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A Supervisão de Estágio em
Psicologia Hospitalar no Curso
de Graduação: Relato de uma
Experiência
Carla
Ribeiro Guedes
Maria do Rosário
Camacho
Universidade
do Estado do
Universidade
Rio de Janeiro/
Federal do Espírito
Universidade
Santo
do Estácio de Sá
Experiência
O aluno, quando expõe sua resistência inicial do semestre, desistem, isto é, não dão
de ir ao estágio, sente-se menos fragilizado, continuidade no segundo semestre de estágio.
uma vez que ouve de seus colegas relatos De 26 (vinte e seis) estagiários que tivemos
parecidos e formas diferentes de se lidar com no período mencionado, 14 (quatorze) não
as dificuldades apresentadas. Por vezes, essa optaram por fazer o segundo semestre de
ambiguidade de sentimentos – o querer fazer estágio, ou seja, 54% dos alunos.
estágio na área hospitalar e o não conseguir ir
– é superada. O segundo problema encontrado refere-se ao
contato com o paciente, que é sempre algo
A monitoria de estágio tem-se mostrado diferente daquele do modelo da clínica
essencial para a inserção do iniciante no tradicional. O espaço institucional não permite
contexto hospitalar. Quando começamos a a privacidade preconizada pelo modelo clínico
trabalhar com esse sistema, introduzíamos o e tampouco os seus atendimentos duradouros.
estagiário no Hospital Geral observando os Além disso, a demanda de quem está no
atendimentos aos pacientes feito pelo monitor Hospital Geral não é o sofrimento psíquico,
-estagiário que está no segundo semestre do mas o físico (Angerami-Camon, 2001;
estágio. Depois de alguns semestres, vimos Chiattone, 2000). “Como realizar um
que esse tipo de estrutura estimulava a atendimento
Observamos que a grade curricular nos últimos eficaz?” “Como ser
dependência e a imitação de estilo do um psicólogo num
terapeuta. Percebemos que alguns estagiários anos tem se modificado. Se, há alguns anos, a ambiente onde
cumpriam um semestre letivo sem que formação estava totalmente voltada para a não há nenhum
prática privada de consultórios particulares, o tipo de
conseguissem realizar atendimentos privacidade e
individualmente. mesmo não ocorre hoje. O aluno tem um cujos
leque de disciplinas que enfocam abordagens atendimentos não
Atualmente, o direcionamento assumido pela sociais como a instituição, a saúde, a área têm
continuidade?”
monitoria é de estimular a autonomia dos jurídica, o trabalho, a escola, entre outras. “Como saber se
estagiários. Acredita-se que o processo de Entendemos que há uma adequação às estou fazendo
aprendizagem implica, inclusive, deixar os demandas do mercado de trabalho, cuja uma intervenção
psicológica ou
alunos passarem por situações desconfortáveis, prática exclusivamente clínica se encontra apenas
como o não saber o que falar numa saturada. No entanto, ainda assim, há a conversando com
intervenção, suportar o silêncio do paciente, permanência, no imaginário do aluno, das o paciente?”
sentir-se perdido no hospital e mal fisicamente referências dadas pela clínica particular.
depois de algum atendimento, enfim,
momentos em que a maioria dos psicólogos Esse talvez seja o outro grande impasse da
da área já passou e é importante permitirmos atuação do estagiário no Hospital Geral.
que os alunos os vivenciem também. “Como realizar um atendimento eficaz?”
“Como ser um psicólogo num ambiente onde
Hoje entendemos que o monitor deve ser uma não há nenhum tipo de privacidade e cujos
referência, alguém que está na retaguarda e atendimentos não têm continuidade?” “Como
não lado a lado, que possa discutir um caso, saber se estou fazendo uma intervenção
dar uma orientação quando preciso e, psicológica ou apenas conversando com o
sobretudo, alguém que não os poupe da paciente?” Essas perguntas aparecem de
realidade hospitalar. diferentes maneiras na fala dos estagiários e
em diversos momentos de sua prática.
No entanto, vemos alunos que, apesar de
todas as táticas desenvolvidas para que possam Partimos do princípio que o trabalho possível
adaptar-se ao trabalho nessa instituição, não em Psicologia no Hospital Geral requer um
estabelecem um vínculo no estágio, e, ao fim desvencilhamento do padrão de atendimento
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A Supervisão de Estágio em Psicologia Hospitalar no Curso de Graduação:
Relato de uma Experiência
clínico tradicional; é necessário romper com no hospital marcada por frustrações, o que
essas referências, sobretudo em relação à acreditamos seja uma das razões que os leva
espacialidade e à temporalidade. Essa ruptura a interromper o estágio quando finda o primeiro
requer um constante exercício de reflexão na semestre.
