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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA PSICANALÍTICA DO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE


JANEIRO

DA INTERPRETAÇÃO AO ATO ANALÍTICO

Mônica Assunção Costa Lima

Rio de Janeiro, 2008


UFRJ

1
DA INTERPRETAÇÃO AO ATO ANALÍTICO

Mônica Assunção Costa Lima

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria


Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de doutor em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro, agosto de 2008

2
Da interpretação ao ato analítico
Mônica Assunção Costa Lima
Orientadora: Ana Beatriz Freire

Tese de doutorado submetida ao


programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Doutor.

Aprovada por:

Profa Dra. Ana Beatriz Freire (orientadora)

Profa Dra Giselle Falbo Kosovski

Prof. Dr. Luiz Moreira de Barros

Prof. Dr. Ram Avraham Mandil

Porfa. Dra. Regina Herzog de Oliveira

Rio de Janeiro
Agosto de 2008

3
Lima, Mônica Assunção Costa
Da interpretação ao ato analítico/Mônica
Assunção Costa Lima. - Rio de Janeiro:
UFRJ/Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica, 2008.
xi, 248 f, il.
Orientadora: Ana Beatriz Freire
Tese (doutorado)-UFRJ/Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.
Referências Bibliográficas: 11 f.
1 Interpretação. 2 Desejo 3 Objeto
4 Inconsciente 5 Ética 6 Ato Psicanalítico.
I Freire, Ana Beatriz. II Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro/Programa de Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica. III Da
interpretação ao ato analítico.

4
Resumo

Da interpretação ao ato analítico

Mônica Assunção Costa Lima


Orientadora: Ana Beatriz Freire
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
Doutor em Teoria Psicanalítica.
Palavras-chave: interpretação, desejo, objeto, inconsciente, ética, ato
Psicanalítico.

Esse estudo investiga a passagem da teoria da interpretação à teoria do ato


analítico, no ensino de Lacan. Localizaremos inicialmente na obra Freud o
paradigma da interpretação em psicanálise e os impasses encontrados pelo
psicanalista vienense no exercício da interpretação em sua clínica. Isso situará o
ponto do qual partiu Lacan para efetuar suas diferentes leituras do que vem a ser
interpretar em psicanálise. Demonstraremos que não existe unidade no que diz
respeito à concepção da interpretação em Lacan, mas sucessivas redefinições do
ato do analista em função da maneira como se relacionaram em seu sistema de
pensamento a causa psíquica, o significante e o sentido. Evidenciaremos que em
um primeiro momento a causa psíquica, na teoria lacaniana, foi localizada no
campo do sentido, posteriormente no campo do significante e por fim foi
deslocada para o campo do objeto com seu estatuto de real. Esse último
deslocamento produziu modificações importantes no que se refere à noção do
inconsciente, tendo exigido de Lacan a reavaliação do ato do analista no
tratamento. Nesse ponto, a interpretação foi pensada de uma maneira bastante
distinta das proposições dos anos 50 e assumiu várias das características que
foram associadas posteriormente ao ato analítico, o que nos mostra que, em
Lacan, existe certa sobreposição da teoria da interpretação e da teoria do ato.
Finalmente, mostraremos que a distinção entre as definições de interpretação
encontradas no último ensino de Lacan não se diferenciam claramente da noção
de ato analítico, mas que Lacan, no entanto, não renuncia à interpretação em favor
de uma clínica do ato. A teoria da interpretação segue seu curso depois da
elaboração do conceito de ato analítico, cujo valor fundamental foi o de re-fundar
a práxis lacaniana, orientando-a por uma ética, cujo traço distintivo é a de ser
sustentada pelo real.

Palavras-chave: interpretação, desejo, objeto, inconsciente, ética, ato analítico.


Rio de Janeiro – Agosto de 2008.

5
Resumé
De l’interprétation à l’acte psychanalytique

Mônica Assunção Costa Lima


Orientadora: Ana Beatriz Freire.
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Teoria Psicanalítica.

Cet étude examine le passage de la théorie de l’interprétation à la théorie de l’acte


analytique dans l’enseignement de Lacan. Nous localiserons initialement dans l’oeuvre
de Freud le paradigme de l’interprétation pour la psychanalyse et les impasses rencontrés
par le psychanalyste vienois dans l’exercice de l’interprétation. Cela permettra de situer
le point d’où Lacan est parti pour effectuer ses différentes lectures de l’interprétation
analytique. Nous démontrerons qu’il n’existe pas d’unité quand nous parlons de la
conception de l’interprétation chez Lacan, mais des successives redéfinitions de l’acte de
l’analyste qui ont été formulés suivant les réorganisations des relations entre la cause
psychique, le signifiant et le sens. Nous expliciterons que dans un premier temps la cause
a été localisée dans le registre du sens, ensuite dans le registre du signifiant et finalement
dans le registre de l’objet avec son statut de réel. Ce dernier déplacement a modifié la
conception de l’inconscient et a exigé de Lacan La réévaluation de l’acte de l’analyste
dans la cure. À ce moment là l’interprétation a été definie d’une façon très distincte des
propositions des années 50 et a assumé plusieures caracteristiques qui ont été associées
plus tard à l’acte analytique. Ceci nous montre que chez Lacan il existe une certaine
superposition de la théorie de l’interprétation et de la théorie de l’acte. Finalement, nous
montrerons que les différentes definitions de l’interprétation retrouvées dans le dernier
enseignement de Lacan ne se distancient pas clairement de la notion de l’acte
psychanalytique, mais que Lacan, cependant, ne renonce pas à l’interprétation à la faveur
d’une chinique de l’acte. La théorie de l’interprétation suit son cours après l’élaboration
du concept d’acte analytique, dont la valeur fondamentale a été celle de re-fonder la
pratique lacanienne comme une expérience orientée par une éthique soutenue par le réel.

Mots clés: interprétation, désir, objet, inconscient, éthique, acte analytique.


Rio de Janeiro – Août/2008

6
Para Marcos, Rafael e Tomás.

7
AGRADECIMENTOS

Agradeço a meu pai (in memorian) que me transmitiu o amor pelos livros e pela leitura.

Ao Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais e à PUC-Minas pelo


apoio oferecido à minha pesquisa.

À interlocução ocasional, mas preciosa, com Maria Bernadete de Carvalho e Sérgio Laia.

Agradeço especialmente à Ana Beatriz Freire que me acolheu no Programa de Pós-


Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e apostou na possibilidade de realização
deste trabalho, tendo sustentado sempre uma interlocução crítica permeada pelo respeito
e o incentivo à investigação.

8
SUMÁRIO

Introdução p. 9

Capítulo I – A interpretação em Freud e no primeiro p. 14


ensino de Lacan.

1- Freud e a interpretação – uma introdução.


1.1- O método catártico.
1.2- O sintoma e o eixo do sentido.
1.3- O sintoma tem um sentido, mas refere-se a um trauma.
2- O paradigma freudiano da interpretação e seus impasses.
2.1- A interpretação no caso Dora.
2.2 - O Homem dos Ratos, a fantasia, e a interpretação.
3- Para concluir.
4- A interpretação e o sentido como causa - objeção contumaz à naturalização do
psíquico.
4.1- A interpretação em “Função e campo da fala e da linguagem” e em “Variantes
da cura tipo”.
4.2- O “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e a combinatória de letras
determinante do sujeito e do sentido.
4.4- A interpretação e o sentido, no contexto da teoria do significante e da relação
do sujeito com o Outro.
5- A interpretação inspirada pelo estruturalismo e seu correlato: o efeito sujeito.
5.1- Algumas críticas endereçadas às teorias lacanianas dos anos 50.
5.2- A réplica de Lacan.

9
Capítulo II – A articulação das teorias do desejo e do significante p. 69
ao objeto.

1- A decifração e o ser não decifrável em “A direção do tratamento e os princípios


de seu poder”.
2- A interpretação visa um desejo sem objeto.
2.1- O objeto no Seminário As relações de objeto.
2.2- A interpretação e o objeto no grafo do desejo.
3- O Seminário A ética da psicanálise cria as condições de possibilidade do ato
analítico.
3.1- O objeto reencontrado em Freud – das Ding.
3.2- O corpo como fundamento do desejo.
4- A sépartition e o corpo como causa no Seminário XI – Merleau Ponty, Platão e o
Fort-da freudiano.
4.1- O corpo-causa contingente e a sobre-determinação simbólica necessária.
4.2- A causa e a lei.
5- Interpretar o inconsciente que inclui o corpo como causa.
6- Só há ato analítico onde não há relação sexual.

Capítulo III – O ato analítico. p. 124

1- O ato analítico comporta a falha no saber que concerne o sujeito sexuado.


2- O sujeito dividido entre ser e pensamento – uma premissa para se pensar o ato
analítico.
3- As condições de constituição do sujeito e de formalização do objeto no
Seminário XI.
4- Ser e pensamento no grupo de Klein – a estrutura do ato analítico no Seminário
XV.
4.1- O ponto lógico inicial da análise.
4.2- A operação alienação.
4.3- A operação verdade.

10
4.4- A operação transferência.
4.5- O esquema do ato iluminado pela experiência clínica.
5- O que o texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” pode nos
ensinar sobre o ato analítico em 1967?
6- O que os textos freudianos de 1937 podem nos ensinar sobre o ato analítico
em 1967?
6.1- A construção do saber em análise – o manejo da verdade do sujeito pelo
saber.
7- A retomada do Seminário O ato analítico a partir dos esclarecimentos extraídos
do texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” e dos textos
freudianos de 1937.
7.1- A travessia do Rubicão – o paradigma do ato no Seminário XV.
8- O ato é sempre falho: a peculiaridade do saber na experiência analítica.
8.1- Ato, saber e invenção - Cantor e os números transfinitos.
8.2- O ato como determinação de um começo.
8.3- Ato e potência: Lacan com Aristóteles.
9- A equivocação do sujeito suposto saber.
9.1- Saber e criação na experiência analítica.
10- Ato e discurso analítico.
11- Wo es war soll ich werden – o imperativo ético da psicanálise e o ato.
12- As relações entre causa, significante e sentido, no ato analítico.
13- Ato e interpretação

Considerações Finais p. 254

Bibliografia p. 263

11
Introdução

Partimos da premissa de que a psicanálise, historicamente, constituiu-se como


uma técnica de tratamento do gozo e de que a estratégia sustentada pela cura analítica
definiu-se, desde Freud, pela abordagem da satisfação pulsional encerrada, no sintoma,
pela via da palavra.
As conseqüências de tal proposta, naturalmente, não puderam ser inteiramente
previstas por Freud, seu inventor, e entre elas gostaríamos de destacar a que nos parece
essencial: a introdução da perspectiva de um pensamento que bordeja a pulsão. A
originalidade de Freud reside no fato de ele ter construído uma espécie de dobradiça entre
o campo do sentido e o campo da pulsão, ao sustentar que a subjetividade não se deixa
esgotar na dimensão do sentido.
A articulação do pensamento e da pulsão, colocada em jogo pelo sintoma,
representou sempre um problema complexo que condicionou a orientação ética da
psicanálise, e exigiu a construção de respostas clínicas, inicialmente, de Freud e, mais
tarde, de Lacan. As dificuldades suscitadas por essa articulação levaram Freud, no texto
“Análise terminável e interminável”, a situar a resolução do processo de análise, no ponto
de entrecruzamento da trilha de decifração dos sentidos do sintoma e da exigência
inextinguível da pulsão. As mesmas dificuldades levaram Lacan, em 1967, a elaborar o
conceito de ato analítico, intervenção que tem por objetivo promover uma solução que
combine o pensamento (representado no esquema que ilustra o ato analítico pela notação
- ϕ) e a pulsão (representada, no mesmo esquema, pelo objeto a).
As respostas de Freud e de Lacan para a questão de saber o que caracteriza,
propriamente, a intervenção analítica como um modo de tratar o pensamento fundado na
pulsão não foram homogêneas. Esse trabalho tem o mérito de explicitar sua ampla
variação e ele pode ser lido, em toda sua extensão, tomando como referência a maneira

12
como os elementos indicados acima - o pensamento (-ϕ) e a pulsão (objeto a) - se
articularam nas diversas definições ato do analista.
Quando dizemos que as respostas para essa questão não foram homogêneas,
buscamos indicar que a definição do ato do analista como estratégia de tratamento do
sintoma e do inconsciente variou de acordo com o que se entendeu por sintoma e por
inconsciente. Essa é a razão das diferenças observadas entre as concepções da
interpretação encontradas em Freud e em Lacan, e daquelas encontradas dentro do
próprio ensino de Lacan.
Na obra de Lacan, como todos sabem, encontramos ainda a distinção entre a
interpretação e o ato analítico, dois nomes para designar a intervenção do analista.
Usamos, aqui, a palavra distinção, mas é preciso dizer que a análise das similaridades e
das diferenças entre esses dois tipos de intervenção não são apreendidas imediatamente,
merecendo um exame minucioso.
De todo modo, numa primeira abordagem da questão, não nos parece suficiente
afirmar que a verdadeira interpretação é um ato e que todo ato apresenta uma dimensão
interpretativa. Essa afirmação situa ato e interpretação em um mesmo registro, fazendo
parecer que a diferença entre ambos é terminológica e não conceitual. Ela transmite,
ainda, a idéia de que a interpretação que não alcança o estatuto de ato é uma interpretação
malograda, falsa (não verdadeira).
Essa é uma maneira simplificadora de abordar a questão, e não elide o fato de que
Lacan, em 1967, introduziu o nome ato analítico, e dessa forma o conceito, esforçando-se
para formalizá-lo.
A colocação do problema das afinidades e diferenças entre ato analítico e
interpretação é pertinente, na medida em que Lacan, em seu ensino, não diferenciou
abertamente ato e interpretação. Teria tido ele alguma razão? Não nos tornamos mais
inflexíveis do que Lacan quando tentamos apartar, separar e diferenciar ato e
interpretação? Ou quem sabe, não evitamos o impasse, quando insistimos na equivalência
da interpretação ao ato, desconhecendo que algo de novo foi introduzido, por Lacan, no
Seminário XV?
No que se refere à resposta para esse problema, existem pelo menos dois pontos
de vista que podem ser localizados na comunidade analítica. O primeiro deles sustenta

13
que interpretação e ato são intervenções distintas do analista. Em alguns momentos o
analista interpreta e em outros ele produz um ato. Nesse contexto, a questão seria a de
saber como opera, no tratamento, uma interpretação afinada e articulada ao ato analítico.
O outro ponto de vista defende a idéia de que a teoria do ato, elaborada por Lacan,
produziu como consequência a falência da teoria da interpretação. Sob essa perspectiva a
psicanálise teria deixado de ser uma clínica da interpretação para tornar-se uma clínica do
ato (a interpretação verdadeira). Ou ainda, a interpretação entendida por Freud e pelo
primeiro Lacan, como interpretação de uma significação recalcada, teria perdido seu
valor, ao menos na psicanálise de orientação lacaniana. Sendo assim, estaríamos vivendo
hoje, na clínica psicanalítica, o que Serge Cottet chamou de “declínio da interpretação”
(COTTET, S. 1996, p. 86) ou o que Miller designou como a “era pós-interpretativa”
(MILLER, J-A. 1996, p. 8).
Como não há consenso entre os analistas quanto à solução para a questão, nem
tampouco resposta evidente para o problema, é preciso investigar para construirmos
respostas, ainda que parciais.
Esse, então, é o objetivo do presente estudo: pesquisar como se dá, na obra de
Lacan, a passagem da teoria da interpretação para a teoria do ato analítico. Buscaremos
circunscrever a que questão responde a introdução da noção de ato analítico, em 1967.
Localizaremos o que se apresenta como exigência interna ao pensamento de Lacan,
convocando-o à invenção do ato analítico. E isso numa análise que não apague nem
dissimule os impasses, as nuanças, as descontinuidades e as sobreposições observadas
entre as diversas teorias da interpretação e a teoria do ato.
Duas referências serão essenciais na orientação de nossa pesquisa. A primeira
delas é a hipótese de que o ato do analista encontra-se estreitamente vinculado à ética da
psicanálise. Todos sabem que a ética é a disciplina que sustenta que as ações do homem
estão referidas a determinados princípios. O objeto de estudo da ética é a definição e a
fundamentação de princípios universais em função dos quais é possível julgar se as ações
particulares foram éticas ou não.
A referência do ato analítico à ética da psicanálise é apontada pelo próprio Lacan,
no Seminário O ato analítico, quando ele afirma que o seminário que ele começava,
então, a ministrar estava em correlação com o Seminário A ética da psicanálise

14
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967). Que correlação
seria esta? Lacan não a explicita nas aulas subseqüentes e se quisermos apreender as
relações entre a ética da psicanálise e o ato analítico, teremos que depurá-las de seus
seminários e escritos.
É importante ressaltar que nosso intuito não é o de tecer uma discussão geral e
ampla sobre a ética da psicanálise e sim o de interrogar o analista sobre a ética que
orienta seu ato. Levando em consideração a afirmação de Lacan, segundo a qual a
psicanálise é uma ética com conseqüências clínicas, abordaremos a intervenção do
analista como uma ação referida a certos princípios, que a definem como analítica, ou
seja, como ação fiel à ética sustentada pela psicanálise.
Buscaremos esclarecer, na pesquisa, as condições determinantes do ato do analista
que podem ser reconhecidas nas intervenções que produzem efeitos analíticos no
tratamento e que, como ressaltamos inicialmente, não foram descritos de forma
homogênea por Freud e Lacan, e nem mesmo dentro da obra do próprio Lacan, se a
tomamos em momentos distintos.
Essa é a perspectiva ética à qual desejamos nos ater nesse trabalho, qual seja,
aquela que interroga as condições do ato do analista, legitimando-o como analítico. E
uma pergunta pertinente para se fazer nesse contexto é a de saber se a ética inferida da
interpretação lacaniana pensada nos anos cinqüenta é a mesma ética do ato analítico em
1967. E se não é, o que mudou? No desenvolvimento do trabalho, buscaremos explicitar
o que aparece como tensão e como diferença entre os elementos mencionados.
Além da ética, outra referência orientará nossa pesquisa: a hipótese de que as
redefinições da ação do analista, no tratamento, correspondem às sucessivas modificações
das relações entre o significante, o sentido e a causalidade psíquica, ocorridas no seio da
teoria do desejo. Buscaremos explicitar tais modificações relacionando-as sempre ao ato
do analista no tratamento.
Tendo sido localizados os elementos que orientarão nossa investigação,
reiteramos, mais uma vez, que o objetivo do trabalho é o de acompanhar o
desenvolvimento do pensamento de Lacan em torno do ato do analista, apontando as
nuanças, os deslocamentos mínimos, os momentos de tensão e de contradição que surgem
ao longo de sua elaboração.

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No Capítulo I, tomaremos como ponto de partida a teoria freudiana da
interpretação, que nos fornece o paradigma da interpretação em psicanálise. Essa
referência nos permitirá situar, no desenvolvimento da argumentação, as diferentes
leituras que Lacan fez dessa teoria, transformando-a.
No Capítulo II, circunscreveremos as sucessivas modificações ocorridas na teoria
da interpretação, em decorrência das transformações progressivas do estatuto do objeto,
do desejo e de suas relações. Privilegiaremos os textos “A direção do tratamento e os
princípios de seu poder”, “A subversão do sujeito” e os Seminários O desejo e sua
interpretação, A ética da psicanálise e Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
No Capítulo III, situaremos o ato analítico como uma das respostas construídas,
por Lacan, para os impasses gerados pelas transformações acima mencionadas. No
Seminário XV, Lacan pergunta-se o que seria o tratamento do inconsciente constituído
pelas duas vertentes apontadas no início dessa introdução: o pensamento (a cadeia de
linguagem, regida por suas leis) e a pulsão (o gozo do corpo, não subsumido pelo
simbólico, que funciona como causa). E o ato analítico é o conceito elaborado para
responder a essa questão.
Para concluir, buscaremos esclarecer a relação entre o ato analítico e a ética que
orienta a psicanálise. Esboçaremos também algumas respostas para as perguntas
colocadas no início da introdução, que questionam a equivalência entre a interpretação e
o ato analítico, e ainda, se a teoria do ato teria destituído o procedimento da interpretação
na experiência analítica.

16
Capítulo 1
A interpretação em Freud e no primeiro ensino de Lacan

O capítulo pretende discutir o problema da interpretação em psicanálise, mais


especificamente na psicanálise lacaniana. Apresentaremos de início, a teoria da
interpretação em Freud, antes de discutirmos a interpretação no primeiro ensino de
Lacan.
Por que partir de Freud? Em primeiro lugar, porque é ele quem nos fornece o
paradigma da interpretação em psicanálise, o que nos permite localizar o ponto de partida
das diferentes leituras lacanianas do que seria interpretar no tratamento analítico.
Em segundo lugar, porque nosso intuito é o de demonstrar que, na concepção
freudiana, a dimensão da causa sexual encontra-se ao lado da interpretação de sentido.
Freud reconhece que o sonho e o sintoma têm um sentido, que deve ser interpretado, mas
admite, igualmente, que eles são determinados por uma causa sexual, o que determinou,
muito precocemente, os limites da arte interpretativa em sua experiência clínica.
Buscaremos demonstrar que as concepções de interpretação, no primeiro período
do ensino de Lacan, evidenciaram o esforço do autor para reabilitar os poderes da palavra
no campo do significante e da significação, o que provocou certo apagamento da
dimensão da causa sexual no âmbito da concepção do tratamento analítico.
Quando dizemos que houve apagamento da causa sexual, isso não significa que
ela tenha estado ausente, e sim, que esteve em segundo plano, à margem. Num primeiro
momento, porque Lacan enfatiza a causalidade do sentido e, em seguida, porque prioriza
a causalidade significante, gerando impasses clínicos que o psicanalista francês,
ulteriormente, trata de remanejar.
Assim, pois, depois da breve discussão sobre Freud, examinaremos os textos de
Lacan dos anos 50, buscando extrair de cada um deles as diversas concepções de
interpretação, que se deslocam e se transformam, localizando, por fim, alguns embaraços
criados por elas.

17
1- Freud e a interpretação – uma introdução

Para Freud, não se justifica a cisão, na psicanálise, entre a vertente explicativa e a


vertente interpretativa. É bem verdade que a psicanálise nasceu com A interpretação dos
sonhos, mas o que é digno de nota é que, em Freud, o ponto de vista interpretativo não
entra em contradição com a tese do primado da explicação. Para o psicanalista,
determinar a significação do sonho não implica negligenciar sua causa. Na análise feita
por Paul-Laurent Assoun, no livro A epistemologia da psicanálise, a interpretação
freudiana é vista como variante da explicação, o que explicaria o fato de o ato
interpretativo, em Freud, não se emancipar do ato explicativo. Tal perspectiva autoriza-
nos a dizer que Freud, em sua pesquisa hermenêutica, jamais renunciou à dimensão da
causa1 (ASSOUN, P-L. 1981, p. 43, 44). É o que veremos em seguida, na definição de
sintoma proposta por Freud, nas “Conferências Introdutórias”, onde ele afirma que o
sintoma tem um sentido, mas é causado por uma fixação libidinal.
Encontramos, na base do pensamento freudiano, a recusa em separar duas
substâncias distintas: a alma e o corpo. O corpo, para Freud, é causa do funcionamento
psíquico, não o corpo tomado em sua dimensão orgânica ou natural, mas o corpo
libidinal. Essa é, sem dúvida, uma das hipóteses que organiza o célebre texto “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade”.
A adesão de Freud à idéia do corpo libidinal como causa pode ser reconhecida
tanto em sua afirmação de que “o psíquico se baseia no orgânico”2 (FREUD, S.
1910/1996, p. 227), como em sua concepção de que, na histeria, encontra-se em jogo uma
causa traumática, pensada inicialmente como um evento objetivo de sedução e,
posteriormente, como o encontro com o sexual, sempre excessivo em relação aos
recursos com que o sujeito conta para lidar com ele.

1
É assim que devemos ler seu “Projeto para uma psicologia científica”, que ao se referir a neurônios e
barreiras de contato, não nos apresenta uma psicologia hermenêutica, mas inscreve a psicanálise na ordem
da causalidade física.
2
Nessa idéia está contida a premissa segundo a qual o inconsciente se estrutura numa resposta às
excitações corporais vivenciadas na sexualidade infantil.

18
Esse é, então, o pressuposto permanente em Freud, a saber, a perspectiva de
abordar as psiconeuroses pela via da etiologia, pela via da causa, que não é uma causa
qualquer, mas causa sexual.
Por essa razão, podemos afirmar que, se a solução para o sintoma neurótico foi
objeto da interrogação de Freud ao longo de toda sua obra3, suas construções a respeito
da técnica analítica e da interpretação referem-se tanto à articulação da palavra e de seus
sentidos, como ao aspecto econômico do aparelho psíquico apresentado como causa.

1.1- O método catártico.

Na “Comunicação Preliminar” dos Estudos sobre a Histeria, por exemplo, o


método catártico é definido do modo que se segue.
Os sintomas histéricos são relacionados com um trauma desencadeador. A
incapacidade da histérica de lidar com o afeto associado ao acontecimento traumático é a
causa dos sintomas. E sua estratégia é a de isolar da consciência a lembrança do trauma,
que continua, no entanto, a agir em seu psiquismo (FREUD, S. 1893/1996, p. 40, 41, 42).
A cura dos sintomas é obtida quando a paciente pode se lembrar do fato que despertou o
afeto e consegue traduzir esse afeto em palavras. Notem que não basta que o evento seja
rememorado e expresso em palavras. Não é suficiente que seja interpretado. As palavras
devem substituir a ação que não ocorreu no momento do trauma, como resposta do
sujeito, promovendo, assim, a descarga (FREUD, S. 1893/1996, p. 44).
As palavras, carregadas de sentido, devem servir de veículo para o afeto, para que
ocorra o que Freud chamou de ab-reação. Na perspectiva do método catártico, o afeto e a
representação, separados por ocasião do acontecimento traumático, devem ser reunidos,
pela interpretação, para que se produza o efeito terapêutico.
Assim, é possível constatar que, desde esse momento, a formação e a dissolução
dos sintomas estão referidas à articulação entre a representação recalcada e o fator
quantitativo, o afeto.

3
Antes mesmo da redação do artigo de Freud “Análise terminável e interminável” de 1937, no qual o autor
manifesta sua última palavra sobre o assunto.

19
É possível notar que a ab-reação, no método catártico, prefigura algo do ato
analítico, proposto por Lacan em 1967: a perspectiva de uma intervenção do analista que,
articulada no plano simbólico, tem o poder de promover efeitos na economia da pulsão.
Nos “Estudos sobre a histeria”, no entanto, temos um Freud otimista com o poder
da palavra de operar sobre o afeto. Temos também um Freud muito mais modesto quanto
ao que pretende com o tratamento analítico, o que ele espera de uma análise não vai além
da possibilidade de se “transformar o sofrimento neurótico em infelicidade comum”
(FREUD, S. 1983-85/1996, p. 316). Nesse momento, o final da análise confunde-se com
o levantamento do sintoma. O caso Elisabeth, designado por Freud como a primeira
análise integral de uma histeria (FREUD, S. 1983-85/1996, p. 164) é concluido com a
decifração e a remoção das dores e fraqueza nas pernas da paciente, o que nos permite
inferir a coincidência, na visão freudiana, da conclusão da cura com a eliminação da
sintomatologia histérica.
De qualquer maneira, ressaltamos mais uma vez que, no momento mesmo da
constituição da teoria e da clínica psicanalíticas, a condução e o término da análise dão-se
no cruzamento dos dois eixos fundamentais: o eixo do sentido, relacionado à revelação da
significação recalcada, implicada no sintoma, e o eixo do fator econômico, que se refere à
exigência de se dar um destino ao afeto, dissociado da representação por ocasião do
recalcamento.
Esse é um ponto importante porque veremos, no decorrer da investigação, que
Lacan depois de um pequeno desvio retomará a perspectiva freudiana, formulando, no
Seminário O ato analítico, um tipo solução para o sintoma que também se efetua no
cruzamento destes dois eixos: o do sentido (-ϕ) e o da pulsão (objeto a).

1.2- O sintoma e o eixo do sentido.

As “Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” apresentam-se como uma


produção que merece nossa atenção, porque destacam, com clareza, as duas vertentes do
sintoma - ou do inconsciente – que acabamos de indicar: a do sentido e a da satisfação
pulsional.

20
Se fôssemos destacar a tese prevalente ao longo das exposições freudianas
mencionadas, apontaríamos aquela que afirma que “as formações do inconsciente têm um
sentido”. Quando lemos os referidos textos, perdemos a conta de quantas vezes Freud
reitera essa afirmação ao falar das parapraxias, dos sonhos ou dos sintomas.
Na conferência XVI, por exemplo, denominada “Psicanálise e Psiquiatria”, Freud
busca marcar a diferença entre a concepção psicanalítica e a concepção psiquiátrica do
sintoma. Para marcar a discrepância, ele destaca dois aspectos: que o sintoma tem um
sentido ou intenção e que o sintoma tem relação com o inconsciente (FREUD, S.
1917/1996, p. 260).
Na conferência seguinte, Freud comenta seu desapontamento com Janet,
psiquiatra francês que o havia entusiasmado com a proposição de que os sintomas
neuróticos expressavam idéias inconscientes. O desencanto de Freud deveu-se ao fato de
Janet ter posteriormente declarado que sua afirmação não passara de uma fórmula verbal,
d´une façon de parler (FREUD, S. 1917/1996, p. 265). Mas o que nos interessa destacar é
que os elementos a que Freud recorre, nessa conferência, para demarcar os terrenos da
psicanálise e da psiquiatria são os citados anteriormente: o campo da psicanálise é o
campo do sentido e do inconsciente.
Para esclarecer sua colocação, Freud lançou mão de um fragmento clínico,
relatando o caso de uma senhora de cerca de trinta anos que sofria de um sintoma
obsessivo. Essa senhora corria de seu quarto a um quarto contíguo da casa, colocava-se
ao lado de uma mesa no centro do aposento, tocava a campainha chamando a empregada,
dizia-lhe algo, dispensava-a e corria de volta a seu quarto. O ato obsessivo foi elucidado
pela própria paciente, depois de Freud ter-lhe esclarecido um ponto importante de sua
história. Ela contou que há dez anos casara-se com um homem bem mais velho do que
ela e que, na noite de núpcias, o marido ficara impotente. Várias vezes durante a noite,
ele viera correndo de seu quarto para o dela para tentar cumprir o ato sexual, sem obter
sucesso. Na manhã seguinte, o marido comentou que ficaria envergonhado diante da
empregada, pois esta não encontraria os lençóis sujos de sangue e, nesse contexto, tomou
uma garrafa de tinta e derramou-a sobre a cama. Esclareceu-se também que a mesa ao
lado da qual a paciente se posicionava quando chamava a empregada tinha uma toalha
com uma mancha no centro, a qual não podia deixar de ser vista quando a serviçal lá

21
chegava (FREUD, S. 1917/1996, p. 269). A interpretação feita por Freud indicou a íntima
correlação entre o fato ocorrido na noite de núpcias e o ato obsessivo desenvolvido
ulteriormente por aquela mulher.
Por meio desse fragmento clínico, Freud pôde confirmar a tese de que o sintoma
tem sempre um sentido: no caso, o de representar a cena do início do matrimônio. Ele
ressalta, no entanto, que a paciente não estava apenas repetindo a cena. Além da
repetição, havia a correção de algo desagradável. Ela fazia a empregada ver a mancha: a
prova de que o marido não ficara impotente. O desejo implícito no sintoma, diz-nos
Freud, era o seguinte: “meu marido não precisa sentir-se envergonhado diante da
empregada, porque ele não é impotente” (FREUD, S. 1917/1996, p. 270).
Nessa perspectiva, podemos compreender que o sintoma surge a partir da
interrupção de processos mentais que foram perturbados e obrigados a permanecer
inconscientes. O sintoma encerra um sentido que foi excluído da consciência e
mostrando-se, por essa razão, como algo enigmático.
Freud diz ainda que a neurose é resultante de uma espécie de ignorância e o
tratamento analítico constitui a estratégia através da qual se tenta curar o analisante de
sua ignorância patogênica (FREUD, S. 1917/1996, p. 287, 288). A ignorância a que
Freud se refere não é outra senão a ignorância do sentido do sintoma, e a tarefa analítica
consiste em restituir tal sentido ao sujeito por meio da interpretação.

1.3- O sintoma tem um sentido, mas, refere-se ao trauma.

É nesse ponto do texto que Freud introduz um aspecto do sintoma que excede a
dimensão do sentido. Ele nos diz que o sentido do sintoma possui conexão com a
experiência do paciente (FREUD, S. 1917/1996, p. 277). Assim, temos de um lado o
sentido, que faz referência à estrutura de linguagem do sintoma, a seu valor metafórico e
à sua dimensão representativa e, de outro lado, temos o que Freud designa como “a
experiência do paciente”.
O sintoma indica a fixação do paciente numa determinada parte de sua história,
como se não conseguisse se libertar dela (FREUD, S. 1917/1996, p. 281). É exatamente o

22
que acontece com a paciente do exemplo anterior, que reencena exaustivamente a
situação de sua noite de núpcias.
A neurose espontânea, diz Freud, é do mesmo tipo que a neurose traumática, cuja
raiz é a fixação no momento do acidente que a desencadeou (FREUD, S. 1917/1996, p.
282). Ou seja, pode-se supor a existência de um acontecimento na origem da neurose
espontânea similar ao acidente traumático. Temos de considerar também que são
traumáticos os acontecimentos biográficos nos quais os pacientes neuróticos se fixaram.
E o termo traumático, continua o autor, não pode ter outra significação que não seja a
econômica, referindo-se à incapacidade do sujeito de lidar com uma experiência cujo tom
afetivo foi muito intenso (FREUD, S. 1917/1996, p. 283).
A fixação de que fala Freud está ligada à idéia de que existe um ponto onde a
libido permanece retida, fixada, determinando para o sujeito um modo de satisfação
pulsional. Trata-se de uma parcela da pulsão que não acompanhou o desenvolvimento do
conjunto da libido, permanecendo imobilizada e constituindo uma corrente do
inconsciente. Nessa perspectiva, Miller sugere que é como se existisse para o sujeito uma
“memória de gozo”, que se apresenta de modo indelével, formando o núcleo do sintoma
neurótico. A fixação, para Freud, antecede e condiciona tanto o recalque quanto o retorno
do recalcado (MILLER, J-A. 2000, p. 191, 192).
É assim, pois que Freud situa, na origem do sintoma neurótico, não apenas um
fato de linguagem, gerador de sentido, mas também o aspecto econômico, relacionado à
pulsão. E se são esses os elementos encontrados na raiz do sintoma, a terapêutica
analítica deve, obrigatoriamente, levar em consideração as duas vertentes. Não seria
profícuo intervir, exclusivamente, na dimensão do sentido. A psicanálise não pode lograr
êxito quando se atém apenas à decifração das formações do inconsciente. Por essa razão,
podemos afirmar que, desde Freud, a técnica analítica não se apresentou como mera
hermenêutica, e, sim, como forma de tratamento do gozo fixado pelo trauma.
Se o acontecimento traumático foi tratado, pelo analisante, por meio da estratégia
do recalcamento - que separa a representação, destinada ao inconsciente, do afeto, que
sofre outro destino, a psicanálise propõe outra maneira de tratar o acontecimento
traumático, diferente do recalcamento. Definir, com rigor, que maneira seria essa foi a
tarefa a que se dedicou, inicialmente, Freud, e mais tarde, Lacan, com sua teoria do final

23
de análise e com a noção de ato analítico, um tipo de intervenção que, estruturada pelo
simbólico, pretende incidir no campo da pulsão. 4

2- O paradigma freudiano da interpretação e seus impasses.

Dando continuidade à discussão a respeito da interpretação em Freud, é


importante destacarmos que, se ele pôde distinguir, nas “Conferências Introdutórias” de
1917, uma vertente do sintoma que se referia ao sentido e outra que se reportava à
fixação libidinal, foi porque a interpretação, como técnica de tratamento do sintoma,
muito cedo lhe mostrou sua insuficiência.
Para sermos precisos, antes mesmo do advento da interpretação como técnica e da
instauração do método psicanalítico propriamente dito, Freud já se mostrava insatisfeito
com os resultados obtidos nas curas por meio da hipnose. No artigo “Tratamento psíquico
(ou anímico)”, por exemplo, ele já identificava no hipnotizado, resistência em obedecer à
sugestão do hipnotizador de renunciar à sua doença, tendo afirmado que tal renúncia
constituía, para o neurótico, um grande sacrifício e não pequena oferenda (FREUD, S.
1905/1996, p. 286, 287).
Antes, no entanto, de falarmos sobre os impasses, situemos a interpretação em
Freud. No livro A interpretação dos sonhos, Freud oferece uma teoria da interpretação e
nos dá o paradigma da interpretação no método psicanalítico. Ele relata que o que o levou
a se interessar pelo assunto foi a descoberta de que o método de interpretação dos
sintomas podia ser aplicado aos sonhos de seus pacientes (FREUD, S. 1900/1996, p.
135), ou seja, Freud não distinguia a interpretação aplicada ao sintoma daquela aplicada
ao sonho. E como é definida a interpretação nesse momento?
Ele nos diz que interpretar um sonho é atribuir ao sonho um sentido, é substituí-lo
por algo que se ajuste à cadeia dos atos mentais do sonhador (FREUD, S. 1900/1996, p.
131). Para alcançar tal efeito, em contraposição à perspectiva tradicional da interpretação
dos sonhos, Freud realiza dupla inversão. Em primeiro lugar, propõe que quem interpreta

4
Veremos, ao longo do trabalho, que Lacan faz um longo percurso até re-fundar a psicanálise como técnica
de tratamento da pulsão, pois o primeiro retorno a Freud é marcado pela perspectiva proeminente de situar
o sentido, ali, onde Freud situou a pulsão.

24
não é o intérprete e sim o próprio sonhador. Em nota de pé de página, no capítulo II de A
interpretação dos sonhos, escreve:

(...) a técnica que descrevo nas páginas seguintes difere do método da


Antiguidade num ponto essencial: ela impõe a tarefa de interpretação à
própria pessoa que sonha. Não se interessa pelo que ocorre ao intérprete
em relação a um elemento específico do sonho, mas pelo que ocorre ao
sonhador (...) (FREUD, S. A Interpretação dos sonhos, 1900/1996, p.
133).

Em segundo lugar, Freud não pergunta sobre o que o sonho quer dizer. Pede
apenas ao sonhador que associe livremente a respeito, perguntando sobre o que o sonho o
faz pensar, sem nenhuma preocupação com o sentido, que só surge a posteriori (FREUD,
S. A Interpretação dos Sonhos, 1900/1996, p. 136). Freud convida o sujeito a deslizar nas
palavras, colocando em marcha um procedimento que põe em jogo a química das sílabas,
que se dividem e se reagrupam, produzindo a sobre-determinação.
A interpretação tem início com o próprio relato do sonho, que transpõe a estória
encenada com imagens para o registro das palavras, as quais, por sua vez, serão
associadas a outros elementos significantes da vida do sonhador ou de sua fantasia,
permitindo, assim, a decifração do sonho.
A tese mais importante do livro é a de que o sonho representa um desejo realizado
(FREUD, S. 1900/1996, p. 158), o que significa que interpretar um sonho é revelar o
desejo inconsciente em sua sintaxe. É trazer à luz o desejo que se transferiu das
representações recalcadas para os restos diurnos, para os significantes constituintes do
sonho. O trabalho dos sonhos - que promove a transcrição dos pensamentos latentes para
os pensamentos manifestos – condensa, desloca, figura plasticamente, e submete o
conjunto à elaboração secundária. A interpretação analítica, por sua vez, deve percorrer o
mesmo caminho na direção contrária.

25
A interpretação do desejo do sonho define-se, então, como o processo a partir do
qual as relações lógicas entre os elementos articulados pelo trabalho do sonho são
reconstituídas depois de terem sido suprimidas pelos processos de condensação e
deslocamento. Como será possível constatar, esses foram os aspectos privilegiados por
Lacan nas teorias da interpretação dos anos 50: o sentido e as relações lógicas entre os
significantes. Aspectos que declinaram ao longo de sua obra, para dar lugar à perspectiva
de que a interpretação visa o real, dissimulado sob o sentido.
No que se refere a Freud, é importante constatarmos que, mesmo na Interpretação
dos sonhos, momento de inegável entusiasmo com a possibilidade de fácil acesso ao
inconsciente pela via das palavras, ele mantém um ponto de reserva. Freud reconhece
que, mesmo no sonho mais detalhadamente interpretado, algo permanece na obscuridade,
e admite que, no trabalho mais exaustivo de interpretação que um analista possa realizar,
existirá sempre um ponto de resistência à decifração, o qual é chamado por ele de umbigo
do sonho (FREUD, S. 1900/1996, p. 556).
A propósito do sonho da injeção de Irma, Freud afirma numa nota de pé de
página:

Tive a sensação de que a interpretação dessa parte do sonho não foi


suficientemente desenvolvida para possibilitar o entendimento de todo o seu
sentido oculto. (...) Existe pelo menos um ponto em todo sonho ao qual ele é
insondável – um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o
desconhecido (FREUD, S. 1900/1996, p. 145).

E o que seria esse contato com o desconhecido? Quando Freud retoma a questão
do “umbigo dos sonhos”, na Seção A do Capítulo VII da Interpretação dos sonhos, é
para dizer que os pensamentos do sonho, encontrados durante a interpretação, não têm
fim. Ramificam-se em todas as direções, o que torna impossível o fechamento de uma
interpretação (FREUD, S. 1900/1996, p. 556, 557). Ou seja, um dos aspectos da
resistência à interpretação é o limite interno do próprio processo interpretativo, que pode

26
se desdobrar infinitamente. Freud propõe, por outro lado, que a resistência à interpretação
também pode ser atribuída ao trabalho de condensação que aponta para um foco de
convergência das idéias latentes do sonho. É deste foco, diz Freud, do ponto mais denso
do tecido dos pensamentos do sonho, que emerge o desejo inconsciente (FREUD, S.
1900/1996, p. 557).
O umbigo dos sonhos, então, núcleo impossível de se conhecer, ponto em direção
ao qual converge o trabalho interpretativo, é o ponto de onde emerge o desejo do sonho e
que, para Freud, é sempre o desejo sexual da infância (FREUD, S. 1900/1996, p. 583). O
sonho, em seu conjunto, é um exemplo de regressão à condição mais primitiva do
sonhador, constitui uma revivescência de sua infância e das moções pulsionais que a
dominaram (FREUD, S. 1900/1996, p. 578). Tal perspectiva, já anunciada em A
Interpretação dos sonhos, culminará como sabemos, na elaboração dos “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, onde Freud articula o inconsciente e a satisfação
pulsional, evidenciando que as formações do inconsciente expressam uma satisfação
sexual substitutiva.
De qualquer maneira, seja por um limite interno ao próprio processo
interpretativo, seja porque Freud reporta a causa do sonho ao sexual - que resiste à
decifração – a interpretação, desde esse momento precoce, mostra-se insuficiente para
esgotar o sentido das formações do inconsciente.
E como é o próprio Freud quem diz que o procedimento de interpretação dos
sonhos é idêntico ao procedimento pelo qual o sintoma histérico é resolvido (FREUD, S.
1900/1996, p. 559), podemos assumir que tudo o que ele disse a respeito da interpretação
dos sonhos vale para a interpretação tomada em sua acepção genérica.
Resumamos então a definição de interpretação encontrada em Freud: interpretar
em psicanálise significa restituir o sentido das formações do inconsciente, por meio de
um processo de restabelecimento das articulações lógicas entre os elementos do discurso
manifesto e das representações recalcadas. Significa revelar um desejo inconsciente que o
analisante não quer conhecer, e do qual se defende pelo recalcamento. Esse é o ponto de
partida de Lacan para as teorias da interpretação em seu primeiro ensino.
Para Freud, no entanto, existe uma insuficiência da interpretação, no que se refere
ao sintoma e ao material verbal produzido pelo analisante em análise. Como ressaltamos

27
acima, em A interpretação dos sonhos, ele já havia notado a existência de um ponto, no
inconsciente, que resiste à palavra por não ser palavra, e que se tornará, posteriormente,
objeto de sua teorização.

2.1- A interpretação no caso Dora.

Na análise de Dora, por exemplo, Freud deparou-se com uma resistência à


interpretação diferente daquela encontrada na decifração dos sonhos. Ele inicia o relato
do caso dizendo que um de seus objetivos, ao publicá-lo, foi o de complementar seu livro
sobre a interpretação dos sonhos5, demonstrando como essa arte podia ser proveitosa para
a descoberta do recalcado. Freud diz, logo no início que, na análise dos dois sonhos
comunicados por Dora durante o tratamento, levou em consideração a técnica da
interpretação dos sonhos como algo similar à técnica psicanalítica (FREUD, S.
(1905)[1901])/1996, p.109).
É de se notar, então, que Freud desejava não apenas complementar sua teoria da
interpretação dos sonhos, mas também, demonstrar a equivalência desta técnica à técnica
psicanalítica. E o que aconteceu durante a execução do projeto? Em seu esforço para
sustentar que a técnica analítica nada mais era do que uma técnica da interpretação, Freud
encontrou a transferência.
Ele percebeu que o trabalho de interpretação não determinara a dissolução dos
sintomas de Dora, e atribuiu o adiamento da cura à “pessoa do médico”. Foi a partir do
embaraço encontrado na condução do caso, que Freud começou a elaborar a teoria sobre
a transferência, descrita por ele, no artigo, como a revivescência de experiências
psíquicas prévias, não como algo passado, mas como um vínculo atual com o analista.
Neste ponto do relato, Freud anuncia que “combater” a transferência é de longe a parte
mais difícil da análise, a arte interpretativa sendo a mais fácil de aprender (FREUD, S.
(1905[1901]), p. 111, 112). Freud reconhece que a análise requer, além da arte da

5
O título original do trabalho era “Sonhos e histeria”, fazendo referência à relação entre a interpretação dos
sonhos e a reconstituição histórica realizada na análise da histeria. A proposta era demonstrar como um
sonho interpretado auxiliava no preenchimento das lacunas de memória, facilitando a elucidação dos
sintomas histéricos. Todavia, o encontro com outra face da análise, que não se reduzia à rememoração nem
à interpretação – como meio de decifração do inconsciente – fez com que Freud repensasse o caso Dora
como complemento do livro dos sonhos, modificando, por essa razão, seu título.

28
interpretação, um saber fazer com a transferência, pois é aí que as relações de objeto do
sujeito são re-atualizadas com o analista 6.
Freud admite que, na condução da análise de Dora, não levou em consideração o
fato de ter sido tomado, na transferência, como o substituto do pai e, em seguida, do Sr.
K., interpretando a saída precoce dela da análise como a realização de uma vingança
contra ele. Vingança que a paciente gostaria de ter efetuado contra o Sr. K. Freud atribui
a interrupção do tratamento a um erro no manejo da transferência, o que precipitou o
acting out de Dora. Em nota acrescentada em 1923, ele diz que o erro deveu-se a uma
interpretação que faltou, qual seja, a interpretação do amor homossexual de Dora pela
Senhora K.
Muitos psicanalistas comentaram, posteriormente, a condução freudiana do caso
Dora. Para Lacan, por exemplo, o que se encontrava em jogo na amizade da jovem com a
Senhora K. não era uma inclinação homossexual como pensou Freud, mas a questão de
saber como tornar-se uma mulher.
Não é nossa intenção retomarmos, aqui, esse debate. O que nos importa é que, ao
tentar fundamentar a decifração do sintoma como a técnica por excelência do tratamento
analítico, Freud fez o encontro com o agieren que lhe endereçava Dora. Ele se viu diante
da repetição de um padrão de relação do sujeito com seu objeto, o que o fez reconhecer
que, numa psicanálise, nem tudo se dá na vertente da palavra.
A dimensão da transferência que diz respeito ao objeto, distinta da dimensão que
diz respeito ao sentido encerrado no sintoma, levará Lacan a definir a transferência, em
1964, como “a colocação em ato da realidade sexual do inconsciente” (LACAN, J.
1964/1973, p. 137). Essa perspectiva o conduzirá à redefinição da interpretação, que
deixará de operar exclusivamente no âmbito do simbólico, para abranger a dimensão
sexual e fantasística do inconsciente.

6
Um exemplo de intervenção que incide sobre a transferência, envolvendo as relações de objeto
fundamentais do sujeito, é quando Freud diz, dirigindo-se ao Homem dos ratos: “eu não sou cruel”.
Palavras às quais o paciente responde “meu capitão”, designando o lugar que o analista ocupa na relação
transferencial.

29
2.2 - O Homem dos Ratos, a fantasia e a interpretação.

Já no caso do Homem dos Ratos, Freud confrontou-se com outro tipo de obstáculo
à interpretação: a fantasia.
Ao ler o relato da análise, percebemos que, na condução do tratamento, o que
orientou as intervenções de Freud foi a hipótese do complexo de Édipo e a hostilidade ao
pai que lhe era relacionada. O pai, nesse caso, apresentava-se como o agente perturbador
do gozo sexual do paciente (FREUD, S. 1909/1996, p. 176).
É interessante percebermos que as interpretações que Freud endereça ao paciente
privilegiam sempre, de um lado, a sobre-determinação significante do sintoma e, de
outro, a trama pulsional no mito edipiano7.
Já nos primeiros encontros, tendo como referência o complexo de Édipo, Freud
faz uma construção, apontando para elementos que teriam sucumbido à amnésia infantil.
Ele diz ao paciente que, quando este tinha menos de seis anos, fora culpado de uma má
conduta (masturbação), tendo sido duramente castigado pelo pai. De acordo com a
hipótese, a punição teria colocado fim na atividade masturbatória e produzido um rancor
inextinguível pelo pai, fixando-o no papel de perturbador do gozo sexual do paciente
(FREUD, S. 1909/1996, p. 179).
Para surpresa de Freud, essa comunicação provoca como resposta o relato de uma
cena que a mãe do paciente havia narrado. É de se notar que, de acordo com o Homem
dos Ratos, ele mesmo não se recordava do evento (FREUD, S. 1909/1996, p. 182),
portanto, a intervenção de Freud não tinha provocado o levantamento da amnésia, ou do
recalque. A cena relatada havia acontecido quando ele, com três ou quatro anos de idade,
cometera uma travessura. O pai batera nele e, tomado de uma ira terrível, a criança
respondera com uma série de insultos que lhe vinham à cabeça: “Sua lâmpada! Sua
toalha! Seu prato!”. O pai, surpreendido pela explosão de fúria, interrompeu a surra e
exclamou: “O menino, ou vai ser um grande homem, ou um grande criminoso”. No
7
Um exemplo de interpretação, neste caso, que contempla, ao mesmo tempo, a determinação significante e
a satisfação pulsional é aquela que Freud dirige à fórmula protetora utilizada pelo paciente. O Homem dos
Ratos pronunciava a fórmula e colocava imediatamente um amém no final. O s era a última letra da palavra
mágica, e vinha logo antes da pronúncia da palavra amém, produzindo algo como Samen. Freud, então, lê a
fórmula como um anagrama do nome da dama amada pelo Homem dos Ratos, que faz a referência à
satisfação que se encontra aí em jogo. No anagrama, o Homem dos Ratos junta seu sêmen ao nome da
amada, indicando que ele havia se masturbado pensando nela (FREUD, S. 1909/1996, p. 196).

30
menino, a experiência provocou uma mudança em seu caráter. A partir daquele momento,
ele se tornou segundo suas próprias palavras, “um covarde”, por medo da violência de
sua própria raiva (FREUD, S. 1909/1996, p. 179/180).
Depois de ter feito o relato na análise, o paciente conversou com a mãe a respeito
do episódio e esta confirmou sua ocorrência, acrescentando que a punição que o pai lhe
havia infligido deveu-se ao fato de ele ter mordido alguém, talvez a própria babá. Para
Freud, não havia dúvidas de que a ação cometida pelo menino fora de natureza sexual
(FREUD, S. 1909/1996, p. 180). O importante é que a partir daí, segundo Freud, cedeu a
recusa do paciente em acreditar na raiva adquirida contra seu pai (FREUD, S. 1909/1996,
p. 182).
A cena aparece, pois, como indicativa de uma satisfação pulsional não conhecida,
permitindo ao sujeito circunscrever um ponto do real, para extrair dali a convicção acerca
da construção que lhe fora comunicada. Convicção que, na realidade, só chega a se
consolidar mediante a transferência e sua interpretação, pois o ódio inconsciente ao pai
manifestou-se nas fantasias e insultos dirigidos a Freud (FREUD, S. 1909/1996, p. 182-
183).
Assim, o caso do Homem dos Ratos representa uma análise, na qual a fantasia
coloca-se muito claramente como um limite para a decifração significante e para a
rememoração, o que exigirá recursos diferentes da interpretação. Como ressaltamos
acima, a cena das injúrias não é recordada pelo paciente, mas aparece como um elo
associativo à construção que lhe é comunicada. Neste caso, Freud situa, pela primeira
vez, o lugar da construção como um recurso do qual o analista deve lançar mão quando a
rememoração não se completa. Por outro lado, segundo o psicanalista vienense, a relação
da cena com as fantasias inconscientes do paciente é o que abre caminho para a solução
da idéia obsessiva dos ratos (FREUD, S. 1909/1996, p. 183).
Ao lado da decifração significante do sintoma, aparece a dimensão fundamental
da fantasia e da pulsão abordada por Freud neste caso – não pela interpretação, mas pela
construção e pela análise da transferência – com vistas a promover o progresso na
análise.

3- Para concluir.

31
O que pretendemos destacar com a discussão a respeito do problema da
interpretação em Freud é que do início de suas reflexões até o final de sua obra, ele nunca
deixou de teorizar sobre a resistência à palavra que se manifestava nos tratamentos
analíticos. Resistência que ele descreveu sucessivamente como sendo o umbigo dos
sonhos, a amnésia infantil, a inércia do sintoma, a fixação na fantasia, o masoquismo
primário, a repetição, a reação terapêutica negativa, etc.
Sabemos que em 1920, a decepção com a interpretação chega a seu ápice, levando
Freud a modificar a sua teoria das pulsões. Nesse ponto, ele reconhece um limite decisivo
para a decifração, dando lugar de destaque, em sua teoria, à repetição pulsional, que,
além de estar fora do registro da palavra e do sentido, transgride a homeostase exigida
pelo princípio do prazer.
Assim, a questão da interpretação, em Freud, como técnica de tratamento do
sintoma, articulou-se, desde o início, entre os dois eixos já destacados: o do sentido e o da
pulsão. É nesse cruzamento que Freud situa também o problema do final do processo
analítico, em “Análise Terminável e interminável”, evidenciando ser este um aspecto
fundamental para o desfecho do tratamento.
Veremos que a pulsão e a fantasia, tal qual aparecem no caso dos Homens dos
Ratos, tornar-se-ão, no Seminário O ato analítico, elementos centrais nas respostas
construídas por Lacan à pergunta: o que define o ato do analista?
É o que constataremos durante o desenvolvimento da pesquisa. No momento,
vamos nos dedicar à análise da noção de interpretação no primeiro ensino de Lacan.

4- A interpretação e o sentido como causa – objeção contumaz de Lacan à


naturalização do psíquico.

Vimos na introdução deste capítulo, que Freud entra na psicanálise comprometido


com a idéia de que a interpretação de sentido não é outra coisa senão caminho de acesso à
causa. Buscaremos demonstrar agora, a partir da sugestão de Miller, que Lacan, ao entrar
na psicanálise, diferentemente de Freud, toma o sentido como causa, no lugar do trauma e

32
da fixação libidinal. (MILLER, J-A. Cause et consentement, Léçon du 9 de Décembre,
1987).
Embora não abra mão da idéia da causalidade dos eventos psíquicos, Lacan, em
1946, ao contrário de Freud situa-a no campo das significações. Essa é como veremos, a
tese defendida por ele no texto “Formulações sobre a causalidade psíquica”, no qual
debate com Henry Ey e Jaspers.
Essa não será sua última palavra sobre o assunto. O sentido tendo sido substituído
gradativamente pelo significante e, posteriormente, pelo objeto a, que surgirá como causa
do desejo. O objeto a não é um elemento que pertence ao campo do simbólico, e pensado
como causa, reaproxima o pensamento lacaniano da perspectiva freudiana, que considera
que o corpo libidinal é causa dos processos psíquicos.
Antes de atingirmos este ponto, no entanto, gostaríamos de acompanhar o
movimento do ensino de Lacan, no intervalo entre os anos de 1946 e 1960, para
apreendermos, aí, as relações entre a causa, o significante e o sentido. Obviamente essas
relações, em nossa investigação, só ganham importância na medida em que iluminam o
problema da interpretação, que não perderemos de vista. Como será possível perceber, na
análise que vem a seguir, a posição de Lacan não foi uniforme neste período. De cada
texto examinado se é possível recolher uma teoria distinta da interpretação e o que nos
importa é evidenciar as nuanças e as variações mínimas.
Voltemos, então, ao texto de 1946, “Formulações sobre a causalidade psíquica”,
que demonstra a recusa obstinada de Lacan de assimilar a psicanálise às ciências da
natureza, o que ocorreria se aquela acatasse a existência de uma determinação físico-
orgânica do psiquismo (Lustoza, R. 2006, p. 35).
No texto, Lacan dialoga com Henry Ey, fundador do organo-dinamismo, e, logo
de início declara estar num campo oposto ao dele. O que separa as duas posições é a
pretensão de Henry Ey de buscar as condições químicas e anatômicas da doença mental.
É sua ambição situar a gênese das perturbações mentais no corpo orgânico, baseando-se
no modelo determinista que constitui a física clássica e que se exprime sob a forma da
relação entre uma função e uma variável8 (LACAN, J. 1946/1966, p. 152, 153).

8
Isso significa que, considerando-se certa função f, se ela atua sobre a variável x, obtém-se
necessariamente, como resultado, o valor y que é igual a f(x). O que em termos psíquicos podemos traduzir

33
Ora, Lacan não pode admitir que a ordem psíquica funcione como uma máquina,
na qual tudo é determinável. Acredita, ao contrário, que o campo próprio da ordem
psíquica é o das significações. Em sua opinião, embora o louco experimente suas
alucinações, interpretações e intuições como algo estranho, ainda assim elas lhe dizem
respeito e ele as identifica, interroga e decifra, o que indica que a loucura é algo vivido no
registro do sentido e da linguagem (LACAN, J. 1946/1966, p. 165, 166). O psiquismo
não pode funcionar como máquina, porque existe aí algo de não-calculável e de não-
determinável. O não-calculável é o sentido que não está dado previamente e que requer
um ato livre de doação por parte do sujeito.
É importante ressaltar que o sentido, aqui, não pode ser tomado na vertente da
compreensão, devendo ser separado da concepção de sentido da qual se apropriou a
doutrina da psicogênese, corrente da psiquiatria que defendeu a idéia de que os distúrbios
mentais tinham causas psíquicas. Jaspers, um de seus representantes, fundamenta a
hipótese da causalidade psíquica dos distúrbios mentais na dimensão da compreensão,
presumindo uma relação intrínseca entre a experiência e o sentido por ela gerado. Lacan,
marcando uma posição antagônica a essa corrente, defende o ponto de vista segundo o
qual não podemos nunca antecipar o sentido que será conferido à experiência pelo
sujeito. Desse modo, demarcando uma posição contrária à de Jaspers, argumenta também
contra Henry Ey, afirmando que toda tentativa de naturalizar o psíquico, concebendo-o a
partir de uma explicação determinista, resulta na exclusão do sentido e, portanto, na
presunção de que, neste âmbito, não existe lugar para a verdade, liberdade ou para a
responsabilidade do sujeito (Lustoza, R. 2006, p. 38, 42).
Essa é uma posição à qual Lacan não pôde aderir, e toda a sua argumentação em
“Formulações sobre a causalidade psíquica” visa defender o ponto de vista de que todo
sujeito, mesmo o louco, está situado na ordem da linguagem e doa sentido às suas
experiências, o que o torna um sujeito livre, responsável e capaz de verdade. Para Lacan,
a experiência da loucura, por se desenvolver no campo da linguagem, é algo
condicionado pela verdade, e tentar eliminar a dimensão da verdade dessa experiência
resulta na abolição do fenômeno da significação, que é próprio do homem (LACAN, J.

do seguinte modo: uma vez presente, em um sujeito, certo estado psico-fisiológico teremos
necessariamente como resposta tal sentimento, pensamento ou conduta.

34
1946/1966, p. 154). Por outro lado, a loucura exige o consentimento, implicando,
portanto, em um sujeito responsável. Lacan situa a causa da loucura no que ele chama de
“insondável decisão do ser” (LACAN, J. 1946/1966, p. 177). É a palavra “decisão” que
ele convoca para associar à noção de causa. Ou seja, a causa da loucura está relacionada a
algum tipo de escolha que o louco faz. E podemos reconhecer, aí, a idéia preservada nas
elaborações ulteriores sobre a psicose, nas quais a loucura é a consequência do “não” dito
à castração e ao nome do pai.
Em outra passagem do mesmo escrito, ao falar da identificação como uma forma
de causalidade psíquica, Lacan usa a expressão “escolhas identificatórias”, indicando
mais uma vez a existência de uma margem de liberdade para o sujeito se posicionar
diante daquilo que o causa (LACAN, J. 1946/1966, p. 187, 188). É interessante notar que
a mesma margem de liberdade conferida ao sujeito pode ser encontrada em Freud.
No início do capítulo, dissemos que, embora Freud adote o ponto de vista da
interpretação, não renuncia jamais à dimensão da causa. Algumas vezes em que fala da
causa, no entanto, ele introduz em seguida o termo “escolha”, fazendo referência à
liberdade usufruída pelo sujeito. É exatamente isso que encontramos no texto “A
disposição à neurose obsessiva – Uma contribuição ao problema da escolha da neurose”,
onde Freud defende a tese de que existem dois grupos de determinantes patogênicos
envolvidos no desencadeamento de uma psiconeurose: os constitucionais e os acidentais.
Os constitucionais referem-se aos pontos de fixação libidinal que ocorrem ao longo do
desenvolvimento sexual e, dependendo do período em que o desencadeamento dessas
perturbações ocorre, um tipo de psiconeurose diferente será gerado: histeria, neurose
obsessiva, paranóia, demência precoce, etc (FREUD, S. 1913/1996, p. 341, 342).
Interessa-nos destacar que, ainda que Freud reconheça dois tipos de causas
desencadeantes das psiconeuroses, na constituição do sintoma, ele considera que há
algum tipo de escolha do sujeito. É o tipo de posicionamento diante dos fatos da
experiência, que determina que o indivíduo assuma, por exemplo, uma posição obsessiva,
histérica ou paranóica.
É essa margem de liberdade concedida por Freud ao sujeito que Lacan trata de
resgatar, quando defende a existência de uma causalidade psíquica situada no campo da
linguagem e do sentido. Causalidade que não deve nada às ciências da natureza, já que se

35
situa no campo semântico, exigindo uma racionalidade própria, e que não é pensada
numa relação imediata entre dois termos - se temos a, como causa, teremos
necessariamente b, como efeito. Ao contrário, entre a causa e o efeito temos o sujeito que
faz uma escolha e que pode ou não responsabilizar-se por ela.
Veremos que a margem de liberdade, aqui conferida ao sujeito será preservada em
“Função e campo da fala e da linguagem” e restringida em textos como “Seminário sobre
‘A carta roubada’” e “A instância da letra ou a razão depois de Freud”. Veremos ainda
que a causa, nos dois últimos textos mencionados, deixará de ser o sentido para se
transformar em causa significante.
Posteriormente, com o deslocamento da causa psíquica para o campo do objeto, a
dimensão da liberdade do sujeito será novamente enfatizada, fato que dará consistência à
dimensão ética da psicanálise que requer um sujeito livre para se posicionar diante das
exigências da pulsão.
Antes, no entanto, de avançarmos nessa direção, gostaríamos apenas de localizar a
noção de sentido 9 no contexto do tratamento analítico desse período, ainda que de forma
breve, pois não devemos perder de vista que o que nos importa nessa discussão é refletir
sobre a interpretação.
Como é concebido o tratamento analítico nesse momento? No período pré-
estruturalista do ensino de Lacan, se assim podemos denominá-lo, o tratamento é visto
como diálogo, como troca de palavras entre o analisante e o analista, o qual evita fornecer
respostas no plano do conselho e do projeto (LACAN, J. 1948/1966, p.106). Desde 1936,
Lacan situa a linguagem como o que, antes de significar algo, significa para alguém e
define a fala como portadora de sentido e intenção. Acrescente-se a isso o fato de que, já
nessa época, a primeira pessoa, aquela que fala, convocando o analista a ocupar o lugar
do interlocutor é designada com o nome de sujeito (LACAN, J. 1948/1966, p. 82-83). O
sentido, então, é propriedade da fala que surge quando ela se endereça àquele que ouve,
implicando aí um sujeito.

9
Lendo atentamente os textos da década de 1950, não é possível perceber uma diferença clara entre o
sentido e a significação, neste momento do ensino de Lacan. Esta distinção ganhará importância
posteriormente, em textos como “O Aturdito” onde Lacan afirma a antinomia entre sentido e significação
(LACAN, J. 1972/2001, p. 480). Retomaremos este ponto no último capítulo, mas, no momento, trataremos
os dois termos como equivalentes, exatamente como Lacan os tratou, neste período.

36
Constatamos, pois, que a idéia de que toda fala supõe um sujeito e de que o sujeito
dirige sua fala a outrem, revelando, aí, uma significação (LACAN, J. 1948/1966, p. 83) é
precocemente introduzida por Lacan, e mantida ao longo dos anos. O que se acrescentará
posteriormente a essa perspectiva é o esforço do autor para definir o estatuto daquele que
fala – o analisante – e daquele que ouve – o analista. Encontraremos nos seminários e nos
textos dos Escritos, várias tentativas de aproximação da questão.
Seja como for, é inquestionável que a psicanálise, para Lacan, desde esse
momento é acima de tudo uma experiência do sentido. A dimensão freudiana da causa
sexual não se apresentando como objeto de teorização explícita. Podemos certamente
perceber o deslocamento que sofre a noção de sentido na passagem de “Função e campo
da fala e da linguagem” para “A Instância da letra ou a razão depois de Freud”, mas não
podemos elidir o fato de ser esse um ponto central de suas elaborações. Para
continuarmos a investigação, examinaremos agora as noções de interpretação e sentido
no “Discurso de Roma”.

4.1- A interpretação em “Função e campo da fala e da linguagem” e “Variantes da


cura tipo”.

Em “Função e campo da fala e da linguagem”, ao discutir o tratamento analítico,


Lacan evoca Anna O, que batizou o método inaugurado por Breuer e Freud com o nome
de talking cure e os conduziu à descoberta do evento patogênico do trauma. O trauma foi
reconhecido como causa do sintoma, porque ficou evidente na clínica, que a expressão da
experiência traumática por meio da fala provocava a supressão do sintoma (LACAN, J.
1953/1966, p. 254). E como explicar a ação da fala sobre o sintoma? Lacan responde que,
se a fala pode agir sobre o sintoma, é porque este tem estrutura de linguagem, por ser o
sintoma linguagem cuja fala precisa ser liberada (LACAN, J. 1953/1966, p. 269).
O sintoma, então, nesse estudo é situado no campo do sentido. Trata-se de sentido
cifrado, que se decifra como um desejo recalcado quando interpretado com as palavras do
analisante ou do analista. O sintoma é determinado por um evento traumático, mas o
evento de que trata a psicanálise não deve nada à realidade objetiva. Os fatos em si
mesmos são irrelevantes e só adquirem significado quando interpretados pelo sujeito. No

37
ato da interpretação, o que ocorre de essencial é a doação de sentido e, sob tal
perspectiva, podemos dizer que o sujeito, para Lacan, nesse momento, é aquele que doa
significações às suas experiências, já que elas não portam significações em si mesmas.
O sujeito é causa de sentido e, por essa razão, Lacan o define como a unidade de
temporalização (LACAN, J. 1953/1966, p. 255) que integra passado, presente e futuro. O
sujeito é o meio através do qual se torna possível reordenar as contingências passadas,
conferindo-lhes o sentido das necessidades por vir, o que significa que o sujeito lê o
passado a partir da perspectiva futura10. Para ilustrar a idéia proposta, Lacan evoca o caso
do Homem dos Lobos, no qual Freud exige a objetivação da prova, buscando
obstinadamente a data na qual seu paciente teria assistido à cena primitiva. Nessa busca,
ele não deixa de insistir, entretanto, nas sucessivas re-subjetivações do acontecimento
ocorridas a posteriori, necessárias para explicar os pontos a partir dos quais o sujeito se
reestrutura em relação à sua história (LACAN, J. 1953/1966, p. 256).
Gostaríamos apenas de assinalar, com Miller, que, pensar o sujeito como doador
de sentido, implica em considerar que o sentido de uma experiência, antes de ser fixado
pelo sujeito, é algo de indeterminado. Ao sustentar que os acontecimentos não possuem
sentido, neles mesmos, Lacan considera que o sentido não está inscrito de uma vez por
todas, ou ainda que, se há algo de inscrito pela experiência, seu sentido dependerá da
forma como ele será lido. Aqui, como é possível notar, não há relação de causa e efeito
entre o significante e o significado, entre o significante e o sentido que ele produz. Há
sim, lugar para a pergunta: o que isso quer dizer? Pergunta que só poderá ser respondida
pelo próprio sujeito (MILLER, J-A. Cause e Consentement, Léçon du 2 Décembre,
1987).
Pudemos, então, observar que, no “Discurso de Roma”, o sentido é
indeterminado. Ele só pode ser doado, porque não é inteiramente determinado, e está

10
A frase escrita por Lacan é a seguinte: “(...) não se trata na anamnese psicanalítica de realidade, mas de
verdade, porque é o efeito de uma fala plena reordenar as contingências passadas lhes dando o sentido das
necessidades por vir, tais quais as constitui o pouco de liberdade por onde o sujeito as faz presentes”
(LACAN, J. 1953/1966, p. 256). A frase transmite a idéia de que o sujeito, no presente, tem a liberdade de
conferir sentidos às experiências passadas, inscritas na subjetividade, tomando o futuro como referência. E
não é um acaso que Lacan introduza, em seguida, as modalidades do tempo que ele apresentou em seu
texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”: o instante de ver, o tempo de compreender e o
momento de concluir. A convocação destas modalidades temporais indica, que na concepção de história
apresentada por Lacan, neste momento, o sujeito tem a função de fazer emergir um sentido (o que coincide
com o momento de concluir), que decide sobre o acontecimento original.

38
referido à já mencionada margem de liberdade de que o sujeito dispõe para interpretar.
Tal perspectiva difere da que foi apresentada nos textos “Seminário sobre ‘A carta
roubada’” e “A instância da letra ou a razão depois de Freud”, nos quais o sentido é
tomado como efeito do significante e é determinado pela organização lógica da sintaxe.
Outro ponto importante e digno de nota diz respeito ao fato de que o trauma, neste
texto, pode ser verbalizado, traduzido em palavras. E isso é possível por ser ele do
mesmo registro da linguagem. Para que algo se torne traumático e permaneça ativo na
subjetividade, é preciso que tenha valor semântico, que seja portador de uma
significação. Todo fato do inconsciente constitui-se, desde sempre, como fato dotado de
sentido. É desse modo que podemos interpretar a afirmação de Lacan segundo a qual o
sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito (LACAN,
J. 1953/1966, p. 280). O significado, como é possível inferir, é a experiência traumática.
(já que, para um fato se tornar traumático, é necessário que seja previamente portador de
significação e esteja inscrito na subjetividade). A tarefa da análise é, portanto, a de
precipitar “a meditação do sujeito rumo ao sentido a ser decidido do acontecimento
original” (LACAN, J. 1953/1966, p. 257), reintegrando a inscrição do trauma na sua rede
simbólica.
Desse modo, o trauma, que para Freud, é um evento impossível de ser
simbolizado pelo sujeito - extraindo daí seu caráter traumático - torna-se, no “Discurso de
Roma”, uma significação rechaçada, que pode ser recuperada pela interpretação, a qual,
por sua vez, promove o levantamento do recalque. Para o Lacan desta época, o
inconsciente é o capítulo da história de um sujeito marcado por um branco ou ocupado
por uma mentira, um capítulo censurado, em que a verdade, contudo, pode ser
reencontrada, já que, na maioria das vezes, está escrita em outro lugar (LACAN, J.
1953/1966, p. 259).
O pressuposto dessa perspectiva, conclui-se, é o de que a interpretação é uma
operação primária do sistema inconsciente. É como se o esquema S1 – S2 abrangesse a
totalidade do processo primário. Tudo pode vir a ganhar sentido, inclusive o trauma - ele
mesmo reabsorvido na simbolização. É assim, pois, que a fixação pulsional - causa
primária do sintoma em Freud – vê-se traduzida por Lacan como fixação de sentido. E o

39
objetivo da análise é o de integrar o trauma à rede simbólica do analisante por meio do
exercício da palavra plena. 11
A experiência da análise, nesse momento datado, é descrita com o auxílio de
alguns termos que aparecem, a partir de então, insistentemente, no discurso lacaniano:
“assunção do desejo”, “assunção da história”, “reconhecimento”, etc. Tais termos,
embora notadamente extraídos da filosofia de Hegel, não são freudianos, nem tampouco
estritamente hegelianos, mas indicam que a referência à dialética, longe de se apagar no
pensamento de Lacan, torna-se mais contundente 12. É preciso ressaltar, no entanto, que
esta não mais se confunde com a dialética imaginária à qual Lacan recorreu no passado,
sendo definida por ele como dialética do reconhecimento (LACAN, J. 1953/1966, p.
353), ou ainda, como dialética do desejo, entendido como desejo de fazer reconhecer seu
desejo (LACAN, J. 1953/1966, p. 343).
Para retomarmos o tema da interpretação, diremos que seu objetivo, nesse
momento, é o de fazer com que o desejo inconsciente seja nomeado pelo analisante e
reconhecido pelo analista (LACAN, J. 1953/1966, p. 259, 1953-54/1975, p. 18 e 1954-
55/1978, p. 267). Mas o objetivo da interpretação é também o de promover a assunção da
história do sujeito a partir da fala endereçada ao Outro, história que, como já dissemos,
não é factual, não diz respeito aos acontecimentos da realidade e sim às inscrições
inconscientes. Dito de outro modo, o que conta na intervenção interpretativa não são os
acontecimentos biográficos em si, mas a reconstrução que o sujeito faz acerca deles,
extraindo, daí, sua verdade (LACAN, J. 1953-54/1975, p.20).
Vale ressaltar que a produção da verdade não pode se efetivar no âmbito da
palavra vazia, onde o muro da linguagem opõe-se à fala (LACAN, J. 1953/1966, p. 282).
A linguagem situa-se no plano do objetivável, no qual o significante está soldado ao
significado, enquanto a fala encontra-se no registro do sentido, do equívoco, do mal-
entendido, no qual é possível a emergência de uma significação inesperada. Esse é,
segundo Lacan, o campo para o qual Freud soube abrir uma escuta (LACAN, J. 1953-
54/1975, p. 7).

11
Mais tarde, Lacan reconhecerá que a significantização integral do trauma é impossível, restituindo, em
seu ensino, o resíduo não significantizável do traumatismo, sob a forma do objeto pequeno a, gozo não
dotado de sentido.
12
A relação dialética do sujeito com o outro já havia sido destacada por Lacan no campo do imaginário,
tanto em sua tese sobre a paranóia de auto-punição, quanto no texto “O estádio do espelho”.

40
O objetivo da análise, então, é o de extrair a fala da linguagem (LACAN, J. 1953-
54/1975, p. 198). Que fala? A fala verdadeira, portadora de uma revelação (LACAN, J.
1953-54/1975, p. 59) e doadora de sentido, por meio da qual será possível encontrar a
realidade do sujeito para além do muro da linguagem. Nesse contexto, a função do
analista, para Lacan, é a de guiar o discurso do analisante em direção à realização de sua
verdade (LACAN, J. 1953/1966, p. 308, 309). Sua responsabilidade reside no fato de que
sua resposta pode reconhecer ou abolir tal verdade (LACAN, J. 1953/1966, p. 300).
Ou seja, quando o analista responde ao analisante no plano da linguagem objetiva,
da palavra vazia, ele rechaça a verdade do desejo do analisante, mas quando, com a
resposta interpretativa, ele acolhe e reconhece essa verdade, o analisante poderá fazer o
mesmo.
A terceira parte de “Função e campo da fala e da linguagem” é dedicada, como se
sabe, à técnica do tratamento analítico e tem como subtítulo “As ressonâncias da
interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica”. Essa parte do texto nos
interessa porque é o momento no qual Lacan fornece indicações práticas para a condução
da análise, extraindo-as da argumentação teórica desenvolvida na primeira e na segunda
parte do escrito. É aí também que encontramos a síntese de uma primeira teoria da
interpretação feita por Lacan.
Miller assinala que um dos princípios que podemos extrair da mencionada teoria é
o de que, ali, onde há a fala vazia, fala que se organiza no registro do espelho, não há
interpretação, não há o dizer do analista. A fala vazia, sustentada pelo imaginário, é, por
excelência, o lugar onde o sujeito goza e onde proliferam os impasses do narcisismo 13.
Não há resposta adequada para esse tipo discurso por parte do analista, não lhe restando
outra saída senão o silêncio (MILLER, J-A. 2005, p. 20, 21, 22, 23).
Para Lacan, o grande equívoco dos pós-freudianos que trabalharam com o
princípio da análise das resistências foi o de acreditar que o analista podia intervir nesse
nível da fala. Eles acreditaram que era possível utilizar os poderes da palavra no âmbito
do imaginário, e o resultado dessa prática foi o encontro com as resistências do paciente
(LACAN, J. 1953/1966, p. 290).

13
O gesto de Lacan ao situar, neste momento, o gozo no campo do narcisismo é solidário ao movimento de
Freud, de 1914, que postula o eu como o reservatório original de libido.

