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Reitor

Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes


Vice-Reitora
Profª. Drª. Nadir do Nascimento Nogueira
Superintendente de Comunicação
Profª Drª. Jacqueline Lima Dourado
Língua Portuguesa: Formação, Ensino e Interdisciplinaridade.
Juscelino Francisco do Nascimento
1ª Edição: 2020
Revisão
Ana Paula Lima de Carvalho
Editoração
Francisco Antônio Machado Araújo
Diagramação
Allyson Barbosa
Apoenna Caetano
Capa
Gabriel Estrela da Silva
Editor
Ricardo Alaggio Ribeiro
EDUFPI - Conselho Editorial
Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Versas e Silva
Antônio Fonseca de Oliveira Andrade
Solimar Oliveira Lima
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo
Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí
Biblioteca José Albano de Macêdo

L755 Língua Portuguesa: formação, ensino e interdisciplinaridade /


Organizado por Juscelino Francisco do Nascimento. – Teresina,
PI: EDUFPI, 2020.
271 p.
Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-509-0567-9


1. Língua Portuguesa. 2. Ensino – Pesquisa (Português). 3. Formação Docente.
I. Nascimento, Juscelino Francisco do. I. Título.

CDD 469

Elaborada por Rafael Gomes de Sousa CRB 3/1163


ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
A FORMAÇÃO DO LEITOR FRENTE ÀS
PROPOSTAS DE LEITURA DA BNCC
PARA O ENSINO FUNDAMENTAL

Eduardo Dias da Silva (UnB)

edu_france2004@yahoo.fr

Renato de Oliveira Dering (UFG)

professordering@gmail.com

1. INTRODUÇÃO

A educação no Brasil, no que se refere ao Ensino de Língua


Portuguesa (ELP), foi prioritariamente pautada pelo ensino da gramática
normativa com foco na escrita. Assim, as regras gramaticais e uma
“escrita certa”, de acordo com a norma-padrão, modelaram uma proposta
educacional para o “Português da escola”, visão que ganhou força durante
o século XX, principalmente com os modelos seletivos para ingresso no
Ensino Superior. O peso de avaliação das provas de Português (aqui como
sinônimo de Gramática Normativa) e Redação, tanto nos vestibulares
tradicionais quanto no atual Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM),

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


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autenticaram e reproduziram a importância dessas duas frentes da Língua
Portuguesa para a sociedade.

Contudo, no tocante a isso, a compreensão leitora, pautada na


formação do leitor, foi omitida ou mesmo suprimida. O ensino de leitura
foi (e ainda é), muitas vezes, visto como algo inerente ao sujeito e/ou como
obrigação da disciplina de Língua Portuguesa. Essa visão reducionista
provocou fortes impasses educacionais, pois, por um determinado período,
esse componente foi visto pelo viés de decodificação, o que causou graves
retrocessos. Foi apenas por meio da perspectiva do Letramento que esse
panorama começou a passar por mudanças e a formação leitora ampliou
seus estudos no Brasil.

Com foco nas habilidades leitoras, o presente estudo tem como


objetivo refletir como as posições da BNCC contribuem (ou não) para
a formação do leitor no Ensino Fundamental. A pesquisa toma como
suporte metodológico a revisão bibliográfica, trazendo contribuições ao
manter uma intersecção da base teórica com a Base Nacional Comum
Curricular,perpassando, ainda, os estudos do letramento, visto que são
basilares na formatação do texto da BNCC.

2. LEIS, LEITURA E ESCRITA: PRIMEIRAS REFLEXÕES

O ensino de Língua Portuguesa sempre foi palco de


problematizações acerca da formação leitora. Tais discussões repercutiram
na elaboração dos documentos oficiais que nortearam/norteiam a
educação no Brasil. “A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é
um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico
e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver [...]”. (BRASIL, 2018, p. 07) e, por assim ser, esse documento
educacional, que substituiu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),

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entra com um poder impositivo, principalmente no que tange às questões
de leitura e escrita.

Acerca dessa formação leitora, a BNCC traz essas duas práticas


por meio de eixos norteadores, que, na posição do documento, visam
ao melhor desenvolvimento de práticas de linguagem e aquisição de
conhecimento. Contudo, é preciso refletir acerca dessa imposição da
BNCC frente aos currículos escolares. Ressaltamos que esse documento
normativo se aplica exclusivamente à educação escolar.

