos de la sagrada Escritura el número de las
escriptos con estas letras e, eh, p, t, non tenga pesadumbre de preguntar lenguas, y ya en la observacion dei estado que actua1mente tienen las
Jenguas en varios paises muy conocidos; mas las opiniones de dic~os - · Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil.
autores son arbitrarias; y en el estado actual de las lenguas en los paases Edição fac-similar. São Paulo: Loyola, 1990 {I ed., Arte da Grammatica
civilies, ninguna prueba fundamental se descubre, ni aun para conjeturar da Lingoa mais usada na costa do Brasil. Feyta pelo padre Joseph
qual sea el verdadero número de lenguas matrices en el mundo (Hervás, de Anchieta da Cõpanhia de JESV. Coimbra, por Antonio de Mariz,
1800, p. 117, grifo meu). 1595; 2 ed. por Julio Platzmann, Leipzig: B. G. Teubner, 1874; 3 ed.,
1876; 4 ed., Rio de Janeiro: Biblioteca NacionaJ, 1933; 5 ed., São Paulo:
A meu ver, o descompasso entre explicação bíblica e ampliação da Anchieta, 1946; 6 ed., Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1980].
experiência lingüística, acompanhado da percepção gradativa da ~i~simetria ANÔNIMO. Grammatica y Vocabulario en la lengua general dei Peru
entre línguas e nações, está na origem da compreens~o da relatlVldad.e da l/amada quichua y en la lengua espanola, Sevilha: Casa de Clemen-
cultura humana nesta tradição e do conseqüente questionamento da univer- te Hidalgo, 1603 {1586] (Freqüentemente citada como a primeira edi-
salidade do modelo latino. O desafio de conciliar finalidade pedagógica da ção da gramática de Torres Rubio, mas trata-se de uma reimpressão
gramática e sua adequação descritiva promoveu a concepção de uma anônima da Arte y Vocabulario de la lengua general dei Peru,
estruturação lingüístico-cultural autônoma e relativa. Não estou afinnando llamada quichua y en la lengua espaíiola ... En los Reyes, por Antonio
que esta tenha sido a intenção inicial dos missionários,. tampouco que toei.os Ricardo ai'io de 1586; reimpr. 1603, 1604, 1614).
os passos que deram foram, inequivocamente, nesta direção. A~ ~ont~no, ARAGONA, Afonso de. "Breve introducción para aprender la lengua guarani
o conhecimento lingüístico parece ser um processo complexo, plund1rec10nal, por e! padre Alonso de Aragona". Apresentação, edição e notas por
cujas continuidades (e descontinuidades) só podem ser restabelecidas, a Bartolomeu Meliá. Ameríndia, Revue d'Ethnolinguistique
posteriori, e muitas vezes, tentativamente, como no presente texto, pelo Amérindienne, n. 4, Paris, 1979, pp. 23-61.
historiógrafo da lingüística. AUROUX, Sylvain. "Introduction. Le processus de grammatisatrion et ses
enjeux". ln: Histoire des idées linguistiques. Le développement de la
grammaire occidentale. Liege: Mardaga, 1992a, v. II, pp. 11-64.
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Notas sobre a política jesuítica
da língua geral na Amazônia
(séculos XVII-XVIII)
Ma;ia Cdndida D. M. Barros·

Este trabalho visa a apresentar os resultados preliminares de uma


pesquisa sobre a política jesuítica da língua geral entre os séculos XVIl~
XVIII na região amazônica, correspondendo administrativamente ao Estado
do Maranhão e Grão-Pará. Chamarei de política da língua geral a tendência
de as colonizações portuguesa e hispânica fazerem uso de uma única língua
indígena como língua de contato colonial - chamada língua gera] -, em vez
da introdução do português ou do uso da língua loca1. De maneira similar ao
que havia ocorrido ao longo da costa do Estado do Brasil desde o século
XVI, o tupi foi a língua geral no Estado do Maranhão e Grão-Pará. Essa
política prevaleceu até 1759, quando a Companhia de Jesus foi expulsa da
colônia, tendo iniciado oficialmente uma política de difusão do português
determinada pelo "Diretório dos fndios" (Almeida, 1997).
A pesquisa sobre a política lingüística jesuítica tem os seguintes
limites:

a) Temporais: a análise cobre o período entre os padres Antônio


Vieira (século xvm e João Daniel (século XVIlI), o que representa cerca
de cem anos da presença jesuítica na região. Os doi_s jesuítas são referên-
cias para momentos distintos da Companhia de Jesus na área. Antônio
Vieira marca o início da estruturação da ordem jesuítica na Amazônia; João
Daniel, o contexto de sua expulsão.
Em 1653, Antônio Vieira (1608-1697) chegou à Amazônia, onde
esteve por nove anos. No documento "Regulamento das Aldeias Indígenas
do Maranhão e Grão-Pará" (ou "Regimento da Visita" [1658-1661]) (Beozzo,
1983), Vieira deixou determinadas as regras do cotidiano nas missões jesuíti-
cas - que se mantiveram vigentes até o século xvm - em relação aos
missionários e aos índios. Além de ser o responsável pela estruturação da

• Universidade Autônoma do México/Museu Paraeme Emílio Goeldi, Pará.


Companhia de Jesus na evangelização dos grupos indígenas na Amazônia, a) Tupinização dos grupos tapuia (não-tupi): Daniel conta que os
Vieira também desenhou a política indigenista na região ao estabelecer grupos indígenas não-tupi aprendiam a língua geral ao serem incorporados
mecanismos de partilha da mão-de-obra indígena entre os três setores co- às missões ("a [língua] que aprendem as novas nações, que vão saindo dos
ioniais (missão, administração e colonos), como ocorreu em 1655, quando foi matos"). As missões eram formadas naquele momento por uma maioria
a Portugal, a fim de negociá-los. tapuia (não-tupi) e uma minoria tupinambá ("porém, como os primeiros, e
João Daniel (1722-1776) esteve catorze anos na região e foi expulso verdadeiros topinambares já quase de todo se acabaram, e as missões se
em 1757, no período pombalino. Na prisão, escreveu O tesouro descoberto foram restabelecendo com outras mui diversas nações" [Daniel, 1976,
no Rio Amazonas, com a descrição da situação econômica, social e lingüís- v. JI, p. 225]).
tica da região, propondo soluções para o governo temporal e espiritual da O tema da tupinização dos grupos indígenas não-tupi por meio da
Amazônia. colonização foi estudado por Theodoro Sampaio ( 1928) e Buarque de
Holanda (1976), que enfatizaram principalmente o papel do movimento
b) Geográficos: restringe-se à área do Baixo Amazonas, que com- bandeirante paulista na expansão da língua geral. Theodoro Sampaio tra-
preende a região a partir das ilhas, na desembocadura do rio Amazonas. balhou a hipótese da tupinização como ação colonial em estudos sobre
Essa região conjugava tanto grupos tupi como não-tupi, o que permite foca- toponímia de origem tupi em áreas com grupos indígenas de línguas não-
lizar a política da língua geral em uma área com diversidade de línguas não- tupi. Buarque de Holanda (1976) trabalhou no mesmo sentido, apontando
tupi (tapuia). A área apresentava para os jesuítas uma "mancha" de línguas
os setores portugueses com domínio do tupi em São Vicente. Na presente
tapuia, contrastando com a situação encontrada pela Ordem no Estado do
pesquisa, o interesse se direciona ao estudo do pape] das aldeias jesuíticas
Brasil, mais homogênea lingüisticamente.
nesse processo de extensão do uso do tupi, por intermédio de sua compo-
Começaremos a análise pelo final, ao tomar como referência a des-
sição multilingüística. Em particular, será reconstruída a história da
é:rição que o jesuíta João Daniel fez da situação lingüística nas missões
tupinização dos nheengaíba no Baixo Amazonas.
jesuíticas atuantes na Amazônia, na segunda metade do século XVID:
b) Estandardização do tupi jesuítico:
Nesta língua [tupinambá] se composeram ao princípio pelos primeiros mis-
sionários jesuítas o catecismo, e doutrina; e a reduziram a arte com regras, Daniel aponta a existência, nas missões, de uma situação de
e termos fáceis de se aprender. Porém, como os primeiros, e verdadeiros estandardização lingüística, definida por Ferguson (1974) como aquela em
topinambares já quase de todo se acabaram, e as missões se foram resta- que numa comunidade coexiste uma variedade escrita de uma língua diversa
belecendo com outras mui diversas nações, e línguas, se foi corrompendo daquela usada oralmente no cotidiano, surgindo, assim, uma lfugua literária
de tal sorte a língua geral topinambá, que já hoje são raros, os que a falam e oficial diferente da coloquial. Nas aldeias jesuíticas, a língua literária era
com a sua nativa pureza, e vigor; de sorte, que já os mesmos índios não o tupi presente nas gramáticas e nos catecismos, e o tupi coloquial era
percebem o :::atecismo, nem os que estudam a arte se entendem com os aquele falado pelos índios fora das situações religio$as.
índios especialmente no Amazonas, como muitas vezes tem experimentado, João Daniel nomeou essas duas variedades de tupi como "língua
e confessado os mesmos missionários, e índios, de sorte está viciada, e geral !llltiga dos tupinambases" (ou ''verdadeira língua geral") e "língua geral
corrupta que parece outra língua diversa; mas a qual é a que se usa em corrupta" (Daniel, 1976, v. II, pp. 226-7). A "língua geral antiga" - presente
todas as missões portuguesas do Amazonas, e a que aprendem as novas nas gramáticas e nos catecismos - era ainda falada pelos tupinambás sobre-
nações, que vão saindo dos matos, e as que estudam os missionários viventes, minoria nas missões naquele momento (Idem, v. I, p. 269). Essa
brancos, que tratam com índios não com regras, e preceitos da arte, mas Variedade era usada fundamentalmente no contexto religioso, durante as
pelo uso, e trato dos mesmos índios (Daniel, 1976, v. II, p. 225). doutrinas, que ocorriam duas vezes ao dia nas missões. A "língua geral
corrupta" era falada pelos grupos indígenas não-tupi recentemente incorpo-
Dois fatos mencionados acima por Daniel serão abordados neste rados ao sistema colonial e pelos portugueses, além de estar em uso na vida
artigo: a tupinização dos grupos não-tupi e a estandardização do tupi jesuítico, econômica das missões. O catecismo - escrito na "lfugua geral verdadeira" -
os quais apontam para o traço homogeneizador da política da língua geral. já não era mais compreendido pela maioria da população das missões, à
Nolas sobre a política Jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVll,.XVIJQ

exceção dos poucos tupinambás, que ainda sabiam fa]ar com "a sua nativa língua quechua, foi tradicionalmente usado para identificar os grupos não-
pureza e vigor'' (Idem, v. II, p. 225). quechua (Karttunen, 1994, p. 275).
A diferenciação do tupi dos catecismos e das gramáticas daquela A dicotomia tupi versus tapuia tinha relação com a ideologia colonial
variedade em uso no cotidiano também está mencionada em outro manus. de uma língua comum em um território contínuo (Mannheim, 1992). As línguM
crito colonial, não datado, pertencente à Aé:ademia de Ciências de Lisboa. tapuia - vistas como "travadas" e "bárbaras" - eram consideradas um em-
Na primeira folha, o autor anônimo escreve: pecilho para a colonização. A expansão do tupi - tida como "geral" - sobre
as línguas tapuia refletiu a idéia de que um território deveria ter uma só lfn~
Me declaro, q nesta peq. Prosodia da lingoa, entenda por as palavras
conforme as falias os Indios ordinariamente, e a maior parte delles e não Política de descimento
conforme a arte, que anda impressa, ou segundo o catecismo (Dicionário,
s.d., p. 1). Um dos principais locais responsáveis pela expansão do tupi foram
as aldeias de descimento, as quais eram missões situadas em locais próximos
A estandardização do tupi pelos jesuítas foi tratada por Mattoso das cidades e dos fortes, destinadas a ser depósito de mão-de-obra tanto
Camara como um processo de disciplinarização da língua tupi estabelecido para as missões como para os colonos. Essas aldeias-missões foram o
por meio das gramáticas de Anchieta e de Figueira (Camara, 1964, p. 344). destino de grande parte da população indígena deslocada compulsoriamente
Esse autor define disciplina gramatical como o "conjunto de prescrições que pelos "descimentos". Um exemplo da dimensão desses "descimentos" é o
se estabelecem para impor uma nonna lingüística no uso falado e escrito". que ocorreu entre 1687 e 1690, quando desceram 184 mil grupos indígenas
~as prescrições discriminariam as fonnas de palavras, de sentidos e de (Freire, 1983, p. 50). As aldeias de descimento apresentavam uma popula-
sentenças consideradas legítimas em uma língua (Idem, p. 114). ção flutuante, em razão da contínua ida de sua população para trabalhar para
Aqui, a proposta é acrescentar os catecismos nesse processo de os colonos e dos numerosos casos de morte por epidemias e maus-tratos.
disciplinarização. A opção pelo catecismo como objeto de análise para ob- l!ma das regras das aldeias so~ jurisdição dos missionários era que, quando
servar um processo de estandardização se deve ao caráter de texto oficial tivessem sua população reduzida, estariam autorizados a reagrupá-las ou a
'.
T, na missão, ao conter orações, canções, diálogos de doutrina e protocolos descer outros grupos indígenas, a fim de compor sua população .
usados nos sacramentos. Os catecismos teriam um uso mais abrangente do
Foi ~bjeto da sua primeira diligencia diminuir o numero das aJdeias, para
que as gramáticas.
que Juntas em menos povoações podessem ser melhor assistidas, e dou-
A estandardização do tupi por meio do catecismo será exemplificada
trinados pelos Padres, que para o mesmo fim mandarão erigir Igrejas aonde
no cotejo das versões da oração do Pai-Nosso em tupi, usadas pelas suces-
podessem administrar sacramentos, celebrar sacrificios e ensinar os dogmas
sivas gerações de jesuítas.
da nossa fé pelo methodo que para isso traziao conforme o louvavel
costume das nossas aldeias do Brasil (Moraes, 1759).
Tllpinir.ação dos tapuia
.. <?orno exemplo, Daniel menciona a situ3Ção da aldeia de Mortigura
A fonnação da oposição entre tupi e tapuia - que correspondia à
(hoje Vila do Conde) e de outra missão menor (ele deixa o nome em
oposição entre índios cristianizados e índios bárbaros- revelou-se produto da
branco), que teriam tido índios tupinambá como seus primeiros habitantes
política indigenista coloniaJ. A categoria tapuia - tenno de origem tupi com mas que depois foram povoadas com diferentes grupos. '
sentido de "inimigo" - foí usada no Brasil para se referir aos grupos indí-
genas não-tupi, considerados bárbaros, em oposição ao grupo tupinambá ou ( ... ) Ambas foram fundadas com índios topinambases; mas já muitas vezes
a demais nações de língua geral. Em tennos lingüísticos, essa oposição resarcidas com outros descimentos de outras diversas nações, como tem
tomou a forma daquela entre Ungua geral e línguas tapuia ou "travadas". sucedido a todas as mais, que a não terem de quando em quando estes
Oposição similar a essa também teve lugar nas colônias espanholas. No ~ocorros de gente por agência, e à custa de imensas fadigas dos jesuítas,
Equador, por exemplo, o tenno "auca", com significado de "inimigo" na Já que quase todas estariam acabadas (Daniel, 1976, v. I, p. 287).
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Fases do processo de tupinização Produção de catecismos breves nas Unglllls tapuia
O processo de tupinização dos índios tapuia pode ser sistematizado
2) Esta fase corresponderia à elaboração de um catecismo breve n
em três fases: . E •
línguas tapma. nquanto no século XVI tem-se apenas uma única referência
1) Estabelecimento de um quadro de intérpretes tapuia como "em-
de uma língua não-tupi usada na evangelização (a língua marumini) no Es-
baixadores":
tado do Brasil, há notícias, na evangelização da Região Amazônica. da
Uma das preocupações dos missionários era formar um quadro de
elaboração de catecismos breves nas línguas nheengaíba, manaus, tapajós,
intérpretes nas línguas tapuia com função de negociadores ("embaixado-
bocas, jurunas e urucuçus (Leite, 1938, t. IV, p. 3 I 3). 1 O mentor dessa
res"), para praticar com os índios. "Praticar" é uma palavra recorrente nos
política foi Antônio Vieira. como aparece em seu ''Regulamento das Aldeias
documentos coloniais e se refere à ida de um grupo para convencer os índios
a descerem para as missões jesuíticas. Os "embaixadores" eram os encar- Indígenas do Maranhão e Grão-Pará" (1658-1661) (Beozzo, 1983).
regados pelos primeiros contatos com grupos indígenas a serem descidos.
O Padre que os tiver [adultos que não forem da Língua Geral] à sua conta
A milhor indústria, de que usam alguns missionários para estes descimentos procurará com todo o cuidado fazer um catecismo breve, que contenha os
dos índios bravos é o procurarem haver primeira alguma pessoa da nação, pontos precisamente necessários para a Salvação, e dêste usarão nos casos
que querem practicar, especialmente algum menino; mas basta qualquer de necessidade, e por ele os irão ensinando e instruindo (Vieira apud
adulto; porque com afagos e mimos o vão domesticando nas missões até Beozzo, 1983, p. 199).
que já afeiçoados aos missionários os levam estes consigo bem nutridos,
. O texto religioso em línguas tapuia era utilizado em ocasiões de
'' regalados, e vestidos, quando vão practicar a sua nação, a qual vendo a
seu parente tão bem tratado, e por Outra parte praticados pelo padre mais b.at1s~o, em casos de perigo de morte e na extrema-unção. Nas demais
facilmente se deixam convencer, e se resolvem a sair, muito mais vendo, que s1tuaçoes em que houvesse apenas um tapuia que não soubesse a doutrina
<; pela língua geral, não poderia haver batismo. /
•• os ditos parentes lhe dizem bem das missões, que antes querem voltar para
'i1, elas, do que ficar com eles. É bem verdade, que as vezes estes mesmos, que . O modelo dos catecismos tapuia foi o texto tupi, como se vê na
os missionários levam para seus fiéis, se viram da parte dos índios, e os mtroclução do catecismo manuscrito na língua manaos no século xvm. A
practicam pelo contrário, dizendo-lhes a pensao que tem nas missões de tradução do catecismo tupi para línguas tapuia se fazia por meio de intér-
servirem aos brancos, os castigos, com que são tratados, e outros practicas p~t:s ~ilíngües em tupi e nas línguas tapuia. Em geral, eram índios não-tupi,
com que totalmente os esfriam; e por evitar semelhantes contingências cnst1an1zados em língua geral, como no caso do catecismo manaos.
procuram os missionários tê-los contentes e se desconfiam deles, não os
levam consigo (Daniel, 1976, v. II, p. 45). Preguntas da Doutrina Christãa pela Lingoa Manoa, vertidas ou tiradas da
Língua geral. Quem isto escreve não sabe a ditta lingoa, mas hum Manao,
Um dos hábitos dos jesuítas era deixar índios tapuia de grupos re- que aprendeo a Doutrina pela Lingoa Tupinambá, aveneo na sua lingoaje
cém-contatados nas missões, como fonna de aprendizado da língua geral e dizendo que algumas das palavras nam heram muy alegantez, mas que as
de consolidação de acordos políticos. compunha conforme melhor as entendia (Caderno da Doutrina pella Lingoa
dos Manaos, apud Joyce, 1951, p, 43).
O maior principal daquela nação [Amaquizes] mandou cá um seu innão, que
atualmente reside na aldeia de Mortigueira, só com o intento de aprender
Outr_as ordens religiosas estiveram. envolvidas na produção de catecismos em Jfn as
a língua e de notar se é verdadeiro o trato que lá publicavam os padres que
tapuia. Por exe~plo, entre os franciscanos, atuando na Amazônia entre 05 s6culos fvu
davam os portugueses aos índios, depois das novas leis de sua majestade.
E entre os nheengaíba está um filho do maior dos tricujus, nação igualmente
dilatada, o qual em nome de seu pai jurou vasalagem a sua magestade com
e XVIII, são citados: Fr. Boaventura de Santo Antônio (textos religiosos n Ií
sacác~, aruãs e goyanas), Fr. Joachim da Conceiçam (línguas dos marauníl:S ar:::~
aracaJus), Fr. João de Jesus (língua aruã), Fr. Matheos de Jesus Maria (conf~sionário
os mesmos nheengaíba (Vieira, 1992 (1661), p. 58). na lf~gua maraumls) e Fr. Pedro de Santa Rosa (confessionário escrito na lí d
aracuJus) (Machado, 1967). ngua os
Notas sobre a política jesuítica da língua geral na Amazônia (séculos XVII-XVIII)

O processo de elaboração de um catecismo tapuia pode ser acom. Um dos principais instrumentos de expansão do tupi na Re ·-
. ' alde' d . g1ao
panhado por intermédio da narrativa de Felipe Bettendorf, responsável pelos Am.azômca ,oram as . tas e desc1mento, que eram compostas de índios
catecismos nas línguas tapajós e urucuçus. A elaboração de catecismo bre· de diferentes grupos étmcos com línguas sem comunicação entre si e
ve em língua tapajós ocorreu durante uma expedição desse jesuíta ao rio cont~xto, a soei'alização ocoma . IK:la língua geral. A rotina religiosa
· -nas
·
aldeias era toda em língua geraJ. Foi nesse espaço missionário multiétnico
Tapajós, em 1660 (Bettendorf, 1990, p. 158). João Correia - um alferes
bilíngüe de português e tupi que estava na região e que se havia tomado multilingüístico que se realizava a expQnsão do uso do tupi como língua :e
companheiro de viagem de Bettendorf - foi seu intermediário junto aos contato. É o que menciona João Daniel ao atribuir às missões O espaço de
aprendizado da língua geral nas aldeias.
índios tapajós e urucuçus.
E posto que haja outras nações de diverso idioma, e sem o uso desta língoa
Estando as cousas da missão nestes tennos, cheguei ao Tapajoz com o
geral, descendo para as missõe.<i logo com os mais a aprendem, sendo que
Alferes João Correia. A primeira cousa que lá fiz foi com a ajuda do meu
quase todas nela vem a dar com mais, ou menos corrupçao (Daniel, 1976,
companheiro e alguns índios grandes línguas fazer uns catechismos de
v. I, p. 269).
vários idiomas daque\les seus principaes, todos pelo da língua geral, um era
em língua dos Tapajóz, outro dos Urucucus, que commumente entendiam,
Também as situações de trabalho escravo dos índios junto aos colo-
e com estes os ia ensinando e baptizando (Bettendorf, 1990, p. 168).
nos foram propícias para a socialização na língua geral. Alguns registros de
ín~i~s ta~uia que ~º. puderam passar pelo "exame" (diálogo feito pelo
Os catecismos tapuia conhecidos, como aqueles nas línguas manaos tmss1onáno para ~1dir se os índios capturados eram escravos ou não), por
~ kiriri (esta última falada no Nordeste), usam a palavra Tupã - de origem não se ter o conhecunento de suas línguas, eram destinados aos colonos pelo
tupi - para traduzir Deus. O uso desta palavra tupi nos textos cristãos em prazo de um ano, até serem instruídos na língua geral, a fim de que fossem
manaos e kiriri sugere a posterior passagem desses grupos para a língua então examinados.
tupi. A manutenção de uma palavra comum para o Deus cristão em todas
,.J
as línguas indica uma estratégia missionária de procurar manter uma única [... ] Por não achar no Arrayal interprete para o seu exame, ordenava O dito
'!·
identidade para Deus. Ex':l~ntissimo Senhor General, que o dito Indio fosse para poder do dito
Antomo de Ornellas, para q dentro de h6 anno o fizesse instruir na Lingoa
3) Esta fase objetivava misturar os tapuia com os índios de língua geral, para no fim delle ser examinado na fonna do estillo (Meira, 1993
geral nas aldeias de descimento. A elaboração de catecismos tapuia não [1741], p. 59).
significava o fim do traço homogeneizador contido na política da língua geral,
ao excluir o uso de línguas não-tupi. O uso das línguas tapuia nos catecismos Um caso de tupinização: os nheengaíba, entre os períodos de Vieira
se destinava apenas aos primeiros tempos de contato com os grupos não- e João Daniel
tupi, anterior à transferência deles para as aldeias de descimento, onde . No mapa etnolingüístico de Nimuendaju (1981), a distribuição lingüís·
passavam a usar a língua geral. hc~ dos grupos indígenas no ~aixo Amazonas mostra a presença de grupos
Usar na evangelização línguas diferentes ao tupi era visto apenas ~P1.desde o Maranhão até o no Amazonas, principalmente em sua margem
como uma questão temporária. A idéia era "misturar os de línguas tapuia d1re1ta, mas com uma grande quantidade de grupos não-tupi na capitania do
com os da língua geral". Cabo do Norte (Amapá) e na ilha do Marajó.

{...] Em caso que totalmente não haja intérprete, nem outro modo por donde [... J Dha chamada dos Joanes, a qual está atravessada bem na boca do rio
fazer o dito catecismo, será meio muito acomodado o misturar os tais Índios das Amazonas, defronte da mesma ilha do Sol, e é tão grande que encerra
com os da Língua Geral ou de outra sabida para que ao menos os seus em si mais de vinte e nove nações, de línguas tão diferentes como são a
meninos aprendam com a comunicação (Vieira apud Beozzo, 1983, p. 199). alemã e espanhola (Vieira, 1970 (1654), p. 378).
Um caso de tupinização de grupos tapuia ocorrido no Baixo Ama- de Vieira para todas as nações nheengafba, na qual se assegu
zonas é o dos nheengaíba. Uma das primeiras menções ao grupo data do ·d . . rava que, por
nova Ie1 o .rei, tmham-se acabado os cativeiros (Idem, p. 27). poss1ve
· Imen-
século XVII e, já na segunda metade do século XVIII, encontrava-se quase te, os embaixadores tenham saído de um grupo nheengafba que se encon-
extinto. A categoria nheengaíba dificilmente poderia fazer referência precisa trava, desde 1653, em aldeias de descimento perto de Mortigura, junto com
a um grupo étnico em particular (Barata, 1970). Vieira incluiu vários grupos: out~os grupos (maracanã, tupinambás, saparará, bocas, guarapiranga etc.)
mapuases, mamayanás, aruan, anayás, mapuás, paucacás, guajarás e pixipixi. (Leite, 1938, v. III, p. 279).
Porém, não há constância entre os autores no emprego do que poderia ser . Como resultado das negociações de Vieira com os nheengafba, a
incluído nessa categoria. Apesar de sua imprecisão étnica nos documentos p~tr de 1661 ficara~ assentadas algumas missões com esses índios: Arucará
coloniais, nheengmba contém uma referência de caráter lingüístico importan- ~hoJ: Portel) e Gu.ancui:u ou Aricuru (atual Melgaço). O primeiro superior
te para a pesquisa, que é identificá-los como sendo de origem não-tupi. O Jesmta nessa.s aldeias fo1 Ma~uel Nunes (1606-76), mencionado como autor
etnônimo nheengaíba significava em tupi "má linguagem", usado para se de um catecismo. breve na ~mgua nh~ngaíba. Por volta de 1680, o jesuíta
referir às línguas não-tupi (esta informação está presente tanto em Vieira Bettendorf mencmn~ que·amda se fazia uso do catecismo breve na língua
como em Daniel). Jos nheengaíba (Leite, 1938, v. IX, p. 18), acrescentando ter estudado a
língua nos três meses em que ali esteve.
Na grande boca do rio das Amazonas esta atravessada huma Ilha de mayor
comprimento e largueza que todo o Reyno de Portugal, e habitada de muitas Tratei logo de aprender a língua ingayba, e para ajuda disso tinha eu feito
nações de Índios, que por serem de línguas differentes, e diffi.cultosas, sao quantidade de dialogas de toda a materia que commumentc houvera em
chamados geralmente nheengaíba (Vieira, 1735 [1660], t. II, p. 22). língua portugueza juntamente e ingayba, valendo-me para isso de um
( mameluco versadissimo cm ambas ellas, por ser filho do capitã0-m6r Ayres
' Tem vários predicados os índios nheengaiba, que os distinguem das mais de Souza e uma ingaiba, e destes dialogos me ia ajudando admiravelmente
nações. O primeiro é o seu dialecto totalmente diverso dos mais; e dele é, e~ tudo quanto os índios me vinham fallar, por achar ahi as suas perguntas
que tomaram a sua característica diferença nheengaíba, que· quer dizer, má e Juntamente as respostas que lhes havia de dar, e assim ia aprendendo a
lingoagem (Daniel, 1976, v. I, p. 271). su.a língu~ dellles, de sorte que dentro de tres meses já a fallava, fazendo
mmhas viagens e conversando com elles e ensinando-os pelas aldêas, em
Para os portugueses, a importância política dos nheengaíba - assim as ~uae_s dentro de Ires mezcs que lá assisti, baptisci algumas oitenta ou
como dos demais grupos em Marajó - foi a ameaça de comércio deles com mais cnancas que parte foram para o ccu (Bettendorf, 1990, p. 336).
outras nações européias instaladas na Guiana. Antes da chegada de Vieira,
durante vinte anos, os nheengafba estiveram em luta contra os portugueses Porém,. no século XVIII, como menciona Daniel, já se apresenta-
numa "guerra volante e invisível" (Vieira, 1735 [1660], t. II, p. 24), ao se vam grandes diferenças demográficas e lingüfsticas nesse grupo indígena.
embrenharem pelas ilhas sem que permitissem ser capturados. Em 1658, o ~sse autor.comenta que os nheengaíba, outrora um grupo grande, haviam
governador Pedro de Mello, na conjuntura da guerra com os holandeses no sido. reduzidos a duas missões, misturados a outros grupos: "É muito es-
Estado do Brasil, denunciava o comércio desse grupo indígena com esses tend1d.a, e pop~lo~a esta nação, ainda que já hoje apenas existem as suas
europeus: "Carregao [os nheengaíba] cerca de 20 navios holandeses com relíquias nas m1ssoes de Guaricuru e Arucara, onde se aldearam" (Daniel
1976, V. I, p. 270). '
peixe boy" (Vieira, I 735 [1660], L II, p. 27) e solicitava a decl&n1ção de
guerra justa contra o grupo, o que permitiria atacá-los e transformar os Com ª.lgum deta1hamento, Daniel aponta o processo de tupinização
do grupo, a~s1m como as formas de resistência para aquisição da língua
prisioneiros em escravos. Vieira propôs que se oferecesse primeiro um acordo
f~~a colomal. Segundo esse estudioso, os homens nheengatba eram bilin-
de paz aos nheengaíba, negociado pelos missionários dentro das regras
gues, falavam sua l~ngua e a geral, mas não aceitavam que as mulheres
definidas por ele, em 1655.
adultas fal~s7m tupi. Até a adolescência, elas podiam falar a língua geral,
O primeiro contato para o acordo político foi em 1658, com o envio
mas esse d1re1to cessava no casamento Falar a Jm'gua geral ·d ,·fi
dos "embaixadores" nheengaíba (Idem, p. 28) portando uma carta patente • t en 1 1cava-se
com falar com os brancos.
Notas sobre a políticajesuftica dallnguageral na Amazônia (6'oulos XVII-XVIII)

