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Belo Horizonte
2010
Giovanni Torres Parra
A Teoria Austríaca do Capital
_____________________________________
Prof. Édil Guedes (Orientador) – PUC Minas
_____________________________________
Prof. Alexandre Queiroz – PUC Minas
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Prof. André Mourthé – PUC Minas
Esta monografia realizou um estudo crítico de teorias econômicas de diversos autores das
escolas de pensamento econômico clássica, neoclássica e austríaca. Seu objetivo era fazer
uma exposição da teoria do capital da escola austríaca como alternativa ao tratamento que a
escola neoclássica dá ao tema. Foi realizada primeiramente uma exposição das concepções de
capital presentes nas obras fundamentais do pensamento neoclássico – a saber: as obras dos
principais representantes da Revolução Marginalista, W. Stanley Jevons e Léon Walras, e a
obra de Alfred Marshall – com a intenção de mostrar sua proximidade com a concepção
clássica de David Ricardo sobre o tema. Em seguida apresentou-se a crítica de autores da
escola austríaca aos elementos comuns das noções de capital escola neoclássica e clássica. Por
fim foi realizada uma exposição da teoria do capital da escola austríaca representada pela obra
de Ludwig Lachmann, destacando a relação desta com as de autores austríacos que o
antecederam e inspiraram, como Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk e F.A. Hayek, e a
incompatibilidade entre esta teoria e a neoclássica. A conclusão foi a de que a alternativa
austríaca fornece uma visão mais rica e com maior poder de explicação para o fenômeno do
capital e os eventos que o envolvem, merecendo ser levada em conta para a análise
econômica.
This monograph performed a critical review of economic theories from several authors from
the classical, the neoclassical and the austrian schools of economic though. Its goal was to
expose the theory of capital of the austrian school as an alternative to the treatment given by
the neoclassical school to the subject. First of all, the notions of capital existents at the
fundamental works of the neoclassical thought have been exposed -- namely: the works of the
participants of the Marginal Revolution, W. Stanley Jevons and Léon Walras, and the work of
Alfred Marshall -- with the purpose of showing its proximity with the classic notion of David
Ricardo on the subject. Then was presented the critic of austrian school authors to the
common elements of the notions of the neoclassical and neoclassical schools. Finally, an
exposition of the capital theory of the austrian school, represented by the work of Ludwig
Lachmann, was exposed, with a highlight to the relations between this and the theories of
other austrian authors, such as Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk and F.A. Hayek,
which have preceded and inspired him. The conclusion was that the austrian alternative
provides a richer vision and with more power to explain the phenomenon of capital and the
events involving it, deserving to be taken in account for economic analysis.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 48
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 50
6
1 INTRODUÇÃO
O capital, fenômeno cuja necessidade para qualquer economia existente não pode ser
facilmente negada, é um tema fundamentalmente importante para a compreensão dos mais
variados problemas e situações com que se pode deparar a ciência econômica. Tanto é que
dificilmente se encontrará uma sistematização dos princípios da economia ou um livro
didático de introdução ao assunto que não aborde este tema.
Entretanto, a elevada importância do capital não contribuiu para que ao longo da
história da ciência econômica fosse encontrada uma solução consensual para a abordagem do
tema. Pelo contrário: cada autor e cada escola de pensamento parecem ter visões diferentes
sobre o que é capital e como ele se relaciona com outros fenômenos e se inclui na
racionalização geral dos eventos econômicos.
A atual ortodoxia econômica, cujos alicerces estão nas obras de Alfred Marshall, dos
participantes da Revolução Marginalista – W. Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras –,
talvez por sua preocupação com a elaboração de raciocínios com medição precisa das
quantidades das variáveis envolvidas, inclui o capital em suas teorizações e modelos como
uma única variável, passiva e com poder de explicação secundário. Esta prática, que trata o
capital – um complexo sistema de materiais enormemente diferentes – como um único e
homogêneo ‘estoque’ é uma simplificação cujo preço, para a escola austríaca moderna, é
intoleravelmente elevado. Sabendo que as bases desta simplificação estão na origem da escola
neoclássica (ainda no século XIX), é necessário que se observe a visão do capital que se tinha
ali e se compare com a alternativa representada pela escola austríaca.
O objetivo desta monografia é examinar, à luz da crítica realizada pelos economistas
austríacos, o tratamento do capital dado pelos primeiros teóricos neoclássicos; mostrar como
esse tratamento remete, em método e em substância, à economia clássica (especificamente à
obra de David Ricardo); e apresentar a teoria do capital desenvolvida dentro da escola
austríaca como um ponto de vista mais esclarecedor da complexidade deste fenômeno.
Para tal, este trabalho se divide em três capítulos, além desta introdução e da
conclusão. O capítulo 2 apresenta as concepções de capital presentes na obra de Ricardo –
como um representante da escola clássica –; de Jevons, Walras e Marshall – como
representantes da escola neoclássica –; e de Böhm-Bawerk e Menger, este ao mesmo tempo
como economista neoclássico (situação em que se enquadra apenas graças ao fortuito evento
7
histórico1 que o tornou um revolucionário marginalista) e como um austríaco (aí sim, por ter
sido o fundador desta escola2), aquele como um austríaco cuja teoria do capital tende à
identificação com as da escola neoclássica.
O capítulo 3 desenvolve as duas críticas fundamentais da escola austríaca – nesse
capítulo majoritariamente representada por Friedrich A. Hayek e pelos austríacos modernos
Peter Lewin e Steven Horwitz – ao tratamento do capital na escola neoclássica: a crítica à
análise da economia em equilíbrio, método padrão dos economistas de filiação neoclássica; e
a crítica à homogeneização do capital que este tipo de análise promove. A crítica afirma que
os aspectos mais relevantes do fenômeno do capital desaparecem quando se o analisa
assumindo uma homogeneidade sabidamente inexistente e pressupondo um estado de
equilíbrio necessariamente imaginário. O capítulo ainda explica a problemática que envolve a
teoria de Böhm-Bawerk: o fato de que ela ao mesmo tempo apresente conclusões claramente
neoclássicas e seja identificada, em várias ocasiões, ao epíteto ‘teoria austríaca do capital’,
título que ela não pode possuir sozinha.
O capítulo 4 apresenta as contribuições de Hayek à construção da teoria austríaca do
capital e enuncia a teoria de Lachmann, que, por ser a forma mais desenvolvida, abrangente e
completa teoria do capital que se filia diretamente à escola austríaca, este trabalho nomeou ‘a
teoria austríaca moderna do capital’.
Na conclusão, são acrescidos comentários sobre a controvérsia entre as escolas
austríaca e neoclássica.
1
Isto é: a existência de um princípio ‘marginalista’ em seu tratado de economia e o fato deste ter sido publicado
quase ao mesmo tempo que o de Jevons, em 1871.
2
Seu tratado de economia forneceu os princípios metodológicos e as doutrinas básicas para os membros
subseqüentes da tradição.
8
3
Ricardo reconhece que o mesmo bem pode ser encarado como capital fixo ou como capital circulante
dependendo de sua aplicação: “O trigo comprado por um lavrador para semente é um capital fixo em
comparação com aquele comprado pelo padeiro para fazer pão. O primeiro lança-o à terra e não obtém nenhum
retorno durante um ano; o segundo pode transformá-lo em farinha, vendê-lo como pão a seus fregueses e, em
uma semana, ter seu capital livre para repetir o que fez ou começar a utilizá-lo de outra forma. Portanto, duas
atividades podem utilizar o mesmo montante de capital, mas este pode ser dividido de modo muito diferente
entre a parte fixa e a circulante.” (p. 36)
9
Vemos também que, em todos os casos, a soma de 720 libras deve ser dividida entre
salários e lucros. Se o produto obtido da terra valer mais do que isso, o excedente se
4
Isto é bem claro, por exemplo, na conceituação de capital que faz Jevons.
5
Como se virá no próximo capítulo, Blaug (1990) usa esta definição.
6
John Stuart Mill é um exemplo.
7
Ricardo considera que o preço sempre sobe quando a economia passa a se utilizar de terras piores e este preço
aumento de preço é sempre repassado ao proprietário da terra.
