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Anne C. Beker
 
 
 

 
 
 

E se houvesse amanhã
 
Essa é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos
são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.

1ª impressão – 2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
 
Beker, Anne C.
E se houvesse amanhã [livro
eletrônico] / Anne C. Beker. –
1. ed. – São Paulo : Ed. Da
Autora, 2023.
ePub.
 
ISBN: 978-65-00-59998-5
 
1. Ficção brasileira
I.Título
 
23-141090 CDD-
B869.3
 
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura brasileira B869.3
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129
 
 

 
 
 

 
 
 

Toda jornada é mais completa com apoio e por isso sou grata a todos os
amigos e familiares que me apoiaram e continuam me apoiando. Muito
obrigada a vocês!!!
 
 

 
 
 

 
 
 

“Depressão é excesso de passado em nossas mentes. Ansiedade, excesso de


futuro. O momento presente é a chave para a cura de todos os males
mentais.”
Junia Bretas
 

Índice de capítulos
 
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Epílogo
 
Prólogo
 
O trânsito caótico da cidade sempre me irritou. A sensação de perda
de tempo fazendo parte da centopeia gigante de luzes vermelhas
aguardando poder andar centímetros como uma lesma me dá a sensação que
o tempo está escorrendo por entre os meus dedos e eu não consigo segurá-
lo. Há algum tempo venho tentando usar diferentes opções para perder esse
sentimento: ouço podcasts, faço cursos projetados no multimídia. Alguém
poderia pensar que isso desviaria minha atenção e poderia ser perigoso, mas
qual o risco que alguém corre andando a menos de cinco quilômetros por
hora? No entanto, todos os meus esforços são em vão. Continuo com a
percepção de estar correndo uma ultramaratona presa em uma caixa de
fósforos.
Por algum motivo, que ainda não sei, hoje estou mais ansiosa que o
habitual para chegar em casa. Pode ser o cansaço, o dia foi mais puxado que
o normal, ou a intuição que há algo prestes a acontecer. Golpeio o rádio
com raiva, como se ele fosse o culpado pela minha prisão e atraso,
apertando várias vezes os botões trocando as estações de rádio, tentando
encontrar uma música que eu goste e desvie minha atenção do meu
problema. Por que as pessoas falam tanto nesses programas? Se as estações
são para veicular notícias ou música, por que tanto bate papo? Desisto.
Decido emparelhar meu celular com a mídia do carro, algo que já devia ter
feito há muito tempo, mas vivo adiando. Era mais fácil do que eu
imaginava. Procuro alguma playlist na minha biblioteca do spotfy e coloco
para tocar. Finalmente algo que consegue me agradar. Desligo do som
infernal de buzinas, xingamentos, motores e vozes que insistem em povoar
o ambiente externo e mergulho na melodia e na letra de uma das músicas
que eu mais gosto do John Legend. Aquele minuto parece me jogar em uma
ilha de calmaria em meio ao caos, o qual não dura muito, pois a minha
distração me faz não perceber que o carro da frente se movimentou e o
motorista de trás faz questão de chamar minha atenção fazendo sua buzina
sofrer com sua força e insistência. Ela grita tão alto que sinto meu tímpano
doer. Penso em fazer algum sinal malcriado em resposta àquela violência
sonora, mas deixo para lá e sigo o meu caminho. É um final da tarde frio e o
sol vai preguiçosamente se escondendo no horizonte e começo a bater os
dedos agitadamente no volante, denotando minha impaciência. Fiz isso por
mais uma hora e meia até distinguir a fachada conhecida do meu prédio e
conseguir respirar com alívio. Estacionei o carro, peguei minhas coisas no
porta malas e tentei equilibrá-las até o elevador e então até minha sala,
mesmo elas insistindo em escorrer por todos os lados e escaparem das
minhas mãos, dificultando minha tarefa.
Abri a porta com dificuldade e percebi que naquele dia tinham
resolvido entregar cartas nos apartamentos. O carteiro tinha passado e
parecia que naquele dia estava inspirado, ou tirando o atraso da semana,
pois várias correspondências se amontoavam sob minha porta. Chutei todas
para dentro, joguei tudo sobre o sofá e voltei para descobrir se algum
daqueles envelopes era algo que prestasse ou só propagandas que não me
interessavam. Passei rapidamente os olhos por tudo e um envelope em
branco, lacrado, apenas com meu nome, chamou minha atenção. Abri,
receosa e comecei a ler a carta que era destinada a mim. Conforme ia
passando pelas palavras, meu coração disparou e um leve tremor de
indignação, raiva e tristeza tomou conta do meu corpo. Não acreditava no
que estava lendo. A chance de ter um término de dia feliz e agradável
acabava de ser destruído. Aquelas palavras destruíam meu sonho como um
terremoto que ruía e colocava as edificações abaixo. Acabei de ler, deixei a
carta escorregar da minha mão até o chão e antes que eu conseguisse me
recompor, meu telefone começou a gritar por atenção. Olhei o identificador,
era do hospital. Não sabia se atendia ou não: o que eles poderiam querer
comigo? Eu acabara de sair de lá. Xinguei mentalmente, mas tinha que
atender. Recolhi a carta, guardei em uma gaveta e apertei o botão verde.
— Alô!
— Dra. Linda?
— Sim.
— Tivemos uma falta hoje no plantão e estamos esperando uma
emergência chegar em 20 minutos. A doutora poderia voltar?
Minha vontade era dizer que não, que estava exausta e com um
problema pessoal para resolver. Mas eu não podia fazer aquilo. Ainda mais
com uma emergência chegando.
— Claro. Estarei aí o mais rápido que eu conseguir.
E eu que achava que a pior coisa que ocorreria comigo naquele dia
era a carta. Dei uma última olhada na gaveta e saí correndo.
 
Capítulo 1
 
Por sorte o trânsito da volta estava melhor que o anterior. Ela
conseguiu chegar em apenas 15 minutos, o que era um novo recorde.
Entrou pelas portas do hospital no exato momento que a ambulância
estacionava. “Deve ser a emergência”, ela pensou e se apressou. Ela já
estava na sala de atendimento quando entraram. O oficial que fizera o
resgate vinha narrando os fatos, passando os dados vitais para que a equipe
pudesse começar a fazer o atendimento, sendo acompanhado por mais dois
auxiliares que conduziam a maca.
— A vítima tem aproximadamente 45 anos, foi encontrada após
batida de carro contra árvore e parece ter ficado preso nas ferragens por
algum tempo. Não encontramos documentos no local e então não sabemos
quem ele é. Também não encontramos celular ou algo que pudesse
identificá-lo ou que possamos fazer contato com familiar ou amigo. Na
chegada estabilizamos coluna e o tiramos das ferragens, mas durante todo o
atendimento ele estava inconsciente. Identificamos uma lesão importante na
perna, com sangramento profuso. Fizemos um torniquete para estancar o
sangramento. Quando conseguimos medir os sinais vitais, ele estava
taquicárdico, com frequência cardíaca de 140 batimentos por minuto e
hipotenso, com pressão de 80x50mmHg. Nós o transferimos para a unidade
móvel e administramos 2 litros de soro com melhora parcial da pressão e
frequência. Veio estável no percurso de 50 minutos, correndo o terceiro litro
de soro.
— Obrigada oficial. Nós assumimos a partir daqui.
— De nada. — o oficial olhou para um de seus auxiliares que
permanecia olhando para a situação. — Kimberly, você não vem?
— Chefe, se você permitir gostaria de ficar um pouco e ver o
atendimento. Nosso plantão acabou com esse caso mesmo. Se o senhor
achar que tudo bem.
— Claro. Nos vemos amanhã. Bom descanso.
Linda olhou com estranhamento para a oficial. Não era comum eles
ficarem ali para ver o atendimento. Algo dentro dela dizia que aquela moça
queria dizer algo e estava esperando o momento correto. Fez essa anotação
mental e iniciou o atendimento, coordenando a equipe.
— Vamos monitorizar e ver como está. Gustavo, você consegue
avaliar a perna para entendermos se vai precisar de cirurgia ou se
conseguimos suturar aqui? Valéria, preciso de outra veia calibrosa e pode
abrir outro soro. — enquanto isso ela avaliava o paciente do ponto de vista
neurológico, checava a pupila e se teria que intubar o paciente.
— Linda, acho que consigo costurar a perna aqui sim. Não acho que
precisa de centro cirúrgico. Vou buscar o material e retorno. — respondeu
Gustavo que era o cirurgião vascular.
— Segundo acesso feito. Instalando o outro soro. Pressão 10x6 e
frequência de 110. — informou Valéria, a enfermeira.
— Perfeito. Val, vamos intubar. Acho que não precisamos da sedação,
pois ele está inconsciente. Preciso de uma cânula 8. Você me auxilia?
— Claro, doutora.
— Já disse que você não precisa me chamar assim. Pode me chamar
pelo nome mesmo ou pelo apelido igual o Gustavo acabou de fazer.
— Força do hábito. — e sorriu.
Enquanto isso Linda seguia com a intubação. Mas no momento que
ela inseriu o tubo, os aparelhos todos começaram a apitar. Os monitores
mostravam uma parada cardíaca e a equipe passou a realizar massagem
cardíaca. Linda continuava a orquestrar o atendimento pedindo para que
medicamentos fossem feitos na veia dele. O procedimento já durava quase
10 minutos e o paciente não dava sinal de resposta. Nesse momento, de
forma um tanto instintiva, Linda que estava responsável pela ventilação
olhou para ele e falou baixinho, quase em um sussurro:
— Por favor, por favor, responda. Eu não sei se você tem algum
motivo para ficar aqui, mas se tiver, apegue-se a isso. Não faça isso comigo,
meu dia foi péssimo e você nem estava tão grave. Volte.
Segundos depois, por coincidência ou não, ouviu-se um bipe
mostrando que o coração voltava a bater. Ainda em uma frequência baixa,
mas retornava. Seguiram investindo no paciente e com mais medicamentos
e resolução da lesão na perna, ele acabou estabilizando e sendo transferido
para a unidade de terapia intensiva.
Quando todo o atendimento acabou e após retornar do transporte à
UTI, Linda começou a procurar pela oficial que assistia ao atendimento.
Será que ela já tinha ido embora? Olhou nas diferentes salas, na espera, mas
nada.
— Linda?
— Oi Val.
— Você não quer ir comer alguma coisa? Acho que nem deu tempo,
não é? Você chegou em casa e chamamos você de volta.
— Foi.
— Então vai lá. A gente dá conta aqui por um tempinho.
— Obrigada. Eu não demoro.
Linda foi até a cafeteria buscar algo rápido para comer e beber e lá
viu a oficial que estava sentada sozinha em uma mesa, no canto, bebendo
um café e checando o celular. Pegou um sanduíche, um refrigerante e um
café e se aproximou dela.
— Kimberly, não é?
Ao ouvir seu nome, ela se assustou, mas assim que identificou sua
interlocutora, relaxou.
— Dra. Linda. — e fez menção de se levantar, mas foi orientada a
ficar onde estava.
— Posso me sentar com você?
— Claro!
— Obrigada.
Um silêncio constrangedor se estabeleceu entre as duas, até Linda
resolver rompê-lo.
— Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Por que você resolveu ficar para ver o atendimento?
— Ah! Isso? Bom, por dois motivos. Um, eu ainda quero ser médica e
queria ver seu atendimento. Dois, eu queria falar com você.
— Eu imaginei isso. O que você quer falar comigo?
— Quero dicas para me tornar médica. Quero falar com você sobre a
profissão. O que você acha bom, o que acha ruim. Mas isso é para um outro
café.
— E para hoje?
— Bom. Queria comentar duas coisas. A primeira, eu acho que eu
conheço a vítima.
— Como assim? Algum amigo seu? Você não deveria ter ficado.
— Não, não. Eu não o conheço pessoalmente. Você gosta de ler?
— Gosto. Mas ultimamente não consigo muito tempo. Estou mais
maratonando séries no tempo vago.
— Já ouviu falar de Charles Verne?
— Não.
— Ele é um escritor de poesias. Ou melhor, era. Faz muitos anos que
não escreve nada. Eu adoro os livros dele. O último livro dele, A escuridão
da alma, tem um tom melancólico e profundo e ele escreveu depois de
perder a esposa que estava grávida do primeiro filho deles. Desde então ele
sumiu e não publicou mais nada.
— E você acha que é ele?
— Acho. Lembro de ver algumas fotos dele mais novo. Acho que a
última que vi ele tinha uns dez anos a menos. Dizem que ele se exilou em
algum lugar para não ser encontrado. Acredito que ele esteja aqui.
— Vai ser difícil de ter certeza. Ainda mais porque vocês não
encontraram documentos ou celular.
— Eu estava aqui procurando na internet. Não encontrei nenhuma
foto recente, mas essa é a última que eu vi. — e mostrou a tela.
— Não tenho certeza, mas é bem parecido. Agora, por que alguém
sairia sem documento e sem celular? Muito estranho.
— Acho que foi intencional.
Linda não conseguiu disfarçar a surpresa e perplexidade.
— Como assim?
— Não havia nenhum sinal de tentativa de frenagem no local do
acidente. Eu acho que ele fez isso de propósito. O fato de não levar nada
com ele era, provavelmente, para não ser descoberto.
— Será?
— Acredito que sim.
Linda ficou pensativa. Era uma possibilidade e, exceto se ele
recobrasse a consciência, não seria possível tirar essa dúvida.
— Eu encontrei um contato de um agente antigo dele. Tentei mandar
uma mensagem. Vamos ver se consigo alguma resposta. Se eu souber de
algo falo com você.
— Combinado. Agora preciso voltar. Meu plantão está apenas
começando.
— Boa sorte. Espero que a noite seja mais tranquila que esse começo.
— Eu também. Afinal, eu vou emendar com o de amanhã. Então só
vou sair à noite.
— Sério? Como você aguenta?
— Costume, eu acho. — e deu de ombros.
— Bom, vejo você por aí.
— Tchau. Bom descanso para você.
Linda acabou de engolir seu jantar improvisado da forma mais rápida
que conseguiu. Retornou para a emergência. Sabia que o horário pior seria
até meia noite ou no máximo uma hora da manhã e ela precisava fazer uma
pesquisa assim que possível. Guardou a conversa que tivera na mente. Era
melhor manter aquela informação em segredo até ter certeza.
O trabalho foi intenso até um pouco mais tarde do que ela esperava.
Por volta das duas da manhã, com a diminuição do movimento, optaram por
dividir horário para poderem descansar um pouco. Ela poderia descansar
por duas horas e meia, mas antes disso, ela queria checar como seu paciente
estava. Subiu até a unidade de terapia intensiva e conversou com o colega.
O paciente estava estável, mas segundo o plantonista, em coma. Ainda não
sabia o tamanho do problema, mas para as primeiras horas estava tudo sob
controle.
Ela ficou por alguns instantes olhando para o paciente que estava
estável, intubado e sozinho em um quarto, cheio de aparelhos ao seu redor
com os barulhos característicos do local. Todos os controles pareciam bons.
Enquanto observava, pensava se fizera a coisa certa. E se realmente ele não
queria estar mais lá, por que ele tinha retornado. Sentiu um aperto no peito.
A dúvida. Talvez a culpa. Mas no fundo, bem no fundo, em um lugar que
ela não confessaria para ninguém, talvez ela entendesse o que ele fizera. Já
pensara naquilo tantas vezes, mas nunca tivera coragem. Chacoalhou a
cabeça para afastar aquele pensamento. Respirou fundo e foi descansar. A
pesquisa ficaria para o outro dia.
Foi para a sala que tinha uma cadeira reclinável que permitiria que ela
descansasse um pouco. Sua cabeça estava a mil e teve dificuldade em
conseguir relaxar, mas finalmente conseguiu. Pelo menos até ter o sonho
mais estranho que ela já tivera na vida...
 
Capítulo 2
 
Sabe aquela sensação de que você está vivendo exatamente a mesma
coisa novamente? Muitos chamam de dejá vu em uma alusão a locução
francesa que significa algo que já foi visto. Muitas pessoas repassam
atividades do dia ou acontecimentos pregressos das próprias vidas enquanto
sonham. Para Linda isto era comum. Muitas vezes tinha a sensação que o
cérebro dela aproveitava as horas de sono para analisar o que fizera e
verificar se algo poderia ter sido melhor ou diferente ou ainda se esquecera
de algo, mas aquele sonho era singular.
Ela se viu de volta à sala de emergência, bem no início do
atendimento do seu paciente. Viu-se dando as mesmas ordens, falando com
as mesmas pessoas, vendo os mesmos desfechos. Notou um aperto no
coração porque sabia o que ocorreria a seguir e lembrou-se de como se
sentiu quando quase perdeu aquele paciente. E esse foi o ponto peculiar da
cena.
O paciente teve a parada cardíaca e ela se viu com o mesmo
comportamento, seguindo com a ventilação, pedindo para medicamentos
serem feitos e ele não reagindo a nada. Então notou que se abaixava, bem
próxima ao ouvido dele e, embora não tenha conseguido se ouvir, sabia o
que estava falando, pois conseguia fazer leitura labial. “Por favor, por favor,
responda. Eu não sei se você tem algum motivo para ficar aqui, mas se
tiver, apegue-se a isso. Não faça isso comigo, meu dia foi péssimo e você
nem estava tão grave. Volte.”.
Nesse exato momento tudo ao seu redor pareceu entrar em câmera
lenta e ela identificou duas pessoas que não estavam na sala naquele
momento. Ou pensando bem, será que estavam, mas ela não notou? Viu-se
meneando a cabeça em negativa, pois não as conhecia. Era possível ter
alguém na sala que ela não vira devido à atenção estar focada no paciente,
mas não era possível ter estranhos ali. Focou naquelas pessoas. Tudo se
movia muito devagar, menos eles. Era estranho, pois no momento que seus
olhos cruzaram os do homem mais alto, sentiu como se o conhecesse de
algum lugar. No entanto todos os seus instintos e sua racionalidade
gritavam que não. Por algum motivo conseguiu ouvir a conversa entre eles
e percebeu a mulher dizendo:
— Você vai mesmo interferir? De novo? — comentou.
— Vou.
— E nem vai me perguntar se concordo com isso? — a irritação na
voz dela era palpável, afiada como uma navalha.
— Você sabe que foi muito além do que nos é permitido. E não é a
primeira vez. Você tem que parar com isso. Sabe que não podemos
interferir.
Ela deu uma gargalhada alta.
— Disse o candidato a santo que nunca interferiu em nada. Tenha
paciência! Ou melhor, tenha vergonha. Sabe que não podemos mentir.
Ele revirou os olhos. Sabia que não poderia negar. Mas sua
interferência era bem mais sutil.
— Está pensando que sua influência é bem mais discreta que a minha,
não é?
Silêncio.
— O que foi? Não consegue dizer a verdade? Ela dói muito? Ou é seu
orgulho que não permite admitir que também está errado?
— Por que você sempre implica comigo?
— Não é implicância. Quero entender porque você se acha no direito
de influir nas decisões dela e não permite que eu faça o mesmo com ele.
Ele ficou um pouco pensativo.
Linda sentiu uma gota de suor escorrendo pela sua testa. Será que
estavam falando dela? Seria possível? O que ele estava fazendo com ela?
Eles nem se conheciam? Continuou olhando.
— Nossos objetivos são bem diferentes. Você quer encontrar com ele
o mais rápido possível para preencher um vazio que você tem. Eu também
gostaria disso, mas prefiro que isso aconteça em uma ordem natural normal.
Não tento acelerar o processo.
— Sim, claro! Mas você trabalha para que esse encontro seja
atrasado. E agora quer influir na velocidade do meu encontro também. E
por quê?
— De verdade?
— Sim. Quero ouvir.
— Porque acho que esses dois podem se ajudar.
— Você só pode estar de brincadeira.
— Não estou. — respondeu secamente.
Ela deu de ombros e foi se dirigindo para o paciente. Ele tentou
agarrá-la pelo braço, mas ela se desvencilhou de suas mãos com uma
facilidade assustadora e veio a passos firmes em direção à maca de
atendimento. Assim que ela se afastou um pouco, ele fechou os olhos,
juntou as mãos e balbuciou alguma coisa.
Poucos segundos após isso ela simplesmente desapareceu, mas ainda
sendo possível ouvir sua última frase que ficou pairando no ar.
— Você vai me pagar por isto.
Linda olhava para tudo isso assustada. Tinha quase certeza que
falavam dela, mas quem eles eram? Como poderiam influenciar em algo?
Estava perplexa. Viu, então, ele entrar em movimento e se aproximar do
paciente. Olhou para o outro eu dela que fazia atendimento e postou a mão
sobre o peito do paciente. No instante que o tocou, tudo voltou à velocidade
normal e os aparelhos pararam de apitar e o paciente voltou a ter frequência
e passou a responder. Percebeu que ele ainda ficou algum tempo olhando
para ela, até simplesmente desaparecer.
Ela acordou em um sobressalto. O que aquilo significava? Será que
era o cansaço? Fora um dia cheio e cansativo, sem dizer muito, muito
estressante. Isso, porque com tudo que ocorrera, ela ainda se esquecera,
temporariamente da carta que deixara em casa e que iria precisar lidar em
algum momento. Esfregou os olhos e percebeu que não conseguiria dormir
de novo. Decidiu antecipar sua pesquisa. Levantou-se e foi para o posto de
atendimento onde havia um computador com conexão à internet. Encontrou
alguns colegas no caminho que perguntaram a razão dela não estar
descansando, já que tudo estava calmo, finalmente. Ela preferia não dizer
muito e apenas resmungava que estava tão cansada que não conseguia
dormir e continuava até seu objetivo.
Deixou-se desabar na cadeira giratória do local, digitou sua senha e
abriu o Google. Jogou o nome que a oficial tinha dado a ela: Charles Verne
e aguardou o resultado da pesquisa. Não precisou esperar um segundo
completo e viu várias menções a ele. Reportagens, fotos, livros e
especulações. Não havia nenhuma foto recente, mas pelas antigas,
realmente poderia ser ele. Começou a ler sobre sua vida.
Realmente ele fora um escritor muito bem conceituado, com alguns
livros fulgurando entre os mais vendidos do New York Times. Tinha
principalmente poesias, mas alguns livros de romance, aparentemente
menos conhecidos. Parecia ter tido uma vida bem conturbada. Não era só a
informação que a oficial dera a ela, da perda da mulher grávida. Isso parecia
ter sido a gota de água que transbordou o copo. Ele perdera muitas coisas
durante a vida. O pai de câncer quando ele era pequeno, com apenas 9 anos.
A mãe com um derrame poucos meses antes do casamento. Um grande
amigo da faculdade de causa desconhecida.
Aparentemente, foi a partir dali que ele realmente começara a
escrever profissionalmente. Talvez em uma tentativa de expressar os seus
sentimentos, de colocar aquele turbilhão de dor em forma de palavras e
amenizar, de algum jeito, seu sofrimento ou talvez a faculdade de
jornalismo tivesse profissionalizado um hobby. Dessa época até o
falecimento da esposa ele fora muito ativo. Mas nos últimos dez anos
desaparecera. Havia artigos especulando o que acontecera. Alguns achando
que se isolara em alguma ilha ou país distante. Parecia que o país distante
estava correto. Alguns meses após o acidente que levaram mulher e filho
não nascido, ele teve uma internação bem prolongada, sem um motivo
publicado, mas essa era a última notícia disponível sobre ele. Seria muito
difícil saber sua identidade sem documentação ou sem algum conhecido
que a confirmasse. Ela esperava que Kimberly tivesse uma resposta para
que pudessem ter a certeza de quem ele era. Deixou-se escorregar pela
cadeira. Pensou um pouco e decidiu ver como ele estava.
Voltou à UTI que também estava em um momento de calmaria. Ela
não viu o colega e acreditou que ele aproveitava o momento para descansar
um pouco. Abriu a cortina do quarto dele, entrou e fechou-a. Ficou alguns
minutos olhando para os aparelhos, os fios, os dados, as bombas correndo
medicamentos em suas veias. Embora aquela parafernália toda estivesse
montada, totalmente típica de uma terapia intensiva, ele parecia estável.
Respirou aliviada. Ela tinha feito sua parte. Refletiu como isso a deixava
feliz. Gostava tanto de ajudar as pessoas, de salvar vidas e trazer um
impacto positivo na vida dos seus pacientes. Era isso que a movia, era para
isso que vivia.
Andou alguns passos e se sentou na beirada da cama. Ficou algum
tempo ali, até decidir segurar a mão dele. Fazendo isso, disse em voz alta.
— Queria tanto saber quem você é. — e apertou um pouco a mão dele
— Se você realmente for quem eu acho que é, eu tenho que lhe dizer que
nós temos mais pontos em comum do que você pode imaginar. E, como
acredito que, lá no fundo, você pode me ouvir, prometo que virei visitar
você quase todos os dias para conversarmos até você melhorar. — ela
sorriu. — Sei que vai ser mais um monólogo que uma conversa, mas talvez
algo do que eu diga possa fazer alguma diferença e ajude. Estou torcendo
para você se recuperar rápido.
Embora ela não tenha notado, houve uma discreta queda na
frequência cardíaca dele. De alguma forma a voz dela o acalmava. A
consciência dele flutuava por ali sem se apegar a nada até aquele momento.
Ele não tinha condições de compreender tudo o que ela dissera, ainda, mas
de alguma forma aquilo foi um pequeno grão de areia no oceano de sua
tristeza. Talvez houvesse uma esperança. Apenas, talvez.
 