41
Na opinião de Lacan, Freud assumiu outra posição no que se refere à resistência,
e, para demonstrar seu argumento, recorre à análise do Homem dos Ratos. Ele lembra
que quando o paciente descreve, no tratamento, o suplício dos ratos outrora narrado pelo
capitão cruel, Freud percebe duas coisas: nota em seu rosto um gozo do qual ele não
estava ciente e observa que, naquele momento, o paciente identifica-se com o capitão, ao
imaginar o castigo aplicado em sua amada e em seu pai (FREUD, S. 1909/1996, p. 150).
E qual é a conduta de Freud diante da situação? Ele não interpreta a resistência implicada
nessa evidência de gozo, mas transmite ao Homem dos ratos alguns princípios da prática
analítica. Lacan faz notar que o que se encontra em questão na intervenção freudiana não
14
é nenhum tipo de doutrinação e sim o dom simbólico da palavra, cujo alcance será
explicitado, posteriormente, por meio da equivalência que o analisante estabelecerá entre
os ratos e os florins, moeda com a qual paga o tratamento ao analista.
Ainda de acordo com Lacan, longe de desconhecer a resistência, Freud serve-se
dela para obter as ressonâncias da fala e implicar o sujeito em sua mensagem (LACAN, J.
1953/1966, p. 290, 291). Por isso, nessa perspectiva, o justo lugar da interpretação é o
domínio do simbólico onde se é possível extrair as consequências dos jogos, das
substituições e dos deslocamentos que se produzem na fala do paciente.
No texto, “Variantes da cura tipo”, onde a técnica analítica mais uma vez é
discutida, Lacan acrescenta algumas indicações a respeito da interpretação e de sua
relação com o sentido. Ele diz que, na situação de análise, o sentido do discurso
pronunciado reside naquele que o escuta. O analista encontra-se na posição de intérprete
da fala do analisante, impondo-lhe a abertura para a sobre-determinação inconsciente,
que decorre do exercício da regra fundamental (LACAN, J. 1955/1966, p. 331).
O inconsciente é definido, nesse escrito, como o elemento que sustenta o sintoma
em seu sentido, antes que este seja revelado pela interpretação. Se o sintoma persiste
depois de ter sido interpretado, é porque o sujeito resiste a reconhecer o sentido
desvelado, de onde decorre a conclusão, compartilhada por muitos analistas, de que é a
própria resistência que é preciso analisar.

14
Lacan responde, aqui, aos pós-freudianos que criticaram o conjunto das intervenções freudianas, neste
caso, qualificando-as de “doutrinação”.

42
Nesse ponto do texto, Lacan argumenta em favor da idéia de que, ao contrário do
que se pensa, tanto a interpretação do material produzido na análise – sonhos, atos falhos
e associações verbais - quanto a interpretação das resistências incidem sobre o discurso.
Sua posição é contrária à de alguns analistas pós-freudianos, que situaram a resistência
fora do discurso. Para Lacan, a resistência age sobre o texto enunciado pelo paciente, não
havendo razão para se considerar um tipo de interpretação que vise a outro elemento que
não seja a cadeia verbal produzida na análise (LACAN, J. 1955/1966, p. 333, p. 334).
O mais importante, no entanto, é que, ao comparar a interpretação do material
produzido na análise com a interpretação das resistências, Lacan termina por fornecer a
definição de um primeiro tipo de interpretação, denominada por ele como “interpretação
de sentido”. E como é definida a interpretação em “Variantes da cura tipo”? A
interpretação é designada como a intervenção por meio da qual o sujeito passa de uma
determinada cadeia verbal para outra mais profunda (LACAN, J. 1955/1966, p. 334).
Desse modo, podemos deduzir que a interpretação é uma intervenção que se desdobra
inteiramente no campo do simbólico, tendo por objetivo a revelação de um sentido
dissimulado pelo recalque.
Nesse texto, exatamente como no “Discurso de Roma”, a interpretação não pode
se produzir no eixo de comunicação entre dois Eus. Na análise, o sujeito tende a
concentrar seu discurso no plano do imaginário, mas o analista não deve responder aos
apelos do sujeito oriundos desse plano. Se ele o fizer, pagará o preço de tornar
consistente o amor de transferência, fazendo surgir a resistência, e reduzindo, assim, o
discurso analítico ao silêncio. O discurso analítico só pode se produzir quando a relação
imaginária, na situação analítica, é retificada pela mediação da fala (LACAN, J.
1955/1966, p. 346-348). E o que é a fala para Lacan? A fala “(...) é o que dá ao sentido
seu suporte no símbolo que ela encarna por seu ato” (LACAN, J. 1955/1966, p. 351). Ou
seja, a fala é o que sustenta o sentido. É o ato que supõe um sujeito na expectativa de que
o outro torne verdadeira sua mensagem e que é ele mesmo transformado por esta
mensagem.
Lacan, aqui, faz equivaler a fala ao ato, aspecto que será amplamente explorado
no Seminário O ato analítico, inclusive quando ele afirma não haver distinção entre as

43
frases encontradas no evangelho de São João, “no início era o verbo” e na obra de
Goethe, pronunciada pelo personagem Fausto, “no início era o verbo”.
A fala, que constitui o sujeito em sua verdade, encontra-se interditada, silenciada
pelo discurso, que se desdobra, no plano do espelho, entre dois Eus, e, de acordo com
Lacan, é a isso que Freud chamou inconsciente. (LACAN, J. 1955/1966, p. 351, 352). A
interpretação se define, pois, como a operação capaz de produzir o levantamento da
interdição que pesa sobre a fala, portadora de um sentido e da verdade do sujeito.
Em “Variantes da cura tipo”, a fala verdadeira - que tomamos como equivalente à
interpretação por transmitir a verdade recalcada do sujeito – funda-se na noção de que a
significação sempre reenvia à significação. E a condição para que ela seja veiculada na
análise é que as miragens do narcisismo tenham se tornado tão transparentes para o
analista, que ele se mostre permeável à palavra verdadeira do outro (LACAN, J.
1955/1966, p. 352).
Mais uma vez, vemos Lacan enfatizar o fato de a interpretação não poder operar
no campo do imaginário onde prolifera o gozo narcísico. A interpretação visa à verdade
do sujeito e não ao seu gozo, e essa verdade só pode se revelar no campo do simbólico e
do sentido, por meio da dialética do reconhecimento do desejo. Como sugere Miller, o
gozo e o imaginário, neste momento, estão situados à margem da operação analítica num
registro heterogêneo ao campo do simbólico e do sentido gerado pela fala verdadeira.
(MILLER, J-A. 2005, p. 23, 24, 25). E de fato, este é um aspecto que pode ser
reconhecido nas análises que acabamos de empreender.
Outro aspecto da interpretação a ser assinalado, aqui, refere-se ao fato de que a
interpretação só é eficaz se o analista a profere do lugar de sujeito. Vimos, anteriormente,
que na dialética da fala e do desejo, o sujeito funda-se na fala dirigida a outro sujeito, o
qual reconhece, ali, seu desejo. Diferentemente do gozo, a fala tem o poder de fundar e de
constituir o sujeito. Assim, a interpretação do analista funda-o enquanto sujeito, e para
que atinja seu alvo, para que seja portadora de uma verdade, é necessário, segundo
Miller, que seja verdadeira para ambos os sujeitos presentes na dialética do
reconhecimento: aquele que a profere e aquele que a ouve (MILLER, J-A. 2005, p. 27-
28). Essa característica situa claramente a interpretação no eixo da intersubjetividade, e a
separa do ato que, de acordo com Lacan, é lançado pelo analista da posição de objeto.

44
A intersubjetividade, implicada na interpretação, pode ser depreendida de algumas
passagens do texto de Lacan, analisadas a seguir.
Vejam o exemplo que Lacan fornece do que ele chama de “uma autêntica
interpretação”. O exemplo é extraído da análise do Homem dos ratos. A análise sofre
uma virada a partir da intervenção que Freud faz, quando escuta, do paciente, que sua
mãe lhe havia aconselhado a deixar a namorada pobre para casar-se com a moça rica.
Qual foi a resposta de Freud a este relato? Ele assinala ao paciente que seu pai (pai do
Homem dos Ratos) havia vivido uma situação similar.
Para Lacan, essa é uma interpretação que se situa na “cadeia das palavras”, a qual
se estende para além do indivíduo. É essa cadeia que faz com que a falta, assumida
anteriormente pelo pai, esclareça o sentido da obsessão atual do paciente pelo pagamento
de uma dívida. Com a intervenção, Freud desfaz toda a trama imaginária da neurose
obsessiva em questão e permite ao sujeito decifrar seu destino. O que nos interessa
destacar é que, segundo Lacan, Freud só pôde fazer essa interpretação, porque ouvira de
sua família uma sugestão semelhante. A resposta que ele deu ao sujeito era a fala
verdadeira, na qual ele próprio fundava-se, o que nos explica os efeitos surpreendentes da
interpretação (LACAN, J. 1955/1966, p. 353, 354, 359). E é a partir dessa perspectiva
que podemos dizer que o paradigma da interpretação, nesse período, é o enunciado «Tu
és minha mulher», no qual, por intermédio da mulher que ele designa como sua, o sujeito
se constitui como seu esposo. O exemplo, dado por Lacan em “Função e campo da fala e
da linguagem”, apresenta-se, assim, como o modelo da mediação simbólica e
intersubjetiva que se produz no processo analítico.
Para concluir, gostaríamos de acrescentar um último ponto de vista encontrado na
primeira teoria da interpretação, o qual aparece em “Variantes da cura tipo”. Lacan, ali,
discute a relação entre a interpretação e o saber, defendendo enfaticamente a idéia de que
interpretar não significa transmitir ao sujeito o saber do analista. Isso seria algo da ordem
da sugestão e não da interpretação. Lacan situa, no cerne da interpretação, a função da
ignorância do analista. Quanto mais o analista sabe o que tem a dizer ao paciente, mais o
inconsciente se fecha, diz o autor. É somente na medida em que o analista á capaz de
calar, nele, o discurso submetido à organização de seu Eu, que ele pode formular uma

45
verdadeira interpretação. Somente desse modo veremos brotar o que Lacan chamou de
fruto da ignorância: o não saber (LACAN, J. 1955/1966, p. 337, 353, 358, 359, 361, 362).
Essa indicação de Lacan pode ser melhor entendida se consideramos que a
interpretação é algo que deve incidir sobre aquilo que ele chamou, na discussão sobre a
interpretação eficaz do caso do Homem dos Ratos, de “a cadeia de palavras”, a qual se
articula e se desdobra para além do indivíduo. Lacan faz coincidir aí o registro da
interpretação com o da combinatória significante. O funcionamento automático da cadeia,
que determina a posição do sujeito, parece ser o equivalente do recalcado, do que Lacan
chama de “não saber”, e que deve surgir, como fruto da posição de ignorância, assumida
pelo analista15. É sobre o que está recalcado, é sobre aquilo que o determina, que o sujeito
não quer saber. A função da ignorância do analista é a de criar um vazio no campo do
saber, para que esse material possa surgir na análise.
Avancemos mais um pouco com o intuito de recolher o que seria a interpretação
no “Seminário sobre ‘A carta roubada’”. Como será possível notar, alguns
deslocamentos produzir-se-ão nesse escrito, sobretudo no que se refere à interpretação
concebida como experiência intersubjetiva, aspecto tão plenamente ressaltado em
“Variantes da cura tipo” e no “Discurso de Roma”.
Esse aspecto da interpretação declinará, na medida em que Lacan trouxer ao
primeiro plano as leis que regem a combinatória significante. O que se tornará
proeminente, então, é que certo tipo de cálculo pode ser feito quando se conhece as regras
de combinação das cifras em uma cadeia simbólica. Essa modificação é o que
pretendemos demonstrar a seguir.

4.2- “A carta roubada” e a estratégia combinatória determinante do sujeito e do


sentido.

No “Seminário sobre ‘A carta roubada”’ Lacan usa dois recursos para demonstrar
a autonomia do simbólico. O primeiro deles é o recurso literário: a análise do conto de
Edgar Allan Poe, “The Purloine Letter”, na qual busca evidenciar a ordenação dos
elementos em uma cadeia, a partir do trajeto da carta na história. O segundo é o recurso

15
Posteriormente Lacan definirá o inconsciente como o saber que não se sabe.

46
algébrico, com o qual pretende fornecer modelo de sintaxe construído com apenas dois
sinais (-) e (+).
Poe fala de um menino que ganhava com frequência o jogo do “par ou ímpar”.
Interrogado sobre a estratégia para adivinhar se o número de objetos de seu adversário é
par ou ímpar, o menino responde do seguinte modo. “Bem, depois do primeiro lance – no
qual perdi ou ganhei – penso que, se meu adversário for ingênuo, ele vai simplesmente
mudar de jogada no próximo lance (escolher um número par se o primeiro foi ímpar e
vice-versa). Entretanto, se ele for inteligente, vai se dar conta de que estarei prevenido
quanto a isso e, desse modo, repetirá a jogada inicial”. Ou seja, para julgar se o
adversário é ingênuo ou inteligente o garoto recorre a uma identificação imaginária. Ele
executa uma imitação interna de suas atitudes e de suas expressões faciais. Contudo, pode
ocorrer de o adversário perceber que o menino o observa e decidir usar sua inteligência,
fazendo-se de idiota para ganhar. Nesse caso, o menino terá sido ele mesmo objeto de
investigação do adversário e, a partir daí, eles estarão presos no impasse da
intersubjetividade.
Assim, Lacan conclui que a identificação imaginária é uma via previamente
condenada, já que exclui o processo simbólico, que só entra em cena se o menino
identificar-se não com o adversário, mas com seu próprio raciocínio. Somente desse
modo, ele poderá recorrer, não a uma relação dual, mas a algo que se encontra além dela,
a uma lei que preside a sucessão dos lances que lhe forem propostos. Se fizer essa
passagem, o menino se situará no plano da análise combinatória, o que tornará possível o
cálculo da regularidade dos lances (LACAN, J. 1955/1966, p. 58, 59).
Nesse ponto, Lacan aproxima a determinação simbólica inconsciente, tal qual ela
aparece em Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, da estratégia combinatória, se
entendermos que, na referida obra de Freud, uma cifra nunca é escolhida ao acaso, mas
obedece, ao contrário, às leis da sobre-determinação (LACAN, J. 1955/1966, p. 59, 60).
Fazendo referência ao jogo do Fort da, Lacan o toma como exemplo da
determinação que o homem recebe do simbólico. Ali, diz ele, damos conta da entrada do
indivíduo na ordem da linguagem, onde o significante determina o significado.
Apreendemos, em sua emergência, a sobre-determinação do processo primário. A
conotação elementar da presença (+) e da ausência (-) nos permite pensar uma série em

47
que as determinações simbólicas derivam da sucessão de lances que se dão absolutamente
ao acaso (LACAN, J. 1955/1966, p. 46, 47).
Lacan desenvolve no contexto dessa argumentação, um modelo de linguagem
artificial que tenta elucidar a sobre-determinação inconsciente. Para isso, toma como
ponto de partida um acontecimento real: jogar para cima uma moeda equilibrada (não
viciada). Com uma moeda assim, não podemos prever, em nenhuma jogada, se o
resultado será cara ou coroa. Anotaremos (+) cada vez que sair cara e (–) cada vez que
sair coroa. O passo seguinte é o da codificação dessa primeira série aleatória, que
ultrapassa a dialética binária do (+)/(-).
Não nos dedicaremos, aqui, a explicitar a construção da cadeia simbólica proposta
16
por Lacan, a partir do lançamento das moedas . Gostaríamos apenas de ressaltar que,
embora os resultados das jogadas específicas (cara ou coroa) não tenham sido
determinados, aparecem constrangimentos gerados pela própria cadeia. Como assinala
Angélica Bastos, a série engendra uma situação que faz com que nem todos os resultados
sejam possíveis, pois dependem dos resultados anteriores (BASTOS, A. 2003, p. 55). É
como se fosse uma regra de ortografia: não se usa n antes de p e b. O que as regras de
ortografia muitas vezes fazem é, justamente, dizer como as letras ou os termos
gramaticais devem ser encadeados uns após os outros.
A matriz simbólica que emerge, a partir dos lances da moeda, resulta em
impossibilidades e, ao mesmo tempo, em imposições relacionadas com a ordem em que
as categorias dos pares aparecem. A sintaxe permite certas combinações e proíbe outras.
Assim, Lacan constrói uma grade simbólica simples de jogadas de moeda que implica
uma gramática elementar, mas lógica, e que possui também uma função de memória
embutida, já que a cadeia grava dentro de si os componentes anteriores.
O interesse de Lacan em construir esse modelo de cifragem é o de propor um
sistema simbólico que obedeça a um conjunto de regras e não seja inerente à realidade
preexistente. As regras não estão dadas a priori. As possibilidades e impossibilidades que
resultam da cadeia são produtos do modo como ela foi construída, da maneira como foi

16
Aos que se interessam pelo assunto, sugerimos a leitura do texto de Angélica Bastos, ‘O caput mortuum
do significante: uma introdução a “O Seminário sobre ‘A carta roubada’”, que tece uma análise minunciosa
sobre a elaboração formal da cadeia significante e de suas consequências.

48
cifrado o acontecimento em questão. Ou seja, é o método de cifragem que gera as leis
sintáticas que não existiam antes.
Desse modo, o modelo do posfácio do “Seminário sobre ‘A carta roubada”’, ao
simular a cifragem das linguagens naturais e dos processos inconscientes, pretende
explicitar o aspecto essencial do que chamamos “sobre-determinação” no processo
primário. Referido modelo pretende demonstrar que o inconsciente é composto de cifras,
que trabalham de modo automático: assim como a carta/letra no conto de Poe, o que está
escrito não pode ser apagado, podendo apenas mudar de lugar, produzindo, com o
deslocamento, novos sentidos.
A sintaxe da carta e o modo de determinação das letras são determinantes do
sentido e da posição do sujeito. Essa é a idéia subjacente à análise que Lacan faz do conto
“A carta roubada” 17. A carta, por ter um trajeto que lhe é próprio, afirma sua incidência
de significante (LACAN, J. 1955/1966, p. 29). Este último tem funcionamento alternante,
exigindo que ele deixe seu lugar e é isto o que se passa na estória de Poe, onde a carta
passa das mãos da rainha para as do ministro e, em seguida, para as de Dupin. Os
personagens, tomados em sua intersubjetividade, modelam seu ser em função de sua
posição em relação à carta, no momento em que lhes percorre a cadeia significante. No
conto, é a carta/letra que, em seus descaminhos, determina a entrada dos personagens,
bem como define seus papéis. “Ao passar sob sua sombra, tornam-se seu reflexo. Ao cair
em possessão da carta/letra – admirável ambiguidade da linguagem – é o sentido dela que
os possui” (LACAN, J. 1955/1966, p. 30).
O conto de Poe é uma bela ilustração dos deslocamentos da carta/letra, como
metáfora da determinação dos sujeitos em seus atos e destinos. O circuito realizado pela

17
No conto de Poe o narrador conta ter presenciado um dia a visita do Prefeito da Polícia de Paris a Dupin.
Ele vinha buscar sua ajuda para solucionar um caso delicado, insolúvel para a polícia. Tratava-se de uma
carta que havia sido roubada dos aposentos da Rainha pelo Ministro D. Este último, tendo percebido que a
carta em questão comprometia a Rainha, aproveitara-se da presença do Rei para trocá-la por outra
semelhante, sabendo que a Rainha não reagiria ao roubo para não se comprometer aos olhos do Monarca. A
polícia fora, então, convocada a recuperar a tal carta que conferia ao Ministro D. enorme poder. Depois de
inúmeras buscas na casa deste último nada fora encontrado. A última esperança do Prefeito era a de que
Dupin pudesse encontrar o que procuravam. E de fato, depois de algum tempo, ele consegue solucionar o
caso. Tendo suspeitado que a carta encontrava-se num lugar bem evidente, Dupin, depois de muito
raciocinar, conclui que a carta fora disfarçada pelo Ministro para não ser encontrada. Numa visita à sua
casa, enquanto conversava com ele, observou minuciosamente sua biblioteca e localizou a carta com o selo
adulterado e o nome da Rainha, a verdadeira destinatária, substituído pelo nome do Ministro escrito com
uma letra de mulher. Posteriormente, Dupin retornou à biblioteca e recuperou a carta que fora roubada.

49
carta/letra obedece, como vimos, a certas leis. O sujeito é determinado em função da
ordenação significante que se impõe. O funcionamento automático do significante no
inconsciente pode produzir diferentes sujeitos e significações, na medida em que os
símbolos não possuem sentido fixado. O sentido da carta para a rainha não é o mesmo
que para o ministro ou para Dupin. O sentido é ofertado à carta, quando os personagens a
detém consigo e são tomados por suas particularidades. A carta/letra, no “Seminário
sobre ‘A carta roubada”’, está inserida num circuito simbólico, presidido pelo
automatismo de repetição, o qual se cumpre à revelia do sujeito.
Tal maquinaria simbólica é o que Lacan traz ao primeiro plano, nesse momento
de seu ensino. É preciso, diz ele, partir sempre do texto. O autor, o escriba, vem sempre
em segundo plano. “(...) Eu vos peço para prestar mais atenção ao texto do que à
psicologia do autor. Essa é toda a orientação de meu ensino.” (LACAN, J. 1955-56/1978,
p. 184). E, nesse contexto, podemos perguntar: o que é a interpretação articulada à noção
do inconsciente inspirado no modelo da cibernética? O que é a interpretação onde a
articulação do texto vale mais do que a psicologia do autor?
Diremos que, nesse cenário, a interpretação só adquire o vigor necessário, quando
o analista deixa de interpretar os elementos do âmbito do imaginário - como fazia o
menino que analisava seu adversário no jogo do par ou ímpar – para considerar o plano
simbólico da análise combinatória, onde os elementos se combinam, obedecendo a
determinadas leis. Pensar o sentido como produto do deslocamento do significante na
cadeia simbólica, no entanto, modifica a idéia anterior segundo a qual o sentido é doado
pelo sujeito e aparece na relação desse sujeito com outro sujeito.
A concepção de interpretação, aí, considera que tanto o sentido quanto a posição
subjetiva são determinados pela lógica de funcionamento da cadeia simbólica. Ambos
aparecem como um resultado necessário – que não pode ser outro – do modo como os
significantes articulam-se entre si. Miller sugere que nessa perspectiva, interpretar seria
dizer ao analisante: “de acordo com a combinação das cifras, tal foi o sentido produzido
por sua fala, e esta é a posição subjetiva na qual você se encontra”. O sentido e o sujeito
aparecem como efeitos do funcionamento da cadeia, o que torna problemática a dimensão
do assentimento subjetivo, restringindo a margem de liberdade concedida anteriormente

50
ao sujeito para decidir sobre o significado de suas experiências (MILLER, J-A. Cause et
consentement, Léçon du 18 Novembre, 1987).
Diferente do “Discurso de Roma”, onde a significação traumática, inscrita na
subjetividade, é lida na análise pelo sujeito, que decide sobre o sentido do acontecimento
18
original , no “Seminário sobre ‘A carta roubada”’, não existe um significado primeiro
estabelecido. O que está estabelecido, de início, é a diferença entre os termos que
compõem a cadeia. Essa é a única propriedade do sistema que o antecede, todas as outras
propriedades são derivadas da própria organização da cadeia. A significação apresenta-se
como aquilo que emerge da relação estabelecida inicialmente ao acaso entre os termos do
sistema.
Esse é um aspecto a ser ressaltado, a saber, o fato de que a determinação
simbólica de que fala Lacan no “Seminário sobre a ‘A carta roubada”’ não faz oposição
ao acaso, ao contrário, é dele derivada. Lembre-se do jogo de cara ou coroa, a partir do
qual uma sintaxe é construída com os resultados aleatórios dos lances da moeda. A sobre-
determinação das cifras é gerada pelo indeterminado e o sistema simbólico proposto por
Lacan, já nesse momento, não é fechado. É um sistema não-todo, que não se sustenta na
imobilidade fundadora da estrutura da linguagem, apresentando uma abertura à
contingência e ao acaso, que nos impossibilita de considerá-lo como uma totalidade.
O Outro, no modelo simbólico lacaniano, que se aproxima da linguagem da
cibernética, é estruturado por leis probabilísticas. Trata-se de Outro calculável, o que nos
impede de colocar uma estrutura linguística no lugar de origem. Se há uma origem neste
modelo, a origem é a contingência, a partir da qual os elementos da sintaxe se encadeiam.
Além do mais, uma das conseqüências extraídas por Lacan da codificação da
primeira série elaborada pelos sinais (+) e (-) é a de que há algo que não se encadeia na
série. Há elementos que estão proibidos de se integrar à cadeia, em razão de sua
construção lógica. Na opinião de Angélica Bastos, esse aspecto da série ilustra um ponto
fundamental da experiência psicanalítica: a rememoração é incapaz de superar a falta no
campo simbólico em que o sujeito está imerso (BASTOS, A. 2003, p. 64).

18
No “Discurso de Roma” há uma significação inscrita no psiquismo, que pode ser lida de uma maneira ou
de outra, mas ela está lá. O que pode ser inferido da afirmação de Lacan, já destacada neste trabalho,
segundo a qual, “o sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”
(LACAN, J. 1953/1966, p. 280).

51
Isso é o que Lacan chamou de caput mortuum do significante (LACAN, J.
1955/1966, p.50), que representa a dimensão de perda, própria da simbolização. E o mais
interessante é que o caput mortuum varia de acordo com os elementos constituintes da
série, o que significa que, para cada sujeito, ele se constitui de forma singular segundo as
articulações da cadeia. Ele é depurado no percurso da série e as impossibilidades que ele
encarna fazem um retorno causal sobre o encadeamento (BASTOS, A. 2003, p. 64).
Assim, é possível perceber que a cadeia significante se organiza em torno de um
indeterminado. Mais tarde, no Seminário A ética da psicanálise, Lacan vai propor que a
trama significante se tece em torno de das Ding, gozo contingente que causa a repetição
significante necessária, estando ela mesma subtraída da cadeia. O esboço do que será
proposto em 1959-60 já está anunciado no “Seminário sobre ‘A carta roubada”’, embora
o mais evidente seja a determinação significante que sofrem o sujeito e o sentido.
Para retomarmos nosso tema, o ato do analista, concluiremos dizendo que, de toda
maneira, a concepção de interpretação vigente nesse momento não se conforma
totalmente com a perspectiva de escolha e de decisão por parte do sujeito, tendo se
deslocado do eixo da relação intersubjetiva para situar-se no eixo da relação do sujeito
com o campo simbólico. Ainda que o sistema de Lacan, nesse momento, esteja aberto à
contingência e ao indeterminado, o sujeito é considerado como um efeito. Aspecto que
continuará a ser desenvolvido, no texto “A instância da letra ou a razão depois de Freud”.

4.3- O sentido no contexto da teoria do significante e da relação do sujeito com o


Outro.

Ao continuar nossa investigação sobre a teoria da interpretação, devemos destacar


que, a partir de 1954, um dos empreendimentos de Lacan foi o de estabelecer a diferença
entre o je e o moi, assim batizados desde o Seminário I, Os escritos técnicos de Freud. O
moi definine-se como uma construção imaginária, que se vê de forma especular em seu
semelhante (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 60, 284, 285), enquanto o je constitui-se na
experiência de linguagem, na qual o Outro lhe manifesta ordens e desejos que ele deve
reconhecer (LACAN, J. 1953-54/1975, p. 189). Constatamos, na discussão anterior, que a
primeira teoria da interpretação fundamentou-se nessa distinção, defendendo o ponto de

52
vista segundo o qual a interpretação e a fala verdadeira só poderiam ocorrer no âmbito do
Je, simbólico, sendo inoperantes no campo do moi, imaginário.
Além da discriminação mencionada, Lacan introduz outra, que, desta vez, visa
marcar a diferença entre o Grande Outro, que se encontra em questão na função da fala, e
o pequeno outro que é o moi (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 276). Mais uma vez, a
mencionada distinção serviu como fundamento para as críticas de Lacan ao que ele
chamou de “psicanálise do ego”. A análise, como destacamos suficientemente, não
poderia se constituir como o espaço da realização imaginária do analisante. Seu objetivo
não poderia ser o de recompor o eu, integrando seus membros esparsos, suas etapas pré-
genitais e suas pulsões parciais (LACAN, J. 1954-55/1978 p. 282). O trabalho de análise,
de acordo com Lacan, deve se situar, não no plano do espelho - no qual o eu dirige-se ao
semelhante, compartilhando com ele um campo de significações - mas no plano
simbólico, no qual o sujeito se dirige ao verdadeiro Outro, que fornece respostas
inesperadas e surpreendentes (LACAN, J. 1954-55/1978 p. 288).
Assim, enquanto no período inicial o sujeito é tomado em sua intersubjetividade e
encontra-se marcado pela estrutura do diálogo, agora, o Outro não se define mais como
outro sujeito, e sim, como o conjunto das leis da língua, o correlato natural de qualquer
sujeito falante. Toda fala remete ao Outro, que acolhe e ratifica a mensagem emitida pelo
sujeito.
O que está em primeiro plano, nesse momento, é o fato de que o discurso do
sujeito está submetido à organização da linguagem enquanto estrutura, uma idéia que
podemos reconhecer na afirmação de Lacan segundo a qual é a estrutura de linguagem
que a experiência analítica descobre no inconsciente (LACAN, J. 1957, p. 495). Se a
idéia do sintoma como mensagem - texto a ser decifrado - permanece, Lacan não mais se
preocupa exclusivamente com o conteúdo da mensagem. Ele quer investigar as regras de
cifragem da mensagem.
Podemos ainda acrescentar que, se anteriormente o sentido aparecia na relação
entre dois sujeitos, já que o desejo do homem só adquire sentido no desejo do outro
(LACAN, J. 1953/1966, p. 268) em “A instância da letra ou a razão depois de Freud”, o
sentido passa a ser tratado como efeito de dois tipos de articulação da cadeia significante:
a metáfora e a metonímia (LACAN, J. 1957/1966, p. 495).

53
Nessa perspectiva, Lacan, ao marcar a existência de duas ordens distintas e
separadas (a ordem do significante e a ordem do significado) propõe que o significante
não se destina mais a representar o significado (LACAN, J. 1957/1966, p. 497, 498). O
modelo apresentado anteriormente do significante fazendo referência a um significado, é
substituído pela idéia do “acesso” do significante ao significado ou da “entrada” do
significante no significado (LACAN, J. 1957/1966, p. 500, 501) Aqui, como assinalamos,
o sentido passa a ser o resultado das relações entre os significantes. Apesar da insistência
do sentido na cadeia significante, no entanto, para o autor, nenhum dos termos da cadeia
consiste na significação (LACAN, J. 1957/1966, p. 502) e o sentido não é jamais fixado.
Contra o esquema saussuriano que subordina a constituição do significante e do
significado ao recorte prévio do signo, e considera a co-extensão da cadeia de
significados à cadeia de significantes, Lacan mantém a independência do significante, ao
afirmar que este se antecipa sempre ao sentido, o que explica o deslizamento eterno do
significado (LACAN, J. 1957/1966, p. 502). O efeito de significação ocorre no ponto de
estofo, no qual a significação se produz. Se antes o sentido era doado pelo sujeito, agora,
ele depende do modo como os significantes se combinam.
O deslocamento essencial entre os textos “Discurso de Roma” e “A Instância da
letra ou a razão depois de Freud” parece apontar para o fato de que, no último, o sentido
encontra-se subordinado ao significante. Outro ponto digno de ser ressaltado é que, nessa
elaboração, Lacan faz coincidir o lugar do sujeito com o do significado: “Mas todo este
significante, diríamos, só pode operar se estiver presente no sujeito. É ao que satisfaço,
supondo que ele passou ao estágio do significado” (LACAN, J. 1957/1966, p. 504). Ou
seja, a significância, o efeito de sentido, tem relação com o uso que o sujeito faz da língua
para significar outra coisa diferente do que diz. O ponto de emergência de uma
significação inédita e surpreendente é também o ponto de emergência do sujeito. Nesse
modelo, não devemos esperar, no entanto, uma relação totalizante entre o significante que
representa o sujeito para outro significante e o sentido produzido na operação. O sujeito
que desliza na cadeia, dividido entre significante e significado, é justamente a razão da
não-totalização. É por não ocorrer correspondência completa entre o que é o sujeito e o
que aparece como seu significado no plano simbólico, que a cadeia mantém seu
deslizamento infinito, perpetuando o desejo.

54
Isso significa que, contrariamente ao que sustentou em “Função e campo da fala e
da linguagem” – quando defendeu a promessa de reintegração da cadeia simbólica do
sujeito, através da interpretação e da fala plena, que restituiriam o capítulo censurado do
inconsciente – Lacan, agora, defende o ponto de vista segundo o qual é impossível o
restabelecimento de toda e qualquer continuidade entre o sujeito e os sentidos que ele
produz. O desejo, que não pode ser inteiramente dito, e o sujeito, que não pode ser
totalmente representado, tornam impossível toda esperança de reintegração ou de
restabelecimento das cadeias de sentido. Aqui, pois, aparece, na teoria lacaniana, uma
primeira forma de resistência à interpretação, que não é ainda a resistência promovida
pelo real colocado em posição de exclusão em relação ao sentido, e, sim, resistência
inerente ao próprio funcionamento do simbólico. Esse obstáculo ao sentido, em Lacan,
aparece sob a forma da cisão entre o significante e o significado e em função do fato de o
significante representar o sujeito para outro significante, o que impossibilita a
subjetivação total.
Diríamos então que nesse artigo, Lacan dissolve a idéia de que o referente do
significante é o significado (LACAN, J. 1957/1966, p. 498), dissolvendo, com o mesmo
gesto, a proposição do “Discurso de Roma” na qual afirmava que “o sintoma é um
significante cujo significado é recalcado da consciência do sujeito”. O significante do
sintoma, em “A instância da letra ou a razão depois de Freud”, não representa uma
significação traumática dada. Ele só pode representar algo para outro significante. Nesse
contexto, torna-se indefensável a existência de uma significação que se mantém por si
mesma, já que a língua é insuficiente para recobrir o campo do significado, e toda
significação só se sustenta ao reenviar a outra significação (LACAN, J. 1957/1966, p.
498). Lacan retifica suas formulações anteriores ao propor que o significante do trauma
não tem referente. É significante, que se apresenta enigmático para o sujeito, sendo
substituído metaforicamente pelo significante do sintoma, que pode ter seu significado
resolvido na análise (LACAN, J. 1957/1966, p. 518).
No que se refere à questão da causa, vimos que, no texto “Formulações sobre a
causalidade psíquica”, ela foi pensada como causa de sentido e, no “Discurso de Roma”,
foi tomada como um significado traumático recalcado. E o que se torna a causa em “A
Instância da letra”? Ela se transforma em causa significante.

55
A causa do sujeito, do sintoma e do sentido, é o significante em suas formas
particulares de combinação. A causa é o significante divorciado do significado, ao qual
ele se conecta, pontualmente, pela operação do ponto de estofo. O movimento efetuado,
no Seminário VII, que desloca a causa do registro simbólico para o campo de das Ding,
ainda não foi realizado e portanto o ato do analista ainda se refere ao simbólico.
Quanto à teoria da interpretação, examinemos o que mudou com os
deslocamentos conceituais introduzidos em “A Instância da letra ou a razão depois de
Freud”. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a letra, tomada inicialmente de Poe, é
recuperada no texto para designar a estrutura de linguagem, na medida em que o sujeito e
o sentido estão nela implicados. Aí ocorre, se assim podemos dizer, uma literalização do
sujeito e do sentido. A letra pré-existe a esses dois termos, e os determina.
O que é trazido ao primeiro plano é o fato de a linguística ter inaugurado uma
ciência da letra, a partir da qual se tornou possível a determinação prévia de um modo de
cálculo. Isso é o que interessa à psicanálise. Tomando a hipótese do inconsciente
estruturado como uma linguagem, Lacan reconhece a possibilidade do cálculo no campo
das formações do inconsciente. E a interpretação, nesse contexto, só pode, é claro,
fundamentar-se nesse cálculo.
Outro aspecto a ser ressaltado é que, como havia sido anunciado em o “Seminário
sobre ‘A carta roubada’”, a idéia do engajamento subjetivo do analista na interpretação
perde valor. A relação analítica não é mais pensada como relação intersubjetiva: ela se
situa no eixo da relação do sujeito com o Outro, que é quem decide sobre o significado do
que o sujeito diz e sobre o valor que o sujeito assume no contexto da frase que enuncia.
Na visão de Miller, se o sujeito é a variável, que se define em função da relação entre
dois significantes, a interpretação é a intervenção a partir da qual essa variável é
redefinida, assumindo um valor que não estava dado anteriormente. A interpretação
promove o que podemos chamar de mutação subjetiva, na medida em que reposiciona o
sujeito na cadeia significante (MILLER, J-A. 2005, p. 29).
O sujeito que, em “Formulações sobre a causalidade psíquica” e no “Discurso de
Roma” era um sujeito livre para decidir sobre o sentido de suas inscrições psíquicas,
perde, no entanto, um bocado de sua liberdade. Uma das razões para que isso ocorra é
que o lugar do sujeito em “A instância da letra ou a razão depois de Freud” aparece

56
confundido com o lugar do significado, o que pode ser constatado nas afirmações que se
seguem: “Todo este significante só pode operar presente no sujeito. É ao que satisfaço
supondo que ele passou ao estágio do significado” (LACAN, J. 1947/1966, p.504), ou
ainda, “este franqueamento (Lacan fala do efeito de sentido) exprime a condição de
passagem do significante no significado, da qual marquei o momento confundindo-o,
provisoriamente, com o lugar do sujeito (LACAN, J. 1947/1966, p. 515, 516).
Lacan, nessa última frase, indica que a confusão do lugar do sujeito com o do
significado é provisória, mas de todo modo, fica evidente que o texto não distingue
claramente esses dois lugares. Sabemos que a distinção é essencial para se pensar o
assentimento subjetivo. Para que o sujeito consinta com a veracidade da significação
revelada pela interpretação, é necessário que ele se posicione num lugar diferente desta
última. A coincidência entre o efeito de sentido e o efeito de sujeito, dificultando a noção
do assentimento subjetivo, valorizada nos textos anteriores.
Seja como for, a interpretação, em “A instância da letra ou a razão depois de
Freud”, tem como origem a falta-a-ser do sujeito. O termo falta-a-ser faz referência ao
fato de que o sujeito perde algo do seu ser, quando se faz representar no campo da
linguagem. É precisamente porque o sujeito sofre com a falta de um significante que
possa representá-lo inteiramente, que ele busca constituir-se na fala, especialmente na
fala da interpretação. Miller sugere que, sob esse ponto de vista, o ato interpretativo é
aquele através do qual o analista abre, na fala, novo espaço para o som e para o sentido
que possam re-significar o sujeito (MILLER, J-A. 2005, p. 36, 37, 40).
A menção à falta-a-ser em “A instância da letra ou a razão depois de Freud”
(referência negativizada ao ser do sujeito) é relevante. Na verdade, Lacan, nesse texto,
não se refere estritamente à falta-a-ser do sujeito, mas discorre sobre o próprio ser. Existe
toda uma passagem onde ele trata da questão do ser, convocando Descartes para pensar
as relações entre ser e pensamento (LACAN, J. 1957/1966, p. 517)19.
A passagem mencionada começa com a proposição de que os conteúdos do
inconsciente não nos liberam nenhum tipo de realidade, mas extraem sua virtude da
dimensão da verdade e do ser (LACAN, J. 1957/1966, p. 518). Aparentemente, o ser é

19
Sabemos que embora Lacan separe seu sujeito de toda acepção filosófica anterior, ele o faz a partir do
cogito cartesiano, momento histórico que inaugura o sujeito da ciência moderna pela Verwerfung, rejeição,
da dimensão do ser.

57
convocado como um termo que se opõe à realidade, o que nos permite perguntar: a
oposição teria sido proposta em razão do real implicado na experiência analítica?
Lacan, nesse momento, ainda não estabeleceu o estatuto do real em seu ensino,
como fará alguns anos mais tarde. Mas não nos passa despercebido o fato de que suas
construções posteriores acerca da fantasia e, mais radicalmente, acerca do objeto pequeno
a, serão também explicitadas nos termos do ser. Esse fato levará Lacan a repetir em mais
de uma ocasião que o objeto a é o Dasein da psicanálise (LACAN, J. 1967/2001, p. 358).
É importante esclarecer que não defendemos, aqui, a idéia de que Lacan, por falar
recorrentemente sobre o ser, tenha estabelecido algum tipo de ontologia. Não há
20
ontologia em Lacan , embora ele articule positivamente uma linguagem do ser.
Tampouco pretendemos aprofundar qualquer tipo de análise acerca da questão do ser em
seu pensamento, tarefa que exigiria uma competência filosófica da qual não poderemos
dar provas. Ao chamarmos a atenção para os desenvolvimentos de Lacan sobre o ser em
“A instância da letra ou a razão depois de Freud”, o que nos interessa é indicar dois
pontos importantes para nossa investigação.
O primeiro deles é que, se o estruturalismo contrapõe-se a toda sorte de ontologia,
a introdução do discurso sobre o ser, num texto eminentemente estruturalista, parece
contrariar toda tentativa de se constituir um sistema no qual a estrutura seria a palavra
mestre. Enquanto, de um lado, Lacan enfatiza a determinação estrita do sujeito e do
sentido, pelo significante, de outro, ele associa as formações do inconsciente ao registro
da verdade e do ser, termos que não se explicam pelo formalismo matemático da
lingüística estrutural. A coexistência do determinado e do indeterminado, que, no
“Seminário sobre ‘A carta roubada’”, localizamos na idéia de que é o acaso que gera a
sobre-determinação, com seu caráter necessário, reaparece em “A instância da letra ou a
razão depois de Freud” na conjunção de dois termos antagônicos: estrutura de linguagem
e ser. Isso nos ensina que devemos evitar toda leitura estritamente estruturalista e
determinista da teoria da interpretação em Lacan.

20
Lacan o diz textualmente no Seminário XX, Mais ainda, quando comenta o livro O título da letra, análise
do texto “A instância da letra ou a razão depois de Freud”, elaborada por J-L. Nancy e Lacoue-Labarthe. O
paradoxal é que Lacan, no próprio Seminário XX, no momento mesmo em que proclama não ter nenhuma
ontologia, introduz o termo parlêtre (falasser), que substitui, a partir de então, o termo sujeito reunindo
numa amálgama a estrutura de linguagem, designada pela palavra “fala”, e o gozo, indicado pela palavra
“ser”.

58
O segundo ponto, importante para a pesquisa, diz respeito aos desenvolvimentos
posteriores que Lacan fez em seu ensino acerca das relações entre ser e pensamento,
partindo do cogito cartesiano. As formulações lacanianas, que visam às relações entre ser
e pensamento, interessam-nos particularmente, porque serão retomadas no cerne da
discussão sobre o ato analítico. Como assinalamos acima, o ser foi, em mais de uma
ocasião, associado por Lacan ao objeto pequeno a, inclusive no texto “Da psicanálise em
suas relações com a realidade”, de 1967, contemporâneo ao Seminário O ato analítico.
Isso esclarece porque, no contexto da discussão sobre o ato analítico, Lacan se interessa
pela articulação entre ser e pensamento. Naquele momento, ele tenta formalizar um tipo
de intervenção do analista – o ato – que aponta para o objeto e não para o sentido. Com
isso, pretende dar os fundamentos do ato do analista, o qual, estruturando-se no âmbito
do pensamento – no âmbito da linguagem – atinge o ser. O Seminário O Ato analítico,
como veremos, apresenta-se como um esforço de Lacan para articular, na experiência da
psicanálise, os dois registros (o do pensamento/linguagem e o do ser/objeto). Esse esforço
representa uma tentativa de fazer com que tais elementos sejam tratados, não como
antinômicos, mas como participantes de um mesmo movimento que caminha na direção
da resolução do tratamento analítico. O que faz com que Lacan, no Seminário XV, os
relacione num grafo que ilustra a estrutura do ato analítico.
21
Assim, o ser, articulado por Lacan à hiância introduzida no campo simbólico
pelo conceito de castração, aparece ao lado de sua argumentação estruturalista sobre a lei
do significante. Lei que ele fundamenta com a regra da segregação urinária e com a
diferença entre os sexos.
O significante, considerando-se o exemplo das crianças que diferenciam o
banheiro masculino do feminino, no trem, nada mais é do que a diferença de lugares e a
possibilidade de localização. O significante divide os lugares, instituindo-os. Os
significantes homem/dama não se inscrevem pela referência direta ao significado e sim
pela diferença. Daí o exemplo trazido por Lacan do míope que, incapaz de decifrar
qualquer significação a partir do que está escrito sobre as portas de cada um dos

21
A palavra usada por Lacan é béance e se refere a béant, que significa aquilo que possui uma grande
abertura. Optamos por traduzir o termo para o português por hiância, que se refere à palavra hiante e
significa aquilo que apresenta uma grande fenda ou abertura.

59
banheiros, se orienta simplesmente pela diferença entre os significantes (LACAN, J.
1947/1966, p. 500).
O importante para nossa argumentação é o fato de que o conjunto Homem/Dama
não é regido pelo significado, mas pela diferença que articula a lei do significante. Cada
inscrição requer a exclusão da outra. A cada vez que é feita a escolha por um dos
banheiros, é a escolha pelo sexo oposto que se impõe, o que Lacan reporta imediatamente
à castração, relacionada ao vazio de significante que se opõe à presença do significante
do falo 22. É pela lei da diferença que se pode chegar a qualquer tipo de significado, o que
requer um espaçamento entre os significantes para que a estrutura se constitua. O
espaçamento é o buraco na estrutura, por meio do qual a lei do significante se afirma e
suporta todo o peso do funcionamento da estrutura, já que o efeito de significação não
precisa passar pelo significado, pois depende exclusivamente dos significantes e dos
buracos que aparecem entre eles, garantindo a diferenciação.
O comentário que tecemos aqui articulando o ser, a castração, a hiância e os
buracos na estrutura, têm por objetivo demonstrar que o texto “A instância da letra ou a
razão depois de Freud”, escrito, como já assinalamos, no ápice da influência estruturalista
sobre o pensamento de Lacan, e antes de seu gesto de descompletar a estrutura de
23
linguagem , introduziu elementos que se contrapõem à idéia de uma estrutura total,
associando-a à hiância, ao ser, e aos espaços vazios, os quais indicam a existência de uma
dimensão irredutível à significação. É desnecessário dizer que todo o desenvolvimento
posterior do ensino de Lacan se deu no sentido de radicalizar os efeitos do ser e da
hiância na experiência analítica, o que o conduzirá a repensar o ato do analista.

5- A interpretação inspirada pelo estruturalismo e seu correlato: o efeito-sujeito.

22
Ou se quisermos ser freudianos, relacionada à presença/ausência do pênis.
23
Gesto que podemos reconhecer em sua decisão de barrar o Grande Outro em “A subversão do sujeito” e
na introdução de das Ding, pedaço de real, no seio da estrutura significante, no Seminário VII.

60
Depois de percorridos os textos lacanianos dos anos 50, é possível dizer que não
encontramos, nesse período, somente uma teoria da interpretação. Deparamo-nos, ao
contrário, com várias concepções do que vem a ser o ato de interpretar em análise. São
concepções que se sobrepõem, reforçam-se, confundem-se, separam-se ou se contradizem
ao longo das formulações lacanianas.
Vimos que Lacan, inicialmente, situa o sentido como causa para, em seguida, por
meio da abordagem estruturalista, ligar a noção de causalidade ao determinismo
significante. A diferença de Lacan em relação a Freud revela-se no fato de Freud não ter
associado a causa ao sentido, nem à representação, e, sim, à pulsão. Constatamos também
que, em “Formulações sobre a causalidade psíquica” e em “Função e campo da fala e da
linguagem”, a perspectiva da interpretação implicou certa margem de liberdade para o
sujeito, que podia decidir sobre o sentido a ser conferido a seus significantes, enquanto,
nas teorias da interpretação apresentadas no “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e em
“A instância da letra ou a razão depois de Freud”, a margem de liberdade torna-se menos
evidente, na medida em que, ali, o sujeito e o sentido são definidos como efeitos do
significante.
A interpretação, nesses textos, encontra-se referida à noção de um pensamento
definido pelo arranjo dos elementos que o compõem, numa lógica que escapa à
consciência e que opera à revelia do sujeito. O ato do analista aplica-se ao inconsciente
estruturado como sistema organizado de letras e, embora a estrutura lacaniana, nesse
momento, se diferencie do sistema dos estruturalistas por incluir o sujeito e por
comportar uma hiância, ela é uma estrutura que não está associada claramente ao objeto.
Isso significa que o objeto ainda não foi articulado de modo explícito às teorias do
significante e do desejo, embora encontremos vários indícios de que este caminho já está
esboçado nas primeiras elaborações lacanianas.
O que orienta, de forma mais contundente, as teorias da interpretação, tanto em
“O Seminário sobre ‘A carta roubada’” quanto em “A Instância da letra ou a razão depois
de Freud”, é a perspectiva do determinismo do sujeito e do sentido, que tem como causa
o significante. Nos textos citados, desfaz-se o laço entre o sentido e a liberdade,
encontrado em “Formulações sobre a causalidade psíquica” e em “Função e campo da
fala e da linguagem”. O Outro é quem dá o sentido e é preponderante na experiência, o

61
sujeito nos é apresentado mais como efeito do que como aquele que toma posição em
relação ao que diz, o que leva Miller a afirmar que, nesse contexto, a interpretação
analítica funda-se na rejeição, para fora do campo da estrutura, do assentimento do
sujeito. (MILLER, J-A. Cause et consentement, Léçon du 18 Novembre, 1987).
Quando Lacan faz coincidir, em “A Instância da letra ou a razão depois de Freud”,
o lugar do significado e do sujeito, de acordo com Miller, ele o faz eliminando a noção de
implicação subjetiva que coloca em jogo a relação do sujeito com seu próprio dito.
Pensar a implicação subjetiva requer a consideração de que a posição do sujeito não é a
mesma do significante e do significado, e exige que tomemos, como pressuposto, a
existência de certa distância entre o sujeito e os termos mencionados, o que confere
liberdade ao sujeito para dar assentimento a seu dito ou para desacreditá-lo. A perspectiva
da interpretação, não apenas em “A instância da letra”, mas também em “O Seminário
sobre ‘A carta roubada’”, parece ser, no entanto, a de apontar, para o analisante, que é
dessa forma que os elementos significantes que ele produziu combinam entre si, quer ele
consinta ou não. E, aí, torna-se menos visível o sujeito capaz de se responsabilizar pela
causa de seu desejo (MILLER, J-A. Cause et consentement, Léçon du 18 Novembre,
1987).
Na opinião de Miller, não é possível compatibilizar a perspectiva do determinismo
do sujeito com o apelo à exigência de decisão, veiculada pelo imperativo freudiano Wo
wes war soll ich werden, “Ali onde isso era, aí, como sujeito, devo advir”. A escolha de
Freud pelo termo “dever”, nessa frase, indica um apelo por decisão e responsabilidade, o
qual se reproduz ao longo de toda a análise, a cada vez que a interpretação, pronunciada
pelo analista, provoca a mutação subjetiva. Tal apelo refere-se ao ponto de vista ético que
é convocado por Freud quando o analista pede ao analisante que responda a esse
mandato, colocando em questão a responsabilização do sujeito por seu gozo (MILLER, J-
A. Cause et consentement, Léçon du 4 Novembre, 1987).
Ainda segundo Miller, o ponto de vista estruturalista sustenta que o sujeito é
efeito do significante e deixa de lado a questão da liberdade e da responsabilidade. No
contexto da interpretação, tal qual ela foi descrita acima, o sujeito-efeito não é
pressionado a assumir sua própria causalidade e não se compatibiliza com o sujeito

62
responsável da ética (MILLER, J-A. Cause et consentement, Léçon du 18 novembre,
1987).
É preciso esclarecer que a opinião de Miller não é a de que o pensamento de
Lacan exclua a dimensão ética relativa à responsabilidade e à escolha do sujeito. Ele
conhece muito bem Lacan para saber que não é disso que se trata. O que o autor faz, em
seu Seminário Causa e consentimento, é problematizar os elementos que se apresentam
como antagônicos na teoria lacaniana. Ele lança a pergunta:

O que quer dizer a decisão do desejo de que nos fala Lacan? Como
é que essa decisão pode ser uma iniciativa, quando o desejo foi formulado
por Lacan como um efeito que depende de uma causa? Dito de outro
modo: como compatibilizar, na prática analítica, a noção de um
determinismo do sujeito – noção acentuada por Lacan quando ele formula
que o sujeito é o efeito do significante – com a exigência de decisão que se
faz ao sujeito em análise? (MILLER, J. Cause et consentement, Léçon du
4 Novembre, 1987).

Como é possível perceber trata-se de um questionamento, da explicitação de certa


tensão entre diferentes formulações de Lacan. Trata-se do que o próprio Miller formulou
como colocar “Lacan contra Lacan”. E a resposta elaborada por ele, ao longo do
seminário, é que a causa será o médium, nessa contradição, promovendo uma saída para
esse impasse.
As afirmações de Miller radicalizam um ponto de vista que, em nossa opinião,
deve ser moderado. Na discussão realizada acerca da interpretação, demonstramos que,
ao lado da matematização do inconsciente, que permite um tipo de cálculo no qual o
sentido e o sujeito aparecem como efeitos, Lacan introduziu a dimensão da contingência,
da hiância e do ser. Elementos que fazem contraponto em relação à perspectiva do sujeito
e do sentido inteiramente determinados.
Por outro lado, não devemos nos esquecer de que, tanto o Seminário III, As
psicoses, quanto o Seminário IV, As formações do inconsciente, trazem algo a respeito do
assentimento subjetivo, no seio das teorias sobre o Édipo e o Nome do pai. Nas

63
mencionadas teorias, o sujeito consente ou não com a castração, diz sim ou não ao Nome
do pai, e o resultado da escolha será a perversão, a neurose ou a psicose. Além do mais, é
evidente que a experiência da psicanálise não poderia jamais se realizar sem a dimensão
do assentimento subjetivo, condição de toda e qualquer mudança de posição do sujeito.
Pode-se compreender, no entanto, o ponto de vista de Miller, na medida em que
reconhecemos que, nas produções lacanianas dos anos cinqüenta, a matematização do
inconsciente, inspirada nas contribuições da cibernética e do estruturalismo, trazem, para
o primeiro plano o aspecto necessário da sobre-determinação.
O empenho de Lacan, naquela época, para a formalização do inconsciente, insere-
se num movimento de reação contra os descaminhos que, em sua opinião, a psicanálise
pós-freudiana estava tomando. Lacan quis estabelecer uma concepção de inconsciente
diferente daquela que compreende este como zona de sombra interiorizada e abissal,
opondo-se, ao mesmo tempo, à psicologização da prática da psicanálise.
Afinado a essa tendência, ele criou a versão do sujeito do inconsciente
assemelhado ao sujeito da ciência, que é definido por J-C. Milner como um “correlato
sem qualidades suposto a um pensamento sem qualidades” (MILNER, J-C. 1995, p. 40).
O inconsciente, como todos sabem, implica justamente na existência de pensamento e de
sujeito desvinculados da consciência e de quaisquer propriedades qualitativas. A grande
novidade introduzida por Freud foi a de indicar que a consciência e a qualidade não são
condições necessárias ao pensamento
Preocupado em promover a concepção do inconsciente como maquinaria
simbólica, que funciona obedecendo a uma sintaxe e sem demandar nada ao sujeito,
Lacan enfatizou a articulação lógica dos elementos mínimos que compõem o
inconsciente. O que torna compreensível a afirmação de Miller segundo a qual, nesse
modelo, fica mais difícil perceber a dimensão da liberdade, da responsabilidade e da
implicação subjetiva, necessárias para se pensar a ética na psicanálise.

5- Algumas críticas endereçadas às primeiras teorias lacanianas.

As observações feitas às teorias sistematizadas, nos anos cinqüenta, não partiram


apenas de Miller, mas também de outros estudiosos de Lacan. Tomando como referência

64
essa fase de seu ensino, alguns chegaram a ressaltar que a ênfase dada ao caráter a
priorístico e lógico da estrutura de linguagem, fundadora do inconsciente, aparentava as
teorias do significante e do desejo ao método transcendental. Podemos citar como
exemplo Bernard Bass e J-C. Milner, que as compararam à estratégia kantiana, que
consiste em despojar o elemento estudado de suas propriedades contingentes e
transitórias, típicas do mundo sensível, para encontrar suas condições de possibilidade a
priori.
Segundo J-C. Milner, na estratégia transcendental, no processo de desnudamento,
um pouco antes de o objeto analisado deixar de ser pensável, ele (o objeto) se revela
como não sendo totalmente vazio, nem totalmente sem estrutura. As propriedades que
permanecem, chamadas residuais, não podem ser outras. Se pudessem ser diferentes, o
objeto deixaria de ser pensável. Elas são resultado da eliminação do contingente. Para J-
C. Milner, se o método transcendental caracteriza-se pelo despojamento do objeto de suas
propriedades empíricas e contingentes, constatando-se que, no final do processo, ainda
existem propriedades, então, devemos reconhecer o parentesco evidente da teoria do
significante com tal método. Sob esse ponto de vista, a teoria do significante seria uma
lógica transcendental ou aquilo que a substitui (MILNER, J-C. 1991, p. 344, 345, 348). A
24
perspectiva do autor é a de que a teoria do significante localiza as condições de
possibilidade a priori do inconsciente, que antecedem a experiência que o analisante e
analista fazem dele (o inconsciente), durante o processo de análise. Essa teoria despoja o
inconsciente de suas características contingentes e transitórias, para encontrar sua
estrutura fundamental de linguagem.
25
Essas leituras, em nossa opinião, devem ser fortemente relativizadas . Em
primeiro lugar, já demonstramos, anteriormente, que embora a linguagem seja um a
priori para Lacan, a lei do desejo não o é. Na análise que fizemos do modelo de sintaxe
apresentado, no “Seminário sobre ‘A carta roubada’”, ficou evidente que o a priori, ali,
era a diferença entre os termos da cadeia (+) e (-) e o acaso dos resultados dos lances de

24
E o que vale para a teoria do significante vale também para a teoria do sujeito e do desejo, que estão
incluídos na definição do significante.
25
Na realidade, o próprio Milner as coloca em questão, quando ressalta que a letra, no inconsciente
lacaniano, apreendida em seu funcionamento universal e necessário, “literaliza” o sexual contingente. E
isso contraria toda e qualquer pretensão de caracterizar a teoria lacaniana do significante como
transcendental.

65
moeda. O que constatamos foi que o Outro de cada sujeito constitui-se em função do
modo como os elementos simbólicos se encadeiam, e isso não está dado de antemão.
Em segundo lugar, localizamos e enfatizamos a existência de elementos, no
pensamento de Lacan - a contingência, a hiância, o ser - que resistem a toda pretensão de
classificá-lo estritamente como estruturalista e mesmo como uma lógica transcendental.
Ora, se o objeto e a libido não foram mencionados de maneira explícita nas teorias
lacanianas que analisamos nesse capítulo, é porque são justamente os aspectos
contingenciais do inconsciente, os quais não se deixam traduzir no determinismo
significante. Nas teorias lacanianas da interpretação, inspiradas no estruturalismo, esses
elementos contingentes e singulares encontram-se realmente à margem, o que não
significa que estejam ausentes. Esses elementos estão em segundo plano, porque não se
afinam com os aspectos da lógica significante ressaltados nesse período: o universal e o
necessário (características da sobre-determinação que o sujeito sofre da estrutura da
linguagem).
Veremos, no entanto, que Lacan, depois de ter destacado a estrutura da
linguagem, como elemento a priorístico e universal que condiciona o inconsciente,
enfatizará outro fator condicionante que já não tem a ver com o universal: o modo como
cada sujeito se satisfaz com seu inconsciente. Todo o esforço ulterior de Lacan será o de
trazer para o centro o que até então estivera à margem, realçando que a estrutura de
linguagem abriga um núcleo de real. O movimento de Lacan será o de incluir o gozo do
corpo nas teorias do significante e do desejo, ao referir as leis necessárias do
“inconsciente estruturado como uma linguagem” à contingência corporal.
Acreditamos que essa seja a razão do diálogo estabelecido com Kant no
Seminário VII, A ética da psicanálise, no qual Lacan distingue seu programa da
metafísica kantiana.

5.1- A réplica de Lacan.

No Seminário A ética da psicanálise, Lacan utilizou a estratégia de conjugar


“Kant com Sade”, porque acreditou que um autor e sua obra podiam servir como
instrumento para revelar a verdade de outro autor. Ele se serviu de Sade para revelar algo

66
no pensamento kantiano. Advertidos por esse gesto, entendemos que a crítica que Lacan
tece a Kant, no mesmo seminário, encobre uma reavaliação que ele faz de sua própria
teoria, que como vimos, foi entendida por alguns como uma lógica transcendental.
Todos sabem que o interesse de Lacan é o de fazer notar a existência de algo que
se furta incessantemente no texto de Kant, o que lhe confere certo erotismo (LACAN, J.
1963/1966, p. 766). Durante toda a segunda crítica, Kant rejeita firmemente todo
patológico e toda matéria. Lacan, então, torna visível, com sua argumentação, que o
objeto está presente na filosofia prática kantiana, ainda que dissimulado, e que, embora
Kant tenha trabalhado para eliminar o objeto de sua concepção ética, o objeto continua lá.
Ora, o que demonstramos com a análise que efetuamos até este ponto da
investigação é que o objeto pensado por Freud nos, “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade”, também esteve dissimulado nas teorias lacanianas da interpretação, nos
anos 50. Quando dizemos que esteve dissimulado queremos dizer que esteve em segundo
plano.
Sendo assim, ao que parece, a crítica endereçada a Kant, no Seminário VII,
constitui-se como um ponto de virada, a partir do qual Lacan transforma suas próprias
elaborações ao referir o desejo e a cadeia significante à Coisa.
O que aparece como paradoxal, no Seminário A ética da psicanálise, é o fato de
que, enquanto toda uma vertente do seminário parece apoiar a teoria do desejo, na
concepção da lei moral 26, a outra vertente subverte o pensamento de Kant, ao introduzir
elementos que não estavam lá: o objeto e o gozo.
Sabemos que com A crítica da razão prática, Kant almeja reconciliar a razão com
sua dimensão prática, através da fundação de uma lei moral incondicional de aspiração
universal e da fundação de uma liberdade transcendental. A lei deve ser válida para todos
os casos e para todos os seres. Se a razão se mostrasse incapaz de postular uma lei de
validade universal para orientar as ações humanas, isso seria o mesmo que admitir que o
agir do homem é determinado pela contingência da causalidade natural ou histórica. E o
homem, nesse caso, não seria mais do que o resultado do acaso das circunstâncias, o que

26
Freud já havia recorrido ao conceitualismo kantiano para caracterizar a consciência moral articulada ao
complexo de Édipo e ao supereu. Encontramos essas referências pelo menos em dois textos: “O problema
econômico do masoquismo” e “O eu e o isso”.

67
27
Kant recusa com veemência (KANT, I. 1788/1985, p. 20, 21, 33, 34, 37, 39, 41, 45,
46).
Para Kant, não há gênese da lei moral 28, já que sua realidade é resultado de uma
dedução transcendental. O que significa que a moral kantiana está referida a condições a
priori da razão, que antecedem todo agir no mundo (KANT, I. 1788/1985, p. 54).
Lacan, por sua vez, vai defender igualmente uma lei de aspiração universal: a lei
da linguagem, que determina que o desejo do sujeito passa pela função da castração. A lei
do desejo, instaurada pela perda fundamental de das Ding, é a única coisa que vale todo o
tempo e em todo lugar para o sujeito falante.
Assim, o incondicionado e o universal em Lacan é a estrutura de linguagem que
produz das Ding, como resultado de sua incidência sobre o ser falante. E ainda que
Lacan, no Seminário VII, afirme que o Wunsch, o desejo, não tem o caráter de uma lei
universal, e sim, de uma lei particular, ele acrescenta, em seguida, que o que podemos
tomar por universal é a presença dessa lei em todos os seres humanos (LACAN, J. 1959-
60/1986, p. 31).
Portanto, aparentemente (foi assim que alguns o interpretaram), ao tornar a
constituição do desejo dependente da instauração da lei fálica paterna, Lacan abre uma
perspectiva universalista e necessária para o complexo de Édipo, instituindo um campo
transcendental através da identificação do desejo à lei simbólica. O universal para Lacan
estando referido à lei da linguagem.
Com este movimento, Lacan subtraiu a função paterna e a castração das
idiossincrasias do romance familiar, nas quais Freud havia se inspirado, para pensá-las
em referência à estrutura de linguagem comum a todas as culturas e todos os sistemas de
parentesco e válida para a constituição de todo e qualquer sujeito. E é por essa razão que
podemos dizer que o Nome-do-pai e o falo são, para Lacan, elementos universais de
regulação do gozo em todos os sujeitos neuróticos. Assim como a ausência da
significação fálica e a função paterna são universais no campo das psicoses.

27
Isso é inadmissível para Kant, e a fim de exorcizar o determinismo natural na dimensão prática, ele
precisou defender o ponto de vista segundo o qual todos os homens dotados de razão, inclusive os
perversos, possuem originalmente a consciência e podem, portanto, escutar a voz interior da lei moral
(KANT, I. 1788/1985, p. 55).
28
Posição diferente da de Freud que associou a constituição da lei moral à dissolução do complexo de
Édipo.

68
Eis, então, algumas noções que tornam compreensível a aproximação feita por
alguns leitores dos projetos de Lacan e de Kant. Ambos abrem uma perspectiva
universalista para a lei, através da fundação de um campo a priori que antecede a
experiência.
Além do mais, na ética de Kant – que pretende circunscrever o elemento
transcendental e universalizante que condiciona o agir humano – encontramos a
existência de uma vontade livre, despojada de toda propriedade contingente,
incondicionada do ponto de vista empírico 29. Ou seja, para obter, no registro da ação, um
princípio universal racional, Kant esvazia tal registro de todo e qualquer objeto.
O reconhecimento da vontade livre indica que o homem não orienta a totalidade
de suas ações pelo cálculo do prazer, da satisfação própria e do bem estar. Segundo Kant,
nenhum objeto empírico permite a formulação de uma lei universal válida para todos e
30
em todos os casos. Só existe liberdade quando o sujeito dá um objeto de forma
autônoma à vontade, se apoiando na razão contra as tendências patológicas do desejo. A
liberdade consistindo, justamente, na conformação da vontade à universalidade da razão
31
(KANT, I. 1788/1985, p. 51).
Vemos assim, que o ato ético kantiano, orientado pela vontade livre, é aquele
exercido em plena conformidade com a lei. Ato que não é causado pelos fenômenos
empíricos em suas relações recíprocas (KANT, I. 1788/1985, p. 51), mas pela legislação
categórica, incondicional e universal. De onde apreendemos que, se existe causa para a
vontade livre que realiza o ato moral kantiano, essa causa é a própria lei.
A causa da vontade livre, em Kant, se confunde com a própria lei moral e esse foi
outro aspecto que determinou a leitura da teoria lacaniana do significante como uma
lógica transcendental. No caso de Lacan, tanto no “Seminário sobre ‘A carta roubada’”

29
A vontade em Kant faz abstração de todo objeto até o ponto onde esse não exerce mais a mínima
influência sobre ela. Trata-se de vontade pura, independente das condições empíricas, determinada
exclusivamente pela lei (KANT, I. 1788/1985, p. 54).
30
Não existe universal no interior do campo dos objetos de desejo, pois aí, cada um segue seu próprio
sentimento de bem estar. Nesse nível, o homem não se distingue do animal e não podemos falar de
liberdade. Só existindo liberdade onde o sujeito pode dar um objeto de forma autônoma à vontade.
31
Segundo Alquié, no que se refere à noção de liberdade, existe um hiato entre os Fundamentos para uma
metafísica dos costumes e a Crítica da Razão Prática, de um lado, e o Exame crítico da analítica, de outro.
Enquanto, nos primeiros textos, a vontade livre se confunde com a vontade razoável, no Exame, a noção de
liberdade se divide. Depois de ter aparecido como liberdade que se confunde com a lei, revela-se como
liberdade que o homem tem de escolher contra a lei (ALQUIÉ, F. 1985, p. 10, 11). Sendo assim,
ressaltamos que nossa análise privilegia a noção de liberdade tal como ela foi formulada na Crítica.

69
quanto no texto “A instância da letra ou a razão depois de Freud”, a causa do desejo se
confundiu com a lei do significante.
Além do mais, Kant distingue das Gute, ligado à determinação a priori do Bem e
das Wohl, ligado ao empírico, ao prazer e ao bem estar do sujeito. O único objeto próprio
à vontade livre é das Gute, objeto supra-sensível, desprovido de toda qualidade
fenomenal 32. A vontade que quer das Gute é vontade que quer apenas uma forma de agir
e não um objeto empírico privilegiado. Para Kant, se um princípio universal da conduta é
pensável, esse não deve se conformar à matéria, mas apenas à forma. A própria forma já
é o objeto para a vontade livre (KANT, I. 1788/1985, p. 48), o que leva Lacan a afirmar
que “a forma dessa lei é sua única substância” (LACAN, J. 1963/1966, p. 770).
Lacan se aproximou da perspectiva kantiana quando sustentou a impossibilidade
de se determinar um objeto adequado ao gozo e à lei. E é sob esse ponto de vista que
podemos compreender sua afirmação segundo a qual “a lei moral não é outra coisa senão
o desejo em estado puro” (LACAN, J. 1963-64/1973).
Lacan quer distinguir, no desejo, o objeto de desejo e a faculdade de desejar. A
faculdade de desejar, instaurada pelo corte que incide sobre o sujeito em função de sua
entrada no universo da linguagem, existe a priori. Quanto ao desejo, ele será ocasionado
pelo objeto encontrado na experiência, mas não será, contudo, causado por ele.
Safatle sugere que a estratégia de Lacan é a de aproximar os conceitos de vontade
livre e de desejo puro. Os dois dispositivos indicando uma inadequação fundamental
entre desejo/vontade do sujeito e a satisfação prometida pelos objetos empíricos.
Enquanto Kant critica o desejo aprisionado no patológico, nas cadeias do egoísmo e no
amor por si mesmo, Lacan critica a alienação do desejo na lógica narcísica do imaginário
33
. Nos dois casos, o sujeito só é reconhecido enquanto tal a partir do momento em que
assume sua identificação com a lei que é pura forma vazia, desprovida de conteúdo
positivo. No caso de Kant, a identificação se dá com a lei moral, enquanto para Lacan a
identificação ocorre com a lei fálica/paterna (SAFATLE, V. 2002, p. 87).

32
Das Gute é o Bem situado além do sentimento utilitário do prazer e que dá uma determinação a priori à
vontade. É o princípio regulador de todo ato moral e de toda conduta racional.
33
É o que foi possível constatar nas teorias da interpretação que examinamos até aqui, nas quais Lacan
enfatiza a necessidade de se apagar, na análise, a dimensão imaginária para fazer surgir o desejo, definido
fundamentalmente como desejo que aponta para o vazio.

70
Lacan demonstra, com Kant, que a estrutura que comanda a articulação lógica do
desejo procede de uma instância que não faz parte da experiência. É ao que visa sua
argumentação em torno de das Ding.
Segundo Lacan, Kant entreviu a função de das Ding, o elemento original em
relação ao qual se organiza a subjetividade. O bem que orienta as ações éticas do homem
e que Kant chamou de das Gute, para Lacan, é o equivalente de das Ding. Ambos
concebidos como trama significante pura, como máxima universal, como a coisa mais
despojada de toda e qualquer qualidade (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 68).
A Coisa perdida, na perspectiva lacaniana, não deve ser identificada a nenhuma
espécie de objeto empírico com o qual o sujeito tenha feito uma experiência de
satisfação. A Coisa é tomada como a resultante lógica da operação de linguagem, que
sofre o sujeito, determinando para este uma perda fundamental. É assim, pois, que
devemos compreender a afirmação de Lacan citada acima segundo a qual, tanto das Ding
quanto das Gute, se reduzem à trama significante pura.
Enquanto das Gute é o elemento que orienta a lei moral kantiana, servindo de
referência para avaliarmos o que seria uma ação ética, das Ding é o elemento que orienta
a lei do desejo. Constitui-se como o pivô inicial, lógico e cronológico da organização
psíquica, em torno do qual giram as representações inconscientes (LACAN, J. 1959-
60/1986, p. 70).
Assim, chegamos ao final do inventário dos aspectos que propiciaram a leitura da
teoria lacaniana como uma teoria transcendental do desejo. A discussão introduzida, aqui,
não foi feita ao acaso. O que pretendemos apontar especificamente é que o próprio Lacan
parece ter percebido que a maneira como ele apresentou, num primeiro momento, as
teorias do significante e do desejo, permitiu uma leitura filosófica de seu pensamento.
Ora, a psicanálise não é uma filosofia, e sim, uma experiência clínica, Lacan o
sabia perfeitamente. E toda a elaboração teórica sobre o desejo e a interpretação, fundada
na lógica significante, só adquire valor quando referidas a um sujeito que, com seu
sintoma engaja, na análise, sua fantasia e a satisfação pulsional que lhe é relacionada.
Sob nosso ponto de vista, a ênfase dada por Lacan à lógica significante em seu
pensamento terminou por constituir uma dificuldade que teve de ser superada. É por isso
que, se um viés inicial de seu ensino quis demonstrar que a estrutura que organiza a

71
lógica do desejo não deve nada à experiência, o outro viés inaugurado, no Seminário A
ética da psicanálise, modifica o primeiro, ao sustentar que o desejo se funda no corpo.
Se a primeira argumentação de Lacan propiciou a interpretação segundo a qual
sua teoria apoiava-se numa estratégia transcendental, essa impressão não se sustenta
quando examinamos a articulação que Lacan promove entre o funcionamento significante
e o gozo. Esse é o paradoxo do Seminário VII: ao recorrer a Kant para sustentar uma
teoria do incondicionado do desejo, Lacan, através de das Ding, introduz elementos não
articulados pela filosofia kantiana, o objeto e o gozo.
As modificações conceituais apresentadas no Seminário VII interessam-nos
particularmente, porque produziram conseqüências essenciais para a concepção do ato do
analista e de sua ética.
Aqueles que classificaram o pensamento lacaniano como lógica transcendental
não observaram que a lei do desejo em Lacan está fundada na contingência do gozo
corporal e que enquanto o ato ético kantiano é aquele exercido em conformidade com a
lei do desejo, o ato do analista, orientado pela ética da psicanálise supõe a ultrapassagem
da lei da linguagem que determina o sujeito.
Essa diferença situa com muita clareza um aspecto ressaltado por Miller no texto
“O ato entre intenção e conseqüência”. Trata-se da distinção entre a ética das intenções e
a ética das conseqüências. A ética das intenções julga o ato em função de sua harmonia
com os princípios éticos pré-estabelecidos (é o caso da ética kantiana, na qual o ato é dito
moral, quando se conforma à lei moral a priorística e universal). Já a ética das
conseqüências, própria da psicanálise, julga o ato em função daquilo que ele faz advir (é
uma ética que se orienta pela idéia de que todo ato é julgado em função da resposta do
Outro).
Evidentemente, o lugar onde essa perspectiva ética do ato do analista aparece com
maior clareza é no Seminário O ato analítico, de 1967, quando Lacan propõe que o ato se
orienta pelo objeto, outra dimensão da causalidade psíquica situada, por Lacan, a partir
do Seminário VII. A orientação pelo objeto faz com que o ato analítico não seja um ato
inteiramente conformado à lei de linguagem, em jogo no inconsciente. O ato em
psicanálise pode, ao contrário, subverter, em alguma medida, essa lei, a partir das
conseqüências que produz.

