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INICIAÇÃO AO ESTUDO DO LIVRO DE SALMOS

Introdução
“Nos outros livros, escuta-se apenas o que é necessário fazer e o que não fazer...
Contudo, no Livro dos Salmos, aquele que escuta, além de aprender estas coisas,
também as compreende e é ensinado nelas por meio das emoções da alma.
Consequentemente, ... ele está capacitado por este livro a possuir a imagem que se
deriva das palavras.”
Esta citação extraída de uma carta de Atanásio a Marcelino no quarto século da era
cristã, nos mostra a beleza e a profundidade da leitura do livro de Salmos, quando
conseguimos captar a intenção do autor, bem como as nuances das figuras de
linguagem utilizadas.
A importância de um estudo aprofundado e de um conhecimento prévio das
características próprias da literatura hebraica nos ajuda a ultrapassar os abismos
culturais, cronológicos e geográficos que são naturais de uma obra cuja gênese se
encontra tão distante.
A proposta do presente estudo é iniciar o leitor em uma análise mais profunda no Livro
dos Salmos, conduzindo-o em seus primeiros passos em busca da Sabedoria existente
em suas muitas linhas.
Outrossim, não temos a intenção de esgotar o assunto com este estudo, o que, em
verdade, seria impossível, dada a exiguidade das linhas aqui expostas, cabendo ao
estudante, por si, mergulhar em águas mais profundas.
Posteriormente, faremos um estudo de caso, tomando por base o Salmo 91, cuja
escolha explicaremos em momento oportuno.
No que diz respeito ao Salmo 91, analisaremos como foi escrito, bem como as figuras
de linguagem utilizadas, seu domínio de origem e de destino, o estilo literário utilizado
pelo autor, com a finalidade de extrair o real significado de tais recursos que se
encontram no texto.
Portanto, antes de iniciar propriamente à leitura do referido Salmo, necessário se faz
uma contextualização a respeito da poesia hebraica, nem que seja, em função do
propósito aqui exposto, de uma forma superficial.

1 – Paralelismo
Estamos acostumados, quando pensamos em poesia, a imaginar uma séria de rimas e
métricas bem estruturadas e características que, embora varie de um estilo para outro,
mantém uma constante neste sentido.
Por essa razão, quando lemos Salmos, muitas vezes somos levados a pensar que,
apesar da classificação como livro poético, trata-se na verdade de uma prosa, uma vez
que não conseguimos identificar as características da poesia como comumente a
conhecemos. Ao contrário disso, a poesia hebraica não contém rimas. Quando ela
ocorre é de forma incidental e não proposital, em função das conjugações gramaticais
dependendo do texto analisado.
C.S. Lewis classificou o funcionamento do paralelismo como “dizer a mesma coisa duas
vezes em palavras diferentes”. Essa relação pode acontecer de forma sinonímica ou
antitética como podemos ver, respectivamente, nos exemplos abaixo.
“Quem, Senhor, habitará no Teu Tabernáculo? / Quem há de morar
no Teu Santo Monte?” (Sl 15.1)
“Pois o Senhor conhece o caminho dos justos / mas o caminho dos
ímpios perecerá.” (Sl 1.6)
Obviamente podemos encontrar outras formas de associação no paralelismo hebraico,
como a construção de uma pensamento com a adição de elementos novos sem que,
necessariamente, o complemento confirme ou contraponha a afirmação inicial, mas
sim, traga novas informações. Vejamos:
“Perto está o Senhor de todos os que o invocam / de todos os que o
invocam de verdade.” (Sl 145.18)
Veja que a segunda parte acrescenta uma informação, à medida que nos informa em
que condição devemos invocar ao Senhor. Também podemos encontrar o paralelismo
simbólico ou emblemático que ocorre quando a segunda parte da linha explica a
primeira. Podemos encontrar esse exemplo em Provérbios 11.22:
“Como joia de ouro em focinho de porco, / assim é a mulher formosa
que não tem discrição.”
Como se vê, a conceituação de C. S. Lewis acaba ficando incompleta, pois o
paralelismo faz muito mais que apenas “dizer duas vezes a mesma coisa”.

2 – O Recurso da Imagem
Poucos recursos tem o poder de tocar nossa alma tão forte quanto o uso de imagens,
pois seu objetivo é fazer com que nossa mente possa não somente processar o que
está sendo dito, mas visualizar e experimentar de uma forma mais intensa tal
ensinamento.
Que imagem podemos fazer quando lemos o Salmo 23.2! Deus nos levando para perto
de um rio com águas cristalinas, onde podemos saciar nossa sede e nos refrescar do
calor do dia, em um cenário deslumbrante onde podemos descansar sob a Sua
proteção.
Por outro lado, as imagens bíblicas utilizadas na poesia hebraica constituem um
desafio às nossas mentes, justamente em função dos abismos já citados que precisam
ser transpostos para uma boa compreensão. Um exemplo disso é o encontrado no
Salmo 23.5 que diz “unges-me a cabeça com óleo...”. Quando pensamos em óleo nos
vem à mente de forma quase automática a ideia de algo como nosso óleo de cozinha,
quando na verdade a palavra está relacionada com uma loção perfumada utilizada
para o corpo. Com essa nova compreensão, ao lermos novamente o texto, vemos
então o sentido de frescor experimentado pelos antigos, análogo a um bom banho
após uma longa viagem.
