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Epaminondas - Clóvis de Barros Filho
Epaminondas - Clóvis de Barros Filho
I magine se precisa gritar desse jeito. Como se eu não tivesse ouvido todos
os outros chamados. Sempre que vão sair de casa, ficam horas assim, se
esgoelando.
Não diga nada a eles. Estou escondido na gaveta das meias. A do meio,
justamente. Entre a das camisetas e a outra, que guarda de tudo.
Eu sempre inovo no esconderijo. Mesmo sabendo que não precisaria de
tanto para confundi-los.
Afinal, são humanos. Observação e detalhes nunca foram o forte de
nenhum deles.
Ainda mais quando estão apressados, como esses meus aqui de casa,
todas as manhãs. Ficam atabalhoados e entram numa espécie de transe.
Tenho um casal de humanos. E não digo por serem meus, mas são lindos.
Falarei mais sobre eles, por certo.
Já são adultos de autonomia e responsabilidade. Jovens adultos. De
corpos rijos, cútis estendida ao natural, sem cosmética nem intervenções.
Amam-se ainda, pelos dias que vos falo. Amor que tinge — com as
cores de sua palheta sem par — a beleza feiticeira daquele magnífico casal.
São meus humaninhos e sempre os tomei por deslumbrantes. Isso há oito
anos. Estão comigo desde que decidiram viver juntos.
Hoje, oito perus natalinos depois, um ou outro flerte com amigas e colegas
de trabalho e uma paixão que sangra em senoide pelo professor de história
da sobrinha, afirmo com alguma convicção que eles ainda se dão muito bem.
E saem de casa todos os dias juntos. Daquele jeito atormentado.
Vitimados por um desassossego de alma que sempre me despertou
compaixão.
Já naquela cerimônia, refletia sobre o que ainda hoje povoa minhas
divagações:
— De quantos milhões de anos os humanos ainda precisarão para
arrebentar as correntes e os grilhões das paixões tristes que os afligem e os
escravizam?
Saíram. Ufa. Hoje eles estavam particularmente
irritantes.
Nesse labirinto caótico das suas emoções, eu não tenho dúvidas em afirmar
que o medo assume o protagonismo de um minotauro.
Primeiro eu achava que, na alma de humanos, temores e esperanças
brincassem de gangorra. Ora um, ora outro dando as cartas e pautando a
vida.
Para você entender melhor essa alegoria da gangorra:
Caiu um avião. O evento já ocorreu. Bem como suas consequências.
Mas você, com um ente querido naquela aeronave, ignora o paradeiro dele.
As notícias vão chegando em conta-gotas. Encontraram a aeronave.
Houve vítimas fatais. Nem todos os passageiros morreram. Não há uma lista
completa dos sobreviventes. E a cada nova notícia, o medo da fatalidade e a
esperança da sobrevivência sobem e descem na gangorra de uma alma que
flutua na ignorância, na incerteza.
Medo mesmo.
Alguns deles chamam de temor. Quando mais acentuado, de terror.
Medo de tudo que poderiam vir a sentir, se os catastróficos acontecimentos
que povoam suas mentes — bem como suas nefastas consequências — de
fato acontecessem.
Medo de chegar atrasado, do que os outros vão pensar, do que vão dizer,
do que farão em represália; medo de ficar doente, de sofrer no hospital, de
não poder trabalhar; medo de perder o emprego; da pobreza, de o dinheiro
não dar, ou de não entrar a tempo ou de perder o que foi poupado; medo do
abandono, do desdém, da solidão, do amor não correspondido e de não
corresponder; medo de morrer.
E tantos outros, mas tantos outros medos, que se eu fosse um humano
proporia com urgência uma educação essencialmente voltada para o
combate dessa paixão tão corrosiva, que lhes paralisa, imobiliza, tolhe,
acanha, humilha e termina por matar.
Que pelo menos se dessem conta de que a causa desse sentimento tão ruim
não é nenhum mundo concreto que estejam encontrando, encarando,
enfrentando etc.
Que entendessem de uma vez por todas que todos os seus temores mais
destrutivos advêm da própria imaginação. Tudo aquilo que eles próprios
supõem possa lhes acontecer.
Claro que algum deles sempre defenderá o óbvio: muitos dos
pensamentos que amedrontam se impõem, brotam na mente. Não pedem,
portanto, licença para se instalar e raramente decorrem de um ato de
vontade.
Alguns dirão que ninguém sente medo porque quer. E, talvez, tenham
alguma razão. Fica difícil para mim, que só os observo de fora, saber
exatamente até onde poderiam lutar contra todos esses pensamentos tão
destrutivos.
De fato.
No caso de uma demissão, humanos que estão empregados não podem
ter certeza a respeito da sua ocorrência. Muitas vezes os indícios são
enganosos. As surpresas negativas de final de ano que o digam.
Tampouco, claro, podem estar seguros a respeito de quando, como e por
que o evento se produzirá.
E o mesmo acontece com todos os outros eventos temidos, como
traições, rupturas de amizades, desagravos amorosos, divórcios,
enfermidades, dores em geral, demências etc.
Já no caso da morte, as incertezas são notadamente menores.
Para começar, sua ocorrência é certa. Resta só saber quando. O como e o
porquê, na hora do último suspiro, perdem importância. E mesmo o dia e a
hora exata, diferentemente dos exemplos acima, podem estar sob o controle
do vivente.
E com razão.
Sem alguma eternidade resistente ao fluxo, só mesmo o velório
permanece, impávido. Assistindo Cronos devorar seus filhos, átomos
circularem esbarrando-se, agregando-se para logo se desagregarem
novamente, planetas girando em velocidade espantosa, agourando suas
estrelas em explosão ininterrupta.
