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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS


1. O autor e a literatura infantil 2. O sonho de Alice

Conta-se que Alice no país das maravilhas surge


No verão, na tarde de ouro,
de um passeio de barco que o professor de matemática,
Deslizamos vagarosamente.
Charles Lutwidge Dodgson, fez com as filhas de Henry
Nossos remos são manejados
Liddell, reitor do Christ Church, da Universidade de
Oxford, pelo rio Tâmisa. Com ele, estão as três irmãs: Sem perícia, no sol ardente:
Lorina, Alice e Edith. Assim como o passeio, eram comuns Mãos gentis, que fugindo vão
os contos de fadas narrados de improviso pelo professor Guiar nosso passeio errante.
para agradar às meninas. Mas o manuscrito sobre a narra-
tiva do dia 4 de julho de 1862 dedicada à Alice Liddell Ah, cruel trio, que em tal hora,
ganharia o papel ainda com quatro capítulos ilustrados pelo Sob o céu de esplendor e sonho,
próprio autor. Em 1865, sob o pseudônimo de Lewis Implora um conto sem vigor
Carroll, foram publicados 12 capítulos, com ilustrações de E de pobre alento, enfadonho.
John Tenniel (1820-1914). Mas que pode tão fraca voz
Alice no país das maravilhas teve grande Contra o coro infantil, risonho?
aceitação do público infantil na Grã-Bretanha. Na Era
Vitoriana (1837-1901), a literatura infantil era marcada Prima decreta, imperiosa:
pelo moralismo e pela prescrição dos bons costumes. A “Agora, por que não começa?...”
personagem Alice, em sua atitude desafiadora sustentada Em tom brando, Segunda roga:
pelo universo onírico, funciona como uma antítese do “Que seja sem pé nem cabeça!”
modelo racional previsto para o sujeito da sociedade E Tertia, uma vez por minuto
vitoriana. Ao questionar a utilidade dos livros sem Fala somente, não se apressa.
diálogos e desenhos, Alice, além de romper com o
didatismo da literatura infantil do período, também sugere Logo mais se calam, de súbito,
não querer ser tratada como uma adulta em miniatura. Sua E vão seguindo em fantasia
decisão em seguir o Coelho e sua queda ao mundo do A viagem-sonho da heroína
sonho e do grotesco são um convite à imaginação e à No país de assombro e magia
fantasia, elementos pelos quais a criança se faz criança. Em alegra charla com os bichos.
Em 1872, Lewis Carroll publica Alice através do E creem um pouco na utopia.
espelho, seguindo os traços marcantes do estilo dado em
sua obra inicial: a inventividade verbal, o nonsense, a Quando a estória já se esgota
sátira e a paródia. A fortuna crítica de Alice no país das – Seco o poço da imaginação –
maravilhas permitiu-lhe lugar na História da Literatura Tenta habilmente o contador
Ocidental. A força simbólica de sua narrativa permite uma Desviar-se do assunto, em vão:
fertilidade interpretativa e inesgotável, apesar de suas “Conto depois...” “Já é depois”,
referências ao contexto sociocultural que circunda seu Elas protestam em confusão.
tempo de enunciação nos meados do século XIX inglês.
Lewis Carroll, que nascera em Daresbury, na Inglaterra, E assim cresceu este País
em 27 de janeiro de 1832, cresceu em uma família Das Maravilhas. Uma a uma
anglicana rodeado de irmãos. Depois de uma longa vida Surgiram as suas aventuras.
dedicada à docência e ao universo infantil, morre em Está pronta, sem falha alguma
janeiro de 1898. Sua voz narrativa, que a priori intencio- A estória. Voltamos lépidos
nava o mundo infantil, há tempos passeia por outros Antes que o sol da tarde suma.
universos das artes e do pensamento.

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Alice decide testar seus conhecimentos. Tenta uma


Alice! Recebe essa estória multiplicação, mas desiste por não atingir o número vinte.
E com mãos gentis deposita Da tabuada passa para a Geografia, mas confunde os
Lá longe, onde os sonhos da infância nomes de algumas capitais. Alice insiste em recitar um
Se confundem com lembranças idas, poema, porém sua voz e palavras são estranhas. Em
Tal guirlanda de flores murchas solidão, chora mais uma vez. Ela começa a encolher.
Em distante terra colhidas. Pequena, e feliz por existir, pode passar para o jardim. No
entanto, escorrega e cai no lago de suas próprias lágrimas.
(Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Sebastião Uchoa Leite.
São Paulo: Editora 34, 2016, p. 5.)
Ela nada pelo mar de suas lágrimas até se deparar com um
Rato e tenta falar com ele. Sem obter resposta, ela
pergunta pela saída. Alice, então, pensa que o Rato talvez
3. Capítulos do livro seja francês. Ela lembra da primeira frase de seu livro de
francês e a repete: Où est ma chatte? (“onde está minha
gata?”). Assustado, o Rato diz que não gosta de gatos.
Capítulo 1. Na toca do Coelho Para mudar de assunto, Alice pergunta se o Rato não gosta
Cansada de livros sem figuras e diálogos, em cujas de cachorros. Ele então a convida para ir à praia. Lá ela
estórias já não prosperava a imaginação, Alice cai num saberia por que o Rato não gosta de gatos nem de
sonho profundo e vê passar por ela um Coelho Branco. cachorros. Já é tempo de partir, pensa Alice. Muitas
Preocupado com o horário, o Coelho tira um relógio do criaturas estranhas estão agora em seu mar de lágrimas. E
bolso do colete. Curiosa, Alice segue-o até uma grande ela nada, assumindo a liderança.
toca. Ao entrar, cai em um grande túnel de paredes cheias
de armários. A queda é tamanha que Alice pensa que Capítulo 3. Uma corrida eleitoral e o longo
poderia chegar ao centro da terra. Ao término da queda,
rabo de uma história
apesar da escuridão do fundo do poço, segue o Coelho até
chegar a uma sala com diversas portas. Uma chavezinha Um grupo singular se reúne à margem do lago.
