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O mistério do 'genoma obscuro' que compõe 98% do nosso DNA

Author,David Cox
BBC Future
17 abril 2023

Em abril de 2003, o sequenciamento completo do "livro da vida" codificado no


genoma humano foi declarado "encerrado", após 13 anos de trabalho. O mundo estava
repleto de expectativas. Esperava-se que o Projeto Genoma Humano, depois de consumir
cerca de US$ 3 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões), trouxesse tratamentos para doenças
crônicas e esclarecesse todos os detalhes determinados geneticamente sobre as nossas
vidas.
Mas, enquanto as entrevistas coletivas anunciavam o triunfo desta nova era de
conhecimento biológico, o manual de instruções para a vida humana já trazia consigo
uma surpresa inesperada. A convicção que prevalecia na época era que a ampla maioria
do genoma humano consistiria de instruções para a produção de proteínas – os "tijolos"
que constroem todos os organismos vivos e desempenham uma imensa variedade de
papéis nas nossas células e entre elas.
E, com mais de 200 tipos diferentes de células no corpo humano, parecia fazer
sentido que cada uma delas precisasse dos seus próprios genes para realizar suas funções
necessárias. Acreditava-se que o surgimento de conjuntos exclusivos de proteínas fosse
vital na evolução da nossa espécie e dos nossos poderes cognitivos. Afinal, somos a única
espécie capaz de sequenciar o nosso próprio genoma.
Mas o que descobrimos é que menos de 2% dos três bilhões de letras do genoma
humano são dedicados às proteínas. Apenas cerca de 20 mil genes codificadores de
proteínas foram encontrados nas longas linhas de moléculas que compõem nossas
sequências de DNA.
Os geneticistas ficaram assombrados ao descobrir que os números de genes
produtores de proteínas dos seres humanos são similares a algumas das criaturas mais
simples do planeta. As minhocas, por exemplo, têm cerca de 20 mil desses genes,
enquanto as moscas-das-frutas têm cerca de 13 mil. Foi assim que, do dia para a noite, o
mundo científico passou a enfrentar uma verdade bastante incômoda: grande parte do
nosso entendimento sobre o que nos torna seres humanos talvez estivesse errada.
"Eu me lembro da incrível surpresa", afirma o biólogo molecular Samir Ounzain,
principal executivo da companhia suíça Haya Therapeutics. A empresa procura utilizar
nosso conhecimento sobre a genética humana para desenvolver novos tratamentos para
doenças cardiovasculares, câncer e outras enfermidades crônicas. "Aquele foi o
momento em que as pessoas começaram a se perguntar ‘será que temos um conceito
errado do que é a biologia?'"
Os 98% restantes do nosso DNA ficaram conhecidos como matéria escura, ou o
genoma obscuro – uma enorme e misteriosa quantidade de letras sem propósito ou
significado óbvio. Inicialmente, alguns geneticistas sugeriram que o genoma obscuro
fosse simplesmente DNA lixo, uma espécie de depósito de resíduos da evolução humana.
Seriam os restos de genes partidos que deixaram de ser relevantes há muito tempo.
Mas, para outros, sempre ficou claro que o genoma obscuro seria fundamental
para nosso entendimento da humanidade. "A evolução não tem absolutamente
nenhuma tolerância com o lixo", afirma Kári Stefánsson, o principal executivo da empresa
islandesa deCODE Genetics, que sequenciou mais genomas inteiros do que qualquer
outra instituição em todo o mundo. Para ele, "deve haver uma razão evolutiva para
manter o tamanho do genoma".
Duas décadas se passaram e, agora, temos os primeiros indícios da função do
genoma obscuro. Aparentemente, sua função primária é regular o processo de
decodificação, ou expressão, dos genes produtores de proteínas. O genoma obscuro
ajuda a controlar o comportamento dos nossos genes em resposta às pressões
ambientais enfrentadas pelo nosso corpo ao longo da vida, que vão desde a alimentação
até o estresse, a poluição, os exercícios e a quantidade de sono. Este campo é conhecido
como epigenética.