Pensando bem, no caso deles, os humanos, não poderia ser diferente.
Afinal, desde miúdos aprendem a vincular a vida feliz a um tal de “para
sempre”. Assim terminam suas histórias. Assim começam seus projetos.
A felicidade do antes e do depois só pode mesmo existir para eles se não
acabar nunca. Sua interrupção ou extinção determinam a sua completa
negação.
Essa tal de consciência dos humanos é algo de muito misterioso para quem
os observa de fora como eu. Está claro que eles têm consciência de muito do
que lhes acontece. E que não têm de um outro tanto ainda maior.
Não estou falando aqui de deixar de ver as coisas. Mas de vê-las e não se
dar conta de tê-las visto. Tanto que, de vez em quando, humanos, de
relacionamento antigo e intimidade entre si, gritam uns com os outros:
— Estava aí na sua cara o tempo todo, como foi que
você não viu?
Alguns deles são mais propensos a esse descolamento entre a percepção
e a consciência dela. Tanto que há gírias para designar o fenômeno.
Eu sempre digo:
Aqueles que desejam ter um humano como animal doméstico, atraídos
sobretudo pelo preço — mais em conta se comparado ao de outros animais
mais bem resolvidos — e pelo tempo de vida — só perdem em média de
anos para os jabutis —, precisam ser informados pelo vendedor dessas e de
outras particularidades, digamos, desencorajantes.
No meu entender, essa consciência que os humanos dizem ter, ou não
ter, não é propriamente uma coisa, um objeto de posse. Não se trata de uma
coisa. Tampouco de um lugar onde se acumulam registros de experiências.
Trata-se de uma “atividade do espírito”, ou da “vida do espírito”, como
alguns deles, mais evoluídos, gostam de dizer.
H umanos usam a palavra colaborar para algum labor feito por mais de
um; cooperar para referir-se a uma operação realizada por mais de
um; coabitar quando aludem a dividir habitação; corrupção para rupturas do
tecido social levadas a cabo por mais de um.
Falam também em compaixão, consentimento, compartilhamento,
confusão, e assim por diante. Em todos esses casos há mais de um envolvido.
Concluímos rasteiramente que esse “co” como prefixo indica alguma
pluralidade na ação indicada no resto da palavra.
Ora, e a palavra consciência? Será que a presença do referido prefixo
também está a indicar ciência com mais alguma coisa?
E, aproveitando:
Essa mania de querer tudo pronto, mastigado e na hora é um traço de
grande infantilidade, compartilhado por muitos animais. Não se
desapegaram esses últimos do estado de satisfação anterior ao nascimento. E
passam a vida querendo voltar para dentro da barriga da mamãe. Ou para
dentro do ovo que lhes deu calor, abrigo e proteção.
Que tal?
E assim, essa consciência seria, tal como eu a vejo, uma atividade que
implica a ciência de si e de algo mais.
Por isso diz-se sempre ter consciência “de alguma coisa”. Alguns
humanos de fina cepa dizem que toda consciência é intencional. Cheia de
boas e más intenções. Por se encontrar sempre inclinada para o mundo.
Dependendo dele para se realizar.
Na gramática, quando convertida em verbo, nunca será infinitiva. Ter
consciência e ponto final. Mas sempre transitiva. Porque remete a um
predicado que lhe é exterior.
Mas a ciência da árvore lá no jardim não se confunde com a árvore lá no
jardim, de cuja existência, sem consciência, os humanos, pobres humanos,
poderiam bem duvidar.
A ciência da árvore no jardim requer, portanto, ciência de si. Só essa
permitirá a primeira.
Por exemplo:
Para conseguir ver alguma coisa, não podem estar no escuro.
Incrível.
Se me perguntarem sobre o tato, só homens e mulheres considerados
deficientes visuais conseguem tatear com alguma competência.
Já os demais, obcecados pelo que veem, só reagem esbarrando em chapas
incandescentes ou em pedras de gelo.
Cientes dessa pobreza tátil, alguns deles mergulham nas geleiras e
entram em seguida em fornos incandescentes — denominados saunas —
para “ver se sentem” alguma coisa.
Alguns humanos, mais cientes e, portanto, mais humildes ante todas as
possibilidades perdidas dos toques e seus efeitos, apostam tudo no pulsar de
suas veias. É só no que acreditam.
E acabam, por isso, tornando-se grandes amantes. Sabem bem que há
mundos para além de suas pobres percepções.
Só esses proporcionam orgasmos sem precisar senti-los.
Mas, claro, sendo o que são, há que manter os pés no chão e nunca
superestimar. Como em qualquer outro segmento, produtos de alta
qualidade têm preços compatíveis.
Portanto, nada de viajar na maionese e achar que está levando para casa
um carneiro ou um pombo-correio pelo preço de um animal que viola
correspondências, não voa nem fornece lã.
Outro aspecto que atrapalha muito é que, segundo nossos estudos mais
avançados, humanos acreditam na capacidade terapêutica de alguns dentre
eles. São os curandeiros no seu sentido mais estrito.
Quando estudaram um pouco, usam roupas que lhes conferem distinção.
Entretêm com zelo uma imagem de abnegação e desinteresse. Sabem que o
culto de que são objeto depende muito da legitimidade do coletivo a que
pertencem. Por isso, em casos de erro ou desvio moral inaceitável,
protegem-se ferozmente uns aos outros.
Sem nenhum olhar legítimo de exterioridade de espécie, condição óbvia
para um prudente e necessário recuo metodológico, humanos medicam-se
entre si sem pudor. E alguns fazem disso riqueza, acreditem.