Em função das imagens possuírem múltiplos significados, mais importante ainda se faz
uma boa análise para avaliarmos em que sentido elas estão sendo empregadas no
texto bíblico. Por exemplo, a palavra “destra” pode ter sentido de posição de honra,
poder, mas também de abrigo e proteção, como podemos ver nos versículos a seguir.
“Assenta-te à minha destra / até que ponha os teus inimigos debaixo
dos teus pés.” (Sl 110.1)
“Mostra as maravilhas da tua bondade, / ó Salvador dos que na tua
destra buscam refúgio / dos que se levantam contra eles.” (Sl 17.7)
Assim, uma análise mais cuidadosa das imagens utilizadas na poesia hebraico nos
ajudarão a compreender de uma forma mais profunda a intenção do escritor bíblico e,
por consequência, aplicar seus ensinamentos de uma forma mais eficaz às nossas
vidas.

3 – Domínio de Origem e Domínio de Destino


De uma forma bastante simples, podemos entender domínio de origem como o
aspecto da vida ordinária que o poeta está descrevendo para criar a sua imagem. O
domínio de destino é o assunto do qual o poeta está falando. Vejamos um exemplo:
“Os príncipes dos povos se reúnem / o povo do Deus de Abraão /
porque a Deus pertencem os escudos da terra; / ele se exaltou
gloriosamente.” (Sl 47.9)
A palavra escudo aqui não está relacionada a um escudo literal, ou seja, o instrumento
normalmente utilizado pelos soldados em uma batalha, mas sim a uma expressão
relacionada aos príncipes da linha anterior. Temos, então a imagem do escudo como
domínio de origem, ou seja, algo que simboliza uma proteção dada aos príncipes pelo
rei-guerreiro. O domínio de destino remete aos reis das nações que foram subjugados
pelo Senhor, o que pode ser visto no verso 3 do mesmo Salmo.
Outro impasse que a análise dos domínios de origem e de destino nos ajudam a
solucionar, é a presença das imagens mitopoéicas, que nada mais é do que a presença
de mitos no texto bíblico sem, contudo, indicar a crença em tais seres. Veja abaixo a
relação entre o texto de Salmo 74.13,14 com um texto cuneiforme ugarítico datado
entre os séculos XIV e XII a.C.:
“Tu, com o teu poder dividiste o mar / esmagaste sobre as águas a
cabeça dos monstros marinhos / Tu despedaçaste as cabeças do
crocodilo / e o deste por alimento às alimárias do deserto.”
“Não demoli eu o querido de Deus, o Mar? Não destruí eu o rio divino,
Rabbim? Não capturei eu o Dragão? Eu o cerquei, eu demoli a
Serpente Entrelaçada, o monstro de sete cabeças.”
Mesmo um leitor desavisado encontraria relação nos dois textos citados. Vê-se aqui,
claramente, que a intenção do escritor não é dar o entendimento à existência de tais
animais mitológicos, mas demonstrar o poder de Deus sobre aqueles seres
considerados poderosos pelos povos da antiguidade, ou seja, mostrar a superioridade
do Deus de Israel frente aos deuses dos povos pagãos. Assim, a leitura de todo o Salmo
74 mostra claramente a confiança do salmista na providência divina quanto ao
livramento das mãos dos inimigos.
Outro exemplo pode ser encontrado no livro do profeta Isaías, no capítulo 34 e
versículo 14, onde aparece na maioria das traduções a expressão “animais noturnos”
(Almeida Revista e Corrigida Fiel) ou “criaturas noturnas” (Nova Versão Internacional).
Mas algumas traduções trazem a palavra no original hebraico “Lilith”, como é o
exemplo da versão Almeida Revista Imprensa Bíblica. Lilith, na cultura antiga, se referia
a uma deusa poderosa que afligia aqueles que se atreviam a vagar pelas noites no
deserto. A citação, obviamente, não corrobora com a existência em si dessa entidade,
mas o contexto quer nos mostrar a supremacia de Deus em relação aos deuses e
demônios cridos pelos povos pagãos.
Temos então como domínio de origem as imagens míticas representando as “forças da
natureza” e o domínio de destino o poder superior do Deus de Israel.

4 – O Propósito de Salmos
Toda obra de literatura possui uma introdução que indica sua direção e propósito. Por
exemplo, os versículos de 1 a 7 do capítulo 1 de Provérbios provê claramente uma
introdução ao todo do livro.
O Livro de Salmos é dividido em cinco seções, colocados assim: Livro I (1-41), o Livro II
(42-72), o Livro III (73-89), o Livro IV (90-106), o Livro V (107-150). Cada uma destas
seções termina com a declaração “Bendito seja o Senhor”, sendo que os últimos 5
capítulos da quinta seção, em si, constitui-se uma doxologia pois cada Salmo começa e
termina com a declaração “Louvai ao Senhor”.
