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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia

ISSN 2318-0811
Volume III, Número 1 (Edição 5) Janeiro-Junho 2015: 295-298

O Empreendedorismo de Israel Kirzner


Adriano Gianturco
Prefácio de Ubiratan Jorge Iorio
Tradução de Isadora Darwich e Thaiz Batista
São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2014. (147 páginas)
ISBN: 978-85-8119-097-6

O
tema do empreendedorismo ocupa ses o estudo da ação humana compreende, ne-
um lugar de destaque nas teorizações cessariamente, o estudo da função empreen-
da Escola Austríaca de Economia, em dedora. Ubiratan Iorio, por sua vez, enfatiza
contraste com outras correntes teóricas con- que as ações empreendedoras participam
temporâneas dedicadas ao estudo dos fenô- da dinâmica das informações na sociedade,
menos econômicos. Enquanto essas outras cor- por meio da qual os agentes coordenam suas
rentes costumam tratar do empreendedorismo ações levando em conta as necessidades e de-
como um tema secundário e restrito ao cam- sejos dos outros agentes, possibilitando assim
po das aplicações, isto é, como uma subárea a vida social. Em ambientes sociais desprovi-
da Economia Aplicada ou da Administração, dos da função empreendedora, ou nos quais
a concepção austríaca do mercado como pro- o empreendedorismo enfrenta obstáculos
cesso (ao invés da ênfase em uma sequência severos, tanto a coordenação social quanto o
temporal discreta de equilíbrios) coloca a ação cálculo econômico estarão ausentes, resultan-
empreendedora no centro da análise econômi- do em deficiências institucionais que podem
ca. Para os austríacos, sem um entendimento acarretar restrições à liberdade e ineficiência
mais detalhado do empreendedorismo, não é econômica2. O empreendedor é, portanto, um
possível compreender adequadamente como agente promotor não somente do progresso
a economia funciona. Ademais, esforços de econômico, mas também do desenvolvimen-
teorização que negligenciam o empreendedo- to social.
rismo mostram-se incompletos e incapazes de Assim, tanto por razões teóricas (com-
dar conta da evolução da vida social. As ações preender o funcionamento dos processos eco-
empreendedoras em um ambiente de incer- nômicos) quanto por motivações de ordem
teza, afinal de contas, participam ativamente prática e normativa (como atingir uma socie-
dos mecanismos que possibilitam a emergên- dade livre e próspera), somos necessariamen-
cia dinâmica das instituições que, por sua vez, te colocados diante do tema do empreendedo-
aumentam a previsibilidade e ordenam as re- rismo e da função empreendedora. E, dentre
lações entre indivíduos na sociedade. os diversos autores austríacos que se debru-
De acordo com Ludwig von Mises (1881- çaram sobre esse tema, pode-se argumentar
1973) – um dos autores mais representativos que Israel Kirzner ocupa um lugar central. O
da tradição austríaca – a função empreende- estudo das obras de Kirzner, portanto, é in-
dora não é exclusividade de apenas algumas dispensável para quem se interessa pelo tema
pessoas: “é inerente a todas as ações e é exercida do empreendedorismo sob a perspectiva aus-
por todos os agentes”1. Dessa maneira, para Mi- tríaca.

1
MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado 2
IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento:
de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises A Escola Austríaca de Economia. São Paulo: Instituto
Brasil, 2010. p. 309. Ludwig von Mises Brasil, 2011. p. 114.
O Empreendedorismo de Israel Kirzner
296 Adriano Gianturco