10
constituirá em renda, seja qual for sua magnitude. Se não houver tal excedente, não
haverá renda. Quer aumentem ou diminuam os salários ou lucros, é desta soma de
720 libras que ambos devem ser obtidos. (RICARDO, 1985, p. 94)
8
Segundo Ricardo, quando os salários de mercado sobem acima de seu preço natural (salários de equilíbrio), a
população cresce e o excesso de oferta de mão-de-obra faz com que eles desçam novamente ao preço natural – e
vice-versa. O autor escreve em seu capítulo sobre os salários que “quando o preço de mercado do trabalho
excede o preço natural, a condição do trabalhador é próspera e feliz, e ele pode desfrutar de grande quantidade de
bens de primeira necessidade e dos prazeres da vida, e, portanto, sustentar uma família saudável e numerosa.
Quando, entretanto, pelo estímulo que os altos salários dão ao aumento populacional, cresce o número de
trabalhadores, os salários baixam outra vez até seu preço natural e, às vezes, por um efeito de reação, até abaixo
dele” (p. 82).
11
estado inicial e o estado de equilíbrio) e os lucros foram reduzidos a zero ou a uma taxa
mínima9.
Ricardo (1985) entende que este estado em que a taxa de lucro é zero e que a renda da
terra é máxima é o estado de equilíbrio de longo prazo10, quando a economia não teria mais
como crescer, devido à insuficiência de terras, e também a população estagnaria. O autor
reconhece a existência de aprimoramentos técnicos que retardam a chegada ao estado de
equilíbrio, conforme explica nesta citação que de certa forma, resume o seu pensamento sobre
os lucros:
Assim, mesmo tendo consciência de que a economia não está em equilíbrio, Ricardo
orienta-se em sua análise a todo momento por este ponto de equilíbrio futuro, concebendo-o
como uma tendência. Esta orientação da análise pelo equilíbrio subsiste – e é
consideravelmente acentuada - na economia neoclássica11 – assim como subsistem outras
idéias e métodos de conceber os fenômenos econômicos, como se verá.
9
Segundo Blaug, “a hipótese mais simplista de acordo com as obiter dicta de Ricardo é que esta remuneração
mínima do capital é uma constante positiva, mas pequena” (BLAUG, 1989, p. 139). E, segundo o próprio
Ricardo, “os salários nunca podem subir tanto que não deixem uma parte do total para os lucros” (p. 94).
10
Ricardo o chama ‘estado estacionário’, mas este estado corresponde, segundo os conceitos neoclássicos, a um
estado de equilíbrio de longo prazo – um estado em que não há estímulo para mudança da ação dos agentes e em
cuja direção a economia tende a se mover (e, no longo prazo, chegará, mesmo que esse longo prazo seja
constantemente adiado).
11
“Todos os marginalistas acentuam o problema do equilíbrio na economia. Para eles existem forças internas e
atuantes que tendem a levar o sistema ao equilíbrio”. (ARAÚJO, 1988, p. 81).
12
real de comida e outros bens necessários à vida” (p. 191). Com esta noção de capital, Jevons,
mesmo tendo eliminado da teoria econômica a hipótese do trabalho como fundamento do
valor, mantém-na, de certa forma, nesta concepção retrospectiva12 do capital: ao dizer que o
capital é o que foi produzido por um trabalhador humano – ou a comida que alimentou esse
trabalhador --, Jevons está, de certa forma, mantendo a hipótese clássica de que é o trabalho
humano que cria o valor da mercadoria. A diferença aqui é o autor elimina a aspiração que
havia na economia clássica de que era possível medir o valor criado pelo trabalho em função
das horas gastas deste mesmo trabalho, mas não elimina a essência da idéia.
O autor prossegue dizendo que, se o capital é a comida (e os outros bens necessários à
vida) do trabalhador, e se estes bens necessários são praticamente os mesmos para todos os
trabalhadores, “o capital livre”, afirma Jevons, “pode ser empregado indiferentemente em
qualquer ramo ou tipo de atividade econômica” (p. 192), já que mesmo variando o tipo de
negócio, não muda a comida do seu trabalhador. Esta premissa leva Jevons à conclusão de
que o juro de capital (considerado como o rendimento que este gera ao seu investidor) tenderá
à uniformidade em todas as atividades econômicas. E que
Assim, Jevons assume que a origem e o fundamento da taxa de juros estão no próprio
rendimento das atividades econômicas que utilizam capital e é determinada pelo rendimento
que obtêm essas atividades no mercado.
12
Lewin (1999) e Horwitz (2003) designam por retrospectiva (backward-looking) a concepção do capital
clássica e neoclássica, que o difere de outros elementos pela história de sua produção e acumulação, ou seja, por
terem sido feitos ou adquiridos com o objetivo de servirem à produção. Esta concepção se opõe à concepção
prospectiva do capital, característica das teorias de Menger, Hayek e Lachmann, segundo as quais o capital não
se define por ter sido produzido com o fim de ser ou por ter sido capital, mas sim por seu encaixe num plano que
o utilizará como capital de hoje até algum momento futuro, e por esta perspectiva ele é avaliado pelos agentes
hoje.
14
equilíbrio (que o autor considera um estado ao mesmo tempo normal e ideal das coisas,
embora também o diga inatingível) e da divisão dos fatores de produção entre terra, trabalho e
capital – e, por conseqüência, seus pagamentos, respectivamente entre arrendamento, salário e
juro (WALRAS, 1996).
Walras faz uma definição cuidadosa de capital fixo e capital circulante. O autor chama
de capital fixo, ou capital em geral, “qualquer espécie de riqueza social que não é consumida
ou apenas é consumida em longo prazo, qualquer utilidade limitada em quantidade que
sobrevive à primeira utilização que se faz dela, em uma palavra, que serve mais de uma vez”
(p. 158). E aqui inclui também a terra e as pessoas, às quais chama capitais fundiários e
capitais pessoais. Ao capital propriamente dito, chama capitais mobiliários. Estão inclusos
nesta definição de capital em geral tanto os bens destinados ao consumo quanto os utilizados
para a produção.
E o capital circulante, ou rendimentos, Walras define como sendo “qualquer espécie
de riqueza social que é consumida imediatamente, qualquer coisa rara que não mais subsiste
depois do primeiro serviço que presta” (p. 158). Nos rendimentos estão inclusos tanto
matérias-primas quanto serviços emanados do capital em geral, sejam eles destinados à
produção ou ao consumo.
Walras, então, estrutura logicamente a produção das coisas da seguinte maneira: tanto
o capital propriamente dito, quanto a terra, quanto as pessoas são a origem de rendimentos (os
serviços). E são estes rendimentos os responsáveis pela produção das coisas. Por exemplo, na
produção de um bolo para venda, são utilizados os seguintes rendimentos: farinha e ovos
comprados na venda (matéria-prima), serviços da cozinheira (pessoa), serviços das vasilhas,
batedeira, forno e a própria cozinha (capital) e serviços do chão sobre o qual está a cozinha
(terra).
A partir daí, identificando cada rendimento ao seu capital originário, paga-se a ele
cada seu salário, arrendamento ou juro. Estas transações se fazem, segundo Walras, no
mercado, e também os preços de cada serviço são determinados pela lei do mercado, que é a
lei da oferta e da procura marginalista. A moeda com que o empresário do setor boleiro paga à
venda, à cozinheira, ao dono da terra e ao dono do forno, batedeira e vasilhas pelo uso é a
mesma que ele recebeu na venda do bolo a um consumidor determinado. E esta venda
também é feita a um preço determinado pela lei da oferta e da procura, que o autor explica
brevemente:
15
Você entra num sapateiro para comprar sapatos; é o empresário que dá o produto e
que recebe a moeda: a operação é feita no mercado de produtos. Se os produtos são
mais demandados que oferecidos, outro consumidor cobrirá o seu lance; se são mais
oferecidos que demandados, outro produtor estará em liquidação, ante o sapateiro. A
seu lado, um operário cobra um preço pela manufatura de um par de sapatos; é o
empresário que recebe o serviço produtivo e que dá a moeda: a operação é feita no
mercado de serviços. Se o trabalho é mais demandado que oferecido, outro
empresário cobrirá o lance do sapateiro; se é mais oferecido que demandado, outro
trabalhador estará em liquidação, ante o operário. (p. 171)
Como a teoria da produção de Walras não supõe a existência de um outro fator além
de terra, capital e trabalho, não suporta a existência do lucro e do papel do empresário – a
menos que este seja identificado à pessoa do capitalista e seu lucro seja apenas um nome
diferente para o juro de capital. Desta forma, ela só analisa o estado de equilíbrio da produção,
que é
modo indireto às necessidades humanas – embora, via de regra, não sejam capazes de
atendimento imediato de tais necessidades.” (p. 247). Então Menger separa os bens em várias
categorias, segundo a sua distância do atendimento de alguma necessidade humana, e chama
àqueles que diretamente atendem a alguma necessidade de bens de primeira ordem; àqueles
que dependem apenas de uma etapa para serem transformados num bem de primeira ordem,
bens de segunda ordem; àqueles que serão ainda transformados, por algum processo, em bens
de segunda ordem, de bens de terceira ordem e assim sucessivamente. Com o capital, nesta
teoria, sendo representado pelo conjunto dos bens de ordens superiores, o autor enxerga uma
estrutura temporal de produção e ordenação do capital – pois, como ele mesmo afirma, “todo
processo de mudança ou transformação significa um vir-a-ser, um surgir, um tornar-se, e isso
só é possível dentro do tempo” (p. 253) – idéia que não existia na concepção de Ricardo,
Jevons ou Walras.