Essa divisão parece estabelecer um paralelo com o Pentateuco, à medida que seus
assuntos centrais coadunam para isso. Analisemos os pontos centrais de cada divisão
com o ensino geral de cada um dos primeiros livros da Bíblia.
Livro I – Trata principalmente da bênçãos ligadas à obediência, relacionado com o Livro
de Gênesis;
Livro II – Apresenta acontecimentos relacionados à Israel como nação, sua ruína e
redenção. Essa divisão relaciona-se com o Livro de Êxodo;
Livro III – Coloca como ênfase a adoração a Deus, relacionando as bênçãos à
proximidade do homem ao seu santuário. Relaciona-se com o Livro de Levítico;
Livro IV – Enfatiza o governo de Deus e as bênçãos que acompanham aqueles que a ele
se submetem, sendo este relacionado com o Livro de Números;
Livro V – Relacionado com o Livro de Deuteronômio, essa seção fala principalmente da
bondade de Deus e seu relacionamento com sua Palavra.
O Saltério (livro contendo os Salmos, utilizado para prática devocional através de
cânticos), separa os capítulos 1 e 2 da primeira seção, mostrando assim que tratam-se
de uma evidente introdução ao Livro de Salmos. Logo, embora cada Salmo seja
considerado individualmente, uma vez que foi escrito ao longo de vários séculos, fica
claro que, quando analisado em um contexto geral, este possui um propósito também
geral.
A primeira palavra que analisamos em relação ao Salmo 1 é torah que significa Lei. A
fonte das bem aventuranças descritas nesse texto é a Lei do Senhor. Em todo o
contexto do Antigo Testamento essa palavra está relacionada com a instrução, logo o
objetivo geral do livro de Salmos é instruir. Mas instruir a respeito de que?
O Salmo 1 começa com a palavra ‘aserê que é traduzido por bem aventurado ou feliz,
ou seja, o primeiro aspecto que podemos analisar é que o Livro de Salmos foi escrito
para nos comunicar instruções para sermos felizes. A comparação feita aqui é que
aquele que é instruído na Lei do Senhor é como uma árvore, mas não qualquer árvore,
mas sim uma árvore junto à fontes de água. Logo, a ideia comunicada é a de vida. Essa
palavra começa com a letra álef que é a primeira do alfabeto hebraico. O Salmo
termina com a palavra toved, que começa com a letra tav, a última do alfabeto
hebraico e é traduzida como perecer, extinguir, cessar.
Vemos, então, algo não casual, mas intencional aqui. Assim como as palavras ‘aserê e
toved estão em extremos opostos no poema, assim como as letras álef e tav estão em
extremos opostos no alfabeto hebraico, a ideia de vida está, de forma oposta,
relacionada ao conceito de perecer. Veja que o justo será como uma árvore que possui
em si vida, ao passo que o ímpio será como a palha, que está seca e morta. Um claro
exemplo de paralelismo antitético, nos mostrando o caminho para sermos felizes.
O segundo propósito geral de Salmos está relacionado com a instrução para alcançar a
santidade. Todo aquele que medita na Lei do Senhor é feliz. Meditação está
relacionado com estudar e praticar aquilo que a Palavra ensina. Isso pode ser melhor
observado no contexto de Josué, capítulo 1 e versículo 8. A respeito disso, escreveu E.
J. Young:
“... O Saltério, antes, é primariamente um manual, um guia e um
modelo para as necessidades devocionais do crente individual. É um
livro de oração e louvor, elaborado para que o crente medite sobre
seu conteúdo de forma a assim aprender a louvar a Deus e a falar
com ele em oração.”
Vemos que a santidade está relacionada com a instrução recebida pela Lei de Deus, ou
seja, ter uma vida santa significa se conformar com o padrão da Palavra de Deus, e que
esse não é um trabalho penoso, mas um prazer, um verdadeiro deleite para aquele
que dessa forma procede (Sl 1.2).
Em resumo, podemos perceber dois propósitos gerais do Livro de Salmos, quais sejam,
nos instruir para buscarmos a felicidade e nos instruir para buscarmos a santidade,
sem a qual, ninguém verá a Deus (Hb 12.14).

5 – A Mensagem Global dos Salmos


Assim como o capítulo 1 nos indica o propósito de Salmos, conseguimos enxergar a
mensagem global deste livro no capítulo 2. Elencamos assim os aspectos principais da
mensagem:
Nosso Deus é Rei – a referência a Deus como aquele que habita nos céus (v. 4), mostra
sua soberania sobre toda a terra. Interessante analisar que se fossemos fazer aqui uma
tradução mecânica do versículo mencionado, ficaria algo como “assentado no céu”. O
hebraico trata várias palavras que possuem sentido comum para situações diferentes.
Por exemplo, a palavra casa e a palavra cadeira, que tem o seu sentido mudado
quando aplicado à presença de um rei. A presença de um rei torna a casa, um palácio,
assim como torna a cadeira um trono. Nesse contexto, a NVI (Nova Versão
Internacional) capta perfeitamente o sentido do texto quando traduz como
“entronizado nos céus”.
