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um aluno (1897-1900)
The vivid times in the Naval School: memories of the a
student (1897-1900)
Maria Teresa Santos Cunha
* Doutora em Educação/História e Filosofia pela USP; Profa.
do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC
e-mail: mariatsc@gmail.com
Resumo
Este texto tem por objetivo problematizar, a partir da História da Educação, a importância de estudos sobre
memória escolar, através da análise dos escritos de Lucas Alexandre Boiteux (1880-1966), historiador
catarinense. Entre janeiro e junho de 1955, ele escreveu, no “Jornal do Comércio/RJ”, uma série de oito (8)
artigos intitulados Bordejos sobre meio século de Marinha, em que narrou suas memórias de estudante
na Escola Naval do Rio de Janeiro. A partir desse material busca-se aprofundar conhecimentos sobre a
cultura escolar da época que se fazem portadores/ produtores de sentido para a História da Educação
Brasileira.
Palavras-chave
História da Educação. Cultura Escolar. Memória.
Abstract
The principal aim of this paper is the problematic related to the Cultural History of Education, the importance
of studies about school memory, through the analysis of the writing of Lucas Alexandre Boiteux (1880-
1966), who was a catarinense historian. Between January and June in the year 1955, he wrote in “Jornal do
Comércio/RJ” one serie of 8 articles entitled Bordejos sobre meio século de Marinha, where he tells his
memories as a student at the Naval School of Rio de Janeiro. From that material. on there is a search in
order to deefen the notions of the school culture of the epoch, that make themselves porters/producers of
sense for the History of Education.
Key words
History of Education. School Culture. Memory.
58 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...
da cultura escolar do período, consideran- A. Boiteux tentou superar a fragilidade do
do que presente e, ao mesmo tempo, arrojar-se
A escola é um lugar de memória. Quando contraditoriamente para fora de si e assim,
o olhar pode atravessar a espessura do a nós, seus leitores do século XXI, é permi-
tempo, distingue vestígios reconhecíveis tido pensar sobre uma “história dos dese-
de sua história [...] O inventário e a evolu-
jos (não) consumados, dos possíveis (não)
ção desses espaços, práticas e técnicas
constituem um dos mais interessantes realizados, das idéias (não) consumidas”
objetos da história e da etnografia escolar (SEVCENKO,1989, p. 21).
[...] A memória dos alunos foi assim uma
memória tecida em função de perspecti- Sobre o título / Bordejos...
vas. (SOUZA, 2000, p. 7-8)
O trabalho com esse material auto- A série de escritos Bordejos sobre
biográfico tornou possível buscar evidências meio de século de Marinha, que constitui o
de como o autor viu e representou aspectos material principal de apoio para a constru-
de sua formação escolar e, mais amplamen- ção desse texto, era sempre publicada às
te, examinar a relação entre o escrito e me- quintas-feiras, em uma periodicidade que
mória. Nos relatos feitos é possível encon- variava de duas a três semanas no “Jornal
trar algumas práticas cotidianas que carac- do Comércio” do Rio de Janeiro, entre janei-
terizavam uma cultura escolar de época que ro e junho de 1955.
engloba toda “a vida escolar; fatos, idéias, Considerando-se o título como uma
mentes, corpos, objetos e condutas, modos primeira cerimônia de apropriação da lei-
de pensar, dizer e fazer” (VIÑAO FRAGO, tura, um vir-a-ser do texto, (CUNHA,1999,
1995, p. 69). A natureza desses documen- p. 49) é bastante significativo a presença
tos publicizados pelo jornal implica entendê- da palavra Bordejos titular o conjunto de
los como discursos que formalizam práti- textos memorialistas sobre sua vida escolar.
cas e veiculam representações sobre elas A escolha deste termo – marítimo, por exce-
(CHARTIER, 2005, p. 54). lência – sinaliza um teor para seus escritos.