Capítulo 3
 
O restante do plantão foi bem tranquilo, para a sorte de Linda. Ela até
poderia ter descansado mais, para se preparar para o dia inteiro que ainda
teria pela frente, mas seus pensamentos não permitiam isso. Além disso,
estava ainda assustada com o último sonho que tivera e não sabia se queria
voltar àquela cena. Percebeu que na correria da volta ao hospital, esquecera
o celular em sua bolsa e não o olhava há muitas horas. Voltou ao lugar onde
guardara suas coisas e notou que havia muitas mensagens não lidas. De
todos os remetentes, um estava realmente irritado por ela não responder:
seu namorado. Havia uma mudança de humor nítida conforme o tempo ia
passando e ela não respondendo. Foi lendo as mensagens.
“Oi. Tudo bem? Já chegou em casa? Estou indo aí. Nos vemos em
breve. Bjs”
“Vc ainda não respondeu. Não sei se vou aí ou não. Vc já saiu do
hospital?”
“Nem sei se vc está vendo as mensagens. Dá pra responder algo? Não
sei se aconteceu alguma coisa, estou preocupado”
“Liguei no hospital e descobri que vc ainda está trabalhando. Não
tínhamos combinado de sair? Vc podia pelo menos ter me avisado.”
“Vc está mesmo me ignorando, né?”
“Deixa para lá. Já estou acostumado em ser trocado pelos seus
pacientes. Esquece. Falamos”
Respirou profundamente. Juntando aquelas mensagens à carta que
recebera, ela nem sabia se ainda queria ficar naquela relação. Começara
bem: tinham interesses comuns, vários gostos semelhantes e pensavam de
forma similar. Com os anos as diferenças foram aparecendo: ele era mais
extrovertido, gostava das festas, vida social, estar com os amigos e ela tinha
sensação que a usava mais como um troféu do que realmente como uma
companhia. Cobrava dela a produção na roupa, na maquiagem, tudo que
para ela não era importante. Além disso, queixava-se, repetidamente, sobre
sua dedicação à profissão e ultimamente vinha tentando convencê-la a sair
do hospital e dos plantões. Ela não queria aquilo. Na última semana veio
com uma conversa sobre uma oportunidade que ele tinha recebido de se
mudar para Paris, que seria ótimo para eles, mas não era o que ela sentia.
Percebia que ele tentava controlá-la de diversas maneiras, o que ela
detestava e a fazia questionar se estava fazendo a coisa certa. Além disso,
começou a ter a sensação que ele era egocentrado e, se as coisas não fossem
do jeito que ele queria, não serviam. Essa gama de fatos estavam deixando-
a impaciente e infeliz. Pensou profundamente por tudo que já havia aberto
mão por ele, por tudo que aceitara fazer mesmo não concordando e uma
voz, bem lá no fundo, orientava que ela precisava por limites naquele
relacionamento e mesmo com sua imensa vontade de ajudar a todos, ela
precisava ser menos submissa e se ajudar primeiro.
Guardou o celular. Não ia responder naquele momento. Estava
chateada, irritada. Qualquer palavra que escrevesse poderia não soar
adequada. Seguiu o seu dia como de costume e se preparou para retornar
para casa (finalmente).
O mesmo trânsito do dia anterior a aguardava, mas estava tão cansada
que não ligou. Ficar sentada, sem fazer nada, não era tão ruim quanto antes.
Desistiu de tentar o rádio, deixou em uma de suas playlists de música
clássica e apenas se conformou com a demora. Depois de pouco mais de
uma hora estava estacionando o carro na sua conhecida vaga e subindo ao
seu apartamento. Abriu a porta e teve um sobressalto. Viu alguém sentado
em sua poltrona da sala e demorou alguns instantes para reconhecer seu
namorado, que se levantou imediatamente quando a viu.
— Finalmente. Onde você estava?
— Boa noite para você também. Você sabe muito bem onde eu estava.
— No hospital, como sempre. Custava ter me avisado? Eu fiquei
preocupado.
— Ficou preocupado mesmo? Ou ficou mais irritado por eu estar
trabalhando? — ela não estava com paciência para aquela conversa e ainda
estava tentando entender como ele havia entrado.
— Você podia ter falado alguma coisa.
— E você poderia ter parado para pensar que eu não estava de plantão
ontem à noite, então que se eu estava lá, algo tinha acontecido. Talvez algo
importante que não tenha dado tempo de avisar.
— Claro. Em 24 horas você não teve tempo de digitar uma
mensagem. Bem razoável. Mas não verossímil.
— Nas 24 horas tive, você está certo. Nas primeiras 12 não. Fui
chamada de urgência de volta e esqueci meu celular na bolsa porque
cheguei junto com uma emergência que me tomou algum tempo.
— E posso saber por que você não respondeu depois?
— E eu posso saber o que você está fazendo no meu apartamento?
— Nosso, não é mesmo? Já passei várias noites aqui.
Ela olhou com indignação, mas tentou se controlar com as palavras.
— Passou. Mas não me recordo de ter dado a chave dele para você.
— Não deu. Mas pedi para um chaveiro fazer uma cópia e seu
porteiro me deixou entrar.
— E você não pensou em me perguntar se eu concordava com isso?
— Você não ia responder mesmo, ia? Afinal não respondeu nenhuma
das minhas mensagens e ainda não me disse a razão. — nesse momento
tentava usar um tom sedutor e amigável, mas ela estava cansada desse jogo.
— Talvez isso eu respondesse. Mas pensando bem, acho que vou
responder tudo.
— Que ótimo!
— Não sei se você vai achar ótimo, mas aqui vai: não acho que nós
somos mais compatíveis. No começo eu achava que sim, mas com o tempo
perdi essa convicção. Você não gosta de como eu me visto ou como me
comporto e muito menos de como eu trabalho. Eu não gosto das suas
baladas e festas e, com certeza, odiei a invasão do meu apartamento. Sem
mencionar a carta doce que sua mãe me mandou ontem. Dessa forma, estou
terminando com você. Pode ir e não precisa voltar.
As palavras não foram ditas com raiva, mas com um frieza que seria
possível congelar o ambiente. No início ele arregalou os olhos com a
incredulidade estampada em suas feições, mas quando percebeu que estava
sendo descartado, a ira tomou conta de seu ego e seu rosto ficou todo
vermelho e quente. Mesmo com um certo receio de qual seria sua reação,
ela tentava manter a calma. Abriu a porta e fez sinal para que ele saísse.
— Então é isso, após todos esses anos é assim que você me trata.
— Você realmente está feliz nesse relacionamento?
— Sim.
— Tem certeza? Você quer me mudar o tempo todo.
— Quero mudar você para melhor. É o que fazemos quando gostamos
de alguém.
— Mas é aí que você está errado. Muito errado. Se você estivesse
tentando mudar algo para eu ser melhor, para eu aprender, para eu crescer,
concordo com você. Mas não é o que você quer. Você quer que eu me vista
como acha que eu deveria, que eu use maquiagem, que eu odeio, que eu
trabalhe menos, embora eu ame meu trabalho. Você quer me mudar para eu
me adequar ao seu modelo de mulher ideal. Se você realmente gostasse de
mim, como diz, me aceitaria como eu sou nesses aspectos. Você está
apegado a uma imagem que eu não vou corresponder. Sou uma sombra
disso. Mas há muitas mulheres por aí que se adequariam ao que você quer,
não eu. Eu não quero essas mudanças e ninguém é capaz de fazer com que
eu mude sem que eu queira.
— Então você prefere estar certa do que ser feliz.
— O ponto aqui Ed, é que eu só vou ser feliz se parar de insistir em
algo que não vai acontecer. Você não vai me aceitar como eu sou e eu não
vou mudar. Então precisamos seguir em frente.
— Se é assim que você quer, assim seja. — saiu e bateu a porta com
tanta força que os quadros da parede tremeram.
Ela respirou aliviada. Já deveria ter feito aquilo há muito tempo,
faltara coragem e, de verdade, sobrara teimosia. Agora iniciaria um novo
capítulo em sua vida e esperava que fosse para melhor.
Abriu a gaveta e pegou a carta novamente. Aquilo já fazia parte de
seu passado, mas achou interessante guardá-la na bolsa para o dia seguinte.
Tinha uma ideia do que fazer com ela.
Pegou o celular e procurou um serviço que trocasse a sua fechadura
por uma eletrônica. Não queria correr o risco de ter Edmundo por ali
novamente. Contratou o serviço pela internet sem muita dificuldade e
aproveitou para avisar a portaria do prédio que estava cancelando a
autorização para o namorado subir ao seu apartamento. Claro, que em sua
mente, sabia que nunca mais daria a tal licença.
Abriu a porta do armário da cozinha, abriu um vinho rosê suave,
encheu um copo e o levou para acompanhar seu banho de banheira
relaxante após os últimos acontecimentos em sua vida. De tão relaxada que
ficou, acabou dormindo na água e só acordou quando a temperatura da
mesma ficou incômoda. Terminou seu vinho, colocou seu pijama e se
deitou na cama, olhando para o relógio que denunciava que ela só teria mais
três horas de sono. Dormiu como uma pedra e acordou com o despertador
do celular gritando em seu ouvido. Vestiu-se, tomou um café da manhã
rápido e foi trabalhar como todos os dias.
Chegando no hospital percebeu que algo estava errado já no primeiro
bom dia. Olhares estranhos de soslaio e comentários em voz baixa quando
ela passava chamaram sua atenção.
“O que está acontecendo?”, ela pensou. Mas seguiu seu caminho até o
vestiário onde trocaria de roupa. Entrando lá encontrou uma amiga de
plantão.
— Oi Mari. Tudo bem?
— Comigo tudo, mas e com você?
— Tudo. Por quê?
— Você não viu, não é?
— Não vi o que?
Então ela pegou o celular e mostrou um vídeo com milhares de
visualizações no youtube.
— Parece que o Edmundo não gostou muito de você ter terminado
com ele.
Ela não acreditava no que via, mas não tinha outra opção exceto
seguir em frente. Em algum momento todos esqueceriam daquilo (ou não),
mas quanto mais importância ela desse àquilo, quanto mais mostrasse que
se importava, mais tempo demoraria para ser esquecido. Respirou fundo,
mas mesmo tentando manter a calma, sentia algumas lágrimas queimando
em seus olhos. Ainda assim percebeu que a amiga estava relutante com
algo.
— Tem mais alguma coisa que você quer me falar?
— Acho que preciso lhe dizer que ele também ligou para muita, muita
gente. Contou toda uma história de você ter expulsado ele da sua casa, de
estar traindo ele com alguém que não mencionou, então se prepare para
muitas, muitas perguntas.
— Mari, você sabe que ele inventou isso, não?
— Sei. Pelo menos a parte da traição. Mas eu sou sua amiga. Não sei
o que os outros vão achar. Agora, a parte de ter colocado ele para fora não
dá para negar, ele filmou Linda. E de verdade, acho que você fez bem.
— Você consegue me cobrir por uma hora?
— Claro! O começo do plantão geralmente é mais parado. Qualquer
coisa eu mando mensagem. O que você vai fazer?
— Pensar um pouco. Colocar a cabeça em ordem.
— Vai lá. Se precisar de alguém para conversar, estou aqui, OK?
Meneou a cabeça em aceitação, mas ela sabia de um ótimo ouvinte.
Despediu-se e foi em direção à UTI.
 
Capítulo 4
 
Kimberly estava na central, esperando por um chamado para poder se
deslocar, quando seu celular avisou que havia chegado uma mensagem. Ela
olhou para tela com pouco interesse até notar de quem era a mensagem. Seu
coração disparou. Ficou tão ansiosa para abrir e ver o e-mail que errou a
própria senha algumas vezes. Depois que conseguiu entrar leu:
“Cara Kimberly,
Muito obrigado por seu contato. Infelizmente eu não tenho notícias do
Charles há algum tempo. Ele não responde aos meus recados, não atende
telefonemas, não responde a mensagens. Eu não sei o paradeiro atual dele,
mas sim, ele estava no Brasil. Não tenho como ter certeza se ele pode ter
sido a pessoa que você atendeu, mas se conseguir me mandar uma foto,
posso confirmar.
Grato,
Christian”
Sua primeira reação foi surpresa. Ele só poderia estar de brincadeira.
Como iria tirar uma foto e mandar para ele? Será que achava que ela
inventara a história? Que ela tentava conseguir informações sobre o
escritor? E se não tinha notícias há tanto tempo e era seu representante, não
deveria estar preocupado? Será que Linda a ajudaria nessa tarefa? Não
sabia, mas teria que perguntar. Pediu que um colega a cobrisse por algum
tempo e foi até o hospital.
Chegando lá, não encontrou a médica no pronto socorro. Perguntou
por ela, mas ninguém sabia onde ela estava. Uma amiga dela lhe disse que
ela pedira algum tempo para pensar, pois tivera algumas intercorrências
pessoais. Kim podia imaginar onde ela estaria, só não sabia se conseguiria
entrar. Agradeceu e começou a seguir as placas da unidade de terapia
intensiva. Pensaria em algo chegando lá.
Notou que havia uma secretaria com controle da entrada. Não seria
fácil. Apenas uma pessoa ficava na recepção. Talvez se esperasse e tivesse
um pouco de sorte. Posicionou-se próxima o suficiente para aproveitar uma
oportunidade, mas não tanto para chamar a atenção.
Como os ventos estavam a seu favor, não demorou muito até a
recepcionista resolver fazer uma pausa por algum motivo. Além disso, foi
bem no momento que uma pessoa da limpeza deixou o carrinho abrindo a
porta. Ela se esgueirou e passou por ali. Agora precisava achar qual era o
box que ele estava. Novamente, para sua sorte, ouviu a voz conhecida de
Linda e só teve que segui-la. Chegou a colocar a mão na maçaneta da porta,
mas ouviu o que ela dizia e parou.
— Acredita que depois de todo esse tempo ele resolveu inventar
várias mentiras sobre mim? Eu o expulsei da minha casa, com certeza. Mas
ele não tinha o direito de ter chamado um chaveiro para entrar nela sem
minha autorização. Eu já estava pensando em terminar há algum tempo.
Depois da carta que eu recebi da mãe dele, era quase uma certeza. Mas a
gota d`água foi invadir meu apartamento. Eu trouxe a carta para ler para
você. Quero lê-la em voz alta para ver se ela vai me parecer tão ruim quanto
da primeira vez que eu li. Foi logo antes de vir atender você. — dizendo
isso ela desdobrou o papel, limpou a garganta e começou.
— Linda, pode ser que você não estivesse fingindo e  nem tenha
pegado o gancho da desculpa que não quer mudar para Paris e nem de
perder seu emprego dos sonhos no hospital. Mas para mim está claro como
cristal que você nunca se importou de verdade com meu filho e, bem no
fundo, você sabe que não planeja ficar com ele. Se você disse isto desde o
início para o meu filho, então está tudo ótimo, pois você ser falsa conosco é
o de menos, mas não o engane. No entanto, se você o fez acreditar que iria
acompanhá-lo, você o enganou. Não quero que me responda se foi uma
coisa ou outra. Fique no seu coração, para você, para suas decisões. Você é
hipócrita, falsa e na minha opinião, sou como Dante, os hipócritas ficam em
um dos círculos do inferno. Se não for isso prefiro acreditar que você está
precisando de um psiquiatra. Só você pode se tratar. Afinal
isto é hereditário. Sem querer ofender, mas sua mãe, pelo que você conta,
também é louca. Aliás, nessa linha, pode ser que se você buscar ajuda possa
melhorar o relacionamento de vocês. Eu percebi desde o início, da primeira
vez que nos vimos, que você era descontrolada. Estou sendo corajosa de
escrever tudo isto. Ainda mais porque estou muito preocupada com o fato
de que meu filho sempre olha pensando o pior sobre mim, mas o tempo vai
mostrar que estou certa e quem você realmente é. Eu o alertei, ele não quis
me ouvir. Ele está sofrendo.  Eu realmente espero que você se realize
muitíssimo bem profissionalmente. Eu já comecei a rezar para que essa
situação se resolva logo. Mas eu insisto que você precisa se tratar. Desculpe
se escrevi alguma coisa que ofendeu. Mas eu como mãe também estou
sofrendo muito com esta situação. Para finalizar: não se esqueça de que a
pessoa no mundo que mais ama meu filho, sou eu. Você vem de uma
família doente, tem uma mãe doente, então nem tem como visualizar e
perceber isso. Espero que você tome uma decisão adequada e liberte meu
filho se realmente não quiser ficar com ele. Espero que não se ofenda, mas
é o que diz o meu coração.
Na metade da carta, Kim percebera que a voz dela havia mudado e
não precisava olhar para saber que ela chorava. Não era para menos, ela
mesma tinha vontade de chorar com aquelas palavras ásperas. Nem
imaginava como se sentiria se recebesse uma carta daquelas.
Linda enxugou as lágrimas, respirou fundo e então completou:
— Eu realmente gostava dele. De verdade. Antes dele mudar. Antes
de tudo mudar. Quando eu percebi que eu nunca fui a prioridade dele, que
eu tinha que parar de tentar cuidar dele e começar a cuidar de mim. Que ele
exigia que tudo fosse para ele, por ele. Foi aí que eu decidi. Mas é claro que
alguém que foi criado por uma pessoa que manda esse tipo de carta ia reagir
como ele reagiu. Mas a minha pergunta é: como eu vou sobreviver a isso
tudo? Como eu vou olhar nos olhos das pessoas que eu conheço após o
vídeo, os telefonemas?
A pergunta era retórica, mas quem decidiu responder foi alguém que
ela não esperava. Kim saindo de seu esconderijo e respondeu:
— Você tem opções.
Ela se assustou. Não sabia que havia alguém ouvindo.
— Kim?
— Sim. Desculpe. Eu estava procurando você e achei que estivesse
aqui. Vim procurá-la e ouvi você falando. Não quis espionar, mas não quis
interromper. Parecia um momento tão íntimo, mas ao mesmo tempo, tão
necessário para você.
— E era. Ou melhor é.
— Como eu dizia, você tem opções. Ele está no seu passado agora.
Ele, essa carta. Você pode ignorar.
— Não dá. Assim que eu pisar de novo no pronto socorro as pessoas
vão fazer perguntas, vão falar pelas minhas costas, ou pior, na minha cara.
— E isso é importante para você?
— O que exatamente?
— A opinião dos outros?
— No geral não. Mas é meu ambiente de trabalho. Pode me atrapalhar
aqui. Não sei o que vão pensar. — disse ela, olhando para o lado oposto,
enxugando uma lágrima que escorria de seu olho.
— Você trabalha aqui há quanto tempo?
— Alguns anos.
— E as pessoas não a conhecessem? Olha, eu vi você em ação uma
vez. Você é ótima. Se eu sei disso, todos sabem disso. Isso vai tumultuar sua
vida por alguns dias, mas vai ficar no passado.
— Não tenho tanta certeza.
— Como eu disse, você tem opções.
— Qual outra?
— Você pode dar as cartas nesse jogo.
— Como assim?
— Seu ex sabe dessa carta? Você pode jogá-la como uma resposta.
Ela foi escrita à mão, para sua sorte, então não vai ser possível negar a
autoria. Você sai por cima dessa.
— Não sei. Não gosto dessa abordagem.
— Mas ela pode resolver seu problema.
Linda, no fundo, bem enterrado em sua alma, tinha outra opção que
não ousaria falar em voz alta. Kim pareceu perceber a sombra passando por
ela.
— Exceto.
— Exceto?
— Se você pensou em uma solução mais definitiva.
— Como assim?
— Olha, eu não a conheço. Mas você vem aqui, de alguma forma se
identifica com ele, eu vi que você pensou em algo e eu senti que não era
bom.
— E?
— Você já pensou em fazer o mesmo que ele?
Ela não respondeu.
— Entendi. Não precisa me falar. Eu também não diria isso a
ninguém. Mas a pergunta é, por que nunca fez?
Linda não queria falar, mencionara aquilo apenas uma vez, há muito
tempo, para uma terapeuta. Respirou bem fundo. Por algum motivo,
respondeu:
— Eu já pensei. Já cheguei ao ponto de levar, vamos dizer, coisas do
hospital que me ajudariam a fazer, mas sempre desisti.
— Por quê?
— Porque sempre acontecia alguma coisa que me fazia mudar de
ideia. Quando eu recebi essa carta, foi a vez que cheguei mais perto. Mas no
exato momento que cruzou minha mente, o hospital me ligou pedindo para
eu voltar e era o atendimento que vocês trouxeram. Era ele. Então desisti,
de novo. E ouvindo o que você disse, lendo o que ele escreveu, meu
objetivo agora é ajudá-lo.
— Você já falou isso para alguém?
— Uma parte, há muito tempo, mas não com essa clareza.
— Obrigada. Sei que não deve ser fácil para você. E fique tranquila,
não vou comentar nada com ninguém.
— Mas agora a outra pergunta.
— Qual?
— Por que você estava me procurando?
— O agente dele me respondeu. Mas disse que não sabe nada sobre
ele há algum tempo, mas que ele estava mesmo morando aqui. Disse que só
poderia confirmar se era ou não ele se eu enviasse uma foto. E qual a
chance de eu conseguir isso sozinha? Zero.
— Bom, agora é só pegar seu celular e tirar a foto não?
— Mas você acha que tem problema?
— Se queremos a verdade, acredito que não temos outra opção. Vá
em frente.
Novamente uma discreta mudança no padrão cardíaco do paciente
conforme elas conversavam não foi notado. Mas ele ouvia. E aquelas
palavras tocaram um ponto de sua alma que não estava disponível há muito
tempo.
Enquanto os sinais vitais voltavam ao normal, Kim fazia a foto e
anexava pelo próprio celular ao e-mail.
— Pronto. Agora é torcer para estarmos certas e ele responder.
— Então vamos embora?
— Sim. E você?
— Como assim?
— O que vai fazer agora?
— Ainda não sei. Mas tenho muito a pensar.
Kim pousou a mão no ombro dela e ambas foram em direção a porta
de saída. Chegando lá, separaram-se.
— Se precisar de algo, estou por aqui.
— Eu também. E se você tiver uma resposta, por favor me avise.
— Pode deixar. E doutora?
— Sim.
— Obrigada. Pela ajuda e pela confiança.
Linda apenas sorriu e foi iniciar seu plantão.
 
Capítulo 5
 
A volta à sala de emergência foi exatamente como ela pensara. Os
mesmos olhares, os mesmos cochichos. Ela podia imaginar o que falavam.
Ela precisava pensar em como iria se posicionar, como iria reagir. Ela
estava tão cansada. Talvez por isso não tenha percebido a aproximação de
seu chefe.
— Linda? — ele chamou.
Ela teve um sobressalto..
— Pedro? Você me deu um susto. Desculpe, acho que estava
distraída.
— Preciso falar com você. Podemos ir até a minha sala?
Ela sentiu uma pontada de preocupação em seu peito e com isso uma
gota de suor percorreu sua espinha, não pode evitar o pensamento que
talvez Edmundo tivesse conseguido o que queria e arruinado a carreira dela,
mas tentou disfarçar e respondeu o mais tranquilamente possível:
— Claro!
Os dois caminharam tacitamente até a sala dele. A distância, que não
era de apenas alguns minutos caminhando até o outro andar, para ela
parecia estar atravessando o deserto do Saara. Sua boca estava seca, seu
coração disparado e ela tinha um discreto tremor das mãos que tentava
disfarçar segurando-as. Chegaram.
— Sente-se Linda.
Ela obedeceu. Ele respirou fundo e ela segurou sua respiração.
— Olha, eu não sei o que houve entre você e seu namorado, mas
preciso lhe dizer algumas coisas. — e fez uma pausa.
Ela ainda olhava para ele ansiosa, com receio do que viria.
— Você é uma das melhores profissionais que temos aqui, então
qualquer coisa que ele queira falar, deixe para lá.
Ela respirou e sentiu seus músculos relaxarem um pouco.
— Mas também acho que você precisa se resguardar um pouco. Sei
que você ama o trabalho, que sempre posso contar com você, mas com tudo
isso rolando, você precisa dar uma pausa e deixar a poeira assentar.
— O que você está dizendo?
— Tire uma semana de férias. Vá para algum lugar que você goste.
Sozinha ou com uma amiga, ou sei lá com quem. Faça coisas para você. Se
não quiser viajar, não vá, mas gaste tempo com você. Deixe tudo isso para
lá um pouco. Essa situação vai passar e eu, talvez, possa ajudar. Então me
dê essa semana para pensar e estruturar um plano.
— Do que você está falando? Que plano?
— Ainda não posso dizer, porque não tenho 100% de certeza, mas
uma desconfiança. Vou confirmar. Mas garanto a você que não farei nada
sem sua anuência. Agora, seria bom se ele não soubesse que são férias. Se
ele pensasse que venceu.
— Por quê?
— Porque pessoas egocêntricas, quando acham que ganharam o jogo,
baixam a guarda e fica mais fácil de enxergá-las. Pessoas egocêntricas acha
que têm intelecto superior, que são competentes demais, que são exclusivas,
tipo a última bolacha de ouro do pacote. Muitas vezes não enxergam como
são ajudadas, sempre acham que são elas sozinhas. O ego nos ajuda a
manipulá-las ou a elas serem manipuladas por quem menos esperam.
— Você conhecia o Ed?
— Sim. Estudamos juntos no colégio, há muitos anos. Acho que ele
não se lembra de mim, mas eu me lembro muito bem dele. Isso que ele fez
com você, é bem estilo dele. Acredite, eu já vi antes. Mas acredito que
também sei que ele vai escorregar.
— E você está bolando uma vingança dupla pelo jeito.
— Talvez. — e ele deu um sorriso malicioso.
— OK. Então vou sumir por uma semana e não direi nada a ninguém,
é esse o plano?
— Exatamente.
— Você me mantém informada?
— Claro.
Ouvindo isso ela se levantou e estava saindo da sala, quando retornou
e disse.
— Obrigada!
Ele apenas meneou a cabeça e então ela saiu.
Ela, movimentou-se rápido, pegou suas coisas e ia tentar sair sem ser
notada, mas pensou bem e achou que para o plano funcionar, seria melhor
que as pessoas vissem. Já deveriam ter visto que ela fora à sala do chefe,
então se a vissem saindo, presumiriam. E com isso se fez notar.
Algumas pessoas mais próximas vieram falar com ela e perguntar o
que aconteceu, mas ela só respondia que realmente precisava de um tempo
para organizar as coisas. Ela não dizia que fora demitida e nem que estava
saindo de férias, aí precisava contar com sorte e imaginação.
Na saída do hospital, percebeu que Kim a esperava. Quando a mesma
a viu saindo com suas coisas, assustou-se um pouco e perguntou:
— Tudo bem com você?
— Tudo ótimo! — respondeu com um sorriso enigmático no rosto. —
O que você ainda está fazendo aqui?
— Eu estava indo embora, quando recebi a confirmação do Christian,
o agente do autor. Ele confirmou. É mesmo ele.
— E agora?
— Ele quer falar pessoalmente.
— E ele vem para cá?
— Não.
— Não entendi. Então teríamos que ir até ele, é isso?
— Só se você puder. Eu pedi uns dias de licença.
— Eu posso.
— Não tem que trabalhar?
— Depois eu explico, mas tenho uma semana livre.
— Acho que é exatamente o que precisamos.
— E para onde vamos?
— Bom. Quando ele representava o Charles, moravam na Austrália,
mas agora ele está no Canadá, em Toronto.
— Então é “Um Canadá aí vamos nós”?
— Acho que sim.
— E o que estamos esperando?
Ambas combinaram os detalhes e se encontrariam no aeroporto mais
tarde para a viagem. Estavam super animadas de estarem resolvendo o
quebra cabeças. Elas queriam muito falar com o agente e ver o que ele
queria delas. O único problema que elas ainda não anteviam, era que essa
conversa mudaria tudo.
 
