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Novo-longa metragem de Tim Burton reinventa, revisa e reposiciona o clássico de Lewis Carroll com 3D moderado e
um verdadeiro trabalho de equipe. Nessa versão, cair no buraco do Coelho Branco é o menor dos seus problemas…
divirta-se!
Embalado por uma ostensiva campanha visual em todo mundo e, claro, grande expectativa por
conta da mais nova colaboração entre Burton e Depp, Alice no País das Maravilhas estreou
com força total, faturou mais de US$ 200 milhões no primeiro fim de semana e desbancou
Avatar como melhor abertura da história. Também pudera, teve cerca de 220 salas 3D a mais
que o filme de James Cameron – é o mercado em franca expansão para atender à crescente
demanda da tecnologia – e a máquina de fazer dinheiro chamada Walt Disney. Tudo isso,
claro, conseqüência de um trabalho que começou na infância de Tim Burton, quando o diretor
leu o clássico de Lewis Carroll pela primeira vez.
As novidades dessa nova versão concentram-se no aspecto do formato, afinal, mesmo com
roteiro diferente do livro, os elementos são os mesmos. Alice, as Rainhas – Branca e de Copas
-, o Chapeleiro Maluco, o Coelho Branco e demais personagens do mundo maluco e
tresloucado conhecido como País das Maravilhas. Ao optar pelo uso contido da tecnologia 3D,
Tim Burton coloca a responsabilidade nas costas de seu elenco, muito valorizado, mesmo
inserido num ambiente repleto de cores [numerosas, mas nem tão brilhantes e atraentes
como sugeriam seus pôsteres] e cenários fantásticos.
A própria história busca sua maturidade. Alice (Mia wasikowska) não foge apenas das pressões
de uma sociedade machista, mas corre em busca do passado idílico, no qual a presença do pai
a confortava. Nesse mesmo passado existe a lembrança de um sonho maluco: o País das
Maravilhas. Aprenda seu passado, aprimore o futuro. Mas nesse caso, os períodos voltam a se
encontrar quando Alice despenca buraco abaixo. É o início de sua nova jornada, menos
formativa que as anteriores, mais definitiva por seu momento pessoal. Toda pessoa boa é
meio louca, diz o pai de Alice. Está certo. Imaginação e criatividade valem mais que qualquer
convenção social quando se sonha com algo mais que uma vida trivial.
Tal jornada beira o xamanismo, repleto de animais de poder, música marcante, reflexos do
mundo real, mensagens e uma tarefa. Tão habilmente quanto Neil Gaiman faz em Deuses
Americanos, a trajetória de Alice a confronta com algo capaz de mudar sua vida. Ela não quer,
mas vai fazer o que precisa. E vai mudar. Entretanto, como o Sombra de Gaiman, a grande
pergunta fica na capacidade de assimilação da experiência. Ou seja, quanto amadurecimento
isso vai gerar.
Tim Burton considera uma mistura de contos de fadas com história de terror, acontecendo de
forma independente ao original da Lewis Carroll. Já Linda Woolverton, a roteirista, tem outra
opinião: “é uma continuação; uma história revisionista, ou melhor, um exemplar do nonsense
cinematográfico”, disse à revista Script. Essa dissonância criativa mesmo entre os criadores da
obra reforça um das maiores qualidades dos contos de fadas: pluralidade de interpretações. O
material base é um só, entretanto, Burton imprimiu sua visão, enquanto Woolverton pode
fazer sua contribuição [pesada, aliás, criando nomes, situações e contextos inéditos à obra de
Carroll]. Atualidade sobrepondo o clássico, necessidade de uma nova dinâmica tão
alucinadamente veloz e competitiva que nem mesmo Carroll antecipou quando lançou a
pequena Alice no buraco pela primeira vez.
A história de Alice nasceu como conto infantil, evoluiu para uma complexa provocação
matemática e consolidou-se por sua capacidade semântica e criativa. Tudo para instigar as
mentes juvenis da virada do século 19, quando o mundo ainda precisava ser explorado e a vida
era difícil, mesmo para uma burguesia limitada por seus portões de aço ou mansões cercadas
pela pobreza do proletário industrial. As barreiras modernas são outras e o amadurecimento
de Alice caminha na direção da independência – pessoal, sexual, comportamental. É a jovem
atual e, no mundo virtual de seus sonhos, pode tudo. Muda de tamanho, de visual, de idéia, de
postura e precisa mata um monstro por dia. Alice não é mais menininha e não há príncipe
encantado vindo salvá-la, pelo contrário, só ela pode decidir o destino do País das Maravilhas.
Por ser uma história seminal e extremamente influente, Alice requer cuidados em seus
paralelismos. Não é ela quem se espelha no mundo atual, ao contrário, é nossa modernidade
que encontra raízes nos dilemas da pequena sonhadora. Quase adulta na nova versão,
enfrente dilemas tão atuais em 1865 quanto em 2010. Mudam-se os formatos e nomes,
porém, o ser humano é o mesmo. Assim como suas mazelas. Carroll foi elogiado – e acusado
por seu suposto interesse sexual nas irmãs Liddell (Alice, Lorina e Edith), para quem inventou a
história, em especial pela fotografia que tirou de uma delas, Alice. Tivesse publicado seu surto
no mundo moderno, enfrentaria chacota, apologia a entorpecentes e fracasso inevitável. A
mesma inocência que Alice tentava se livrar desesperadoramente, é justamente o que nos
acomete atualmente.
Tim Burton não é inocente, nem prega tal conceito. Mas gosta de falar sobre amadurecimento,
escolhas e as situações constrangedoras que fazem parte desse processo. Difícil entre escolher
entre ter mãos de tesoura na casa de uma vendedora da AVON e conversar com animais
falantes na terra onde a Rainha de Copas pode cortar sua cabeça! Sua assinatura está em Alice
no País das Maravilhas, mas, dessa vez, ele se comporta como espectador, em vez de maestro.
Permite que esse mundo se desenvolva e assiste, de camarote, ao maior dos espetáculos: ver a
nossa reação a essa espiadela num lugar onde nada é o que parece e tudo pode acontecer,
contanto que você não perca a cabeça! É o pintor, pintando o pintor, que pinta o pintor, que
pinta… e no fim das contas, alguém sabe por que o corvo se parece com a escrivaninha?