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Tempos vividos na Escola Militar: memórias de

um aluno (1897-1900)
The vivid times in the Naval School: memories of the a
student (1897-1900)
Maria Teresa Santos Cunha
* Doutora em Educação/História e Filosofia pela USP; Profa.
do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC
e-mail: mariatsc@gmail.com

Resumo
Este texto tem por objetivo problematizar, a partir da História da Educação, a importância de estudos sobre
memória escolar, através da análise dos escritos de Lucas Alexandre Boiteux (1880-1966), historiador
catarinense. Entre janeiro e junho de 1955, ele escreveu, no “Jornal do Comércio/RJ”, uma série de oito (8)
artigos intitulados Bordejos sobre meio século de Marinha, em que narrou suas memórias de estudante
na Escola Naval do Rio de Janeiro. A partir desse material busca-se aprofundar conhecimentos sobre a
cultura escolar da época que se fazem portadores/ produtores de sentido para a História da Educação
Brasileira.
Palavras-chave
História da Educação. Cultura Escolar. Memória.

Abstract
The principal aim of this paper is the problematic related to the Cultural History of Education, the importance
of studies about school memory, through the analysis of the writing of Lucas Alexandre Boiteux (1880-
1966), who was a catarinense historian. Between January and June in the year 1955, he wrote in “Jornal do
Comércio/RJ” one serie of 8 articles entitled Bordejos sobre meio século de Marinha, where he tells his
memories as a student at the Naval School of Rio de Janeiro. From that material. on there is a search in
order to deefen the notions of the school culture of the epoch, that make themselves porters/producers of
sense for the History of Education.
Key words
History of Education. School Culture. Memory.

Série-Estudos - Periódico do Mestrado em Educação da UCDB.


Campo Grande-MS, n. 25, p. 57-66, jan./jun. 2008.
Ao escrever faz-se uma escolha como ao chegar ao posto de Contra-Almirante, situa-
pintar. Escolhem-se palavras, frases, par-
ção alcançada no ano de 1951. Celebrizou-
tes de diálogos, como se escolhem cores
ou se determina a extensão e a direção se como autor de numerosas obras sobre
das linhas. (JOSÉ SARAMAGO/ Manual de a História de Santa Catarina, pertenceu a
Pintura e Caligrafia) diversas entidades culturais como o Insti-
O papel em branco, para muitos, tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Ins-
pode causar pânico. Macular a página, pelo tituto Histórico e Geográfico de Santa Cata-
ato da escrita é também um ato de cora- rina e a Academia Catarinense de Letras,
gem, uma forma de exposição pública de notabilizando-se também como historiador
idéias, uma ação imprevisível, já que muitas de temas navais com vasta produção histo-
vezes é iniciada sem final previsto. A escrita riográfica. Desde 1911, passou a residir na
é, igualmente, uma das maneiras de estar cidade do Rio de Janeiro e, na então Capital
no mundo, uma forma de registro e refúgio Federal se fez articulista constante do “Jor-
do “eu” no mundo. Escreve-se pelos mais nal do Comércio”, no qual publicou, entre
variados motivos; conversar, seduzir, infor- 1911 e 1959, cerca de 200 artigos2, princi-
mar, registrar, agradecer, pedir, segredar, con- palmente sobre história naval brasileira e
tar-se, contar da vida pelas e com as letras. história de Santa Catarina. Entre os meses
Lucas Alexandre Boiteux, o protago- de janeiro a junho de 1955, Lucas Alexan-
nista deste estudo, pode ser considerado dre Boiteux escreveu, no referido jornal, uma
como um homem de letras1. Um homem série de oito (8) artigos intitulados Bordejos
que viveu a escrita como uma necessidade sobre meio século de Marinha, nos quais
vital haja vista a quantidade e a variedade apresentou suas memórias de estudante
de textos escritos (datilografados, manus- na Escola Naval, situada na Ilha das Enxa-
critos, muitos publicados outros ainda iné- das, no Rio de Janeiro, no período entre
ditos) que nos legou e que hoje vêm sendo 1897 e 1900. Essas memórias foram escri-
cuidadosamente estudados em seu acervo tas e publicadas cerca de 60 anos após
privado, de posse do Instituto Histórico e terem sido vivenciadas e nos permitem con-
Geográfico do Estado de Santa Catarina, siderar o texto memorialístico aqui apresen-
localizado na cidade de Florianópolis e ago- tado como uma construção que comporta
ra investigado nessa pesquisa. Mas, quem imagens e referências, uma representação
é este protagonista, apenas anunciado? do passado, uma prática de escrita que
Lucas Alexandre Boiteux nasceu na pode ser considerada como “um dos meios
cidade de Nova Trento (Santa Catarina), em para alcançar não só o tempo que passa,
1880, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, mas também uma representação estável
em 1966. Descendia pelo lado paterno, de de si” (HÉBRARD, 2000, p. 30). Assim, as
suíços e franceses e, pelo lado materno, era análises das práticas de escritura memoria-
de origem açoriana. Ingressou na Escola lista apontam para uma interpretação pers-
Naval, no Rio de Janeiro, em 1897, e seguiu pectivada do passado, ao mesmo tempo
a carreira militar na Marinha do Brasil até em que ampliam as fontes para o estudo