Menger ainda deduz dessa divisão fundamental dos bens que a demanda dos bens de
ordem superiores depende da dos bens de primeira ordem de cujo processo de produção esses
participam e que um bem de ordem superior só pode ser considerado bem quando se possui
(ou se espera possuir de alguma forma) seus bens complementares, ou seja, os bens que
precisam ser combinados a ele para a fabricação de um bem de primeira ordem, ou – no caso
do bem em questão não ser de segunda ordem, mas de uma ordem superior a esta – os bens
complementares de sua ordem e todos os bens complementares ao bem de ordens inferiores
que terão de ser produzidos antes que se chegue ao bem de primeira ordem desejado.
O uso mais importante do termo capital em geral, isto é, do ponto de vista social,
vem da investigação de como os três agentes de produção, a terra (isto é, os agentes
naturais), o trabalho e o capital, contribuem para a criação da renda nacional [...] e
de como essa renda é distribuída entre os três agentes. (MARSHALL, 1996, p. 142-
3)
17
uma determinada máquina pode dar uma receita que é da natureza de uma renda e
que algumas vezes é mesmo chamada de renda; de um modo geral, porém, parece
haver alguma vantagem em chamá-la de quase-renda. Não poderemos, contudo,
falar propriamente de um juro produzido por uma máquina. Se tivermos que usar a
expressão “juro”, deve ser em relação não à máquina em si, mas ao seu valor em
dinheiro. (p. 140)
18
Assim, pois, o termo capital compreenderá todas as coisas que são possuídas com
finalidade comercial, quer se trate de maquinaria, de matéria-prima ou produtos
acabados; de teatros e hotéis; de fazendas e casas — mas não se inclui a mobília
nem a roupa que estiverem sendo usadas pelos seus próprios donos. Isso porque os
primeiros elementos citados são considerados usualmente capazes de produzir renda,
enquanto os segundos são tidos como não produtores, o que é fácil de verificar
através do lançamento de impostos. (p. 143)
13
A discussão sobre a inclusão de casas sob a definição de capital é justificada no seguinte trecho: “Os agentes
do fisco consideram uma casa, mesmo quando habitada por seu proprietário, como fonte de renda sujeita a
imposto, embora ela dê diretamente a sua renda sob a forma de conforto.” (p. 142)
19
obtém-se mais êxito produzindo bens de uso indiretamente do que por via direta.
Mais: o êxito obtido pode revelar-se em duas modalidades: nos casos em que se
pode conseguir um bem de uso tanto por via direta como por via direta, o êxito
maior manifesta-se em que, utilizando a via indireta, se pode conseguir mais produto
com trabalho igual, ou o mesmo produto com menos trabalho. Além disso,
manifesta-se no sentido de que certos bens de uso só podem ser conseguidos pela via
indireta: esta é, no caso, tanto melhor, que muitas vezes é até o único caminho para
se chegar ao objetivo visado. (p. 36-37)
A ‘via indireta’ de Böhm-Bawerk consiste em todo processo de produção que não seja
terminado imediatamente usando apenas o trabalho humano e os bens da natureza, mas que se
dê por meio de (no mínimo) uma etapa anterior àquela em que o processo termina – de forma
que as etapas anteriores dêem como resultado produtos intermediários que serão utilizados
nas etapas subseqüentes até a derradeira.
Portanto, para Böhm-Bawerk, “o capital outra coisa não é senão o conjunto dos
produtos intermediários que surgem nas diversas etapas individuais que perfazem a vai de
surgimento indireta” (p. 38). Assim, a existência do fenômeno do capital na economia é, para
o autor, “um sintoma de que se adotou um método vantajoso de produção indireta” (p. 123).
O estoque de capital existente “no fundo não é outra coisa que um conjunto de bens de
consumo que se encontram no processo de desenvolvimento” (p. 124).
Nessa conceituação, Böhm-Bawerk difere tanto de Ricardo como de todos os
neoclássicos quando considera que o capital não é um fator de produção, mas apenas um
20
produto dos dois fatores de produção (a natureza – ou a terra – e o trabalho), um produto que
se encontra no mesmo nível dos bens de consumo, diferindo destes apenas por estar ainda
percorrendo a trajetória da produção, enquanto os bens de consumo já a terminaram.
O resultado final da teoria do capital de Böhm-Bawerk é a uma doutrina sobre o juro,
cuja existência é, para o autor, o resultado do maior valor que têm os bens presentes em
relação aos bens futuros. Esta sentença é verdadeira, segundo o autor, sempre (ou seja, a taxa
de juro é sempre positiva). A diferença de valor entre os bens futuros e presentes ocorreria por
três motivos: (i) pelas diferenças entre as necessidades de recursos no presente e no futuro; (ii)
pela subestimação do futuro; e (iii) pela superioridade técnica dos bens presentes em relação
aos bens futuros. O primeiro motivo, em suma, diz que às pessoas podem faltar bens no
presente enquanto no futuro essas mesmas pessoas esperam estar em situação de vida melhor
– logo, segundo a lei da utilidade marginal decrescente, o qualquer bem de que ela necessite
no presente valerá mais do que o mesmo bem no futuro. O segundo motivo diz que “há uma
tendência para a miopia por parte dos agentes econômicos”, que o autor atribui a: (a)
deficiência de imaginação, (b) força de vontade limitada, e (c) a brevidade e a incerteza da
vida” (BLAUG, 1990, p. 264). O terceiro é baseado em sua teoria do capital (BÖHM-
BAWERK, 1986), que, resumidamente, diz ser o produto maior quando o processo produtivo
é mais demorado, assim, entre um bem presente e um bem futuro, terá decorrido um tempo
que, caso os dois bens fossem aplicados a um processo produtivo, faria uma diferença positiva
em favor do produto final do primeiro bem – o bem presente – em desfavor do segundo.
Por fim, o autor relata os dois casos principais em que se manifesta o fenômeno do
juro: o primeiro deles é o empréstimo: “O empréstimo não é outra coisa senão uma autêntica e
verdadeira troca de bens presentes por bens futuros; aliás, ele representa a forma de
manifestação mais pura que se possa imaginar desse tipo de troca, de certo modo o protótipo
ideal da mesma” (p. 301). O segundo é o ganho de capital auferido num negócio. Este caso é
o que ocorre quando os empresários
O ponto comum entre as teorias neoclássicas é o fato de ser a sua análise dos
fenômenos econômicos feita do ponto de vista da divisão dos fatores e da remuneração devida
a cada um deles. Esta análise da divisão da renda pressupõe a agregação dos bens de capital –
tanto como a terra e o trabalho – a uma única magnitude homogênea provedora de
rendimentos. Este agregado provedor de rendimentos, por sua vez, não é concebível senão em
equilíbrio. No próximo capítulo estes três elementos – tripartição da renda, homogeneização e
análise em equilíbrio – serão classificados como os elementos comuns à teoria neoclássica e
então criticados à luz da teoria austríaca.
22
14
The treatment of the capital problem in terms of the demand for and suply of one single magnitude is
only possible on the assumption that the proportions just described stand in a certain equilibrium
relationship to one another.