Santa ingenuidade.
Ah! Para você que não é humano, a frase acima pode não ter feito sentido
algum. Essa tal de hipocrisia é mesmo uma particularidade desses nossos
simpáticos bichinhos. Não há nada de semelhante entre os demais animais,
a não ser na luta pela sobrevivência.
Chamam os humanos hipocrisia esse hábito da vida social de se passar
por quem não se é, com vistas a auferir vantagem, quase sempre comezinha
e de pífio valor.
Outros animais se camuflam, é verdade. Como humanos em guerra
também o fazem. Procuram, com isso, passar por quem não são. Mas
nenhum dos senhores, sejam quem forem, confundirá a hipocrisia social dos
humanos com esse tipo de camuflagem.
Ah! Ia esquecendo.
Nós, gatos, mais por natureza felina que por educação, mantemos
preventivamente, desde o nascimento, protocolar distância entre nós. E isso
mesmo na total ausência de ameaça pandêmica.
Mas é claro que também a sabedoria mais que milenar dos nossos
antepassados, que nos chega em conta-gotas, na convivência com nossos
pais, continua nos ensinando com contrição e respeito: vida boa e saudável
não combina com promiscuidade.
— Quem é regido pelo pudor faz o quê? — você pergunta. — Age de que
modo? O que o diferencia de outro indivíduo não dotado dessa virtude?
Pudor é virtude que não mostra. Que evita a exibição. Que abomina a
exposição gratuita. Vulgar. Desnecessária. Fútil.
Pudor pode ter a ver com humildade, quando o que se esconde é
entendido por virtuoso também.
Para ser virtude, o pudor pressupõe uma inclinação, frequente entre
humanos, em sentido contrário. Isto é, de tudo querer mostrar, exibir, expor.
Fazer-se alvo das atenções a qualquer preço. Propor-se como atração ou
espetáculo.
Pudor é virtude que permite se proteger e proteger o outro.
Em alguns casos, pode ter a ver com a decência. Sendo, em relação a
essa, mais delicada, sutil e nobre. Decorre menos da coerção externa que da
própria consciência, menos da convenção que do princípio moral, menos do
medo que do entendimento, menos da maledicência que da discrição.
Mas quando tem um desses branquinhos dando sopa, tipo aqueles de fone,
mais fininhos e macios, aí eu não resisto. Acabo danificando na mordedura.
O que os deixa furiosos, sobretudo quando ainda são novos.
Ela, a femeazinha, quando está muito brava, pronuncia todas as sílabas
do meu nome. E-pa-mi-non-das. O som mais forte vem no “non”.
De fato.
Na hora de escolher seu candidato, acabou votando no vitorioso, mais
para derrotar o outro, que ele odeia.
Candidato que pelo seu voto virou governante, que designou ministros,
que chancelou técnicos de educação, que definiram políticas pedagógicas,
que excluíram cidadania — porque é palavra suspeita e em desarmonia com
o espírito do tempo — e acabaram formando um péssimo cidadão, que
jogou aquela casca de fruta na calçada que, por sua vez, o fez cair de bunda
no chão, para sua tristeza, constrangimento e dor.
De fato.
Não há gato que não tenha respondido aos seus genitores à pergunta
sobre a própria especificidade em face do resto dos viventes. E, em coro, a
resposta terá sido sempre esta: o espírito. Que, por isso mesmo, também é a
essência.
Ao falar em essência, falo do nosso verdadeiro ser. Em contraste com
toda mera aparência, sempre enganosa. Em contraste também com o que
nos é meramente acidental, como a cor do nosso pelo, o tamanho das nossas
orelhas, patas ou da nossa cabeça, a extensão do nosso tronco etc.
Esse nosso espírito ou essência, embora seja coisa nossa, resulta
estritamente da nossa natureza. De modo que nossa vida espiritual,
pensamentos e sentimentos estão sempre circunscritos ao que a nossa
gatitude nos faculta.
Não há, sabemos bem disso, como ter certezas a respeito do que se passa
com os outros animais. Se sentem, se pensam, o que sentem, o que pensam.
Ficamos dependentes de suas manifestações. Do que comunicam a
respeito.
Com duas condições muito limitantes.
A primeira é a dificuldade, para qualquer vivente, de comunicar seus
afetos. Seja qual for a linguagem, será precária. Impossível, com algumas
palavras apenas, dar conta da imensidão do que sentimos a cada instante de
vida no mundo.
Reconhecemos, assim, a mesma dificuldade dos animais em relação a
nós.
Porque, embora nós, gatos, disponhamos de uma riquíssima e complexa
rede de combinações linguísticas para nos comunicar — reduzida pela
ignorância engraçada do mundo na palavra miado —, mesmo nós
conseguimos dar conta de manifestar por símbolos com precisão o que
estamos sentindo e pensando.
A segunda limitação é a falsidade, a hipocrisia. A intenção deliberada de
mentir sobre si mesmo. Essa dificuldade nossa se restringe a alguns animais,
como os humanos. Esses são dotados dessa estranha capacidade de falsear
deliberadamente seu mundo interior.
Mesmo em face dessas dificuldades, ousamos cravar que nenhum vivente
no mundo tem uma vida espiritual como a de um gato. Antes de mais nada,
porque é preciso ser gato para tê-la. Haverá diferente. Haverá outra coisa.
Certamente. Mas espírito de gato, desculpa, só mesmo gatos podem ter.
Quanto ao mundo que nos é exterior, sabemos bem que algo discrimina os
animais de alfinetes, novelos de lã e escovas de dente.