72
Acreditamos que essa é a razão que leva Lacan a reportar o Seminário XV, O ato
analítico ao Seminário A Ética da Psicanálise, estabelecendo explicitamente uma relação
entre ambos (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 novembre, 1967). A
retomada do conceito freudiano de das Ding - construído no contexto da primeira
experiência de satisfação – constituiu uma condição fundamental para que Lacan pudesse
formular, em 1967, o conceito de ato analítico, afinado com a ética proposta no
Seminário VII.
O Seminário A ética da psicanálise foi o passo decisivo de Lacan para recuperar a
substância do corpo na teoria da psicanálise, necessária à elaboração do conceito de gozo.
O gozo é propriedade do corpo perturbado pela linguagem. Lacan, ao localizar das Ding
como o elemento em torno do qual gira a cadeia significante e, mais tarde, ao situar o
objeto pequeno a como causa do desejo, traz ao centro de suas elaborações o real, ponto
de visada da lei moral (lei do desejo) (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 92) e, portanto, da
ética própria à psicanálise.
A promoção do objeto e do gozo, como algo que integra e condiciona a estrutura
de linguagem do inconsciente, foi decisiva para a modificação da concepção do ato do
analista. Tal articulação é o que faz visível a perspectiva ética à qual o ato analítico se
filia, pois o ato é justamente a intervenção a partir da qual o sujeito se responsabiliza por
aquilo que o causa, assumindo nova posição em relação a seu regime de gozo.
Podemos então afirmar que o Seminário VII, A ética da psicanálise marca a
decisão firme de Lacan de separar a psicanálise de qualquer pensamento inscrito na
vertente da estratégia transcendental ou fundado na noção de um sujeito que é mero efeito
do significante. As consequências produzidas, a partir daí, sobre a concepção do ato do
analista, demonstram a fidelidade de Lacan à posição assumida. A Coisa, no Seminário
VII, não apenas descompleta a estrutura de linguagem, mas também se articula à
dimensão da causa. Dito seminário supõe, como veremos, um sujeito que é causado não
apenas pelo significante, mas também pelo objeto e que, apesar do determinismo
simbólico, não é absolvido de sua responsabilidade.
O seminário que introduz a Coisa como causa do desejo, e que conjuga Kant com
Sade para demonstrar que o avesso da lei do desejo é o gozo, produz modificações
conceituais fundamentais para se pensar o ato do analista: 1) a dissolução da cisão entre o

73
simbólico e o gozo, o que torna possível a consideração de um tipo de intervenção que,
estruturada simbolicamente, incida sobre o modo de satisfação libidinal do sujeito. 2) o
reconhecimento da existência, no seio da estrutura de linguagem do inconsciente, de um
ponto opaco ao sentido e, portanto, não sensível à interpretação. 3) a introdução da
perspectiva de que a causa do desejo e do sentido não é apenas o significante, mas
também o objeto. Tais aspectos abrem espaço para a dimensão da responsabilidade e da
ética, que permite considerar o ato analítico como aquele que conduz o sujeito a assumir
e a se responsabilizar por aquilo que o causa.
Assim, após ter justificada a importância, para a construção do conceito de ato
analítico, da articulação das teorias do significante e do desejo ao objeto, examinaremos,
no próximo capítulo, as modificações conceituais decorrentes dessa articulação.
Evitaremos uma leitura que priorize apenas os pontos de descontinuidade no
pensamento lacaniano, para demonstrar que a passagem da noção de interpretação à
noção de ato analítico não ocorreu de maneira abrupta, e sim a partir de sucessivas
redefinições da intervenção do analista. Essa é a perspectiva que organiza nossa
investigação e por isso a destacamos, aqui.
Defendemos o ponto de vista de que as redefinições do ato do analista no ensino
de Lacan aproximaram progressivamente a interpretação analítica do ato. Esse
movimento nos surpreendeu ao longo da pesquisa, quando encontramos definições da
interpretação, nas quais já reconhecíamos algumas características do ato analítico, antes
mesmo que ele fosse assim nomeado.
A seguir, recolheremos os elementos que esclarecem a passagem da interpretação
para o ato analítico nos trabalhos que se seguem: “A Direção da cura e os princípios de
seu poder” e o Seminário O desejo e sua interpretação (trabalhos que antecedem a
introdução de das Ding no Seminário A ética da psicanálise), “A subversão do sujeito”
(texto contemporâneo do Seminário VII) e o Seminário Os quatro conceitos fundamentais
da psicanálise (onde Lacan formaliza o conceito de objeto a, necessário à concepção do
ato analítico).
A eleição desses seminários e textos justifica-se pelo fato de que eles participam
da constituição da categoria lacaniana de objeto tal qual ela aparece no Seminário XV, O

74
ato analítico. E nosso objetivo será sempre o de esclarecer as conseqüências dos
deslocamentos conceituais para a perspectiva do ato do analista.

75
Capítulo II
A articulação das teorias do desejo e do significante ao objeto.

O capítulo pretende pontuar os sucessivos deslocamentos efetuados por Lacan


dentro da teoria da interpretação, os quais resultaram de modificações progressivas no
estatuto do objeto, do desejo e de suas relações. Buscaremos evidenciar que o gesto de
situar o fundamento do desejo no corpo, que assume, então, valor de causa, produziu
conseqüências importantes para a concepção lacaniana da intervenção do analista no
tratamento, resultando, ulteriormente, na elaboração da noção de ato analítico.

1- A decifração e o ser não decifrável em “A direção do tratamento e os princípios


de seu poder”.

Nosso interesse pelo texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”


explica-se pelo fato de que, ali, a hiância e a falta-a-ser, introduzidos em “A instância da
letra ou a razão depois de Freud”, são claramente articuladas ao problema da
interpretação.
No segundo segmento do texto, Lacan pretende definir o lugar da interpretação na
experiência analítica, que, em sua opinião, não estava bem situado na literatura. As
primeiras indicações não apresentam grande novidade em relação ao que vimos no
capítulo anterior. Lacan diz que nenhum índice é suficiente para indicar onde age a
interpretação se não apreendermos o conceito da subordinação do sujeito ao significante,
bem como os modos do efeito do significante no advento do significado (LACAN, J.
1958/1966, p. 593, 594). Ou seja, tudo o que ele já havia explorado amplamente em “A
instância da letra ou a razão depois de Freud”.
A definição de interpretação, proposta por Lacan nessa parte do texto, é a que se
segue. “A interpretação, por decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve
introduzir, na sincronia dos significantes que aí se compõem, algo que, de repente, torne a
tradução possível” (LACAN, J. 1958/1966, p. 594). Nesse momento, a interpretação
ainda é algo equivalente à decifração, que abre à possibilidade de se traduzir o que está
em jogo na diacronia da cadeia significante do inconsciente.

76
Essa definição da interpretação é ilustrada pela análise que Lacan faz, em seguida,
da intervenção no caso do Homem dos Ratos, na qual Freud aponta ao paciente a
oposição que o pai fazia à sua satisfação sexual. Essa interpretação, que, segundo Lacan,
34
é inexata – por não encontrar apoio na realidade – não deixa, entretanto, de ser
verdadeira. A prova de sua veracidade é o acesso que ela abre ao material que esclarece
que os sintomas do sujeito são decalques criptográficos das situações vivenciadas por seu
pai: a escolha por uma esposa rica em detrimento da mulher amada e pobre, além da
dívida jamais quitada com o colega militar (LACAN, J. 1958/1966, p. 597).
Aqui, Lacan retoma a oposição indicada em “A instância da letra ou a razão
depois de Freud”, que situa a virtude dos conteúdos inconscientes não do lado da
realidade, mas do lado da verdade e do ser. A verdade, em psicanálise, não tem como
referente nenhum objeto da realidade, porque é propriedade do discurso. Para Lacan, a
interpretação de Freud é verdadeira, porque provoca a revelação das linhas de destino do
sujeito em questão (LACAN, J. 1958/1966, p. 597). Gostaríamos apenas de acrescentar -
tomando como referência a definição de interpretação proposta acima - que Freud traz à
luz a relação existente entre as compulsões atuais do Homem dos Ratos e os significantes
fundamentais da história paterna. Ao fazê-lo, ele introduz, na sincronia dos significantes
que organizam os sintomas, elementos inscritos na repetição inconsciente, tornando
possível sua tradução.
A lição de Lacan é a de que a interpretação capaz de produzir efeitos de verdade é
aquela que incide nas cadeias simbólicas, determinantes da posição do sujeito e de seus
sintomas35.
Quando não se constitui dessa forma, pode-se dizer que ocorreu um fracasso da
interpretação, provocando como conseqüência, a emergência da pulsão. Esse é o
pressuposto que fundamenta a crítica de Lacan feita à interpretação de Ernst Kris,

34
Já tivemos a oportunidade de discutir anteriormente a mencionada intervenção, demonstrando que ela se
inscreve no campo da construção e não no da interpretação. Essa é a razão pela qual Lacan a qualifica de
inexata, pois trata-se de uma inferência freudiana para dar conta de algo, que não se sustenta pelos dados da
realidade, mas que toca a verdade do sujeito. Vale lembrar que Lacan extrai a expressão “interpretação
inexata” de um artigo de um pós-freudiano, Edward Glover, intitulado “O efeito terapêutico da
interpretação inexata”. O artigo pode ser encontrado, traduzido para o português, na revista Opção
Lacaniana de número 25 da EBP.
35
Mais tarde, o ponto de incidência da interpretação será o objeto a.

77
dirigida ao famoso “homem dos miolos frescos”. A crítica consiste na demonstração de
que, quando o desejo não é interpretado no registro do simbólico, o que aparece como
resposta é o acting-out do paciente, sob a forma de manifestação da pulsão oral.
Nesse texto, Lacan fala de um paciente que Kris teria recebido de Melitta
Schmideberg, cujo sintoma era certa inibição intelectual. O sujeito apresentava atração
pelas idéias dos outros, acreditando-se um plagiário. Eric Laurent fornece detalhes sobre
o caso e diz que em um determinado momento do tratamento, Kris tira um livro de sua
biblioteca e o exibe como a prova de que ele não havia copiado nada. O paciente
consente (LAURENT, E. 1984, p. 24).
De acordo com Lacan, Kris quer ilustrar, com o caso, sua proposta de
interpretação metódica, que parte da superfície em direção à profundeza. Ele analisa a
defesa antes da pulsão, que aqui se manifesta na atração pelas idéias dos outros; e procura
demonstrar ao paciente que ele busca ser plagiário para se impedir de sê-lo realmente
(LACAN, J. 1958/1966, p. 599). Após algum tempo do silêncio - produzido como
resposta à interpretação do analista - o analisante conta a Kris que, após as sessões, tem
ido aos restaurantes olhar os cardápios, para, depois, em um deles, comer seu prato
preferido: miolos frescos.
Ora, o que, para Kris, é a confirmação de sua interpretação, para Lacan, é um
acting-out, reiterado após cada sessão, a comprovar que a intervenção, ao invés de fazer
emergir a verdade do sintoma, faz irromper a pulsão, numa advertência ao analista de que
ele está equivocado (LACAN, J. 1958/1966, p. 599).
Lacan comenta que o erro de Kris foi o de interpretar no eixo da realidade e do
imaginário. E, poderíamos ainda acrescentar, o erro deve-se ao fato de que, ao invés de
interpretar no eixo da verdade e do ser, Kris apoiou-se na realidade, para colocar em
questão se o paciente roubava ou não as idéias dos outros. Desse modo, o analista entrou
em um debate, previamente fadado ao fracasso, que era o de saber se o sujeito era ou não
plagiário, quando, de acordo com Lacan, o que importava era indicar-lhe o “nada” visado
pelo desejo implicado no sintoma.
É por isso que, no final do texto, Lacan sugere, como emblema da interpretação, o
dedo levantado de São João de Leonardo, apontando para o vazio. A imagem evocada
reitera a perspectiva de que nenhuma interpretação é capaz de dizer algo sobre o desejo,

78
que só pode ser dito nas entrelinhas. Lacan adverte que a virtude da interpretação é a de
ser alusiva (LACAN, J. 1958/1966, p. 641), apontando para o vazio a que se refere o
desejo.
É nesse ponto que Lacan, em nossa opinião, introduz algo importante a respeito
da interpretação. De acordo com seu ponto de vista, o que importa não é que o paciente
de Kris roube idéias, e, sim, o fato de que ele rouba “nada” (LACAN, J. 1958/1966, p.
599, 600). A interpretação que almeja produzir efeitos de verdade deve visar a esse

“nada”, ao invés de apontar para um objeto imaginário. Deve reconhecer que não há
objeto do desejo, posto que a característica essencial do desejo é a de ser desprovido de
qualquer tipo de objetificação. Sob esse ponto de vista, a interpretação verdadeira é
aquela que sustenta que o desejo se funda na falta-a-ser situada no coração da experiência
analítica (LACAN, J. 1958/1966, p. 613) e que não será jamais dissolvida pelo processo
de análise.
Lacan, nesse texto, parece aproximar o vazio relacionado ao desejo (apontado
pelo dedo de São João de Leonardo) ao “nada” em questão no desejo do Homem dos
Miolos Frescos. Ambos são relacionados ao fato de que o desejo funda-se numa perda,
designada, nesse momento datado, como perda de ser. É por isso que Lacan chama o
desejo, e o sujeito que lhe é correlato, de falta-a-ser. Em 1958, o desejo estrutura-se em
torno de um vazio, um “nada”, uma falta, termos que Lacan introduz como
equivalentes36. Mais tarde, no Seminário A ética da psicanálise, ele colocará das Ding
nesse vazio. O vazio e a falta deixarão de ser mera negatividade, em função da
positividade da presença do gozo.
De todo modo, é digno de nota que, no texto “A direção do tratamento e os
princípios de seu poder”, a falta-a-ser seja situada como um limite para a interpretação e
para os poderes da palavra. É verdade que Lacan utiliza o caso de Kris para reforçar, mais
uma vez, a disjunção entre a interpretação, o desejo e a verdade de um lado e a pulsão e o
imaginário de outro. Também é verdade que ele pretende, novamente, demonstrar que a
pulsão e o imaginário são elementos situados fora do campo próprio à interpretação
analítica - velha doutrina veiculada por vários dos textos que analisamos. No entanto, não

36
Pelo menos, ele não faz nenhum esforço para distingui-los.

79
podemos deixar de reconhecer que há algo mais no campo da interpretação, quando
Lacan funda o desejo na falta-a-ser que nenhuma interpretação resolverá no processo da
análise.
Nesse ponto, Lacan é freudiano, já que Freud, em “Análise terminável e
interminável”, situou o complexo de castração como um limite intransponível para a
interpretação do analista. No Seminário O ato analítico, ele permanece freudiano ao
reconhecer que a interpretação é incapaz de resolver a falta-a-ser. O que muda é que, em
1967, ele se pergunta: se a interpretação é incapaz de resolver a falta-a-ser, existe outra
intervenção capaz de fazê-lo? E, nesse contexto, ele formula o conceito de ato analítico
como a solução que permite ao analisante ir além da fronteira da castração colocada pelo
complexo de Édipo; solução que não se encontra no registro dos poderes da palavra -
entendidos como poderes da decifração.
Ir além da castração, no Seminário XV, significa muito exatamente, fazer o sujeito
advir no campo da pulsão. É nesse sentido específico que o ato analítico pretende fazer
com que o analisante vá além da castração
Na verdade, a idéia de que a resolução do tratamento analítico deve encontrar suas
condições na dimensão da pulsão e do ser já é insinuada no próprio texto “A direção do
tratamento”.
O texto recupera a temática do ser, introduzida em “A instância da letra ou a razão
depois de Freud” que, como assinalamos, se contrapõe à noção de estrutura tal qual ela
foi pensada pelos estruturalistas. O ser, correlato da falta-a-ser, apresenta-se como termo
solidário à hiância existente no âmago da estrutura de linguagem do inconsciente.
A temática do ser reaparece em “A direção do tratamento e os princípios de seu
poder”, quando Lacan ressalta que, na análise, o analista, além de pagar com palavras –
com a interpretação – deve pagar também com sua pessoa, que ele empresta para
sustentar a transferência. A psicanálise, prossegue o autor, é um tipo de ação que vai ao
coração do ser – Kern unseres Wesen37.
A análise começa com o artifício do cumprimento da regra fundamental,
produzindo o deslizamento do sujeito na cadeia significante, e termina por atingir o

37
Lacan, aqui, retoma uma expressão freudiana que ele já havia citado em “A instância da letra ou a razão
depois de Freud”.

80
núcleo do ser do analista, que é sua verdade ao final (LACAN, J. 1958/1966, p. 587,
586). Esse é um ponto importante para nossa investigação, pois com a afirmação,
constatamos que Lacan distingue, por um lado, o que é da ordem do significante e da
associação livre e, por outro, o que é do registro do ser do analista. Mas o que seria o ser
do analista? Não sabemos exatamente; mas tomemos outra passagem, no mesmo texto,
com o intuito de iluminar a questão. Nela, Lacan diz que o analista não é senhor da
transferência, não sendo responsável por ela. Freud já havia apontado para o fato de que
esse era um fenômeno espontâneo no paciente. Por isso, Lacan pode dizer que o analista
está alienado na transferência, já que, ali, não se situa como o sujeito puro da teoria dos
jogos. (LACAN, J. 1958/1966, p. 589).
Reconhecemos, nessa proposição, a idéia de que, na análise, existem duas
dimensões. A primeira desenvolve-se em torno do saber encerrado pelo sintoma, que
pode ser decifrado, em função do modo como os significantes se combinam na estrutura
de linguagem do inconsciente. Essa é a dimensão da interpretação e do sujeito acessível à
lógica da teoria dos jogos. A segunda é a dimensão do analista alienado na transferência,
que, de acordo com Lacan, não tem relação com a cadeia simbólica, e sim, com o fato de
que esse sustenta, com seu ser, a fantasia do paciente (LACAN, J. 1958/1966, p. 589).
Lacan diz que o analista está alienado na transferência, porque sua posição ali não é uma
posição qualquer, mas determinada pelas relações constituídas pelo sujeito com seus
objetos. Nessa segunda dimensão da análise, a interpretação não opera, já que a fantasia
não pode ser interpretada. Para Freud, a fantasia é construída e, para Lacan, de 1967, ela
deve ser atravessada. São procedimentos distintos da interpretação.
O importante é que, já em 1958, Lacan se dá conta de que numa psicanálise nem
tudo se dá na vertente interpretativa, exatamente como Freud, no caso Dora, reconheceu
que manejar a transferência é uma arte muito mais difícil do que a arte de interpretar.
Essa constatação leva Lacan a estabelecer uma diferença entre a lógica do início da
análise e a lógica do seu final. O início da análise diz respeito à associação livre, ao jogo
significante, à decifração, que possibilita ao analista exercer sua tática38, decidindo

38
Em 1958, Lacan define a direção do tratamento analítico a partir de um vocabulário militar usado pelo
estrategista militar prussiano Clausewitz, que escreveu o tratado Da Guerra. No uso que ele faz dos termos,
Lacan, no entanto, produz uma inversão do sistema clássico. Para Clausewitz, na guerra, encontramos três
níveis de hierarquia de intervenção e cálculo da ação: a política, a estratégia e a tática. A tática é relativa ao

81
quando e como interpretar. Já o final de análise, envolve a estratégia do analista que
concerne à transferência. Em tal estratégia, como já dissemos, o analista é muito menos
livre do que em sua tática, pois, na transferência, sua posição é determinada pela fantasia
do analisante.
Na leitura de Eric Laurent, do texto “A direção do tratamento e os princípios de
seu poder”, o analista, no final de análise, deve desembaraçar-se daquilo que sustentou
durante o tratamento. A saída da análise tem a ver com a liquidação da transferência, ou
seja, com o fato do analista deixar de sustentar a fantasia do paciente (LAURENT, E.
1984, p. 17).
O final de análise compreende a estratégia do analista que deve atingir aquilo que
se encontra além do sentido sexual. Essa é a hipótese que organiza o texto, a saber, a de
que a análise conduz o sujeito ao “coração do ser”39. Leva o sujeito à dissolução da
fantasia, resposta construída pelo sujeito para solucionar sua falta-a-ser, sustentada pelo
analista ao longo do tratamento, mas que deve se dissolver em seu término.
Chamamos atenção para o fato de que é possível antever, nas elaborações do texto
de 1958, a idéia encontrada no Seminário O ato analítico, de 1967, a saber, a de que o
percurso da análise envolve duas dimensões: a da linguagem, designada no grafo, que
fornece a estrutura do ato analítico, como -ϕ e a do ser do analista, designado, no mesmo
grafo, como o objeto a. Outra idéia do Seminário XV antecipada pelo texto de 1958 é que
o final da análise requer a travessia da fantasia e a resolução da transferência. Podemos
antever, igualmente, o lugar de objeto que Lacan confere ao analista, no mesmo
seminário, se fizermos equivaler o objeto a, depurado no final do processo de análise, ao
núcleo do ser do analista ao qual a análise deve conduzir o sujeito.

uso dos soldados no corpo a corpo com o inimigo e deve ser bem calculada. A estratégia além de incluir
informações táticas visa aos objetivos gerais da guerra, fazendo previsões e jogando com algumas
possibilidades. O nível da estratégia é intermediário entre tática e política, e sua ação deve combinar os
interesses de ambos os lados. A política, por sua vez, se sobrepõe à estratégia e à tática. É a política que
decide a guerra, bem como sua oportunidade, sua conveniência, seus objetivos, etc. Há portanto, no nível
da política, uma liberdade de escolha muito maior do que no nível da estratégia e da tática. Em “A direção
do tratamento e os princípios de seu poder” Lacan inverte esse sistema. O analista é menos livre em sua
estratégia (no âmbito da transferência) do que em sua tática (o âmbito da interpretação). Ele é ainda menos
livre em sua política, orientada pela falta-a-ser. Nesse momento, é para a experiência da falta-a-ser que o
analista guia o analisante (MARTINS, C. R. 2008).
39
O que em 1967 será proposto como: a análise leva ao objeto a, causa do desejo do analisante, que se
depura ao longo do processo analítico.

82
Veremos, ao longo dos desenvolvimentos desta tese, que o objeto, que no texto
“A direção do tratamento” fazemos equivaler ao ser, aparecerá de forma cada vez mais
explicita nos trabalhos de Lacan, tornando-se o elemento visado pela intervenção do
analista.

2- A interpretação visa um desejo sem objeto.

Persistindo na investigação acerca das conseqüências, para a intervenção do


analista, da promoção do objeto no pensamento de Lacan, examinaremos a questão tal
qual ela aparece no Seminário VI, O desejo e sua interpretação e no texto “A subversão
do sujeito”.
Os leitores devem se lembrar de que terminamos o capítulo anterior ressaltando a
importância da articulação da teoria do desejo ao objeto para a construção da noção de
ato analítico, e que nos propusemos a examinar os movimentos, no ensino de Lacan, que
avançam nessa direção. Antes de entrar na discussão dos trabalhos mencionados,
faremos, no entanto, uma correção em relação à nossa afirmação de que o Seminário VII
contribuiu de modo fundamental para a concepção do ato do analista, na medida em que
associou o significante e o desejo a das Ding.
É importante dizer que a afirmação mencionada não considera que Lacan tenha,
até então, desconhecido o problema do objeto em psicanálise. Pelo contrário, como se
sabe, o Seminário IV é dedicado à discussão sobre a relação de objeto, noção essencial
para a perspectiva do tratamento analítico na psicanálise dos pós-freudianos. Além disso,
a notação a, mais tarde atribuída ao objeto pequeno a, já havia sido utilizada para
designar, no esquema L, o pequeno outro, em sua relação com a própria imagem ou com
o semelhante, contrapondo-se ao eixo da relação do sujeito com o Grande Outro.
Isso evidencia o parentesco do objeto a com a dimensão imaginária, com a
fantasia, por exemplo, que é uma formação imaginária. A notação a, como todos sabem,
foi utilizada para designar o objeto na fórmula da fantasia S a, inscrita no grafo do
desejo, primeiro no Seminário VI e, mais tarde, em “A subversão do sujeito”.
No desenvolvimento deste capítulo, teremos a oportunidade de examinar as
transformações pelas quais passou a noção de objeto, relacionando-as sempre ao tema da

83
interpretação. No momento, é suficiente ressaltar que não sustentamos aqui que o objeto
tenha estado ausente do ensino de Lacan até o Seminário VII. O que dissemos é que,
nesse seminário, o objeto40 assume estatuto de real, tornando-se o fundamento da lei do
desejo, onde até então, encontrávamos a cisão expressa por: desejo, verdade e simbólico
de um lado e objeto, imaginário e gozo do outro.
Isso posto, retomemos nosso argumento com o intuito de localizar a passagem da
noção de objeto imaginário, que se contrapõe ao registro do desejo e da interpretação,
para a noção de objeto real, a qual funda esse desejo e que deve, portanto, ser visado pela
intervenção do analisa.
Estamos cientes de que o objeto de desejo foi inicialmente pensado por Lacan
como uma projeção narcísica do eu. No Seminário I, Os escritos técnicos de Freud, ele
desenvolve toda uma argumentação para demonstrar que a imagem narcísica -
primitivamente edificada a partir da identificação com o outro - é posteriormente
projetada sobre um objeto exterior, investido libidinalmente por essa via mesma. A
projeção constitui o objeto exterior como objeto de desejo. Ou seja, retomando o modelo
freudiano, que relaciona a libido narcísica e a libido objetal, Lacan enfatiza o movimento
de báscula instável e reversível entre o eu e o desejo. Sob esse ponto de vista, o desejo é
tomado, originariamente, como o modo de alienação no outro imaginário, o que lhe
confere sua dimensão mortífera.
Safatle chama a atenção para o fato de que partindo dessa concepção, nesse nível
dual, a coexistência humana seria impossível, se não houvesse uma mediação simbólica.
O autor assinala que esse é o impasse que se encontra na origem da necessidade que
experimenta Lacan de desenvolver características próprias do desejo, tornando-o um
elemento simbólico capaz de fazer contraponto à dimensão de fascínio e de alienação
encontrada na concepção da origem imaginária do desejo (SAFATLE, V. 2002, p. 75).
Fiel a essa perspectiva, Lacan passa a acentuar, como vimos anteriormente, que o
desejo que se trata de reconhecer ou de se revelar na análise é desejo desprovido de
objeto. Isso significa tomar o desejo como desejo de nada que possa ser nomeado
(LACAN, J. 1954-55/1978, p. 261), incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e

40
Talvez a palavra objeto usada para designar das Ding não seja a mais exata, o que nos autoriza a fazê-lo,
no entanto, é o fato de que, no texto de Freud “Projeto para uma psicologia científica”, das Ding é a
inscrição no aparelho psíquico do objeto da primeira experiência de satisfação do sujeito.

84
imaginários e de se realizar num campo fenomenal. É para essa característica do desejo
que Lacan chama a atenção em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”,
ao afirmar que o desejo aponta para o vazio, é “desejo de nada”, por articular-se
fundamentalmente à falta-a-ser (à castração).
Ainda de acordo com Safatle, a necessidade de se fazer uma crítica ao narcisismo
fundamental, guiando a constituição dos objetos de desejo, é o que conduz Lacan a
estabelecer, em contraposição, uma teoria do desejo na qual está ausente o primado do
objeto. Por outro lado, a sua insistência em tratar o sujeito da psicanálise como sujeito
não-substancial e nunca idêntico aos significantes que o representam, exigem dele que
faça corresponder a esse sujeito um desejo que lhe seja coerente (SAFATLE, V. 2002, p.
75).
Se, para Lacan, o sujeito é falta-a-ser - não é falta disso ou daquilo, mas falta-a-ser
pela qual o ser existe (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 261) - o que seria o desejo de um
sujeito assim definido? Evidentemente, o desejo de tal sujeito só pode ser situado em
relação à falta, que, por sua vez, não é derivada de nenhuma perda empírica. O desejo
para Lacan estrutura-se, de acordo com Bass, não a partir de um objeto dado, mas da
própria falta, condição a priori da constituição do mundo dos objetos do desejo humano
(BASS, B. 2001, p. 30-33).
Sob esse ponto de vista, prossegue Safatle, o verdadeiro problema da análise seria,
justamente, o de levar o analisante a simbolizar a falta-a-ser, o irrepresentável, sem que,
no entanto, o analista ceda quanto à irredutibilidade da negatividade do sujeito. E pensar
o procedimento analítico desse modo significa considerar a possibilidade de simbolizar a
negação sem pretender, no entanto, dissolvê-la (SAFATLE, V. 2002, p. 77).
Essa é, então, a perspectiva fundamental num certo momento da teoria de Lacan:
a idéia de que não é a perda de um determinado objeto que determina o surgimento do
desejo. Contrariamente a Melanie Klein e Freud, que acreditaram na existência de uma
perda empírica na origem do desejo, Lacan afirma a perda como evento que antecede o
que é perdido41.

41
Freud no texto “Projeto para uma psicologia científica” refere o desejo à primeira experiência de
satisfação e M. Klein coloca, no lugar central de das Ding, o corpo da mãe.

85
As opiniões de Bass e de Safatle encontram, de fato, embasamento em algumas
afirmações de Lacan. Localizamos pelo menos duas afirmações no Seminário VII que
corroboram tal posição. A primeira é uma crítica à posição de M. Klein, que sustenta que
o que se encontra em jogo na sublimação é a tentativa do sujeito de restituir
fantasmaticamente o corpo materno, que foi quebrado e lesionado. Lacan critica essa
proposição dizendo que isso não passa de um mito kleiniano (LACAN, J. 1959-60/1986,
p. 127-28). A segunda afirmação é feita no sentido de que o objeto é, por natureza,
reencontrado, o fato de ter sido perdido, é apenas uma conseqüência (LACAN, J. 1959-
60/1986, p. 143). Ou seja, de acordo com Lacan, se há desejo, isso não se deve à perda de
qualquer origem, pois, como sugere Bass, sob seu ponto de vista, a perda é, ela mesma, a
origem (BASS, B. 2001, p. 32-33).
A concepção embutida nesse modelo é a de que não há coincidência entre a Coisa
perdida e o objeto reencontrado. A perda originária é o que condiciona a busca dos
objetos, que serão reencontrados sem jamais terem sido perdidos.
Como sugere Safatle, se examinarmos cuidadosamente essa idéia, veremos que
ela está referida à já destacada distinção entre os registros do imaginário e do simbólico,
que permitiu a Lacan diferenciar as relações imaginárias das relações simbólicas. Não
podemos deixar de reconhecer, aí, um motivo tipicamente estruturalista, segundo o qual
as relações interpessoais são determinadas por um sistema simbólico de leis42. A posição
de Lacan é a de sustentar que as escolhas imaginárias de objeto são determinadas por
elementos simbólicos43. E, ainda, que o sujeito, antes de ter uma relação imaginária com
seus objetos de desejo, tem relação com a estrutura de linguagem, que os determina. A
análise é, portanto, a operação através da qual se promove, para o analisante, a revelação
de que seu desejo articula-se ao desejo do Outro, e que suas fixações imaginárias de
objeto traduzem a relação de seu desejo com o falo e com a lei da linguagem. Podemos
ainda dizer que a análise concebida a partir dessas referências é o processo no qual o
sujeito será reconhecido, enquanto sujeito, em função da revelação do seu desejo, como

42
É o que Lévi Strauss identifica em sua análise dos sistemas de parentesco em algumas sociedades, nos
quais a escolha de um cônjuge, por um determinado indivíduo, é determinada, sem que ele tenha
consciência disso, pelas leis que regem as trocas matrimoniais naquele grupo.
43
Segundo Lacan, na busca por das Ding, o objeto fundamentalmente perdido, o sujeito reencontra uma
série de satisfações ligadas à relação de objeto (LACAN, J. 1959-60/1986).

86
desejo regido pela lei da linguagem, e não como desejo de objetos (SAFATLE, V. 2002,
p 77-78).
É exatamente isso que se encontra em questão no texto analisado anteriormente,
“A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, quando Lacan critica a
interpretação de Kris dirigida ao homem dos miolos frescos, dizendo que ela se orienta
pelo objeto imaginário, no qual se fixa o desejo do paciente, supostamente plagiário.
Como vimos, Lacan ressalta que o problema não é que esse sujeito roube, e sim, que ele
rouba nada. E sendo assim, a interpretação não pode fazer outra coisa senão visar esse
nada. Entendemos que o que ele pretende dizer é justamente o que acabamos de expor, a
saber, que a verdadeira interpretação é aquela que revela o desejo como desejo regido
pela lei da linguagem e marcado pela falta, e não como desejo de objetos.
Sempre sob o mesmo ponto de vista, lembremo-nos que Lacan define a lei
simbólica, em “O Seminário sobre ‘A carta roubada”’ e em “A instância da letra ou a
razão depois de Freud”, como cadeia fechada de significantes puros, desprovidos de
significados, ou seja, como “pura forma vazia”, incapaz de enunciar uma norma sobre o
gozo ou sobre o objeto adequado ao gozo.
Para Safatle, o significante, nos referidos textos, não reenvia a nenhum objeto e
sim a outro significante44. E quando Lacan relacionou o desejo à lei da linguagem, não
fez outra coisa senão reafirmar a impossibilidade do desejo de se ligar a qualquer tipo de
objeto empírico, reiterando o fato de que, nomear o desejo na análise, é acentuar a não-
identidade do desejo com os objetos do mundo fenomenal (SAFATLE, V. 2002, p. 80).
Compreendemos e concordamos com a posição de Safatle, mas não podemos
deixar de assinalar que no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”,
ao lado da definição do desejo como desejo de “nada”, Lacan ressalta que a análise
conduz ao coração do ser. Exatamente como em “A instância da letra ou a razão depois
de Freud”, encontramos, aí, mais uma vez, certa tensão entre a teoria do desejo que
associa este último às leis da linguagem e à falta-a-ser e a proposição de que a análise do
desejo conduz ao coração do ser.

44
Embora, ali, Lacan já faça referência ao caput mortuum do significante. Elemento que fica excluído no
processo de constituição da cadeia significante.

87
Essa tensão entre elementos que parecem antinômicos mostra que, embora as
análises de Bass e de Safatle encontrem fundamentos nas formulações lacanianas, elas
são parciais, pois deixam de lado a dimensão do ser presente na análise e indicada por
Lacan. Tal dimensão é apontada por Lacan, nesse momento, de forma breve e obscura,
sem que ele explicite o que se encontra em jogo, aí. Não podemos, no entanto,
desconhecer sua presença, sobretudo porque o ser ocupará o centro das construções
teóricas de Lacan no Seminário O ato analítico.
De todo modo, é possível reconhecer a importância da noção de um desejo
desprovido de objeto para a economia conceitual de Lacan, num determinado ponto de
seu ensino e gostaríamos, agora, de explorar o momento no qual localizamos um
deslocamento em relação à lógica que vinha sendo desenvolvida até então. Trata-se do
Seminário IV, As relações de objeto, momento intermediário entre a concepção
imaginária do objeto – na qual o objeto é antagônico ao registro do sujeito barrado e do
Outro – e a concepção do objeto, que se conjuga com o sujeito desejante – representada
pela fórmula da fantasia.
No Seminário IV, o falo e a falta, termos simbólicos, tornam-se os mediadores de
toda relação imaginária de objeto. Além do mais, o falo, significante fundamental na
economia psíquica do sujeito, é destacado como o elemento de interseção entre os
registros do simbólico e do gozo. Temos, então, nesse momento, não mais um mero
antagonismo entre o simbólico e o gozo imaginário, como o ilustrado pelo o esquema L,
mas uma zona de interferência entre o campo do significante e a libido, sustentada pelo
falo.

2.1- O objeto no Seminário As relações de objeto.

O Seminário As relações de objeto 45 (1956-57) é ministrado no momento em que


essa noção se encontrava no primeiro plano do debate sustentado pela comunidade
psicanalítica. Alguns analistas acreditavam que o progresso da análise dependia da
retificação da relação do sujeito com o objeto - relação considerada dual (LACAN, J.

45
O título As relações de objeto não é freudiano nem lacaniano, mas faz referência ao artigo de Bouvet
intitulado “A relação de objeto” e publicado no livro A psicanálise hoje.

88
1956-57/1994, p. 12). Lacan, então, posiciona-se para dizer que é apenas no eixo a – a’
que a relação de objeto corresponde a uma relação dual. Tal concepção não se alinhava à
perspectiva freudiana, que situa o objeto no quadro de uma relação profundamente
conflituosa do sujeito com seu mundo (LACAN, J. 1956-57/1994, p. 16, 53).
A contribuição essencial do Seminário IV, em relação ao que era veiculado pelos
psicanalistas na ocasião, foi a localização do falo como o objeto visado em toda relação
de objeto. Até o momento, como assinalamos, o objeto havia sido pensado
fundamentalmente a partir do eu. O eu era o reservatório da libido que se transferia ao
objeto. No Seminário IV, os objetos são situados não mais em relação ao eu, mas em
relação ao falo, que não é pensável sem a falta. E a falta, com seu estatuto simbólico, é
justamente o que está ausente da relação que se realiza no eixo imaginário (LACAN, J.
1956-57/1994, p. 17, 51).
Os termos castração, frustração e privação, retomados no Seminário IV, eram
expressões que apareciam de forma recorrente no debate dos pós-freudianos acerca da
fase fálica. Para Lacan, a falta de rigor no uso desses termos devia-se à ausência da noção
de falta, para organizar a discussão. Os analistas não reconheceram, ali, variedades da
falta e, como consequência, confundiram objetos diferentes, como o objeto fóbico e o
objeto fetiche 46(LACAN, J. 1956-57/1994, p. 34).
Lacan tenta colocar ordem no debate ao promover a distinção entre o que é da
ordem do simbólico, do imaginário e do real. Isso é o que orienta a elaboração do quadro
apresentado no seminário, que articula as diversas formas da falta do objeto, castração,
frustração e privação, com os registros do objeto, imaginário, real e simbólico (LACAN,
J. 1956-57/1994, p. 59). Para o psicanalista francês, a privação de gozo sofrida pelo
sujeito – privação simbólica do falo – encontra-se na origem da transferência desse gozo
para os objetos imaginários. Ele lembra que a mensagem deixada por Freud é a de que a
formação do objeto repousa sobre a noção de perda do objeto: o objeto perdido é
reconstituído no eu, que se transforma parcialmente, de acordo com o que foi perdido
(LACAN, J. 1956-57/1994, p. 173).

46
Lacan afirma que o objeto fóbico é um significante que faz suplência à falta do Outro, enquanto o fetiche
é o objeto percebido no corte significante (LACAN, J. 1958/1966, p. 610). Ou seja, o fetiche é o objeto
percebido, no momento em que o sujeito se divide ao se defrontar com a castração.

89
Assim, o falo é situado como o termo mediador entre o simbólico e o imaginário.
E a condição para que Lacan o situe nesta região limítrofe é a consideração de que a
castração, correlata do conceito de falo, é uma operação simbólica - articulada à falta,
também simbólica – que convoca a restituição do gozo perdido sob a forma de objetos
imaginários.
Para Lacan, a função do imaginário, a função da fantasia, é a de promover algum
tipo de harmonização entre o sujeito e o objeto, na medida em que existe uma
discordância fundamental entre o objeto perdido – em decorrência da incidência da
castração - e o objeto reencontrado (LACAN, J. 1956-57, p. 52, 53).
Vemos, assim, que, no Seminário IV, o gozo é, em alguma medida, articulado ao
simbólico – pois está referido ao falo, correlato da castração – mas é, ao mesmo tempo,
reportado ao imaginário.
Isso pode ser observado tanto nas construções de Lacan sobre a perversão,
explicada a partir da perspectiva ótica, quanto nas elaborações sobre as relações entre a
mãe, a criança e o falo, relação de gozo imaginário, que a entrada do pai, agente da
castração, trataria de retificar 47(LACAN, J. 1956-57/1994, p. 29).
Como é possível notar, a perspectiva do objeto privilegiada no Seminário IV é
diferente da que é apresentada por das Ding, no Seminário VII, e pelo objeto a, no
Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Embora Lacan não
abandone, posteriormente, a idéia de que os objetos imaginários do desejo tenham por
função a restituição do gozo confiscado pela castração, no Seminário XI, ele passa a
considerar a existência de duas classes de objeto: os objetos imaginários, pertencentes ao
campo do princípio do prazer, responsáveis pela metonímia do desejo, e o objeto pequeno
a, objeto real, o qual segundo Lacan, “se apresenta no campo de miragem da função
narcísica do desejo, como o objeto que não pode ser deglutido, permanecendo

47
Para Lacan, o fetiche é um véu que ao mesmo tempo esconde e designa a falta fálica da mãe. No
masoquismo, o sujeito espera encontrar no outro o véu, que é o chicote, representando a potência fálica. No
voyeurismo, o sujeito se identifica com a fissura no véu, que separa o escondido e o mostrado e recobre o
desejo do Outro. No travestismo, o véu é a vestimenta feminina que dissimula a presença do falo, ali, onde
ele não deveria estar. O sujeito, nesse caso, encontra-se identificado à mãe, portadora do falo. Já no caso do
primeiro tempo do Édipo, Lacan indica que, ali, a criança identifica-se ao falo imaginário da mãe, lhe
restituindo o gozo narcísico, ao promover a ilusão de completude. A relação de gozo imaginário mãe-
criança-falo é perturbada pela intromissão do pai. Os exemplos citados demonstram a hipótese que orienta
Lacan na elaboração do Seminário IV, a saber, a de que o gozo subtraído pela castração pode ser restituído
ao sujeito sob a forma de objetos imaginários.

90
atravessado na garganta do significante” (LACAN, J. 1963-63/1973, p. 243). Enquanto o
objeto a, causa de desejo, é descrito como aquele em torno do qual gira o circuito da
pulsão, tendo existência simplesmente topológica e se apresentando como cavidade que
pode vir a ser ocupada por qualquer objeto, (LACAN, J. 1963-64/1973, p. 164, 166, 220,
232), os objetos do campo do Lust são apresentados como tendo uma relação
fundamentalmente narcísica com o sujeito, o que explica a regressão, citada por Freud em
alguns casos, da escolha objetal à identificação (LACAN, J. 1963-64/1973, p. 219).
De qualquer maneira, o que gostaríamos de ressaltar é que o passo dado por
Lacan, no Seminário IV, ao articular o objeto a elementos simbólicos como a castração e
o falo, em detrimento de sua articulação com o registro do imaginário, foi fundamental
para se pensar a ligação entre o sujeito e o objeto – no lugar da conexão entre o eu e o
objeto – e, consequentemente, foi a condição de possibilidade para a elaboração da teoria
da fantasia, como a encontramos em “Kant com Sade” e no Seminário O ato analítico.
A conexão entre o sujeito e o objeto é o que encontramos também na fórmula da
fantasia articulada no grafo do desejo, mas, ali, diferentemente do texto “Kant com
Sade”, o objeto a da fórmula da fantasia ainda é o objeto imaginário.

2.2- A interpretação e o objeto no grafo do desejo.

O texto “A subversão do sujeito” (1960), no qual Lacan consuma a construção do


grafo do desejo é contemporâneo do Seminário VII, A Ética da Psicanálise (1959-60),
que analisaremos em seguida.
Situados num mesmo período de reflexão do autor, devemos considerá-los como
produções solidárias e complementares. Ambos inserem-se no movimento lacaniano que
caminha na direção de desfazer a cisão entre a teoria do desejo e a do gozo, que
organizou a concepção da interpretação e do tratamento analítico nos anos 50.
Enquanto “A subversão do sujeito” funda o desejo na fantasia e o relaciona ao
gozo restituído por um objeto imaginário, o Seminário VII articula o desejo e a estrutura
de linguagem do inconsciente à Coisa, referida ao gozo primário, subtraído a partir da
entrada do vivente na ordem da linguagem. Nos dois casos, observamos o esforço de
Lacan para estabelecer uma relação entre desejo e objeto.

91
O grafo do desejo, afinado ao Seminário VII, é o momento em que o autor
reafirma sua intenção de descompletar a estrutura de linguagem do inconsciente,
barrando o Grande Outro, ao mesmo tempo em que promove a fantasia como o elemento
fundador do desejo. O grafo, como todos sabem, foi construído ao longo dos Seminários
As formações do inconsciente (1957-58) e O desejo e sua interpretação (1958-59), e tem
sua conclusão no texto “A subversão do sujeito” (1960).

Seu exame é importante para essa pesquisa não apenas pelo fato de sua construção
ter-se dado no contexto da análise da interpretação – realizada no Seminário VI - mas
também por ser um esquema que apresenta novidades em relação ao que vinha sendo
elaborado sobre o tema até então.
Lacan coloca parte do grafo no quadro, pela primeira vez, no Seminário V,
apresentando-o como um guia para a reflexão acerca do chiste do familionário de Heine
(LACAN, J. 1957-58/1998, p. 14, 16). O grafo, no entanto, mostra rapidamente alcance
muito maior do que o pretendido, o que o leva a escrever em “A subversão do sujeito”,
48
que ele (o grafo) evidencia a estrutura da experiência da psicanálise (LACAN, J.
1960/1966, p. 804). Eis o esquema completo do grafo do desejo.

S( ) (S D)
Gozo Castração

(S a) d

s( )
Significante Voz
m i(a)

I( ) S

48
É interessante notar que o grafo do desejo que, segundo Lacan, evidencia a estrutura da análise comporta
dois andares que correspondem de algum modo às duas operações de constituição do sujeito, apresentadas
no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: a alienação e a separação. O primeiro
andar, como veremos, pode ser reportado à operação de alienação, e o segundo andar à operação de
separação. Assinalamos essa perspectiva, aqui, porque, no Seminário O ato analítico, Lacan proporá outro
grafo para também representar a estrutura da análise. O grafo, baseado no grupo matemático de Klein,
retomará as operações de alienação e de separação que, em 1967, será rebatizada com o nome de operação
verdade.

92
O esquema, como se vê, é constituído por letras e fórmulas, que Lacan explica ao
longo de sua construção. Composto por dois andares, que mantêm entre si uma relação
lógica, cada um dos andares é uma etapa realizada pelo sujeito, que não deve ser tomada
como um estágio do desenvolvimento, e sim, como uma estrutura que gera a estrutura
seguinte, por lhe ser, logicamente, anterior (LACAN, J. Le Séminaire VI, Le désir et son
interprétation, Léçon du 12 Novembre, 1958).
O primeiro andar representa o fato de que o sujeito fala e que, por falar, encontra-
se submetido às leis da linguagem 49. O segundo andar demonstra que é na experiência da
linguagem que se funda a apreensão do Outro. Esse andar articula o modo como o sujeito
se situa em relação ao primeiro andar, ou seja, como se situa em relação à fala e à
linguagem, quando se interroga sobre o que o falar quer dizer, e quando percebe que, ao
falar, diz mais que seus enunciados.
Podemos então afirmar que o segundo andar é o andar da enunciação, daquilo que
aparece para além da apreensão do sujeito na linguagem (LACAN, J. Le désir et son
interprétation, Léçon du 12 Novembre, 1958). É o andar daquilo que constitui
propriamente o inconsciente.
A linha s (A) – A é a linha entre o Outro como um lugar, e a mensagem como um
momento. O Outro se impõe como testemunha da verdade que profere o sujeito e, num
movimento de retorno, dá o sentido de sua mensagem (LACAN, J. 1960/1966, p. 806,

49
Esse é o andar que representa a alienação do sujeito na linguagem, momento em que este se faz
representar por meio dos significantes do Outro, submetendo-se, a partir de então, às suas leis.

93
807). Todas as vezes que o sujeito fala, o lugar do Outro, como terceiro, se instaura e é a
esse lugar que se refere a verdade da fala no grafo do desejo.

Prolongando o movimento iniciado em “A instância da letra ou a razão depois de


Freud”, Lacan persiste na idéia de um Outro não-subjetivado, que é apresentado como “o
puro sujeito da moderna estratégia dos jogos, acessível ao cálculo da conjectura, na
medida em que o sujeito real não tem que levar em consideração nenhuma aberração dita
subjetiva, mas somente a inscrição de uma combinatória cuja exaustão é possível”
(LACAN, J. 1960/1966, p. 806).
Assim, o Outro, no grafo, é o lugar do código, não no sentido de que aí se
inscreveria uma correspondência entre palavras e coisas, mas enquanto lugar onde os
significantes combinam-se de acordo com as leis da metáfora e da metonímia (LACAN,
J. 1960/1966, p. 806).
A mensagem produz um efeito retroativo sobre a cadeia que a precede,
promovendo a precipitação de uma significação (LACAN, J. Le désir et son
interprétation, Léçon du 12 novembre, 1958). Ela pode ser deformada em sua intenção,
segundo a maneira como o Outro a ouve. Passando por A, o discurso é susceptível de
reinterpretações, ressonâncias, efeitos metafóricos, metonímicos, que provocam surpresa
na mensagem. É o que se passa no caso do chiste e do ato falho.
Já o segundo estágio do grafo dá conta do sujeito que interroga seu desejo como
desejo do Outro, como desejo do que falta e que, no Outro, designa-se como outro desejo.
A passagem do primeiro andar para o segundo, de acordo com Lacan, depende do savoir-

94
faire do psicanalista e se produz na medida em que o sujeito desconhece o que o funda
como sujeito (LACAN, J. 1960/1966, p. 815).
A respeito do que não sabe, o sujeito interroga o Outro. O que queres? Che
50
vuoi? (LACAN, J. 1960/1966, p. 815) Ou pergunta: o que sou? A interrogação do
sujeito sobre seu desejo torna-se interrogação sobre o desejo do Outro, já que o desejo do
sujeito é o desejo do Outro. O Outro, no entanto, não responde. Nesse ponto, o desejo do
Outro se apresenta, opaco, obscuro e, diante dele, o sujeito encontra-se sem recursos
(LACAN, J. Le désir et son interprétation, Léçon du 12 Novembre 1958).
A mensagem, como resposta à questão sobre o desejo do Outro, é notada no grafo
como S (A), S de A barrado, que, no plano da linguagem, quer dizer que não há nada, no
Outro, que garanta a verdade do sujeito. Ao barrar o Outro, Lacan pretende enfatizar que
não existe significante que assegure um ponto fixo no qual o sujeito possa nomear seu
desejo. Ele busca indicar que o Outro é impotente em sua possibilidade para designar o
ser do sujeito, colocando-o, por essa razão, numa situação de desamparo.
A mensagem do Outro barrado equivale à presença de uma falta no Outro.
Segundo Lacan, no nível da relação do sujeito com o Outro, falta sempre um significante,
designado, no texto, como o significante através do qual os demais significantes
representam o sujeito. Esse significante é singular, diferente dos outros, na medida em
que não pode ser contado (LACAN, J. 1960/1966, p. 819), inscrevendo-se como um a
mais ou a um a menos em relação ao conjunto dos significantes.
O momento em que o sujeito reconhece a falta no Outro é identificado, por Lacan,
51
como o instante da presentificação da castração, o qual provoca, como resposta, a
emergência da angústia. Freud designou esse momento traumático do sujeito com o
termo Hilflosigkeit 52 (LACAN, J. Le désir et son interprétation, Léçon du 12 Novembre,
1958).

50
Essa pergunta é tomada por Lacan da obra literária Le diable amoureux (1772) de Cazotte.
51
Encontramos aqui algo do registro da separação, que, no Seminário XI, Lacan situará como o
recobrimento das duas faltas. Falta do Outro, que se expressa em seu desejo e falta do sujeito, relativa à
castração que ele sofre ao ingressar no universo da linguagem.
52
A palavra Hilflosigkeit é uma referência constante em Freud. Foi traduzida para a língua portuguesa
como desamparo e faz referência, inicialmente, à impotência da criança, que é incapaz de empreender uma
ação eficaz para produzir a satisfação de suas necessidades. A idéia de um desamparo inicial está na base
de diversas considerações freudianas, e no quadro da teoria da angústia torna-se o protótipo da situação
traumática.

95
Segundo Lacan, é nesse ponto que intervém a experiência especular, que permitirá
ao sujeito fazer face à angústia decorrente da ausência de resposta do Outro. O sujeito se
defende da angústia através da experiência imaginária e isso é o que é simbolizado pela
fórmula S ^ a (LACAN, Le désir et son interprétation, Léçon du 12 Novembre 1958).
A fórmula da fantasia, que representa o lugar onde o desejo se situa, indica o
momento em que o sujeito desvanece – por faltar um significante com o qual possa se
representar no campo do Outro – fazendo advir um objeto imaginário como resposta. O
objeto a restitui, pela via do imaginário, o gozo subtraído pela castração, funcionando
como suporte para o sujeito no momento em que este se apaga para se designar na
instância do desejo.
Examinemos uma passagem do Seminário VI que resume bem a argumentação de
Lacan para explicar a constituição da fantasia. Ele diz, ali, que o sujeito quer se apreender
num além da palavra e não encontra respostas, pois, o que encontra, no Outro, é o vazio.
Diante da situação, o sujeito faz vir, então, algo do registro do imaginário, na medida em
que se encontra engajado numa relação imaginária com o outro. O que é trazido do
registro do imaginário é um objeto de desejo que entra em jogo num complexo chamado
de fantasia. O objeto - no momento em que o sujeito se apaga diante da carência de um
significante que responda por seu ser no campo do Outro - serve de apoio e de suporte
para o sujeito (LACAN, J. Le désir et son interprétation, Léçon du 13 Mai, 1959).
Assim, a fórmula da fantasia, S ^ a, que deve ser lida “sujeito desejo de a”, indica
que o S, sujeito falante e castrado, reporta-se ao outro imaginário, ao passo que a letra a
simboliza o elemento retirado desse campo para tratar a falta instaurada pela castração.
Essa fórmula aponta para o fato de que a fantasia – lugar onde o desejo originalmente
aprende a se situar - é articulável a partir da referência do sujeito falante ao outro
imaginário.
Tendo sido situada, no grafo do desejo, as relações existentes entre a fantasia, a
falta no campo do Outro, e o outro imaginário, podemos agora perguntar: quais são as
consequências das modificações conceituais mencionadas para a interpretação? O que se
transforma na teoria da interpretação, quando passamos a considerar o Outro como
barrado? O que se modifica quando tomamos o desejo como algo que se funda na

96
fantasia, a qual supõe a articulação do sujeito - termo simbólico - a um objeto de gozo
imaginário?
Para responder a essas questões, propomos o exame de um fragmento do
Seminário VI que discute a interpretação freudiana de um sonho. Como o sonho é, por
excelência, o campo onde se coloca a questão do desejo e de sua interpretação, Lacan,
durante várias aulas do Seminário VI, comenta a análise de um sonho, feita por Freud e
publicada no artigo “Formulações sobre os dois princípios da vida psíquica” (1911).
Trata-se, no caso, de um sujeito que está em luto pelo pai, de quem cuidou na fase
terminal de sua doença. No sonho, o pai ainda estava vivo e falava com ele. O sonhador,
no entanto, experimentava o sentimento angustiante de que, na realidade, seu pai já
morrera e “ele não sabia” (FREUD, S. 1911/1996, p. 243, 244).
Na perspectiva de Freud, a única estratégia capaz de conduzir à elucidação do
sonho é a de acrescentar a frase “conforme seu voto” às palavras “na realidade, seu pai já
morrera”. O objetivo da interpretação seria o de restituir ao sujeito o que ele já conhecia
perfeitamente, seria o de lhe assinalar que, durante a dolorosa doença, ele desejara a
morte do pai para por fim a seu sofrimento, e fizera de tudo para dissimular tal desejo
(FREUD, S. 1911/1996, p. 244).
Para Lacan, no entanto, trata-se de um sonho no qual o desejo pela morte do pai,
compreensível no contexto de uma doença dolorosa e prolongada, faz reviver outro
desejo mais arcaico. Segundo o psicanalista francês, somente a partir dessa perspectiva
podemos apreender o que é a interpretação (LACAN, J. Le désir et son interprétation,
Léçon du 26 Novembre 1958).
A frase “ele não sabia”, produzida na narrativa do sonho, é reportada, por Lacan, à
própria estrutura do sujeito. Em sua análise, o sujeito, ao assumir a angústia do pai,
preserva a ignorância que lhe é necessária. E o que o sujeito necessita ignorar? Do que
ele não quer saber? Ele não quer saber da dor da existência, provocada pela revelação do
conteúdo mais secreto do seu voto, voto da castração do pai, que retorna sobre ele no
momento da morte deste. De acordo com Lacan, o voto de castrar o pai - a rivalidade
imaginária com o pai - mascara o que há de mais profundo na estrutura do desejo e que,
se desnudado, provocaria a dor da existência. Essa é a dor que o filho tenta dissimular
com o sonho, mantendo sua posição de ignorância. É a mesma dor experimentada por

97
Édipo quando, “depois de ter esgotado, sob todas as formas, a via do desejo, se encontra
num ponto em que só pode exclamar: “melhor não ter nascido!” (LACAN, J. 1958-59, Le
désir et son interprétation, Léçon du 10 Décembre, 1958).
Com o exame do sonho relatado por Freud, Lacan pretende demonstrar que, se o
sonho subtrai algo do texto, é justamente o fenômeno de subtração que assume valor
positivo. Na visão de Freud, o que é subtraído do texto do sonho é a frase “segundo seu
voto”, que deveria ser restituída pela interpretação do analista. Na opinião de Lacan, no
entanto, a visada da interpretação não deve ser os significantes suprimidos pela ação do
recalque, e, sim, o ponto de incidência do real que eles encobrem (LACAN, J. Le désir et
son interprétation, Léçon du 17 Décembre, 1958). Ponto onde se esgota a via do desejo,
fazendo surgir uma significação enigmática representada por Lacan com um X. É o que
podemos constatar no grafo do desejo, no qual, durante sua argumentação, Lacan situa os
significantes do sonho, produzindo, desse modo, o seguinte esquema:

Ele estava morto

X S D

S a d

Ele não sabia

D(A) A

I
98
Nesse contexto, Lacan diz que a ênfase da interpretação deve incidir, não na
restituição dos significantes recalcados, mas na relação do sujeito com aquilo que os
53
significantes recalcados velam . Ou seja, a interpretação deve fazer surgir a dimensão
de semblante do significante. Os significantes recalcados, como vimos, são “segundo seu
voto”, que completariam a frase “ele estava morto”, e o que eles mascaram é a dor da
existência ligada ao ponto de desfalecimento do desejo e de surgimento de uma
significação enigmática. Não é necessário dizer que o ponto de desfalecimento do desejo
e do surgimento de uma significação enigmática, no grafo do desejo, coincide com o
momento de encontro do sujeito com a falta de um significante no campo do Outro. Essa
é a falta que a fantasia tem por função dissimular.
É por isso que Lacan diz, ainda no Seminário VI, que a interpretação que incide
sobre a relação do sujeito com os significantes de sua fantasia é a intervenção que
evidencia o lugar onde o sujeito não pode se sustentar como sujeito da enunciação. Tal
intervenção circunscreve o vazio no campo do Outro, correspondendo ao enigma de seu
desejo, e faz surgir, como defesa, o desejo do sujeito.
Ao que parece, essa definição de interpretação faz avançar aquela encontrada no
texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, na qual a verdadeira
interpretação deve visar ao nada do desejo. No grafo, a interpretação deve visar ao ponto
de incidência do real, o vazio, o lugar onde o Outro desfalece e é reconstituído pelo
sujeito com a resposta da fantasia.
Podemos também dizer que a definição da interpretação proposta no Seminário VI
é um antecedente da definição apresentada no Seminário XI, segundo a qual o objetivo da
ação analítica é o de tratar o real com o simbólico (LACAN, J. 1964/1973, p. ). Tal
definição antecede, igualmente, a noção de ato analítico, cuja visada é o real apresentado
sob a forma do objeto pequeno a.

53
Veremos mais adiante, no desenvolvimento do texto, que Lacan, no Seminário XI, com a tese do
inconsciente intérprete, retoma este ponto do seguinte modo: a interpretação analítica não deve visar
especificamente o trabalho com os significantes recalcados, porque isso é algo que o inconsciente já faz. O
inconsciente já interpreta e, por isso, o alvo da interpretação deve ser o real, que a articulação significante
esconde.

99
Nesse momento, entretanto, Lacan ainda não elaborou sua teoria do objeto
pequeno a tal qual ela nos é apresentada nos Seminários X e XI, e ainda não é nesses
termos que ele formula o ato do analista. De todo modo, a interpretação, nesse momento,
não se refere mais, exclusivamente, ao significante, não podendo ser confundida com a
decifração, na medida em que não se reporta mais ao recalcado, nem ao sentido. A
interpretação, agora, deve apontar para a fantasia, que inclui o objeto com o qual o sujeito
se defende do desamparo diante do desejo do Outro. Ela deve indicar, antes de tudo, a
função da fantasia, que é a de recobrir e dissimular a inconsistência do Outro, recorrendo,
para tanto, ao objeto a. O objeto a, aqui, ainda não tem o estatuto de objeto real. Trata-se
de objeto imaginário. E a interpretação, que até então fora enfaticamente situada no
registro do simbólico, deve, agora, se reportar a um elemento imaginário.
Se Lacan, anteriormente, defendeu com vigor o fato de a interpretação ser
inoperante no campo do imaginário, agora, ele retifica sua posição, sustentando que
interpretar é apontar para a formação imaginária que se encontra na base do desejo do
sujeito (a fantasia), cuja função é mascarar o vazio existente no campo do Outro.
Podemos, então, dizer que a interpretação, nesse momento, não apenas extrapola o
registro do simbólico, mas excede também o âmbito do desejo ao se referir ao objeto que
o condiciona, ao levar em conta a resposta fantasmática, construída pelo sujeito, para se
defender da angústia gerada diante do enigma do desejo do Outro.
Por outro lado, como já enfatizamos, o Outro, no grafo, aparece pela primeira vez
como barrado, incompleto, incapaz de nomear integralmente o desejo do sujeito. E
localizar um ponto de falta no Outro significa situar um limite decisivo para a
interpretação pensada como interpretação de sentido. A barra sobre A indica um ponto,
no simbólico, opaco ao sentido e incapaz de produzir qualquer significação que responda
pelo ser do sujeito.
A interpretação, agora, tem que se haver com o S (A), ponto onde o Outro
desfalece (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 227) e onde o sujeito se detém quando avança na
trilha da decifração do sentido. Podemos dizer que o S (A) é a versão lacaniana do
umbigo dos sonhos, do ininterpretável, que Freud já havia apontado em sua
Traumdeutung, de 1900.

100
O gesto de barrar o Outro representa um passo fundamental para a teoria
lacaniana da interpretação, tal qual ela foi pensada na década de cinquenta.
Anteriormente, a interpretação lacaniana colocou-se sob o paradigma de A Interpretação
dos Sonhos, que sustenta que o sonho é a via real que conduz ao desejo inconsciente
(interpretar um sonho seria desvelar a significação inconsciente articulada ao desejo do
sonhador). A nova concepção da interpretação em Lacan coloca-se, agora, sob novo
paradigma, que pode ser definido do modo que se segue: a interpretação é a via real que
conduz ao impossível de dizer, que está fora do significado. E, diga-se de passagem, uma
das maneiras encontradas por Lacan para definir das Ding no Seminário VII, é situando-a
numa relação de exterioridade com o campo do significado.
A perspectiva do objeto, introduzida por Lacan através de das Ding, é o que
analisaremos em seguida. A Coisa, como veremos, evidencia uma dimensão do objeto
distinta da apresentada pelo objeto pequeno a, no grafo do desejo (objeto imaginário,
articulado pela fantasia). No Seminário VII como veremos, das Ding é tratada a partir do
registro do real, o que termina por produzir a conceituação do objeto pequeno a e a
reformulação do ato do analista.

3- O Seminário A ética da psicanálise cria as condições de possibilidade do ato


analítico.

Ressaltamos, no início deste capítulo, que não defendemos a idéia de que Lacan
tenha ignorado a questão do objeto até a elaboração do Seminário VII, mas que o objeto
foi pensado até aí como pertencendo ao registro do imaginário.
Digamos que, o que prevaleceu até 1960, foi a noção de objeto alinhada às
construções de Freud a respeito do narcisismo, em detrimento da concepção freudiana do
objeto apresentada em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
O importante a ser ressaltado é que, a partir do movimento de Lacan inaugurado
no Seminário A Ética da Psicanálise com a retomada da noção freudiana de das Ding,
produzir-se-á, no período entre 1960-65, o conceito do objeto a, causa do desejo, que
deixará de ser imaginário para tornar-se real.

101
Sem que Lacan tenha jamais explicitado os motivos que o conduziram à revisão
da noção de desejo, ele efetua, nesse momento, uma crítica à teoria da lei do desejo
desprovida de objetificação e à teoria do significante depurada de toda referência direta
ao gozo.
No Seminário A ética da psicanálise, encontramos a proposição do corpo como
fundamento do desejo, o que instaura uma zona, no campo do sujeito, que se subtrai da
determinação da estrutura de linguagem, ao mesmo tempo em que faz objeção a seu
caráter a priori.
Veremos que o reconhecimento dessa zona que escapa à determinação
significante é o que permite a Lacan a proposição de uma ética própria à psicanálise. Não
é um acaso o fato de ele ter introduzido o tema da ética, justamente, no momento em que
a estrutura de linguagem do inconsciente é descompletada por das Ding.
A consideração da dimensão ética, como se sabe, só é possível onde existe
liberdade e responsabilidade que concernem o sujeito. Não é possível se falar de ética
quando consideramos um sujeito que é mero efeito da estrutura de linguagem, colocada a
priori e eliminando a possibilidade de toda e qualquer novidade ou modificação. A
dimensão ética só existindo no registro onde o sujeito não apenas escolhe, mas também
se responsabiliza por sua escolha.
Tomando em consideração este ponto de vista, torna-se compreensível a
importância de nos determos, um momento, sobre a virada que representa o Seminário
VII no pensamento de Lacan. O que nos interessa é extrair as conseqüências dessas
reformulações para a intervenção do analista. Encontraremos, aí, os elementos que
sustentarão ulteriormente a noção de ato analítico, e que só podem ser apreendidos
quando entendemos que: 1) o desejo se funda no corpo e não apenas no a priori da
estrutura de linguagem. 2) o corpo é o que descompleta a estrutura de linguagem e
localiza um ponto de falha no campo da determinação do sujeito, introduzindo a
dimensão da liberdade e da responsabilidade, próprias da ética psicanalítica.
A importância da relação entre a ética da psicanálise, proposta no Seminário VII, e
o ato analítico deve-se ao fato de que o ato é o conceito que sustenta a ética da
psicanálise. No último capítulo veremos por que. Por ora, diremos apenas que o ato é a
intervenção do analista afinada com a perspectiva de que existe algo que escapa à

102
determinação que o sujeito sofre da linguagem. Se o inconsciente é estruturado como
uma linguagem, nem tudo nessa estrutura é significante. A estrutura do inconsciente
comporta o gozo, que a partir do Seminário VII, torna-se o ponto visado pelo ato do
analista.
A idéia de que o ato analítico sustenta a ética da psicanálise tem relação também
com a perspectiva de que tal ética se orienta pelo real. Ora, com o ato, o analista toca o
real, por meio de uma intervenção estruturada simbolicamente. Põe em cena o ponto que
escapa à determinação significante. Convoca a margem de liberdade onde o sujeito fará
uma escolha, em função da qual, a estrutura de linguagem que o determina será
retroativamente modificada. Isso é o que buscaremos colocar em relevo na discussão que
virá a seguir.
Tendo sido suficientemente sublinhada a importância das elaborações do
Seminário VII para a construção do ato analítico, em 1967, passaremos agora à análise da
articulação do desejo ao corpo, realizada por Lacan, em 1959-60.

3.1- O objeto reencontrado em Freud – das Ding

Dissemos, no primeiro capítulo, que Lacan, ao criticar a ética kantiana,


explicitando o objeto, aí dissimulado, pretendia trazer à luz o objeto escamoteado em seu
próprio pensamento. Que objeto seria esse?
Trata-se do objeto referente a um gozo interditado, que Lacan apreende como o
avesso da lei do desejo e da lei moral kantiana, por meio de das Ding e do desregramento
54
da satisfação sadiana . Privilegiaremos, aqui, o avesso do desejo como a satisfação
mítica encontrada pelo sujeito com seu primeiro objeto, a Coisa.

54
Lacan observou o esforço de Kant para excluir do campo da razão prática tudo o que encontramos na
obra de Sade: o elogio à calúnia e à transgressão e a incitação aos mais terríveis caprichos. A conclusão de
Lacan é que Sade apreende algo que escapa da perspectiva kantiana e que é bem ilustrado no duplo apólogo
kantiano. Kant descreve duas situações. Na primeira, é dada a um homem a possibilidade de satisfazer seus
desejos com uma mulher, sabendo que, em seguida, será enforcado. Na outra situação, é dada ao mesmo
homem a possibilidade de não ser assassinado, desde que sustente um falso testemunho contra um homem
honesto. O que interessa a Kant e a Lacan, na análise das situações, é o retorno da lei moral sobre o sujeito,
imperativo ao qual ele está submetido. No apólogo, Lacan encontra algo de impensável para Kant e de
imprescindível a Sade e que terá para a psicanálise uma importância decisiva. Para Lacan, é possível que
em certas condições, o sujeito considere a possibilidade de se submeter ao castigo da forca. Basta ter em
vista o que Freud chamou de supervalorização do objeto (o sujeito ama tanto uma mulher que não hesita

103
O objeto apresentado no Seminário A Ética da psicanálise é recuperado por
Lacan, em Freud, no “Projeto para uma psicologia científica”. A noção de das Ding é
trazida ao primeiro plano para nos lembrar que o desejo nada mais é do que o efeito da
primeira experiência de satisfação, que situa a origem do psiquismo no encontro da
criança - mergulhada em seu desamparo primordial – com o Outro.
Segundo Freud, os estímulos endógenos que a criança vivencia só são abolidos
por meio de alteração no mundo externo, ou seja, por meio do que ele chamou de ação
específica (FREUD, (1985 [1950]/1996, p. 370).
Quando esta ação é realizada, o organismo, por meio de dispositivos reflexos,
torna-se capaz de executar a atividade necessária, no interior de seu corpo, para remover
o estímulo endógeno (FREUD, S. (1885[1950])/1996, p. 370). E, ao se remover o
estímulo, produz-se uma descarga de energia, eliminando-se o desprazer decorrente da
elevação do nível de tensão no interior do sistema.
O que ocorre depois da experiência de satisfação é que, com o reaparecimento do
estado de urgência, as imagens mnêmicas do objeto e do movimento reflexo que
produziram a satisfação são reativadas (FREUD, S. (1985[1950])/1996, p. 370). Isso é o
que Freud designa como um estado de desejo: a atração positiva para o objeto desejado
(FREUD, S. (1985[1950])/1996, p. 374).
Com o ressurgimento do estado de desejo, a primeira imagem mnêmica a ser
catexizada é a do objeto, produzindo algo semelhante a uma alucinação. Quando isso
acontece, o movimento reflexo, que a ela ficou associada, tende a ser desencadeado,
provocando como consequência o desapontamento, já que a atividade alucinatória não
tem o poder de apaziguar as tensões internas do organismo (FREUD, S.
(1895[1950])/1996, p. 371, 372). O essencial, porém, é que, quando a criança compara a
experiência atual com a experiência de satisfação primeira, a decepção é inevitável. O
que surge é a discrepância entre o que o sujeito pode obter agora e a experiência mítica,
mágica e perfeita com o objeto que aparece, a partir daí, como perdido.

em morrer por ela). Por outro lado – e este é o aspecto mais relevante – não é impossível que esse homem
resolva enfrentar a forca, que lhe espera na saída do quarto, pelo simples prazer de cortar a mulher em
pedaços. O que se descortina, a partir da resolução concebida por Lacan – e não considerada por Kant – é a
transgressão dos limites designados pelo princípio do prazer em face do princípio da realidade, considerado
como critério. A liberdade que Kant vislumbrou no homem para agir conforme a lei moral, colocando-a nos
limites da razão e mantendo a disposição do homem como boa, se revela em Sade como a liberdade de
escolher pelo gozo que excede a lei.

104
Nesse ponto, torna-se necessário que o organismo seja capaz de discernir se ele se
encontra diante de um objeto alucinado ou diante de um objeto da realidade. Para Freud,
o eu é a totalidade de catexias que se desenvolvem com o intuito de distinguir a
percepção do objeto de sua lembrança. A inibição do processo de descarga, por parte do
eu, produz um investimento moderado do objeto desejado, o que permite reconhecê-lo
como não-real (FREUD, S. (18895[1950])/1966, p. 378, 379).
Isso ocorre quando a catexia de desejo está presente e, ao lado dela, uma
percepção que não lhe corresponde inteiramente. Uma parcela do complexo de
representações do objeto permanece idêntica, enquanto outra parcela varia. A parte que
permanece constante, Freud chama de das Ding e a parte variável é designada como seu
predicado. Ao processo psíquico evocado pela dessemelhança entre a catexia de desejo -
que é uma lembrança - e a catexia perceptual, Freud dá o nome de julgamento (FREUD,
S. (1895[1950])/1996, p.380).
É claro que a coincidência completa entre a lembrança e a percepção não será
jamais alcançada. Todavia, o que nos importa é que não apenas o julgamento, mas todo o
pensamento surge da inscrição inicial da Coisa na subjetividade.
Podemos perceber pela descrição feita acima, que o objeto perdido é a causa do
desejo, do pensamento e do sujeito. É o que inaugura o campo das representações, a
habilidade do julgamento, em síntese, todo o processo do pensar.

3.2- O corpo como fundamento do desejo.

Assim, das Ding é o conceito buscado por Lacan, na experiência de satisfação


descrita por Freud, para designar o gozo perdido pelo ser humano em função de sua
entrada no campo da linguagem, o que determina sua constituição como sujeito dividido.
A palavra gozo, que havia aparecido, até então, apenas em seu sentido convencional,
assume, no Seminário VII, uma significação específica e é elevada ao estatuto de
conceito.
O que se apresenta como novidade é a idéia de que, embora o desejo se constitua
no campo do Outro, existe algo de não simbolizável no fundamento desse desejo. A

105
condição de possibilidade do desejo do homem é o gozo, que se opõe não apenas à
dimensão do desejo, mas também à dimensão do prazer.
Segundo Lacan, o que a articulação do “Projeto para uma psicologia científica”
pretende demonstrar é que o gozo da Coisa é sempre excessivo em relação aos recursos
de que o sujeito dispõe e que é em razão da relação patética do sujeito com das Ding, que
ele se mantém distante dela (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 68). O desejo, nessa
perspectiva, nada mais é do que uma defesa contra o gozo. Articulado no campo do
princípio do prazer, sua função é a de evitar o excesso55 (LACAN, J, 1959-60/1986, p.
67).
A lei do desejo, lei do significante, que reapresenta a Coisa perdida no psiquismo,
encontra seu fundamento na satisfação excessiva experimentada no corpo. E uma lei que
se funda na satisfação corporal não pode, evidentemente, pretender ser uma lei a priori.
É bem verdade que Lacan defendeu a idéia de que o objeto perdido esteve perdido
desde sempre, que o encontro com tal objeto deve ser tomado como um momento mítico
e não como algo que o sujeito tenha vivenciado. Já destacamos anteriormente que Lacan,
ao contrário de Freud e de Melanie Klein, considera que o desejo funda-se na própria
falta e não em qualquer perda de origem. No entanto, embora a falta, instaurada pela
entrada do vivente no campo da linguagem, seja pensada por Lacan como elemento
universal e a priorístico, temos que reconhecer que o gozo – seu correlato - é o que há de
mais singular para um sujeito. Além do mais, o gozo está associado, de algum modo, ao
mundo sensível.
O gozo é propriedade do corpo e não do significante, já que o significante não
56
pode gozar . O corpo é a condição necessária para que haja gozo. E desde os “Três

55
De acordo com Lacan, tendo de escolher, o sujeito escolhe o Wunsch (o desejo), que ao produzir a
repetição dos signos, se transforma numa fonte de whol (o bem estar em Kant que se distingue do bem que
orienta as ações morais, das Gute).
56
Vale ressaltar que no Seminário O avesso da psicanálise, as relações entre o significante e o gozo são
reavaliadas. Ali, Lacan propõe que o gozo é o ponto de inserção do aparelho de linguagem (LACAN, J.
1969-70/1991, p. 14), que existe uma relação primitiva do saber com o gozo e que o ponto de junção destes
dois termos é a castração. A repetição funda-se na perda de gozo, determinada pela interdição instaurada
pela castração e é, ao mesmo tempo, o retorno do gozo que insiste na cadeia, enquanto perda (LACAN, J.
1969-70/1991, p. 51). Ainda no Seminário O avesso da psicanálise, Lacan denomina a perda “mais-de-
gozar”, inspirando-se na noção marxista de “mais-valia”. O que interessa a Lacan é que na troca da força de
trabalho pelo salário que remunera essa força, há sempre um resto, que pode ser considerado um excedente.
É deste excedente que o capitalista extrai seu lucro. Baseando-se nesta noção, Lacan propõe que o
intercâmbio entre a linguagem e gozo determina para o ser vivente, um a menos, uma perda. O que pode

106
ensaios para uma teoria da sexualidade”, Freud mostrou que, para cada um de nós, a
constituição de um regime de gozo dá-se a partir da interação contingente das tendências
constitucionais do sujeito e dos acidentes na história de seu desenvolvimento
sexual. Dito de outro modo, a constituição de um determinado regime de gozo ocorre em
função do encontro de um corpo que goza com a estrutura de linguagem, a qual,
traduzindo o gozo nos termos do significante, determina certa maneira do sujeito de se
satisfazer com seu inconsciente.
Assim, se das Ding não deve ser pensada como objeto da experiência, já que
Lacan insiste em seu estatuto mítico, tampouco pode ser considerada uma condição a
priori, separada do fato empírico, já que o gozo é propriedade do corpo vivo,
indissociável da realidade sensível.
O que se torna evidente, nessa construção, é que a autonomia do simbólico, tão
difundida anteriormente, encontra-se agora limitada pela satisfação corporal. E o
inconsciente, antes pensado como “estruturado como uma linguagem”, passa a ser
considerado o ponto de articulação entre a estrutura significante e o gozo do corpo,
incapaz de encontrar um lugar nas trocas simbólicas.
Através da noção de das Ding, Lacan reconhece a existência de um gozo que
persiste para além do sistema de significantes que constituem o lugar do Outro. Não se
trata mais de um gozo relativo ao narcisismo e à gestalt do corpo imaginário, mas relativo
ao real do corpo, que se define numa topologia precisa: a de extimidade (exterioridade
interior) (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 167). A Coisa apresenta-se como o núcleo do
inconsciente - causa da cadeia significante – e, ao mesmo tempo, como o que, do
inconsciente, permanece apartado. O gozo faz referência ao que se situa fora da lei, ao
que excede o registro do simbólico, e, ao mesmo tempo, designa o núcleo obscuro de
nosso ser.
No Seminário A ética da psicanálise, mais uma vez Lacan aproxima o ser do
campo do gozo, além de afirmar a noção ontológica da pulsão (LACAN, J. 1959-
60/1986, p. 153). Essa perspectiva irá conduzi-lo a situar a discussão a respeito do ato
analítico nesse ponto de tensão entre o ser (o gozo) e o pensamento (a linguagem).

ser tomado na perspectiva inversa, quando consideramos que o trabalho significante é pago com o
excedente de gozo, denominado por Lacan “mais-de-gozar”. Assim, em 1969-70, o significante produz
gozo ao invés de funcionar como uma barreira para ele.