A Base Nacional Comum Curricular – BNCC


(BRASIL, 2018) figura, nesse contexto, como uma
normativa que regulamenta a educação básica no Brasil.
Substituindo os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN’s), a BNCC aponta, já em seu texto inicial, um
caráter impositivo, bem como alega ser fundamentada
em todos os preceitos legais anteriores. Contudo,
atentando-se às diversidades socioculturais brasileiras
e as realidades geográficas, torna-se necessário abrir o
leque de discussão sobre sua funcionalidade enquanto
norma (GANDRA; DERING, 2019, p. 94-95).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é, então, um


documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica,
de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional
de Educação (PNE).

Contudo, é preciso pensar, como propõe Gandra e Dering (2019)


e Silva, Sampaio e Duffé (2019), acerca da diversidade e pluralidade social
e cultural do Brasil e sua relação com os eixos de aprendizagem propostos
pela BNCC. Cabe-nos refletir sobre o processo educativo,partindo de
uma perspectiva histórico-cultural, dialógica e crítica, em que ensinar

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .157
e aprender correspondam às diversas práticas sociais específicas que
geram a interlocução entre alunos e professores, cujo objetivo principal
é apropriação pelos alunos das manifestações culturais que emergem da
historicidade humana.

No caso da disciplina de Língua Portuguesa, esses saberes dizem


respeito às práticas de linguagem necessárias à participação crítica na
sociedade, de acordo com Bonini (2013) e Silva (2016), pois:

[...] desde cedo, a criança manifesta curiosidade com


relação à cultura escrita: ao ouvir e acompanhar a
leitura de textos, ao observar os muitos textos que
circulam no contexto familiar, comunitário e escolar,
ela vai construindo sua concepção de língua escrita,
reconhecendo diferentes usos sociais da escrita, dos
gêneros, suportes e portadores (BRASIL, 2018, p. 42).

Esse diálogo entre leitura, escrita e práticas socioculturais


promovem, nos sujeitos, a efetivação dessas práticas, bem como
potencializam sua criticidade. “É importante salientar que uma educação
que leve o sujeito a pensar e conhecer-se é resguardado por lei e parâmetro
de discussão pelos teóricos e críticos da educação” (GANDRA; DERING,
2019, p. 100). Tal apontamento dos autores e da BNCC é pautado
principalmente no artigo 20 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
no Brasil, a qual pontua que “A educação escolar deverá vincular-se ao
mundo do trabalho e à prática social” (BRASIL, 1996). Contudo, é preciso
um maior debruçar sobre a relação entre imposição do que se ensinar para
a promoção das práticas sociais.

Um dos problemas que a imposição da BNCC pode provocar


está situado na modulada formação dos sujeitos para as práticas de leitura
e escrita, o que poderia remontar a educação baseada no Ensino da
Gramática Normativa como fundamental para as práticas de Letramento,
excluindo-se, de fato, a autonomia e posição do sujeito frente ao mundo.

158. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


Assim, ainda que a BNCC trabalhe por eixos, que delineiam o que se deve
aprender, sabe-se que as formas e os tempos de aprendizagem não são
iguais. Logo, sua imposição não apenas indica, como também limita uma
formação plena.

Outro ponto problemático que essa imposição pode acarretar é


consolidação do ensino bancário, já discutido por Freire (1979) durante a
segunda metade do século XX e fator de reflexão nas aulas de didáticas
e metodologias nas faculdades e universidades brasileiras. A Ensino de
Língua Portuguesa, nessa consoante, é um dos componentes curriculares
que mais sofre, visto que ainda há, no Brasil, uma predileção para a “fala
e escrita corretas”, como se elas não se vinculassem a toda trajetória e
formação dos sujeitos.

3. PRÁTICAS DE LINGUAGENS: DA BNCC À LEITURA

O Ensino Fundamental, com nove anos de duração, é a etapa


mais longa da Educação Básica, atendendo estudantes com faixa etária
entre 6 e 14 anos. Há, portanto, crianças e adolescentes que, ao longo
desse período, passam por uma série de mudanças relacionadas a aspectos
físicos, cognitivos, afetivos, sociais, emocionais, entre outros. Essas
mudanças impõem desafios à elaboração de currículos para essa etapa de
escolarização, de modo a superar as rupturas que ocorrem na passagem
não somente entre as etapas da Educação Básica, mas também entre as
duas fases do Ensino Fundamental, Anos Iniciais e Anos Finais, como
esclarecidos pela BNCC (2018).

