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PSICOLOGIA DO DINHEIRO

A SÍNDROME DO PAI GRANDE


POR FÁTIMA SAMPAIO FERNANDES PSICÓLOGA DA SAÚDE
OPsA CEP N.º 2148

O Senhor Xavier é o dono de uma grande empresa de venda de automóveis. Adquiriu mais um carro
novo para si e outro para a sua esposa; os dois filhos mais velhos estão, neste momento, a estudar
nos Estados Unidos e não lhes falta nada! Planeia visitar os filhos em Março, com a esposa, que
não trabalha e adora viajar para fazer compras de roupa, bolsas e sapatos. A filha mais nova irá com
eles, e aproveitarão para visitar algumas universidades, pois, em breve, a filha também entrará no
ensino superior. A casa do Senhor Xavier é muito grande, com piscina e um enorme quintal, onde a
esposa recebe os familiares e amigos aos fins-de-semana. A somar a tudo isso, tem um casal de cães
fabulosos que chegaram recentemente da Alemanha, que comprou para adicionar aos cães que já
tinha. A vida do Senhor Xavier parece perfeita.

O Senhor Xavier, no entanto, não consegue dormir bem. Acorda várias horas mais cedo e fica submerso
em pensamentos intrusivos, obsessivos e extremamente negativos. Sente que tem demasiadas
responsabilidades e que vai falhar. Sente que tem de trabalhar mais, de fazer mais, de conseguir
mais. Sente-se também irritado com alguns membros da família, mas não consegue dizer nada.
Um dos seus irmãos está a viver no anexo, come em sua casa, dorme até tarde, sai com um dos
seus carros e não parece minimamente preocupado em encontrar trabalho (o Senhor Xavier já lhe
conseguiu emprego em dois bancos diferentes, mas o irmão acaba sempre por desistir). A sua irmã
mais nova está a divorciar-se e decidiu vir para casa dele também, pois diz que está muito deprimida
e precisa do seu apoio, já que ele foi o pai que ela nunca teve. Com ela, vieram as suas duas filhas,
que o motorista do Senhor Xavier tem de levar à escola todas as manhãs e apanhar no final das aulas.
Agora é o Senhor Xavier que conduz todos os dias para o serviço e sente-se cada vez mais cansado.

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A esposa também se queixa: “Agora nunca tenho o motorista disponível!”. A sua mãe liga todos os
dias: “Tem paciência, filho! É tua obrigação cuidar da família, bem sabes!”. O Senhor Xavier pensa:
“Mãe é mesmo mãe. Para ela, somos sempre crianças. A minha irmã tem 40 anos, e ainda tenho de
cuidar dela”. Parece que a única pessoa que nunca foi criança foi mesmo o Senhor Xavier. Quando
era pequeno e a mãe ia trabalhar, depois de o pai os ter abandonado, era ele, na qualidade de irmão
mais velho, que acompanhava os irmãos à escola e se certificava de que estudavam e de que tudo
estava a ir bem, na medida do possível. Tinha sido o “homem da casa” desde os 5 anos de idade e
praticamente andara com todos os irmãos ao colo. Hoje, continua a preocupar-se com os irmãos, com
os primos, os cunhados e os sobrinhos. Também é ele que cuida da mãe. A esposa não aceitou que
ela viesse viver para sua casa, por isso ele comprou-lhe uma casa não muito distante da casa deles.
Assim consegue ter a certeza de que ela está bem. Era o mínimo que podia fazer depois de todos
os sacrifícios que ela fez para sustentar os filhos, e depois de todos os relacionamentos falhados e
traumáticos da mãe, que se seguiram ao abandono do pai. Entretanto, a mãe decidiu casar de novo,
com um homem mais jovem, e o Senhor Xavier precisa de ter a certeza de que o indivíduo trata bem
a sua mãe. Teve até de lhe arranjar emprego, já que ele parecia estar demasiado confortável a viver
do dinheiro dela – que é, na verdade, a mesada que o Senhor Xavier lhe dá há anos (uma quantia
um pouco mais elevada que aquela que dá à sogra).