A maior galantaria é, que os menores, tanto varões, como fêmeas, falam com o Acto de Contrição. Logo entoão por três vezes duas meninas das
a língoa geral; nem nisso reparam os pais: mas casando-se, perdem o mais devotas, e bem ensinadas, o Bemdito, e Louvado seja o Santissim.o
privilégio, e não se dispensa com nenhuma por nenhum caso, ainda que Sacramento do A1tar, e a immaculada Conceição da sempre Virgem MARIA
seja necessário confessarem-se por intérprete (Daniel, 1976, v. I, p. 272). Senhora nossa concebida sem peccado original; e respondem dois meninos
dos mais modestos, e idoneos: Para sempre Amen; e apôs delles todos
A oposição a que a mulher nheengaíba falasse a língua geral obri- juntos o mesmo no mesmo tom, concluindo tudo com o sinal da Santa Cruz
gava o uso de intérprete não-jesuíta na confissão. Para forçá-la a falar tupi (Bettendorf, 1800).
na confissão, Daniel menciona o uso de castigos físicos por parte dos mis-
sionários. Um catecismo colonial continha os textos mencionados acima por
Bettendorf como parte das práticas diárias da doutrina. As orações eram
Como porém as confissões das tapuia por intérprete trazem consigo muitos basicamente Padre-Nosso, Ave Maria, Sinal da Cruz e Credo. Havia tam-
inconvenientes, tem-se empenhado muitos missionários a desterrar este bém uma série de listas que enumeravam os pecados, os mandamentos da
abuso, já com práticas, e já com castigos: e posto que já vai em muita Igreja e de Deus, os sacramentos, as virtudes etc. Os diá1ogos eram orga-
diminuição, contudo ainda há algumas, que nem a pao querem largar este nizados por meio de perguntas e respostas, para que, com "maior facilidade,
abuso: tanto que já houve algumas, às quaes o seu missionário mandou dar lhes ficassem na cabeça" (Leite, 1938, "· II, pp. 556-57). Os diálogos es-
palmatoadas até elas dizerem basta ao menos, pela lfngoa geral, antes se tavam organizados por temas: perguntas e respostas· para cada parte das
deixavam dar até lhes inchar as mãos, e arrebentar o sangue, até que se principais orações ou sobre os mandamentos, os sacramentos e as obriga-
resolviam a fazer, o que deviam logo, que era o falar a língoa comum (Idem, ções de todos os cristãos. As falas próprias para cada sacramento também
ibidem). faziam parte dos catecismos (batizar, casar, enterrar, confessar etc.) (Leite,
1938, v. It p. 560). As perguntas a serem usadas na confissão já estavam
Estandardização do catecismo ao longo da política jesuítica fonnuladas, organizadas segundo o tipo de mandamento e pecado, mas com
restrição de fazê-las todas, como aquelas referentes às práticas sexuais.
Os catecismos coloniais são mosaicos das práticas cristãs em tupi
levadas a cabo em uma missão. Eles contêm o conjunto de textos que Neste coníessionario, ou interrogatorio da confissaõ, vaõ as perguntas que
integravam a rotina diária da evangelização nas aldeias jesuíticas, onde devia se podem fazer a hum penitente, muito pelo miudo: E para incitallo a
haver a "doutrina cristã" duas vezes ao dia - de manhã, antes de os índios observancia das Leys Divinas, E Eclesiasstica, E á contriçaõ, vai hua
saírem para trabalhar, e de noite, antes de se recolherem às suas casas. admoestaçaõ ao principio, outra no fim. E para cada preceito sua admiestaçoõ
Uma descrição do cerimonial diário das práticas cristãs nas aldeias pode ser Isic] particular: Naõ para que o Confessor assi admoeste, nem assi pergun-
acompanhada no catecismo de Bettendorf, onde é indicado como estas te, E inquira por extenso: mas para que daqui se aproveite, quando lhe for
deveriam desenrolar-se. necessario: E consideradas as pessoas, E o tempo admoeste, E pergunte
aquelles casos, E peccados, que melhor lhe parecer em o Senhor. E occasiaõ
O modo, que se deve seguir em ensinar esta Doutrina, he o seguinte. O haverá em que seja necessario perguntar quasi tudo, E admoestar com
Doutrineiro posto diante de todos, em lugar mais chegado ao Altar, faz com vagar a observancia de cada preceito (Livro VIII. Confessionario pela
elles o sinal da Santa Cruz em voz alta, clara, e distincta, e diz, o Padre- onhm dos Mandamentos de Deos e da Igreja. Aral1jo, 1686, pp. 218-67).
Nosso, a Ave MARIA, o Credo, os Mandamentos da Lei de Deos, e da
Santa Maria Igreja Catholica: os Sacramentos, e as três Virtudes Theologaes, O catecismo podia ser do tipo "breve" ou "maior". A versão maior
com o mais confonne as circunstancias lhe parecer melhor. Depois disso íaz continha textos diversos necessários à rotina missionária. As duas edições
as perguntas ás quaes respondem commummente todos, tirado nos dias de do catecismo de Anuljo (1618 e 1686) se enquadram nesse tipo. Além de
Dominga, e Festas em que se faz a Doutrina geral depois do jantar. Aca- terem o usual de um catecismo (as orações, as listas de mandamentos e de
badas as perguntas se põem todos de joelhos, e dizem a Confissão geral sacramentos e diálogos de perguntas e respostas sobre pontos da doutrina
Notas sobre a polílieajesuflica da língua geral na.Amazõnia{séculos XVll-XVIIQ

cristã), contêm ainda um vocabulário com termos de parentesco para auxiliar


filhos refonnadores deputados na nossa congregaçao da reforma, hua nova
0 confessor, um calendário dos dias santos acompanhado pela exortação a
ser feita em tupi e ainda instruções sobre a ortografia utilizada. Era urna cartilha, composta por nosso mandado (Belarmino, 1685).
coletânea de materiais elaborados pelas sucessivas gerações de jesuítas
Os impressores dos catecismos europeus, ao terem os direitos exclu-
"línguas" (intérpretes).
A versão breve de um catecismo continha o necessário para casos sivos de impressão e venda por dez anos piyrrogáveis, desempenharam
de urgência, como os batismos antes da morte e extrema-unção: "Além papel importante no processo de padronização desse tipo de obra. Eles ainda
deste catecismo breve fizemos outro brevíssimo, para, nos casos de maior podiam conseguir, por intennédio da autorização de algum bispo, que fossem
necessidade, se poder baptizar um gentio, e ajudar a morrer um baptizado" dadas indulgências para quem lesse seu catecismo. O impressor do catecis-
(Vieira, 1970 (1653), pp. 339-40). mo do jesuíta Juan Nieremberg, por exemplo, dedica a obra ao bispo de
O Compêndio da Doutrina Cristã na Língua Brasílica, de Algarve, em busca de que este concedesse "quarenta dias de indulgencia na
Bettendorf (1800), e os manuscritos no British Museum (Ayrosa, 1950) forma ordinaria a quem ouvisse, & lesse a doutrina delle, assim os parochos,
tepresentariam a versão breve. como aos fregueses", da mesma maneira que os arcebispos de Évora, de
Os catecismos eram obras dirigidas aos missionários com ou sem Braga e Leiria haviam autorizado (Nieremberg, 1678). Esse tipo de litera-
conhecimento da língua geral. Os que sou~sem tupi não deveriam distan- tura. com poder de indulgências dos pecados, tomou-se muito popular no
ciar-se do que estava escrito; quanto àqueles que não o sabiam, poderiam mercado editorial europeu desse período.
usar os catecismos durante os sacramentos: "havia entre eles muitos doentes Nas colônias, os catecismos nas línguas vemácÚlas também passa-
[...] vieram implorar-nos; embora não soubesse ainda a língua vali-me do ram pelo mesmo tipo de controle institucional de seu congênere na Europa.
catecismo em língua lusitana e brasileira, auxiliei como melhor pude aqueles Um exemplo de padronização dos catecismos coloniais é o caso do tupi. Ele
desamparados" (David Fay, 1942 [1753), p. 269). não estava aberto para a criação individual dos jesuítas "línguas", que de-
Da parte dos índios, o aprendizado do cerimonial cristão era de veriam seguir o texto-padrão sem fazer modificações. A permissão para
forma oral, baseado na memória (Leite, 1956 [1556), v. II, p. 352). Também impressão do catecismo tupi foi solicitada reiteradamente pelos jesuítas no
para os catequistas - índios encarregados da doutrina na ausência dos pa- Brasil, como fonna de manter a uniformidade do texto, como diz o Pe.
dres -, o aprendizado da doutrina era pela memória. Beliarte em uma carta, em 1592:

Padronização do catecismo tupi E porque parece que não há já que emendar [nas doutrinas), como os
melhores Unguas, que há, dizem; e no da Teologia estamos certos; e, com
O catecismo na Europa era um gênero literário sob controle da se imprimir, será mais fácil tê-la todos, aprendê-la e ensiná-la, se pede a V.
hierarquia da Igreja Católica. Mecanismos de padronização se aplicavam a Paternidade dê para isso licença, porque pelo trabalho de a escrever muitos
esse tipo de texto por meio da oficialização de uma versão como padrão, ao deixam de a ter, e os que a teem, não a teem certa; e cada um, se está um
mesmo tempo em que se proibia qualquer alteração. Um exemplo de padro-
pouco adiantado na língua, lhe parece que se poderia dizer isto ou aquilo
nização de catecismo foi a oficialização pelo papa Clemente VIIl do cate-
mehor, e assim a querem emendar a seu gôsto; com a ver impressa, enten-
cismo do jesuíta italiano Roberto Belannino como texto padrão da evangelização
derão que não hájá que tratar de mudança (Leite, 1938, L II, p. 558, apud
de crianças: Beliarte, 1592).

[...] Como quer que ate agora se hajao divulgado, confonne temos por
A padronização do catecismo tupi não se limitou ao interior das
noticia, muitas cartilhas da doutrina christaa, composta por varias pessoas,
mis~es da Companhia de Jesus. A demanda dos jesuítas era que o mesmo
que contem diversa ordem, & contextura de palavras, em ta1 fonna q não
catecismo fosse usado em toda a colônia, devido à extensa mobilidade dos
he pequena a difficuldade, & variedade que dahi procede: desejando nos
atalhar este dano, mandamcis examinar com toda á diligencia pelos amados índios e dos missionários, exigindo que o mesmo texto fosse usado por todas
as ordens religiosas,
Notas sobra a polflicajesuftlca da língua geral naAmazõnia (séctAosXVII-XVJJIJ

que pela causa sobrcdita, e por evitar bandos entre os índios que natura]. O terceiro livro foi o do missionário francês Yves d'Evreux, no
mente são vários, e inconstantes, de dezejosos de novidades, e par que a Maranhão. Seu livro Suitte de l'Histoire des choses mémorables advetllles
doutrina que aprenderem, seja a mesma entre todos sem diversidades de en Maragnan, es annés 1613 et 1614 foi impresso em 1615 e também
pareceres, de que se podem seguir graves inconvenientes, ainda que neste continha textos em tupi de origem jesuítica.
estado ha differentes religioes, o cargos dos fndios se encommende a huma Dois dos livros acima - o de Thevet e o de Evreux - foram
so, aquella que V. Magestade julgar que o fara com mayor inteireza (Vieira,
publicados em um contexto de conflito com os portugueses pelo domínio da
colônia. A publicação de Ore (I 607) surgiu no período da União Ibérica,
1970 [1654], p. 418).
durante o qual Portugal e Espanha estavam sob o domínio do mesmo rei.
· O catecismo de Araújo teve caráter de obra coletiva, revista pelos
Na Amazônia, os jesuítas lograram levar seu modelo de catecismo
•'padres doctos & bons lingoas", até ser finalmente "concertado, ordenado
para além de suas próprias missões. Bettendorf mencion~, por ~xem~lo, ~m
e acrescentado pelo Padre Antônio Araújo" (Leite, 1938, v. II, p. 560). Leite
missionário da ordem dos mercedários que usava a doutnna tupi dos Jesu1tas
estima que seus sucessivos autores foram Azpicuelta Navarro, Pero Correia,
(Bettendorf, 1990, p. 493). Leonardo do Vale, José de Anchieta e Antônio Aradjo, Era, na verdade, urna
continuidade à versão que se usava nas missões há longo tempo, com alguns
Antônio Araújo como catecismo tupi padrão acréscimos, como diz o prólogo. Desde 1586, há indícios de que já circulava
um texto padrão de catecismo tupi, ainda em forma manuscrita, que deveria
Na descrição da situação lingüística das missões na Amazônia na ser usado em todas as missões, não podendo ser modificado ao gosto dos
segunda metade do século XV~, Pe. João Daniel ~dentifi~ava o c~tec.ism~ missionários (Leite, 1938, t. Il, pp. 306-7). Em 1592, no pedido de licença
tupi em uso nas aldeias de desctmento como a versao escnta pelos 'pnme1- para imprimir o texto cristão em tupi, constava que ele vinha sendo usado
ros missionários" (Daniel, 1976, v. II, p. 225). Um século antes, o Pe. nas missões jesuíticas há cerca de quarenta anos.
Bettendorf também se_ referia ao catecismo dos ''primeiros anos" como a Uma reedição do catecismo tupi de Antônio de Araújo saiu em 1686,
versão oficializada por ele para o uso nas missões da região (Bettendorf, com alterações feitas a cargo de Bartolomeu Leão - um jesuíta nascido no
1990, p. 483). As duas passagens indicam que o texto religioso em ~pi Brasil e que atuou no Rio de Janeiro e em Santos. AJ; mudanças em relação
padronizado pela evangelização da Amazônia no século XVII e_ XVIII foi o à primeira edição se deram na ortografia e em a]gumas expressões em tupi
material produzido pelos jesuítas no século XVI, no Sul. Identificaremo~ o usadas para traduzir o léxico cristão, representando as alterações aceitas
Catecismo de Antônio Ara.6jo, em suas duas edições, como o texto básico pela hierarquia jesuítica ao catecismo tupi de 1618.
da evangelização jesuítica. .
A primeira edição do catecismo de Antônio Araújo (1566-1632) ~u Aos religiosos da Companhia de Jesus do Estado do Brasil:
em 1618, cerca de setenta anos depois de iniciada a evangelização dos índios Sae de novo a luz o Catecismo Brasilico, que já no anno de 1618 avio a
nessa língua. Era a primeira vez que se imprimia o catecismo tupi pelo padroado primeira vez. E sae com algua variedade. Porque se trocaraõ alguns vocabulos
português. Porém, antes dessa impressão, três livros já hav~ incorporado daquella idade, que já hoje estranha o commum idioma dos Brasis, em
trechos do catecismo jesuítico em tupi. O primeiro a fazê-lo foi André Tbevet, outros, que são hoje vulgares. A escritura se emendou em orthograplua
que publicou algumas orações em tupi em Cosmographie U,Uverselle. mais proporcionada á locução Brasilica. No texto da Doutrina, & Dialogos
A segunda publicação das orações em tupi dos jesuítas ocorreu em he rara alteração. Pois s6 se mudárao alguas sentenças, que o exercicio de
1607 no livro Rituale Seu Manuale Peruanum (Ore, 1607), que tinha como tantos annos notou menos perceptiveis: & em seu lugar se sustituiraõ
referência a colonização espanhola no Vice-Reino de Lima. O livro repro- outras com tennos, & palavras mais necessarias a intelligencia dos mysterios
duzia catecismos nas três línguas gerais daquele Vice-Reino (quechua, guanmi, que aqui se inculcaõ. Finalmente tiraraõse alguas exortaçoes, & praticas,
aimara) e acrescentava a]guns teXtos tupi. A publicação era resultado do que em hum perfeito Catecismo abundavão (Araújo, 1686).
Terceiro Concílio de Llma (1584-85), que havia reforçado a necessidade de
uniformizar a evangelização pela elaboração de catecismos standard nas Até a expulsão dos jesuítas, o catecismo de Aratíjo continuou como
o padrão do discurso cristão em tupi, tanto para o Estado do Brasil como
línguas gerais do Arcebispado de Lima.
Molas sobre a pol/llcajesuítlca da língua 91f81 naAmazõnia (séculos XVII-XVIIQ 103

para do Maranhão e Grão-Pará. Quando foi publicada a primeira edição, cada dia se mandava fazer aos índios das aldeas, e que uns ensinavam uma
O
já se planejava seu uso na Amazônia, recém-ocupada pelos portuguese~ na parte, outros outra, acrescentando ou mudando o mais que lhes parecia, e
tomada de São Luís dos franceses e da fundação de Belém, como mencmna assim para reduzir todos á unifonnidade, prescrevi e mandei publicar a
seu prólogo: ' doutrina que se usava em toda a missão, desde os seus principios, acres-
centando-lhe somente umas perguntas mais necessarias sobre os actos da
Agora pera que os que escolhe pera obreiros da altíssima empresa da Fé, Esperança e Caridade, da confissão e communhão, e como ainda agora
salvação dos poucos índios, que escaparam, e se vão tendo ao~ mares. das alguns não tem, quiz pôl-la aqui, para que em todo o tempo se possa
tribulaçoens [.... }, tenhao com que os possão perfeiçoar, & reduzir os muitos, recorrer a ella, para uniformidade de doutrina em toda a missão (Bettendorf,
que O novo descobrimento do Maranhão lhes está oferecendo, o~en~u _por 1990, p. 483).
via do Reverendo padre Provincial Pedro de Toledo [...] se 1mpnm1r o
catecismo, que nesta lingoa antigoamente composerao a1guns Padres doctos, Um exemplo de padronização: a oração do Pai-Nosso em tupi ao
& bons lingoas (Aral1jo, 1952 [1618]). longo de duzentos anos

A proposta de fazer uso de um catecismo tupi feito .º?


Estado d~ É possível acompanhar a padronização do discurso religioso em tupi
Brasil na Amazônia, indica que a estandardização do texto rehg1oso em tupi por meio da comparação de uma das orações em tupi, o Pai-Nosso, em
se est~ndeu para as duas colônias portuguesas. . . diferentes missionários entre os séculos XVI e XVIIl, tanto no Estado do
A presença do catecismo de Araújo no N~rte a~nda pode ser ~1sta Brasil como no do Maranhão e Grão-Pará (ver quadro no Apêndice). 2 Essa
nas bibliotecas jesuíticas. No acervo de uma casa Jesuítica na Amazô~1a - oração foi o texto mais cristaJizado da evangelização colonial, se observar-
a de Viseu -, por exemplo, há referência a cinco exe~plare~ d_o "cat~1smo mos que a versão usada no Sul, no século XVI (Anchieta, 1988), foi a
da língua brasflica". Apenas a B1'blia e o Concordantiae B1blwrum tmham mesma usada pelos jesuítas na Amazônia, no século xvm.
tantos exemplares (Leite, 1942). . As versões de Pai-Nosso incluídas no quadro foram:
O catecismo de Araújo também foi o ponto de partida ~~ a ela-
boração de catecismos breves para uso na A~ôni~. An~ô~io Vieira, p~r a) Anchieta (1988)
exemplo, elaborou a partir do texto de Araújo (pnme1ra edu;ao) uma vers~o O manuscrito é uma cópia datada de 1730, de um catecismo assi-
de catecismo breve para uso na região, por considerar a obra de AraúJo nado por Anchieta no século XVI. Falta a página referente ao Pai-Nosso na
muito extensa. seção de orações, porém o texto pode ser remontado a partir de um dos
diálogos de perguntas e respostas que tem como tema essa oração (Anchieta,
Não sendo capazes de catecismo tão dilatado e miúdo como é o geral, que 1988, p. 219).
anda impresso, tomamos dele as cousas mais substanciais, e fizemos.outro
catecismo recopilado, em que, por muito breve e claro estilo, estão dispos- b) Antônio Araújo (1618)
tos os mistérios necessários à salvação, e este é o que se ensina (Vieira, Representa a primeira versão impressa do Pai-Nosso em tupi dentro
1970 (1653], pp. 339-40). do padroado português. Reproduz a mesma versão de Anchieta.

Bettendorf - autor de um catecismo breve em tupi !mpres~o ~m c) Antônio Araújo (1686)


1687 _ também procurou padronizar o discurso cristão em tupi nas rmssoes A segunda edição de Antôni'> Araújo não contém alterações na
da Amazônia, a partir da versão em uso nos "pri~eiros an?s", com o ob- versão do Pai-Nosso em relação à primeira edição, mas traz mudanças ao
jetivo de unifonnizar as diferentes versões manuscntas que circulavam pelas nível da ortografia.
missões (Leite, 1938, v. VIll, p. 100).
Os estudos comparativos do Pai-Nosso em tupi têm sido campo fértil para acompanhar
Achei em tempo desta minha visita que os padres missionários não con- as mudanças linguísticas nessa língua. Ver os estudos de Carlos Drummond (1948) e
.
cordavam sobre os pontos das perguntas e respostas das d outrmas qu ' Arion Dall'lgna Rodrigues (1986).
Nolas sobre a políflca jesuffica da língua geral na Amazõnia (séoJosXVll·XVIIQ .

d) João Felipe Bettendorf (1687) Conclusão


Foi O primeiro catecismo breve impresso para uso na Amazônia.
Repete O mesmo Pai-Nosso das versões anteriores. Porém, como mostra No livro Tesouro descoberto da Amazônia, o jesuíta João Daniel
Drummond, inclui um advérbio "-te" com sentido de "certamente, pois, apontou mudanças lingüísticas ocorridas na região ao cabo de cem anos de
decerto" (Drummond, I 948, p. 19), ausente nas demais versões. Há também palítica coloniaJ da língua geral, ao relatar que nas missões jesuíticas havia
diferenças na ortografia. O catecismo de Bettendorf foi contemporâneo à duas variedades de tupi em circulação - identificadas por ele como "língua
segunda edição de Antônio Araújo. O missionário consta como editor da geral verdadeira" e "língua geral corrupta". A "língua geral verdadeira" era
segunda versão de Araújo, quando ainda estava em Lisboa, depois de ex- a fonna de falar dos índios tupinambás e estava presente nas situações
pulsos pelos colonos do Maranhão e Grão-Pará. religiosas das aldeias (doutrina, confissão etc.). A "língua geral corrupta"
era fa]ada por um grupo heterogêneo lingüisticamente - índios não-tupi e
e) Anselmo Eckart (século XVIII) (Rosa, 1994) portogueses, todos não-falantes nativos da língua geral. Segundo Daniel, o
Foi missionário na Amazônia entre 1753 e 1757, tendo sido expulso último grupo já não entendia a variedade usada nos catecismos. A situação
por Pombal. Deixou uma descrição da língua geral no trabaJho "Specimen descrita por esse autor representa uma estandardização, na qual uma das
linguae brasilicae vulgaris" (Rosa, 1994), no quaJ inclui o texto do Pai-Nosso. variedades diaJetais está presente no uso escrito e a outra, no oral.
Sua versão segue a de Antônio Araújo e não a de Bettendorf quanto à Como se teria estabelecido essa distância entre o material jesuítico
inclusão do adverbio "-te". Contém algumas alterações dialetais, mas con- escrito em tupi e o que se faJava nas aJdeias jesuíticas'? O trabalho centrou
serva o mesmo léxico tupi para os conceitos cristãos. a causa da fonnação dessa diglossia em duas ações jesuíticas: a política de
descimento e a padronização dos catecismos.
A padronização do catecismo tupi foi uma regra própria desse gê-
Em todas as ve{Sões, como se pode ver no apêndice, está presente
ilero literário, e não uma peculiaridade da doutrina cristã em tupi. A padro-
o mesmo léxico cristão em tupi estipulado pelos missionários do século XVI.
nização do catecismo tupi, ao longo de duzentos anos da evangelização
Apenas uma versão do Pai-Nosso no período colonial foge a esse
jesuítica, levou a uma homogeneização das diferenças lingüísticas dessa
padrão. O texto em questão foi publicado por André Thevet em seu livro
língua nos espaços religiosos das a]deias de descimento. Tanto no Estado do
Cosmographie UniverseJJe, em 1575, e no manuscrito le Grand lnsu/aire
Brasil como no Estado do Maranhão e Grão-Pará, o mesmo modelo de texto
et Pilotage d'André Thevet Angoumoisin, Cosmographe du Roy. Dans religioso foi usado pelos jesuítas. Um exemplo é o catecismo de Antônio
leque[ sont contenus plusiers plants d'isles habitées et deshabitées, et Araújo, que tinha sido feito por jesuítas do Estado do Brasil, dentro da
description d'icelles (1586-87), A origem jesuítica do tex.to de Thevet está variedade do tupi do Sul. No Estado do Maranhão e Grão-Pará, os jesuítas
marcada pela presença de pa1avras portuguesas nas demais orações ("Ma- seguiram o mesmo materiaJ lingüístico. O uso do catecismo de Antônio
ria" e "Espírito Santo"), A versão de Thevet aponta outra, jesuítica, desa- Araújo no Sul e no Norte revela que a política jesuítica nos dois estados foi
parecida na Ordem. Uma das diferenças do Pai-Nosso em Thevet em uniforme em relação ao texto religioso em tupi, apesar de não estarem
relação à versão jesuítica oficiaJizada é o uso de empréstimos lexicais do administrativamente dentro da mesma província jesuítica.
português. Na versão de Thevet, não há os empréstimos lexicais "tentação", Em relação à política do descimento, esta foi responsável pelo des-
"reino" e "amém", presentes no Pai-Nosso de Anchieta (1988) e em todos locamento de grupos indígenas de diferentes línguas para perto dos núcleos
os demais. portugueses, a fim de "misturá-los" com os da língua geral nas aJdeias de
Em suma, o apêndice com as versões do Pai-Nosso em tupi dos descimento. Essa política deu margem à criação de uma variedade da língua
séculos XVI ao xvm é um exemplo de que não houve alterações no 8eral usada predominantemente ~lo não-falante nativo, que não era mais
éatecismo nesse período, não absorvendo as mudanças na língua geral da aquela faJada pelos tupinambás.
Amazônia, mencionadas por João Daniel. O fato descrito por Daniel aponta como a política da língua geral, ao
mesmo tempo em que provocou uma homogeneização da situação de diver-
sidade lingüística pré-colonial - ao acabar com a diversidade de línguas
Nolas sobre a polAica fe$uítlcada língua geral naAmuõnla {séculosXVII-XVHI) 107

tapuia e ao tomar a Ifngua geral como franca da colonização -, instaurou de Lisboa. Na officina de Joao Galram, & a sua custa. Com todas
uma nova heterogeneidade lingüística por intennédio da fonnação de uma as licenças necessárias. 1685.
variedade tupi fa]ada por um contingente de não-faJantes nativos de tupi. :BEOZZO, José Oscar. Leis e regimentos das missões. Política indigenista
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centado de varias/ praticas doutrinaes, & moraes, adaptadas ao VIEIRA, Antônio. Cartas do Padre Antônio Vieyra da Companhia de
genio, & capacidade dos/ /ndios do Brasil,/ pelo Padre/ Fr. Benu:-rdo Jesus. Lisboa: Occidental, Officina da Congregação do Oratório, 1735,
de Nantes,! Capuchinho, Pregador, & missionário/ apostoilco;/ 3 v.
offerecido/ ao muy alto e muy poderoso Rey de P~rtugaV Dom ___ . Cartas do Padre Ant6nio Vieira. Coord. por J. Lúcio de Azeve·
Joaõ V.! S.N. que Deos guarde. Officina de Valentim da Costa/ do. Lisboa: Imprensa Nacional, 1970--71, 3 v,
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christaa para os principais mysterios de N.S. fe, festas dos santos,
& domingos do anno: necessarias para as obrigações de hum
christao: conforme os catecismos de Pio V e Clemente Vil/ & o '
decreto do S. Concilio Tridentino. Dedicado ao lllustrissimo D.
Francisco Barreto do Conselho de S.A. Bispo de Algarve... com-
posto pelo Padre Joao Eusebio Nieremberg, da Companhia ~e
Jesus. traduzido em portuguez [por]. licenciado ... Joseph Hortis
de Ayala, cura de S. Miguel de Torres Vedras: ... acrescentado por
Manoel Henriques, corrector desta sexta impressao e illustra_do
com o texto da doutrina christaa & varias exemplos. Lisboa: Officma
de Domingos Carneiro, 1678, 456 p. il.
Apfndice Anchieta (séc. XVI) oré remió ára jabiõnduára
Araújo (1618) Orê remiu/ Ara yabiõ ndoãra
Pai-Nosso em diferentes textos jesuíticos: Araújo (1686) Orérébi:ú fira iablõ ndofira
Bettendorf (1687) Oré rembYú ãra iabiõ ndõára
Anchieta (séc. XVI) Oré rub ybákype tekoár Eckart (séc. XVIII) oré rembiú/ ára jabiõ ndoára
Araújo (1618) Orê rífü/ lgbàcupe tecoar,
Araújo (1686) Oré rub, ybakypc tecoár,
Bettendorf ( 1687) Oré rOb ybákype tecoár, Anchieta (séc. XVI) eimeéng korí orébe
Eckart ( séc. XVIIl) Oré Rúb ybákypé tecoar; Araújo (1618) Eimeeng cori orebe.
Araújo (1686) eim!!eng corí orêbe
Bettendorf (1687) eiml!êng corf orébe:
Anchieta (séc. XVI) imoetepyramo nde réra toikó F.ckart (séc. XVIII) cimcéng corí/ orébe
Araújo (1618) Ymoete piramo,lnde rera toicô
Araújo (1686) imõcté pyrarno nde rêra toicó
Bettendorf (1687) Imõetépyramo nde rêra tõicó. Anchieta (séc. XVI) nde nyrõ, Tupã
F.ckart (séc. XVIIl) imoetépyrarno/ndé réra toicó Araújo (1618) Nde nhirõ/ Ore angaipaba rece/ Orebe
Araújo (1686) Ndenhirõ oré angaipâba recé orêbe
Bettendorf (1687) ndenhirõ oré angaipâba recé orébe
Anchieta (séc. XVI) toú nele Reino Eckart (séc. XVIII) ndebyró oré angaipáka recé/ orébe
Araújo (1618) ToOr nde Reino
Araújo (1686) Tõúr nele Reino
Bettendorf (1687) Tõúr nde Reino: Anchieta (séc. XVI) oré rerekomemuãsára supé
Eckart (séc. XVIII) toúr ndé Reino:/ Araújo (1618) ore terecõmemoáçara çupe
Araújo (1686) ore rerecomemoãçara çupé
Bettendorf (1687) orérerecómemoãçára çupé
Anchieta (séc. XVI) tojemoftang nele remimotára ybjpe, Eckart (séc. XVTII) oré rerecomemoãçára çupé
Araújo (1618) Tônhemonhang nderemimotara ibipe
'
Araújo (1686) Tonhemonhang nderemimotãra ybype
Beuendorf ( 1687) Tonhe monhang nde remimotâra, ybYpe, Anchieta (séc. XVI) oré iíyrõ jabé, nde iíy:rõ orébe
Eckart (séc. XVIU) .tonhemonháng ndé remimotára ybypé Araújo (1618) Ore nhirõ yabe
Araújo (1686) orénhirõ iabé
!
Bettendorf (1687) orénhirõ iabé
Anchieta (séc. XVI) ybákype il\emofianga jabé &kan (,éo. XVIII) orenbyró jabé
Araújo (1618) lgbâcupe,ynhem.onhanga yabê
Araújo (1686) ybákype inhemonhãnga iabé
Bettendorf (1687) ybâkype inhemonhânga iabé Anchieta (séc. XVI) ore moárukár umé jepé
Eckart (séc. XVIII) ybákypé inhemonbáng jabé Araújo (1618) ore moarO carumé yepe
Araújo (1686) Orcmoarucârumé iepé
Bettendorf (1687) oremoarucárumé i'epé
&kan (,éo. XVIII) oré moarucáryme jepé
Anchieta (séc. XVI) tentação pup6/ ore pysyrõ té jepé
Araájo (1618) tentação pupé:/ore pi cirõte yepe, A língua geral:
Araájo (1686) tentação pupé: Orepycyrõ iepé revendo margens em sua deriva
Bettendorf (1687) tentação pupé, orépycyrõ te i:epé
Eckart (séc. XVIII) tentação pupé oré pycyrõ jepé
Luiz C. Borges •

Anchieta (séc. XVI) mbaéaíba sul


Araújo (1618) Mbaê aiba çui
Araújo (1686) mbãe iliba çüi
Bettendorf (1687) mbãé ãfba çüf
Eckart (séc. XVIII) mbaé aíba çuf A Língua Geral Amazônica (doravante referida como LGA ou
nheengatu) é instituída em um espaço lingüístico, histórico e .discursivo
Anchieta (séc. XVI)
Araájo (1618)
......
Amen Iesu
polissêmico, estabelecido pelo processo colonizatório. O qual constrói, por
sua vez, diversos e complexos efeitos de sentido no imaginário socia1 bra-
sileiro, e amazônico em particular, os quais, no entanto, se mostraram desde
Araújo (1686) Amen IESU sempre resistentes ao controle hegemonizante exercido pela política colonial.
Bettendorf (1687) Amon Em sua deriva, a LGA vai traçando margens nas quais diversas materialidades
Eckart (séc. XVIII) Am,n
podem ser analisadas: a questão da política lingüística colonia1, particular-
mente a que foi imposta ao Estado do Maranhão e Grão-Pará, a partir do
século XVII; as diglossias, como efeito lingüístico e discursivo; os inshllmen-
tos lingüísticos; a relação entre língua e identidade; bem como alguns des-
locamentos ocorridos especificamente no campo discursivo.
Considero especialmente a produção de sentidos derivada das re-
lações entre o europeu e o novo mundo, determinadas por um amplo
:; confronto e contradição, e pela dissimetria estruturante, pela qual o dife-
\
rente é ideologicamente reoperacionalizado I como desigual, frente ao novo
padrão trazido pelos europeus. Esse gesto fundante também propicia a
ocorrência de um processo inverso, igualmente di_ssimétrico, quando o
tupinambá passa a assumir a categoria de língua ou abanheenga, "língua
de gente", distinguindo-se, por meio desse alçamento, da categoria gené-
rica e estigmatizada de algaravia ou nheengaiba, pela qual as demais
línguas indígenas eram denominadas e classificadas. Esse recorte da po-
Utica lingüística colonia1 deu origem à clivagem entre tupi e tapuia, diglossia
que sistematicamente é reproduzida pelas gramáticas históricas e pela

Museu de Astronomia e Cibicias Afins e UERJ!Pro-fndio.