No que diz respeito às pontuações da BNCC, ela divide as


aprendizagens essenciais em habilidades e competências. Vejamos:

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


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[...] competência é definida como a mobilização
de conhecimentos (conceitos e procedimentos),
habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais),
atitudes e valores para resolver demandas complexas
da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do
mundo do trabalho. [...]As habilidades expressam as
aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos
alunos nos diferentes contextos escolares. (BRASIL,
2018, p. 8-29, grifo nosso)

Por assim ser, a ideia principal é que os alunos desenvolvam,


mobilizem-se e atuem em prol de um problema por meio de práticas de
linguagens (artísticas, corporais e linguísticas) nas diferentes esferas de
atividade humana. Vale lembrar que, segundo a BNCC (2018, p. 68), “As
práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e
textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também
novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e
de interagir”.

Partindo desse pressuposto, é importante salientar que ensinar e


aprender línguas, no caso especifico desta pesquisa, a Língua Portuguesa,
parte do paradigma que a língua é decorrente de práticas socioculturais.
O Ensino de Língua Portuguesa na escola mais ainda, visto que “a cidade
é o lugar por excelência dos contatos entre línguas”(CALVET, 2002, p.
54). Logo, também o contato constante entre sujeitos e suas formas de se
apresentar nu mundo. Desse modo, é preciso entender que a linguagem é
complexa e suas formas de proposição também, organizando-se conforme
os sujeitos a utilizam (VYGOTSKY, 2009). Nessa perspectiva, os processos
de aprender e ensinar línguas, como qualquer outro conhecimento
humano, são essencialmente situados e mediados pela linguagem. Isso
quer dizer que ensinar é um processo essencialmente de mediação com
o outro, professores e/ou alunos com diferentes experiências, no qual o
conhecimento não é transmitido, mas socialmente construído através da
linguagem.

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Aprender uma língua, portanto, é aprender a usar essa língua e
pode ter diferentes propósitos, dependendo do contexto social dos alunos.
ConformepontuaSilva (2015, p. 232): “O aluno já chega à escola com um
conhecimento de mundo bem amplo, competindo à escola sistematizar
esses dados com propostas pedagógicas que atendam às necessidades
específicas em relação à apropriação da leitura”.

Dessa forma, faz-se necessário entender, como assinala a BNCC,


que:

As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais,


mediadas por diferentes linguagens: verbal (oral ou
visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual,
sonora e, contemporaneamente, digital. Por meio
dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas
e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais.
Nessas interações, estão imbricados conhecimentos,
atitudes e valores culturais, morais e éticos (BRASIL,
2018, p. 63).

No percurso acerca das atividades humanas, a Língua Portuguesa,


na BNCC, entra junto à área de Linguagens, composta também pelos
seguintes componentes curriculares: Arte e Educação Física; e no Ensino
Fundamental – Anos Finais, agrega-se, também, a Língua Inglesa. A
finalidade é possibilitar aos alunos participar de práticas de linguagem
diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas
em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como também seus
conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade às experiências
vivenciadas na Educação Infantil.

A leitura, dentro da área de Linguagens, é fator de atenção, uma


vez que, como pontuam as competências específicas de Linguagens para o
Ensino Fundamental, a construção da linguagem como uma “construção
humana, histórica, social e cultural” é necessária para a valorização e

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .161
compreensão do sujeito, bem como para a exploração das diversas práticas
sociais e o desenvolvimento do senso crítico, argumentativo e estético
(BRASIL, 2018, p. 65).É necessário, portanto, compreender o processo de
“ler para entender o mundo, tendo a leitura como instrumento de acesso a
ele e o ambiente escolar, como um dos espaços para desenvolver o gosto
pela leitura, são elementos chaves no desenvolvimento de práticas de
leitura” (SILVA; DERING; TINOCO, 2019, p. 365).

Na verdade, a leitura é um dos processos inerentes ao sujeito,


antes mesmo de sua escolarização.Contudo, o que ocorre na esfera escolar,
é o “tolher” ao invés de “colher” do sujeito suas formas de apresentação/
representação para um modelo homogeneizado e único. Verifica-se que
a proposta de habilidades e competências, dentro do proposto, visa a
combater críticas já postuladas por Antunes (2003, p. 27-28), ao dizer que
a leitura nas escolas é:

• [...] centrada nas habilidades mecânicas de decodifica-


ção da escrita;
• [...] sem interesse, sem função, pois aparece desvincu-
lada dos diferentes usos sociais que se faz da leitura
atualmente;
• [...] puramente escolar, sem gosto, sem prazer, converti-
da em momentos de treino;
• uma atividade de leitura cuja interpretação se limita a
recuperar os elementos literais e explícitos presentes na
superfície do texto;
• uma atividade incapaz de suscitar no aluno a compreen-
são das múltiplas funções sociais da leitura.