Essa imagem de Deus como um rei, governando por intermédio de seu “ungido” está
presente por todo o Livro de Salmos, bem como é expresso o fato de que esse governo
não permanece sem oposição.
Nosso destino é a glória – no desenrolar de Salmos percebemos uma macroestrutura
que avança do sofrimento para a glória, do lamento para o louvor. O capítulo 3 começa
com uma lamentação de Davi, ao passo que o Salmo 150 termina com um brado de
louvor. Esse movimento mostra-nos que apesar de enfrentarmos, às vezes, oposição,
sofrimento e tristeza, esse não é nosso fim. A vida verdadeiramente feliz é que é o
nosso destino.
Nosso Rei está vindo – existiam duas instituições que representavam bem aquilo em
que Israel acreditava e nas quais pautava sua confiança: O Templo e o seu Rei. Então
podemos imaginar tamanha foi a tristeza que envolveu o povo quando da ocasião do
cativeiro babilônico, onde seu rei foi subjugado pelo inimigo e levado cativo enquanto
seu templo foi completamente destruído.
A alegria voltaria, mesmo que parcialmente, quando da reconstrução no tempo pós
exílico, quando parecia que Deus estaria restaurando seu reinado absoluto e
permanecendo fiel à Sua Palavra que dizia que o trono não se apartaria da
descendência davídica. A decepção foi dupla, pois lamentaram que a glória do templo
era inferior àquela dos tempos de Salomão, bem como a ausência de um monarca da
linhagem do Rei Davi. A esperança dos Salmos da realeza é de que esse Rei está
chegando para colocar as coisas na ordem correta:
“Levantai, ó portas as vossas cabeças / Levantai-vos, ó entradas
eternas, / e entrará o Rei da Glória / Quem é este Rei da Glória? / O
Senhor forte e poderoso / O Senhor poderoso na guerra.” (Sl 24.7,8)
O Senhor é nosso refúgio – a palavra em hebraico para “confiam” no versículo 12
significa literalmente “proteção”. A metáfora refúgio é vastamente utilizada pelos
salmistas para se referir a pessoas que buscam abrigo. Várias outras palavras são
usadas em Salmos com essa conotação, denotando um princípio pelo qual o povo de
Deus sempre se pautou, tais como rocha (Sl 62.7), fortaleza (Sl 94.22), esconderijo (Sl
61.4), sombra (Sl 36.7), habitação (Sl 91.9), torre forte (Sl 61.3), lugar seguro (Sl 59.16),
escudo (Sl 18.2), entre outros.
Em especial, analisemos esse último termo, escudo. Como dito anteriormente, a ideia
aqui é que o Rei funciona como escudo para seus súditos. O povo tem confiança em
seu Rei no que diz respeito à sua proteção, quanto ao viver em segurança.
Como vimos, não obstante a diversidade de situações, contextos políticos e religiosos,
os dois primeiros capítulos do Livro de Salmos vão delinear a tônica de todos os seus
escritos, jamais afastando-se de seus propósitos e mensagens centrais neles
elencados.

6 – Os Abismos Hermenêuticos
Quando lemos um poema de Shakespeare pela primeira vez é bem provável que
tenhamos que nos adaptar às figuras de linguagem usadas pelo autor, seu estilo
literário, etc. Sem isso possivelmente não poderemos compreender todos os detalhes
de seus escritos. Isso porque ele viveu nos séculos XVI e XVII. Imagine então algo que
foi escrito há 3 mil anos. Evidentemente além da diferença cronológica, nos
depararíamos com uma diferença cultural, gramatical e literária.
Em relação ao estilo literário, já abordamos as características próprias da poesia
hebraica no início deste estudo. Apenas a acrescentar que ela nos dá a possiblidade de
um relacionamento honesto com Deus, onde podemos expressar alegria,
desapontamento, raiva, alegria ou outras emoções quaisquer.
O abismo gramatical impõe um conhecimento mais aprofundado das regras da escrita
dos originais bíblicos. A isso chamamos de exegese, ou seja, analisar o texto com a
finalidade de descobrir o que ele realmente diz. Assim como na língua portuguesa
temos a modificação de sentido de uma frase com simples mudanças de aplicação,
sinais ou letras, o hebraico também tem suas peculiaridades.
Infelizmente, muitos intérpretes da Bíblia ignoram a necessidade da interpretação
gramatical e acabam por alegorizar excessivamente o texto bíblico, fazendo-o dizer
aquilo que ele não diz. Logo, necessário se faz conhecer não só o significado da
palavra, mas, principalmente, sua aplicação no contexto em que foi escrito. Por
exemplo, a palavra brasa pode ser entendida, de forma isolada, como um carvão
incandescente. Também pode se referir a qualquer coisa que está em uma
temperatura extremamente alta, escaldante. Porém, se aplicada na década de 1960
poderia significar que algo é incrível, legal, fantástico. Com as línguas bíblicas,
obviamente, não é diferente.
Então, para que façamos uma análise correta de um texto bíblico, é necessário
considerar o exame da etimologia das palavras, o emprego que normalmente o autor
faz delas, os diferentes significados e aplicações de palavras semelhantes e opostas,
além do exame do contexto onde ela é empregada.