Apesar dos lucros da empresa, o Senhor Xavier sente que não tem dinheiro suficiente. Tem uma boa
casa, os carros, não falta nada em casa, e consegue ter os filhos a estudar lá fora, mas a verdade é
que sente que o seu dinheiro é usado, de facto, quase na totalidade, para responder às necessidades
da sua família e da família da sua esposa, já para não falar de algumas pessoas próximas, que ele,
basicamente, “adoptou” (está a pagar os estudos dos filhos da funcionária de casa, e está a ajudar
com as despesas de reabilitação do filho do motorista, que teve um acidente).

“Se ao menos eles se organizassem e parassem de me pedir apoio”, pensa muitas vezes o Senhor
Xavier, extremamente infeliz, sobrecarregado pelas preocupações.

Há várias pessoas como o Senhor Xavier, que sofrem de uma síndrome que não encontramos nos
manuais de Psicologia. Não a encontramos na última edição do Manual de Diagnóstico e Estatística
das Perturbações Mentais (DSM-V), da Associação Americana de Psiquiatria. Também não a
encontramos na décima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização
Mundial da Saúde. Não a encontramos sequer na Internet! Encontramos esta síndrome em consultório,
em Luanda, e em relatos referentes a muitas partes do País. Os casos como o do Senhor Xavier são
tantos, que se impõe uma tentativa de definição e formalização deste problema tão nosso. É o que
tentaremos fazer neste artigo. A designação “Síndrome do Pai Grande” é uma proposta, que surge
a partir do conceito de “Pai Grande”: tipicamente, aquele homem de família que é o mais abastado
e, simultaneamente, o que é consultado, o que é ouvido, o que resolve os problemas, ajudando
financeiramente os membros da família.

Esta síndrome está relacionada com as famílias, as comunidades, o sentido comunitário das famílias,
a proximidade entre os membros das famílias, a educação e os valores transmitidos aos filhos. Tem
a ver com questões profundamente ligadas à cultura, à sociedade, à religião e mesmo à condição
socioeconómica destas famílias (que tem um grande impacto sobre o que se espera das crianças e o
que se coloca – ou não – à disposição das mesmas, durante o seu desenvolvimento).

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Não queremos pôr em causa o valor de nenhum desses preceitos. Certamente haverá famílias muito
saudáveis, em que o modelo tradicional ou habitual de educação funcionará para todos. Excelente.
Se as pessoas estiverem felizes: está tudo bem!
Muitas vezes, no entanto, a pressão familiar e mesmo social e cultural sobre determinados membros
da família não é saudável e causa sofrimento. A troca de papéis, em que uma criança assume
o papel de adulto e assume responsabilidades sobre os irmãos, que deveriam ser dos pais, tem
consequências graves. Diz-nos o Dr. Iñaki Piñuel, no seu extraordinário “Família Zero” (Madrid, A
Esfera dos Livros, 2020):

“A criança que foi olhada com amor pela mãe imita-a e reflecte-a em si mesma. Graças aos seus
neurónios espelho, reproduz esse mesmo olhar no seu interior, reflecte a mesma atitude de amor
incondicional que experimentou e que ficou gravada a fogo na sua memória emocional. A mãe que
ama não olha para o seu menino com um olhar interessado, egoísta, como se ele fosse um objecto
de uso ou aproveitamento. O seu filho é um fim em si próprio. Não é um meio para obter ou alcançar
seja o que for. Cuida dele, ama-o e protege-o porque é seu filho, não por qualquer benefício que ele
lhe traga, nem pelas características que possa apresentar e que eventualmente possam beneficiá-la”
(2020: 64).