Capítulo 6
 
Pedro andava de um lado para o outro da sala, impaciente. Ele tinha
um plano. Mas precisava de sorte. Já estava aguardando há quase dez
minutos e nada. Estava prestes a sair da sala e ir procurar pela pessoa que
chamara, quando ouviu duas batidas na porta. Ele respondeu:
— Entre.
— Oi Pedro. Mandou me chamar?
— Mandei sim. Aliás você demorou um tanto.
— Desculpe, estava resolvendo umas pendências. Depois que a Linda
foi embora, ficamos com um membro a menos na equipe. Você a demitiu?
Pedro sorriu por dentro, mas não deixou transparecer.
— Ela falou alguma coisa?
— Não. Só que precisava mesmo de um tempo para acertar as coisas.
— Então foi isso.
— Isso o que?
— Dei o tempo que ela merecia.
— Eterno?
— Se ela preferiu não dizer, não serei eu que vou fazer a fofoca.
— Você sabe que quando você não nega, acaba confirmando, não é?
— Isso é o que você acha. Não disse nada.
— Como você preferir. Mas agora, por que você queria falar comigo?
— Você fez um pedido de afastamento?
— Fiz sim.
— Afastamento de um ano sem vencimentos. Mas não pediu
demissão.
— Isso.
— Mari, você sabe que só posso dar esse afastamento se for por
motivo de saúde ou trabalho voluntário ou estudo, não sabe?
— Sei sim.
— E então?
— E então, o que?
— Qual deles é?
— Eu espero que seja o estudo. Submeti o pedido para um estágio e
espero que dê certo.
— E você pediu o afastamento antes de ter certeza do estágio? Por
quê?
— Porque tenho quase certeza que vai sair e ele começa mês que
vem. Não daria tempo de solicitar se eu aguardasse. Os trâmites demoram
muito.
— Verdade. Posso saber para onde você vai?
— Paris.
— Paris é ótima. Não sei se você já conhece.
— Ainda não.
— Você vai adorar. Mas saiba que eu só poderei lhe conceder o
afastamento quando você tiver a confirmação do estágio. Fico no aguardo
para assinar, OK? Assim que você tiver a resposta você me procura,
combinado?
— Claro! Obrigada.
— De nada.
E ela saiu. Ele foi até a porta, garantiu que estava fechada e sorriu. A
isca fora jogada, agora ele precisava fisgar o peixe. Tinha esperança que
não demoraria muito. Alguém saiu do banheiro nesse exato instante.
— O senhor quer que eu a siga?
— Sim, mas seja discreto. Eu preciso apenas de uma confirmação.
— Sim senhor. Pode deixar. — e saiu.
Mariana assim que saiu da sala, foi a um local mais reservado e fez
uma ligação. Ela não notou que tinha uma sombra que se posicionou atrás
da porta para poder ouvir a conversa.
— Alô? — atendeu uma voz masculina.
— Oi querido!
— Oi Mari! Novidades?
— Acho que deu certo. Acabei de sair da sala do Pedro e ele não
deixou claro, mas acho que ele demitiu a Linda mesmo. Ela saiu daqui às
pressas, não imagino outra coisa.
— Ótimo! E ninguém suspeita de nada, certo querida?
— Não. Claro que não. Eu sempre fui discreta e me aproximei dela
como você pediu. Ela acredita que somos amigas, então estamos bem.
— E mesmo assim ela não lhe disse nada?
— Não. Mas as circunstâncias falam por si.
— Perfeito. Então em alguns dias serei eu e você em Paris. Conseguiu
o afastamento?
— Ainda não, vou precisar comprovar o estágio.
— A gente resolve isso. De um jeito ou de outro.
— Eu sei. Confio em você.
— Vai me avisando se souber de mais alguma coisa. Eu preciso jogar
essa informação preciosa nas redes e ver o circo pegar fogo.
— Eu aviso sim. Beijo e nos vemos mais tarde.
Ouvindo isso a sombra se afastou.
— Até mais tarde.
E desligaram. Mariana saiu da sala, olhou para os dois lados. Tudo
livre. Agora ela precisava voltar ao seu papel. Voltou para a sala de
emergência para continuar seu plantão.
A sombra voltou de onde veio.
— E aí? — perguntou Pedro ansioso.
— Ela fez um telefonema, senhor. Não tenho certeza para quem, mas
alguém que ela vai se encontrar mais tarde. Então o senhor pode estar certo.
— Perfeito. Veja se consegue segui-la quando o plantão acabar e
confirmar que ela foi se encontrar com Edmundo. Se puder, tire uma foto do
celular e mande para mim, OK?
— Sim, senhor. Mais alguma coisa?
— Não. Pode ir. Até mais tarde.
Pedro sentia a ansiedade acelerar seu coração. Finalmente ele iria
matar dois coelhos com um golpe só e, ainda de quebra, conseguiria ajudar
mais uma pessoa que estava sofrendo na mão dele. Fechou os olhos por um
momento e reviveu aquele momento que nunca se cicatrizara, há muitos,
muitos anos.
Ele não chamava Pedro na época, era adolescente, estava se
descobrindo, encontrando-se. Naquele tempo atendia pelo nome de Pietra,
nome dado pela sua ascendência italiana. Tinha cabelos compridos
castanhos e pouco mais de dezesseis anos. Edmundo a notara e tentara jogar
seu charme para conquistá-la, o que obviamente não funcionou. Ele não se
conformou em ser rejeitado. Desde aquela época já era todo orgulhoso e
egocêntrico: como alguém poderia lhe dizer não. Ele começou a fazer
piadinhas sobre ela, aqui e ali, com vários colegas, mas isso não foi o pior.
Algum tempo depois Edmundo conseguiu pegar o diário dela e leu todo o
conflito que sofria. As dúvidas, os medos, as inseguranças. E então fez o
pior. Expôs tudo isso aos berros e quando Pietra tentou confrontá-lo, ele a
puxou pelos cabelos até o meio do pátio e junto com outros amigos
aproveitou para cortar o seu cabelo bem curto aos berros de se você quer
virar menino, então pelo menos corte o cabelo.
Lembrar daquele momento voltou a fazer a ferida, nunca cicatrizada,
voltar a sangrar. Sentiu um aperto tão forte no peito que se transformou em
dor. Por um momento achou que estava infartando, mas logo descartou essa
hipótese. Era só a sensação de impotência e desamparo que voltara. Mas ele
não era mais um adolescente. Aquilo ocorrera há muito tempo.
Ele nem pode acreditar quando, em um jantar de fim de ano do
hospital, com familiares e amigos, ele viu Edmundo chegando com Linda.
Não entendeu o que uma pessoa boa como ela fazia com um pária como ele.
Provavelmente ela não conhecia esse lado dele ou não havia percebido
ainda. Não sabia porque ela o suportava. Naquela mesma ocasião, ele
conheceu a Mariana. Outra médica que acabara de entrar na equipe. Notou
como ele puxou conversa com ela e como tentava fazer paralelos entre as
duas. Pedro não era inocente, sabia o que ele estava fazendo. Estava
construindo o seu plano B. Ele tentaria ficar com as duas. Naquela época
Pedro não conhecia Mariana tão bem quanto nos dias atuais, senão já
saberia que Edmundo conseguiria manipulá-la para que ela preenchesse
seus anseios, muito diferente de Linda que tinha muito mais personalidade.
Com o tempo as duas começaram a virar amigas, mesmo não tendo muito
em comum, o que acendeu uma luz vermelha na cabeça de Pedro. Então,
desde então, ele só observava de longe fazendo hipóteses. Parecia que todas
elas estavam corretas, o que o levou ao dia atual. E é claro que Edmundo
nunca imaginaria que ele era a mesma pessoa de seu passado. Foi trazido de
volta ao momento atual pelo sinal de seu celular. Olhou a mensagem. Era a
foto com a confirmação que precisava.
Ele precisava falar com Linda. Mas ainda precisava aguardar o
movimento de Edmundo. Decidiu esperar mais um pouco. Seu plano estava
funcionando e a vingança era um prato delicioso que se comia pelas bordas.
Ele sorriu. Finalmente. Mal ele sabia ainda que iria descobrir muito mais
coisas sobre a Mariana também e, na verdade, até que os dois se mereciam.
Mas ele também descobriria que conseguiria usar essa situação também a
seu favor.
 
Capítulo 7
 
Kim e Linda encontraram-se no aeroporto. O voo era tarde da noite,
mas devido a necessidade de chegar algumas horas antes para despacho de
bagagem, elas marcaram de se encontrar no finalzinho da tarde, o que lhes
daria tempo para jantar e conversar.
Linda não costumava confiar nas pessoas rapidamente, mas havia
algo em Kimberly que lhe chamava a atenção. Não sabia o que era, mas
sentia que podia confiar nela. Há muito, muito tempo não tinha essa
sensação.
Despacharam as malas após algum tempo em uma longa fila,
entraram na área de embarque, passaram pela polícia e procuraram um
restaurante dentro do terminal para matarem a fome. Nada sofisticado,
ficaram na pizza mesmo.
— Acho que eu preciso agradecer a você por tudo isso. — falou
Linda.
— Agradecer o que?
— Agradecer você ter decidido me falar sobre o Charles, ou no início
da sua suspeita sobre ele, ter me envolvido nisso, ter elogiado meu
atendimento e, principalmente agora, ter me oferecido essa rota de fuga
rápida.
— A viagem, com certeza, vai ser muito mais divertida se for
acompanhada.
— Eu sei, também acho. Mas veio no melhor momento possível.
— Olha Linda, não sou uma pessoa supersticiosa, mas realmente
acredito que tudo acontece por um motivo. Não deve ter sido coincidência
você ter feito aquele atendimento, nem de eu estar lá, muito menos de
conseguirmos uma resposta do agente dele e ele querer falar pessoalmente.
As vezes não entendemos, mas se tivermos paciência, vamos ver que há
uma razão.
— Não sei se acredito nisso ou não, mas estou feliz em estar indo
para longe dos meus problemas.
— Sei como é.
— E o que você acha que o Christian quer falar com a gente?
— Não tenho ideia.
— Estranho ter que ser pessoalmente.
— Também achei. Mas amanhã a gente descobre e depois dá umas
voltas pela cidade. Eu não conheço Toronto, você conhece?
— Não.
— Então teremos atividades infindáveis para a semana. — e riram as
duas.
Terminaram o jantar e se sentaram próximo ao portão de embarque
para aguardar. Tudo correu perfeitamente bem e no horário proposto
estavam iniciando o embarque e se acomodando em suas poltronas. Agora
seriam várias horas de voo até o destino. A vantagem é que boa parte dele
elas iriam dormindo e, como estavam acostumadas, por causa dos plantões,
a dormirem em qualquer lugar, a poltrona de um avião não era tão ruim
assim. E como ambas estavam bem cansadas, assim que o avião começou a
taxiar, elas já estavam dormindo.
A viagem foi com pouca turbulência e próximo ao horário do pouso a
equipe de bordo passou acordando os passageiros para o café da manhã.
— Dormiu bem? — perguntou Kim.
— Como uma pedra. — sorriu Linda.
Dizendo isso, ela decidiu conectar o celular no wi-fi do avião para ver
se tinha algo urgente acontecendo. Assim que o fez, percebeu que tinha
muitas mensagens. Pelos remetentes, ela conseguiu imaginar o que seria.
Decidiu que não era o momento de se irritar com aquilo e simplesmente
desconectou.
— O que houve? Sua cara ficou péssima. — comentou Kim.
— Desconfio que meu ex aprontou mais alguma coisa, mas eu não
quero ver isso agora. Mais tarde me preocupo com ele e seus joguinhos. —
o tom era claramente irritadiço, embora estivesse tentando disfarçar.
Kim ficou na dúvida se insistia, se aconselhava ou se apenas se
calava. Resolveu mudar de assunto, principalmente com a bandeja do café
da manhã chegando.
— Vamos comer então?
— Melhor. — e tentou sorrir.
Algum tempo depois pousaram no aeroporto internacional de
Toronto. Desceram, fizeram todos os trâmites necessários e saíram para
pegar um taxi para irem até o hotel que ficariam. Como o aeroporto ficava a
mais de 30 quilômetros do centro de Toronto, elas teriam uma mini viagem
a ser feita.
— O que vamos fazer até a hora do nosso encontro?
— Não sei. — respondeu Linda um pouco desanimada. — Podemos
dar uma volta, até porque acho que o hotel não vai estar disponível ainda.
— Bom, escolhemos o Le Germain Hotel Mapple Leaf Square porque
ele é bem localizado e ao lado da CN Tower onde vamos almoçar com o
Christian. Podemos ver o que tem ali perto.
— Isso eu já fiz. Nossas opções são: o aquário, a ciclovia, o
Harbourfront, a Scotiabank Arena, palco de jogos de basquete do Toronto
Raptors e de partidas do Maple Leafs, time da liga profissional de hóquei
no gelo e ás vezes palco de alguns shows. Também tem a cidade
subterrânea que podemos dar uma olhada.
— Nossa! Você fez mesmo o dever de casa. Vamos deixar as malas no
hotel e bater perna por esses lugares e próximo às 13hs, vamos para a CN
Tower.
— Combinadíssimo!
Saíram do avião, seguiram o fluxo, passaram pela imigração, pegaram
as malas e foram à procura de um táxi do lado de fora. Não demoraram
muito para achar, mas se deram conta que estavam um pouco longe da
cidade. O caminho ia durar algum tempo. Ainda relutante, Linda resolveu
checar as mensagens. Eram várias e todas mencionavam como ela havia
sido demitida em decorrência do que fizera. Seu único alívio, era que lhe
parecia que esse era o plano de Pedro, então tudo estava correndo, se é que
se podia dizer isso, bem. Havia até um vídeo no Youtube de Ed
comemorando a justiça que havia sido feita. Embora ela soubesse que era
mentira, seu ar de triunfo, sua animação, sua satisfação em vê-la se dando
mal doeram. Ela tinha a percepção que uma ferida invisível e profunda se
abria em algum lugar bem no fundo de sua alma e de seu coração. Ela
lamentava tudo que tinha feito por ele. Todas as vezes que abrira mão, que
tentara atingir as expectativas dele, cuidar dele. Sentiu as lágrimas
queimarem em seus olhos e estava com muita dificuldade em fazê-las
desaparecer. Fechou os olhos por um momento tentando recobrar seu centro
e retornar ao equilíbrio, à calma aparente. Kim percebeu imediatamente.
— Você está bem?
— Tentando ficar.
— O que houve?
— Como eu lhe disse, meu ex aprontando. Mas eu acho que o plano
está indo como previsto. Eu só preciso conseguir me blindar dessa sensação
de ter jogado anos da minha vida na lata do lixo, tentando ser algo que eu
nunca fui, tentando corresponder a uma expectativa que eu nunca quis
atingir e abrindo mão de tanta coisa que hoje eu nem ao menos sei o que
realmente sou e quero.
— Olha, de verdade, eu não imagino pelo que você passou, mas
acredite que tudo na vida vem por um motivo. Você precisa aprender com
isso tudo. Nunca mais abra mão do que é importante para você, nunca mais
deixe alguém lhe dizer quem você deve ser. Se você está com alguém que
não a aceita como você é, essa pessoa não serve para você. Se ela vê seu
sofrimento, seu esforço e é alheia a isso, ela não lhe merece. Eu não a
conheço muito bem, mas posso dizer pela sua energia, você é ótima no que
faz, competente, sensível, honesta, preocupada com os outros. Sou capaz de
garantir que você vai perceber que você se livrou de um peso. Pense na sua
vida agora como se você fosse um balão, sabe? Para ele voar a gente joga
os pesos fora, ele fica mais leve e sobe cada vez mais. Essa será você sem
aquele traste. Deixa ele para lá. Que seja feliz bem longe de você.
Linda tentou sorrir.
— Talvez você tenha razão. — mas lá no fundo, sua mente
reverberava se valeria à pena sentir tudo aquilo, passar por tudo aquilo, se
não seria muito mais fácil desistir de tudo.
— Tenho quase certeza que sim.
Após alguns minutos chegaram ao hotel. Desceram e como esperado,
ainda não tinham quarto. Deixaram as malas em uma sala própria para isso
e foram fazer um reconhecimento da vizinhança até o horário marcado para
o almoço. Pouco antes das 13hs, encaminharam-se ao famoso restaurante,
deram seus nomes e esperaram por aproximadamente uns dez ou quinze
minutos. Quando estavam começando a ficar preocupadas com a
possibilidade de terem tomado um bolo, viram a recepcionista orientando
um homem de terno bem apessoado para se dirigir a mesa delas.
Entreolharam-se. Ele veio a passos firmes na direção delas e quando chegou
perto suficiente para ser ouvido, perguntou:
— Linda e Kimberly?
— Somos nós.
— Muito prazer. Sou Christian. — e esticou a mão educadamente
para cumprimentá-las. — Precisamos conversar.
Dizendo isso os três se sentaram e um silêncio constrangedor
envolveu a mesa, até Kim resolver quebrá-lo.
— Qual exatamente o motivo de você ter nos convocado para essa
reunião presencial?
— Eu precisava mostrar a vocês um documento. — dizendo isso ele
tirou um calhamaço de papéis de dentro de um envelope e colocou na frente
delas.
Linda começou a folheá-los e seus olhos foram se arregalando
conforme iam passando pelas palavras. Sentiu seu coração disparar e suas
mãos começaram a suar.
— Você está falando sério? — indagou ela.
— Infelizmente sim.
E ela caiu pesadamente sobre a cadeira, desanimada. Kim olhava sem
entender e, então, ela lhe ofereceu o documento. A reação dela foi a mesma.
Entreolharam-se.
— Sei que não é a notícia que esperavam, mas é o que ele quer. Sinto
muito. Não é o tipo de notícia que se dá por um e-mail ou por telefone, por
isso pedi para vocês virem até aqui. Realmente sinto muito. Se quiserem
almoçar, o convite está de pé, mas se preferirem que eu vá embora ou se
vocês quiserem ir, vou entender também.
Elas se entreolharam. Tinham uma decisão a ser tomada. Mas o
desânimo e frustração estavam estampadas em seus rostos. Elas não
esperavam por aquilo.
 
Capítulo 8
 
Pedro estava em sua sala pensativo. O plano estava caminhando como
ele previra, mas não sabia como Linda reagiria a aquilo tudo. Ainda
precisava de um movimento, mas estava com muita dúvida. Ele encontrara
um amigo no dia anterior que tinha soltado uma informação que lhe gerou
confusão.
Assim que cuidou de todos seus afazeres no dia anterior e após todo o
estresse gerado, decidiu que precisava relaxar um pouco e decidiu ir a um
bar que não frequentava há algum tempo, mas que sabia que tinha boa
música ao vivo, que era tudo que ele precisava no momento: música e
bebida. Assim que entrou, ainda estava procurando um lugar para se sentar,
quando ouviu seu nome.
— Pedro?
Virou-se assustado e viu Rafael, um antigo funcionário que havia se
demitido no ano anterior para uma oportunidade de pós graduação nos
Estados Unidos.
— Rafa? Você voltou da pós já?
Eles se abraçaram e Rafael respondeu:
— Não. Só férias. Voltei para o Brasil para ver a família e uns amigos
e aproveitamos para beber juntos, é claro!
— Bom ver você. Tudo bem lá no hospital?
— Algumas intercorrências, mas no geral tudo bem.
— O que rolou?
Pedro não queria entrar nos detalhes, mas deu uma visão geral do
ocorrido com Linda. Rafael ouvia com atenção e perplexidade. Quando ele
terminou, ouviu:
— E me fala uma coisa, a Mari já pegou o Ed ou ainda não?
Pedro se assustou. Rafael percebeu e esclareceu rapidamente.
— Olha, na boa. Quando ela soube da minha pós, ela me pediu para
apresentá-la para a pessoa que estava me ajudando, que era o Guilherme.
Ele a apresentou para o chefe dele, o Maurício. Depois de um tempo, soube
que ela se envolveu com os dois para ver se conseguia me passar a perna no
estágio, ou seja, que ela fosse no meu lugar. Claro que eu estava fazendo
tudo por meios lícitos e por merecimento e não rolou, mas ela tentou. Aí
teve aquela festa, lembra? O Ed já estava vendo a ida para Paris, enchendo
a paciência da Linda para ir com ele. Lembro de ele ter mencionado algum
estágio ou trabalho para a Linda, o que me chamou a atenção se ela ia se
jogar para ele, afinal é o objetivo dela de vida. Embora na mesma festa ela
tenha falado super mal dele para metade das pessoas, que ele parecia
egoísta, egocêntrico, eu achei que ela tentaria se aproximar para se dar bem,
é muito o estilo alpinista social dela. Aí com toda essa história que você
está contando, até o fato de ele ter suspeitado que você tenha demitido a
Linda, o que eu acho que você não faria porque ela é ótima, me faz pensar
que ela contou para ele.
Pedro estava sem palavras. Ele não sabia desse passado da Mari, mas
muita coisa passava a fazer sentido agora. Então, aparentemente, ela o
estava usando para conseguir o estágio que queria e, provavelmente, algum
tempo após conseguir seu objetivo, terminaria com ele por qualquer motivo
que conseguisse inventar. A história ficava cada vez mais complexa e
interessante.
— Você não vai falar nada?
— Nem sei o que dizer. Isso parece série do Netflix e não vida real.
— Mas ela está com ele ou não?
— Até onde eu sei, sim. — gaguejou um pouco Pedro.
— Agora tem que ver se ele está sendo enganado mesmo, ou se está
dando o golpe na golpista.
— Não faço a menor ideia. Mas posso dizer que eu estava sendo
enganado.
— Você não sabia do passado dela.
— Será que ele sabe?
— Sou capaz de apostar que não. Do jeito que ele é, deve achar que
ela o ama loucamente, que faria tudo por ele e que ela é muito melhor que a
Linda. Só tenho duas palavras para isso. Só lamento. Ou na verdade não, a
Linda era muita areia para o caminhão dele. Ela merece algo melhor.
— Também acho.
— E você não quer se candidatar? — perguntou esbarrando no ombro
do Pedro.
— Acho que não. Se eu conheço um pouco a Linda, sendo chefe dela,
ela nunca toparia isso, mesmo que eu quisesse. Mas eu tenho a sensação
que ela está interessada em um paciente. Ela vai bastante visitá-lo.
— E isso pode?
— Acho que tem algo por trás dessa história, mas em meio de toda
essa confusão, não consegui falar com ela com calma. Preciso entender tudo
isso primeiro.
— Bom, só posso lhe desejar sorte e equilíbrio, porque tudo isso é
muito confuso. Também preciso dizer que foi ótimo revê-lo e, infelizmente,
amanhã eu retorno à Universidade de Monte Sinai. Mas vou deixar meu
número de lá com você e se precisar de qualquer coisa, você me avisa, OK?
— Pode deixar! Obrigado. Um prazer ver você também e saber que o
estágio está dando certo. Se você precisar de um lugar quando voltar, é só
me procurar.
— Obrigado Pedro. Você sempre foi uma pessoa bacana e um ótimo
chefe. Você sabe que se não fosse a oportunidade que eu tive, eu nunca teria
saído de lá, não é mesmo?
— Imaginava, mas é ótimo ouvir isso. Muito obrigado.
— A gente se vê.
Pedro repassava aquela conversa na cabeça inúmeras vezes. Por
aquela história ele não esperava e não sabia muito bem o que fazer com
aquela informação. Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida
na porta. Ele se concentrou e respondeu:
— Pode entrar.
Mari colocou a cabeça para dentro da sala e disse:
— Incomodo?
— Não. — ele mentiu.
— Eu só queria lhe dizer que tive a resposta do estágio. Eles
confirmaram. A carta está aqui. Então acho que agora você pode autorizar
minha licença.
— Boa notícia para você. Posso sim. Assim que confirmamos com a
instituição. — arriscou Pedro para ver a reação dela.
— Não entendi. Por que você tem que confirmar com a instituição. —
respondeu ela nervosa.
— Não preciso, mas vou, porque tem algo nessa história que não
encaixa, Mari. Então se você não se importa, eu queria que você fosse
sincera comigo. Não consigo não pensar que você tentou descobrir se eu
tinha ou não demitido a Linda e depois disso o Ed fez o que fez. Além
disso, sei que ele estava pressionando para ela ir para Paris e você me
aparece com esse estágio no mesmo lugar. Posso estar muito errado, mas
isso tudo me parece interligado.
Ela se sentia encurralada. Talvez devesse ter pensado que alguém
ligaria os pontos. Ela não sabia se mantinha no papel de desconhecimento
do que ele falava ou se assumia e abria o jogo. Ela estava caminhando em
um fio afiado e fino de uma navalha e qualquer deslize poderia deixar
marcas profundas. Precisava tomar uma decisão. Respirou fundo, sentou em
frente a ele e começou a narrar a sua verdade.
— Não posso dizer que você está errado. — confessou.
— Eu achava que você e a Linda eram amigas.
— Olha, eu gosto da Linda. Ela é ótima profissional, boa pessoa,
preocupada com os outros. De verdade, a relação dela com o Ed não tinha
futuro. O cara é um idiota. Não enxerga a verdade nem que ela seja
esfregada na cara dele. Ele pensa no que ele quer, vê o mundo pela
realidade dele e se acha o máximo, tipo a última bolacha inteira do pacote.
Eu achava que eles iam acabar rompendo e vi uma janela de oportunidade
para mim.
— Isso não é certo.
— Eu sei. Mas terminar com ele foi melhor para ela, não foi?
— Não posso responder por ela. Mas de qualquer forma, a sensação
de ser traída, ainda mais por alguém que ela considerava amiga, vai doer e
muito.
— Mas ela não sabe. E não precisa saber.
— Você não pode estar falando sério. Ela vai saber no momento que
vocês forem para Paris juntos. Você acha que ela vai acreditar que é apenas
coincidência? Ela é bem mais esperta que isso.
— Eu sei disso. Mas não pretendo ir com ele.
— Não entendi.
A conversa ficava tão densa, que o ar da sala parecia estar ficando
pesado, nebuloso. Ela ficava cada vez mais nervosa e sentia o suor
escorrendo pela extensão de sua coluna.
— Eu queria o estágio. Eu tenho. Não quero ficar com ele. Já disse.
Ele é egoísta, não enxerga ninguém que não ele mesmo, quer sempre as
coisas do jeito dele, para ele.
— Mas assim que você disser isso a ele, corre o risco de perder o
estágio. Sem o estágio, você não terá o afastamento que já pediu e aí você
corre o risco de perder o emprego aqui também. O que você quer?
— Sua ajuda.
— O que?
— Pedro se eu e você nos juntarmos, conseguimos ajudar a Linda e
atrasar a ida dele para Paris. O suficiente para eu me matricular lá e ele não
conseguir mais cancelar meu estágio. Além disso, para ser sincera, eu estou
com outra pessoa que ele não sabe. Ele é um advogado internacional, que
também tem um escritório com sede em Paris. Ele vai para lá comigo.
Então...
— E por que eu ajudaria você?
— Não acho que você faria por mim, porque acredito que nesse
momento você deve estar muito bravo comigo, mas você gosta da Linda.
Então não por mim, mas por ela. Podemos montar um plano.
— Ainda não concordei, mas quero ouvir o que tem em mente. Fale.
E ela começou a desenrolar uma história bem intrincada e cheia de
possíveis vieses, mas que no fim poderia funcionar. Ele ainda não sabia se
podia confiar nela e, com certeza, não confiava, mas era inegável que o
final poderia ser muito positivo, inclusive para Linda. Ele refletiu um pouco
e respondeu.
— Vou pensar um pouco. Mas pode funcionar. Você vai me
atualizando, pode ser?
— Claro. Espero que você tope. — e ela saiu da sala, deixando o
chefe com mais dúvidas ainda.
 