supervisão; ela só passa a fazer sentido quando
o aluno consegue pensar a sua atuação como O acompanhamento aos familiares é o terceiro
contextualizada numa instituição com ponto delicado no estágio de Psicologia
características particulares e com objetivos hospitalar. A família, ao receber a notícia da
próprios. doença e/ ou hospitalização de um de seus
membros, desequilibra-se, podendo até
As pessoas encaminham-se para o hospital por mesmo desenvolver algum tipo de patologia
razões aleatórias à sua vontade, por uma em decorrência do estresse (Romano,1999).
urgência física, e a cura orgânica é a sua meta. Dessa forma, deve ser assistida e
Desse modo, a Psicologia não pode negar esse acompanhada pelo psicólogo. Ela é importante
contexto e deve trabalhar tendo-o como para nos dar informações sobre o paciente e
parâmetro; assim, a nossa intervenção bordeia também como objeto de nossa intervenção.
o processo de hospitalização e de adoecimento Romano (1999), ressalta que, muitas vezes, a
O estagiário que (Romano, 1999; Chiatone, 2001). Acreditamos desestrutura do grupo familiar é tão grande
não consegue que esse referencial possa colaborar na que não conseguem entender os
romper com o
condução dos atendimentos dos estagiários e procedimentos do hospital e tampouco as
modelo clínico
tradicional tem auxiliá-los nos seus instrumentos técnicos e informações dadas sobre o tratamento de seu
dificuldades em metodológicos de atuação. parente. Nesse caso, é importante que o
abordar os
psicólogo esteja atento a essa dinâmica e
familiares;
normalmente, os Pensamos que as discussões em grupo são ricas, indique à equipe médica qual seria a pessoa
seus atendimentos as pontuações do supervisor também são da família mais centrada para receber as
são
válidas, mas ainda não são suficientes para que instruções diagnósticas e terapêuticas.
exclusivamente
centrados no o aluno suplante o modelo clínico tradicional.
paciente. Para isso, devemos utilizar outros instrumentos O estagiário que não consegue romper com o
na supervisão, como a leitura de livros da área, modelo clínico tradicional tem dificuldades em
e, especialmente, a produção de trabalhos abordar os familiares; normalmente, os seus
visando à articulação teoria/ prática e à atendimentos são exclusivamente centrados
no paciente. A estratégia usada na supervisão,
formulação de projetos. O aluno, ao produzir
além das já citadas acima, é incentivá-lo a ir
um texto, pode melhor organizar seu
nos horários de visita, onde poderá deparar-se
pensamento e elaborar as questões relativas à
com diversos grupos de familiares. Para aqueles
atuação no contexto hospitalar.
que se intimidam com essa sugestão, pedimos
apenas que estejam no local e se apresentem
Notamos claramente quando o estagiário já dizendo que são estagiários de Psicologia, que
incorporou os paradigmas da Psicologia estão à disposição se necessitarem falar sobre
hospitalar; falas como: “eu fiz um o momento de hospitalização e a doença de
acompanhamento desse paciente com seu parente. Entendemos que, se o aluno
começo, meio e fim”, “atendi o paciente como conseguir abrir esse canal de comunicação, um
se fosse a primeira e a última vez”, revelam segundo passo pode até mesmo partir da
que houve assimilação de outras abordagens família do doente. O ambiente hospitalar é,
diferentes da clínica privada. Mas, apesar disso, muitas vezes, hostil; as relações humanas são
há casos de alunos que não conseguem deixadas em segundo plano e, geralmente, os
suplantar o modelo clínico de consultório e familiares estão tão desamparados que a
estabelecem uma relação com os atendimentos possibilidade de alguém oferecer sua escuta
PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (3), 516-523
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já é o suficiente para que eles queiram praticamente inexpressiva nesse hospital. Não
expressar-se, falar sobre o momento vivido. há uma sala para guardar os pertences, nem
material de trabalho - caixa de brinquedos para
Durante a nossa vivência na supervisão, atendimento de crianças e relatório de
pudemos presenciar algumas iniciativas dos atendimento psicológico.
estagiários que revelam a consciência da
importância desse tipo de trabalho. Alguns Desde a nossa entrada, em 2003, os
alunos vêm desenvolvendo um estagiários tiveram uma tarefa implícita,
acompanhamento aos familiares de pacientes conquistar um “lugar” para a Psicologia na
do CTI, e a abordagem acontece no corredor, instituição. Assim, o estagiário é estimulado
durante o momento em que aguardam para semanalmente a realizar trocas com a equipe
ver o parente hospitalizado ou mesmo quando de saúde: psicóloga, enfermeiros, assistentes
estão esperando o parecer médico. Também sociais, nutricionistas, médicos e também os
foram desenvolvidas intervenções expressivas funcionários de apoio (recepcionistas,
com famílias na pediatria e nas enfermarias cozinheiros e faxineiros). Um atendimento
do hospital. Mas, apesar das táticas em eficaz no hospital geral não pode dar-se sem
supervisão, há aqueles estagiários que essa rede de pessoas que estão envolvidas
focalizam a atenção quase que exclusivamente com o paciente.
