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ISSN 2318-0811
Volume III, Número 1 (Edição 5) Janeiro-Junho 2015: 295-298
O
tema do empreendedorismo ocupa ses o estudo da ação humana compreende, ne-
um lugar de destaque nas teorizações cessariamente, o estudo da função empreen-
da Escola Austríaca de Economia, em dedora. Ubiratan Iorio, por sua vez, enfatiza
contraste com outras correntes teóricas con- que as ações empreendedoras participam
temporâneas dedicadas ao estudo dos fenô- da dinâmica das informações na sociedade,
menos econômicos. Enquanto essas outras cor- por meio da qual os agentes coordenam suas
rentes costumam tratar do empreendedorismo ações levando em conta as necessidades e de-
como um tema secundário e restrito ao cam- sejos dos outros agentes, possibilitando assim
po das aplicações, isto é, como uma subárea a vida social. Em ambientes sociais desprovi-
da Economia Aplicada ou da Administração, dos da função empreendedora, ou nos quais
a concepção austríaca do mercado como pro- o empreendedorismo enfrenta obstáculos
cesso (ao invés da ênfase em uma sequência severos, tanto a coordenação social quanto o
temporal discreta de equilíbrios) coloca a ação cálculo econômico estarão ausentes, resultan-
empreendedora no centro da análise econômi- do em deficiências institucionais que podem
ca. Para os austríacos, sem um entendimento acarretar restrições à liberdade e ineficiência
mais detalhado do empreendedorismo, não é econômica2. O empreendedor é, portanto, um
possível compreender adequadamente como agente promotor não somente do progresso
a economia funciona. Ademais, esforços de econômico, mas também do desenvolvimen-
teorização que negligenciam o empreendedo- to social.
rismo mostram-se incompletos e incapazes de Assim, tanto por razões teóricas (com-
dar conta da evolução da vida social. As ações preender o funcionamento dos processos eco-
empreendedoras em um ambiente de incer- nômicos) quanto por motivações de ordem
teza, afinal de contas, participam ativamente prática e normativa (como atingir uma socie-
dos mecanismos que possibilitam a emergên- dade livre e próspera), somos necessariamen-
cia dinâmica das instituições que, por sua vez, te colocados diante do tema do empreendedo-
aumentam a previsibilidade e ordenam as re- rismo e da função empreendedora. E, dentre
lações entre indivíduos na sociedade. os diversos autores austríacos que se debru-
De acordo com Ludwig von Mises (1881- çaram sobre esse tema, pode-se argumentar
1973) – um dos autores mais representativos que Israel Kirzner ocupa um lugar central. O
da tradição austríaca – a função empreende- estudo das obras de Kirzner, portanto, é in-
dora não é exclusividade de apenas algumas dispensável para quem se interessa pelo tema
pessoas: “é inerente a todas as ações e é exercida do empreendedorismo sob a perspectiva aus-
por todos os agentes”1. Dessa maneira, para Mi- tríaca.
1
MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado 2
IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento:
de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises A Escola Austríaca de Economia. São Paulo: Instituto
Brasil, 2010. p. 309. Ludwig von Mises Brasil, 2011. p. 114.
O Empreendedorismo de Israel Kirzner
296 Adriano Gianturco
Infelizmente, poucas obras de Kirzner põe as principais razões que colocam Kirzner
encontram-se disponíveis em português. Ade- como um dos protagonistas da tradição aus-
mais, trata-se de um autor sofisticado, cujos tríaca, ao lado de autores como Carl Menger
trabalhos compreendem tecnicalidades que (1840-1921), Ludwig von Mises, F. A. Hayek e
exigem do leitor uma certa intimidade com Murray Rothbard (1926-1995).