Capítulo 9
 
O almoço de Kim e Linda com Christian realmente não foi o que
esperavam. E após a visão do documento elas entenderam o motivo dele
querer fazer a reunião presencial. Ambas ainda pensavam em como abordar
os próximos passos e o silêncio pairava sobre a mesa de forma
constrangedora e esmagadora. Mas decidiram manter o almoço. Foi
Christian que o rompeu novamente.
— Olha, sei que não é o que esperavam. Eu entendo. Não é o que eu
quero também. A primeira vez que ele tentou isso, ficou internado por um
bom tempo e, posso dizer a vocês que quando ele saiu, ficou muito irritado
por tudo que fizemos para mantê-lo... vivo. Acho que sempre teve na
cabeça tentar novamente, mas não achei que demoraria tanto. Aí ele sumiu,
parou de dar notícias. Cheguei a imaginar que havia acontecido algo e que
ele tinha tido sucesso e que eu nunca mais teria notícias dele, até a sua
mensagem Kimberly. Pelo que vocês dizem o quadro é grave, então não sei
se temos opções.
Linda tentava não chorar, não gritar e manter uma voz controlada,
mas ela estava muito irritada, triste e desanimada.
— O estado dele é estável. Não acho que precisaremos de medidas
extremas para mantê-lo. O acidente foi grave e recente. Precisa de tempo
para melhorar.
— Você tem certeza disso?
— Medicamente falando, nunca temos certeza de nada. O quadro dos
pacientes, dentro de uma UTI, sempre pode mudar em algumas horas, mas
pelo que vi desde a internação dele, é bastante estável.
— Mesmo assim, não é o que ele quer. Vocês precisam deixá-lo ir.
Ambas queriam gritar, protestar, mas não seria prudente.
— E você quer que levemos os papéis e que façamos o que ele quer, é
isso?
— Não.
— Não? — responderam ambas em uníssono.
— O advogado dele fará os trâmites. Eu só queria informar vocês
primeiro. Se não tivessem me contactado, não saberíamos nada sobre ele e
não poderíamos agir. Então chamei vocês aqui para explicar a situação,
agradecer e dizer para vocês aproveitarem um pouco Toronto. Estou
cobrindo os custos da estada de vocês aqui, como agradecimento. Mas
daqui para frente, eu assumo. — limpou a boca com o guardanapo,
levantou-se, arrumou o terno caro e despediu-se dizendo que iria pagar a
conta, para elas não se preocuparem. Saiu deixando ambas mergulhadas na
sensação de impotência, decepção e tristeza.
Linda estava no fundo do poço. O que mais poderia dar errado? Sua
vida pessoal desmoronara, a profissional estava se equilibrando na corda
bamba e só não estava pior porque Pedro era o melhor chefe do mundo, a
emocional nunca fora a melhor, mas sentia como se agora estivesse sendo
testada em seu máximo. Kim parecia pensar. Após alguns minutos viu o
rosto dela se iluminar. Sentiu uma centelha de esperança se acender no
fundo do seu peito, mas não quis se apegar muito a ela, pois estava cansada
da decepção. De qualquer forma, perguntou:
— O que foi?
— Linda, nós moramos no Brasil. Nossas leis. Ele está lá, portanto
obedece as nossas normas, correto?
— Sim, claro. Mas do que você está falando?
— Ele não tem morte cerebral, correto? É só um coma induzido.
— Eles não sabiam o tamanho dos danos, ainda iam avaliar, mas
pelas reações e parâmetros, acredito que não.
— Entende o que eu quero dizer?
— Acho que sim. No Brasil eles não vão poder simplesmente desligar
os aparelhos, exceto se houver uma morte cerebral confirmada, é ilegal. —
sentiu a centelha aumentar e se transformar em uma pequena chama.
— Exato.
— Então, talvez tenhamos uma chance.
— Acho que temos sim.
E depois dessa constatação, terminaram o almoço um pouco mais
animadas. Saíram dali e foram dar uma volta na cidade para conhecê-la
melhor e ao final do dia retornaram para o hotel. Pelo menos agora tinham
seus quartos disponíveis e vizinhos. Subiram pelo elevador e despediram-se
na porta.
— Se precisar de algo e só chamar, OK? — falou Kim.
— Você também. Mas acho que o que eu realmente preciso é um bom
banho e dormir um pouco.
— Nós duas, não é? Até amanhã. Descanse.
Linda achava que não ia conseguir, sua cabeça estava a mil, mas
apenas sorriu e entrou, fechando a porta em suas costas. Ela nem chegou a
desfazer a mala, sentou no sofá que tinha próximo a janela, entreabriu a
cortina e ficou olhando o movimento de carros e pessoas lá embaixo. Estava
esgotada. Poucos minutos depois, recebeu uma mensagem de Pedro.
“Oi. Tudo bem aí? Chegaram bem? Você pode falar?”
Ela não sabia se queria falar com alguém. Não sabia se suportaria
alguma outra má notícia naquele dia, mas não podia ignorar Pedro, então
apenas digitou: “Oi. Tudo bem sim. Chegamos bem. E claro que posso
falar.”
Ele respondeu “Ligando” e ela viu seu telefone vibrar com o nome do
chefe e amigo.
— Alô.
— Oi Linda. E aí?
— Tudo indo.
— Tão ruim assim? — ele tentou rir e brincar.
— Médio. Mas o que aconteceu?
— Tenho algumas notícias, mas acho que você não vai gostar.
Ela queria gritar para ele desligar e não falar nada, mas uma boa parte
das notícias do Ed ela já sabia, então talvez não fosse muito ruim, afinal.
— O Ed aprontou bastante, não é?
— Sim. Mas essa parte está sob controle. São outras duas coisas que
acho que você precisava saber e que não vai gostar.
Ficou apreensiva, duas coisas?
— O que houve?
— A primeira é que a Mari e o Ed estão juntos há algum tempo. Eu
entendi que ela só o está usando para ter um estágio na França, mas, para
todos os efeitos, eles estão juntos. Vou mandar para você uma prova. — e
dizendo isso ele encaminhou a foto que tinha para o celular dela. Ela sentiu
o aparelho vibrar, mas preferiu não olhar naquele momento.
— E a segunda?
— Sabe aquele paciente que você atendeu e que foi para a UTI, que
não sabíamos quem era?
— Sim. — e ela sentiu o peito apertar. Será que Christian fora tão
eficiente que já tinha dado ordens e elas não teriam tempo de nada. Seu
coração disparou.
— Parece que ele não queria que medidas fossem tomadas para salvar
a vida dele. Mandaram uns documentos via o advogado dele para o
hospital.
— E?
— Bom, você sabe que poderíamos não ter feito o atendimento de
urgência se soubéssemos disso quando chegou. Mas agora, é bem mais
complicado. O pessoal da UTI pediu eletroencefalograma e ultrassom para
avaliar o fluxo cerebral e garantir que não há morte cerebral, sendo assim,
informar a impossibilidade de desligar os aparelhos, mas o advogado já
avisou que se for assim, vão transferi-lo de avião para outro país que
permita atender sua vontade. Então estamos nesse impasse agora. Desculpe
as más notícias.
Ela não conseguia responder nada. Estava em choque.
— Linda você ainda está aí?
— Sim. — respondeu monotonicamente.
— Você está bem?
— Já estive melhor.
— Eu sei. Desculpe. Mas acho que você precisava saber. Do seu ex,
como eu disse, fique tranquila que tenho um plano em andamento.
— Espero que dê certo. Estou precisando de boas notícias.
— Vai dar. Eu mantenho você informada.
— Obrigada Pedro. Até mais.
— Até.
Deixou o braço escorrer ao redor de seu corpo. Abriu as mensagens
para ver a foto que ele enviara e viu Ed e Mari juntos, o que lhe doeu um
pouco, mas ao mesmo tempo, de forma estranha, deu-lhe um certo alívio.
Ela realmente se livrara de um mau caráter. Precisava reconhecer que, no
fundo, essa mudança era para melhor, ela só precisava se desapegar de seu
passado para construir um futuro. Mas qual futuro? Ela achava que tinha
encontrado sua alma gêmea em Charles, mas agora talvez o perdesse antes
de ter a chance de realmente conhecê-lo. Sua cabeça latejava de dor.
Levantou-se do sofá e foi até sua bolsa, pegar um remédio. Assim que abriu
sua necessaire notou que tinha outros remédios de outros tempos guardados.
Tomou o comprimido para dor com um pouco de água e separou duas
cartelas de medicamento. Ficou olhando para eles sobre a mesa, pensando
se devia ou não fazer aquilo. Ela estava exausta. Emocionalmente esgotada.
Pensou no irmão mais novo e na mãe. O que iria acontecer com eles se ela
não estivesse mais lá? Provavelmente nada. Ficariam tristes, não sabia se o
irmão entenderia, afinal ele tinha algumas limitações devido ao autismo
grave, mas ele sentiria falta dela. Respirou fundo. Ficou em dúvida se
escrevia ou não uma carta de despedida, mas não sabia o que escrever.
Levantou-se, encheu um copo grande de água, retirou todos os
comprimidos das cartelas, colocou todos na palma de sua mão e olhou para
eles por alguns segundos. Ia colocá-los na boca quando ouviu uma voz que
a assustou fazendo com que todos caíssem ao chão.
— Você quer mesmo fazer isso?
Ela procurou assustada, pois não era possível alguém estar lá dentro,
ela estava sozinha. Encontrou uma sombra em um canto escuro do quarto e
teve medo.
— Quem é você? O que está fazendo aqui?
Viu a figura se levantar e se mover em sua direção de uma forma
fluida que parecia não ser desse mundo.
— Você sabe muito bem quem eu sou. Está querendo me encontrar há
muito tempo e já conheceu meus filhos em um sonho.
— Você está me assustando. Não sei do que está falando.
— Seja sincera com você mesma, Linda. Claro que você sabe. E estou
aqui porque acho que temos que ter uma conversa antes de você decidir se é
isso mesmo que você quer fazer.
A figura se aproximou mais. Cabelos negros, olhos negros como a
noite, roupas escuras, o ar ficava mais frio conforme ela se aproximava.
Linda sentiu um calafrio.
— Você é...
— Sim minha cara, eu tenho vários nomes em várias culturas e
crenças, mas em todas sou eu que levo as almas desse mundo. Eu sou a
Morte.
Linda sentiu suas pernas tremerem, seus olhos escurecerem e
simplesmente desmaiou. A conversa teria que esperar ela acordar
novamente. Naquele momento, ela estava em outro reino.
 
Capítulo 10
 
Pedro passou a noite toda pensando. Não tinha certeza se fizera a
coisa certa. Ele não podia esconder de Linda o que Mariana fizera, mas não
sabia como aquilo iria afetá-la. Também não tinha certeza sobre como ela
encararia a segunda notícia. Chegou a pensar em ligar para ela de novo, mas
refletindo a respeito, talvez precisasse de tempo para assimilar e
metabolizar tudo aquilo. Agora ele precisava dar sequência ao plano.
Primeiro passo, informar sua equipe que Ed havia inventando e suposto
muitas coisas de forma equivocada e o segundo passo, esse era o mais
difícil, expô-lo de forma veemente, deixá-lo em uma situação que não
permitisse viajar mais para Paris e causar constrangimento e problema tal
que ele se arrependesse pelo resto da vida. Ele se orgulhava de estar
manipulando aquelas informações e gerando aquela vingança, não, mas
aquilo, bem no fundo de sua alma estava lhe fazendo bem? Sim, com
certeza a sensação de que havia alguma justiça nesse mundo estava
deixando-o de muito bom humor.
Chamou sua secretária e pediu que convocasse todos, inclusive os que
estavam de folga, mesmo que fosse para entrar na reunião virtualmente.
Vantagens do mundo híbrido. Avisou que seria uma nota breve, que não
deveria durar mais de dez minutos. Ela obedeceu e foi convocar todos e
fazer um convite de zoom para os que acessariam remotamente. Ele
pensava no discurso que faria, mas não daria detalhes. Seria objetivo. Esses
detalhes e o aprofundamento da história ele daria para uma outra plateia,
mas ainda precisava trabalhar nisso. Teria que contar com a ajuda de um
colega que não falava há muitos anos, mas que sempre fora muito correto e
justo e, por isso, acreditava que seria possível. Abriu seu computador, seu e-
mail, procurou o endereço dele e escreveu uma mensagem com a história
resumida. Enviou. Agora a sorte estava lançada e ele precisava que o
universo contribuísse com um pouco de sorte. Fechou tudo e desceu para o
auditório onde seria a reunião. As pessoas já estavam chegando, o lugar
vinha se enchendo e todos estampavam a dúvida em suas feições. Todos
menos Mariana que achava que já sabia sobre o que seria o comunicado.
Pedro aguardou alguns minutos até todos se acomodarem e iniciou:
— Bom dia a todos. Serei breve, eu prometo, até porque sei que todos
nós temos muito a fazer. Chamei vocês aqui porque percebi que houve uma
especulação em relação ao que houve com a Linda, então decidi informar a
vocês oficialmente. Sei que o ex namorado dela fez bastante alarde com
uma possível demissão dela e também sei que ele, no mínimo, inventou
algumas histórias sobre ela. Queria dizer que eu não despedi a Linda,
apenas dei alguns dias para ela se afastar enquanto a poeira baixava. Ela é
uma ótima profissional que acredito que muitos de nós aqui admiramos e
ela não merece, de forma alguma, passar por tudo isso. Achei que dar
alguns dias para ela seria bom para preservá-la e dar-lhe a chance de se
acalmar e trabalhar internamente tudo isso. Mas eu nunca pensei, nunca
passou pela minha cabeça, perder a ótima funcionária e, preciso dizer,
pessoa, que ela é. Então, dessa forma, era isso.
Nitidamente ele notou algumas expressões aliviadas e outras até de
felicidade. Uma das enfermeiras levantou a mão e ele lhe passou a palavra.
— Pedro, muito obrigada por nos contar. Estávamos sim apreensivos
desde ontem com o que ouvimos. E acho que falo por muitos aqui,
concordamos com você. A Linda é ótima pessoa, muitos de nós aqui já
precisamos dela ou nem precisamos e ela nos ajudou, porque ela é assim.
Como profissional, não lembro de ter trabalhado com alguém que fosse
mais humana, mais empática e mais atenciosa e competente que ela. Então
estou muito contente com a informação e concordo que, com esse turbilhão
de acontecimentos, talvez tenha sido mesmo melhor dar um tempo a ela.
Mas como você a convenceu? Do jeito que ela é, duvido que tenha
concordado prontamente em se afastar.
Pedro sorriu.
— Não foi fácil, mas fui convincente e usei meu cargo para uma
decisão de cima para baixo. Não deixei muita margem.
Ela assentiu.
— Mais alguém?
Um dos médicos, colegas de Linda levantou-se:
— E nós não podemos fazer nada com esse, esse... nem sei a palavra
que seria adequada para usar sobre ele.
— Você diz o Edmundo?
— Ele mesmo.
— Acho que aqui se faz, aqui se paga. Tenho certeza que ele vai
acabar tendo que arcar com as besteiras que fez. — e olhou de soslaio para
Mariana.
Ouviu algumas pessoas dizendo que esperavam que ele estivesse
certo, mas com isso, todos foram saindo e a reunião se encerrou. Ele voltou
ao seu escritório e abriu seu computador para retornar a seus afazeres.
Percebeu que havia recebido uma mensagem em seu e-mail pessoal. Sentiu
o coração acelerar, será que tinha dado certo? Abriu sua caixa de
mensagens.
“ Caro Pedro,
Que ótimo ter notícias de você. Eu preferia que não fosse com uma
história dessas, mas ultimamente violência física, psicológica, patrimonial,
emocional e sexual contra mulheres (e não só com elas) parece estar
ficando mais frequente. Gosto da ideia de poder defender pessoas, você
sabe disso, então estou dentro. Sinto muito pela sua história pessoal, eu
realmente não sabia dela, mas se você concordar, acho que podemos expor
esse cara e contar a sua história e a da sua funcionária. Creio que com isso o
infeliz vai ter muito para se explicar e poderemos dar voz a muitas pessoas
que passam pela mesma coisa. Avise-me quando você estará disponível
para marcamos uma entrevista. Seria muito bom se sua funcionária também
estivesse presente. Espero ouvir notícias suas em breve. Abraços.
Maurício.PS: se preferir me ligue, o meu telefone está na assinatura do e-
mail.”
Pedro tamborilou os dedos na mesa por alguns minutos. Ele tinha
conseguido o espaço para falar, mas não sabia se Linda toparia dar
entrevista também. Embora fizesse sentido o pedido do amigo, ele não
pensara sobre isso. Teria que falar com ela. Tentou ligar, mas o celular
estava na caixa postal. Achou estranho e tentou novamente, mas de novo
deu caixa. Resolveu deixar uma mensagem para que ela entrasse em
contato, mas não pode disfarçar o aperto que estava no coração. Decidiu
telefonar para Maurício.
Assim que o amigo atendeu, Pedro explicou toda a situação com mais
detalhes. Tudo que ele sabia sobre a relação entre Linda e Ed, embora tenha
omitido a traição de Ed com Mariana, detalhes do que ele tinha feito contra
ela e mais detalhes do que ele, Pedro, no passado, tinha sofrido na mão do
mesmo Edmundo. Maurício ouvia sem interromper, mas em diversos
momentos fazendo barulhos audíveis de concordância ou até repulsa. Pedro
também explicou que havia tentado entrar em contato com Linda, mas sem
sucesso e ele não sabia se ela gostaria de falar sobre o assunto, mas que
deixara uma mensagem. Ao fim do relato, Maurício comentou:
— Eu entendo a sua posição e a dela. Também compreendo a
resistência, caso ela tenha, em falar disso tudo. É impossível comentar
sobre tudo isso sem reviver o sofrimento, a decepção, mas a empatia que ela
pode gerar se decidir falar, contar sua história. Inclusive ela pode encorajar
e inspirar outras pessoas que estão passando ou passaram por uma situação
semelhante a terem voz. É muito importante dar voz a pessoas comuns.
Assim deixamos a sociedade mais consciente do que acontece e
conseguimos chamar a atenção que é papel de todos estarmos alerta e
denunciar. Se puder, fale com ela e tente convencê-la. Hoje estou muito
enrolado com as coisas da redação aqui, mas posso passar aí umas nove da
manhã, amanhã, se você puder.
— Por mim OK. Vou deixar agendado. Vou tentar falar com ela
também.
— Ótimo, então até amanhã!
— Até! E muito obrigado Maurício.
— Imagina! Não tem de que. E você sabe que é um assunto que eu
gosto e defendo. Então sou eu que tenho que agradecer. Nos vemos amanhã.
Pedro desligou e reclinou em sua cadeira. Os próximos dias seriam
cruciais e ele mal podia esperar.
 
Capítulo 11
 
Linda acordou após algum tempo, tendo a certeza que ela estava
totalmente louca. Piscou algumas vezes para tentar focar em seu entorno,
pois tudo estava turvo. Sentou-se com dificuldade e quando estava tentando
ficar de pé, ouviu a voz novamente:
— Finalmente.
Linda se assustou de novo. Seria possível?
— Não é comum, mas é possível. — respondeu sua interlocutora,
parecendo que tinha lido sua mente.
— Por que? — perguntou.
— Porque você minha cara está no meio de um jogo bem perigoso.
Mas estou do seu lado. Vou explicar tudo.
Linda não sabia se ter a Morte ao seu lado era algo bom ou ruim, mas
decidiu aguardar.
— Noto sua confusão. Mas eu não sou boa nem má. Só faço meu
trabalho. Assim como você faz o seu. Você, como médica, não consegue
salvar todos. Você não é má profissional por isso. Faz parte.
— Você está colocando como se matar as pessoas fosse sua profissão,
é isso?
— Não minha cara. Eu não mato ninguém, a hora deles simplesmente
chega e eu apareço para coletar suas almas e mostrar o caminho. Óbvio que
não consigo estar em todos os lugares ao mesmo tempo, então vamos dizer
que eu optei por dividir o fardo com meus filhos.
— Não sabia que a Morte tinha filhos.
— Em algumas crenças eu sempre tive, um anjo bom da morte e um
anjo mal da morte. Um que leva as pessoas para a luz e outro que leva as
almas para... bom, você sabe onde.
— Você está me dizendo que seus filhos ajudam no caminho do céu
ou inferno, é isso?
— Não tão simples assim, talvez tenham outras, etapas, digamos, mas
pode ser simplificado dessa forma.
Linda sentou-se e colocou as mãos no rosto, esfregando-o com força,
como se quisesse acordar ou descobrir se estava sonhando ou delirando.
— Você não está louca, se é o que está pesando. Nem sonhando, nesse
momento. Mas você já sonhou com meus filhos, lembra? Quando reviu o
seu atendimento?
— Você quer dizer aquelas pessoas que eu não tinha visto na sala?
— Eles não são pessoas.
— E o que eles estavam fazendo lá?
— É uma longa história, mas é por isso que estou aqui. Acho que
você precisa de explicações para poder tomar suas decisões de uma forma
mais isenta, sem interferências.
— Não entendi.
— Mas vai. — disse isso com uma voz pesada, profunda e que ecoava
na mente de Linda.
Ela se sentiu como se estivesse em um filme, mas participando dele.
Naquele momento elas não estavam mais no quarto do hotel. Estavam
caminhando por um caminho estreito, esfumaçado, frio e cinzento. Um
lugar que deveria lhe dar arrepios, mas que por algum motivo se sentia
segura. A Morte andava a seu lado e começou a explicar.
— Há muitos, muitos anos, a humanidade não era tão grande e não
estava tão espalhada por todo o globo. Era mais fácil estar presente e
encontrar o caminho que tinha que fazer para estar presente no momento
certo. Com o tempo, o número foi se tornando vultuoso, vieram epidemias,
doenças, guerras e meu trabalho sozinha se tornou inviável. Foi quando
percebi que eu podia me dividir, foi quando meus filhos surgiram e
começaram a me ajudar. De tempos em tempos mais deles surgem, mas
sempre em pares. Você conheceu um desses pares.
— Então existem outros?
— Sim. E dependendo da necessidade, podem surgir mais.
— E qual o motivo de estar me contando isso?
— Você está no centro da história deles, assim como Charles.
— Charles, meu paciente?
— Sim, querida. Vocês dois tem um outro ponto em comum. Meus
filhos se apaixonaram por vocês.
— O que? Agora além da morte poder ter filhos, esses podem se
apaixonar por mortais, por nós seres humanos?
— Não é comum, mas pode acontecer. Já houve filmes que retratam
isso e não são totalmente ficções. Já tive filhos que desistiram de ser anjos e
caíram, por assim dizer, por amor a humanos, mas a mortalidade é difícil
deles lidarem. Já tive filhos que ficaram vivendo no mundo mortal e depois
voltaram, abrindo mão de seus amores e deixando alguém no lugar deles.
Mas não é frequente. Em seu caso, meu filho bom gosta de você, o que
explica você flertar com a morte várias vezes, mas ele não quer que você
tenha sua vida interrompida, então ele sempre lhe mostra um motivo para
continuar nos momentos que você mais precisa: seu trabalho, salvar vidas,
ajudar pessoas, seus amigos, sua família. Minha filha já não tem toda essa
paciência e ela tenta convencer Charles a se juntar a ela desde a morte da
mulher dele. Então ela não mostra a ele motivos para ficar e sim, motivos
para partir. É a segunda vez que ela quase tem êxito, mas você evitou isso.
— Acho que não só eu. Seu filho estava lá.
— Eu sei. E ele evitou que ela precipitasse a vinda dele para o lado de
cá.
— Lado de cá?
— Sim. Esse caminho estranho, frio, cinzento, enuviado que você vê
e que estamos andando agora, é por onde caminham as almas até chegarem
na bifurcação ali na frente que mostrará para onde elas devem ir.
— Então, se eu estou aqui...
— Não, não. Você está bem. É minha convidada. Você pode voltar, se
quiser. Mas a escolha é sempre sua.
— Você me trouxe aqui para falar de seus filhos. Mais alguma coisa?
— Sim. Não é uma coincidência você e Charles terem cruzado
caminho.
— Não entendi.
— Claro que entendeu. Você sentiu isso. Eu sei.
— Você diz ele ser minha alma gêmea? Eu ter achado que tínhamos
muitos pontos em comum e que talvez nós pudéssemos nos ajudar?
— Exatamente.
Andaram por mais algum tempo, até a bifurcação mencionada.
Quando chegaram ali, todo o entorno se modificou.
— O que aconteceu?
— Como eu disse, quando se chega a este ponto, descobre-se para
onde você vai.
Linda olhava ao redor. Toda a paisagem pesada, cinzenta, desértica,
abandonada e depressiva que estava ao redor delas até o momento anterior,
tinha dado lugar a uma linda campina verdejante, cheia de flores e
frondosas árvores. Um vento quente e úmido soprava em seu rosto,
trazendo a fragrância das flores que estavam ao redor. O colorido das
borboletas e aves se espalhava conforme elas voavam pelo céu. Sentiu uma
sensação de alegria preencher seu coração.
— Então, se eu optasse por seguir meu plano, eu viria para cá?
— Não em um primeiro momento.
— O que quer dizer?
— Há várias teorias e crenças sobre o que acontece com as almas,
mas devo dizer que todas elas têm um tempo que devem cumprir em seu
mundo. Quando elas encurtam esse tempo por vontade própria, esse lapso
faz com que elas fiquem vagando pelos campos que passamos, até
cumpriremo que lhes era determinado. Depois disso, elas acham seu
caminho e param aqui. Isso é o que tem reservado para você. Cabe saber se
você quer esperar para cumprir tudo que deve onde está, ou se prefere ficar
perdida aqui por alguma ocasião.
— Mas nós não passamos por ninguém...
— Nós estávamos no caminho, não pisamos fora dele e não fomos
aos campos. Se saíssemos dele...
Linda sentiu um frio na espinha. Então era isso que acontecia? Será
que ela estava sonhando, estava louca, aquilo tudo parecia surreal.
— Acho que podemos voltar.
Dizendo isso, as duas desapareceram dali e voltaram ao quarto de
hotel. Linda ainda assustada, mas sua interlocutora mantendo a mesma
calma de sempre.
— Por que você me mostrou e me contou tudo isso?
— Porque você tem o benefício da escolha, não só para você como
para ele também. Sei que os dois passaram por muita coisa e, não se iluda,
ainda estão passando e vão passar, mas saiba que tudo isso estava de certa
forma escolhido e escrito, vocês estão aprendendo e muito. Com isso,
quando a hora chegar, irão para um lugar melhor. Foi isso que eu quis
mostrar. Então, agora eu pergunto a você, o que quer fazer?
Linda pensou um pouco. Estava cansada? Sim. Estava triste? Sim.
Podia fazer algo para mudar tudo aquilo? Aparentemente não, mas podia se
adaptar, buscar um equilíbrio, achar alguém que a ajudasse nessa tarefa e
que dividisse o fardo com ela. Já tinha encontrado Kim que parecia fazer
parte dessa melhoria em sua jornada, talvez com Charles ficasse completo.
Ela precisava lutar pelo que queria, precisava colocar as suas prioridades
primeiro e buscar soluções, pois nisso, era muito boa. Sentiu que aquela
centelha que virara chama, agora se transformara em um incêndio. Sorriu e
respondeu.
— Eu quero lutar. Quero ficar e descobrir como posso ser melhor para
mim e para os outros.
— Boa garota. Vou ajudar como puder. Acho que voltaremos a nos
encontrar.
Dizendo isso, simplesmente desapareceu e deixou Linda com muitas
reflexões para fazer, mas com uma grande certeza: ela precisava voltar para
o Brasil. Pegou seu telefone, ligou para a companhia aérea e agendou o
primeiro voo disponível no outro dia. Ela tomara uma decisão e agora
também precisava de um plano.
 