Já o abismo cultural nos impõe um exercício tão grande quanto os demais, no sentido
que podemos entender como cultura o conjunto dos moldes de crenças,
comportamentos, instituições e valores espirituais e materiais característicos de uma
sociedade. Portanto, torna-se necessário o conhecimento das relações políticas, das
características da religião praticada, das condições econômicas, das leis vigentes, dos
processos agrícolas aplicados em cada época, da arquitetura das diversas localidades,
dos hábitos alimentares e de vestimentas, geografia, organização militar e estrutura
social características de cada região e época a serem analisadas.
Podemos citar, por exemplo, a orientação de Jesus aos 70 discípulos, para não
cumprimentarem ninguém no caminho (Lc 10.4). Caso não tenhamos conhecimento
dos costumes judaicos em relação às saudações daquela época, não teremos o correto
entendimento das suas palavras, incorrendo até no erro de pensar que o Mestre
estivesse estimulando uma atitude descortês. Ocorre que as saudações entre aqueles
que se encontravam durante viagens era demasiadamente longa e, em função da
urgência do comissionamento dado aos discípulos, eles não tinham tempo a perder.
Acima de tudo, qualquer texto bíblico deve ser analisado conforme o contexto geral
das Escrituras. Essa é uma premissa básica para a aplicação correta da hermenêutica.
Com base nisso, nos dizeres de Roy Zuck, “um texto obscuro ou ambíguo nunca deve
ser interpretado de forma que contradiga outro texto de sentido claro” e, ainda, “Não
se deve dar preferência a uma interpretação complexa, elaborada ou obscura em
detrimento de outra simples, mais natural” (p. 128).
Como se vê, o estudante bíblico deve se esforçar para extrair da Palavra de Deus seu
verdadeiro sentido, a fim de evitar exageros ou omissões em relação à correta
interpretação da sã doutrina. Nunca é demais citar o versículo que faz referência ao
ministério de ensino dentro das congregações: “De modo que, tendo diferentes dons...;
se é ensinar, haja dedicação ao ensino.” (Rm 12.6,7 – grifo nosso).

7 – Passo a Passo para Interpretação de um Salmo


Para que esse estudo se torne o mais didático possível, uma vez que o objetivo é
exatamente auxiliar, na prática, o estudo do Livro dos Salmos, apresentamos a seguir
alguns passos que devem ser observados pelo estudante bíblico, lembrando que o
presente trabalho, como já dito, não tem por objetivo ser exaustivo e conclusivo em
relação ao assunto.
1 – Tenha em mente o propósito geral de todo o Livro dos Salmos;
2 – Identifique o autor, o período e a circunstância em que o Salmo foi escrito e a
dispensação em que ele está inserido;
3 – Defina em qual dos 5 Livros o Salmo a ser estudado está inserido, ou se está na
introdução ou doxologia final, identificando sua ênfase geral e a qual divisão do
Pentateuco ele está relacionado;
4 – Com base na compreensão do paralelismo utilizado, divida o Salmo em partes e
encontre as figuras de linguagem que são utilizadas em cada uma delas. Algumas
Bíblias já trazem os textos poéticos em formato diferente da prosa e já divididos em
estrofes;
5 – Identifique quais são as imagens utilizadas no Salmo analisado e quais são as
características dessas imagens;
6 – Compreenda qual é o domínio de origem e o domínio de destino do texto em
questão;
7 – Analise quais imagens utilizadas e de que forma os domínios de origem e de
destino, podem ser contextualizados historicamente e/ou culturalmente;
8 – Faça um estudo, na língua original, das palavras utilizadas pelo autor,
contextualizando a etimologia com a aplicação na época específica. Um bom dicionário
bíblico é bastante útil nessa etapa;
9 – Com base nas análises anteriores, defina o propósito específico do texto estudado.
A essa altura, você já será capaz de identificar o significado literal do texto estudado,
bem como interpreta-lo conforme o propósito original para o qual ele foi escrito.
Tendo encontrado o princípio básico, será possível fazer a aplicação correta dos
ensinamentos contidos no texto bíblico para as situações concretas nos dias atuais.

8 – Aplicando os conceitos
Para fazermos uma aplicação dos conceitos aprendidos, escolhemos o Salmo 91. O
motivo da escolha é em função de sua larga utilização tanto nas pregações quanto em
certas crendices como deixar a Bíblia aberta nesse Salmo dentro de casa para atrair
suas bênçãos para os moradores, assim como um amuleto.
Trata-se de um Salmo muito querido pelos evangélicos, uma vez que possui uma
promessa que assegura que Deus livrará os justos de todas as tragédias, de todas as
doenças, de todas as calamidades, de todos os problemas existentes nesse mundo.
É um Salmo tão popular que até Satanás o utilizou para tentar o Senhor Jesus no
deserto (Salmo 91.11,12):
“Depois o Diabo conduziu Jesus a Jerusalém, levou-o ao ponto mais
alto do templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te daqui
abaixo, porque lá diz a Escritura: Deus dará ordens aos seus anjos a
teu respeito para te ampararem: eles hão de levar-te nas mãos para
evitar que magoes os pés contra as pedras.” Jesus respondeu: “Mas a
Escritura também diz: Não tentarás o Senhor teu Deus.” (Lucas 4:9-
12)
Poderia alguém até questionar por qual motivo esse Salmo não funciona como deveria
para certas pessoas. O motivo é muito simples: a interpretação não está de acordo
com seu real sentido.