23
Reflita-se um pouco mais sobre o porquê de tal procedimento ser, como afirmou este
autor, válido apenas em equilíbrio:
A economia neoclássica concebe o valor dos bens como subjetivo, diferente para cada
agente econômico. E cada agente econômico o avalia conforme a sua capacidade de resolver
necessidades humanas – ser mais ou menos útil para aquele agente – ou conforme a
expectativa que o agente tem de que ele vá ser útil no futuro. Se a economia clássica
enxergava nos bens um valor objetivo, determinado pelas condições de sua produção, a
economia neoclássica considera que cada indivíduo atribui um valor diferente para cada bem.
É comum, no âmbito da economia neoclássica, conceituar o equilíbrio como um
estado que tende a durar até que seja afetado por forças exógenas. Este pensamento se resume
e se personifica nas palavras de Stiglitz, citado por Lewin (1999, p.18), que diz ser o
equilíbrio “um estado em que nenhum agente econômico tem incentivo para mudar seu
comportamento”16. Hayek (2009, p.18) explica que esse estado existe quando os planos de
ação dos diferentes membros da sociedade se ajustam perfeitamente uns aos outros; assim,
todos esses planos são realizados de maneira que o equilíbrio é mantido. Tal situação só pode
ocorrer quando os planos de ação de todos os membros da sociedade são elaborados com base
no conhecimento perfeito dos planos dos demais membros, de maneira que, quando os planos
forem executados – e o serão, já que sua demanda é perfeitamente compatível com a oferta do
resto da sociedade e sua oferta é perfeitamente compatível com a demanda do resto da
sociedade – o equilíbrio será mantido (a menos, é claro, que uma força externa ao equilíbrio
crie incentivos para que ele seja alterado). Como diz Hayek (1999, p. 18), o estado de
equilíbrio pode ser estacionário, ou seja, imóvel, e aí a harmonia dos planos existirá porque
estes não mudarão, e os agentes continuarão realizando e executando os mesmos planos que
tradicionalmente (desde que se atingiu aquele estado de equilíbrio) elaboram e executam. Ou
pode ser que o equilíbrio não seja estacionário (e sim dinâmico), mas que mesmo assim exista
devido a uma previsão de futuro perfeita dos agentes econômicos, uma previsão que os
permita saber o que mudará nos planos dos demais agentes e, baseando-se nestas mudanças,
15
[...] if equilibrium holds, then each capital good is being used in the inarguably best way it can. In such a
world, there are no disputes over whose expectations (as embodied in the particular capital combinations
employed) are correct, as all plans are mutually consistent. Therefore, the prices of all capital goods reflect those
correct expectations, allowing for them to be summed to find the value of the total capital stock. It is worth
repeating that this procedure is valid only in equilibrium.
16
[...] state where no economic agents have an incentive to change their behavior.
24
fazer seus próprios planos – e isto deve acontecer simultaneamente com todos os agentes --,
de maneira que a execução dos planos seja perfeitamente possível e a economia continue no
estado de equilíbrio.
Sendo um bem de capital um bem que se destina fundamentalmente à produção futura
de bens de consumo (e mesmo que não haja perfeito consenso sobre sua definição, não haverá
discordância quanto a este aspecto), seu valor, para cada indivíduo, é dado pelo valor presente
dos produtos que aquele bem de capital gerará ao longo da sua vida (podendo ser esses
produtos, por exemplo, os serviços de corte, praticados sucessivamente, de uma serra de um
marceneiro, cujo valor seria dado pelo valor das peças que venderia o tal marceneiro)17. Dessa
maneira, de acordo com as expectativas de cada indivíduo sobre o futuro dos preços das peças
de madeira, cada um projetaria, para a serra, o bem de capital em questão, um valor-presente
que seria a soma dos valores descontados dos serviços futuros (serviços de corte de madeira).
Sobre a valoração dos bens de capital por meio do cálculo do valor-presente, Lewin (1999, p.
3-4, tradução nossa) afirma, de passagem, ser a “aritmética do valor-presente uma parte
importante da compreensão do capital”18.
Portanto, sendo os bens de capital valorados em função das expectativas dos
indivíduos, e sendo essas expectativas diferentes em estados de desequilíbrio, não pode haver
concordância sobre o valor de cada bem, o que impede que sejam somados os valores desses
bens para se chegar a uma magnitude final à qual se poderia chamar o estoque de capital da
economia. Apenas em equilíbrio, quando as expectativas são iguais e o futuro é conhecido (ou
por ser uma repetição do passado, ou por ser o resultado de uma tendência estável conhecida),
pode-se obter um valor exato para cada bem de capital.
Considerando-se que são os agentes econômicos os determinantes das expectativas e
da ação futura, o valor que cada um deles atribui a um bem de capital será, em equilíbrio,
igual ao preço deste bem no mercado. Dito de outra forma: numa situação de equilíbrio, os
preços refletem o julgamento unânime dos indivíduos sobre os bens (LEWIN, 1999, p. 41).
O contrário também é válido:
17
Esta noção de valor do capital é derivada da teoria neoclássica do valor, oposta, portanto à idéia clássica de
que o valor dos bens de capital (e de quaisquer outros) seria uma função do trabalho humano utilizado em sua
construção. Apesar de Jevons, conforme exposição no capítulo anterior, ter fugido de sua própria teoria do valor
ao descrever o capital com a visão retrospectiva de que ele seria identificado com a comida do trabalhador que
construiu determinado meio de produção, Menger, como exposto no capítulo anterior, já explicitava a concepção
prospectiva, que viria a se tornar comum na economia neoclássica, de que o valor subjetivo de um bem de
capital é função da expectativa do valor de seus produtos futuros.
18
[...] present-value arithmetic is an important part of an understanding of capital.
25
Por este motivo também falhará qualquer tentativa de se apurar o valor do estoque de
capital de uma economia em desequilíbrio por meio dos preços de mercado dos bens, de
forma que a concepção de um estoque quantificável de capital só pode mesmo ser imaginada
para uma economia em equilíbrio.
Por ser, como afirma Hayek (2009, p. 16), que o estado de equilíbrio seja uma
construção fictícia, um estado ao qual não se pode chegar nunca no tempo real, mas apenas
num futuro distante e inatingível, e por ser o desequilíbrio a situação real de qualquer
economia a qualquer momento, é a este estado, a esta circunstância, que deve se referir o
estudo do capital.
Da mesma forma, é só sob condições de desequilíbrio que surgem os problemas sobre
os quais se deve debruçar uma teoria do capital que pretenda compreender o fenômeno do
capital em si mesmo:
É isto (assumir o equilíbrio desde o princípio da análise), contudo, que se faz nas
análises clássica e neoclássica do capital:
19
In a disequilibrium situation, however, this is obviously no longer possible. If expectations across individuals
differ and are inconsistent, then prices can no longer be used to reflect a unanimous judgment of value.
20
The main problems are to explain what types of instruments will be produced under given conditions,
and what will be the consequences of producing particular instruments. And these problems will of course
be non-existent if we assume from the beginning that the same stock of instruments will be constantly
reproduced.
21
Dating at least from Ricardo, economists have become accustomed to thinking about economic concepts in the
context of a world in which individual plans largely dovetailed. This enabled them to build grand systems in
which economic aggregates, including capital (the value of capital for the economy as a whole), made perfect
26
Os bens de capital são heterogêneos. Assim afirma Lachmann (1978, p. 2). Barbieri
assim o explica: “Em que sentido o capital é heterogêneo? Em primeiro lugar, cada bem de
capital apresenta heterogeneidade física. A dessemelhança física torna cada bem útil somente
para alguns usos” (BARBIERI, 2001, p. 39).
A heterogeneidade dos bens de capital é o que os torna problemáticos quanto à sua
medição e a construção de agregados:
Esta dificuldade tem origem na necessidade das escolas clássica e neoclássica de lidar
com algum conceito de capital em suas análises quantitativas, de forma que se possa
considerá-lo como um fator de produção e, portanto, conceitualmente existente; ou mesmo
para justificar todo o enorme esforço econômico de produzir bens que não serão consumidos
– justamente, o capital. Assim afirma Lewin:
[...] se o “capital em geral” deve ser enxergado como um fator de produção, parece
necessário que uma ligação deve ser estabelecida entre a noção de “capital no
agregado” e os bens de capital individuais envolvidos no processo de produção.
Estes são diversos e heterogêneos em natureza e não é imediatamente óbvio como se
deve proceder para somá-los. Um método lógico é em termos de seus valores, seus
preços. Mas [...] é apenas em equilíbrio que estes preços preços têm o sentido que
procuramos, e mesmo aí eles não estarão livres de uma ambigüidade controversa.
