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A PRODUÇÃO DA AUTENTICIDADE SONORA NA MÚSICA INSTRUMENTAL

GAÚCHA DE RENATO BORGHETTI: UMA INVESTIGAÇÃO DO DVD FANDANGO

DVD Fandango: primeiras impressões

Criei o quadro acima, de forma manuscrita, no momento em que assistia ao DVD


Fandango (2007) do acordeonista Renato Borghetti, material central de análise deste texto. No
decorrer da apreciação, fui anotando algumas palavras que me chamaram a atenção em relação às
narrativas dos músicos, bem como as escolhas de imagens e de sons que compõem este produto
audiovisual. De um modo geral, minha atenção esteve voltada para o modo como foi construído o
roteiro, bem como as práticas discursivas e não-discursivas que músicos e direção de produção
estabeleceram na busca por uma unidade narrativa que fosse capaz de descrever a identidade do
artista.
O DVD apresenta uma espécie de documentário intercalado ao registro de um show de
música. É bastante interessante o modo como é pensado o roteiro, onde depoimentos sobre os
modos de relacionamentos entre os músicos, histórias sobre “inspirações” para compor, ou
mesmo relatos sobre o cotidiano da vida extra musical se intercalam com momentos de ensaios,
de gravação, de edição de áudio e a apresentação das músicas na íntegra, desse modo compondo
um mosaico de todo o processo de constituição do trabalho, desde as ideias iniciais (a
composição e suas temáticas) até o produto final.
As gravações foram realizadas na casa principal da propriedade da família Borghetti, zona
rural da cidade de Barra do Ribeiro, interior do Rio Grande do Sul. O espaço de locação é
composto por móveis rústicos que fazem alusão a uma casa de campo, e foi neste cenário que foi
montado um estúdio de gravação de áudio e vídeo, no qual o protagonista acordeom divide
espaço com a flauta, o saxofone, a guitarra elétrica, o violão, o piano, o bombo leguero e a
bateria. Há tomadas de outros espaços, que mostram hábitos e costumes da vida cotidiana de uma
localidade rural. Paisagens de campo, os cavalos, o ato de “cevar o chimarrão” (preparo de uma
bebida típica), a refeição sendo preparada em fogão a lenha, o churrasco, e momentos de
contemplação da natureza, são alguns dos elementos que convivem harmoniosamente na
constituição do trabalho intitulado Fandango.
Este breve relato alude a algumas impressões que tive ao assistir o supracitado produto
audiovisual. Primeiramente, devo confessar que sou grande admirador do trabalho de Renato
Borghetti, o qual apresenta um repertório musical que me agrada. Contudo, a centralidade da
discussão que proponho neste trabalho não está relacionada a uma análise da qualidade estética
ou mesmo de eventuais pontos positivos ou negativos que a fruição desta manifestação artística
poderia promover em termos de investigação científica ou opinião pessoal. Também não há a
intenção de uma escrita que advogue em defesa ou contra a legitimidade dessa música em relação
a sua autenticidade, sua origem, sua essencialidade (neste caso, me refiro ao fato de ser música
gaúcha “legítima”, ou não, assunto que será aprofundado no decorrer do texto).
Meu objetivo, efetivamente, é realizar uma investigação sobre as estratégias utilizadas na
produção e nas negociações, no âmbito sonoro musical, em torno da identidade do artista
estudado e das articulações com o contexto da Música Instrumental Gaúcha (MIG), que, de certo
modo, está atrelado ao universo simbólico frequentemente denominado como Música Gaúcha,