Para nós, gatos, uma coisa é tudo que — por sua própria conta — não é
nada.
Aqueles objetos citados acima são coisa. Não há dúvidas sobre isso. Não
percamos tempo.
Já os animais, embora também possam ser — e muitas vezes são —
tratados pelos gatos como coisas, reconhecemos que podem ser e existir
independentemente de nós.
Somos nós a tratá-los mal. Alguns de nós. A reificá-los. O que significa
fazer deles simples coisas.
As coisas objetos — que por elas não são nada, que existem para nós e
pronto — esgotam todo o seu valor na sua utilidade. Para nós, claro. Os
animaizinhos, humanos incluídos, tais como as coisas, também podem nos
ser úteis. Eis o principal motivo desse rebaixamento.
Coisa de ficção.
Porque os que são como eu, assim, de carne, osso e muito pelo, esses,
por serem gatos, agem como gato, pensam como gato, comem como gato,
comida de gato, limpam-se como gato, pulam como gato, miam como gato,
fazem xixi e cocô como gato...
Bem. Cada animal tem sua natureza. Sua especificidade. Seu jeito. O certo é
que, tanto para nós quanto para todos os demais, a vida rezará na cartilha da
mãe natureza.
Elefantes, por exemplo. Como imaginar um elefante inventando moda,
senão sob tortura psicológica de cruéis adestradores? E cobras. Nossa,
cobras são 200% cobra. Absolutamente desprovidas de axilas.
Tudo é instinto para nós. Temos respostas prontas e precisas para
qualquer situação. Ante todo estímulo, uma reação certeira e imediata.
Natureza completa. Com todos os acessórios. Dotada de sofisticados
sensores para os infinitos cenários de existência no mundo.
Por mais aparentemente inusitada que seja a realidade encontrada, gatos
têm uma única resposta, certa e certeira, na manga do paletó.
Daí a nossa superioridade. Claro.
Vamos de novo.
Quando você tem um carro zero que vem de fábrica com todos os
acessórios, ele necessariamente vale mais do que um outro carro, pelado, que
tem de se virar com o dono para botar por fora tudo que lhe falta.
Quando digo que nascemos completos, refiro-me mesmo aos instintos e
às competências por eles facultada.
Respostas prontas e rígidas para estímulos de todas as ordens, nas
situações mais diversas. Desde as que se repetem todo dia até as outras, que
só acontecem uma vez na vida, outra na morte. Não há enrosco que o
instinto não resolva.
Já humanos são pobres no quesito. Nasceram às pressas. E saíram meio
crus. Vieram pela metade. Essa pressa e falta de acabamento lhes perseguem
ao longo de toda a vida.
Compare, por exemplo, o nosso comportamento, felino e altivo, com o
de um humano. Nós agimos na plenitude. Eles, na carência. Nós, sempre
seguros da nossa natureza felina. Eles, perdidos, quase sempre. Observe-os
perambulando pelas ruas. Sem eira nem beira.
Nós, circunscritos numa vida que nos cabe. Sem lacunas nem excessos.
Eles, bem, chegam a forçar o vômito só para poder comer mais. Nós, com o
corpo harmonizado aos efeitos do tempo. Eles, depilados, preenchidos,
siliconados, lipoaspirados, tatuados, agredidos e, muitos, suicidados.
Não acham?
Bem. Vou arriscar aqui um arremedo de definição. É para dar a cara a
tapa mesmo. Se ninguém começa, a comida esfria, dizem os daqui, quando
estão com fome e com alguma cerimônia.
Bem. Eu parto da suposição de que o belo tem a ver com o que é bom. Algo
de valor positivo. Logo, deve ter também proporcionado alguma coisa boa
para quem vai atribuir-lhe ou não beleza.
De fato. Não faria sentido chamar de belo o que desagradou, enojou,
entediou, entristeceu ou causou temor.
Portanto, para ser tomado por belo, precisa ser agradável a quem assim o
toma. Essa palavra agradável, imprecisa, é verdade, reunirá todos os
sentimentos bons que podemos sentir ao contemplar as coisas do mundo.
Como você deve ter percebido, ao tomar o belo por um atributo e vinculá-lo
ao que é agradável, eu o inscrevi no relativo das experiências e de quem as
vive.
Nada impede que se reflita sobre o belo a partir de outras referências.
Como o cosmos, por exemplo. Nesse caso, seria belo tudo que representasse,
de um certo modo, a ordem cósmica. Como a simetria na arquitetura e na
jardinagem.
Nada impede também que, conservando as experiências e suas
sensibilidades como referência, cheguemos a certos denominadores comuns.
Afinal, somos todos, nós, gatos, dotados dos mesmos instrumentos de
percepção. Temos dois olhos, uma boca, dois ouvidos, e isso aproxima,
suponho, nossa percepção do mundo. O que pode sugerir coincidências na
hora de atribuir beleza às suas coisas.
Era isso. Fico com o que me é agradável. Tomo por belo. Quanto ao
resto, se puder evitar, evito. Em nome da vida.
Ah! Humanos.
Num filme a que assisti, uma família viajou por vários dias num carro
amarelo. Esse carro era bem diferente dos demais. Cabia mais gente, era
alto e não tinha focinho.
Como eles dizem, achei da hora aquele carro.
Mas a aventura era para que a filha do casal, não completamente
formada de natureza, participasse de um desses concursos.
Um dos personagens, tio da menina, me chamou a atenção. Dizia-se
especializado num tal de Proust e afirmava coisas semelhantes ao que
aprendemos desde filhotes com nossos genitores.
Não creio que os humanos que moram comigo conheçam Proust.