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da cultura escolar do período, consideran- A. Boiteux tentou superar a fragilidade do
do que presente e, ao mesmo tempo, arrojar-se
A escola é um lugar de memória. Quando contraditoriamente para fora de si e assim,
o olhar pode atravessar a espessura do a nós, seus leitores do século XXI, é permi-
tempo, distingue vestígios reconhecíveis tido pensar sobre uma “história dos dese-
de sua história [...] O inventário e a evolu-
jos (não) consumados, dos possíveis (não)
ção desses espaços, práticas e técnicas
constituem um dos mais interessantes realizados, das idéias (não) consumidas”
objetos da história e da etnografia escolar (SEVCENKO,1989, p. 21).
[...] A memória dos alunos foi assim uma
memória tecida em função de perspecti- Sobre o título / Bordejos...
vas. (SOUZA, 2000, p. 7-8)
O trabalho com esse material auto- A série de escritos Bordejos sobre
biográfico tornou possível buscar evidências meio de século de Marinha, que constitui o
de como o autor viu e representou aspectos material principal de apoio para a constru-
de sua formação escolar e, mais amplamen- ção desse texto, era sempre publicada às
te, examinar a relação entre o escrito e me- quintas-feiras, em uma periodicidade que
mória. Nos relatos feitos é possível encon- variava de duas a três semanas no “Jornal
trar algumas práticas cotidianas que carac- do Comércio” do Rio de Janeiro, entre janei-
terizavam uma cultura escolar de época que ro e junho de 1955.
engloba toda “a vida escolar; fatos, idéias, Considerando-se o título como uma
mentes, corpos, objetos e condutas, modos primeira cerimônia de apropriação da lei-
de pensar, dizer e fazer” (VIÑAO FRAGO, tura, um vir-a-ser do texto, (CUNHA,1999,
1995, p. 69). A natureza desses documen- p. 49) é bastante significativo a presença
tos publicizados pelo jornal implica entendê- da palavra Bordejos titular o conjunto de
los como discursos que formalizam práti- textos memorialistas sobre sua vida escolar.
cas e veiculam representações sobre elas A escolha deste termo – marítimo, por exce-
(CHARTIER, 2005, p. 54). lência – sinaliza um teor para seus escritos.
Neste texto, a atenção estará centra- O verbo bordejar significa navegar
da nas descrições feitas pelo autor que tra- mudando com freqüência o rumo, segundo
tam do primeiro dia de aula – experiência a direção do vento. Dessa forma, ele parece
de ruptura, transformação da criança/ado- sinalizar que suas memórias não obedece-
lescente em adulto – nas reminiscências da rão, necessariamente, uma direção fixa, elas
rede de amizade bem como aspectos das poderão vagar, daí não encontrar-se nessa
aulas e dos professores, em torno dos quais escrita uma direção cronológica precisa.
é tecida a memória do autor. São marcas, Embora o primeiro texto comece com a lo-
rupturas, mudanças que despertam a ne- calização temporal: “Rompera anuviado o
cessidade de escrita para complementação ano de 1897, que seria o de provação da
da experiência vivida. Pode-se pensar que, turma de Aspirantes de segunda classe, ma-
ao escrever sobre sua vida escolar, Lucas triculados no Curso prévio da nossa Escola