O conceito de reoperacionalização foi-me sugerido pela leitura de Schimidt-Riese (neste
volume), ainda que originalmente refira-se ao processo gramatical e comunicacional (em
nível de hiperlíngua) sofrido pela Llngua Gerai, em relação ao tuplnamb.i.
historiografia. O documento de reconhecimen~o e de fonnação de 1:ma nova deseontinuidade e do funcionamento, no qual os diversos sentidos se
historicidade se expressa melhor pelo acontecimento de sua reduçao à arte, entrecruzam e se compõem (Orlandi, 1993). .
bem como os recortes de suas práticas discursivas e gramaticais, notadamente ::' . Mais do que um gesto de revisitação ou de revisão da históna, rever
!l exogramatização, como efeito da transferência de tecnologia gramatical as margens de deriva da LGA significa, no contexto deste trabalho,
(Borges & Nunes, 1998).
Todavia, nem as línguas nem as paráfrases são capazes d~, por si mostrar os processos de significação que produzem sentidos para a língua
sós criarem a referência; daí a necessidade de se falar em extemahdade da nacional no contexto de culturas em contato - a européia e a ameríndia -
ref~rência (Auroux, 1998a), uma vez que o exterior é constitutivo do sentido. na construção do país-Brasil. Nem é preciso afinnar a importância, nesses
Língua (sentido) e referência (exterior) participam constitutivamente da si- casos, da construção imaginária de unidade e de homogeneidade corno pré-
tuação comunicacional. É no contexto de uma hiperlíngua (Auroux, 1_994 e requisitos básicos para se ter uma identidade em um país específico, com
1998a) que os procedimentos de referenciação se assentam e funcmnarn suas formas específicas de governo e com uma língua (nacional) (Orlandi,
(isto é, produzem sentido), trabalhando os sentidos. Ainda segundo esse 1993, p. 157).
autor, é a extemalidade da referência que produz a hiperlíngua, que pode ser
definida como um espaço-tempo histórico-sócio-lingüisticamente estruturado, Para tanto, os fatos são já objeto de uma interpretação pela qual são
levando em consideração os sujeitos falantes, suas diferenças de competên- significados. Deslocando-me em relação à abordagem histórica, esses fatos
cia - eu diria, seus diferentes efeitos de horizonte, significativa e ideologi- não estão dados desde sempre. Ao contrário, eles se fazem no interior do
camente determinados-, o ambiente sociocultural e a realidade não-lingüís- jogo dialético da interpretação, seja pelo método, seja pelas diferentes for-
tica. Ainda em conformidade com esse autor (1998a, p. 22), a hiperlíngua mações discursivas, seja, enfim, pela política de os recortar e recolocar na
é a "reaJidade que engloba e situa toda realização lingüística e limita concre- ordem ideológica.
tamente toda inovação". Assim, é pela hiperlíngua que podemos nos referir
à história. Ou, dito de outro modo, é no espaço da hiperlíngua que podemos Estados coloniais e política indlgenlsta e lingüística
compreender a historicidade de uma língua.
Em todos os casos, tanto a identificação lingüística (o tupinambá O Estado colonial português, assim como o espanhol, e em conjunto
com status de língua "copiosa") quanto a contra-identificação (seja das quando da união das duas coroas (período da chamada União Ibérica),
chamadas "línguas travadas", seja ainda, a partir da refonna pombalina, da implementou uma política que se baseava no emprego da(s) língua(s)
própria LGA, rotulada como "língua demoníaca"), de acordo com Pêcheux indfgena(s), adaptando-as, todavia, aos interesses e necessidades da empre-
(1988), aparecem como fonnas materiais de um pré-construído e, portanto, sa colonial. Com isso, objetivava, ao mesmo tempo, a conquista territorial e
componentes de um mesmo campo ideológico. Cumpre adicio_nar qu~ a espiritual, uma vez que era imprescindível submeter terra e gentes, assim
clivagem entre tupi e tapuia também se reproduz em outras mstânc1as, como corpo e alma, à mesma ordem de dominação. No entanto, frente à
como, por exemplo, entre o tupinambá (como língua tribal) e o tupinambá dificuldade de lidar com a enonne diversidade de línguas em uso nos terri-
jesuítico, à medida que ia sendo deslocado para outras comunidades de tórios coloniais, e dado que não se mostrou exeqüível transformar essa
falantes, nos quais constrói novos espaços de significação. Esse afasta- diversidade tipológica e numérica de povos em falantes da língua do reino
mento é atestado por João Daniel, que opõe a "língua geral antiga dos (português ou espanhol), impôs-se a solução de procurar estabelecer uma
tupinambases", a "verdadeira língua geral", à "língua geral corrupta" (Daniel língua comum, ou "língua geral". Para isso deveria ser encontrada, na rea-
apud Barros, 2000), que diferia da língua geral antiga descrita nas gramá- lidade lingüística local, uma língua que fosse de largo uso. Isto é, que fosse
ticas e catecismos. "a mais usada". No caso das duas colônias portuguesas na América, que se
Desse modo, também considero o espaço de significação, que com- separam formalmente em 1621 (o Estado do Brasil, onde o guarani predo-
põe e delimita o dizíve], o interpretável e, por conseguinte, o significável. minava ao sul e o tupinambá, ao longo da costa - região na qual o processo
Assim, o conceito de história não consiste em uma evolução, nem em uma de eliminação física das línguas indígenas foi mais intenso que em outras
continuidade, mas se apresenta essencialmente como um espaço da localidades -, e o Estado do Maranhão e Grão-Pará, onde também havia
vários grupos de faJantes de línguas tupi), a conjuntura étnica e lingüística juntura pol.ítica, não é mais admissível que em um estado moderno haja
favoreceu a implantação dessa política, Estava criado o espaço lingüístico. concorrência entre línguas no espaço simbólico da unidade nacional.
discursivo no qua1 se configurava, para a interpretação colonia1, uma unidade
lingüística extensa, de forte impacto no imaginário europeu, propiciado pelo Algumas diglosslas
"uso geral" do tupi(nambá).
Resta ainda indagar as razões que levaram, no período coloniaJ, ao O espaço colonial, como tenitório de uma nova significação e de um
estabelecimento de duas políticas Jingüísticas distintas: a primeira novo espaço de memória, constituía-se mediante uma distribuição de funções
correspondendo à primeira fase (do século XVII até a segunda metade do e papéis sócio-históricos e também lingüísticos, contribuindo para a formação
século XVIII, mais especificamente, até a reforma pombalina, na Amazõ.. de diferentes, e freqüentemente conflitantes, formações imaginárias, entre
nia), em que oficialmente a língua geral se toma a língua da colonização; e portugueses, indígenas, tapuios e mestiços, de um lado e, de outro, entre a
a segunda, correspondendo à segunda fase, na qua1 a língua geral é proibida língua portuguesa, a língua geral e as muitas línguas indígenas tribais.
e substituída pelo português (a partir da reforma efetuada pelo Marquês de O Estado do Maranhão e Grão-Pará contava com uma presença
Pombal e que, grosso modo, continua até os nossos dias). Freire (2000), a significativa de povos tupi, de fonna que a política de língua geral tinha um
partir do trabalho de Benedict Andersen, aventa a possibilidade de atribuir campo favorável à sua implantação. Ali estavam os Guajajára, Tobajára e
essas duas políticas lingüísticas a dois momentos distintos da concepção de Tupinambá (Maranhão); Tupinambá, Potyguára, Takunhapé, Pakajá, Pauxí
Estado. e Wayampí (no Baixo-Amazonas); os Juruna, no rio Xingu (Cabral, 2000).
As políticas de línguas estariam ligadas, no primeiro caso, a uma Além disso, houve uma sucessiva migração de índios (majoritariamente
concepção de Estado dinástico, no quaJ não haveria, por parte do dinasta, wpis, mas é de supor que viessem também aJguns não-tupis ou tupinizados)
interesse particular em impor a língua da corte às populações submetidas, acompanhando as expedições colonizatórias enviadas à Amazônia. Na
visto que as línguas do reino não se revestiriam de caráter nacional, uma vez c;xpedição de Alexandre de Moura vieram, além de soldados e jesuítas,
que este só se realizava na manutenção e na reprodução da dinastia. As cerca de 200 índios; na de Francisco Caldeira Castelo Branco (1616), 200
línguas tinham caráter de instrumento de uso oficial, na qualidade de "lín- soldados e 400 índios; na de Bento Maciel Parente (1618), chegaram 200
guas-do-poder". Na segunda situação, estipular-se-iam políticas típicas de soldados e 400 índios.
um moderno Estado nacionaJ, dotado de uma concepção de unidade nacional Desse modo, estabelecia-se um complexo de relações étnicas e lin-
na qual a língua nacional (que delimita a unidade) ocupa lugar destacado. güísticas (miscigenação, inclusive) entre índios e soldados e entre homens e
Neste caso, a língua do governante, ou a "língua do príncipe", de acordo com mulheres, causando um impacto sociolingüístico que, por sua vez, criava um
terminologia empregada no texto do Diretório dos Índios, estaria identificada espaço favorável à implementação da política da língua geral (d.nica) que, à
a uma consciência nacional abstrata (supra-social e supra-étnica), na qual se época, constituía um dos marcos da unidade colonial.
instituiria a unidade e a igualdade dos súditos. É possível dizer, então, que o complexo missionário-colonia1 aciona e
Ainda que Freire discorde de que essa tipologia possa explicar a ~stenta u~ processo contínuo de destenitorializaçãÓ/reterritoriaJização da
política de línguas que se implanta na Amazônia, no período pombalino, estou hngua tupmambá, uma vez que esta se integra e passa a .funcionar numa
convencido - se interpreto corretamente a justificativa do Diretório para ordem discursiva alheia à tribal, como língua supra-étnica, no espaço discursivo
coibir o uso da Língua Geral e substituí-la pelo português - de que é exa- ~e uma hiperlíngua (Auroux, 1994, 1998a). Nesse sentido, a atuação jesuítica
tamente essa passagem político-administrativa de Estado dinástico para Estado importava na construção de uma língua imaginária (por isso eram "conser-
nacional que melhor explica a radical mudança de política lingüística. Trata- v~ores"), h~mogênea, unitária, como se fosse um reflexo modelado pelo
va-se explicitamente da necessidade de criar uma unidade naciona1, reunindo tupmambá tnbal e que, afinal, encontrava-se em dissimetria com a diversi-
lingüística e politicamente as duas colônias portuguesas na América, e a sua dade dialetal e socioetnolingüística do tupinambá colonial. Uma série discursiva
submissão à língua do príncipe, com a qua1 se identificava essa idéia de em que se opõem conceitos como ''nativa pureza, e vigor'', "verdadeira
nação unitária. A partir do século XVIII, o Estado-nação, para se constituir língua geral", "primeiros e verdadeiros tupinambás" em oposição a "corrom-
em uma unidade governável, deve se tomar monolfngüe. Nessa nova con- pendo de tal sorte a Ungua geral tupinambá", "língua geral corrupta", ''parece
outra língua diversa" (Daniel, apud Barros, 2000) dá conta do processo de para criar novos efeitos de sentido, favoráveis à política de domesticação e
construção da imagem de uma língua 2 conservada pelo imaginário da política controle da realidade local.
lingüística e missionária a que se opõem as diversas formas locais (social e No quadro histórico colonial, não é difícil supor que se constituíssem
etnicamente) da língua geral. É, contudo, no nível do trabalho ideológico, que outras diglossias, além da diglossia entre tupi jesuítico (o tupi imaginário das
constrói no imaginário (na memória social e discursiva) a universalidade de doutrinas e gramáticas, mantido pelo modelo desenvolvido pela Companhia
um tupinambá supra-étnico e trans-histórico, que ocorre a anulação das de Jesus) e o tupi colono, falado por uma população etnicamente complexa.
divergências ou disjunções entre as modalidades faladas de LGA e a sua Nesse quadro, fica clara a discrepância (cf. a série discursiva opositiva
norma escrita. acima citada, presente em Daniel) entre a variedade "literária e oficial" da
Essa unifonnização 3 modelar e imaginária tinha como objetivo evitar, Ifngua geral e as variedades de uso vernacular. Contudo, considerando as
de uma parte, uma possível heterogeneidade na interpretação dos textos diferentes competências, substratos lingüísticos e fonnações histórico-ide-
sagrados e na pregação e, de outra, a dependência aos intérpretes não. ológicas, posso avançar a hipótese de que poderiam distinguir-se pelo menos
eclesiásticos. Esses dois pontos visavam manter controlada a polissemia e a 3 tipos de tupi colonial: o tupi jesuítico, o tupi dos colonos (brancos,
dispersão de sentidos, assim como a produção de um discurso de autoridade mamelucos, índios e escravos) e os tupis indígenas (grupos tupinizados,
e sagrado que não viesse a sofrer reversibilidades diante dos catequizandos. aldeados ou simplesmente tapuizados) - e todos eles constituíam derivas
Esse fato explicaria também por que a política colonial, tendo enfatizado a em relação ao tupi tribal.
unidade lingüística do tupi, silenciou acerca da diversidade lingüística 4 e, No espaço histórico e discursivo da colônia, não é só no âmbito da
conseqüentemente, transfonnou os falantes dessas outras línguas em índios questão lingüística que ocorrem dissensões e disjunções na ordem que se
tupinizados quanto à língua e tapuizados quanto à estrutura social, ao mesmo instituía sob a égide da empresa mercantil-catequética. Há, igualmente,
tempo em que implantava uma língua unificadora, sob a qual homogeneizavam- contradições presentes nos documentos legais, sejam os oriundos do Estado,
se os sentidos da conversão e da dominação. sejam os oriundos da Igreja, tendo como objeto de discussão os índios, a
Tais recortes, que correspondem à inscrição, na história da colônia, política de língua e de conversão (Alfaro Lagorio, 2000 e Beozzo, 1983).
das condições em que se produzia o discurso colonizador, comparecem como Dessa maneira, o missionário se institui como a peça-mestra do projeto
exemplos da prática ideológica dos missionários. Estes se apropriavam dos colonial, dado que, mediante sua ação, produzia mão-de-obra para a empresa
jogos de sentidos existentes na realidade indígena, para devolvê-los já inse- mercantil, o vassalo para a Coroa e o converso para a Igreja. No que tange
ridos em novos contextos enunciativos e novas práticas discursivas, visto à instituição da língua geral, ela se afirma num cenário onde trabalham as
que, no que se refere à questão da terra, sob a perspectiva da empresa ~. contradições (jogo de diversos interesses coloniais, os índios como centro de
colonial, "é preciso que se veja o que se v2 de outro modo" (Nunes, 1994: disputa entre missionários e colonos etc.), de fonna que a "Amazônia vai ser
45). Categorizar, pois, as línguas nativas como "língua de gente" em oposi-
; sempre um espaço de um jogo militar e religioso de atração indígena" (Beozzo,
ção à "língua ruim", e estas genericamente como "línguas travadas", assim 1987: 47). É neste espaço de contradições que todas as significações se
com tupi versus tapuia, demonstra bem o jogo de manipulações de estigmas amalgamam, que todos os discursos se entrecruzam (jurídico, religioso, políti-
co-administrativo, militar, lingüístico, ético, humanitário) e passam a ser
interpretáveis e a fazer sentido, fonnando uma nova memória, ao interditar a
Este mesmo tipo de série pode ser referida a "abanheenga" versus "nhcengafba", ou ainda historicidade tupinambá para dar lugar à historicidade colonial.
a '1íngua bárbara" versus "língua copiosa". tão comum para explicitar recortes de caráter
ideológico. j
Não posso deixar de relacionar à uniformização do processo de conversão a polftica da Instrumentos lingüísticos
língua geral e suas conseqüências étnicas e lingilfsticas (tupinização e tapuização) e,
finalmente, a ocupação/dominação da terra e das gentes do Brasil. A política de homogeneização da língua tupi, correlata à política de
Nesse período, a contradição entre unidade/diversidade étnica e lingüística estava ligada hegemonização do discurso missionário e de interpretação controlada dos
à concepção teológica e política segundo a qual o todo é o uno e que só a Unidade seria
manifestação da vontade e da verdade de Deus. Nesse sentido, toda divers.idade cons- textos sagrados, impunha a criação de instrumentos lingüísticos que facilitas-
tituiria uma obra do Diabo. sem a implementação dos fins visados pela empresa catequético-colonial. O
instrumento lingüístico é a materiaJidade da consciência lingüística, em sua deriva dos sentidos e estabelecer discursivamente a unidade da ação
dimensão de consciência política de um grupo de falantes, ou do grupo que catequética. Eles se inserem num espaço de significação bastante delimita-
domina a política lingüística. Todo instrumento lingüístico importa em uma do, pois, devido ao estabelecimento da divisão de trabalho entre produtores
técnica constituída por um saber que permite construir, usar e interpretar o de texto e seus intérpretes - portanto, de textos já imbuídos de um
espaço lingüístico e o instrumento, como, por exemplo, catecismos, evange- (mono)sentido autorizado - e os demais (aqueles a quem não cabe interpre-
lhos, textos teatrais ou poéticos, crônicas, dicionários, gramáticas e listas de tar), têm como função a aplicação dos textos," repetindo assim os sentidos
pa1avras (estas óltimas mostram a relação entre a língua e seu uso e os já interpretados e instituídos.
falantes, mediante a ação intennediadora do nonnatizador). Por conseguinte, Além de gramática, catecismos e dicionários, eram vários os textos
o instrumento lingüístico marca sintomaticamente o lugar de tensão entre que procuravam estabelecer os limites do interpretável: leis, regimentos,
mudança e estabilização, traçando uma borda ou uma moldura que funciona. diretórios, alvarás, cartas régias, provisões, instruções, regulamentos, doutri-
para o uso da língua e sua errância, como um efeito de horizonte, apontando nas, bulas, disposições. Em seu conjunto, produziam um efeito de sustenta-
para as interpretações e sentidos possíveis. ção da monossemia do discurso de conversão e esta, por sua vez, incidia na
De modo gera1, os instrumentos lingüísticos do período colonial as- sustentação de uma imagem ideológica da ação missionária como uniforme,
sentavam-se sobre um suporte teórico-didático tripartite: gramática-vocabu- compacta e livre das múltiplas interpretações, comuns entre as missões
lário-catecismo, e, na condição de equipamentos ou aparelhos lingüísticos, protestantes. Era ainda imprescindível que os índios se deparassem sempre
apresentam, em sua dimensão política, funcionamento ideológico. Para que com uma instituição sólida, sem ambigüidades, estável em sua prática e em
fosse possível a consecução da política missionária, os agentes da coloniza- suas respostas. Era preciso fazer crer que uma Igreja una sustentava
ção procederam à domesticação das línguas nativas e, conseqüentemente, mundializadamente o processo de expansão cristã via conversão, o qual era,
da historicidade dos grupos tribais submetidos à conversão, mediante o uso em seus próprios termos, um lugar privilegiado de intennediação entre o
de vários recortes operados sobre o imaginário fantástico e o científico, que, cristianismo e as religiões e costumes locais.
ao proporcionarem legibilidade à terra e às gentes da colônia, simultanea- Para melhor compreender esse processo, é preciso recordar que a
,, mente funcionavam como formas de conquista (Orlandi, 1992). catequização, como fonna de aculturação, convertia-se num meio de
Segundo Auroux (1992), o fenômeno da descrição das línguas do desqualificar e subjugar as culturas locais, e que é aplicada de forma
planeta (gramatização maciça), usando a tecnologia gramatical ocidental, foi "indiscutível, inquestionável, impositiva", pois "catequizar consiste em im-
resultado da exploração e da expansão mercantil. Este fato criou uma rede por mecanicamente os valores de uma cultura sobre outra ... " (Boal, 1979,
homogênea de comunicação e de. dependência aculturante, tendo como centro pp. 96-7).
dispersar e unificador a Europa, e é em seu proveito que a essa rede novas Em conseqüência, instituíram-se vários instrumentos, a que se pode
línguas são incluídas. Em suas palavras: chamar genericamente de aparelhos do Estado colonial, para estabelecer a
tupinização da diversidade étnica da colônia, formando uma população ho-
O Renascimento europeu é o ponto de inflexão de um processo que conduz mogênea do ponto de vista supra-étnico, para que se tornasse apta a inte-
a produzir dicionários e gramáticas de todas as línguas do mundo (e não grar-se ao sistema de produção/reprodução mercantil-evangelizadora. Com
somente dos vernáculos europeus) na base da tradição grego-latina. Este isso, estabeleciam-se os meios para a efetiva consecução do processo de
processo de 'gramatização' marcou profundamente a evolução da comuni- criação de uma unidade étnica e lingüística condizente com as necessidades
cação humana e deu ao Ocidente um meio de conhocimento/dominação é interesses da administração colonial. Esse procedimento também era con-
sobre as outras culturas do planeta (Auroux, 1992, pp. 8-9). soante com as preocupações teológicas de manter a unidade e a
homogeneidade do discurso doutrinário, evitando, assim, consignar margens
Os instrumentos lingüísticos - bem como os demais, fossem jurídicos, para exo-interpretações ou traduções parafrásticas.
teológicos, administrativos etc. - não se limitavam à função pedagógica ou Segundo Fernandes (1980), a pedagogia dos jesuítas - que haviam
à função de pôr em ação a política catequética. A sua função (em termos renovado e aperfeiçoado os métodos pedagógicos e multiplicado os seus
de memória social e em termos de trabalho do imaginário) é regularizar a colégios - visava formar uma nova e progressiva mentalidade, orientada pela
do como centro de reflexão e assujeitamento a ética
contra-refarma, ten · - · d' dirigia?1-se a outros sujeitos (interlocutores), que não eram os grupos tribais,
· · - Da( a sua (quase) hegemonia no processo de cateqmzaçao m 1gena, os quais, deste modo, anulavam-se da história. Ora, toda a situação lingüís-
costa. d · t nt da
lançando mão de todos os recursos - como a língua e e~1s e eme os tica - da qual resultou a implantação da Jfngua geral - ocorre em um
realidade local _ que possibilitassem executar sua política, que pudessem contexto de deslocamento (territorial, cultural, lingüístico, produtivo), 0 qual
trabalhar a favor da conversão. desejo chamar de cenário exotribal. Estipula-se um processo de imposição
Destarte os índios eram submetidos a um processo de apagamento lingüística, marcada pela assimetria, na qual a diversidade e mesmo as marcas
- tomava' apenas a língua ou uma dada concepção de índio (seu ethos, próprias da linguagem tribal é compelida a assimilar-se aos traços universais
p -
sua memória. '') t~sparen' es_ e
sua organização social, seus referenciais do tupi(nambá) sistematizado pelo jesuítas.
despossuídas de história, por efeito da tapuiza~ão'. mais do que isso, a polfttca Desse modo, vê-se que os instrumentos lingüísticos e culturais pro-
colonial incide diretamente sobre o corpo do mdtvíduo, como um dos recur- duzidos na colônia defletiam as condições de produção dessas práticas
sos para dessubjetivar o índio. Os missionários também enformaram um discursivas, que se sustentavam na submissão dos povos nativos e atuavam
novo corpo para O índio (vestido, não pintado; um novo corte de cabelo; como recursos para a implementação do domínio e da unifonnização do
novos adereços e, mais do que isso, novos comportamentos frente ao tra- poder colonial. Valer-se do conhecimento e da tecnologia dos povos indíge-
balho, ao espaço sociocultural etc.). Desse mo.do, há tod~ ~ma nova trans- nas não significava necessariamente valorizá-los, mas instrumentar-se neles
figuração que, além de construir um novo sujeito, constrói 1gualment~, nele e com eles, para desenvolver um método eficaz para instituir uma nova
e para ele, um novo corpo físico, além de um novo ethos _(nova menta~tdade, ordem discursiva, política, econômica e social. Para isso, impunha-se a ne-
nova visão de mundo e nova consciência étnica e social). Nesse tlp~ ~e gação da história dos povos conquistados para, sobre ela, construir uma nova
Processo (de recriação da vida in~íg~~a~, cabe aos missionários e à 1dé1a história, modelada pela ideologia mercantil-cristã européia.
suprema de Igreja o papel de herói c1v1hzador. Essa constatação implica diretamente a indagação, já manifestada
(, Assim, os índios tomam-se transparentes, na fonna de seres em por Orlandi (1990, p. 74): acerca de "que língua nós apagamos para ter
transitividade, e moldáveis pela catequese. Transparent.es ~ara negar as .suas uma língua nacional (o português)? De que língua (ou línguas) foi preciso
tradições (o suporte de seu estar no mundo e do seu s1gmficar), ~sumir os nos distanciarmos historicamente para termos uma língua portuguesa?".
fundamentos éticos e religiosos da missão e, enfim, tomar-se a mao-de-~bra Nesse sentido, constata-se que o processo colonial redundou no desapare-
imprescindível ao projeto colonial. D.isso resul~ ~ fato. de que nenhu~ 1_ns- cimento físico e cultural de grande número de nações indígenas. Mais
trumento (lingüístico,jurídico, teológico ou admm1strat1vo) col°<:a ~ SUJe1to- significativo ainda é que esse processo, tão profundamente enraizado na
'ndio como fator a ser considerado em seu próprio espaço de stgmficação. memória social brasileira, construiu um sistemático apagamento do índio
~a condição de objeto das necessidades col~niais, os índios se transformam enquanto sujeito histórico.
no pólo de tensão (inclusive quanto à defimção de seu p_a~I nesse mund_o Entretanto, a imposição de um modelo canônico de ação missionária
construído pela política colonial) entre as n~cessida~es ~hg1osas e econômi- e de interpretação dos textos sagrados, como fonna de controlar a dispersão
cas em conflito. Ao longo do período colomal, o índio retfi~ado to~a-se uma (a polissemia), e até mesmo buscando controlar a paráfrase, não implicou
massa despersonalizada que é utilizada de acordo coi:n o JO~O de ~nteresses ' porém a realização de uma unidade unidimensional (presente contudo no
locais. Esse movimento - cultural, religioso, econômico e d~scurs1vo ~ tem imaginário da nonnatização), mas deu-se em meio a uma unidade descontínua
çomo eixo de fixação a inquestionável (para a visão européia) necessidade pluridimensional, na qual ocorreram deslizamentos autorizados, no interior de
de ajudá-lo a superar seu descompass~ civilizatório frente ao modo de pro- um movimento de regulamentação que buscava interditar os deslocamentos
dução e à ordem jurídico-teológica vigente na Europa. . não autorizados. Esse movimento se explica pelo fato de a Igreja Católica
Convém lembrar ainda que o processo que tomou ~bser.váv~1s e ter sido sempre uma organização mundializante, orientada pela e para a
interpretáveis as línguas indígenas (gramática, escrita, maten~I dtdáttco e monossemia.
artístico) era produto da contínua intervenção de uma exo-v1são s?~~ a Como observou Bakunin (2000), quando ocorreu a dispersão herética
realidade tribal. Assim como a gramática era produzida de fora. e din~da no seio da Igreja, esta s6 incidiu sobre a interpretação canônica (a paráfra-
para um sujeito de fora, também os instrumentos e produtos hngüfst1cos se), mas não sobre os dogmas fundamentais. Assim, não é de admirar que,
125