(LEWIN, 1999, p. 49, tradução nossa)23
sense. Even with the advent of the marginalist revolution, and the related discovery of subjective utility, the
assumption of equilibrium enabled the construction of logically consistent and contextually meaningful
aggregates like national income, wealth and capital.
22
Capital, as distinct from labour and land, lacks a ‘natural’ unit of measurement. While we may add head to
head (even woman's head to man's head) and acre to acre (possibly weighted by an index of fertility) we cannot
add beer barrels to blast furnaces nor trucks to yards of telephone wire.
23
[...] if ‘capital in general’ is to be thought of as a factor of production, it seems necessary that a relationship
should be established between the notion of “capital in the aggregate” and the individual capital goods involved
in the production process. The latter are diverse and heterogeneous in nature and it is not immediately obvious
how one should proceed to add them together. A logical method is in terms of their values, their prices. But, as
27
[...] o economista não pode fazer seu trabalho devidamente sem um conceito
genérico de capital. Onde ele trata de mudança quantitativa ele precisa de um
denominador comum. Quase inevitavelmente ele segue o homem de negócios
adotando o valor monetário como seu padrão de medida para a mudança do capital.
Isto significa que sempre que há alteração nos valores relativos monetários,
perdemos nosso denominador comum. (LACHMANN, 1978, p. 2, tradução nossa)24
Como já foi dito, o uso de qualquer padrão de medida do estoque de capital, seja ele o
padrão clássico dos custos de produção, seja ele o dos preços de mercado neoclássico, é
possível apenas em situação de equilíbrio. A construção de um agregado tem, porém, um
outro efeito: o da homogeneização.
Quando o objetivo da agregação é o fornecimento de alguma explicação para o
fenômeno do ‘juro de capital’, é lógico que, ao se conceber o juro como um rendimento
uniforme em toda a economia (ou que tende à uniformidade), vá se conceber, também, que o
capital de onde provém este rendimento é homogêneo (HORWITZ, 2003, p. 43). Nisto,
Horwitz concorda com Hayek, que conta que
[...] as tentativas de explicar o juro, por analogia com os salários e a renda, como o
preço dos serviços de algum “fator” de produção definido, quase sempre levaram à
tendência de se considerar o capital como uma substância homogênea cuja
“quantidade” podia ser consideradada “dada” (HAYEK, 2009, p. 5, tradução
nossa)25
O autor não crê, no entanto, que os economistas que procedem (ou procederam) desta
maneira ignorem que o capital é heterogêneo e que sua agregação não é simples como a
agregação de trabalhadores ou de terra (ou, nos termos do supracitado Lachmann, cabeças
humanas ou acres)26, crê somente que não cabe em sua análise outra forma de consideração
we shall see, it is only in equilibrium that such prices have the meaning that we seek, and even then will not be
free of contentious ambiguity.
24
[...] the economist cannot do his work properly without a generic concept of capital. Where he has to deal with
quantitative change he needs a common denominator. Almost inevitably he follows the business man in adopting
money value as his standard of measurement of capital change. This means that whenever relative money values
change, we lose our common denominator.
25
[...] the attempts to explain interest, by analogy with wages and rent, as the price of the services of some
definitely given "factor" of production, has nearly always led to a tendency to regard capital as a homogeneous
substance the "quantity" of which could be regarded as a "datum".
26
Não que o procedimento de agregar trabalhadores ou terra seja legítimo ou perfeito, mas não compete a este
trabalho tratar deste assunto. Considere-se, portanto, para fins de comparação, que este tipo de agregação é mais
simples e mais fiel à realidade econômica que o dos bens de capital.
28
do capital que não a concepção deste como um agregado homogêneo que apenas muda de
tamanho no decorrer do tempo (HAYEK, 2009).
Segundo o mesmo Hayek, a compreensão neoclássica do capital como um estoque
homogêneo – e, mais importante, a incapacidade desta teoria de perceber os problemas dessa
forma de compreender o capital e encaixá-lo em seus modelos – origina-se, também, quando
o objetivo da análise é compreender as variações no estoque de capital. Mesmo que se
considere este agregado acertadamente medido (em um estado de equilíbrio), eventos
posteriores – como a ocorrência de certa quantidade de investimento27 – que alterem o valor
do estoque para cima não se processarão através da multiplicação dos bens de capital já
existentes na exata proporção que já existe28:
É este esquema (o da multiplicação simples dos bens de capital) que se está chamando
aqui de homogeneização; é ele que está implícito na teoria neoclássica e é ele que faz com que
os economistas desta tradição vejam o capital como um fenômeno passivo – um agregado que
não sofre alterações na composição, apenas na quantidade – e passível de ser ignorado
enquanto campo de estudo em si, para ser levado em conta apenas como um explicador
remoto do fenômeno dos juros ou uma massa amorfa de valor que sofre o efeito da demanda
derivada que, por agir sobre a massa de capital como um mecanismo automático, não o retira
nunca de sua posição de equilíbrio30. Por partir desta noção de capital – um estoque
homogêneo auto-ajustável –, a escola neoclássica é incapaz de perceber a problemática das
27
Compreendendo sob a noção de “investimento” qualquer aplicação de riqueza na produção de bens de capital.
28
Exceto caso o aumento do valor do estoque de capital ocorra num processo de equilíbrio dinâmico com
crescimento da economia – que não é o que estamos considerando aqui.
29
[...] the conception that additions to the stock of capital always mean additions of new items similar to those
already in existence, or that an increase of capital normally takes the form of a simple multiplication of the
instruments used before, and that consequently every addition is complete in itself and independent of what
existed previously. This treatment of capital as if it consisted of a single sort of instrument or a collection of
certain kinds of instruments in fixed proportions [...] is perhaps more than anything else responsible for the idea
that capital may be regarded as a simple, physically determined quantity.
30
A noção de equilíbrio aqui empregada diz respeito à manutenção das proporções de capital utilizadas na
economia que em análises fundamentadas pela teoria neoclássica não são alteradas exceto por fatores exógenos e
que representam uma “técnica” de produção invariável (HAYEK, 2009, p. 11-12).
29
A escola neoclássica não difere substancialmente da escola clássica no que diz respeito
ao tratamento do capital. Conforme se mostrou no capítulo anterior, a concepção ricardiana do
capital subsiste em Jevons e Marshall, e também em Walras. Neste foi ressaltada
principalmente a idéia do equilíbrio. Naqueles, deu-se mais importância à consideração do
capital como um elemento gerador de um rendimento (em algum grau) quantificável. Böhm-
Bawerk, apesar de reconhecido como um economista 'austríaco', também subscreve a esta
idéia. Quanto a esse rendimento, há a diferença de que Ricardo o chamava lucro, por
considerar o lucro de um negócio qualquer a remuneração do capital empregado naquele
negócio, enquanto o juro seria apenas a remuneração do empréstimo monetário31. A economia
neoclássica, porém, reservou ao lucro um papel secundário, igualando (ou validando uma
analogia como a de Marshall) o capital físico ao seu valor monetário, de forma que o
rendimento material deste fosse igualado ao rendimento monetário daquele e separando o
proprietário do capital (ou do dinheiro) do empresário, mesmo que esses dois fossem a mesma
pessoa. Desta maneira, todo o capital utilizado em um negócio receberia os juros por seu
rendimento do negociante, ainda quando esse negociante fosse o mesmo proprietário do
capital – situação em que pagaria a si mesmo os juros –, o lucro seria o que restasse após esse
pagamento. Inverteu-se, portanto, a ordem das coisas: se para Ricardo o juro era um
componente secundário do lucro, para os neoclássicos o lucro passou a ser um resíduo dos
juros.
Alguns autores de formação neoclássica, como Blaug, sustentam que a assunção do
lugar que em Ricardo era do lucro –o lugar de elemento central da análise – pelo juro não tem
importância significativa, pois estes seriam correspondentes:
31
Assim, o juro seria um rendimento derivado do lucro, já que o ganho deste a partir do investimento de capital
poderia ou não ter sido financiado por empréstimo – neste último caso, haveria o pagamento de juros ao
emprestador (o que não ocorreria quando o investimento capitalista fosse realizado às custas do próprio
empresário).