Infelizmente, poucas obras de Kirzner põe as principais razões que colocam Kirzner
encontram-se disponíveis em português. Ade- como um dos protagonistas da tradição aus-
mais, trata-se de um autor sofisticado, cujos tríaca, ao lado de autores como Carl Menger
trabalhos compreendem tecnicalidades que (1840-1921), Ludwig von Mises, F. A. Hayek e
exigem do leitor uma certa intimidade com Murray Rothbard (1926-1995).
temas de economia austríaca e de empreende- O segundo capítulo, intitulado “Em-
dorismo. A carência de um livro introdutório preendedorismo. Kirznerianos e Rothbardia-
adequado para apresentar, ao público brasi- nos”, é dedicado ao debate austríaco em torno
leiro, as principais ideias de Kirzner a respei- do empreendedorismo. Gianturco delineia as
to do empreendedorismo motivou o Instituto principais características da posição kirzneria-
Ludwig von Mises Brasil a publicar uma tra- na e rothbardiana a respeito do tema, que con-
dução do livro L’imprenditorialitá di Israel Kirz- formam um debate iniciado a partir das apre-
ner. L’etica della proprietá e la moralitá del profitto ciações críticas de Murray Rothbard, Henry
nel libero mercato imperfetto, de Adriano Gian- Hazlitt (1894-1993) e Percy Greaves (1906-
turco Gulisano, publicado originalmente pela 1984) ao livro Competição e Atividade Empre-
editora Rubbettino em 2012. sarial, publicado por Israel Kirzner em 19733.
O livro de Adriano Gianturco Gulisano, Tanto kirznerianos quanto rothbardianos rei-
professor de ciência política do IBMEC de Belo vindicam a afinidade para com as ideias de
Horizonte, mostra-se apropriado para sanar Mises e estabelecem uma divergência entre
essa carência. Publicado no Brasil com o título o empreendedor puro kirzneriano (que não
de O Empreendedorismo de Israel Kirzner, trata- possui recursos e não é dono dos meios de
-se de uma obra de caráter introdutório, porém produção) e o empreendedor-capitalista ro-
não superficial, que coloca o leitor brasileiro thbardiano, que é necessariamente proprietá-
em contato não somente com as elaborações rio de recursos econômicos. Kirzner introduz
teóricas de Kirzner a respeito do empreende- o conceito de empreendedor puro por razões
dorismo, mas também com o debate austría- analíticas, isto é, trata-se de um tipo ideal
co sobre o tema, com a delicada relação entre no sentido weberiano. Já autores como Mur-
empreendedorismo e política e com algumas ray Rothbard, Henry Hazlitt, Percy Greaves,
questões de natureza ética a respeito da pro- Guido Hülsmann, Peter Klein, Nicolai Foss e
priedade, do lucro e da ação empreendedora. Joseph Salerno consideram que o empreen-
No primeiro capítulo, “A Figura de Is- dedor é sempre necessariamente capitalista,
rael Kirzner”, o autor proporciona uma apre- sendo impossível isolar o empreendedorismo
sentação biográfica e acadêmica de Kirzner, puro do investidor e proprietário de capital.
enfatizando seu lugar de importância no re- A abordagem de Gianturco enfatiza – corre-
nascimento da Escola Austríaca nos anos 1970 tamente, a meu ver – que o cerne da questão
e introduzindo suas principais contribuições não é a possibilidade ou não de separar o em-
teóricas – i.e., a concepção de empreendedo- preendedorismo da função capitalista, mas
rismo como estado de alerta às oportunidades sim “definir corretamente o status ontológico des-
de lucro ainda não percebidas e a elaboração ta função”4. Para essa finalidade, a introdução
de uma via teórica que conjuga as perspecti-
vas tanto de Ludwig von Mises quanto de F.
A. Hayek (1899-1992). Ainda nesse capítulo,
3
KIRZNER, Israel. Competition and Entrepreneurship.
Chicago: University of Chicago Press, 1973. Publicado
Gianturco discute a importância de Kirzner
em português como KIRZNER, Israel. Competição e
no debate contemporâneo, tanto no que diz Atividade Empresarial. São Paulo: Instituto Ludwig
respeito aos estudos do empreendedorismo von Mises Brasil, 2012.
quanto pelo impacto da sua obra para o de- 4
GIANTURCO, Adriano. O Empreendedorismo de
senvolvimento da Escola Austríaca na con- Israel Kirzner. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises
temporaneidade. Dessa maneira, o autor ex- Brasil, 2014. p. 33.
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Claudio A. Téllez-Zepeda 297