Tradicionalista, Nativista ou Regional, universo esse que, por sua vez, mantém laços com as
significações do que é ser gaúcho, em termos de sujeito cultural. Nesse sentido, o foco deste texto
é compreender de que modo as discursos dispersos no material fílmico narram, justificam e
buscam por argumentos que legitimem sua música no âmbito do que é denominado como Música
Instrumental Gaúcha.
Além de compreender de que modo, e quais articulações esta música faz dentro de um
campo simbólico, em que circulam significados sobre o gaúcho, sobre a música gaúcha e também
da MIG, abordo outro fator que atua nesse processo de constituição identitária: os múltiplos
intercâmbios culturais e as hibridações que a globalização contemporânea nos possibilita. Nesse
sentido, busco as articulações que os sujeitos deste estudo propõem em suas narrativas, que
costuram práticas e significações aparentemente pertencentes a campos culturais distintos, mas
que aqui são utilizadas para compor uma mesma esfera, e, em um movimento que negocia o local
com o global, o urbano com o rural, ou seja, mistura “pares opositores”, constituem (mesmo que
transitoriamente) a identidade do músico e da música (MIG).
A fundamentação deste trabalho está inspirada no campo dos Estudos Culturais (E.C.) e
suas articulações com a educação, de modo que alguns conceitos teóricos utilizados por esse
campo irão orientar o presente estudo. Inicialmente, é importante ressaltar que esse campo de
estudos possui uma abordagem que questiona o conceito de cultura como sinônimo de uma
restrita porção da produção (eurocêntrica) de conhecimentos artísticos, literários ou científicos.
Neste contexto, a escola deixa de ser exclusiva enquanto espaço de produção e transmissão de
saberes, e outros ambientes sociais e/ou meios de comunicação, que também promovem
interações humanas e dispersam significações, ganham relevância no âmbito educativo. “Tal
como a educação, as outras instâncias também são pedagógicas, também têm uma “pedagogia”,
também ensinam alguma coisa” (SILVA, 2004, p. 139).
Neste sentido, trago como compreensão, em relação à produção de identidades, que este
processo se dá em um determinado espectro cultural, ou seja, as disputas simbólicas entre
diferentes grupos sociais estabelecem, a partir de relações de poder, o que é permitido, o que é
autêntico, o que é verdadeiro, o que é original, e também o que é excluído, falso, não-autêntico.
Assim, identidade cultural “é algo que se estabelece simbólica e discursivamente em meio às
relações de poder que permeiam as lutas pelo significado nas práticas sociais de grupos
assimetricamente posicionados” (COSTA, 2008, p. 491).
Com base no raciocínio de que toda prática social apresenta uma dimensão cultural, e que
toda cultura pode ter um caráter pedagógico, esse trabalho examina o DVD inicialmente citado,
compreendendo-o como um produto discursivo que produz, através das narrativas dos músicos, e
do próprio roteiro fílmico, determinadas identidades. Nesse sentido, discuto que a narrativa, o ato
de contar histórias, de descrever as características das composições musicais, ou mesmo de
relatos autobiográficos, assumem um papel central na cultura e na produção das identidades.
Esse papel organizador do discurso, desempenhado pelas narrativas, a partir das
histórias que contamos sobre nós e sobre os outros a fim de fazer “um sentido da
vida” possibilita a construção de um conhecimento sobre quem somos e quem
são os outros, constituindo identidades individuais e sociais (FREITAS, 2006,
p.29)