107
Gostaríamos apenas de assinalar que, seja do ponto de vista do interior, seja do
exterior, o gozo, no Seminário VII, só pode ser abordado a partir de sua perda, o topos do
sujeito instituindo-se como radicalmente separado do topos da Coisa.
Nesse momento, o gozo, representado por das Ding, é um gozo impossível,
campo interditado ao sujeito, ao qual ele só pode aceder pelo ato heróico ou pela
transgressão (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 208). Veremos, em seguida, que a elaboração
do conceito de objeto pequeno a, tornará manejável o gozo maciço e proibido
representado por das Ding, compatibilizando-o com o funcionamento da cadeia
significante. A partir daí, minimiza-se a dicotomia entre o sujeito do inconsciente, termo
57
simbólico, e o gozo, em função da relação instituída entre os dois registros , o que
tornará possível a concepção do ato analítico. O ato supõe algum tipo de incidência no
campo da Coisa, sem que isso represente para o sujeito uma transgressão, no sentido
como ela é tomada no Seminário VII.
Sendo assim, esperamos ter sido capazes de demonstrar que, embora as teorias do
significante e do desejo tenham enfatizado, num determinado momento, o caráter
universal e a priorístico da estrutura de linguagem, além de seu funcionamento lógico e
necessário, isso não esgota o alcance do programa de Lacan. A fundamentação da lei do
desejo no gozo corporal apresenta-se como uma objeção sólida a esse tipo de
interpretação, além de subverter a concepção da causalidade psíquica, confundida com o
determinismo que a linguagem impõe ao sujeito.
Persistindo nessa via, Lacan, no Seminário A angústia, em que inicia a
formulação do seu objeto a, dá consistência à perspectiva do gozo do corpo que é
perdido, constituindo-se, em seguida, como causa do desejo. Esse é um ponto de vista
que ele faz surgir, no Seminário VII, e que podemos reconhecer também nas passagens do
Seminário X que se seguem:

O objeto a é o que resta de irredutível na operação total do advento do


sujeito no lugar do Outro (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 189).

57
Este ponto é explicitado com muita clareza, por Miller, no texto “Os seis paradigmas do gozo”.

108
A função da circuncisão, na economia do desejo, é a do objeto, no sentido
em que a análise o funda como objeto do desejo (LACAN, J. 1962-63, p.
247).

O objeto a, perdido, presentifica uma relação essencial com a separação


(LACAN, J. 1962-63/2004, p. 247).

A fundação do desejo tem relação com o fato de que há sempre no corpo,


pelo fato do engajamento no significante, algo de separado, de inerte, que
é a libra de carne (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 254).

O objeto a é o que há de mim mesmo no exterior, não porque foi


projetado, mas porque me foi cortado (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 258).

A relação do homem com o desejo só se anima, na medida em que é


concebível o despedaçamento do corpo próprio (LACAN, J. 1962-
63/2004, p. 273).

O que nos importa destacar, com a transcrição dessas passagens, é que a noção de
causalidade psíquica, a noção de causa do desejo, para Lacan, transformou-se claramente
nesse momento. Se a ação da cadeia significante se origina de uma experiência de
satisfação corporal, encontrando aí sua impulsão inesgotável, a causa do funcionamento
58
psíquico não pode se restringir ao automaton . Ela deve, ao contrário, incluir o objeto,
seu elemento propulsor.

58
No livro A Física, Aristóteles expõe sua teoria das causas, particularmente nos capítulos IV e V. Ele diz
que o automaton (termo traduzido por acaso) e a tyche (termo traduzido por fortuna) são causas acidentais.
Ambos dizem respeito a acontecimentos que se produzem raramente, de modo excepcional. A diferença
entre a fortuna e o acaso é que esse último é desprovido de uma finalidade adequada ao resultado e provém
de um ser incapaz de escolha (automatom significa em vão, ou aquilo que se move por si mesmo),
enquanto, na fortuna, está implicada o pensamento e a escolha. O automaton pressupõe uma ordem natural
em ralação à qual ele se apresenta como exceção, e a tyche se caracteriza pelo encontro de duas séries
causais, cada uma perfeitamente determinada, o caráter de excepcionalidade referindo-se ao encontro de
uma com a outra. Lacan retoma, no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, as noções
aristotélicas de tyche e automatom de maneira muito particular. Para Lacan o automatom é o eterno retorno

109
O objeto, causa do desejo, mantém-se inassimilável à lei da linguagem e, se isso
ocorre, lembra Lacan, é porque, “em sua função, ele permanece idêntico ao pedaço de
nossa carne, preso na máquina formal, sem a qual o formalismo lógico não seria nada”.
Tal citação nos mostra com clareza que, para Lacan, o objeto só se constitui como o
autêntico substrato da função da causa, na medida em que apresenta uma equivalência
com os objetos perdidos, nos diferentes níveis da experiência corporal. (LACAN, J.
1962-63/2004, p. 249).
Aqui, estamos longe do período em que o interesse de Lacan era o de colocar em
relevo o funcionamento lógico do inconsciente. No momento, o que lhe interessa é
ressaltar que a lógica do significante não significa nada quando esquecemos que a razão
de seu funcionamento é a exigência de trabalho apresentada pelo corpo ao psiquismo.
Fiel a esse ponto de vista, Lacan afirma que é preciso trazer a dialética da
causação do desejo ao corpo, que oferece em sacrifício uma libra de carne em razão de
seu engajamento na linguagem (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 254). A esse processo,
Lacan dá o nome de sépartition fundamental. Neologismo da língua francesa que conjuga
os termos separação e partição, oferecendo outro nome para a castração, a qual se
inscreve na origem da estruturação do desejo (LACAN, J 1962-63/2004, p. 273).

4- A sépartition e o corpo como causa no Seminário XI – Merleau Ponty, Platão e o


Fort-da freudiano.

A noção de sépartition é retomada de modo incansável, por Lacan, no Seminário


Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, onde ele pretende esclarecer as
condições da dupla constituição do sujeito e do objeto.
O Seminário XI encerra uma série de apresentações da sépartition, introduzidas
sucessivamente ao longo das aulas, entre elas, a discussão a respeito das operações de
alienação e separação, constituintes do sujeito; o comentário sobre o Fort-da freudiano; a
apresentação do mito dos andrógenos divididos em O Banquete de Platão; e o diálogo
estabelecido com o livro O visível e o invisível, de Maurice Merleau-Ponty.

dos signos. É a repetição da cadeia significante que determina o sujeito, ou seja, o automatom é a causa
significante. Já a tyche é a causa acidental. Ela designa o real como encontro faltoso.

110
O interesse de Lacan por Merleau-Ponty, por exemplo, deve-se ao fato de que o
filósofo é um pensador que afirma o corpo como fonte da experiência sem recorrer a
nenhuma consideração biológica ou antropológica (MERLEAU-PONTY, M. 1964, p.
179, 184).
Merleau-Ponty acredita que, antes da constituição do campo do sujeito e do
objeto, já existe algo que determina a relação com o mundo: a “carne”, que antecede a
ordem do humano e que preside a distinção entre o visível e aquele que vê.
Lacan, no Seminário XI, introduz seus ouvintes na perspectiva de Merleau-Ponty,
dizendo que seu intuito é o de reconstituir a via pela qual, da “carne”, surge o ponto
original da visão. É o de “buscar a substância inominada de onde eu mesmo, aquele que
vê, me extraio” (LACAN, J. 1964/73, p. 77). Ou seja, o que é privilegiado, por Lacan, é a
constituição do sujeito e do objeto a partir de algo que se processa na “carne”, no corpo.
Lacan, na passagem que acabamos de citar, refere-se a trechos de O visível e o
invisível, nos quais Merleau-Ponty afirma que o corpo vê e também é visto. Por um lado,
o corpo faz parte das coisas sensíveis, na medida em que é visto, mas, ao mesmo tempo,
experimenta o mundo, pois vê o mundo e seus objetos. E é assim que Merleau-Ponty
pode sustentar que o ato da visão reúne as coisas percebidas e o corpo que percebe
(MERLEAU-PONTY, M. 1964, p. 178, 180, 181).
Na interpretação de Lacan, o ponto de interseção entre os dois registros
destacados (o registro do corpo que faz parte das coisas sensíveis e o registro do corpo
que experimenta o mundo) prefigura algo do objeto pequeno a. Prefigura, mais
exatamente, sua dupla pertinência à ordem do mundo e à ordem do sujeito.
Essa idéia tem a ver com a concepção lacaniana segundo a qual o objeto a é
aquilo que, do corpo, cai entre o sujeito e o Outro. A extração do objeto pequeno a
apresenta-se como condição para a constituição do campo do sujeito como distinto do
campo do Outro. E o ponto de confluência, de interseção, entre os dois campos é,
precisamente, o que Merleau-Ponty destaca em sua discussão.
A topologia do objeto (corpo que é visto) e do sujeito (corpo que vê), apresentada
como o verso e o reverso, é o que Merleau-Ponty traz ao primeiro plano em seu livro O
visível e o invisível, indicando a dobradura do visível sobre aquele que vê. A “carne”,
elemento pré-subjetivo, dobrando-se sobre ela mesma, torna-se aquele que vê, visível,

111
constituindo-se, ao mesmo tempo, como o visível que vê (MERLEAU-PONTY, M. 1964,
p. 179, 180, 182, 183).
Não é necessário dizer que essa é a perspectiva que se obtém com a garrafa de
Klein, superfície de única face, com ausência de bordas, o que torna impossível a
distinção entre o interior e o exterior. A garrafa de Klein é o modelo topológico que
inspira Lacan quando afirma a relação de extimidade entre sujeito e objeto, que já havia
sido apontada no Seminário VII.
A constituição do sujeito e do objeto, a partir de uma transformação sofrida na
“carne” ou no corpo, é evocada do mesmo modo em seu comentário sobre o jogo do
Fort-da.
Lacan diz que, a interpretação freudiana da brincadeira, segundo a qual a criança
tampona o efeito do desaparecimento da mãe, saindo da posição passiva e tornando-se
agente, é algo inteiramente secundário no jogo. O fato principal a ser recolhido na
experiência é o de que a hiância, introduzida pela ausência da mãe, torna-se causa de um
traçado centrífugo onde cai o carretel, que permanece, no entanto, ligado ao sujeito por
um fio (LACAN, J. 1964/1973, p. 60).
Desse modo, não se trata de pensar que, no jogo, o carretel represente a mãe,
afastada e reaproximada reiteradamente pela criança. O lançamento do carretel deve ser
tomado, de preferência, como uma “coisinha” que se destaca do sujeito, exprimindo a
auto-mutilação sofrida, como condição para que a ordem da significância se coloque em
perspectiva (LACAN, J. 1964/1973, p. 60).
Assim, o conjunto da atividade lúdica encena uma repetição, mas não se trata da
repetição da necessidade da mãe, a qual poderia exprimir-se simplesmente com um grito.
Trata-se, antes, da repetição da hiância provocada pela partida da mãe, que se torna causa
do primeiro par significante com o qual o sujeito se faz representar no campo do Outro,
pagando o preço de se fazer mutilar.
É de se notar que Lacan, na passagem mencionada, utiliza o termo “mutilação”,
referindo-se a uma parte do corpo do sujeito que deve ser perdida no momento de seu
ingresso na ordem da linguagem. A idéia da mutilação é retomada posteriormente, no
mesmo seminário, no contexto da fala de Aristófanes proferida em O banquete de Platão,
e na discussão sobre o mito da lâmina.

112
Aristófanes conta que, em tempos passados, existiam três, e não dois gêneros, na
humanidade. Além do masculino e do feminino, havia também o andrógeno, que tinha o
dorso redondo, quatro mãos, quatro pernas, dois sexos e dois rostos que constituíam uma
única cabeça.
Os andrógenos dispunham de uma força imensa, e, por causa disso, eram
extremamente presunçosos, a ponto de considerarem a idéia de investir contra os deuses.
Diante disso, Zeus encontrou uma maneira de enfraquecê-los: decide cortá-los ao meio e,
em cada um que cortava pedia a Apolo para voltar o rosto para o lado do corte, a fim de
que, contemplando a própria mutilação, se tornassem mais moderados. Apolo, então,
torcia-lhes o rosto e puxando a pele de todos os lados na direção do ventre, amarrava-a no
que hoje chamamos de umbigo. O sexo foi mantido para o lado de fora, pois eles
geravam e se reproduziam não um no outro, mas na terra.
Depois da mutilação da natureza andrógena em duas, cada uma passou a ansiar
por sua outra metade e a ela se unia ardorosamente. No afã de se confundirem, morriam
de fome e de inércia, porque não queriam fazer nada longe um do outro. E quando morria
uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava,
quer se encontrasse com a metade mulher, quer se encontrasse com a metade homem.
Assim, Zeus, movido pela compaixão, decide mudar, em cada metade, a posição
do sexo para frente, fazendo com que se processasse a geração um no outro (o homem na
mulher). Desse modo, quando, no enlace, um homem encontrava uma mulher, ocorria a
fecundação e a raça aumentava e quando um homem encontrava outro homem havia ao
menos a saciedade e eles podiam então repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto
da vida.
Segundo Aristófanes, essa é a origem do amor na raça humana, que não visa
senão restaurar nossa antiga natureza, fazendo um só de dois e curando a ferida da
mutilação sofrida.
59
Como é possível perceber, a libra de carne perdida em razão do ingresso do
sujeito no campo da linguagem é imaginarizada no mito relatado por Aristófanes, em O

59
A expressão “libra de carne” é uma referência extraída da peça de William Shakespeare, “O mercador de
Veneza”. O enredo da peça gira em torno de uma dívida contraída por um importante comerciante de
Veneza, que em função de um acordo, seria saldada com um pedaço de carne cortado de seu peito, caso ele
não pudesse retribuir o dinheiro emprestado.

113
Banquete de Platão. Do mesmo modo que é figurada, por Lacan, na idéia da lâmina,
apresentada como aquilo que é subtraído do ser vivente em razão de sua submissão ao
ciclo da reprodução sexuada.
Todos os exemplos que analisamos – a “carne” de Merleau Ponty, o carretel do
jogo do Fort-da, a cara-metade irrevogavelmente perdida do mito de Aristófanes e,
finalmente, a lâmina - são diferentes formas assumidas pelo objeto a, no Seminário XI.
São os elementos equivalentes daquilo que se perde (LACAN, J. 1964/1973, p. 179, 180).
Todas as situações que acabamos de descrever são variações sobre um mesmo
tema de que se ocupa intensamente Lacan nesse momento, qual seja, a demonstração de
que a lógica significante se funda na castração, entendida como algo do corpo vivo que o
sujeito perde em função de sua mortificação pela linguagem 60. E devemos ressaltar que,
não apenas a noção de causalidade psíquica se transforma sob essa nova perspectiva, mas
também o conceito de inconsciente e o de interpretação.
A consideração de que a estrutura de linguagem do inconsciente apóia-se no gozo
do corpo, perdido em razão da castração, e não subsumido nas trocas simbólicas, resulta
na concepção do inconsciente como hiância, como vazio, que Lacan associa ao que Freud
chamou de umbigo dos sonhos (LACAN, J. 1964/1973, p. 26).
É assim que Lacan nos apresenta o inconsciente no Seminário XI. O termo hiância
é tomado de uma frase de Kant, encontrada nos Prolegomenos, na qual o filósofo afirma
a existência de uma hiância na função da causa (LACAN, J. 1964/1973, p. 24). Esse fato
atesta que, o que se encontra em questão para Lacan, ao designar o inconsciente como
hiância, é sua articulação com o objeto causa.
A consideração do inconsciente como hiância está diretamente relacionada à
concepção do corpo como causa da ordem da significância. Nesse momento, Lacan
prioriza a concepção do inconsciente como ruptura, como causa, em detrimento da
concepção do inconsciente como regularidade ou como lei.
Essa é a razão pela qual Lacan, depois do Seminário VII, se dedica em vários
momentos de seu ensino à revisão do conceito de causa em psicanálise, trazendo ao

60
Remetemos os leitores às elaborações de Miller acerca do corpo vivo mortificado pela linguagem, no
livro O osso de uma análise.

114
61
primeiro plano o aspecto do inconsciente relacionado à tyche , à contingência, à
descontinuidade e ao acontecimento.
A referência à causa é encontrada em trabalhos como O Seminário A angústia, O
Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, “A posição do inconsciente”
e “A ciência e a verdade”.
Nesses trabalhos, Lacan apresenta uma concepção da causalidade psíquica distinta
do sentido (aspecto destacado em “Formulações sobre a causalidade psíquica”) e da
sobre-determinação significante (aspecto ressaltado em “O Seminário sobre ‘A carta
roubada”’ e “A instância da letra ou a razão depois de Freud”), o que termina por alterar a
perspectiva da intervenção do analista no tratamento.

4.1- O corpo-causa contingente e a sobre-determinação simbólica necessária.

Se, em seu ensino, a causa foi inicialmente associada ao sentido, e,


posteriormente, ao significante, Lacan, a partir de um determinado momento, refere a
causa à divisão que o sujeito sofre em razão do objeto a. Isso significa que a causa deixa
de ser pensada inteiramente no registro do simbólico, para se reportar, a partir de então,
ao que excede a lei da linguagem.
O que transforma a concepção de causalidade psíquica, em Lacan, é a constatação
de que a estrutura de linguagem que constitui o inconsciente não é integralmente
determinada por suas regras, mas se organiza essencialmente em torno de uma falha,
representada, inicialmente, por das Ding e, mais tarde, pelo objeto a. Tal constatação leva
Lacan a dizer, referindo-se a Kant, que nenhum a priori foi capaz de reduzir a função da
causa (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 249).
Para compreendermos essa afirmação, é preciso conhecer um pouco do debate,
tecido pelo pensamento moderno sobre a causa. Enquanto o racionalismo, que teve
Descartes como um de seus representantes mais eminentes, concebeu a causa como
ligação necessária e lógica entre dois fenômenos, o empirismo, na figura de Hume,
questionou radicalmente a causa como princípio que provoca, de modo obrigatório, uma
determinada consequência.

61
Já esclarecemos anteriormente o termo tyche, quando comentamos a respeito do automatom.

115
O ponto de vista de Descartes é o de que há uma identificação entre causa e razão.
A causa é o que dá a razão do efeito, e é assim que ele a concebe quando, definindo seu
método como analítico, afirma que esse método demonstra como os efeitos dependem
das causas.
Para Descartes, afirmar a ligação de causalidade entre dois fenômenos significa
admitir que o acontecimento produzido como efeito (a consequência) já está incluído no
primeiro acontecimento que desempenha a função de causa, podendo ser a priori
deduzido dele. Descartes pensa o encadeamento dos fatos conforme o modelo das
demonstrações lógicas: a relação causal é uma relação de dedução, independente da
experiência. Da causa, deve-se poder deduzir racionalmente o efeito, e é o que se deduz
efetivamente.
No que diz respeito a Hume, o ponto fundamental de sua crítica ao racionalismo é
a não-dedutibilidade do efeito a partir da causa. Ele nega que entre causa e efeito haja tal
ligação.
Iludimo-nos, diz o filósofo, crendo que, se fossemos trazidos repentinamente a
este mundo, poderíamos deduzir imediatamente que uma bola de bilhar pode comunicar
movimento a uma outra. Mesmo supondo que nos ocorresse o pensamento de que o
movimento da segunda bola é resultado do choque entre as duas, poderíamos também
conceber a possibilidade de mil outros acontecimentos diferentes, como por exemplo, que
ambas as bolas permanecessem paradas, que a primeira voltasse para trás em linha reta,
ou, ainda, que escapasse por um dos lados numa direção qualquer. Todas essas
possibilidades são coerentes e concebíveis, e aquela que a experiência demonstra ser a
verdadeira não é mais coerente ou concebível do que as outras (HUME, D. 1748/1973,
p.139).
A posição que Hume quer defender é a de que os raciocínios a priori não têm
nenhum direito a qualquer preferência, sendo inútil tentar predizer qualquer
acontecimento ou inferir qualquer causa ou o efeito sem o auxílio da observação ou da
experiência (HUME, D.1748/1973, p. 139). Em sua opinião, não podemos antecipar
nenhum efeito, nem definir qualquer causa, sem experimentar os acontecimentos com
nossos sentidos. Só é possível dizer que um acontecimento é efeito de outro, quando, na

116
experiência sensível, tivemos a oportunidade de experimentar regularmente a associação
entre os dois fenômenos (HUME, D. 1748/1973, p. 145, 150).
Sob esse ponto de vista, quando afirmamos que o toque de uma bola de bilhar em
outra é causa de seu deslocamento, a fonte dessa conclusão nada mais é do que o hábito
engendrado pela repetição, não existindo nenhuma justificação racional e nem mesmo
empírica para a ligação causal entre os dois acontecimentos (HUME, D. 1748/1973, p.
145). Trata-se de dois acontecimentos distintos, e a relação entre eles é inteiramente
contingente. O que faz parecer que entre eles existe uma relação necessária é a repetição
da observação da situação.
Para o impasse entre o racionalismo e o empirismo, Kant propõe uma solução que
termina por fazer uma síntese entre as duas correntes de pensamento. Por um lado, o
pensador concede aos empiristas que a ligação causal não é uma evidência racional, por
outro, sustenta que ela não é meramente um fato empírico.
Na opinião de Kant, a causalidade resultaria de uma síntese entre a matéria que
nos é fornecida pela experiência e a forma a priori dada pelo espírito. Embora a noção de
causalidade necessite dos dados sensíveis, ela nada seria sem os conceitos que colocam
em relação os objetos percebidos (KANT, I. 1787/1953 20).
Por um lado, o entendimento necessita dos dados da sensibilidade, sem os quais
não poderia estabelecer nenhuma relação de causalidade, mas, por outro, a unificação dos
dados do mundo sensível, que torna possível a dedução da causalidade, é um ato do
entendimento, não sendo encontrado na experiência empírica e não sendo tampouco o
resultado do hábito (KANT, I. 1787/1953, p. 39).
Essa breve exposição do debate sobre a causa, na modernidade, não foi feita em
vão. Nosso objetivo foi o de elucidar a posição de Lacan quando este afirma, retomando
Kant, que nenhum a priori foi capaz de reduzir a função da causa. Isso significa que
pensar a função da causa, requer a consideração de algo que escapa ao aspecto necessário
das relações analíticas propostas por Descartes, que supõe que o efeito pode ser deduzido
a priori da causa, por estar nela incluído. Lacan reitera nessa passagem, a posição
segundo a qual o pensamento sobre a causa deve considerar a dimensão da contingência
apontada por Hume na perspectiva empirista que descrevemos acima.

117
A localização da causa no registro da contingência é fundamental para a
experiência e para a ética da psicanálise. E, devemos entender a afirmação de Lacan que
sustenta que nenhum a priori foi capaz de reduzir a função da causa, como uma
redefinição da noção de causalidade psíquica em seu ensino.
A principal conseqüência dessa tomada de posição foi o reconhecimento de que a
estrutura a priorística da linguagem é insuficiente para responder inteiramente pela
causação do sujeito. Isso colocou em evidência que a causa, em psicanálise, não se
solidariza com a perspectiva de um determinismo, do qual o sujeito é simplesmente
derivado como efeito. A causa em psicanálise distinguindo-se do determinismo
significante, por implicar algo de irredutível à lei da linguagem62.

4.2- A causa e a lei.

No Seminário XI, por exemplo, apoiando-se na reflexão de Kant desenvolvida em


“Ensaio sobre as grandezas negativas” 63, Lacan ressalta a diferença entre a causa e a lei.
Como se sabe, a ciência fala de leis e não de causas, já que a noção de causa mostra-se
refratária à matematização característica da ciência moderna 64.
As leis científicas estão relacionadas a algum tipo de determinação. Do ponto de
vista da ciência, dizemos que um problema é determinado, quando ele pode ser
decomposto em variáveis, que se relacionam conforme uma regra matemática. Graças a
essa regra, uma vez conhecido o estado de um fenômeno num determinado instante,
torna-se possível a previsão de sua evolução (LUSTOZA, R. 2006, p. 29, 30).
Contrapondo a causa ao determinismo da lei, Lacan diz que, enquanto na lei
encontramos uma cadeia de determinação absoluta, na causa, há algo de anticonceitual e

62
Isso aparece com clareza na discussão efetuada por Lacan no segundo capítulo do Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise, bem como em seu texto “Posição do inconsciente”.
63
Neste ensaio Kant admite que a causa não se deixa reduzir a nenhum tipo de julgamento (KANT, I.
1762-70/2005. São Paulo: UNESP)
64
Aqui, remeto os leitores à tese de doutorado de Rosane Lustoza, orientada pela Professora Ana Beatriz
Freire, e defendida em 2006 no Programa de Teoria Psicanalítica da UFRJ. No trabalho entitulado “O
problema da causalidade psíquica”, a autora demonstra, recorrendo a autores como Russel e Blanché, a
inadequação do conceito de causa ao campo da ciência, devido à sua falta de precisão, à sua origem
antropomórfica e à sua filiação ao pragmatismo. A racionalidade da ciência moderna tendo substituido a
noção de causa pela de funcionalidade, que possibilita a quantificação das variáveis, a reversibilidade da
relação entre elas e a matematização de uma regra que expressa esta relação (LUSTOZA, R. 2006, p. 23-
33).

118
de indefinido. Na causa, há um buraco, algo que vem oscilar no intervalo. Já a lei indica
sempre uma regularidade, um desdobramento que é necessário, que não pode ocorrer de
outro modo. A causa, no entanto, contraria toda expectativa, não admitindo nenhum tipo
de previsão ou de antecipação, de onde se conclui que entre a causa e o que ela afeta
encontramos sempre claudicação (LACAN, J. 1964/1974, p. 25).
No texto “A posição do inconsciente”, Lacan sustenta que o sujeito não é causa
de si mesmo, sua causa é o significante, que o divide (LACAN, J. 1960/1966, p. 835).
Nota-se que ele mantém sua posição anterior, segundo a qual a verdadeira causa do
sujeito é a linguagem; o que muda, agora, é a ênfase que recai sobre o efeito fundamental
do significante sobre o sujeito: sua divisão.
Isso significa que a causalidade psíquica passou a ser pensada em função de dois
registros, que, nas palavras do próprio Lacan, são: a eficácia da retroação significante e o
objeto que subordina o sujeito ao efeito do significante (LACAN, J. 1960/1966, p. 839).
Lacan associa cada um desses registros a uma das operações fundamentais que
causam o sujeito. A sobre-determinação significante tem relação com a alienação do
sujeito na linguagem e a causa está ligada à operação de separação que subtrai algo do
corpo do sujeito, instaurando, assim, a constância da pressão da pulsão. De acordo com
Lacan, somente na segunda operação, a de separação, se conclui a constituição do sujeito
(LACAN, J. 1960/1966, p. 842).
Desse modo, a causalidade psíquica para Lacan, nesse momento, situa-se na
relação dialética entre a determinação simbólica do sujeito (aspecto necessário da
estrutura) e o objeto (dimensão do acidental, do contingente e do aleatório). Como já
assinalamos, essa posição foi a consequência do reconhecimento da insistência, no
psiquismo, de algo heterogêneo ao significante: o objeto, causa de desejo, que atua
acionando o processo de significantização (LACAN, J. 1962-63/2004, p. 120).
A oposição entre a determinação simbólica e a causalidade objetal
(indeterminada) atinge não apenas o conceito de inconsciente, mas também o de
repetição que, no Seminário XI, passa a incluir a relação do sujeito com o real. Neste
registro, a oposição entre a ordem da lei e da causa é retomada como oposição entre o
automaton (insistência dos signos) e a tyche (encontro com o real), em uma leitura muito
particular que Lacan faz da teoria das causas em Aristóteles.

119
Assim, todo o Seminário XI parece girar em torno da perspectiva de que, na
realidade psíquica, temos a lei da cadeia significante e o objeto, situado no nível inicial
de instauração dessa lei (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 77). Lacan aproxima a lei da
sobre-determinação significante e a causa do objeto, afirmando que “o objeto a ser
reencontrado dá à busca sua lei, mas não regula seus trajetos” (LACAN, J. 1959-60/1986,
p. 72). Ou seja, a causa oferece uma orientação para a repetição dos signos, mas não
define seus modos de associação, distinguindo-se do que há de determinante na cadeia.
Tomemos como exemplo a lei da gravitação universal. Quando a examinamos,
somos levados a admitir que todo corpo terrestre que cai obedece à equação proposta por
Newton: “a força da gravidade é proporcional às massas dos dois corpos que se atraem e
inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles”.
O exemplo que Lacan fornece para ilustrar a causa, no entanto, é o da relação
existente entre as fases da lua e as marés 65 (LACAN, J. 1964/1974, p. 25). Sabemos que
as fases da lua influenciam as marés, mas essa influência não é absoluta. Existem
oscilações em função de outros fatores intervenientes, como a atração gravitacional do
sol, a influência desviante da rotação da terra, a localização e o perfil do fundo do mar (os
dois últimos produzindo, em certos locais, correntes de maré).
Esse é o aspecto ressaltado por Lacan, quando ele diz que, na causa, há algo que
manca, permanecendo indefinido. Isso significa que a causa se distingue da regularidade
da lei, instaurando uma margem de liberdade que tolera a contingência e a variação.
No que se refere à causalidade psíquica, diremos, então, que a causa é o que se
subtrai da cadeia significante, descompletando a estrutura de determinação simbólica do
sujeito. E o que se torna evidente é que Lacan, ao referir a causalidade psíquica não
apenas à sobre-determinação significante, mas também ao objeto, renuncia de modo
inequívoco a adotar o determinismo como via de conceituação do sujeito e da intervenção
do analista.

65
A maré é o movimento periódico de elevação e declínio das águas do mar em relação a uma referência
fixa no solo que ocorre em função da atração gravitacional da lua e também do sol, embora em grau muito
menor. Essa atração faz com que as águas do oceano avancem ligeiramente sobre a parte da terra que se
encontra mais próxima à lua e também sobre a parte diametralmente oposta. A atração sobre as águas é
mais forte quando terra, lua e sol estão alinhados, na lua cheia ou noval, e mais fraca quando formam
ângulo reto (durante o primeiro e último quadrante lunar). A maré oscila em torno do nível do mar, que
varia em muitos lugares da terra.

120
Aqui, podemos nos perguntar: por que Lacan rompe com o determinismo, tão caro
ao estruturalismo que inspirou de maneira fecunda sua concepção do inconsciente
estruturado como uma linguagem? E ainda: por que Lacan recupera, na teoria
psicanalítica, a noção de causa, avessa à ciência, quando sabemos que uma das teses
fundamentais de seu pensamento é a de que ciência moderna é condição de possibilidade
do inconsciente e da psicanálise?
A razão da re-introdução do conceito de causa, na psicanálise, foi-nos dada pelo
próprio Lacan quando disse: “Não é a primeira vez, nem a última, que terei que apontar
que, se a função da causalidade se mantém após dois séculos de apreensão crítica, é bem
porque ela está num outro lugar do que aquele onde se a refuta” (LACAN, J. 1962-
63/2004, p. 92). Daí, podemos deduzir que a noção de causa preserva seu valor num
domínio diferente daquele da ciência: o da ética.
Na realidade, a apreensão da causa do desejo como o lugar indecidível do qual se
descompleta a estrutura de linguagem determinante do sujeito é o que torna possível a
compatibilização da perspectiva estruturalista do pensamento lacaniano com a
perspectiva ética inerente à práxis psicanalítica e a seu ato. Teria sido impossível, para
Lacan, a elaboração de uma ética específica da psicanálise, referindo-se apenas ao
aspecto necessário da combinatória significante, já que a dimensão ética resiste à
literalização lógica.
O objeto, apresentado como uma falha na sobre-determinação simbólica, é o que
restitui certa margem de liberdade ao sujeito para que este possa se posicionar diante
daquilo que o determina. A partir desse ponto, o sujeito, que não é mais apenas um efeito,
deve responder pelo que não é totalizável no saber inconsciente. Esse fato institui a
perspectiva da liberdade, da decisão e da responsabilidade própria ao pensamento ético.
Só assim podemos compreender a pertinência da distinção entre causa e lei para a
orientação ética da psicanálise, a qual, segundo Lacan, coloca em questão a relação do
homem com o real (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 21). Só assim podemos entender a
afirmação de Lacan que sustenta que a experiência moral, em questão na psicanálise,
refere-se ao imperativo freudiano Wo es war soll ich werden. Tal injunção convoca o
sujeito a advir e a se interrogar sobre o que ele quer em relação ao objeto causa de seu
desejo (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 15, 16).

121
A menção às relações entre a causa e a lei e suas conseqüências para a ética da
psicanálise assumirão todo o seu valor no próximo capítulo. Dissemos, na introdução do
trabalho, que não tínhamos intenção de fazer uma discussão sobre a ética da psicanálise,
tomada em seu aspecto geral. O objeto de nossa investigação é o ato do analista e a ética
que nos interessa é aquela referida especificamente a este ato. Ocorre que a perspectiva,
que acabamos de introduzir, é essencial para Lacan elaborar o conceito de ato analítico,
que supõe o sujeito dividido entre a lei e o que o causa, entre o significante e o objeto,
entre o pensamento e o ser. Todavia, antes de adentrarmos propriamente na discussão
sobre o ato, vamos nos deter um instante para observarmos as modificações que sofre a
noção de interpretação, em decorrência da introdução da perspectiva do inconsciente-
hiância, que tem o corpo como causa.

5- Interpretar o inconsciente que inclui o corpo como causa

Como seria interpretar o inconsciente-hiância, cuja causa é o corpo?


Começaremos dizendo que, no Seminário XI, Lacan trava um debate com a
hermenêutica. A hermenêutica, como todos sabem, é uma técnica de interpretação que
busca encontrar a significação oculta de um texto. Lacan, no mencionado seminário,
pretende diferenciar a interpretação analítica desta última, e o elemento que ele elege para
demarcar tal diferença é o fato de que a hermenêutica, ao contrário da interpretação em
análise, desenvolve-se na via da significação (LACAN, J. 1964/1973, p. 12, 13, 141).
Sabemos que Lacan, inicialmente, vinculou a teoria da interpretação a um
significado recalcado, associado ao significante do sintoma, em “Função e campo da fala
e da linguagem”. Posteriormente, ele a relacionou a uma significação que se produz pelo
ponto de estofo, provocando o reposicionamento do sujeito na cadeia, em “A instância da
letra ou a razão depois de Freud”. É, então, surpreendente que Lacan anuncie agora que a
interpretação analítica não guarda relação com a significação.
Essa afirmação indica que suas premissas para situar a interpretação mudaram e,
em nossa opinião, isso acontece porque, como já dissemos, o próprio conceito de
inconsciente mudou. A interpretação, no Seminário XI, refere-se ao inconsciente que não

122
é mais definido como “estruturado como uma linguagem”, e, sim, como hiância
associada à função da causa (LACAN, J. 1964/73, p. 25, 31, 47).
Lacan nunca havia definido o inconsciente deste modo. Aproximar a estrutura do
inconsciente da estrutura de borda das zonas erógenas é algo novo, e acentua aquilo que,
no inconsciente, fura a cadeia significante do inconsciente.
Assim, podemos dizer: a hiância que, no Seminário XI, organiza o inconsciente, é
uma nova leitura do que havia sido assinalado em “A subversão do sujeito” como S(A).
Naquele texto, o S(A) foi associado a um significante que se apresentava em uma relação
de exterioridade em relação ao conjunto dos significantes. O S(A) fazia referência ao fato
de que falta um significante no campo do Outro, o que impede que o conjunto dos
significantes seja um conjunto completo, total. A falta no campo do Outro, naquele
momento, não era associada à causalidade psíquica.
A formulação de das Ding e do objeto pequeno a, que introduz o corpo como
causa do funcionamento significante, favorece, no entanto, outra leitura do S(A). Torna-
se possível pensar que o que descompleta o campo do Outro não é mais um significante
situado numa posição de exceção em relação a todos os outros significantes, mas a
satisfação corporal, que se encontra na origem do automaton e não é subsumida
integralmente pelo simbólico.
A hiância instaurada pelo objeto, na constituição mesma do inconsciente, é o que
faz com que Lacan, logo no início do Seminário XI, defina a psicanálise como a ação que
tem por função o tratamento do real pelo simbólico (LACAN, J. 1964/1973, p.11).
Chamamos atenção para o fato de que, aqui, ele refira de forma inequívoca o ato do
analista ao real em jogo no inconsciente.
Diferente da interpretação hermenêutica, onde o sentido é submetido a uma
infindável elaboração e não há ponto de parada definitivo e nenhuma referência final à
verdade, a interpretação analítica visa ao objeto, à dimensão real da verdade, que produz
um ponto de basta no deslizamento infinito do sentido.
Outra passagem do Seminário XI corrobora essa nova perspectiva. Trata-se de um
trecho em que Lacan comenta um sonho analisado por Freud em A interpretação dos
sonhos de um pai, que dormia depois de ter cuidado do filho, agora morto, durante sua
longa doença.

123
O homem, exaurido pela vigília extenuante, havia contratado um velho para velar
o menino, enquanto repousava no quarto contíguo, com a porta aberta, de maneira a
enxergar o aposento onde jazia o corpo, com velas ao seu redor.
Nessas circunstâncias, uma vela caída por acidente dá início a um pequeno
incêndio, provocando um sonho no qual o filho tomava o braço do pai para dizer-lhe:
“pai, não vês que estou queimando?”. O pai, então, acordou, notou um clarão e correu até
o quarto ao lado, constatando que o velho caíra no sono e que a mortalha e o braço de seu
filho tinham sido queimados por uma vela acesa que tombara sobre eles (FREUD, S.
1900/1996, p. 541).
Em sua análise, Freud não se detém no aspecto angustiante da produção onírica,
solidário com a hipótese por ele formulada de que o prazer, numa parte do psiquismo,
traduz-se como desprazer em outra. Na opinião de Freud, a explicação para esse sonho
comovente é muito simples e confirma mais uma vez a hipótese de que todo sonho é
realização de desejo. No caso específico, realização de um duplo desejo: o de continuar
dormindo e o de que o filho ainda estivesse vivo (FREUD, S. 1900/1996, p. 541, 542).
Para Lacan, entretanto, é justamente na medida em que não coloca nenhum
problema de interpretação, que o sonho abre para outra dimensão do inconsciente, situada
em um para além do sentido. Lacan identifica a angústia despertada pelo sonho àquela
detectada por Freud nas neuroses traumáticas, em “Além do princípio do prazer”,
mostrando que o sonho foi produzido no lugar onde o sujeito foi exposto à aproximação
ameaçadora do real.
Segundo Lacan, o que o sonho coloca em questão é o real. Ao contrário do que se
pode pensar, o pai não é despertado pela realidade da vela que cai, iniciando o incêndio,
e, sim, pelo real que se repete através dessa realidade, escondendo-se por detrás do lugar
tenente da representação. O desejo implicado na construção onírica, e interpretado por
Freud, nada mais é do que um envelope, uma vestimenta para o real (LACAN, J.
1964/1973, p. 54, 57, 58, 59).
Nessa passagem, podemos entrever, mais uma vez, a idéia de que a função da
interpretação, para Lacan, está agora articulada não à significação, como já havia sido
anunciado na discussão sobre a hermenêutica, mas ao real que essa significação,
produzida pelo inconsciente, vela. Isso significa que a interpretação não deve consistir em

124
nenhuma injeção de sentido, devendo, ao contrário, desbastar o sentido para fazer surgir o
real que ele encobre.
Se a interpretação analítica não se reporta mais à significação, é porque a
realidade do inconsciente a ser interpretada é definida, agora, como realidade sexual
(LACAN, J. 1964/1973, p. 138) que não se presta a uma simples técnica de decifração,
por envolver algo que não se deixa cifrar.
Lacan, nesse momento, acredita que a interpretação do analista nada mais faz do
que recobrir o fato de que o inconsciente, nas suas formações, já procedeu por
interpretação (LACAN, J. 1964/1973, p. 118). A interpretação analítica, segundo Lacan,
pontua o desejo ao qual ela é idêntica, o que significa que, nessa perspectiva, o desejo já é
a própria interpretação (LACAN, J. 1964/1973, p.161). Encontramos, aqui, a tese do
inconsciente intérprete, explorada e desenvolvida posteriormente por Miller.
De acordo com essa tese, o primeiro intérprete é o inconsciente, a interpretação
analítica é algo de secundário. Essa visada opõe-se à distinção que se pode fazer entre o
material inconsciente e a interpretação, a qual funcionaria como metalinguagem. Lacan
aponta para o fato de que a interpretação analítica está no mesmo nível da interpretação
do inconsciente, acordando com o que Freud ensinou, ao afirmar que as associações do
sonhador situam-se no mesmo plano do conteúdo do sonho.
Miller sugere que um exemplo de interpretação, situada no mesmo plano da
interpretação do inconsciente, é a que Freud dirige a Hans, durante o único encontro entre
os dois. Freud diz ao menino que, bem antes de ele nascer, ele “já sabia que ia chegar um
pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir
medo de seu pai” (FREUD, S. 1909/1996, p. 45).
Segundo Miller, Freud, com a intervenção, convida o sujeito a assumir suas
emoções no que concerne ao pai, dizendo-lhe que isso está escrito na ordem das coisas. É
uma interpretação que legaliza a elaboração sintomática de Hans, exercendo-se num
único e mesmo nível de enunciação (MILLER, J-A. 1999, p. 9).
Assim, a tese do inconsciente intérprete não significa que o analista deixe de
intervir, deixando a interpretação a cargo do inconsciente, mas supõe que ele seja
discreto, apagando-se em sua ação interpretativa, por detrás daquela já efetuada pelo
inconsciente.

125
Veremos que o movimento que promove a discrição na interpretação, na direção
da não-proliferação de sentido, será acentuado ao longo do ensino de Lacan. Buscaremos
evidenciá-lo na parte final da tese. No momento, é suficiente destacar que o desejo que
Lacan afirma, no Seminário XI, ser idêntico à interpretação, não é mais, exatamente, o
desejo definido nos textos dos anos 50.
E qual seria esse desejo? Lacan define que: “o desejo é o ponto nodal pelo qual a
pulsação do inconsciente se liga à realidade sexual” (LACAN, J. 1964/1973, p. 141). E a
interpretação equivalente a tal desejo é proposta como “a operação pela qual o analista
promove a legibilidade retroativa do sexo nos mecanismos inconscientes” (LACAN, J.
1964/1973, p.161).
Encontramos duas referências importantes nessas passagens. A primeira é que a
realidade do inconsciente é sexual e pulsátil. A segunda é que essa sexualidade é lida,
retroativamente, em função da interpretação. Ainda nas palavras do próprio Lacan, a
interpretação deve ser capaz de integrar a sexualidade à dialética do desejo, colocando em
jogo aquilo que, no corpo, designamos como aparelho (LACAN, J. 1964/1973, p.161).
Essa é uma maneira inédita de definir a interpretação – a de que se deve colocar
em questão o corpo, o qual, tendo sofrido a incidência da linguagem, funciona como
aparelho de gozo.
Marcus André em seu livro A ética da paixão – uma teoria psicanalítica do afeto
fornece um exemplo clínico que ilustra bem a colocação em jogo do aparelho do corpo,
na dialética do desejo. É o caso de uma mulher que teve os cabelos trançados pela mãe
desde a mais tenra idade. Essa mãe, ao trançar os fios de cabelo, costumava pronunciar
algumas palavras: Rapunzel, bonequinha, moça de louça, etc. É possível constatar que,
nessa cena repetida, o Outro materno marca essa criança com um gozo do qual ele
mesmo usufrui. As palavras ditas de maneira casual imprimem sua marca no corpo do
sujeito e a partir daí o enredo do desejo articula-se enlaçado a certa satisfação corporal
(VIEIRA, M. A. 2001, p. 104, 105). No caso dessa mulher, a interpretação segundo
Lacan, deveria circunscrever justamente o enlaçamento do desejo com essa marca de
gozo impressa em seu corpo
Dito de outro modo, a interpretação deve ser capaz de incidir sobre o objeto a. E,
partindo desse ponto de vista, Lacan sustenta que ela não está aberta a todos os sentidos.

126
Como entender essa afirmação? Arriscamos, dizendo que a interpretação não está aberta
a todos os sentidos, na medida em que seu referente é o sentido gozado, fixado pela
fantasia 66 e ligado aos orifícios corporais do sujeito.
A segunda referência importante, nas passagens mencionadas acima é a menção
ao tempo. Lacan diz que a pulsação do inconsciente está ligada, pelo desejo, à realidade
sexual, e, em seguida, sustenta que a interpretação promove a legibilidade retroativa do
sexo nos mecanismos inconscientes.
Esses mesmos aspectos reaparecem no texto contemporâneo do Seminário XI, “A
posição do inconsciente”. Nele Lacan, referindo-se, mais uma vez, à característica
pulsante do inconsciente, afirma que seu fechamento demonstra o núcleo de um tempo
reversivo segundo o qual o trauma se implica no sintoma, mostrando uma estrutura
temporal que justifica a reabertura da discussão sobre a causa. (LACAN, J. 1964/1960, p.
838, 839).
Entendemos essas afirmações do seguinte modo: a estrutura da interpretação no
Seminário XI e no texto “A posição do inconsciente” aproxima-se da estrutura do trauma,
cuja ação pode ser decomposta em dois tempos. O trauma organiza-se por uma
temporalidade retroativa, que envolve duas cenas. Numa primeira cena, há o encontro
com o sexual, sempre excessivo em relação aos recursos que o sujeito conta para lidar
com ele, e a segunda cena evoca a primeira, por algum traço associativo
Somente com o advento da segunda, a primeira cena se transforma em trauma. A
primeira cena não possui sentido, nela mesma, e só se torna traumática quando é evocada
pela repetição da cena análoga. É a repetição significante que permite designar, na
primeira cena - que se torna traumática, com a repetição - um real referente ao gozo.
Quando dizemos que Lacan, nesse momento, parece indicar um parentesco da
interpretação com a estrutura do trauma, pretendemos mostrar que a interpretação se
torna o procedimento, por meio do qual, os significantes que se atualizam na sessão são
reportados retroativamente ao núcleo de gozo primário implicado no sintoma. Vista desse
modo, a interpretação é a intervenção que, através do significante, evoca, na atualidade
da sessão, o real do corpo em sua função de causa do sintoma.

66
A fantasia é a significação fundamental que determina todas as outras significações para o sujeito.

127
Nota-se que Lacan destaca, em todos os trechos citados acima, a dialética entre a
cadeia significante e o sexual, associando-a ao aspecto temporal do inconsciente. E, na
última passagem, ele acrescenta que tal dialética autoriza a retomada da discussão sobre a
causa.
Discutimos anteriormente a localização da causalidade psíquica na dupla vertente
do significante e do objeto. E não é difícil perceber, nas definições do inconsciente e da
interpretação, que acabamos de retomar o esforço de Lacan para sugerir um modelo de
inconsciente e de intervenção analítica compatível com a noção de causalidade que ele
acaba de propor.
O que ainda não havia aparecido com clareza, na discussão anterior, e que aparece
agora é a associação da dialética do significante e da causa sexual à dimensão temporal.
Evidentemente, a função da interpretação esteve desde sempre vinculada ao
tempo, em função do efeito de retroação significante que ela provoca sobre o conteúdo
recalcado do inconsciente. E é óbvio que todas as elaborações de Lacan, inseridas no
contexto do “inconsciente estruturado como uma linguagem”, consideraram o fator
tempo, na medida em que a cadeia significante se desenvolve sempre numa dimensão
temporal.
O que parece ser novidade é a associação do fator temporal à dialética do
significante e da causa sexual, no ponto mesmo em que Lacan define o inconsciente
como o “não realizado”. Para sermos mais exatos, não é a associação em si que
representa qualquer novidade. Ela já estava presente em Freud, tanto em sua teoria sobre
67
o trauma, quanto no texto “Moisés e o monoteísmo” . O novo é a concepção do
inconsciente afinado com essa perspectiva e o movimento que Lacan inicia na direção de
elaborar um modelo de intervenção do analista que dê conta do inconsciente pensado
dessa maneira.
Já dissemos que o inconsciente, para Lacan, em 1964, é pulsação, manifestando-
se não como lei ou regularidade, mas como ruptura e vacilação . O inconsciente não é
permanente, e pode se transformar a partir da função temporal, o que leva Lacan a

67
Embora, em mais de uma ocasião, Freud tenha afirmado que o inconsciente desconhece o tempo e que o
desejo é indestrutível.

128
afirmar que ele não é ser, nem não-ser, mas algo da ordem do “não realizado” (LACAN,
J. 1964/1973, p. 25, 28, 32, 33).
Na interpretação de Miller, o que Lacan introduz, aí, é a perspectiva de que o
inconsciente é algo que está por vir, algo que se realizará amanhã. Se os textos de Freud e
os de Lacan, dos anos 50, tomaram o inconsciente no passado, priorizando o texto
inalterável do “já escrito”, do recalcado, a partir de 1964, Lacan situa o inconsciente no
futuro (MILLER, J-A. 2000, p. 31).
Não temos dúvidas de que esse movimento iniciado por Lacan resultará alguns
anos mais tarde, na formulação do ato analítico. Quando define a intervenção do analista,
nas passagens que acabamos de citar, e que foram recolhidas do Seminário XI e do texto
“A posição do inconsciente”, Lacan ainda a situa no campo da interpretação. No entanto,
é possível perceber que tais definições distanciaram-se demasiadamente das noções de
interpretação propostas na década de cinqüenta, ao mesmo tempo em que se
aproximaram da noção de ato analítico definida no Seminário XV.
Como veremos no próximo capítulo, o ato analítico é justamente a intervenção
cuja estrutura temporal permite a leitura retroativa do sexual nos mecanismos
inconscientes. O ato provoca a leitura, não do texto já escrito do inconsciente, mas do
sexual, que não se escreveu, ali, por meio do significante. E é a leitura do que não estava
escrito que permite, de certo modo, a “realização” do inconsciente no tratamento, fazendo
advir algo que não estava dado no passado.
Essa discussão será aprofundada no terceiro capítulo, a partir do Seminário XV, O
ato analítico, e de elementos recolhidos na obra de Freud. No momento, é suficiente
destacar, mais uma vez, que o inconsciente-hiância, com seu aspecto de “não-realização”,
é algo distinto do inconsciente como memória, na medida em que não é permanente no
tempo.
O que exploraremos no próximo capítulo, no contexto da discussão sobre o ato, é
o fato de que a função temporal, referida ao inconsciente-hiância e retomada na
intervenção do analista, coloca em questão a possibilidade do surgimento do novo, numa
estrutura que não estava integralmente determinada.

129
Tal perspectiva faz da realidade do inconsciente um “talvez”, no sentido do devir,
sendo essencial para a concepção do ato analítico que supõe o advento de uma nova
posição subjetiva, de um novo saber, que não estava dado no inconsciente.
Veremos que todos os aspectos associados à interpretação, nesse momento, serão
retomados na elaboração do ato analítico, parecendo haver uma zona de interferência e de
sobreposição da teoria da interpretação com a teoria do ato. Não afirmamos, aqui, que a
interpretação confunde-se inteiramente com a noção de ato, mas é como se as
modificações sofridas pela interpretação preparassem gradativamente a conceituação do
ato analítico.
Antes de prosseguir, gostaríamos, no entanto, de explorar um último aspecto do
inconsciente-hiância que surge como condição para a elaboração do conceito de ato
analítico, a saber, sua constituição como realidade sexual.

6- Só há ato analítico onde não há relação sexual

Já dissemos que a fundamentação da teoria do desejo no corpo, resulta, no


Seminário XI, na concepção do inconsciente como realidade sexual.
A realidade sexual do inconsciente funda-se a partir da resolução do Complexo de
Édipo, constituindo-se em função da diferença entre os sexos. Essa diferença entre fálico
e castrado condena o ser humano a determinar-se como ser sexuado, não de acordo com o
dado anatômico, mas segundo sua relação com o falo e a castração.
O complexo de Édipo é o momento no qual a problemática do falo, da castração e
da lei paterna é acrescentada à experiência de fruição do corpo, própria da sexualidade
perversa polimorfa. Nesse momento, o inconsciente estrutura-se em resposta às
excitações corporais vivenciadas na sexualidade infantil. A linguagem é convocada para
interpretar o gozo oriundo das diferentes zonas erógenas, sobretudo o relativo às
sensações genitais, que, nesse período, apresentam-se intensas e perturbadoras.
É quando o sexual emerge como um enigma para a criança, que passa a dedicar-se
à construção de teorias para explicar tanto a origem dos bebês quanto a diferença
anatômica entre os sexos. Essas teorias, recalcadas, de acordo com G. Morel, constituem
um ponto no qual saber e gozo se enlaçam, determinando o sintoma e a fantasia de cada

130
um. E, o que permanece como ininterpretável pelo inconsciente e pela fantasia, o que não
se deixa identificar pela linguagem, é o que Lacan chamou de objeto pequeno a
(MOREL, G. 2000, p. 85).
Segundo Freud, tanto a menina quanto o menino tomam conhecimento de seu
sexo a partir do significante fálico. Assim sendo, a oposição entre os sexos, evidenciada
no Édipo, afigura-se na diferença fálico/castrado. O sexo que não é o fálico apresenta-se,
tanto para o menino quanto para a menina, como o Outro sexo.
A fórmula repetida por Lacan, segundo a qual “não há relação sexual”, reporta-se
justamente à ausência de complementaridade ligando homens e mulheres. Ela aponta para
o fato de que a sexualidade do ser falante não se realiza numa relação entre o masculino e
o feminino, mas segundo a relação do sujeito com a castração, numa dessimetria
fundamental entre homens e mulheres. É assim que devemos compreender a máxima
lacaniana que sustenta a inexistência da relação sexual, pois ela retoma, de modo
axiomático, a hipótese freudiana do primado do falo.
No texto “A significação do falo”, Lacan enfatiza o estatuto de significante do
falo, que se destina a designar os efeitos do significado (LACAN, J. 1958/1966, p. 690).
O falo é o significante que escreve algo do sexual no inconsciente. O referente do falo,
para Lacan, não é o pênis, como podem pensar alguns, mas a perda que o sujeito sofre em
conseqüência da intervenção do significante (LACAN, J. 1958/1966, p. 715). Dito de
outro modo, o referente do falo é a perda de gozo sofrida pelo sujeito em função da
castração. É a perda da libra de carne, paga pelo sujeito por sua entrada no campo da
linguagem e na ordem fálica.
A promoção do falo, por Lacan, ao estatuto de significante fundamental na
economia psíquica do sujeito é o ponto de junção das teorias do desejo e do significante
com o gozo corporal. O falo é o significante que pode circunscrever ao menos uma
parcela do gozo sexual. Em “A significação do falo” a ênfase recai sobre a tradução desse
gozo em um significante privilegiado, com a conseqüente instauração de um campo de
significação sexual para o sujeito. Contudo, a teoria lacaniana do objeto coloca em
questão o sucesso dessa tradução, apontando para uma parcela de gozo que resiste a tal
transcrição. A partir daí, ele prioriza a concepção de que, ao lado do gozo que se organiza
sob o primado do falo, persiste outro gozo, que resiste a unificar-se sob essa função,

131
mantendo sua alteridade em relação ao gozo fálico e preservando a marca de sua
contingência e de sua não-totalização.
É aí que deve ser situado a hiância, que Lacan diz ter sido instaurada por Freud no
pensamento (LACAN, J. 1957/1966, p. 522). Ela diz respeito à parcela do gozo corporal
que não se ordena sob a função fálica, e não se deixa traduzir nos termos do significante.
A dita hiância tem relação com das Ding e com o objeto a, conceitos que não são
idênticos, mas que apontam, de forma comum, para o gozo do corpo não subsumido pelo
simbólico. Gozo que não é traduzido pela linguagem, e que surge como o resto da
operação de alienação do ser sexuado, no significante, condenando-o a alcançar sua
representação no campo do Outro, com a condição de deixar escapar uma parte de seu ser
(o que o constitui, fundamentalmente, como falta-a-ser).
Tendo sido esclarecida a relação da tese freudiana do primado do falo com a
concepção do inconsciente como hiância e com a afirmação lacaniana de que “a relação
sexual não existe”, buscaremos, no capítulo seguinte, extrair algumas conseqüências para
outra proposição que lhe é correlata, além de fundamental para nossa investigação.
Todos sabem que, no Seminário A Lógica da fantasia encontramos a expressão
que precedeu o aforismo lacaniano “a relação sexual não existe”. Lacan, ali, diz: “o ato
sexual não existe” (LACAN, J. La logique du fantasme, Léçon du 12 Avril, 1967).
Não sabemos por que Lacan, no Seminário XIV, usa a expressão “o ato sexual não
existe”, no lugar da expressão “a relação sexual não existe”, encontrada no Seminário
Mais Ainda. Numa leitura apressada, poderíamos dizer que, nesse momento, ele busca
uma formulação, que ainda não atingiu sua forma mais apurada, o que ocorreu quando ele
encontrou o termo “relação”, oriundo da matemática, que indica a inexistência de
proporção dos sexos masculino e feminino. Essa resposta, no entanto, pode não ser
satisfatória.
Para encontrar uma resposta mais consistente seria necessário o estudo
comparativo do Seminário A lógica do fantasia, no qual Lacan propõe a aproximação do
ato sexual pela via da lógica, e as fórmulas da sexuação, propostas em 1972. Esse seria,
no entanto, um desvio do eixo que organiza nossa investigação e optamos, então, por
deixar esse ponto em aberto.

132
É preciso, de todo modo, assinalar o que tem valor especial para nossa
investigação: o fato de que, examinando a articulação lógica entre o ato sexual que não
existe e o ato analítico, Lacan propõe que “o ato analítico é o contrário do ato sexual”
(LACAN, J. La logique du fantasme, Léçon du 8 mars, 1967). De onde podemos deduzir
que o ato analítico opera onde não há ato sexual.
A mesma perspectiva é retomada por Lacan no Seminário O ato analítico com
outras palavras, quando ele diz:

O ato analítico se articula em um nível que responde à deficiência que


experimenta a verdade em sua aproximação do campo sexual (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 22 novembre, 1967).

Assim, não são fortuitas as reflexões que produzimos, aqui, sobre o inconsciente
estruturado sob a forma da hiância, articulado ao aforismo lacaniano que sustenta que “a
relação sexual não existe”. Elas nos permitem situar uma referência para analisarmos o
Seminário O ato analítico. Sabe-se que é possível fazer diferentes incursões nesse
seminário, tomando as mais variadas orientações. Estabelecemos, então, que o norte de
nossa investigação será a afirmação de Lacan segundo a qual “o ato analítico é o
contrário do ato sexual”, produzindo-se ali onde a relação sexual não existe. Essa
perspectiva é corroborada por Graciela Brodsky, quando ela afirma que o único ato que
pode dar uma solução ao ato sexual como impasse é o ato analítico (BRODSKY, G.
2001, p. 92, 93).
Podemos interpretar as afirmações de Lacan e de Graciela Brodsky do seguinte
modo: a condição de possibilidade do ato analítico é a estrutura de hiância do
inconsciente descrita acima. É a existência, no seio da estrutura do inconsciente, do gozo,
ponto de irrepresentável, situado fora do campo do sentido sexual, não sendo, portanto,
sensível à decifração.
A condição de possibilidade do ato analítico é a clivagem sofrida pelo sujeito em
função da incidência da linguagem sobre seu corpo, o que coloca sua existência sob a
égide da divisão entre o gozo fálico e o gozo para além do falo, entre o significante e o
objeto, entre o pensamento e o ser.

133
Sob esse ponto de vista, podemos supor que o ato só acontece, na experiência
analítica, nos momentos em que os limites do simbólico se encontram em questão,
denotando o encontro do sujeito barrado com o objeto pequeno a, que surge como um
impasse para a repetição significante.
Essa é a razão pela qual Lacan elege o final de análise para discutir o ato analítico.
O ato analítico, por excelência, é o ato do final de análise, que promove a passagem do
analisante à posição de analista. Isso não significa que só haja ato no final de análise, o
ato do analista pode incidir ao longo de todo o percurso da análise, a cada vez que a
presença do objeto pequeno a se fizer notar. Se o final de análise é momento fecundo
para a discussão acerca do ato do analista é porque ali o objeto a, que se condensou ao
longo da análise, circunscreve-se, convocando o analisante a se responsabilizar pela
causa de seu desejo.
O final da análise coloca em evidência, de modo radical, a perspectiva que nos
interessa: a de que o ato analítico ocorre no contexto da relação sexual que não existe.
Nesse momento, segundo Lacan, “o sujeito realiza-se em sua castração, e é onde se
inscreve a hiância própria do ato” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10
Janvier, 1968). É também nesse instante que o sujeito se depara com a fenda existente no
pensamento inconsciente, o que coincide com a ausência de respostas do Outro para
representá-lo como ser sexuado.
O ato acontece no ponto de encontro do sujeito desejante com o objeto a, causa de
seu desejo, colocando em perspectiva a possibilidade de sua transformação, em função da
dimensão temporal retroativa, própria do inconsciente.
Todos esses aspectos serão retomados no próximo capítulo. Se os destacamos aqui
foi com o objetivo de clarear, para os leitores, a direção que tomaremos na investigação
do Seminário XV, O ato analítico.

134
Capítulo III
O ato analítico

O capítulo pretende elucidar a noção lacaniana de ato analítico. Nosso eixo


principal de investigação será o Seminário O ato analítico, de 1967-68. Discutiremos,
inicialmente, o esquema proposto por Lacan, inspirado no grupo matemático de Klein,
que fornece a estrutura do ato analítico, explicitando a premissa fundamental que o
organiza: a divisão do sujeito entre o ser e o pensamento. Em seguida, buscaremos
iluminar a estrutura do ato, extraindo elementos de dois grupos de contribuições
fundamentais: o texto de Lacan, de 1945, “O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada” e os textos de Freud, de 1937, os quais, como veremos, discutem questões
muito próximas daquelas abordadas por Lacan, no Seminário XV. De posse dos
elementos encontrados nesses textos, retomaremos a discussão sobre o ato, a partir da
análise do paradigma do ato analítico que nos é dado por Lacan no seminário: a travessia
do Rubicão por Júlio César. Ao longo da análise desse paradigma, evocaremos,
oportunamente, as elaborações freudianas sobre a noção de ato e as indicações lacanianas
encontradas nos textos contemporâneos do Seminário XV, que auxiliam na elucidação da
concepção do tratamento analítico naquele momento datado.

1- O ato analítico comporta a falha no saber que concerne o sujeito sexuado

A hiância com a qual Lacan representa o inconsciente, no Seminário XI, é


retomada, no Seminário XV, com o nome de falha. A falha, como todos sabem, é o
adjetivo associado por Freud ao ato, no livro Sobre a psicopatologia da vida cotidiana,
para designar os lapsos de fala, de escrita e de ações. Lacan retoma o termo eleito por
Freud para dizer que o ato analítico comporta a falha. Que falha seria essa? É o próprio
Lacan quem nos esclarece: é falha, no saber, que concerne o sujeito quando ele deve se
posicionar como sujeito sexuado (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29
novembre, 1967).

135
A idéia de que a presença do sujeito sexuado fura o campo do saber, dificultando
um acesso direto à verdade, aparece de diferentes maneiras no Seminário XV, o que é
possível constatar nas frases de Lacan destacadas abaixo:

(...) o ato sexual apresenta um caráter irredutível a toda realização verídica,


e é disso que se trata, no ato psicanalítico, pois o ato articula-se em outro
nível em que se responde a essa deficiência, que experimenta a verdade em
sua aproximação do campo sexual. Eis o que é necessário interrogar em
seu estatuto (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15 Novembre,
1967).

(...) O saber em alguns pontos falha e são, precisamente, esses pontos que
nos questionam sob o nome da verdade (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967).

Como é possível constatar, logo no início do Seminário XV, Lacan associa os


seguintes termos: o ato, a falha no saber que concerne à posição sexuada do sujeito, e a
verdade. 68
Essa articulação reporta-nos à definição do inconsciente dada por Lacan no
Seminário XI como o “não-realizável”. Uma leitura possível dessa proposição é a de que
o “não-realizável” é o próprio sujeito sexuado, no sentido em que não é integralmente
representável. O inconsciente é a estrutura que trabalha para fazer representar o sujeito, a
partir do automatismo da repetição significante, sua função é a de fazer suplência ao
irrepresentável do ser sexuado do sujeito. E o ato analítico é a intervenção que pretende
promover, na análise, uma solução para esse irrepresentável.
Os aspectos apontados, acima, explicam o ponto de partida tomado por Lacan, no
Seminário XV, bem como suas afirmações que situam o sujeito dividido entre o
automatismo da repetição significante e o irrepresentável do gozo (o objeto), que
funciona como causa do funcionamento deste automatismo.

68
A verdade deve ser aqui apreendida em sua relação com o objeto a, causa do desejo.

136
2- O sujeito dividido entre ser e pensamento – uma premissa para se pensar o ato
analítico.

A construção da noção de ato analítico envolve uma leitura particular que Lacan
faz do cogito cartesiano. Para Lacan, a psicanálise e o ato analítico implicam num
posicionamento do sujeito diante de sua divisão entre a repetição significante (associada
por Lacan ao pensamento) e o objeto (associado por Lacan ao ser). Isso explica a releitura
feita por Lacan do cogito, no esquema que ele propõe como modelo da estrutura do ato
analítico.
A discussão sobre o cogito cartesiano, na estrutura do ato analítico, será efetuada
no segmento seguinte, mas antes de adentrarmos propriamente nessa discussão,
gostaríamos de trazer alguns elementos que nos autorizam a dizer que Lacan, em sua
reflexão sobre o ato, associa os termos de Descartes, ser e pensamento, aos conceitos de
gozo e de cadeia significante.
Assinalamos ao longo do trabalho, alguns momentos em que Lacan lança mão da
palavra, “ser” em seus textos. Na verdade, trata-se de um termo recorrente em sua obra.
Oriundo da filosofia, o ser, que é um conceito de grande complexidade nas elaborações
filosóficas, serve para Lacan circunscrever pontos da experiência que excedem, de algum
modo, a terminologia psicanalítica.
Lacan que, no Seminário II e na “Instância da letra ou a razão depois de Freud”,
explicou o ser como o coração do sujeito, tomando a expressão freudiana Kern unseres
69
Wesens, definiu-o do seguinte modo, no Seminário I: “por ser do sujeito, não
entendemos suas propriedades psicológicas, mas aquilo que se cava na experiência
analítica” (LACAN, J. 1953-54/1975, p. 256).
Outro termo também aparece no vocabulário de Lacan, ainda que de forma breve.
Trata-se de Dasein, em relação ao qual a tese essencial é que o objeto a é o único Dasein
da psicanálise. O termo é encontrado na filosofia de Heidegger que formula o Dasein
como o ente que se coloca a pergunta, “o que é o ser?”, e que não tem outra essência a
não ser a abertura ao ser que essa questão apresenta.

69
Segundo François Balmès Wesen é o ser no sentido da essência, distinto de Sein, o ser propriamente dito.

137
Já nos anos que prepararam e acompanharam a teoria do ato analítico, Lacan fala
insistentemente do sujeito e do ser, sempre afirmando que o que ele tece não é uma
ontologia. Nesse período, uma série de enunciados desdobra e complexifica as relações
do sujeito com seu ser. Mas o que se pode extrair desta série de afirmações é que a
expressão “falta-a-ser”, relativa ao desejo, só tem sentido quando consideramos que o
sujeito foi separado de seu ser, em função da castração. E o mais importante é que Lacan
coloca em um determinado momento, o objeto no lugar do ser perdido pelo sujeito. O que
pode ser constatado na seguinte proposição: “o objeto toma o lugar daquilo de que o
sujeito foi privado simbolicamente” (LACAN, J. 1959, p. 11).
O que buscamos mostrar é que Lacan propõe explicitamente que o laço do desejo
com o ser deve ser buscado no campo do objeto. Sabemos da complexidade da noção de
ser na filosofia e mesmo no pensamento de Lacan e não queremos forçar nenhuma leitura
parcial e reducionista desse termo que foi tomado em definições tão variadas. Podemos
também pensar que, se Lacan escolheu usar a palavra ser no lugar da palavra objeto, é
porque ele queria manter alguma distinção entre esses conceitos. De todo modo, o que
nos importa é demonstrar que não cometemos nenhum equívoco quando dizemos que
Lacan aproxima o ser do objeto a, e que isso é o que está em questão em sua análise do
cogito cartesiano.
As indicações de Lacan, que acabamos de assinalar, apontam para uma direção
que culminará, mais tarde, nas elaborações do Seminário Mais ainda, cujo título em
francês, Encore, pode ser lido também como En corps, Em corpo. Nesse seminário Lacan
propõe:

(...) ao ser - tal qual ele se sustenta na tradição filosófica, assentando-se


sobre o pensar, ele mesmo considerado um correlato do ser - oponho que
somos manejados pelo gozo. (...) O que traz o discurso analítico é que
existe gozo do ser (LACAN, J. 1972-72/1974).

(...) o ser do corpo, certamente, é sexuado, mas isso é secundário


(LACAN, J. 1972-73/1975, p. 11).

138
(...) o ser é o gozo do corpo assexuado (LACAN, J. 1972-73/1975, p. 12).
70

No Seminário Mais Ainda, Lacan já não fala do ser associado ao objeto, mas
associado ao gozo. Sabemos, no entanto, que o objeto a é uma das formas assumidas pelo
gozo em seu ensino, nos anos 1964-68. A associação do ser ao gozo, que é menos
evidente nos Seminários XI e XV, é colocada de forma explícita nesse seminário.
O que buscamos também indicar, com as citações acima, é que as elaborações do
Seminário XX conferem mais consistência ao movimento lacaniano destacado no
Capítulo II, que é o de trazer para o centro do seu ensino, o que permaneceu à margem da
71
lógica significante: a substância do gozo do corpo que funciona como causa . O que
constatamos nas afirmações lacanianas:

O funcionamento do significante coloca em causa a substância do corpo


(LACAN, J. 1972-73/1974, p. 26).

A razão da significância está no corpo (LACAN, J. 1972-73/1974, p. 67).

O que há sob a vestimenta que chamamos corpo, não é senão esse resto
que chamo de objeto a (LACAN, J. 1972-73/1974, p. 12).

70
As duas últimas frases parecem contradizer-se afirmando, primeiro que o ser é gozo do corpo sexuado e
depois que o ser é gozo do corpo assexuado. A contradição desaparece quando consideramos que Freud
classifica a atividade das pulsões parciais como sexualidade infantil, embora afirme que a pulsão em sua
forma definitiva só é encontrada na puberdade, tendo definido seus aspectos mais importantes no complexo
de Édipo. Freud leva-nos deste modo a considerar que, se é verdade que existe sexualidade infantil, ela é
diferente da sexualidade em sua forma acabada. No Seminário XX, Lacan relendo Freud, apresenta uma
noção ampla de gozo, na qual podemos localizar a noção mais estrita do gozo sexual. Nas fórmulas da
sexuação, o gozo sexual fálico é o que limita o gozo em geral. A função fálica tem por efeito nos separar do
gozo que Lacan, no Seminário XX, refere ao ser. O gozo sexual, ligado ao falo, abre-se como possibilidade
para o ser falante, a partir da castração e da submissão à estrutura de linguagem, e é por isso que Lacan diz
que ele é secundário. A pulsão sexual propriamente dita volta-se para o Outro sexo e para a castração,
opera por meio de semblantes, enquanto o gozo do ser é gozo fora da linguagem, disjunto do modo de
existência na cadeia significante. O que importa destacar é que a aparente contradição da frase se resolve
com essa distinção, pois, tanto em Freud quanto em Lacan, o falo representa o limite entre o gozo primário
(seja ele chamado de sexualidade perversa polimorfa ou de gozo do ser) e o gozo fálico (a pulsão sexual em
sua forma definitiva).
71
Lacan que até então havia pensado o sujeito enquanto falta-a-ser o articula, em 1972, ao ser que ele
associa ao gozo. Ele o designa, agora, como falasser, buscando superar a antinomia constituída em seu
ensino entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o gozo do ser.

139
Uma vez colocada a associação feita pelo próprio Lacan entre o ser, o gozo, e a
substância do corpo - ainda que em um momento posterior ao Seminário O ato analítico -
faremos uma observação fundamental.
Evidentemente, a substância gozante de que fala Lacan, no Seminário XX, não
tem nada a ver com a substância pensante da filosofia. Ressaltamos que não há ontologia
em Lacan, no sentido estrito que esse termo assume na filosofia 72. Com a associação do
ser à satisfação pulsional, Lacan não pretende conferir nenhum tipo de essência ao
sujeito. O que fica claro quando ele diz: “o ser para mim não é, senão, fato do dito”
(LACAN, J. 1972-73/1974, p. 107).
É preciso deixar claro que a questão fundamental que se apresenta, nos
comentários de Lacan sobre o ser, é a de saber que relação pode haver entre a estrutura de
linguagem e um gozo que se revela como a substância do pensamento, como a inércia do
73
funcionamento da cadeia . O ser de gozo, na experiência analítica, só pode ser
delimitado a partir do simbólico, em função da circunscrição do real como impossível. O
que leva Lacan a afirmar que só podemos dizer algo sobre o ser pelos impasses, nas
demonstrações de lógica (LACAN, J. 1972-73/1974, p. 16).
Esse é, então, um ponto essencial a ser esclarecido: a ontologia lacaniana não é a
ontologia da filosofia, porque ela é apenas uma ontologia formal, derivada dos impasses
encontrados, na experiência clínica, para a simbolização do real.
Como assinalamos nosso interesse não é discutir as formulações de Lacan no
Seminário XX, e, sim, corroborar a idéia de que a discussão sobre a estrutura do ato
analítico, a partir do cogito cartesiano, que põe em cena o sujeito dividido entre ser e
74
pensamento, implica a divisão do sujeito entre o gozo do corpo (o objeto a) , que
funciona como causa sexual, e a estrutura de linguagem (o pensamento).

72
Na filosofia, a ontologia é o estudo do ser. É o estudo do que é e do que é possível. A ontologia ocupa-se
das definições do ser, e do estabelecimento das categorias gerais e dos modos fundamentais de ser das
coisas, a partir do estudo de suas propriedades. Em Aristóteles, o estudo do ser concerne o estudo da
essência das coisas, daquilo que é por si mesmo. Concerne o exame do que vem primeiro numa substância,
não podendo ser tirada desta sem que o ser perca o ser.
73
Quando falamos de inércia da cadeia referimo-nos à pulsão que é a fonte inesgotável da repetição
significante, daquilo que se repete de modo peculiar para cada sujeito.
74
Forma assumida pelo gozo, no pensamento de Lacan, no período em que elabora a noção de ato analítico.

140
Quando introduzimos, no Capítulo II, as referências feitas por Lacan, no
Seminário XI, a Merleau-Ponty, ao Fort-da, à fábula de Aristófanes e ao mito da lâmina,
nosso objetivo foi o de tornar explícito o que aparece de modo menos evidente, na
referência feita a Descartes, no mesmo seminário. Demonstramos que a idéia da libra de
carne, que deve ser paga para que o sujeito advenha como ser de linguagem, foi discutida,
de modo sistemático, e sob as mais diferentes vestimentas, no Seminário XI.
Ora, a mesma idéia é reencontrada no comentário lacaniano sobre Descartes,
filósofo que funda o sujeito, a partir da rejeição radical do corpo para fora do
pensamento. A interpretação lacaniana do cogito cartesiano baseia-se na idéia de que
existe uma articulação lógica entre a representação do sujeito, no campo da linguagem, e
o que se perde do corpo vivo, escapando a essa representação.
No Seminário XI, lendo o cogito cartesiano à sua maneira, Lacan descreve o
surgimento do sujeito, a partir de uma perda representada, no esquema cartesiano, como
perda de ser, o qual escapa, quando o vivente se faz representar por meio do significante,
no campo do Outro. Essa perspectiva torna-se mais clara, quando inserimos a discussão
sobre o cogito na série que organiza a sépartition, no Seminário XI, e esclarece, ao
mesmo tempo, a razão da retomada do cogito cartesiano no Seminário O ato analítico.
A concepção do ato analítico tem como premissa o sujeito pensado segundo essa
topologia: sujeito dividido entre a cadeia significante e o gozo do corpo, que é causa da
insistência da cadeia. O que leva Lacan a afirmar que o S (sujeito dividido) é o ponto
onde se situa, especificamente, o ato analítico (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon
du 28 Janvier, 1968).
Vemos assim, que o ato incide sobre o sujeito que Lacan, no Seminário XX, define
do seguinte modo: “essa discordância do saber e do ser é o nosso sujeito” (LACAN, J.
1972-73/1974, p. 109). O sujeito, então, é o nome dado, por Lacan, à antinomia entre a
estrutura significante e a substância gozante. Esse nome designa o fracasso da
correspondência de uma instância à outra. Já o ato analítico, é a solução proposta por
Lacan, em 1967, para tratar essa disparidade no processo analítico.
Essa visada da reflexão lacaniana sobre o cogito é corroborada, não apenas pelo
Seminário XX, mas também pelas seguintes afirmações de Lacan:

141
O cogito funda a fenda do sujeito (LACAN, J. 1965/2001, p. 199)

O “logo” (do “penso, logo, existo” de Descartes) é o traço da causa que


divide, de modo inaugural, o “sou” da existência do ‘sou’ do sentido”
(LACAN, J. 1966/2001, p. 204).

75
A virtude do esquema da alienação é abrir o ponto de junção do isso
com o inconsciente (LACAN, J. 1967/2001, p. 323).

Não é por acaso que me refiro ao cogito de Descartes. É porque ele


comporta esse elemento particularmente favorável para re-alojar o desvio
freudiano (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier,
1968).

As citações que acabamos de fazer indicam o que orienta Lacan no recurso que
ele faz ao cogito para fornecer a estrutura do ato analítico: a idéia de que o sujeito
constitui-se, essencialmente, numa divisão que localiza e articula duas dimensões. A
dimensão do ser relativa à pulsão e ao isso, e a dimensão do inconsciente e do sentido.
Como já dissemos, o que chama a atenção de Lacan é o fato de que o ato de
fundação do sujeito, por Descartes, apóia-se na rejeição do corpo para fora do
pensamento (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968). Sendo
assim, a retomada da estrutura do cogito, no Seminário O ato analítico, permite a Lacan
esclarecer a interpretação particular que a psicanálise faz das relações entre o pensamento
e o corpo.
Para Lacan, o objeto a deve ser situado, no mesmo lugar da rejeição do saber por
76
Descartes (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968). E Lacan
pretende formalizar o ato analítico como a intervenção própria da psicanálise (afinada à

75
O esquema da alienação, uma das operações que causa o sujeito, é proposto inicialmente, no Seminário
XI, sob a forma da interseção do conjunto do ser com o conjunto do pensamento e é retomado,
posteriormente no tetraedro apresentado, no Seminário XV, grafo que fornece a estrutura do ato analítico.
76
Aqui, Lacan faz referência ao fato de Descartes, em sua filosofia, rejeitar todo saber extraído da
experiência sensível, o qual, na concepção cartesiana, induz ao erro. A experiência sensível, como se sabe,
é aquela oriunda dos sentidos do corpo: visão, audição, tato, etc.