dourada, por sobre a mesa, serve para abrir uma delas. Encharcados, aves e animais questionam sobre como se
Assim o faz e percebe que a pequena porta era a passagem secariam outra vez. Alice discute com o Papagaio, o qual
para o mais belo jardim. Mas, com seu tamanho, é se julga mais sábio por ser mais velho. O Rato chama a
impossível a travessia. Nesse momento, Alice encontra atenção de todos, que formam um círculo ao seu redor
uma garrafa com a inscrição “beba-me”. Prudentemente, para ouvi-lo. Ele conta a história de Guilherme, o Con-
checa se o líquido não é veneno e toma-o todo. Encolhe quistador que, apoiado pelo Papa, obteve a submissão dos
até a altura de vinte e cinco centímetros. Agora pode ingleses. Estes, habituados à usurpação e às conquistas,
passar para o jardim. Mas lembra que a chave ficou sobre necessitavam de um líder. A história do Rato não seca o
a mesa e chora ao perceber que, pequena do jeito que corpo de Alice, o que a deixa melancólica. Dodô propõe
estava, não conseguiria alcançar a mesa.Vê uma caixa de uma corrida eleitoral: correr dentro de um círculo de
vidro com um pequeno bolo com as palavras “coma-me”. forma desordenada por cerca de meia hora, até que todos
No intuito de ficar maior, pois queria de qualquer modo estivessem enxutos de vez. Quando foi perguntado sobre
entrar no jardim, Alice come um pedacinho do bolo. Mas como se definia o vencedor, Dodô diz que todos merecem
não cresce. Isso a entristece por não ser nada extraor- ser premiados. Os prêmios seriam entregues por Alice. A
dinário. E come o bolo de uma vez. menina tira uma caixinha de bombons do bolso e os
distribui. Mas o Rato observa que também Alice merecia
um prêmio. Dodô percebe que ela tem um dedal no bolso.
Capítulo 2. O mar de lágrimas Ele o toma para si e o entrega novamente a Alice. Tudo é
Depois de comer o resto do bolo, Alice cresce tanto tão absurdo para a garota, mas a seriedade do grupo
que se despede dos próprios pés. Pensa em enviar para impede o seu riso. Ela agradece solenemente.
eles um presente no Natal. Com dois metros e meio de
altura, pega a chavezinha dourada para abrir a pequena
Capítulo 4. O Coelho dá um encargo a Bill
porta. Chora novamente: seu tamanho não permite que ela
chegue ao jardim. Suas lágrimas formam uma lagoa. Mas, O Coelho Branco caminha ansiosamente preocupado
ao escutar o barulho de passos, enxuga os olhos para ver com a repressão da Duquesa. Alice o ajuda a procurar suas
quem era. Questiona se ainda continua a mesma menina e luvas e leque. O Coelho a chama de Mary Ann, o nome de
pensa em todas as amigas que conhecia para ver se havia sua empregada. Ordena que Alice procure pelos itens. Na
se transformado em alguma delas. Ada e Mabel, conclui, busca, Alice encontra uma pequena casa em cuja porta
são diferentes. A primeira tem cabelos encaracolados e a estava escrito “Coelho B”. Entra em um quarto muito
segunda não é inteligente. Tudo se mostra complicado, e pequeno e encontra uma garrafa com as palavras
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“Beba-me”. Cansada de ser tão pequenina, toma o líquido Capítulo 6. Porco e pimenta
na esperança de crescer novamente. Aumenta tanto de Diante da casa, avista um Lacaio, por estar de libré.
tamanho que sua cabeça atinge o teto e seu corpo ocupa Ele bate a porta, a qual logo é aberta por outro Lacaio com
todo o espaço do quarto. Seus braços saem pelas janelas, olhos de rã. O Lacaio-Peixe entrega um envelope destina-
e um pé, pela chaminé. Alice acredita estar em um conto do à Duquesa. Trata-se de um convite da Rainha para o
de fadas. Pensa em escrever uma história. Ela encolhe e jogo de croqué. Eles se cumprimentam enrolando suas
quando sai, encontra com uma multidão de animaizinhos cabeleiras, o que desperta o riso em Alice. Ela bate à porta,
que a hostilizam. Com medo, Alice corre. Deseja voltar mas o mordomo diz que isso era inútil porque não havia
ao seu tamanho normal e também reencontrar o caminho porta entre eles, pois estavam do mesmo lado. A porta se
lindo do jardim. Percebe um latido. Um cachorrinho olha abre e a menina aproveita uma brecha e entra. A passagem
para ela. Alice estende um graveto e o cão responde aos dá para uma ampla cozinha, em cujo centro está sentada
seus comandos. Na brincadeira, o cão quase a pisoteia. a Duquesa segurando um bebê. Há um cheiro forte de
Cansado, ele dá uma brecha para que Alice escape. Ela pimenta no ar. A Duquesa acalenta seu bebê, mas logo
precisa crescer de novo. Pensa em comer algo, mas não solta um grosseiro “porco!” Mesmo espantada, Alice
sabe o quê. Talvez o cogumelo cuja altura se aproximava questiona por que o gato da Duquesa ria de um jeito tão
da sua. Mas, quando olha para o alto do cogumelo, avista intenso. A cozinheira tira o caldeirão do fogo e lança o que
uma lagarta azul fumando distraidamente um cachimbo está ao seu alcance na direção da Duquesa e do bebê. A
turco. Duquesa emenda uma canção de ninar bizarra (Espanca
de forma violenta/ Teu filho, se espirrar,/Ele sabe que isso
Capítulo 5. Conselhos de uma lagarta atormenta,/ E quer nos irritar.) para o bebê, sacudindo-o
Depois de muito esforço para romper com o discurso violentamente. Depois, oferece-o a Alice para que ela
lacônico da Lagarta, Alice tenta explicar quem era e também o ninasse. Em seu colo, a menina percebe que o
confessa que está com a memória fraca. Tenta recitar um bebê mais parecia uma estrela do mar e bufava como uma
poema, mas as palavras lhe saem diferentes. A Lagarta locomotiva. Alice consegue acalmá-lo. Pensa em tirá-lo
sugere outro poema, e Alice recita-o prontamente. daquele ambiente para que não o matassem. Mas, ao
A Lagarta pergunta de que tamanho Alice gostaria de ser. perceber que se tratava de um porco, fica feliz por não ter
A menina, que nunca fora tão contestada, responde que, de levá-lo para sua casa quando regressasse. Imagina que,
pelo menos, um pouco mais de oito centímetros, medida se ele crescesse mais um pouco, seria uma criança
que achava insignificante. Rispidamente, a Lagarta extremamente feia, e pensa nas crianças conhecidas que