't dos instrumentos de uniformização, tais como bulas e instruções


a despe10 . da - · · ári · d convicção teológico-política e estando o trabalho de conversão submetido às
_ elementos reguladores e homogeneizadores açao ~1s~1on a -, am a mesmas regulamentações, as diferenças singulares foram capazes de inter-
havia espaço para controvérsias e modos de ação que d1fenam do recomen- vir nos gestos de interpretação e na prática missionária.
dado. A historiografia registra vários documentos que procura~ conter a Isto porque qualquer intervenção - o que significa dizer qualquer
dispersão da interpretação e da ação catequética propriamente dita, confor- produção de sentido em qualquer locus interpretativo - só pode se dar no
me atestam Alfaro Lagorio (2000) e Rabuske (1978). Contudo, o modelo jogo polissêmico entre a memória institucional (representada pelo conjunto
funcionava como um guia de interpretação e ação canônicas, pois era em de textos canônicos e pela busca de controlar a deriva dos sentidos) e a
seus limites, e não no cotidiano prático da intervenção dos missionários, que memória atualizada do dizível, pelas quais o sujeito encontra-se determinado.
funcionava a uniformidade da política catequética. Com isso, ao mesmo tempo em que se abrem as possibilidades interpretativas,
Para usar os termos de Orlandi (1998, pp. 66-67), dada a divisão esse conjunto de significações possíveis é delimitado, porque a deriva, ao se
colonial entre missionários e colonos e entre as várias ordens missionárias, propagar, vai produzindo as margens que a contêm.
"os gestos de interpretação são já determinados, os sítios de significação são No que respeita à historicidade da institucionalização de uma política
'previstos'". A Igreja se esforçava para evitar a ambigüidade ~ o ~ufvoco, lingüística e missionária orientada para a conversão dos índios (e à formação
ao mesmo tempo em que procurava limitar ao mínimo a mult1voc1dade do de súditos, de fiéis e de mão-de-obra para a consecução do projeto colonial-
texto e da prática de conversão. O discurso missionário tendia a tomar-se, mercantil), em língua nativa (daí a necessidade de construir instrumentos
ao menos de acordo com os vários textos e recomendações regulamentares, lingüísticos adequados), o que se coloca em evidência é a atuação coorde-
unívoco. Obviamente, essa disposição constituía uma impossibilidade em seus nada de um aparelho de Estado (sacro e laico), a qual se instrumenta
próprios termos, dada a própria natureza magmática da ordem simbólica, que legalmente em ordenações, cartas régias, provimentos e diversos outros
é multidimensional. instrumentos de cunho jurídico, teológico e administrativo. É esse conjunto
Daí O reconhecimento histórico da necessidade de administrar e re- instrumental que funda a política, que, por sua vez, orienta a prática da
gulamentar os gestos de interpretação, estabelecendo, ~es~ forma, limites conversão e, conseqüentemente, da colonização.
confiáveis no magma de significação. No entanto, a históna mostrou que
esses limites arbitrariamente estabelecidos para codificar os sentidos (teoló- Algumas derivas discursivas
gicos e políticos) da catequese não puderam conter as a~bigüidades e os
equívocos da interpretação, os quais não podiam ser previstos ~la reg~la- Dessas práticas coloniais, o que interessa particularmente é o fato
mentação. Em sua deriva, os sentidos atravessaram essas fronteiras dev1d.o de que o que estava em jogo era a domesticação da realidade local, em
à intervenção da história (as condições materiais detenninadoras dos senti- face da necessidade de ocupação e produção da terra. Nas palavras de
dos e dos gestos de interpretação) e à heterogeneidade simultânea e Souza (1977, p. 45), esse jogo consistia em "fazer viver o novo mundo sua
descontínua das formações imaginárias e ideológicas. São esses fatores que própria linguagem, mas em prol dos interesses mercantilistas. Isto era
intervêm e afetam diferente e decisivamente (n)a significação, de modo que organizar a vivência colonial e o próprio discurso regional". Os diversos
escapam à intenção do sujeito, pois são constitutivos do seu proc.esso de mecanismos e instrumentos postos a serviço da empresa colonial tinham
assujeitamento e em relação ao qual o sujeito porta uma alienação por fim interditar a diferença.
estruturante. É certo que esse processo se insere naquilo que Orlandi (1990),
O que essas disposições reguladoras não levavam _(e n.ão podiam muito apropriadamente, denomina de deslocainento do imaginário, impressão
levar) em conta eram as questões relativas ao trabalho da históna na cons- do maravilhamento, do estranhamento e da traduzibilidade do europeu face
tituição do sujeito, do sentido e da memória. Ou seja, todas as qu~tões ao novo mundo. Nas descrições da terra e em inúmeros outros documentos,
relativas ao interdiscurso, à memória do dizível em sua heterogeneidade há vários exemplos que denotam o impacto causado nos europeus pela
instituinte, além, é claro, de todo o complexo de interesses particulares e de diversidade da realidade natural e social existente na colônia.
posições de sujeito e autoria, tanto das diversas ordens. quanto de cada Enfocado em sua discursividade, o problema da jesuitificação do
missionário em particular. Isso significa que, mesmo partilhando a mesma tupinambá apresenta uma faceta bem diferente daquela apontada por Camara
Jr. (1977). Não se trata mais de fazer uma análise para det~tar as intro- Brasil, no quaJ é perceptív~l a cristal~o de uma imagem cujas origens
missões gramaticais que contribuíram para descaracterizar o tupmamb~ trans- remontam à empresa colomaJ-catequética) - e supra-étnica. Em conseqüên-
formando-o em língua simplificada, tendo-se adaptado "à gramáuca e à
fonética portuguesa" (Camara Jr., p. 108); ou e~ "jarg~n ridic~lamente
'I Cia, é a língua que toma mutuamente inteligíveis e, ponanto, reduzidos, os
diferentes grupos indígenas, além de permitir níveis de traduzibilidade ou de
corrompido", "mutilado gramaticalmente" pelo colomzador (N1mue~aJú, 1982, interação e compreensão entre estes e os "senhores da terra" (exemplos
1
pp. 172 e 174); ou ainda, em um "dialet~ [...] prof'.°~da~en.te modificado na dessas relações institucionais e não-institucionais encontram-se em Cerqueira,
gramática e na fonética,[ ...] uma espécie de pato1s ~Ribeiro: 1986, p. ~O). 1928; Costa, 1909; e Veríssimo, 1886). Eis o espaço discursivo em que 0
Ao longo da história, a ocorrência desses múltiplos efeitos de sen?do nheengatu, com sua constelação de argumentos favoráveis, define-se e
em torno de língua geral, tupi e tupi jesuítico tem sido altamente produuva. historiciza-se: o espaço da hiperlfngua e do apagamento. Daí também a ima-
Essas imagens discursivas compõem um complexo jogo de ~ro~eç.ões. Em gem de sua perfeição lingüística, comparável "às mais célebres" - na tradição
primeiro lugar, a realidade lingüística: simplificada ou não, d1sc1phnada ou tupinologista, o tupi é comparado ao grego (língua de civilização, de cultura e
não, produzida ou não, a língua geral era falada como língua materna por filosofia)-, pois é indispensável atribuir-lhe um estatuto de prestígio lingüístico.
uma diversidade populacional (brancos, mestiços, índios, negros). E~ segun- A esse espaço discursivo no qual o imaginário científico e civilizatório
do lugar, a discursividade: a prática discursiva desses segmen~os étnicos n~ enseja preencher um território de barbárie, acrescenta-se o fato de que essa
era, seguramente, a mesma, visto que se encontravam em diferentes posi- língua deve necessariamente ser "boa" (falável, expressiva, capaz de ser
ções enunciativas. portadora de pensamentos elaborados), visto que ela é também a língua dos
Desse modo, o emprego de LlngULJ geral para significar uma língua senhores da terra e, como tal, deve distinguir-se das demais. Assim, a língua
geral dos índios brasileiros (ainda que linguísticamente infundada), ou ain~a, ~ "boa" porque, além de ser naturalmente superior, destina-se a ser falada
o de nheengatu para nomear uma outra língua que não a da Amazôma, pelos senhores entre si, bem como estabelece um vínculo comum ("natural")
ffiostra que esses dois termos produzem discursividades diversifica~as. As- entre todos os habitantes.
sim, se lingüisticamente é necessário evitar a multiplicidade de sent1~os que Se levannos em conta o conceito de hiperlíngua, essa passagem se
esses dois termos abrigam, na perspectiva da análise do discurso os diversos toma bastante plausível. Se no período colonial o espaço da hiperlíngua é
efeitos de sentido que, no tempo e no espaço, eles vêm produzindo são ocupado pela língua geral - daí todo o processo de desindianização sofrido
indicativos tanto da itinerância dos sentidos, quanto do seu enraizamento no pela língua geral: língua supra.-étnica, língua dos senhores da terra, língua
imaginário nacional. . . . . comparável às mais célebres etc.; e de apagamento das demais línguas -, a
No que concerne ao imaginário brasileiro e à memóna hngüfst'.ca, há partir da reforma pombalina (visando implantar no Brasil a língua do príncipe)
uma recorrência da imagem de uma língua comum a todos os fndms. A é o português que se estabelece como a nova hiperlíngua brasileira.
implicação disso é que subjaz no discurso sobre o Brasil a con~epção de De todo modo, a memória discursiva mantém viva a imagem da
uma categoria genérica, o índio, que indiferencia todo~ os grupos t~dfgenas. língua geral como a língua da unidade colonial e a língua falada por todos
Essa categoria uniformizadora pressupõe que, a despeito de suas d1ferenç~ os grupos indígenas. É esse fato que justifica ainda hoje retornos periódicos
étnicas e lingüísticas, os índios compartilhem uma identidade comu~, a parltr a um tupi imaginário, somente realizável no espaço da memória e de seus
da qual estabelecem entre si uma espécie de comunidade supra-étnica. E~sa pré-construídos. São retornos que, em seus deslizamentos de sentido resso-
imagem do índio genérico, ao qual corresponde uma língua fran~a, e~tendtda am o fantástico e o fantásmico do imaginário científico do século Xix, 0
por todos, não deixa de ser um subproduto do processo colomzatóno, com qual, por sua vez, evocava a fundação de sentido, historicamente instituinte,
sua política de língua geral e da redução/conversão, como forma de apaga- de uma língua des-historicizada e reterritorializada.
~ento das diferenças existentes entre as diversas nações indígenas.
Deve ser ressaltado, ainda, o modo como se fonna a imagem da Atracação provisória
língua geral simultaneamente como sendo lingüisticame~te ~eita .- em
comparação com o conjunto das demais línguas indígenas Gogo d1scurs1vo de Coube ao processo de colonização o forjamento de uma nova com-
apagamento das diferenças e da realidade lingüisticamente heterogêna do pleKidade lingüística, paralela e superpondo-se politicamente à diversidade de
línguas nativas então existentes. Essa nova complexidade lingüística derivou: forçando sua p~esença imemorial e subterrânea, em equívocos e atos falhos,
a) da imposição da política de língua geral - tomando uma de~sas l~~ como um movnnento de resistência, no entremeio de expressões (netarana,
nativas como suporte de dominação; b) do fato de que a ocupaçao temtonal quicezinha etc.) e no contorno entonaciona1.
pelos portugueses não foi conúnua; e) do processo de exogramatização de Se, ao lado de Orlandi (1998), considero que os fatos estão sempre
línguas indígenas. a reclamar sentido, então os fatos da histó~a amazônica, especialmente
De acordo com Auroux (1998b), o processo de gramatização, seja aqueJes que se referem à língua geral (particulannente em sua perene
por endo seja por exotransferência, era já parte. da ~i~1?
européia e, contraposição à 1íngua portuguesa e ao controle, inclusive ideológico, que o
portanto, além de não constituir uma nova estratégia, nao d1mmuía a língua segmento de origem portuguesa dispunha para dirigir o processo histórico)
objeto dessa transferência. Segundo esse autor, e à discursividade, também estão, ainda que se mostrando em sua materialidade
fragmentária, e no trabalho de deslocamento, interdição e encobrimento da
os gramáticos latinos operaram uma transferência da gramática do grego historiografia oficial, na qual o núcleo da amazonidade (os tapuios e a LGA)
para a sua própria língua. Mais tarde, essa gramática latina será transferida é sistematicamente silenciado e, como parte de um novo movimento de
às línguas européias e às outras línguas do mundo, o processo acelera-se sentidos priorizados, é posto em seu lugar, como componente unitário e
a partir do século XVI, com o nascimento dos Estados-nações europeus, suficiente, o ethos e a discursividade européia.
a expansão ocidental pelo mundo e o desenvolvimento da imprensa (p. 12). É preciso recolher os vestígios e (re)construir os sentidos possíveis
1 no conjunto de documentos que possibilitam (re)conhecer a discursividade
Desse modo, o processo mundializado da (endo/exo)gramatização, àmazônida em LGA. Parto da constatação de que a língua não significa em
éom base no instrumental teórico e descritivo do grego e do latim, resulta em si e por si mesma, mas pela intervenção da história, dada a relação que o
um fenômeno revolucionário na história da humanidade. sujeito mantém com suas condições de existência. Para significar, a língua
Ao longo do tempo, simultaneamente iam-se compondo os segmentos deve inscrever-se na história e'. simultânea e constitutivamente, permitir que
populacionais - em grande parte graças ao processo d~ miscigenação e _de a história a traba1he. E, assim, o que foi produzido pela história comparece,
tapuização - e ia-se firmando a LGA como a língua nativa dessa populaçao. na mem6ria social, como um "sempre-já-lá", na condição de um dado que
Por sua vez, essa configuração étnica, socia1 e lingüística propiciava a cons- se comporta como se, naturalmente, sempre estivesse presente na memória
trução de uma nova discursividade, na qual imbricavam-se diversas memó- discursiva do sujeito. Entretanto, é preciso deixar claro que falar da deter-
\
:,:· rias discursivas, muitas vezes contrapondo-se, ainda que o vetor dessa nova minação dos sentidos pela e na história significa que falo da história enten-
historicidade apontasse para uma hegemonização do elemento europeu .. dida como os modos pelos quais os sentidos são produzidos e circulam
.Essa dedução é possível dado o fato histórico mencionado por More1ra (Orlandi, I 998).
Neto (1988), segundo o qual, no pe~odo co~onial, esta;a sendo form~o u~ Como sabemos, a memória lingüística e discursiva brasileira funciona
novo ethos com base em um novo tipo étmco (o tapmo). Essa gestaçao foi com base em imagens sedimentadas mediante referência à língua portugue-
abortada, especialmente devido à repressão que se seguiu à derrota dos sa. Não é, pois, de estranhar que as línguas gerais tenham sido assimiladas
cabanos. A cabanagem pode ser concebida como uma estrutura m~strada a essa memória e, conseqüentemente, apagadas. Contudo, ainda que silen-
desse sentimento de autonomia e de identidade própria, devido à cbvagem ~iadas, essas línguas compõem um substrato na constituição significativa
entre os de dentro e os de fora, de acordo com Di Paolo (1990). dessa memória.
· ALGA permanece uma língua de registro oral. É nesse campo, .no
entanto, que ela se efetiva como língua da colonização e em que é efetiva Referências bibliográficas
como instrumento da política colonial. Há uma documentação escrita sobre
ela, mas inscrita em outra língua na qual ela se traduz como estrutura e ALFARO LAGORIO, Consuelo. Elementos de polftica lingüística colo-
como ação de conversão. Dela, em registro escrito, há apenas tor:ma5 nial. O terceiro Concflio Limense. Comunicação apresentada no I
esquemáticas e/ou residuais, desnormatizadas, a1eatórias ou ~mo selv~bcas: Colóquio sobre Línguas Gerais: Política Lingüística e Catequese na
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A língua mais geral do Brasil
nos séculos XVI e XVII
Maria Carlota Rosa•

Este artigo visa demonstrar que a avaliação da língua geral do Brasil


·" nos séculos XVI e XVII acompanhou o esforço da Coroa Portuguesa para
efetivar a conquista do novo território. Esse seria um dos elementos que
levou os colonizadores a variarem sua avaliação sobre ela: língua tosca e
sem palavras ou língua copiosa como a grega. Qualquer das avaliações
segue o rastro da ideologia do poder e o caso brasileiro não constituiu
processo até então inédito, uma vez que já acontecera. por exemplo, com o
,· '. 1,
português face ao latim e a outras línguas, especialmente o espanhol, na
literatura dos séculos XVI e XVII.
Neste contexto, para compreender o que significavam adjetivos
como elegante, tosco, rude ou bárbaro quando aplicados a uma língua,
partimos de seu emprego nos diálogos de louvor, gênero literário comum
nesses dois séculos.
'
\
Espanhol, romance e português:
qualidades e defeitos de uma língua

Durante a Idade Média, não havia designação especia1 para o porw


tuguês: era romance ou vulgar, apenas uma variedade da língua espanhola,
isto é, da língua de toda a península ou Hispania (Schãfer-Prie8, 2000, p. l);
era linguagem - em oposição à língua-, não se prestando a ser escrita. Para
tal, em óltima análise, seria necessário que se justificassem suas regras por
meio de elementos que a tradição considerava presentes na língua latina
(Law, 1990). Se era possível recorrer à ''natura" (aquilo que um fa1ante sabe
ser uso próprio da língua) e à "consuetudo" (uso comum da língua), fa1tava-
lhe a "ratio" (justificação intelectual exposta nas artes gramaticais), bem
como a possibilidade do recurso à auctoritas (justificativa de um uso arbiw

• Universidade Federal do Rio de Janeiro.


trário com base em usos dos grandes autores). Quando escrita, essa lingua- pela imprender quanto humanamente fosse possiuel'' (idem, D2v), mas só
gem nada mais era do que uma concessão aos incultos, já que se reconhecia se ao mesmo tempo dificultasse a seus falantes nativos o aprendizado de
que eram "muyto mais os vulgares que os que a lingua latina conheçem" línguas estrangeiras. 2 Por seu turno, o fato de uma língua ser falada por
(Fernandes, 1495, 2'). muitos não seria necessariamente uma evidência da "bondade da língua",
No Renascimento, formou-se uma consciência nacional e, com a e sim da "necessidade que dela têm aquelas gentes que dela usam" (Leão,
crescente importância política de Castela no século XVI, os termos Espanha 1606, p. 314).
e espanhol começaram a assumir significados mais restn/:os, como hoje As disputas em fonna de diálogo constituem demonstração de que
conhecemos. Paralelamente, no século XVI, Portugal era um Estado e uma determinada característica de urna língua podia ser tomada como defeito ou
nação (Franzen, 1997, pp. 320 e ss.). O português adquiria status de língua, virtude: não estamos fa]ando de línguas, mas de seus faJantes, nacionalismo,
era descrito em gramáticas e língua portuguesa passava a ser designação visões acerca do estrangeiro ...
corrente (Schãfer-Prie8, 2000, p. 1). Porém, era necessário distingui-la do
espanhol e reafirmar suas qualidades frente a essa e a outras línguas româ- Brasil: início da colonização
nicas. Assim, nesse século, houve uma infinidade de louvores à língua por-
tuguesa - e também defesas da mesma -, quadro que se estenderia até o No período inicial de efetiva colonização do Brasil,3 que se instala a
século XVIII (Schãfer-Prie~, 2000). Nesses louvores, buscou-se o que po- partir da expedição de Martim Afonso de Sousa (1530) e da subseqüente
deríamos denominar argumentos de optimalidade de urna língua. implantação do sistema de capitanias hereditárias (1534-48), a ação
Uma língua "elegante" é basicamente aquela que mais se conforma missionária constituiu-se em "traba1ho descontínuo, sem maiores resultados",
com a latina, "assi em uocábulos como na orthografia" (Barros [1540] apud realizada por franciscanos e alguns padres seculares (Franzen, 1997, p. 345).
''' Schãfer-Priej3, 2000). Ao contrário, é "bárbara" se seus falantes ''não pódem Segundo Capistrano de Abreu, a pregação dos primeiros franciscanos no
Brasil, chegados a Porto Seguro pouco depois do Descobrimento, ocorreu
/, .. escreuer sua linguágem" 1 e, quando escrevem, ou fazem-no em outra língua,
ou em "latim corruto" (idem). É também "bárbara" e pouco "polida" se
toma "vocabulos de diuersas lenguas ayuntando los aJa suya" (Gândavo,
' sem que soubessem a língua do povo que procuravam converter (Abreu,
1886, p. 12).
1574, C7), "pues de si es tan pobre, y tan poco polida, que sin ayuda delas O insucesso do sistema de capitanias levou à substituição pelo chama-
otras [lenguas - mcr} quedaria tan ruela y tosca, que en estos tiempos no elo Governo Geral.4 Com ele, D. João III (1521-1556) convidava os jesuítas
se poderia oir [...]" (idem, C7v). Entretanto, o surgimento de novos vocábu- a participarem da colonização das Índias (Franzen, 1997, p. 361), tomando-os
los - ou mesmo a entrada de empréstimos - não era um argumento decisivo: o braço missionário da Igreja, diretamente subordinados à Coroa, por conta do
,,_ padroado concedido aos soberanos portugueses (Franzen, 1997, p. 320). Em
Mas como a gente pelo tempo adiante fosse em crescimento, & os homens 1549, com Tomé de Sousa- o primeiro governador-geral-, chegava ao Brasil
teuesscm necessidade de exercitarem. esta lingua em varios negocios cada a primeira missão jesuíta. A partir de então e até o pei:iodo pombalino (1750-
vez a forão mais appurando descobrindo nella outros vocabulos que ainda
que não saõ latinos como estes antiguos que atras deixamos, todauia
soam melhor aos ouuidos da gente polida, & saiJ mais proprios & Gãndavo (1574, D3'): "se esta nossa lingua fora difficultosa por causa de ser barbara,
accomodados pera significarem aquillo que queremos, que outros que aja & grosseira, de crer he, que a mesma difficuldade tlueramos em tomar as outras linguas,
em nenhua lingua (Gândavo, 1574, C8, grifo meu). que têm os estrangeiros em tomar a nossa".
Nos primeiros trinta anos, a colonização restringe-se à construção de feitorias fortificadas
ao longo da costa (Arquivo Nacional, 1985. p. 48).
Poderia ser considerada "grosseira" e "tosca" uma língua que fos- • Algumas capitanias perdurariam e seriam efetivamente extintas bem roais tarde, quando
se "tão dificultosa, que de marauilha vimos estrangeiro aJgum que a podesse a Coroa Ponuguesa as compraria (Arquivo Nacional, 1985, pp. 62-3). Segundo Hennann
bem tomar, ainda que neste Reino andasse muitos annos, & trabalhasse (2000, p. 27), São Vicente foi comprada cm 1710; Pernambuco, em 1716; e Espírito
Santo, em 1718. Em 1759, "foi abolido o sistema de capitanias hereditárias que dera
início 11 ocupação de nosso território" e as capitanias passaram a ser capitanias da
As letras sublinhadas indicam o desenvolvimento de abreviaturas. Coroa (idem).
77), a Coroa apoiaria a institucionaJização de uma "língua geral" (Barros et Com uma ánica língua na costa, presentes aJgumas diferenças regio-
aJ., I 996) no trato com o índio. nais ou mesmo relativas ao sexo do faJante, 6 facilitava-se a política de
A expansão de uma língua geral retirava o entrave que a multidão aldeamentos, porque se tomava mais simples a reunião, numa aJdeia, de
de línguas representava na conversão e facilitava o ensino do sistema de índios oriundos de áreas muito longínquas, tão distantes, por exemplo, quanto
trabalho europeu, transfonnando os nativos "em mão-de-obra capaz de aten- 0 Rio de Janeiro está de Santa Catarina. Nesse sentido, a atuação dos
der ao interesse da Coroa e dos colonos" (Franzen, 1997, p. 338). Contudo, jesuítas portugueses é arrolada por Franzen (1997, p. 303) como um dos
l;lavia também o inconveniente de implementar a intermediação missionária fatores para o despovoamento do litoral de Santa Catarina e Rio Grande do
no contato com o índio - a que Pombal se oporia -, exemplarmente posta Sul na primeira metade do século XVII, uma vez que "levavam para as
em prática nas "aldeias de El-Rei". 5 aldeias do Rio de Janeiro e São Paulo os fudios por eles cristianizados,
O Brasil apresentava situação ideal para uma política em favor de durante suas missões volantes ou nas aldeias temporárias".
uma língua geral: a despeito de se estimar em cerca de 1.175 o número de Esboçando uma classificação etnográfica genérica que distinguia tupis
línguas por ocasião do Descobrimento (Rodrigues, 1993, p. 83), a costa (que falavam a língua) de tapuias (que não a falavam) (Vainfas, 2000, p. 38),
reunia diferentes nações que falavam tupinambá (IBGE, 1981). Como nota Cardim (1584, p. 106) contrapunha o multilingüismo do sertão à situação de
Rodrigues (1993, p. 86), essa língua era homogeneidade lingüística da costa:

altamente funcional para os que pretendiam extrair o pau-brasil e estabele- Todas estas setenta e seis nações de tapuyas, que têm as mais dellas
cer-se ao longo da costa: aprendida num ponto desta, pennitia comunicar- differentes lingua, são gente brava, silvestre e indomita, são contrarias
se em praticamente quaJquer outro. As línguas minoritárias em relação ao quasi todas do gentio que vive na costa do mar, vizinhos dos Portuguezes:
tupinambá não foram, por isso, objeto de maior atenção. somente certo genero de tapuyas que vivem no Rio São Francisco, e outros
que vivem mais perto são amigos dos portuguezes, e lhes fazem grandes
'
' O quadro retratado em 1584 pelo jesuíta Fernão Cardim (1584, pp.
101-3) é um bom exemplo do interesse português nessa, e não nas demais
agazalhos quando passão por suas terras [... ].

línguas: embora relatasse a diversidade de nações e línguas no Brasil, O contato com aproximadamente 76 nações não-tupis - ou tapuias -
''
enfatizava a homogeneidade lingüística na costa (grifo meu): e as tentativas para conversão desses povos implicaram a intermediação
de intérpretes nativos dessas outras línguas pelos seguintes motivos: a)
\ Em toda esta provincia ha muitas e varias nações de diferentes linguas, os portugueses perceberam que eram muitas as línguas; b) os portugue-
·,.,
porém uma é a principal que comprehende algumas dez nações de Jndios; ses as viam como quase impossíveis de serem aprendidas; c) seus falan-
estes vivem na costa do mar, e em uma grande corda do sertllo, porlm sllo tes eram nômades:
todos estes de uma só lingua ainda que em algumas palavras discrepão
e esta é a que entendem os Portugueus. D'estes [dos tapuias - mcr] ha muitos christãos que forão trazidos pelos
Padres do sertão, e aprendendo a linguados do mar que os Padres sabem,
Todas estas nações acima ditas, ainda que diferentes, e muitas dellas os batizarão e vivem muitos delles casados nas aldeas dos Padres, e lhes
contrarias umas das outras, tlm a mesma língua, e nestes se faz a servem de interpretes para remedia de tanto numerp de gente que se perde,
conversão[ ... ]. e somente com esses tapuyas se pode fazer algum fructo: com os mais
tapuyas, não se pode fazer conversão por serem muito andejos e terem
muitas e differcntes linguas difficultosas. Somente fica um remedio, se Deus
Em 1548, Tom6 de Sousa criava, por regimento, dois tipos de aJdeias: as de El-Rei, sob
comando dos jesuítas., e as particulares. sob comando de paniculares. No lado português
da missão, as aldeias deveriam situar-se nem muito peno nem muito longe de povoados
portugueses, para que os índios não adotassem os maus costumes dos europeus, 6 Gândavo (1576, foi. E'): ..Algus vocabulos ha nellade que nam vsam senam as femeas;
tampouco ficassem desprotegidos. & outros que nam seruem senam pera os machos".
Nosso Senhor não descobrir outro, e é havendo às mãos alguns filhos seus e as mortes por diferentes causas, tais estimativas podem, possivelmente,
aprenderem a linguados do mar, e servindo de interpretes fará algum fructo tomar-se inferiores.
[...]. Além disso, durante a União Ibérica (1580-1640), Felipe II e
Felipe III favoreceram as línguas gerais, ao menos em parte de seus
Nesse contexto, estrangeiros em contato com nativos procuraram domínios, pela
l\Prender "a língua", em vez de tentar ensinar a sua,7 mas ao mesmo tempo
buscaram assegurar, por meio do fomento de guerras, intertribais ou não, o necessidad que tenfan los índios de lener todos una misma lengua la
processo em direção ao monolingüismo: mexicana, 'por ser lengua general' [... ] Felipe III sigue recomendando la
lengua de los indigenas como medio para el adoctrinamento crisliano
Porem dos Portuguezes, quasi todos os que vêm do Reino e estão cá de
(Sanchez Pérez, 1992, p. 291).
assento e communicação com os Indios a sabem em breve tempo, e os
filhos dos Portuguezes cá nascidos a sabem melhor que os Portuguezes,
Porém, é interessante observar que, para Duarte Nunes de Leão, um
assim homens como mulheres, principalmente na Capitania de São Vicente,
dos defensores da língua portuguesa, é o português que se fala nas novas
e com estas dez nações de lndios têm os Padres communicação por lhes
colônias. Assim, no capítulo "Que não é falta de bondade da língua portu-
saberem a lingua, e serem mais domesticas e bem inclinados: estes forão
guesa não ser comum a tantas gentes da Europa como a castelhana" (1606,
e são os amigos antigos dos Portuguezes, com cuja ajuda e armas, con-
pp. 313-5), Leão afirma que o português se fala "puramente" nas·regiões
,, . -- quistarão esta terra, pelejando contra seus proprios parentes e outras
sob jugo português, mundo afora (Leão, 1606, p. 315). A pureza do portu-
diversas nações barbaras e erão tantos os desta casta que parecia impos-
,·'' sível poderem-se extinguir, porem os Portuguezes lhes têm dado tal pressa guês em outras partes do mundo foi contestada. Para Vieira (apud Silva
1 que quasi todos são mortos e lhes têm tal medo, que despovoão a costa Neto, 1951, p. 58), por exemplo, o português fora de Portugal continental não
e fogem pelo sertão a dentro até trezentas e quatrocentas léguas passava de um português pelo avesso:
' (Cardim,1584,p.101).
A língua portuguesa [... ] tem avesso e direito: o direito é como nós a
,.. Uma pergunta quase inevitável: por que não o português como a falamos. e o avesso como a falam os naturais [... ], meias línguas, porque
\ língua para contato com esses povos? Um possível fator seria a diferença eram meio políticas e meio bárbaras: meias línguas, porque eram meio
';.-.'··
,, numérica. As estimativas de emigração portuguesa para o Brasil sugerem a
vinda de 280 mil portugueses nos primeiros oitenta anos após o Descobri-
•1 portuguesas, e meio de todas as outras nações que as pronunciavam ou
mastigavam a seu modo.
mento8 e, para os sessenta anos subseqüentes, de 1581 a 1640, as estima-
tivas variam de uma média anual de quinhentos a 5 mil indivíduos (Venâncio,
!/ Face à "língua cultivada" do colonizador, n~ga-se a existência da
2000, p. 66). Considerando-se os naufrágios ocorridos.9 o regresso à Europa língua geral. Na prática, em todas as capitanias, o português, mesmo que
minoritário, era mais importante - ou melhor, os falantes monolfngües em
Há referências ao ensino de português aos índios, em especial às crianças. Em cana de português o- eram. Vieira afinnaria que se pregava aos índios "muitas vezes
ISSO, Azpilcueta Navarro afirmava que iria dizer missa aos índios "e ensinai-os na lingua em português, e havia padre tão zeloso neste particular, que todas as vezes
d'elles, para a qua1 traduzi a creação do mundo e a encarnação e os demais artigos da que estava na igreja um só português que não entendesse a língua, só a ele
íé e mandamentos da Lei e ainda outras orações, espccia1menle o Padre Nosso, as quaes
oraçoes de continuo lhes ensino em sua língua e na nossa, principalmente aos meninos pregava" (apud Silva Neto, 1951, p. 69).
[... ]" (Azpilcueta Navarro et ai., 1550-68, p. 76). Todavia, a conversão religiosa é fator que não pode ser esqueci-
Na década de 1530. as estimativas de emigração para a Ásia são de aproidmadamente do: no que toca aos missionários da Companhia de Jesus, responsáveis
2.100 indivíduos/ano.
Segundo Franzen (1997, pp. 324-6), entre 1549 e 1640, foram enviados ao Brasil 313 j)ela execução da política de aldeamentos, a conversão deveria ser feita
jesuítas, dos quais apenas 218 conseguiram alcançar o destioo. Desses, 177 eram na língua do povo a converter. Entretanto, no caso do Brasil, que língua
ponugueses. era essa?
De que língua nos falam os documentos
cosas le declaramos por rodeos" (Nóbrega, 1549, A3). Em outra carta do
mesmo ano, Nóbrega (1549-60, p. 73) declarava:
A princípio, a língua a ser institucionalizada pelos portugueses não foi
designada por um nome específico (Rosa, 1990). Nos primeiros registros Trabalhei por tirar em sua llngua as orações e a1gumas praticas de Nosso
deixados por europeus no século XVI, ela é "a língua dos selvagens" (Léry, Senhor e não posso achar lingua [i.e., intérprete - mcr] que m'o saiba dizer,
Staden) ou apenas "selvagem" (Thevet). Foi tratada como se fosse a única: porque são elles tão brutos que nem vocabulos têm.
é a "Iíngua", 1º a língua que "he gêral pela costa" (Gândavo, 1576, 33'), a
"língua dos do mar" (Cardim, 1584, p. 101). O Pe. Azpilcueta se desincumbiria da ordem recebida do provincial,
A gramática de Anchieta, publicada em 1595, denomina-a simples- mas faria coro com as palavras de Nóbrega ao declarar que, "quanto ao
mente a "língua mais falada na costa do Brasil", Seus falantes são selvagens modo de arte no alcanço aún para se hacer, ny me parece tienen sino cienos
e, por essa razão, seu sistema fonológico carece de /f/, /1/, /r/, "cousa digna vocablos que sirven en general" (Leite, 1954, pp. 9-10).
despanto, porq~ asi nam tem Fe, nem Ley, nem Rey: & desta maneira Ter poucas palavras ou pouco discurso não seria necessariamente
viuem desordenadamente sem terem alem disto conta, ne- peso, nem me- um vitupério: nas palavras de outro missionário, um capuchinho provincial no
dido" (Gândavo, 1576, foi. 33v). Maranhão, seria evidência da candura e da simplicidade da natureza
Cerca de 25 anos após a publicação de Arte, de Anchieta, portanto (D'Evreux, 1615, 237'). Yves d'Evreux evocava assim uma distinção que
no século XVII, outro jesuíta, Luiz Figueira, não mais na costa, mas no ficaria famosa no século seguinte, com Rousseau: aquela entre "línguas
Estado do Maranhão, 11 apresentava uma nova descrição da mesma língua, "1 naturais", primitivas e simples como seus falantes, e "línguas cultivadas",
que já então estava adjetivada: "língua brasflica", sem qualquer outra próprias de povos civilizados (DeGraff, 2000).
especificação. 12 O adjetivo "brasflico" parece designar mais do que simples- Que características levavam então a considerar essa língua elegante
1' ,' mente "do Brasil", Segundo Alencastro (2000), no século XVII, "brasílico" ou rude? Não há como encontrar semelhanças entre o vocabulário da Lín-
designava "a sociedade colonial da América portuguesa", e não se confundia gua Geral (LG) e o latim, e em princípio esta seria uma característica a
com "brasiliense", que se referia sobretudo aos índios, tampouco com "bra- tomá-la deselegante. A fonologia da LG também difere muito da fonologia
sileiro", designativo daquele que trabalhava na extração do pau-brasil e que do latim, mas isto não impediu, por parte de Luiz Figueira, o reconhecimento
somente ao longo do século seguinte ganharia o sentido atual. Em outras de "delicadezas" de pronúncia:
palavras: o tomar-se brasfüca - e não brasiliense - sugere interação mais
intensa entre portugueses e índios. Alguns linguas, & os Indios trocão às vezes alguas letras por mais deli-
Em 1551, o jesuíta Antônio Pires, em carta aos padres e irmãos de cadeza. como pera dizer Aiur, dizem Auit; em lugar de Coyr, dizem Coyg;
Coimbra, dava conta de que o Pe. Manuel da Nóbrega ordenara ao Pe. mas isto não he natural (Figueira, 1621, 56').
Azpilcueta Navarro ''traslladar las oraciones y sennones en la lengua desta
terra, con algunos interpretes que para esso auia muy buenos" (Pires, 1551, Apesar das diferenças em relação ao lati~ é possível dotá-la do
A3'). Nóbrega não tinha uma avaliação muito positiva dessa língua, porque uso das letras latinas:
seus falantes "tienen muy pocos vocablos para Je poder bien declarar nostra
fe: mas con todo damos sela a entender lo mejor que podemos y algunas Oi, jota serue como no latim, hora de vogal, hora de consante. Costumaraõ
os antigos linguas vsar deste mesmo i, jota com dous pontos, hum na
cabeça, & outro no pé, & lhe chamauão i grosso, porque a pronunciação
he como entre u, & i (Figueira, 1621, p. 2).
'" Exemplo em Cardim (1583, p. 146, grifo meu); "Feita a oração, lhes mandou o padre
fazer uma falia na língua, de que ficaram muito consolados e satisfeitos".
1' Hennann (2000, p. 25); "Em 1621, o Estado do Maranhão - cuja capital era São Luís Mas o status dessa escrita é bem diferente daquele de uma língua
e o território se expandia até a Amazônia - separou-se do Estado do Brasil, com capital da Europa. Mesmo dotada de uma gramática, de acordo com o instrumental
em Salvador, que compreendia as capitanias ao su1 do Rio Grande do Norte". teórico para a descrição do latim, e de um diálogo, não se constitui numa
' 2 O que a distinguiria, por exemplo, da língua brasflica da nação kiriri.
língua escrita:
Isto das letras, orthographia, pronunciação, & accento, seruira pera sabe- Com as mudanças implantadas por Pombal, a língua geral perderia
rem pronunciar, o que acharem escrito, os que começão aprender: mas como as qualidades. Para usar das palavras de Silva Neto (1951, p. 65), o Brasil
a Ungoa do Brasil não está em escrito, senão no continuo vso do falar, "recivilizava-se". A perspectiva que a tratava como língua de selvagens
o mesmo vso, & viua voz ensinar! melhor as muitas variedades que te-, destituiu-a também de estrutura gramatical, recusando-se a observar sua
porque no escreuer, & accentuar cada hum fará como lhe melhor parecer complexa morfologia (num processo semelhante ao que DeGraff aponta
(Anchieta, 1595, p. 9, grifo meu). para o crioulo do Haiti) e alcançou o século XX:

Por conseguinte, a escrita não pode recorrer a elementos da tradição A língua[ ...] era simples e de reduzido material morfológico: não possuía
latina para justificar este ou aquele uso: é uma Jíngua que existe no uso declinação ou conjugação. Tinha todo o aspecto das línguas de necessi·
fa1ado e "viva voz". Este pequeno trecho de Anchieta deixa claro que dade, criadas para intercâmbio (Silva Neto, 1951, p. 59).
estamos perante uma língua instrumental: sua função é servir
Os da terra, "incompatíveis com a civilização" (Silva Neto, 1951, p.
muyto pera melhor instruição dos Cathecumenos, & augmento da noua 62), tinham apenas uma língua bárbara e peregrina.
Chritandade daquellas partes [o Estado do Brasil - mcr], & pera com mais
facilidade & suauidade se plantar & dilatar nellas nossa Sancta Feé" (Li-
Referências bibliográficas
cença de Augusto Coutinho para a publicação da Arte e dos Diálogos, de
Anchieta, 1595).
ABREU, Capistrano de, Informações e fragmentos históricos do Padre
Joseph de Anchieta (1584-1586). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
Reduzi-la à arte, como se dizia na época, nada mais é que dotá-la
1886.
de um elemento pedagógico por definição: "conjunto de regras que ensinam
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Bra-
a fazer com acerto alguma coisa" (Curtius, 1948, p. 73).
sil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das
As caracteósticas observadas até aqui colocariam essa língua entre
Letras, 2000, 525 p.
as bárbaras. No entanto, podemos encontrar alguns tímidos elogios: "he muy ~:
-ANCHIETA, José de. Arte da gramática da l(ngua mais usada na costa
branda", para Gãndavo (1576, 34"); "facil, e elegante, e suave, e copiosa, a
do Brasil. Novamente dado a luz por Julius Platvnann. Leipzig:
difficuldade della está em ter muitas composições", para Fernão Cardim Teubner, 1874 (1595].
(1584, p. 101). Pode mesmo ser comparada ao português: "Assi como na ARQUIVO NACIONAL. Fiscais e meirinhos: a administração no Bra-
lingua Portuguesa em lugar de casos ajuntamos alguas preposições aos sil coloniill. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, 452 p.
nomes" (Figueira, 1621, p. 3v), ou ao grego: AZPil..CUETA NAVARRO et ai. Cartas avulras. Belo Horizonte/São Paulo:
ltatiaia/Edusp, 1988 [1550-68], 529 p.
Parecera barbaria, concordar terceira pessoa, no singular, cõ a primeira do BARROS, Maria Cândida D. M. et ai. "A língua geral como identidade
plurar. Mas não he de estranhar, pois tambem na tingua Grega elegãtissima construída". Revista de Antropologia, v. 39, n. 1, 1996, pp. 191-219.
temos exemplo semelhante, porque comumente os nomes neutros no plurar, CARDIM, Fernão. "Informação da missão do Padre Christovão Gouvêa às
pedem o verbo no singular (Figueira, 1621, p. 14). partes do Brasil - anno de 83 ou Narrativa epistolar de uma viagem e
missão jesuítica". ln: Tratados da terra e gente do Brasil. Introdução
Figueira escreve Arte já durante a União lbérica13 e, de todos os de Rodolpho Garcia. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980
autores que consultamos, parece ser o mais empenhado em demonstrar as (1583), 206 p., pp. 139-206.
quaJidades estruturais da língua geral. ___. "Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes,
adorações e cerimônias". ln: Tratados da terra e gente do Brasil.
ll A obra Ane, de Anchieta, já estava escrita por volta de ISS6, quando há notícias de Introdução de Rodolpho Garcia. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
estar circnlando como manuscrito. Edusp, 1980 [1584], 206 p., pp.77-137.
CURTIUS, Emest R. Literatura européia e Idade Média latina. Tradução LÉRY, Jean de. Histoire d'un voyage faict en la terre du Brésil, Intro-
de Paulo Rónai e Teodoro Cabral. São Paulo: Edusp/Hucitec, 19% dução e notas de Paul Gaffarel. Paris: Alphonse Lemerre, 1879 [1580),
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1621. de su obediencia: ai padre maestre Simon prepOsto de la d.icha compafiia
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·,,
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Condições da mudança em nheengatu:
VENÂNCIO, Renato Pinto. "Presença portuguesa: de colom ores a mu- pragmática e contatos lingüísticos·
grantes". /BGE, 2000, pp. 60-77.
Roland Schmidt-Riese••

O nheengatu - língua falada atualmente por milhares de pessoas,


principa1mente no distrito de São Gabriel da Cachoeira (AM) - tem uma
identidade histórica que se estende desde os estágios geralmente abordados
na literatura com o termo Língua Geral até os falares tupinambá da época
pré-colonial, Tal trajetória diacrônica abre perspectivas sugestivas sob o

.. ·"
;1:,
ponto de vista metodológico: poderia propor-se, no séntido de uma hipótese
de trabalho, que os processos lingüísticos das últimas décadas - abandono
~ ... do nheengatu por parte de grupos urbanos, ao lado da aquisição ou
/ revitalização por parte de grupos afastados dos centros urbanos, quer como
",'.,t·:," LI, quer como L2 - refletem.o percurso que esse sistema lingüístico atra·

..,.." vessou ao longo dos vários séculos da colonização. 1 O ponto de partida da


investigação poderia ser o próprio presente. Por isso, optei pelo tenno
,, nheengatu no título desta contribuição.
\ Entretanto, tal perspectiva não pôde ser intensamente aproveitada
1/''··
.1,, ,, neste trabalho, em face do difícil acesso a dados relativos às opções e ao
comportamento lingüístico atual. Assim, o texto pretende fonnular perspec·
tivas sobre a história social do nheengatu, capazes de fornecer hipóteses
sobre processos de mudança no interior do sistéma. Para tal fim, o estudo
procura alinhar modelos de mudança sistêmica, sobretudo aqueles que con·
sideram o contato lingüístico, e infonnações sobre a história social dos gru·
pos de fa1antes que empregaram o nheengatu. A inclusão de infonnações

Esta contribuição foi eJaborada com base em estudo que realizei, juntamente com Uii
Reicb, em 1999. As duas contribuições - esta e a de Uli Reicb, neste volume -
complementam-se. Agradeço sinceramente os comentários de audiência, durante o coló-
quio realizado no Rio de Janeiro, as sugestões de Mateus Oliveira e Giancarlo S1efani
(Universidade do Amazonas), bem como a revisão crítica do texto, feita por Graziela
Romanha.
•• Universidade de Munique.
Cf. Ribeiro (1977, p. 30), Freire (1983. p. 73), Taylor (1985, p. 5).
Condiç{)es da ll'Wança em nheellgatu: ~ética e contatos lingOístioos 149

históricas específicas da língua considerada em modelos teóricos de contato Perspectivas sobre a Ungua
lingüístico vai permitir a formulação das pretendidas hipóteses sobre os re-
sultados lingüísticos dos processos sociais. Num primeiro momento, apresen- O material empírico disponível foi dividido provisoriamente em três
tam-se os modelos de mudança lingüística levados em conta, e, posterior- etapas históricas: a jesuítica, a da lingüística histórica e a da "atualidade".
mente, esboçam-se cenários históricos de contato, que realizam a integração
da perspectiva teórica com a histórica.
A esses itens centrais, precede a tentativa de sistematizar a docu- 1) Etapa jesuítica
mentação a ser considerada na avaliação dos fatos lingüísticos, avaliação O interesse dos jesuítas - como formação sociológica - foi orientado
que, todavia, não se realiza no quadro deste texto. pelo contexto pragmático da evangelização. Nesse quadro, os textos produ-
zidos são gramaticais, poéticos e de catequese. Os gramaticais se situam
Base empírica evidentemente num nível metalingüístico: não transmitem dados lingüísticos,
mas categorizações - e, na parte dos exemplos, incluem material empírico.
Para qualquer estudo diacrônico, é imprescindível a classificação Esse material foi certamente produzido a partir da competência dos próprios
prévia dos dados e, para tal finalidade, uma mera repartição cronológica do autores jesuítas - argumento válido no caso de textos líricos e de catequese.
material parece insuficiente. A própria constituição pragmática do material - No entanto, na perspectiva metodológica da presente pesquisa, é pouco
as variáveis discursivas que condicionaram a enunciação - deve ser levada relevante a questão de os textos jesuíticos refletirem ou não fielmente as
em conta. No entanto, as variáveis discursivas são submetidas a processos variedades autóctones ou já constituírem variedade própria. De qualquer
históricos de padronização, que levam à constituição de tipos textuais ou forma, são os documentos mais próximos às variedades autóctones de que
tradições discursivas, segundo a proposta de Schlieben-Lange (1983). As dispomos. 2
tradições discursivas implicam, por um lado, determinado interesse comuni-
cativo que permeia a realização do discurso - que, no caso de material 2) Etapa da lingüística histórica
histórico, deve ser necessariamente realização no meio gráfico. Por outro Esta etapa se caracteriza por um interesse exclusivamente científico,
lado - e em função desse mesmo interesse-, os tipos textuais se caraterizam sem qualquer pretensão de ação social. Devem ser considerados (em ordem
,:, pelo emprego de determinados recursos lingüísticos. Esses recursos ou téc- cronológica de produção) os textos de Francisco Raimundo de Correa (1858),
Charles Frederick Hartt (1872), José Vieira Couto de Magalhães (1875),
.\.
''),,,.
nicas, historicamente estabelecidos, são adequados aos fins comunicativos
específicos que determinam o tipo textual. Nesse sentido, os recursos ma- João Barbosa Rodrigues (1890), Constantin Tastevin (1910) e Ermano Stradelli
nifestados no interior de determinada tradição discursiva nunca representa- (1928). Por um lado, oferecem descrições gramaticais e, por outro,
rão a totalidade dos recursos ou técnicas oferecidos pelo sistema. Um dos "graficações" de textos orais tradicionais, sobretudo em Couto de Maga-
critérios que relaciona recursos lingüísticos e situações comunicativas é a lhães (1875) e Rodrigues (1890).
fonnalidade: o próprio tenno formalidade pressupõe, simultaneamente, deter- Até certo ponto, as descrições gramaticais d~ssa etapa se inserem
minada técnica lingüística e detenninada configuração situacional. na tradição gramaticográfica iniciada pelos jesuítas e, às vezes, também
Nessa perspectiva, a documentação histórica do nheengatu se apre- manifestam divergências com respeito à mesma. As lendas de tradição oral
senta necessariamente heterogênea. Portanto, tentarei classificar o material
estudado do ponto de vista cronológico, embora interprete essa cronologia
Evidentemente, o acesso mais direto é oferecido pelos textos gramaticais de Anchieta
segundo os tipos de acesso e de interesse pela língua que tiveram os autores (1595) e de Figueira (1621] e peJo Vocabul6rio anônimo de 1621, cf. Rosa (1992). A
dos documentos e também segundo a história social do sistema em perspec- ~pa ~~uítica está certamente concluída no século XVIII, época que, na perspectiva da
tiva macro-histórica. O material deve ser classificado ainda sob o ponto de h1st6na mtema, corresponde ao tupi médio (cf. a contribuição de Ruth Monserrat neste
vista areal, já que é procedente supor que, em território tão extenso como volume),' O tupi. médio está representado no nível metalingüfstico, entre outro;, pela
Gramática anômma (séc. XVIII} e pelo Dicciolkfrio anônimo (1771) - embora não se
o amazônico, a história não se apresente sincronizada, tampouco necessaria- tenha certeza de que sejam textos jesuíticos. Apresenta, ainda, mudança sist~ica
mente idêntica quanto a processos sociais e resultados lingüísticos. considerável quando comparado ao tupi clássico.
representam material lingüístico autêntico, mas que deve ser manejado com 1) à expansão da língua geral (em que adquire funções e falantes);
certa cautela, já que não somente é filtrado pela técnica gráfica, como 2) à decadência do nheengatu (em que perde funções e falantes);
também pela competência nheengatu do investigador, É material valioso, pois 3) à indigenização.
não é fonte exclusiva de léxico e de estruturas morfossintáticas, mas tam-
bém de técnica discursiva. Ora, esses discursos, anteriormente à sua Os limites entre essas três etapas não são nítidos, sobretudo o limite
graficação, tiveram determinada função na sociedade que os gerou. Segundo entre a 2 e a 3. Contudo, a transformação do nheengatu em marca de
o que se argumentou acima, representam certo setor, e não a totalidade dos identidade étnica (3) constitui, certamente, um processo inverso, quando
recursos lingüísticos do sistema nheengatu da época. comparado ao projeto jesuítico de criar uma identidade super-étnica com
A documentação da lingüística histórica reflete certa extensão base no nheengatu (1) (Cf. Barros/Borges/Meira, 1994).
diacrônica (aproximadamente setenta anos) e cobre, sobretudo, uma vasta Para o processo lingüístico operante na etapa 2, parece haver
extensão territorial, do Baixo Amazonas até o Rio Negro. Porém, os proces- certa unanimidade em que a perda de funções comunicativas possa pro-
sos lingüísticos foram simultâneos: ocorreram competências precárias e tro- vocar alterações no sistema, que se refletem na competência individual.
ças de línguas mais tardias no Oeste que no Leste e, supostamente, mais Embora tais alterações ainda não tenham sido descritas de modo a per-
tardias no Noroeste (Rio Negro) que no Sudoeste (Rio Solimões). Numa mitir uma teoria geral, aceita-se a hipótese de determinadas regularida-
perspectiva microgeográfica, porém, a implementação do português nos des operarem no abandono de uma língua. Parece ser menos aceita a
afluentes grandes e médios - centros da produção de borracha - foi anterior hipótese de que o processo inverso, operante na etapa 1, isto é, a aqui-
à ocorrida nos vales principais. De todo modo, Hartt (1872) atribui ao sição de funções comunicativas e/ou de falantes, possa provocar igual-
<"
);1.,, nheengatu do Alto Rio Negro caráter eminentemente arcaico; Rodrigues mente mudanças estruturais. No entanto, é esta a perspectiva que mais
(1890, p. 13) considera-o ''puro" em relação ao nbeengatu "impuro" do interessa ao presente estudo.
(' Baixo Amazonas. Nesse sentido, parece que os dados estruturais se inserem
numa cronologia areal - e fluvial - relativa. Perspectivas metodológicas
I;,1,·. ''
' 3) "Atualidade" Geralmente, atribui-se a mudança lingüística a tensões inerentes ao
Evidentemente, atualidade é designação que não diz muito; considera sistema em um dado momento e ao contato com outros sistemas lingüísticos
a possibilidade de o estudo ter sido novamente conduzido por interesses de ou outros fatores de ordem social.~ Enfocando a segunda perspectiva, isto
ação social, em contraste com o interesse exclusivamente empírico-histórico é, o contato lingüístico, a aquisição da L2 e a competência bilíngüe, podem-
do século XIX. Embora sejam de indubitável caráter científico, os trabalhos
contemporâneos nem sempre aclaram a procedência e a representatividade Em perspectiva teórica gerativa, De0raff (1999) interpreta a pouca nitidez que o
dos dados de maneira satisfatória. Além disso, o acervo de dados disponíveis íenômeno da mudança oferece em relação à capacidade de aquisição e estratégias lingüís-
parece muito limitado em seu conjunto. 3 ticas diferentes de gerações subseqüentes: enquanto os adultos seriam os principais
promorores de inovações ("adults are innovators'j - imprevisíveis a partir do sistema -,
~tivadas por interesses comunicativos espccfficos ou, às vezes, pelo fato de disporem.
História social do sistema unicamente de competências secundárias incompletas, as crianças seriam os agentes de
rcesuuturações ("children are restructurers")- sistemáticas-, principalmente quando da
As três etapas formuladas com base em critérios de historiografia aquisição de LI e até mesmo no quadro de aquisições de L2. Ao contrário, os adultos,
quando aprendizes de L2, recstrururariam imperfeitamente, produzindo, desse modo,
lingüística têm certa correspondência com a história social do sistema em dados inconsistentes. Em Schmidt-Riese (1999 e 2000), foi proposta a reconsideração
análise. Corresponderiam da língua geral como uma hipotética fonte de reestrutwaçôes em variedades cênlricas do
português brasileiro, proposta obviamente aberrante do ponto de vista de uma diacronia
do sistema. A meu ver, a definitiva aquisição teórica de De0raff consiste na integração das
posições antagônicas da mudança arbitrária - e imprevisível - e da mudança sistêrnica _
Consultamos os trabalhos de Taylor (1985), Borges (1991), Moore/Facundes/Pires hipoteticamente previsíveJ - em um modelo mais abrangente e, em função disso, mais
(1990 e 1993), Rodrigues (1996) e Stefani (1998). adequado.
CJnclilj)5es da mudança emnheeogatu: pragméticaecontatoslilgüístioos 153

se distinguir ainda processos diferentes. Na tentativa de desenvolver hipó- flexiv.a - à dife.ren~a da morfo.logia .derivativa.5 Ora, a hipótese do autor, que
teses sobre processos plausíveis de mudança na história do nheengatu, são combma os cnténos de dommânc1a (de um dos sistemas na competência
propostas aqui basicamente quatro noções, de diferentes origens teóricas. bilfngüe) e da relativa estabilidade (dos domínios lingüísticos), consiste em
As noções 1 e 2 enfocam o funcionamento da competência bilíngüe. As supor que o indivíduo bilfngüe tende a preservar a integridade dos setores
hipóteses sobre mudanças estruturais deveriam projetar-se novamente a partir mais estruturados de sua língua dominante. Essa tendência levaria a resul-
do fa1ante individua] para a comunidade. O fundamental é que tais hipóteses tados opostos nos dois processos proeminentes que operam no limite entre
consideram necessariamente os sistemas lingüísticos implicados. Ao contrá- a competência dominante e a não-dominante: quando da incorporação, na
:'.',
rio, as noções 3 e 4 enfocam processos "universais", independentes das língua dominante, de materia1 da língua não-dominante - por razões de
línguas históricas implicadas. A noção 3 considera as implicações universais necessidade referencia] ou de prestígio social -, esse empréstimo afetaria
de aquisição incompleta, a 4, as implicações de mudanças do sistema primeiramente o materia1 léxico. Quando do aumento de sua competência
discursivo para o sistema lingüístico: (ainda) deficiente da língua não-dominante, realizado ao recorrer à língua
dominante, essa imposição operaria, com base no mesmo princípio, inicial-
1) Imposição: transferência de traços, primeiramente sintáticos e mente em setores estruturais.
fonológicos, do sistema dominante na competência do falante para o sistema O termo reestruturação é emprestado da crioulística mais recente,
não-dominante (processo supostamente não-monitorado pelo fa1ante); mas é empregado aqui em sentido divergente. 6 Enquanto nos trabalhos
2) Empréstimo: transferência de traços, primeiramente lexicais, do crioulfsticos restructuring se refere a qualquer tipo de mudança, suposta-
sistema não-dominante para o sistema dominante (processo supostamente mente sistemática, ocorrida na gênese do crioulo - intervindo ou não o fator
monitorado pelo fa1ante); do substrato -, aqui fica restrito aos efeitos universais de aquisição incom-
3) Reestruturação: modificações do sistema relativas à aquisição pleta. Visa principa1mente à aquisição de uma segunda língua e supõe uma
incompleta, independentes do sistema dominante na competência do falante aquisição ou em curso ou fossilizada num estado incompleto. O processo
,,. (processo supostamente não-monitorado pelo fa1anle);
básico que supostamente opera na reestruturação é a redução de estruturas
da língua-a1vo, não dominadas pelo fa1ante, por se tratar de estruturas
4) Reoperacionalização: modificações do sistema devidas a novas
marcadas, de acesso difícil do ponto de vista universa1. Assim, a redução
necessidades comunicativas, emergentes na comunidade (processo suposta-
atinge normalmente a morfologia flexiva. Isto significa que o termo
mente monitorado pelo fa1ante).
reestruturação é empregado em acepção bastante vizinha à de redução. Não
obstante, o falante possivelmente preenche as informações suprimidas por
Os dois primeiros conceitos - imposição e empréstimo - foram pro-
outros recursos, preferencia1mente por recursos não·flexivos: ele não reduz
postos por Coetsem (1988). Esse autor pretende ana1isar o contato lingüístico apenas, mas projeta recursos a1temativos. 7
no nível da competência bilíngüe, entendida como o espaço onde o contato
entre sistemas realmente ocorre. Assim, Coetsem distingue uma língua do- O exemplo da morfologia indica que os graus de estabilidade apresentados acima devem
minante e outra não-dominante. Define a dominante como a de maior pro- ~er ~alisad~ _ainda de fonna bem mais precisa. Assim, os padrões prosódicos que dão
1nfc10 à aqumção espontânea e principalmente à aquisição nativa mostram ser um
ficiência (proficiency), a qua1 coincide normalmente (mas não necessaria-
subdomínio de alta estabilidade em situações de contato, isto é, estruturas com alta
mente) com a língua nativa. Ao longo de sua biografia, o indivíduo pode probabilidade de serem impostas e escassa prÔbabilidade de serem emprestadas (cf.
adquirir maior habilidade em outra língua que não a nativa. A segunda Thomason/Kaufman, 1988, p. 131 e Dixon, 1997, p. 19). Sem ddvida, constituem um
distinção básica do modelo de Coetsem é o critério de diferentes graus de setor estável, altamente estruturado por um conjunto limitado de parimetros.
DeGraff (1999, p. 474) define restructurillg da seguinte maneira: ''Throughou1 this
estabilidade ou resistência à mudança que os vários domínios e subdonúnios chapter lhe tenn 'restructuring' refers 10 the attainmen1 of grammars on the basis of
de uma língua oferecem. Aqui, uma primeira abordagem revela ser o léxico PLD [primary linguislic data] whose underlying grammars maniíest properties distinct
o domínio menos estável e mais propenso à mudança; ao contrário, fonética, from those of lhe attained grammars".
Segundo o esquema (gerativo) da gênese de crioulos, esses recursos alternativos estariam
sintaxe e morfologia - nessa ordem -, domínios mais estáveis e menos na base dos dados inconsistentes do pidgin inicial (early pidgin). supostamente siste•
sujeitos à mudança. Portanto, o domínio mais estável seria a morfologia matizados, em seguida, pela geração dos "menos-de-dois".
No que toca à aquisição da L2, imposi~ão e ~s!n:turação sã? de garantir esse sucesso por meio de recursos lingüísticos, tais como a
responsáveis pela emergência de uma competência de ~u1Stçao (learner s marcação explícita de tópícos, a marcação de relações fóricas, a preser-
variety ou interlanguage), modificada em relação ao sistema completo da vação íntegra do fonnato sentencia], a maior integração das representa-
língua-alvo. Todavia, ambos os processos são paralel~~ porque latentes ções de circunstâncias (state-of-affairs) ou maior emprego da atribuição
diante da aquisição em progresso: até o momento da foss1bzação da compe- como procedimento referencial, para compensar a fraca inserção dêitica
tência de aquisição, chega-se sucessivamente à correção dos resultados da da comunicação à distância. Resumindo: em nível teórico, são as condi-
imposição e/ou da reestruturação, se as condições gerais - disponibilidade ções pragmáticas que provocam a gênese e o emprego de determinado
dos dados (availability), fatores emocionais e de identidade - forem favo- jogo de recursos lingüísticos.
ráveis a tal correção. Historicamente, entretanto, a elaboração ou reoperacionalização para
No entanto, no nível de pressupostos teóricos, as noções de imposi- finalidades comunicativas de maior distância é monitorada, em muitos casos,
ção e de reestruturação se apresentam como antagônicas: traduzem prefe- por uma cultura diferente, que impõe padrões comunicativos e modelos
rências de enfoque do fator L1 na aquisição L2 (imposição) ou, precisamen- discursivos próprios- situação em que, concomitantemente, há monitoração
te, de desfocalização desse mesmo fator (reestruturação). Em ~odo. caso, por uma língua já elaborada, que oferece soluções estruturais adequadas às
procuram diferenciar processos explicáveis com base nas línguas 1mphcadas necessidades comunicativas da distância. 10 Esse indício histórico novamente
e processos universais de aquisição (incompleta). insere a noção de reoperacionalização no contexto do contato lingüístico: se
O termo reoperacionalização é instaurado aqui e considera a neces- historicamente é provável que a elaboração de um sistema lingüístico tenha
sidade de o sistema lingüístico ser adaptado a intenções comunicativas sido monitorada por outra cultura, o contato cultural supõe, ao mesmo tempo,
emergentes na comunidade, isto é, não se relaciona de imediat~ com o um contato lingüístico. Contato língüfstico e contato cultural se articulam par
problema do contato lingüístico. Normalmente, ~ste p~ocesso é .ºn~nt3!10 a a par. Ainda assim, seria interessante isolar um nível universal de outro, do
partir da proximidade comunicativa, rumo à d1stânc1a comumcallva. As conjunto de fatores históricos específicos, isto é, isolar procedimentos uni-
noções de proximidade e distância comunicativa foram propostas por Peter versais das estruturas da língua que servem de modelo na sua elaboração.
Koch e Wulf Oesterreicher (1990) e agrupam, respectivamente, os valores A técnica que, em muitos casos - e por certo também na Amazônia -,
extremos de determinadas condições comunicativas, como a presença/não- inicia o processo de aculturação é a tradução: nela são transferidos conteú-
presença espaciotemporal dos interlocutores, s~a proxim~dade/d.istância s°:i- dos culturais, bem como modelos discursivos e provavelmente recursos téc-
al e emocional, a proximidade/distância dos objetos refendos, a mserção/nao- nicos da língua-fonte para a língua-alvo. Essa última transferência se asse-
inserção em contextos imediatos de atuação etc. A mudança estrutural melha à imposição, no sentido de que carências estruturais são supridas com
orientada da proximidade para a distância comunicativa foi denominada tam- base cm outro sistema - o que não coincide com a noção de imposição
bém, enquanto processo gradual típico, elaboração de uma língua (Kloss, proposta por Coetsem.
1967 e 1978).9 As condições políticas e o critério da agentividade do processo de
Ora, o conjunto das condições atribuídas à distância comunicativa elaboração são variáveis: no caso da Amazônia, prevaleceu determinado pa-
exige uma verbalização mais explícita de certas funções disc~rsi:as. O drão colonial. 11 Esse padrão espeéífico presumiu traduções feitas por falantes
fato de os interlocutores não se encontrarem face a face toma mv1ável o com língua dominante que não o nheengatu, o que favoreceu o mecanismo da
controle interativo imediato do sucesso da comunicação e requer tentativas imposição até mesmo na perspectiva da competência individual.

10
O hebraico moderno poderia ser considerado um caso exemplar de rcoperacio°:11iz_ação Mesmo assim, não parece ser condição necessária Deve haver pelo menos uma diferença
orientada em sentido oposto, a partir da dis1ãncia para a prollimidade comurucatlva. de grau significativa entre a elaboração do latim, monitorada pela língua e cul1ura gregas,
À primeira vista, a distinção proximidade/dis1ãncia comunicativa pode fazer le~brar a e a do próprio grego.
11
distinção socioling(lís1ica clássica enue código reslrilo e código elaborado, ~plicada a Em comparação à elaboração dos vulgares europeus monitorada pela culwra latina, há,
diferentes estratos sociais. Por6m, o modelo de proximidade/dislãncia não COllSldera _nem na Amazônia. por um lado, maior distância tipológica entre as línguas implicadas: por
valora a variação dos recursos lingüísticos, mas a adequação destes às variáveis discUTS1vas, outro, o fato de os agentes da elaboração não serem nativos e não pertencerem à
que se mostra ótima nos dois extremos e independe de variáveis sociais. comunidade (Cf. o conceito de exo-gramalização em Auroux, 1992, p. 35).
Condições da mudança em nheengatu: pragmática ec:ootatos HngOfstiO'Js 1S7

A tentativa de distinguir mudança interna e mudança provocada por forem as situações de fala. Isto leva a pensar que, ainda no caso de um
contato lingüístico redunda facilmente em uma aporia metodológica. Coetsem perfil de dominação hetereogêneo, uma das línguas garante, em sua totali-
(1988) propõe uma interação de ambos os princípios no quadro gera] do dade, um maior escopo de atuação socia1, vantagem que subtende, finaJmen-
contato: a competência de aquisição não incluiria somente traços transferi- te, a opção pela troca de línguas;
dos da língua nativa (dominante), mas também realizaria mudanças especí- 4) Existe mais um critério probabilístico em defesa da hipótese de
ficas virtuais do sistema-alvo, socia1mente (ainda) reprimidas pela comunida- contato, que é de ordem temporal: a velocidade da mudança (change rate).
de nativa daquela língua. De qua1quer forma, parece impossível ultrapassar Ele estabelece outra diferença nítida entre os processos de imposição e de
metodologicamente a probabilidade de transferência constituída por uma empréstimo: enquanto o empréstimo supõe uma modificação lenta, dificil-
"cumulação de indícios" (Krefeld, 2000), ou seja, cumulação de estruturas mente diferenciável da mudança interna pelo critério da velocidade, a impo-
emergentes que coincidem com as da língua de contato. As estruturas sição supõe uma modificação abrupta, catastrófica, se bem que, às vezes,
emergentes em situação de contato são geradas - exceto no caso extremo posteriormente corrigida. Ora, a velocidade da mudança é que estabelece
da gênese de crioulos - a partir das estruturas existentes, não são "copia- um contraste enorme entre o nheengatu e outras línguas tupi-guarani, ainda
das" ou "importadas" da língua de contato. Por isso, dificilmente serão que a mudança tenha sido orientada para estruturas idênticas e pareça
completamente alheias às estruturas existentes em dado momento. seguir, até certo ponto, urna deriva interna. 12
As quatro noções incidentes na consideração da história social do
nheengatu foram apresentadas em suas caraterísticas básicas. Faz-se con- Cenários de contato
veniente elucidar ainda alguns detalhes:
A meta dos sete cenários apresentados abaixo é uma releitura das
1) A noção de imposição foi discutida principalmente no contexto de informações relativas à história lingüística da Amazônia, colhidas principalmen-
aquisição da L2. Todavia, advertiu-se que a noção de língua dominante não te em Bessa Freire (1983), sob a ótica dos tipos de processos expostos no item
coincide necessariamente com a de língua nativa. Isto significa que pode anterior. Os cenários formulam hipóteses sobre os mecanismos de transferên-
haver imposição de traços de uma L2 dominante em uma LI (iá) não- cia que provavelmente operaram na história de contato do nheengatu ou, em
dominante. Esse aspecto foi especificamente tratado por Smiths (1996), que sentido mais amplo, sobre mecanismos de sua mudança A ordem é cronoló-
apresenta dados empíricos em favor dessa hipótese. Desse modo, a noção gica, com exceção dos cenários 3, 4 e 5, que se entendem como simultâneos.
de imposição se toma operacional também no âmbito da "desaprendizagem"
(unlearning); Cenário 1: Ungua geral como meio de comunicação interétnica
. 2) Em princípio, o mesmo é válido para o critério da reestruturação/
redução, que supõe regularidades universais, seja no decurso da aprendiza- No início da colonização, a comunicação entre portugueses e
gem de L2, seja nos resultados de aquisição incompleta da L2. Esse critério tupinambás foi garantida pela parte portuguesa, minoritária e mal adaptada
universaJ poderia também reorientar para processos de "desaprendizagem", ao meio ambiente. Os portugueses adquiriram o tupinambá em grau variável.
que, no nível da comunidade, correspondem à noção de "abandono de lín- Orientada para fins pragmáticos imediatos, essa aquisição foi certamente
gua" e, no nível da competência individual, à noção de atrito (attrition) ou incompleta, isto é, os falantes europeus não tinham como evitar recorrer
perda de língua (language loss); parciaJmente a estruturas do português na hora de se comunicar com os
3) A dominância (dominance) de uma ou outra língua na competên- índios. Freire (1983, p. 48) relata que a comunicação entre os colonos que
cia individual não é sempre óbvia. Pode-se pensar na existência de um migraram de Pernambuco e do Maranhão para o Pará e os escravos
equilíbrio em grau de habilidade entre ambas as lfnguas, mas tal situação é tupinambás trazidos do leste se fazia na língua destes, ou seja, em tupinambá.
seguramente incomum. A língua dominante pode também variar de uma Naturalmente, a variedade de aquisição que os colonos por certo dominavam
situação de fala para outra: tal distribuição de habilidade por contextos prag- - proveniente da aquisição incompleta - não constitui um fato de mudança,
máticos é até regular em determinado tipo de aquisição espontânea. Contu-
do, na competência individual, não concorrem tantas gramáticas quantas 12
Cf. Dietrich (1990), Moore (1994), Rodrigues (1996) e Rodrigues/Dietrlch (1997).
mas apenas uma modificação do sistema de variedades do tupinambá: este e textos em língua brasílica. Mas é provável que seu conhecimento da
incluía uma variedade nova, a dos colonos. Porém, é provável que os tradição gramaticográfica latina e sua intuição de falantes não-nativos do
tupinambás tenham adotado essa variedade em seu convívio com os colonos, tupinambá interviessem na elaboração dos textos. Para o levantamento de
dando origem, desse modo, a um pidgin. É fácil supor que esse pidgin - dados, os jesuítas recorreram a colonos residentes no país, isto é, utilizaram-
variedade reeestruturada de contato - adquiria importância à medida que a se de competências reestruturadas a partir do português (cenário 1), Esse
sociedade colonial ia-se estabelecendo. As inovações motivadas inicialmen- argumento é válido especialmente para a gramática de Figueira, que se toma
te, a partir de competências portuguesas, podem ter-se estendido a varieda- central para a atuação lingüística na Amaz8nia a partir da segunda edição
des nativas do tupinambá. de 1685. 15 Os jesuítas nunca se nativizaram. Na verdade, constituíram um
setor demográfico da Amazônia com grande rotatividade e que, por esse
Cenário 2: A língua geral como meio de solidariedade comunitária 13 motivo, renovava constantemente sua competência alófona. A aquisição do
nheengatu no interior da ordem deve ter-se centrado em textos produzidos
O processo de mestiçagem - iniciado no Maranhão - intensificou- pela própria ordem, os quais tendem a se canonizar. A implementação do
se na colonização do espaço amazônico e condicionou a transmissão lingüís- nheengatu em grupos al6fonos (cenário 4) constitui uma via de extensão
tica regular do tupinambá - das mães índias da primeira geração, cronolo- para as inovações - estabilizadas - do tupi jesuítico.
gicamente graduada, para os filhos. A competência tupinambá dos pais, Os cenários 1, 2 e 3 apontam, invariadamente, para o processo da
reestruturada desde o português (cenário 1), forneceu uma série paralela de imposição. Poré~, na perspectiva do tempo histórico, essa imposição se
dados acessíveis aos filhos na aquisiçao da Ll. 14 Tal aquisição parece ga- desacelera: a vanedade de contato inicial se estabiliza, a sociedade mestiça
rantir a transmissão de estruturas inovadoras. Também aqui, a primeira procura institucionalizar um meio de comunicação próprio, o tupi jesuítico é
geração - a dos pais - tem extensão cronológica. Contudo, notadamente, a codificado pelos textos gramaticais e de catequese. Desse modo, os proces-
sociedade mestiça se define politicamente como portuguesa e tende a se sos culturais e históricos comprovam o cenário temporal da imposição, que
isolar da sociedade tupinambá tribal. Este afã de afirmar uma identidade prevê uma mudança abrupta inicial. Os fatores sociais impediram a correção
própria deve ter favorecido a diferenciação lingüística em relação à socie- posterior completa das transferências.
dade tupinambá e, conseqüentemente, a extensão de inovações provocadas
a partir do português. Cenário 4: Aquisição do nheengatu como processo monitoradolõ