Entre eles, os humanos, esses abismos de formação são muito comuns.
Como nasceram zerados de natureza, cada um desenvolve capacidades em
função de suas escolhas. Na verdade, contam mesmo, no começo, com as
escolhas de seus genitores. Só depois, quando supostamente já estão
formados, é que ganham alguma autonomia.
Essas escolhas implementam valores aprendidos no mundo que os
circunda. Acabam vivendo em bolhas. Ou tribos, como eles dizem. Nelas
buscam referências e nelas as reproduzem também.
Certamente há uma tribo dos que falam o dia inteiro sobre Proust.
Enquanto os outros, claro, não têm a menor ideia do que estejam querendo
dizer.
Há tribos para tudo que você possa imaginar. Artes, esporte, culinária,
ciência. Acabam superespecializados e com muita dificuldade de interagir
fora daquilo.
Muitos deles, de corpo já sovado pelos anos de solavancos e erosão,
ainda lutam para se destacar no quesito formosura.
O tempo passa, e os traços, pesos e extensões dos corpos que os
sensibilizam genuinamente mudam muito. Hoje submetem-se a dietas.
Arrancam com faca ou aspirador os excessos. Preenchem lacunas com
líquidos e próteses. Esticam, clareiam, bronzeiam segundo as regras do dia.
Duas diferenças.
A primeira. Humanos se deixam livremente escravizar. Submetem-se
por vontade própria. Gatos, por sua vez, não têm vontade. Tudo neles é sua
natureza. Não poderiam abrir mão dela. Porque estariam abrindo mão de
ser. E de existir.
A segunda. Lembre-se de que a natureza de gato, genérica, sempre a
mesma, zela pelas suas espécies e não necessariamente pelos seus indivíduos.
Quanto às sociedades, seus interesses de circunstância e seus líderes de
ocasião, aí eu já não sei.
Claro que tem sempre um ou outro que se levanta primeiro. Que toma a
dianteira. São os líderes.
Líderes de verdade são bastante raros. Porque são corajosos. Enfrentam
o temor com sabedoria. Quando a coisa dá ruim, é na moleira deles que o
sarrafo estala.
São também exemplares. Isto é, exigem de si mesmos as mesmas
virtudes solicitadas de seus liderados.
Há também os gênios. Particularmente capacitados pela natureza para
realizar bem e facilmente aquilo que outros realizariam mal e com muito
esforço.
Gênios imitam menos. Carecem de formação, mas a transcendem a cada
gesto. Não seguem escola alguma, mas inauguram suas tendências. Não
obedecem à cartilha, mas estabelecem seus fundamentos. Por intermédio
dos gênios, diz um dos mais sábios, a natureza informa à arte suas regras.
Líderes e gênios são poucos.
O grosso do homanho vai mesmo na onda. Homanho é o coletivo dos
humanos, enquanto simples reunião ou aglomeração. Homanho de
humanos, para nós, gatos, corresponde aos rebanhos de alguns quadrúpedes.
Muito de seus desejos é inspirado pelas inclinações alheias. Quando um
homem deseja, não só comunica ao mundo o que lhe faz falta, mas sinaliza
também que aquele mundo por ele desejado é desejável por outros.
O homem que manifesta e comunica desejo genuíno obriga o mundo
todo a se reacomodar a essa inclinação.
Com o passar do tempo, muitos que viveram dias de glória deixam de ser
aplaudidos. Provavelmente por terem desaparecido os motivos do aplauso.
Eles sentem muita falta da adulação do passado. E ainda por cima são
chamados de decadentes.
Admiradores de corpos renovam seus ídolos rapidamente. Cruel para
quem já recebeu todos os olhares de veneração e desejo.
Já os que são admirados pelo que pensam, pelo que dizem, pelo que
produzem, pelo jeito de ser, pelas virtudes morais, acabam esticando um
pouco o tempo de ribalta.
Nem uns nem outros conseguem perceber o óbvio. Coisa que nós, gatos,
já nascemos sabendo. Vincular o bem viver ao que não se pode controlar —
como os aplausos alheios — é caminhar para a ruína.
Pobres humanos.
É deprimente quando se veem obrigados, eles mesmos, a falar bem de si.
Gritam desesperados que ainda têm valor. Mas não são ouvidos.
Essas coisas têm mesmo que vir de fora. Humanos não têm nenhum crédito
quando falam de si. Pouco importa o que venham a dizer. Quando se
elogiam, são metidos e não se enxergam. Quando falam mal de si, são
hipócritas e pensam o contrário do que estão dizendo.
Melhor seria não precisar falar de si. E aceitar o mundo como ele é.
Como ensina o bê-á-bá da gatitude. De toda a felinidade.
Então...
E se eu disser que você vai ter que repeti-la? E não pense que será só
mais uma vez. Nada disso. Repeti-la várias vezes. E já vou avisando,
repetição pura e simples. Sem nenhuma novidade. Tintim por tintim, tudo
exatamente igual.
Tipo, hoje, quibe cru, ao meio-dia, no Al Salin. Amanhã, quibe cru, ao
meio-dia, no Al Salin. Mesma porção. Mesmo garçom. Mesma mesa.
Mesma posição na mesa. Mesma Coca. Mesmo gosto. Mesma roupa.
Mesmo valor.
Tudo a mesma coisa. Entendeu? Os mesmos encontros, as mesmas
sensações, as mesmas alegrias, tristezas, temores, esperanças, as mesmas
histórias, piadas e pequenas ocorrências. Tudo na mesma ordem. Aranha,
árvore, luar, e inclusive eu mesmo. Tudo igualzinho.