Neste texto, a atenção estará centra- O verbo bordejar significa navegar
da nas descrições feitas pelo autor que tra- mudando com freqüência o rumo, segundo
tam do primeiro dia de aula – experiência a direção do vento. Dessa forma, ele parece
de ruptura, transformação da criança/ado- sinalizar que suas memórias não obedece-
lescente em adulto – nas reminiscências da rão, necessariamente, uma direção fixa, elas
rede de amizade bem como aspectos das poderão vagar, daí não encontrar-se nessa
aulas e dos professores, em torno dos quais escrita uma direção cronológica precisa.
é tecida a memória do autor. São marcas, Embora o primeiro texto comece com a lo-
rupturas, mudanças que despertam a ne- calização temporal: “Rompera anuviado o
cessidade de escrita para complementação ano de 1897, que seria o de provação da
da experiência vivida. Pode-se pensar que, turma de Aspirantes de segunda classe, ma-
ao escrever sobre sua vida escolar, Lucas triculados no Curso prévio da nossa Escola
60 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...
estudados e valorizados. Desloca-se, cres- soluções seguras para os problemas hu-
centemente, o interesse dos pesquisado- manos encontrava ali um campo de difu-
res da investigação das idéias e da legis- são preparado por um ensino tradicional-
lação educacionais para as práticas, os usos mente ligado aos conhecimentos científi-
e as apropriações dos diferentes objetos cos que estiveram na base de moderni-
educacionais (p. 40). zação das guerras e, conseqüentemente
É importante destacar que é nesta na formação militar, desde o século XVIII.
perspectiva que o presente estudo se anco- Segundo o minucioso histórico tra-
ra, ou seja, encontra, na singularidade de çado pelo próprio Lucas em seus Bordejos,
um escrito aparentemente “ordinário”, um a Ilha das Enxadas, onde estava situada a
discurso, uma memória, uma história a con- Escola Naval:
tar. Importa considerar também que o acer- abrigou uma casa para recolher pólvora,
vo privado desse historiador catarinense, uma enfermaria destinada às guarnições
da divisão naval inglesa, um hospital de
alvo maior desse Projeto de Pesquisa, vem lázaros e uma propriedade particular que
abrindo muitas outras possibilidades de foi vendida para o Ministério da Fazenda,
estudo4. A série Bordejos, por exemplo, antes em 1871. Esta propriedade foi transferida,
de ser publicada no Jornal do Comércio, em 1883, para o Ministério da Marinha,
aparece dispersa em cadernos escolares que ali instalou a Escola Naval.5
que compõem o arquivo pessoal do histo- A educação militar era uma tradição
riador. Escrita em letra manuscrita, muito na família de Lucas Alexandre Boiteux, cujo
corrigida e alterada à mão, parece ter sofri- irmão também havia freqüentado a Escola
do significativas mudanças antes de sua Naval. Seus filhos recebiam nomes de gran-
divulgação pública. des figuras militares, em geral comandantes,
O Prédio escolar nas memórias do (Nelson, Norton, Yan, Bayard) e dois deles
ex-aluno Lucas: também seguiram carreira militar. O próprio
Desde o início do século XIX, com a Lucas mereceu o epíteto de historiador naval
criação da Academia Real Militar (1810), a e tem obras sobre a participação de Santa
preocupação com a formação militar foi Catarina em guerras, com descrições primo-
assumindo um aspecto mais sistemático e rosas das estratégias militares, o que o qua-
foram se constituindo até finais do século lifica como um detalhista na escrita de ce-
XIX centros de difusão importantes do en- nas. Esta característica está impregnada em
sino científico no Brasil. A este respeito ex- suas memórias com a utilização de constru-
pressou-se, em alentado estudo, a historia- ções frasais longas, adjetivação abundante,
vocabulário rebuscado e certa tendência lau-
dora da educação Claúdia Maria Costa
datória. Isto pode ser observado tanto na
ALVES (2002, p. 126):
descrição da arquitetura do prédio da Escola
A Escola Militar sintetizou, melhor do que
Naval quanto nos relatos da vida cotidiana
qualquer outra instituição, determinados
traços do panorama intelectual do período da escola com seus colegas e professores.