As seções que seguem têm o propósito de abordar que produções identitárias, ou que
modos de ser músico, que busca por uma identificação na MIG, estão sendo colocadas em
movimento no DVD. Não busco por verdades que sejam capazes de explicar/categorizar esta
música, mas sim, compreender como algumas práticas discursivas e não-discursivas (narrativas e
performances musicais) colocam em movimento a demanda pela "autenticidade" desse gênero
musical. Os discursos e o funcionamento de seus mecanismos, sobretudo as articulações entre o
local e o global, o urbano e o rural, o tradicional e o moderno, na produção de identidades da
MIG, e seus desdobramentos nos processos de criação musical são temas de discussões centrais
para este trabalho.

Identidade, um processo cultural

Tive a oportunidade de trabalhar em festivais nativistas como músico contrabaixista


durante 13 anos, e, nesse tempo, foi possível perceber que não apenas elementos musicais servem
de balizadores para que um sujeito, enquanto artista, ou sua obra musical tenha aceitação como
pertencente a este gênero musical (que provisoriamente chamo de instrumental gaúcho); também
fazem parte destas práticas de significação o seu comportamento, suas vestimentas e, não menos
importante, sua atividade profissional para além do campo musical. Arrisco a dizer que um dos
fatores que tem maior importância neste meio é o fato de o músico ter experiências com as “lides
campeiras”, ou seja, atividades que são desenvolvidas em propriedades rurais que, por exemplo,
trabalhem com a criação de bovinos, ovinos, e onde o cavalo seja utilizado como meio de
transporte para auxiliar nas atividades diárias. É como se a experiência, a vivência das
supracitadas atividades rurais, possibilitasse uma maior sensibilidade na performance musical,
permitindo, ao músico, uma maior autenticidade ou veracidade em relação a este gênero.
Trago esse relato para reafirmar que identidade é, entre outras coisas, um processo
cultural, ou seja, sua constituição se dá na imersão em um universo simbólico. No caso da música
gaúcha, tal universo é fortemente constituído por um sistema de representações que tem na figura
do homem que trabalha no campo uma espécie de motivo gerador. Em um sentido semelhante ao
usado pelo músico romântico Richard Wagner, o leitmotiv “homem do campo” faz parte não só
das letras das músicas, mas também das vestimentas obrigatórias, das gírias e dos
comportamentos sociais. Um músico vestido com calça jeans, camiseta do Led Zepellin, calçado
modelo coturno militar e utilizando gírias consideradas urbanas, certamente causaria um
estranhamento nos bastidores e palcos de festivais (este tipo de cena já presenciei) e
provavelmente sofreria algum tipo de exclusão.
No contexto do que estou chamando de gauchismo - como um conjunto de práticas e
discursos que buscam a fixação de determinados comportamentos, hábitos e simbologias que
caracterizariam a o “verdadeiro” gaúcho -, o termo identidade adquire um sentido de fixidez, de
originalidade, de autenticidade. Autores como Fagundes (2002), Lamberty (1989) ou Nunes
(1996) atribuem ao gaúcho uma identidade bem demarcada, sugerindo que, para que seja
legitimado como tal, este sujeito deve ser: “Habitante do Rio Grande do Sul. Habitante do interior
do Rio Grande, dedicado à vida pastoril e perfeito conhecedor das lides campeiras” (NUNES,
1996, p.211). Segundo Fagundes, a condição necessária para receber a chancela de “sujeito
gaúcho” ultrapassa características raciais e até mesmo geográficas, considerando que ser negro,
alemão, espanhol ou português, seja em terras brasileiras, argentinas ou uruguaias, não seria fator
determinante, mas sim, “o que definia e caracteriza o gaúcho no passado como ainda hoje era a
sua atividade, o seu modo de viver, sua economia, seus usos e costumes, sua cultura, enfim.”
(FAGUNDES, 2002, p.21)
No contexto da música gaúcha e suas variantes: música nativista, música tradicionalista,
tchêmusic, MPG e incluindo a MIG, há uma busca, por parte dos músicos e compositores, em
atribuir uma legitimidade identitária a este fazer musical. Neste contexto são notáveis os esforços
realizados com o objetivo de chancelar a identidade de suas práticas musicais como
autenticamente gaúchas. Para que isso seja possível, a atuação do músico deve obedecer alguns
cânones, a exemplo do que foi descrito acima. Há, neste sentido, um currículo cultural a ser
seguido, ou seja, há uma série de normativas que devem ser apreendidas e reproduzidas, as quais
devem ser repetidas e perpetuadas. Parafraseando Canclini (2008), isso seria uma “teatralização
do patrimônio musical gaúcho”, movimento cultural que arbitrariamente busca demarcar um
momento, um local e uma espécie de manual de regras para “encenar” tal identidade do modo
mais verdadeiro.

O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito. As


práticas e os objetos valiosos se encontram catalogados em um repertório fixo.
Ser culto implica conhecer esse repertório de bens simbólicos e intervir
corretamente nos rituais que o reproduzem (CANCLINI, 2008, p.162).