30
[...] deve-se sublinhar que a teoria clássica dos rendimentos empresariais refere-se
ao que nós chamaríamos hoje a taxa de juro “pura”, ou seja, a taxa de juro sobre
obrigações perpétuas e sem risco. Isto não significa que os economistas clássicos
não tivessem conseguido distinguir entre a taxa de remuneração sobre o capital real
e a taxa de juro de mercado. Mas no equilíbrio de longo prazo, e na ausência de
incerteza, as duas taxas são iguais, e por conseqüência na sua teoria do valor e da
distribuição ignoram a diferença entre elas. [...] Não obstante, se continuamos a falar
acerca da teoria clássica do lucro, tal facto deve-se apenas a um antigo costume;
seria melhor se falássemos da teoria clássica do juro. (BLAUG, 1989, p. 143-4)
De fato, o que acontece é que, apesar destas diferenças de ênfase, a estrutura por detrás
da análise de cada um permaneceu praticamente inalterada32.
A economia clássica (considerando sob este nome o período da economia que começa
em Adam Smith e termina com a revolução marginalista de 1871), representada aqui por seu
mais conhecido teórico, David Ricardo, não se ocupou em formular uma teoria pura do
capital. Concebia o capital como um elemento de sua análise, mas não se interessava
especificamente pelo capital e sim pelos seus rendimentos.
Como se viu no capítulo anterior, a análise econômica clássica, que partia da divisão
dos fatores de produção entre terra, trabalho e capital, considerava o capital apenas como a
origem daquela parte do rendimento que lhe cabia, os juros. Explica Horwitz:
Com a tripartição das fontes de riqueza entre terra, trabalho e capital, os rendimentos
foram divididos entre renda, salários e juro. A teoria econômica clássica se dedicou
largamente a explicar as condições em que cada um desses três grupos (donos de
terras, trabalhadores e capitalistas) receberiam maior ou menor parte do total dos
rendimentos. (HORWITZ, 2003, p. 42, tradução nossa)33
32
Por trás da diferenças entre a consideração do lucro e do juro, permaneceu a idéia de que é nos rendimentos
dos fatores de produção que residia a importância do tema do capital. Também não fez muita diferença a
remoção da teoria clássica do valor da análise neoclássica, já que permaneceu nesta a consideração retrospectiva
do capital.
33
With the tripartite division of the sources of wealth into land, labor, and capital, so was income divided into
rent, wages, and interest. Much of classical economics was devoted to explaining the conditions under which
each of the three groups (landowners, laborers, and capitalists) would get smaller or larger shares of total
income.
31
34
Economists’ conception of capital changed with the marginalist revolution. Neoclassicists such as John Bates
Clark wedded the theory of capital to the new theory of distribution. Clark (along with others) had developed the
marginal productivity theory of distribution, which allowed economics to explain the income of any factor of
production by aplying marginalist analysis to its productivity. The income of a factor was equal to the value of
its marginal contribution to total product. Now land, labor, and capital were united under one theoretical
umbrella.
35
[...] it would be natural, perhaps, to treat it as a homogeneous fund.
32
Por ter sido Böhm-Bawerk, em certa medida, integrante da escola austríaca e ter
publicado uma obra unicamente dedicada ao tema do capital (algo incomum entre os
neoclássicos) com certas referências à teoria desenvolvida por Menger, estabeleceu-se, em
algum grau, uma identificação do termo “teoria austríaca do capital” com a teoria de Böhm-
Bawerk. Esta identificação foi reforçada, ainda, pelo fato de ter sido a teoria em questão
objeto de gigantesca discussão entre os economistas do final do século XIX e início do século
XX – principalmente a respeito de seu “período médio de produção”36.
A identificação (do termo teoria austríaca do capital à obra de Böhm-Bawerk) tem
dois problemas. O primeiro é a impossibilidade que ela cria de que se reconheça todo o ciclo
de desenvolvimento posterior da teoria do capital dentro da escola austríaca como teorias
austríacas do capital – assim, enquanto se considera a teoria de Böhm-Bawerk como a única e
máxima representação da teoria do capital da escola austríaca, deve-se ignorar as teorizações
sobre o capital de Hayek (que, aliás, representam grande parcela de sua obra total) na primeira
metade do século XX, a obra de Lachmann nos anos 1950 e a mesmo os recentes
desenvolvimentos de Lewin. O segundo problema é a baixa adequação do nome, já que,
apesar de produzida por um integrante da escola austríaca, a obra de Böhm-Bawerk guarda
muito mais semelhanças com as teorias do capital neoclássicas do que com as idéias que se
desenvolveram mais tarde dentro da tradição austríaca e que de certo modo já estavam
implícitas em Menger.
A primeira semelhança está no fato da teoria do capital de Böhm-Bawerk se constituir
como uma teoria do juro, assim como as teorias do capital de Ricardo, Jevons, Marshall e
Walras. O capital que Böhm-Bawerk concebe é um capital que proverá rendimentos em
função do tempo que permanecer investido. A preocupação com os rendimentos de capital –
aos quais o autor chama juros – é a mesma que se encontra nos clássicos e neoclássicos. O
juro de Böhm-Bawerk é aquele mesmo juro que se identifica ao rendimento quase-automático
do capital da teoria neoclássica.
A teoria do juro de Böhm-Bawerk não é neoclássica apenas na intenção que tem de
explicar o juro, mas também no conteúdo final desta explicação, conforme atesta Blaug, ao
comentar esta teoria:
Na verdade, veremos que, por fim, Böhm-Bawerk produz uma teoria do juro
idêntica à doutrina clássica do fundo de salários, diferenciando-se apenas porque
36
Sobre esta contradição – que não compete a este trabalho analisar –, ver Cohen (2008).
33
agora a duração do período de produção é variável e não uma constante técnica dada
(BLAUG, 1990, p. 261).
37
Na obra de Blaug a “teoria austríaca do capital” é claramente identificada unicamente à teoria de Böhm-
Bawerk. A constatação deste fato pode ser observada apenas olhando-se o sumário da obra, cujo capítulo sobre a
teoria austríaca contém apenas comentários à obra de Böhm-Bawerk.
38
[...] ‘a complex of produced means of production’. This definition enabled him to distinguish capital from
labor and from natural resources such as land. The plutological heritage of classical economics is clearly at work
here. In addition, the objectivism of classical value theory seems reflected in viewing capital in terms of the way
in which it was produced (i.e., a backward-looking conception) rather than the way or ways it might be used (i.e.,
a forward-looking conception that sees it as part of a entrepreneurial plan).
34
etapas que compreendem os bens de ordens superiores à primeira), que Menger havia
descrito. Este elemento de sua teoria, que difere substancialmente de toda a escola neoclássica
e nos impede de considerá-lo propriamente um economista 'neoclássico', servirá para manter a
o fio histórico da teoria austríaca do capital, cujos fundamentos ressoarão em Hayek e
servirão para a construção da teoria de Lachmann.
39
Conforme afirmou em entrevista (1978).
40
Conforme afirmou em entrevista citada por White (2007, p. xxxv).
41
[...] the total stock of the non-permanent factors of production.
42
Utilizar-se-á aqui a definição de bem de Menger que incorpora, além dos próprios bens físicos, também
serviços prestados por homens ou por outros bens.
36
exceto os permanentes43 no sentido estrito44, podem vir a ser considerados capital (HAYEK,
2009, p. 56).
Lachmann (1976), porém, apesar de concordar com ela em parte, critica a definição de
Hayek, afirmando que a conceituação deste, por se destinar (como ferramenta analítica) a uma
análise do comportamento do capital em equilíbrio45, dá importância excessiva à função do
capital de prover uma renda constante:
Não estamos interessados naquele longo período que deve passar antes que a
torrente de renda dos recursos não-permanentes seque, mas na série de curtos
períodos durante os quais os recursos são trocados de um uso para outro, e nas
repercussões destas trocas. As causas e repercussões destas trocas são mais ou
menos as mesmas, sejam os recursos permanentes ou não (exceto para recursos de
duração muito pequena) (LACHMANN, 1976, p. 12, tradução nossa)46.
43
Aqui Hayek exclui do conceito de capital os bens que, mesmo produzidos pelo homem, sejam permanentes (e
a distinção continua de pé mesmo não havendo exemplos).