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Naval” 3, não se encontra nos demais tex- ços disponíveis corpo administrativo, docen-
tos essa preocupação em seguir uma cro- te e discente) recorda, com detalhes, aconte-
nologia precisa dos fatos. Homem do mar, cimentos, nomes, características físicas e in-
viajante, seus textos, quer de caráter histó- telectuais de professores e colegas, preocu-
rico, quer de caráter mais literário estão sem- pando-se em apontar a trajetória e indican-
pre a ele referenciados, como se pôde per- do o rumo que cada um dos citados tomou
ceber pelo uso abundante de metáforas na vida. Nestas memórias é possível encon-
marítimas presentes em seus escritos: são trar relatos da dieta alimentar servida aos
dias anuviados, noites de proa, amigos de alunos da Escola Naval; organização do cur-
leme, horizontes políticos, por exemplo. Ele rículo escolar; maneiras (por vezes hilárias
escreve de uma perspectiva minuciosamen- e picarescas!) como eram ministradas as au-
te descritiva como se estivesse posicionado las; o trote aos calouros; os apelidos dados;
em mirantes, colinas, varandas, mastros ou constrangimentos impingidos aos aspiran-
faróis, tendo como horizonte o mar. tes. Na grande maioria das vezes, seu relato
Como toda escrita memorialista ela descontraído cruza a representação porme-
é lacunar, comporta o esquecimento; é norizada com fatos pitorescos que envol-
polifônica e pressupõe uma intuição que vem os personagens, todos seus colegas
opera escolhas e seleção. Ela foi desenca- naquela instituição docente e militar.
deada de um lugar e se situa no presente Neste texto, em especial, três aspec-
(a escrita se faz pela memória do presente tos serão mais enfocados: as instalações
e do ausente) daí ser uma representação físicas/arquitetônicas do prédio escolar na
escrita daquilo que foi vivido, rememorado visão do memorialista, o “impacto” da che-
pelo autor cerca de cinqüenta e oito anos gada à escola através das lembranças de
depois de vivenciadas. Bordejando, Lucas seu primeiro de aula na Escola Naval e o a
A. Boiteux traz registros de um tempo, uma descrição do trote aos calouros, densamen-
forma de ampliar e redimensionar o espaço te relatado e recriminado por Boiteux, que
escolar, agora lembrado com certo exercí- sinaliza para a cultura escolar daquele pe-
cio de alteridade que cria possibilidades de ríodo. Privilegiar tais aspectos objetiva co-
“de poder descrever o outro sem que ele locar em cena histórias de formação escolar/
nos desalojasse necessariamente da nossa memórias escolares ainda pouco conside-
gramática e da nossa terminologia, nos for- radas nos estudos educacionais, segundo
çasse a sair da nossa língua com o risco de LOPES E GALVÃO (2000):
ficarmos, talvez por muito tempo, sem pa- Temas como a cultura e o cotidiano esco-
lavras” (GAGNEBIN, 1992, p. 18). lares, a organização e o funcionamento
Apesar do tempo passado, o Almi- interno das escolas, a construção do co-
nhecimento escolar, o currículo e as dis-
rante Boiteux parece ter sido dono de uma
ciplinas, os agentes educacionais (profes-
memória prodigiosa. Além de fazer uma sores, professoras, mas também os alunos
descrição física da Escola Naval (localização e alunas), a imprensa pedagógica, os livros
geográfica precisa, arquitetura escolar, espa- didáticos, etc. têm sido crescentemente