142
sua ética), para tratar esse objeto, que surge como o resíduo do processo que conduziu o
pensamento aos limites do simbólico.
Assim, esperamos ter esclarecido, suficientemente, que quando passamos à
discussão sobre o ser e o pensamento, não abandonamos, em absoluto, o fio que nos
orientou até aqui: o exame da ética e das relações entre a causa, o significante e o sentido,
implicadas na intervenção do analista. Nossa estratégia será a de iluminar os fundamentos
da noção de ato analítico no Seminário XV, para depois extrair conseqüências para a
reflexão sobre os elementos mencionados.
Vejamos, então, como o ser e o pensamento são apresentados no Seminário XI e
reexaminados no Seminário XV, no contexto da discussão sobre o ato analítico, mantendo
como referência a idéia de que, segundo Lacan, “o ato analítico é o contrário do ato
sexual”, ou seja, só ocorre onde o ato (a relação) sexual não existe.

3- As condições da constituição do sujeito e de formalização do objeto no Seminário


XI

A análise que Lacan faz da filosofia cartesiana é original, encontrando-se à


margem dos comentários realizados pela tradição filosófica. É possível dizer que os
comentários de Lacan acerca do cogito vão contra a posição cartesiana mesma. Onde
Descartes funda o sujeito, no pensamento, a partir de uma Verwerfung (foraclusão) do
corpo (da experiência sensível), Lacan produz uma torsão, recuperando o corpo para
situá-lo como a condição mesma do advento do pensamento e do sujeito. Vejamos como
isso ocorre.
O projeto cartesiano, como todos sabem, é o de empreender a reforma de todo o
saber, o de estabelecer alicerces seguros sobre os quais a ciência possa fundar-se.
Descartes parte do princípio de que nada pode ser conhecido antes da inteligência, já que
esta é condição de possibilidade do conhecimento. Constrói, a partir deste ponto, um
encadeamento de idéias, no qual as coisas primeiramente propostas devem ser conhecidas
sem o auxílio das seguintes, enquanto as seguintes devem ser demonstradas pelas coisas

143
que as precedem. Deste modo, a filosofia cartesiana tira sua certeza do encadeamento
interno de suas razões, sem recorrer em nenhum momento à realidade externa.
Buscando determinar o primeiro elo da cadeia, o que seria o fundamento de sua
filosofia, Descartes recusou inicialmente tudo o que não era absolutamente certo. Criticou
os princípios sobre os quais se apoiavam as opiniões correntes, bem como o
conhecimento baseado na experiência sensível. Submeteu, sistematicamente, o
conhecimento já estabelecido à dúvida, valendo-se da hipótese do gênio enganador.
Processo que Lacan chamou de rejeição do saber subjetivo. No entanto, no processo de
radicalização da dúvida, Descartes extrai sua primeira certeza. Trata-se da condição
interna do ato de duvidar, sua condição imanente: não posso duvidar sem pensar. Não
existe dúvida sem pensamento, nem pensamento sem existência intelectual. Este ponto
indubitável é o primeiro elo na cadeia de razões. É onde termina a cadeia de incertezas e
começa a das certezas. O pensamento é o que surge de inquestionável no cogito.
Condição última de possibilidade de todas as representações possíveis. A única coisa da
qual não posso fazer abstração, após ter abstraído todo o resto e é neste ponto que
Descartes assegura-se da existência do sujeito.(GRANGER, G-G, 1983, p. XVI).
É por isso que podemos dizer que Descartes deduz que o sujeito é onde ele
pensa, enquanto, no Seminário XI, Lacan afirma, contra Descartes, que o sujeito é fora
do pensamento e pensa onde não é.
Lacan apóia-se nesse momento específico do cogito – no qual o sujeito funda-se
no puro ato de pensar - para daí derivar o sujeito da psicanálise. O traço essencial que ele
recolhe é a dissociação entre o sujeito e o subjetivo. A certeza do eu penso, como vimos,
é adquirida, não a partir de um saber, mas, ao contrário, a partir da recusa de todo o
conhecimento subjetivo. O sujeito do cogito emerge como resultado do esvaziamento da
esfera psíquica de todas as representações qualitativas, de tudo o que chamamos de
imaginário. Ele é justamente o resíduo que não se elimina da operação de esvaziamento.
Um sujeito fugaz que só existe enquanto pensa. O que é possível constatar quando
Descartes diz: “eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o
tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar,
deixaria, ao mesmo tempo de existir” (DESCARTES, R. 1637/1983, p. 94).

144
Ainda na perspectiva lacaniana, o que Descartes tira como conseqüência do cogito
não é um saber acerca da natureza, nem do ser daquele que pensa, mas o sujeito que
surge como efeito do significante penso. A certeza da existência, no entanto, não assegura
identidade alguma ao sujeito que ali se diz pensante, como podemos verificar na segunda
meditação metafísica, onde Descartes diz: “mas não conheço ainda bastante claramente o
que sou, eu que estou certo de que sou (DESCARTES, R. 1637/1983, p. 92).
Esse é um ponto importante para que Lacan possa deduzir a discordância entre
pensamento e ser que se depreende do sujeito ao qual nos referimos. Ser um ser pensante
não responde ao sujeito o que ele é por pensar. Se é no pensamento que o sujeito encontra
sua certeza, ela se apresenta, no entanto, inteiramente subordinada ao ato de sua
enunciação.
É preciso que o sujeito pense continuamente para assegurar-se de seu ser. O ser do
sujeito localiza-se, ali, onde o significante não o alcança, ou seja, onde ele apreende-se
como impensável. Neste ponto de não saber, o sujeito experimenta o descentramento em
relação ao lugar onde ele obtém sua certeza, por pensar. E é em tal descentramento que
Lacan reconhece o parentesco com a divisão constituinte do sujeito da psicanálise.
Na interpretação lacaniana do cogito, há na identificação que é feita no lugar do
Outro, uma perda de ser, lugar onde o desejo se constitui como falta-a-ser, como desejo
de ser. Na identificação, o significante não pode propiciar ao sujeito uma identidade
absoluta consigo mesmo. Falta ao Outro o significante que representaria o sujeito de
forma absoluta. Como vimos na opinião de Lacan, o eu penso de Descartes é insuficiente
para sustentar um eu sou. Por mais claro e distinto que seja, esse eu penso é um
significante que encontra apenas o caráter efêmero do sujeito. Razão pela qual Lacan, em
função da experiência da análise, retoma o penso sob a forma de um penso e não sou
(BASS, B. ZALOSZYC, A. 1996, p. 2).
Isso é o que encontramos no capítulo XVI, do Seminário XI, quando Lacan
discute o problema da constituição do sujeito a partir dos termos propostos por Descartes,
ser e pensamento, mas para pensá-los no contexto da teoria dos conjuntos (LACAN, J.
1963/64, p. 185). Lacan serve-se da operação de união para representar a instauração do
sujeito pelo significante e da operação de interseção para mostrar o que surge como
consequência da primeira operação. O que aparece como sua condição de

145
complementaridade é o recobrimento de duas faltas, a primeira situada no campo do
Outro e que se define como o desejo do Outro e a segunda surgida no campo do sujeito,
relacionada ao fato de que o sujeito só pode se representar no campo do Outro sob a
condição de deixar escapar uma parte de seu ser. A estratégia de Lacan é a de demonstrar
como as duas operações complementam-se, a segunda surgindo como resposta para a
primeira.
No capítulo XVI, ele introduz as duas operações, oferece o esquema da alienação,
o comenta, e diz que em seguida falará sobre o esquema da separação. Isso não acontece.
Lacan não retoma o esquema da separação na sequência de suas aulas e é por isso que,
aqui, nos deteremos, principalmente, na operação de alienação.
De acordo com Miller, a vantagem que a teoria dos conjuntos agrega à reflexão de
Lacan é a possibilidade de se pensar o ser do sujeito quando, até então, o sujeito havia
sido pensado, de preferência, como representado pelo significante (MILLER, J-A. La
Logique de la passe, Léçon du 11 Mai, 1994).
Em “A instância da letra ou a razão depois de Freud” e em “A direção do
tratamento”, Lacan, como fizemos notar, já fazia referência ao ser. Todavia, o ser nessas
elaborações aparecia dissociado do registro do significante. É como se o campo do ser
fosse heterogêneo e inconciliável com o campo do significante, onde se constitui o
sujeito. A novidade do Seminário XI é que a abordagem da constituição do sujeito, a
partir da teoria dos conjuntos, permite a formulação de uma articulação entre o ser e o
sujeito barrado pelo significante.
Além do mais, na teoria dos conjuntos, temos o conjunto vazio que indica o que
Lacan pretende dizer quando afirma que: “o sujeito não é nada”, “o sujeito não significa
nada”, “não há significante do sujeito”, etc. Todas essas negações tornam-se manejáveis
na teoria dos conjuntos, ao fazermos referência ao conjunto vazio. Miller defende a
hipótese de que o uso que Lacan faz da teoria dos conjuntos justifica-se pela
possibilidade de se representar e de se manejar o valor negativo do sujeito (MILLER, J-
A. La Logique de la passe, Léçon du 11 Mai, 1994).
Lacan pensa, então, a constituição do sujeito a partir da relação entre dois
conjuntos ou, se preferirem, entre dois campos: o do sujeito e o do Outro, no qual se situa
a cadeia significante (LACAN, J. 1963/64, p. 185). O sujeito se instaura nessa relação,

146
em razão de sua dependência do significante e do lugar do Outro (LACAN, J. 1963/64, p.
188), sua constituição ocorrendo por intermédio das operações de alienação e separação,
que condenam o sujeito a aparecer sempre divido (LACAN, J. 1963/64, p. 190, 191).
À operação de alienação corresponde o vel da união. A união de dois conjuntos -
também chamada de reunião – consiste em tomar todos os elementos que pertencem aos
dois conjuntos que reunimos. A união, todavia, não é a mesma coisa que a adição. Na
aritmética, quando adicionamos o cardinal dos dois conjuntos abaixo, encontramos como
resultado 5:

(a, b) + (a, c, d) = 5

Se, por outro lado, praticamos a união, encontramos um resultado diferente. O a,


elemento comum aos dois conjuntos, é colocado na zona de interseção dos mesmos e a
união nos fornece, como resultado, o cardinal 4:

(b, a, c, d) = 4

A união comporta uma perda, pois faz desaparecer o elemento que é comum aos
dois conjuntos.
Do mesmo modo, se praticamos a interseção dos mesmos conjuntos, encontramos
apenas o elemento a que é comum a ambos. O que significa que, na teoria dos conjuntos,
sempre se produzem fenômenos de perda, em razão do recobrimento de duas partes dos
conjuntos. Se ocorre perda, é porque a instauração do sujeito pelo significante não é total,
produzindo sempre um resto.
Essa é a idéia que Lacan ressalta ao afirmar que a instauração do sujeito traz como
consequência o inconsciente, que é perda de sentido. O inconsciente apresenta-se como
non-sens, como algo que precisa ser interpretado. Ao mesmo tempo, a emergência do
sentido comporta uma perda do lado da vida: o desaparecimento do ser do sujeito
(LACAN, J. 1963/64, p. 192).
O S1, significante unário, aparece no campo do Outro, como o significante ao qual
o sujeito se identifica. Mas, em seguida, aparece outro significante, o S2, pois o S1

147
representa o sujeito para outro significante e, assim, temos o conjunto que compreende
S1- S2. O S2, significante para o qual S1 representa o sujeito, provoca como resultado o
desvanecimento do sujeito. Esse é o efeito de divisão resultante da alienação do sujeito
no campo do Outro: quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, alhures, ele
manifesta-se como desaparecimento (LACAN, J. 1963/64, p. 199).
A representação que nos dá Lacan da operação de alienação é a seguinte:

O Sentido
O Ser
(o Outro)
Vazio de
Non-sens Pensamento
sentido

O S1 S2

Temos o S2, segundo significante que produz o sentido. Temos também S1,
primeiro significante, que isoladamente não possui sentido. Está mergulhado no non-
sens, já que o sentido só se produz com o par significante. E, finalmente, temos a terceira
zona que é o conjunto vazio, o que temos como ser do sujeito.
Daí, Lacan extrai a idéia de que, se o sujeito quer o sentido, ele tem que pagar
com o abandono do conjunto formado pela parte vazia e por S1. Se o sujeito escolhe o
sentido, o ser do sujeito e o non-sens são recalcados: o sujeito do inconsciente escapa.
Trata-se de escolha forçada, que Lacan ilustra com a metáfora do bandido que interpela
aquele que rouba: “a bolsa ou a vida?”. Se escolhemos a bolsa, perdemos a bolsa e a vida,
mas se escolhemos a vida, perdemos a bolsa e preservamos a vida (LACAN, J. 1963/64,
p. 193).
Notem que Lacan, aqui, re-introduz a liberdade do sujeito, defendida no texto
“Formulações sobre a causalidade psíquica”, quando ele coloca, na origem da loucura, a
“insondável decisão do ser”. Ou seja, a escolha pelo sentido é uma decisão do sujeito que
ele pode ou não fazer. O autista, por exemplo, é um sujeito que abriu mão do sentido para
ficar com o ser e com o S1 (non-sens). De todo modo, a única escolha que não existe para
o sujeito é entre perder ou não perder, o que significa que, seja qual for a escolha, haverá
fenômenos de perda.

148
É por isso que podemos concluir que o que há de forçado na escolha é a dimensão
inevitável da perda. Não há como o sujeito sair dessa transação ganhando. Qualquer que
seja a escolha, o que há de forçado é que ele vai perder. Vai perder coisas diferentes, mas
vai perder.
Depois desta resumida explanação sobre a constituição do sujeito, o que
gostaríamos de ressaltar como crucial para nossa discussão acerca do ato do analista é
que o inconsciente, a partir desta elaboração, comporta em seu âmago, o conjunto vazio,
o ser do sujeito que se articula numa relação de junção/disjunção à cadeia significante, ao
campo do Outro.
Com essa elaboração, Lacan introduz uma brecha no campo do sentido. Estamos
numa situação diferente da do Seminário VII, onde, se fossemos representar o
inconsciente pela relação entre os conjuntos (O e S1) e (S1 e S2), não teríamos união, e
sim, exclusão. No Seminário VII não há zona de interseção entre o gozo e o simbólico ou,
se preferirem, entre das Ding e a cadeia significante, na qual o objeto só pode se
manifestar como ausência. O inconsciente, no mencionado seminário, constituindo-se,
por sua natureza, como barreira contra o gozo.
Gostaríamos ainda de dizer que o que esta construção coloca em jogo é o sujeito
dividido entre ser e pensamento, sobre o qual o analista deve fazer incidir seu ato. Razão
pela qual Lacan retoma novamente o exame do cogito no Seminário O ato analítico para
situar o percurso da análise.

4- Ser e pensamento no grupo de Klein - a estrutura do ato analítico no Seminário


XV.

Lacan, no Seminário O ato analítico, retoma as operações de alienação e


separação apresentadas no Seminário XI, mas de modo diferente. Ele as retoma não mais
para discutir a constituição do sujeito, mas para pensá-las no contexto do percurso da
análise e da estrutura do ato analítico (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon de 10
Janvier, 1968).

149
Lacan apresenta-nos o seguinte esquema, na aula do dia 10 de Janeiro de 1968.

eu ali
não onde
penso isso ou eu não penso
era Alienação ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

a
nci
erê
nsf
Tra
eu
não
-ϕ sou
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente

A discussão sobre os elementos do esquema apresentado acima aparece em cinco


momentos diferentes do ensino de Lacan: no Seminário A lógica da fantasia, em sua
resenha publicada nos Outros Escritos, no Seminário O ato analítico e, por último, no
texto contemporâneo do Seminário XV, “Da psicanálise e suas relações com a realidade”.
Com o esquema, já dissemos, Lacan quer representar o que ocorre no percurso da
análise e quer, ao mesmo tempo, articular algo a respeito do ato analítico, que
caracterizaria uma determinada experiência como analítica. Ele o faz a partir dos termos
introduzidos por Descartes em sua filosofia: ser e pensamento e de um modelo de grupo
77
demonstrado por Félix Klein (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 24
Janvier, 1968).
De acordo com Miller e Graciela Brodsky, o texto que inspirou Lacan na
montagem do esquema, é o do matemático francês Marc Barbut “Sobre o sentido da
palavra estrutura nas matemáticas” 78.

77
Felix Klein (1849-1925) foi um matemático nascido em Dusseldorf, antiga Prússia, atual Alemanha, que
ficou conhecido por suas pesquisas na geometria não-euclidiana. Suas principais contribuições para a
matemática foram feitas às teorias do grupo e da função. Ele também inventou a garrafa de Klein.
78
O texto, publicado inicialmente, na Revista Temps Modernes, foi posteriormente traduzido e publicado
pela Revista da Letra Freudiana, Ano XV, número 16. Em nossa investigação utilizamos a publicação em
língua portuguesa.

150
O texto de Barbut é extremamente claro, escrito numa linguagem endereçada às
pessoas formadas nas ciências humanas. Ele quer demonstrar, com o trabalho, que as
matemáticas utilizam a palavra estrutura em um sentido que pode proporcionar um
quadro precioso e cômodo aos estruturalistas (BARBUT, M. 1996, p. 145).
O matemático parece ter atingido seu objetivo ao escrever o texto, pois Lacan,
respondendo ao convite feito por Barbut, utiliza a noção de estrutura matemática, ali
proposta, para formalizar algo a respeito da estrutura da análise e do ato analítico.
Não vamos nos deter por muito tempo sobre as elaborações de Barbut. Apenas o
suficiente para localizar alguns elementos que esclareçam a organização lógica do grupo
de Klein, que inspira o esquema lacaniano do Seminário O ato analítico.
Em seu texto, Barbut elege o grupo de Klein para demonstrar o que é uma
estrutura nas matemáticas e, ao longo da argumentação, fornece uma série de
representações que se pode fazer desse grupo. Ele mostra que o grupo pode ser
representado em linguagens distintas, com semânticas diferentes. Pode assumir a forma
de tabela ou de diagrama, mas em todos os casos a sintaxe é sempre a mesma, e o que
muda é o sentido das palavras (BARBUT, M. 1996, p. 154, 155).
Entre as várias representações do grupo de Klein oferecidas por Barbut, em seu
texto, elegeremos, aqui, uma que assume a forma de diagrama (BARBUT, M. 1996, p.
158). Preferimos a forma do diagrama, porque é a escolhida por Lacan para montar seu
grafo no Seminário XV. A representação é a que se segue:

oposto

pr o
du
to
inverso inverso
o
dut
pr o
oposto

Nessa representação do grupo de Klein, temos um objeto redondo e branco que


tem suas qualidades modificadas: a forma ou a cor. É possível, ainda, se modificar as
duas qualidades ao mesmo tempo: a forma e a cor. Existem, então, quatro estados

151
possíveis para o objeto, os quais aparecem ligados por transformações elementares
(BARBUT, M. 1996, p. 154).
É possível notar que os vetores horizontais indicam a variação da forma e não a
variação da cor. Os vetores verticais indicam, ao contrário, a variação da cor e não da
forma. Já os vetores diagonais indicam os dois tipos de variação ao mesmo tempo: a de
cor e a de forma.
Vejam, então, que se é possível combinar várias operações, partindo de qualquer
um dos quatro cantos e aplicando a operação oposta, a operação inversa, ou ainda, a
operação produto.
A operação oposta é o círculo branco que se transforma num quadrado branco. A
operação inversa é o círculo branco que se transforma num círculo negro. A operação
produto é o resultado das duas operações precedentes realizadas consecutivamente e
implica no inverso do oposto ou no oposto do inverso.
As operações oposto, inverso e produto já haviam sido exemplificadas por Barbut,
anteriormente no texto, utilizando a linguagem dos números. O oposto de um número x é
–x. Para encontrar o oposto de um número, basta trocar o sinal. Já o inverso de um
número x é 1/x e o de um número –x é -1/x.

x -x

1/x -1/x

O que a linguagem dos números torna mais evidente é que se é possível combinar
as operações. Tenho um número x, pego seu oposto –x e depois o inverso de seu oposto -
1/x. Ou então, tomo o inverso de x, que é 1/x, e depois o oposto do inverso, -1/x. As
operações apresentadas no grupo são involutivas, ou seja, fazem retornar à situação
precedente. Para encontrar o oposto de um número, basta trocar o sinal (o oposto de x é –
x), mas se mudamos o sinal duas vezes consecutivamente, voltamos a x. Da mesma
forma, o inverso do inverso também é o número de que se partiu.

152
O que nos interessa mostrar é que o percurso indicado pelas flechas, no grupo de
Klein, pode levar de x a –x (operação oposto) e logo de –x a -1/x (operação inverso),
depois de -1/x a 1/x (operação oposto), para finalmente, saindo de 1/x, retornar a x
(operação oposto). No grupo, pode-se percorrer o caminho em várias direções possíveis.
O próprio desse diagrama é a característica de voltar sempre ao ponto de partida e a de
manter relações lógicas entre os elementos que o compõem, indicadas por flechas que
partem em diversas direções.
Essas características levaram Barbut a definir a estrutura do grupo de Klein da
seguinte forma: “um conjunto onde os elementos são quaisquer, mas entre os quais estão
definidas uma ou várias leis de composição (BARBUT, M. 1996, p. 152).
O matemático ainda acrescenta que esse procedimento só é aplicável a um
conjunto finito. Se o conjunto é infinito pode-se dar, no máximo, fragmentos de tabela
(BARBUT, M. 1996, p. 152). Esse aspecto do grupo é importante, porque Lacan usará
essa estrutura para esclarecer o percurso da análise, considerada por ele finita. Essa é uma
noção cara a Lacan, a saber, a de que a análise não pode ser um processo infinito e que
ela tem de encontrar sua resolução num conjunto finito de elementos.
Obviamente, os elementos do conjunto com os quais Lacan pretende fornecer a
estrutura do percurso analítico não são elementos quaisquer. Como veremos adiante, os
elementos são o ser, o pensamento, o objeto a e -ϕ. O interesse de Lacan pelo grupo de
Klein como meio de apresentação do percurso analítico, é o de destacar as relações
lógicas entre esses elementos, na experiência particular da psicanálise, as quais terminam
por promover um resultado, um efeito (um produto).
A descrição que faremos das propriedades e relações entre os elementos que
compõem o esquema lacaniano, inspirado no grupo de Klein, baseiam-se nas elaborações
de Lacan, no Seminário O ato analítico, nas de Diana Rabinovich, no livro O desejo do
psicanalista – liberdade e determinação em psicanálise e, por último, nas de Graciela
Brodsky no livro Fundamentos: o ato analítico.
O recurso aos comentadores é importante, porque o grafo inspirado no grupo de
Klein não foi sistematizado por Lacan, como foi, por exemplo, o grafo do desejo. Assim,
nos inspiraremos nas leituras que os autores fizeram do esquema, introduzindo,
oportunamente, as observações do próprio Lacan e as nossas.

153
É preciso dizer que, ao se apropriar do grupo de Klein, Lacan faz dele um sistema
não-involutivo. O que significa que, na versão lacaniana, uma vez alcançado o produto,
não se é possível voltar atrás, não se pode retornar ao ponto de partida (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Essa é uma idéia propícia para a demonstração do ato analítico e da análise, já que
o psicanalista, na perspectiva lacaniana, constitui-se como o produto final de uma análise
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 7 Février, 1968).
O esquema não-involutivo de Lacan indica que a análise produz efeitos que não
são dissolvidos depois que ela cessa. Esses efeitos foram chamados por Freud,
inicialmente, de passagem da neurose para a infelicidade comum (FREUD, S. 1983-
85/1996, p. 316) e, mais tarde, de “estado criado” pela análise, em “Análise terminável e
interminável” (FREUD, S. 1937/1996, p. 242). As posições de Freud e de Lacan
coincidem: a análise transforma o sujeito e essa transformação é definitiva, não sendo
possível o retorno à posição subjetiva anterior.
Na leitura de Graciela Brodsky, Lacan faz do grupo de Klein um esquema não
involutivo, porque as flechas, no esquema lacaniano, vão numa única direção, não
havendo reversão possível (BRODSKY, G. 2002, p. 54).
Concordamos com a autora quando ela diz que o esquema representa uma
operação não involutiva, que não pode retornar ao ponto inicial. O próprio Lacan, ao
comentar o grafo, diz que ele é percorrido num certo sentido e que trata-se de um mesmo
trajeto (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968). Mas quando
observamos o grafo percebemos que as setas não vão todas numa única direção como é
possível constatar:

eu ali Alienação
não onde
penso isso ou eu não penso
era
ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

ci a
rê n
n sfe
Tra
eu
não
-ϕ sou
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente

154
Se existe convergência para a figura do canto inferior esquerdo, mostrando que,
ali, encontramos o produto final de uma análise, existem outras setas que não vão nessa
direção, indicando outras relações entre as figuras que compõem o esquema. Nesse
ponto, Lacan preserva a idéia, indicada pelo grupo de Klein, das múltiplas relações entre
os diferentes elementos que compõem o grupo.
Esse aspecto do grafo deve ser ressaltado, porque torna mais complexa a sua
interpretação, na medida em que implica numa multiplicidade de relações que só podem
ser entendidas na temporalidade lógica da análise e não na temporalidade implicada numa
evolução do tipo linear, seguindo o vetor temporal numa mesma direção.
De todo modo, Lacan rebatiza os vetores que, no grupo de Klein, são chamados
de oposto, inverso e produto, com os nomes de operação alienação, operação verdade e
operação transferência. Lacan determina, também, um ponto de partida para o percurso,
além de associá-lo, como já dissemos, ao cogito cartesiano (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 10 et 17 Janvier, 1968).

4.1- O ponto lógico inicial da análise

O ponto de partida da análise e do ato analítico, segundo Lacan, “sua suposição de


início”, é a figura que se segue:

Ou eu não penso ou eu não sou

155
A figura representa a negação da interseção do cogito cartesiano (interseção entre
ser e pensamento). Esse é o ponto eleito, por Lacan, como o início lógico da análise, fiel
à perspectiva de que o ponto de recomeço pode ser localizado em qualquer lugar
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Na mesma aula em que faz essa proposição, Lacan pergunta-se como é que se fixa
um início, o início do ano, por exemplo. Ele conclui que é necessário um ato para se
localizar um início. Essa idéia tem relação com o fato de que o ato do psicanalista
encontra-se no começo da análise 79, o qual, ao colocar em marcha o inconsciente, produz
como efeito a ruptura do cogito (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10
Janvier, 1968). Daí, podemos depreender que o ato do analista que abre para a

dimensão do inconsciente provoca, na experiência da análise, a dissociação do sujeito que


pensa e do sujeito que é.
Por isso, no ponto lógico inicial da análise, situado por Lacan no esquema
apresentado acima, encontramos a disjunção do ser e do pensamento sob a forma de duas
frases que estão em uma relação de exclusão: ou não penso ou não sou. Essa exclusão
pode ser entendida quando lembramos que, na leitura particular de Lacan, o cogito
cartesiano coloca em evidência sua divisão, condição prévia a toda ação analítica
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 25 Janvier, 1968).
Já assinalamos que essa é uma idéia importante para apreendermos aquilo de que
trata o grafo do ato analítico, pois ele coloca em questão a divisão do sujeito, ao mesmo
tempo em que propõe um meio de tratá-la.
Se, no Seminário XI, Lacan expõe a constituição do sujeito, a partir da interseção
do conjunto do ser com o conjunto do pensamento, no Seminário XV, acentuando a teoria
da divisão do sujeito, ele nega a possibilidade dessa interseção, colocando a interseção
negada no início lógico do percurso da análise, sob a forma de um sujeito que ou não é
ou não pensa (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 janvier, 1968).
Quando Lacan situa esse conjunto, no início do processo de análise, ele pretende
indicar seu ponto zero, seu começo lógico (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du
10 Janvier, 1968). Ponto a partir do qual o sujeito deverá fazer escolhas entre o ser e o

79
Lacan, nessa aula, questiona: “começar uma psicanálise é um ato?” e responde “seguramente sim”.

156
pensamento, as quais se configuram de diferentes maneiras, nas diversas etapas do
percurso analítico.
Os leitores devem se lembrar que, no Seminário XI, na operação de alienação,
tínhamos a interseção do conjunto do ser com o conjunto do pensamento:

Ser Pensamento

Mas quando negamos a interseção do conjunto do ser e do pensamento obtemos


dois conjuntos que se configuram assim:

eu eu
não não
penso sou

O primeiro dos dois conjuntos é encontrado, no canto superior esquerdo do grafo,


e o segundo, no canto inferior direito, com duas flechas que partem do primeiro conjunto
em direção ao segundo, indicando uma relação entre eles.

eu ali Alienação
não onde
penso isso ou eu não penso
era
ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

a
ê nci
ns fer
Tra
eu
não
-ϕ sou
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente 157
Com a negação da interseção do conjunto do ser e do conjunto do pensamento,
obtém-se, de um lado, o conjunto do ser com uma zona heterogênea ao ser (ali onde isso
era), e que é designado pela frase “eu não penso”. E de outro, o conjunto do pensamento,
com uma zona heterogênea ao pensamento (-ϕ), e que é designado pela frase “eu não
sou”. A dissociação desses dois conjuntos foi o que Lacan indicou com a posição do
sujeito que ou não é ou não pensa.
No grupo de Klein, a flecha que indica a relação entre o elemento situado no canto
superior esquerdo e aquele situado no canto inferior direito indica a operação produto que
combina as duas operações realizadas consecutivamente: operação oposto e operação
inverso.
oposto

pro
d uto
inverso inverso
o
dut
pro

oposto

Lacan, então, parece sugerir, com seu esquema, que a operação produto, na
análise, a qual combina a operação alienação e a operação verdade é a operação
transferência, que abrange e articula a operação alienação, na qual o sujeito é e não
pensa, e a operação verdade, na qual o sujeito pensa e não é.
É preciso dizer que a operação alienação é tomada, no grafo do ato analítico, de
maneira distinta da que foi tomada no Seminário XI, na descrição da constituição do
sujeito. No Seminário XI, a alienação do sujeito no campo do Outro (campo da
linguagem) resultava em uma perda de ser, já que o sujeito não pode fazer-se representar
integralmente pelo significante. A perda de ser inerente à alienação, naquele momento,
estava relacionada ao ser que permanecia fora da representação. Já no Seminário XV, a

158
operação alienação é pensada como aquela que confere um ser ao sujeito. Para
entendermos essa diferença, é preciso considerar que Lacan fala da alienação, no
Seminário XV, de outro ponto de vista. O que ele privilegia, no comentário do esquema
do ato analítico, é que a alienação na imagem (eu ideal) e nos significantes mestres (ideal
do eu) funda as identificações do sujeito conferindo-lhe um ser. É possível, então,
perceber que o ser perdido na operação de alienação, no Seminário XI, é o ser relativo ao
corpo vivo que escapa à mortificação infligida pela linguagem. Já o ser adquirido pela
operação alienação, no Seminário XV, é o ser resultante das identificações imaginárias e
simbólicas do sujeito.
Tendo sido esclarecido esse ponto, retomemos, então, o que dizíamos acima: a
transferência, no grafo de Lacan, é a operação produto que combina e articula as
operações alienação e verdade. A transferência é a operação que pode fazer o sujeito
passar da posição onde ele é e não pensa (alienação) para a posição onde ele pensa e não
é (verdade)
O sujeito passa à posição onde ele pensa e não é, quando sob transferência,
entrega-se ao procedimento da associação livre e, aí, já não sabe quem é, em função da
vacilação de suas identificações. O sujeito, no entanto, também sob transferência pode
passar à posição onde ele é e não pensa. Esse momento da análise foi chamado por
Lacan de “fechamento do inconsciente”, e foi designado por Freud, no texto “Recordar,
repetir e elaborar, como o tempo em que o sujeito, no lugar de rememorar, repete com o
analista as relações fundamentais com seus objetos. A repetição, tal qual foi pensada por
Freud, nesse texto, dá consistência ao fantasma e ao ser do sujeito, sustentado por suas
identificações alienantes.
A leitura que Graciela Brodsky realiza da negação da interseção do cogito
(negação da interseção do conjunto do ser e do pensamento), ponto de partida da análise,
é que, ali, temos um sujeito que não é nem pensa (BRODSKY, G. 2002, p. 56, 57). Ou
seja, segundo a autora há dupla negação do ser e do pensamento.
Não sabemos por que ela lê desse modo, já que a frase situada por Lacan no início
lógico da análise é ou não sou ou não penso. Acreditamos que o que Lacan propõe, com
o início lógico da análise, não é uma dupla negação, e sim, uma relação de exclusão.
Quando escolho o ser perco o pensamento (operação alienação) e quando escolho o

159
pensamento perco o ser (operação verdade). O que podemos constatar nas afirmações da
aula de 10 de Janeiro de 1968 do Seminário O ato analítico.

Onde penso, não estou mais em casa. Não sou mais.

Estamos mais solidamente, no ser, quando não pensamos.

A posição do ou-ou é de onde parte a alienação originária, aquela


que resulta no não penso, (...) o não sou articula o outro termo.

A leitura que Diana Rabinovich faz é mais interessante. Ela diz que a negação da
interseção dos conjuntos do pensamento e do ser não afeta propriamente o ser nem o
pensamento, e, sim, o sujeito. A disjunção dos conjuntos do pensamento e do ser produz,
de um lado, um pensamento sem eu (je) - o inconsciente - e, de outro, um ser sem eu (je)
- o isso (RABINOVICH, D. 2000, p. 65).
É a partir dessa mútua exclusão, que o analisante deve fazer uma escolha entre o
ser, sustentado pelo narcisismo e pelo circuito pulsional do fantasma, e o pensamento
inconsciente, do qual está ausente um eu (je) que afirma. E essa é a razão pela qual, desse
ponto, partem duas flechas. Uma que se dirige ao conjunto do pensamento e outra que se
dirige ao conjunto do ser.
Analisaremos inicialmente a operação alienação.

4.2- A operação alienação

Na leitura de Graciela Brodsky, a escolha do sujeito pela alienação (a escolha do


sujeito que ainda não passou pela análise) não é eleição forçada, como a que foi descrita
no Seminário XI e ilustrada com a metáfora do ladrão que interpela sua vítima: “a bolsa
ou a vida!”. Para Brodsky, a escolha pela alienação, no esquema apresentado por Lacan,
no Seminário XV, é uma eleição preferencial, que privilegia o ser em detrimento do
pensamento (BRODSKY, G. 2002, p. 57).

160
A esse respeito, gostaríamos de assinalar que o ser promovido pela alienação é
chamado por Lacan, no Seminário XV, de faux être, falso ser. Já dissemos que esse ser é
sustentado pelas identificações que o sujeito faz com seus significantes mestres e com o
eu ideal (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Sendo assim, é importante relativizar a afirmação de Graciela Brodsky segundo a
qual a alienação é uma escolha preferencial do sujeito e não escolha forçada. Entendemos
o que a autora quer dizer, quando consideramos que o sujeito, na análise, pode fazer uma
escolha contrária à alienação. Pode colocar em questão suas identificações, e pode delas
se desprender. A alienação, no entanto, sob nosso ponto de vista, não pode ser vista como
escolha preferencial, quando observamos que ela constitui propriamente o sujeito e seu
sintoma. É por isso que, no Seminário XV, Lacan chama o ser afirmado pela alienação de
faux être. Encontramos, nessa expressão da língua francesa, um trocadilho que se perde
na língua portuguesa. O faux être (falso ser) se confunde com o il faut être (é preciso ser).
Partindo dessa perspectiva, podemos dizer que, na análise, o sujeito pode
modificar sua relação com seus significantes mestres, mas não pode livrar-se deles, assim
como não se livra de seu sintoma. E, nesse sentido, a alienação não é escolha
preferencial, e sim, forçada. O que leva Lacan a dizer:

80
No nível da marca , vemos o resultado necessário da alienação, a saber,
que não há escolha entre a marca e o ser (...) o efeito alienatório já foi
feito, e não nos surpreendemos de encontrá-lo, aí, sob sua forma de
origem. (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).

De todo modo, o ser afirmado na operação alienação opõe-se à operação verdade,


que, segundo Lacan, coloca em questão um penso que comporta um não sou (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968). A posição de alienação opõe-se à
operação verdade, própria da experiência da análise, porque a afirmação de um ser para o
sujeito tem relação estreita com a função de desconhecimento do eu (moi) e com a paixão

80
Lacan refere-se, aqui, à marca impressa sobre o sujeito em função de sua dependência do eu ideal e do
ideal do eu.

161
pela ignorância de que fala Lacan. A paixão pela ignorância é uma das paixões do ser,
além do ódio e do amor (LACAN, J. 1957, p. 627).
O ser afirmado pelo analisante, no início da análise, em função de sua posição de
alienação e de ignorância, não é o ser que esperamos encontrar em seu final. É o falso ser
do narcisismo e funda-se num desconhecimento radical, que leva o sujeito a não querer
saber nada a respeito da constituição de seu desejo.
O falso ser do narcisismo (eu ideal ordenado pelo ideal do eu) é representado no
conjunto pela frase não penso e está associado ao isso, circuito pulsional, representado
pela frase ali onde isso era.

eu ali
não onde
penso isso
era

Essa associação pode ser reconhecida na estrutura da fantasia, quando


consideramos que o objeto a, que ela inclui, de um lado, faz referência a um elemento
imaginário, que confere consistência ao eu (moi) e, de outro, faz referência ao circuito
pulsional, organizado em torno de um objeto específico.
O objeto a da fórmula da fantasia é retirado pelo sujeito do campo do imaginário,
para a construção de uma resposta ao enigma do desejo do Outro. E, embora Lacan tenha
conferido, posteriormente, o estatuto de real ao objeto a, ele nunca abandonou a idéia do
valor imaginário da fantasia, que sustenta o eu em sua relação com seus semelhantes e
com o mundo.
A associação do falso ser do narcisismo ao fantasma, também, pode ser
compreendida, quando nos lembramos, que Lacan situa a fantasia, no início de seu
ensino, como o cenário imaginário situado no eixo a – a’, que se interpõe ao inconsciente,
81
eixo S – A , onde o sujeito pode ser apreendido na cadeia significante. A teoria
especular do narcisismo permitiu a Lacan explicar as reversões transitivas presentes no
fantasia.

81
Referimo-nos, aqui, ao chamado esquema L.

162
Por último, a associação do falso ser do narcisismo ao circuito pulsional e à
fantasia esclarece o que Lacan quer dizer, quando sustenta que optar pelo não penso e
reforçar o sou, desemboca na afirmação da estrutura gramatical onde está ausente o eu
É importante dizer que o eu a que Lacan se refere, nessa frase, não é o moi e sim o
je. O eu, como instância gramatical, é o que está ausente da frase da fantasia, que
organiza um circuito pulsional para o sujeito.
Isso é o que Freud mostrou com seu texto “Bate-se em uma criança”, onde ele
reduz a fantasia a uma frase, que é uma fórmula impessoal. O sujeito não aparece na
fórmula. Ele a enuncia, mas não está presente no enunciado.
Com todos sabem, o fato de dizer eu, coloca-nos no registro da representação. O
que encontramos, na frase da fantasia “bate-se em uma criança”, é, no entanto, a
apresentação do circuito da pulsão em torno de um determinado objeto, que se tornou a
causa do desejo do sujeito.
O que Freud demonstrou, com esse exemplo de fantasia, é que no nível da
satisfação pulsional não há agente. Ou melhor, se há agente, esse agente é a pulsão
separada do sujeito.
Essa é a perspectiva retomada por Lacan, no Seminário XV, ao afirmar que a
pulsão, inscrita na construção fantasística, é a estrutura gramatical onde não se é possível
dizer eu (je) (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968). O sujeito
está invariavelmente ausente da frase da fantasia, na qual a pulsão apresenta-se como
acéfala.
Por essa razão, Lacan situa, no canto esquerdo superior do grafo, associado à
operação de alienação, um conjunto dividido em duas partes: a parte colorida onde ele
escreve “não penso” e a parte branca onde ele escreve “ali onde isso era”. O não penso
faz referência ao falso ser afirmado pelo narcisismo, e o ali onde isso era faz referência à
fantasia que organiza um circuito pulsional e sustenta imaginariamente o eu no mundo.

A posição de alienação do eu, sustentada pela fantasia, é a que o sujeito deve


abandonar se quiser envolver-se no processo analítico, alcançando a posição promovida
pela operação verdade, representada, no esquema, pelo conjunto do pensamento, com
uma parte que contém um elemento que representa a castração imaginária.

eu
não
-ϕ sou 163
Considerando que a eleição preferencial do sujeito é a de ser sem pensar G.
Brodsky pergunta o que faz com que o analisante passe à eleição rechaçada, à operação
verdade, que implica um sujeito que pensa e não é (BRODSKY, G. 2002, p. 72).
Sua resposta é que, o que determina essa passagem é a terceira operação chamada
transferência. As entrevistas preliminares a uma análise nada mais são do que a
oportunidade, para o analista, de verificar se o candidato é capaz de dedicar-se a um
pensar, que vai conduzi-lo ao ponto onde não saberá mais quem é (BRODSKY, G. 2002,
p. 72).
Antes, no entanto, de precisarmos a posição do sujeito que pensa e não é,
resumamos o que analisamos até esse ponto. Temos então, no primeiro segmento do
percurso analítico, as três posições designadas por Lacan. O início lógico da análise é o
sujeito que ou não é ou não pensa. A partir daí, esse sujeito pode confirmar sua posição
de alienação, a de ser sem pensar, ou pode eleger a operação verdade, obtida por meio da
transferência, que conduz o sujeito à posição daquele que pensa e não é (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 10 janvier, 1968).

4.3- A operação verdade.

De acordo com Graciela Brodsky, o pensamento a que se refere Lacan, é o


pensamento inconsciente, desencadeado pela análise, o qual se constitui na associação
livre, colocando em cena o sujeito dividido, que faz a experiência da falta-a-ser. O sujeito
dividido, no entanto, alcançará, no final do processo, uma certeza sobre seu ser. E o que
interessa a Lacan é demonstrar como é possível para o sujeito, que se experimenta como
falta-a-ser, alcançar a certeza sobre seu ser, no final de análise (BRODSKY, G. 2002, p.
43, 44).

164
Ainda segundo a autora, o tipo de pensamento instaurado pela análise está
relacionado a um não sou, porque, uma vez que o sujeito se ponha a pensar dessa
maneira, já não sabe quem é. Todo o falso ser do narcisismo desmorona. A escolha pelo
pensamento em detrimento do ser constitui-se na escolha do analisante pelo inconsciente
e pelo desejo de saber algo sobre sua condição de sujeito. Essa escolha, como toda
escolha, implica numa perda, nesse caso, perda das certezas identificatórias (BRODSKY,
G. 2002, p. 43, 44).
De fato, encontramos em Lacan essa indicação: a de que a partir da passagem da
posição de ser sem pensar à posição de pensar sem ser, obtemos a indeterminação do
sujeito, que surge como falta-a-ser. Temos o sujeito que se submeteu ao dispositivo
analítico, que escolheu colocar-se à prova dos efeitos da linguagem. Temos alguém que,
em função da associação livre, verifica que não sabe o que diz e não sabe quem é
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 7 Février, 1968).
E, para que o efeito se produza, é necessário que o analisante fale ao Outro. O
simples fato de dirigir-se ao analista, buscando encontrar o sentido de seu sintoma,
produz como consequência, a falta-a-ser, na medida em que a análise faz vacilar as
identificações imaginárias e simbólicas e perturba a identificação aos significantes
mestres, nos quais o sujeito se aliena para encobrir sua divisão subjetiva.
A leitura que Graciela Brodsky faz das operações alienação, verdade e
transferência, na estrutura do ato analítico, no entanto, apresenta essas operações, numa
espécie de sucessão temporal, embora a própria autora indique que o grafo apresenta
relações lógicas. De todo modo, ela descreve a situação da seguinte maneira: o sujeito
chega, na análise, com seu falso ser, numa posição de alienação e faz a escolha pelo
pensamento, na operação verdade, perdendo suas certezas identificatórias. Em seguida,
em função da operação transferência, o sujeito alcançará outro ser que não é mais o falso
ser do narcisismo, e, sim, aquele encontrado depois de realizado o percurso analítico.
Quando introduzimos o grafo da estrutura do ato analítico, corrigimos a afirmação
de Graciela Brodsky que dizia que todas as suas flechas iam numa mesma direção. Na
ocasião, dissemos que havia outras flechas indicando outras direções e relações. Esse fato
contraria toda leitura que pretenda inserir esse grafo numa perspectiva de sucessão
temporal linear, e torna sua leitura muito mais complexa.

165
eu ali Alienação
não onde
penso isso ou eu não penso
era
ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

a
nci
erê
ns f
Tra
eu
não
-ϕ sou
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente

Quando lembramos aqui essa discussão anterior, é porque ela serve, mais uma
vez, para mostrar que a interpretação mais rica do grafo não é aquela que diz que, em
primeiro lugar, temos a operação alienação e, em seguida, temos a operação verdade e a
operação transferência que produz, no final, a resolução do processo analítico. Na
realidade, preferimos pensar que as setas que partem do ponto lógico ou não penso ou
não sou, e que indicam a operação alienação e a operação verdade, apresenta-nos o que
Lacan chamou, no Seminário XI, de batimento do inconsciente, ou ainda, de inconsciente
pulsátil82. É possível considerar que as setas que partem na direção da alienação e na
direção da verdade mostram-nos os momentos de fechamento e de abertura do
inconsciente, que ocorrem ao longo de todo o processo de análise. No próprio processo
analítico, o analisante pode alternar entre a posição de alienação, que dá consistência a
seu falso ser, e a posição verdade, relativa aos efeitos de verdade promovidos pelas
interpretações das formações do inconsciente.
Além do mais, devemos considerar que o sujeito que procura a análise é aquele
que, mesmo antes de iniciar o processo analítico, foi surpreendido com algum efeito de
verdade do inconsciente, o que provocou a vacilação de seu sintoma. Uma vez o sintoma
tendo sofrido uma vacilação, o sujeito pôde endereçar-se ao analista para perguntar sobre
seu significado.

82
Lacan, no texto “A posição do inconsciente”, diz que o significante produz-se no lugar do Outro e faz
surgir o sujeito do ser ao preço de congelá-lo e que esse é um vel que funciona dialeticamente (LACAN, J.
1964/1966, p. 840, 841).

166
O que fazemos notar é que as relações entre as operações alienação e verdade
devem ser tomadas em seu sentido lógico, e não cronológico. Esse aspecto é o que faz
Lacan dizer que o mais verdadeiro do sujeito aparece na operação alienação como o
objeto a, o qual é representado, no conjunto do canto superior esquerdo, com a frase “ali
onde isso era”. Já, na operação verdade, o objeto a aparece como falta (-ϕ). Como todos
sabem, a falta é a essência do desejo, é o que produz o efeito de falta-a-ser e, no final da
análise, ela emerge sob a forma do confronto do sujeito com a castração (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Nota-se, com essa passagem, que a perspectiva de Lacan não é a de que, primeiro
o sujeito se aliena nos seus significantes mestres e em sua imagem, e depois se dirige à
sua verdade que faz surgir a castração (a falta inerente ao desejo). Ao contrário, nesse
comentário, ele privilegia a idéia de que o que aparece como perda num lugar, aparece
como falta em outro. A perda do objeto a, inerente à operação alienação, surge na
operação verdade como castração (como o objeto que falta), não numa sequência
cronológica, mas como uma correlação coerente. Essa idéia é fértil para pensarmos a
transferência como o operador lógico que articula, de um lado, a alienação do sujeito que
determina a perda do objeto a e, de outro, o processo de apreensão da verdade do sujeito,
onde a perda do objeto re-surge como falta.
É por isso que Lacan diz em outra passagem do Seminário XV, que “a verdade é
que a perda (situada no canto superior esquerdo do grafo) é a falta (situada no canto
inferior direito do grafo). E ele continua: “a perda, no entanto, é causa de outra coisa”
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Depreendemos dessas afirmações que a perda, resultante da alienação do sujeito
no campo do Outro re-aparece, na operação verdade, sob a forma de falta. A parte de ser
que não se faz representar no campo do Outro, reaparece, do lado do sujeito, como o
objeto faltoso que se torna causa de seu desejo, promovendo o efeito falta-a-ser.
Como é possível constatar, no grafo, a perda, na operação de alienação, é
apresentada no conjunto do canto superior esquerdo com a frase ali onde isso era e re-
surge na operação verdade, apresentada como -ϕ, no canto inferior direito.
eu ali Alienação
não onde
penso isso ou eu não penso
era
ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

cia
rên
nsfe
Tra
eu


não
sou
167
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente
A operação verdade produz como efeito a transformação da perda de sentido e de
ser em falta (falta-a-ser), pois de acordo com Lacan, a condição para que haja ato
analítico é o engajamento do sujeito num tipo de pensamento que comporta um não sou e
que vai conduzi-lo ao encontro da castração (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon
du 10 Janvier, 1968).

4.4- A operação transferência.

A outra operação analítica, também apontada por Lacan, no esquema, é a


operação transferência. Na opinião de Graciela Brodsky, com ela, Lacan tenta responder
como é que, em uma análise, termina-se com a falta-a-ser. E, segundo a autora, ele
responde dizendo que se termina com a falta-a-ser com a afirmação de um sou, que se dá,
não pela via do fantasma, mas pela via do objeto pequeno a (BRODSKY, G. 2002, p. 43,
44).
Preferimos dizer que a resposta de Lacan para a questão de saber como é que se
termina com a falta-a-ser, na transferência, não se dá exclusivamente do lado do objeto a,
e sim, numa solução que combina o objeto a (o ser) e o -ϕ (o pensamento). Por isso,
Lacan situa a transferência no mesmo eixo que, no grupo de Klein, está situada a
operação produto. A operação produto, no grupo de Klein, é aquela que combina as
operações oposto e inverso.

oposto

p ro
dut
o
inverso inverso
o
dut
p ro
oposto

168
Isso nos autoriza a pensar que a transferência é a operação que combina o
resultado da operação alienação (a perda do objeto a, perda de ser) e o resultado da
operação verdade (a perda do objeto transformada em falta), produzindo, no final do
percurso da análise, no canto inferior esquerdo do grafo, um conjunto dividido em duas
partes. Na primeira, Lacan escreve a e, na segunda, escreve -ϕ.

eu ali Alienação
não onde
penso isso ou eu não penso
era
ou eu não sou

(Sujeito)

Verdade

ia
r ênc
n sfe
Tra
eu
não
-ϕ sou
ali onde isso era

a -ϕ Inconsciente

Essa é a razão pela qual, no esquema apresentado no Seminário XV, a operação


transferência parte do ou não penso ou não sou (ponto de partida lógico do processo
analítico, que apresenta uma relação de exclusão entre ser e pensamento) e chega ao
conjunto que combina o ser (o objeto a) e o pensamento (-ϕ). O que Lacan quer mostrar é
que o ato analítico opera, no eixo da transferência, incidindo sobre a articulação lógica
entre a perda do objeto, referida à operação alienação, e a castração (perda transmutada
em falta), referida à operação verdade, promovendo, aí, algum tipo de solução. O ato
analítico opera, na transferência, incidindo sobre a divisão do sujeito entre o ser (a) e o
pensamento (-ϕ), promovendo uma saída para essa divisão.
Para Lacan, a divisão, a spaltung do sujeito é a condição prévia do ato analítico
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 25 Janvier, 1968) e, agora, seria

169
interessante relacionar essa afirmação com outra afirmação de Lacan, que aponta a
relação estrutural entre o ato e a Verleugnung (o desmentido), na medida em que o ato
apresenta-se como um corte, que incide sobre a superfície topológica do sujeito
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 28 Février, 1968). Assim, pois segundo
Lacan, a ação do ato sobre o sujeito tem parentesco com a ação da Verleugnung. Como
entender esse parentesco?
É sabido que Freud, durante muitos anos, utilizou a noção de desmentido -
Verleugnung – para falar das reações das crianças frente às diferenças anatômicas entre
83
os sexos . No artigo “O fetichismo”, no entanto, ele apresenta argumentos para
considerarmos que tal desmentido acarreta uma divisão no eu da criança em questão.
Diante da visão da mulher castrada, a criança, entre a imposição da percepção
desagradável e a força de seu desejo de que isso não seja verdade, encontra uma solução
de compromisso. Continua acreditando que a mulher teve um pênis, apesar de tudo, mas
esse pênis não é o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar e ela herda, agora, todo o
interesse que antes fora dedicado ao seu predecessor. Nesse mecanismo, apenas uma
determinada corrente da vida mental não reconhece a castração feminina. Outra corrente
está completamente inteirada do fato. A atitude que se ajusta ao desejo e a atitude que se
ajusta à realidade existem lado a lado, tal como é possível nos processos de pensamento
inconscientes (FREUD, S. 1927/1966, p. 157, 158, 159).
No fim da vida, Freud retomou o tema da clivagem do eu, ampliando seu âmbito.
No artigo inacabado, e publicado postumamente, “A divisão do eu no processo de
defesa”, ele discute a noção de desmentido – Verleugnung – em conexão com o
complexo de castração, e o fato de que este ato resulta na divisão do eu. Na disputa entre
a pulsão, que visa à satisfação, e a realidade, o fetichista alcança uma solução engenhosa.
Ambas as partes na disputa obtêm sua cota. Permite-se que a pulsão preserve sua
satisfação, desmentindo a castração, e mantém-se ao mesmo tempo respeito apropriado à
realidade. Contudo, um preço deve ser pago para que se mantenha o compromisso onde o
sujeito não perde nem a satisfação pulsional nem a realidade, e esse preço é uma fenda no
eu. O mais importante, entretanto, é que, nesse último texto, Freud não apresenta a idéia

83
O que pode ser constatado nos artigos “Algumas consequências psíquicas das diferenças anatômicas
entre os sexos” (1925), “A organização genital infantil” (1923), “O problema econômico do masoquismo”
(1924) e “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924).

170
como sendo algo que se passa exclusivamente na perversão, mas estende esse tipo de
clivagem para além do fetichismo, às outras estruturas (FREUD, S. 1940(1938)/1996, p.
293). Ou seja, o essencial é que o sujeito sempre se divide diante do enigma do sexo e do
horror da castração. Tal divisão não se dá sempre do mesmo modo. Ela pode tomar a
forma do recalcamento (Verdrangung), do desmentido (Verleugnun) ou da foraclusão
(Verwerfung).
Luiz Moreira Barros sugere que o recalcamento age sobre as representações, as
quais se tornam inconscientes, a foraclusão sobre significantes que retornam do real, e o
desmentido sobre elementos comprometedores da realidade (traços de percepção) que
nem sequer assumem a forma de uma representação. Essa é a razão pela qual,
diferentemente do recalque, o que é desmentido não é jamais sabido pelo sujeito. O autor
acrescenta, ainda, que, para além da estrutura da perversão, é possível pensar que, em
toda inscrição de traços de percepção, os quais constituem as representações, há perdas
inevitáveis, que irão constituir o real como o limite interno tecido no conjunto das
representações (BARROS, L.M. 2005, p. 96, 97, 98).
Ou seja, Luiz Moreira Barros parece concordar com o fato de que, embora a
divisão do sujeito não ocorra sempre da mesma maneira há algo de estrutural, nessa
divisão: o real que aparece como o limite interno da representação. Esse real, segundo o
autor, é o “real do texto” e a equivalência entre o ato e o desmentido pode ser
reconhecida no fato de que, “o instante lógico do ato, enquanto significante inscrito no
real e equivalendo ao sujeito, se inclui entre as experiências que objetam ou contradizem
crenças, fantasias e satisfações do sujeito e, por isso, são desmentidas”. Essa é a razão
pela qual o sujeito não pode reconhecer efeitos subjetivos dos atos que lança (BARROS,
L. M. 2005, p. 98).
Essa leitura é muito interessante e tem o valor de distinguir as diferentes maneiras
de um sujeito dividir-se diante da castração. Não podemos desconsiderar, no entanto, que
a estrutura do ato fornecida por Lacan, no Seminário XV, inspirada no grupo de Klein,
coloca em jogo a divisão do sujeito com o objeto a, elemento que aparece de maneira
explícita no esquema. Não sabemos como Luiz Moreira Barros relacionaria esse “real do
texto” que surge em função do desmentido com o objeto a, mas gostaríamos de sugerir
algumas leituras da equivalência do ato analítico com o desmentido, que leve em

171
consideração o objeto a como o resultado do corte operado sobre a superfície topológica
do sujeito.
A divisão do sujeito é apreendida por Lacan, a partir da idéia de que o objeto a é o
resultado da cisão que o sujeito sofre pela ação de castração do significante (LACAN, J.
84
1960/1966, p. 815, 816), especialmente pelo significante do falo . Isso foi
exaustivamente mostrado com os exemplos de sépartition, encontrados no Seminário XI.
Ali, o objeto a é o resultado da operação de separação. Ele surge no ponto de
recobrimento das duas faltas, a primeira situada no campo do Outro (falta um significante
no campo do Outro, o que o impede de representar integralmente o sujeito) e a segunda
situada no campo do sujeito (o gozo que é subtraído do campo do sujeito).
Em função dessa perspectiva, várias leituras podem ser feitas dessa ligação
estrutural entre ato e desmentido. A primeira delas é dizer que o ato incide sobre a
divisão do sujeito, provocada em razão da castração derivada da ação da linguagem,
promovendo, com sua incidência, um tratamento dessa divisão. É a idéia que
introduzimos anteriormente de que a divisão do sujeito é condição de possibilidade do ato
analítico.
Outra maneira de se interpretar a mesma afirmação é dizer que o ato opera de
modo bastante específico, distinguindo-se da interpretação de sentido. O agente do ato é
o objeto a, e o efeito que ele produz é o da suspensão momentânea do pensamento. O ato
separa, por um instante, o objeto a e o pensamento e, assim, reedita a divisão estrutural
do sujeito.
Além do mais, como veremos adiante, o produto da operação transferência – ou
seja, o resultado do ato analítico – é a separação de -ϕ e de a. O que queremos dizer é que
o efeito fundamental do ato é a operação de separação, que se produz, na dimensão da
transferência. Essa idéia é consonante com a perspectiva da operação de separação
apresentada em 1964, quando Lacan diz que a separação tem a função de limite, mas
também a função de torsão, na qual reconhecemos a Ichspaltung (a divisão do sujeito). E
também quando ele faz equivaler a palavra separar (séparer em francês) ao termo se
parere, que ele define como “engendrar a si mesmo (LACAN, J. 1964/1966, p. 842, 843).

84
No Seminário Mais Ainda, Lacan situará o falo como uma função e não mais como um significante.

172
O que pretendemos mostrar é que, no grafo do ato analítico, a separação do objeto
a da dimensão imaginária da castração, situada pela fantasia, é o que permite ao sujeito
perceber que o objeto causa de seu desejo nada mais é do que uma resposta ao enigma do
desejo do Outro. É o que possibilita que o sujeito em análise seja engendrado, gerado, de
uma forma inédita. Pois a análise é a operação que faz surgir um novo sujeito.
Se o sujeito chega à análise numa posição de alienação, em função de suas
identificações imaginárias e simbólicas, a resolução da transferência, no processo de
análise, promove uma separação. Separação do sujeito dos significantes mestres e do
falso ser do narcisismo, determinantes de sua posição subjetiva. O que faz aparecer o
objeto a como o elemento que dava consistência à resposta do analisante ao enigma do
desejo do Outro. Essa é a condição para que o sujeito alcance, na análise, uma solução
para o impasse de seu desejo, a partir da travessia da fantasia.
Tal separação só pode acontecer na dimensão da transferência. É necessário dizer
que, segundo Lacan, o ato analítico está intimamente ligado à transferência, não existindo
fora dessa dimensão (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1968).
A transferência, segundo Freud, é condicionada pela experiência da análise, pelo
convite que se faz ao analisante para que ele associe livremente. Ela é o resultado da
ligação que surge, espontaneamente, do paciente com o analista (FREUD, S. 1913/1996,
p. 154) num dispositivo criado artificialmente.
É por isso que a análise não pode, de nenhum modo, ser classificada como um
processo intelectual, pois ela abrange, de acordo com Freud, os laços emocionais do
analisante com o analista (FREUD, S. 1926/1996, p. 217).
A relação afetiva com o analista é o que faz com que o conflito neurótico seja
transferido para o âmbito da análise – o que Freud chamou de “neurose de transferência”.
E é, na “neurose de transferência”, que a experiência analítica se processa, o tratamento
da neurose, nesse registro, confundindo-se com o tratamento da própria transferência.
Assim, torna-se compreensível porque Lacan faz coincidir a operação
transferência, no grafo do ato analítico, com a operação produto, do grupo de Klein. A
operação transferência, no grafo do ato analítico, é aquela que parte do início lógico da
análise ou não penso ou não sou para chegar ao seu resultado final. Ou seja, o grafo de
Lacan mostra que a transferência é o eixo central do tratamento analítico. Ela está no seu

173
início, quando liga o analisante ao analista, tanto pela via de suposição de saber quanto
pela via do amor. Ela está presente ao longo de seu desenvolvimento, quando promove a
elaboração de saber relativa ao sintoma, e quando aparece sob a forma da repetição e da
resistência. Por último, ela está em seu final, o qual depende da resolução da
transferência e da subversão do sujeito suposto saber.
É preciso dizer que a transferência, na elaboração lacaniana, comporta dupla
vertente: a do saber e a do objeto. No Seminário XI, Lacan, num primeiro momento,
propõe que a transferência é a colocação em ato da realidade sexual do inconsciente
(LACAN, J. 1964/1973, p. 137, 138), para, em seguida, afirmar que o sujeito suposto
saber é o pivô da transferência (LACAN, J. 1964/1973, p. 211). Ele apresenta, então, no
mesmo seminário, duas definições da transferência, que se encontram numa relação de
tensão. A primeira referida ao saber, velado pelo sintoma, e a segunda referida ao objeto.

A pergunta sobre o significado do sintoma é o que instaura, na análise, a função


do sujeito suposto saber, sustentada pelo fato de que um S2 re-significa, retroativamente,
um S1. É o que Freud já havia apontado ao dizer que a transferência é o motor do
tratamento analítico, é o que torna possível esse tratamento. Por outro lado, a
transferência faz surgir o amor e seus fenômenos e, paradoxalmente, acaba por se tornar
uma das fontes de maior resistência à associação livre.
A vertente da transferência, que diz respeito ao amor, ao objeto e à realidade
sexual do inconsciente já havia sido localizada por Freud, no fenômeno clínico da
repetição, tanto no caso Dora quanto no texto “Repetir, recordar e elaborar”, de 1914,
onde ele reconhece que a psicanálise, longe de ser uma prática exclusivamente
interpretativa, supõe o “manejo da transferência”, dimensão onde encontramos a reedição
da relação do sujeito com seus objetos.
A vertente da transferência, que diz respeito ao objeto, foi reconhecida
igualmente, por Lacan, antes mesmo do Seminário XI. No Seminário VIII, A
transferência, por exemplo, onde ele nos fala da ágalma, objeto precioso que Alcebíades
supõe estar escondido em Sócrates e que se encontra na origem do seu amor por ele
(LACAN, J. 1960-61/1991, p. 172).

174
A concepção da transferência em sua dupla vertente (a do saber e a do objeto) é
muito importante para se entender a relação do ato analítico com a subversão do sujeito
suposto saber e com a destituição subjetiva, que destitui o sujeito enquanto falta-a-ser.
Podemos reconhecer essa dupla vertente nas citações de Lacan ao comentar a
liquidação da transferência em 1967:

Assim, o ser do desejo se reúne ao ser do saber para renascer, ao que eles
se enlaçam numa banda, feita com uma só borda, onde se inscreve uma só
falta, a que sustenta a ágalma (LACAN, J. 1967/2001, p. 254).

A transferência nunca foi senão o pivô desta alternância mesma (LACAN,


J. 1967/2001, p. 254).

Lacan retoma, no comentário sobre a liquidação da transferência, a idéia do


recobrimento das duas faltas, na operação de separação, constituinte do sujeito,
apresentada no Seminário XI. A primeira situada no campo do Outro e definida como o
desejo do Outro é a falta no campo do saber. A segunda situada no campo do sujeito,
relacionada ao ser que o sujeito perde ao se fazer representar no campo do Outro, é a falta
no campo do desejo. Está relacionada ao objeto a, causa do desejo.
Lacan, nesse comentário, retoma, igualmente, a perspectiva que destacamos
acima, qual seja, a de que o objeto a que aparece como perda, na operação alienação,
reaparece como falta na operação verdade, e que a perda e a falta são articuladas
logicamente na operação transferência.
Sob o ponto de vista de Lacan, as operações de alienação e separação esboçam
duas dimensões que se articulam: o Outro (campo onde inscrevemos o saber, o sentido, o
pensamento) e o sujeito (campo onde inscrevemos o desejo, o ser, o objeto a). No
Seminário XI, essas operações se articulam na teoria dos conjuntos e dizem respeito à
constituição do sujeito. Mas, em 1967, como vimos, Lacan sugere que elas se articulam
numa figura da topologia, a banda de Moebius (banda feita com uma só borda), e são
implicadas no ato do analista produzido na transferência. O desejo ocasionado pela falta
do objeto a (relativo ao sujeito) e o saber no qual falta um significante (relativo ao

175
Outro), como constatamos na citação acima, estão numa única e mesma face, e é por isso
que Lacan diz que a falta no campo do saber faz uma com a falta no campo do desejo.
Assim, o que Lacan coloca em questão com a operação transferência, no esquema
que analisamos sobre o ato analítico, é que esse último incide na neurose de transferência,
promovendo um re-ordenamento das relações de suas duas vertentes: a do saber e a do
objeto. Poderíamos também dizer que o ato analítico produz o rearranjo das relações do
sujeito com o Outro.
O ato, à semelhança da Verleugnung (desmentido), promove um corte sobre a
superfície topológica do sujeito, em função da transferência (banda de uma só borda que
enlaça o saber e o objeto), tornando uma a falta no campo do saber (desejo do Outro) e a
falta no campo do sujeito (objeto a, causa de desejo).
Esse corte provoca o re-ordenamento das relações entre o saber e o objeto,
implicando na eliminação do sujeito suposto saber. De acordo com Lacan, analisar a
transferência é o mesmo que eliminar o sujeito suposto saber, fazendo aparecer o resíduo
que resiste à operação do saber e que Lacan chamou de verdade (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 21 Février, 1968).
Aqui, a perspectiva de Lacan aproxima-se da apresentada por Freud em “Análise
terminável e interminável”, onde o psicanalista vienense sustentou que, na experiência
analítica, para além da decifração de sentido promovida pela interpretação, subsiste um
resto inanalisável, chamado por ele de “complexo de castração” (FREUD, S. 1937/1996,
p. 268). Freud e Lacan, cada um a seu modo, constataram que a interpretação é uma
operação de saber que encontra seu limite no fato de que o gozo não é mensagem, não
podendo, por essa razão, ser interpretado. Lacan chama o gozo residual, que permanece à
margem da operação de saber, de objeto a, relacionando-o à verdade que tem valor de
causa. 85
O ato analítico, segundo Lacan, é a intervenção do analista que opera uma
mudança, na transferência, no nível do sujeito suposto saber (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968), reorganizando as relações entre o saber e a
verdade. E o conjunto apresentado por Lacan, no canto inferior esquerdo do esquema,

85
Sabemos que Lacan, em A ciência e a verdade, aproximou a verdade do objeto a, em sua função de
causa, e que no Seminário XVII afirmou que a verdade não é atributo, mas causa (LACAN, J. 1969-
70/1991, p. 73).

176
como produto da operação transferência, parece sugerir que, com o ato do final da
análise, alcançamos uma solução que combina a causa do desejo e o saber. Ou podemos
recorrer aos termos cartesianos para dizer que a solução do final de análise combina de
algum modo, ser e pensamento.
O ser alcançado no final de análise, no entanto, não é o mesmo ser, afirmado pelo
sujeito no início da análise: falso ser do narcisismo, solidário com o fantasma do sujeito.
Como vimos, no Capítulo II, a fantasia se define como a resposta produzida pelo sujeito à
pergunta que lhe dirige o Outro: “quem é você?” ou “o que desejas?”. A fantasia é a
construção que envolve objetos tomados dos orifícios corporais, com os quais o sujeito
busca responder ao Outro algo sobre seu ser. Esse não é o ser, obtido por intermédio do
objeto a, no final do percurso analítico.
Se Lacan propõe que a falta-a-ser, produzida artificialmente pela análise, pode ser
resolvida com o ato analítico, isso não implica em nenhum tipo de afirmação do ser do
sujeito através da fantasia. A fantasia é aquilo que Lacan supõe que o analisante tenha
atravessado para poder atingir o termo do processo analítico.
A lógica do final do tratamento, no Seminário XV, é a lógica da travessia da
fantasia. Sabemos que essa não é a última palavra de Lacan sobre o assunto. Mais tarde,
ele descreverá o ser alcançado pelo analisante, no final de análise, nos termos da
identificação do sujeito ao seu sintoma. Em 1967, no entanto, para Lacan, terminar uma
análise é atravessar a fantasia. Por isso, podemos dizer que o ser, afirmado pelo sujeito no
final da análise, é o ser alcançado depois do atravessamento da fantasia.
Alcançar esse ser produz como efeito a supressão da indeterminação subjetiva, a
qual deve ser perdida na análise, pois a manutenção da falta-a-ser perpetuaria a análise ao
infinito. A análise é um processo que deve acabar com o efeito sujeito, e isso é o que
Lacan chamou em “A proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista na escola” de
destituição subjetiva (LACAN, J. 1967/2001, p. 252). A destituição do sujeito, na análise,
deve ser entendida como a destituição da vacilação subjetiva na cadeia, na qual o sujeito
é representado por um significante para outro significante.
O processo analítico precisa ser capaz de depor o sujeito dividido e toda a
argumentação do Seminário XV visa à construção de respostas para dar conta de como é
que isso ocorre. Como é que se obtém a suspensão da falta-a-ser, com a afirmação de um

177
“eu sou” diferente da afirmação do ser do sujeito na fantasia, e da afirmação do ser pela
via das identificações ideais imaginárias e simbólicas? De que modo uma solução para a
análise pode ser obtida, a partir da combinação do -ϕ com o objeto a que, ao longo do
processo, se condensa como o ser do sujeito? É o que tentaremos esclarecer, iluminando
o esquema que acabamos de apresentar, com um caso clínico.

4.5- O esquema do ato analítico iluminado pela experiência clínica.

A apreensão do que se passa nas operações alienação, verdade e transferência,


apresentadas por Lacan, no grafo do ato analítico, pode ser facilitada quando tomamos
como referência um caso clínico. Sem a referência da experiência do inconsciente, pode
parecer que realizamos, aqui, uma discussão meramente teórica. Sendo assim,
gostaríamos de refazer o percurso indicado, no grafo, tomando como bússola um relato
de análise efetuado pelo próprio analisante depois de tê-la concluído 86.
A primeira análise é iniciada depois de um “tropeço” amoroso vivenciado pelo
sujeito que provoca a sensação de impotência e de “estar em segundo lugar”. Depois da
obtenção de uma solução terapêutica efêmera que produziu o sentimento de potência
extrema, bem como o de poder prescindir do pai, um novo “tropeço” amoroso, análogo
ao primeiro, o faz retornar à sensação de “estar em segundo lugar”.

Nesse movimento, é possível observar o batimento do inconsciente que indicamos


acima, ao dizer que, para o sujeito, existe uma dialética que alterna as posições de
alienação e de verdade. No caso que apresentamos, um efeito de verdade do inconsciente,
provocado por um descompasso amoroso, fez vacilar o sintoma do sujeito, que respondia
à inexistência da relação sexual, fazendo-o procurar uma primeira análise. Nesse
momento preciso, encontramos um sujeito que pensa e que já não sabe quem é. A certeza
sobre sua identidade foi abalada pelo revés amoroso.
Na primeira análise, ele reconstrói seu ser, a partir da reorganização de suas
identificações, o qual lhe confere, agora, um sentimento de potência que o faz crer que
86
Trata-se dos testemunhos escritos e publicados por Fabian Abraham Naparstek no livro El pase – uma
experiência de Escuela, cujas referências podem ser encontradas na bibliografia dessa tese.

178
pode dispensar o pai. Temos, aqui, uma retomada da posição de alienação.
Evidentemente as identificações alienantes, de agora, não são exatamente as mesmas que
as de antes da primeira análise. O sintoma sofreu um deslocamento, possivelmente em
função de sua decifração, mas a posição de gozo do sujeito não foi tocada. As
identificações que surgem como consequência da primeira análise não resultam da
travessia da fantasia, e mostram sua fragilidade, quando um segundo “tropeço” amoroso
precipita novamente o sujeito na sensação de “estar em segundo lugar”. O sintoma
reconstituído na primeira análise vacila, e o efeito de verdade que coloca o inconsciente
novamente em marcha, mostra que o sujeito encontra-se na mesma posição diante do
desejo do Outro, aquela determinada por sua fantasia.
Nesse momento, o sujeito tornou-se gago diante daqueles que encarnavam para
ele o Outro e fez uma adição que o deixou sem dicção e sem fala. Na segunda análise,
algumas soluções, então, se apresentaram: a relação com um irmão, um semelhante, e o
trabalho, na universidade, como professor. Essas identificações permitiram que ele se
liberasse da gagueira e, a partir desse ponto, iniciou-se o movimento final da análise, o
qual produzirá, na transferência, o que designamos há pouco como a separação de -ϕ e
a. Vejamos como isso se deu.
O analisante, num determinado momento, pensa em terminar a análise e esse
pensamento, então, associa-se a outro: “agora ninguém mais poderá lhe dar a mão”. Uma
recordação de infância é evocada nesse contexto. A mão era um pequeno adorno 87 com a
forma de figa, que enfeitava o colo de sua mãe (uma mão que agarrava o próprio
polegar).
A partir do surgimento desse elemento, na análise, o sujeito pôde construir sua
fantasia: sua resposta ao desejo do Outro era a de “ser esse adorno para o Outro”. A
palavra adorno foi elaborada simbolicamente, na análise, resultando em alguns
significantes equivalentes: ser a jóia do Outro, ser o dileto, o predileto, a predileção, a
dileção, dar lições (profissão que ele elegeu), etc.
A faceta imaginária do adorno, com a forma de figa, apareceu na lembrança de
uma brincadeira feita repetidas vezes por um tio, com uma pregnância paterna muito
forte, e que deixava o menino perplexo. Esse tio fingia que lhe arrancava o nariz,

87
A palavra usada, no texto em espanhol, é dije.

179
mostrando-o em seguida com a forma da figa já descrita. Essa era a versão imaginária da
castração, designada por Lacan com -ϕ e que conferia brilho fálico à figa.
Finalmente, essa versão imaginária da castração deslocou-se para outro tipo de
expressão, que, dessa vez, apontou para o objeto que se encontrava aí em jogo. O sujeito
passou da frase “ser o adorno ou a jóia para o Outro” para outra formulação: “ser a voz
88
como o adorno para o Outro” . A segunda formulação fazia referência ao sintoma de
gagueira e de ausência de dicção que o analisante apresentou, no início da segunda
análise. Além do mais, ela estava relacionada a uma passagem bíblica, na qual Moisés
gago necessitava da tradução do irmão para falar ao Faraó.
A partir daí, o sujeito se deu conta de que sua posição na fantasia, “ser a voz para
o Outro”, implicava numa enorme satisfação extraída do ato de falar, o que tornava sua
análise interminável. Aqui, percebemos claramente o que Freud chamou de neurose de
transferência. O analista está incluído no sintoma do sujeito (a gagueira referida à fantasia
de “ser a voz para o Outro”). Percebemos também que a posição do sujeito de “ser a voz
para o Outro”, na transferência, coloca em jogo o objeto a como voz.
Isso é o que Lacan localizou na operação transferência apresentada, no grafo do
ato analítico, quando propôs que essa operação articula logicamente a falta no campo do
Outro (desejo do Outro) e a perda no campo do sujeito (objeto a). No caso que
discutimos, o desejo do Outro, tal qual ele foi interpretado pelo sujeito, articulou-se ao
objeto a como voz. O sujeito se fez voz para responder à falta no campo do Outro.
Algum tempo mais tarde, um sonho relatado, na análise, deu as coordenadas do
impasse em que se encontrava o sujeito. Esse sonho mostrava o analisante diante de uma
aula magna, na universidade, totalmente vazia e a seu lado se postavam uma mulher e um
homem. O Outro para o qual o sujeito havia falado, nos últimos anos, aparecia como
inexistente, encarnado, na imagem do auditório vazio.
Esse sonho mostra, com muita clareza, o que indicamos, na análise do grafo,
como a assunção da castração, no final do processo de análise, correlativa à ausência de
garantias do Outro. Na formação onírica, o sujeito fez o encontro com a inexistência do
Outro o que lhe permitiu ver que aquele com o qual ele falou durante todos esses anos,

88
A possibilidade de passagem da primeira para a segunda formulação é mais clara em espanhol, pois dije,
nessa língua, significa ao mesmo tempo adorno e disse (do verbo dizer).