Contudo, apesar de várias instâncias discursivas tratarem a identidade do gaúcho a partir


de um prisma essencialista, quando se realiza uma análise mais atenta, percebe-se que esses
processos são bastante flexíveis e as identidades divulgadas como autênticas e imutáveis
apresentam rupturas. Assim, fica claro na análise do DVD Fandango que a constituição
identitária empreendida pelos músicos se apropria de uma variedade de elementos, sendo que
vários mais um caráter fluído das identidades. Com isso, quero explorar aqui a ideia de uma
identidade que não está fechada, que é produzida no, e pelo fluxo da dinâmica cultural na qual o
objeto deles são exteriores à rede cultural dita gaúcha (elementos do jazz, do urbano etc.),
aparentando está inserido. Nesse sentido, a produção de identidade é realizada no interior de
sistemas culturais, num contexto em que a cultura “abarca um conjunto de processos sociais de
produção, circulação e consumo da significação na vida social” (CANCLINI, 2007, p. 41), e é
um processo nunca acabado.
De fato, “o mundo é um palco”, e é indiscutível que muitas forças tramam estratégias para
forjar e fortalecer estruturas canônicas de práticas culturais, como é o caso da música. Seja na
música gaúcha, no jazz, ou na MPB, padrões são criados, perpetuados e sempre aparecem os
“guardiões” para manter a “ordem” do que já foi estabelecido. Contudo, este palco, por mais bem
vigiado que seja, é sempre passível de ganhar um novo personagem, ou um novo elemento de
cenário, ou mesmo ter seu roteiro e enredo alterados. O que temos, então, são práticas em que, no
interior de determinados espaços culturais, as identidades são produzidas; entretanto, elas não
estão isoladas uma das outras, ou seja, suas fronteiras são borradas, possibilitando intercâmbios,
ressignificações, e mantendo vivo uma autêntica “economia de trocas simbólicas”.
Este pensamento corrobora a afirmação de que a música gaúcha (e também a MIG), mais
do que estar imersa em um campo cultural de caráter local, ou seja, pertencente ao universo
simbólico do gauchismo (do regional/rio-grandense), está, simultaneamente, e não é alguma
novidade dizer isso, inserta (e sofrendo a influência correspondente) em tempos de muitos
avanços tecnológicos e comunicacionais. Com isso, o acesso ao mundo (multi) cultural tem seu
espectro ampliado e amplificado, o que certamente influencia o fazer musical, mesmo o que é
inicialmente caracterizado como de caráter local/regional/tradicional. O trabalho Fandango
apresenta claramente esta dinâmica em seu processo criativo. Há uma preocupação com um
universo regional, com o ser gaúcho, e ao mesmo tempo, há uma abertura a elementos externos,
de outras culturas. Desse modo o tradicional e o moderno, o rural e o urbano se articulam dentro
de um mesmo processo.
Essas representações do gauchismo, com fronteiras borradas e marcadas pela
globalização, são características que também atuam no âmbito do “sonoro musical”. Juntamente
com as estratégias que lutam por significações no âmbito do visual, dos costumes,
comportamentos, hábitos etc., encontra-se também uma seleção de quais elementos sonoros
devem/podem (ou não) representar o gaúcho. Obviamente não farei um tratado sobre isso, mas
devo apresentar, para compor a argumentação em relação ao trabalho aqui analisado, de modo
sucinto, as questões “sonoras” que fazem parte deste universo simbólico. Atenho-me, nesse
momento, apenas aos instrumentos e algumas características musicais.
Em uma breve investigação realizada em trabalhos de autores como Cortes e Lessa
(1975), Mann (2002), Vedana (2006) e Preiss (1988), é possível detectar algumas evidências
sobre a constituição de um universo cultural relacionado à sonoridade da música gaúcha. A
primeira evidência, ligada aos instrumentos musicais, indica que o violão e o acordeom são
nitidamente os mais utilizados, pelo menos a partir do século XX. Anteriormente há indícios de
que instrumentos como a viola de arame de origem ibérica e a rabeca (um tipo de violino
construído pelos indígenas) foram predominantes, sobretudo no século XVIII, período chamado