nos pacientes, reproduzindo um modelo
clínico tradicional e negando as especificidades O que notamos é que, com a equipe, à
do contexto no qual estão inseridos. exceção dos médicos, conseguiu-se
Geralmente, esse aluno não dá continuidade estabelecer uma comunicação, embora ainda
ao estágio por não conseguir adaptar-se às haja dificuldades. É importante ressaltar que,
demandas institucionais. quando nos referimos a dificuldades, não
significa que se refiram exclusivamente ao
O relacionamento com a equipe de saúde é o relacionamento entre estagiários e equipe,
quarto aspecto gerador de impasses para o mas às próprias características da saúde pública
aluno. Acreditamos que esse tema possa ser no Brasil: funcionários insatisfeitos com salários
mais ou menos polêmico dependendo da e excesso de trabalho. Talvez esse seja um
inserção da Psicologia no Hospital Geral. Há dos motivos que fazem com que nem sempre
relatos de psicólogos que demonstram a os profissionais se mostrem receptivos e
Psicologia efetivamente fazendo parte da dispostos ao diálogo. Mas, de modo geral, o
equipe interdisciplinar, sendo solicitada pelos estagiário consegue estabelecer um bom
médicos para realizarem atendimentos e rapport com eles.
desenvolverem trabalhos com os demais
profissionais - grupos Balint, estudos de casos O grande impasse ainda é o profissional de
(Romano, 1999). Medicina. Como os médicos da instituição
muitas vezes não se mostram abertos para a
Na instituição conveniada, havia apenas uma troca, o aluno se ressente, e é muito comum
psicóloga, que tinha que responsabilizar-se sentir-se acuado, intimidado diante deles.
por toda a demanda hospitalar, e, no início do
ano de 2005, foi contratada mais uma Podemos dizer que a formação médica é
profissional de Psicologia; esta havia sido nossa completamente distinta da do psicólogo;
estagiária em Psicologia hospitalar. Talvez esse ambos se encontram em paradigmas
excesso de atribuições por tanto tempo totalmente distintos, e, portanto, possuem
direcionado a praticamente uma psicóloga objetos de trabalho e visões de mundo
tenha sido um dos fatores que fizeram com diferentes (Moretto, 2001). O médico é
que a Psicologia, em um âmbito geral, fosse formado para exercer uma medicina anátomo-
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A Supervisão de Estágio em Psicologia Hospitalar no Curso de Graduação:
Relato de uma Experiência
estagiários no Hospital Geral, assim como com entanto, tivemos a preocupação de demonstrar
as nossas formas de lidar com elas. Não que, em cada dificuldade que pode ser
pensamos em encerrar esse debate, e sim, superada com estratégias específicas, há
incitar novos pensamentos sobre essa prática alunos que não conseguem suplantá-las. No
nos espaços universitários. nosso caso, vimos que, de 26 (vinte e seis)
estagiários que tivemos nesse período, 12
A formação do psicólogo se dá num tripé: (doze) fizeram dois semestres de estágio, e
estudo teórico – análise pessoal – supervisão, 14 (quatorze) optaram por realizar apenas um
e, desse modo, há que se indagar sobre qual semestre, isto é, 46% optaram por dar
o tipo de trabalho que nós, professores e continuidade ao processo de estágio e 54%
supervisores, estamos realizando. decidiram finalizá-lo em apenas um semestre.
A partir disso, não devemos cair no engodo
Podemos considerar que a supervisão de
da onipotência, pensando que tudo pode
Psicologia hospitalar aparece como um
resolver-se através de boas intervenções junto
instrumento essencial para a formação dos
aos estagiários. Temos inúmeras possibilidades
alunos e para superar as dificuldades
que devem ser exaustivamente discutidas, mas
comumente apresentadas no estágio. Através
também temos impossibilidades. São os
da prática supervisionada, é possível reverter
limites da supervisão que devem ser vistos e
impasses e fazer possível um trabalho que,
reconhecidos como tal.
por vezes, se mostrava quase impossível. No
Referências
ANGERAMI-CAMON, V. A. Psicologia Hospitalar: Teoria e Prática. FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica . Rio de Janeiro: Forense
São Paulo: Pioneira, 2001. Universitária, 2001.
CAMARGO Jr., K. R. (Ir)Racionalidade Médica: os Paradoxos da Clínica. MORETO, M. L. T. O que Pode um Analista no Hospital ? São Paulo:
Biomedicina, Saber & Ciência: uma Abordagem Crítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
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ROMANO, B. Princípios para a Prática Clínica em Hospitais. São
CHIATTONE, H. B. A Significação da Psicologia no Contexto Hospitalar. Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
Psicologia da Saúde: um Novo Significado para a Prática Clínica.
São Paulo: Pioneira, 2000.