Finaliza a autora ao apontar que a escola se trata de um lugar que


não tem tempo para a leitura. Todavia, isso é o oposto que deveria ocorrer,
visto que a escola é“um espaço privilegiado para o desenvolvimento do
gosto pela leitura, assim como um importante setor para intercâmbio
da cultura literária” (ZILBERMAN, 2006, p. 16). Logo, nesse paradoxo,

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“outro ponto crucial a ser compreendido nesse contexto de leitura é a
compreensão de que não se nasce leitor, mas que se torna leitor a partir
das experiências que se vivencia enquanto tal” (SILVA, 2015, p. 236).

A imposição da BNCC acerca do que o aluno deve aprender


em uma escala seriada sem a percepção dos contextos implica também
“desperceber” os sujeitos do processo de aprendizagem. As habilidades
e competências são evolutivas nos documentos educacionais. Sobre esse
aspecto, vejamos:

Em teoria, essas competências destacadas deverão ser


distribuídas no currículo e nas práticas escolares ao longo
do processo de Educação Básica (Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Ensino Médio). Entretanto, a
obrigatoriedade de objetivos em contextos não apenas
diversificados social e culturalmente, mas também com
necessidades distintas, dificulta a aceitação do próprio
documento. Isto é, em tese, busca-se a igualdade
educacional; em teoria, há díspares formações dentro
de uma só formação (GANDRA; DERING, 2019, p.
100).

O que se nota é uma enorme lacuna para se falar em Ensino de


Língua Portuguesa, visto, inclusive, a variedade linguística do país. Labov
(1978, p.173apud CALVET, 2002, p. 88) já apontava que:

[...] o principal responsável pelo fracasso do aprendizado


da leitura é exatamente o conflito cultural. O ambiente
e os valores escolares claramente não têm influência
alguma sobre meninos solidamente enraizados na
cultura das ruas. Por sua vez, os que não aprendem são
em grande parte meninos que não entram nessa cultura,
ou porque a rejeitam ou porque são por ela rejeitados.

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .163
O avanço teórico da BNCC é a tentativa de inserir o contexto do
aluno dentro de suas práticas. Assim, propõe o documento que habilidades
relacionadas à leitura devem pertencer a gêneros textuais que estão no
campo da atividade de seus aprendizes e não descontextualizadas ou de
forma genérica (BRASIL, 2018). Entretanto, ainda há um grande caminho
entre o documento e as ações pedagógicas para efetivar a potencialização
da leitura em sala de aula.

4. A ORGANIZAÇÃO DA BNCC: EIXO LEITURA (E O LETRAMENTO?)

A leitura, ao longo dos anos, sofreu graves desfalques nos


currículos escolares. Apesar de ser um importante instrumento para o
desenvolvimento das aprendizagens, em sala de aula, ficou condicionada
ao ensino de Língua Portuguesa, que, por sua vez, não deu conta dessa
árdua tarefa. O tempo destinado às aulas de Português ficaram presos,
prioritariamente, ao ensino de gramática e à produção textual. Isso ocorre,
pois, para a sociedade, a “escrita correta” se tornou um prestígio para
ascensão social. Os vestibulares em todo o país e o Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem) não apenas autenticaram tal visão, como também
fundaram o estigma de que mais importante que a oralidade e leitura, é a
escrita dentro de padrões.

A mudança na organização da Base Nacional Comum Curricular


para o Ensino Fundamental tenta, a seu modo, propor quatro eixos de
integração para a Língua Portuguesa, visando mudanças nesse paradigma
já imposto:

[...] os eixos de integração considerados na BNCC de


Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos
documentos curriculares da Área, correspondentes
às práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta,

164. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


produção (escrita e multissemiótica) e análise
linguística/semiótica (que envolve conhecimentos
linguísticos – sobre o sistema de escrita, o sistema da
língua e a norma-padrão –, textuais, discursivos e sobre
os modos de organização e os elementos de outras
semioses) (BRASIL, 2018, p. 71).