Capítulo 12
 
Poucas horas após a conversa com Maurício, Pedro recebeu uma
mensagem de Linda, avisando que ela estava voltando de viagem e que
estaria em São Paulo na manhã seguinte. Ele escreveu para ela: “Pode falar
rapidinho?” e ela respondeu: “Sim”.
Ele ligou para ela e explicou o que estava acontecendo. Teve receio
dela negar participar da conversa, mas algo ocorrera com ela, pois estava
com uma voz muito mais determinada, decidida e até feliz. Não sabia o que
ocorrera, mas também ficou feliz por ela. Combinou que se encontrariam
em seu escritório no dia seguinte e aproveitou para lhe contar sobre a
reunião que fizera com a equipe e informar sobre a reação dos colegas às
informações. Percebeu um certo embargo na voz dela, pela alegria de ser a
pessoa querida que ela era. Desligaram e Pedro seguiu o dia mais animado,
aguardando pelo dia seguinte ansiosamente.
Na manhã seguinte acordou mais animado que nunca. Mandou uma
mensagem para checar se Linda chegara no aeroporto e ela, prontamente
respondeu que sim e que já estava a caminho do hospital. Ele colocou seu
melhor terno, camisa social, penteou o cabelo com esmero e usou seu
perfume predileto. Teve tempo de se olhar no espelho e comentar:
— É hoje que tudo começa a ser resolvido. Esperei tanto tempo por
esse dia. Finalmente justiça para mais de uma pessoa seria feita.
Pegou as chaves do carro, fechou a porta de sua casa, desceu pelas
escadas, entrou no carro e foi ouvindo músicas animadas pelo caminho,
refletindo seu espírito que resplandecia naquele momento. Ao chegar em
seu escritório já encontrou Linda o aguardando e ela também parecia de
ótimo humor. Cumprimentaram-se e ele a convidou a entrar, onde
aguardariam Maurício chegar. Tomaram um café enquanto esperavam e
Linda acabou perguntando sobre o outro assunto:
— Alguma notícia sobre o advogado do paciente e aquela história
toda que você me falou?
— Ele já entendeu que não vamos desligar os aparelhos. Sabe que
pelas nossas leis não podemos. Estão tentando ver os trâmites para retirá-lo
do país agora.
— Pedro, alguma chance de impedirmos isso?
— Como assim?
— Olha, eu sei quem ele é, sei a história da vida dele e posso lhe dizer
que me identifico muito, muito com ele.
— Como assim? Do que você está falando?
— Ele é um autor famoso, mas que sumiu há algum tempo. Falei com
o agente dele e eu já sabia dessa vontade dele de não ter a vida prolongada,
mas eu acho que eu posso ajudá-lo, se tiver uma chance. Mas para isso, ele
precisa estar vivo.
— O que exatamente você está me pedindo para fazer?
— Não estou pedindo nada, estou perguntando se temos como evitar
que ele saia daqui.
— Não sei se conseguimos. Se ele estiver estável e for possível fazer
a remoção, não temos muito o que fazer.
Ela não respondeu, mas ele sabia que planejava algo. Ia continuar a
conversa, mas o telefone da mesa de Pedro interrompeu a conversa,
gritando por atenção.
— Senhor, o jornalista que o senhor estava esperando acaba de
chegar.
— Pode deixá-lo entrar, obrigado.
Assim que desligou, perceberam a porta se entreabrindo e um homem
moreno, com pouco cabelo, barba grisalha e sorriso alegre, largo e
contagiante apareceu. Assim que o viu, Pedro foi ao seu encontro e se
abraçaram como se fossem irmãos que não se viam há tempos. Linda ficou
à espera da apresentação que não tardou.
— Essa é a Linda, Maurício.
— Prazer Linda. E muito obrigada por concordar em falar sobre isso
tudo. Sei que não é fácil. Mas é muito importante.
— Eu que agradeço a oportunidade.
— Vamos nos sentar. — sugeriu Pedro. — Como você quer fazer
Maurício?
— Pensei em gravar. — dizendo isso pegou seu celular e colocou no
módulo gravação. Pedro e Linda assentiram. — Acho que vale dividirmos
em duas entrevistas, então acho que você pode ir primeiro, Pedro, o que
acha?
— Tudo bem por mim.
— Então vou começar a gravar. Se você se enrolar ou se arrepender
de algo que tenha dito, apenas pause por dois ou três segundos que depois
eu consigo editar, ok?
— Perfeito.
— Lá vamos nós. — E ele começou a gravação, mudando o tom para
um mais formal e editorial. — Olá a todos, hoje estamos aqui com o Pedro
que vai nos contar um pouco sobre sua história de vida. Pedro, obrigado por
sua contribuição e nos fale um pouco sobre você e sua história.
— Eu que agradeço a oportunidade. Bom, sou o Pedro, hoje esse é o
meu nome e trabalho coordenando um serviço médico em um hospital.
Digo que hoje esse é o meu nome, porque no passado, quando eu era
adolescente, meu nome era Pietra e eu sofri muito até chegar onde estou
hoje.
Linda não conseguiu disfarçar o choque, não pelo Pedro ter sido
Pietra antes, mas por ele nunca ter mencionado o fato. Passou a prestar mais
atenção ainda na história. Algo lhe dizia que teria uma participação não boa
de Ed naquela narrativa.
— Quando eu era adolescente e ainda estava entendendo o que eu era
e o que eu queria ser, algumas vezes alguns meninos tentavam namorar
comigo ou faziam alguma gracinha, o que era normal, eles não sabiam o
que eu queria e, muitas vezes, nem eu entendia ainda. A maioria aceitou o
não de forma muito tranquila e muitos foram e continuaram a ser meus
amigos, mesmo após minha mudança. Mas teve uma vez, um rapaz que não
aceitou a negativa muito bem e ainda mais quando eu expliquei o
verdadeiro motivo da negativa, tudo veio abaixo. Ele, em um determinado
dia, me puxou pelos cabelos até o meio do pátio e cortou meu cabelo bem
curto, gritando comigo que se eu quisesse ser menino aquele era o primeiro
passo. No dia, fiquei devastado. Triste. Humilhado. Demorei algum tempo
para me recuperar daquilo. Dos olhares dos colegas que não concordavam
com a minha opção. Com as piadas. Com as conversas e cochichos, mas
com o tempo, superei tudo isso e me assumi como sou hoje. E hoje sou
muito feliz. Tenho bons amigos, um trabalho que eu amo e uma equipe que
gosta de mim como líder. Então posso dizer que estou realizado.
— E quem foi essa pessoa que fez isso com você? Você tem notícias
dele?
— Pois é. Por muito tempo não tive, mas depois, por ironia do destino
ou não, eu o encontrei de novo, pois ele era o namorado de uma das minhas
funcionárias. — e dizendo isso olhou para Linda, que já estava com
lágrimas nos olhos só por causa do relato que ele tinha acabado de fazer e
ela imaginava a dor que aquilo tinha lhe causado.
— Você quer dizer que quem fez isso com você é a mesma pessoa que
vem difamando e que, com certeza, vem fazendo uma violência psicológica
com sua funcionária?
— Sim, a mesma pessoa.
— Que se chama?
— Edmundo Cercato.
— E você nunca o denunciou?
— Não. Acho que ainda doía muito e eu não queria falar sobre isso.
Mas depois que percebi que uma vez sem caráter a pessoa é sempre sem
caráter e ver o que ele estava fazendo com outra pessoa, decidi me abrir.
— E agora podemos descobrir o que ele fez com sua funcionária.
Estamos aqui também com a Linda. Obrigada por se disponibilizar a contar
sua história.
— Como o Pedro, eu que agradeço a oportunidade.
— Como era o relacionamento de vocês, Linda. Porque percebo pelo
relato anterior que ele não é uma pessoa fácil.
— No começo eu acreditava que ele gostava de mim e que se
preocupava. Depois de algum tempo, percebi que eu estava me enganando.
Ele era difícil. Queria que eu me vestisse de uma determinada maneira. Que
eu me maquiasse. Que eu trabalhasse menos. Que eu mudasse de país para
acompanhá-lo. No fim de tudo, após deixar claro que eu não queria me
modificar e nem mudar de país com ele, recebi uma carta da mãe dele, a
Dona Lúcia, que me chamava de hipócrita, falsa, louca e muitas outras
coisas. Depois disso, decidi terminar. Quando voltei para minha casa, ele
havia entrado nela, estava me esperando lá dentro, mesmo sem minha
autorização e queria satisfações sobre a real razão de eu não ter respondido
as mensagens dele, sendo que eu tinha voltado para o hospital e estava
trabalhando na emergência, sem tempo para ver mensagens. Posso mostrar
para você as mensagens e a irritação dele aumentando pela minha falta de
resposta. E então, quando eu terminei tudo e o coloquei para fora da minha
casa, ele gravou tudo e inventou algumas histórias sobre mim, até mesmo
de traição, quando eu descobri que ele na verdade estava me traindo com
uma das minhas melhores amigas, ou pelo menos era isso que eu achava
que ela era. Mas hoje acho que ela só se aproximou de mim para poder me
manter sobre o controle dele e passando informações, porque acho que foi
assim que ele achou que eu tinha sido demitida.
— E como você reagiu a tudo isso Linda. Porque sabemos que há
vários tipos de violência e que o problema dela não é apenas a curto prazo,
mas também a longo prazo. Você não mencionou violência física, mas
considerando pelo que vocês dois passaram, podemos dizer que foi uma
violência psicológica que também deixa cicatrizes invisíveis que, inclusive,
podem ser muito mais profundas e duradouras que as que conseguimos ver.
Dados mostram as consequências de abusos físicos e psicológicos, pois
mulheres vítimas de violência, seja ela física, sexual ou mental, têm um
risco de mortalidade oito vezes maior que o da população feminina geral e
11 vezes mais risco de cometer suicídio. Pensando nisso, preciso fazer essa
pergunta, mas você pode se negar a responder. Alguma vez, no meio disso
tudo, você considerou tirar sua própria vida?
Pedro olhou preocupada para ela e Linda tinha o olhar um pouco
perdido. Ela respirou fundo e respondeu:
— Sendo muito sincera com você, já. Não uma vez só. Quando eu
recebi a carta pensei nisso, quando tudo aconteceu e ele me difamou
também.
— E o que lhe deteve?
— Algumas coisas que lembro que valem a pena: pessoas amigas e
decentes como o Pedro, que me ajuda e me deu a mão, a oportunidade de
ajudar os outros e salvar vidas, que é algo que me deixa feliz e sempre,
sempre meus amigos e minha família.
— Você já fez terapia por causa disso?
— Já. E eu recomendo que pessoas que estejam passando por
momentos difíceis, que estejam se sentindo tristes em vários momentos do
dia, que tenham dificuldade em dormir ou sono excessivo ou ainda flutuem
muito o peso, todos sintomas que podem ser de depressão, procurem ajuda.
Não é vergonha nenhuma precisar de ajuda, tentar se entender e conversar
para buscar soluções. Mas acima de tudo para compreender que não
podemos controlar o que os outros fazem para nós, não temos culpa do que
os outros são ou do que fazem. O que podemos resolver nem é o que
sentimos, porque as emoções vem em ondas e não conseguimos não senti-
las, o importante é saber como lidar com elas e como vamos reagir ao que
somos expostos. Para isso sim, uma ajuda especializada, pode ajudar, e
muito.
— Como médicos que vocês são, vocês veem diferentes tipos de
violência sendo praticadas contra mulheres e vulneráveis?
— Vemos. — iniciou Linda. — Mas aqui, no hospital, temos uma
rede que nos ajuda a denunciar e investigar. Acho que a maior preocupação
são lugares sem essa retaguarda.
— Exatamente Linda. Muitos lugares não têm essa rede. Mas vale
dizer que podemos sempre delatar, que existem canais que inclusive são
anônimos e não expõem o delator, mas que é muito importante, como
sociedade e como dever de cada um de nós, estarmos atentos e fazermos
nossa parte. Denuncie. Não se cale. Uma vida pode depender disso. —
completou Pedro.
— Bom com essa mensagem final para sermos mais ativos e não nos
calarmos, eu encerro esses dois relatos que são exemplos importantes do
que acontece com pessoas comuns e algo que estamos vendo cada vez mais
exposto, seja pelo aumento da frequência ou por aumento das denúncias,
então você que está nos escutando, não se cale e denuncie.
Maurício parou de gravar.
— Sinto muito mesmo pelo que vocês dois passaram. Mas agora
vamos expor essa pessoa e vamos ver o que acontece. Vocês têm provas
disso, não é? Porque vocês vão correr risco de processo por parte dele,
vocês sabem disso, não é?
— Temos. — Adiantou-se Pedro. — E eu tenho quase certeza que
seremos acionados, mas já está tudo pronto, advogados a postos e provas
guardadas.
Linda olhou com surpresa.
— Ótimo. Vou jogar isso em vários veículos e nós vamos nos falando.
Obrigada pela exclusiva.
— Nós que agradecemos. — respondeu Pedro. — Mas eu tenho um
pedido.
— E qual seria?
— Consegue segurar essa matéria por cinco dias?
— Por quê?
— Porque tem mais coisas acontecendo sobre essa pessoa. Então se
puder esperar só um pouco, ajuda.
— Posso. Sem problemas. Até mais.
— Até e obrigado.
Assim que ele saiu, Linda perguntou:
— O que mais está rolando?
Pedro a olhou e fez sinal para que ela se sentasse na cadeira em frente
a sua mesa. Pegou um café para cada e se sentou do outro lado. Respirou
fundo.
— Lembra que eu lhe falei sobre a Mariana com o Ed?
— Sim.
— Bom, vamos dizer que ela não gosta dele.
— Não entendi. — respondeu com certo espanto.
— Eu levantei a ficha dela, meio sem querer. Descobri que ela já
tinha tentado ficar com outras pessoas para conseguir esse estágio, que
agora ela conseguiu com o Ed. Ela acha que ele é egocêntrico, insuportável,
não empático, que só aceita a própria verdade e que é muito difícil. Ela
estava enganando ele e, segundo palavras dela, para você seria muito
melhor se livrar dele. Eu acho certo o que ela fez? Não. Eu faria algo
parecido? Nunca. Mas ela me ajudou nesse plano da imprensa e ela quer
muito o estágio. Ele não vai conseguir mudar para lá se tiver rolando um
processo e, assim, fiquei de ajudá-la para que ela conseguisse o estágio e se
livrasse dele. Por isso vou esperar os cinco dias. Para dar tempo dela ir sem
ele. Vale o detalhe que ela também tem outro e está traindo ele. E, claro,
que isso ele nem imagina. Ela disse que é um advogado que trabalha em um
escritório que também tem sede em Paris e que ele vai mudar para lá com
ela. Então, todo mundo sendo enganado.
— É sério isso? E eu que achei que ela era minha amiga. Que tipo de
caráter é esse?
— É ausência de caráter, na verdade. Quando os meios são
justificados pelos objetivos finais. Mas vou lhe dizer que seu ex é pior que
ela, então, vamos torcer para dar certo.
— De verdade, já não me importa.
Uma batida na porta os interrompeu.
— Entre.
— Senhor?
— Sim.
— Aquele advogado conseguiu a transferência do paciente da UTI
para a Suíça. Mas para a transferência eles precisam que um médico nosso
acompanhe.
— Eles só podem estar de brincadeira. — reclamou Pedro.
— Não estão senhor.
— Ninguém vai topar essa.
— Eu vou, Pedro. — disse Linda.
— O que? — ele perguntou perplexo.
— Se não tenho o que fazer, prefiro estar com ele até o fim. Acho que
sei até onde na Suíça. Essa clínica é famosa.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Então informe à UTI sobre o procedimento e avise que a Doutora
Linda irá acompanhar.
— Certo senhor.
Assim que a pessoa saiu, Pedro perguntou:
— Linda, você tem um plano, não tem?
— Tenho.
— E você vai me falar qual é?
— Acho que você não precisa se envolver nisso. Mas eu prometo que
não farei nada ilegal. Mas vou precisar contar com uma ajuda, eu diria, não
desse mundo para dar certo.
— Não entendi, mas vou acreditar.
— Obrigada. Tchau.
E ela saiu para se preparar para o transporte.
 