responde que oito centímetros são uma altura muito boa, dariam belos porquinhos. O Gato de Cheshire aparece
demonstrando ser essa a sua própria medida. Alice desce sentado em um galho de árvore. Alice pergunta a ele qual
do cogumelo e, ao se afastar, ouve um conselho da Lagarta, era o caminho para sair dali. Em seguida, questiona que
a qual que um lado daria o crescimento e o outro, o tipo de gente vivia naquele lugar. E descobre que em uma
encolhimento. Alice pensa em como definiria os lados de direção, morava um Chapeleiro; em outra, a Lebre de
algo que era redondo. Então, come um pedacinho do lado Março. Ambos loucos, segundo o Gato. Alice diz que não
direito e sente seu queixo bater em seu pé. Com muita quer se encontrar com gente louca. Mas isso era
dificuldade consegue abocanhar um pouco do lado inevitável, conclui o Gato, afinal, todos eram loucos,
esquerdo e cresce tanto que seu pescoço parece uma inclusive Alice. Somente o cachorro não era louco por
chaminé. Alice fica feliz por seu pescoço ser como uma balançar o rabo quando está feliz. Já ele, por fazer o
serpente. Suas mãos, por fim, tocam na copa de uma contrário, era louco. Já a loucura da garota se justificava
árvore. Nesse momento, aparece uma Pomba que pensa pelo simples fato de estar ali. O Gato pergunta a Alice se
estar vendo uma serpente. E reclama por ter de vigiar as ela jogaria croqué com a Rainha. A menina diz que
serpentes pelos últimos três dias. Apesar de Alice afirmar gostaria muito, apesar de não ter sido convidada. Ele diz
não ser uma serpente, a Pomba segue desconfiada e que espera Alice no evento e esvai-se no ar. Alice caminha
pergunta se ela não comia ovos. Alice diz que é comum as e chega à casa da Lebre de Março.
meninas comerem ovos. Logo, as meninas são um tipo de
serpente, segundo a Pomba. Alice retorna ao cogumelo e Capítulo 7. Um chá de loucos
o mastiga de forma equilibrada até atingir seu tamanho A Lebre de Março e o Chapeleiro tomam chá diante
normal. Mas faltava ainda entrar naquele lindo jardim. da casa. Um Leirão está entre eles e é usado como
Chega a uma clareira, em cujo centro havia uma pequena almofada. A mesa é grande, mas, quando avistam Alice,
casa de um metro e vinte de altura. Ela decide entrar, mas, dizem que não havia mais lugar. A Lebre oferece vinho,
para não assustar seus moradores com seu tamanho mas Alice só vê chá sobre a mesa. A garota rechaça a
normal, come outro pedaço do cogumelo de sua mão atitude da Lebre por oferecer algo não disponível. Esta
direita até que sua altura se ajustasse à da casa.
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devolve a admoestação criticando Alice por sentar à mesa param e olham para ela. A Rainha pergunta seu nome.
sem ser convidada. O chapeleiro julga que Alice devia Alice reponde à pergunta e pensa que não precisa ter medo
cortar os cabelos. Espontaneamente, Alice corrige-o, deles, pois todos não passam de um baralho de cartas. A
dizendo que era impróprio tecer comentários pessoais. O Rainha questiona quem eram aqueles deitados ao pé da
Chapeleiro arregala os olhos e desvia o assunto, ques- roseira e Alice diz que aquilo não era da conta dela. Com
tionando por que um corvo se parecia com uma escriva- raiva, a Rainha ordena que cortem a cabeça da garota.
ninha. Alice diz ter a resposta, apesar de dividida Esta, admirada com sua coragem, diz que tudo aquilo era
internamente. Eles se silenciam e, depois de descobrirem bobagem e a Rainha fica em silêncio. Depois ouve o
a data daquele dia, Alice percebe que o relógio contem- conselho do Rei, que pondera que ela era apenas uma
plado pela Lebre marcava os dias e não as horas, e acha criança. A Rainha ordena que aprisionem os três
graça. A Lebre se irrita e pergunta a Alice se o relógio dela jardineiros. Depois de perceber o que fizeram, decide por
marcava o ano. Estupefata, Alice diz que não, pois se fica decapitá-los. Eles pedem socorro a Alice, que diz aos
no mesmo ano uma porção de tempo. O Chapeleiro conclui soldados que permitiria tal ato. Ela esconde os três
que o seu relógio fazia o mesmo. Alice o critica por gastar jardineiros em uma jarra de flores. Os soldados desistem
tempo com enigmas. Ele pondera ser a expressão “gastar” de encontrá-los e seguem o cortejo afirmando à Rainha
inadequada, porque trata o tempo como se ele fosse uma que haviam cumprido a ordem. A Rainha pergunta a Alice
coisa. Ele é alguém. E aposta que Alice não havia se ela sabia jogar croqué. Alice responde que sim e segue
conversado com o Tempo. Alice diz que certamente não, e o cortejo. Aparece o Coelho Branco, e Alice pergunta
acrescenta que marca o tempo quando ouve música. Mas sobre o paradeiro da Duquesa. Esta fora executada por dar
o Tempo, segundo o Chapeleiro, não podia ser marcado um murro na Rainha. Alice ri intensamente. A soberana
como se fosse gado. Ele ainda explica que, se Alice vivesse convoca todos para o jogo. O campo era instável, as bolas
em paz com o Tempo, ele correria nos momentos ruins, eram ouriços vivos e os tacos eram flamingos também
como nas horas em que se tem de estudar. Depois, lamenta vivos. Os soldados formavam os arcos dobrando-se com
ter brigado com o Tempo em março passado, antes da as mãos e os pés. No jogo, Alice tem dificuldade em mane-
Lebre enlouquecer. Num concerto dado pela Rainha, o jar seu flamingo. Quando atinge o ouriço, seu flamingo
Chapeleiro deveria executar uma canção. Mas sua olha perplexo para ela, fazendo-a gargalhar. Todos jogam
apresentação não a agradou e ela disse que ele estava ao mesmo tempo. A Rainha fica possessa e manda cortar a
“matando o tempo”. Desde então, são sempre seis da tarde cabeça de um ou de outro jogador aleatoriamente. Alice
e não é mais possível lavar a louça entre um chá e outro. teme competir com a Rainha e ser decapitada. Avista o
Eles rodam em torno da mesa à medida que as louças se Gato de Cheshire e comenta que aquele jogo não era
sujam. Decidem contar estórias para mudar de assunto. honesto, pois não havia regra nenhuma.