180
emprestando-lhe sua voz, nada mais era do que uma ficção. Ao mesmo tempo, a presença
do casal, na cena do sonho, apontava para o gozo de auto-segregação que apareceu nos
dois tropeços amorosos, nos quais o analisante teve a sensação de “estar em segundo
lugar”.
Um último sonho, em análise, relativo à problemática da paternidade vivida pelo
analisante, foi construído a partir de um resto diurno: a frase dita para um de seus filhos
“você tem a palavra mágica”. No sonho, o analisante matava seu filho mais velho e ele se
perguntou pela razão dessa formação do inconsciente. A resposta foi mais uma vez
encontrada numa passagem do velho testamento, na qual Abraão, pai do povo judeu,
estava disposto a sacrificar seu próprio filho a pedido de Deus. O sacrifício estava
relacionado à crença inabalável de Abraão na palavra salvadora e o sujeito concluiu a
partir daí, que não havia palavra mágica nem salvadora.
Esperar a palavra mágica o havia mantido falando, dando sua voz ao Outro, mas
essa posição, segundo o relato, se dissolveu depois da fantasia ter sido atravessada. O
sujeito pôde então ver, que a função do objeto voz nada mais era do que a de responder
ao desejo do Outro. Isso é o que Lacan indicou como a separação que se processa, na
operação transferência. A separação do sujeito de seus significantes mestres e do falso ser
do narcisismo, determinantes de sua posição subjetiva, e que faz aparecer o objeto a
(nesse caso, a voz) como o elemento que dava consistência à resposta do analisante ao
enigma do desejo do Outro.
Mas, a análise, de acordo com o relato, ainda foi além, pois em função do
atravessamento da fantasia, o sujeito pôde extrair o S1, que o sustentava falando ao
Outro. E é a partir dessa extração que surgiu para o sujeito a possibilidade de alcançar um
ser diferente daquele ao qual a fantasia dava consistência.
Segundo o testemunho, o nascimento do sujeito foi sucedido por uma vacilação
relativa à ordem em que seus nomes seriam colocados (o primeiro e o segundo). A escola
primária recolocou em jogo essa primeira vacilação, quando o sujeito teve que utilizar os
dois nomes separadamente. Nesse contexto, e por diversas circunstâncias, um dos nomes
– Abraham – enlaçou-se à castração. O importante é que o esvaziamento de sentido do
nome Abraham, na análise, produziu a passagem do nome judeu ao que o autor do relato

181
chamou de nome próprio. O percurso analítico esvaziou o nome Abraham da significação
paterna, separando aquilo que do nome não tem sentido.
Quando, no sonho, apareceu a identificação fundamental do sujeito a Abraão
(Abraham), foi extraída uma letra do nome, , equivalente ao h em castelhano. Essa
letra, segundo o autor, é a que se agrega à forma original do nome Abraham, como a
cicatriz do pacto com Deus que fica marcado, na carne, com a circuncisão. Ou seja, a
letra surgiu como aquela que escreveu para o sujeito o lugar do sacrifício e da
castração imaginária, -ϕ. Ao mesmo tempo, é uma letra muda, que não tem som que lhe
corresponda, fazendo ressoar o objeto voz, no nome próprio.
O que é possível notar é que toda a problemática edípica e da castração apareceu
implicada, nesse sonho, do final de análise, associada ao nome Abraham, e mais
especificamente à letra , o S1 que havia, até então, sustentado o movimento da cadeia
significante na análise.
De acordo com o relato, a extração do S1 suspendeu a busca pela última palavra e
interrompeu o fluxo dos enunciados, na análise. Foi nesse momento, que o analisante pôs
fim ao processo analítico, quando, a partir do nome Abraham, pôde extrair um nome
próprio. Abraham era um significante do campo do Outro, relativo à tradição judaica, ao
saber, ao S2, à cadeia, ao Édipo, etc. Do nome Abraham, se extraiu que apareceu como
S1, como letra, como significante solto e sem sentido. E, nessa nomeação do sujeito por
, podemos reconhecer algo do que Lacan chamou do ser alcançado pelo sujeito, no final
do percurso analítico. Ser que combina a dimensão da castração, associada à cadeia e ao
pensamento, e a dimensão do objeto a (a voz).
A releitura do grafo a partir do caso clínico esclarece que a apresentação da
estrutura do ato analítico por Lacan, no Seminário XV, não é um mero exercício lógico.
Buscaremos, a partir de agora, outros elementos que possam iluminar, igualmente, as
operações, no âmbito da análise, de que trata o esquema.
Esses elementos serão buscados em dois grupos de contribuições fundamentais. O
primeiro deles é o texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, de 1945,
que apesar de ter sido escrito muito antes da elaboração do conceito de ato analítico, é um
texto princeps sobre o ato. A retomada do texto, com o intuito de iluminar o problema do
ato, mostra, mais uma vez, quão imprópria é a leitura que pretenda instituir a distinção

182
rígida entre uma era do pensamento lacaniano, presidida pelo conceito de interpretação e
outra, orientada pelo conceito de ato. O texto que aborda o apólogo dos três prisioneiros
evidencia que a estrutura do ato é introduzida muito precocemente, por Lacan, em seu
ensino.
O outro grupo de contribuições fundamentais vem de Freud. Logo depois da
discussão sobre “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, veremos o que os
textos freudianos, de 1937, podem nos ensinar sobre a estrutura do ato analítico.
Utilizaremos as elaborações freudianas a respeito do final de análise encontradas,
no texto “Análise terminável e interminável”, onde Freud pronunciou sua última palavra
sobre o assunto. Recorreremos também aos textos “Moisés e o monoteísmo” e
“Construções em análise”, que lhe são contemporâneos. Constataremos que, em 1937,
Freud se vê às voltas com questões que orientam Lacan, quando ministra suas aulas sobre
o ato.
Nosso objetivo é o de cotejar o Seminário O ato analítico com os textos
freudianos desse período, para verificarmos se os últimos podem lançar alguma luz sobre
o primeiro. E, aqui, é importante um esclarecimento. Até esse ponto da investigação,
nosso objeto de interesse foi o ato do analista. Circunscrevemos as sucessivas definições
do ato do analista, no ensino de Lacan, que deslocaram continuamente a concepção do
que é a intervenção analítica afinada à ética própria da psicanálise. Alguns leitores
podem, então, pensar que abordar o tema do final de análise significa abandonar nosso
objeto, tal qual o acabamos de definir. Por essa razão, gostaríamos de esclarecer, que não
podemos negligenciar o fato de que a discussão a respeito do ato analítico é feita, por
Lacan, no contexto do final de análise.
Como assinalamos anteriormente, para Lacan, o ato analítico, por excelência, é o
ato do final de análise, que transforma o analisante em analista. Isso não significa, no
entanto, que a ocorrência do ato só seja possível no final do percurso analítico.
Acreditamos, ao contrário, que o ato pode ocorrer ao longo de todo o processo, cada vez
que os limites do simbólico se fizerem notar. Acreditamos que Lacan elege o final de
análise para demonstrar o conceito de ato, porque é um momento extremamente
favorável para essa demonstração. O final de análise evidencia de modo contundente o

183
impasse entre a trilha da interpretação de sentido e o gozo. O impasse entre o pensamento
e o ser.
Assim, quando nos interessamos pelo que Freud disse sobre o final de análise, não
estamos, em absoluto, abandonando o ato do analista como objeto de investigação. Não
estamos tampouco limitando a possibilidade da ocorrência do ato apenas nesse contexto.
A discussão sobre o final de análise nos convém, somente na medida em que esclarece a
concepção do ato analítico como a intervenção que incide sobre o resíduo de gozo
deixado à margem pelo procedimento interpretativo. Apenas, na medida em que ilumina
a referência tomada de Lacan, segundo a qual “o ato analítico é o contrário do ato
sexual”. Essa concepção, como veremos, encontra-se em descontinuidade com a teoria da
interpretação entendida como decifração, na medida em que re-define as relações entre a
causa, o significante e o sentido.
Assim, mantendo como referência o esquema do Seminário XV que acabamos de
analisar (o qual apresenta a dialética entre ser e pensamento, na estrutura do ato analítico)
buscaremos relacioná-lo com as contribuições freudianas e lacanianas que acabamos de
mencionar.
Em seguida, de posse dos elementos esclarecedores extraídos dessas
contribuições, retornaremos ao Seminário XV, onde analisaremos o paradigma do ato
analítico oferecido por Lacan: a travessia do Rubicão por Júlio César. Ao longo da
análise desse ato exemplar, acrescentaremos e relacionaremos, oportunamente, os dados
que podem iluminar o problema, retirados dos textos lacanianos contemporâneos do
Seminário XV 89 e dos comentários de Freud sobre o ato.
Sabemos que Freud nunca enunciou algo a respeito do ato pensado do lado do
analista. O ato tomado do lado do analista e associado ao final de análise é uma
contribuição lacaniana. Freud, no entanto, escreveu sobre o ato em vários momentos de
seu ensino, usando termos que não são homogêneos. Sônia Alberti fez um inventário
desses termos, mostrando que Freud usa o termo aktion para falar da ação específica no
“Projeto para uma psicologia científica” e o termo wiederholungsaktionen, para falar das
ações de repetição. Ele utiliza a palavra tat para nomear o ato do assassinato do pai em

89
Referimo-nos aos textos publicados nos Outros Escritos: “A proposição de 9 de outubro sobre o
psicanalista na escola”, “Discurso à Escola Freudiana de Paris”, “A lógica do fantasma”, “O engano do
sujeito suposto saber”, “Da psicanálise em suas relações com a realidade” e, por último, “O ato analítico”.

184
“Totem e tabu” e retoma o termo latino agieren para nomear a repetição em “Recordar,
repetir e elaborar”. Por último, usa o termo akt para designar tanto o ato sexual quanto o
jogo do Fort da (o akt do Fort da).
Como é possível constatar, existe mesmo uma variação semântica no que diz
respeito ao ato, no pensamento de Freud, o qual foi pensado preferencialmente na
perspectiva da constituição do sujeito, do sintoma e da repetição na transferência.
Isso, no entanto, não exclui o fato de Lacan ter se inspirado nas contribuições
freudianas, ao elaborar seu conceito de ato. Veremos que várias características do ato
apresentadas, por Lacan, no Seminário XV, já estavam presentes nas noções de ato, em
Freud.
Uma vez esclarecido o caminho que percorreremos desse ponto até o final do
capítulo, passemos à discussão sobre o texto de Lacan “O tempo lógico e a asserção da
certeza antecipada”.

5- O que o texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” pode nos


ensinar sobre o ato analítico em 1967?

Sabemos que não apenas o ato analítico, mas também a interpretação é


impensável sem a consideração de um manejo temporal. A experiência da psicanálise,
todos sabem, requer tempo. Tempo para que o analisante conte sua história, tempo para
que o sintoma seja decifrado, tempo para que a gramática da fantasia seja decantada.
Essa é a razão pela qual encontramos várias referências na obra de Freud sobre o
tempo. A primeira delas diz respeito à noção de nachtraglich, com a qual ele aponta a
função lógica do tempo e o fato de que a causalidade psíquica não é linear, implicando na
sobreposição de inscrições diversas, que só adquirem sentido a posteriori.
A segunda referência é encontrada no capítulo VII de A Interpretação dos sonhos
e diz respeito à indestrutibilidade dos processos inconscientes. Freud sustenta que, no
inconsciente, nada é passado e nada é esquecido (FREUD, S. 1900/1996, p. 583). A
mesma idéia é retomada no texto “O inconsciente”, no qual ele ressalta que os processos
inconscientes são atemporais, não sendo alterados pela passagem do tempo. O tempo

185
sendo algo que pertence, inteiramente, ao sistema consciente (FREUD, S. 1915/1996, p.
192).
Encontramos duas outras referências ao tempo, no relato do caso do Homem dos
Lobos. Em uma delas, Freud observa que os primeiros anos do tratamento não
produziram grandes resultados e, nesse contexto, indica que o analista, nesta situação,
deve comportar-se como o próprio inconsciente, a saber, deve desconsiderar o tempo
(FREUD, S. 1918[1914], p.22). Na outra passagem, Freud nos descreve a manobra do
tempo utilizada, por ele, na condução do caso. Fixa, com o paciente, a data do término do
tratamento, provocando como efeito a aceleração do processo de análise.
Por último, temos o artigo “Análise terminável e interminável”, onde Freud
responde a Rank e Ferenczi, os quais reivindicaram cada um ao seu modo, a redução do
tempo da análise, considerado, por eles, longo demais. Em sua resposta, Freud desloca o
tema da duração cronológica do tratamento, que lhe parece irrelevante, para o tema da
conclusão lógica da análise. Para o psicanalista vienense, se o tempo da análise deve ser
objeto de reflexão, a questão não pode estar atrelada à fenomenologia da duração, e sim,
às referências conceituais que nos indicam que um processo analítico chegou ao fim. O
que significa que a questão colocada ao analista sobre o tempo da intervenção analítica
tem a ver, não com qualquer tipo de cronologia, mas com a noção de um tempo lógico.
Uma vez iniciada a temporalidade própria da associação livre, onde os enunciados
são colocados em série, trata-se de saber como passar de uma série infinita,
potencialmente interminável, a uma seqüência finita de enunciados. E ainda levando em
consideração que a série finita difere de uma série que é simplesmente interrompida. Na
série finita de enunciados, o sujeito interrompe o fluxo de frases porque uma conclusão
lógica foi precipitada 90.
A idéia freudiana da atemporalidade do inconsciente é mais claramente
compreendida sob a luz das contribuições de Lacan que nos ensinam que o inconsciente é
da ordem da estrutura, na qual se trata de posição e não de sucessão. A noção de estrutura
desconsidera o que diz respeito à origem e à evolução no tempo. E a questão que, então,
se coloca para o analista é a de saber como articular a função do tempo, no processo

90
E esta conclusão lógica pode ser precipitada tanto na unidade temporal de uma sessão, quanto na unidade
temporal do processo analítico pensado como um todo.

186
analítico, levando em consideração a estrutura atemporal e necessária do inconsciente (o
que não cessa de se escrever) e o seu indeterminado, sua contingência (o que cessa de não
se escrever). 91
A teoria do ato analítico apresentada, inicialmente, no texto “O tempo lógico e a
asserção da certeza antecipada” e, posteriormente, no Seminário XV representa o esforço
de Lacan para responder a essa pergunta. E nossa hipótese é a de que essa teoria só pode
ser compreendida quando consideramos a concepção do inconsciente apresentada no
Seminário XI: inconsciente pulsátil que não é permanente no tempo e que só se realiza na
análise.
Nosso ponto de partida para a explicação da relação existente entre o ato do
analista e o tempo será o texto de 1945, “O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada”. O que este trabalho mostra com clareza é que a temporalidade do
lançamento do ato é a de um instante, mas isso não esgota o tempo do ato, pois além do
lançamento do ato, temos o tempo de seus desdobramentos e essa perspectiva é
demonstrada com as formulações lacanianas sobre o instante de ver, o tempo de
compreender e o momento de concluir.
Tais formulações nos apresentam uma estrutura que concerne um tempo
epistêmico e não cronológico. Temos o instante de ver, que aparece como uma
fulguração: configura-se um problema onde algo se encontra elidido e perdido. Em
seguida, temos o tempo de compreender, de duração indeterminada, e que depende da
capacidade de cada um. Finalmente, temos o momento de concluir, sempre precipitado,
na medida em que a certeza da conclusão antecipa-se à sua realização.

91
Lacan, no Seminário XX, tece uma reflexão sobre a experiência do inconsciente tomando como
referência a lógica modal aristotélica. Para Aristóteles, as categorias “possível”, “impossível”,
“contingente” e “necessário” são usadas associadas a proposições como: “é possível que S seja P”; “é
impossível - ou não é possível – que S seja P”; “é contingente - ou não é necessário, ainda que possível –
que S seja P”; “é necessário que S seja P”. As proposições que fazem menção ao “necessário”, ao
“contingente”, ao “possível” e ao “impossível” são chamadas de modais, por Aristóteles, porque indicam o
modo como o sujeito associa-se ao predicado. Lacan, no Seminário XX, faz uso da lógica modal aristotélica
para conjugar os modos de cada sujeito relacionar-se com a função fálica. Ele transpõe as proposições
modais para o registro da escrita. O necessário é definido como aquilo que não cessa de se escrever, é a
cadeia significante que se escreve sem parar. A contingência é aquilo que cessa de não se escrever, é o que
pode eventualmente se inscrever, ou ainda, é o que é possível escrever-se de um modo ou de outro. O
possível é o que cessa de se escrever, o que não está escrito de uma vez por todas. O impossível é definido
como aquilo que não cessa de não se escrever. É o que não se escreve jamais, mas que ainda assim não se
detém. (LACAN, J. 1971-72/1975, p. 86, 87). O impossível é o real.

187
Nota-se que a expressão “tempo lógico”, usada no título do escrito, já é um
forçamento que faz Lacan, ao fazer valer o tempo, no domínio da lógica, onde ele está
ausente.
O tempo é o que introduz o elemento libidinal no sofisma dos três prisioneiros. As
três modalidades do tempo ali apresentadas (instante de ver, tempo de compreender e
momento de concluir) indicam uma tensão e o momento de concluir é pensado a partir do
modelo da “descarga”, numa referência ao circuito de tensão/resolução que acompanha a
dimensão quantitativa do princípio do prazer. No contexto da tensão temporal, Lacan
introduz o ato que precipita a resolução do problema. 92
Vejamos mais de perto do que trata o texto. Ali, como todos sabem, Lacan discute
um apólogo que versa sobre o destino de três detentos, decidido em função da capacidade
de raciocínio de cada um.
O diretor de uma prisão reúne três prisioneiros e promete a liberdade àquele que
descobrir a cor do disco que lhe pregou às costas, disco escolhido entre três brancos e
dois pretos. Os prisioneiros não podem comunicar uns aos outros os resultados de suas
análises, nem tampouco enxergar o círculo preso às suas costas (LACAN, J. 1945/1966,
p. 197, 198).
Depois de terem observado durante algum tempo, os prisioneiros dirigem-se
juntos para a saída e cada um, separadamente, conclui que seu disco é branco, o que é
verdade. A obtenção da conclusão, a respeito da cor branca do disco, deve-se ao seguinte
raciocínio: “dado que a cor do disco de meus companheiros era branca, pensei que se a
cor de meu disco fosse preta, cada um deles poderia fazer o seguinte raciocínio: “se eu
também fosse preto o outro prisioneiro reconheceria imediatamente ser branco e sairia
imediatamente, portanto, não sou preto”. Desse ponto pude concluir que, se os dois
prisioneiros não saíam, convencidos de que eram brancos, era porque eu era branco como
eles. A partir desta reflexão, me encaminhei para a porta para transmitir minha conclusão
(LACAN, J. 1945/1966, p. 198).
Sublinhamos que o que nos interessa especificamente neste apólogo, é o fato de
ele nos apresentar uma bela ilustração do manejo do saber, no processo de apreensão da
verdade, a partir do ato. O texto explicita, com riqueza de detalhes, o que foi discutido

92
É o que sugere Ram Mandil em seu texto “Tempo e ato analítico” publicado na Ornicar? digital.

188
por Lacan no Seminário O ato analítico: a construção de um saber sobre a parte não
sabida da verdade, inserida dentro do tempo lógico da análise.
A situação descrita na história dos três prisioneiros, que se envolvem no processo
de descoberta da cor do disco pregado em suas costas é equivalente à situação em questão
numa análise, onde o analisante avança de um “não sei o que sou” - instituído pela
associação livre, que provoca a perda das certezas identificatórias do sujeito (o que
encontramos na operação verdade) – para um “sei o que sou” – ponto onde o sujeito
alcança uma certeza sobre seu ser, não pela via das identificações simbólicas ou
imaginárias, mas pela via do objeto (resultado da operação transferência).
No caso do apólogo, os prisioneiros avançam de “não sei que disco porto nas
costas” para “sei que disco porto nas costas”. Eles alcançam uma verdade sobre seu
disco, não em função de um acesso direto a essa verdade, mas em função da elaboração
de um saber sobre a verdade que não pode ser alcançada diretamente.
A idéia em jogo, no texto, é a de que a verdade deve ser apreendida, pois não
temos acesso direto a ela. Na medida em que a verdade sempre escapa, a única saída é a
de se passar ao ato. A única saída encontra-se no plano da decisão do sujeito.
Aliás, a dimensão da decisão aparece em vários momentos do escrito. Em
primeiro lugar, como sugere G. Brodsky, ela está ligada ao diretor da prisão que convoca
os três prisioneiros e decide submetê-los à prova. A decisão do diretor se aproxima da
decisão relativa à entrada em análise, quando o analista, com seu ato, avaliza a demanda
de análise do paciente. O aval dado pelo analista baseia-se na capacidade para pensar que
ele reconheceu, no analisante, a partir dos efeitos de verdade produzidos nas entrevistas
preliminares. Baseia-se no reconhecimento, por parte do analista, da capacidade
apresentada pelo sujeito para interpretar, subjetivar, para supor a existência de um sentido
no sem sentido, etc. (BRODSKY, G. 2001, p. 104).
A decisão, neste texto, pode ser igualmente reconhecida do lado dos prisioneiros
que decidem se vão ou não submeter-se à prova. Eles o farão se assim o quiserem,
exatamente como o analisante que ingressa no processo de análise se quiser, se aceitar
submeter-se à prova de experimentar a inconsistência do inconsciente (BRODSKY, G.
2001, p. 104).

189
Somente o primeiro prisioneiro que chegar à verdade sobre seu disco será
liberado, o que instaura um clima de urgência durante todo o processo de resolução do
problema (LACAN, J. 1945/1966, p. 197, 198). Esse é um aspecto curioso, pois apesar da
fala do diretor de que eles terão todo o tempo do mundo para resolver o problema, apesar
da oferta de um tempo de ócio para raciocinar, há algo que se precipita. Aspecto também
presente, no processo analítico, onde algo se apura e convoca ao ato.
Quando o diretor da prisão diz aos prisioneiros que eles não podem trocar
nenhuma idéia sobre a questão que lhes é colocada, o que ele faz é anular toda a
pregnância imaginária para a resolução do problema e isso é fundamental. A idéia é
privilegiar o raciocínio lógico, simbólico, que exclui a dimensão especular (LACAN, J.
1945/1966, p. 203).
Por fim, o diretor diz que o primeiro a formular uma conclusão cruzará a porta. G.
Brodsky chama a atenção para o fato de que cruzar a porta tem a ver com o conceito de
ato. Faz referência ao movimento de ir mais além de um umbral, de um marco. Ou seja,
no apólogo, trata-se da elaboração de um ato conclusivo, produtor de um franqueamento
que, em seguida, deverá ser fundamentado (BRODSKY, G. 2001, p. 106).
Os discos apresentados oferecem três possibilidades de configuração. I) três
brancos II) um branco e dois pretos III) dois brancos e um preto. O diretor põe um círculo
branco nas costas de cada um deles, escolhendo a primeira opção. Essa disposição é que
faz com que, num primeiro momento, o problema pareça insolúvel. Cada prisioneiro,
vendo dois círculos brancos e sabendo que existem três círculos brancos e dois pretos,
não pode deduzir nada. Diante dessa situação, ele pode ser branco ou preto. Ele, então, se
pergunta: “o que sou?”.
A única configuração que permitiria concluir imediatamente seria a segunda.
Diante de dois discos pretos o prisioneiro concluiria ser branco, sem nenhum tipo de
elaboração. Este não é o caso. Os prisioneiros encontram-se numa situação onde é
impossível uma conclusão imediata.
Do ponto de vista da lógica clássica, diante da impossibilidade de se resolver algo
com a visão de dois discos brancos, seria necessário renunciar a qualquer conclusão, na
medida em que ela só considera a concepção espacializada do processo lógico: o que
pode ser visto logo de início (LACAN, J. 1945/1966, p. 202).

190
A genialidade de Lacan é a de incluir dados complementares na resolução do
problema. Os dados iniciais são: o número de prisioneiros e de discos, que todos
conhecem. Os dados complementares são o tempo e o direito de pensar, mais além dos
dados iniciais, que fazem prevalecer a estrutura temporal do processo lógico (LACAN, J.
1945/1966, p. 203).
A solução do problema, apresentada por Lacan, faz intervir duas escansões
suspensivas, duas paradas e duas partidas antes da conclusão final. O pensar integra o
comportamento dos outros prisioneiros, já que é porque os dois primeiros não se movem
que o terceiro pode continuar pensando.
A primeira escansão, o primeiro ato conclusivo é: “sou branco porque, se fosse
preto, os companheiros poderiam inferir que, se eles também fossem pretos, o outro
reconheceria, de início, ser branco e sairia. Se ele não sai, é porque sou branco.
Vejam que a certeza de A provém das reações de B e C. Se B e C se colocarem
em movimento, a certeza de A será abalada. É o que acontece e essa é a primeira parada.
Ao ver B esboçar o movimento de partir, A pensa: “talvez, por ter visto, no começo de
seu raciocínio, que a cor do disco em minhas costas era preto, ele pôde agora concluir que
é branco”. Nesse ponto, A diz a si mesmo: “então, sou preto e não branco”. Mas, como B
hesita e se detém, A volta a se questionar. Essa é a segunda parada. E A se pergunta: “Por
que B se detém? Por que não sai antes de mim?” E finalmente conclui: “Se ele não sai é
porque não tem certeza, é porque também faz uma hipótese e não me viu com um disco
preto.”
Nesse momento, temos a segunda partida. A torna a esboçar a saída, pensando-se
branco, sempre com a certeza fundada na expectativa de B e C, mas B e C também
ameaçam partir. A nova partida de B e C provoca, novamente, a dúvida em A, que para,
mais uma vez, para refletir, levando em conta novamente que B e C, como ele, se
detiveram. A pensa, então, que tudo se repetiu como da última vez, e considera que não
pode fundar sua certeza na expectativa de B, já que a cada vez esta é suspensa.
O interessante é que existe um processo lógico que se realizou com a escansão
precedente (LACAN, J. 1945/1966, p. 201). Depois da primeira parada, B e C não
deveriam ter parado novamente se A fosse realmente preto. A pensa que se B e C faziam
realmente o raciocínio que ele havia imaginado, não seria possível uma segunda

191
hesitação. O que o leva a concluir que, se eles paravam uma segunda vez, é porque não o
viam preto e que, portanto, ele era branco.
No entanto, não basta fazer a dedução, há uma urgência e a única maneira de se
alcançar a certeza é recuperar o tempo de atraso e concluir antes que B e C concluam. A
deve, assim, afirmar que é branco na pressa do ato de concluir 93. De acordo com Lacan,
94
obtemos a conclusão do movimento lógico, na decisão de um julgamento . E assim, é
possível notar que não é por nenhuma contingência dramática que o tempo urge, mas
porque se A deixa B e C concluir antes dele, ele já não poderá concluir e o tempo de
compreender perderá seu sentido (LACAN, J. 1945/2001, p. 206).
É claro que a decisão do prisioneiro a respeito da cor branca é diferente da
passagem ao ato, que não supõe a passagem pela indeterminação, pelo tempo de
elaboração. No ato de decisão do prisioneiro, temos um sujeito responsável, que passou
pela indeterminação e tomou uma decisão, alcançando uma certeza quanto a seu ser: “sou
branco”.
No apólogo, precipita-se uma conclusão antecipada. O prisioneiro decide sobre a
cor sem ver o disco pregado em suas costas. O analisante, no final do processo da análise,
também tem que tomar uma decisão a respeito do objeto que causa seu desejo, sem
conhecê-lo inteiramente, já que o gozo não foi integralmente traduzido nos termos do
significante.
A “asserção subjetiva” de que nos fala Lacan é o ponto onde o sujeito atinge uma
verdade que será submetida à prova da dúvida, mas que não seria verificada se ele não a
atingisse, na certeza (LACAN, J. 1945/1966).
A “asserção subjetiva”, neste texto, diferentemente do processo lógico indicado
pela lógica clássica, implica a elaboração de um saber, no tempo, a partir de um ponto de
não saber. O que seria, nesse caso, o ponto de não saber?

93
No Seminário Mais Ainda Lacan efetua uma releitura do apólogo dos três prisioneiros, localizando a
função da pressa no objeto a, que, na situação, aparece sob a forma do olhar. Em detrimento da dimensão
da intersubjetividade, Lacan prioriza, na nova leitura, o fato de que cada prisioneiro torna-se objeto do
olhar e do pensamento dos outros dois, o que instaura o clima de urgência (LACAN, J. 1972-73/1975, p.
47).
94
Prestem atenção nas palavras decisão e julgamento porque, como veremos, são as mesmas palavras
usadas por Freud para falar da resolução do processo analítico, em “Análise terminável e interminável”.

192
Digamos que o fato dos três prisioneiros portarem discos brancos e não pretos,
elimina a possibilidade de qualquer dedução simples (aquela que, com apenas uma
olhada, permitiria a conclusão de que “sou branco”, já que vi dois discos pretos).
Foi a partir da exclusão desta dedução simples que Lacan introduziu a modulação
do tempo, de acordo com os três níveis lógicos, fazendo prevalecer a estrutura temporal e
não a estrutura espacial do processo lógico. É a exclusão dos dois discos pretos, que não
são vistos por nenhum dos prisioneiros, que faz esses discos entrarem, no processo, como
significantes (como presença correlativa a uma ausência).
No apólogo, o que se inscreve como saber depende de um não saber. Depende da
marca da ausência dos dois discos negros, impressa no processo lógico. A idéia em jogo,
no texto, é a de que a verdade deve ser apreendida, pois não temos acesso direto a ela. E
ela é apreendida sob o modo subjetivo de um tempo de atraso. Na medida em que a
verdade sempre escapa, a única saída é a de passar ao ato. A única saída encontra-se no
plano da decisão do sujeito.
Nos termos do sofisma dos três prisioneiros, nenhuma dedução lógica permitiria
alcançar a “asserção subjetiva”, uma afirmação sobre si mesmo (no caso a afirmação
sobre a cor do disco pregado em suas costas). A certeza, no sofisma, é alcançada em
função de um ato de conclusão, a partir do qual o sujeito pode fazer uma afirmação sobre
o que é.
O ato é o que intervém, na tensão temporal, permitindo que o tempo de
compreender desemboque no momento de concluir. O que nos permite dizer que o ato é o
que se interpõe entre o enigma (qual é a cor do disco que porto em minhas costas?) e a
certeza (sou branco!).
Assim, podemos dizer que o ato analítico está relacionado ao fato de que a análise
é o processo no qual um saber será elaborado sobre a verdade do objeto causa de desejo,
precipitando um ato conclusivo. No processo analítico, o objeto causa de desejo equivale
ao disco que o prisioneiro porta nas costas sem conhecê-lo.
A conclusão, na análise, surge como escansão no tempo de compreender, que lhe
antecede. Põe um termo no tempo de elaboração, suspendendo o sujeito indeterminado da
associação livre.

193
A conclusão é solidária com o ato, pensado como decisão e aposta. É o momento
em que o sujeito age, ocorrendo um franqueamento da inibição. A decisão produz um
corte com o pensamento, instalado previamente no tempo de compreender, e, por essa
razão, podemos dizer que o ato é antinômico em relação ao pensamento. Aqui,
reencontramos a idéia de Lacan, discutida a pouco, na análise do esquema do ato
analítico, qual seja, a de que o ato destitui o sujeito como falta-a-ser, como o efeito do
discurso, que suspende as certezas identificatórias.
O corte com a indeterminação e com o pensamento indica que o instante do ato
não comporta a presença de um sujeito (Le Séminaire, L’acte psychanalytique, Léçon du
29, novembre). Nesse momento há ruptura com a cadeia significante determinante do
sujeito. O sujeito se libera dos efeitos significantes. E é por isso que Lacan diz que o
tempo subjetivo, no momento do ato, se objetiva (LACAN, J. 1945/1966, p. 210).
O ato, como assinala Lacan, não é apenas sem sujeito, mas também é sem Outro.
O instante de seu lançamento coincide com o momento no qual o Outro surge como
barrado e o objeto se revela como mera consistência lógica a que o sujeito recorreu para
dar consistência ao Outro.
Dizer que, no momento do ato, não há Outro é o mesmo que dizer que a análise da
transferência, que conduziu o analista ao lugar de objeto, produziu a eliminação do
sujeito suposto saber.
Se retomarmos o apólogo dos prisioneiros, veremos que eles tomam uma decisão
sem contar com nenhum tipo de garantia proveniente do Outro. Eles alcançam uma
conclusão e fazem uma aposta na mais absoluta solidão, arcando com todos os riscos e
responsabilizando-se por todas as consequências que vão advir daí.
Evidentemente, o ato não ocorre sem a presença do Outro. É necessário que haja
Outro para que ele seja ultrapassado. Podemos pensar que, neste apólogo, o lugar do
diretor é o lugar do Outro, que ao final do processo avalizará ou não a conclusão do
prisioneiro.
O ato é sem Outro e sem sujeito apenas no momento de seu lançamento, pois no a
posteriori do ato temos a reconstituição do Outro e do sujeito que ressurge renovado.

194
6- O que os textos freudianos de 1937 podem nos ensinar sobre o ato analítico em
1967?

O que justifica nosso recurso ao Freud, de 1937, é que não podemos deixar de
notar, que algumas questões que orientam a reflexão de Lacan, no Seminário XV, são as
mesmas que ocupam Freud em 1937, quando escreve “Análise terminável e
interminável”, “Construções em análise” e “Moisés e o monoteísmo”: a análise é finita ou
infinita? Quais os critérios que indicam que uma análise chegou a seu fim? Qual o
destino da pulsão no final de análise? Como construir um saber sobre a verdade do
sujeito que não re-surge sob a forma do retorno do recalcado? Como é que a verdade
histórica é remanejada pelo saber do sujeito?
Tanto as elaborações freudianas quanto as lacanianas, interrogam o final de
análise como algo não natural, como algo que coloca um problema para o qual os
psicanalistas devem construir respostas. E sob esse ponto de vista, podemos dizer que
ambas são contribuições situadas no plano ético, na medida em que, considerando que o
final de análise não se produz de modo espontâneo, colocam em jogo algo da ordem da
escolha e da decisão por parte do analista e do analisante. Escolha e decisão que
apareceram de modo contundente, no texto “O tempo lógico”.
No que se refere ao texto “Análise terminável e interminável”, Freud, logo no
primeiro parágrafo - ao criticar a tentativa de Otto Rank de encurtar a duração das
análises – posiciona-se para defender o papel da temporalidade no processo analítico. Ele
defende o ponto de vista de que para que a análise se processe, é necessário tempo para
um início, um desenvolvimento, e um fim. O manejo do tempo, em psicanálise, se
apresentando como um aspecto fundamental na aproximação do “coração do ser”. Ou
podemos dizer a mesma coisa utilizando uma terminologia lacaniana: o manejo do
tempo, na análise, é fundamental para que o objeto a se separe da dimensão imaginária da
castração (condição para o ato) e para que o inconsciente se realize.
Ao comentar sua própria experiência de aceleração do processo de análise,
tomando como exemplo a fixação de uma data para o término do tratamento do Homem
dos Lobos, Freud destaca pelo menos dois pontos. O primeiro refere-se ao fato de que o
término forçado da análise deixara partes residuais de transferência não analisadas e

195
fragmentos da história do paciente na obscuridade. O segundo diz respeito à
responsabilidade do analista, no que se refere à decisão de recorrer ao artifício da fixação
prévia de um final para o processo analítico. Na opinião de Freud, tudo depende do tato
do analista, já que um erro de cálculo, nestas circunstâncias, não pode ser retificado
(FREUD, S. 1937/1996, p. 233, 234).
A responsabilidade do analista é mais uma vez convocada, na segunda seção do
texto, quando ao tentar definir a expressão “término de uma análise”, Freud estabelece
duas de suas condições: que o paciente não sofra mais de seus sintomas e tenha superado
suas ansiedades e inibições e que o julgamento do analista considere que tanto material
recalcado foi tornado consciente, tanta coisa ininteligível explicada, tantas resistências
internas vencidas, que não há mais risco de repetição do processo patológico (FREUD, S.
1937/1996, p. 235).
Nota-se que, nessa primeira definição do final de análise fornecida por Freud, o
termo do processo está ligado a uma tomada de posição do analista, que depende de seu
julgamento, aspecto que Lacan parece ter retomado com a perspectiva de que o final de
95
análise é da ordem do ato do analista . Assim, tanto para Freud quanto para Lacan, o
final da análise depende de um analista ativo, que auxilie o analisante na precipitação de
uma conclusão.
Outro aspecto que merece atenção, nessa mesma definição, é que colocar o final
de análise na dependência da quantidade de material recalcado tornado consciente e dos
pontos ininteligíveis explicados, é o mesmo que dizer o final de análise depende de uma
aquisição de saber. Aqui, reconhecemos algo semelhante ao saber obtido pelo prisioneiro
sobre a cor do disco pregado em suas costas, saber obtido pelo sujeito sobre sua verdade.
Já a referência às resistências internas vencidas faz apelo ao consentimento do sujeito em
análise, aspecto que não é explicitado no texto “O tempo lógico”, mas que é amplamente
explorado no Seminário O ato analítico, a partir da retomada do imperativo ético
freudiano Wo es war soll ich werden.
Sendo assim, podemos dizer que o final de análise, em Freud, está vinculado a um
ganho de saber com o qual o sujeito consente, e essa é uma temática central do Seminário

95
Lacan no texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” assinala que, no pensamento
moderno, o julgamento assertivo se manifesta por um ato (LACAN, J. 1945/1966, p. 208).

196
XV, que discute a elaboração do saber, no processo analítico, articulando esse saber a
uma ética.
Freud, no entanto, não se contenta com essa primeira definição do final de análise
dada um tanto apressadamente, no início do texto. No terceiro parágrafo da segunda
seção, ele propõe um segundo significado para a expressão “término de uma análise”, que
ele designa como ambicioso, pois supõe que uma influência tão poderosa da análise foi
exercida sobre o paciente que tornou impossível qualquer outra modificação no caso. A
normalidade psíquica teria sido alcançada, a partir da solução de todos os recalcamentos
do paciente e do preenchimento de todas as lacunas em sua lembrança (FREUD, S.
1937/1996, p. 235).
Nesse ponto, antes de tomar partido diante da possibilidade de se levantar todos
os recalques e de se completar todas as falhas da memória, Freud nos convida a
examinar, de um lado, a experiência clínica e, de outro, a teoria, para descobrir se isso é
realmente possível. E o resultado do duplo exame, como se sabe, é a série de obstáculos
inventariados por Freud para que a uma análise se cumpra de modo integral. Toda a
sequência do texto se constitui numa objeção à possibilidade de uma conclusão de análise
desse tipo. Os argumentos de Freud nos levando a concluir sobre a inexistência de uma
análise sem resto.
Encontramos em 1937, um Freud bastante pessimista quanto à possibilidade de se
efetuar uma análise total. A essa altura, ele reconheceu que o procedimento interpretativo
deixa sempre restos, e que existe uma impotência da palavra para domar a inextinguível
exigência da pulsão. Nesse momento, os efeitos mágicos, produzidos pela talking cure,
eclipsaram-se e tornou-se evidente que a articulação entre a interpretação e a satisfação
pulsional é muito mais complexa do que se pensou nos primórdios da experiência
psicanalítica. No entanto, embora Freud assinale, em “Análise terminável e
interminável”, uma série de obstáculos ao cumprimento da tarefa da análise, isso não
resultou em sua adesão à concepção de uma análise que nunca termina, mas ao contrário,
acentuou seu esforço para formalizar o que seria, nessa perspectiva, uma solução para o
sintoma analítico.
A sétima seção é a mais importante do texto, pois é o momento em que Freud
situa o que para ele constitui um limite intransponível para a análise e que ele designa

197
como a inveja do pênis para a mulher e o complexo de castração para o homem. Ambos
constituem um limite para a análise, na medida em que se apresentam na experiência de
Freud, como inanalisáveis (FREUD, S. 1937/1966, p. 269). O resto produzido numa
análise - constituído pela persistência do sintoma ou pela resistência em se elaborar a
transferência - é designado por Freud como a última proteção do sujeito contra a angústia
de castração.
É possível perceber que Lacan se inspira na posição freudiana quando situa no
final do processo analítico, no final da operação transferência, o -ϕ e o objeto a, como os
elementos residuais da análise.
Este é, então, um ponto essencial do artigo freudiano, a saber, a idéia de que no
tratamento analítico existem sempre manifestações residuais. Freud se posiciona contra
Rank, que defende que o recalque originário tem um conteúdo determinado sendo
possível ir diretamente a este ponto, evitando, assim, os desvios da associação livre. Para
Freud, o recalque originário não tem conteúdo, o que faz com que a verdade de um
sujeito não possa ser esgotada, não havendo última palavra em análise.
Enfatizamos, mais uma vez, que Freud não cede à tentação de concluir por uma
análise interminável. A pergunta sustentada ao longo do texto é, justamente, a de saber
como pensar a conclusão da análise sem essa última palavra. A saída freudiana é a de
articular a conclusão da análise ao destino da pulsão, preservando a perspectiva de que,
para além das sucessivas desarticulações do sintoma, promovidas pela interpretação,
subsiste um real impossível de analisar, referido à realidade da diferença sexual. O que
ele designou com o complexo de castração.
E é assim, que podemos dizer que a teoria do ato analítico, em Lacan, pretende
ultrapassar, de algum modo, o impasse situado por Freud no final do processo de análise.
Ali, onde Freud situa o complexo de castração como inanalisável, ponto impossível de
ser ultrapassado por qualquer intervenção analítica, Lacan propõe um passe. Propõe o ato
ali mesmo onde o ato sexual não existe, onde a interpretação de sentido é incapaz de
operar. Ato que supõe a assunção da castração e o consentimento do sujeito com a falta
no Outro. Ato que, como vimos na análise do esquema do Seminário XV, provoca o
recobrimento das duas faltas (a do sujeito e a do Outro), arrancando daí uma solução.

198
O ato lacaniano, no entanto, ao indicar uma saída para o impasse freudiano do
complexo de castração inspira-se amplamente nos poderes da análise indicados por Freud
neste mesmo texto. Não fazemos justiça a Freud quando dizemos que ele assume, no
texto “Análise terminável e interminável”, uma posição de impotência, enfatizando
somente as insuficiências e impossibilidades do processo analítico. Pelo contrário, ao
longo do texto, ele nos faz indicações preciosas sobre como operam os efeitos da
psicanálise. E não há dúvidas de que Lacan baseou-se nelas para elaborar seu conceito de
ato analítico.
A fim de localizar essas contribuições, retornemos à segunda seção do texto, onde
Freud destaca dois fatores decisivos para o sucesso ou não do tratamento analítico: a
força da pulsão e a alteração desfavorável do ego, em sua luta defensiva (FREUD, S.
1937/1996, p. 235). Esse último ponto diz respeito ao caráter, por exemplo, onde
encontramos um modo de satisfação da pulsão distinto do sintoma. Na terceira seção, ele
acrescenta um terceiro fator aos dois anteriormente mencionados: a influência do trauma.
Ele o acrescenta, para dizer em seguida, que a força da pulsão é o que realmente interessa
(FREUD, S. 1937/1996, p. 240), determinando, em alguns sujeitos, a “adesividade da
libido”, que se expressa na manutenção do sintoma, em razão da inércia psíquica, do
apego ao sofrimento, do sentimento de culpa, da necessidade de punição e, por último, da
pulsão de morte (FREUD, S. 1937/1966, p. 258, 259).
Vejam então que Freud como Lacan, situa o problema do final de análise no ponto
de articulação do sujeito dividido, sujeito interpretável, com o “eu sou” da pulsão, que
não admite nenhum tipo de interpretação de sentido. Em outras palavras, Lacan, como
Freud, pensa a solução do processo analítico no ponto de junção da estrutura de
linguagem do inconsciente (o pensamento) com o objeto (o ser). O que é indicado pelo
conjunto situado, no final do percurso da análise, como o resultado da operação
transferência, que combina -ϕ e a.

a -ϕ

199
Segundo Freud, é impossível livrar-se do conflito entre a pulsão e o eu, o que
significa que a divisão do sujeito é incurável, e que não há nenhuma esperança de
unificação ou totalização do psiquismo, em função do trabalho da análise. Ao se
perguntar como é que a análise pode intervir nesse conflito, ele considera a possibilidade
do “amansamento da pulsão”. Amansar a pulsão, diz Freud, não significa livrar-se dela,
mas colocá-la em harmonia com o eu, evitando que ela siga independentemente seu
caminho para a satisfação. Esse resultado, no entanto, depende tanto da força da pulsão,
quanto da força do eu (FREUD, S. 1937/1996, p. 240, 241).
Assim, pois, a posição de Freud é a de que a psicanálise pode reconhecer o
conflito, enfrentá-lo, transformá-lo, mas, em nenhum caso, pode eliminá-lo. A decisão do
conflito pulsional, em psicanálise, dando-se em função de um indecidível.
Freud esclarece, em seguida, que a decisão do indecidível, operada no dispositivo
analítico, dá-se, em razão da revisão dos recalques do analisante, a qual corrige o
processo original de recalcamento. Tal decisão depende do tratamento das relações entre
o eu e o isso, o que significa que a análise obriga o sujeito a voltar naquilo que foi
rechaçado. Uma vez suspensos os recalcamentos, o paciente pode responder aquiescendo
à reivindicação da pulsão ou fazendo objeção à sua satisfação, construindo novamente o
recalque, dessa vez de maneira mais sólida. (FREUD, S. 1937/1996, p. 243).
De toda maneira, o que Freud parece indicar como possibilidade da análise é a
criação das condições para que o analisante possa localizar sua posição de gozo e
responder por ela. É a responsabilização e a tomada de posição do sujeito, a partir da
suspensão do recalque. Isso foi muito bem ilustrado, no texto “O tempo lógico”, pela
tomada da posição do prisioneiro em relação ao disco que portava nas costas, depois de
esgotado seu tempo para compreender.
Freud depois de incitar de todas as maneiras possíveis o analisante a revisar seus
recalcamentos e a modificar sua posição em relação a estes, dá a última palavra ao
sujeito. Exatamente como o diretor da prisão faz com os detentos. O sujeito pode então
dizer: “agora eu sei”, “eu confesso”, “eu quero” ou “não quero”. E isso é completamente
diferente do “não querer saber”, característico do processo original do recalcamento. É
diferente da paixão pela ignorância que associamos à operação de alienação, no esquema
do ato analítico fornecido por Lacan. Assim, de acordo com Freud, o tratamento analítico

200
circunscreveria, no caso a caso, o lugar da “insondável decisão do ser”, mencionada por
Lacan em “Formulações sobre a causalidade psíquica”. Pois, não há suspensão de
recalcamento sem modificação da economia da libido. Não há reconhecimento de um
significante que não evidencie sua relação com o gozo. E, por último, não há aquisição de
saber sem a consequente modificação do paciente.
Outro efeito da análise apontado por Freud é a elaboração de um estado no eu que
não surge espontaneamente. O “estado criado” é o que constitui a diferença essencial
entre uma pessoa que foi analisada e outra que não foi (FREUD, S. 1937/1996, p. 242).
A expressão “estado criado”, utilizada por Freud nesse contexto, evoca a
característica fundamental da análise, que se distingue pela variedade dos tratamentos
possíveis da pulsão, pela abertura à surpresa, ao encontro e à invenção. A dimensão da
invenção e da criação como veremos, no próximo segmento, reaparece na noção
freudiana de construção, que se separa da interpretação.
Na verdade, o que será possível notar, com o desenvolvimento da discussão, é que
todas essas noções associadas por Freud aos poderes da análise: o ganho de saber, a
responsabilização do sujeito e a criação singular de uma solução que decida o conflito
entre o eu e a pulsão serão retomadas por Lacan e articuladas ao conceito de ato analítico.
A noção de responsabilização do sujeito está diretamente relacionada à idéia
freudiana de que a análise torna a pulsão acessível às influências do eu. (FREUD, S.
1937/1996, p. 240-241). Sabemos que, baseando-se em proposições como essa, toda uma
corrente da psicanálise construiu sua concepção do eu forte, aliado do analista. No
entanto, outra leitura mais fecunda pode ser realizada se articularmos essa mesma idéia
ao imperativo ético freudiano Wo es war soll ich werden (FREUD, S 1932/1996, p. 84) e
à operação de transferência, indicada por Lacan no esquema do Seminário XV. Essa
última como indicamos no segmento anterior, resulta na afirmação de um ser para o
sujeito, que não passa pela via dos ideais imaginários e simbólicos, e sim, pelo objeto.
A perspectiva freudiana e lacaniana do ato do analista está fundamentada no
mandamento ético da psicanálise, que sustenta que “ali onde isso era, eu, como sujeito,
devo advir”.
O mandamento é retomado no esquema apresentado na aula de 10 de janeiro de
1968 do Seminário XV, que representa a estrutura do ato analítico. Uma das indicações do

201
grafo é a de que o efeito fundamental do ato analítico é o de fazer comparecer o eu (je),
como sujeito gramatical, no campo da pulsão, onde está excluída toda estrutura
gramatical, e onde não é possível se dizer “eu”.
Tudo muda se traduzimos, com Lacan, o ich freudiano do Wo es war soll ich
werden por eu (je), ao invés de ego. A partir daí, podemos interpretar a proposição
freudiana (tornar a pulsão acessível ao eu) e a proposição lacaniana (afirmar um “eu sou”,
a partir do objeto causa de desejo) como duas formas equivalentes de exigir que um eu
responsável compareça no campo acéfalo das pulsões.
O que Freud, em “Análise terminável e interminável”, e Lacan, no Seminário O
ato analítico, acentuam é que a estrutura do ato analítico envolve uma decisão acerca de
um indecidível. Decisão esclarecida que excede a determinação que o sujeito sofre do
significante e do objeto que causa seu desejo, mas que, ao mesmo tempo, depende dela.
Decisão que, evidentemente, é correlativa da responsabilização do sujeito por seu modo
de gozo.
O ato analítico supõe a solidariedade desses dois aspectos: a decisão e a
determinação. De acordo com Freud, o sucesso da análise depende de que uma solução
correta substitua a decisão inadequada tomada pelo sujeito, em sua vida primitiva. Só
assim torna-se possível falar de uma análise terminada (FREUD, S. 1937/1996, p. 236).
O sujeito admite o que o determina e a partir daí alcança uma saída que assume o valor de
conclusão da análise.
Sob este ponto de vista, torna-se também mais clara a idéia de que “só há ato
analítico onde não há ato sexual”. Como comentamos anteriormente, na opinião de
Freud, não há como eliminar o conflito entre o eu e a pulsão. Não é possível curar a
divisão do sujeito. A solução do processo analítico reside em um “saber fazer” com esse
incurável, em um “saber fazer” com o resíduo da análise: o objeto pequeno a que se
condensou como o ser do sujeito.
Considerar, então, que o ato analítico opera, na ausência do ato sexual, é
reconhecer que seu justo lugar de incidência é a fenda, no sujeito, causada pelo objeto a.
É a hiância do inconsciente que se evidencia nesse conflito inelidível, apontado por
Freud, entre o eu e a pulsão.

202
O que o ato analítico pode fazer diante de tal conflito é induzir uma dupla escolha.
A primeira que é de responsabilidade do analista e a segunda que recai sobre o analisante.
Não há, nos componentes do aparelho psíquico, algo que conduza a um fim
natural. A força da pulsão e a alteração desfavorável do eu, em sua luta defensiva, tendem
a prolongar a cura (FREUD, S. 1937/1996, p. 236). O natural é que não haja conclusão.
Essa última depende do ato do analista, que sustenta uma práxis orientada por uma ética.
O convite de Freud, em “Análise terminável e interminável”, inclusive quando
comenta a fixação prévia do tratamento do Homem dos Lobos, é o de não eternizar o
processo de análise. Ele nos lembra que não é necessário que o analista esteja à altura do
padrão de normalidade psíquica, é preciso apenas que ele opere (FREUD, S. 1937/1996,
p.264). E o modus operandis próprio do analista, segundo Lacan, afinado à ética da
psicanálise, é o ato que promove uma decisão deduzida do encontro do julgamento do
analista e da escolha do sujeito, promovendo uma solução que conjuga a elaboração de
saber e a mutação subjetiva.
Acreditamos que as perspectivas da elaboração de um saber sobre a verdade96 e
do advento do sujeito no campo acéfalo da pulsão, bem como a idéia da decisão e do
“estado criado”, em jogo no ato analítico, devem ser relacionadas às noções freudianas de
construção e verdade histórica.
Tanto “Construções em análise” quanto “Moisés e o monoteísmo” falam da
existência de um “núcleo de verdade” sobre o qual se edificam as roupagens míticas,
históricas, sintomáticas e fantasmáticas do sujeito. Os dois textos discorrem sobre um
fragmento de realidade que é suprimido, mas que continua ativo e cuja verdade insiste em
se fazer reconhecer.
Os textos citados nos interessam, porque apresentam elementos que relacionados
à problemática dos poderes da intervenção analítica e de sua ética, podem nos auxiliar na
elucidação da noção de ato analítico, proposta no Seminário XV.
Não podemos desconhecer o fato de que, no mesmo ano em que localiza o
problema da resolução da análise, no conflito indecidível entre o eu e a pulsão, Freud

96
A qual não pode ser apreendida diretamente no texto “O tempo lógico e a asserção da certeza
antecipada”.

203
discute a distinção entre o recalcado e o isso, associando esse último a uma verdade que
atua como causa do sintoma.
A elaboração de Freud sobre uma verdade distinta do recalcado e atuante no
psiquismo é importante, na medida em que inspira a concepção lacaniana da verdade
como causa articulada à teoria do objeto a (LACAN, J. 1965/1966, p. 876). Não é um
acaso o fato de que uma das operações representadas, no esquema construído por Lacan
para ilustrar a estrutura do ato analítico, tenha sido batizada por ele de operação verdade.
A verdade é a operação que perturba a identificação do analisante aos significantes
mestres que encobrem sua divisão subjetiva, e que coloca em cena a divisão do sujeito
pelo objeto pequeno a.
Outra contribuição fundamental para a noção de ato analítico, encontrada nos
textos freudianos de 1937, é a idéia de que o inconsciente não é uma memória
definitivamente estabelecida que pode ser recuperada, em análise.
A perspectiva presente em “Moisés e o monoteísmo” e em “Construções em
análise” é a de que a verdade histórica é construída, reordenada e, em alguma medida,
inventada no processo analítico, aproximando-se de duas concepções importantes para
Lacan.
A primeira delas é a distinção entre o saber e a verdade. Enquanto Lacan refere o
saber à coerência da cadeia significante, ele reporta a verdade ao objeto a, que não pode
ser dito de forma completa. A segunda concepção é a do inconsciente como o “não
realizado”. O objeto a, verdade que descompleta a determinação da estrutura, instaura a
margem de liberdade necessária à invenção, que redefine a posição do sujeito em relação
a seu regime de gozo e à determinação que sofre da estrutura de linguagem do
inconsciente (o que é essencial para se pensar o ato do analista).
A invenção de um saber sobre a parte não sabida da verdade e o “estado criado”
sugerido por Freud, no final de análise, têm a ver com o ato descrito, no texto “O tempo
lógico”. Ato que precipita uma afirmação do prisioneiro sobre a cor do disco em suas
costas, à qual ele não tem acesso direto. A invenção de um saber e o “estado criado” têm
a ver também com o ato apresentado, no Seminário XV, que promove a resolução da
transferência, a partir da subversão do sujeito saber e da destituição subjetiva,
promovendo uma solução que combina o pensamento (a linguagem) e o ser (o objeto).

204
Tendo sido justificadas as razões de nosso interesse pelos textos “Construções em
análise” e “Moisés e o monoteísmo”, iniciemos a análise dos elementos que se mostram
relevantes.

6.1- A construção do saber em análise – o manejo da verdade do sujeito pelo saber.

Em “Construções em Análise”, Freud retoma o tema da verdade - já discutido em


“Moisés e o monoteísmo” - articulando-o, dessa vez, à noção de construção, que se
distingue da interpretação.
A construção aparece, em Freud, como um tipo de intervenção necessária ao
desenvolvimento do trabalho analítico. A palavra já havia sido utilizada por Freud em
“Bate-se em uma criança”, quando ele sustentou que o segundo tempo da fantasia nunca
é lembrado pelo analisante e deve, portanto, ser construído na análise (FREUD, S.
1919/1996, p. 205)
Em “Construções em análise”, trata-se justamente disso. Freud defende a idéia de
que devemos recorrer à construção, quando estivermos diante de um ponto do
inconsciente que não retorna e que não pode ser rememorado. E, para Lacan, o que não
retorna, numa análise, sob a forma da rememoração é o objeto a.
O que nos interessa mostrar é que, como assinala Miller, se no início de sua
elaboração, Freud demonstrou algum encantamento com a interpretação, em 1937, ele
inaugura a era da construção97.
O texto “Construções em análise” sustenta que o trabalho analítico é composto
por duas tarefas diferentes, que envolvem duas pessoas distintas. A primeira tarefa é
realizada pelo analisante e se baseia na recordação do recalcado. A segunda tarefa cabe
ao analista e consiste na complementação do que foi esquecido com suas construções, já
que é impossível a recuperação integral, pelo analisante, dos conteúdos recalcados
(FREUD, S. 1937/1996, p. 276).

97
O comentário sobre “Construções em análise” foi elaborado a partir do cotejamento do texto freudiano
com a análise de J-A. Miller em “Marginalia de “Constructions dans l’analyse”, La lettre em ligne, No 31,
Novembre 2006, publicada na página da Web da École de la Cause Freudienne. Foram acrescentadas
nossas próprias observações.

205
Não vemos utilidade nessa distinção que Freud faz a respeito de duas tarefas que
envolvem duas pessoas distintas. Acreditamos que a construção de um saber sobre o
ponto do inconsciente que não retorna pode ser feito, em algumas ocasiões, pelo próprio
analisante. Assim como a fala interpretativa é produzida tanto pelo analista quanto pelo
analisante. O essencial é que Freud introduz, aqui, uma modalidade de intervenção que se
distingue da interpretação de sentido, na medida em que não está referida a uma
significação inconsciente, e sim, a uma dimensão do inconsciente que não se estrutura
como uma linguagem. O essencial da questão se resume no fato de que o ponto do
inconsciente que não é linguagem não pode ser decifrado ou lembrado e, nesse caso, a
possibilidade de intervenção que se apresenta é a de se construir, a de se inventar algo
sobre o que não retorna, no registro do significante.
A construção em análise, segundo Freud, está referida a uma verdade e, quando é
corretamente efetuada produz, no paciente, a convicção de sua pertinência, determinando
seu consentimento às palavras do analista (FREUD, S. 1937/1996, p. 284).
Na segunda seção do texto, Freud fornece critérios para diferenciarmos a
construção da interpretação. A interpretação aplica-se a um elemento isolado, tal qual
uma associação ou uma parapraxia, enquanto a construção apresenta ao paciente um
fragmento de sua história primitiva (FREUD, S. 1937/1996, p. 279).
Partindo desse ponto da argumentação de Freud, Miller então sugere que a
construção é a estratégia pela qual o analista inventa uma coerência para os fragmentos
de inconsciente, que surgem isoladamente. O material inconsciente aparece aos pedaços e
o analista, articulando esses pedaços, compõe um conjunto, com a construção.
Todavia, a grande questão colocada por Freud, nesse texto, é a de saber que
garantia tem o analista da correção de sua construção (FREUD, S. 1937/1996, p. 279). O
que nos permite constatar que Freud se preocupa com o problema do erro e da garantia da
verdade.
Freud, inicialmente, diz que não há problema, se ocasionalmente cometemos
algum equívoco e oferecemos ao paciente uma construção errada, como sendo a verdade
histórica provável. A construção falsa pode ser prontamente abandonada (FREUD, S.
1937/1996, p. 279, 280). Essa posição indica que, para Freud, a construção não tem a ver

206
com a exatidão do saber, mas com os efeitos provocados no sujeito pela comunicação
desse saber.
Esse é um ponto chave para nossa argumentação. O saber inventado sobre a parte
não sabida da verdade não precisa ser exato, para produzir efeitos de verdade. No
capítulo II, no comentário sobre “A direção da cura e os princípios de seu poder”,
localizamos uma observação de Lacan sobre a interpretação de Freud dirigida ao Homem
dos Ratos. Ali, Lacan dizia que a interpretação de Freud, embora fosse verdadeira, era
inexata, na medida em que era desmentida pela realidade (LACAN, J. 19/1966, p. 597).
Lacan, nesse momento, falava sobre a interpretação, mas esse aspecto é
igualmente verdadeiro, quando nos referimos ao saber produzido a partir do ato analítico
e pela construção.
É por isso que Freud afirma, no texto “Construções em análise”, que tudo o que
vem diretamente do paciente como resposta à construção - o sim, o não ou o silêncio – é
irrelevante. O que conta, realmente, é o que se desenvolve a seguir, é o que vem à
margem e de forma indireta. O que importa é a elaboração, por parte do analisante, de
novas lembranças e associações (FREUD, S. 1937/1996, p. 279, 280).
Ou seja, o relevante não é a exatidão do saber confirmada ou rejeitada pelo
analisante, e sim, os efeitos de verdade que a construção desse saber provoca e que
podem ser reconhecidos, nos elementos que aparecem de forma indireta.
Essa maneira de ver as coisas, como lembra Miller, tem a ver com o que Lacan
designou mais tarde como meio dizer. A verdade não pode ser dita toda. Podemos apenas
meio-dizê-la (LACAN, J. 1973/2001, p. 509). Em “Construções em análise”, Freud
reconhece a impotência da palavra para dizer toda a verdade. Ele admite a
impossibilidade de se mirar a verdade de frente, pois o único acesso possível à verdade
ocorre de forma indireta.
Como já dissemos, Freud sustenta que o que confirma ou refuta a construção do
analista é a resposta do inconsciente, o que ele demonstra quando examina as diferentes
formas de confirmação indireta da construção (FREUD, S. 1937/1996, p. 281, 282, 283),
que produzem no paciente, a convicção de sua veracidade. E ele acrescenta que, com essa
estratégia, alcança-se o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recapturada
(FREUD, S. 1937/1996, p. 284).

207
Freud conta que, em certas análises, a comunicação de uma construção apropriada
evocou nos pacientes um fenômeno surpreendente. Eles experimentaram recordações
vivas, claras, não do acontecimento em questão, na construção, mas de detalhes relativos
a esse acontecimento. Isso ocorreu tanto em sonhos, imediatamente depois que a
construção foi comunicada, quanto em fantasias ocorridas durante a vigília (FREUD, S.
1937/1996, p. 284).
Freud aproxima essas recordações das alucinações. Elas teriam sido verdadeiras
alucinações, se a crença em sua presença concreta tivesse surgido no paciente. E ele
afirma ter observado alucinações verdadeiras que se seguiram à comunicação de
construções, em pacientes que não eram psicóticos (FREUD, S. 1937/1996, p. 285).
As alucinações são bons exemplos de como o inconsciente pode confirmar uma
construção por uma via, inteiramente, distinta da exatidão. Elas nos indicam que a
verdade da construção não é exata, e sim, derivada da convicção do inconsciente.
Assim, podemos concluir que, com a construção, trata-se de fazer com que alguns
significantes assumam o valor do fragmento do inconsciente que não retorna e não é
lembrado. E, vista dessa forma, a construção é uma metáfora, na qual um saber substitui a
verdade que não pode ser integralmente revelada. O problema é que não pode ser uma
metáfora qualquer. Tem de ser uma metáfora prenhe de verdade.
Freud já havia abordado essa questão, no texto “Análise terminável e
interminável”, ao discutir o problema da profilaxia em psicanálise. Ele disse que a
tentativa de ativar, no paciente, conflitos pulsionais para poder tratá-los profilaticamente
está fadada ao fracasso. O resultado esperado não ocorre. O paciente escuta o que temos a
dizer, mas não reage. Algo parecido ocorre, nas situações em que um adulto fornece às
crianças esclarecimentos sexuais. Após tais esclarecimentos, as crianças sabem algo que
não sabiam antes, mas não têm pressa em sacrificar, a esse novo conhecimento, as teorias
que construíram em harmonia com sua organização libidinal infantil (FREUD, D.
1937/1996, p. 249, 250).
Isso pode ser explicado pelo fato de que as construções acerca da sexualidade são
determinadas pelos impulsos sexuais que atuam na própria criança. É assim que o
erotismo anal conduz à idéia do nascimento do bebê pelo ânus, e o erotismo genital
determina o falseamento da percepção diante da visão da mulher castrada. Com as teorias

208
sexuais, o que as crianças pretendem é explicar, para elas mesmas, as sensações eróticas
que as invadem. Buscam cernir, com a linguagem, a intensa fruição corporal que
experimentam.
Em síntese, o que queremos fazer notar é que o saber elaborado em análise, a
partir do ato analítico ou da construção, deve ser equivalente àquele encontrado nas
teorias sexuais infantis, as quais estão referidas à satisfação sexual do sujeito. O saber que
vale, na análise, é o saber que enlaça o significante e o gozo para cada sujeito.
Resumamos então, o que este artigo traz como contribuição para nossa
investigação. Em primeiro lugar, ele situa, mais uma vez, o trabalho analítico como um
trabalho epistêmico, onde se encontra em questão a elaboração de um saber, que convoca
o consentimento do sujeito. Isso já havia aparecido em “Análise terminável e
interminável” como um dos efeitos da intervenção analítica.
“Construções em análise” retoma também a idéia de que existe um ponto de
indecidível, no inconsciente, que faz apelo à decisão e à criação. No caso da construção,
trata-se da invenção de um saber que vem, no lugar da verdade, que não pode ressurgir
sob a forma do retorno do recalcado, a partir da interpretação. O saber envolvido, na
construção, não pode ser qualquer um, pois deve produzir a convicção, no paciente, ao
ser comunicado. E a condição para que isso ocorra é que ele esteja referido à verdade e ao
gozo do sujeito em questão.
Não é necessário dizer que a idéia da invenção de um saber, referido à verdade
que não pode ser dita toda, é retomada por Lacan em sua elaboração do conceito de ato
analítico. Usamos a palavra invenção, porque o saber elaborado, a partir do ato, não está
dado no inconsciente à espera de ser recuperado. É saber inédito que resulta da
modificação da posição do sujeito em relação à estrutura que o determina (LACAN, J. Le
Séminaire L’acte psychanalytique, Léçon du 22 Novembre/1967).
A construção do sintoma, vista como um saber elaborado sobre a verdade
histórica, já havia sido discutida por Freud em seu texto, também de 1937, “Moisés e o
monoteísmo”, onde encontramos a verdade, que posteriormente foi destacada em
“Construções em análise”98.

98
“Moisés e o monoteísmo” foi o primeiro texto a ser escrito. Freud completou o primeiro rascunho do
livro durante o verão de 1934, mas os dois primeiros ensaios que constituem a obra só foram publicados em

209
A verdade dissimulada sob o mito de Moisés, liberador do povo judeu e fundador
da religião judaica, é que Moisés foi, na realidade, um egípcio, que a religião que ele
comunicou aos judeus foi a religião de Akhenaten, que o costume da circuncisão,
introduzido por ele entre os judeus, era, na realidade, um costume egípcio e, por último,
que ele foi assassinado num levante de seu povo (FREUD, S. 1939[1934-38]/1996, p. 26,
27, 38, 39, 49). Seu assassinato foi um dos fundamentos essenciais da religião judaica.
Segundo Freud, exatamente como a neurose, a religião judaica remonta a um
evento traumático: o assassinato de Moisés. (FREUD, S. (1939[1934-38]), p. 115), causa
ativa que permaneceu velada, na história dessa religião.
A verdade que funciona como causa da constituição do sintoma do judaísmo não
se restringe, no entanto, aos fatos já mencionados (Moisés era egípcio, o costume da
circuncisão também, a religião transmitida por ele foi a religião de Akhenaten e,
finalmente, ele foi assassinado por seu povo). Freud, num determinado momento do
texto, faz intervir uma causa e uma verdade mais arcaicas do que as que acabamos de
mencionar.
Ele faz equivaler o assassinato de Moisés ao assassinato do pai da horda primitiva
descrito em Totem e tabu. O assassinato de Moisés teria sido a repetição real do traço de
memória esquecido do assassinato do pai (FREUD, S. (1939[1934-38])/1996, p. 102,
115), a ulterior reabilitação do Deus único pela religião judaica teria sido a reconciliação
com esse pai, determinada pelo sentimento de culpa. E, por último, a perpetuação da
circuncisão, nessa prática religiosa, um substituto simbólico da castração que o pai
primitivo outrora infligira aos filhos, na plenitude de seu poder. (FREUD, S. (1939[1934-
38])/1996, p. 136).
Assim, o ponto de vista de Freud é o de que o assassinato de Moisés, que foi
recalcado pelos relatos da tradição, remonta a algo que não é da ordem do recalcado, pois
não há inscrição histórica deste acontecimento99. O assassinato de Moisés é um

1937 em Imago. “Análise terminável e interminável” foi escrito no começo de 1937 e publicado em junho
do mesmo ano, enquanto “Construções em análise” apareceu em dezembro de 1937. Essa é a ordem
cronológica do aparecimento dos trabalhos, que não foi respeitada no desenvolvimento de nossa
argumentação.
99
É importante destacar que Freud, neste texto, inclui em sua argumentação algumas observações sobre o
isso, distinguindo-o do eu e do recalcado. Freud diz que o recalcado pertence ao isso, estando sujeito aos
mesmos mecanismos, mas que o isso não se reduz ao recalcado. O isso é a região mais antiga. Dele se
deriva o eu e, ulteriormente, o recalcado (processos psíquicos excluídos do eu, que voltam a fazer parte do

210
reavivamento do assassinato do pai tirânico da horda primitiva, que não é um fato
registrado, inscrito no saber da humanidade, mas que pode ser deduzido como uma causa
eficiente para a constituição do sintoma da religião judaica.
Freud sustenta que essa é a verdade histórica que funciona como causa da
construção do mito religioso de Moisés e do Deus único, a qual permaneceu encoberta e
deformada pelos véus da narrativa mítica. Neste momento, ele estabelece uma distinção
entre a verdade histórica e a verdade material. A verdade material parece estar referida à
materialidade dos fatos históricos, mas o que seria a verdade histórica? (FREUD, S.
(1939[1934-38])/1966, p. 143, 144).
Freud reporta a verdade histórica ao fato de que, nos tempos primitivos, houve
uma pessoa fadada a parecer imensamente poderosa, nessa época, e que retornou,
posteriormente, na memória dos homens, elevada à posição de divindade (FREUD, S.
(1939[1934-38])/1966, p. 143). Essa perspectiva autoriza-nos a pensar que a verdade
histórica não é a exatidão daquilo que aconteceu, mas apresenta uma relação íntima com
a noção freudiana do nachtraglich, que é ressaltada por Lacan nas definições do desejo e
do inconsciente temporal encontradas, no Seminário XI e em “Posição do inconsciente”.
Ou seja, a verdade histórica tem relação com o que Lacan já havia apontado em “Função
e campo da fala e da linguagem” como a função de temporalização do sujeito (LACAN,
J. 1953/1966, p. 255), relativa ao remanejamento do traço arcaico de um acontecimento,
em função da perspectiva futura.
Como já dissemos essa visada de Freud, em 1937, oferece-nos uma concepção do
inconsciente antagônica à idéia de uma memória onde tudo já está dado, onde tudo já está
inscrito sob a forma do recalcado. O que o texto “Moisés e o monoteísmo” deixa claro é
que o sintoma, que deve ser resolvido na análise, supõe uma composição do isso e do

isso). Como todos sabem, o termo das Es (o isso) é introduzido por Freud no artigo “O eu e o isso”,
acentuando o fato de que somos vividos por forças desconhecidas e indomináveis. O nome isso é
introduzido juntamente com a remodelação da tópica freudiana ocorrida nos anos de 1920-30, onde o
inconsciente deixa de coincidir com o recalcado e o eu deixa de coincidir com a consciência. Além do
mais, o grupo das pulsões do eu perde sua autonomia e é absorvido na oposição pulsões de vida X pulsões
de morte. O eu já não é definido por um tipo de pulsão específica, pois a nova instância da qual ele se
origina, o isso, inclui os dois tipos de pulsão. A principal conseqüência disto é que a instância contra a qual
se exerce a defesa, já não é o inconsciente, e, sim, o pólo pulsional, o isso, grande reservatório de libido
onde impera a inorganização característica da ausência de um sujeito coerente.

211
recalcado, que implica em uum manejo do tempo, fazendo surgir, do arcaico, algo que
não podemos dizer que já estava aí.
Assim, para concluirmos a discussão desse segmento que abordou as
contribuições freudianas de 1937, diremos que a concepção de inconsciente, introduzida
no final da obra de Freud, esclarece enormemente o conceito lacaniano de ato analítico.
Embora, no Seminário XV, Lacan não faça nenhuma referência direta aos textos
que acabamos de analisar, é impossível deixar de reconhecer a afinidade entre os
trabalhos.
A afinidade fica evidente quando lembramos que, para Freud, o final de análise
depende da tomada de posição do analista, de seu julgamento, ou seja, depende de um
analista ativo, capaz de lançar um ato. Ou quando recordamos que o final de análise em
Freud está vinculado a um ganho de saber (o material tornado consciente) com o qual o
sujeito consente (depois das resistências internas terem sido vencidas).
A proximidade das concepções freudianas do final de análise e do ato analítico
torna-se clara quando Freud diz que, no processo analítico, o que está em questão é a
revisão dos recalques, que corrige o processo original de recalcamento. O sujeito deve
localizar sua posição de gozo para responder por ela. A proximidade se esclarece ainda,
quando relacionamos a expressão de Freud “estado criado” (que indica o que diferencia o
sujeito analisado daquele que não foi) à invenção de um saber sobre a verdade, implicada
na perspectiva do ato analítico.
Todos os aspectos assinalados são fundamentais para nossa argumentação, na
medida em que aproximam o inconsciente freudiano, de 1937, da concepção lacaniana do
inconsciente como o “não realizado”, de 1964. Em 1937, o inconsciente freudiano é algo
que se transforma no tempo, em função da verdade histórica manejada pelo saber do
sintoma, como mostra o texto “Moisés e o monoteísmo”. E se o inconsciente é isso, a
intervenção analítica deve ser capaz de incidir na relação do saber com essa verdade
histórica mais arcaica, que não coincide com o recalcado.
A idéia da invenção de um saber sobre a parte não sabida da verdade é claramente
veiculada, no texto “Construções em análise”, onde Freud propõe um tipo de intervenção
do analista distinta da interpretação.

212
Aqui, importa-nos destacar um aspecto que aparece em Freud e também no texto
de Lacan “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, e que ainda encontra-se
em jogo no conceito de ato analítico de 1967, a saber, o fato de que a experiência da
análise supõe certo manejo do saber, no processo de apreensão da verdade do sujeito.
Como na psicanálise, não temos acesso direto à verdade, ela deve ser apreendida
indiretamente, por meio do saber. Idéia que encontramos de forma explícita na
proposição de Lacan: “Esse efeito de verdade que se libera, no inconsciente, exige do
saber uma disciplina inflexível (...)” (LACAN, J. 1966/1966, p. 365). É por isso que uma
das referências fundamentais para Lacan, no Seminário O ato analítico, é a de que não há
Outro do Outro, não há metalinguagem (LACAN, J. 1968/2001, p. 376). O que pode ser
traduzido para os termos freudianos como: o recalque originário não tem conteúdo e
existem pontos do inconsciente que não são rememorados. Esses pontos devem, portanto,
ser construídos.
No caso do apólogo dos três prisioneiros, esse aspecto aparecia do seguinte modo:
nenhuma dedução lógica permitia uma afirmação sobre a cor do disco pregado nas costas.
Diante dessa situação, a única saída foi o ato que interveio, na tensão temporal,
permitindo ao sujeito alcançar uma certeza a respeito de si mesmo. O ato foi o elemento
intermediário entre o enigma que intrigava o prisioneiro e a certeza que enfim ele
alcançou.
Tendo sido situados os elementos da última etapa da obra de Freud que podem
iluminar a noção de ato analítico, retornaremos agora ao Seminário XV, para fazer
avançar nossa investigação sobre o conceito de ato.

7- A retomada do Seminário O ato analítico, a partir dos esclarecimentos extraídos


do texto “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” e dos textos freudianos
de 1937.