Ounzain afirma que gosta de pensar nas proteínas como o hardware que compõe
a vida. Já o genoma obscuro é o software, que processa e reage às informações externas.
Por isso, quanto mais aprendemos sobre o genoma obscuro, mais compreendemos a
complexidade humana e como nos tornamos quem somos hoje. "Se você pensar em nós
enquanto espécie, somos mestres da adaptação ao ambiente em todos os níveis", afirma
Ounzain. "E essa adaptação é o processamento das informações." "Quando você retorna
à questão sobre o que nos faz ser diferentes de uma mosca ou de uma minhoca,
percebemos cada vez mais que as respostas estão no genoma obscuro", segundo ele.
Os transposons e o nosso passado evolutivo
Quando os cientistas começaram a examinar o livro da vida, em meados dos anos
2000, uma das maiores dificuldades foi o fato de que as regiões não codificadoras de
proteínas do genoma humano pareciam estar repletas de sequências de DNA repetidas,
conhecidas como transposons. Essas sequências repetitivas eram tão onipresentes que
compreendiam cerca da metade do genoma em todos os mamíferos vivos.
"A própria compilação do primeiro genoma humano foi mais problemática devido
à presença dessas sequências repetitivas", afirma Jef Boeke, diretor do centro médico
acadêmico chamado Projeto Matéria Escura da Universidade Langone de Nova York, nos
Estados Unidos. "Analisar simplesmente qualquer tipo de sequência é muito mais fácil
quando se trata de uma sequência exclusiva."
Inicialmente, os transposons foram ignorados pelos geneticistas. A maior parte
dos estudos genéticos preferiu concentrar-se puramente no exoma – a pequena região
codificadora de proteínas do genoma. Mas, ao longo da última década, o
desenvolvimento de tecnologias mais sofisticadas de sequenciamento de DNA permitiu
aos geneticistas estudar o genoma obscuro com mais detalhes.
Em um desses experimentos, os pesquisadores excluíram um fragmento
específico de transposon de camundongos, o que fez com que a metade dos filhotes dos
animais morresse antes do nascimento. O resultado demonstra que algumas sequências
de transposons podem ser fundamentais para a nossa sobrevivência.
Talvez a melhor explicação sobre o motivo da existência dos transposons no nosso
genoma possa ser o fato de que eles são extremamente antigos e datam das primeiras
formas de vida, segundo Boeke. Outros cientistas sugeriram que eles provêm de vírus
que invadiram o nosso DNA ao longo da história humana, antes de receberem
gradualmente novas funções no corpo para que tivessem algum propósito útil.
"Na maioria das vezes, os transposons são patógenos que nos infectam e podem
infectar células da linha germinal, [que são] o tipo de células que transmitimos para a
geração seguinte", afirma Dirk Hockemeyer, professor assistente de biologia celular da
Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. "Eles podem então ser
herdados e gerar integração estável ao genoma", segundo ele.
Boeke descreve o genoma obscuro como um registro fóssil vivo de alterações
fundamentais no nosso DNA que ocorreram há muito tempo, na história antiga. Uma das
características mais fascinantes dos transposons é que eles podem se mover de uma
parte do genoma para outra – um tipo de comportamento que gerou seu nome – criando
ou revertendo mutações nos genes, às vezes com consequências extraordinárias.
O movimento de um transposon para um gene diferente pode ter sido
responsável, por exemplo, pela perda da cauda na grande família dos primatas, fazendo
com que a nossa espécie desenvolvesse a capacidade de andar ereta. "Aqui você tem
esse evento único que teve enorme efeito sobre a evolução, gerando toda uma linhagem
de grandes primatas, incluindo a nós", segundo Boeke.