Leirão começa a narrativa de três irmãzinhas que viviam de Nesse momento, percebe que a Rainha estava bem
melado. A Lebre oferece mais chá a Alice que, até aquele atrás dela ouvindo tudo. Alice então comenta que a
momento, não havia tomado a bebida! As irmãzinhas soberana era muito hábil no jogo. A Rainha sorri e se
viviam no fundo de um poço porque, segundo o Leirão, afasta. O rei pergunta quem era o Gato e Alice explica que
era um poço de melado. Alice diz que tudo aquilo era ele era seu amigo. O Rei antipatiza com ele e pede à
impossível e é tachada de mal-educada. Outra vez, Alice se Rainha que ele desapareça. Ela pede que lhe cortem a
vê dentro da sala comprida e ao lado da mesa de vidro. Já cabeça. Amedrontada com o autoritarismo constante da
experiente, a menina pega a chave, come o cogumelo e Rainha, Alice volta ao jogo. Apanha com dificuldade seu
diminui ao tamanho de trinta centímetros. Atravessa a flamingo e percebe que todos os arcos haviam sumido.
pequena passagem e entra no jardim, um lindo jardim com Decide voltar para seu amigo e presencia uma calorosa
belos canteiros e muita água fresca. discussão sobre a decapitação do Gato. Este, que apenas
mostrara a cabeça em sua aparição, seria passível de
Capítulo 8. O campo de croqué da Rainha decapitação? Para o Rei, todos que possuíssem cabeça
poderiam ser decapitados. Já a Rainha ameaça a degola
Três jardineiros – Sete, Cinco e Dois – ocupam-se em geral, caso não apresentem uma solução paro o imbróglio.
pintar de vermelho as rosas brancas de uma grande roseira Alice intervém dizendo que só a Duquesa poderia dar uma
à entrada do jardim. Eles discutem sobre o trabalho e resposta, uma vez que era a dona dele. A Rainha manda o
Cinco fala sobre o risco que Sete teve de ser decapitado carrasco buscá-la na prisão e, nesse ínterim, o Gato some
pela Rainha por levar tulipas em vez de cebolas para totalmente, enquanto o restante do grupo volta ao jogo.
cozinhar. Alice pergunta por que eles estavam pintando as
rosas e um deles responde que plantaram rosas brancas
por engano e podiam ser decapitados pela soberana. Cinco Capítulo 9. A história da Falsa Tartaruga
grita “A Rainha!” e todos se jogam ao chão para não A Duquesa se mostra feliz por reencontrar Alice. Na
serem vistos. Quando o cortejo passa por Alice, todos caminhada, a garota pensa em não ter pimenta nenhuma
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quando for uma Duquesa. A pimenta torna as pessoas obviamente, sapatos e botas são “enchovalhados” com
belicosas. Essa proposição deixa Alice contente, pois se enchovas e não com escovas. Alice pensa na canção e na
mostra como um novo tipo de regra. E acrescenta que o obrigação das enchovas em aceitar o boto. O Grifo pede
vinagre torna as pessoas azedas e a camomila deixa as a ela que conte suas aventuras. Alice começa sua narrativa
pessoas amargas. Já o açúcar deixa as pessoas doces e a partir do momento em que viu o Coelho Branco, depois
suaves, e seria bom que os adultos soubessem disso. A recita uma canção que sai totalmente diferente. Depois, a
Duquesa se aproxima de Alice e a menina não gosta Falsa Tartaruga pede outra canção e Alice, cheia de tantas
porque a Duquesa é muito feia. Mas ela insiste e pousa o ordens, recita-a também de forma muito estranha. A
queixo no ombro de Alice. Para mudar de assunto, Alice menina se entristece e pensa se voltaria a ser como antes.
comenta sobre o jogo e a Duquesa explica sentencio- Ela tenta outra canção e é criticada pela Falsa Tartaruga
samente que é o amor que faz o mundo girar. Alice por não explicá-la enquanto a recita. Esta então decide
comenta que o mundo gira quando cada um cuida de sua cantar e, quando chega ao coro, ouve-se que o julgamento
vida, o que dá no mesmo, segundo a Duquesa. E havia começado. Todos correm.
acrescenta a moral: Cuide dos sentidos, que os sons
cuidarão de si mesmos. Alice observa que poderia Capítulo 11. Quem roubou as tortas
entender melhor todos esses apontamentos se visse tudo
escrito. No jogo, a Rainha continua a gritar “cortem a O Rei e a Rainha estão cercados por enorme multidão.
cabeça!” e logo não há mais arcos no campo, já que os Alice jamais estivera em uma corte de justiça, mas
sentenciados deviam ficar sob a custódia dos soldados. A identifica o juiz por causa da peruca. O juiz era o próprio
Rainha pergunta a Alice se ela não conhecia a Falsa Rei, que ordena ao Coelho Branco que leia a acusação.