temas de economia austríaca e de empreende- O segundo capítulo, intitulado “Em-
dorismo. A carência de um livro introdutório preendedorismo. Kirznerianos e Rothbardia-
adequado para apresentar, ao público brasi- nos”, é dedicado ao debate austríaco em torno
leiro, as principais ideias de Kirzner a respei- do empreendedorismo. Gianturco delineia as
to do empreendedorismo motivou o Instituto principais características da posição kirzneria-
Ludwig von Mises Brasil a publicar uma tra- na e rothbardiana a respeito do tema, que con-
dução do livro L’imprenditorialitá di Israel Kirz- formam um debate iniciado a partir das apre-
ner. L’etica della proprietá e la moralitá del profitto ciações críticas de Murray Rothbard, Henry
nel libero mercato imperfetto, de Adriano Gian- Hazlitt (1894-1993) e Percy Greaves (1906-
turco Gulisano, publicado originalmente pela 1984) ao livro Competição e Atividade Empre-
editora Rubbettino em 2012. sarial, publicado por Israel Kirzner em 19733.
O livro de Adriano Gianturco Gulisano, Tanto kirznerianos quanto rothbardianos rei-
professor de ciência política do IBMEC de Belo vindicam a afinidade para com as ideias de
Horizonte, mostra-se apropriado para sanar Mises e estabelecem uma divergência entre
essa carência. Publicado no Brasil com o título o empreendedor puro kirzneriano (que não
de O Empreendedorismo de Israel Kirzner, trata- possui recursos e não é dono dos meios de
-se de uma obra de caráter introdutório, porém produção) e o empreendedor-capitalista ro-
não superficial, que coloca o leitor brasileiro thbardiano, que é necessariamente proprietá-
em contato não somente com as elaborações rio de recursos econômicos. Kirzner introduz
teóricas de Kirzner a respeito do empreende- o conceito de empreendedor puro por razões
dorismo, mas também com o debate austría- analíticas, isto é, trata-se de um tipo ideal
co sobre o tema, com a delicada relação entre no sentido weberiano. Já autores como Mur-
empreendedorismo e política e com algumas ray Rothbard, Henry Hazlitt, Percy Greaves,
questões de natureza ética a respeito da pro- Guido Hülsmann, Peter Klein, Nicolai Foss e
priedade, do lucro e da ação empreendedora. Joseph Salerno consideram que o empreen-
No primeiro capítulo, “A Figura de Is- dedor é sempre necessariamente capitalista,
rael Kirzner”, o autor proporciona uma apre- sendo impossível isolar o empreendedorismo
sentação biográfica e acadêmica de Kirzner, puro do investidor e proprietário de capital.
enfatizando seu lugar de importância no re- A abordagem de Gianturco enfatiza – corre-
nascimento da Escola Austríaca nos anos 1970 tamente, a meu ver – que o cerne da questão
e introduzindo suas principais contribuições não é a possibilidade ou não de separar o em-
teóricas – i.e., a concepção de empreendedo- preendedorismo da função capitalista, mas
rismo como estado de alerta às oportunidades sim “definir corretamente o status ontológico des-
de lucro ainda não percebidas e a elaboração ta função”4. Para essa finalidade, a introdução
de uma via teórica que conjuga as perspecti-
vas tanto de Ludwig von Mises quanto de F.
A. Hayek (1899-1992). Ainda nesse capítulo,
3
KIRZNER, Israel. Competition and Entrepreneurship.
Chicago: University of Chicago Press, 1973. Publicado
Gianturco discute a importância de Kirzner
em português como KIRZNER, Israel. Competição e
no debate contemporâneo, tanto no que diz Atividade Empresarial. São Paulo: Instituto Ludwig
respeito aos estudos do empreendedorismo von Mises Brasil, 2012.
quanto pelo impacto da sua obra para o de- 4
GIANTURCO, Adriano. O Empreendedorismo de
senvolvimento da Escola Austríaca na con- Israel Kirzner. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises
temporaneidade. Dessa maneira, o autor ex- Brasil, 2014. p. 33.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Claudio A. Téllez-Zepeda 297
de abstrações úteis para processo analítico não não entram em contradição nem com a paixão
é um problema, mesmo que tais abstrações do cientista para transmitir os resultados de
não correspondam à realidade. É óbvio que, suas pesquisas, nem com a obrigação moral
em termos estritos, o empreendedor puro de que o impele a chamar a atenção do público
Kirzner não existe. Contudo, dado que todo a respeito de propostas que podem acarre-
e qualquer modelo analítico necessariamente tar resultados perniciosos para a sociedade.