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estudados e valorizados. Desloca-se, cres- soluções seguras para os problemas hu-
centemente, o interesse dos pesquisado- manos encontrava ali um campo de difu-
res da investigação das idéias e da legis- são preparado por um ensino tradicional-
lação educacionais para as práticas, os usos mente ligado aos conhecimentos científi-
e as apropriações dos diferentes objetos cos que estiveram na base de moderni-
educacionais (p. 40). zação das guerras e, conseqüentemente
É importante destacar que é nesta na formação militar, desde o século XVIII.
perspectiva que o presente estudo se anco- Segundo o minucioso histórico tra-
ra, ou seja, encontra, na singularidade de çado pelo próprio Lucas em seus Bordejos,
um escrito aparentemente “ordinário”, um a Ilha das Enxadas, onde estava situada a
discurso, uma memória, uma história a con- Escola Naval:
tar. Importa considerar também que o acer- abrigou uma casa para recolher pólvora,
vo privado desse historiador catarinense, uma enfermaria destinada às guarnições
da divisão naval inglesa, um hospital de
alvo maior desse Projeto de Pesquisa, vem lázaros e uma propriedade particular que
abrindo muitas outras possibilidades de foi vendida para o Ministério da Fazenda,
estudo4. A série Bordejos, por exemplo, antes em 1871. Esta propriedade foi transferida,
de ser publicada no Jornal do Comércio, em 1883, para o Ministério da Marinha,
aparece dispersa em cadernos escolares que ali instalou a Escola Naval.5

que compõem o arquivo pessoal do histo- A educação militar era uma tradição
riador. Escrita em letra manuscrita, muito na família de Lucas Alexandre Boiteux, cujo
corrigida e alterada à mão, parece ter sofri- irmão também havia freqüentado a Escola
do significativas mudanças antes de sua Naval. Seus filhos recebiam nomes de gran-
divulgação pública. des figuras militares, em geral comandantes,
O Prédio escolar nas memórias do (Nelson, Norton, Yan, Bayard) e dois deles
ex-aluno Lucas: também seguiram carreira militar. O próprio
Desde o início do século XIX, com a Lucas mereceu o epíteto de historiador naval
criação da Academia Real Militar (1810), a e tem obras sobre a participação de Santa
preocupação com a formação militar foi Catarina em guerras, com descrições primo-
assumindo um aspecto mais sistemático e rosas das estratégias militares, o que o qua-
foram se constituindo até finais do século lifica como um detalhista na escrita de ce-
XIX centros de difusão importantes do en- nas. Esta característica está impregnada em
sino científico no Brasil. A este respeito ex- suas memórias com a utilização de constru-
pressou-se, em alentado estudo, a historia- ções frasais longas, adjetivação abundante,
vocabulário rebuscado e certa tendência lau-
dora da educação Claúdia Maria Costa
datória. Isto pode ser observado tanto na
ALVES (2002, p. 126):
descrição da arquitetura do prédio da Escola
A Escola Militar sintetizou, melhor do que
Naval quanto nos relatos da vida cotidiana
qualquer outra instituição, determinados
traços do panorama intelectual do período da escola com seus colegas e professores.
final do Império e inicial da República. A Sobre o local do prédio escolar é pos-
crença de que a ciência poderia apresentar sível destacar lembranças como: “Poucas