Tartaruga. Alice e a Rainha chegam junto a um Grifo que Ele desenrola o pergaminho e recita: A Rainha de Copas
dormia profundamente. A Rainha ordena-lhe que assou umas tortas/num dia de verão./O Valete de Copas
levassem Alice até a Falsa Tartaruga. O Grifo ri e diz que roubou essas tortas/sem nenhuma razão. O Rei ordena ao
tudo aquilo era fantasia da Rainha, pois eles nunca júri que pense no veredicto. Mas o Coelho diz que havia
executavam ninguém. Ele leva Alice para encontrar com muito o que fazer ainda. Ele chama a primeira testemunha,
a Falsa Tartaruga. A Falsa Tartaruga suspirava de tristeza o Chapeleiro. Alice sente que está crescendo outra vez. A
quando o Grifo lhe apresenta Alice, dizendo que a menina Rainha pede a lista dos cantores que participaram do
gostaria de ouvir a história dela. A Falsa Tartaruga conta último concerto. O Chapeleiro dá início ao seu depoi-
que, certa vez, ela fora uma verdadeira tartaruga. Quando mento desastrado e, ao fim, recebe a condenação da
pequena, ela frequentava uma escola no mar. A professora Rainha. Em seguida, chamam a cozinheira da Duquesa.
era uma velha tartaruga chamada de Torturuga, já que era Todos espirram, pois ela entra com uma pimenteira na
uma tortura aprender com ela. Na escola, havia matérias mão. Ela nega dar seu depoimento, porém, responde que
suplementares, como francês, música e lavagem, mas a as tortas são feitas de pimenta, principalmente. Mas o
Falsa Tartaruga não tinha recursos para pagar esses cursos. Leirão diz que são feitas de melado e a Rainha ordena que
lhe cortem a cabeça. O tribunal entra numa tremenda
confusão e a cozinheira desaparece. O Coelho Branco se
Capítulo 10. A quadrilha da Lagosta atrapalha com a lista de testemunhas e Alice fica curiosa
A Falsa Tartaruga observa que Alice talvez não tenha para saber quem seria a próxima. Foi quando o Coelho
vivido muito tempo sob o mar, tampouco tenha sido apre- Branco disse o nome “Alice”.
sentada a uma lagosta. Em seguida, deixa Alice curiosa
ao falar da Quadrilha de Lagostas. A Falsa Tartaruga e o Capítulo 12. O depoimento de Alice
Grifo tentam explicar o funcionamento da dança, mas se
atrapalham. Alice agradece pela exibição e acha muito Quando é chamada, Alice diz “presente!” e, ao se
interessante a dança. Diz achar curiosa a canção sobre a levantar, derruba todos que estavam em seu banco. Ela
enchova. A Falsa Tartaruga pergunta se ela já vira alguma esquecera o quanto havia aumentado de tamanho. Ela se
enchova. Alice tenta uma descrição e diz que as enchovas desculpa e pensa em juntar aquelas criaturas como se
tinham o rabo na boca e que eram cobertas de farelo de fossem peixinhos que tivessem caído de um aquário. Alice
pão. Deste último elemento, discorda a Falsa Tartaruga. coloca o lagarto de cabeça para baixo e deixa o bicho
Depois, o Grifo explica a razão pela qual as enchovas traumatizado, olhando para o teto do tribunal de boca
tinham o rabo na boca: as enchovas queriam participar da aberta. Todos se recompõem e o Rei pergunta a Alice o
dança das lagostas, mas foram atiradas e passaram muito que sabia do caso. Ela responde que não sabia absolu-
tempo em queda livre. O Grifo acrescenta que as enchovas tamente nada. O Rei, a princípio, achou isso importante,
são usadas no fundo do mar para “enchovalhar” sapatos e mas com a correção do Coelho Branco, muda a palavra
botas. Alice, perplexa, diz que sapatos são lustrados com para desimportante. Alguns jurados escreveram “impor-
escovas. Mas no fundo do mar, conclui o Grifo, tante”; outros, “desimportante”. Em seguida, o Rei lê o
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Artigo Quarenta e Dois, que diz que Todas as pessoas com termo em inglês que significa “ausência de sentido”.
mais de um quilômetro e meio de altura devem abandonar As regras desse jogo, já no início da narrativa, estabe-
o tribunal. Todos olham para Alice, que diz que não iria lecem-se pela subversão da lógica, a qual é percebida pelo
obedecê-lo porque o Rei acabara de inventar tal artigo. O leitor por participar do senso comum que opera inicial-
Rei observa que esse era o mais antigo código. Alice mente nas atitudes de Alice. Sua perplexidade é compar-
argumenta que, então, ele devia ser o número um. tilhada a cada evento grotesco, a cada angústia diante do
Empalidecido, o Rei pede, com voz trêmula, que o júri dê devir, a cada quebra de expectativa promovedora do riso.
o seu veredicto. O Coelho Branco interrompe e diz que Esse jogo provoca uma quebra de paradigma na
havia um documento para ser analisado. Ele desdobra o literatura infantil, que até então cumpria com os preceitos
papel e percebe que se tratava de uma porção de versos. A morais e didáticos da Era Vitoriana. No reinado da rainha
escrita não parecia ter sido feita por um prisioneiro, o que Vitória (1837-1901), a sociedade inglesa vivenciou um
gera estranhamento nos membros do júri. O Valete se momento de grande euforia e transformações culturais, ao
apronta a dizer que não fora ele o autor dos versos. Não mesmo tempo em que vigoravam os preceitos de um
havia prova porque ninguém assinou embaixo, acrescenta moralismo conservador. Com efeito, a narrativa nonsense
ele. O Rei observa que isso tornava pior a sua situação, de Carroll mostra-se como um ponto de inflexão pelo qual
porque uma pessoa honesta assina seus próprios escritos. se rompe com o didatismo que marcara o universo da
O público aplaude o soberano e a Rainha vê nisso a prova leitura das crianças e que sempre culminava em uma
de que o Valete era o culpado. Alice interfere dizendo que “moral da história”.