Como se a ampulheta terminasse de escoar e alguém a revirasse para que
tudo recomeçasse do mesmo jeito que acaba de ser.
Bem, agora vem a pergunta, propriamente.
Quanto à água, vale a pena mencionar o apreço de alguns por uma curiosa
bacia, abastecida de água quente e fria, normalmente posicionada ao lado e
rivalizando em altura com o vulcão ao contrário. Bidê é o nome.
Os humanos passam rapidamente de um para o outro sem esticar as
pernas. As calças arriadas são arrastadas e, dependendo da consistência dos
excrementos, algum respingo é inevitável ao longo dos poucos segundos da
operação.
No centro dessa bacia, um chafariz pode ser acionado. Com vistas a
atingir com precisão — e pressão a gosto — o ponto exato de evacuação. O
resultado da limpeza parece bastante adequado.
Alguns, nesse momento, recorrem a produtos específicos de higiene íntima.
Os mais sofisticados são líquidos. Mas há os que ainda prefiram se lavar
com barras bem rígidas. São os defecantes raiz.
Os aromas desses produtos mostram toda a criatividade dos bichinhos
para compensar o estado lamentável de recursos em que vieram ao mundo.
Outro dia vi na pia do banheiro um desses com aroma de “avalanche no
Alasca numa segunda-feira qualquer”. Para ter alguma ideia de como
cheiram as geleiras desse lugar em avalanches de começo de semana, fiquei à
espreita.
Quando o machinho começou a operação, entrei no banheiro. Na
condição em que estava, já não podia se livrar de mim. Acomodei-me no
camarote da pia e esperei pela conclusão dos trabalhos. Até que ele lançou
mão do precioso frasco e encheu a mão de um líquido cremoso esverdeado.
Essa bacia vem sendo substituída por uma pistola posicionada ao lado do
vaso.
Sabem como é. Ao preço do metro quadrado, em especial nas zonas
ditas nobres, gastar um deles inteirinho com uma engenhoca estranha que
só serve para o pós do evacuar começou a perder o sentido.
Voltando à pistola.
Cabe ao humano que deseja se limpar direcioná-la para suas partes sujas.
Ainda sentado, de baixo para cima, com o punho dobrado e mirando o teto,
o gatilho permite acionar potente jato, preciso em direção e sentido.
Nos locais frequentados por homens e mulheres que não se conhecem,
nem sempre há papel ou água. Dá dó quando não têm à mão nenhum dos
dois.
Seria melhor se fizessem como antes. E se agachassem de vez para
evacuar em algum buraco no chão. Mas quase todos eles têm problemas nos
joelhos, porque são pesados demais para duas patas. Quando se agacham,
não se levantam mais.
Q uando a vida começa a dar sinas de abandono, eles dizem que estão
doentes. Faltando pouco para a retirada definitiva,
encaminhados às pressas a lugares onde outros deles se vestem de
são
branco.
Tal como aconteceu ao longo de toda a vida, os mais ricos terão algum
conforto. Passarão seus últimos dias em hotelaria fina, que, aliás, nunca lhes
faltou antes.
A vida lhes deixará agarrados em suas futilidades e buscando voz para
balbuciar, por uma última vez, a estirpe do lugar que estão frequentando.
Os pobres, também fiéis às suas tradições, não sentirão em momento
algum saudade da pobreza. Seguirão até o final chafurdados em suas
humilhações, objetivadas em protocolo.
Até o final.
Só que agora encontram-se ademais alquebrados pela doença. Vendo a
sua história, que assoma na soleira da porta, com um pé já na calçada.
Colocados, assim, entre a vida e a morte, receiam ambas. Sem alento
para as provações já bem conhecidas de uma, sem coragem para as
incertezas e desconhecidos da outra.
Temor de ir, terror de ficar. Na procura da consolação, deparam-se com
a ruína.
A pobreza corresponde ao estágio original da humanidade. Só que não
recebia título. Porque a esse tempo, o mundo era simplesmente. Era o que
era. Não havia por que tomá-lo por isso ou aquilo.
Aos poucos veio a acumulação de bens com distribuição desigual.
Passaram, então, os humanos a viver em duas realidades. A primeira,
original, e essa outra, a nova.
Agora, sim. Cada uma dessas realidades passou a existir por oposição à
outra. Noções reflexivas. Tautológicas. Só se deixam definir pelo resto. Pelo
que não são. Negativamente.
Essa Vida que nos dá tudo também nos tira tudo. Nos faz viventes,
alimentando-se das nossas entranhas. Precisa que nos desintegremos para
seguir adiante.
Querendo ou não, oferecemos a nossa vida felina, com v pequeno, para
que a Vida com V grande seja eterna.
O todo eterniza alimentando-se de suas partes. E cada uma dessas
partes, por um certo tempo, ganha um vale-vida. Direito provisório, dado
pela natureza, de viver.
A Vida cobra a conta pela vida. Cada uma de um jeito. Haverá quem
componha bem com pimentões verdes, mas que sofra agudamente com
salada de alface. Outro careça de vermífugo na lua cheia, mas nunca no
minguante. O que tem arrepios ao deitar-se no verão e suores frios nos dias
mais tépidos. Há os que amarram as tripas por qualquer farinha e outros
que se esvaem no vaso até de susto.
A Vida, às vezes, segura a onda deste ou daquele pedaço. Mas arrebenta
com o resto. Longe de ser tonta, fica sempre à espreita. Esperando pelo
pedaço de carne largado à mesa. Pela iguaria mais suculenta e dando sopa.
O pedaço mais à mão para se satisfazer.
Remédios são assim. Quando é para o fígado, torna esse último menos
apetecível para a degustação da Vida no banquete da nossa existência.