final do Império e inicial da República. A Sobre o local do prédio escolar é pos-
crença de que a ciência poderia apresentar sível destacar lembranças como: “Poucas
62 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...
qualificados como débeis criaturinhas que desaparecer após o cruzamento da porta
vinham lutar pela vida11 e que recebeu o gradeada do alojamento. De todo o con-
apelido de ‘Briosa’. Sobre a faina do prepa- junto de textos (totalizando seis artigos
ro dos enxovais e do uniforme, que antece- publicados), o autor dedica três deles a falar
dia a entrada naquele ambiente escolar e sobre o cotidiano com os colegas na escola
era condição obrigatória para ser admiti- e, muito especialmente, relatando minucio-
do, o autor conta: samente a prática do trote aos calouros, em
[...] os alfaiates Zieglier e Riecken se afa- que os alunos mais velhos submetiam os
digavam. A fábrica de malas Marinho, da mais novos a sevícias, rasteiras incivilida-
rua Sete de Setembro, não tinha mãos a des, remoques chulos, brutezas sádicas,
medir no preparo de duas malas retangu- ofensas, humilhações, tudo relatado como
lares. Tínhamos que providenciar a com-
pra de uma cama de ferro, um colchão,
práticas crudelíssimas e desumanas, nas
um travesseiro de capim ordinário, uma suas próprias palavras. É a parte do texto
resma de papel almaço e um botijão de memorialístico mais destacado, o que per-
tinta azul “Sardinha” para o expediente da mite pensar como isso deixou marcas a
Secretaria. 12 ponto de ser rememorado cinqüenta e oito
A espera para o início efetivo das ati- anos após ter acontecido. Segundo o au-
vidades escolares recebe do memorialista tor, “o trote ou aporrinhação (assim chama-
expressões de júbilo, expectativa e desconfi- do na Escola Militar Naval) era admitido
ança expressas em termos como “nadáva- em todos os estabelecimentos de ensino
mos em contentamento”; “vibrávamos em superior, embora aceito com bastante re-
uníssono”; “estavam todos mais ou menos pugnância pelos bichos ou calouros, como
nervosos, para culminar com a viagem até é natural” 15. Ele registra em pormenores a
as dependências da Escola Naval onde “em- primeira surpresa desagradável ocorrida
barcaram todos, sobre as malas e a reboque logo no primeiro dia de aula, após o de-
de uma das lanchas a vapor do estabeleci- sembarque na Ilha das Enxadas e que foi
mento rumaram para a Ilha das Enxadas” 13. longamente relatada:
Após a chegada na Ilha das Enxa- Ao chegarmos no alojamento, amplo sa-
das, o autor apenas enumera, sem entrar em lão situado à leste do edifício, a fim de
maiores detalhes, a seqüência de atividades armarmos nossos leitos, sofremos grande
daquele momento: “Recebemos nesse 1º dia decepção;os veteranos iludindo a vigilân-
cia do pessoal de serviço, haviam dado
as instruções necessárias sobre a vida esco- um grande benefício em nossa bagagem,
lar: dependências do estabelecimento, limi- tinham desarticulado todas as camas,
tes de recreio, sala de estudos, alojamentos, amontoado ao léu nossos colchões e tra-
aulas, horários, ranchos, formaturas, revistas vesseiros e sacolejado copiosamente as
e outras ordens em vigor” 14. malas antes de empilhá-las a um canto.
