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A receita de Deus

A síntese do primeiro cromossomo suscita as questões mais profundas da biologia, mas


também abre uma enxurrada de aplicações práticas.

Javier Sampedro

Todo avanço científico expõe mais perguntas que respostas, e a síntese do primeiro
cromossomo de um organismo superior não é uma exceção. Será que é possível enviar um
genoma a outro planeta para que nele surja a vida? Será que a vida é um texto (agcattgcaa…),
como o é uma novela? Se for, saberemos escrevê-lo? E se soubermos, vamos querer fazer
isso? A solução da natureza é a melhor possível, ou a força da razão pode superá-la? E em que
sentido, para que não seja inaceitável? Poderemos reconstruir a partir de seu genoma espécies
extintas como o mamute e o homem de neandertal? E o que poderemos então fazer com
nossa própria espécie, o Homo sapiens? Não temam: nenhum cientista em atividade – ou pelo
menos nenhum que esteja solicitando financiamento a um organismo público – responderá a
essas perguntas. Nem sequer admitirá que façam sentido. Mas o leitor já saberá que o que as
pessoas dizem não tem muito a ver com o que pensam. E acreditem: não há um só geneticista
ou biólogo molecular no planeta que não tenha pensado nessas coisas. O doutor Victor
Frankenstein ataca de novo? Não. Tentemos ver um pouco além dos lugares-comuns. A
questão sobre se é possível sintetizar vida em laboratório não só tem sentido, como pode ser
considerada um objetivo central da biologia. Depois de uma tradição milenar de pensamento
vitalista – a doutrina (ou, melhor dizendo, a inércia intelectual) que vê a vida insuflada de
alguma substância virtual ou incognoscível que a faz fundamentalmente distinta da matéria
inanimada –, a biologia só pôde amadurecer como ciência refutando essa ideia. E, em grande
parte, os biólogos continuam fazendo isso, como consideram ser sua obrigação. Talvez o
grande pioneiro dessa linha de investigação seja Craig Venter, mais conhecido como artífice da
metade privada do Projeto Genoma. Venter foi o primeiro cientista a abordar, já nos anos 90, a
questão fundamental do genoma mínimo: partindo de um organismo unicelular chamado
micoplasma – que tem um dos menores genomas conhecidos –, ele foi desativando os genes
um a um para verificar qual é a mínima informação possível capaz de sustentar a vida, o texto
básico que nos diferencia da matéria inerte. Também foi Venter quem conseguiu em 2010
sintetizar o genoma completo de uma bactéria, a Mycoplasma mycoides JCVI-syn1.0, e com
isso o primeiro organismo autônomo criado em laboratório – “a partir de produtos químicos
em frascos”, como ele mesmo fez questão de ressaltar com sua eloquência característica. Até
então tinham sido produzidos genomas de vírus, que não são seres vivos autônomos, pois
precisam infectar uma célula (humana ou bacteriana) para reproduzir-se. O avanço da biologia
sintética não obedece a motores filosóficos nem ideológicos, mas sim a motivações tão
pragmáticas quanto possam ser as de um projeto científico de elite. Como explica o biólogo 3
CURSO PRÉ-UNIVERSITÁRIO POPULAR – UFJF 2014 Srinivasan Chandrasegaran, o principal
objetivo de sua disciplina é redesenhar, ou “remodelar”, as vias de síntese biológica para
produzir medicamentos, biocombustíveis e outros produtos de interesse industrial. E, do outro
lado da cadeia causal, o barateamento e o avanço vertiginoso das técnicas de sequenciamento
(leitura) e síntese de DNA também têm permitido o desenvolvimento dessa disciplina. Se
Venter e Chandrasegaran são os cérebros, nos EUA, da biologia sintética e de sua disciplina
irmã, a biologia de sistemas, seu homólogo europeu é provavelmente o diretor do Centro de
Regulação Genômica (CRG) de Barcelona, Luis Serrano. “As técnicas de sequenciamento
avançaram até um ponto em que é possível sequenciar um genoma humano por menos de
1.000 euros (3.118 reais) em uma tarde”, diz. “Juntamente com o avanço em outras áreas,
como a biologia celular, a protômica e a biocomputação, isso nos permitiu obter um
conhecimento impressionante de como funcionam os seres vivos, e pensar na possibilidade de
poder simular processos biológicos ou enfermidades no computador.” Os computadores são o
outro ângulo da biologia sintética: construir vida não a partir de “componentes químicos em
frascos”, como dizia Venter, mas sim de zeros e uns, de sua lógica matemática mais profunda.
“Abre-se a possibilidade de, num futuro não muito distante, combinar o genoma de uma
pessoa, seu estilo de vida e programas de computador para poder fazer terapia
personalizada.” Ele sabe do que fala, porque seu laboratório está justamente tentando fazer
tudo isso. “Como referência”, prossegue Serrano, “o genoma de uma bactéria como a
Escherichia coli tem 4 milhões de bases (as letras do DNA a, g, t, c): há 20 anos, sintetizar mais
de 40 bases era difícil, mas nos últimos cinco anos vimos a síntese completa de um
cromossomo bacteriano e, agora, de um cromossomo de uma célula eucariota como a
levedura. A capacidade de sintetizar esses grandes fragmentos de DNA, somada ao
conhecimento que temos dos processos biológicos, abre as portas para a possibilidade de
modificar ou desenhar seres vivos para propósitos específicos.” O cientista espanhol destaca
objetivos como os biocombustíveis, a limpeza de águas, a biorrestauração de entornos
danificados por vazamentos químicos ou de petróleo, uma química mais limpa, a melhora
animal e o desenho de vírus e bactérias com objetivos terapêuticos, como a pílula viva que
está sendo desenvolvida em seu laboratório. “Temos as ferramentas para fabricar o material
genético de um ser vivo – e, portanto, a possibilidade de nos converter em engenheiros da
vida”, conclui. “É um momento apaixonante no qual se abrem numerosas portas e
possibilidades para melhorar a vida humana e o meio ambiente. Nos próximos anos nos
surpreenderemos com o que veremos.” Assim seja.

El País Sociedade. Disponível em: . Acesso em 04 Maio 2014

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