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árvores, um belo tamarineiro, duas ou três zando para uma “possibilidade de homo-
figueiras bravas, algumas nogueiras, cerca- geneização dos alunos a partir da gradua-
das de assentos de cimento, e uma meia ção do ensino”(FARIA FILHO, 2000, p. 33).
dúzia de coqueiros da Bahia, davam som-
bra e alegria à saudosa Ilha 6. O primeiro dia de Escola e o trote
O alojamento dos novos alunos-as- nos calouros
pirantes foi descrito como um “amplo salão O dia da chegada à nova Escola, a
situado a leste do edifício [...] compartimento preparação para esta chegada, a monta-
com janelas gradeadas [...] portas gradea- gem do enxoval, os primeiros contatos com
das7, janelas rasgadas para o quadrante os futuros colegas são ritos de iniciação e
leste e o de norte, grossas paredes e os in- no fluxo das memórias têm destaque espe-
defectíveis mafuás ao gosto artístico dos cial. Lucas Boiteux escreve muito sobre este
diretores do estabelecimento”8. A mesa do período; ouso ter a impressão que poderia
professor, as cadeiras alinhadas, as salas ser uma forma de “exorcizá-lo”, haja vista
de aulas calorentas, os corredores mal ilumi- uma sensação de desamparo que a leitura
nados, os horários delimitados, a separação dessa parte das memórias causa. Faz lem-
dos alunos em classes por faixa etária, e brar a historiadora que alerta sobre este
até o galinheiro, o chiqueiro e a pequena momento, “a alegria desaparecia diante de
horta constantemente depredadas, faziam qualquer coisa grave e terrível que se criava,
parte da própria arquitetura escolar e cons- porém, assim que se cruzava o portão da
tituem monumentos com significações dis- escola. O desamparo se instalava no fundo
ciplinares, por onde não se podia andar des- da alma de cada um, diante da suspeita
preocupadamente e, sobre elas, reafirma o de algo terrível que ainda não se sabia, mas
memorialista: “As construções existentes, em que se viria logo a saber: a transformação
1897, que retenho ainda de memória e da criança em adulto” (SOUZA, 2000, p. 8-
poderia delas fazer um tosco levantamento, 9). Aqui se pode encontrar a transforma-
seriam com algumas remodelações, as pri- ção gradativa do adolescente em adulto.
mitivas. e os dias foram passando”9. Sobre este período as memórias são
Todos estes elementos descritos estão caudalosas. Vão desde a expectativa da
a demonstrar que havia uma organização publicação dos nomes dos selecionados
escolar objetivada na descrição dos móveis nos jornais da cidade “cujas relações as
e visível na sua disposição em sala de aula; folhas diárias faziam questão de publicar e
na racionalização do tempo expressa pela nós de comprovarmos” 10, à compra e en-
fixação e controle dos horários de aula e comenda dos enxovais e, muito especial-
da divisão dos espaços. O relato, enfim, mente, as reações sobre esta experiência
coloca em destaque algumas características significante que definia a entrada na Escola
que expressavam uma “essência” moderna Naval, cujo terror era o “trote aos calouros”.
da instituição educativa notadamente a Segundo Boiteux, a turma de aspi-
divisão dos alunos por faixa etária sinali- rantes de 1897 era composta de 86 jovens

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qualificados como débeis criaturinhas que desaparecer após o cruzamento da porta
vinham lutar pela vida11 e que recebeu o gradeada do alojamento. De todo o con-
apelido de ‘Briosa’. Sobre a faina do prepa- junto de textos (totalizando seis artigos
ro dos enxovais e do uniforme, que antece- publicados), o autor dedica três deles a falar
dia a entrada naquele ambiente escolar e sobre o cotidiano com os colegas na escola
era condição obrigatória para ser admiti- e, muito especialmente, relatando minucio-
do, o autor conta: samente a prática do trote aos calouros, em
[...] os alfaiates Zieglier e Riecken se afa- que os alunos mais velhos submetiam os
digavam. A fábrica de malas Marinho, da mais novos a sevícias, rasteiras incivilida-
rua Sete de Setembro, não tinha mãos a des, remoques chulos, brutezas sádicas,
medir no preparo de duas malas retangu- ofensas, humilhações, tudo relatado como
lares. Tínhamos que providenciar a com-
pra de uma cama de ferro, um colchão,
práticas crudelíssimas e desumanas, nas
um travesseiro de capim ordinário, uma suas próprias palavras. É a parte do texto
resma de papel almaço e um botijão de memorialístico mais destacado, o que per-
tinta azul “Sardinha” para o expediente da mite pensar como isso deixou marcas a
Secretaria. 12 ponto de ser rememorado cinqüenta e oito
A espera para o início efetivo das ati- anos após ter acontecido. Segundo o au-
vidades escolares recebe do memorialista tor, “o trote ou aporrinhação (assim chama-
expressões de júbilo, expectativa e desconfi- do na Escola Militar Naval) era admitido
ança expressas em termos como “nadáva- em todos os estabelecimentos de ensino
mos em contentamento”; “vibrávamos em superior, embora aceito com bastante re-
uníssono”; “estavam todos mais ou menos pugnância pelos bichos ou calouros, como
nervosos, para culminar com a viagem até é natural” 15. Ele registra em pormenores a
as dependências da Escola Naval onde “em- primeira surpresa desagradável ocorrida
barcaram todos, sobre as malas e a reboque logo no primeiro dia de aula, após o de-
de uma das lanchas a vapor do estabeleci- sembarque na Ilha das Enxadas e que foi
mento rumaram para a Ilha das Enxadas” 13. longamente relatada:
Após a chegada na Ilha das Enxa- Ao chegarmos no alojamento, amplo sa-
das, o autor apenas enumera, sem entrar em lão situado à leste do edifício, a fim de
maiores detalhes, a seqüência de atividades armarmos nossos leitos, sofremos grande
daquele momento: “Recebemos nesse 1º dia decepção;os veteranos iludindo a vigilân-
cia do pessoal de serviço, haviam dado
as instruções necessárias sobre a vida esco- um grande benefício em nossa bagagem,
lar: dependências do estabelecimento, limi- tinham desarticulado todas as camas,
tes de recreio, sala de estudos, alojamentos, amontoado ao léu nossos colchões e tra-
aulas, horários, ranchos, formaturas, revistas vesseiros e sacolejado copiosamente as
e outras ordens em vigor” 14. malas antes de empilhá-las a um canto.
Quando as abrimos para retirar lençóis,
Nas memórias de Boiteux, a alegria fronhas, toalhas e camisolões (os pijamas
inicial, a vibração conjunta pelo começo de ainda não tinham entrado em uso) sofre-
uma nova etapa da vida escolar parecia mos novo choque: tudo revolvido, frascos