Em 1953, quando escreve “Função e campo da fala e da linguagem”, Lacan já


considerava que o sentido de uma experiência era algo de indeterminado, antes de ser
lido e interpretado pelo sujeito. Como ressaltamos, no Capítulo I, no “Discurso de
Roma”, não há relação de causa e efeito entre o significante e o significado, como a que

213
encontramos nos textos “O Seminário sobre ‘A carta roubada’” e “A instância da letra ou
a razão depois de Freud”. Tudo depende da interpretação e do sentido doado pelo sujeito
à experiência.
A diferença do Lacan de 1953 para o Lacan do Seminário O ato analítico – onde
essa discussão sobre a história é retomada - é que, em 1953, o sintoma era o significante
de um significado recalcado da consciência do sujeito (LACAN, J. 1953/1966, p. 280).
Para o Lacan daquela época, a análise promovia a possibilidade de que, reinterpretando o
traço inscrito no psiquismo, o sujeito decidisse o sentido do acontecimento original
(LACAN, J. 1953/1966, p. 257). Isso significa que o nachtraglich considerado por Lacan,
naquela ocasião, e implicado na concepção da interpretação daquele momento, era o
efeito de retroação do significante sobre a própria cadeia.
Vejam que não defendemos, aqui, a idéia de que Lacan, no “Discurso de Roma”,
tenha concebido a psicanálise como a busca de uma significação última. Mesmo no
período em que considerou a existência de uma fala plena, isso nunca significou sua
adesão à concepção da psicanálise como uma experiência de totalização do sentido. O
sujeito doador de sentido sendo a razão mesma para que essa totalização jamais se
realizasse. O que fazemos é chamar a atenção para o fato de que a interpretação do
analisante ou do analista, em 1953, tinha como referência o texto já escrito do
inconsciente. Reenviava a fala enunciada, na sessão, ao “inconsciente estruturado como
uma linguagem”, que já estava dado, fazendo surgir um sentido novo, por meio desse
procedimento.
Deste modo, interpretar em “Função e campo da fala e da linguagem” significava
ler o que já estava escrito. A idéia colocada em perspectiva pelo ato analítico, no entanto,
aproxima-se mais das noções freudianas de construção e verdade histórica de 1937, nas
quais o que se encontra em questão é ler o que não estava escrito. Essa maneira de ver a
história, em psicanálise, é diferente daquela apresentada em “Função e campo da fala e da
linguagem” de 1953.
No Seminário O ato analítico, Lacan responde a uma crítica que ele não situa
claramente, mas que se relaciona, em alguma medida, às observações que acabamos de
fazer. Sem nomear seu interlocutor, Lacan menciona que este o acusa de dizer coisas, nos
últimos três anos, que contrariam as que foram ditas há dez anos, no “Discurso de

214
Roma”. Aqui, Lacan faz referência à idéia de que a interpretação, na histeria, faz emergir
pedaços do inconsciente que complementam a história do sujeito. (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 21 Février, 1968).
Lacan se apressa em ressaltar que, em 1953, ele já havia apontado as limitações
dessa perspectiva e que, mesmo nessa época, sua noção de história não era a de uma
história já existente, que deveria ser reconstituída na análise, mas a de uma história que se
articulava como a história da história, a partir da qual o historiador constrói. De acordo
com Lacan, a concepção de história veiculada pelo “Discurso de Roma”, já permitia a
consideração de uma condição extremamente importante para o ato analítico, qual seja, a
de subversão do sujeito suposto saber pré-estabelecido que, em sua opinião, nos reporta
ao fato de que o manejo do saber, num ponto preciso, refere-se não ao saber, mas à
verdade (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 21 Février, 1968).
Não sabemos quem é o interlocutor de Lacan, no Seminário XV, nem tampouco, a
que crítica ele responde exatamente ao sustentar que sua noção de história em 1967, da
qual depende o ato analítico, não é diferente daquela transmitida no texto “Função e
campo da fala e da linguagem” de 1953.
Lacan está correto quando diz que a história, no “Discurso de Roma”, está
referida não ao saber, mas ao manejo do saber na apreensão da verdade do sujeito. O que
é possível constatar nas citações encontradas no texto mencionado:

A ambigüidade da revelação histérica do passado não é mentirosa. Ela


apresenta o nascimento da verdade na fala e, por aí, nos chocamos com a
realidade do que não é nem verdadeiro nem falso (...) Da verdade dessa
revelação, a fala presente nos dá seu testemunho, na realidade atual, e a
funda em nome dessa realidade (LACAN, J. 1953/1966, p. 255, 256).

Sejamos categóricos, não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade,


mas de verdade (...) (LACAN, J. 1953/1966, p. 256)

215
A história no “Discurso de Roma” não era história factual que deveria ser
simplesmente recuperada, na experiência da análise. Nesse texto, Lacan deixa claro que
os fatos não têm valor, em si mesmos, mas o adquirem em função da doação de sentido
realizada pelo sujeito. É a leitura que o sujeito faz das inscrições dos fatos, no psiquismo,
que lhes confere um sentido, no processo de construção de sua própria história. Sob esse
ponto de vista, concordamos com Lacan que, já nesse momento, não existia uma história
constituída, o que colocava a possibilidade de subversão do sujeito suposto saber, na
medida em que o modo como o sujeito interpretava o que estava inscrito no inconsciente
tinha o poder de modificar o sentido daquelas inscrições.
Continuamos a sustentar, no entanto, que em 1967 surge algo de novo na teoria
lacaniana de história, embora afirmar o surgimento de algo novo não seja o mesmo que
dizer que há antagonismo. A perspectiva do ato analítico, que se assemelha à da
construção e da verdade histórica freudianas supõe uma leitura, não do que estava
inscrito, mas do que não se inscreveu no inconsciente. Quando responde à crítica do
interlocutor anônimo, no Seminário O ato analítico, Lacan faz algo que é bastante
comum em seu ensino. Ele age como o sujeito em análise, que lê as inscrições
inconscientes doando um sentido que não estava lá. Em mais de um momento de sua
obra, Lacan retoma uma determinada proposição enunciada num certo contexto, para
reinterpretá-la a partir de uma perspectiva inédita, que modifica seu sentido. Essa
característica é uma das marcas de seu estilo e é por isso que, muitas vezes, as nuanças e
as modificações conceituais, no decorrer de seu ensino, precisam ser extraídas, já que não
são indicadas de maneira explícita. Esse parece ser o caso de sua concepção de história,
que assume novo valor quando relacionada ao ato analítico e à subversão do sujeito
suposto saber.
A história lacaniana, em 1953, já estava referida à verdade e se constituía a partir
da decisão do sujeito acerca do sentido a ser dado às inscrições psíquicas das experiências
passadas. A diferença é que, em 1967, a verdade passa a ser referida ao objeto a que
assume a função de causalidade no aparelho psíquico. Esse deslocamento muda as
relações entre o significante, o sentido e a causa, exigindo a redefinição do ato do
analista. O manejo do saber, em análise, no processo de apreensão da verdade do sujeito

216
deve, a partir de então, levar em conta o objeto que produz um ponto de falha no campo
do saber. E é a esse problema que a construção de ato analítico responde.
Tendo sido aclarado esse ponto, passemos à análise do paradigma do ato,
proposto por Lacan no Seminário XV, a fim de produzir esclarecimentos a respeito da
estrutura do ato representada por Lacan, no grupo de Klein, examinado no início do
capítulo.

7.1- A travessia do Rubicão – O paradigma do ato no Seminário XV.

O exemplo dado por Lacan, no Seminário XV, para ilustrar o que seria um ato,
curiosamente, não é extraído da experiência da psicanálise, mas da política: o ato de
César atravessar o Rubicão.
O interesse de Lacan pelos atos políticos justifica-se porque, segundo o autor, são
atos que se constituem como um dizer. Eles produzem mudanças decisivas depois de seu
acontecimento e podem ser interrogados, no mesmo registro do ato analítico (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).
No dia 10 de janeiro do setingentésimo quinto ano da fundação de Roma, César,
então governador da Gália, atravessou o Rubicão e entrou na Itália com sua legião de
soldados.
A margem onde César e os legionários se encontravam ficava nas terras da Gália,
na outra, começava a Itália e a estrada que levava a Roma.
Se seguissem por aquela estrada, os soldados da 13ª legião estariam cometendo
uma ofensa mortal, não apenas por ultrapassarem os limites de sua província, mas
também por infringirem as rígidas leis do império romano Eles estariam, na verdade,
declarando uma guerra civil (HOLLAND, T. 2006, p. 13).
César já havia dado ordens, na tarde daquele mesmo dia, para atravessarem o
Rubicão e, quando finalmente chegaram à fronteira, os soldados receberam a ordem de
parar, pois ele estava atormentado pela indecisão. Olhava as águas do riacho, sem dar
uma só palavra, e sua mente movia-se no silêncio.
Os romanos tinham um nome para designar um momento como aquele: discrimen,
que indicava um instante de tensão angustiante, quando todas as conquistas de uma vida

217
são colocadas em xeque. Na hesitação de César, reconhecemos a mesma tensão e
angústia, experimentadas pelos prisioneiros do apólogo de Lacan, quando sabiam que seu
ato decidiria por sua liberdade ou por seu encarceramento.
O dilema com o qual César se confrontava era de uma angústia peculiar. Em
menos de uma década, ele havia forçado à rendição 800 cidades, 800 tribos e toda a
Gália, mas para os romanos, o excesso de vitórias era motivo de apreensão. Eles
constituíam uma república e não era conveniente que um só homem fizesse sombra aos
demais.
Os inimigos de César, invejosos e temerosos, já manobravam para tirá-lo do
comando. Agora, por fim, eles tinham conseguido encurralá-lo e César teria que optar
entre submeter-se à lei, deixar o comando e arruinar sua carreira ou atravessar o Rubicão
(HOLLAND, T. 2006, p. 14).
Foi como um jogador que se entrega a um impulso, que César conseguiu
finalmente dar a seus legionários a ordem de avançar, pronunciando a frase: “Jacta alea
est!” que significa “a sorte está lançada!” 100
O que estava em jogo não permitia uma solução racional. Era imponderável
demais. Invadir a Itália significava uma declaração de guerra e César não podia prever
todas as conseqüências de sua decisão.
Discrimen, momento de crise, tinha outro significado: o de linha divisória. E foi
isso, em todos os sentidos, o que veio a se tornar o Rubicão. Mesmo depois de muito
tempo do colapso do Império Romano, os valores antagônicos delineados pelo Rubicão
(liberdade e despotismo, anarquia e ordem, república e autocracia), continuaram a
obsedar os sucessores de Roma.
Ao atravessar o riacho, César, de fato, lançou o mundo em guerra e eliminou as
antigas liberdades democráticas de Roma, instituindo, a partir de então, uma monarquia.
A travessia do Rubicão marcou o fim de uma era. O mediterrâneo tinha sido povoado por
cidades livres, habitadas por homens cidadãos que proclamavam orgulhosos os valores
que os distinguiam dos escravos, tais como, liberdade de expressão, direito à propriedade,
etc.

100
A frase que nos livros de história, geralmente é citada em latim, é uma citação do dramaturgo ateniense
Menandro.

218
Com o advento dos impérios, inicialmente o de Alexandre o Grande e de seus
sucessores e depois o de Roma, a independência desses cidadãos foi cerceada por toda
parte. No final do século I a.C. restava apenas uma cidade livre que era, justamente,
Roma. Quando César atravessou o Rubicão, a república desmoronou e deixou de existir a
última cidade livre. Em conseqüência disso, 1000 anos de democracia chegaram ao fim
(HOLLAND, T. 2006, p. 64).
É por isso que Lacan, no Seminário XV, diz que cruzar o pequeno rio não tinha
para César nenhum significado militar decisivo. O que estava em questão era uma
redefinição de ordem política. Atravessá-lo era entrar na terra mãe, terra da república, a
qual abordar era o mesmo que violar (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10
Janvier, 1967).
Gabriel Lombardi em seu texto “O ato analítico considerado à luz de seus
101
infortúnios”, diz ter encontrado em Plutarco o relato de que, na noite anterior à
travessia do Rubicão, “César tivera um sonho abominável em que se unia a sua mãe num
comércio impronunciável” (LOMBARDI, G. 1993, p. 64). O significado do sonho é o
apontado por Lacan ao dizer que, para César, atravessar o Rubicão significava violentar e
se apossar da terra mãe.
Gabriel Lombardi, no mesmo texto, diz também ter encontrado no livro de
102
Suetonio Os doze Césares, a indicação daquilo que teria precipitado a decisão de
César, fazendo-o passar ao ato. Segundo o autor, César teria avistado um homem de
altura e beleza notáveis tocando flauta e, então, arrancando-lhe o instrumento das mãos,
lançou-se na direção do riacho produzindo sons vibrantes e gritando: “Marchemos onde
nos chamam os signos dos Deuses...jacta alea est!” (LOMBARDI, G. 1993, p. 64).
A análise de Lombardi faz ver que o ato de César responde a um signo do real.
César responde, com seu “a sorte está lançada”, ao real que se presentifica na visão do
belo flautista, e que esteve velado em seu sonho da noite anterior.

101
Plutarco foi um filósofo e prosador grego do período greco-romano. Segundo a tradição, ele escreveu
mais de 200 livros, mas chegaram até nós cerca de 50 biografias de gregos e romanos.
102
Suetonio, em latim Caius Suetonius Tranqüilos, foi um historiador e biógrafo romano da época do
imperador romano Trajano.

219
O que ocorre é que depois do empuxo ao ato, promovido pelo encontro de César
com o real, ele se posiciona de tal forma diante de seu desejo que já não é possível dizer:
“violar a terra mãe não era a minha intenção!”.
É para isso que Lacan aponta, quando diz que Freud permitiu que saíssemos da
cadeia fechada da boa intenção. O que significa que qualquer que seja a intenção em
jogo, no ato, o que realmente interessa é seu fruto (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 17 Janvier, 1968).
Se o desejo de César tivesse permanecido apenas na dimensão do sonho,
formação do inconsciente que supõe os equívocos da fala e a dialética do reconhecimento
entre o sujeito e o Outro, César talvez tivesse morrido governador da Gália, mantendo-se
numa posição indefinida e dizendo que o significado de seu sonho era outro, que sua
intenção não era a de violar a pátria, etc. Em suma, César teria permanecido no plano do
significante que representa o sujeito para outro significante, cujo caráter é o de
indeterminação.
Depois do ato, no entanto, isso já não é possível e César tem de responder por seu
desejo, que aparece como desejo decidido, alcançando a certeza de um delírio.
Esse é, então, o paradigma do ato, fornecido por Lacan no Seminário XV. Se
Lacan o elege é porque ele evidencia várias características do ato analítico, que ele
pretende colocar em relevo, no Seminário XV. E a primeira delas, e talvez a mais
fundamental, é a que analisaremos a seguir, a saber, a perspectiva de que o valor de um
ato só pode ser medido por suas conseqüências.
Lacan ressalta que a ética do ato é a ética de suas conseqüências. Ou seja, é a ética
daquilo que o ato faz surgir.
Ele afirma que o ato está na leitura do ato (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 22 Novembre, 1967) e que “a psicanálise põe em questão o fato de que existem
acontecimentos para um ser, que comportam conseqüências surgidas como o resultado da
inscrição do ato”. (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 25 Janvier, 1968).
Miller, lendo Lacan, assinala que o ato implica uma dimensão filosófica, ética e
política. Comentando o “Discurso à EFP”, de Lacan, ele assinala que o pivô do texto é o
tema do ato, que se repete no Seminário XV, iniciado, simultaneamente, na entrada do
ano letivo de 1967.

220
Sua observação tem a ver com a pergunta que Lacan coloca, no discurso
mencionado. Ele quer saber se sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
psicanalista da Escola” foi um ato. A pergunta pode ser encontrada, no segundo parágrafo
do texto, “Ela foi um ato?”, seguida da resposta, “É o que depende do que vem a seguir
(...)” 103 (LACAN, J. 1970/2001, p. 261).
O que Miller pretende destacar, em seu comentário, é que Lacan inscreve o
estatuto do ato na seqüência da cadeia significante, que se institui depois de ele ter sido
lançado. O ato apresentando uma dimensão retroativa e só podendo ser julgado après
coup (a posteriori) (MILLER, J-A. 1999, p. 10).
Essa característica do ato o coloca sob a dependência do Outro, que irá ou não
reconhecê-lo como ato. O julgamento do ato pelo Outro produz dois efeitos. Ao mesmo
tempo em que abre o ato para o futuro, abala a posição do sujeito que pretende ser agente
de seu ato. Essa é a razão pela qual Lacan, no Seminário XV, estabelece uma relação
entre ato e Witz. A semelhança entre os dois deve-se ao fato de que esse último só
constitui verdadeiramente seu enunciado como chiste, quando o Outro o reconhece como
tal (MILLER, J-A. 1991, p. 10). 104
É o que ressaltamos, anteriormente, quando indicamos a importância da figura do
Outro na temporalidade do ato. Dissemos que, no caso do apólogo dos três prisioneiros, o
lugar do diretor da prisão era o lugar do Outro, que podia avalizar ou rechaçar a solução
encontrada pelo detento. É o que Luiz Moreira de Barros aponta ao dizer que o instante
lógico do ato tem de passar ao discurso para ter conseqüências subjetivas efetivas, no
sentido da mudança de posição do sujeito em relação ao Outro 105 (BARROS, L-M. 2005,
p. 96).

103
Em outubro de 1967, Lacan fez sua proposição do passe. Um mês depois, convocou sua Escola para
ouvir a resposta e o que ele ouviu foi um “não”. Segundo Miller, desde a dissolução da SFP e da
excomunicação de Lacan, o que se ouvia era que um ponto central para a Escola era o de saber como se faz,
como se julga a formação de um analista. E quando Lacan propõe um dispositivo que visa verificar como é
que isso ocorre, a Escola responde dizendo que não é isso que ela quer. De acordo com Miller, o “Discurso
à EFP” foi enunciado a partir da decepção de Lacan com essa resposta, razão pela qual, no discurso, ele
trata da questão do lugar da falha, no ato. Ali, Lacan reflete sobre sua falha e sobre suas conseqüências
(MILLER, J. 1999, p. 9).
104
Miller, aqui, se refere à característica do chiste destacada por Freud, qual seja a de que seu efeito só se
produz quando o ouvinte compreende a tirada espirituosa, respondendo, então, com a gargalhada. Sem esse
efeito produzido, no Outro, não há chiste.
105
A afirmação encontra-se na tese de doutorado defendida, no Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da UFRJ, e intitulada “Investigação sobre a questão do ato em psicanálise”.

221
No exemplo de César, se o examinamos do ponto de vista das conseqüências,
diremos que a travessia do Rubicão foi um ato, porque produziu conseqüências
espetaculares no universo político da época. César põe o pé, no riacho, como governador
da Gália e sai dele como um subversivo, que rompeu com as leis da cidade,
transformando-se, posteriormente, num imperador. O cruzamento do Rubicão transforma
não apenas a vida de César, mas também a lógica das leis do Império Romano. O Outro
do discurso, no caso da travessia do Rubicão, avaliza e corrobora o ato de César, confere
consistência ao seu desejo, inaugurando uma nova ordem.
Essa maneira de ver as coisas coloca-nos diante de outra característica
fundamental do ato: sua perspectiva de transformação, a partir de uma inscrição
significante inédita que lhe é correlativa. De acordo com Lacan, não existe ato que não
tenha como correlato o significante (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15
Novembre, 1967).
Isso significa que as coordenadas simbólicas são o que conferem ao ato seu valor,
o que fica evidente, no exemplo da travessia do Rubicão.
Para os que não sabem o Rubicão não é um rio, mas um pequeno riacho sobre o
qual temos que nos inclinar, se quisermos vê-lo. Ele é um fio de água sem nenhuma
importância geográfica e pode ser atravessado com a maior facilidade, sem nenhum
esforço físico.
O que queremos dizer é que César não comete nenhuma façanha grandiosa ao
atravessá-lo, fato que mostra que a importância do ato de César – que o faz ser lembrado
tantos anos depois de sua realização – deve-se, não à ação motora, mas ao seu
significado.
Na opinião de Lacan, para que haja ato, não é suficiente a realização de um
movimento ou de uma ação, mas é necessário um dizer que enquadre e fixe esse ato.
É por isso que, para Lacan, não há oposição entre a frase encontrada, no
Evangelho de São João, “no início era o verbo” e a frase de Goethe, pronunciada por seu

222
personagem Fausto, “no início era o ato” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du
10 Janvier, 1968).
“O dizer” ou “a ponta significante” implicada, no ato, denota, como Freud indicou
em Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, sua associação a um sujeito. O ato
envolve processos mentais, é um fato significante e, em decorrência disso, significa algo.
É por isso que, logo nas primeiras aulas de seu seminário, Lacan enfatiza o fato de
que todo ato tem como correlato o significante (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 15 novembre, 1967). Essa característica do ato encontra-se no cerne da
distinção que Lacan pretende estabelecer entre ato e motricidade. Em sua opinião, uma
ambigüidade entre os dois termos foi deixada na base conceitual da psicanálise e ele quer
definir claramente o que os diferencia (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon deu 22
Novembre, 1968).
Pois bem, para Lacan, o que distingue o ato da motricidade ou da ação é “sua
ponta significante”, que fica evidente, na análise que Freud empreende dos atos falhos e
sintomáticos, em Sobre a psicopatologia da vida quotidiana (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
Nesse livro, Freud analisa uma série de acontecimentos corriqueiros em nossas
vidas, tais como, o esquecimento de nomes e palavras, os lapsos de fala, de leitura e
escrita, os atos sintomáticos, etc. A hipótese que orienta seu estudo é a de que a
motivação consciente não se estende a todas as nossas decisões motoras (FREUD, S.
1901/1966, p. 250). Freud considera que existem um sentido e um propósito
inconscientes por trás das perturbações funcionais da vida das pessoas sadias. Os atos
falhos e sintomáticos nada mais são do que representantes simbólicos de um pensamento
não admitido pela consciência (FREUD, S. 1901/1996, p. 167, 168).
Partindo da idéia de que os atos falhos têm um determinante simbólico (FREUD,
S. 1901/1996, p. 175), Freud os reconhece como atos psíquicos válidos. Nesses casos, a
intenção manifesta da fala ou da ação é perturbada por uma intenção inconsciente. A
intenção manifesta não consegue alcançar seu objetivo, mas a intenção inconsciente é
bem sucedida.
Vejam, então, que, no livro Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, Freud
insere os atos falhos e sintomáticos, na mesma série das outras formações do

223
inconsciente, como o chiste, o sintoma e o sonho, supondo que eles têm uma significação,
sendo, por isso, interpretáveis. Para Freud, os atos falhos e sintomáticos são equivalentes
à fala, que busca o reconhecimento do Outro. A interpretação de tais atos desempenha a
função de localizar o sujeito, na palavra velada proferida pelo ato.
É preciso dizer que, em 1914, no texto “Recordar, repetir e elaborar”, Freud
aponta para outra dimensão do ato que se opõe à interpretação. O ato é situado, nesse
momento, no limite da rememoração simbólica. A repetição, nesse trabalho, apresenta-se
como a colocação em ato da pulsão, que não acede à rememoração e ao saber.
É outra perspectiva do ato que não coincide com a noção de ato falho e de ato
sintomático. Lacan, em sua construção do ato analítico, articula a falha associada por
Freud ao ato, em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, à pulsão que fura o saber, em
“Recordar, repetir e elaborar”, não podendo ser, portanto, rememorada.
Lacan localiza o ato analítico, na falha do saber, provocada pela pulsão que não se
inscreve no simbólico, mas não abre mão da idéia da interpretação do ato, que ocorre na
reconstituição da cadeia significante, após o lançamento do ato ter abolido,
momentaneamente, o Outro.
É para a relação do ato com o Outro (ressaltada por Freud na análise dos atos
falhos e sintomáticos) que Lacan chama a atenção, quando afirma que “não existe ato que
não tenha como correlato o significante”. E é, nessa mesma dimensão, que ele se apóia
para distinguir o ato da motricidade ou da ação.
Enquanto a ação refere-se à manifestação motora, às reações reflexas, às
descargas de tensão e à expressão direta da vontade, o ato, para a psicanálise, refere-se ao
inconsciente e só pode ser deduzido do reconhecimento da incidência da linguagem na
experiência humana.
Só podemos dizer que há ato, quando ele gera, na seqüência, uma inscrição
significante que lhe confere, a posteriori, um sentido que não estava dado anteriormente.
O verdadeiro ato é aquele que, a partir de uma inscrição significante inédita que lhe é
correlata, modifica, retroativamente, as coordenadas simbólicas que o antecederam.
É o que apreendemos no exemplo de César. O que ele faz, ao cruzar o Rubicão, é
desafiar as leis da república, indo mais além das coordenadas simbólicas que regiam as

224
leis da época. César antes de cruzar o Rubicão era um soldado da república, depois de
fazê-lo tornou-se um rebelde.
O fato de César ter ido além do enquadre das leis do Império Romano, nos remete
ao aspecto do ato, que diz respeito ao franqueamento que ele produz. Todo ato é, em
alguma medida, uma ultrapassagem e produz o atravessamento de um código ou de um
conjunto simbólico, que é reorganizado depois do ato infrator.
Esse aspecto leva Lacan a afirmar que o ato tem relação com o franqueamento de
um umbral, a partir do qual o sujeito coloca-se fora da lei. E só quando isso acontece,
pode-se dizer que a motricidade tem valor de ato (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 15 Novembre, 1967).
A idéia de que o ato promove a ultrapassagem das coordenadas simbólicas
estabelecidas havia sido indicada, no apólogo dos três prisioneiros, no qual, a partir de
seu ato, um deles sai da prisão para aceder ao mundo lá fora.
No caso de César, isso pode ser reconhecido na medida em que ele rompe com
uma determinada situação política, definida por regras muito precisas, para, em seguida,
estabelecer outra situação política, regida por regras completamente diferentes daquelas
que orientavam a situação anterior.
Isso significa que César faz surgir novas coordenadas simbólicas, no Império
Romano, quando vai além das leis estabelecidas por esse império. No entanto, como nos
lembra Graziela Brodsky, para se ir além das leis, é preciso tê-las no horizonte. Há que se
ter uma referência do Outro para se ir além dele. De onde se deduz que o Outro sempre
acompanha a dimensão do ato, posto que trata-se, justamente, de ir além do Outro
(BRODSKY, G. 2001, p. 16).
Não há ato sem Outro, ressalta Graciela Brodsky. Isso é o que o exemplo de
César mostra. O limite tem que estar estabelecido para depois se ver como é que ele pode
ser transposto. A lei simbólica tem que estar presente para que possa ser franqueada. Se
ela não está colocada, então, não há ato (BRODSKY, G. 2001, p. 16). Mas, então,
pergunta-se G. Brodsky, por que Lacan afirma que o instante do ato não comporta a
presença do sujeito nem do Outro (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29
Novembre, 1967, et Léçon du 28 Février, 1968).

225
A resposta encontrada pela autora é dizer que isso se torna compreensível, quando
lembramos que Lacan afirma que “o ato está do lado do analista e não do lado do
analisante” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968). Assim,
dizer que não há Outro nem sujeito, no momento do ato, não significa que não haja Outro
nem sujeito do lado do analisante, e, sim, do lado do analista. É para o analista que não há
Outro nem sujeito.
Acreditamos que, de fato, essa é uma maneira de se interpretar a afirmação de
Lacan, pois o que a clínica da passagem ao ato nos ensina é que o ato se inscreve sempre
sob o modo da urgência, no momento em que, em detrimento do pensamento,
encontramos a prevalência da ação, da certeza, relativa ao objeto a.
Lacan, no Seminário X, já havia dito que “é da angústia que a ação toma
emprestada sua certeza” (LACAN, J. 1962-63/ p. 92). A angústia foi associada por Lacan
ao objeto a, nesse momento. No Seminário XV, ele mantém essa mesma concepção para
falar do ato analítico, sustentando que, no ato, o sujeito encontra uma referência que não
vem do Outro, sempre enganoso, e, sim do objeto pequeno a.
A passagem ao ato é exemplar, na medida em que mostra a antinomia existente
entre pensamento e ação. Onde o sujeito pensa, ele não age. A essência do pensamento é
a dúvida, a divisão e a indeterminação e, sob esse ponto de vista, o ato só pode se
consumar, no instante de suspensão do pensamento, quando são abandonados os
equívocos da fala e da linguagem e também a dialética do reconhecimento.
Diferentemente do acting-out que implica uma cena que é palavra e se dirige ao
Outro, no ato analítico e na passagem ao ato, lembra Miller, encontramos um não
proferido ao Outro (MILLER, J-A. p. 45).
Assim, concordamos com Graciela Brodsky, quando ela diz que essa é uma das
maneiras de se compreender a afirmação de Lacan segundo a qual o ato analítico é sem
Outro e sem sujeito. O ato realiza-se, no momento em que não há pensamento, termo
correlativo do Outro e do sujeito, o que leva Lacan a afirmar que o analista o lança do
lugar do objeto a.
Acreditamos, no entanto, que o ato analítico produza uma suspensão do sujeito e
do Outro, não apensas do lado do analista, mas também do lado do analisante. Suspensão
que se encontra em relação com o corte da cadeia significante, correlato do pensamento.

226
O lançamento do ato pelo analista produz como efeito a ruptura momentânea da cadeia
significante do analisante. O sujeito é o que um significante representa para outro
significante. Quando suspendemos a cadeia, suspendemos simultaneamente o sujeito,
nela representado. A suspensão da cadeia e do sujeito coincide com o momento, na
análise, chamado por Lacan de destituição subjetiva.
Pensar a inexistência do Outro e do sujeito, do lado do analista, não elimina a
suspensão do sujeito e do Outro que ocorre, a partir do ato, no campo do sujeito e que,
nesse caso, é designada como destituição subjetiva. E é por isso que Lacan diz que, no
momento do ato, o analista é afetado pelo des-ser, enquanto o analisante sofre a
destituição subjetiva (LACAN, J. 1970/2001, p. 273).
De qualquer maneira, é importante ressaltar que, como esclarece L. M. Barros, na
estrutura do ato, existem dois momentos: o primeiro é o do lançamento do ato (onde
encontramos a dissolução momentânea do Outro e do sujeito) e o segundo é o da leitura
do ato (onde temos a reconstituição do sujeito e do Outro, pela cadeia posta em ação pela
interpretação do ato) (BARROS, L-M. 2005, p. 56).
É por isso que Freud designou esse tipo de ato como “falho”. Essa é uma
característica geral dos atos, que está em relação com o fato já assinalado, de que o ato
consuma-se no instante efêmero, no qual o Outro e o sujeito estão ausentes.
O ato é sempre falho, porque escapa ao sujeito que o lança. O que Lacan traduz
nas seguintes proposições: “no ato, o sujeito realiza-se enquanto falta” ou “não há ato do
qual alguém possa dizer-se senhor” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 et
24 Janvier, 1968).
Assim, no momento do lançamento do ato há a suspensão do sentido, do Outro e
do sujeito. Encontramos aí a dimensão real do ato, relacionada, por Lacan, à presença do
objeto pequeno a. No momento da leitura do ato, o Outro, o sujeito e o sentido são
reconstituídos, em função da interpretação que se faz do ato, fazendo surgir suas
conseqüências e os efeitos sobre o sujeito.
Isso leva Lacan a dizer que o ato psicanalítico designa uma forma, um envelope,
uma estrutura, que suspende o que foi instituído até agora sobre o estatuto do ato. A
psicanálise tornou evidente, com a análise do ato falho, que todo ato só se constitui como
elidido. Ela explicitou, como nenhuma outra disciplina, o fato de que o ato comporta uma

227
fenda, uma falha, que é o signo de algum sucesso (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 6 Décembre, 1967). O que significa que, para Lacan, o ato só é bem sucedido
ao falhar (LACAN, J. 1970/2001, p. 265).
De acordo com L. M. Barros, essa dimensão do ato é o que torna impossível a
existência de qualquer tipo de harmonia entre o sujeito e seu ato (BARROS, L. M. 2005,
p.64),
Isso leva Lacan a dizer que “o sujeito é sempre ultrapassado por seu ato”
(LACAN, J. 1970/2001, p. 266) ao inscrever uma cadeia significante que se situa numa
relação de descontinuidade com a cadeia prévia ao ato, que determinava, então, a posição
do sujeito
A idéia de que a cadeia significante recomeça e de que o saber surge renovado
depois do ato, modificando o sujeito, faz com que Lacan se interesse, no Seminário XV,
por seu modo de produção. É o que veremos a seguir.

8- O ato é sempre falho: a peculiaridade do saber na experiência analítica

No Seminário XV, Lacan dedica-se ao exame do modo de elaboração do saber na


experiência analítica, a partir de um ato que é sempre falho, comportando
invariavelmente uma fenda.
Em sua reflexão, ele se vale da estratégia de distinguir a elaboração do saber, na
análise, da forma de apreensão sapiente típica da ciência e da teoria platônica da
reminiscência.
O modo padrão de apreensão de saber na ciência, diz Lacan, apresenta-se como
um “eu escrevo”, na teoria platônica da reminiscência como um “eu leio”, enquanto a
apreensão do saber, na psicanálise, começa com um “eu perco” (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 6 Décembre, 1967).

228
O saber científico define-se pelo “eu escrevo”, porque é constituído por fórmulas
matemáticas que soletram os fenômenos da natureza. Galileu, primeiro cientista
moderno, faz no século XVI um proferimento de fé, que não havia sido formulado até
então. Ele afirma que “o livro da Natureza está escrito em linguagem matemática e os
caracteres são as figuras geométricas” (GALILEU apud KOYRÉ, A. 1966/1973, p. 186).
O que se encontra em questão, nesse pressuposto, é que a ciência tem como objeto
o conjunto do que existe empiricamente, que ela propõe tratar com precisão matemática,
de onde extraímos as seguintes consequências: 1) a estrutura da ciência é matemática. 2)
existe correspondência entre essa e a estrutura da natureza. 3) o cientista pode soletrar a
natureza com as fórmulas matemáticas.
Quando dizemos que a ciência moderna tem como objeto o conjunto do que existe
empiricamente isso não significa que ela se baseie na contemplação como foi o caso da
ciência aristotélica. Ao contrário, a ciência moderna funda-se na experimentação, que não
é o mesmo que a experiência ou a observação. Enquanto a observação está ligada ao que
se vê e ao senso comum, a experimentação pressupõe a existência de uma linguagem, a
partir da qual o cientista interroga metodicamente a natureza, fornecendo o enquadre
dentro do qual ele constrói suas interpretações (KOYRÉ, A. 1966/1973, p. 166).
O que buscamos apontar com essa afirmação, é que a grande novidade da ciência
moderna, em relação à ciência clássica, é a crença na possibilidade da matemática
apreender e expressar o empírico. Para os gregos, só era possível fazer ciência dos
objetos eternos e necessários, sendo impraticável o conhecimento sistemático do que se
modifica incessantemente. Na perspectiva grega, o que a matemática pode apreender, na
natureza, é o que nela se assemelha ao eterno e ao necessário, como por exemplo, a
trajetória dos corpos celestes. Na ciência grega, é impossível a apreensão pela matemática
dos fenômenos físicos, que não cessam de se transformar. A ciência moderna, ao
contrário, crê na possibilidade da matemática soletrar os fenômenos da natureza.
Sob esse ponto de vista, podemos compreender a apreensão do saber científico
sob o modo do “eu escrevo”, de que nos fala Lacan, pois, o saber produzido pela ciência
moderna apresenta-se como a escrita matemática do real.

229
Tal escrita, como lembra Ana Beatriz Freire, é o saber instaurado pela ciência em
sua dimensão significante, separado da dimensão imaginária 106. Ainda segundo a autora,
a primazia do simbólico sobre o real é o ponto de convergência entre a ciência e a
psicanálise. (FREIRE, A. B. 1996, p. 26, 27).
Mas, se é assim, qual seria a discrepância que Lacan pretende mostrar entre o
modo típico de apreensão do saber pela ciência e pela psicanálise?
Podemos localizá-la em pelo menos três aspectos. O primeiro deles diz respeito à
exclusão do sujeito que o discurso científico opera. O resultado da estratégia científica de
dividir e simplificar ao máximo um sistema é a produção de um sujeito que só se
relaciona à natureza por meio de símbolos e que se sustenta exclusivamente em seu ato
de pensamento, separado de quaisquer propriedades psicológicas ou atributos culturais
particulares. Esse sujeito é rejeitado para fora do campo dos enunciados científicos e
retorna, no campo da psicanálise, sob a forma dos chistes, atos falhos, sintomas, etc.
(FREIRE, A. B. 1998, p. 33).
O segundo ponto diz respeito às relações específicas que o discurso da ciência e o
da psicanálise mantém com o real. Segundo A. B. Freire, enquanto as fórmulas científicas
fazem calar o real que elas soletram, levando em consideração somente o real traduzido
na linguagem matemática e presentificado pelo simbólico, na psicanálise, o real não se
cala. A psicanálise reconhece o real, circunscrito pela cadeia significante e referente à
verdade do desejo, que retorna para causar o sujeito (FREIRE, A. B. 1998, p. 36, 37).
Na discussão que fizemos a respeito da causa, foi possível perceber que a ciência
trabalha para preencher a lacuna entre a causa e o efeito. A causalidade na ciência é
absorvida pela lei. Uma causa que permanece inexplicável do ponto de vista científico é
deixada à margem esperando que, com o tempo, a ciência venha a explicá-la com alguma
lei. A psicanálise, ao contrário, reconhece a diferença entre causa e lei. E o saber
elaborado na sua experiência advém da relação entre esses dois termos.

106
Como sugere Miller, o discurso científico moderno é constituído por fórmulas matemáticas que soletram
os fenômenos da natureza, apresentando-se como redes sistemáticas de elementos coerentes entre si, mas
desprovidos de toda significação. Supõe a existência no mundo de significantes que não querem dizer nada
para ninguém. Os significantes podem organizar-se em leis, mas não portam em si mesmos nenhuma
intenção, não se prestam a nenhum tipo de sentido. Combinam-se segundo premissas que não apresentam
relação alguma com a consciência do cientista que os articula (MILLER, J-A. 1987, p. 43 e 46).

230
O terceiro e último ponto é apontado pelo próprio Lacan, que lembra que a ciência
não põe em dúvida o fato de que o saber produzido por ela, pela intervenção da função
simbólica, já estava aí (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 29). A ciência está segura de que os
corpos seguiam a trajetória da lei da gravidade, antes mesmo que Newton escrevesse sua
equação matemática. A ciência crê que o universo é organizado por leis, e que cabe aos
cientistas transcrever essas leis em equações matemáticas.
Independente da crença dos cientistas na pré-existência de um saber, na natureza,
passível de ser traduzido em fórmulas matemáticas, Lacan insiste no fato de que a ciência
nunca coloca em questão o saber antes de seu surgimento. A ciência, diferentemente da
psicanálise, não se pergunta: esse saber quem o sabia? (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 7 Février, 1968). Ainda segundo Lacan, o ponto que distingue
vivamente a ciência e a psicanálise e que coloca em questão seu estatuto como ciência, é
que, para a psicanálise, o saber construído em sua experiência alguém já o sabia. Fato que
está em relação com a instauração da dimensão do sujeito suposto saber no processo
analítico.
Deixemos essa idéia de Lacan em reserva: “o saber produzido em análise alguém
já o sabia”. Retornaremos a ela em breve. Passemos, agora, ao segundo modo de
apreensão do saber indicado por Lacan, no Seminário XV, como distinto do saber
apreendido na análise. Referimo-nos ao modo representado pela teoria da reminiscência,
como nos é ensinada no diálogo Mênon de Platão. 107
No diálogo Mênon, Sócrates interroga um escravo inteiramente ignorante, que não
dispõe de nenhuma formação em geometria. Sócrates quer descobrir se ele detém algum
tipo de saber que não seja o do tipo formal. O escravo não estudou nem conhece a
filosofia e, se ele detém algum saber, então, temos que nos perguntar de onde é que ele
vem.
Sócrates interroga o escravo sobre como proceder para duplicar a superfície de um
determinado quadrado. A primeira resposta fornecida pelo escravo é intuitiva. Ele diz que
para duplicar o quadrado, basta fazer com que seus lados tornem-se duas vezes maiores

107
A comparação entre a verdade esquecida da teoria platônica da reminiscência e a verdade histórica da
psicanálise, já havia sido feita por Lacan, no Seminário II, O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise, ao dizer que diferente do que se passa na teoria de Platão, na psicanálise encontramos a
verdade no erro e o erro na verdade (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 25).

231
do que são. Nesse ponto, Sócrates o faz ver que com os lados duplicados, a superfície do
quadrado será quatro vezes maior e não duas e, procedendo pelo método interrogativo,
conduz o escravo à boa solução que consiste em fabricar outro quadrado fazendo com
que seus lados sejam construídos a partir das linhas diagonais do quadrado precedente
(PLATÃO, 2003, p. 55-63).
Neste contexto, Platão escreve em seu diálogo:

E ele (o escravo) terá ciência, sem que ninguém lhe tenha ensinado,
mas sim interrogado, recuperando ele mesmo, de si mesmo, a ciência, não
é? Mas recuperar alguém a ciência, ele mesmo em si mesmo, não é
rememorar? E não é verdade ainda que a ciência que ele tem agora, ou
bem ele adquiriu em algum momento ou bem sempre teve? Ora, se sempre
teve, ele sempre foi alguém que sabe; mas, se adquiriu em algum
momento, não seria pelo menos na vida atual que adquiriu, não é? Ou
alguém lhe ensinou a geometria? <pergunto> porque ele fará estas mesmas
descobertas a respeito de toda a geometria e mesmo de todos os outros
conhecimentos sem exceção. Ora, há quem lhe tenha ensinado todas estas
coisas? <Pergunto-te> porque estás, penso, em condição de saber, quanto
mais não seja porque ele nasceu e foi criado na tua casa (PLATÃO, 2003,
p. 65).

Platão quer demonstrar sua teoria da reminiscência que sustenta que não
aprendemos nada de novo, pois tudo o que aprendemos já o sabíamos. Para o filósofo, a
aquisição do conhecimento nos leva a rememorar as Idéias das coisas. A Idéia é o objeto
sobre o qual é possível se fazer ciência ou se constituir conhecimento, o que não ocorre
com o objeto sensível. O sensível está sujeito à mudança, à corrupção, enquanto a Idéia é
essência imutável. Nessa perspectiva, o verdadeiro quadrado sobre o qual Sócrates
interroga o escravo, não é o quadrado sensível – ambíguo e cambiante – mas, o quadrado
inteligível e imaterial que existe no mundo das Idéias. Este quadrado existe e é a
verdadeira realidade.

232
Antes de estar unida ao corpo nossa alma contemplou a verdadeira realidade, mas,
em razão de uma falta que desconhecemos houve a queda e a alma teve que encarnar-se.
Depois de unida ao corpo, por obrigação, perdeu todos os conhecimentos que tinha no
mundo das Idéias, mas pode se lembrar deles. Sendo assim, o processo de conhecer, para
Platão, nada mais é do que o reconhecimento, pela alma, das Idéias com as quais teve
contato antes de sua encarnação.
Ao fazer esta breve exposição, o que nos interessa é destacar o modo de apreensão
do saber definido pela teoria da reminiscência, que Lacan situa como distinto do modo de
apreensão do saber, na psicanálise. De acordo com Lacan, quando Sócrates interroga o
escravo, introduz um desenho. Desenho que é mental, evidentemente, mas ainda assim
um desenho. Seu raciocínio obedece à geometria métrica e se baseia na decomposição do
quadrado em triângulos. O desenho corresponde ao que chamamos de função, que
implica a possibilidade de aplicação do desenho de Sócrates sobre o do escravo e vice-
versa. A correspondência ponto a ponto é o que se encontra em questão no diálogo de
Sócrates com o escravo, o que lhe confere valor de decifração (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967).
É nesse ponto da argumentação que Lacan interroga o que ocorre na análise da
transferência, em sua dimensão interpretativa. É curioso que ele fale, nesse momento, da
interpretação, e não de ato, e não sabemos se isso ocorre, porque ele situa as duas noções
no mesmo plano.
De todo modo, ele lança a questão: na interpretação analítica, trata-se de
decifração? Estamos lidando com a tradução 108 de um esquema já dado, como no diálogo
de Sócrates com o escravo? Ou trata-se de algo da ordem da revelação? E, nesse caso, no
lugar de considerarmos dois desenhos que se correspondem, suporíamos a existência de
um desenho não visível que só aparece quando exposto ao fogo. Vejam a citação:

É sobre a organização significante do inconsciente estruturado como uma


linguagem que nossa interpretação se aplica? Ou, ao contrário, nossa

108
Lacan chama a atenção para o fato de que, se pensamos em tradução na análise, temos que considerar
que a interpretação não é uma tradução, mas uma re-tradução, na medida em que a primeira inscrição
significante já é a tradução de algo (LACAN, J. l’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967).

233
interpretação é uma operação de outra ordem, a que revela um desenho até
então escondido? (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29
Novembre, 1967).

A essas perguntas Lacan responde, “não é, evidentemente, nem uma coisa nem
outra”, e prossegue dizendo: “o que torna a tarefa da interpretação muito mais complexa
é sua relação com a operação significante” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon
du 29 Novembre, 1967).
No caso da interpretação analítica, não temos simplesmente o desenho, o
esquema, temos também o sujeito que se encontra no interior. E o que resulta disso,
continua Lacan, é que “o saber comporta falhas, as quais nos fazem questão sob o nome
da verdade”. A experiência da análise demonstra que “o sujeito não é capaz de restaurar o
que se inscreveu pelo efeito significante”. “Existem pontos no saber que não se fecham
ou se completam, justamente aqueles que concernem o sujeito enquanto sexuado”
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).
Vejam, então, que Lacan situa o modo de apreensão do saber, na análise, como
distinto do modo de apreensão do saber pela ciência e pela teoria da reminiscência. E o
que os diferencia é o fato de que a psicanálise leva em conta as falhas no saber que
concernem o sujeito sexuado.
Como já assinalamos, a ciência privilegia a lei em detrimento da causa, leva em
conta o real soletrado pelas fórmulas matemáticas, e não se interroga se seu saber já era
sabido por alguém. A teoria platônica da reminiscência supõe que o saber constituído, no
mundo das idéias, é um saber já sabido pelo sujeito, e pode ser resgatado ponto por ponto
através da rememoração (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre,
1967).
Já a psicanálise inclui, no saber elaborado em sua experiência, o real como causa
e, por essa razão, recusa duas idéias: 1) a de que o saber gerado pela análise seja
completo. 2) a de que esse saber já esteja constituído no inconsciente, esperando para ser
revelado ou recuperado.
À primeira vista pode, então, parecer contraditório o fato de Lacan recusar a
existência de um saber já constituído no inconsciente - sustentando que o inconsciente é

234
algo da ordem do devir, algo que está por se realizar – ao mesmo tempo em que afirma
que o saber construído no processo analítico, alguém já o sabia (aspecto destacado
acima).
Quando consideramos apenas a segunda afirmação - “este saber alguém já o
sabia” - podemos nos enganar pensando que Lacan acredita que o saber inconsciente já
está pronto no inconsciente esperando para ser resgatado pela interpretação. Mas não é
isso, várias passagens do ensino de Lacan mostram que sua concepção de inconsciente
rechaça toda idéia de profundidade ou de substância do inconsciente. A distinção
proposta entre o modo de apreensão do saber na teoria da reminiscência e na psicanálise
indica de modo inequívoco, que não é disso que se trata. O inconsciente para Lacan é
efeito de linguagem, que se produz, também, na transferência com o analista, se
realizando no processo mesmo do tratamento.
Então por que Lacan diz que o saber construído na análise alguém já o sabia? Ao
que parece, ele pretende indicar, com a afirmação, que a função do sujeito suposto saber
está no cerne da elaboração do saber na análise e o que teremos que demonstrar em
seguida é o que está em jogo nessa função, sabendo, de início, que ela não tem nenhuma
relação com o fato de que o sujeito analisante ou o sujeito analista detenha a priori o
saber que será constituído na análise.
Antes de entrarmos propriamente na discussão a respeito da função do sujeito
suposto saber, gostaríamos, no entanto, de retomar três outras referências que podem nos
auxiliar a esclarecer o modo de elaboração do saber na análise.
As referências são os números transfinitos de Cantor, a dimensão criativa do ato,
em Freud, e as noções de ato e potência, em Aristóteles, que iluminam cada uma ao seu
modo, a pergunta que Lacan lança insistentemente no Seminário XV: o saber gerado pelo
ato do analista já estava em algum lugar?

8.1- Ato, saber e invenção: Cantor e os números transfinitos.

Lacan retoma a pergunta de diferentes maneiras no Seminário O ato analítico, e


faz diversas aproximações da questão.

235
Em uma dessas aproximações, ele começa dizendo que o surgimento da
psicanálise tem valor de ato, pois inaugura o campo do inconsciente até então inexistente.
Partindo daí, Lacan interpela sua audiência: o campo que a psicanálise organiza existia
antes de seu advento? Ninguém contestará a afirmação de que as manifestações do
inconsciente já ocorriam, mas insiste Lacan, quem o sabia? (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).
Lacan adverte que sua pergunta não tem nenhuma relação com a posição idealista,
que assume como seu pressuposto fundamental, a hipótese de que a representação funda
o conhecimento, colocando em questão a existência da realidade fora de toda e qualquer
representação. Ou seja, para Lacan, não se trata de discutir se a realidade é ou não
anterior à representação ou ao conhecimento, já que não é do conhecimento que ele fala,
e sim, do saber.
Lacan distingue saber e conhecimento (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon
du 15 Novembre, 1967). O conhecimento é um saber que se sabe, mas existem saberes
reconhecidos como tais, que não são conhecidos. Os hieróglifos são apontados por Miller
como um exemplo desse tipo de saber. Sabíamos que, no texto da pedra de Rosetta, havia
um saber, embora não nos fosse possível aceder à sua significação, que só foi liberada
quando Champollion o decifrou (MILLER, J-A, 2007, p. 211).
Partindo dessa concepção, foi possível para Lacan definir o inconsciente como um
saber que não se sabe. O inconsciente, como a pedra de Rosetta, é um saber sem
conhecimento, constituído pelo encadeamento lógico dos significantes. E esse é o aspecto
priorizado por Lacan, na definição do saber que ele propõe, no Seminário XV, quando diz
que o saber está relacionado à manipulação da letra, de acordo com uma formalização
lógica (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).
Lacan ilustra sua perspectiva com o exemplo de Cantor, que descobriu que a
dimensão do transfinito, nos números, não é redutível à dimensão da infinidade dos
números inteiros. Na dimensão do transfinito é sempre possível fabricar novo número
que não foi incluído, de início, na série dos números inteiros. Isso é possível quando se
faz uma operação com a seqüência das cifras, na qual se aplica um método chamado de
diagonal (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).

236
Por que Lacan se interessa por Cantor? Por que o introduz como referência para
pensar o saber produzido a partir do ato analítico? As respostas para essas questões
parecem localizar-se em dois pontos. Em primeiro lugar, porque a fundação da teoria do
transfinito, por Cantor, tem valor de ato. Em segundo lugar, porque é um caso exemplar
da elaboração de um saber inédito, a partir de uma estrutura já estabelecida, e das mais
rigorosas e lógicas: a matemática.
Assim, no contexto da discussão sobre o transfinito, Lacan retoma a pergunta feita
anteriormente, “o saber produzido em análise, quem o sabia?” Ele a retoma do seguinte
modo: a ordem dos números transfinitos, que tem o direito de ser qualificada como
109
verídica, estava aí, esperando pela operação de Cantor? E Lacan acrescenta que essa
questão pode revelar o que a verdade determina antes que o saber advenha (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).
Não temos, aqui, a intenção de demonstrar lógica e matematicamente a existência
da dimensão do transfinito, nos números. O que nos importa é extrair os elementos que
interessam a Lacan, no exemplo de Cantor, para ilustrar o ato analítico. E nesse sentido, o
livro de Nathalie Charraud Infinito e inconsciente – Ensaio sobre Cantor é esclarecedor.
A autora conta que Georg Cantor inventou a categoria dos números transfinitos,
que servem para contar grandezas infinitas e compará-las. Seu ponto de partida foi um
problema que o absorvia intensamente: a estrutura do contínuo linear. Por este viés, ele
foi conduzido à descoberta dos números transfinitos e para fazê-lo, teve que superar
vários obstáculos de ordem lógica, mas também preconceitos doutrinais.
A invenção da teoria dos números transfinitos representou uma ruptura com a
concepção do infinito, na tradição escolástica. Foi um franqueamento operado dentro da
lei matemática e um rompimento com o pai, seu representante. E a liberdade demonstrada
por Cantor em relação à lei, segundo Natalie Charraud, foi favorecida por sua estrutura.
Era um psicótico (CHARRAUD, N. 1994, p. 45).
O mais interessante é que, embora Cantor já dispusesse dessa teoria
revolucionária desde 1870, ele espera doze anos para expô-la. A exposição é realizada de
modo gradual. É feita numa série de cinco artigos consagrados às propriedades dos

109
A mesma questão é retomada nos textos contemporâneos do Seminário XV, “Proposição sobre o analista
da Escola” e em “A equivocação do sujeito suposto saber”.

237
conjuntos lineares de pontos, onde se observa vários momentos de parada no processo de
elaboração de Cantor (CHARRAUD, N.1994, p. 89).
Finalmente, em 1882, Cantor franqueia o passo e o quinto artigo da série,
publicado em Mathematische Annalen apresenta, finalmente, os transfinitos como
números (CHARRAUD, N. 1994, p. 72).
A gestação dos transfinitos chega a seu fim e uma das razões que precipita a
publicação da teoria é que a competição começava nesse domínio e Cantor queria que
todos reconhecessem a originalidade de sua descoberta. Temos aí algo da ordem de uma
decisão. Cantor decide revelar sua teoria que ele já detinha, ao menos esboçada, há vários
anos (CHARRAUD, N. 1994, p. 72, 93).
Trata-se de uma decisão que ocorre em dois planos. No plano político, quando
decide assumir a autoria de sua teoria, mas também, no plano de um impulso que o
conduz ao ato de descoberta. Tal impulso leva Cantor a decidir-se sobre sua invenção,
depois de vários momentos de suspensão em sua reflexão, que o fazia adiar a conclusão
(CHARRAUD, N. 1994, p. 93).
Vejam, então, que a criação da teoria dos números transfinitos comporta todas as
características da temporalidade do ato analítico. O instante de ver, no qual o problema
do contínuo linear apresenta-se como um enigma insolúvel para Cantor. O tempo de
compreender que se estende durante os doze anos de elaboração teórica. E o momento de
concluir que é precipitado pela pressa, pelo temor de Cantor de que outro se antecipe e
publique a descoberta em seu lugar.
Outro aspecto relativo ao ato, no exemplo de Cantor, é a extração de uma teoria
nova e original que amplia a noção de número e que é derivada de modo rigoroso da
estrutura matemática então estabelecida.
A comunicação da extensão do conceito de número é realizada por Cantor num
tom de exaltação, como é possível constatar na citação abaixo:

Tal qual conduzi até agora a apresentação de minhas pesquisas que


concernem a teoria dos conjuntos, foi atingido um ponto onde não posso
fazê-la avançar senão estendendo para além de seus limites anteriores o

238
conceito de número inteiro e real. Na verdade, esta extensão se orienta
numa direção na qual, no meu conhecimento, ninguém até agora pesquisou
(CANTOR, G. 1882/1969, p. 35).

Vejam que Cantor se posiciona como um pioneiro de um campo novo do saber


matemático, usando como justificativa a liberdade necessária da qual ele teve que
usufruir para continuar a avançar na teoria dos conjuntos. Ele se justifica do seguinte
modo:

Tão grande é minha dependência do alargamento do conceito de número,


que me seria impossível, sem isso, continuar a progredir livremente na
teoria dos sistemas. Justifico-me assim por introduzir, em minhas
reflexões, noções aparentemente insólitas. (CANTOR, G. 1882/1969, p.
35).

O que buscamos ressaltar é que a teoria dos transfinitos de Cantor representou


uma transgressão, na época em que foi anunciada, como é possível constatar na
afirmação abaixo.

(...) não dissimulo de nenhum modo que, com esse empreendimento, entro
em oposição, numa certa medida, com concepções amplamente difundidas
concernindo o infinito matemático e com os pontos de vista, que
frequentemente adotamos, sobre a essência da grandeza numérica.
(CANTOR, G. 1882/1969, p. 35).

Em sua obra, Cantor expõe as concepções então aceitas do infinito matemático


para refutá-las uma a uma à luz de sua nova teoria. Ou seja, exatamente como na
estrutura do ato analítico, ele produz uma ultrapassagem do Outro. Inventa uma nova
inscrição simbólica, um novo encadeamento de significantes que modifica a lógica da
estrutura matemática anterior.

239
Esse é o ponto que chama a atenção de Lacan: a elaboração de um saber, derivado
logicamente da estrutura matemática existente, mas que, paradoxalmente, subverte essa
estrutura, fazendo surgir algo de inédito.
Reconhecemos, no caso de Cantor, a fulguração criativa do ato do qual ele foi
agente e que se expressa em suas palavras: “Não vejo verdadeiramente o que poderia nos
deter nesta atividade criadora de novos números (...)”.
Os novos números e suas propriedades surpreendentes e inesperadas são tão novas
para Cantor quanto para o leitor de 1882, o que torna evidente que se trata realmente de
uma criação.
A partir dessas colocações, podemos concluir que, para Lacan, o saber surgido a
partir do ato é da ordem da estrutura, devendo obedecer à organização lógica desta. No
entanto, a estrutura estabelecida admite como vimos no exemplo dos números transfinitos
de Cantor, o surgimento de elementos novos. E esse é, precisamente, o ponto pelo qual
Lacan se interessa, no exemplo de Cantor, a saber, a invenção de um saber que permite
escrever a lei de uma série que permanece inacabada.
No caso da experiência analítica, isso significa que a invenção, na análise, de um
novo saber, ou a instauração de uma nova seqüência de significantes, tem o poder de
modificar a lógica da estrutura de linguagem que determinava anteriormente o sujeito.
Tem o poder de escrever a lei da série de enunciados pronunciados pelo analisante, que é
potencialmente infinita, pois numa análise, o sujeito pode sempre acrescentar novas
frases ao conjunto das que já foram ditas.
A possibilidade de modificação de uma estrutura simbólica já dada é o que se
encontra em questão, quando Lacan pergunta à audiência se o saber produzido a partir do
ato já estava em algum lugar.
Lacan não responde diretamente à pergunta lançada, mas conclui sua aula dizendo
que, para todo um campo é inútil pensar que o saber já estava aí determinado, esperando
que alguém que o fizesse surgir (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 15
Novembre, 1967). O que nos autoriza a dedução de que a elaboração de saber, no
processo de apreensão da verdade do sujeito, supõe certa margem de liberdade para a
invenção.

240
Essa é a razão pela qual um dos aspectos do ato amplamente explorado por Lacan
no Seminário XV é a capacidade do ato analítico de gerar uma inscrição inédita.

8.2- O ato como determinação de um começo.

Toda a argumentação inicial do Seminário XV visa ressaltar que a inscrição


significante engendrada pelo ato apresenta o caráter de renovação e de novidade,
ultrapassando o que estava estabelecido antes do advento do ato (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 15 Novembre, 1967).
Os exemplos dados por Lacan para ilustrar essa característica do ato são a
certidão de nascimento e os atos cerimoniais, ligados à determinação de um começo
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
A certidão de nascimento institui juridicamente a existência de um sujeito,
enquanto os atos cerimoniais, como a celebração do ano novo, demarcam de forma
cíclica um início, um período de renovação.
Lacan lembra que para o ano e para o real não há início evidente. Daí a
necessidade de instituirmos uma referência significante que institua ciclos (LACAN, J.
L’acte psychanalytique, Léçon du 10 Janvier, 1968).
A demarcação do começo do ano, para Lacan, é um ato. É uma das formas
possíveis de se abordar a estrutura do ato, relativa à determinação de um começo. Os atos
cerimoniais, que celebram o início do ano, indicando a necessidade de se transferir algo
do real para a ordem do significante (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du10
Janvier).
Enfim, o que Lacan defende, aqui, é o ponto de vista de que a verdadeira estrutura
do ato, a que mostra sua fecundidade, é seu caráter criador O que também percebemos
com o exemplo do Rubicão, no qual o ato inaugural de César instaura um corte com a
situação política anterior, instituindo um antes e um depois do ato (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 10 Janvier).

241
Freud já havia associado ao ato essa perspectiva criadora e de renovação. Tanto
no “Projeto para uma psicologia científica” quanto em Totem e tabu onde lembra a frase
de Fausto, personagem de Goethe: “no princípio era o ato”. 110
A dimensão criadora do ato também é encontrada na spezifische aktion, descrita
por Freud no “Projeto para uma psicologia científica”. Como vimos, no Capítulo II, a
ação específica gera, no psiquismo, a inscrição do primeiro objeto de satisfação para o
vivente e do movimento reflexo que a produziu. Gera a inscrição simbólica que
metaforiza o real, criando o estado de desejo.
Já em Totem e Tabu, o que se encontra em questão é o fato de que o ato de
assassinato do pai da horda primitiva determina uma dupla criação: a do sujeito e a da
cultura.
Para Freud, o sujeito, pensado como aquele que se faz representar no campo do
Outro, surge em função de um ato sem sujeito: o assassinato do pai pelos filhos. Tal ato
instaura uma inscrição simbólica que faz existir o sujeito e a cultura, que não existiam
anteriormente, fundando a dimensão da lei e da subjetividade, ao instaurar um limite à
satisfação pulsional. E por essa razão, Freud retoma, em seu texto, a frase de Goethe: “no
princípio era o ato” (FREUD, S. 1913 [1912-13]/1996, p. 162).
Todos esses aspectos do ato, introduzidos por Freud, são reapresentados por
Lacan, no Seminário XV: um ato sem sujeito que consiste em um sacrifício que afeta o
gozo, produzindo a passagem para o desejo, que instaura uma nova ordem. E é
interessante notar que, já em Freud, o ato encontra-se situado entre o gozo e o desejo.
O poder de criação do ato encontrado em Freud é retomado por Lacan no
Seminário XV, quando ele diz que o ato tem relação com a criação, com a renovação e
com um começo lógico (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du10 Janvier).

8.3- Ato e potência: Lacan com Aristóteles.

110
De acordo com J. Birman, Goethe atribui ao ato uma prioridade que contraria a prioridade dada ao verbo
na tradição cristã, mais precisamente no Evangelho de São João, que anuncia: “no início era o verbo”. É em
relação a essa tradição que Goethe realiza uma descontinuidade, questionando a existência de uma causa
transcendente ao mundo, ao mesmo tempo em que sustenta a dimensão de construção pelo homem de sua
história. Ele afirma o ato humano contra o verbo divino, cometendo uma transgressão em face do sagrado
(BIRMAN, J. p. 16,17).

242
Além de Freud, Aristóteles é outra referência importante para Lacan pensar o
poder criativo do ato. Lacan, no Seminário XV, faz várias menções à lógica aristotélica111.
E além dos comentários sobre a lógica, há uma indicação bastante breve, mas valiosa,
quando Lacan diz que a tarefa analisante coloca o significante em ato, evoca o
significante que se encontra num certo registro de potência (LACAN, J. L‘acte
psychanalytique, Léçon du 7 Février, 1968).
O comentário nos remete à teoria sobre o ato e a potência em Aristóteles, que
possui um parentesco inquestionável com a teoria do ato em Lacan.
A reflexão sobre o ato e a ação é tão antiga no pensamento ocidental, quanto o
próprio discurso filosófico. Desde Aristóteles, a delimitação dessas categorias se impôs à
investigação teórica como uma questão importante para se fundar a questão do ser. E
antes mesmo de Aristóteles, o problema havia sido introduzido, na filosofia grega, pelos
pré-socráticos e por Parmênides que afirmava a imobilidade do ser e a impossibilidade do
movimento.
Em A Física, Aristóteles dialoga com os filósofos que defendiam a idéia de que
não haveria mudança no ser. Diferentemente desses pensadores, ele concebe que o
mundo é incorruptível acima da órbita lunar, mas corruptível sob a órbita lunar. O que
significa que o mundo sublunar comporta um princípio interno de movimento e de
repouso.
Em Aristóteles, as categorias de ato e potência colocam-se como indicadores
fundamentais para elucidar a estrutura do ser, envolvendo a idéia do movimento que ele
afirma existir no mundo.

111
Os comentários lacanianos sobre a lógica aristotélica denotam o interesse do autor pela formalização
lógica da sexuação e do inconsciente. O interesse que se manifestou, desde o Seminário A Lógica do
fantasia culminou na elaboração das fórmulas da sexuação, no Seminário Mais ainda, e no texto “O
Aturdito”. No Seminário O ato analítico, Lacan está especialmente interessado na lógica aristotélica do
universal. A lógica interessa a Aristóteles como instrumento para alcançar o saber em sua totalidade. A
característica fundamental da obra de Aristóteles é a universalidade. Ele enfatiza os ditos referentes ao todo
e os referentes ao nada e privilegia proposições do tipo “todo homem é mortal”- que opera uma
generalização – e outras do tipo “nenhum homem é mortal”. Lacan, contudo, ao contrário do filósofo, que
confere grande valor ao universal, denuncia a ilusão da universalidade. Ele recolhe o “não todo” formulado
por Aristóteles, mas abandonado por ele como conceito que não lhe parece útil, e acentua seu valor no que
se relaciona à função fálica e ao saber. No Seminário XV, a referência à Aristóteles serve sobretudo para
Lacan denunciar a ilusão de um saber universal e sem falhas. Idéia corroborada pela afirmação, que aparece
mais de uma vez no Seminário, segundo a qual não há Outro do Outro, nem há metalinguagem.

243
Do ponto de vista de Aristóteles, o ser pode mudar. Um ser que apresenta certa
propriedade em um estado e apresenta outra propriedade em outro estado, é um ser que
sofreu transformação. O que equivale a dizer que o estado posterior constitui uma
atualização do que existia antes em potência no estado prévio, implicando, então, na
transformação da estrutura do ser.
Assim, o movimento, como mudança, é indicado por Aristóteles pela passagem de
algo no estado em potência ao “ser em ato”. A potência é o que uma coisa dispõe para
passar de um estado a outro. A potência é uma falta. Um ser que não precisa de nada não
seria em potência. Seria ato puro, como Deus, por exemplo.
Apesar de cronologicamente o “ser em ato” ser posterior ao estado de potência,
para Aristóteles, ele lhe é logicamente anterior, pois além da potência desejar o ato,
caminhando em sua direção, o ser só se revela plenamente em ato. O ato é anterior à
potência, na medida em que ele é um fim e o fim está sempre presente antes de sua
realização. A atualização do ser, que é um fim, revela, não apenas a existência, mas
também as possibilidades dispostas pelo ser em potência.
Notem que, nesse ponto, Aristóteles, exatamente como Freud e Lacan, recusa a
noção do tempo como uma sucessão linear que coincide com a fenomenologia da
duração. Elemento relevante para nossa reflexão.
A teoria sobre o ato e potência articula-se à teoria das quatro causas de
Aristóteles, já que o filósofo quer apreender a razão do movimento e das modificações
das coisas naturais. E para isso, é preciso determinar as causas dessas coisas.
Aristóteles classifica as modalidades de causas existentes em quatro grupos: causa
material, causa eficiente, causa final e causa formal.
Um dos exemplos mais conhecidos para esclarecer o que é cada uma dessas
causas é o da estátua. A causa material da estátua é o mármore. A causa eficiente são o
escultor e seus golpes de martelo. A causa formal é a idéia que o escultor tem da estátua,
a configuração que ele lhe confere. E a causa final é a própria estátua, ou seja, a razão
pela qual o mármore foi trabalhado pelo escultor.
Com esse exemplo, fica mais clara a anterioridade lógica do ato proposta por
Aristóteles. O exemplo da estátua mostra que a potência não é absoluta, e sim, relativa,

244
na medida em que existem definições bem precisas do que pode ser atualizado num dado
campo de potencialidades.
Não é possível a atualização de qualquer ser a partir de um dado estado de
potência. O que buscamos evidenciar é que não se pode atualizar uma estátua de madeira
partindo-se de uma causa formal que é o mármore, por exemplo. Bem como não teria
sido possível, para Cantor, a criação de uma categoria de números que não fossem
dedutíveis matematicamente dos números inteiros e reais. A criação de Cantor só foi
possível porque era logicamente necessária. Bem como não é possível a elaboração de
um saber novo a partir do ato do analista, que não tenha relação com a estrutura de
linguagem do inconsciente em questão no tratamento.
É o que Lacan indica quando diz que “é preciso que o ato sintomático já tenha em
si algo que o prepara para o acesso, o que em nossa perspectiva, realizará sua plenitude
de ato, mas après coup” (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 22 Novembre,
1967).
Sendo assim, vejamos mais de perto o que a teoria de Aristóteles tem a ver com
nossa discussão sobre o ato. Começaremos dizendo que a pergunta lançada por Lacan, no
Seminário XV, que interroga se a teoria dos números transfinitos existia antes que Cantor
a nomeasse, tem relação com a discussão de Aristóteles sobre o movimento do ser e sobre
a potência.
A pergunta de Lacan é a reedição de uma questão importante, que atravessou todo
o pensamento filosófico ocidental: a de saber se a estátua estava realmente em potência
no mármore.
O debate atravessou, durante vários séculos, o pensamento filosófico, criando
escolas com posições distintas. E uma dessas posições aproxima-se da perspectiva da
psicanálise, ao assinalar que, ainda que o mármore estivesse aí antes da estátua, numa
cronologia temporal, só podemos dizer que a estátua estava em potência no mármore
depois da estátua ter sido talhada pelo escultor.
Ainda que exista uma perspectiva cronológica, primeiro o mármore e depois a
estátua, podemos tomar outra perspectiva que não é cronológica, mas lógica. A de que, só
quando temos a estátua, podemos dizer que ela estava em potência no mármore. Como

245
assinala G. Brodsky, quando tínhamos só o mármore não podíamos dizer: “aí está a
futura estátua”! (BRODSKY, G. 2001, p. 25-26).
Essa questão é um ponto chave para apreendermos um aspecto importante do ato
analítico, que marca sua diferença com a interpretação dos anos de 1950. Em primeiro
lugar, temos outra forma de Lacan abordar a retroação significante. Podemos, por um
lado, considerar que essa retroação opera sobre a própria cadeia significante constituída
no inconsciente (sobre o significante mesmo, sobre algo que apresenta uma estrutura de
determinação). E essa perspectiva foi a que predominou, nas primeiras teorias lacanianas
da interpretação. Mas podemos considerar, por outro lado, que tal retroação passa a
operar não apenas sobre o significante, como também sobre o ponto de falha da cadeia e
é essa segunda concepção que está implicada na noção de ato analítico: a fenda na cadeia
é o que permite o surgimento de algo novo, que estava no inconsciente, apenas em
potência, e que pode “realizar-se”, a partir do ato do analista.
Trata-se de uma temporalidade que não responde a uma cronologia, e sim, à
perspectiva da retroação e que depende de um ato criador. Temos um antes e um depois.
Algo que era de uma maneira e que muda para ser de outra, e a mudança teria sido
impossível se não tivesse havido a intervenção do ato como causa eficiente.
Esta lógica já havia sido apresentada no Seminário II, quando Lacan, comentando
o interrogatório que Sócrates faz do escravo, no diálogo Mênon, afirma:

Há dois tipos de relações com o tempo. A partir do momento em


que uma parte do mundo simbólico emerge, ela cria seu próprio passado.
Não do mesmo modo que no nível intuitivo112. É justamente na confusão
dos dois planos onde jaz o erro. Erro, ao acreditar que aquilo que a ciência
constitui, pela intervenção da função simbólica, estava aí desde sempre

112
Lacan chama de intuitivo o nível de conhecimento do escravo que é interrogado por Sócrates, no diálogo
Mênon. Quando Sócrates desenha a figura do quadrado que deve ser duplicado, na areia, o escravo é capaz
de perceber que a superfície construída, a partir da duplicação dos lados do quadrado produz uma superfície
duas vezes maior do que a que se queria obter (Essa é a solução que ele havia proposto para o problema). O
que Lacan pretende mostrar é que existe uma falha entre o nível intuitivo, o do escravo, e o nível simbólico,
no qual Sócrates se situa. Ainda que o escravo tenha, nele, todo o conhecimento acumulado em vidas
anteriores, ele comete um erro que não é cometido por Sócrates, em função da noção que ele tem dos
números. O que Lacan quer ressaltar é que o conhecimento matemático produz a passagem do plano
intuitivo, imaginário, ao plano simbólico e que essa passagem é efetuada pelo mestre (LACAN, J. 1954-
55/1978, p. 27, 28). .

246
(...). Este erro existe em todo saber, na medida em que ele é uma
cristalização da função simbólica (...). Há, em todo saber, uma vez
constituído, uma dimensão de erro que é a de esquecer a função criadora
da verdade sob sua forma nascente. Mas, nós analistas não podemos
esquecê-la. Nós que trabalhamos na dimensão desta verdade em estado
nascente (...). Tudo o que opera no campo da ação analítica é anterior à
constituição do saber (LACAN, J. 1954-55/1978, p. 29, 30).

O que Lacan destaca, nessa passagem, é que, enquanto na ciência e na teoria da


reminiscência o saber produzido induz ao erro de crer que ele esteve sempre aí, na
psicanálise, o psicanalista está advertido de que o saber produzido tem o poder não
apenas de reordenar, mas também, de criar o passado.
A afirmação está num contexto no qual Lacan fala sobre a função da nomeação,
que faz existir a coisa. Na nomeação, encontramos a lógica do Fiat lux! Faça-se a luz! E,
então, a luz adquire existência. A nomeação enquadra um dizer e tem valor de ato, na
medida em que inaugura uma nova cadeia significante e, com ela, uma nova ordem de
coisas.
A intervenção do analista tem a ver com isso. Com a possibilidade de fazer
emergir uma inscrição simbólica que tem o poder de criar um nome, um novo saber,
redefinindo o passado e transformando sua lógica. O que podemos constatar na seguinte
citação de Lacan na resenha do Seminário O ato analítico.

(...) é assim que o desejo se exprime e se situa, e o que é avançado


a este propósito como sendo o registro onde joga em sua originalidade, a
113
interpretação analítica , a saber, justamente o que faz com que, de
maneira alguma, seja situável numa espécie de anterioridade, que teria
podido ser. O que é revelado pela intervenção interpretativa é o que faz da
transferência algo distinto do objeto já aí, de algum modo inscrito em tudo
o que ele vai produzir, pura e simples repetição de algo que já, do anterior,
não faria senão esperar para se exprimir, ao invés de ser produzido por seu

113
Vejam que aqui, mais uma vez, Lacan usa a palavra interpretação no lugar de ato.

247
efeito retroativo (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 21 Février,
1968).

Assim, acreditamos não incorrer em nenhum erro quando afirmamos que a


discussão sobre a elaboração de um saber novo, a partir do ato analítico, tem a ver com a
dimensão criadora do ato, em Freud, com a perspectiva da invenção dos números
transfinitos, por Cantor, e com a idéia aristotélica de que existe algo em potência,
esperando que uma causa eficiente a atualize, torne-a atual.
Todos esses exemplos, por sua vez, estão afinados à concepção do inconsciente
como algo que não é da ordem do ser nem do não ser, e sim, do não-realizado (LACAN,
J. 1964/1973, p. 25, 28, 32, 33) Estão afinados com a perspectiva do inconsciente como
algo que é da ordem do devir, devendo se realizar na análise. E o meio pelo qual o
inconsciente se realiza, na análise, não é outro senão o sujeito suposto saber.

9- A equivocação do sujeito suposto saber.

A função do sujeito suposto saber é o que está em questão na pergunta lançada


por Lacan à audiência, no Seminário XV: “o saber produzido em análise, quem o sabia?”.
É o que se encontra em jogo, quando Lacan diz que “a psicanálise é a experiência da
verdade em seu estado nascente e que tudo o que, ali, opera é anterior à constituição do
saber” (LACAN, J. Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la
psychanalyse 1954-55/1978, p. 30).
Se este ponto de vista já havia sido esboçado, no Seminário II, os trabalhos dos
anos de 1967-68 mostram que Lacan gira insistentemente em torno dessa questão, que
envolve as relações do saber com a verdade, no tempo da transferência analítica.
Para Lacan, o ato analítico só ocorre na transferência e o sujeito suposto saber é o
pivô onde se articula tudo o que diz respeito à transferência (LACAN, J. 1967/2001, p.
248).
A dimensão do sujeito suposto saber, de acordo com Miller, instaura-se na análise
pelo simples fato do analisante endereçar uma pergunta ao analista sobre seu sintoma
(MILLER, J-A. 2000, p. 13, 14, 15). E na opinião de Lacan, pelo simples fato do analista

248
dizer ao analisante: “Diga qualquer coisa. Isso vai sempre resultar em algo!” (LACAN, J.
1969-70/1991, p. 59).
O sujeito suposto saber ainda tem a ver com o fato de que, na associação livre, o
saber trabalha (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 39). A simplicidade dessas colocações não
elimina, no entanto, a complexidade do conceito, que faz com que Lacan, em vários
textos, trabalhe em sua elaboração.
Uma pergunta colocada por Miller é: quem é o sujeito suposto saber? É o analista
ou é o analisante? E ele responde dizendo que, no curso de sua elaboração, Lacan
privilegiou ora o analista como sujeito suposto saber, que dá o saber interpretativo, ora o
analisante que produz o material significante. Pensá-lo como função requer, no entanto, a
consideração de que, na transferência, encontramos três termos: o analisante, o analista e,
numa posição ternária, o saber inconsciente (MILLER, J-A. 2000, p. 17, 18).
Essa tríade, de fato, é encontrada no texto “Proposição de 9 de outubro 1967 sobre
o psicanalista da Escola”, onde Lacan propõe o seguinte matema do sujeito suposto saber:

S Sq

s (S1, S2 ......Sn)

O S, de cima da barra, é o significante da transferência. O significante de um


sujeito com sua implicação num significante qualquer. E da implicação do sujeito num
significante qualquer, resulta um saber (os significantes no inconsciente) que aparece
dentro do parêntese (LACAN, J. 1967/2001, p. 248).
Lacan afirma que a relação entre os dois parceiros, na análise, constitui-se como
um terceiro termo que é o significante introduzido no discurso que se instaura: o sujeito
suposto saber (LACAN, J. 1967/2001, p. 249).

249
Ainda no mesmo texto, Lacan rechaça a idéia de que o sujeito suposto saber seja o
analista114 ao dizer: o psicanalista do saber suposto não sabe nada. Não é disso que se
trata. Trata-se antes do que o analista tem de saber (LACAN, J. 1967/2001, p. 249). Ou
seja, trata-se do que falta ao saber.
Existe um não sabido, na experiência da análise, que se organiza como o quadro
do saber. E, na opinião de Lacan, é isso que reconhecemos no caso dos números
transfinitos (LACAN, J. 1967/2001, p. 249), pois o que esse exemplo ilustra é que foi o
desejo de Cantor que deu consistência à ordem dos números transfinitos (LACAN, J.
1967/2001, p. 249)
Assim, é possível dizer que é algo desse registro que acontece na experiência
analítica. O não-sabido do inconsciente só se realiza, só ganha consistência, em função do
115
desejo do analista e da vontade do analisante de se analisar e de produzir este saber.
Ou, se quisermos ser aristotélicos, diremos que o não-sabido em potência no inconsciente
só se atualiza a partir da causa eficiente que é o ato do analista, na transferência.
É por essa razão que Lacan, tanto no Seminário XV quanto no texto “O engano do
sujeito suposto saber”, critica novamente a teoria platônica da reminiscência como
possível modelo do inconsciente. Lacan aproxima essa teoria das concepções ingênuas do
padrão de comportamento, da tendência instintiva, do traço filogenético e da concepção
biológica do desenvolvimento (LACAN, J. 1967/2001, p. 329-30).
A crítica tecida por Lacan deve-se ao fato de que, ao contrário da teoria da
reminiscência, que acredita que o saber já estava constituído na alma ou no mundo das
idéias, a psicanálise crê que a função do sujeito suposto saber – pivô da transferência – é
a de dar consistência ao saber que se encontra em potência no inconsciente.
Para Lacan, o inconsciente não é perder a memória para depois se lembrar (como
é o caso da teoria da reminiscência), mas é não se lembrar do que sabemos (LACAN, J.
1967/2001, p. 333). O saber de que não nos lembramos, no entanto, como já dissemos, é

114
Embora Miller tenha afirmado que, em alguns momentos do ensino de Lacan, o sujeito suposto saber é o
analista.
115
Do mesmo modo, podemos pensar que, embora os efeitos do inconsciente já se fizessem notar, foram a
coragem e o desejo de Freud que fizeram com que o inconsciente ganhasse existência formal.