44
O próprio conceito de permanente pode ser aplicado com diferenças de grau. Mas Hayek, apesar de não se
dedicar extensamente a este ponto, afirma que pode-se considerar como permanente o que o agente estiver
considerando em seu uso do bem – o que tem um limite máximo: a duração infinita e ininterrompível do bem.
45
A obra a que se está referindo aqui, The pure theory of capital (2009), trata deliberadamente das condições e
problemas da existência do capital em situações de equilíbrio estático e dinâmico, daí a observação de
Lachmann. Apesar de Hayek estar notadamente interessado no desequilíbrio, como se nota na crítica da análise
neoclássica apresentada nos primeiros capítulos, a construção teórica de uma teoria do capital em equilíbrio foi
realizada com o objetivo de criar uma referência para análise de situações de desequilíbrio e identificação de
seus problemas – não existentes no equilíbrio, mas expostos na análise (WHITE, 2007, p. xvi-xvii).
46
We are not interested in that long period which must elapse before the income-stream from non-permanent
resources dries up, but in the series of short periods during which resources are shifted from one use to another,
and in the repercussions of such shifts. The causes and repercussions of these shifts are more or less the same,
whether the resources shifted are permanent or not (except for very short-lived resources).
47
[...] (heterogeneous) stock of material resources.
37
Hayek não chega a estabelecer um conceito formal de juro, mas diferenciar o juro
“real” do monetário. A taxa de juro real, então, para Hayek:
Não é um preço pago por uma coisa particular, mas uma taxa de diferenças entre os
preços que atravessa todo a estrutura de preços. Na medida em que a taxa monetária
de juros interessa, nossa taxa de juros é apenas um dos fatores que ajudam a
determiná-la (HAYEK, 2009, p. 353, itálico nosso, tradução nossa)48.
48
It is not a price paid for any particular thing, but a rate of differences between prices which pervades the
whole price structure. In so far as the money rate of interest is concerned, our rate of interest is merely one of the
factors which helps to determine it.
49
The rate of interest is the overall rate of exchange of present for future goods. It is thus an intertemporal
exchange rate.
38
A maioria dos atos individuais de investimento deve ser vista como meros elos em
uma corrente que deve ser completada se suas partes forem servir à função para as
quais foram planejadas, mesmo que a corrente consista de atos separados e
sucessivos de empreendedores diferentes (HAYEK, 1975, p. 75, tradução nossa)51.
50
Nearly all the output of the very next moment will already be in existence in the form of intermediate, semi-
finished products or in the form of durable goods which will continue to render services for some time to come.
51
Most individual acts of investment must be regarded (...) as mere links in a chain which has to be completed if
its parts are to serve the function for which they were intended, even though the chain consists of separate and
successive acts of different entrepreneurs.
39
52
Lachmann considered the notion of a capital stock (which made sense in an equilibrium context) to be
untenable and unhelpful in a disequilibrium world.
40
momento, elaborando planos de produção que podem ou não ser executados posteriormente,
com mais ou menos sucesso. Esses planos envolvem, no curso de sua execução, determinadas
combinações de capital (LACHMANN, 1976, p. 4) compostas por bens de capital com
diferentes funções. O objeto da teoria de Lachmann é a lógica que rege a formação e a
desintegração destas combinações e o produto da combinação das combinações de capital: a
estrutura do capital.
Para Lachmann (1976), portanto, existem combinações de capital que são fruto de um
plano de produção de algum agente. Essas combinações são escolhidas de acordo com a idéia
que o agente planejador tem de qual a aplicação daqueles bens trará maior lucro. Segundo o
autor, não interessa se originalmente o agente possui um montante em dinheiro ou só o
próprio recurso físico, ele o utilizará (ou adquirirá os bens necessários) para o fim mais
rentável que puder, se puder. Do fato de que esses bens são heterogêneos e tem um número
limitado de usos é que emerge a questão econômica fundamental da abordagem do capital
desta teoria austríaca.
Lachmann (1976, p. 2) fala da múltipla especificidade dos bens de capital. Cada bem
tem um número limitado de usos e, com cada um deles, pode-se encaixar em uma
determinada combinação de capital. Um navio, por exemplo, pode transportar tanto uma carga
de carvão quanto um uma carga de bananas, um prédio pode funcionar como uma tecelagem
quanto como uma fábrica de brinquedos (LACHMANN, 1976, p. 58).
Cada bem de capital está, a cada momento, devotado ao que naquelas circunstâncias
parece ser seu ‘melhor’, isto é, seu uso mais lucrativo. A palavra ‘melhor’ indica
uma posição em uma escala de possibilidades alternativas. Uma mudança nas
circunstâncias mudará aquela posição. Uma mudança inesperada poderá abrir novas
possibilidades de uso e provocar uma possível alteração do ‘melhor’ uso de ontem
para um uso ainda melhor. Ou pode provocar uma alteração do ‘melhor uso
presente’ para o ‘segundo melhor’. Então, não será surpresa se descobrirmos que a
cada momento alguns bens de capital duráveis não estão sendo usados para os
propósitos para os quais foram originalmente projetados. Esses novos usos podem,
do ponto de vista dos proprietários dos bens de capital, ser ‘melhores’ ou ‘piores’,
mais ou menos lucrativos que os usos originais. Em cada caso a mudança no uso
41
significará que o plano original no qual o bem de capital deveria executar uma
função se perdeu. (LACHMANN, 1976, p. 3, tradução nossa)53
53
Each capital good is, at every moment, devoted to what in the circumstances apears to its owner to be its 'best',
i.e. its most profitable use. The word 'best’ indicates a position on a scale of alternative possibilities. Changing
circumstances will change that position. Unexpected change may open up new possibilities of use, and make
possible a switch from yesterday's 'best' to an even better use. Or, it may compel a switch from 'present best' to
'second best' use. Hence, we cannot be surprised to find that at each moment some durable capital goods are not
being used for the purposes for which they were originally designed. These new uses may, from the point of
view of the owners of the capital goods, be 'better' or 'worse', more or less profitable than the original ones. In
each case the change in use means that the original plan in which the capital good was meant to play its part has
gone astray.
54
Lachmann assume que podem haver mudanças no plano mesmo sem desintegração da combinação de capital.
Por exemplo: um mesmo navio pode, com os mesmos instrumentos de sempre, ser deslocado do transporte de
carvão para o transporte de bananas.
42
1976, p. 36, tradução nossa)55. Algumas vezes, afirma o autor, a divisão de trabalho, o capital
antigo e as mudanças no conhecimento podem se reforçar mutuamente, “mas muitas vezes
eles se compensam como, por exemplo, quando mudar o conhecimento tecnológico torna
redundantes habilidades ou equipamento específicos” (LACHMANN, 1976, p. 37, tradução
nossa)56. O autor afirma ainda que a falácia mais escandalosa é que identifica ‘investimento
líquido’ ao progresso ignorando totalmente que uma boa parte do capital investido terá seu
valor reduzido a zero muito antes do período de depreciação planejado.
Cada recurso tem um número de usos possíveis. O melhor uso vai depende, a cada
instante, de um número de circunstâncias, por exemplo, os preços relativos dos
insumos e dos produtos. O dono de um recurso de capital, para chegar a uma decisão
sobre seu uso, deve comparar os preços, presentes e esperados, dos vários tipos de
produto que seu recurso pode gerar com os salários (presentes e futuros) dos vários
tipos de trabalho que poderiam produzi-los. (LACHMANN, 1976, p. 41, tradução
nossa)57
Os bens de capital não podem, porém, produzir nada sozinhos, eles requerem recursos
complementares. A elaboração de um plano de produção leva em conta os diferentes58 bens de
capital que têm funções diferentes e por isto se complementam e são necessários à sua
realização. Se um desses bens envolvidos no plano parar de funcionar, todo o plano se perde –
55
The path of economic progress is strewn with the wreckage of failures.
56
[...] but often they offset each other as, for instance, when changing technical knowlege makes specific skills
or specific equipment redundant.
57
Every resource has a number of possible uses. The best use will, in each instance, depend on a number of
circumstances, for instance, the relative prices of input and output. The owner of a capital resource will thus, in
arriving at a decision about its use, have to compare the prices, present and expected, of the various kinds of
output it could produce, with the wages, present and expected, of the various types of labour that could produce
it.