Então, façamos uma análise sistemática, respondendo, a princípio, aos itens propostos
anteriormente, com a finalidade de formar uma base interpretativa e, na sequência, a
interpretação em si.
1 – O Livro de Salmos, como um todo, tem o objetivo de nos instruir em busca do
caminho que nos levará à felicidade e à santidade;
2 – Embora alguns atribuam a autoria a Moisés, pelo fato dele ter escrito o Salmo
anterior, pesam sérias dúvidas sobre isso. Um exemplo disso é o Midrash, que lhe
atribui a autoria e que, segundo essas tradições rabínicas, ele escreveu esse poema
quando do término da construção do Tabernáculo no deserto. O próprio Moisés que
penetrou nas Nuvens divinas e foi envolvido na “Sombra do Todo-Poderoso”. A
Septuaginta traz a dedicatória como “Um Cântico, um Salmo de Davi”, porém,
somente ela o faz. Já o Texto Hebraico Massorético o deixa como anônimo. Logo,
também não é possível identificar em qual dispensação ele foi escrito, muito menos a
data e as circunstâncias que o envolveram. Como a conjectura de que fora Moisés
quem o escreveu nos traria conceitos a respeito desse Salmo que poderia alterar sua
contextualização, preferimos ignorar essas informações para que não sejamos
influenciados a chegar a uma conclusão que poderia ser errônea.
Em que pese o fato de não podermos identificar com certeza a data em que esse
Salmo foi escrito, podemos o colocar sob a perspectiva da antiga aliança feita por parte
de Deus com Israel, ou seja, devemos, antes de tudo, entender que a perspectiva é de
um pacto que Deus fez com seu povo escolhido. Se Israel resolvesse obedecer e estar
sob a dependência completa d’Ele, então o povo seria livre das pragas, das invasões
dos inimigos, das doenças, etc. Por outro lado, se o povo resolvesse caminhar por seus
próprios meios, sofreria todas essas punições;
3 – O Salmo 91 está inserido no livro IV do Saltério que enfatiza o governo de Deus e as
bênçãos que acompanham aqueles que a Ele se submetem, sendo este relacionado
com o Livro de Números. Philip J. Budd, citado por Rousas John Rushdoony elenca
quatro elementos que o caracterizam: “1) Israel é apresentado como uma comunidade
em marcha; 2) O destino de Israel é uma terra escolhida por Deus; 3) Para que a
comunidade esteja sempre estável, é necessário submissão à autoridade divina; 4)
Mostra a natureza e consequências da rejeição dessa autoridade”. Outro aspecto
importante em relação ao Livro de Números, que pode ser visto em seus versículos
iniciais, é que Deus é soberano em suas decisões e a iniciativa sempre pertence a Ele;
4 – Com base no paralelismo apresentado no Salmo 91, dividiremos o texto,
inicialmente em três partes, a saber: versos 1 a 6, versos 7 e 8, e versos 9 a 16. Todo o
Salmo 91 utiliza efeito conotativo, à medida que o poeta representa metaforicamente
a confiança em Deus como habitar em um abrigo. O sentido denotativo de habitar é
“morar em uma casa”. No Salmo, porém, essa palavra toma a conotação de proteção,
segurança e bem-estar em geral. Podemos claramente identificar também o recurso
de comparação, onde há um paralelo entre o justo, que escolhe a proteção do Senhor
e o ímpio, que fica sujeito às calamidades. Outro recurso é a utilização de linguagem
mitopoéica, o que será explicado adiante. Recomendamos fortemente a consulta à
Bíblia Judaica Completa de David H. Stern, pois ele apresenta o Livro de Salmos
conforme a divisão do Saltério, bem como, cada Salmo, devidamente separado
conforme suas estrofes.
O paralelismo pode ser identificado nesse Salmo, por exemplo, na comparação da
parte “a” do verso 4 com os versos 5 e 6. As referências alfa numéricas abaixo servem
para deixar essa relação mais perceptível. Veja:
Com as suas penas A
Tapar-te-á B
E, debaixo das suas asas A1
Abrigar-te-ás B1
Não estremecerás do espanto da noite A
Da flecha que voa de dia B
Da pestilência que anda na escuridão A1
Da epidemia que arruína ao meio dia B1
Sendo assim, poderíamos transcreve-lo da seguinte forma: “Com a proteção de suas
penas, você não estremecerá diante do espanto noturno, Ele te defenderá da flecha
que voa de dia, o colocará debaixo de suas asas para que a peste que anda na
escuridão não te alcance e te abrigará para que doença nenhuma chegue até você”.
As linhas A e A1 estão relacionadas como um paralelismo sinonímico, onde o autor faz
o reforço da mesma ideia com palavras diferentes e as relaciona com as linhas da
segunda parte tal qual uma relação causa-efeito.