Mas, da mesma forma que nossa crescente compreensão sobre o genoma
obscuro explica cada vez mais sobre a evolução, ela pode também esclarecer o motivo
do surgimento das doenças. Ounzain ressalta que, se olharmos para os estudos de
associação genômica ampla (GWAS, na sigla em inglês), que pesquisam as variações
genéticas entre grandes quantidades de pessoas para identificar quais delas são
relacionadas a doenças, a grande maioria das variações ligadas a doenças crônicas, como
o mal de Alzheimer, diabete e doenças cardíacas, não está nas regiões de codificação de
proteínas, mas sim no genoma obscuro.

O genoma obscuro e as doenças


A ilha de Panay, nas Filipinas, é mais conhecida pelas suas cintilantes areias
brancas e pelo fluxo regular de turistas. Mas este local idílico esconde um segredo trágico.
Panay abriga o maior número de casos existentes no mundo de um distúrbio dos
movimentos incurável, chamado distonia-parkinsonismo ligado ao X (XDP, na sigla em
inglês).
Como no mal de Parkinson, as pessoas com XDP desenvolvem uma série de
sintomas que afetam sua capacidade de andar e reagir rapidamente a diversas situações.
Desde a descoberta do XDP nos anos 1970, a doença só foi diagnosticada em
pessoas de ascendência filipina. Este fato permaneceu um mistério por muito tempo, até
que os geneticistas descobriram que todos esses indivíduos possuem a mesma variante
exclusiva de um gene chamado TAF1.
O início dos sintomas parece ser causado por um transposon no meio do gene,
que é capaz de regular sua função de forma a causar prejuízo ao corpo ao longo do
tempo. Acredita-se que esta variante genética tenha surgido pela primeira vez cerca de
dois mil anos atrás, antes de ser transmitida e se estabelecer na população.
"O gene TAF1 é um gene essencial, ou seja, ele é necessário para o crescimento e
a multiplicação de todos os tipos de células", afirma Boeke. "Quando você ajusta sua
expressão, você tem esse defeito muito específico, que se manifesta como uma horrível
forma de parkinsonismo."
Este é um exemplo simples de como algumas sequências de DNA do genoma
obscuro podem controlar a função de diversos genes, seja ativando ou reprimindo a
transformação de informações genéticas em proteínas, em resposta a indicações
recebidas do ambiente.
O genoma escuro também fornece instruções para a formação de diversos tipos
de moléculas, conhecidas como RNAs não codificantes. Eles podem desempenhar
diversos papéis, desde ajudar a fabricar algumas proteínas, bloquear a produção de
outras ou ajudar a regular a atividade genética.
"Os RNAs produzidos pelo genoma obscuro agem como os maestros da orquestra,
conduzindo como o seu DNA reage ao ambiente", explica Ounzain. E estes RNAs não
codificantes, agora, são cada vez mais considerados a ligação entre o genoma obscuro e
diversas doenças crônicas.
A ideia é que, se fornecermos sistematicamente os sinais errados para o genoma
obscuro com o nosso estilo de vida – por exemplo, com o fumo, má alimentação e
inatividade –, as moléculas de RNA produzidas por ele podem fazer com que o corpo
entre em um estado de doença, alterando a atividade genética, de forma a aumentar as
inflamações do corpo ou promover a morte celular.
Acredita-se que certos RNAs não codificantes podem desligar ou aumentar a
atividade de um gene chamado p53, que age normalmente para evitar a formação de
tumores.
Em doenças complexas, como a esquizofrenia e a depressão, todo um conjunto
de RNAs não codificantes pode agir em sincronia para reduzir ou aumentar a expressão
de certos genes. Mas o nosso reconhecimento cada vez maior da importância do genoma
obscuro já está trazendo novos métodos de tratamento dessas doenças.