de “Ciclo dos Fandangos” (CORTES e LESSA, 1975, p36). Não é possível saber com exatidão
como era a sonoridade dessa música, pois não há registros, nem escritos (no âmbito do
popular/folclórico não existia o hábito de registrar músicas em partituras) e nem de gravações
(pela obviedade de que esta tecnologia ainda não existia).
Deste modo, esses autores realizam suas pesquisas através do material fonográfico
produzido a partir do início do século XX. Num primeiro momento, é possível perceber que há
uma recorrência em considerar o violão e o acordeom como os instrumentos de maior
representatividade do que seria tipicamente “gaúcho”. Contudo, há a utilização dos mais variados
instrumentos, desde instrumentos de sopro das bandas militares do início do século, passando
pelo contrabaixo e a bateria utilizado por conjuntos de baile como “Os Bertussi”, o piano e
instrumentos orquestrais de cordas utilizado pelo Grupo Farroupilha, até a utilização de guitarras
elétricas e teclados sintetizadores em muitos dos festivais nativistas que se iniciaram em 1971.
Este é um aspecto que “borra” a ideia de ter no violão e no acordeom como únicos ou melhores
representantes do que seria a música gaúcha.
Há outro aspecto que merece destaque neste contexto: a questão dos ritmos utilizados na
música gaúcha. Autores como Bangel (1989), Cortes (1978) e Oliveira (2006) sinalizam que os
ritmos mais utilizados nas composições do que seria a música gaúcha são os chamamés, as
vaneiras, os chotes, as valsas, as milongas, as chacareiras, entre outros. De acordo com os autores
supracitados, nenhum destes ritmos surgiu em terras brasileiras, mas foram “aculturados” à
música gaúcha. Embora não seja foco deste trabalho discutir a origem, modos e locais de
surgimento destes aspectos musicais, é interessante ressaltar que este é um debate que faz parte
das lutas pela demarcação do que é ou não é música gaúcha. Um exemplo disso é a questão da
exclusão do chamamé no Festival Nativista chamado de Califórnia, o pioneiro desses eventos
(desde 1971), que acontece na cidade de Uruguaiana – RS. Neste festival, e creio que apenas
nesse, o chamamé é, até os dias de hoje, proibido, alegando-se que este não é um ritmo gaúcho e
sim uma manifestação musical da Argentina.
No Rio Grande do Sul, a exemplo da Califórnia da Canção Nativa, há uma grande
quantidade de festivais que celebram o que seria a música gaúcha autêntica. Esses eventos criam
suas próprias normativas, sendo que comissões organizadoras disponibilizam o chamado
“regulamento”, material em que algumas regras definem que instrumentos e que ritmos podem
ser utilizados, sendo que alguns ainda demarcam os tipos de arranjos que serão aceitos. Um bom
exemplo disso está no artigo 22 do regulamento da Califórnia (festival supracitado), onde são
propostas três “linhas” de apresentação musical (Campeira; Manifestação Rio-grandense; Livre).
Na linha Campeira há um interessante trecho que define que as composições devem ter suas
performances apresentadas com “instrumentos acústicos identificados com o campo do Rio
Grande do Sul”, e os arranjos vocais “devem guardar a simplicidade do canto campeiro”. Na
segunda linha (Manifestação Rio-Grandense), é possível o contrabaixo e o piano elétrico, e, na
última (linha livre), não há restrições em relação aos instrumentos e os arranjos1.
Neste exemplo, certamente um dentre muitos outros, é perceptível que há um
direcionamento do que pode ser considerado como gaúcho em “termos sonoros”. Apesar de o
regulamento não especificar quais os instrumentos permitidos na primeira linha, descrevendo-os
apenas como acústicos (em oposição aos eletrificados), na prática os instrumentos permitidos são
predominantemente o violão e o acordeom. Um saxofone, uma gaita de foles (escocesa) ou uma
still guitar (guitarra havaiana), por exemplo, provavelmente não seriam permitidos nesse palco. O
que temos aqui é ação de um sistema que demarca as fronteiras do que pode ser incluído e o que
deve ser excluído nas representações sonoras do gauchismo.