Quando as abrimos para retirar lençóis,
Nas memórias de Boiteux, a alegria fronhas, toalhas e camisolões (os pijamas
inicial, a vibração conjunta pelo começo de ainda não tinham entrado em uso) sofre-
uma nova etapa da vida escolar parecia mos novo choque: tudo revolvido, frascos
64 Maria Teresa Santos CUNHA. Tempos vividos na escola Militar: memórias de...
se caracterizam como uma via importante Chartier demonstrou que os letrados foram carac-
para conhecer práticas e saberes escolares terizados como indivíduos voltados para o estudo, a
escrita, a leitura e a vida em gabinetes” (In: BASTOS,
pela via da memória de um homem de le- M.H.C; CUNHA M.T.S. e MIGNOT, A.C.V. Destinos das
tras. Com linguagem rebuscada, idílica e letras. História, Educação e Escrita Epistolar. Passo
certamente idealizada, Boiteux deixa con- Fundo: 2002. p. 218.)
firmação de sua existência, constrói uma 2
A obra historiográfica de Lucas Alexandre Boiteux,
imagem para si próprio e para os outros, publicada no Jornal do Comércio foi levantada por
Cunha, M.T.S. A produção historiográfica de Lucas
além de evidenciar aspectos da história da
Alexandre Boiteux no Jornal do Comércio do Rio de
educação já escolarizada nos finais do sé- Janeiro – 1911-1959. Dissertação (Mestrado em His-
culo XIX. tória) – UFSC, 1982.
As memórias oferecem novas e inte- 3
Bordejos sobre meio século de Marinha/ Jornal do
ressantes possibilidades para iluminar as- Comércio/ RJ, 16/1/1955.
4
O acervo está depositado no Instituto Histórico e
pectos da cultura escolar em que foram
Geográfico de Santa Catarina, em Florianópolis e
socializados futuros militares. As descrições nele encontram-se muitos documentos como, pas-
permitem reconhecer valores, crenças e vi- tas com artigos, bilhetes, recortes, anotações pessoais
sões de mundos singulares que contribuí- manuscritas em cadernetas, folhas avulsas, cartas
am para a formação escolar de um dado recebidas, além de um imenso acervo fotográfico
perfil profissional. Ao mesmo tempo, tais que já foi alvo de um trabalho, disponível em
www.imagensdeumpresente.udesc.br.
relatos alimentam o empenho de continuar 5
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
localizando, reunindo e selecionando docu- rinha. Jornal do Comércio: RJ, 16/1/1955.
mentos que ajudem a iluminar aspectos da 6
Idem.
educação escolarizada no Brasil e assim 7
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
buscar novas e outras indagações sobre a rinha. Jornal do Comércio. RJ, 30/1/1955.
8
Idem
vida, a escola, a vida na escola e a escola 9
Idem
em nossas vidas (MIGNOT, 2003). O cará- 10
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
ter efêmero (veiculadas em velhos jornais) rinha. Jornal do Comércio. RJ, 16/1/1955
e o desprestígio que tais escritas suscitam 11
Idem, 30/1/1955
12
(destinadas, quase sempre, ao fogo e/ou Idem
13
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
ao lixo) dificultam sua conservação e po-
rinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/2/1955.
dem explicar seu relativo esquecimento. Daí 14
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de
a importância do historiador em torná-las Marinha. Jornal do Comércio: RJ, 30/1/1955.
visíveis como expressão e como veículo de 15
Idem.
16
um tempo e um lugar social. Idem.
17
BOITEUX, L.A. Bordejos sobre meio século de Ma-
rinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/3/1955.
Notas 18
BOITEUX, L. A. Bordejos sobre meio século de
1
Estou tomando como referência o estudo de Giselle Marinha. Jornal do Comércio. RJ, 13/2/1955.
19
Martins Venancio que, a partir de R. Chartier, afir- Idem.
20
ma “ao analisar como, durante o século XVII, al- BOITEUX, L. A. Bordejos sobre meio século de
guns intelectuais definiram os homens de letras, Marinha. Jornal do Comércio. RJ, 5/6/1955.
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