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de dentifrício, da loção, de tinta derrama- duos se posicionarem de diferentes formas
dos, roupas brancas manchadas Verda- em relação a ela (SOUZA, 2000, p.30).
deiro desastre! Houve lamentos, pragas.
Para quem apelar?16
Ainda sobre o cotidiano escolar apa-
recem muitas outras descrições sobre a
Dando seqüência ao relato dos pri-
mesa empoeirada do professor, os profes-
meiros dias na escola e as cerimônias de
sores negligentes, os conteúdos ministrados
iniciação pelas quais o calouro deveria pas- e, ao final, a confissão de que a hierarquia
sar, conta o narrador: e a ordem comumente associadas às prá-
As primeiras noites dormidas na escola ticas do ensino militar devem ser relativiza-
foram de verdadeiro sobressalto. Os vetera-
nos invadiam furtiva e cautelosamente o
das, pois que “apesar de tratar-se de uma
dormitório dos calouros. Cometendo toda escola militarizada (...) a justiça era uma
sorte de diabruras e perversidades: viravam coisa que só existia ali no nome”.19
e trocavam as malas. Destrambelhavam No último artigo da série Bordejos20
as camas, pintavam a cara de uns, arreba- publicado no Jornal do Comércio, Lucas
tavam as cobertas de outro, aplicavam vi-
olentas palmadas aos que dormiam.17
A.Boiteux encerra suas lembranças escola-
res apontando para as trajetórias de seus
De certo modo, pode-se pensar que
colegas e é perceptível a nostalgia com que
este tipo de “socialização” realizada pela
o faz como a criar um passado com o qual
Escola poderia ter efeitos inesperados, uma
pudesse conviver:
vez que o próprio narrador finaliza esta
Nem todos, os 86 que éramos, logravam,
parte de suas memórias, admitindo que: infelizmente, a meta almejada. E pouco a
É um interessante tributo que paga a pouco a turma foi se despovoando me-
bisonhice de novato; é um processo de lancolicamente. Hoje, cinqüenta e oito anos
adaptação mais ou menos rápido ao am- volvidos, um terço ainda, rijo e forte à
biente escolar e de incorporação à turma. mercê dos céus, alonga a vista enevoada
Revela e define índoles, modalidades de por lágrimas esquivas, para o passado
temperamento, caracteres. Torna-se qua- remoto pejado de esperanças que se es-
se sempre, é bem verdade, a origem das vaecem, no sol-pôr da vida.
amizades, de indiferenças e também de
Há um tom melancólico em suas
incompatibilidades futuras, pois o trote
depende sobremaneira, do processo, da palavras finais, a escola habita a memória
habilidade de aplicá-lo e também da situ- e a memória se decanta nos lugares em
ação, no momento, e do temperamento e que vive e, para o historiador, isso funciona
da educação de quem o recebe.18 como um ponto de partida, um despertar,
Fazendo parte de uma cultura esco- uma esperança, uma possibilidade de no-
lar da época, o trote aos calouros criava vas leituras para inventar outros presentes.
situações de adesão e crítica e, de sua vio- É possível considerar que certa nos-
lência e parcialidade advinha o efeito de talgia por épocas passadas se explique pelo
fazer tanto os indivíduos internalizarem a fato de que, a distância, sempre projetem
cultura quanto torná-la objetiva; criava as- uma imagem já atualizada pelas vivências
sim possibilidades múltiplas de os indiví- posteriores aos fatos relatados. Os Bordejos