Cenário 3: Competincias jesuíticas Colonos e jesuítas agruparam, em seus assentamentos, índios de


yárias e~ias, p_ara fins de ~rabalho ~ catequese, e impuseram o nheengatu
Os jesuítas aproveitaram a vasta área de intercomunicação do co~? ~tco me10 de comumcação. Dispor de uma língua entendida por todos
~acili~a o trabalho, a catequese, e, finalmente, a criação de uma nova
tupinambá para fomentar o projeto da evangelização. Produziram gramáticas
1denttdade. As relações numéricas e a substituição rápida de mão-de-obra
destruída apontam para aquisições incompletas. A aquisição do nheengatu se
11
Os termos ''melo de comunicação intcrétnica" e "meio de solidaridade comunitária" foram realizou principalme~te por imersão. Os aldeados e escravos, por sua vez,
propostos por Baker (1997), na tentativa de descrever a gênese de pidgins e crioolos
logo deve~ ter recomdo a ele como meio de comunicação entre os diversos
independentemente da noção de lfngua-alvo, inadequada do ponto de vista do autor.
1
' Com respeito à variedade L2, DeGraff (1999, p. 497) comenta: "li is llnquestionable ~pos 6tm~os: !odas essas condições apontam para a reestruturação, ou
that lhe aclult learner, in lhe inltial stages ofL2A [second language acquisition], introduces seJ~, um~ ~1dgm1zação dessa língua. Invalidam em certa medida a hipótese
(unstable) innovations into the linguistic pool. Some of these innovations stem from de nnpos1çao de traços a panir das línguas nativas dos colonizados, ameríndias
transfer strategies (e.g., relexification)", e com respeito às conseqüências para a aquisição
e africanas, já que nenhuma delas teve peso demográfico suficiente.
de LI (DeGraff, 1999, p. 486): "Adults engaged in L2A certainly c,eate interlanguages,
which are different from the targets. Consequently, there is no doubt lhat adults, trough
L2A. play an imponant role in creolization anel in language change by lhe very fact lhat " Cf. Rosa (1992, pp. 87-90), Barros/Borges/Meira (1994, p. 64). A Gramática anónima
adult leamers produce ullerances that are distincl from what lhe targets allow and lhat do s6cl1Jo XVIII e Faria (1858) se apóiam na gramática de Figueira
lhese 'deviant expressions', in tum, become pan of lhe PLD for younger leamers". '~ Tentamos traduzir o termo engiMend prrxess, proposto por Dixo~ (1997).
Condi9)8Sdamudançaemnheengatu:~econlaloslng0Ssticos 161

A mudança tipológica do nheengatu é denominada na literatura mais


men~e no~os ti~os .de organi~ão social e laboral e um universo espiritual
antiga como adulteração e conuptela, atribuídas a ambos os setores alófonos -
alheio ao nnagmário amazõmco, como também tipos discursivos desconhe-
jesuítas e nheengaíba. 17 O presente estudo ocupa-se da aquisição e prática
cidos e afins a uma distância comunicativa de tipo europeu para O regula-
do nheengatu por parte dos colonizadores e do contato lingüístico destes com
mento de todos os assuntos da sociedade das aldeias, independentemente do
o português. Essa delimitação do objeto correspode a um problema de do-
emprego da escrita. A língua devia necessariamente ser adaptada a essas
cumentação: para os séculos XVII e XVIII, a documentação apresenta finalidades impostas por modelos europeus.
exclusivamente o nheengatu empregado por esse setor, o "nheengatu dos
colonizadores". 18 Cenário 6: Troca de Ungua para o português

Cenário 5: Elaboração do nheengatu pelos jesuítas O abandono do nheengatu em favor do português, iniciado somente
~o século XVill, acelera-se consideravelmente ao longo do século XIX. A
Este cenário descreve um fato de contato cultural (não de contato dizimação da comunidade nheengatu na Cabanagem - embora não tenha
lingüístico) e considera da mesma fonna o setor demográfico do cenário 3. tido conseqüências estruturais no sistema - deve ter tido repercussões so-
Os jesuítas modificam o tupinambá segundo as exigências dos textos que ciais enormes. Todavia, o abandono do nheengatu por parte dos sobreviven-
pretendem produzir- de catequese, principalmente. O emprego do nheengatu tes da Cabanagem deveu-se à cronologia territorial. A troca de línguas
em outros tipos textuais articulados pela escrita ainda não foi suficientemen- implica enfraquecimento da competência nativa na geração que a opera e,
te estudado. 1~ No entanto, a técnica gráfica não é a origem da comunicação supostamente, uma transmissão irregular para a geração seguinte. Num
,-· à distância; ela reestrutura unicamente as técnicas de transmissão e de primeiro momento, tal situação de bilingüismo teria levado, na perspectiva da
\.i::
·,>,,. memorização de textos. A distância comunicativa já existia nas sociedades imposição, à transferência de traços do nheengatu, nativo, para o português.
/_. amazônicas ágrafas, mas apresentou modos de organização bem diferentes Porém, essa imposição normalmente seria corrigida mais tarde. A partir do
l11,,:1 :;:') dos que foram impostos pelo colonizador. 20 Os jesuítas impuseram não so- momento em que o português se tomasse dominante na competência de um
1,·. - indivíduo, a imposição operaria em sentido oposto: do português para 0
,.. '
....-~'' 17 Cf. Rodrigues (1890, v. VII e X) e Albuquerque (1929, p. 333). Cf. 1ambém Rodrigues
(1951, p. 56).
nheengatu. Essa imposição se intensificaria ao longo da biografia individual
e, por meio. da produção de dados instáveis, também na transmissão geracional.
11 Vale ress.aJtar. entrelanto, que o status social do nheengatu nos séculos XIX e XX, Tal mecamsmo pode estar em operação até a atualidade e poderia supos-
quando o contraste colonizador/colonizado se reeslrutura e redefine os falanles dessa tamente ser investigado em falantes contemporâneos.
língua como colonizados, é bem diferen1e. Tal situação transparece também na documen-
tação desses s&:ulos, que oferece material da cuilura popular oral. . .9 cenári? 6 aponta, tal como os de ntímeros 1, 2 e 3, para uma
u Na discussão, Cindida Barros assinalou a ampla docurnenlação legal do período em 1mpos1çao a partir do português, atuando, desta vez, da posição de L2 sobre
língua portuguesa. Sem dúvida, esse argumen10 é Vlilido para documentos com valor a língua nativa. Apesar do nheengatu, a língua portuguesa é considerada
jurídico e al1amen1e fonnalizados, tal como a carta real, o e)(ame das povoações indígenas agora a língua nativa na competência bilingüe. E coitto o que se dá é um
pelas tropas de resga1e, o documento que atestasse a condiç.llo de livre nos postos de
controle no sistema fluvial (Cf. Barros, 2000, pp. 3, IS e 17). O domínio do português
~roces_so de desaprendizagem, o cenário temporal parece também mudar: a
pode 1er sido mais brando em gêneros escritos de menor fonnalidade. Em todo caso, os 1mpos1ção a partir do português e a reestruturação do nheengatu deveriam
gêneros fonnais aludidos implicam uma troca medial em seu funcionamento pragmático, se acelerar em tempo biográfico e histórico,
isto é, a transferência do te)(to para o meio fônico, ou a partir deJe, e uma tradução para
o/do nlleengatu ao mesmo tempo. A troca medial que implica troca de língua constitui, Cenário 7: Novas opções em favor do nh.eengatu
de resto, uma$ituação-chave na passagem das línguas românicas à escrita na Idade Média
européia e poderia indicar, nesse sentido, um estado de elaboração incipiente (Cf. Selig/
Frank/Hartmann, 1993 e Erns1, 2000). . , A legislação brasi.leira atual parece exigir o emprego de uma língua
,. Por um lado, é de se supor, como Di)(on (1997, p. 118), que todas as línguas têm um md,gena para o reconhecunento de um grupo como indígena. Essas condi-
grau de diferenciação global idêntico, embora relativo a domínios e subdomínios diferen-
tes. Por outro lado, a invenção da escrita constitui, sem dúvida, uma das revoluções
culturais mais significativas da humanidade. Se a escrita supôs a reorganização da distãncia comunicativa de modo a provocar a elaboração de determinados rccwsos lingt1ísti
6 evidente que esse avanço teve como preço perdas de diferenciação em outros seio'::'.
ções legais podem favorecer a manutenção do nheengatu por parte de
estruturais inovadores: as competências portuguesas nativas já ofereciam
grupos que já o tenham adotado como meio de comunicação nativizado e soluções adequadas.
marca de identidade étnica. Outros grupos o têm adquirido como parte de
A história mais recente do nheengatu aponta no amente para 0
uma série de línguas trocadas, tendo como ponto de partida a língua ances-
proces~o de im~sição desde o português. Desta vez, somC:tc 8 imposição
tral e desembocando no português. Ainda que nem pertençam ao âmbito operana a parttr de uma segunda língua, isto é, num quadro geral de
tupi-guarani, esses grupos podem considerar o nheengatu um meio de comu- desaq?isição. Mas a história do nheengattl continua. As condições sociais
nicação que possibilitou, ao menos em parte, a preservação de suas tradi- podenam desacelerar o abandono da língua e provocar, em função de novas
ções e podem optar por uma retomada dele, precisamente, para obter acesso finalidades comunicativas, outros processos de mudança.
novamente às tradições perdidas. Curiosamente, apesar de marginal, essa
situação implica mais uma vez - no quadro geral do domínio social do
português - a possibilidade de imposição estrutural a partir do português. Referências bibliográficas

Conclusão ALBUQUERQUE, Miguel Tenorio d'. "Apontamentos para a grammat1ca


'Avafiee"'. Revista do Museu Paulista, n. 16, 1929, pp. 329-443.
A consideração dos mecanismos supostamente operantes em situa- ANCHIETA, José de. Arte t:k gramatica da Jingua mais usada na costa
ções de contato lingüístico e cultural e a consideração da história socia] do Brasil. Edição fac-similar. São Paulo: Loyola, 1990 [1595].
ofereceram. algumas pistas para a interpretação da mudança tipológica do ARENDS, Jacques et ai. Pidgins and Creoles. An lntroduction. Amsterdam
nheengatu. Essa mudança pode ter sido monitorada por contato lingüístico, e Filadélfia: John Benjamins, 1995.
embora possa ter havido coincidência com a deriva interna do sistema. O BAKER, Philip. ''Directionality in Pidginization and Creolization". ln: SPEARS,
nheengatu é um sistema lingüístico transmitido historicamente, em medida Arthur K. e WINFORD, Donald (orgs.). The Structure and Status of
considerável, por aquisição de L2. Mostra, em comparação a línguas gene- Pidgins and Creoles. Amsterdam/ Filadélfia: John Benjamins, 1997,
ticamente aparentadas, um ritmo de mudança significativamente acelerado. pp, 91-109.
O cenário dos grupos indígenas aldeados e escravizados na época BARBOSA, A. Lemos. Curso do tupi antigo. Rio de Janeiro: São José,
colonial aponta para processos de reestruturação que se aproximam do 1956.
quadro da crioulogênese. No entanto, essas variedades estão apenas docu- BARROS, Maria Cândida D. M. "O intérprete na constituição de um tupi
mentadas e se reintegram, a partir do final do século XVIII, na corrente supra-étnico no século xvr•. Papia 3/2, 1994, pp. 18-25.
F'81 do sistema. A hipótese de imposição a partir de outras línguas ameríndias _ _ _ et ai. "A língua geral como identidade construída". Papia 3/2, 1994,
ou africanas necessitaria primeiramente de uma análise exata das relações . pp. 62-9.
demográficas regionais. A língua geral originou-se como modalidade do sis- BORGES, Luiz Carlos. A língua geral amazônica: aspectos de sua
tema colonial fora da Amazônia e foi implementada no início da colonização Jonêmica. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1991.
amazônica, em regiões de povoação tupinambá ou tupi. Ambos os fatores DIETRICH, Wolf. More Evidence for an Internai Classification of Tupi-
operariam - no sentido do princípio dos fundadores - contra a imposição a Guarani Languages. Berlim: Mann, 1990.
partir de outras línguas colonizadas. _ _ _ . "Amerindische Sprachen und Romanisch". ln: HOLTUS, Günter et
Ao contrário, o processo colonizador aponta para a imposição de al (orgs.). Lexikon der rotna1Ustischen Linguistik, n. 7, 1998, pp. 419-
99.
estruturas do português em dois níveis diferentes: nativos portugueses -
tanto colonos quanto missionários - supriram seu conhecimento do tupinambá - - : "A importância do tupi na formação do português do Brasil". ln:
com estruturas da língua nativa deles e essas estruturas devem ter-se esta- GÃR1NER, Bberhard et al (orgs.). Estudos de Ungua ponuguesa.
Frankfurt, TFM, 1999, pp. 153-72.
bilizado por meio dos processos culturais subseqüentes. Ao mesmo tempo,
FARIA, Francisco Raimundo Conca de. "Compendio da lingua brazilica
empregaram o nheengatu para finalidades discursivas próprias da coloniza-
para uzo dos que a ella se quizerem dedicar". Annaes da Bibliotheca
ção, alheias à sociedade tradiciona1. Essas finalidades requeriam traços
e An::hivo Público do Pará, n. 2, 1902 [1858], pp. 293-333.
Condições da mudança em nheengalU: pragmábe cortatoslilgtifsticos 165
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Uli Reich•·

Desde a época colonial até nossos dias, os cenários de contato entre


a LGA e o português autorizam a hipótese não apenas de uma mudança
sintática gerada pelos processos de imposição, mas também de uma mudan-
ça pragmática, 1 pelo processo que denominamos reoperacionalização. 2 Às
estruturas sociais que os colonizadores levaram à região, correspondiam
constelações pragmáticas que, em tese, norteariam processos de mudança
do sistema.
No período pré-colonial, tanto a fala familiar como os discursos
administrativos, jurídicos e religiosos das culturas indígenas eram
,; ,.' direcionados aos membros da tribo local, realizados unicamente de fonna
:~, '~-
,:.,. :),_ oral e em situações face-to-face. Por isso, parece razoável afinnar que se
.• , ,. apoiavam mais do que discursos correspondentes de culturas européias em
;::<O ,. contextos de conhecimentos compartilhados e que a compreensão do dis-
curso era controlada na situação da enunciação, sempre integrando, de
igual forma, elementos extralingüfsticos. Em contraste, no período colonial,
os discursos interétnicos da colonização da Amazônia3 passavam a assu-

Este artigo surgiu de uma pesquisa realizada em co-autoria. com Roland Schmidt-Riesc
(Reich/Schmidt-Riese, em preparação). Não é fácil dissociar as idéias aqui desenvolvidas
do concei10 de mudança que Roland me ensinou, e a leitura de sua contribuição a este
volume é imprescindível para a compreensão dessas idéias. Agradeço também a leitura
crítica e paciente de Crislina Altman.
•• Universidade de Munique.
A pragmá1ica histórica é uma perspectiva da lingüística diacrônica, que procura entender
a mudança lingüística como conseqüencia da modificação histórica das condições cullu-
rais e sociais das línguas. Nas palavras de Andreas Jacobs e Andreas Jucker (1995: 5),
"if we apply a pragmatic perspective to historical linguistics, we are simply intercsted
in describing lhe development of a Janguage, or lhe language change, as social acis of
communicators under shiíting historical circums1ances". Cf. Sitta, 1980; Schlieben-
Lange, 1983; Busse, 1991; Jucker, 1994 e 1995.
Cf. a contribuição de Roland Schmidt-Riese neste volume.
Cf. Barros, 1994.
Mudança Stntálica epragmãtica na Língua Geral Amazônica (LGAJ ...

mie, além das funções pragmáticas dessa proximidade comunicativa, as de verbais. Dessa maneira, para proto-agente, o modelo prevê os traços de:
distância comunicativa,~ que, muitas vezes, eram fixadas em forma escrita, a) volição; b) sentimento (sentience) do evento ou do estado denotado
realizáveis também em situações de ausência do ouvinte e sem a interfe. pelo verbo; c) causa de mudança de estado em outro envolvido no evento;
rência da situação e de atos não-lingüísticos. Em discursos desse tipo, a d) movimento relativo a um outro envolvido no evento. Para protopaciente,
marcação de coesão é necessariamente mais densa, já que só uma peque- o modelo prevê: a) mu,dança de estado; b) o fato de ser afetado por outro
na parte da informação a ser transmitida é comunicada pela situação de envolvido no evento; c) imobilidade relativa ao movimento de um outro
enunciação. envolvido no evento.
A nosso ver, uma pesquisa sobre a mudança tipológica do tupinambá Em línguas acusativas, a atribuição das funções sintáticas sujeito e
para a LGA deve levar em conta esses fatores Pragmáticos se ela ambicio- objeto direto se efetua segundo um princípio de seleção de argumento
nar, além da descrição da mudança, a explicação para tal fato. São dois os (Argument Selection Principle). 5
fenômenos de mudança do tupinambá para a LGA que temos investigado Por exemplo, a diferença entre o espanhol "tu me gustas" e o
com mais detalhe: a acusativização da marcação de caso e a português "eu gosto de você" pode explicar•se com o corrolary 1: os traços
reoperacionalização do sistema pronominal. semânticos em si não determinam um papel prototípico; as duas atribuições
seriam possíveis e as línguas históricas optaram, no caso, por caminhos
Marcação de caso: de sistema ativo para acusativo opostos: para o espanhol, [+ causa] é o critério decisivo de atribuição da
função sujeito, enquanto o português toma [+ sentimento] como traço que
Tipos de marcação de caso: ativo, ergativo, acusativo leva à atribuição da mesma função.
Em· línguas ativas, a seleção da forma que marca o argumento no
O tupinambá clássico era uma língua que marcava seus dois únicos verbo se efetua segundo esse princípio. Se em um dos participantes predo-
casos - ativo e inativo - por prefixação verbal, assim como o guarani minarem traços semânticos do papel proto-agente, o morfema co-referencial
contemporâneo. À diferença de línguas acusativas e ergativas, em línguas será da série ativa; se o participante tiver poucos desses traços, o morfema
ativas o argumento de verbos intransitivos se realiza por meio de dois que o atualiza será da série inativa: [-volição], [- sentimento], [-percepção]
paradigmas formais diferenciados pelo papel semântico que expressam. Em e [- causa], o que induz a uma marcação inativa.
sistemas ergativos e acusativos, o argumento de verbos intransitivos se rea· O Argument Selection Principie, originariamente conceituado para
liza de uma só forma, independentemente do papel semântico. dar conta de sistemas acusativos, evidencia·se nitidamente em línguas ativas:
Repensemos isso mais detalhadamente. Uma descrição contrastiva os casos morfológicos marcam diretamente papéis semânticos atribuídos por
dos tipos de marcação de caso só pode se realizar por intermédio da meio desse princípio, fato que não ocorre em línguas ergativas e acusativas.
comparação das relações entre as funções sintáticas e os papéis semân- Na tabela que segue, marcamos os casos morfológicos que sempre
ticos. Desde o estudo clássico de Fillmore (1968), os papéis semânticos expressam determinado papel semântico (PROAG = proto·agente, PROPAC
têm sido conceituados de vários modos, segundo os quadros teóricos em = protopaciente). Os casos que a esse respeito são livres não levam nenhu-
evidência. O desafio consiste, sobretudo, em dar conta tanto da afinidade ma especificação.
quanto da diferença entre esses papéis. A nosso ver, a proposta de David
Dowty (1991) é a que mais se aproxima desse alvo. Segundo esse autor,
pode-se limitar o inventário dos papéis semânticos a somente dois, o do Argument Selectio11 Pri11Ciple: "ln predicates with grammatical subject and object, the
proto-agente e o do protopaciente, cujos traços semânticos prototfpicos argumenc for which the predicate entails the greatest number of Proto.Agenc propenies
podem aparecer em constelações (clusters) diferentes nos argumentos will be lexicalized as the subject of the predicate; the argument having the greatest
number of Proto.Patient entailments wlll be lexicali:ted as the direcc object. Corrollary
1: if two arguments of a relation have (approximately) equal numbers of entailed Proto-
Para o conceito do contínuo entre proximidade comunicativa e distância comunicativa Agent and Proto-Patient properties, then either or both may be lexicalized as the subject
(Koch/Oesterreicher, 1990), cf. a contribuição de Roland Schmidt-Riese neste volume. (and similarly for objects)" (Dowty, 1991, p. 576).

. _,__..___
Verbos intransitivos,
o argumento tem o
papel proto-agente
("eu canto'').
- -
AtivoPRO.W
+ verbo
A bsolutivo
+ verbo
Acusativo
Nominativo
+ verbo
diferentes, esses estudos constatam, sem divergência, que, não obrigatoria-
mente, uma língua histórica realiza um tipo de forma consistente. Por exem-
plo, Ou Bois (1985, 1987) correlaciona o sistema de marcação de casos de
uma língua com seus tipos discursivos. A subtipologia de Kõmer (1987)
prevê graus intennediários de marcação entre os tipos canônicos em seus
correlatos, e o estudo diacrônico de Lehmann (1985) considera vestígios de
yerbos intransitivos, Inativonr.OVAc Absolutivo Nominativo
etapas anteriores na análise dos sistemas de marcação de uma determinada
o argumento tem o + verbo + verbo + verbo
língua - no caso, o latim. Se a essas reflexões acrescentarmos a perspectiva
papel protopaciente de pragmática histórica, talvez se possa tomar mais clara a motivação dos
("eu caio").
tipos de marcação em diferentes culturas e a motivação da mudança que
Verbos transitivos Ativono"o Ergativo,,.0 ,. 0 Nominativo sempre leva a tipos mais acusativos. De fonna exemplar, a história da LGA
("eu te mato"). + inativon.o,,,.c + absolutivo + acusativo se presta a um estudo com esta vocação.
+ verbo + verbo + verbo
Sistema ativo do tupinamhá
Tabela J: Comparação dos tipos de marcação de caso.
O tupi clássico possuía dois paradigmas de prefixos e uma série de
Com isso, pode-se entender a tipologia de marcação de caso como pronomes livres que, evidentemente, servia como fonte de gramaticalização
um contínuo de relativa independência formal das funções sintáticas de dos prefixos inativos:7
papéis semânticos. Em línguas ativas prototípicas, a forma codifica papéis
semânticos diretamente. Em línguas ergativas, nos verbos intransitivos, a
forma independe do conteúdo semântico. Porém, nos verbos transitivos, está
imediatamente vincuJada aos papéis semânticos: o ergativo codifica sempre
o argumento que mais traços de agentividade apresentar. Em línguas
lª singular
2ª singular
3ª singular = plural
Ativo
•-ore-
o-
Prefhos
Inativo
,._
nde-
.
Pronomes livres

endé
acusativas, as fonnas são independentes dos papéis semânticos, tanto nos lª plural inclusivo (1+2( +3)) i,- iande- iandé
verbos transitivos quanto nos intransitivos. Nessas línguas, o que é codifica- r plural exclusivo (1+3) oro- mé-
do não é o papel semântico do argumento, e sim a função sintática dele. 2ª plural (2+3) po- ""
pefe
Correlatos típicos 6 são pelo menos sujeitos não-referenciais (dummy
pronouns) e construções passivas (o sujeito é paciente). Línguas ativas Tabela 2: PreflXOs e pronomes livres no tupi clássico.
desconhecem tais construções.
Nas últimas décadas, várias abordagens à tipologia de marcação de A diferença entre marcação ativa e marcação ergativa e acusativa
caso, não-discretas, têm sido propostas. Embora a partir de perspectivas é nítida nos verbos intransitivos. As tabelas que seguem mostram verbos
intransitivos do tupi clássico que se marcavam com prefixos inativos (tabela
3) e com prefixos ativos (tabela 4) e os traços semânticos que motivam tal
" Assim como na teoria gerativa e na tipologia sintática geral, partimos do pressuposto seleção:8
de que as construções sintMicas de uma língua particular não são isoladas, mas
correlacionadas. Neste contexto, entenda-se "correlato tipológico" como os ''universais
implicacionais" de Greenberg (1966, p. 73): "ln the body of this paper a number of
universais is proposcd. A large proportion of these are implicational; that_is, they ~
the íonn. 'given ~ in a particular Janguage. we always find y'. When nothmg further 1s Cf. Lemos Barbosa (1956), Teixeira/Dahlstrom (1986) e Jensen (1999).
said, it Is underslood that the converse, namely, 'given y, we always find x', does not Possivelmente, a indecisão da intCipretação semântica em casos como iase'o ou apor
hold. Where the two sets of characteristics are binary, lhe typical distribution in a seja uma conseqüência de nossos pressupostos culturais europeus. Estudos antropoló-
terachoric table is a zero as one of the rour enlries". gicos poderiam esclarecer dúvidas desse tipo em uma pesquisa de escala maior.
Mudança sintática e pragméllcana Língua Geral Amazônica (LGA)... 173

Traços semânticos
para proto-agen1e
volição
sentimento/
percepção
causa movimento ' (3) Os nomes conjugados como verbos incluem em si o verbo sum, es fui,
em duas significação, s, ser, & ter. Para a significação destar ha verbos
particulares, & proprios, estar sentado, deitado, andando. Quanto a
ambú 'roncar' primeira significação, ser, cõ adiectivos ou substantivos catú, bom:
apor 'desistir' +/- + xecatú, eu sou bom. ndecatú, tu. ycata, ille. [...J ln omnibus temporibus
pytu 'respirar' (Anchieta, 1990 (1595), p. 113).
a'jbu 'ofegar' +
Outro correlato tipológico das línguas ativas é o fato de os mesmos
Tabela 3: Intransitivos com prefixos inativos.
prefixos expressarem posse e pertencimento - uma relação semântica
para cuja manifestação as línguas acusativas gramaticalizaram um paradigma
Traços semânticos sentimento/ movimento
volição causa de formas rotulado pela tradição de pronomes possessivos ou construções
para proto-agente percepção
com verbos do tipo habere. O tupi clássico não precisava de tais constru·
+ + + ções: (4) "Ne, Nde, vel, Né, Pe, são tambem adiectiuos, como meus, tuus,
só (ir) +
sapuki (gritar) + + + vester, &c. xejàra, meus dominus, ndejára, tuus, pêjára, vester" (Anchieta,
iase'o (chorar) +/- + +/- 1990 [1595], li"),
A expressão de relações de posse e de atribuição predicativa pelos
Tabela 4: Intransitivos com prefu:os ativos. morfemas da série inativa, sem a necessidade de outros elementos lexicais,
toma-se possível pela especificidade semântica de protopaciente desses
Os mesmos paradigmas de formas marcam os papéis semânticos em morfemas. Os marcadores de casos em línguas acusativas, que expressam
verbos transitivos, 9 sendo que só um dos argumentos se marca com prefixo. predominantemente funções sintáticas independentes dos papéis semânticos,
O outro argumento deve ser expresso ou por um sintagma nominal ou por não têm essa especificidade semântica e por isso gramaticalizam fonnas
estar acessível pragmaticamente: a•jucâ (Pedro) "eu mato Pedro" versus oracionais, nas quais os verbos estabelecem a relação semântica de atribui-
(Pedro) xe-jucâ "Pedro me mata". Ma'enduar, "lembrar", é o exemplo ção e morfemas adnominais expressam posse.
preferido dos gramáticos jesuítas da lingoa brazilica para a demonst~ão
da marcação com a série inativa: (2) Xemaenduâr, eu me lebro, Marcação de caso na WA
Ndemaendudr. tu. Ymnendudr, ille (Anchieta, 1990 [1595], 20v.).
Em tupi clássico, a ausência dos traços de volição, causa e movimen- Não existem descrições sistemáticas da sintaxe do nheengatu contem-
to levou à marcação inativa desse verbo. porâneo. Denny Moore e colaboradores mostraram processos de mudança
que diferenciam o nheengatu das outras línguas tupi-guarani (Cf. Moore/
Fenômenos correlacionados com sistemas inativos de marcação de caso Facundes/Pires, 1990 e 1993), mas não estudaram a marcação de caso. Tra-
balhos recentes de Aryon Rodrigues (1999) e Cheryl Jensen (1999), que
Um correlato tipológico 10 importante de marcação de caso ativo é descrevem línguas do tronco tupi e da família tupi-guarani, não discutem o
que tais línguas não precisam de verbos do tipo cópula. A ~tri~ui~ão nheengatu. Dessa forma, a descrição da marcação de caso e os fenômenos
predicativa se expressava em tupi clássico com um prefixo da séne inativa correlacionados no nheengatu aqui apresentados se apóiam em dados de tex-
no sintagma nominal: o valor semântico (+ estar afetado) desse m~rf~rna tos de Hat1t (1938 [1872]), Rodrigues (1890), Tustevin (1923 [1910]) e Moore/
expressa a predicação sem que haja necessidade de um verbo atnbu.lf o Facundes/Pires (1990 e 1993). A análise desses dados sugere a mudança
predicado ao sujeito. Ninguém descreve isso melhor que o mesmo Anchieta: fundamental de um sistema ativo'mativo para um sistema nominativo/acusativo.
Todos os verbos intransitivos dos textos que analisamos recebem
exclusivamente prefixos do antigo paradigma ativo, fato que sugere a queda
Cf. Rodrigues (1999. p. ll7).
'º Cf. nota S. do sistema original de marcação ativofmativo.
Tomemos mais uma vez o verbo manuár, que servia aos gramáticos do [4] Cuíre cbe meriareru, cba çu ana oe chihy, lndé Cllri mairamé re
tupi cJássico como exemplo para a marcação inativa. No nheengatu, o verbo putare ramé Agora l*ls neto A*ls ir já 1*2s Prep Pro2s FUT
recebe agora prefixos do paradigma ativo desse período do tupinambá: u quando A *2s querer CONJ
"Agora, meu neto, já vou embora de ti, quando quiser,
[1] remanuár tefie seresé. (UA19)
A*2s-lembrar sempre I*ls-de indé re cuó mamé cha icó.
"Você se lembra sempre de mim" (Hartt, 1938 [1872], p. 343). Pro2s A*2s saber onde A*ls estar
você sabe onde eu estou" (Rodrigues, 1890, p. 28).
A antiga série inativa aparece no uso moderno em sintagmas
preposicionais - como em (1) - ou com a finalidade de expressar posse - Possessivos e pronomes em sintagmas preposicionais se rea1izam
como em (2): se-familia-itá "minha familia": 12 com a antiga série inativa, assim como em tupinambá. No verbo do nheengatu
moderno, essa série s6 aparece em construções com dois argumentos. Nesses
[2] iSé ci a-mãndu/ái a-yuwíri se-família-itá rúka kití casos, o argumento que tem o papel semântico paciente é marcado no verbo
Profs NEG A*ls-lembrar A*ls-voltar I*ls-familia-PLU casa PREP com o prefixo da antiga série inativa; o que tem o papel agente é realizado
"Eu não me lembro (do caminho para) voltar à casa dos meus pais" com um pronome livre:
(Moore/Facundes/Pires, 1993, p. 19).
[5] b::é neraisu
Em [3] temos um exemplo de outro verbo que, em tupi clássico, Is 1*2s amar
l. i;
.. , ' recebia prefixos da série inativa e que, no nheengatu, conjuga-se por uma "Eu te amo" (Hartt, 1938 (1872], p. 370).
\
única série de formas - a antiga série ativa:
,,
., 1
1)' !
Lembrando que em nheengatu a marcação dos argumentos nos verbos
se dá com uma série de prefixos que não diferenciam mais papéis semân-
,. [3) iSé a-yupukwá iké
:i: Pro 1s A* Is-acostumar aqui ticos dos argumentos, entendo que essas estruturas tenham sido reana1isadas:
"Me acostumo daqui" (Moore/Facundes/Pires, 1993, p. 19). materialmente idênticos às estruturas do tupinambá, os prefixos não marcam
'· mais os papéis semânticos proto-agente e protopaciente, os casos de línguas
No material documentado por Rodrigues (1890), Stradelli (1928) e ativas, mas sujeito e objeto, no sentido das línguas acusativas, isto é, márcam
funções sintáticas.
Tastevin (1923(1910]), esse sistema de marcação se realiza com um
morfema novo para a primeira pessoa do singular, cba. O antigo morfema
Construções com verbos cópula no nheengatu
ativo dessa pessoa, [a], aparentemente se juntou com o inativo [Se] ou com
o pronome livre [iSeJ e deu como resultado [Sa]. Parece-me evidente que
Nos textos de Hartt (1938 [1872]) e Rodrigues (1890), é nítido o uso
esse processo fonológico está vinculado à queda da oposição semântica
de construções com verbos cópula para a predicação atributiva que se
agente e paciente:
expressava no tupi clássico unicamente com os morfemas da série inativa.
Neste trabalho, já propusemos que construções com cópula são correlatos
tipológicos de sistemas acusativos. Essas construções gramaticalizaram o
" Nossa análise interlinear representa morfemas da s6ric ativa com A e da s6ric inativa verbo ikó, que, em tupi, significava encontrar-se, mas não funcionava como
com 1. No caso dos morfemas das variedades modernas, cm que essa oposição não existe cópula em predicações atributivas. Em nheengatu, ikó recebe prefixos da
mais, mas que surgiram das formas clássicas tomando outras funções, com um asterisco
A* e t•, respectivamente. Seguimos os autores na ortografia do nheengatu. antiga série ativa, que passou a marcar sujeitos no verbo: 13
n A informante 6 oriunda do A110 Rio Negro e fala nheengatu. português e espanhol. No
momento da gravação, em 1988, já morava em Belbn há nove anos (cf. MOOtt/Facundesl 13
Cf. a expressão da predicação atributiva sem cópula no tupinamb.i, conforme nossa
Pires, 1993, p. 19). análise an1erior.
1 .
Mudança.sintática e pragmática na Língua Geral Amazõm:a (LGA)...