É como se disséssemos:
— Olha, o bife de fígado ficou meio duro. Eu, se fosse você, atacaria o
resto, que está muito melhor.
Certa vez, um dos dois deixou cair uma cápsula no chão. Parecia uma ogiva
transparente, meio amarelada. Com um cheiro de peixe bem atrativo.
Mandei ver.
Eles tomam por um tal de ômega-3. Acreditam que retarda o
apodrecimento. Com isso, a Vida ganha o que comer, e o vivente, algum
tempo a mais.
É o que eles esperam.
Não gostou?
Mas é inexorável. Não dá para ser diferente. Humanos são campeões em
não ver as coisas como são. Por isso inventam amores para sempre, moral,
valores absolutos, santos, anjos e demônios.
Mas, para a natureza, a relação entre fortes e fracos, astutos e obtusos,
ligeiros e paquidérmicos, é necessariamente o que é.
Nós, gatos, nunca suplementamos nada.
Para que, depois do tempo certo, definido pelo universo de que fazemos
parte, o olho pisque de uma vez, a Vida siga seu rumo.
Eu ia dizendo que nós, gatos, entre nós, não temos um nome pelo qual nos
identificamos. E que isso é mais do que simples curiosidade. Tem a ver com
nossos valores. Com o que consideramos importante de verdade.
Em geral, damos muito mais importância ao todo, ao mundo da Vida,
do que a nós mesmos, enquanto indivíduos.
O mais particular que nos interessa é a espécie. Disso fazemos questão.
Somos gatos. É isso que importa. O que significa não ser planta, gafanhoto,
elefante, girafa, cabrito e, sobretudo, não ser cão.
A vida de cada um de nós está a serviço da nossa espécie. Todo o nosso
esforço busca a sua preservação. Talvez o mesmo aconteça com eles, os
humanos. Mas estão longe de ter consciência disso. Pelo contrário.
Estão convencidos de que o sucesso, o fracasso, a vitória, a derrota, o
infortúnio, a sorte, enfim, tudo, mas tudo mesmo, é uma questão pessoal.
Quando muito, coisa de um pequeno grupo. Mas nunca, nunca pensam na
humanidade.
Aproveito para homenagear um grande humano. Chico Anysio. E seu
inesquecível Justo Veríssimo.
— Quero que se exploda!!!!
Nem mesmo quando vivem uma pandemia, e morrem aos milhares,
continuam tomando decisões estritamente pautadas pelo mais adequado
para si mesmos ou para o grupo a que pertencem.
Pedras não se movem. Não por elas mesmas. Se um garoto as chutar, aí,
sim, elas se moverão. Mas se ninguém relar nelas, ali permanecem. Na
mesma posição. Impávidas. As pedras.
Inércia. Questão de permanência. De guardar posição. Ou de manter a
mesma velocidade. No caso de corpos já em movimento.
Talvez por conta dessa tal de inércia, sempre acabe sobrando alguma no
meio do caminho. Esperando por um bom chute. Que a ponha em
movimento. E a retire do meio do caminho.
Mas como bem disse outro poeta, mesmo paradas, as pedras não duram
para sempre. Podem desaparecer sem nunca ter mudado de lugar. Sem troca
de posição.
É o ar que as engole. Roçando nelas o tempo todo. E comendo bem
devagarinho. Fazendo desaparecer na miúda. Pelas beiradas. Demora que
só. Mas acontece.
Espetáculo de percepção fina. Para apreciadores delicados.
Humanos, por exemplo, não enxergam o ar que come as pedras. Há
hipótese estranha de, num átimo de flagrante do mundo, só haver ar. Para
eles, acreditem, é como se não existisse nada. Digo, visualmente.
Tanto que, na escola, os miúdos precisam fazer experimentos para
provar que o ar está lá. E, por conta da sua presença, não caber outra coisa
em seu lugar. Deduzem que o ar existe. Sem poder vê-lo.
Os vizinhos improvisaram um pequeno pistão para tentar comprimir o
ar e mostrar para seus filhos que, embora não conseguissem ver, havia algo lá
que impedia a compressão completa.
Sei que vocês que me leem — os que não são humanos — estarão
surpresos, consternados e atravessados pela comiseração.
Deve ser mesmo muito duro viver nessas condições. Com recursos
visuais que não dão conta de flagrar nem sequer o ar que respiram.
Por isso muitos deles não entendem o fluir ininterrupto de todas as
coisas.
Só depois de anos se dão conta de que envelheceram. Surpreendem-se
com as mudanças na própria pele. As rugas. As crateras no rosto. E chamam
de “acabado” quando é na pele dos outros.
Eita. Agora, sim, está ficando melhor essa nossa definição de vivente. Toda
coisa que se move por conta própria, cresce ao se alimentar e se reproduz.
Ah. E se serve das outras coisas não viventes no meio do ar, entre o lilás
clarinho e o prateado.
Alguns viventes são como nós, os gatos.
A história que elucida cornetas e harpas e põe fim a este livro é de uma
cadela. Linda que só. Nosso problema com os cães não nos impede de
reconhecer-lhes a beleza, quando, claro, há alguma.
Essa tinha pelo marrom bem comprido. Levemente alaranjado. Um tom
próximo do pelo de alguns humanos, os “ruivos”.
Seria belíssima, se tivesse sido outra sua vida. Mas as orquestrações do
acaso rebaixaram a própria aparência ao nível zero de relevância. Abaixo até
do desdém, do escárnio e da ironia. Aquele sobre o qual nunca se cogita.