Cada cultura tem suas próprias e distintas formas de classificar o mundo. É pela
construção de sistemas classificatórios que a cultura nos propicia os meios pelos
quais podemos dar sentido ao mundo social e construir significados. Há, entre os
membros de uma sociedade, um certo grau de consenso sobre como classificar
as coisas a fim de manter alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de
significação são, na verdade, o que se entende por “cultura” (WOODWARD,
2000, p.41).

Nesse sentido, o que foi apresentado até aqui faz parte do sistema de representação
“legítima” em que a MIG está inserida, em que alguns elementos são incluídos e outros são
excluídos, como impertinentes ou espúrios. Na próxima seção passo a desenvolver uma breve
análise envolvendo a questão da identidade constituída pelas narrativas do DVD Fandango,
buscando pelos discursos e o funcionamento de seus mecanismos, que atuam na produção de
identidades da MIG, bem como os desdobramentos nos processos de criação musical

Identidade, um processo narrativo

1
(Disponível em: http://38californiadacancaonativa.com.br/38california/?page_id=19 Acessado em 05/04/15).
Uma vez traçado um breve esboço sobre o universo cultural em que a música instrumental
gaúcha está imersa, passo a analisar o modo como, a partir de um sistema de representações, o
músico Renato Borghetti estabelece as negociações que buscam as demarcações de sua
identidade enquanto um músico/compositor/acordeonista que necessita se manter como
pertencente a um campo simbólico da MIG. Nesse momento, busco compreender a maneira como
os músicos tecem a identidade do trabalho de Borghetti, focalizando as escolhas realizadas a
partir dos múltiplos significados dispersos nos diferentes espaços simbólicos em que este fazer
musical transita. Nessas narrativas, o que é incluído, o que é excluído, o que é hibridizado?
“Fandango”, antes de ser o título deste DVD, é a denominação que se dá para uma
ocorrência social chamada de baile, que seria um representante “típico” deste evento no Rio
Grande do Sul. O momento histórico em que estas práticas teriam se consolidado remonta ao
século XVIII, com o estabelecimento de uma rota de transporte de gado realizada entre São Paulo
e Rio Grande do Sul (as tropeadas). Neste momento, há um significativo fomento de uma música
“fandangueira”.

A Música Fandangueira é a que tem suas raízes, melodias e ritmos


fundamentados na ação dos colonizadores açoritas e dos bandeirantes vindos do
Brasil-Colônia, com mais de dois séculos e meio de caldeamento étnico
(CORTES, 1978, p.43).