Acrescenta Daniel Schor, no genial “Heranças invisíveis de abandono afectivo – um estudo psicanalítico
sobre as dimensões da experiência traumática” (São Paulo, Blucher, 2020): “A necessidade de
socorrer os pais em seu sofrimento retira da criança a possibilidade de conquistar um lugar para
existir” (2020: 106). A criança que é obrigada a desempenhar o papel de pai, de adulto, antes do
tempo “não pode ocupar qualquer posição ontológica que não uma completa alienação em relação
a si mesmo, a qual, paradoxalmente, é concomitante a uma lucidez tenebrosa a respeito da própria
condição” (2020: 106).

A ausência do amor incondicional, a noção de que, para ser amado ou valorizado, tem de cuidar da
casa, dos irmãos, dos primos, ou mesmo da mãe, conduzem a problemas na auto-imagem, auto-
estima e auto-confiança, podendo gerar ansiedade, perfeccionismo, medo de falhar, necessidade de
atender às expectativas dos outros e ser validado por eles. É a estes casos que se refere a Síndrome
do Pai Grande.

SÍNDROME DO PAI GRANDE: transtorno sofrido por aqueles membros da família que cuidam de
todos os outros familiares, incluindo os pais, os irmãos, os cunhados, os sobrinhos, e, muitas vezes,
os pais, irmãos, cunhados e sobrinhos do cônjuge, e que se sentem verdadeiramente esgotados,
ansiosos, estressados, e muitas vezes infelizes sob o peso da responsabilidade e a pressão da família.

PERFIL DA PESSOA QUE SOFRE DE SÍNDROME DO PAI GRANDE:


IDADE: o “Pai Grande”, geralmente, é adulto, trabalha, é pai de família. No entanto, encontramos
“Pais Grandes” a serem preparados para o papel já desde crianças! Encontramo-los também
adolescentes, a estudar, já imbuídos da obrigação de construírem uma casa para os pais e de porem
os irmãos na universidade.

ORDEM DE NASCIMENTO: regra geral, trata-se do irmão mais velho! No entanto, o irmão mais velho

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poderá ser substituído por um irmão ou irmã do meio ou mais novo que tenha mais sucesso.
GÉNERO: tradicionalmente, o “Pai Grande” é do sexo masculino; mas também há “Pais Grandes”
do género feminino, que “carregam” a família alargada às costas.

SITUAÇÃO FINANCEIRA: independentemente da situação socio-económica, regra geral, é a pessoa


que ganha mais na família; é aquela pessoa que é ou se prevê que será a mais bem-sucedida
financeiramente.
CARÁCTER: costuma ser alguém inteligente, muito focado, muito sacrificado, muito trabalhador,
muito preocupado com os outros, capaz de assumir a responsabilidade pelo bem-estar de todos
os membros da família. Tem dificuldade em dizer “Não”. Muitas vezes, preocupa-se também com
pessoas externas à família, podendo ser muito generoso e caridoso. A família permanece, no entanto,
a sua maior preocupação.

ESTADO DE ÂNIMO: está muto cansado, por vezes exausto, assoberbado pela necessidade de cuidar
dos familiares, corresponder às expectativas que os familiares têm, corresponder à ideia de que é o
“Pai Grande”, capaz de solucionar todos os problemas. Regra geral, recusa-se a aceitar que possa
haver manipulação por parte dos membros da família, mas sente que há alguma desresponsabilização
por parte dos mesmos. Muitas vezes, sofre de insónias, devido à ansiedade, ao medo de falhar, ao
medo de não conseguir dar resposta às necessidades e exigências de todas as pessoas por quem se
sente responsável.

PORQUE É QUE ESTA SÍNDROME NÃO SE REFERE À CO-DEPENDÊNCIA? Falámos da co-dependência


num artigo anterior da rubrica “Psicologia do Dinheiro” e vimos que as pessoas co-dependentes
se sentem atraídas por indivíduos que elas acreditam que precisam de ajuda. São viciadas em ser
úteis. Tal como a pessoa que sofre de Síndrome do Pai Grande, o co-dependente também assume
a responsabilidade pela vida de outros adultos, mas não necessariamente por familiares, e muito
menos por toda a família. O mais frequente é o co-dependente assumir a responsabilidade pelo bem-
estar do parceiro ou da parceira.
PORQUE É QUE ESTA SÍNDROME NÃO SE REFERE AO MESSIANISMO? O messianismo remete
para a ideia de que podemos salvar o mundo, ou de que temos o dom e a responsabilidade de salvar
a humanidade. Na Síndrome do Pai Grande, queremos salvar a nossa família e algumas pessoas
próximas, e não necessariamente toda a humanidade.