Nem mesmo para destacar, por contraste, a futilidade dos mais formosos.
Naquele final de tarde, a nossa cadelinha corria perturbada de um lado para
o outro. De inopino, estancava e olhava para todos os lados. Com aquele
olhar que atravessa, buscando para além do mundo.
O que de tanto valor estaria procurando em tamanha aflição?
Deixara seu humano solto por um único instante e acabou por perdê-lo
de vista.
Alguns cães conduzem humanos cegos. Outros conduzem humanos que
enxergam. Era o seu caso.
Cadela de pelo marrom, levemente alaranjado, linda que só.
Havia horas vasculhava tudo. De raro em raro, desacorçoada, deitava-se.
Ali mesmo, na calçada. Bem atrás do Conjunto Nacional. Na Alameda
Santos. Entre a Augusta e a Padre João Manuel. Seu pensamento, estapeado
pelo desespero, ia aos solavancos, sem clareza nem destino.
Tentava se lembrar passo a passo do que vivera naquele dia. Quem sabe não
acabaria achando, nos becos menos iluminados da memória, a razão daquele
sumiço.
Naquela manhã, seu humano, o Nesga, que, para viver, solicita a
caridade em tiquinho do que é dos outros, gritou por ela, como fazia todas
as outras manhãs.
— Solera!!!!!!!
Esse Solera é com o “e” do meio fechado. A ênfase é toda em cima dele.
Sílaba longa de tirar o fôlego. O So e o Ra eram curtinhos e engolidos. Mal
se escutavam.
Era o sobrenome do melhor amigo, o Macuco, morto de graça num
tiroteio entre as forças do Estado e as forças do tráfico.
Já expliquei que os humanos têm essa mania. Precisam identificar tudo
com as palavras. E dão nome a cada unidade de vivente que se move.
— Solera!!!!!!
A cadela esticou o pescoço e já sabia que era hora de levar o Nesga ao
trabalho.
Tudo naquele dia parecia igual ao que se passava sempre.
A carona era na carrocinha do Ernesto. Amigo de infância e de fazer xixi
cruzado do Nesga, catava e revendia papelão para não morrer de fome.
No deslocamento diário a caminho do trabalho, revezavam empurrando.
Duas hastes de madeira sustentavam a carroça, onde os papelões iam sendo
ajeitados. No meio delas, o humano, ocupando em desalinho o lugar do
quadrúpede, promovia o deslocamento, conferindo movimento ao todo.
E Solera ia de camarote, linda que só, com seu pelo marrom comprido,
mais pro alaranjado, radiante sobre os papelões.
Vinham do centro. Moravam os três, ela, o Nesga e o Ernesto, embaixo
do Minhocão.
Para os que não são da cidade, esse Minhocão é um imenso e
horripilante viaduto suspenso que vem da Barra Funda e termina no começo
da Radial Leste.
Lambendo de lado as janelas dos apartamentos mais próximos, o
monstro de cimento tira o tédio e o silêncio de seus moradores durante todo
o dia. À noite, algum abençoado vereador, apiedado pelo suplício da vigília
eterna, determinou seu fechamento.
Subiam juntos a Brigadeiro. Nome com que os íntimos chamam a
avenida Brigadeiro Luís Antônio. Dali, Ernesto seguia em frente, a recolher
a mercadoria desprezada pelos pomposos da Zona Sul, enquanto Solera e o
Nesga viravam à direita, na Paulista.
Dali até o Conjunto Nacional, local diário da mendicância, era mais um
tirinho de um quarto de hora.
No final do dia, encontravam-se os três por ali mesmo. E desciam juntos
a Consolação, de volta para casa. Na frente do cemitério, todos os dias sem
falha, o Nesga repetia a mesma ladainha:
— Um dia vamos tirar a sorte grande. E seremos enterrados juntos, na
cova dos que não viveram.
E não é que agora Solera, linda que só, com seu pelo longo e marrom,
levemente alaranjado, tinha perdido o humano com quem vivia e que, todos
os dias, conduzia ao trabalho?
Solera tornara-se o centro. Das atenções, dos carinhos, dos afagos, dos
comentários, da vida.
Tanto que a primeira frase de todos que ali moravam, tão logo voltavam
da rua, ainda com a porta em movimento, era sempre:
— Cadê a Solera?
Banhos e tosas regulares com tratador em domicílio, xampus do
estrangeiro, talcos para as assaduras; veterinário, também em domicílio, para
um check-up de Primeiro Mundo; psicólogo de não humanos para eventuais
traumas sofridos na primeira fase da vida; nutricionista de não humanos
para uma alimentação perfeita.
Ah. Tinha também personal de não humanos, para uma atividade física
adequada e diária, incluindo natação e dança; roupas para as várias estações
do ano; tratamento odontológico completo e um zelo especial para o hálito;
e todo tipo de brinquedos, camas, casas, escorregadores, chocalhos, bolas,
ossos e quinquilharias do estilo.
Se, até então, restasse alguma dúvida a respeito dos valores da família,
com Solera tudo se esclarecera.
Para aquela gente, o mundo se partira em dois:
De um lado, tudo que dizia respeito à cadela, linda que só, de pelos
marrons levemente alaranjados; de outro, o resto. Doravante sem
importância alguma.
Os anos se passaram.
Solera aderira, de coração aberto, aos novos hábitos. Havia ganhado um
companheiro, boa pinta de enjoar. De raça, estirpe, pedigree, campeonatos,
troféus e modos.
Com ele tivera filhos. Nem assim abrira mão de sua soberania.
Tampouco perdera sua majestade. A Solera era ela. Os outros, marido,
filhos e afins existiam em relação a ela.