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As seções que seguem têm o propósito de abordar que produções identitárias, ou que
modos de ser músico, que busca por uma identificação na MIG, estão sendo colocadas em
movimento no DVD. Não busco por verdades que sejam capazes de explicar/categorizar esta
música, mas sim, compreender como algumas práticas discursivas e não-discursivas (narrativas e
performances musicais) colocam em movimento a demanda pela "autenticidade" desse gênero
musical. Os discursos e o funcionamento de seus mecanismos, sobretudo as articulações entre o
local e o global, o urbano e o rural, o tradicional e o moderno, na produção de identidades da
MIG, e seus desdobramentos nos processos de criação musical são temas de discussões centrais
para este trabalho.
Cada cultura tem suas próprias e distintas formas de classificar o mundo. É pela
construção de sistemas classificatórios que a cultura nos propicia os meios pelos
quais podemos dar sentido ao mundo social e construir significados. Há, entre os
membros de uma sociedade, um certo grau de consenso sobre como classificar
as coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de
significação são, na verdade, o que se entende por “cultura” (WOODWARD,
2000, p.41).
Nesse sentido, o que foi apresentado até aqui faz parte do sistema de representação
“legítima” em que a MIG está inserida, em que alguns elementos são incluídos e outros são
excluídos, como impertinentes ou espúrios. Na próxima seção passo a desenvolver uma breve
análise envolvendo a questão da identidade constituída pelas narrativas do DVD Fandango,
buscando pelos discursos e o funcionamento de seus mecanismos, que atuam na produção de
identidades da MIG, bem como os desdobramentos nos processos de criação musical
1
(Disponível em: http://38californiadacancaonativa.com.br/38california/?page_id=19 Acessado em 05/04/15).
Uma vez traçado um breve esboço sobre o universo cultural em que a música instrumental
gaúcha está imersa, passo a analisar o modo como, a partir de um sistema de representações, o
músico Renato Borghetti estabelece as negociações que buscam as demarcações de sua
identidade enquanto um músico/compositor/acordeonista que necessita se manter como
pertencente a um campo simbólico da MIG. Nesse momento, busco compreender a maneira como
os músicos tecem a identidade do trabalho de Borghetti, focalizando as escolhas realizadas a
partir dos múltiplos significados dispersos nos diferentes espaços simbólicos em que este fazer
musical transita. Nessas narrativas, o que é incluído, o que é excluído, o que é hibridizado?
“Fandango”, antes de ser o título deste DVD, é a denominação que se dá para uma
ocorrência social chamada de baile, que seria um representante “típico” deste evento no Rio
Grande do Sul. O momento histórico em que estas práticas teriam se consolidado remonta ao
século XVIII, com o estabelecimento de uma rota de transporte de gado realizada entre São Paulo
e Rio Grande do Sul (as tropeadas). Neste momento, há um significativo fomento de uma música
“fandangueira”.
Assim, a primeira cena do DVD, apresenta imagens, aparentemente antigas (em preto e
branco), do que seria um baile gaúcho, e o áudio traz uma explanação em off de Borghetti,
explicando o significado da palavra “fandango”. Nesta primeira explicação, predomina a questão
das regras que são estabelecidas para que seja permitido (ou não) a participação de qualquer
pessoa neste evento. A questão das vestimentas aparece aqui como um elemento importante neste
processo seletivo. “O Fandango no Rio Grande do Sul é um baile tipicamente gaúcho. Só pode
entrar no recinto com as vestimentas típicas do Rio Grande do Sul: bombacha, bota (...)”
(BORGHETTI, 2007).
Além destas narrativas iniciais, que demarcam o ambiente cultural em que o artista
constituiu sua identidade, o produto audiovisual ainda apresenta, como já foi citado, uma série de
costumes que são frequentemente relacionados com comportamento “típico” do gaúcho, como o
chimarrão, o churrasco, o contato com cavalos, com o ambiente rural etc. O vídeo também
apresenta a narrativa de Renato a respeito de seus primeiros contatos com um instrumento
musical, com a “vida artística” e também a cultura gaúcha. O artista relata que o início de suas
atividades se deu no interior de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), participando
incialmente de grupos de danças, e logo se interessando pelos “sons de gaita” que circulavam
neste ambiente; assim, trocou a dança pela música instrumental.
Além de Borghetti, músicos e convidados apresentam discursos que, muitas vezes,
representam uma tentativa de descrever e também justificar os limites entre o que é (ou não) a
música apresentada nesse DVD, narrativas como: “considero o trabalho moderno, arrojado, sem
esquecer a essência”; “A música do Renato tem a coisa de raiz mas também a coisa do
universal”; “é um disco que retrata a vida do gaúcho, sendo o gaucho (argentino e uruguaio) a
mesma figura humana”; “é música do Rio Grande do Sul projetada para o mundo, nunca
abandonou a raiz”; tecem argumentos para justificar um trabalho que claramente consiste em uma
riquíssima e refinada mistura de elementos musicais advindos de várias outras culturas.
Portanto, as significações mais restritas ao campo do que é denominado de gauchismo são
constantemente confrontadas com uma rede de significações que borram as fronteiras entre o ser
e o não ser gaúcho, mascarando alguma linha fixa de divisão entre instrumentos, imagens,
comportamentos e elementos culturais entendidos como “tipicamente” gaúchos. É possível
perceber essa dinâmica através dos discursos que buscam compor uma identidade que articula o
rural/tradicional com o arrojado/universal, e que para isso permite a convivência entre a
bombacha e a calça jeans, a alpargata e o All Star.
Em termos musicais, isto é feito, primeiramente, através da escolha dos instrumentos,
misturando acordeom, guitarras, bombos legueros e sintetizadores, por exemplo, instrumentos
que, isoladamente, são considerados tradicionais em determinados gêneros musicais, e aqui dão
vida a novas estéticas sonoras. Há também um cuidado com composições, para que possuam
características sonoras (melodias, harmonias e ritmos) previamente reconhecidas como típicas da
música gaúcha; contudo, ostinatos de milongas servem como base para improvisações com claras
influências do jazz. Os ritmos considerados gaúchos, os quais são fortes marcadores culturais,
como a milonga, a rancheira ou a chacareira, ganham novas interpretações que mantêm um
intimo flerte com a música cubana e o flamenco espanhol.
Contudo, apesar de todas as instâncias culturais que atuam nas práticas musicais aqui
analisadas, creio que não há como mapear e quantificar de um modo preciso quais elementos
musicais fazem parte desta trama que resulta no DVD Fandango de Renato Borghetti. Talvez, e
muito provavelmente, ao analisarmos trabalhos anteriores e posteriores a este do mesmo artista,
identificaríamos diferentes nuances estéticas, diferentes influências, ou seja, diferentes
experiências de criação. Há, certamente, estruturas canônicas que “norteiam” o processo criativo
dessa música, mas o que define o resultado sonoro sempre deve ser a experiência pela qual, nesse
caso, juntamente com o grupo musical e equipe de gravação, o músico passa no desenvolvimento
de um trabalho. “Hacer música no es una forma de expressar ideias; es una forma de vivirlas”
(FIRTH, 2003, p. 187)
Neste sentido, o universo simbólico que compõe a montagem do DVD, além de
contextualizar culturalmente uma(algumas) identidade(s) do que seria um sujeito “gaúcho” (em
seus aspectos extra musicais), não apenas servem como pano de fundo, ou o leitmotiv, mas, mais
que um cânone a ser seguido, este processo desencadeia experiências musicais.
Referências
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