O QUE FAZER, NO CASO DE SOFRER DE SÍNDROME DO PAI GRANDE?


Se está exausto e se sente esgotado pelo peso de ter de cuidar de todos os membros da sua família,
mesmo dos que são adultos, dos que fizeram as suas próprias escolhas, e dos filhos dos mesmos,
se não dorme bem, se se sente desmotivado e se sente que todo o seu esforço, ao longo dos anos,
parece ter sido quase em vão, pois, as necessidades dos outros só aumentam, apesar de tudo o que
lhes dá: é possível que sofra de Síndrome do Pai Grande.
Nesse caso:

1. Procure um bom psicólogo.

2. Procure perceber quais são as crenças que lhe foram incutidas na infância. Algumas das crenças
mais comuns são: “Tens de tomar conta dos teus pais quando começares a trabalhar”; “Sacrifiquei-

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me por vocês e deverão retribuir o valor desse sacrifício quando crescerem”; “És o mais velho e
tens a obrigação de cuidar da família”; “O teu pai não está e tu deves ocupar o seu lugar”; “Os teus
irmãos dependem de ti”; “Tu tiveste mais sorte e tens a obrigação de ajudar os outros”; “Tu és o
mais inteligente/ o mais forte/ o que tem mais sucesso e é tua obrigação cuidar dos teus irmãos com
menos sucesso”; “Quem tem mais tem a obrigação de ajudar os menos afortunados”; entre outras.

3. Desconstrua essas crenças disfuncionais enraizadas: por muito que ame os seus irmãos, em
pequenos, eles eram responsabilidade dos seus pais e não sua, e se são adultos, eles devem ser
responsáveis por si mesmos. Lembre-se também que não foi você que decidiu ter filhos, mas sim
os seus pais. Os pais têm obrigações para com os filhos: amar, proteger, educar, alimentar. São
obrigações dos pais e não favores ou sacrifícios. Você não tem uma dívida para com os seus pais,
que o alimentaram e puseram a estudar, pois essas são obrigações dos cuidadores. Pode ter amor
por eles, sim, mas não uma dívida. É importante perceber isso.

4. Entenda que as pessoas adultas – irmãos, cunhados, outros – têm a obrigação de se responsabilizarem por
eles próprios. Permita que sejam, de facto, adultos e cuidem de si mesmos.

5. Perceba que, se tiver ainda mais sucesso e independência financeira, poderá desenvolver os seus negócios e
criar postos de trabalho. Dar emprego é o melhor apoio que poderá dar à família, à comunidade, ao país. Estará
a dar dignidade e autonomia às pessoas, ao mesmo tempo em que estará a investir no seu próprio crescimento.
Se se limitar a distribuir os seus rendimentos, não se permitirá crescer e usufruir das suas conquistas. E você
tem o direito de crescer.

6. Se tiver de ajudar, coloque um limite para a ajuda que está disposto a dar. Decida qual é a percentagem dos
seus rendimentos que guardará para si (para poupar e investir) e qual é o limite do apoio financeiro que poderá
disponibilizar para a sua família, se desejar. Assuma esse compromisso consigo.

7. Aprenda a dizer “Não!”. É fundamental. É difícil, mas é possível. Toda a força que usou para cuidar de
todos, use-a agora consigo, para aprender a dizer “Não” quando considerar necessário.

8. Lembre-se sempre que você é responsável por si e pelos seus filhos. Você não é responsável pelo bem-estar
de adultos activos. Deixe-os assumir responsabilidades e fazer o seu próprio percurso, como você fez.

Seja justo consigo!

Força!

Fique bem!

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