64 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...
se caracterizam como uma via importante Chartier demonstrou que os letrados foram carac-
para conhecer práticas e saberes escolares terizados como indivíduos voltados para o estudo, a
escrita, a leitura e a vida em gabinetes” (In: BASTOS,
pela via da memória de um homem de le- M.H.C; CUNHA M.T.S. e MIGNOT, A.C.V. Destinos das
tras. Com linguagem rebuscada, idílica e letras. História, Educação e Escrita Epistolar. Passo
certamente idealizada, Boiteux deixa con- Fundo: 2002. p. 218.)
firmação de sua existência, constrói uma 2
A obra historiográfica de Lucas Alexandre Boiteux,
imagem para si próprio e para os outros, publicada no Jornal do Comércio foi levantada por
Cunha, M.T.S. A produção historiográfica de Lucas
além de evidenciar aspectos da história da
Alexandre Boiteux no Jornal do Comércio do Rio de
educação já escolarizada nos finais do sé- Janeiro – 1911-1959. Dissertação (Mestrado em His-
culo XIX. tória) – UFSC, 1982.
As memórias oferecem novas e inte- 3
Bordejos sobre meio século de Marinha/ Jornal do
ressantes possibilidades para iluminar as- Comércio/ RJ, 16/1/1955.
4
O acervo está depositado no Instituto Histórico e
pectos da cultura escolar em que foram
Geográfico de Santa Catarina, em Florianópolis e
socializados futuros militares. As descrições nele encontram-se muitos documentos como, pas-
permitem reconhecer valores, crenças e vi- tas com artigos, bilhetes, recortes, anotações pessoais
sões de mundos singulares que contribuí- manuscritas em cadernetas, folhas avulsas, cartas
am para a formação escolar de um dado recebidas, além de um imenso acervo fotográfico
perfil profissional. Ao mesmo tempo, tais que já foi alvo de um trabalho, disponível em
www.imagensdeumpresente.udesc.br.
relatos alimentam o empenho de continuar 5
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
localizando, reunindo e selecionando docu- rinha. Jornal do Comércio: RJ, 16/1/1955.
mentos que ajudem a iluminar aspectos da 6
Idem.
educação escolarizada no Brasil e assim 7
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
buscar novas e outras indagações sobre a rinha. Jornal do Comércio. RJ, 30/1/1955.
8
Idem
vida, a escola, a vida na escola e a escola 9
Idem
em nossas vidas (MIGNOT, 2003). O cará- 10
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
ter efêmero (veiculadas em velhos jornais) rinha. Jornal do Comércio. RJ, 16/1/1955
e o desprestígio que tais escritas suscitam 11
Idem, 30/1/1955
12
(destinadas, quase sempre, ao fogo e/ou Idem
13
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
ao lixo) dificultam sua conservação e po-
rinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/2/1955.
dem explicar seu relativo esquecimento. Daí 14
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de
a importância do historiador em torná-las Marinha. Jornal do Comércio: RJ, 30/1/1955.
visíveis como expressão e como veículo de 15
Idem.
16
um tempo e um lugar social. Idem.
17
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
rinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/3/1955.
Notas 18
BOITEUX, L. A. Bordejos sobre meio século de
1
Estou tomando como referência o estudo de Giselle Marinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/2/1955.
19
Martins Venancio que, a partir de R. Chartier, afir- Idem.
20
ma “ao analisar como, durante o século XVII, al- BOITEUX, L. A. Bordejos sobre meio século de
guns intelectuais definiram os homens de letras, Marinha. Jornal do Comércio. RJ, 5/6/1955.

Série-Estudos... Campo Grande-MS, n. 25, p. 57-66, jan./jun. 2008. 65


Referências

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Recebido em 30 de abril de 2008.


Aprovado para publicação em 26 de maio de 2008.

66 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...

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