Capítulo 13
 
A UTI estava em polvorosa com o transporte. Não era comum ter um
paciente retirado dali em um transporte aéreo internacional. Havia toda uma
preparação do avião que faria o transporte e toda a necessidade que o
paciente teria ao longo voo até a Suíça. Como ainda não estavam
preparando o paciente, Linda chegou ali e disse que o examinaria e que
faria o transporte. Os colegas concordaram, afinal já tinham sido
informados que ela acompanharia a transferência. Ela entrou no quarto e
fechou as cortinas. Sentou-se ao lado de Charles e segurou sua mão.
— Olha. Sei que de alguma forma você deve conseguir me ouvir.
Então vou falar com você de todo meu coração. Eu falei com seu agente, o
Christian. Fui até o Canadá e voltei só para isso. Lá tive uma experiência
muito louca e, acredite se quiser, conversei com a Morte, pois eu quase fiz
igual a você. Ela me convenceu do contrário. Além disso ela me mostrou,
de certa forma, que você é uma ótima pessoa, que, como eu, passou por
muita coisa. Eu entendo o que você fez, mas eu estou aqui para pedir uma
chance. Eu acho que se você conseguir reconsiderar e se abrir para mim,
confiar em mim, assim como se eu conseguir me abrir de novo, depois dos
golpes que tomei e me entregar para você, nós conseguiremos curar as
feridas um do outro. As lembranças vão continuar. Elas vão doer. As feridas
vão se abrir de tempos em tempos, mas se nós nos apoiarmos, elas vão
cicatrizar em algum momento. Por tudo que eu li sobre você e ouvi de seu
agente, você sempre foi uma pessoa fechada, mas que se preocupa com os
outros, tentava ajudar quem precisava, é humilde, gentil, espiritualizado.
Não sei se estou à sua altura, mas eu também ajudo os outros, também tento
ser uma boa pessoa, aprendi muito nessa vida e estou muito inclinada a
deixar que alguém me conheça como eu sou. Mas para isso eu preciso me
sentir acolhida e segura, coisa que nunca me aconteceu até aqui. Mas desde
o primeiro momento que eu vi você, eu acho que você é essa pessoa que eu
sempre procurei sem saber. Então sei que vãos desligar seus aparelhos em
algum momento quando chegarmos no hospital na Suíça. Mas se eu puder
pedir alguma coisa, por favor, volte para mim. Me dê uma chance de
reconstruir a sua e a minha vida. — dizendo isso ela apertou forte a mão
dele e sentiu um discreto espasmo em retribuição.
Olhou assustada para ele e para os aparelhos e percebeu que a
frequência cardíaca e a pressão dele tinham caído discretamente, como se o
monólogo dela o acalmasse. Ela teve um suspiro de esperança. Será que ele
realmente conseguia ouvi-la? Esperava que sim.
Alguém entrou no quarto.
— Dra Linda, tudo pronto para irmos?
— Sim. Paciente estável, tudo certo. Mas precisaremos de um ambu
ou de um ventilador portátil para levá-lo.
— Sim, temos um ventilador portátil. Já está tudo preparado, só
precisamos transferi-lo de maca.
Aproximaram a maca toda pronta para o transporte, com os aparelhos
necessários e, com a ajuda de algumas pessoas, fizeram a transferência e o
levaram até a ambulância que o levaria até o aeroporto e o avião e dali até a
Suíça.
Linda, com a presença de duas pessoas da enfermagem, não falou
mais nada. Ia apenas fazendo seu trabalho checando sinais vitais,
medicamentos e a estabilidade do paciente, mas por dentro desejando que
ele tivesse ouvido algo que ela dissera e que desse a chance que ela pedira.
Também contava com a promessa que ouvira da própria Morte. Ela dissera
que ajudaria e agora ela contava com isso.
Do hospital até o avião foram quase duas horas. A transferência para
ele também não foi simples, mas após cerca de trinta ou quarenta minutos,
tudo estava conectado e funcionante. Agora seriam muitas horas até o
destino. Ela ajustou todos os alarmes para ter a certeza de que, se cochilasse
e algo acontecesse, ela seria despertada. Deu orientações para os
enfermeiros presentes também e se sentou para a decolagem.
A viagem foi bem tranquila. Ela estava apreensiva com o transporte,
porque sabia, pelo menos em teoria, que a pressurização e o transporte
aéreo, poderiam descompensar o paciente. Por sorte, nada ocorreu.
Depois de horas chegaram à Suíça, esperaram o embarque da polícia
alfandegária que liberou a entrada de todos, graças ao advogado de Charles
ter enviado os documentos dele e já havia uma ambulância pronta para
levá-los até a referida clínica. Chegaram lá depois de pouco mais de uma
hora. Charles foi instalado em um quarto e lá Christian estava aguardando.
— Você veio com ele Linda?
— Disseram que era necessário alguém vir.
— E você se voluntariou.
— Sim.
— Você sabe que não vai conseguir impedir isso. Nem você e nem
sua amiga.
— Eu deixei a Kim com uma explicação e voltei para o Brasil.
— Sim. E eu vim com ele.
— Kim?
— Oi Linda.
— Desculpe ter saído daquele jeito.
— Sem problemas. Eu entendi.
— E agora?
— Agora vamos deixar que vocês se despeçam e vamos desligar tudo.
Kim sentiu um nó na garganta. Ela admirava tanto Charles. Ela queria
tanto conhecê-lo, pedir um autógrafo, falar com ele. Não teria a chance.
Não conseguiu segurar algumas lágrimas que escorreram pelo seu rosto.
Linda estava preocupada. Não sabia se teria êxito e estava muito
apreensiva. Não queria que ele morresse. Não desejava que ele ficasse
vagando por aquele lugar gelado e cinzento pelo qual ela passou. Ela
precisava que ele reagisse. Como ela não podia contar nada para ninguém,
segurou-se em sua esperança. Pegou a mão da amiga e a convidou para se
despedir, torcendo para que não fosse uma despedida de verdade.
Kim começou a falar, mas na segunda palavra ela mais soluçava que
discursava.
— Querido Charles, eu amo suas obras, você sempre foi uma
inspiração para mim e acredito que para muitas pessoas. Sei que você
passou por muita coisa. Sei que a vida não foi boa e nem gentil com você,
como na verdade você sempre foi com todos a seu redor. Acredito que se
houvesse no mundo mais pessoas como você, sensíveis, amáveis,
preocupadas com o próximo, que se preocupassem em ajudar, em entender
o outro, a não julgar e sempre ser disponível, viveríamos em um lugar
muito melhor. Eu sinto tanto que essa luz que você carrega e ilumina tudo
por onde você passa, vá se apagar. Eu ainda acho que a Linda aqui, essa
pessoa que eu conheço há tão pouco tempo, mas que me parece tão parecida
com você, tivesse uma chance de lhe conhecer melhor, vocês poderiam ser
muito amigos ou até algo mais, agora que ela está solteira. Eu realmente
sinto muito ter que me despedir de você, mas espero que em algum
momento e em algum lugar, nós nos encontremos novamente.
Dizendo isso, ela saiu, deixando Linda sozinha com ele.
Ela olhou para o quarto. Ele era todo decorado em branco. A cama, os
móveis, as paredes, o lustre, as janelas, as cortinas, a roupa de cama. O sol
batia suave na janela, dando um brilho especial em seu interior. Ela se
aproximou da janela e olhou para os jardins do lado de fora. De alguma
forma aquele lugar a lembrava da encruzilhada que havia visto. Ela olhou
novamente para ele.
— Acho que tudo que eu poderia ter dito, eu já disse. Espero que
tenha sido suficiente e que nos vejamos em breve.
Ela saiu e neste momento viu alguns médicos entrarem no quarto. Ela
sentou na sala de espera junto com a amiga e esperou.
Passaram-se cerca de trinta minutos e ninguém saía de lá. Até
Christian começava a ficar impaciente e andar de um lado para o outro
nervoso.
— O que será que está acontecendo lá dentro?
— Não sei. — respondeu Linda. — Ás vezes essas coisas demoram
mesmo.
— Você que é médica não quer ir ver o que está acontecendo?
De verdade, ela não queria. Tinha medo de abrir aquela porta e ver
que sua esperança tinha se esvaído pelos seus dedos como areia. Mas talvez
precisasse encarar aquela realidade mais cedo ou mais cedo. Meneou a
cabeça em aceitação e levantou. Não precisou chegar até a porta, quando
um dos médicos saiu e disse para Christian que ele precisava entrar lá.
Linda olhou perplexa e ele fez sinal para que ela entrasse com ele. Ele
foi na frente e ela logo atrás. Quando entraram no quarto, nada podia
prepará-los para o que viram...
Charles estava acordado, sendo atendido por um dos médicos.
Christian olhava de um para outro sem entender nada e perguntou:
— O que aconteceu?
O médico que foi buscá-lo respondeu:
— Nós extubamos o paciente e retiramos as medicações como
solicitado. Mas ao invés dos sinais vitais piorarem eles ficaram mais fortes
e ele começou a acordar. Então não tínhamos como manter o plano e
começamos a dar suporte. Então ele conseguiu falar e pediu para chamar o
senhor.
— Charles, você está bem?
Com a voz um pouco rouca por causa da intubação, ele respondeu:
— Bem. Mas não me parece que foi graças a você.
— O que você quer dizer?
— Você me trouxe aqui para desligarem meus aparelhos e eu morrer,
Christian.
— Mas era isso que você queria. Deixou ordens.
— Não, eu deixei ordens para não ser reanimado e não serem feitas
medidas extremas para me manter vivo. Mas, pelo que entendi, eles
estavam apenas me dando um suporte.
— Mas eles, na verdade ela, reanimou o senhor.
— Mas ela não sabia quem eu era naquele momento e muito menos
da minha vontade, correto?
— Sim. — Linda respondeu.
— E então você acionou meus advogados e fez toda uma parafernália,
além de ter gastado uma boa parte do meu dinheiro para me trazer para cá, e
para que? Para nada. Estou bem vivo, como pode ver.
— Eu não sabia, senhor. Peço desculpas.
— Não nos falamos há muito, muito tempo. E de verdade, acho que
fiquei bem assim. Seus serviços não são mais necessários, Christian. Pode
voltar para o Canadá, de onde você deve ter vindo.
— Mas senhor, quem vai se responsabilizar por você?
— Acredito que minha mais nova amiga médica aqui pode fazer isso
perfeitamente, claro, se ela quiser.
— Fico à sua disposição. — respondeu Linda.
— Perfeito. Então você está dispensado.
Christian saiu pisando pesado e emburrado. Assim que ele saiu,
Charles se voltou para Linda.
— Seu nome mesmo?
— Linda.
— Bonito nome. Na verdade, bonito não, lindo. — e riu.
— Obrigada! — ela respondeu, corando.
— Você tinha uma amiga não? Que falou comigo? Lembro de uma
outra voz.
— Você realmente estava ouvindo?
— Não tudo. Não com nitidez. Mas me recordo de algumas coisas.
Palavras. Sensações. E acho que sua amiga gosta de mim.
— Ela adora você. É muito sua fã e foi ela que lhe reconheceu. Vou
chamá-la.
Linda levantou-se e foi ao encontro de Kim que ainda estava
aguardando na sala de espera. Assim que a viu, Kim levantou-se e veio em
sua direção.
— O que está acontecendo? Vi o Christian indo embora com uma cara
de poucos amigos. Parecia que tinha sido pisoteado por uma manada de
elefantes. Até, porque nesse caso, a tromba que ele estava combinaria com
o cenário.
— Venha comigo, acho que você vai gostar da surpresa.
— Qual?
— Vem logo.
Linda a guiou até o quarto, mas ela ficou com receio de entrar.
— Confie em mim.
Quando Kim abriu a porta, viu um Charles vivo sentado na cama. Por
instinto ela correu até ele e o abraçou, já em lágrimas.
— A Linda disse que você me adorava, mas não achava que era tanto.
— ele brincou.
— Desculpe. Eu acho que já li tudo que você escreveu. Já li tudo,
publicado sobre sua vida, sou sua fã como autor, mas também pela pessoa
que você é. Por um momento achei que tinha perdido a chance de conhecê-
lo e aí, abro a porta e você está aqui. É muita emoção para mim.
— Não precisa se desculpar. Gosto de conhecer fãs. E gostei das suas
palavras antes e agora, então muito obrigado.
Linda sorriu olhando para os dois que engataram em uma conversa
sobre os livros dele. Embora um pouco fraco e parecendo mais velho do
que era, ele realmente era muito gentil, paciente e amável. Quanto mais ela
observava a maneira que ele tratava os enfermeiros à sua volta, como ele
tinha sido simpático com a Kim, mas ela percebia que sim, seria muito fácil
se apaixonar por ele. Aliás, lá no fundo, ela já percebia alguns sentimentos
brotando para florescer em breve. Isso porque só estava lá observando há
alguns minutos.
Resolveu mandar uma mensagem para Pedro avisando que seu plano
tinha dado certo e que ele estava bem. Mas que achava que ficaria alguns
dias ali até ele ter condição de alta. Pedro respondeu prontamente com um
emoji de carinha feliz e mandando os parabéns para ela e dizendo para ficar
tranquila. Aproveitou para contar uma outra novidade. Eles teriam um
casamento na equipe em breve e ela tinha sido convidada para madrinha.
Ela ficou muito feliz e preocupada em quem seria seu acompanhante na tal
festa. Olhou para Charles e se perguntou se daria tempo. Se não, ela sempre
poderia recorrer a Pedro, tinha certeza que ele a acompanharia se pedisse.
Sorriu. Tudo estava dando certo e se encaixando. Ela quase se sentia feliz.
Kim interrompeu seu momento, chamando-a para participar da
conversa.
— Linda é uma ótima médica.
— Acho que já percebi isso. Parece que eu devo minha vida a ela. —
Charles respondeu.
— Eu só fiz meu trabalho.
— E muito bem, além de ter se voluntariado para me trazer aqui. Isso
não foi parte do seu trabalho.
— Não. Mas foi parte da admiração que tenho por você por tudo que
sei que passou e viveu.
— Pelo que sei você também está passando por bastante coisa. A Kim
me deu uma visão geral. Como você está? De verdade, não a resposta
padrão.
Linda respirou fundo.
— Estou tentando me manter estável. Mas tem muita coisa passando
pela minha cabeça, tenho que confessar.
Kim sentiu que aquele era o momento chave para os dois. Eles
poderiam se conhecer melhor e, quem sabe, o que sairia dali. Ela se
levantou e disse:
— Acho que seria interessante vocês conversarem para se
conhecerem. Realmente acho que vocês têm vários pontos em comum.
Então vou deixar vocês a sós para falarem. Se precisarem de mim estarei na
sala ao lado.
Com isso deixou os dois sozinhos e eles conversaram por muito,
muito tempo. Não notaram que o Sol foi substituído por uma noite estrelada
e de luar e que as luzes já tinham sido acesas. Realmente eles eram muito
parecidos e após aquelas horas de conversa, os dois sabiam disso. Charles
tinha a sensação que conhecia Linda de algum outro lugar. Talvez fosse só
do período que estivera em coma, sedado, mas ela lhe dava uma sensação
de segurança e bem estar que ele nunca experimentara antes e, que
sinceramente, causava-lhe um pouco de medo. Ela estava totalmente
encantada com ele. Era gentil, atencioso, humilde, paciente, preocupado.
Ela nunca conhecera alguém assim. Poderiam ficar conversando madrugada
a dentro mas ela não achou prudente. Pediu que ele descansasse um pouco e
informou que estaria na sala ao lado, se ele precisasse. Ele obedeceu, pois o
cansaço o estava consumindo.
Ela e Kim então conversaram um pouco, até serem vencidas pelo
cansaço, também. Desta forma o dia seguinte chegou e Charles melhorava a
cada hora. Kim precisava voltar e se despediu deles. A melhora continuava,
no segundo dia Charles conseguia caminhar com ajuda, no terceiro dia já
conseguia andar sozinho. No quarto dia ele não deixou Linda sair de seu
quarto e pediu que ela ficasse com ele. Ela hesitou, mas ficou. Em um
determinado momento da noite ele pediu que ela viesse para perto dele e a
abraçou, beijando-a na testa. Ela sorriu. Fez menção de se afastar mas ele
pediu que ela ficasse ao se lado. Ele a abraçou novamente e ela deitou em
seu peito. Adormeceram assim. O único problema é que alguém não gostou
desta cena e decidiu se vingar.
A manhã do quinto dia, que seria o mesmo que a entrevista seria
publicada, Linda acordou com os alarmes gritando por atenção. Charles
tivera uma parada cardíaca sem uma explicação aparente e os médicos que
vieram ver o que acontecia não faziam nada, pois eles tinham o documento
que dizia que ele não queria ser reanimado. Linda chorava e pedia para
fazerem alguma coisa. Ela começou a fazer massagem cardíaca e respiração
boca a boca até que todos saíram e deixaram-na sozinha. Ela manteve o que
fazia, mas agora só chorava. Todo o esforço fora em vão. Ela não acreditava
naquilo. Onde estava a ajuda que lhe havia sido prometida?
 
Capítulo 14
 
Conforme prometido, Maurício segurou a reportagem até a manhã do
quinto dia. Quando ela saiu, caiu como uma bomba tanto no hospital como
em várias mídias que já tinham tido acesso ao conteúdo nos dias anteriores,
mas que foram orientadas a manter o sigilo até aquele dia. A manhã de Ed
foi muito tensa. Os jornalistas o cercaram na saída de sua casa, já de manhã
cedo. Naquele dia específico, ele e Mariana iriam para Paris e ela estava
com ele em sua casa, mas a situação ficou bem delicada quando jornalistas
cercaram a propriedade e começaram a tirar fotos e tentar falar com ela para
saber como ele era e se ela era a amante que Linda dissera na entrevista. Ela
simplesmente fugiu o mais rápido que pode, separando-se de Ed que ficou
muito irritado com a reação e com o cerco que se formara. Não tinha ouvido
ainda a entrevista, então não sabia do que falavam, então se resumiu a dizer
que não tinha nada a declarar, enquanto ligava para seu advogado para ser
orientado.
No caminho tentou se informar do que ocorrera e ficou furioso ao
ouvir as acusações que lhe eram feitas. Como sempre, assumiu a posição de
vítima, acreditando ter sido difamado e injustiçado e ligou novamente para
seu advogado para preparar uma investida judicial contra Pedro e Linda.
Ele bufava de ódio. Sua respiração era pesada e seu rosto vermelho, parecia
um touro prestes a atacar. Desviou o caminho para o escritório de seu
advogado e, chegando lá, ouviu os conselhos do mesmo.
Julio fez várias perguntas para Ed.
— Você tem certeza que eles não têm como provar nada disso?
— Claro.
— Você nunca cortou o cabelo da tal Pietra e nunca a arrastou até o
pátio da escola?
— Bom, isso talvez eu tenha feito. Mas não há provas.
— Nem testemunhas?
— Testemunhas sim. Provas não. Mas podemos comprar as
testemunhas, não?
— Bem arriscado. Nem todos têm um preço.
— Claro que todo mundo tem um preço. Só precisamos descobrir
qual é.
— Não é bem assim, Ed.
— Claro que é. Só acertarmos a quantia.
— E sua mãe não escreveu nenhuma carta, pelo menos não com a
letra dela e você não tinha uma amante e nem fez nada do que a Linda
falou.
— Não sei de carta. Ela me disse sobre isso, mas não falei com a
minha mãe. Acho que ela não faria isso. Não deixando provas assim. Ela
não é tão burra. Algumas coisas que a Linda falou, sim, eu queria que ela
mudasse para melhor, não há nenhum crime nisso. Quanto à amante, nada
que ninguém consiga provar.
— Ela é fiel a você?
— Quem?
— Sua amante.
— Minha atual namorada, você quer dizer. A Mari me ama. Nós
realmente nos gostamos, de um jeito que a Linda nunca vai entender. Ela
faria qualquer coisa por mim. Ela é muito melhor que minha ex. Em todos
os sentidos possíveis.
— Então podemos orientá-la.
— Claro que sim. E uma pergunta você acha que eu consigo embarcar
para Paris hoje? Eu e a Mari íamos viajar juntos.
— De verdade, com tudo isso acontecendo, acho que você não vai
conseguir.
— Então vou ter que dizer para ela ir na frente, sem mim. Ela precisa
ir hoje, senão perde o estágio que consegui para ela. Você acha que em
quanto tempo isso tudo se resolve
— Creio que em uma ou duas semanas, se não tivermos
complicações.
— Que tipo de complicações?
— Se eles não tiverem provas, se conseguirmos comprar as
testemunhas, orientar sua ex amante e atual namorada e mais nada brotar do
nada.
— Então estamos tranquilos.
— Você está muito otimista. Se der alguma coisa errada, você pode
ter que pagar danos morais para os dois, o que pode lhe dar um prejuízo,
digamos vultuoso.
— Não vai acontecer.
— Espero que você esteja certo.
— Eu sempre estou.
— Então vou preparar a petição, iniciar a ação e já notificar os dois,
ok?
— Combinado. Você me mantém informado?
— Claro!
— Obrigado. — apertaram as mãos e Ed saiu, enquanto ligava para
Mari.
— Amor?
— Oi Ed! Como você está? Fiquei preocupada com você com aquele
circo todo na sua casa. Desculpe ter saído daquele jeito, fiquei nervosa.
— Sem problemas querida. Estou saindo do escritório do meu
advogado e ele tomará as medidas cabíveis, judicialmente. Vou tirar o couro
daqueles dois. Único problema é que não poderei ir com você hoje para
Paris, meu advogado não acha prudente. Mas ele diz que em uma semana
isso tudo deve estar resolvido, então eu a encontro lá. Você não fica brava
comigo?
— Claro que não, amor. Eu super entendo. Esses imprevistos
acontecem. Mas você vai me ligar todos os dias até chegar, não vai.
— Óbvio que sim.
— Então combinado. Eu aviso você quando chegar no aeroporto.
— Vou ficar esperando. E já estou com saudades só de saber que não
vou te ver por uma semana. Sabe que eu não vivo sem você, não é mesmo?
— Sei sim. Eu também não. Estou triste que você não vai comigo.
Será que é melhor eu adiar minha ida também?
— Não minha querida, você não pode, lembra? Se você não estiver lá
amanhã, você perde seu estágio. Você precisa ir. Nós vamos sobreviver uma
semana longe. Nosso amor é muito mais forte que tudo isso.
— Eu sei.
— Então me avise do aeroporto e boa viagem.
— Obrigada amor. Aviso sim.
E desligaram. Assim que isso aconteceu Mariana ligou para Pedro.
— Pedro?
— Oi Mari.
— Tudo certo. O advogado do Ed já o aconselhou a não viajar, eu vou
sozinha e ele está preparando a ação contra vocês. Agora é só usar as provas
que você tem, inclusive a minha carta de próprio punho assumindo ser
amante dele e as fotos de nós juntos há bastante tempo para você usar. Eu
começo o estágio amanhã e acho que em uma semana ele vai estar bem
quebrado monetariamente. Não acho que nem se ele quiser vai conseguir
viajar para o Nordeste, quem dirá Paris.
— Espero que você esteja certa, senão nós todos vamos nos dar muito
mal.
— Não vamos. Ele está tão confiante na vitória, que a derrota é certa.
Obrigada pela ajuda.
— Também agradeço. Boa viagem e bom estágio.
— Obrigada!
Pedro desligou e um sorriso de deleite e vitória se estampou em seu
semblante. Realmente tudo parecia estar caminhando na melhor direção
possível.
 
Capítulo 15
 
A Morte observava atenta toda aquela cena. Novamente sua filha
tentava acelerar o processo das coisas e, dessa vez, por puro ciúme. Ficara
irritada pelo fato de Charles e Linda terem passado a noite juntos e, isso,
porque não aconteceu nada entre eles, só acabaram adormecendo próximos.
Ela via o filho tentando dissuadi-la, mas nada parecia mudar sua opinião.
Era estranho como os humanos, muitas vezes, quase todas, na verdade, não
podiam vê-los e essa coexistência era possível. Ela via Linda se esforçando
com todo seu conhecimento técnico, mas com toda a emoção que ela
também estava sentindo e chorando muito. Decidiu interferir, afinal, ela
tinha feito uma promessa. E ela não era qualquer uma, era a própria Morte e
sua palavra valia muita coisa. Disse apenas uma palavra.
— Chega!
Assim que a palavra se expandiu pelo quarto, seus filhos a viram e
Linda também passou a enxergar todos ali. Ela se assustou por um instante.
Ainda achava que aquele encontro tinha sido mais um sonho que realidade.
Tudo a seu redor passou a rodar em câmera lenta. A Morte se aproximou da
filha.
— Minha cara, eu a aconselhei tantas vezes, eu disse para você que
não podemos influenciar tanto assim, é contra as regras.
— Eu sou sua filha, não preciso obedecer regras como um capacho,
uma mortal, que eu não sou.
— Você se engana. Até eu sou sujeita às regras. Todos somos.
Mortais, imortais ou eternos. E para toda quebra das leis, há uma punição.
— ela mantinha a voz calma, mas tinha algo ameaçador em cada palavra
que saía de sua boca. Linda ainda estava preocupada com Charles e queria
gritar, mas não precisou, logo ganhou a atenção da Morte. — Mas antes
disso, eu tenho uma promessa para manter, acorde Charles, ainda não está
na sua hora.
Assim que disse isso, Charles acordou e passou a fazer parte daquele
momento peculiar.
— O que está acontecendo aqui. Quem são essas pessoas? —
perguntou assustado, segurando firme a mão de Linda. Ela não respondeu,
mas fez sinal para que aguardasse.
— Qual será minha punição, mamãe? — e ela carregou as palavras
com todo o ódio que conseguia. — Vai me mandar de volta para o reino do
inferno, vai me proibir de passear no mundo dos mortais? Isso não vai
funcionar. Não sou boa em obedecer castigos.
— Eu sei disso. Por isso será algo mais, digamos, permanente.
— O que quer dizer?
O irmão intercedeu.
— Não faça isso. Você sabe que terá que punir nós dois nesse caso.
Somos feitos aos pares. — ele praticamente implorava.
— O que ele quer dizer?
— Você sabe o que acontece quando um pesadelo ou um demônio
perde seu limite e ameaça a humanidade?
— Diz a lenda que eles são, apagados.
— Exatamente.
— E é isso que vai fazer comigo? Vai se livrar de mim? E de quebra
se livrar do meu irmãozinho que sempre foi um santo? Finalmente terei
minha vingança. Ele sempre me atrapalhou. Pode seguir. Não tenho medo.
Ela aproximou-se e falou por entre os dentes, com um ar frio saindo
de sua boca. Conforme falou de novo, congelou o ar a seu redor.
— Pois deveria.
E falando isso, a filha congelou e foi se derretendo em forma de água
na sequência, escorrendo por si mesma e desaparecendo como se nunca
existira. O filho se preocupou.
— Quanto a você, meu filho, o retorno será breve, mas com outra
irmã.
— Confio em você mãe.
E ele desapareceu como pós, deixando algum brilho no lugar que
ocupara. Não demorou muito os pontos brilhantes foram se juntando e
formaram uma luz intensa que se dividiu e deu origem a dois seres
novamente. Ele havia retornado e agora com uma nova parceira.
— Você vai precisar orientá-la. Ela é nova. Eu vou depois. Ainda
preciso ficar aqui alguns instantes.
Ele assentiu e levou a nova irmã com ele. Charles apertava cada vez
mais forte a mão de Linda, sem entender nada.
A Morte chegou próxima dos dois e falou.
— Eu disse que ajudaria.
— Obrigada! — respondeu Linda, olhando para Charles e apertando a
mão dele.
— Você é... — ele gaguejou.
— Você sabe quem eu sou. Consegue sentir, não?
— Acho que sim.
— Não tenha medo de mim. Como eu disse, sua hora ainda não
chegou. Vamos nos reencontrar. Todos se encontram comigo, mas acho que
agora você terá menos motivo para me procurar.
— Não entendi.
— Olha, Charles, eu lhe devo desculpas. Não consigo estar a par de
tudo que meus filhos fazem, mas minha filha pegou pesado com você. Eu
descobri, intervi. Ela não vai mais interferir. Muitas das coisas que você
passou, deveria passar mesmo fazia parte de suas escolhas muito antes de
vir para esse mundo. Mas, em alguns momentos, suas decisões e seus
sentimentos foram anuviados pelo desejo dela de se encontrar com você.
Quando percebi isso, e só consegui ver isso quando o caminho de vocês se
cruzou, eu vim ajudar.
— Acho difícil de acreditar nisso. Eu realmente ainda estou vivo?
— Sim, está. E eu acho que você e Linda ainda têm muito o que
conversar e se conhecerem. Talvez seja melhor vocês não se lembrarem de
tudo isso. Tenho certeza que seguirão bem daqui para frente. Será apenas
um lapso de tempo.
Dizendo isso ela simplesmente soprou um fumaça ao redor deles e
eles adormeceram novamente como estavam antes de tudo aquilo acontecer.
Ela sorriu e saiu. Tinha feito seu papel.
Após alguns minutos, os médicos que tinham entrado anteriormente
entraram novamente naquele quarto onde esperavam ver uma pessoa
chorando e uma sem vida, mas o que viram, sem entender, eram duas
pessoas apenas dormindo. Entreolharam-se, sem compreender. Checaram o
pulso dele, normal. Ela acordou com o movimento.
— Ei! Tudo bem?
— Eu que pergunto. A última vez que saímos daqui você estava
reanimando ele.
— Não lembro disso.
— Como não?
Charles também acabou despertando com o movimento e falação.
— O que está acontecendo?
Os médicos, sem nada entender, optaram por ignorar. Não sabiam
explicar o resultado daquilo e, então, decidiram seguir adiante.
— Nós vamos fazer alguns exames para ver se podemos lhe dar alta.
Acho que não é mais necessário manter o senhor aqui. Uma enfermeira virá
buscá-lo em breve.
Linda estava confusa, achava que tivera um sonho muito estranho.
Mas estava feliz que cogitavam a alta de Charles. Em alguns minutos uma
enfermeira com uma cadeira de rodas veio para pegá-lo e Linda pediu para
acompanhá-lo e dar suporte se necessário.
Após muitos exames, várias salas e um enorme passeio por várias alas
da clínica, um almoço corrido e pouco tempo para conversa, eles chegaram
ao final da tarde com a alta assinada.
Linda arrumou suas coisas e percebeu que Charles não tinha muito o
que arrumar. Embora fosse meio sombrio e desconfortável pensar nisso, a
única roupa que ele tinha era a que Christian tinha providenciado para uma
ocasião um pouco diferente que aquela. Mas ela serviria. Vestir-se, arrumar-
se, pôr-se de pé e se preparar para sair depois daquilo tudo, era uma
sensação muito estranha para Charles. Ele estava muito pensativo naquele
dia. Há muito tempo ele não tinha alguém ao seu lado que estivesse
verdadeiramente preocupado com ele. Linda estava. Ele percebeu em vários
momentos o olhar que ela lhe dedicava. A atenção de explicar o que eram
os exames, como seriam feitos, se doeriam ou não. A presença dela, muitas
vezes apenas com uma mão no ombro dele ou segurando sua mão, só para
mostrar apoio, era algo que ele não tinha há muito tempo. No fundo, ele
estava com medo. Confiar em alguém de novo, se abrir para alguém, não
era algo que estava em seus planos. Mas algo lhe dizia que podia funcionar.
Ela rompeu seu loop de pensamentos.
— Pronto?
— Não. Mas vamos assim mesmo. — e os dois riram um pouco e
entraram em um carro que estava os aguardando.
O motorista ajudou a acomodar as coisas dela no porta-malas e entrou
novamente no veículo, perguntando:
— Para onde vamos senhor?
Charles olhou para Linda e refez a mesma pergunta.
— Para onde você quer ir, Linda?
Ela se assustou. Não esperava que não tivessem um itinerário.
— Não faço ideia. Achei que já estava tudo planejado.
— Quer voltar ao Brasil ou quer ir a algum lugar antes?
— Eu adoraria passear, mas por vários motivos acho que preciso
voltar.
— Trabalhar?
— Também. Mas tem muitas coisas acontecendo por lá. Eu preciso
checar o que está acontecendo. E o Pedro me falou sobre um casamento que
vai ter no time e que eu seria madrinha. Acho que deve ser o Alan, um
médico da minha turma de faculdade, com a Suzana, que é fisioterapeuta,
também minha amiga. Na verdade eu apresentei os dois e, até insisti um
pouco, pois em um primeiro momento ela não estava muito a fim dele não.
Então acho que seria meio óbvio eles me chamarem de madrinha.
— E você vai com quem?
— Não tenho mais um par. Eu teria há alguns dias, meu ex namorado.
Mas esse relacionamento não existe mais.
Ele percebeu um certo tom triste na fala dela.
— Você não está bem com isso? Com o término? Ainda gosta dele?
— ele perguntou com um aperto no coração e com medo da resposta.
— Com a separação, estou ótima. Acho que foi mais uma libertação
de uma situação que eu mesma me coloquei. Fui eu que pedi para terminar,
depois que a situação chegou no meu limite. Mas não consigo sentir uma
certa culpa de ter perdido tanto tempo com alguém na minha vida. Eu me
sinto triste por não ter terminado antes, sabe. Eu me arrependo de ter ficado
tanto tempo com alguém que nunca me valorizou e sempre quis me mudar.
Ele não pode negar que ficou feliz com a resposta. Tinha medo que
ela ainda tivesse sentimentos por ele.
— Você precisa olhar isso pelo lado positivo,
— Existe algum?
— Sempre existe. Você nunca mais vai dar chance para alguém que
não a valorize pelo que você é, que não a aceite como você se sinta bem,
que tente modificá-la para caber em um molde que se adeque a uma
necessidade não sua. Você vai aprender que as pessoas não mudam e que
você precisa achar alguém que seja ideal para você. E aqui não digo
perfeito, porque ninguém é assim, mas totalmente capaz de aceitar e ser
feliz com você, como você é, sem fazer inúmeras concessões. Você vai abrir
mão de algumas coisas? Sim. A outra pessoa vai abrir mão de outras
coisas? Sim. Mas tem que ser uma via de mão dupla e não uma estrada de
mão única, na qual só você cede. Isso não é viável.
Ele tinha razão naquela frase e essa sensibilidade, essa clareza, a
emocionou, ela instintivamente o abraçou e ele a envolveu em seus braços,
mantendo-a com o cabeça em seu ombro enquanto falava para o motorista:
— Vamos para o aeroporto.
O motorista obedeceu e o carro entrou em movimento.
— E a propósito, se você precisar de companhia para o casamento,
estou me voluntariando.
Ela se espantou com a oferta.
— Sério?
— Claro. Depois de tudo que você fez por mim, é o mínimo que eu
poderia fazer. Além disso, acho que vai ser divertido.
E seguiram a caminho do aeroporto.
 