A leitura, diferente dos demais documentos, ganha notoriedade


ao ser um dos eixos integradores. Acerca do proposto, pontua a BNCC
que:

O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem


que decorrem da interação ativa do leitor/
ouvinte/espectador com os textos escritos, orais
e multissemióticos e de sua interpretação, sendo
exemplos as leituras para: fruição estética de textos e
obras literárias; pesquisa e embasamento de trabalhos
escolares e acadêmicos; realização de procedimentos;
conhecimento, discussão e debate sobre temas sociais
relevantes; sustentar a reivindicação de algo no contexto
de atuação da vida pública; ter mais conhecimento que
permita o desenvolvimento de projetos pessoais, dentre
outras possibilidades (BRASIL, 2018, p. 71).

É importante salientar também que, na BNCC, leitura não se


trata apenas de decodificação do texto escrito:

Leitura no contexto da BNCC é tomada


em um sentido mais amplo, dizendo
respeito não somente ao texto escrito, mas
também a imagens estáticas (foto, pintura,
desenho, esquema, gráfico, diagrama) ou em
movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som
(música), que acompanha e cossignifica em
muitos gêneros digitais. O tratamento das
práticas leitoras compreende dimensões
inter-relacionadas às práticas de uso e

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reflexão, tais como as apresentadas a seguir
(BRASIL, 2018, p. 72).

Essa proposta de leitura é, sem dúvida, um avanço do


documento, pois permite potencializar os diversos gêneros textuais
presentes na sociedade, bem como permitir que os sujeitos, em processo
de aprendizagem, dialoguem com eles.Esse processo de leitura se
intersecciona com os princípios do Letramento, já pontuados pela BNCC.

Desse modo, o Eixo Leitura tenta trazer para o centro as práticas


de linguagem do aprendiz. Assim:

É preciso que [o aluno] seja capaz de, estando


no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma
pela qual está no mundo condiciona a sua
consciência deste estar, é capaz, sem dúvida, de
ter consciência desta consciência condicionada.
Quer dizer, é capaz de intencionar sua
consciência para a própria forma de estar
sendo, que condiciona sua consciência de estar
(FREIRE, 1984, p.07, acréscimo nosso).

Portanto, faz-se necessário compreender que “[...] a leitura –


produto social – é produzida em condições de contextos determinados,
ou seja, em momento sócio-histórico que precisa ser levado em conta”
(TINOCO, 2015, p. 307). Isso significa considerar práticas de letramento.
A perspectiva do letramento proposta pela BNCC, por assim ser, trata-
se de uma proposta de propor conexões entre escolarização e tudo que
a envolve com os aspectos sociais da leitura e da escrita dos sujeitos
(SOARES, 2011).

166. Eduardo Dias da Silva . Renato de Oliveira Dering


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As lacunas levantadas neste estudo mostram que, por mais que se


fale em Letramento, as práticas são poucas. Houve um avanço, mas ainda
o lugar de privilégio é reservado àa cultura canônica escolar, frente aos
saberes dos alunos. Outro ponto que sustenta o primeiro, é que os exames
de seleção para o ensino superior subsidiam que o molde dos currículos
no formato da importância da “escrita correta” ou “redação do Enem/
vestibular”.

Claro que não é só no ambiente escolarde educação básica que


se constrói e se consolidam valores. Há, ainda, a família, os meios de
comunicação, as igrejas, a comunidade e outros espaços de convivência
social. Mas não há como negar a importância do ambiente escolar
na formação dos alunos como cidadãos críticos. Na medida em que a
aquisição de conhecimento e de leituras contribuem para as pessoas
ampliarem sua visão de mundo e entenderem os mecanismos de
funcionamento da sociedade, elas se tornam mais aptas a construir com
autonomia sua própria vida e interferir na realidade que as cerca, como
bem exemplificado por Silva e Souza-Dias(2017).

Desse modo, por mais que se fale em Letramento nos documentos


oficiais, o conhecimento advindo do sujeito é, ainda, secundário, pois há
uma manutenção do que é mais importante para a sequência nos estudos
(seja para o Ensino Médio ou Ensino Superior). É importante ter em mente
que “os debates e políticas de desenvolvimento do letramento, mormente
no âmbito educacional, devem levar em conta as condições sociais,
culturais e econômicas que prevalecem em uma sociedade específica, em
uma época particular” (TERRA, 2013, p. 32) e não apenas uma finalidade
única como aprovação em exames de seleção. Esse fator, sem dúvida, põe
em xeque a eficácia do eixo leitura e as proposições de Letramento.

Ensino de língua portuguesa: a formação do leitor frente às


propostas de leitura da BNCC para o ensino fundamental .167
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