250
116
incompleto e apresenta falhas , o que contradiz toda concepção do inconsciente como
memória a ser resgatada. Como saber já constituído a ser revelado.
A idéia do saber em potência, no inconsciente, pode ser compreendida mais
claramente com algumas definições que Lacan dá do inconsciente, neste período.

O inconsciente é algo que se diz, sem que o sujeito aí se represente


(LACAN, J. 1967/2001, p. 334).

Há um Outro que sabe esse saber, sem que nós o tenhamos percebido
(LACAN, J. 1967/2001, p. 376).

Dizer que o inconsciente existe é o mesmo que dizer que há saber sem
sujeito (LACAN, 1968/2001, p. 376).

Assim, o que chamamos de estado “em potência” do saber no inconsciente é o


saber onde o sujeito ainda não adveio. Ou ainda, usando as palavras do próprio Lacan,
este estado “em potência” do saber tem relação com “a indeterminação que constitui a
relação do sujeito com um saber que o ultrapassa” 117 (LACAN, J. 1967/2001, p. 334-35).
Sob este ponto de vista, a operação analítica consistiria na extração desse saber do
estado de indeterminação (do estado “em potência”), fazendo-o passar ao estado de
certeza, ou seja, transformando-o em “saber em ato”. E, de acordo com Lacan, essa
passagem só pode se produzir através da equivocação, do engano.

116
Lacan afirma que o saber colocado no centro pela experiência analítica não é de maneira alguma uma
totalidade fechada (LACAN, J. Seminário O Avesso da Psicanálise, 1969-70/1991, p. 33).
117
No Seminário XV, Lacan diz que o significante presente no inconsciente está recalcado, porque não
implica o sujeito. É saber sem sujeito (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).
51
Por exemplo, a invasão da famosa prisão de Paris, durante a Revolução Francesa, ficou conhecida na
língua francesa como a prise de la Bastille. Essa expressão foi traduzida para o português como a “queda
da Bastilha”, mas no sentido de que a dita prisão foi tomada pelos revolucionários.

251
A tese de Lacan, no texto “O engano do sujeito suposto saber”, é a de que o saber,
em análise, só se libera com a equivocação (a méprise) do sujeito (LACAN, J.
1967/2001, p. 336).
O termo méprise, transcrito como engano, nos Outros escritos, não é fácil de ser
traduzido. Méprise na língua francesa é o erro de uma pessoa que se engana, tomando
uma pessoa ou uma coisa por outra.
Lacan recolhe a palavra méprise - engano em português, vergreifen em alemão -
no livro de Freud Sobre a psicopatologia da vida quotidiana, quando este fala que os atos
sintomáticos são enganos. Na interpretação de Lacan, Freud sustenta que a ultrapassagem
da begriff - que no francês se traduz por prise e, no português, por tomada 118 - promove
um “nada” que se afirma e se impõe, produzindo efeitos na seqüência (LACAN, J.
1967/2001, p. 336).
O que Lacan pretende mostrar é que a ultrapassagem da apropriação de uma
palavra ou de uma ação pelo sujeito faz emergir um “nada”, a partir do qual um novo
sentido emerge para aquela palavra ou ação. E esse novo sentido ou saber só se produz
em função do engano do sujeito.
No contexto da discussão sobre o engano e sobre o “nada” que, em função do
engano, se impõe, Lacan, mais uma vez, se refere a Cantor e ao saber que ele faz surgir.
Para Lacan, o número transfinito é o “rien que savoir”, é o “nada que saber”119 surgido a
partir da equivocação de Cantor ao operar diagonalmente com os decimais120 (LACAN, J.
1967/2001, p. 337).
Como indicamos anteriormente, a equivocação, própria dos atos falhos e
sintomáticos, mostra que todo ato verdadeiro é falho (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 29 Novembre et 6 Décembre, 1967).

119
Na publicação brasileira dos Outros Escritos, feita pela Zahar Editora, essa expressão foi traduzida
como “nada além de saber”. Acreditamos que essa não é a melhor tradução. Em primeiro lugar, porque
Lacan destaca o termo “rien”, “nada”, antes de introduzir a expressão “rien que savoir”. Em segundo lugar,
porque toda a argumentação do texto visa à demonstração de que a produção de um novo saber depende da
ultrapassagem do saber do qual o sujeito se apropriou. Todos esses elementos desaparecem na tradução da
expressão “rien que savoir” por “nada além de saber”, a qual pode ser interpretada como “não há nada além
do saber” ou “só há saber”.
120
Na verdade, Lacan usa o verbo tripoter, nessa frase, que significa fazer operações e combinações
desonestas.

252
O que Lacan aponta com a noção de equivocação é que o justo lugar do ato
analítico, que libera o saber em potência no inconsciente, é a falha, a fenda no saber
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967).
Quando fizemos a discussão sobre a distinção entre a elaboração do saber na
análise, na ciência, e na teoria platônica da reminiscência, mencionamos uma indicação
de Lacan segundo a qual o saber se produz em análise a partir de um “eu perco”
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 6 Décembre, 1967). Naquele momento
deixamos a indicação de lado, mas agora, seria interessante retomá-la para relacioná-la
com a falha e com a equivocação em questão no ato.

9.1- Saber e criação na experiência analítica.

De acordo com Lacan, o processo de elaboração do saber, na análise, começa com


um “eu perco” e leva em conta as falhas, no campo do saber, produzidas pelo gozo sexual
do sujeito que nos questionam sob o nome da verdade (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du Décembre, 1967).
No início do capítulo, situamos o “eu perco”, no esquema construído por Lacan a
partir do grupo de Klein. Indicamos que, no processo de análise, em função da operação
verdade, o sujeito escolhe o pensamento em detrimento do ser, o que resulta na perda das
certezas identificatórias que sustentavam o eu no mundo. A escolha pelo pensamento, por
parte daquele que escolheu se colocar à prova dos efeitos da linguagem tem como
consequência a perda do ser e a perda do sentido. E essa é a primeira perda produzida
pelo processo de elaboração do saber na análise.
A segunda perda é relativa ao fato de que, no processo de análise, o sujeito
confronta-se com a castração. A travessia do fantasma tem como resultado a renúncia do
sujeito à crença na relação sexual e no objeto que a assegurava. Nesse momento, o objeto
se separa da forma imaginária que assumiu a castração. É o que Lacan localizou no canto

253
121
inferior esquerdo do grupo de Klein, como a separação de -ϕ e a (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).
No final de análise, o objeto em questão na fantasia cai para o sujeito,
confrontando-o com a hiância da castração e produzindo o que Lacan chamou de
destituição subjetiva (LACAN, J. 1967/2001, p. 252).
Nas palavras de Lacan, esse é um ponto de virada importante, na análise, quando
o sujeito se desprende da segurança que ele obtinha de sua fantasia, percebendo que a
queda do desejo, nada mais é do que um des-ser (desêtre) (LACAN, J. 1967/2001, p.
252). Para Lacan, é nesse des-ser que se desvela o inessencial do sujeito suposto saber,
que é reduzido ao significante qualquer (LACAN, J. 1967/2001, p. 254), com o qual o
sujeito se implicou no saber inconsciente.
O que Lacan chama de des-ser é a separação do sujeito de um gozo patológico,
provocada pela análise, por meio da dissolução da transferência que dissolve, ao mesmo
tempo, a suposição de saber (como indica o esquema inspirado no gupo de Klein). É o
momento em que o objeto a surge como o resto da operação do saber, como o incurável.
Vejam a citação de Lacan:

O des-ser torna-se a verdade do saber. A verdade é atingida não sem sabê-


la. A verdade é o que classifiquei como o incurável (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).

Nota-se que nessa frase, Lacan usa uma forma de expressão já utilizada no
Seminário X, onde ele disse que a “a angústia não é sem objeto” (LACAN, J. 1962-
63/2004, p. 105). A frase não significa que a angústia tem um objeto, nem tampouco que
a angústia não tem um objeto. A frase revela que a angústia tem um objeto, mas
Lacan não vai direto ao assunto. Na expressão “a verdade é atingida não sem sabê-la”
encontramos algo de similar. A verdade está ligada ao saber e, ao mesmo tempo, não
está. Podemos dizer que ela está ligada ao saber, porque uma parte da verdade pode ser
dita, a partir da metáfora produzida em função do ato analítico, que promove a colocação

121
Segundo Lacan, aí, o sujeito se realiza enquanto falta, já que “não há realização subjetiva possível do
sujeito como parceiro sexuado, no que se imagina como unificação no ato sexual” (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).

254
de um saber, no lugar da verdade. É exatamente a mesma idéia encontrada na noção
freudiana de construção, qual seja, a de que o manejo do saber, na análise, pode revelar
algo da verdade do sujeito. Por outro lado, podemos dizer que a verdade não está ligada
ao saber, na medida em que ela não pode ser dita toda, por meio do saber.
A parcela de verdade, que não pode ser dita, como dizíamos acima, é o que surge
como o resíduo da operação do saber, na análise, como o incurável. E é o advento desse
resto ininterpretável, no processo analítico, que Lacan relaciona ao que ele chamou de
des-ser.
Até este momento o sujeito suposto saber, pivô da transferência, sustentou-se
como o único acesso à verdade do sujeito, mas o momento do des-ser é correlativo de sua
queda, fazendo surgir, em seu lugar, o objeto a. Segundo Lacan, a perda do objeto que se
encontra na origem da constituição do inconsciente é realizada, mais uma vez, nesse
ponto da análise como falta, como castração. Foi o que verificamos na análise da
operação transferência, no esquema inspirado no grupo de Klein, onde se articula a perda
do objeto a, inerente à operação alienação, e o objeto que surge como falta, na operação
verdade.
De acordo com Lacan, essa falta estava aí desde o início, mas ela faz um
progresso lógico, por meio da operação analítica (LACAN, J. L’acte psychanalytique,
Léçon du 17 Janvier, 1968).
O que gostaríamos de ressaltar é que, a partir da dissolução da transferência e da
queda do sujeito suposto saber, que funcionou apenas como um caminho de acesso à
verdade, o sujeito se vê diante da hiância relativa à castração. E é diante dessa fenda,
dessa falha, que o sujeito deve, então, fazer advir um saber.
Assim, o saber em análise elaborado, a partir do ato analítico, constitui-se em
torno da castração, correlativa ao objeto de gozo perdido para o sujeito. Esta sendo uma
segunda maneira de compreendermos a afirmação de Lacan que sustenta que, na análise,
trata-se de um saber adquirido em função de um “eu perco”.
Lacan retoma, com essas elaborações, a idéia freudiana de que no final de análise
encontramos o complexo de castração. Encontramos o ponto de articulação do sujeito
dividido - sujeito do sentido (do pensamento) com o “eu sou” da pulsão. E diante da

255
divisão incurável do sujeito, diante do indecidível, o sujeito tem que tomar uma decisão
que implica numa criação. 122
É o que Freud em “Análise terminável e interminável” chamou de “estado criado”
e que constitui a característica fundamental de alguém que foi analisado (FREUD, S.
1937/1996, p. 242).
A criação de cada sujeito que atingiu esse ponto da análise, como assinalamos
anteriormente, se distingue pela variedade dos tratamentos possíveis dados à pulsão, pela
abertura à surpresa, ao encontro, à invenção.
Nesse sentido, podemos compreender a afirmação de Lacan segundo a qual a
verdadeira estrutura do ato mostra a fecundidade do mito da criação (LACAN, J. L’acte
psychanalytique, Léçon du 10 Janvier).
O que a psicanálise destacou, como nenhuma outra disciplina, é que a linguagem
tem o poder de evocar, de criar e de inventar. A psicanálise mostrou que o próprio
inconsciente é extremamente criativo. As formações do inconsciente são criações, o que
bem mostra os sonhos, os chistes e atos falhos. O inconsciente é o lugar, por excelência,
de criação.
Quando falamos do “estado criado” de Freud e da “inscrição significante inédita”
de Lacan, queremos ressaltar que ambos apontaram para a possibilidade de que o sujeito
possa criar algo, assumindo nova ordem de relação com o mundo. A diferença é que
Freud não falou de ato, enquanto Lacan articula diretamente a criação de um significante
novo ao ato analítico.
Todo o comentário que fizemos do texto freudiano “Análise terminável e
interminável”, no entanto, mostra-nos, que a oposição tão realçada pelos analistas, entre o
impasse freudiano do complexo de castração e o passe lacaniano, proposto no Seminário
XV, deve ser nuançada. Descobrimos pontos de confluência entre os dois autores quando
analisamos suas concepções de final de análise.
De todo modo, a posição de Lacan é a de afirmar que o significante criado, a
partir do ato analítico, não é um significante que amplifica o sentido ativando
ressonâncias. Ao contrário, ele é produto de uma redução operada pela análise, dando

122
Podemos perceber aí certo forçamento nesta decisão, que corresponde a uma criação.

256
lugar a um saber em sua estrutura mínima, reduzida. É o caso da letra π extraída do nome
Abraham, no caso que analisamos no contexto da discussão sobre o esquema do ato.
É por isso que Lacan diz que o ato se dá como o paradoxo de uma repetição num
traço só e esse efeito topológico permite apresentar que o sujeito, no ato é idêntico a seu
significante (...) (LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 28 Février, 1968). Não é
significante articulado na cadeia, onde representa o sujeito para outro significante. Aqui,
estaríamos no registro da indeterminação e o que Lacan propõe é que o ato provoca a
destituição subjetiva. Condição relativa à rejeição e à separação momentânea do
inconsciente que aí se efetua. 123
Assim, o que se encontra em questão no ato analítico é a passagem da falha no
saber, da falta do Outro, à criação de um novo significante da falta. É a possibilidade de
se extrair, da falta do Outro e da falta do próprio sujeito, uma criação significante inédita.
É a transformação criativa da falta do Outro numa nomeação desta falta, que transforma o
sujeito. E essa estrutura do ato pode ser reconhecida na estrutura do discurso analítico,
apresentada por Lacan, no Seminário XVII, O avesso da psicanálise.

10- Ato e discurso analítico.

A vantagem da estrutura dos discursos sobre a estrutura de linguagem do


inconsciente apresentada, na década de cinqüenta, é que trata-se de uma estrutura que
inclui, de maneira explícita, o objeto. O discurso, segundo Lacan, faz referência ao gozo.
Não havendo discurso que não seja do gozo (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 80, 90).
Os lugares nos discursos são:

Agente Outro

Verdade Produção

E o matema do discurso do analista é:

123
Já havíamos dito que elaboração e pensamento são antinômicos ao ato.

257
a S

S2 S1

Não é incoerente dizer, que o matema completo do ato é o do discurso analítico, já


que Lacan diz que “o ato psicanalítico é aquele que realiza a psicanálise, ela mesma”
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 7 Février, 1968). Já dissemos,
anteriormente, que a análise separa os termos que a fantasia articula e a, e não
devemos esquecer de que a S é a escrita da fantasia em “Kant com Sade” (termos que
constituem a escrita superior do discurso do analista). É necessário, no entanto, a escrita
completa do matema para se inscrever o trabalho da transferência, no qual a elaboração
significante promove efeitos de verdade.
No matema do discurso do analista, como é possível notar, encontramos o saber
no lugar da verdade. Saber que é meio dizer, pois a verdade não pode ser dita por inteiro
(LACAN, J. 1969-70/1991, p. 57, 58). O gozo, segundo Lacan, apresenta-se como um
limite para a verdade, só podendo ser interpelado, evocado, a partir de um semblante
(LACAN, J. 1972-73/1975, p. 85).
O discurso psicanalítico, a partir da função do sujeito suposto saber, coloca em
marcha um trabalho epistêmico, cujo produto é o S1 (significante mestre do sujeito).
Não devemos esquecer, no entanto, que o recalque originário não tem conteúdo.
Sob o S1 não há significação ou sentido. Segundo Lacan, sob o S1, há um sentido
obscuro, que ele designa como a verdade (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 57).
Quando dissemos anteriormente que o objeto a surge no final de análise, como
resultado da queda do sujeito suposto saber, nosso objetivo era indicar, com Lacan, que,
no final de análise, o saber mostra seu limite, e que esse limite é a verdade (LACAN, J.
1969-70/1991, p. 51).
Como apontamos anteriormente, o analista lança seu ato desse lugar de objeto,
assumindo o lugar de causa do desejo do analisante (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 41), o

258
que faz com que Lacan afirme que, no ato psicanalítico, o lugar destinado ao analista é o
de dejeto (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 48, 49).
É por isso que, no matema do discurso analítico, no lugar do agente, encontramos
o objeto a. O objeto a é o agente do saber engendrado pelo ato analítico. Saber capaz de
produzir efeitos de verdade124 (LACAN, J. 1966/1966, p. 366). O objeto a interpela o S,
para que ele produza o S1, significante com o qual pode se resolver sua relação com a
verdade (LACAN, J. 1972-73/1975, p. 84).
O objeto a é o real como impossível que, na análise, surge como um limite para a
decifração de sentido, convocando a invenção do saber. Esse ponto de vista é o que faz
Lacan dizer que o ato analítico é uma profissão impossível (LACAN, J. 1959-60/1991, p.
193)125.
De acordo com Miller, o que faz o analisante ao criar e inventar esse saber é não
126
permitir que o saber inconsciente trabalhe em seu lugar . O analisante, na análise,
produz um saber que advém, no lugar da verdade, e esse é o maior benefício do “bem
dizer” analítico (MILLER, J-A. p. 220, 230).
A invenção de saber, a partir do ato analítico, não tem relação com o saber que
Freud esperava resgatar, na experiência analítica, por meio da rememoração, mas
encontra-se, antes, no registro do que Lacan chamou de “saber fazer aí com seu sintoma e
com seu gozo”.

11- Wo es war soll ich werden - A ética da psicanálise e o ato

Dissemos, na introdução desse trabalho, que havia uma relação indicada


explicitamente por Lacan entre Os Seminários O ato analítico e A ética da psicanálise
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 29 Novembre, 1967). Buscaremos agora
aclarar essa relação, a partir das referências encontradas no Seminário XV, no próprio

124
A frase de Lacan é savoir qui peut renverser des effets de vérité. Renverser significa fazer com que a
parte superior se torne a inferior. Ou ainda, fazer mover no sentido inverso.
125
As profissões impossíveis indicadas por Freud em “Análise terminável e interminável”, governar,
educar e psicanalisar, encobrem os discursos propostos por Lacan no Seminário XVII (LACAN, J. 1969-
70/1991, p. 192).
126
E isso tem a ver com a responsabilização do sujeito.

259
Seminário VII e no mandamento ético formulado por Freud no final de sua obra: “ali
onde isso era, eu, como sujeito devo advir”.

Lacan no Seminário XV diz: “A ética a Nicômaco parte disso: que


há Bem no nível do prazer (...). Sabemos que aí se aparelha outra
interrogação, a interrogação trágica do que é um ato (...)”.
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 17 Janvier, 1968).

O Seminário A ética da psicanálise é um seminário sobre o ato. O ato de Kant, o


ato de Sade e, por último, o ato de Antígona, personagem trágico, o qual permite a Lacan
explicitar, não apenas sua teoria do desejo, mas também sua ética.
A tragédia é o lugar privilegiado para Lacan referenciar a ética da psicanálise,
porque é onde encontramos o entrecruzamento da dimensão ética ( dimensão da escolha e
da responsabilidade) com a determinação que o sujeito sofre de sua história e seu destino.
A estrutura da tragédia mostra que, apesar da deliberação do herói sobre o seu
devir, o destino revela-se onde ele pensa ter se esquivado. É o caso de Édipo que deixa
sua cidade, a fim de evitar o cumprimento da profecia que dizia que um dia ele
assassinaria seu pai, e acaba encontrando seu destino, na estrada, onde ele julga que ele
não estaria.
O fundamental é que o herói da tragédia encontra-se envolvido numa situação
127
cuja estrutura exclui a escolha, por tratar-se de um destino já definido . Como afirma
Antônio Teixeira, sua deliberação não está fundada em nenhum tipo de vontade que ele
possa experimentar. Ela é solidária da necessidade do destino que se revela de forma
irrevogável e cujo sentido escapa essencialmente ao herói. No caso de Antígona128, existe

127
O destino a que nos referimos está relacionado à noção de Atè, considerada a partir de Hesíodo como
castigo divino de uma falta humana, cujos efeitos serão sentidos até pelos últimos descendentes do culpado.
Atè significa flagelo, infortúnio ou loucura e designa simultaneamente aquilo que o herói trágico sofre e o
que ele provoca como resultado de seu desvario.
128
Antígona é uma tragédia de Sófocles, que compõe uma trilogia, juntamente com Édipo Rei e Édipo em
Colono. Antígona é filha de Édipo e Jocasta e, logo no início da peça a encontramos em uma situação que
mostra toda a sua condição trágica. Seus dois irmãos Etéocles e Polinices acabam de se matar numa batalha
sangrenta e Creonte, então governador de Tebas, decreta que ao primeiro sejam dadas todas as honras
fúnebres enquanto o segundo deve permanecer insepulto. Polinices aliado ao rei de Argos havia declarado
guerra contra seu irmão e contra sua própria cidade. O motivo do decreto, então, é razoável: não se deve
tratar do mesmo modo o traidor da pátria e aquele que lutou para defendê-la. Antígona, no entanto, não se

260
uma especificidade, porque ela assume seu destino por um ato de decisão. Faz de sua
loucura sua única opção razoável e avança para sua perda por fidelidade ao seu desejo
(TEIXEIRA, A. 1999, p. 56, 57, 74).
Antígona dá a si mesma sua lei129 – lei de fidelidade à sua família – e aceita sofrer
seus efeitos. Ela não pode deixar de enterrar o cadáver de seu irmão porque isso seria
faltar com sua verdade. Se Antígona é livre, é livre para fazer o que seu desejo determina,
sua decisão constituindo-se numa aposta dirigida ao destino, cuja natureza só se revelará
depois de seu ato.
O ato de Antígona não é orientado por um desejo que se liga a objetos
imaginários, nem a objetos que poderiam lhe trazer bem estar. O objeto de seu desejo,
segundo Guyomard, é o irmão Polinices – um cadáver, um resto, que é causa de seu ato
(GUYOMARD, P. 1996, p. 37. O cadáver do irmão, fora de toda inscrição simbólica,
mostra-se como a imagem mesma da Coisa que orienta o desejo. O que leva Lacan a
dizer que o cadáver, para além dos limites da Atè, torna-se um bem para Antígona e
sustenta sua ação (LACAN, J. 1959-60/1986, p. 315).
Por outro lado, o ponto limite no qual Antígona situa-se pode ser apreendido
através da unicidade que seu desejo visa. O que se encontra por trás do ato da heroína é o
que Polinices tem de insubstituível. O irmão situado, no horizonte da decisão ética de
Antígona, assume sua importância a partir do que ele tem de único: seu nome próprio, o
130
qual deve ser preservado pelo cerimonial do funeral (LACAN, J. 1959-60/1986, p.
324, 325).
A imagem que, na peça de Sófocles, ilustra o lugar onde Antígona quer chegar é o
seu castigo de ser emparedada viva. Antígona sabe de antemão o que vai lhe ocorrer, se
realizar seu ato, e mesmo assim não se detém. Na argumentação lacaniana, esse é o lugar
que Antígona ocupa na peça: “o entre-dois de dois campos simbolicamente diferenciados

submete à razão da cidade e não pode aceitar que seu irmão Polinices seja devorado pelos abutres. Mesmo
sabendo que Creonte condenou à morte aquele que ousar enterrá-lo, ela decide fazê-lo, indo de encontro ao
seu destino. Desse ponto, precipita-se a ação trágica da peça, em uma série de suicídios. O primeiro da
própria Antígona, depois de ter sido emparedada viva, seguido do de Hêmon seu noivo e do de Eurídice,
mãe de Hêmon, que não suporta a perda do filho.
129
A lei de Antígona não é a lei da cidade, não tem caráter universal que valha para todos os cidadãos, mas
está referida ao singular.
130
Em uma das últimas falas de Antígona, seu argumento para explicar o ato de enterrar Polinices contra as
leis da cidade, é o de que ele é único e insubstituível.

261
(LACAN, J. 195960/1986, p. 290). Na interpretação de Lacan, o gesto de Antígona
liberta o desejo puro sem objeto (desejo que visa a Coisa) e o significante puro em sua
unicidade diferencial (o nome único de Polinices). O que nos autoria a dizer que o ato de
Antígona, como o ato do analista separa, de um lado, o pensamento e, de outro, o ser, ou
ainda, de um lado, a castração e, de outro, o gozo (o que constatamos na análise da
operação transferência, no grafo de Lacan)
Podemos agora nos perguntar o que a ética extraída da tragédia de Antígona tem a
ver com a ética do ato analítico? Começaremos dizendo que o destino que condiciona o
agir da heroína é uma ilustração paradigmática da determinação que o sujeito sofre da
linguagem. A trajetória de Antígona ilustra a regência do desejo do Outro. Segundo
Lacan, Antígona faz ver o ponto de vista que define o desejo (LACAN, J. 1959-60/1986,
p. 290), o qual assume a forma de uma lei à qual ela se submete.
Aqui, encontramos uma equivalência com o sujeito em análise determinado pelos
significantes com os quais ele identificou-se, numa alienação fundamental. Mas não é só
isso que a tragédia mostra. Ela mostra também que o desejo que rege o ato de Antígona
de enterrar o irmão é orientado pela Coisa, representada, na tragédia, pelo cadáver do
irmão. Ou seja, o ato de Antígona orienta-se por esse real, exatamente como o ato
analítico.
O cumprimento do desejo de enterrar o irmão leva Antígona a assumir a
castração, pensada como o corte da linguagem que incide sobre o homem separando-o de
seu ser. A castração é ilustrada de modo contundente, na peça, na imagem de Antígona
emparedada viva, entre o mundo dos vivos e dos mortos. Entre a lei que determinou seu
desejo (a Atè) e a Coisa (os restos mortais do irmão) que foi sua causa.
Antígona, ao assumir seu destino e ao fazer dele seu próprio desejo, age como o
analisante que, na análise, reconhece e se responsabiliza pelos significantes que
determinam sua posição subjetiva.
O percurso de Antígona aproxima-se, mais uma vez, do percurso do analisante
quando ilustra a experiência da destituição subjetiva. O fato de ter seguido seu desejo até
as últimas conseqüências leva Antígona ao limite entre esse desejo e a Coisa, confronta-a
com a castração, relacionada à assunção de sua própria causalidade. Esse momento, na
análise como vimos na discussão efetuada anteriormente, é correlativo do que Lacan

262
chamou de destituição subjetiva. Assim, Antígona ilustra o surgimento do sujeito, nesse
ponto limite, que é o final de análise, onde, segundo Lacan, “o homem, nessa relação
consigo mesmo, que é sua própria morte, não tem que esperar pela ajuda de ninguém
(LACAN, J. 1959-60/1986, p. 351)
A. Teixeira conclui que o que Antígona realiza ao cumprir seu destino, não é
simplesmente submeter-se a ele. Ela o ultrapassa, de algum modo, o que pode ser
constatado no comentário de Lacan: “a iluminação violenta, o brilho da beleza,
coincidem com o momento de ultrapassagem, de realização da Atè de Antígona (...)
(LACAN, J. 1959-60/1986, p. 327)
E esse é mais um ponto de vista que aproxima o ato de Antígona do ato
psicanalítico. O ato da heroína mostra que podemos ultrapassar aquilo que nos determina,
mas somente depois de o termos executado. Ou seja, depois de termos percorrido, na
análise, os significantes que nos determinam em nossa história, o que se espera do ato
analítico é que essa determinação possa ser ultrapassada, não a eliminando, nem fazendo
como se ela não tivesse existido, mas inventando uma nova maneira de fazer com aquilo
que determinou nossa posição subjetiva.
A invenção de um “saber fazer” com a exigência da pulsão, a partir do ato
analítico, está igualmente afinado ao mandamento ético freudiano wo es war soll ich
werden, comentado repetidas vezes por Lacan.
O voto freudiano fecha a 31ª conferência das “Novas conferências”, publicadas
em 1932, com a frase “Wo es war soll ich werden”, “ali onde isso era, eu, como sujeito,
devo advir”. Frase que é seguida por outra: “é uma obra da cultura – não diferente da
drenagem do Zuider Zee” (FREUD, S. 1932/1996, p. 84).
Nota-se que Freud usa a expressão “trabalho da cultura”, como o trabalho de
drenagem do Zuider Zee 131, o que nos remete ao fato de Lacan ter chamado a psicanálise
de novo laço social (laço da cultura).
O imperativo freudiano é precedido da definição da intenção dos esforços
analíticos: “seu propósito é, na verdade, fortalecer o sujeito (o Ich), fazê-lo mais
independente do supereu, ampliar seu campo de percepção e expandir sua organização,
de maneira a poder assenhorear-se de novas partes do Es” (FREUD, S. 1932/1996, p. 84).

131
A Holanda drenou terras do mar com o objetivo de torná-las vivíveis para o homem.

263
Isso significa que é possível, um recobrimento de uma zona do Es, por uma zona do Ich
(como no caso da Holanda que recobriu uma zona do mar com uma zona de terra). E essa
é, justamente, a idéia retomada por Lacan na estrutura do ato analítico. O que se
apresenta como produto da operação transferência, no grupo de Klein, é o advento do
sujeito no campo da pulsão.
No Seminário XV, Lacan evoca a injunção freudiana Wo es war soll ich werden,
para dizer que, na discussão sobre o ato analítico, pois é possível lhe dar um uso
renovado, pois, é em torno do discurso sobre o sujeito que o ato deve ser retomado
(LACAN, J. L’acte psychanalytique, Léçon du 10 et 17 Janvier, 1968).
No soll ich werden, diz Lacan, não se trata da instância do eu. O Ich presente na
escrita de Freud deve ser entendido como sujeito gramatical (LACAN, J. 1955/1966, p.
426), ou ainda, como o lugar completo da rede significante132 (LACAN, J. 1964/1973, p.
45).
De acordo com Lacan, Freud, quando enunciou esse imperativo, não disse das Es
nem das Ich, como fazia habitualmente para designar essas instâncias. E considerando o
rigor inflexível do seu estilo, isso não pode ser considerado um descuido. No wo es war
soll ich werden, o Es é o sujeito desprovido de todo e qualquer artigo objetivante. War
indica o lugar do ser e aí nesse lugar – soll - é um dever no sentido moral, que se anuncia.
O dever é que eu (Ich) devo vir ao dia nesse lugar de ser133 (LACAN, J. p. 1955, p. 418).
Sob esse ponto de vista, o mandamento ético freudiano diz respeito à injunção que
a psicanálise faz ao sujeito para fazer-se representar, ali, onde antes só havia o circuito
acéfalo da pulsão.
Já dissemos que, no canto esquerdo inferior do esquema do ato analítico,
representado, no grupo de Klein, encontramos como resultado da operação transferência,
a seguinte figura:

a -ϕ

132
Na realidade, Lacan propôs diferentes possibilidades de tradução desta frase. Privilegiaremos, no
entanto, as traduções encontradas nos Seminários XI, XIV e XV, afinadas à teoria do ato analítico. Para os
que se interessam pelas nuanças encontradas nos comentários que Lacan faz da frase, sugerimos o texto de
Susanne Hommel “Wo es war soll Ich werden – Traduction”, publicado no número 32 da Lettre Mensuelle.
133
Lacan se pergunta que demônio inspirou o autor da tradução francesa quando formulou a frase “o eu
(moi) deve desalojar o isso” (LACAN, J. 1955, p. 418).

264
Ali, Lacan retoma a idéia freudiana de que, no Wo es war soll ich werden, temos a
sobreposição de uma zona do Ich e de uma zona do Es. O que Lacan traduziu deste
modo: com o cumprimento do mandamento ético da psicanálise, alcançamos uma solução
que combina o -ϕ da castração e o objeto a, que é o recobrimento das duas superfícies
dos conjuntos em questão nas operações alienação, verdade e transferência: conjunto do
pensamento e conjunto do ser.
O ser alcançado, por meio da operação analítica, é o ser recoberto pelo Ich (não
pelo eu, mas pelo Ich). Ser que se distingue daquele assegurado pelo fantasma, pois,
supõe um sujeito que localizou o objeto causa de seu desejo e responsabilizou-se por ele.
Tomando a perspectiva de que o Wo es war soll ich werden implica na divisão do
sujeito entre ser (Es) e pensamento (Ich), fica mais fácil entender a escolha de Lacan pelo
cogito cartesiano para fornecer a estrutura do ato analítico, já que o cogito é um ato onde
o sujeito realiza uma escolha ética ente o ser e o pensamento 134.
Do ponto de vista da psicanálise, o posicionamento ético do sujeito coloca-se em
questão, num primeiro momento, na metáfora usada por Lacan, para descrever a operação
de alienação, constituinte do sujeito. O sujeito deve escolher entre ficar com o sentido,
sabendo que vai perder o ser, ou ficar com o ser e com o non-sens, sabendo que vai
perder o sentido.
O posicionamento ético do sujeito coloca-se novamente em questão, quando no
início da análise, o sujeito escolhe entre o ser (falso ser do narcisismo) e o pensamento
(que promove a perda das certezas identificatórias). Quando escolhe o ser isso implica na
renúncia ao pensamento, que se constitui na associação livre, quando escolhe o
pensamento isso implica numa perda de ser.

134
Lacan diz que o cogito cartesiano é um ato, que é renovado (inclusive na análise). Ato que implica numa
escolha. Podemos dizer que sujeito, no cogito cartesiano, faz uma escolha pelo pensamento, onde ele se
assegura de seu ser. Pensamento que, no entanto, rejeita todo o saber subjetivo (saber associado aos
significados estabelecidos pela tradição). Quando tomamos outro ponto de vista, é possível dizer que o
sujeito no cogito cartesiano, assegura-se de sua existência, no pensamento, a partir da rejeição do corpo (do
ser), que na linguagem cartesiana é a experiência sensível.

265
Por último, o posicionamento ético do sujeito é mais uma vez solicitado, quando,
na análise, o sujeito é convocado a encontrar uma solução para sua cisão entre ser e
pensamento, responsabilizando-se por aquilo que o causa. O que nos autoriza a dizer que,
para Lacan, o final de análise é uma modificação do cogito cartesiano.
Por isso, é possível dizer que a ética do ato analítico, diferentemente da ética da
interpretação (pensada como decifração), coloca para o sujeito a exigência de bem dizer,
não a significação de um significante recalcado, mas a causa de seu desejo (o obejto a),
subjetivando a pulsão.
Sob este ponto de vista, reconhecemos que toda a estrutura do ato analítico está
indicada nessa pequena frase enunciada por Freud, wo es war soll ich werden, que
convoca o advento do sujeito, no campo do ser (do gozo). O que mostra que o verdadeiro
efeito da psicanálise não é o de fazer passar o saber inconsciente ao consciente, como se
pode pensar, mas o de fazer passar do Es ao Ich.
O sujeito advirá no campo do gozo, se assim o quiser. Trata-se de algo da ordem
de uma decisão e de uma escolha entre o desejo e o gozo. Se não houvesse escolha, por
que autorizaríamos um sujeito a recolocar em jogo, na experiência da análise, sua
posição? Com a teoria do ato, a margem de liberdade conferida ao sujeito, para se
posicionar diante daquilo que o causa, fica evidente, contrariando toda leitura de Lacan
que situe o sujeito e o sentido como meros efeitos da estrutura.
É necessário dizer que a decisão e a escolha não se apresentam somente com o ato
de final de análise, mas a cada intervenção do analista que reconduz o sujeito a essa
decisão. É por isso que a escolha do sujeito entre a alienação e a verdade não se produz
apenas no início da análise, como faz parecer a leitura de G. Brodsky do esquema do ato
analítico (apresentado no Seminário XV). A decisão e a escolha entre a alienação e a
verdade são convocadas ao longo de todo o percurso analítico.
Assim, podemos dizer que toda intervenção do analista porta nela a estrutura do
ato e é por isso que a ética não é apenas uma questão do fim, mas de todo o processo
analítico. O que nos mostram as primeiras palavras de Lacan na resenha do Seminário
...Ou pior: “Título de uma escolha (...) Trata-se do sentido de uma prática que é a
psicanálise” (LACAN, J. 1971-72/ 2001, p. 547). O que significa que uma análise só se
concebe, na dimensão ética como uma aposta deste tipo.

266
12- As relações entre o objeto-causa, o significante e o sentido no ato analítico.

Já dissemos que a estrutura do ato explicita que, na psicanálise, não se trata de


uma decisão sobre a significação de um significante recalcado, mas de uma decisão que
diz respeito ao posicionamento do sujeito diante do seu regime de gozo. Fato que
evidencia que, com o ato, a intervenção analítica separa-se da interpretação, entendida
como decifração, já que o objeto de gozo não pode ser decifrado.
A concepção da elaboração do saber, a partir o ato analítico, supõe a hiância,
instaurada pela castração e o objeto, que lhe é correlato. Tal concepção indica uma
descontinuidade da teoria do ato com as teorias da interpretação apresentadas na década
de cinqüenta. Como demonstramos, tais teorias supunham, inicialmente, a significação e,
mais tarde, o significante como causa do funcionamento psíquico, enquanto o ato supõe a
hiância e o objeto perdido como causa. O que buscamos ressaltar é que o ato implica
numa nova relação entre a causa o significante e o sentido.
Intervir em análise tomando o sentido ou o significante como causa nos situa no
campo da relação dialética do sujeito com o Outro, no campo da indeterminação
simbólica, e da retórica.
Miller assinala que não é a retórica que faz o ato, pois o ato está no nível do ser e
da certeza (referente a objeto), e a certeza como vimos no caso de César que cruza o
Rubicão, é diferente da garantia. É por isso que Lacan situa o ato do lado do analista,
como a intervenção capaz de transformar a dúvida do analisante, inerente à associação
livre, em certeza (MILLER, J-A. 2002, p. 5).
O ato lançado pelo analista, da posição de objeto, difere da interpretação de
sentido porque é uma intervenção que não opera no eixo verdade-sentido e sim no eixo
saber-real. Com a teoria do ato encontramos certa destituição da verdade, no pensamento
de Lacan, e uma ascensão da relação do saber com a verdade. No Seminário Mais Ainda,
por exemplo, Lacan propõe que é próprio da análise que possa ser construído um saber
sobre a verdade, mas esclarece que a verdade de que se trata, não é a verdade ideal do
saber (LACAN, J. 1972-73/1975, p.84).

267
Construir um saber sobre a parte não sabida da verdade não é decifrar. O ato não
implica na decifração do texto já escrito do inconsciente, mas na leitura retroativa daquilo
que, ali, não se escreveu. Essa perspectiva dissolve o possível parentesco da intervenção
analítica com qualquer procedimento hermenêutico, que supõe que uma significação
reenvia sempre à outra significação. A intervenção analítica opera a partir do pressuposto
de que o significante reenvia ao real, fazendo ressurgir, daí, o funcionamento da cadeia
significante.
É possível aclarar melhor a perspectiva do ato do analista, como distinta da
interpretação de sentido, quando a relacionamos à diferença existente entre Sinn e
Bedeutung. Lacan, ao utilizar a palavra significação na expressão “significação do falo”,
inspira-se na distinção apresentada por Frege135 em seu artigo “Uber sinn und
bedeutung”. No artigo, Frege coloca, logo de início, o problema da tradução. Se a
tradução de Sinn faz-se sem ambigüidade por sentido, o termo Bedeutung é muito mais
delicado para ser traduzido.
Seu sentido mais ordinário no alemão é o de significação, mas Barillot assinala
que a utilização particular que Frege faz dessa palavra, neste artigo, levou Claude Imbert,
seu primeiro tradutor para a língua francesa a rejeitar significação para a tradução de
Bedeutung, preferindo o termo “denotação”. O par de significantes sentido/significação
não lhe parecia manter suficientemente a distinção presente em Sinn/Bedeutung, que no
alemão forma um par de significantes em tensão (BARILLOT, P. 1996, p. 28).
Numa formulação mais anglo-saxônica, Bedeutung é traduzida por “referência”, e,
segundo Barillot, é sob essa forma que ela vem o mais frequentemente, nas obras de
lógica (BARILLOT, P. 1996, p. 29). É também como referência, que Bedeutung é
traduzida por Paulo Alcoforado, na edição brasileira de Lógica e filosofia da linguagem
da Editora Cultrix.
A idéia de Frege proposta, nesse livro, é que unido a um nome (a uma palavra)
existe um sentido e aquilo que ele chama de referência. O sentido de um nome é
135
G. Frege (1848-1925) foi um matémático e filósofo alemão, professor na Universidade de Ièna. Seus
textos foram incompreendidos pelos matemáticos e filósofos aos quais se endereçavam e permaneceram
desconhecidos até 1903, quando Bertrand Russel em sua obra “Principles of mathematics” exumou a obra
inacabada de Frege. Russel indicou um paradoxo – conhecido como o paradoxo de Russel – no sistema
formal de Frege, que minou seus fundamentos. Apesar disso, a obra de Frege constitui a origem da
concepção contemporânea da lógica e, embora tenha sido pouco divulgada quando Frege estava vivo, ela
influenciou enormemente os trabalhos de Russel e do primeiro Wittgenstein do Tratado lógico-filosófico.

268
entendido por todos que estejam suficientemente familiarizados com a linguagem ou com
a totalidade de designações a que ele pertence. O sentido, no entanto, elucida a referência
do nome sempre de maneira parcial. Isso faz com que a compreensão de um sentido
nunca assegure sua referência. A referência de um nome é o objeto designado por ele
(FREGE, G. 1978, p. 62, 63).
Um dos exemplos dados por Frege para ilustrar a distinção entre sentido e
referência é o caso dos nomes diferentes dados à mesma estrela: “estrela da manhã” e
“estrela da tarde”. São nomes que têm sentidos diferentes, mas a referência é a mesma.
Embora a referência seja a mesma o pensamento muda de acordo com os sentidos. O
pensamento da sentença “a estrela da manhã é um corpo iluminado pelo sol” é diferente
do da sentença “a estrela da tarde é um corpo iluminado pelo sol”. Alguém que não
soubesse que a estrela da tarde é a estrela da manhã poderia sustentar um pensamento
como verdadeiro e o outro como falso (FREGE, G. 1978, p. 67).
Tendo sido esclarecida a definição dessas noções em Frege, vejamos o uso que
Lacan faz delas. Ele usa o termo Bedetung no texto de sua conferência pronunciada em
alemão sob o título “Die Bedeutung des phalus”, traduzida por “Significação do falo”.
Aí, Bedeutung é traduzida por significação sem nenhuma precisão, mas anos mais tarde,
em “Conferência em Genebra”, Lacan menciona a dificuldade de traduzir o título de seu
escrito e diz que a significação do falo é uma tradução ruim. Ele faz, nessa ocasião, a
diferença entre Sinn, o sentido, e a Bedeutung, que ele diz designar a relação com o real
(LACAN, J. 1975/1985, p. 14).
Digamos, então, que em “Função e campo da palavra e da linguagem” a
Bedeutung, relativa ao enunciado interpretativo, confundia-se com a significação, mas a
partir de certo momento, essa confusão se desfaz. O que nos autoriza a dizer que, em
1967, a Bedeutung do ato é o objeto a, com seu estatuto de real 136, o que nos situa num
outro conjunto de relações entre a causa, o significante e o sentido.
E, nesse contexto, podemos então perguntar: a interpretação, que desde o
Seminário XI, distancia-se da perspectiva da significação e passa a se reportar ao objeto

136
É preciso dizer que posteriormente, no ensino de Lacan, surge uma diferenciação entre o real e o objeto
a, que passa a ser considerado como mais um semblante que recobre o real. Mas, acreditamos que no
Seminário XV, o objeto a, ainda tem o valor de real.

269
a, torna-se uma intervenção equivalente ao ato analítico? Examinemos mais de perto a
questão.

13- Ato e Interpretação.

Na Escola da Causa Freudiana, em 1996, a interpretação esteve no centro do


debate. Dois momentos fundamentais dessa discussão podem ser localizados nos
trabalhos de Serge Cottet e de Jacques-Alain Miller. Cottet escreve um trabalho,
apontando o que ele acredita ser um “declínio da interpretação”, na psicanálise
(COTTET, S. 1996, p. 86). Miller, partindo da expressão de Cottet, escreve outro texto,
onde, em suas palavras, “busca dar a face de luz ao termo ‘declínio da interpretação’,
com sua a face de sombra”. Ele quer “sublimar esse ‘declínio da interpretação’ no que ele
designou como uma prática pós-interpretativa” (MILLER, J-A. 1996, p. 8).
Toda a argumentação de Miller pretende demonstrar que Lacan sabia e não dizia
que a era da interpretação havia ficado para trás, e que o que ele continuou a chamar de
interpretação já não era a mesma interpretação de antes (MILLER, J-A. 1996, p.5).
Tomando como referência a tese do inconsciente intérprete, ele afirma que a
interpretação nada mais é do que identificar-se com o inconsciente, que já interpreta. O
que bem ilustra o modelo da interpretação mínima dada por Lacan, no texto “O
Aturdito”: “não fiz você dizê-lo” (LACAN, J. 1972/1991, p. 492).
Miller propõe, então, que o modelo de interpretação, na era pós-interpretativa, é o
avesso da interpretação. Ou seja, sua função é a de circunscrever a ausência de
significação do significante, colocando, no lugar da elaboração, a perplexidade
(MILLER, J-A. 1996, p.7).
Na mesma ocasião, no contexto desse debate sobre o declínio da interpretação,
representantes dos cartéis do passe da ECF, em função na época, entraram na conversa
para corroborar a tese de Miller com sua experiência.
O que ocorreu, a partir daí, é que alguns psicanalistas interpretaram esses
trabalhos como o decreto da falência da interpretação em psicanálise. Acreditamos, no
entanto, que essa idéia precisa ser contextualizada e relativizada.

270
É necessário dizer que, se houve a morte da interpretação, como alguns
psicanalistas proclamaram, a interpretação que morreu foi aquela deduzida do primeiro
ensino de Lacan. Não podemos esquecer de que existe uma teoria da interpretação no
último Lacan.
A indicação de um declínio da arte interpretativa em psicanálise é feita pelo
próprio Lacan, quando ele aponta o fim da idade de ouro da interpretação, no final da
Segunda Grande Guerra Mundial, que leva Freud a elaborar seu conceito de pulsão de
morte (LACAN, J. 1956/1966, p. 462). Ou seja, Lacan fala de um declínio da
interpretação que corresponde a um período de fechamento do inconsciente e que é um
momento datado do movimento psicanalítico.
O erro é supor que o declínio da interpretação corresponde à emergência de uma
clínica exclusivamente do ato, ou ainda, corresponde a um declínio da própria
psicanálise, quando deveríamos pensar que a interpretação e a psicanálise sobrevivem, e
que o declínio da interpretação forçou sua reinvenção.
Como dizíamos, acima, se houve a morte da interpretação, no pensamento
lacaniano, essa morte deve ser referida à interpretação que injeta sentido, sem orientar-se
pelo real. Mas, não acreditamos que a interpretação possa morrer em psicanálise, pois o
endereçamento é parte constituinte do inconsciente137. E concordamos com Lacan
quando, no Seminário XI, comentando a função do escrito, no registro da interpretação,
ele ressalta o dever do analista de interpretar (LACAN, J. 1964/1973, p. 252).
A prova mais contundente de que a interpretação permanece viva, no pensamento
de Lacan, são as várias definições de interpretação encontradas, na parte final de seu
ensino, mesmo depois da teoria do ato analítico ter sido formulada. Vejamos algumas
dessas definições.
No Seminário O avesso da psicanálise, por exemplo, Lacan diz que a estrutura da
interpretação é o saber enquanto verdade (LACAN, J. 1969-70/1991, p. 39). Definição
muito próxima da conceituação do ato analítico.
Ele diz ainda que a interpretação pode assumir a forma de uma citação ou de um
enigma e que os dois são meio-dizer. No caso da citação, temos o enunciado sem a

137
O próprio Miller ressalta este paradoxo em seu texto. O inconsciente interpreta e quer ser interpretado.

271
enunciação, enquanto no caso do enigma temos a enunciação sem o enunciado. (LACAN,
J. 1969-70/1991, p. 40, 41).
Isso significa que o enigma não responde a nenhum enunciado de saber. É
verdade sem saber. Verdade cujo saber é latente. A citação é o inverso. É o enunciado de
saber afirmado, referido a um autor. Enunciado sem enunciação.
Já no texto “O Aturdito”, Lacan apresenta a interpretação como apofântica e
oracular (LACAN, J. 1972/2001, p. 480, 490).
O oráculo, como todos sabem, era a resposta que uma divindade, na antiguidade,
dava àqueles que a consultava, em certos lugares sagrados, e Lacan propõe o oráculo
como o modelo exemplar da interpretação. O que podemos entender com isso?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o oráculo não portava uma significação
clara e precisa, mas, ao contrário, punha em destaque o lugar da enunciação. Quem o
consultava devia lê-lo.
A palavra do oráculo era linguagem cifrada, não era compreendida. A decifração
só acontecia mais tarde, quando o acontecimento se esclarecia.
A palavra de Tirésias, por exemplo, assumia o valor de verdade que ele deixava
falar por sua boca. Tirésias não detinha a verdade, ele era apenas um instrumento da
verdade, que se revelava por meio de um enigma.
Assim, isso nos autoriza a dizer que a interpretação como oráculo deve, então, ser
tomada como signo enigmático. Palavra que não revela nem esconde, mas faz signo.
E a interpretação apofântica? O termo apofântico é encontrado em Aristóteles e
significa declarativo ou revelativo. Aristóteles chamou de apofântico o enunciado que
pode ser considerado verdadeiro ou falso e considerou que esse tipo de enunciado é o
único objeto da lógica, da qual são excluídas as orações, as ordens, cujo estudo pertence à
retórica ou à poética (ABBAGNANO, N. 2000, p. 73)
Daí, podemos inferir que a interpretação apofânica é aquela que coloca o sujeito
diante das consequências lógicas da palavra, extraindo sua virtude do ato de proferir
breves fórmulas. Lembremo-nos que Lacan assinala que é pela lógica que o discurso
analítico toca o real (LACAN, J. 1972/2001, p. 449).
Ainda em “O Aturdito”, Lacan diz que a interpretação joga com o equívoco de
homofonia de gramática e lógica (LACAN, J. 1972/2001, p. 490-92). Nessa definição, o

272
importante é que o equívoco faz vacilar a significação. E somente pela resposta do sujeito
é que se decide o dito interpretativo.
Em “Rumo a um significante novo”, priorizando, mais uma vez, o equívoco,
Lacan aproxima a interpretação analítica da poesia, que usa o significante em sua
estrutura de duplo sentido. A poesia usa o significante para provocar efeitos de sentido,
recorrendo à ambigüidade das palavras (LACAN, J. 1977/2005, p. 32).
Nossa intenção, aqui, não é discutir em detalhe as teorias da interpretação após a
teoria do ato analítico. Retomamos brevemente essas indicações, em Lacan, para
demonstrar que a teoria da interpretação segue seu curso depois do ato analítico.
A interpretação, no entanto, já não é a mesma dos anos cinqüenta. Nessas teorias,
como é possível perceber, a significação permanece sempre em reserva. Nesse momento,
Lacan acredita que a interpretação que produz significação constitui um saber sobre o
objeto, e não pode haver pior interpretação do que aquela que opera em nome de um
saber.
Nomeando o objeto consolidamos a fantasia o que não convém ao fim de análise,
pensado como a travessia da fantasia. É por isso que, segundo Lacan, o objeto deve estar
presente na interpretação como equívoco, designando a falha na significação e deixando
ao sujeito sua parte na elaboração do saber.
Nessa altura do ensino de Lacan, aparece uma diferença que não estava colocada
no início de sua obra. A diferença entre sentido e significação. É o que encontramos em
vários pontos do texto “O Aturdito”, onde Lacan afirma a antinomia entre sentido e
significação e fornece a seguinte definição da interpretação: “a interpretação é sentido
que vai contra a significação” (LACAN, J. 1972/2001, p. 480). Uma possível leitura desta
antinomia é dizer que a significação é uma interseção entre o simbólico e o imaginário,
enquanto o sentido é uma interseção entre o simbólico e o real.
É por isso que a psicanálise torna-se em “O aturdito” uma prática do sentido, mas
não da significação. Torna-se uma prática do dizer, que aproxima o sujeito daquilo que
ele não pode dizer. Ali, a interpretação deve ater-se ao sentido e não à significação, com
o objetivo de levar a uma convergência os ditos do analisante, que possa circunscrever

273
um real no sentido. A interpretação não apenas vai contra a significação138, mas também
contra o discurso do eu e o sentido sexual.
Essa visada é deslocada por Lacan na “Conferência em Genebra”, quando ele
afirma que a experiência analítica não deve nutrir o sintoma de sentido, pois isso só lhe
dá substância. Ela deve, ao contrário, proceder pelo equívoco que comporta a abolição do
sentido. (LACAN, J. 1974/1975, p.200). Aqui, Lacan usa a palavra sentido e não
significação.
Vejam que, em “O Aturdito”, Lacan diz que a interpretação é o sentido que vai
contra a significação e que, em “Conferência em Genebra”, ele diz que a psicanálise deve
abolir o sentido. Em “Rumo a um significante novo”, quando distingue o significante,
que é o que se escuta, da letra, que é o que se lê, ele afirma que ambos rechaçam o
sentido.
O que tentamos mostrar é que mesmo, nesse momento, as coisas não são
absolutamente claras, pois Lacan não usa os termos sentido e significação de forma
sistemática. Lacan diz a interpretação, a re-diz, se contraria... Mas apesar das
ambiguidades uma direção para a interpretação parece se desenhar, em função de alguns
pontos que permanecem, através das várias definições que Lacan propõe.
O sentido existe, porque o simbólico não nomeia o real e implica nessa
impossibilidade do real de se fazer representar. Quanto mais se tenta nomear o real com o
simbólico, mais se percebe que esse é um empreendimento fadado ao fracasso. A
psicanálise é uma prática que, estando advertida disso, toma a posição de orientar-se pelo
real do sintoma, encoberto pelo sentido.
A razão dessa escolha é dada por Lacan, no texto “Introdução à edição alemã de
um primeiro volume dos Escritos”, onde ele diz que a interpretação que se orienta pelo
real é necessária à psicanálise, porque o sentido foge e, também, porque o ponto de vista
do sentido culmina no enigma (LACAN, J. 1973/2001, p. 553), o que levaria a
psicanálise a um impasse.

138
Especialmente àquela que o analista poderia suscitar.

274
Comsiderações finais

Chegamos ao final dessa investigação, que partiu das seguintes perguntas: a que
questão Lacan responde quando introduz, em 1967, a noção de ato em seu ensino? A
teoria do ato destitui, no pensamento de Lacan, a teoria da interpretação? Ato e
interpretação são conceitos equivalentes ou distintos? A ética da interpretação é a mesma
ética do ato? Se não é a mesma, de que modo elas se diferenciam?
Lacan não explicita suas mudanças de posição, no pensamento que transmite. Não
indica de forma clara os momentos nos quais repensa sua teoria, nem tampouco localiza
os impasses que o levaram a modificá-la. Nossa pesquisa, então, assume seu valor em
razão dessa característica, na medida em que as mudanças, as tensões, as continuidades e
descontinuidades, nas teorias sobre a intervenção do analista, no tratamento, precisam ser
extraídas, a partir de uma leitura detalhada dos textos, que envolve a comparação das
diferentes formulações que, ali, aparecem.
No início da argumentação, indicamos que Freud, mesmo no auge de seu
entusiasmo com a arte interpretativa em psicanálise, manteve alguma reserva em relação
à interpretação. Tal reserva revelou-se, inicialmente, por meio de seu reconhecimento do
umbigo dos sonhos – ponto ininterpretável – e culminou, em 1920, na construção do
conceito de pulsão de morte, limite decisivo para a decifração.
Mostramos que a tese do sintoma como portador de um sentido é fundamental no
pensamento freudiano, entretanto, ela não é a única. Ao lado dessa hipótese, encontramos
outra, a de que o sintoma tem uma causa sexual, a qual se manifestou de diferentes
maneiras, na clínica freudiana, mas sempre como um obstáculo para o procedimento
interpretativo. A causa sexual apareceu na experiência de Freud, sob a forma da repetição
na transferência (o agieren), sob a forma da fantasia, da reação terapêutica negativa, etc.
Aspecto da clínica que fez com que Freud, em seu texto “Análise terminável e
interminável”, localizasse a conclusão da análise no ponto em que se conjuga o sintoma
interpretável e a pulsão.

275
Todavia, se para Freud a interpretação nunca se emancipou da causa sexual do
sintoma, as primeiras leituras feitas por Lacan da interpretação freudiana priorizaram a
decifração, em detrimento da exigência feita ao aparelho psíquico pela pulsão. Lacan, no
entanto, não se detém aí, e o que esse estudo pôde demonstrar é que o ato do analista é
incessantemente redefinido por ele, ao longo de sua obra, em razão das re-apresentações
das relações entre a causa psíquica, o significante e o sentido. As teorias sobre a ação do
analista transformaram-se, cada vez que as relações entre os termos foram reinterpretadas
por Lacan. E a formulação do ato analítico, em 1967, nada mais é do que a conseqüência
da inadequação da intervenção do analista proposta nos anos 50, para responder ao novo
arranjo entre os termos.
Vimos que, inicialmente, a causalidade psíquica foi relacionada por Lacan à
significação, em textos como “Formulações sobre a causalidade psíquica” e “Função e
campo da fala e da linguagem”. Neste momento, a interpretação visava o significado
recalcado da consciência do sujeito, que é lido e interpretado, na análise. O sujeito gozou,
aí, de certa liberdade para decidir sobre o sentido das experiências inscritas em seu
psiquismo, pois as experiências, em si mesmas, não são portadoras de sentido
Na fase de inspiração estruturalista, Lacan situou a causa do sentido e do sujeito,
no significante, em textos como o “Seminário sobre ‘A carta roubada’” e “A instância da
letra ou a razão depois de Freud”. Nos textos mencionados, o sujeito e o sentido
aparecem como o resultado da forma como os significantes combinam-se, prestando-se a
certo tipo de cálculo. Como foi possível observar, essa perspectiva reduziu a margem de
liberdade concedida anteriormente ao sujeito e tornou problemática a dimensão ética da
psicanálise, que implica na responsabilidade e na decisão do sujeito, as quais não se
harmonizam com a idéia de que o sujeito é um efeito.
Evidenciamos, no entanto, que, mesmo no ápice da inspiração estruturalista que
marca os textos citados, encontramos elementos, na teoria lacaniana, que se posicionam
numa relação de tensão com a concepção de linguagem considerada como um a priori,
que organiza o inconsciente segundo certas leis.
O acaso que gera a sequência de cifras, no modelo de sintaxe proposto no
“Seminário sobre ‘A carta roubada’”, é o indício de que, já nesse momento, o sistema
simbólico de Lacan não é fechado, nem tampouco fundado na imobilidade da estrutura de

276
linguagem. Além do mais, o caput mortuum da cadeia significante apresentado, no
mesmo modelo, prenuncia algo do objeto a, elemento que não se faz representar na
sintaxe inconsciente.
Do mesmo modo, o termo ser, introduzido em “A instância da letra e a razão
depois de Freud” opõe-se à inspiração estruturalista, que vários autores destacaram, no
pensamento de Lacan desse período. A discussão sobre o ser, elemento estranho à noção
do “inconsciente estruturado como uma linguagem” mostra que nos equivocamos quando
consideramos que o programa de Lacan é o de construir um sistema fundamentalmente
regido pela estrutura de linguagem.
O equívoco aparece igualmente, na leitura que alguns fizeram dos trabalhos de
Lacan produzidos nessa época – entre eles Bernard Bass e Jean-Claude Milner. Esses
autores entenderam as teorias do significante e do desejo elaboradas, nos anos cinqüenta,
como uma lógica transcendental, cujo objetivo era o de extrair as condições mínimas e a
priori do inconsciente experimentado pelo analista e analisante, no processo de análise.
No final do Capítulo I, mostramos que a objeção a esse tipo de leitura é
encontrada no próprio desenvolvimento da obra de Lacan, onde encontramos elaborações
que contraditam esse tipo de interpretação, ao propor a satisfação corporal como o
fundamento do desejo. Tomando como referência o diálogo com Kant, mostramos que a
crítica endereçada por Lacan ao filósofo é a alavanca com a qual ele dissolve toda
possibilidade de aproximação de sua teoria com o método transcendental e com a
perspectiva de um sujeito que é simplesmente o efeito da combinatória significante. Além
do mais, a satisfação corporal enfatizada, nesse momento, descompleta a cadeia
significante do inconsciente, restabelecendo a margem de liberdade necessária à
concepção ética da psicanálise.
Assim, o objetivo da menção à interlocução de Lacan com Kant foi o de
circunscrever a justa localização do ato do analista, realçando o fato de que a
interpretação, em psicanálise, não se refere simplesmente aos jogos de palavras,
organizados de acordo com leis dadas a priori pela estrutura de linguagem. Nosso intuito
foi o de mostrar, que a intervenção do analista diz respeito aos significantes que fixam
certos sentidos, no corpo do analisante, e que isso orientou, desde então, as definições de
interpretação, no ensino de Lacan.

277
No texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, notamos que
Lacan distinguiu claramente a vertente da análise que diz respeito à interpretação daquela
que diz respeito à análise da transferência, relativa à dissolução da fantasia que o analista
sustentou, com seu ser, durante o tratamento. Essa maneira de ver a análise indica que, já
nesse momento, Lacan considerava que a intervenção analítica abarcava algo que não
pertencia ao registro da decifração do sintoma. Aspecto enfatizado, pelo conceito de ato
analítico, no Seminário XV.
No texto “A subversão do sujeito” e no Seminário O desejo e sua interpretação,
Lacan privilegiou a idéia de que o objetivo da interpretação era o de incidir, não na
restituição dos significantes recalcados, mas na relação do sujeito com aquilo que os
significantes recalcados velam: a fantasia.
No Seminário A ética da psicanálise, circunscrevemos o que permitiu uma
reorientação do pensamento de Lacan, a saber, a idéia de que existe algo de não
simbolizável no fundamento do desejo: o gozo do corpo. Essa visada transformou a teoria
da causalidade psíquica, que, a partir de então, localizou-se no corpo, e constituiu um
contraponto em relação às leis que determinam as relações entre os significantes, na
cadeia inconsciente. Esse aspecto foi explorado, nesse estudo, a partir da noção lacaniana
de sépartition, que foi ilustrada de diferentes maneiras, no Seminário XI. Com essa
noção, Lacan quis demonstrar que a entrada do vivente, no universo da linguagem, tem
um custo: a perda do corpo vivo que, uma vez perdido, torna-se causa do funcionamento
da cadeia significante determinante do sujeito.
O que importa é que a lógica do inconsciente, tão enfatizada no primeiro ensino
de Lacan, foi relacionada, neste momento, à erótica do corpo (que funciona como causa),
modificando o conceito mesmo de inconsciente. Esse último passou a ser definido como
hiância, que alterna os tempos de fechamento e de abertura (instância pulsátil que não é
da ordem do ser, nem do não ser, mas do não realizado). E a principal conseqüência disso
foi o surgimento de uma exigência interna ao pensamento de Lacan: a de se redefinir o
ato do analista. Se o inconsciente e a causalidade psíquica mudaram, fazia-se necessária a
redefinição da intervenção analítica capaz de incidir sobre o inconsciente e a causa
pensados desse modo.

278
Inicialmente foi a definição de interpretação que se transformou. Como
assinalamos, encontramos certa sobreposição da teoria da interpretação, tal como ela foi
apresentada, em 1964, e a teoria do ato analítico. Dizer que houve sobreposição entre as
duas teorias não é o mesmo que dizer que houve equivalência. O que buscamos mostrar é
que a interpretação assumiu características que foram conferidas, posteriormente, à noção
de ato. A redefinição da interpretação, no entanto, não foi suficiente para Lacan e, em
1967, o ato analítico surgiu como outra resposta construída para responder a esse
problema.
Constatamos que Lacan, na elaboração do conceito de ato analítico, inspirou-se
amplamente nas contribuições freudianas de 1937, embora o Seminário XV não faça
nenhuma referência direta aos textos que examinamos: “Análise terminável e
interminável”, “Construções em análise”, e “Moisés e o monoteísmo”. O cotejamento dos
textos freudianos, de 1937, com o Seminário XV mostrou que as soluções propostas por
Lacan, nesse seminário, são muito próximas das indicações deixadas por Freud.
No Seminário XV, Lacan se perguntou o que seria tratar um sujeito que é causado
pelo inconsciente constituído pelas duas vertentes apontadas na introdução dessa tese: o
pensamento (a cadeia de linguagem, regida por suas leis) e a pulsão (o gozo do corpo,
não subsumido pelo simbólico e que funciona como causa). A releitura do cogito, no
esquema do ato analítico inspirado no grupo de Klein, retomou o inconsciente como
acabamos de apresentá-lo. E a cadeia de linguagem e o gozo do corpo, nesse contexto,
foram traduzidos como a articulação entre o ser e o pensamento.
À pergunta assinalada acima (como tratar o inconsciente que supõe um sujeito
dividido entre a estrutura de linguagem e o gozo do corpo?), Lacan responde dizendo que
o ato analítico é a intervenção capaz de tratar essa divisão fundamental. É a resposta
particular da psicanálise a essa cisão original, mostrando-se capaz de promover uma
solução que combina o ser e o pensamento.
Assim, podemos dizer que a teoria do ato analítico, distinguindo-se da teoria da
interpretação (entendida como decifração) é a proposição de uma nova maneira de se
tratar, na análise, aquilo que, no inconsciente, não é mensagem, e que se destaca a partir
da localização da causa psíquica do lado do objeto com seu estatuto de real.

279
Sob esse ponto de vista podemos compreender a indicação de Lacan, no
Seminário XV, segundo a qual o ato analítico tem relação com a ética da psicanálise. A
formulação do ato analítico evidencia o esforço de Lacan para harmonizar as ações do
analista, no tratamento, à ética particular da práxis analítica que se orienta pelo real.
Dissemos na introdução do trabalho, que são as ações do analista, suas respostas àqueles
que o procuram, que veiculam e sustentam a ética da psicanálise, na experiência clínica
do inconsciente. E o ato analítico afinado a essa ética convoca o sujeito a comparecer no
circuito acéfalo da pulsão, tomando uma decisão e responsabilizando-se por aquilo que o
causa.
Por outro lado, a introdução do ato analítico, no pensamento de Lacan, tem
relação direta com o fato de que, na experiência clínica, a elucidação significante
mostrou-se insuficiente. O ato responde à constatação de que, para além da decifração,
encontramos a resistência do objeto, do isso. Encontramos a viscosidade da libido
presente no “inconsciente estruturado como uma linguagem”. Isso é o que Freud
percebeu em sua experiência clínica, resumida no Capítulo I, a saber, que a interpretação,
a rememoração, e a associação livre não recobrem completamente o que se passa na
análise.
Todos sabem que, no método freudiano, o “manejo da transferência” foi
reconhecido muito cedo como uma intervenção diferente da interpretação. Foi para isso
que apontamos em nossa breve discussão sobre o caso Dora. Mas antes mesmo do caso
Dora, na pré-história da psicanálise, a necessidade de se manejar a resistência do objeto,
determinou, por exemplo, o uso da pressão na testa. Uma espécie de sugestão que fazia
com que o paciente admitisse a atividade interpretativa.
Já os pós-freudianos, destacaram a análise das resistências como o modo
privilegiado do manejo da transferência. Onde não era possível interpretar analisava-se as
resistências, para criar as condições para a interpretação. Por último, não é irrelevante
lembrar que a necessidade de outra intervenção, na análise, diferente da interpretação foi
o que conduziu Ferenczi à concepção do método ativo.
Em síntese, o que gostaríamos de ressaltar é que muito cedo na história da
psicanálise, os analistas perceberam que a intervenção interpretativa não era suficiente,
na condução de uma análise. Em primeiro lugar, porque, como destacamos, existe uma

280
resistência do paciente em se deixar interpretar, relativa à satisfação que ele obtém com
seu sintoma. Em segundo lugar, porque, com a palavra, é difícil alcançar uma mudança
radical no analisante. E isso porque o significante é dialético, reenvia sempre a outro
significante, produzindo uma mudança que é sempre relativa, na medida em que uma
nova leitura do sintoma poderá sempre ser feita, a partir do acréscimo de outro
enunciado. A perspectiva da análise como interpretação conduz essa análise ao infinito,
já que um novo significante poderá ser sempre acrescentado à série de significantes que
potencialmente não tem fim.
Assim, a idéia de Lacan de propor uma intervenção em análise que incida, não
sobre a cadeia significante, mas sobre onde falha essa cadeia, fazendo surgir o objeto, não
é exatamente original. Outros analistas já haviam pensado nisso, mas, é claro, não da
mesma forma. A necessidade de se pensar o ato como uma intervenção que não opera na
vertente da significação, responde à constatação de que, na experiência do inconsciente,
existe algo que não é decifrável. E, se é assim, não basta recuperar as lembranças
esquecidas para se dissolver o sintoma pelo efeito de sentido. Ao contrário, é necessário
fazer aparecer o caput mortuum da sequência significante de que falamos no Capítulo I: o
objeto que demonstra a impossibilidade de se fazer representar nessa cadeia.
Lacan formulou esse impasse do seguinte modo: o gozo não é mensagem e,
portanto, não pode ser decifrado. Partindo desse ponto de vista propôs a teoria do ato
analítico, modo de intervenção na transferência que diz respeito à relação fundamental do
sujeito com seu objeto de gozo, condensado no trabalho de análise.
A idéia proposta por Lacan, no Seminário XV, é a de que o analista deve
identificar-se com esse objeto, que aparece como o resíduo do processo analítico: o
objeto a. O que nos permite considerar que, na perspectiva lacaniana, no final das contas,
a manifestação residual da análise é o próprio analista.
É desse lugar de resto que o analista lança seu ato, o que situa imediatamente a
dimensão do ato como distinta da dimensão da interpretação. Se do lado da interpretação,
formulada nos anos 50, temos a relatividade do significante, do lado do ato temos seu
caráter absoluto, na medida em que o analista, quando o lança, encarna o objeto causa de
desejo do analisante.

281
É por isso que, no final do Capítulo III, destacamos o fato de que a Bedeutung do
ato do analista não é a significação, mas o objeto a. Isso já havia aparecido, no Seminário
XI, onde Lacan separou a interpretação analítica da hermenêutica. Ali, ele começou a
preparar, numa gestação laboriosa, o advento do conceito de ato, finalmente apresentado
no Seminário XV. É o que destacamos acima ao indicar certa sobreposição das teorias da
interpretação e do ato.
Não podemos, no entanto, cair na tentação de simplificar o que não é simples,
afirmando que, a partir de um determinado momento, passa a existir uma equivalência
entre as noções de interpretação e de ato, ou ainda, que o advento da teoria do ato
destituiu a teoria da interpretação, no pensamento de Lacan. Essas duas perspectivas nos
parecem ser reducionistas.
O que buscamos evidenciar é a inexistência de uma demarcação rígida entre as
duas teorias. Lacan não distingue, claramente, a interpretação do ato analítico, e, mesmo,
em algumas passagens do Seminário XV, encontramos a palavra interpretação. Qual seria
a razão? É porque não se é possível fazer uma diferenciação clara entre os dois termos? É
porque a temporalidade do ato supõe uma dimensão interpretativa (relativa ao momento
da leitura do ato)? É por que a estrutura do ato analítico não diz respeito apenas ao
momento em que o ato é lançado, na análise, mas à estrutura mesma do percurso
analítico, e, nesse caso, ela abarcaria a interpretação? Ou seria por que a teoria da
interpretação, no último Lacan, abrange o ato analítico? O que nos conduziria a pensar,
que entre as interpretações feitas numa análise, algumas assumem valor de ato.
Depois de realizada a pesquisa, acreditamos ser possível o esclarecimento de
alguns pontos, que destacamos a seguir:

1) A teoria lacaniana do ato do analista no tratamento não é dogmática. No que se


refere a essa teoria, encontramos na obra de Lacan, não uma unidade, mas uma série de
definições do ato do analista, as quais se complementam, se sobrepõem, se colocam em
tensão, etc.

2) As reformulações da teoria da interpretação depois de 1960 e a introdução do


conceito de ato analítico, em Lacan, respondem à necessidade de se harmonizar a ação do

282
analista à ética formulada por Lacan no Seminário VII. O poder da análise depende de
seus princípios éticos, os quais definem a técnica e as intervenções do analista no
tratamento. Se a ética da psicanálise orienta-se pelo real, então temos de admitir, que o
ato analítico é a operação que sustenta, de modo mais consistente, essa orientação.

3) Por um lado, não devemos ser mais realistas do que o rei e forçar uma
separação entre ato e interpretação, que não aparece de maneira nítida no pensamento
lacaniano. Por outro lado, não podemos desconhecer o fato de que, com o ato, Lacan cria
uma nova nomeação para a intervenção do analista e o novo nome reporta-se a uma
modalidade, que não coincide com a interpretação, pensada como interpretação de uma
significação recalcada. Nesse ponto, é impossível não reconhecer uma discrepância.
Lacan não teria criado uma designação inédita, se não quisesse introduzir, ou pelo menos
realçar, alguma novidade no que diz respeito à ação do analista no tratamento. O que nos
permite concluir que, no pensamento de Lacan, existe uma espécie de descontinuidade
entre a noção de ato analítico e a noção de interpretação, mas sobretudo, quando
consideramos a definição de interpretação proposta nos anos cinqüenta. Quando tomamos
as definições de interpretação, na última fase de seu ensino, as diferenças tornam-se
muito menos nítidas.

4) A teoria do ato não destitui a teoria da interpretação, no pensamento de Lacan. Depois


do Seminário XV, onde é proposto o conceito de ato analítico, Lacan prossegue falando
da interpretação, a partir de diferentes re-descrições, como se não alcançasse nunca uma
definição que esgotasse inteiramente o alcance do dispositivo da interpretação, em
psicanálise. A continuidade da teoria da interpretação após o ato analítico mostra que,
para Lacan, o ato, como intervenção do analista, não suprime, não substitui, nem
ultrapassa a interpretação.

5) O estatuto da interpretação, no último Lacan, é correlativo da perspectiva de que a


análise é um processo que precisa ter um fim. Lacan se dá conta de que a interpretação
referida ao sentido conduz a um impasse: confronta-nos com um sentido que sempre foge
e que, por essa razão, inscreve-se numa perspectiva infinita. Lacan não poderia conceber

283
uma interpretação que não fosse solidária com a perspectiva de uma análise finita. Ele
não abre mão desse ponto. A psicanálise deve terminar, e a interpretação que faz
proliferar o sentido levaria necessariamente a análise ao infinito. A interpretação torna-se,
então, nesse contexto, a operação por meio da qual o analista desbasta o sentido,
reduzindo o sintoma ao sem-sentido do S1.

6) O que orienta Lacan, na elaboração das definições de interpretação apresentadas


depois do Seminário O ato analítico, é que essas definições devem estar afinadas à teoria
do ato. Não é possível fazer operar o ato analítico, cuja Bedeutung é o objeto, numa
análise que caminha na direção da multiplicação do sentido, da consistência da
significação. Dar consistência aos significados do sujeito é antinômico ao ato e ao real. O
ato só podendo ocorrer numa experiência que reduz a significação à impossibilidade do
objeto a. A questão que se coloca, então, para Lacan, é a de construir uma teoria da
interpretação que não caminhe na contra mão da teoria do ato. E é nessa direção que ele
avança.

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-La direction de la cure et les principes de son pouvoir, 1958
-Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien, 1960
-Posicion de l’inconscient, 1964
-La science et la vérité, 1965

LACAN, J. Autres Écrits, Paris: Éditions du Seuil, 2001


-Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, 1965
-Réponses à des étudiants en philosophie, 1966
-La logique du fantasme, 1967
-Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École, 1967
-La méprise du sujet supposé savoir, 1967
-De la psychanalyse dans ses rapports avec la réalité, 1967
-L’acte psychanaytique, 1968
-Radiophonie, 1970
-Discours à l’École freudienne de Paris, 1970
-Note italienne, 1973
-Radiophonie, 1970
-…Ou pire, 1972
-L’Étourdit, 1973
-Introduction à l’édition allemande d’um premier volume dês Écrits, 1973
-Télévision, 1973

LACAN, J. Le Séminaire
-Livre I, Les écrits techniques de Freud, 1953-54/1975

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-Livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la
psychanalyse, 1954-55/1978
-Livre IV, La relation d’objet, 1956-57/1994
-Livre V, Les formations de l’inconscient, 1957-58/1998
-Livre VI, Le désir et son interprétation, 1958-59, Seminário não publicado
-Livre VII, L’éthique de la psychanalyse, 1959-60/1986
-Livre VIII, Le transfert, 1960-61/1991.
-Livre X, L’angoisse, 1962-63/2004.
-Livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, 1964/1973
-Livre XIV, La logique du fantasme, 1966-67, Seminário não publicado.
-Livre XV, L’acte psychanalytique, 1967-68, Seminário não publicado.
-Livre XVII, L’envers de la psychanalyse, 1969-70
-Livre XX, Encore, 1972-73/1975.

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