[6] reikó teénte. xaikó teénte. Apoiando-se em ocorrências das primeiras gramáticas jesuíticas Aryon
A*2s - ser preguiçoso A* 1s -ser preguiçoso Rodrigues (1996), interpreta o sistema de d8ixis pessoal do tupin~á a
"Você é preguiçoso" "Eu sou preguiçoso" (Hartt, 1938 partir de dois parâmetros de pragmática discursiva. O primeiro diz respeito
, [1872], p. 332). à possibilidade de fazer, ou não, explícito o contraste entre falante e ouvinte.
O segundo corresponde à possibilidade de focalizar a terceira pessoa.
Os prefixos reanalisados da antiga série inativa perderam sua
especificação semântica e, com isso, também a possibilidade de expressar Contraste entre falante e ouvinte
a predicação por meio apenas de seu traço semântico [+ afetado]. Os textos + -
1estemunham o surgimento de construções com cópula, nas quais a predicação (explícito) (não-explícito)
é atribuída ao sujeito do verbo.
Não se encontram essas estruturas em todas as variedades. Faria
(1858, p. 301), Stradelli (1928, p. 28) e Moore/Facundes/Pires (1993, p. 9)
Focalização de
terceira pessoa
1-
1 +
,,,
falante

oré
...
ouvinte

pefê .,,
yané

descrevem, para aJgumas variedades do nheengatu, predicações atributivas


no quadro das estruturas sem cópula, tal como se reaJizava no tupinambá.. Tabela 5: Diferenciação dos pronomes livres, segundo pardmetros de Rodrigues
Parece que a variedade do Baixo Amazonas descrita por Hartt (1938 [1872]) ( /996, p. 402).
é a que mostra mais construções com cópula. Nessa região, a pressão do
português era historicamente mais forte do que em outras regiões que uti- As formas isé e ené especificam o contraste entre falante e ouvinte.
lizavam a LGA. Os amores consideraram essa variedade "impura". Por A forma oré também, mas focaliza uma terceira pessoa, o que equivale à
essa razão, interpretamos construções com cópula como estruturas muito exclusão do ouvinte. Na interpretação de Rodrigues, a forma inclusiva yané
progressivas no processo de mudança do tupinambá para o nheengatu. pode incluir não somente o ouvinte - o que corresponderia à explicação
tradicional -, mas também uma terceira pessoa, não focalizada, por meio da
Reoperacionalização do sistema pronominal neutralização do contraste. Rodrigues discute uma passagem de Anchieta,
em que se explica o uso do prefixo ya-, que sistematicamente corresponde
Se comparado com sistemas europeus, o tupinambá, em seu inven- ao pronome livre yané:
tário de pronomes, possuía um sistema altamente diferenciado para a mar-
cação de relações de dêixis pessoal. Já o paradigma para a expressão de (5) "Ainda que lambem se pode usar deste, quando o nominativo he de
relações anafóricas era mais simples. O inventário apresentado na tabela 2 maior estima, sccundum subiectam materiam vt morobixába mondd
mostra que o tupinambá não gramaticalizara pronomes livres de terceira yainambidcucdr; vel, oniãbiócucâr; o juiz mandou desorelhar o la-
pessoa, tampouco seus prefixos diferenciavam número ou caso. O único drão" (Anchieta, 1990 {1595), 36v.).
prefixo que marcava relações anafóricas no verbo era o-. 14
No sistema dêitico pessoal, é possível diferenciar cinco pronomes Nas duas variantes, os prefixos estabelecem concordância com o
livres, sendo a distinção entre inclusivo e exclusivo a categoria que mais constituinte morobixóba, "juiz". Na primeira, com ya-, esse constituinte
diferencia esse sistema de inventários pronominais europeus. Em descrições está pragmaticamente desfocalizado; na segunda, com o-, ao contrário,
tradicionais, normalmente interpreta-se tal diferença como possibilidade de está focalizado, resultando na desfocalização do segundo SN mondâ, "la-
incluir ou excluir o ouvinte no grupo dos referentes por meio dos pronomes drão". Rodrigues interpreta a seleção entre ya- e o- como opção da
yané e oré, respectivamente. focalização de um dos dois constituintes. Yané pode marcar uma terceira
pessoa desfocalizada tanto quanto uma primeira pessoa do plural inclusiva,
neutralizando os dois parâmetros que determinam o sistema de dêixis
" As variantes i- e s- realizam concordância com SN inativos pós-verbais e relaÇôeS
possessivas, mas não anafóricas (no sentido da Jingüfs1ica de tcxlo, não no gerativismo).
pessoal. Dessa interpretação, achamos razoável postular que o tupinambá
Cf. Navarro, 1998, pp. 49 e 90. possuía uma forma dêitica que também podia marcar uma não-pessoa.
Nesse caso, a semântica de yané expande-se da origo dêitica para a resulta da gramaticalização do quantificador eta. is Em analogia a esse pro-
função anafórica. Tal sobreposição de funções pragmáticas de pronomes cesso geral, esse sufixo de plural também se realiza no pronome aé: a~ta.
no sistema do tupi clássico deixa vislumbrar a distância tipológica entre Com a queda da oposição entre ore e yandé, os paradigmas do
essa língua americana e as línguas européias. Asé é uma forma que nheengatu moderno são equivaJentes aos postulados para as línguas româ-
corresponde a um referente indeterminado, como, por exemplo, em fran- nicas:
cês on ou em alemão man:
(8) isé lsing yãnde !plural
(6) "Significa, homem, quando dizemos, diz homem, faz homê, & assi he indé 2sing pefé 2plural
a terceira pessoa, & serve a ambos os numeros, & a macho, & a femea, a'e 3sing afta 3plural (Moore/Facundes/Pires, 1993, p. 9).
vt oçõacê vay homê" (Anchieta, 1990 (1595), 12').
Pode-se observar o uso de pronomes de terceira pessoa do plural,
Em geral, essas formas integram implicitamente os sistemas das por exemplo, na variedade utilizada em Rio Branco, documentada por Bar-
pessoas dêiticas, já que fazem parte do grupo de referentes não-especifica- bosa Rodrigues, no fim do século XIX. Além disso, os textos testemunh::..'Il
dos, mas humanos. Assim, o sistema pronominal do tupinambá ajustava-se um outro passo no caminho de acusativização da sintaxe, a saber, o estabe-
à expressão das possibilidades pluriformes de envolvimento das pessoas lecimento de concordância verbal com o sujeito:
presentes na situação dêitica do evento denotado pelo verbo. O tupinambá
elaborou meios lingüísticos para a expressão de relações da proximidade (7) Aitá u acema uhiua. Aé nana aitá u iuúca uhiua,
comunicativa, que se determina essenciaJmente pela proximidade física dos Pro3pl A *3 achar flecha então Pro3pl A *3 tirar flecha
parceiros da conversação e do encaixamento dêitico do discurso. "Eles acharam a flecha, então a tiraram,"
Já o sistema pronomina] no nheengatu se carateriza pela elaboração
de meios anafóricos para estabelecer coesão textual. Esses meios anafóricos aé uana aetá u çaam uirá recé, aJtá u acema uirá euêo,
correspondem a discursos de distância comunicativa. Paralelamente, o sis- então Pro3pl A *3 experimentar ave Prep Pro3pl A *3 achar ave-
tema dêitico se simplificou. Luiz Figueira (1795 (1621]) colocou os demons- voar,
trativos aé e aõa no paradigma dos pronomes de terceira pessoa: "então a experimentaram numa ave, eles acharam uma ave voando,"

(1) Pronome he aquelle que se põe em lugar de nome de qualquer cousa: aitá o iapy, u euêo uhiua u iuire cecé
estes saõ contados xe, yxe, em lugar da primeira pessoa, ou nde, ende Pro3pl A *3 atirar A *3 voar flecha A *3 voltar Prep
em lugar da segunda pessoa tu, ae ahé em lugar da terceira pessoa elle, "atiraram, a flecha voou, voltou para ele." (Rodrigues, 1890, p. 30).
plural yandé nos com vosco juntamente ore nos sem vos peê vos
outros, aõa elles ou aquelles (Figueira, 1795 (16211, p. 53). Os prefixos verbais u co-referem com o pronome livre aitá, o qual
está no caminho da obrigatoriedade: não só aparece em construções enfá-
Sabe-se que o desenvolvimento de pronomes de terceira pessoa, a ticas para contraste ou marcação de um tópico novo - como os pronomes
partir de demonstrativos, corresponde a processos universais de livres do tupinambá -, como também em passagens cuja continuidade do
gramaticalização, como mostra a história dos pronomes românicos dessa tópico é nítida. O uso de pronomes livres e prefixos verbais deixou de ser
pessoa. Porém, a oposição de aé versus aõa estabelece também uma opo- complementar: agora se realizam as duas formas no mesmo sintagma. A
sição de número que, na variedade descrita por Anchieta, não existia: essa morfologia do verbo concorda com o sujeito sintático da língua acusativa
língua não possuía, nos grupos verbais ou nominais, morfologia que expres- nheengatu.
sasse concordãncia de número, outra categoria que garante coesão textuaJ.
Na variedade descrita por Moore, a categoria de número se realiza
também em SN com morfologia especiaJ, a saber, com o sufixo irá, que u cr. Moore/Facundes/Pires, 1990, p. 5.
Considerações finais: imposição e reoperacionalização BORGES, Luís Carlos. A língua geral amazônica: aspectos de sua
fonêmica. Dissertação de mestrado. Campinas: Unicamp, 1991.
A mudança da marcação ativa/inativa de caso para uma acusativa, BOSSONG, Georg. "Syntax und Semantik der Fundamentalrelation - das
junto ao correlato tipológico da predicação atributiva, modifica elementos Guaraní ais Sprache des aktiven Typus". Lingua, n. 50, 1980,
nucleares da sintaxe da LGA. As estruturas analisadas correspondem às pp. 359-79.
portuguesas, como é o caso da mudança ocorrida no sistema pronominal. _ _ _ "Markierung von Aktantenfunktionen im Guaraní: Zur Frage der
As condições sócio-históricas de contato entre o português e o differentiellen Objektmarkierung in nicht-akkusativischen Sprachen".
nheengatu favorecem a atribuição de mudanças tanto no processo de impo- P/ank, 1985, pp. 1-29.
sição quanto no de reoperacionalização. Na história lingüística da Amazônia, BUSSE, Dietrich (org.). Diachrone Semantik und Pragmati:
as situações de bilingüismo devem ter conduzido, durante muito tempo, a Untersuchungen zur Erkliirung und Beschreibung des
aquisições incompletas do nheengatu, possibilitando a imposição de estrutu- Sprachwandels. Tübingen: Niemeyer, 1991.
ras a partir do português, a língua dominante. Paralelamente, as estruturas DIETRICH, Wolf. More Evidence for an Internai Classifi.cation of Tupí-
novas no nheengatu estão mais adequadas· às novas exigências pragmáticas, guarani Languages. Berlim: Mann, 1990.
que correspondem a tipos de discursos impostos às culturas indígenas. O ___ . "Amerindische Sprachen und Romanisch". ln: GÜNTER HOLTUS
estabelecimento de meios morfológicos para garantir coesão textual e con- et ai (orgs.). Lexikon der Romanistischen Linguistik, 1, 1998, pp.
cordância sintática pela elaboração de um sistema pronominal que expressa 419-99.
relações fóricas claramente corresponde a discursos de distância comu- _ _ _ "A importância do tupi na formação do português do Brasil". ln:
nicativa, em que a expressão lingüística se apóia mais em si mesma do que EBERHARD GAIITNER et ai (orgs.). Estudos de língua portugue-
em contextos situacionais. sa. Frankfurt: TFM, 1999, pp. 153-172.
Nossa análise é uma tentativa de mostrar a necessidade de uma DIXON, Robert M.W. e AIKENVALD, Alexandra (orgs.). Amazonian
perspectiva pragmática na lingüística diacrônica. Uma comparação com outras languages. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1999.
línguas da família tupi-guarani poderia ser muito útil para comprovar os OOWTY, David. "'lbematic Prato-roles and Argument Selection". Language,
resultados de nossas análises. Como se teriam desenvolvido línguas 67/3, 1991, pp. 547-619.
tipologicamente parecidas com o tupi clássico em outras constelações sócio- OU BOIS, John W. "Competing Motivations". ln: HAIMAN, John. /conicity
históricas?
in syntax. Amsterclam: John Benjamins, 1985, pp. 343-365.
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Fontes datadas

a) Cópias de documentos mais antigos: não atestam evolução da


língua em relação às fontes dos séculos XVI e XVII (orações, doutrina
cristã, vocabulários);
b) Adaptação de textos antigos: mostra estágio ulterior da língua
( Catecismo de Bettendorf, adaptado ao século XVIll);
c) Vocabulários calcados do(s) primeiro(s), do século XVII (?) na
parte portuguesa, mas adaptados ao tupi da época.

Fontes não~datadas

a) Textos religiosos;
b) Vocabulários anônimos, copiados ou adaptados de outros datados.

Textos

a) Doutrina christã em lingoa geral dos- indios do Estado do


Brasil e Maranhão, traduzida em lingoa irregular e vulgar uzada nes-
ses tempos (João Philippe Bettendorf): manuscrito não-datado, da Universi-
dade de Coimbra, escrito em tupi, parcialmente traduzido ao latim, com
apresentação inicial em português. A Biblioteca Nacional possui cópia
microfilmada.

b) Doutrina cristã - idioma da lingoa geral: manuscrito escrito


ém tupi, sem autor, datado de 1750, pp. 370406, de cópia eletrostática de

Esta pesquisa foi realizada em 1970, na Biblioteca Nacional e no Museu Nacional.


•• Universidade Federal do Rio de Janeiro.
manuscrito (original?) da Universidade de Coimbra. Na página 407, há re- Contém ainda uma seção com nomes das partes do corpo (pp. 356·9) e
ferência à Bula de Pau]o III e ao Pará sobre a assistência obrigatória às advérbios (pp. 361 ·9). A apresentação desse capítulo segue rigorosamente,
missas: em sua parte portuguesa, a do capítulo correspondente na Arte, de Figueira.
De forma clara, é uma adaptação ao tupi usado na época (1750). Segue-se
[... ] Cujas alegaçoens (dos índios, de não poderem assistir regularmente às uma lista de quatro interjeições, que, em Figueira, são em número de dez.
missas) já se não podem hoje vereficar neste Pará, pois vemos q. as suas O número de advérbios arrolados no manuscrito é 110, enquanto em Figueira
moradas em todo este Estº são junto da Igr-. contam•se cerca de 170;

As duas páginas finais, não numeradas, contêm, em letra diferente b) Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português:
da utilizada no resto do manuscrito, a lista dos dias em que os índios tinham reimpressão. A primeira parte. da edição de 1795 (Lisboa: Officina Patriarchal,
obrigação de ouvir missa e jejuar. No fim, há um carimbo aposto com os ano M.DCC.XCV, com licença, sem designação de autor), seguida da se-
dizeres "Bibliotheca da Universidade", gunda parte, até então inédita, ordenada e prefaciada por Plínio M. da Silva
Na página 357, encontra-se uma advertência em que o autor conce- Ayrosa, na Revista do Museu Paulista, tomo XVIII. São Paulo: Imprensa
de ao leitor o direito de fazer outro confessionário, se não achar este ade- Oficial do Estado, 1934.
quado, dizendo: "[ ... ] pois quem este fez não é mestre do Idioma da tal Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, existem diversos manus-
Língua, pois só teve o trabalho para se aproveitar dele em alguma aflição critos ligados ao dicionário em questão:
[...]". Após, a data de 20 de setembro de 1750;
• BN ms. 1-1, l, 14, ou 11.478 do C.E.H.B., Vocabullario da lingua
c) Crestomatia da lingoa brasflica (Ferreira França): cópia impres- brasilica, 1751 (consta do Catálogo de Vale Cabral, sob o nº 257).
sa (Leipzig, 1859) de manuscritos do século XVIII, pertencentes ao Museu É documento original da BNRJ, em português e tupi. Contém noven·
Britânico, contendo "Cantigas e versos" (em tupi), "Doutrina e perguntas ta folhas não-numeradas, medindo 17 cm de altura por 12 de largura.
dos mistérios principais de nossa santa fé na lingoa brasílica", "Diálogo da Diz-se que "o Vocabulário foi impresso pelo Frei José Mariano da
doutrina cristã na língua brasflica" (em tupi) e "Diálogo da doutrina cristã Conceição Velloso, sahindo sob o título de Diccionario portugues
composto pelo Pe. Marcos Antonio" (em tupi); e brasiliano etc., o qual vae acima descritos sob o nº 92" (1795);

d) Orações e diálogos da doutrina cristã na língua brasílica: • BN ms. 1·27, 4, 8 (reversão do ms. BN 1, 1, 14, anônimo, datado de
cópia impressa de manuscritos do Museu Britânico, do século XVIII, trans- 1751, publicado em 1795 por Velloso como Dicionario português e
critos e anotados por Plínio Ayrosa, em Etnografia e ltngua tupi-guarani brasiliano (1" parte);
(USP, 1950).
Além dos três diálogos impressos por Ferreira França, há mais um • BN ms. 19, 3, 35, Nomenclatura brazilica da lingua geral gorani,
publicado, até então inédito, não considerado anteriormente documento tupi, adquirido por F. Denis em 1850 (é possível tratar.se de cópia do ms.
por mal-entendido de FiganiCre, em seu Catálogo dos manuscritos 3, l, 19, intitulado Diccionario da lingua brazilica, letra de Velloso,
portuguezes existentes no Museu Britânico (Lisboa: Imprensa Nacional, elaborando a reversão do Dicionário português-brasiliano (2ª
1853, p. 181). Trata-se do Compêndio da doutrina cristã que se manda parte).
ensinar com preceito, em tupi, anônimo, e único datado (1740).
Há ainda outro manuscrito, aparentemente não ligado aos anteriores:
j'
Vocabulários
• BN ms. 10, 1, 10 - Vocabulário da lingua geral: 440 verbetes em
~ a) Dicionario da lingua geral do Brasil: manuscrito da Biblioteca tupi e português. Não traz indicação de data e autor. Na primeira
l,., da Universidade de Coimbra (citado acima), pp. 237-353, em português-tupi. página, ao alto, lê-se: "Lingua Geral dos Indios das Americas:
Pemambuquo, Pará, Maranhão, Bahia, Rio de Janr°, S. Paullo e b) Diante de vogal átona pretônica não seguida por segmento nasal,
Minas Gerais". A parte em tupi é preenchida com letra diferente da ocorrem de preferência os alofones nasais, mas, por vezes, há alternância
utilizada no restante do manuscrito. com os oclusivos pré-nasalizados:

São três os documentos referidos como Dicionário português- /imirá/ imyrá "árvore"
brasiliano e brasiliano-português: a) edição de 1795, de Velloso, com /nekutók/ nekutúk "você espetou"
reimpressão de Ayrosa, 1934; b) Manuscrito da BN, 1751 (nº 257, da rela- /memerik:6/ remerikó "esposa"
ção de Vale Cabral); c) manuscrito da Universidade de Coimbra, 1750. /momOSi/ momoxi "sujar"
Confrontando-se tais documentos, verifica-se que: a) a edição de /momeú/ momeú - mombeú "contar, confessar"
Velloso é a mais detalhada e extensa, incluindo vocábulos inexistentes nos /menasára/ menasára - mendasára "casado"
manuscritos; b) o manuscrito da BN ou é cópia do de Coimbra, ou são
ambos cópia de um terceiro; não há muita discrepância entre os dois, mas c) Diante de vogal oral, ocorrem somente os alofones nasais:
eles não coincidem inteiramente; c) os três documentos refletem, em maior
ou menor grau, um estágio da língua posterior e bastante diferenciado do /manõ/ manõ "morrer''
apresentado nos diversos documentos dos séculos XVI e XVII. A cópia /enõy/ enõi "chamar"
de Velloso é a mais extensa e detalhada, precisamente por incluir muitos
itens extraídos de documentos mais antigos. Desse ponto de vista, é a que d) Antes de vogal oral átona ou tônica, seguida. imediatamente ou
merece maiores reservas na consulta, pois não apresenta homogeneidade não, por segmento consonântico nasal, ocorrem unicamente os alofones nasais:
cronológica.
/mosémo/ mosémo "fazer sair''
Estrutura gramatical do tupi do século XVIII /nuflára/ nungára "igual"
/aT]aturároa/ angaturáma "santo"
Sistema sonoro /amána/ amána "chuva"

Fonemas: Consoantes Vogais e) Nas sílabas postônicas, ocorrem somente os alofones nasais:
p k ; u
m '
n ~ e o /wáni/ oani - uani "partícula: perfectivo"
s s a /ária/ anga "alma"
T ;: /meét\/ meeng "dar"
w' y ê õ /aráma/ aráma "partícula: finalidade"
ã
O fonema y (glide palatal) apresenta-se nos textos com diversas
As consoantes nasais m, n, h e os glides y, w apresentam alofonia
representações gráficas, evidenciando uma oscilação em sua realização
mais complexa que as demais consoantes. Quanto às nasais:
fonética. A grafia predominante é j, mas aparecem também g, i, y: aujé -
a) Diante de vogal oral acentuada, a que não se segue, imediatamen· augé; ajimboé; ejúre; jabé - iabé; majabé - mayabé; eiapuçacár etc. Há
te ou não, no limite do vocábulo, segmento nasal, apresentam alofones oclusivos distribuição complementar entre alofones orais e nasais:
pré-nasalizados, respectivamente mb, nd, flg:
a) Em ambiente oral, há alternância entre [y] e [i]:
/momóre/ mombóre ''tirar'' /auyé/ auié - aujé - augé partícula
/iné/ indé "você" ~ . lyil j9 - gy "machado"
/m1riára/ nungára "igual"
/ _,,,. '
/yuruparf/ iuruparí - juruparí "diabo"
' •.

·-- J
b) Em ambiente nasal, /y/ rea1iza-se como fi (graficamente nh): A exceção fica por conta da forma cristalizada para a palavra "co-
bra", a qual é bóia e remonta à forma /móya/ [mbóya] do tupi do século
/kuyã/ kunhã "mulher" XVI. Consideramos justificado interpretar a consoante inicial dessa pa1avra
/moya11/ monháng "fazer'' como /mi. Em primeiro lugar, porque não existe qualquer contraste convin-
/mokay/ mokanh "extraviar'' cente entre o ·b de bója e o m, no estágio enfocado da língua; depois, porque
/yáne/ nháne "correr" há duas outras formas crista1izadas, mbaé e Me - ne, respectivamente
~·coisa" e "teu", cujas oclusivas pré-nasa1izadas só podem ser interpretadas
c) /y/ é ii - y - z antes de voga] átona, seguida, imediatamente ou como /mi e /n/, apesar de, nesse ambiente, as nasais apresentarem regular-
não, por consoante nasaJ: mente realizações nasais, sem pré-nasalização.
Os fonemas restantes - oclusivos (p, t, k), fricativos (s, S) e flap (r)
/yanéra/ ianéra - janéra ''fresta" (e.mpréstimo do português
não apresentam maiores problemas de descrição. Evidencia-se seu estatuto
"janela"?)
fonêmico nos seguintes exemplos:
/ayemomeú/ anhemombe11 "eu me confesso"
/yemomotasába/ nhemomotaçába "gulodice"
/pi /mi powi-re ''revolver'' mowir "quantos?"
/ereyemomeú/ erejemombeú "você se confessa"
/nemoyemomeú/ nemojemombeu - ndemonhemombeu "você é /ti ln/ tupã "deus" nupã "bater"
confessado" /k/ /h/ monók "cortar'' enÓTJ "pôr''
/yarõsába/ nharõçaba "ferocidade" Is/ /'U kaisára "arraial" sowaiSára "contrário"
saé "se" 5ayeé'r} "eu fa]o"
d) É ii após voga] nasa1 tônica: será "será?'' seratá "meu fogo"

/takõya/ takonha "pênis" Quanto aos fonemas vocálicos:


/pirãya/ piranha ''tesoura"
a) A série nasal contrasta com a oral somente em sílaba aberta,
O glide w possui diversas representações gráficas: b, v, u, o. Apre- tônica, geralmente a llltima sílaba de raízes e de partículas não-átonas:
senta alofones consonânticos e vocálicos, com a seguinte distribuição:
maé "coisa" maê" "olhar''
a) Ê [b] depois de pausa e entre vogais: puká "rir'' tupã "deus"
oikó "está" roirõ "aborrecer''
/sewúy/ cebui "minhoca"
/yawé / iabé "assim"
Nos textos, a nasalidade vocálica é representada por vogal oral seguida
/kawáru/ cabaru "cavalo"
por m ou n e raramente por til sobre a vogal.
/waráya/ varaia "ba1aio"
/wirapára/ uirapara "arco"
b} Os textos examinados apresentam grande oscilação no registro
b) É [u] antes de pausa: gráfico das vogais, mormente em sílabas pretônicas: coyr - cuyr "agora";
uáne - oane - oani (particípio passado}; m(a}enduar- m(a)endoar "lembrar-
; i
• 1
/yakáw/ iacao - jacao "repreender'' se"; pecjka - pycjca - pecíca "tocar''; moeté - moité "respeitar". Nesses
/putupaw/ putupáo - potupáo - potupáb "agastar" casos, definimos como representante do fonema a variante mais alta da
/nitíw/ nitiu - nitio "não" série. Assim, para os exemplos acima, temos, respectivamente: leu-ir, wáni,
/piriw/ pyrj - pyryb "mais que" maenuár, pisika, moité.
Julgamos mais conveniente tratar em separado a q0e lã d Considerando-se que o sistema fonético tupi não admitia seqüências
p,~,·
..s imos portugueses, pela desnecessária . complexidade q soosem-
sonoras cc e que lhe eram estranhos os sons f, v e r vibrante, podemos
. ue seu exame, em
conJunto com o dos padrões estruturais autóctones introd · · .

··-
. , uzrna na descnção definir uma situação sonora de transição no tupi-médio, de um sistema
fonêm1ca. De fato, como se verá adiante não é bom ê
. • og neo o tratamento fonêmico ainda essencialmente muito próximo daquele do tupi antigo ou
dado aos empréstimos pela língua. Se algumas fonnas estr has
~
po as, depois .
outras se encontram
de
.
adaptadas
grafadas
. .
aos padrões
diretamente
fonéticos
em português ·
.
característicos
· _1
do
.

, pnnc1p,umente as
tupi
'
tupinambá, com uma distribuição alofônica bastante precisa e regular, para
um sistema fonêmico mais complexo, com maior número de fonemas,
redistribuição alofônica e criação de novos padrões silábicos e grupos
d o campo semântico rehg10so, como benção, S Madre J=; fi -
. _ . · c·-Ja, con ssao etc. consonantais.
Outras,
. amda, sao. parciaJmente adaptadas. Examinemos em detalh
e~vári ~ Em relação ao sistema fonêmico do tupinambá, o do tupi-médio
tipos de empréstimos e seu relacionamento com o sistema 'onológi
1,
·
co nativo: apresenta como principais particularidades:

.. a) Adaptação completa aos padrões fonéticos, não se considerando a) A fricativa palatal surda [ij - alofone de /si em tupinambá -
a tomctdade: perde seu caráter alofônico e passa a contrastar fonemicarnente com [s], em
r' formas como /kaisára/ caiçara "arraial" e /sowai!ára/ sobaixara "contrário";
cabarú /kawarú/ "cava1o"
pana /pána/ ''tecido, pano"
!' b) À medida que, pelo menos nos textos examinados, desaparece

,, merendara /merenára/ "merendar" /" qualquer registro gráfico indicando a presença da oclusiva glotal - que, no
tupinambá, é representada habitualmente pelo trema incidindo sobre a vogal
jemokamarare /yemokamaráre/ "acamaradar-se" '
'°,,1' camixá /kami!á/ "camisa"
1
1 que segue ou precede a oclusiva glotal, como em caa "mato"-, podemos
supor provável o desaparecimehto do próprio fonema oclusivo glotal;

,.'I'
:,
. b) Adaptação parcial, resultando no surgimento de sons ou seqüên-
ç1as sonoras estranhas ao sistema original: c) Desaparece como fonema a fricativa bilabial /fV, cujos alofones

·, são incorporados sistematicamente ao fonema /w/. Em decorrência disso,

,,.1, funira "funil"


jantara ''jantar"
passa a ocorrer maior incidência estatística de /w/ no tupi-médio do que
havia no tupinarnbá;
,, oservir "serve"
lima "lima" d) Em posição antes de pausa, ocorriam no tupinambá todas as vogais,
rimão /rimãw/ "limão" os glides e as consoantes b, k, m, n, 11, r. O tupi do século XVIII revela
pratú "prato" tendência à redução do número de consoantes que podem ocorrer nessa
campína "campina" posição - basicamente a nasal velar 11 e os glides y, w; desaparecem as nasais
m, n; ocorrem esporadicamente k, r, e, mesmo assim, em flutuação com
fonnas em que são seguidas por vogais. Observemos os exemplos abaixo:
É possível que uma adaptação mais completa das palavras acima
produ.zisse formas do tipo: puníra, jandára, oserevire, rima. rimõ, parat11. Tupinambá Tupi-médio
kambma; embora, na verdade, não se possa ter certeza quanto à pronúncia mosém mosémo - moséme ''tirar''
real dessas palavras no século xvm.

-
tim time "plantar"
pên pêne "quebrar-se"
.c) ~onnas portuguesas transcritas literaJmente, sem adaptação al- kutúk "picar"
guma: Justiça, prometer, Santa Madre Igreja, serra. tropa, tinta, vidro, licen- memék memék - meméka "amolecer''
ça etc.
potár potár - potáre "querer''

·- ~-- ___.____________ - -----------


Referências bibliográficas
Língua Geral Amazônica·
ANCHIETA, José de. Ane da gramdtica da língua mais usada na costa a história de um esqueciment~
do Brasil. São Paulo: Loyola, Edição fac-similar.
Compêndio da doutrina cristã que se manda ensinar com preceito. Em José Ribamar Bessa Freire•
tupi, anônimo, 1740.
Dicionário da Língua Geral do Brasil. Manuscrito da Biblioteca da
Universidade de Coimbra, em português-tupi, pp. 237-353. Ora, a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito em
Dicionário português-brasiliano e brasiliano-português, Reimpressão comum, e tamb6m que todos tenham esquecido muitas coisas. Nenhum
da t • parte da edição de 1795 (Lisboa: Officina Patriarcal, ano cidadão francês sabe se é burgúndio, alano, taifale, visigodo; todo cidadão
MDCCXCV. Com licença, sem designação de autor), seguida da 2• francês precisa ter esquecido São Bartolomeu, os massacres do Sul no
parte, até então inédita, ordenada e prefaciada por Plinio M. da Silva século xm.
Ayrosa, na Revista do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Oficial (Renan, 1882)1
do Estado, 1934, tomo xvm.
Doutrina cristã - idioma da Lingoa Geral. Manuscrito, em tupi, anônimo,
_ 1750. Cópia eletrostática de manuscrito da Universidade de Coimbra, Em sua ânsia de imaginar urna comunidade nacional, a historiografia
FERREIRA FRANÇA. Crestomatia da lingoa bras{lica. Cópia impressa brasileira se esqueceu de dois fatores relacionados diretamente com a pers-
de manuscritos do século XVIII pertencentes ao Museu Britânico. pectiva deste trabalho:
Leipzig, 1859.
FIGUEIRA, Luiz. Arte da língua brasi1ica. Lisboa: Officina Patriarcal. • A construção de uma imagem de unidade territorial e política da
RODRIGUES, Aryon Dall'Igna. "Esboço de uma introdução ao estudo da nação brasileira retroativa ll 1500, esquecendo que Portugal teve
língua tupi". Logos, Curitiba, n. 13, pp. 43-58. duas colônias na América. autônomas entre si, com seus próprios
Orações e diálogos da doutrina cristã na Ungua brasflica. Cópia im- governadores, seu corpo de funcionários, sua administração, suas leis
pressa de manuscritos do Museu Britânico, do século XVIII, transcritos e sua dinâmica histórica e que essa unidade só começou com a
e anotados por Plinio M. da Silva Ayrosa. em Etnografia e língua adesão do Grão-Pará ao Brasil, em agosto de 1823, quase um ano
"
' tupi-guarani. USP, 1950. depois da Independência.