de abstrações úteis para processo analítico não não entram em contradição nem com a paixão
é um problema, mesmo que tais abstrações do cientista para transmitir os resultados de
não correspondam à realidade. É óbvio que, suas pesquisas, nem com a obrigação moral
em termos estritos, o empreendedor puro de que o impele a chamar a atenção do público
Kirzner não existe. Contudo, dado que todo a respeito de propostas que podem acarre-
e qualquer modelo analítico necessariamente tar resultados perniciosos para a sociedade.
distorce a realidade que pretende descrever, é Gianturco prossegue discutindo a relação en-
falacioso criticar uma abstração analítica de- tre empreendedorismo e políticas públicas, a
vido à sua falta de realismo5. Tais críticas, na partir da percepção de que políticas regulado-
verdade, são exemplos do que Alfred N. Whi- ras que prejudicam a atividade empreende-
tehead (1861-1947) chamou de “Falácia da dora terão efeitos negativos sobre o mercado
Concretude Deslocada”6, isto é, o erro de to- e a sociedade. Na última seção do terceiro ca-
mar o abstrato pelo concreto. Deve-se avaliar pítulo, Gianturco elabora uma discussão inte-
uma construção teórica não pela sua precisão ressante e original a respeito da possibilidade
na correspondência com a realidade, mas sim de uma versão austríaca da Teoria da Escolha
pela sua capacidade de elucidar o fenômeno Pública, na qual o empreendedorismo de Is-
sob investigação. rael Kirzner desempenharia um papel de des-
O terceiro capítulo do livro do professor taque.
Adriano Gianturco, “Política”, trata de ques- Após apresentar e discutir os principais
tões de natureza política. Após apresentar di- aspectos das contribuições teóricas de Israel
versas críticas que ideólogos socialistas desfe- Kirzner para o estudo do empreendedorismo
rem contra o liberalismo e a economia de mer- e suas implicações para o tema das políticas
cado, o autor expõe as respostas de Kirzner públicas, os últimos dois capítulos do livro
a essas críticas. É no mínimo instrutivo veri- trazem reflexões de caráter moral em torno
ficar como Kirzner aponta detalhadamente de temas tais como o direito à propriedade,
as incoerências lógicas e os erros defendidos a descoberta de oportunidades por parte de
pelos proponentes do socialismo. No mesmo agentes sociais, a natureza e moralidade do
capítulo, Gianturco discute as apreciações crí- lucro e o papel da intuição empreendedora
ticas de Kirzner a respeito da ideia de justiça diante do acaso. O quarto capítulo – “Ética e
distributiva e do próprio conceito de justiça Cultura” – termina com uma análise detalha-
social, a partir das quais pode-se concluir que da do posicionamento crítico de Kirzner com
as imperfeições morais presentes no capitalis- respeito à mentalidade antiliberal. No quinto
mo podem ser mitigadas dentro da própria e último capítulo, “Conclusões”, Gianturco
estrutura do capitalismo, e que a introdução sustenta, a partir do posicionamento de Kirz-
de um planejador social com o propósito de ner, a necessidade de empreender uma defe-
sanar essas supostas deficiências não poderia, sa não defensiva do liberalismo, enfatizando
a esse respeito, fazer melhor do que o merca- que o embasamento ético do liberalismo (e
do. A seguir, Gianturco discute o posiciona- do empreendedorismo) impele a uma atitude
mento de Kirzner com relação à neutralidade enérgica e afirmativa em prol do liberalismo
e objetividade da ciência (que Kirzner consi- e da legitimidade do lucro. Nas palavras do
dera possível e desejável), características que autor: “A mensagem de Kirzner, então, é a que o
liberalismo é moralmente positivo. Não porque não
faz mal, mas porque faz só o bem”7.
5
HEDSTRÖM, Peter; SWEDBERG, Richard. Rational
Choice, Empirical Research, and the Sociological É notável que o tema do empreendedo-
Tradition. European Sociological Review, vol. 12, n. 2 rismo – e sua relação com o lucro – suscita
(1996): 127-146. p. 130.
WHITEHEAD, Alfred North. Science and the Modern
6 7
GIANTURCO. O Empreendedorismo de Israel
World. New York: Pelican Mentor Books, 1948. p. 52. Kirzner. p. 134-135.
O Empreendedorismo de Israel Kirzner
298 Adriano Gianturco

divisões na concepção moral da sociedade. tes da tradição austríaca, Gianturco levanta


Ao equilibrar, em seu livro, uma exposição reflexões que contribuem para aprimorar
dos aspectos teóricos da obra de Israel Kir- nossa percepção acerca da delicada relação
zner com uma discussão dos aspectos éti- entre economia, política e moral. Trata-se
cos pertinentes à possibilidade de progresso de uma leitura obrigatória e enriquecedora
econômico e prosperidade social, o professor não somente para quem pretende iniciar-se
Adriano Gianturco preenche uma lacuna im- no estudo do empreendedorismo sob a pers-
portante nas discussões contemporâneas. As- pectiva austríaca ou para quem deseja uma
sim, além de oferecer para o público nacional introdução ao pensamento de Israel Kirzner,
uma excelente apresentação do pensamento mas também para críticos e simpatizantes da
de Kirzner, um dos autores mais importan- posição austríaca.

Claudio A. Téllez-Zepeda
Bacharel em Matemática e Doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
Assistente de Edição e membro do Conselho Editorial do periódico
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Membro do Conselho Acadêmico do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP)
claudio@mises.org.br

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