A indústria de desenvolvimento de remédios costuma se concentrar nas
proteínas, mas algumas empresas estão percebendo que pode ser mais eficaz tentar
interromper os RNAs não codificantes, que controlam os genes encarregados desses
processos. No campo das vacinas contra o câncer, por exemplo, as empresas realizam
sequenciamento de DNA em amostras de tumores dos pacientes para tentar identificar
um alvo adequado a ser atacado pelo sistema imunológico. E a maioria dos métodos
concentra-se apenas nas regiões codificantes de proteínas do genoma.
Mas a empresa alemã de biotecnologia CureVac é pioneira em um método de
análise das regiões não codificantes de proteínas, na esperança de encontrar um alvo que
possa interromper o câncer na fonte. Já a empresa de Ounzain, a Haya Therapeutics,
atualmente está realizando um programa de desenvolvimento de drogas dirigido a uma
série de RNAs não codificantes que dirigem a formação de tecidos de cicatrização, ou
fibrose, no coração – um processo que pode causar insuficiência cardíaca. Uma das
esperanças é que este método possa minimizar os efeitos colaterais decorrentes de
muitos remédios de uso comum.
"O problema quando medicamos as proteínas é que existem apenas cerca de 20
mil delas no corpo e a maioria é expressa em muitas células e processos diferentes, que
não têm relação com a doença", afirma Ounzain. "Mas a atividade do genoma obscuro é
extraordinariamente específica. Existem RNAs não codificantes que regulam a fibrose
apenas no coração, de forma que, ao medicá-los, temos um remédio potencialmente
muito seguro", explica ele.
O desconhecido
Paralelamente, parte desse entusiasmo precisa ser atenuada pelo fato de que, em
termos de compreensão do funcionamento do genoma obscuro, apenas acabamos de
arranhar a superfície. Sabemos muito pouco sobre o que os geneticistas descrevem como
regras básicas: como essas sequências não codificantes de proteínas comunicam-se para
regular a atividade genética? E como exatamente essas teias complexas de interações se
manifestam por longos períodos de tempo até se tornarem traços de doenças, como a
neurodegeneração observada no mal de Alzheimer?
"Estamos ainda no começo", afirma Dirk Hockemeyer. "Os próximos 15 a 20 anos
ainda serão assim – [iremos] identificar comportamentos específicos em células que
podem gerar doenças e, em seguida, tentar identificar as partes do genoma obscuro que
podem estar envolvidas na modificação desses comportamentos. Mas, agora, temos
ferramentas para nos aprofundar nisso, algo que antes não tínhamos."
Uma dessas ferramentas é a edição genética.
Jef Boeke e sua equipe estão atualmente tentando aprender mais sobre a forma
de desenvolvimento dos sintomas de XDP, reproduzindo a inserção de transposons
genéticos TAF1 em camundongos. No futuro, uma versão mais ambiciosa deste projeto
poderá tentar compreender como as sequências de DNA não codificantes de proteínas
regulam os genes, construindo blocos de DNA sintético a partir do zero, para transplante
em células de camundongos.
"Estamos agora envolvidos em pelo menos dois projetos, usando um enorme
pedaço de DNA que não faz nada e tentando instalar nele todos esses elementos", afirma
Boeke. "Colocamos um gene ali, uma sequência não codificante em frente a ele e outra
mais distante, para ver como esse gene se comporta", explica ele. "Agora, temos todas
as ferramentas para realmente construir pedaços do genoma obscuro de baixo para cima
e tentar entendê-lo."
Hockemeyer prevê que, quanto mais aprendermos, mais surpresas inesperadas o
livro genético da vida continuará a nos apresentar, da mesma forma que ocorreu quando
o primeiro genoma foi sequenciado, 20 anos atrás.
Para ele, "as questões são muitas. O nosso genoma ainda está evoluindo ao longo
do tempo? Conseguiremos decodificá-lo totalmente?"
"Ainda estamos nesse espaço escuro em aberto que estamos explorando e
existem muitas descobertas realmente fantásticas à nossa espera."

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