5 – A imagens utilizadas são várias e vamos coloca-las em dois grupos que encerram as
mesmas características: 1) esconderijo, sombra, refúgio, fortaleza, cobrir com penas,
escudo, broquel, habitação, tenda, anjos que sustentam os justos em suas mãos e
retiro alto; 2) laço do passarinheiro, peste perniciosa, terror da noite, seta que voa de
dia, peste que anda na escuridão, mortandade que assola ao meio dia, inimigos caindo
ao lado do justo, praga, leão e cobra. Quando separamos esses dois grupos de
imagens, logo encontramos uma similaridade entre as que pertencem ao mesmo
grupo. No grupo 1 fica claro que as características das imagens utilizadas encerram a
ideia de proteção, ao passo que no grupo 2 encontramos características de
adversidades que o homem pode encontrar em seu caminho;
6 – O domínio de origem está ligado à busca de proteção para que não seja tragado em
meio a situações de adversidade. Já o domínio de destino nos mostra onde
encontramos tal proteção, ou seja, a segurança é alcançada somente em Deus;
7 – Uma vez que ignoramos a autoria do texto, bem como suas circunstâncias, temos
que analisar os domínios de origem e de destino e as imagens e suas características à
luz do contexto geral das Escrituras. A princípio, somos levados a analisar que aquele
que está em Deus, está livre de qualquer tipo de problemas. Temos que analisar aqui
dois tipos essenciais de mal que podem ocorrer a nós cristãos: o mal como
consequência de algo que fizemos e o mal como consequência natural da condição
decaída em que toda a criação se encontra. Podemos citar, como exemplos, cristãos
que são mortos em países onde o a pregação do Evangelho é proibida. Por quê Deus
não os livrou? Por quê Deus não os protegeu enquanto faziam aquilo que Ele próprio
os comissionou para fazer? Também temos exemplos bíblicos disso. Todos os doze
apóstolos tiveram mortes terríveis, com exceção de João que, apesar de não ter sido
martirizado, muito sofreu nas mãos de seus perseguidores. Fica óbvio aqui que o mal
que sobreveio a todos os exemplos citados está intimamente ligado exatamente ao
fato de praticarem aquilo que é aprovado por Deus. Chegamos à conclusão que o mal
a que se refere o Salmo 91, de uma forma geral, está ligado aos efeitos de se afastar da
presença de Deus e desobedece-lo em suas ordenanças e não aos males provenientes
da contraposição do Evangelho àquilo que o mundo prega e ensina ou ainda do mal
presente neste mundo em decorrência da maldição que pesa sobre a criação;
8 – Esse talvez seja o ponto mais desafiador do estudo, uma vez que requer um
conhecimento básico da língua original. Vamos fazer uma análise trecho a trecho com
a finalidade de identificarmos o sentido literal do texto.
Verso 1 – Esse versículo traz as palavras hebraicas yōšēb que significa “aquele que se
senta” e yitlônān cujo significado é “ele pernoitará”. As palavras aqui utilizadas nos dão
o sentido de alguém que procura um lugar secreto e aconchegante o suficiente para
descansar tranquilamente, durante a noite, de seu labor. É interessante analisarmos
aqui um paralelo com Provérbio 4.18, que diz “Mas a vereda dos justos é como a luz da
aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito”. O “dia perfeito” aqui trata
da nossa glorificação junto ao Senhor, então, enquanto ainda é noite (nossa vida nesse
mundo) devemos estar devidamente abrigados.
Verso 2 – As palavras mach’si (meu abrigo, armazém ou celeiro) e metsudati (minha
fortaleza ou cidadela), indicam que o local encontrado pelo salmista é tão seguro que
ele confia de todo o seu coração na sua proteção. Ele associa a presença de Deus a
esse local seguro e de descanso.
Verso 3 – Mas do que o salmista está se escondendo? Do que ele está se protegendo?
O laço do passarinheiro citado aqui, está relacionado com armadilhas que eram feitas
para atrair os pássaros, ou seja, o passarinheiro colocaria iscas pelas quais sua presa
seria seduzida. Já peste perniciosa trata-se de um pleonasmo, pois aquilo que é
pernicioso significa o que faz mal e esse conceito já está implícito na palavra peste.
Esse tipo de doença, a peste, é sempre contraída por meio da exposição a agentes
contaminadores. Logo, podemos perceber que os dois temos utilizados nesse versículo
se referem a males que podem ser provocados quando somos atraídos para perto da
fonte desse mal, seja por imprudência ou negligência.
Verso 4 – Podemos perceber, como dito anteriormente, uma relação de paralelismo
entre os versos 3 a 6. O laço do passarinheiro está inversamente relacionado às penas
das asas de Deus e a peste perniciosa, da mesma forma, se relaciona com o escudo e o
broquel, que são duas palavras utilizadas para exprimir a mesma coisa, uma vez que
broquel é um tipo de escudo pequeno utilizado em batalhas. Outro detalhe que o
texto deixa bem claro é o que é esse escudo, a saber: A verdade de Deus. Podemos
parafrasear esse texto da seguinte forma: “Eu, o Senhor, protegerei a sua visão para
que não seja atraído por algo que pareça bom, mas que lhe causará um grande dano.