distorce a realidade que pretende descrever, é Gianturco prossegue discutindo a relação en-
falacioso criticar uma abstração analítica de- tre empreendedorismo e políticas públicas, a
vido à sua falta de realismo5. Tais críticas, na partir da percepção de que políticas regulado-
verdade, são exemplos do que Alfred N. Whi- ras que prejudicam a atividade empreende-
tehead (1861-1947) chamou de “Falácia da dora terão efeitos negativos sobre o mercado
Concretude Deslocada”6, isto é, o erro de to- e a sociedade. Na última seção do terceiro ca-
mar o abstrato pelo concreto. Deve-se avaliar pítulo, Gianturco elabora uma discussão inte-
uma construção teórica não pela sua precisão ressante e original a respeito da possibilidade
na correspondência com a realidade, mas sim de uma versão austríaca da Teoria da Escolha
pela sua capacidade de elucidar o fenômeno Pública, na qual o empreendedorismo de Is-
sob investigação. rael Kirzner desempenharia um papel de des-
O terceiro capítulo do livro do professor taque.
Adriano Gianturco, “Política”, trata de ques- Após apresentar e discutir os principais
tões de natureza política. Após apresentar di- aspectos das contribuições teóricas de Israel
versas críticas que ideólogos socialistas desfe- Kirzner para o estudo do empreendedorismo
rem contra o liberalismo e a economia de mer- e suas implicações para o tema das políticas
cado, o autor expõe as respostas de Kirzner públicas, os últimos dois capítulos do livro
a essas críticas. É no mínimo instrutivo veri- trazem reflexões de caráter moral em torno
ficar como Kirzner aponta detalhadamente de temas tais como o direito à propriedade,
as incoerências lógicas e os erros defendidos a descoberta de oportunidades por parte de
pelos proponentes do socialismo. No mesmo agentes sociais, a natureza e moralidade do
capítulo, Gianturco discute as apreciações crí- lucro e o papel da intuição empreendedora
ticas de Kirzner a respeito da ideia de justiça diante do acaso. O quarto capítulo – “Ética e
distributiva e do próprio conceito de justiça Cultura” – termina com uma análise detalha-
social, a partir das quais pode-se concluir que da do posicionamento crítico de Kirzner com
as imperfeições morais presentes no capitalis- respeito à mentalidade antiliberal. No quinto
mo podem ser mitigadas dentro da própria e último capítulo, “Conclusões”, Gianturco
estrutura do capitalismo, e que a introdução sustenta, a partir do posicionamento de Kirz-
de um planejador social com o propósito de ner, a necessidade de empreender uma defe-
sanar essas supostas deficiências não poderia, sa não defensiva do liberalismo, enfatizando
a esse respeito, fazer melhor do que o merca- que o embasamento ético do liberalismo (e
do. A seguir, Gianturco discute o posiciona- do empreendedorismo) impele a uma atitude
mento de Kirzner com relação à neutralidade enérgica e afirmativa em prol do liberalismo
e objetividade da ciência (que Kirzner consi- e da legitimidade do lucro. Nas palavras do
dera possível e desejável), características que autor: “A mensagem de Kirzner, então, é a que o
liberalismo é moralmente positivo. Não porque não
faz mal, mas porque faz só o bem”7.
5
HEDSTRÖM, Peter; SWEDBERG, Richard. Rational
Choice, Empirical Research, and the Sociological É notável que o tema do empreendedo-
Tradition. European Sociological Review, vol. 12, n. 2 rismo – e sua relação com o lucro – suscita
(1996): 127-146. p. 130.
WHITEHEAD, Alfred North. Science and the Modern
6 7
GIANTURCO. O Empreendedorismo de Israel
World. New York: Pelican Mentor Books, 1948. p. 52. Kirzner. p. 134-135.
O Empreendedorismo de Israel Kirzner
298 Adriano Gianturco
Claudio A. Téllez-Zepeda
Bacharel em Matemática e Doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Assistente de Edição e membro do Conselho Editorial do periódico
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Membro do Conselho Acadêmico do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP)
claudio@mises.org.br