isso não era prova alguma. Era preciso saber o que diziam Como narrativa que, a princípio, nasce da oralidade, e
os versos. O Rei ordena a recitação, ponderando ao que obedece, portanto, a certos preceitos como a recolha de
Coelho Branco, que não sabia por onde começar, que se elementos do mundo cotidiano do ouvinte, Alice no país
começasse pelo começo e que se parasse ao fim. Ao das maravilhas apresenta diversos elementos que partici-
término da leitura, nenhum presente no tribunal conseguiu pam de seu contexto cultural. No exercício da paródia,
dar o sentido do poema, apesar de o Rei dizer que era a gênero que se constrói a partir da imitação sarcástica de
prova mais importante que se apresentara naquele dia. gêneros elevados, Carroll remete a provérbios, canções,
Afinal, se não havia sentido, não era preciso procurar anedotas que eram familiares ao leitor no tempo de
sentido. Aponta, em seguida, que um verso dizia “eu não enunciação de sua obra e que, hoje não escapa só a nós,
sei nadar”, um atributo que cabia também ao Valete. A mas também ao leitor inglês, que normalmente reconhece
Rainha pede a sentença antes do veredicto. Alice protesta o texto de partida da paródia pela própria obra de Carroll.
e é condenada a perder a cabeça. Mas ninguém se move. Apesar das referências a seu contexto de enunciação, a
Alice diz a Rainha que ninguém se importava com ela e narrativa de Carroll ganha valor simbólico mais amplo por
acrescenta que eles não passavam de um jogo de cartas. conta da performance do narrador que, ao partir do mundo
Nesse momento, todo o jogo de cartas voou para cima e de suas ouvintes iniciais, atinge o universo infantil por meio
voltou em sua direção. Alice se assusta e acorda no colo da imaginação e da perplexidade. As vivências inusitadas
de sua irmã. Alice conta suas aventuras e segue para o seu de Alice transcendem o contexto de produção da obra.
chá, pensando no sonho maravilhoso que teve. E sua irmã, Nesse intuito transformador, as ilustrações são de
pensando nas maravilhosas aventuras de Alice, tem o seu suma importância, uma vez que corroboram o grotesco
próprio sonho envolvendo as personagens das estórias que como um dois pilares da representação literária de Carroll
acabara de ouvir. E, finalmente, imagina o quão afetuoso ao legitimarem a estranheza intencionada pelo nonsense.
seria o coração da Alice adulta que, talvez rodeada de As distorções da imagem, além de exemplificarem o
crianças, pudesse contar suas aventuras dos tempos felizes espanto de Alice diante do fantástico, promovem a quebra
de sua infância. da expectativa lógica do leitor e, com efeito, fundamentam
o tom humorístico que modula a narrativa. No final das
contas, o fantástico gera o riso que, por sua vez, sugere
4. Considerações acerca de Alice no país uma moral, ou, no mínimo, uma nova percepção do real.
das maravilhas Nesta subversão, o nonsense que sustenta a intriga da
narrativa remete, ainda que erroneamente, ao Surrealismo,
vanguarda heroica que compõe a tradição da ruptura dada
Nos doze capítulos que compõem Alice no país das pela Arte Moderna. O estilo surrealista emprega a “escrita
maravilhas, os eventos incomuns que marcam a viagem automática” para reproduzir conteúdos que emergem
onírica da protagonista sugerem uma espécie de colagem instantaneamente do inconsciente e que são associados de
de pequenas histórias, cujo fio condutor é o fantástico. O forma insólita, representando o real de forma desorga-
leitor é levado ao estranhamento que se dá por meio do nizada. O insólito, como elemento caro tanto ao Surrealis-
jogo entre a ancoragem do senso lógico, dado por seu mo quanto ao nonsense, manifesta-se pelo fantástico e
aprendizado de seu mundo da superfície, e o nonsense, pelo maravilhoso.
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O maravilhoso aparece quando tem de se admitir verificação. O nonsense, portanto, torna-se um exercício
novas leis da natureza para se explicar um determinado lógico como se nota no diálogo entre Alice e o Gato de
fenômeno. Por exemplo, quando Alice percebe os Cheshire:
mecanismos que possui para aumentar ou diminuir de
tamanho; ou quando compreende o motivo pelo qual as
“Mas eu não quero me encontrar com gente louca”,
louças estão sempre sujas na mesa da Lebre de Março e do
Chapeleiro. Já o fantástico reside no estranhamento que observou Alice.
advém da interpretação de um evento extraordinário. Por “Oh, não se pode evitar”, disse o Gato, “todos são
exemplo, quando Alice vale-se de seus conhecimentos de loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.”
mundo – do mundo da superfície –, para interpretar “Como sabe que eu sou louca?” indagou Alice.
eventos como o da passagem do tempo e a velhice ou “Você deve ser”, respondeu o Gato, “ou então não
mesmo para se revoltar diante do autoritarismo da Rainha. teria vindo aqui.”
Apesar do interesse comum pelo insólito, pelo sonho, pelo Alice não achou que isso comprovava nada; todavia
olhar infantil, o nonsense se difere do Surrealismo por
continuou: “E como você sabe que é louco?”
obedecer a um sistema de coerência interna entre os
elementos que compõem sua representação. O nonsense “Para começar”, disse o Gato, “um cachorro não é
opera de forma mais metódica e tende a explorar o lúdico. louco. Concorda?”