Capítulo 16
 
Mari chegava em Paris e se dirigia ao local de seu estágio. Mas antes
teve uma ideia libertadora. Ela ainda estava no Charles De Gaulle, não tinha
muito tempo, mas ela só precisava de alguns minutos. Saiu pela área do
desembarque e procurou uma loja para comprar um chip de celular local.
Afinal ela ficaria ali por um ano. Ela não queira, nunca mais, ouvir a voz de
Ed. Ele já servira para o propósito dela. Ficou na dúvida se gravava uma
mensagem ou não. Afinal, pelo horário, era madrugada no Brasil e ele
estaria com o celular no modo não perturbe, então não haveria o risco do
celular tocar. Exceto, claro, se ele tivesse colocado o número dela entre os
favoritos, mas ela duvidava que ele tivesse feito isso. Comprou o chip,
olhou para o aparelho dela pensativa e decidiu aguardar até fazer sua
matrícula, só para ter certeza. Não demoraria muito.
Notou que tinha uma mensagem de voz e ficou preocupada se seria
dele. Ligou para a caixa postal e ouviu a voz do seu outro namorado
terminando com ela. No fundo esperava por aquilo. Os jornalistas falaram
com ela, estava na casa do Ed, saíra em vários veículos de imprensa. Não
tinha como negar que ela estava com ele, traindo os dois. Respirou fundo.
Ela conseguiria alguém em algum momento e, quem sabe, até melhor que a
levasse mais longe.
Saiu, pegou um taxi e pediu para ele ir direto para o endereço que
tinha do estágio. Claro que ela também havia trocado o hotel que iria ficar
com Ed, por um apartamento que ela conseguiu alugar por uma boa
temporada, pelo airbnb. Assim, ela não teria nenhum risco dele saber onde
ela estaria, exceto pelo local do estágio. Sobre isso, ela precisava pensar.
Chegou ao local e foi até à secretaria para efetivar a matrícula. Lá,
uma secretária simpática Amelie, a ajudou. Ela lhe deu uma ficha para
preencher e alguns papéis para assinar. Mari puxou conversa, arranhando
um francês. Depois de algum tempo, acabou pedindo um conselho para a
moça.
— Amelie, posso fazer uma pergunta?
— Claro. — ela respondeu, simpática.
— Eu vinha para cá com meu namorado. Mas descobri algumas
coisas horríveis sobre ele no dia do embarque e nós terminamos. Eu mudei
meu número de telefone e o lugar que iria ficar aqui em Paris, mas ele sabe
onde eu faria o estágio. Se ele ligar aqui e falar coisas absurdas sobre mim,
ou tentar falar comigo, eu tenho como evitar isso? Estou com muito medo.
Amelie se empatizou com ela. Ficou um pouco surpresa com a
revelação, mas respondeu prontamente.
— Nossa! Que horror! Você quer falar sobre isso?
— Acho que não. Mas se eu der o nome dele para você, certeza que
você consegue ler a reportagem. Só terá que traduzir porque ela está em
português.
— O nome dele eu vou precisar mesmo, porque se ele tentar ligar
aqui, vão transferir para mim e, aí, eu preciso saber que é ele. Vou dizer que
você nunca veio aqui, pode ser? Vou negar que você tenha feito matrícula
nesse estágio.
— Você faria isso?
— Claro! Como ele chama?
— Edmundo Cercato.
— Vou deixar aqui uma nota para eu não esquecer. Pode confiar em
mim. E vou ler essa matéria.
— Muito obrigada. Não tenho como agradecer.
Dizendo isso ela saiu da sala. Fechou a pesada e antiga porta de
madeira e olhou novamente para seu celular ainda com o número antigo e
ligou para o número do Ed. Como esperado, caiu diretamente na caixa
postal. Ela esperou o toque para deixar mensagem e gravou um recado
“Ed, eu só tenho a agradecer todo esse tempo que passamos juntos,
mas depois que eu descobri tudo que você fez e quem realmente você é,
descobri que não existe mais a gente. Você é egoísta demais, autocentrado
demais e nada preocupado com nada que não seja seu próprio ego, seu
orgulho e seu próprio umbigo. Então eu espero que você seja feliz, mas bem
longe de mim. Tenha uma ótima vida.”
Desligou e quebrou o chip antigo, trocando pelo novo. Agora ela
poderia começar uma nova vida, com tudo que sempre quis e ainda, em
Paris.
Enquanto isso, na manhã seguinte, Julio, o advogado de Ed, foi
bastante rápido para executar a defesa de seu cliente e protocolar a ação
contra o veículo de imprensa e os dois denunciantes. Pedro já esperava por
uma citação e tinha seus advogados, bem munidos de provas e orientações,
apenas em modo de espera para responder à altura.
Quando Ed acordou em sua confortável casa, ele já imaginava que seu
advogado deveria ter feito seu trabalho. Naquele dia, não olhou o celular.
Ficou alguns minutos olhando pra seu caro lustre de cristal, em sua cama
tamanho king, envolto por seus lençóis de fio egípcio. Espreguiçou e
levantou para tomar um delicioso banho de banheira, antes de sair para
trabalhar. Ele relaxou já imaginando a vitória que teria em breve. Secou-se,
vestiu seu terno caro, tomou um café da manhã reforçado e pegou as chaves
do carro e o celular para sair. Foi nesse momento que viu que tinha uma
mensagem de voz, mas como estava atrasado, decidiu deixar para depois.
No caminho do trabalho, lembrou que não tinha checado se Mari
havia chegado bem. Achou estranho o fato dela não ter mandado
mensagem. Ligou para o número dela. Caixa postal.
Ficou preocupado. Quando o carro parou no próximo semáforo
fechado, ele abriu o WhatsApp e mandou uma mensagem. Nada também. A
mensagem saiu do celular dele, mas não entrou no dela. Decidiu ligar no
hotel. Pelo menos, lá, foi atendido. Perguntou sobre ela e foi informado que
a reserva fora cancelada. Começou a ficar irritado. Telefonou para o estágio
e caiu na secretaria, com a mesma Amelie.
— Olá, boa tarde. Eu preciso de uma informação.
— Claro, senhor. O que precisa?
— Gostaria de saber se minha namorada se matriculou no estágio
dela.
— Nome dela por favor.
— Mariana Ferraz.
— Não senhor. Ela deve se apresentar hoje, mas ainda não veio aqui.
— Não?
— Não.
— Obrigado.
Desligou e ficou olhando para o pontinho vermelho que acusava a
mensagem de voz em sua caixa postal. Distraiu-se tanto que os demais
carros começaram a buzinar. Ele fez um gesto não muito educado pela
janela e seguiu em frente. Enquanto isso, ligou para a caixa postal.
Não esperava a mensagem que ouviu. Sentiu o rubor invadir seu
rosto, mergulhado na raiva. Desligou e ligou para o Julio.
— Alô. — atendeu a voz conhecida de seu advogado.
— Julio? Você já protocolou a ação?
— Claro! Você me pediu agilidade. Sabe como eu trabalho. E aliás,
bom dia.
— O dia não está tão bom. Talvez tenhamos alguns problemas. Acho
que me enganei em relação à Mari.
— Como assim?
— Ela terminou comigo.
— O que? E tudo aquilo que você me disse ontem?
— Acho que me enganei.
— E qual seu plano?
— Ainda não sei. Talvez eu possa falar com a Linda, pedir desculpas.
Acho que se eu conversar com calma com ela, consigo que ela volte
comigo. Afinal, ela não gosta de ficar sozinha, não é? E com toda essa
confusão rolando, quem vai encarar entrar nessa fria? Ela não tem muita
opção. E voltando, eu faço o papel de arrependido e me livro das acusações
dela. Sobra o Pedro. Mas isso é fácil.
— Se você acha.
— Tenho certeza. Falamos.
Desligou e deixou Julio pensativo, afinal, a última vez que ele disse
que daria tudo certo, parecia que o tiro saíra pela culatra. Já estava achando
uma péssima ideia ter concordado em representá-lo, mas agora não tinha
muito jeito.
Ed ligou o rádio nas notícias, não estava com paciência de ouvir
música. A primeira notícia narrada foi:
“A notícia do dia é que após anos desaparecido e sem ninguém ouvir
a seu respeito, o famoso escritor, milionário e best-seller Charles Verne foi
visto na Suíça a caminho do Brasil. Ele foi reconhecido no aeroporto por
alguns fãs, mas não falou nada e se dirigiu para o embarque. Pessoas que o
viram, disseram que ele estava acompanhado por uma mulher, médica
brasileira, o que fez levantar a hipótese que ele poderia estar doente ou indo
fazer algum tratamento específico. Vamos tentar encontrá-lo no aeroporto
para sabermos mais informações, mas estamos muito animados com a
possibilidade de tê-lo novamente à ativa. Ele teve um intervalo enorme de
publicações e notícias desde o falecimento de sua esposa e, agora, temos
uma esperança.”
Ele não deu importância ao que ouviu, mas se soubesse como aquela
informação era crucial, teria escutado
 
Capítulo 17
 
A chegada de Charles ao aeroporto realmente foi um alvoroço.
Mesmo desaparecido há vários anos, parecia que muitos fãs ainda o
guardavam no coração e na memória. Muitos como Kim fizera, conseguiam
reconhecê-lo. O fato de ter pessoas o parando e algumas pedindo para tirar
fotos, chamava a atenção de outras que instintivamente paravam também,
questionando-se quem era a celebridade. Linda percebeu que essa parte da
vida dele não deveria ser fácil. Talvez fosse por isso que ele tivesse se
mudado para o Brasil. A maioria dos livros não fora traduzido para o
português o que fazia com que ele fosse menos conhecido lá. Embora ele
fosse atencioso e cortês com todos os que o paravam, exceto quando
pediam detalhes sobre sua vida, Linda percebia que ele tinha uma
personalidade introspectiva e tímida. Não devia ser fácil para ele se expor
daquela forma. Tiveram bastante dificuldade em chegar à área de embarque,
mas tinham tempo suficiente para tal, então a missão foi completada com
sucesso. Todas as vezes que alguém perguntava quem era Linda, ele apenas
respondia que era uma médica. Não falava seu nome e nem de onde era,
mas como conversavam em português, não foi necessária muita imaginação
para descobrir que ela era brasileira. Quando se sentaram para aguardar a
chamada do embarque, ele reparou que ela estava reflexiva.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Sim. Tudo bem.
— Olha, eu não queria ofender nem entristecer você por não dizer
quem você era. Só não gosto de expor minha vida para as pessoas e para a
imprensa. Tudo que eu falo ou que eles conseguem informação, vira
manchete. Não é que você não seja importante para mim, você é, mas eu
não gostaria que mais ninguém ficasse sabendo disso, por enquanto.
Algumas coisas chamaram a atenção dela naquela frase: ela era
importante para ele, isso era uma surpresa dito daquela forma, não se
conheciam há tanto tempo assim, mas a informação a deixou alegre; ele
realmente era uma pessoa reservada e ela achou aquilo muito inteligente.
Não tinha motivo de o mundo saber se eles tinham um relacionamento ou
não, aquilo era entre eles e ela já lera em algum lugar que se você quer que
algo dure, que as pessoas não invejem e não queiram destruir, mantenha o
que é importante para você de forma privada. Outra sábia decisão. Mas o
que mais a comoveu, foi o fato dele estar pensando em como ela poderia
estar se sentindo e tentando se adiantar se ela estava chateada ou não. A
última relação que ela tivera nunca passara pela preocupação de como ela
se sentia. Ed tinha a teoria que ela era ótima em achar soluções dentro de
situações de trabalho e, então, sempre deveria achar as mesmas soluções e
aguentar tudo na vida pessoal. Ele não entendia que, no trabalho, eram
algumas horas e que não era 24/7, diferente da sua vida pessoal. Então ver
alguém tentando se explicar por algo que possivelmente pudesse estar a
incomodando, pensando em como ela estava se sentindo era algo muito,
muito novo, mas também muito, muito reconfortante. Mas esse não era o
problema. Então ela achou melhor explicar.
— Não, não. Isso não me incomodou em nada. Acho que você está
certo em não falar nada. Mas estou com um pouco de receio em como vai
ser essa minha volta. O que vou encontrar no Brasil, como meu ex vai
reagir a tudo isso. Eu e meu chefe, o Pedro, demos uma entrevista antes de
eu vir para cá com você e entendi que isso está tumultuando, bastante, as
coisas por lá. Estava pensando nisso. Zero chateada com você. Mas feliz
que você ficou preocupado comigo. Não estou acostumada com as pessoas
pensando em mim.
— Nossa, que bom! Não que bom que sua vida pode estar um caos
voltando para o Brasil, mas bom de você não estar chateada comigo. E eu
sei bem como é a sensação... também não tinha o costume de ter pessoas
pensando no meu bem estar. Acho que é o mal de sermos como somos,
pensamos em todo mundo e nos deixamos para depois. Gostamos de cuidar
dos outros e, por causa disso, às vezes atraímos pessoas que querem só ser
cuidadas e não se preocupam conosco. Mas como eu lhe disse, isso é um
aprendizado, para nós dois, acho que, agora, estamos em outro patamar.
Os dois riram em cumplicidade. Sim, um estava cuidando do outro
ali, um preocupado com o outro e, pela primeira vez na vida de ambos, isso
era um equilíbrio. Ambos ainda tinham dificuldade em se deixar ser
cuidado, em se sentir vulnerável e em pedir ajuda? Sim, mas conforme a
segurança e confiança entre eles fosse aumentando, isso ficaria mais fácil e
as barreiras cairiam e finalmente os dois poderiam ter um relacionamento
construtivo.
Pouco tempo depois iniciou o embarque e eles se dirigiram para o
portão. Era a primeira vez que Linda viajaria em classe executiva em sua
vida. Ela e Charles estavam lado a lado no voo e teriam muito tempo para
conversar, antes de dormir. Ela estava mesmo apreensiva com a chegada em
seu país. Confiava em Pedro e em seu plano, mas estava com medo. Além
disso, não tinha a menor ideia de como Ed reagiria ao vê-la com outro
homem, ainda mais ele sendo quem era. Mas, ela precisava resolver um
problema de cada vez. Não se importava mais com a opinião de Ed. Ele não
fazia mais parte de sua vida e nunca mais faria. Ela só queria quebrar o
laço, o vínculo e se afastar o mais possível dele e de toda aquela história
passada e daquelas lembranças que lhe faziam tanto mal e lhe causavam
tanta dor. Ela estava a um passo de recomeçar, tentar de novo e, dessa vez,
parecia que estava na direção correta. Olhou para Charles novamente, que
se arrumava em sua poltrona após guardar as coisas dela no compartimento
superior. Ele a deixava feliz, segura. Era tão diferente ter essa sensação. Ele
se sentou e engatou outra conversa.
— Você se incomoda se eu fizer uma pergunta? Ou talvez várias?
— Claro que não. Você pode perguntar o que quiser.
— Primeiro a indiscreta. Quantos anos você tem?
Ela riu. Não era tão indiscreta assim.
— Trinta e seis. E você?
— Quarenta e sete.
— Você aparenta ser um pouco mais novo.
— Isso é um elogio? — riu também e ela o acompanhou.
— Quais as outras perguntas?
— Você tem família? Mãe, pai, irmãos?
Ela respirou fundo. Era um assunto delicado. Mas se ela queria que
ele fizesse parte de sua vida, ia acabar sabendo de um jeito ou de outro.
— Meu pai eu não tenho notícias há anos. Ele sumiu quando eu era
mais nova e meu irmão pequeno. Ele teve muitas amantes e traiu minha
mãe muitas vezes, mas nunca tinha saído mesmo de casa. Mas depois que
meu irmão fez diagnóstico de autismo, e no caso dele não era leve, teve
muita dificuldade para começar a falar, tinha vários comportamentos e
movimentos estereotipados, acho que foi a gota de água que transbordou o
copo. Ainda lembro do dia que ele saiu de casa, falando que a amante era
melhor que eu e minha mãe juntas. Meu irmão muito pequeno para entender
tudo aquilo, mas eu e minha mãe ficamos muito magoadas. Desde então,
nunca mais ouvi sobre ele. E, no fundo, talvez tenha sido melhor. Minha
mãe acabou criando a gente sozinha, o que não foi fácil, porque o
comportamento do meu irmão foi piorando ao longo do tempo e ele passou
a quase não sair de casa, o que restringiu muito a vida da minha mãe. Mas,
conforme eu fui ficando mais velha, assumi o cuidado dele para ela poder
viver, e então ela desabrochou de novo, mas nunca mais quis se casar. Acho
que ela ficou melhor assim, levando a vida como queria. Ela e meu irmão
ainda moram juntos.
— E você ainda ajuda correto?
— Sempre que eu posso. A vida de plantões me consome, às vezes.
— E é isso que você quer para o resto da sua vida?
— Como assim?
— Viver de plantões?
Era uma pergunta complexa. Como tudo na vida, havia um lado
positivo e negativo naquela escolha. Mas aquela pergunta também foi
interessante, ele estava tentando entender como ela era e o que ela desejava.
De novo, ninguém nunca tinha feito aquelas perguntas a ela, não com um
interesse genuíno.
— Eu gosto de ajudar pessoas. Gosto de salvar vidas e trabalhar em
time. É algo que me completa, que me faz bem. O problema é a rotina, as
noites sem dormir e o volume de trabalho, algumas vezes. Mas no geral,
acho que vale à pena.
— Mas você sabe que poderia fazer o bem para as pessoas, salvá-las,
como me salvou, e ter uma vida mais tranquila.
— Não vejo como.
— Trabalho voluntário, médicos sem fronteira ou algo parecido.
— Preciso pagar minhas contas, Charles. Não consigo com trabalho
voluntário.
— Estou pensando mais a longo prazo. Não agora. Sei como é
começo de carreira. Demoramos muito tempo até ter um certo conforto.
— Mas pelo que sei, você na minha idade, já estava bem estabelecido.
— Há dez anos, sim, eu estava, mas dei sorte. A maioria das pessoas
não está estável financeiramente aos trinta, geralmente estão mais perto dos
cinquenta.
— E falando nisso, e você? Pretende voltar a escrever? Você ficou
esse tempo todo sem escrever nada?
— Acho que perdi um pouco a vontade de colocar palavras em uma
página vazia. Era uma sensação de que minha vida estava vazia e não
estava com vontade e, nem forças, para preenchê-la com nada. Abri mão.
Talvez volte em algum momento, mas desde o Ode a Melancolia não
escrevo nada.
— Sei como é. Você passou por muita coisa.
— Sim.
— Mas acho que preciso lhe dizer uma coisa.
— Que seria?
— Eu sei que estamos nos conhecendo e que eu não tenho uma plena
consciência da exata pessoa que você é, mas pelo que eu percebo, por tudo
que você passou, sei que o deixou triste e fez com que você tomasse
algumas atitudes, digamos, extremas, mas tirando isso, a forma como você
encara a vida tentando ver o lado positivo, como você se preocupa com as
pessoas e comigo, como você aconselha, como você é empático, eu
realmente acho você uma pessoa incrível. E tenho a certeza que, se no
mundo, tivéssemos mais seres humanos como você, preocupados, gentis,
humildes, teríamos um lugar muito melhor para viver. Eu realmente o
admiro muito, e mais a cada dia conforme eu o conheço melhor.
Charles não era uma pessoa de se emocionar fácil, mas aquelas
palavras, naquele contexto, depois de tudo que ele passara nos últimos dias
e vindo dela, com tanta clareza e veracidade, realmente o tocaram. Ele
tentou disfarçar uma lágrima que quase escorreu pelo seu rosto, mas não
conseguiu.
— Desculpe, não queria deixar você assim. — disse ela.
— Não estou triste, Linda, estou emocionado. Essa última semana foi
intensa e suas palavras realmente me tocaram. Obrigado.
— É a pura verdade.
Charles achou melhor mudar o contexto.
— Desviando o assunto para eu me recompor, você pode me situar
sobre o que você e seu chefe falaram e o que deve estar acontecendo
quando chegarmos lá?
Esse também era um tema bem complexo. Linda começou do início,
com a história de Pedro do colégio e contou todos os detalhes do plano dele
e da entrevista que deram, passando pela situação com a Mariana. O tópico
era tão extenso que ocupou o taxiamento, a decolagem e o serviço de bordo.
Quando ela terminou ele estava pensativo.
— Se tudo que você disse procede e está amarrado dessa forma, deve
dar certo. Se precisarem de ajuda, posso disponibilizar meus advogados
também. Mas me parece que esse seu chefe pensou em tudo. Vamos
aguardar. Mas que essa história dava um livro ou um filme, dava.
— Você não faria isso, faria?
— Escrever sobre tudo?
— Exato.
— Talvez, mas eu colocaria um fundo ficcional interessante para
mascarar algumas situações. Poderia ser um próximo best seller.
Linda pensou um pouco, mas balançou a cabeça de forma negativa.
Não gostaria de ver sua vida exposta daquela forma, mesmo com mudanças.
— Você não quer se expor assim, não é mesmo?
— Não.
— Tudo bem. Não faço. Mas mesmo que eu decidisse mudar muita
coisa e deixar apenas algumas situações evidentes, eu daria para você ler
para checar se você estava confortável. Fique tranquila.
— Obrigada! — respondeu um pouco aliviada.
— Agora só falta você me contar sobre o casamento.
— Esse vou ficar devendo. Ainda não sei muita coisa. Vou descobrir
chegando lá. Aí conto tudo. E vou adorar ter você ao meu lado. Obrigada
por ter se voluntariado.
— Você não precisa me agradecer. Não depois de tudo que passamos
juntos e que você fez por mim.
Mais uma vez a cumplicidade deles estava ali, pungente, palpável.
Ambos estavam percebendo algo florescer. E quando desabrochasse,
mudaria a vida deles para sempre.
 