• A construção de uma representação de unidade lingüística, também


retroativa a 1500, com base no português, considerando-o desde
sempre como a única língua dos "brasileiros", Desta fonna, esque-
ceu a ampla difusão, no tempo e no espaço, da Língua Geral Ama-
zônica e da Língua Geral Paulista, hegemônicas durante grande parte
do período colonial, em extensas regiões do atual território nacional,
"de uso mais corrente, em verdade, do que o próprio português"
(Holanda, 1936, p. 90). A par disso, desconheceu infonnações sobre
o rico quadro de línguas indígenas, muitas das quais - cerca de 180 -
são faladas ainda boje, cumprindo diferentes funções sociais.

Universidade do Estado do R.fo de Janeiro/Pró-índio.


''O que é uma nação", apud Rocha, 1999, pp. 40-1.
Interessada nos aspectos administrativos, políticos e econômicos, a ção que merece ser destacada: Theodoro Sampaio (1901), com seu estudo
historiografia brasileira não se preocupou com a trajetória das línguas, sobre O tupi na geografia nacional; Sérgio Buarque de Holanda, em uma
tampouco com a análise de suas funções no processo de interação fudios/ das notas do capítulo quatro de Raízes do Brasil, revela alguns documentos
colonizadores, o que muito poderia revelar sobre os componentes das ma- importantes, inclusive inventários do Arquivo Pl1blico de São ~aulo s~bre a
trizes formadoras da nacionalidade. Desprezou o quadro multilíngüe, suas extensão da Língua Geral Paulista (Holanda, 1936); José Honóno Rodrigues,
mudanças e as pistas deixadas para a compreensão do processo histórico. no artigo "A vitória da língua portuguesa no Brasil colonial", publicado pela
Não acompanhou a evolução do contato interlingilístico e desconheceu 0 revista Humanidades, da UNB, em 1983, retoma a questão do ponto onde
lento processo de hegemonia da língua portuguesa, ignorando as fonnas e as a havia deixado Holanda em 1936, Todavia, ele reproduz a representação do
dificuldades de sua reprodução. Até mesmo a história da literatura - campo Brasil como um território unificado desde sempre e baseia toda sua argu-
onde a questão poderia ter sido problematizada - deixou de fora as mani- mentação num pressuposto questionado por alguns lingüistas, o de que "a
~estações literárias orais e escritas em língua geral e nas demais línguas língua geral indígena foi criada pelos jesuítas" (Rodrigues, ~ 983.' p. 3~). Os
mdfgenas, contentando-se, em alguns casos, em incorporar os estudos estudos recentes que oferecem mais informações sobre a htstóna soctal da
filológicos que, numa perspectiva lusófona, limitaram-se a dar conta dos língua geral vêm sendo realizados por lingüistas que, em alguns casos, aca-
empréstimos lexicais das lfuguas indígenas ao português falado no Brasil. baram logrando êxito em tarefas que competiam aos historiadores.
Na falta de estudos sobre as trajetórias das línguas, "este vazio é Um fato histórico incontestável é que a LGA foi a língua de comu-
substituído por observações marginais, que expressam muito mais os precon- nicação interna da Amazônia durante todo o período colonial e desempenhou
ceitos de seus ·autores sobre os grupos indígenas do que uma análise sobre funções que toda língua desempenha numa comunidade, o que retardou o
a questão lingüística colonial" (Barros, 1982, p. 1). Mesmo historiadores e processo de hegemonia do português. Contudo, a memória desse fato, frag-
cientistas regionais, de reconhecido saber em suas respectivas áreas de mentada nos poucos falantes que restam, perdeu-se. Os descendentes da-
estudo, trataram as línguas indígenas como "dialetos monossilábicos, incapa- queles que falavam a LGA sequer sabem de sua existência, tampouco que
zes de exprimir idéias universais" (Batista, 1976, p. 43). Como explicar, foi falada por seus antepassados.
então, que uma dessas línguas - e não o português - tenha sido hegemônica Uma primeira tentativa de explicação nos remete às políticas lingüís-
!, na Amazônia durante todo o período colonial? O mais importante historiador tica e educativa, marcadas por medidas repressivas. No entanto, medidas
da região justifica esse fato, atribuindo-o à "incapacidade dos índios" de similares foram tomadas em outras áreas da América Latina contra as
falarem "a doce língua de Camões" (Reis, 1940, p. 43). línguas nãcreuropéias e, enttetanto, essas línguas que foram reprimidas,
i Dessa forma, o discurso etnocêntrico colonial continua presente até fomentadas e novamente reprimidas sobreviveram na fala e na memória
mesmo nos planos acadêmico e institucional. Quanto às línguas gerais, coletiva. Já a LGA não só perdeu seus falantes, mas também seu espaço
na memória e sua dimensão histórica. Os mecanismos desse esquecimento
afora alguns trabalhos descritivos e lexicográficos e aJgumas coletâneas de Planejado merecem ser conhecidos mais a fundo, refletindo-se sobre como
textos, quase nada foi feito ainda de investigação sistemática sobre essas foram executadas as políticas de línguas na Amazônia.
línguas, nem do ponto de vista sócio-histórico, nem do lingüístico-histórico O quadro acima descrito suscita um conjunto de perguntas, as quais
(Rodrigues, 1996). podem ser agrupadas em quatro blocos: políticas de lfuguas; escolha da
língua que iria formar a nova comunidade de fala; reprodução das línguas;
Os trabalhos clássicos de registro da LGA, realizados a partir da funções que elas desempenharam e suas representações.
segunda metade do século XIX por Couto de Magalhães (1876), Barbosa
Rodrigues (1890), Brandão Amorim (1926), Stradelli (1929) e Hartt (1938), Políticas de llnguas na Amazônia
são conhecidos apenas pelos especialistas, encontrando-se banidos do cur-
rículo escolar. Um bom ponto de partida para discutir a política de línguas - no
Do ponto de vista histórico, no sécu1o XX três estudiosos remaram caso da Amazônia colonial - pode ser as reflexões de Anderson sobre o
contra a corrente do esquecimento, deixando, cada um deles, uma contribui- processo histórico ao qual estiveram submetidas as línguas da Europa e do
Sudeste Asiático. Esse autor considera que a natureza do
determinante em tal questão e estabelece uma diferença básic E 5,ado é Em meados do século XVllI. a guinada do Marquês de Pombal,
políticas de línguas dos reinos dinásticos e aquelas fonnu)ad a entre as quando proibiu a língua geral e obrigou o uso do português, parece não se
· · ·
nos Estados nac1onats, me utn o as I · d aí din astias que adquiriram " tnode r-
· as pelos incluir no modelo explicativo proposto por Anderson, sobretudo se levarmos
nacionaJ" (Anderson, 1983). um cunho em conta o fato de que, àquele momento, a LGA já havia solucionado os
No primeiro caso, as decis~ tomadas sobre as línguas foram problemas comunicativos na fonnação da comunidade de fala, composta por
ralmente produtos de um desenvolvJD1ento gradual, não deliberad ge- indivíduos provenientes de línguas aparentadas e não-aparentadas, transfor-
0
tico para não dizer casual. As línguas administrativas eram • pragmá- mando-se numa língua supra-étnica. Por outro lado, a elaboração de gramá-
' · "d . apenas lfngu
utilizadas pelo mundo ofic1al, devi Oà sua Própna conveniência 1· 1 ~ ticas e a imposição da língua escrita como parâmetro já haviam marcado 0
. . . . . n ema. Nao processo de normatização monopolizado pelos missionários, que, dessa for-
havia qualquer 1dé1a de se impor sistematicamente a língua às di
populações submetidas ao dinasta. Em reforço à sua tese ele ç versas ma, mantinham controle sobre a padronização. Tratava-se de "un caso de
lí ' o,ereçe Vários
exemplos sobre a ascensão de nguas vulgares ao status de ,1 , dominación lingüística de la propia lengua dei colonizado, en la que el colo--
poder'', como "um processo não mtenct · ·ona1, em grande medida mguas-do _ · ii.iz.ador impuso una nonna lingüistica en la cual él era su poseedor exclusivo"

jado", pelo menos no m1c10,- r ,
e que -•· u,au o
bedec1a . a nenhum ponto naodeplane-
. (Barros, 1982, p. 116),
nacionalista, já que a 1eg1tnru
' . 'dade das dºmastias nada tinha VISta Nesse quadro de reflexões, a escolha do tupinambá como língua
a ver com a
condição nacional (Anderson, 1983 , PP· 51-55 e 88). geral também merece destaque, pelo aparente paradoxo que parece encer~
No segundo caso, as decisões do moderno Estado nac,·o ai b. rar. Os estudos na área de sociolingüística têm reforçado a proposição de
· a1· n -on-
gado a enfrentar a ascensão de nac1on ismos lingüísticos hostis - e que uma língua se converte em língua nacional quando a vitória da circula-
intencionais, planej~, ~rodu~s de um "maquiavelismo consciente".~: ção mercantil unifica um território. Logo, a unificação lingüística de um dado
acordo com Anderson, a 11npos1ção de línguas oficiais em vários tad território guarda uma relação forte com a expansão comercial. O contrário -
.. (li& es os a fragmentação lingüística - teria uma explicação na ausência de um siste-
europeus adquina conotações lerentes, por exemplo do que ocone
, XVI, . • u com ma de intercâmbio econômico.
as Coroas ibéncas do século que aguun a partir de um pragmat·
·
comum inconsciente. As mastias d' · de p ortugal e Espanha fonnulati ismo No caso da América pré-colonial, as á.reas com menor diversidade
. · d "h' · ,, am
· suas
..,.· lingüística, ou com línguas de comunicação compartilhadas, são justamente
políticas não com o ob~etJvo e ispamzar OU "portugalizar", mas snnp 1es-
mente de converter pagão.se s~l~agens (Anderson, 1983, pp. 97_8). Portan- aquelas onde ficou comprovada a existência de uma rede comercial de
to, a motivação seria _mais religiosa do que política, Se essa hipótese for ampla difusão. É o caso, por exemplo, do mundo andino, estudado por
váJida para a Amatôma, então a formulação e a execução das polfn' d Alfredo Torero, onde uma língua - o quechua - irradiou-se por todo 0
'b ''ári c,,,e !mpério, num processo que estava em pleno desenvolvimento no momento
línguas recaem muito mais so re os m1ss1on os do que sobre os fun . ná
rios da administração colonial, deslocando, da Coroa portuguesa par c,Io • da chegada dos ~panhó~s. Torero afirma que a variedade do quechua que
&• aagre-
ja, 0 peso da anáJise que de~e ser 1e_1ta. Assim, a catequese pode ser acabou se expandindo fo1 aquela usada pelos chinchay da costa central e sul
enfocada como um importante mstrumento de reprodução das línm, . do Peru, os quais controlavam o comércio e as rotas Comerciais com a serra
las o-as, equi-
valente ao papel dese~~ado pe_ escolas nas sociedades modernas. (Torero, 1974). Proc:esso comparável foi observado com o nahuatl no Mé-
Porém, essa anáhse nao .conSJdera as motiv=;,;.,.s xico (Heath, 1977).
.......,.. de ordem ecooônuca .
na formulação e no ~votvunento das polfti~ de línguas, 0 que, sem Na Amazônia,·havia uma diversidade lingüística ainda maior, o que
º?
dúvida alguma, deve ser fe1t? caso da Amazônia, onde a força de trabalho pressupõe um comércio intertribal muito incipiente. No entanto, as infonna-
indígena era absolutamente indispensá.vel para a manutenção do sistema c ções dos primeiros cronistas que navegaram pelo rio Amazonas dão conta
lonial. Se essa afinnação for correta. urna análise da política de mão-de- bo- de uma_ rede de trocas, embora seja ela frágil, ao mesmo tempo em que
no período colonial e de suas . conseqüências
. na fonnação das alde,as' talove, ra proporcionam dados sobre a possibilidade de, com a ajuda de intérpretes de
possa trazer respostas muito JD8lS re1evantes sobre o destino das lín d0 língua tupi, se fazerem entender em grande parte da calha central do rio.
que um estudo limitado às decisões particularizadas sobre elas. guas Então, é ~ssí~el qu7 já existissem condições para a formação de uma língua
de comumcaçao regtonal antes da chegada do europeu, 0 que foi observado
pelos primeiros cronistas, cujos registros permitem estabelecer a correlação Processo de reprodução das Unguas
entre língua e comércio. Nesse caso, o sistema colonial, ao escolher 0
tupinambá como língua geral, utilizou um padrão de interação já existente, Em meados do século XVID, o jesuíta João Daniel presencwu no
ampliando seu raio de ação e dando-lhe outro direcionamento. Pará, um missionário aplicar a palmatória em uma índia nheengaíba, exi~in·
Neste ponto, é interessante questionar-se a natureza das instâncias do, para cessar o castigo, que ela dissesse "basta" em língua geral, batendo
deliberativas responsáveis pela formulação das políticas de línguas na Ama- "até lhe inchar as mãos e arrebentar o sangue" (Daniel, 1757-1776, l, p.
zônia colonial, assim como sua articulação com os interesses econômicos 272). Isto implica que não era uma língua conhecida, o que provavelmente
com os objetivos religiosos e com o projeto geopolítico da Coroa portuguesa'. era verdade para outros grupos, e que haveria uma identificação dessa
As políticas da catequese e de mão-de-obra estão relacionadas a essa po- língua com o "branco".
lítica de línguas. Entretanto, cabe perguntar se houve mesmo uma política A observação de que os índios homens migravam com mais faci-
deliberada, consciente e intencional em relação às línguas ou se as medidas lidade de suas línguas maternas que as mulheres parece guardar relação
que foram gradualmente tomadas eram apenas fruto da interação entre com a política de mão-de-obra. Dessa fonna, é pertinente discutir como se
portugueses e índios; ou ambas. É ainda importante procurar saber que tipo deu o processo de reprodução da LGA entre índios, mestiços, colonos
de razões foi acionado pelo discurso da Coroa portuguesa para fundamentar portugueses e missionários e como repercutiu entre crianças e adultos,
as medidas legais e procurar saber se o nacionalismo embasou a fonnulação homens e mulheres.
da política de línguas. Afinal, as mudanças básicas que essas políticas so- Os métodos de reprodução das línguas na Amazônia colonial fazem
freram e a periodização que pode ser estabelecida a partir delas fazem parte parte das ações institucionais. A catequese, a escola e a gramática elaborada
pelos jesuítas parecem ter desempenhado um papel relevante na difusão da
,,,, da história.
LGA, provavelmente de fonna diferenciada por setores: índios, mestiços e
\• Escolha da Ungua portugueses, e ainda segundo as famílias lingüísticas dos grupos indígenas.
1 Nesse sentido, cabe indagar o impacto da LGA escrita e suas conseqüências.
'I
'
Na América colonial, a escolha da língua para conquista e adminis- Entretanto, os procedimentos não-institucionais devem desempenhar
I'' tração passou por muitas oscilações. Com processos de unificação interna um papel importante - especialmente nos primeiros momentos - na fonna-
,!,·i não resolvidos, inclusive de natureza lingüística, os conquistadores espanhóis ção das primeiras comunidades de fala, no contato direto com os falantes da
i LGA. A questão mais instigante é entender como ocorreu a reprodução da
j viam no tipo de diversidade ,lingüística, na extensão territorial, e, sobretudo,
l na ininteligibilidade, a principal dificuldade de abordagem. Em quase todos os
territórios, após tentativas e fracassos de generalizar a implantação de uma
LGA após sua proibição. A documentação histórica existente sobre essa
questão é escassa e ainda não foi suficientemente trabalhada.
!íngua românica à diversidade de grupos, as escolhas recaíram em línguas
mdígenas, consideradas "mais gerais". Essas escolhas representam um pro- Diversas funções das línguas e suas representações
cesso flutuante, em meio a polêmicas em que se investiram na formação de
quadros "especializados" em estudar, descrever e produzir artes vocabulá- No variado quadro de línguas em contato e de diferentes tipos de
rios e catecismos dessas línguas. ' bilingüismo, algumas funções foram inicialmente distribuídas: as línguas indí-
Na Amazônia, parece ter sido mais conveniente para os interesses genas pennaneceram durante um tempo como línguas de comunicação
col.oniais escolher o tupinambá e não outra língua. A Coroa portuguesa intragrupal; a LGA assumiu a função de comunicação intergrupal, enquanto
estimulou a expansão da LGA durante mais de um século e, a partir da o português era a língua da administração, de comunicação com a metrópo-
segunda metade do século XVIlI, proibiu seu uso, ado~do medidas para le. Esse quadro alterou-se em diversos momentos, exigindo um mapeamento
portugalizar a região. No entanto, a língua portuguesa só se tomou hegemônica da situação.
na Amazônia muito mais tarde, o que implica o fracasso dessa tentativa de Foram estabelecidas tentativas de periodização desse processo, as
portugalização. Por que esse processo foi tardio em relação ao próprio quais são úteis para estabelecer correlações com outros fatos históricos.
Estado do Brasil e em relação à América Latina? Todavia, algumas perguntas em relação a outras questões ainda ficam sem
respostas. Uma delas diz respeito à construção de identidade nessa situação século (1826-1873), cerca de 24 estudos e coletâneas elaborados no Brasil
de línguas em contato, em que a violência está presente na relação entre são unânimes em chamar a atenção para a relação língua/nação, conside-
elas. Cabe-se perguntar em que medida essas línguas serviram de instru- rando a prim.eira como símbolo da segunda, embora o sintagma "identidade
mento para transmitir experiências históricas de uma geração a outra, con- nacional" não apareça nesses estudos, que sequer empregam o substantivo
tribuindo para a preservação da memória coletiva. Do ponto de vista "identidade" de fonna mais freqüente (Zilbennan, 1999).
sociolingüfstico, cabe ainda perguntar por que na Amazônia brasileira não se A própria possibilidade de existência de uma literatura nacional já se
consolidou um processo de crioulização, do tipo encontrado na Amazônia fundamentou na existência de uma língua nacional. Por isso, a comparação
holandesa ou um tipo de bilingüismo generalizado, à semelhança do que entre as línguas faladas no Brasil e em Portugal tomou-se um tema atrativo
ocorreu no Paraguai, sendo que uma das línguas deriva de uma língua geral. para os intelectuais românticos. Com a Independência do Brasil, coloca-se
Essas são perguntas formuladas tendo como ponto de partida 0 uma necessidade urgente de assinalar as diferenças em relação a Portugal,
manuseio de algumas fontes primárias ê secundárias e determinadas refle- nos campos da língua e da literatura, o que se tomava problemático porque
xões teóricas provenientes de diferentes disciplinas. Várias dessas indaga- a "língua materna", na verdade, era a língua do colonizador (Rocha, 1999,
ções seguramente não têm respostas, mas podem ser úteis para orientar a p. 49). E O grande critério diferenciador vai ser, no discurso de José de
busca de dados e de documentação nos arquivos. Neste trabalho, gostaría- Alencar,
mos de ressaltar as questões referentes à produção literária: quais as fim-
ções sociais das manifestações literárias em LGA? Qual a extensão da o conhecimento da lfngua indlgena (assim, genérica), língua bárbara de
produção literária com textos bilfngües? natureza primitiva[ ... ]: é nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro[ ... ],
que deve traduzir em sua língua as idéias, embora rudes e grosseiras, dos
Língua, literatura e identidade índios (apud Henriques, 1999, pp. 74 e 81).

O que os olhos são para o amante - aqueles olhos comuns especiais, A fonte proposta por José de Alencar é uma língua imaginada como
com que ele, ou ela, nasceu-, a Ifngua é para o patriota - qualquer que supra-étnica, falada por um índio genérico, que desconsidera diferenças.
seja a língua que a história tenha feito sua língua materna. Por meio Alencar acaba reconstruindo o discurso ideológico que distingue entre lín-
dessa língua, que se encontra no colo da mãe e se abandona apenas no guas "civilizadas" e "bárbaras", "superiores" e "inferiores~', transferindo .esses
túmulo, reconstituem-se os passados, imaginam-se solidariedades, so- julgamentos de valor aos falantes dessas línguas. Tal discurso, a partir das
nham-se futuros. teorias Jingüísticas do século XX, ficou restrito ao senso comum, uma vez
(Andersen, 1983, p. 168) que, na lingüística, não existem elementos intralingüísticos para determinar
esses critérios de diferenciação. ·
A relação língua/literatura tem merecido diferentes abordagens. A · A proposta de Alencar, que era sensível às fontes orais e populares
questão da língua e da identidade nacional, por exemplo, só muito recente- e interessava-se em legitimá-las, não impede que se estabeleça uma relação
mente se tomou foco de preocupação de diversas disciplinas como a antro- inferida de seu discurso: "línguas bárbaras" (ágrafas, de tradição oral) não
pologia, a história, a sociolingüística, a etnotingüística e as ciências políticas. são capazes de produzir manifestações literárias, por serem '.'rudimentares"
Porém, desde o século XIX, ela vem sendo objeto de reflexão dos estudos e "incompletas"; no limite, servem apenas de fontes para ser "traduzidas"
literários, particularmente de um de seus gêneros mais constantes - a his- por "línguas civilizadas" (escritas). Dessa forma, as sociedades orais aca-
tória da literatura -, tanto na Europa como no Brasil, e isto porque língua e bam sendo classificadas como carentes de escrita, quando poderiam muito
literatura desempenharam uma função efetiva no projeto de construção de bem ser tipificadas como relativamente independentes da escrita, por have-
nacionalidades (.Rouanet, 1999; Jobim, 1997; Anderson, 1983). rem desenvolvido com extrema eficiência as potencialidades da oralidade.
Um balanço da historiografia romântica da literatura brasileira do O preconceito em relação às línguas indígenas presente no discurso
século XIX, rea1izado por Zilberman, mostra como a produção literária va- fundador da nacionalidade brasileira estende-se às manifestações literárias
lorizou a língua como elemento de identidade nacional. Num espaço de meio orais, consideradas como tecnicamente subdesenvolvidas e culturalmente
Lfnp. GeralAmazõnica: a história de um esq:J8cimento

atrasadas, ficando, assim, fora da história da literatura nacional. Esse discurso


só continua sendo hegemônico ainda hoje, entre outras razões, devido ao lín vernácula, insubstituível na comuni-
gem européia concorre com ~ma ladgu\m geral à esfera da intimidade, da
desconhecimento da trajetória da língua potruguesa e das línguas indígenas em
cação de certos ~onteúd~~ vmcu os 'tária da religião e dos mitos. Aqui,
solo brasileiro. Daí a importância de uma história das línguas que problematize
afetividade, da vida f~1har e -co7;:.mas 'orais do tipo da que foi coletada
as relações com as manifestações literárias, sejam escritas ou orais. podemos enquadrar manifestaçoes 1
A introdução da escrita alfabética por pane dos europeus no mo- por eouto de Magalhães no Pará (Pacheco, 1992).
mento da conquista, longe de constituir uma simples mudança técnica, sig-
nificou a inauguração de uma prática cultural inédita, que afetou de maneira Couto de Magalhães e o nbeengatu
drástica todo o continente, onde predominava a oralidade. Nessa perspecti-
va, Carlos Pacheco, em seu trabalho "La Comarca Oral", defende a exis- ...,. andei um passarinho, / Patuá miri pupé
~em ·ué2
tência de um campo novo para os estudos literários: campo das "literaturas Pintadinho de amarelo, / Iporanga ne ,a .
alternativas", compostas por um conjunto sumamente numeroso e Variado de
textos antigos e modernos. Ainda não foi feita uma abordagem sobre a d realizaram as primeiras via-
. No século XVI'. quan o os europe~am uma enonne diversidade
trajetória das línguas na Amazônia colonial que buscasse estabelecer uma 6 . pelo no Amaz.onas, encon . -
gens explorat nas . grau zero de intercomumcaçao.
relação com esse campo da "literatura alternativa", entendendo que o ima- adas gião mmtas de1as com . .
ginário da lfngua se sustenta na existência de um conjunto de obras que de línguas fal . na re . ' Loukotka (l 96S), dentro do temtóno que
Segundo classificação fei.ta por. . eram faladas cerca de 718 línguas,
constitui hoje ~ Amazôma brasl:listicos: tupi, karib, aruak, pano, tukan?,
contribuem para lhe proporcionar coesão e que as manifestações literárias
desempenham um papel capital na delimitação social das línguas.
pertencentes a difere~tes tron~os güA Rodrigues apontam a existência
gê, entre outros. Projeções feitas P?rf .~~: conquista européia da região
Esse conjunto de textos, caracterizado pela interculturalidade, define-
se pelo seu vínculo com fontes orais tradicionais de raiz indígena ou mestiça, í de pelo menos 495 línguas no m c1
com todas as implicações retóricas e culturais que decorrem daí. Pacheco 25
destaca três enfoques possíveis: (Rodrigues, 2000, P· ): . n tituiu um obstáculo real para a comunica-
Esse quadro multilíngüe ~o s o o padre Antônio Vieira a usar o
ção dos portugueses co~ os índ1~~de rio Babel. A confusão dos por- .
J) O estudo do sistema de textos denominado "literatura testemu- O
mito bíblico para denominar A rtadores de uma língua européia
nhal", cuja autoria se deve geralmente a escritores profissionais ou a cien- I
tugueses se devia ao fato ~e que e e~ eramli _pobil.dade à realidade cultural e eco-
tistas sociais, mas sempre com base em coleta com infonnantes qualificados, . - ue nao davam mte g1 1 .fi
tentando preservar na obra resultante a estrutura narrativa e o estilo peculiar com categon~ q . nas falavam línguas que haviam class1 i-
lógica da regiao. Já os povos mdíge ôni atribuindo-lhe significados. As
de sua fonte oral. Aqui, poderíamos situar os numerosos relatos recolhidos
cado e explicado o complexo mundo amaz .ê'°·.., milenares preservadas pela
por Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues, Strade!Ji e Amorim, no século . h ·am codificado expen nc1 .
XIX, ou a recente publicação da autoria de dois índios Desana do Alto Rio línguas mdfgenas av1 hamacl etnociências - botânica, zoologia,
tradição oral, tanto no campo ~as c,. iã : - """nto nas manifestações lite-
Negro - Panlon Kumu e Kenhiri -, recolhidos por Berta Ribeiro, intitulada ed. . farmácia, astrononua, re 1g o . ,-· de .
"Antes o mundo não existia"; m 1cma, . . . denominadas pelos cronistas mitos,
rárias, ou seJa, de diferentes ~vaspoesia, cantos, baladas, provérbios.
fábulas, lendas, palavras anceSlra.J.s,
2) A análise de diversas formas de apropriação e elaboração estética
dos elementos provenientes de fontes míticas indígenas ou africanas em
-----~.e---::,;- Couto de Magalhlies, em 1874, quando a1n~ era cantada
obras como as do poeta amazonense Elson Farias, ou de Miguel Angel Canção ~colhida no. Pará,~ um texto bilíngtle _ alternando simetncamente. por.
Asturias e José Maria Arguedas, entre outros; com muita 1..fteqDanc1a. Trata se de .,..,_ , rima fazem parte constitutiva da unidade
,__, em que a mauca a . tadinho
tuguês e gua &'""" -, ·nho dentro de uma caixa pequena, pm
textual. Significa: "'Mandei-te umv:;!anCou~ de Magalhães ouviu outras canções com
3) O estudo das diversas soluções encontradas para o problema do de amarelo e tão formoso como · a um período relativamente recente, em
bilingüismo e da diglossia em áreas socioculturais, onde uma língua de ori- textos bilíngUes e afirmou que ! : = : a m em situação de biling11ismo, sem que
que
houvesse ~l~ínio
ambas.,,....., ... :U:!:"ou de outra (Magalhães, 1876, P· 81).
Por um lado, o colonizador precisava apropriar-se de alguns desses forças dos remos indígenas - e não em barcos à vela_-, alcançando até
saberes para sobreviver na região, o que exigia um nível básico de comu- mesmo áreas das atuais Amazônias venezuelana, colombiana e peruana. Sua
nicação com os índios. Por outro, a viabilidade do sistema colonial, apoiado ramática foi descrita pelos jesuítas preocupados em desenvolver algumas
quase exclusivamente no trabalho compulsório indfgena, dependia do estat,e.. :onnas institucionais para reproduzi-la No período colonial, p~u-se °:85ª
lecimento de formas de comunicação que assegurassem eficazmente a re- l'ngua documentação com a finalidade de catequese: catecismos, oraçoes,
produção do sistema. h'.mários e sermões·' também nos séculos XIX e XX foi ·recolhido material de
eonunua
· sendo
Os dados demográficos mostram que, anualmente, sobretudo nas ·.~a
c aráter l11.C1a.110,
como mitos

poemas e outras narrauvas.
• fi
primeiras décadas, milhares de índios eram retirados de suas aldeias de falada ainda hoje por uma população restrita à área do no Negro, onde tcou
origem, transferidos de seus tenitórios e integrados ao chamado sistema de conhecida, a partir do século XIX, como nheengatu. Recentemente, algu~s
aldeias de repartição. Nesse caso, eram considerados livres, sendo reparti- lingüistas passaram a usar a denominação técnica de. Língua Geral Ai:na.zo-
dos, durante alguns meses do ano, aos colonos, aos missionários e à Coroa nica (LGA), para distingui-la da Língua Geral Paubsta (LGP) (Rodrigues,
portuguesa, para quem eram obrigados a fornecer sua força de trabalho; ou
1996, p.10). . · ad b
então eram inseridos como escravos diretamente na produção, num regime Com a Independência, as duas colômas fo~ urufic as so o
de escravidão que vigorou legalmente até meados do século XVID, sendo nome de Brasil e a língua portuguesa já era hege~m~ :m grande parte
submetidos diretamente a seus proprietários (Freire, 1991). Em ambos os do território da nova unidade política, continuando mmontária na outra parte.
casos, esses índios se viam colocados em situação de contato com outras Segundo o historiador José Honório Rodrigues,
línguas indígenas, com o português e, mais tarde, com línguas africanas.
Para o colono mandar e o índio obedecer, para o missionário catequizar e a vitória real da língua portuguesa no Brasil só foi registrada 300 anos
disciplinar a força de trabalho, era imprescindível a criação de uma nova depois da chegada dos descobridores, quando os brasileiros falaram pela
comunidade de fala. primeira vez sua própria lfngua, em reunião p6blica, nos debates da Assem•
Nessas condições históricas, sociais e lingüísticas, a nova comunida- bléia Constituinte de 1823 (Rodrigues, 1983, p. 21),
de de fala não foi construída, como ocorreu em quase todos os sistemas
coloniais embasados na língua do colonizador, no caso, o português. Foi uma Quanto ao caso específico da Amazônia, existem evidências de que
língua indígena que acabou constituindo-se como norma de uso nas relações ad são do Grão-Pará à Independencia do Brasil, em agosto de 1823,
coloniais. O tupinambá, falado na costa do Salgado até a boca do rio Tocantins, a e 1ac· ai
incorporou ao novo estado um expressivo contingente popu , ton _ que, em
foi adotado pelos portugueses como segunda língua e imposto, também como sua maioria, não falava o português como língua materna, sttuaçao que se
segunda língua, a povos indígenas de outras famílias lingüísticas, criando, nos prolongaria ainda por algumas décadas (Freire, 1983, p. 49). Coube, P~~-
dois casos, uma situação de bilingiiismo, cuja extensão precisa ser melhor
to, ao Estado neobrasileiro a tarefa de completar o processo de ~altzaçao
ávaliada. Após algumas gerações, foi-se transfonnando em língua materna da Amazônia. A última pergunta tem a ver com esse processo, isto é, por
da população mestiça e cabocla, dos índios das aldeias de repartição con-
que a portugalização implicou o apagamento dessa memória?
troladas pelos missionários, e até mesmo de muitos filhos de portugueses e
de escravos de origem africana, ficando conhecida então pelo nome de
língua geral. Depois de passar por um processo progressivo de "reajusta- Referências bibllogrificas
mento", acabou tomando-se uma língua diferente do próprio tupinambá, que
AMORIM, Antônio Brandão de. Lendas em nheengatu e em português.
continuou sendo falado pelos índios até meados do século XVIll, segundo o
Manaus: FundoF.ditocial ACA, 1987 [1926].
lingüista Aryon Rodrigues (Rodrigues, 1996, p. 10). Dessa fonna, tomou-se
ANOERSON, Benedict. Nação e consci2ncia nacional. São Paulo: Ática,
gradualmente uma língua supra-étnica, válida para todas as etnias que eram
compulsoriamente integradas ao sistema colonial, percorrendo uma trajetória 1989 [1983].
BARROS, Maria Cândida D, M. PoUtica de lenguaje en Brasil ~olonial
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