Enquanto gênero literário, o nonsense surge na “Acho que sim”, respondeu Alice.
Inglaterra vitoriana e tem como principais representantes “Bem”, prosseguiu o Gato, “você vê um cão rosnar
Edward Lear, cujo livro A book of nonsense, de 1846, traz quando está bravo, e abanar o rabo quando está
o termo nonsense pela primeira vez, e Lewis Carroll. Mas feliz. Agora, eu rosno quando estou feliz e balanço o
o nonsense do autor de Alice no país das maravilhas traz
rabo quando estou bravo. Logo, sou louco”
elementos novos: a lógica e a matemática como instru-
(Carroll, 2000, p. 84)
mentos do “sem sentido”, além das marcas comuns ao
gênero como a paródia, o grotesco e os jogos de linguagem.
Nesse exercício lúdico com a palavra, é comum ao Nesta conversa, percebe-se o seguinte raciocínio:
nonsense de Carroll o cruzamento vocabular pelo qual
palavras e conceitos se juntam como em lesmolisas (liso Todo ser que habita aquele lugar é louco.
como lesmas) ou Durmodongo (camundongo dormi- Alice está naquele lugar.
nhoco). Além da invenção da palavra, nota-se os jogos de Logo, Alice é louca.
linguagem que se estabelecem a partir dos elementos
comuns à lógica, em que as proposições, apesar de sua
organização formal, fogem do senso comum quando se Portanto, o nonsense se instaura em algum lugar em
aplica a verificação. que “a ordem da língua encontra a desordem (nunca total)
A ausência de referência aos fatos é o elemento do que está além dela” (Bastos, 2001, p. 21). E dessa
catalizador do nonsense. Como acontecimento, o nonsense relação fronteiriça emerge o sentido pelo estranhamento e
não pode ser caracterizado como falso, ou mentira, pois as pelo humor. A ausência de sentido das premissas e a
vivências acontecem mesmo que dentro do sonho de conclusão indevida rompem com a expectativa não só de
Alice. A lógica proposicional, como parte da lógica que
Alice, mas também do leitor que, imerso à lógica insólita
estuda as formas de argumentos, prevê a estruturação dos
enunciados que, além de se organizarem rigidamente no das aventuras de Alice, participa do jogo a que a obra se
plano da forma, devem ter consistência no plano do propõe. Nesse jogo de adequação, a linguagem de Alice
conteúdo. Este também passaria pelo método de impõe novas maneiras de perceber o mundo.

Exercícios
Texto para a questão 1. “Você deve ser”, respondeu o Gato, “ou então não
teria vindo aqui.”
“Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, Alice não achou que isso comprovava nada; todavia
observou Alice. continuou:
“Oh, não se pode evitar”, disse o Gato, “todos são “E como você sabe que é louco?”
loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Para começar”, disse o Gato, “um cachorro não é
“Como sabe que eu sou louca?” indagou Alice. louco. Concorda?”

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“Acho que sim”, respondeu Alice. 2. Considerando as intenções narrativas que marcam
“Bem”, prosseguiu o Gato, “você vê um cão rosnar Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll,
quando está bravo, e abanar o rabo quando está feliz. assinale a alternativa que comenta corretamente o
Agora, eu rosno quando estou feliz e balanço o rabo excerto anteriormente citado.
quando estou bravo. Logo, sou louco.” a) A aventura surge como um elemento narrativo pelo
“Eu chamo isso ronronar, não rosnar”, disse Alice. qual permite à narrativa seu caráter pedagógico e
“Chame como quiser”, disse o Gato. “Você vai jogar moralizante.
croquet com a Rainha hoje?” b) A atitude narrativa do narrador, diante das
“Gostaria muito”, falou Alice, “mas até agora não reivindicações das ouvintes, legitima o apelo à
fui convidada.” imaginação a partir do olhar da criança.
“Você me encontrará lá”, disse o Gato, e c) A oralidade, como marca discursiva do narrador,
desapareceu no ar. justifica-se pelo interesse de valorização e
transmissão das tradições culturais.
(CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Isabel d) O universo fantástico do “País das Maravilhas”, ao
de Lorenzo e Nelson Ascher. São Paulo: Objetivo, 2000, p. 84.) promover a imaginação, objetiva garantir à criança
a crítica ao mundo real.
1. No excerto acima de Alice no país das maravilhas,
nota-se um elemento marcante da literatura nonsense Texto para a questão 3.
de Lewis Carroll. Assinale a alternativa que identifica
e explica corretamente esse elemento. “Vamos, de que serve chorar assim?” disse Alice a si
a) Os diálogos contribuem para o efeito moralizante mesma, asperamente. “Aconselho você a parar com
intencionado pela narrativa que, pela fantasia, isso agora mesmo!” Ela geralmente dava conselhos
participa da tradição pedagógica da literatura muito bons a si própria (embora raramente os
infantil. seguisse), e às vezes se repreendia tão severamente
b) As falas sem sentido do Gato, ao serem confron- que seus olhos se enchiam de lágrimas; lembrou-se
tadas com a atitude crítica da protagonista, corro- que, uma vez, tentara dar um puxão nas próprias
boram o senso racionalista ao qual visa a narrativa. orelhas, por ter trapaceado numa partida de croquet
c) A conclusão falaciosa do Gato, além de subverter que jogava contra si mesma — pois esta menina
a lógica do senso comum, promove o humor ao curiosa adorava fingir que era duas pessoas! “Mas
corroborar o universo fantástico dado pela obra. de nada serve agora”, pensou a pobre Alice, “fingir
d) O tom conselheiro do Gato remete à tradição do que sou duas pessoas! Porque tudo o que sobrou de
diálogo como discurso, cuja finalidade é a mim mesma é pouco até para ser uma só pessoa
transmissão de valores e a busca da sabedoria. respeitável!”

Texto para a questão 2. (CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Isabel de
Lorenzo e Nelson Ascher. São Paulo: Objetivo, 2000, p. 25).