Capítulo 18
 
Pedro esperava pelo contato de seus advogados após visualizarem a
ação aberta por Julio. Ele olhava apreensivo para o telefone, que insistia em
não dar sinal de vida. Estava ficando muito apreensivo. Tinha um plano
bem arquitetado, cuidadoso, mas que como tudo, tinha chance de falha, e
era isso que estava o afligindo. Em alguns momentos levantava-se de sua
cadeira e andava de um lado para o outro, quase fazendo um furo no piso de
tanta força que empregava nos passos. E o telefone teimoso ainda nada. Foi
pegar um café, embora a vontade fosse de algo mais forte, mas estava em
horário de trabalho e ainda era de manhã. Linda tinha pego o avião na noite
anterior, então deveria estar chegando ao país, ele queria dar a ela boas
notícias. Foi em um pé e voltou em outro. Nada de mensagens. Se obrigou a
sentar em sua mesa para trabalhar e então percebeu que recebera um e-mail
deles. Abriu correndo a mensagem e passou os olhos por sua totalidade. As
notícias eram boas. A acusação que Julio formulara era bem em linha com o
que eles esperavam, e estavam munidos de provas para tudo que tinha sido
colocado. Eles já tinham providenciado a defesa para ambos, tinham
juntado as provas e iriam protocolar tudo ainda naquele dia. Diziam para
Pedro ficar tranquilo que os acontecimentos estavam dentro do planejado.
Pedro sorriu. Teria boas novas para compartilhar.
Como que estivesse esperando a deixa, Linda mandou mensagem que
já estava em casa. Ele ficou um pouco curioso, mas decidiu não perguntar
sobre o assunto que realmente queria saber.
“Que bom. Foi tudo bem? Você passa por aqui hoje?”
Linda viu a mensagem. Como tinha vindo de classe executiva, não
estava cansada. Respondeu.
“Passo sim. Em 1h estou aí.”
“Combinado. Te aguardo. Tenho novidades.”
“OK.”
Charles percebeu que algo estava rolando.
— Tudo bem Linda?
— Tudo sim. Acho que o Pedro tem novidades para me contar e eu
aproveito e descubro detalhes do casamento para posicionar você.
— OK.
— Porque acho que você está chateado.
— Não estou. Acho que me sinto melhor com você por perto e me
adaptei à sua presença nos últimos dias.
— Você pode ficar aqui em casa. Não vou demorar muito. Você pode
me mandar mensagens se precisar de qualquer coisa.
— Eu sei. Mas vai lá. Precisamos de informações, do convite e
detalhes. Eu espero. Leve o tempo que precisar.
Ela se aproximou dele e lhe deu um abraço.
— Eu não demoro.
E saiu. Charles ficou sozinho no apartamento dela e teve tempo de
perceber que havia traços da personalidade dela espalhados pela decoração.
Ela era objetiva, concisa, racional. A casa tinha pouca decoração, poucas
fotos, era limpa, clara, funcional, prática. Ele viu uma gaveta entreaberta e
por algum motivo aquilo lhe aguçou a curiosidade. Abriu a mesma e viu
uma carta dobrada, guardada lá dentro. Desdobrou-a e viu que era
endereçada à Linda. Começou a ler e teve a sensação de que de alguma
forma já tinha conhecimento sobre ela, mas era de uma crueldade sem
precedentes. Ele se machucava com as palavras ali escritas e nem eram para
ele, imaginava como Linda reagira a aquilo. Ele criava cada vez mais um
sentimento protetor em relação a ela e de desprezo absoluto pelo tal do ex
namorado dela. Ele tinha vontade de ligar para seus advogados e acioná-lo
de alguma forma, para diminuir a dor dela, mas precisava ser racional.
Aguardaria ela voltar com as novidades. Com sorte seriam boas.
Enquanto isso Linda dirigia até o hospital para falar com Pedro. Na
entrada do hospital, provavelmente por terem sido avisados, encontrou Alan
e Suzana, que pareciam aguardar por ela.
— Linda! Que bom ver você. Você está bem?
Linda abraçou os amigos e abriu um sorriso sincero, o que os deixou
felizes.
— Por incrível que pareça, estou ótima.
— Sua energia mudou querida. Você está emanando paz, alegria.
Temos um nome para isso ou foi só a retirada daquele encosto que você
namorava?
Ela riu.
— Acho que foi a retirada do encosto. Um outro alguém, ainda estou
trabalhando nisso, mas pode ser que apareça alguém logo, se tudo der certo.
— Opa, então podemos contar com você acompanhada em nosso
casamento semana que vem?
— Nossa! Já é a semana que vem? Que rápido.
— É sim. Você vai né? Como nossa madrinha. É o mínimo que
devemos a você. Você nos uniu e isso foi uma das melhores coisas que
aconteceu em nossas vidas. Você sabe que você é nosso anjo né?
— Não chego a tanto, mas podem contar comigo. Vou tentar ir
acompanhada sim, mas ainda não sei por quem. Preciso dar o nome para
vocês quando?
— Linda, você não precisa. Só chegar lá com quem você quiser.
Vamos deixar seu nome com acompanhante e você leva quem quiser. Não
precisa nos falar. Descobrimos lá. Confiamos em você.
— Muito obrigada. Mas preciso de detalhes. Cor de vestido, roupa,
terno do meu acompanhante, horário, local.
— Isso está tudo no seu convite, inclusive com um brinde para
acompanhar seu vestido. Além disso, colocamos sua mãe e seu irmão
também como convidados. Sei que às vezes é difícil levá-lo aos lugares,
mas se conseguir ele será muito bem recebido e deixamos uma sala mais
silenciosa, caso você prefira deixá-lo longe da banda e do barulho. Como
vocês preferirem, OK? — dizendo isso ela estendeu um belo convite azul
claro em relevo, com uma bonita caligrafia e um pingente em forma de
coração dentro de um saquinho de renda.
— Muito obrigada. Estaremos lá.
— Nós que agradecemos, não é, Linda. Mas agora acho que você
pode ir. O Pedro está esperando por você.
Eles se despediram entre abraços e sorrisos e assim que ela entrou no
hospital, percebeu que muitos colegas a aguardavam e estavam felizes de
vê-la. Foram tantos cumprimentos, abraços, beijos, palavras e apoio que ela
demorou um tanto para alcançar a sala do chefe. Bateu.
— Entre. — foi a resposta da voz lá de dentro, um pouco impaciente.
— Incomodo? — ela perguntou.
Ao vê-la o rosto dele se iluminou.
— Achei que você tinha desistido.
— Não. Só foi meio difícil chegar aqui. Todo mundo queria falar
comigo, ver como eu estava, contar alguma coisa. E ainda encontrei o Alan
e a Suzana na entrada. — dizendo isso ela mostrou o convite e o sacudiu no
ar.
— Todo mundo gosta de você, Linda.
— Não sei se todo mundo, mas bastante gente. É legal sentir essa
energia.
— Eu sei. Sente-se um pouco.
Ela obedeceu. Puxou a cadeira e se sentou. Assim que ela o fez, ele se
sentou na sua frente, abriu seu computador e mostrou o e-mail dos
advogados. Ela leu com cuidado. Era bem mais desconfiada que o chefe.
— Então parece tudo encaminhado. Quando teremos uma resposta?
— Os advogados acham que em até um mês.
— E eles estão otimistas?
— Por enquanto sim. Vamos ver o que vem de lá.
— Algum imprevisto até o momento?
— Por enquanto não. E você, como estão as coisas?
Ela ponderou se contava para ele ou não, mas com tudo que ele havia
contado para ela e como vinha ajudando, ela se sentiu segura.
— Tudo ótimo, na verdade.
— Alguém está bem mais feliz mesmo, você está transparecendo isso.
Mudou seu semblante, sua energia. Você está mais bonita, mais confiante.
— Já me disseram isso. Acho que é porque encontrei alguém que me
faz bem feliz. Que me dá segurança.
— E esse alguém seria um antigo paciente nosso? — arriscou.
— Sim.
— Ele está bem?
— Está ótimo. E descobrimos vários pontos em comum em nossas
vidas. Ele é uma pessoa muito especial.
Pedro sorriu. Não era possível não perceber que ela estava apaixonada
por ele. Ele gostava de vê-la daquela forma. Ela parecia irradiar alegria. Era
muito reconfortante ver alguém que ele gostava tanto, feliz daquela forma.
Ela ficou intrigada.
— Por que você riu?
— Porque é claro que você está apaixonada por ele. Não está?
— É tão óbvio assim?
— Para mim, que conheço você razoavelmente, sim. Não sei se para
qualquer um. Vocês assumiram alguma coisa?
— Ainda não. Preferimos manter em segredo por enquanto e conto
com sua discrição. Mas vamos ao casamento juntos e, aí, talvez fique mais
evidente. Mas sempre podemos dizer que somos apenas amigos, pelo
menos por enquanto.
— Eu não sei de nada. E quem não sabe, não comenta. Mas estou
muito feliz por vocês. Você merece, muito, ser feliz.
— Eu estou. Agora é só tudo dar certo.
— Vai dar.
E depois dessa breve conversa, ela saiu e retornou para casa, para dar
as atualizações para Charles. Não demorou muito, pois o trânsito ainda não
estava pesado.
Ao entrar no apartamento, ela encontrou Charles olhando pela janela,
com olhar um pouco perdido e pensativo.
— Tudo bem? — perguntou um pouco nervosa.
— Comigo tudo. Mas e com você?
— Tudo também. Por quê?
— Eu achei isso. — e mostrou a carta. Ela respirou aliviada, então era
esse o motivo da expressão tensa e fechada.
— A carta da minha antiga candidata a sogra.
— É sério que alguém tem a capacidade de escrever um absurdo
desse?
— Não tem mais importância. É meu passado. Não me abala mais.
— Mas abalou. — não era uma pergunta, era uma afirmação. Ela
baixou os olhos.
— Muito. Mas agora, não mais.
Ele estendeu o braço para que ela viesse para perto dele e a abraçou.
Beijou o topo de sua cabeça e falou em seu ouvido.
— Isso nunca mais vai acontecer com você. Eu estarei sempre aqui
para proteger você.
E assim ficaram abraçados por mais alguns minutos até ela se
desvencilhar dos braços dele e dizer.
— Tenho muito a contar, inclusive detalhes do casamento que vamos.
Com isso mostrou o convite e passou a narrar todo o ocorrido no
hospital, deixando-o bem animado, pois as notícias eram promissoras. As
próximas semanas prometiam.
 
Capítulo 19
 
A primeira audiência entre Ed, Pedro e Linda seria na semana
seguinte do casamento. Ed tinha a esperança de fazer Linda se arrepender
de ter rompido com ele e, com isso, ter uma vantagem competitiva no
processo. Ele ainda se perguntava como iria encontrar com ela, pois tinha a
certeza que ela não permitiria que ele visitasse seu apartamento novamente
e, no hospital, não seria uma zona neutra. Precisava de uma outra
oportunidade, mas ficava se perguntando, qual seria?
Um dia, voltando do trabalho, ele percebeu um bonito convite sobre
sua escrivaninha. Resolveu olhar com mais cuidado e percebeu que era um
convite de casamento para Mari, que ela deixara ali. Se ele se lembrava
bem, Linda tinha sido importante naquele relacionamento, então seria um
ótimo lugar para conversar com ela e encontrá-la, até porque, na percepção
dele, ela estaria sozinha naquela festa. Sorriu com a oportunidade que se
apresentava em frente dele e notou que a cerimônia e festa seriam no dia
seguinte. Ficou feliz de ter encontrado o convite, afinal era a chance que
precisava.
Linda tinha voltado às suas atividades. Tudo corria normalmente e ela
e Charles vinham se encontrando, de forma discreta, todos os dias. Já
tinham tudo programado para o casamento, mas também decidiram ir
separados, para não causar muita especulação.
O grande dia chegou e a cerimônia começaria às sete da noite. Tudo
estava pronto e Linda conseguiu chegar junto com seu irmão e sua mãe, o
que também a deixou muito feliz. Gostava de ver seu irmão interagindo
com pessoas e fazendo coisas. A cerimônia do civil seria primeiro e depois
a religiosa, na qual ela era madrinha, então ela ainda não estava preocupada
com a ausência de Charles. Ele chegaria logo.
Já estavam todos prontos para a parte civil, convidados todos
amontoados para ouvir o juiz de paz e foi nesse momento que Linda viu Ed
entrando no salão, nitidamente procurando por alguém. Sentiu um frio na
espinha. Ela queria fugir dele e começou a ir mais para trás do salão, na
esperança que ele não a visse, mas era tarde demais. Ele vinha firmemente
na direção dela. No caminho, viu o irmão dela e a mãe, o que lhe fez sorrir
e pensar: “Coitada, não tinha mesmo ninguém para trazer e acabou tendo
que vir com a mãe e o irmão problemático. Espero que ele não faça uma das
cenas dele aqui.”
Mal tinha acabado de pensar isso, o irmão dela o viu também e
começou a gritar, apontando para ele e se afastando cada vez mais. A mãe
tentou acalmá-lo e retirá-lo dali, enquanto Linda se afastava mais e mais.
Como muitos já conheciam a situação, apenas ignoraram. Mas Suzana e
Alan, vendo Ed, procuraram por Linda e quase pausaram a cerimônia, mas
ela percebeu e fez sinal para que continuassem.
Quando Ed conseguiu chegar perto de Linda, disparou.
— Você realmente veio sozinha?
— Não. Vim com meu irmão e minha mãe, como você deve ter
notado. — ela tentava manter a calma, mas sabia que não seria fácil.
— Percebi. Ele já fazendo um número e tanto.
Ela não ia responder.
— Mas vim aqui para falar com você.
— Sobre?
— Sobre eu poder dar a você outra chance. Você sabe que esse motim
que você e o Pedro resolveram fazer contra mim vai dar muito errado, então
se você não quiser ser levada pela enxurrada, eu pegaria a chance que a vida
está dando a você, voltaria comigo e diria que houve um mal-entendido.
Ela não conseguiu não sorrir.
— Você acha que vai se dar bem, por isso está rindo. É isso?
— Não. Só acho muita pretensão sua vir aqui me oferecer a chance de
voltarmos. Algo que eu não faria nem se você fosse o último homem do
mundo.
Ele se irritou e partiu para o ataque.
— Pelo menos seria alguém que ainda aceitaria você. Ou acha que
com um processo rolando, com essa família complicada, você vai encontrar
alguém.
Ela estava pronta para responder, mas alguém interveio e respondeu
primeiro. Ela nem tinha visto Charles chegar, provavelmente pois estava
cega pela raiva que aquela conversa estava despertando.
— Ela já encontrou alguém que a aceita e, pelo que sei, bem melhor
que você, porque não pretendo tentar mudá-la em nada. Se a família dela é
complicada, me parece que a sua não é muito melhor, não é mesmo? Então
se você puder me dar licença, temos que assumir nosso lugar como
padrinhos dos noivos.
Ed estava vermelho de raiva e falava entre os dentes.
— Então vocês estão juntos?
Nenhum dos dois confirmou ou negou. Apenas ignoraram a pergunta
dele.
— Ótimo, não vão me responder. E quem você seria? — perguntou
voltando-se para Charles, mas antes que eles respondessem algo, foi Suzana
que falou.
— Ai meu Deus, Charles Verne, é você mesmo?
Ele olhou para a moça, e pelo vestido, notou quem ela era.
— Eu mesmo. Prazer em conhecê-la. Suzana, correto?
— Sim. — ela acenou para o noivo. — Esse é meu noivo, Alan.
Ele esticou a mão e cumprimentou o noivo. Ed ainda estava lá com
muita, muita raiva.
— Você é o tal autor desaparecido? O que surgiu há pouco tempo com
uma médica brasileira. Eu ouvi algo, mas nunca imaginei...
— Eu mesmo. E a Linda me ajudou bastante. Desta forma, soube que
ela vinha sozinha e me voluntariei para fazer companhia.
— Vamos? — ela convidou.
— Claro! — ele respondeu.
Ed estava pronto para ir atrás deles, mas foi bloqueado pelos noivos.
— Você não é bem vindo aqui Ed. Por favor saia.
— Ou o que?
— Ou nós vamos pedir para o segurança colocar você para fora.
Afinal cerimônias de casamento são privadas e podemos escolher quem
queremos aqui e, com certeza, não queremos você.
Ed ficou muito mal humorado. Pensou em rebater, forçar sua
presença, mas com tudo que vinha acontecendo, outro escândalo poderia
abalar mais ainda sua imagem. Decidiu retirar-se, sem falar nada. Desviou
dos noivos e foi embora.
Enquanto isso, Linda segurava a mão de Charles, dando-lhe um suave
aperto e lhe dizendo.
— Muito obrigada.
— Não tem o que agradecer. Mas quanto mais conheço esse sujeito,
mas tenho a certeza que ele não é uma boa pessoa.
Acabou de dizer isso e foi abraçado por alguém que ele não conhecia,
surpreendendo-o. Ele ficou desconfortável, até Linda interceder.
— Augusto, querido, solte o amigo da Linda, solte.
Ele fazia que não com a cabeça e foi quando Charles percebeu que ele
deveria ser o irmão dela.
— Você é o irmão da Linda?
Augusto meneou a cabeça em afirmação.
— Então eu quero dar um abraço em você também.
E quando ele disse isso, o irmão soltou um pouco os braços e ambos
se abraçaram por alguns instantes. A mãe dela respirou aliviada.
— Depois quero muito falar com você e conhecer você melhor. Pode
ser? — ele disse isso olhando diretamente nos olhos dele, mas usando um
tom de voz amigável e caloroso.
— Pode sim.
— Então até mais tarde.
Desenrolaram-se e Linda e Charles seguiram para o altar.
— Ele não costuma fazer isso. — disse ela.
— Parece que gostou de mim.
— Também achei.
E enquanto ela falava isso, pensava que o irmão era ótimo em julgar a
energia e o caráter das pessoas, ela realmente deveria estar acertando na
aposta.
Seguiram para seus afazeres de padrinhos, depois continuaram na
festa, comeram, beberam, conversaram e dançaram. A noite foi muito
agradável e todos, até mesmo a mãe e o irmão dela, divertiram-se bastante.
Todos menos Ed que já estava em casa muito mal humorado e com seus
planos indo por água abaixo.
 
Capítulo 20
 
O dia seguinte era aguardado com grande ansiedade. A audiência
estava marcada e as partes aguardavam serem chamadas. Ed e Julio de um
lado, Linda, Pedro e seus advogados do outro.
Julio estava mais confiante pois a peça de defesa dos advogados de
Pedro tinha sido rasa, com poucas provas. Eles falaram com as
testemunhas, ofereceram dinheiro a elas, as quais toparam adequar os
testemunhos naquele dia, então eles estavam contando com a vitória. Julio
só se incomodava com o ar de triunfo que os rivais tinham, pois não era
compatível com a situação, exceto se eles tivessem um trunfo na manga.
Isso o incomodava.
Foram chamados.
Assim que a sessão começou, Julio começou a entender a estratégia
do outro lado. E embora ele não quisesse reconhecer, tinha sido muito boa e
eles, provavelmente se dariam mal.
Conforme a audiência foi desenrolando e pessoas e provas foram
sendo apresentados, ficou bastante claro que Julio e Ed tentaram manipular
os depoimentos.
Várias testemunhas mostraram depósitos do advogado ou de Ed em
suas contas e disseram que foram orientados a mentir em seus depoimentos,
mas que não fariam aquilo, o que os deixou em uma situação muito
delicada, além de totalmente ilegal. Apresentaram a carta da mãe de Ed e
também a carta de Mariana acompanhada de fotos, o que deixou a situação
pior. Todos estavam contra eles. Tentaram se defender, mas contra provas
não existem argumentos. O juiz estava nitidamente incomodado e revoltado
com a tentativa o que, claramente, faria com que ele pesasse mais o
veredicto.
A história foi passada e repassada, pelas partes e pelas testemunhas
algumas vezes e quando mais o juiz perguntava ou os advogados, mais clara
ficava a culpa de Ed.
Não tiveram muito o que fazer. Em menos de duas horas, o juiz já
tinha um veredicto e ele era favorável a Pedro e Linda. Ele considerou que
Ed deveria pagar uma quantia vultuosa de danos morais aos dois.
Ed revoltou-se com a sentença e começou a reclamar e dizer o quanto
aquilo era injusto. Foi quando o juiz o lembrou que tentar comprar
testemunhas também era ilegal e ele seria acionado por aquele crime e, que
se ele continuasse a faltar respeito com ele, juiz ali, ainda poderia ser preso
por desacato.
Julio tentou orientar para que Ed se calasse, mas ele não parecia
obedecer. Mas quando se viu ameaçado, com a entrada de alguns policiais a
pedido do juiz, acabou pedindo desculpas e parou. Foram todos dispensados
e, quando o juiz saiu, Pedro, Linda e seus advogados se abraçaram em
comemoração, o que irritou mais ainda Ed. Ele falou para eles.
— Isso não vai ficar assim. Vamos recorrer. Vocês vão me pagar por
isso.
Julio revirou os olhos. Ele não iria mais defendê-lo, até porque aquele
caso já estava perdido, justamente pelo excesso de confiança dele. Levantou
e saiu. Ed ficou abismado. Mais uma pessoa que o abandonava, o que
estava acontecendo? Ele estava ficando sozinho. Mas não tinha problema,
contrataria outro advogado. Felizmente não faltavam escritórios de
advocacia competentes.
O tempo passou e ele realmente conseguiu outro escritório que o
representasse, mas o recurso também foi em vão, com o detalhe que no
tribunal dobraram o valor que ele devia as outras partes. Após três meses
ele estava com o nome na lama e abrindo falência, além de estar sozinho e
tendo que vender seus bens para quitar dívidas e pagar o devido.
Linda e Pedro estavam ótimos e agora com bastante dinheiro. Pedro
sentia que todo aquele tempo que tinha aguardado tinha valido à pena.
Linda não queria mais Ed em sua vida, mas também não estava feliz com
aquele final, não torcia para o mal dele, só para ele desaparecer de sua vida,
mas levando em consideração tudo que ele tinha feito, que não dependia
dela, ele mesmo tinha cavado aquela situação. Estava feliz de estar bem
longe daquela areia movediça que a vida dele virara.
Quanto à sua vida, Linda estava cada vez mais feliz com Charles,
mantendo o relacionamento em segredo, mas os dois cada vez mais
envolvidos. Nitidamente o humor de Charles também havia mudado. Ele
também estava mais feliz, mais aberto, mais confiante e tinha voltado a
escrever. Embora ele não comentasse sobre ela, vinha dando várias
entrevistas à imprensa e falara sobre ter encontrado, novamente, o motivo
para voltar à sua profissão. Tanto as editoras quanto a imprensa estavam
frenéticos esperando a nova publicação e bastante intrigados quanto as
verdadeiras causas daquela mudança e reaparecimento.
Kimberly também mantinha amizade com os dois, sem comentar
nada, mas muito feliz de ter a oportunidade de ser amiga e conhecer bem
alguém que ela fora fã por tanto tempo.
Após um ano do acidente provocado, Charles decidiu convidar Linda
para um jantar. Ele precisava fazer algo para marcar aquele dia que mudara
sua vida para sempre. Reservou um local bastante exclusivo, um bistrô
francês em um dos poucos hotéis seis estrelas da cidade de São Paulo. O
local era mágico, além de muito, muito exclusivo.
Linda estava linda, sem trocadilhos em relação ao nome. Ambos
muito felizes, mas um pouco emocionados com a data. Escolheram os
pratos, um bom vinho e comentaram um pouco sobre aquele dia e muito
sobre o último ano. Nenhum dos dois fora tão feliz quanto eram agora.
Finalmente eles encontraram algo que procuraram por toda a vida. Era
incrível como o destino as vezes escrevia certo por linhas muito, muito
tortas.
Pouco antes de pedirem a sobremesa, alguns músicos com violinos
vieram tocar na mesa deles e, para o deleite de Linda, o pedido de Charles
foi para que tocassem a música predileta dela em violino, que era All of me
de John Legend, que ficava mais bonita ainda em instrumentos de cordas.
Ela já estava emocionada, quando a música acabou, mas ficou pior quando
um dos músicos depositou a caixa de um anel em sua frente.
Ela olhou da caixa para Charles, quase chorando e um pouco tensa.
— Não sei se você acha precoce, mas de verdade, sei que esse dia há
um ano foi muito complicado para você. Foi o dia que você me salvou, mas
foi o primeiro dia de toda uma mudança em sua vida e do término do seu
antigo relacionamento. Eu não queria que você se lembrasse eternamente
desse dia por algo ruim, então escolhi esse jantar e fazer um pedido de
casamento, ainda sem data fechada, mas para marcar o dia de hoje de forma
positiva. Então se você me aceitar, eu gostaria de casar com você em algum
momento.
Linda não sabia o que dizer. Era tão inesperado. Era claro que ela
queria casar com ele, passar a vida toda com ele. Era a primeira vez que ela
se sentia ela mesma e feliz com alguém. Pelo jeito a recíproca era
verdadeira.
— Claro que eu aceito. — ela respondeu e abriu a caixa para ver um
bonito anel de diamante que coube como uma luva em seu dedo anelar.
Ele segurou as mãos dela, as beijou e respondeu.
— Você acaba de me fazer o homem mais feliz do mundo. E por isso
já tenho o nome do meu novo livro.
— Sério? Qual é?
— Lembra que a última coisa que eu havia escrito era a Ode à
Melancolia? Agora minha vida toda mudou e graças a você, estou acabando
a Ode à Alegria. Mas estar com você me devolveu a vontade de viver e
escrever. Eu não tenho palavras para agradecer.
— Charles, eu nunca me senti assim com ninguém. Já falamos sobre
isso algumas vezes. Eu não consigo ter a certeza da verdadeira causa de
você ter entrado em minha vida, mas que você modificou minha vida para
melhor, você mudou.
— Depois discutimos uma data, mas o importante agora é nosso
compromisso.
— Mesmo que não casássemos, Charles, meu compromisso com você
já é eterno.
Ele beijou as mãos dela novamente, pediram a sobremesa, acabaram o
jantar e se retiraram para a casa dele, dessa vez, onde passaram uma noite
maravilhosa comemorando aquele laço. Embora ainda tivessem alguns
detalhes para acertar, o desejo de estarem juntos, casados ou não, era nítido.
O estágio de Mariana também estava quase acabando. Ela esperava
uma oportunidade para ficar lá trabalhando, mas após algumas
investigações e terem entendido como ela chegara até aquele estágio,
ninguém tinha a intenção de contratá-la, até porque seu rendimento não era
tão bom assim. Ela era uma estagiária bem mediana. Ela acabaria tendo que
voltar ao Brasil e enfrentar tudo que ela fizera e as pessoas que magoara.
Ela também estava sozinha e não sabia se com tudo que havia sido jogado
na imprensa sobre ela, conseguiria que alguém confiasse nela novamente.
Embora Pedro a tivesse ajudado, ele não pretendia ter alguém com
aquele tipo de caráter na equipe, então, voltando, ela teria que batalhar por
algum trabalho, provavelmente começando novamente.
Um ano após todo o ocorrido, todos pareciam estar em novas vidas,
muito mais alinhadas com as pessoas que eles eram. As boas pessoas se
dando bem e vivendo felizes e as pessoas que não se importavam com os
meios, e apenas os fins, no fundo do poço. Afinal, o universo acabava sendo
justo, embora tivesse seu próprio tempo.
 
Epílogo
 
A Morte continuava acompanhando aquela trajetória. Seu filho
também.
— O que você está achando disso filho?
— De verdade, mãe? Eu amo a Linda e o que eu mais queria era vê-la
feliz. Acho que agora ela está. Desde aquela vez que você falou com ela,
não pensou mais em se matar. O mesmo para o Charles, assim que minha
outra irmã parou de influenciar. Tenho um pouco de ciúmes em vê-los
juntos e felizes? Tenho. Mas esse é o mundo dos humanos, nós estamos em
outro plano. Um dia ela virá para cá e eu talvez tenha uma chance. Mas
quem ama, abre mão e quer ver o outro feliz. Ela está radiante. Então eu
estou ótimo.
A Morte sorriu. Tinha orgulho de seu filho. Enquanto conversavam,
outro eterno se juntou a eles, o Destino.
— Interessante como você atua, meu irmão.
— Eu gosto de como as pessoas acham que o que ocorre com elas é
obra da sorte. Eles não sabem que eu atuo o tempo todo e que tudo isso já
está semiescrito antes de acontecer.
— E onde está o livre arbítrio nisso?
— Em eles poderem escolher se vão ou não seguir em frente. Nesse
caso específico, Linda poderia não ter terminado com Ed, poderia não ter
salvado Charles, poderia não ter ido com ele para a Suíça ou ainda não ter
ouvido você, irmã, e ter acabado com a própria vida. Em todos esses
momentos ela teve a chance de escolher.
— Mas no fim você está no controle de tudo.
— Nenhum de nós está, irmã. Você sabe disso. Nós damos opções,
eles escolhem. Mas que eu sabia, isso era o melhor para ambos e se
conseguíssemos chegar até aqui, eles estariam felizes e ajudando um ao
outro, nós sabíamos disso. Eles eram almas gêmeas que só precisavam de
uma ajuda para se encontrarem, mas tinham que escolher ficar juntos. E
agora que escolheram, temos essa relação construtiva ajudando ambos.
— Claramente.
— Agora temos que pensar nos outros.
— Quais?
— Os que estão sendo guiados por outros dos nossos irmãos. Os não
tão bons assim.
— O Desejo e o Mal?
— Sim.
— Bom, acho que esses também já fizeram suas escolhas, não? Agora
eles vão arcar com as consequências no mundo terreno e depois no nosso
também, não é isso?
— Sim.
— Você quer influenciar de algum modo?
— Não. Só não quero que eles interfiram mais nesse desfecho que
está dando certo.
— Independente das consequências?
— Sim.
— Pode deixar. Estarei atenta. Em caso de necessidade mandarei
meus filhos atuarem. Acho que chega de sofrimento para esses dois.
— Sabia que eu podia contar com você irmãzinha.
— Sempre.
E o Destino sumiu, deixando a Morte como guardiã da situação.
 
 
 
 
 
 
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