58
Em outra passagem, Lachmann (1976, p. 53) afirma que mesmo bens fisicamente iguais executam funções
diferentes em um plano e dá o exemplo de uma construção feita por de pedras idênticas: a princípio elas são
iguais, mas quando a construção vai tomando forma, vê-se que algumas formam o piso, outras sustentam o teto
e que as debaixo sustentam as de cima, não ocorrendo o contrário.
43
ao contrário do que poderia prever uma noção homogênea do capital, dentro da qual todos os
bens de capital são encarados como substitutos entre si.
Paralelamente ao atributo da complementaridade que os bens podem ganhar em um
plano, há também o atributo da substitutibilidade. Um bem se torna substituto em relação ao
outro na medida em que pode desempenhar a mesma função deste em um plano de produção,
seja ele fisicamente igual ou não. O mesmo bem pode ser substituto e complementar a outro
dependendo da situação. Lachmann exemplifica da seguinte maneira:
Suponha, por exemplo, que uma loja tem quatro furgões de entrega, fisicamente
indistinguíveis, cada um deles faz entregas em uma região da cidade. Eles são
complementares ou substitutos? Evidentemente, no momento em que o plano de
produção é elaborado eles são perfeitos substitutos para cada outro. Mas assim que o
plano é posto em prática eles se tornam complementos. Agora se um deles falha,
todo plano de produção para a cidade falha. (LACHMANN, 1976, p. 56, tradução
nossa) 59
59
Supose, for instance, that a store has four delivery vans, physically completely alike, each of which delivers
goods in one quarter of the town. Are they complements or substitutes? Evidently, at the moment at which the
production plan is made they are perfect substitutes for each other. But once the plan is set in motion they are
turned into complements. If now one of them breaks down, the production plan for the whole town breaks down.
60
The first type of complementarity is brought about directly by entrepreneurial action. The making and revision
of such plans is the typical function of the entrepreneur. (...) Our second type of complementarity is, if at all,
brought about indirectly by the market, viz. by the interplay of mostly inconsistent entrepreneurial plans.
44
61
Coincident expectations about the quantities and qualities of goods which will pass from one person's
possession into another's will in effect co-ordinate all these different plans into one single plan, although this
"plan" will not exist in any one mind. It can only be constructed.
45
Em uma economia de mercado (...) preços não são meramente relações de troca
entre mercadorias e serviços, mas elos num sistema de comunicação econômica.
Através das mudanças de preços o conhecimento é transmitido de um canto de
qualquer mercado para o resto do sistema. Em cada mercado compradores e
vendedores, variando suas propostas e ofertas, sinalizam aos outros a necessidade de
ação. Compradores aprendem sobre suas oportunidades crescendo ou diminuindo,
vendedores têm notícia da necessidade de ajustamento. Nesta maneira cada mudança
econômica tem sua repercussão em todo o mercado. Suponha que uma firma de
engenharia encontra um método para substituir um metal mais barato por um mais
caro em um de seus produtos. O preço mais barato do metal até então utilizado
informará os produtores que eles devem procurar por outras saídas, o preço mais alto
do novo metal pede aos seus produtores que aumentem a oferta. Se o preço dos
produtos de engenharia não se reduz, os altos lucros realizados dirão aos
competidores potenciais onde está a oportunidade; se o preço se reduz o público fica
sabendo da nova oportunidade. Analogicamente podemos rastrear os efeitos disto
em fatores complementares e produtos competidores. Podemos então concluir que o
conhecimento transmitido pelo sistema de preços a mudança econômica tende, em
geral, a originar expectativas autoconsistentes. (LACHMANN, 1976, p. 62, tradução
nossa)62
62
In a market economy (...) prices are not merely exchange ratios between commodities and services but links in
a market-wide system of economic communications. Through price changes knowledge is transmitted from any
corner of any market to the rest of the system. On each market buyers and sellers, by varying their bids and
offers, signal to each other the need for action. Buyers learn about their oportunities growing or shrinking, sellers
receive notice of the need for adjustment. In this way every economic change has its market-wide repercussions.
Supose that an engineering firm finds a method of substituting a cheaper metal for a more expensive one in one
of its products. The lower price of the metal thus far used will notify producers that they must look for other
outlets, the higher price of the new metal asks its producers to increase suply. If the price of the engineering
product is not reduced, high profits made will tell potential competitors where their oportunity lies; if price is
reduced the public comes to know of its new oportunity. Similarly we can trace the effect on complementary
factors and competing products. We may thus conclude that via knowledge transmitted through the price system
economic change tends, in general, to give rise to expectations consistent with itself.
46
nos preços quando essa mudança é de certa magnitude que pode ser considerada como
representativa de uma mudança real e não como flutuações inofensivas e freqüentes, e o fato
da tal magnitude não ser uniforme acaba criando grandes descompassos entre os ajustamentos
dos planos de produção –; além desses problemas de transmissão, ainda há, quando a
transmissão é completada, o problema da interpretação dos dados transmitidos pelas
mudanças de preço pelos agentes.
Em substância, porém, o sistema de preços continua sendo o responsável pela
ordenação do mercado. Lewin (1997, p. 8), examinando a obra de Lachmann, explica que isto
se dá através da punição dos planos de produção originais que se adequarem menos às
mudanças (e eventual desintegração de suas combinações de capital) e pela premiação dos
que se adequarem.
Conforme a explicação deste mesmo autor, esta avaliação do mercado se manifesta na
reavaliação do capital (ganhos e perdas de capital) e nas mudanças nos saldos de caixa e é,
assim, uma importante força ordenadora da estrutura do capital (LEWIN, 1997, p. 8).
Segundo Lewin (1997), as avaliações do capital se refletem nos ativos financeiros associados
à firma: “Os ativos financeiros (por exemplo, títulos de dívida e ações) formam uma
superestrutura sobre os ativos de capital da companhia e constituem sua estrutura de ativos”
(LEWIN, 1997, p. 8, tradução nossa). O valor desses ativos – ou o que seus negociadores
acreditam ser o seu valor – que é revelado em mercados financeiros ajuda a disseminar
informação e a ajustar as expectativas dos agentes. Um mercado de ações exibe um balanço
diário das expectativas dos agentes quanto a uma empresa (suas combinações de capital) e
suas perspectivas de lucro. Atua, portanto, no time dos estabilizadores, assim como os
mercados futuros, que contribuem para a explicitação das expectativas dos agentes e assim
atuam no sentido de as trazerem à consistência (LACHMANN, 1976, p. 67-68).
63
Given that we live in a world where the arrival of the unknown in terms of the technological is almost,
paradoxally, to be expected, some flexibility may be built into the plan to accommodate unexpected changes.
64
It takes a lot of faith in the abilities and integrity of the government agents involved to imagine that no
sacrifice in entrepreneurial discovery is involved.
48
5 CONCLUSÃO
I. Esta monografia teve o intuito de apresentar a teoria austríaca do capital, desde sua
origem, na classificação de Menger dos bens por ordens de acordo com sua distância do
consumo final, até a formulação de Lachmann, que incorporou à análise econômica a idéia de
combinações de capital que se ajustam umas às outras guiadas pelo sistema de preços e são
destruídas pela mudança imprevista, em um panorama que incluía também as teorias do
capital da escola clássica e neoclássica. Foram abordadas as semelhanças entre Ricardo e os
neoclássicos e chegou-se à conclusão de que estes, no que diz respeito ao tratamento do
capital, não romperam a tradição daquele; mas não se deixou de notar também que há
diferenças, como quanto ao significado do juro neoclássico e o lucro ricardiano.
Apresentou-se a crítica da escola austríaca, que, sem encontrar um erro, mas apenas
uma simplificação justificável (para os seus propósitos) na abordagem neoclássica, julgou-a
apenas insuficiente e justificou o desenvolvimento de sua teoria alternativa como sendo
necessária para a compreensão dos fenômenos mais complexos, e não por isto menos
importantes, que ocorrem por dentro do estoque de capital enquanto este era visto apenas por
fora pela escola neoclássica.
II. É importante notar que alguns fundamentos da teoria austríaca do capital foram
captados por economistas clássicos ou neoclássicos. Ricardo, por exemplo, descreve a
produção como uma sucessão de etapas ordenadas temporalmente, com diferentes bens de
capital sendo utilizados em cada uma delas:
Também Walras, ao diferenciar os bens de capital dos serviços que estes prestam
(como ele chama, “capitais” e “rendimentos”); ao afirmar que alguns bens podem ser tanto
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