Quando a estória já se esgota
– Seco o poço da imaginação – 3. Em Alice no país das maravilhas, a protagonista
Tenta habilmente o contador vivencia situações inusitadas que promovem questio-
Desviar-se do assunto, em vão: namentos sobre sua própria identidade. Explique, com
“Conto depois...” “Já é depois”, base no excerto, como se constitui essa reflexão.
Elas protestam em confusão.
Texto para as questões 4 e 5.
E assim cresceu este País
Das Maravilhas. Uma a uma “Não sei o que você quer dizer”, disse Alice.
Surgiram as suas aventuras. “É claro que você não sabe!” disse o Chapeleiro,
Está pronta, sem falha alguma inclinando a cabeça com desdém. “Eu diria até
A estória. Voltamos lépidos mesmo que você nunca falou com o Tempo!”
Antes que o sol da tarde suma. “Talvez não”, respondeu Alice com cautela, “mas sei
que devo marcar o tempo quando aprendo música.”
(CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. “Ah! Isso explica tudo!” disse o Chapeleiro. “Ele não
Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 5.) suporta ser marcado. Agora, se você mantivesse com
ele boas relações, ele faria qualquer coisa que você
quisesse com o relógio. Por exemplo, suponha que

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fossem nove horas da manhã, justamente a hora de “É, é isso mesmo”, disse a Lebre de Março com um
começarem as lições: você teria apenas de sussurrar suspiro, “é sempre hora do chá, e nós não temos
uma dica ao Tempo, e o ponteiro giraria num piscar tempo de lavar a louça nos intervalos.”
de olhos: uma e meia, hora do almoço!”(“Como eu “É por isso que vocês ficam girando em torno da
gostaria que fosse assim mesmo”, sussurrou a Lebre mesa?” disse Alice.
de Março para si mesma.) “Exatamente”, disse o Chapeleiro, “conforme as
“Seria fantástico, com certeza”, disse Alice, louças vão ficando sujas.”
pensativa; “mas, então, eu ainda não estaria com “Mas o que acontece quando vocês retornam para o
fome, não é?” começo?” Alice ousou perguntar.
“Não a princípio, talvez”, disse o Chapeleiro, “mas “Que tal se mudássemos de assunto?” interveio a
você poderia permanecer à uma e meia por quanto Lebre de Março, bocejando. “Estou cansada deste.
tempo quisesse.” Meu voto é que a senhorita nos conte uma história.”
“É assim que você faz?” indagou Alice.
O Chapeleiro balançou a cabeça com desgosto: “Eu (Carroll, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad. Isabel de
não!”, disse. “Nós brigamos em março passado... Lorenzo e Nelson Ascher. São Paulo: Objetivo, 2000, p. 92.)
logo antes de ela ficar louca, sabe...” (apontou com
sua colher para a Lebre de Março), “foi no grande 4. Maravilhoso é um recurso narrativo pelo qual se
concerto oferecido pela Rainha de Copas, e eu tinha explica uma realidade a partir de leis que transcendem
de cantar (...) eu nem acabara o primeiro verso as leis comuns da natureza. Explique como ocorre
quando a Rainha bradou: ‘Ele está matando o tempo! essa estratégia narrativa no excerto acima de Alice no
Cortem-lhe a cabeça!’” país das maravilhas, do escritor inglês Lewis Carroll.
“Mas que selvageria!” exclamou Alice.
“E desde então”, continuou o Chapeleiro num tom 5. Identifique os argumentos que levam à conclusão
pesaroso, “ele não faz nada do que eu peço! São de que as louças da mesa do Chapeleiro e da Lebre de
sempre seis horas!” Março sempre estão sujas.

RESOLUÇÃO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS


1) O diálogo entre Alice e o Gato risonho exemplifica a 3) Em sua viagem onírica, Alice, depois de sucessivas
literatura nonsense de Lewis Carroll ao romper com mudanças de tamanho, cai em angústia por não saber
senso lógico comum por meio de uma estrutura mais quem é. Em seu monólogo, nota-se que seu eu
silogística de raciocínio que, por promover conclusões divide-se em dois diante das vivências inusitadas as
falaciosas, produz efeito humorístico e corrobora o quais Alice, por meio da lógica da superfície, já não
universo fantástico caro a Alice no país das maravilhas. consegue explicar. Essa quebra do princípio de
Resposta: C identidade, em que um ser é o que é e não pode ser de
outro modo, traduz a imaginação infantil e seus
2) A performance do narrador, cuja voz busca corres- processos de descoberta e, ao mesmo tempo, representa
ponder ao apelo das crianças que desejam estórias que o nonsense de Lewis Carrol, por meio do qual se rompe
reflitam o olhar de descoberta e imaginação, demonstra com a lógica do senso comum.
uma ruptura com a literatura infantil moralista a qual
se destinava a esse público; outro elemento, que se
sintoniza ao nonsense de Lewis Carroll, é a funda-
mentação da intriga a partir da fantasia em que a
prescrição dá lugar à curiosidade e à possibilidade de
desvelamento do real.
Resposta: B
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4) A explicação da passagem do tempo se dá a partir de 5) Como o Tempo parou às seis da tarde, momento em que
uma narrativa originária que configura o Tempo como se lavam as louças, nunca é possível lavá-las. Em uma
uma entidade que age em relação aos seres conforme é estrutura silogística, os enunciados seriam, aproxima-
tratado por eles. Isso se evidencia quando o Chapeleiro damente: 1) lavam-se as louças depois do chá das seis
entende o termo “marcar” não como metragem do da tarde; 2) sempre são seis da tarde; e 3) logo, toma-se
tempo musical, mas sim, como um ato de violência. Essa chá e nunca se lavam as louças.
interpretação permite a explicação da passagem
vagarosa do tempo ou mesmo de sua não passagem,
como acontece na cena do excerto, cujo tempo
permanece sempre às seis da tarde.

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