Assim, a primeira cena do DVD, apresenta imagens, aparentemente antigas (em preto e
branco), do que seria um baile gaúcho, e o áudio traz uma explanação em off de Borghetti,
explicando o significado da palavra “fandango”. Nesta primeira explicação, predomina a questão
das regras que são estabelecidas para que seja permitido (ou não) a participação de qualquer
pessoa neste evento. A questão das vestimentas aparece aqui como um elemento importante neste
processo seletivo. “O Fandango no Rio Grande do Sul é um baile tipicamente gaúcho. Só pode
entrar no recinto com as vestimentas típicas do Rio Grande do Sul: bombacha, bota (...)”
(BORGHETTI, 2007).
Além destas narrativas iniciais, que demarcam o ambiente cultural em que o artista
constituiu sua identidade, o produto audiovisual ainda apresenta, como já foi citado, uma série de
costumes que são frequentemente relacionados com comportamento “típico” do gaúcho, como o
chimarrão, o churrasco, o contato com cavalos, com o ambiente rural etc. O vídeo também
apresenta a narrativa de Renato a respeito de seus primeiros contatos com um instrumento
musical, com a “vida artística” e também a cultura gaúcha. O artista relata que o início de suas
atividades se deu no interior de um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), participando
incialmente de grupos de danças, e logo se interessando pelos “sons de gaita” que circulavam
neste ambiente; assim, trocou a dança pela música instrumental.
Além de Borghetti, músicos e convidados apresentam discursos que, muitas vezes,
representam uma tentativa de descrever e também justificar os limites entre o que é (ou não) a
música apresentada nesse DVD, narrativas como: “considero o trabalho moderno, arrojado, sem
esquecer a essência”; “A música do Renato tem a coisa de raiz mas também a coisa do
universal”; “é um disco que retrata a vida do gaúcho, sendo o gaucho (argentino e uruguaio) a
mesma figura humana”; “é música do Rio Grande do Sul projetada para o mundo, nunca
abandonou a raiz”; tecem argumentos para justificar um trabalho que claramente consiste em uma
riquíssima e refinada mistura de elementos musicais advindos de várias outras culturas.
Portanto, as significações mais restritas ao campo do que é denominado de gauchismo são
constantemente confrontadas com uma rede de significações que borram as fronteiras entre o ser
e o não ser gaúcho, mascarando alguma linha fixa de divisão entre instrumentos, imagens,
comportamentos e elementos culturais entendidos como “tipicamente” gaúchos. É possível
perceber essa dinâmica através dos discursos que buscam compor uma identidade que articula o
rural/tradicional com o arrojado/universal, e que para isso permite a convivência entre a
bombacha e a calça jeans, a alpargata e o All Star.
Em termos musicais, isto é feito, primeiramente, através da escolha dos instrumentos,
misturando acordeom, guitarras, bombos legueros e sintetizadores, por exemplo, instrumentos
que, isoladamente, são considerados tradicionais em determinados gêneros musicais, e aqui dão
vida a novas estéticas sonoras. Há também um cuidado com composições, para que possuam
características sonoras (melodias, harmonias e ritmos) previamente reconhecidas como típicas da
música gaúcha; contudo, ostinatos de milongas servem como base para improvisações com claras
influências do jazz. Os ritmos considerados gaúchos, os quais são fortes marcadores culturais,
como a milonga, a rancheira ou a chacareira, ganham novas interpretações que mantêm um
intimo flerte com a música cubana e o flamenco espanhol.
Contudo, apesar de todas as instâncias culturais que atuam nas práticas musicais aqui
analisadas, creio que não há como mapear e quantificar de um modo preciso quais elementos
musicais fazem parte desta trama que resulta no DVD Fandango de Renato Borghetti. Talvez, e
muito provavelmente, ao analisarmos trabalhos anteriores e posteriores a este do mesmo artista,
identificaríamos diferentes nuances estéticas, diferentes influências, ou seja, diferentes
experiências de criação. Há, certamente, estruturas canônicas que “norteiam” o processo criativo
dessa música, mas o que define o resultado sonoro sempre deve ser a experiência pela qual, nesse
caso, juntamente com o grupo musical e equipe de gravação, o músico passa no desenvolvimento
de um trabalho. “Hacer música no es una forma de expressar ideias; es una forma de vivirlas”
(FIRTH, 2003, p. 187)
Neste sentido, o universo simbólico que compõe a montagem do DVD, além de
contextualizar culturalmente uma(algumas) identidade(s) do que seria um sujeito “gaúcho” (em
seus aspectos extra musicais), não apenas servem como pano de fundo, ou o leitmotiv, mas, mais
que um cânone a ser seguido, este processo desencadeia experiências musicais.

La cuestión no es cómo una determinada obra musical o una interpretación


refleja a la gente, sino como la produce, como crea y construye una experiencia
–una experiencia musical, una experiencia estética - que solo podemos
compreender si asumiois una identidade tanto subjetiva como coletiva. En otras
palavras, lo estético describe la calidad de una experiência (no de un objeto);
significa experimentarnos a nosotoros mismos (no sólo el mundo) de una manera
diferente. (FIRTH, 2003, p.185)

É a partir destas experiências de “nós mesmos”, que se estabelece as relações que


permitem a constituição das identidades. No caso aqui estudado, o universo do gauchismo e
aspectos mais “globalizados”, servem como condições de possibilidade. Contudo, é a partir da
experiência de gravar o DVD, a qual, à sua maneira, Renato Borghetti produziu um trabalho de
música instrumental gaúcha. “Este trabalho, Fandango, eu posso dizer que é o que eu imagino da
música gaúcha dentro de minha cabeça” (BORGHETTI, 2007). Estas condições de possibilidades
resultam na produção de identidades híbridas e fluidas, que estão passíveis de ganharem novas
significações a cada gravação.

Referências
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