Da mesma forma, se permanecer na minha verdade, colocarei uma proteção diante de
você para que não se contamine com o mal desse mundo”.
Versos 5 e 6 – É necessário analisar esses dois versículos em conjunto, uma vez que
dizem exatamente a mesma coisa. Veja: “terror da noite” (v.5) se relaciona com “peste
da escuridão” (v.6) e “seta que voa de dia” (v.5) forma um paralelo com “mortandade
que assola ao meio dia” (v.6). Ao mesmo tempo eles se relacionam também com os
versos 3 e 4. O sentido aqui é de que a promessa de proteção descrita nos versículos
anteriores serão válidos em qualquer tempo e qualquer situação. Seja noite ou dia.
Esse tipo de ilustração também é usada, por exemplo, quando Deus promete
acompanhar o povo no deserto. Durante o dia Deus prometeu enviar uma coluna de
nuvem para aplacar o sol escaldante e, durante a noite, uma coluna de fogo para
aquece-los do frio que castiga o deserto durante esse período. Ou seja, em qualquer
situação, em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias, aqueles que se refugiam em
Deus estarão seguros. Vale ressaltar aqui a utilização da linguagem mitopoéica, onde
se faz alusão a três entidades pagãs que ora são relacionadas a divindades, ora a
figuras demoníacas. As palavras Hēs, Déber e Qéteb, que são traduzidas,
respectivamente, por Flecha, Pestilência e Epidemia, designam, em sua origem,
divindades, símbolos vinculados a elas ou demônios relacionados à doença, guerra ou
morte. Sendo considerado o temor que havia em relação à essas supostas divindades,
o Salmo 91 mostra que o Deus de Israel é superior a todas elas, soberano sobre
quaisquer outras influências negativas. Mais uma vez queremos reforçar que a
utilização desse tipo de figura de linguagem não significa o mesmo que admitir sua
existência, pois trata-se apenas de uma comparação entre o poder limitado daquilo
que era crido pelos povos pagãos e a onipotência do Eterno. Enfim, o sentido aqui não
muda, quer tratem-se as palavras em seu sentido ultra literal ou faça-se referência à
mitologia pagã, ou seja, o objetivo é mostrar a característica protetora de Deus para
aqueles que O buscam e seu poder para fazê-lo.
Versos 7 e 8 – Esse versículo (v.7) em particular já foi alvo de algumas alegorizações
equivocadas, por se fazer associação com as divindades pagãs já mencionadas com os
onze mil que caem ao lado do justo. Lembrando que alegorização é quando se atribui
ao texto, algo que ele não diz, seja explícita ou implicitamente, ou seja, é atribuído
sentido diverso do literal. Alguém já disse, por exemplo, serem os mil que caem de um
lado e os dez mil que caem à direita, demônios. Um análise, mesmo que superficial,
deixará bem claro do que se está falando aqui. Mais uma vez, temos que analisar o
contexto de todo o Salmo 91. Veja que a proteção de Deus é prometida para aqueles
que se refugiam em Deus e não cedem às tentações do mundo. É visto que o mal está
presente sempre, ilustrado aqui por meio das pestes, das setas que voam, do laço do
passarinheiro, etc. Infelizmente, nem todos se aninham debaixo das asas do Senhor
Onipotente e os que assim agem, acabam caindo. O texto originalmente diz, no final
desse versículo, que isso “não chegará a ti”. Vemos, então, que o verso 7 se alinha ao
verso 8 no sentido de que os ímpios punidos (v.8) são exatamente aqueles que caem
ao lado do justo (v.7). Assim, podemos parafraseá-lo da seguinte forma: “A morte que
reina no mundo poderão tragar milhares de pessoas ao seu redor, mas se permanecer
em meus mandamentos e sob a minha proteção, elas não chegarão até você”. Aqueles
que se afastam de tal proteção são chamados no verso 8 de ímpios. Logo, temos aqui
uma comparação entre o destino daquele que confia no Senhor, o justo, e aquele que
se afasta da presença d’Ele, o ímpio. Por isso o texto diz no final que o justo apenas
contemplará qual a recompensa do ímpio, assistindo sua queda.
Versos 9 a 16 – Mais uma vez fica claro aqui o uso do paralelismo, reforçando a ideia
do que foi dito nos versos 1 a 8. Quando comparamos verso a verso, vemos que em
cada versículo a ideia aparece com palavras diferentes. Ou seja, novamente aparece a
ênfase no livramento das consequências de atos contrários à vontade de Deus, quando
fazemos do Altíssimo nossa habitação, refúgio e fortaleza. Na parte “b” do versículo 14
encontramos a palavra yadhâ, que, em sua raiz, significa “conhecer por experiência
concreta”. É interessante analisar que nesse verso há dois resultados, o resgate e a
proteção, precedidas, porém, de duas causas: “porque ele me ama” e “porque
conhece meu nome”. Logo vemos, mais uma vez, a proteção divina como resultado de
um posicionamento do justo.
9 – Análise literal do texto hebraico
Com a finalidade de permitir, durante o presente estudo, a possiblidade de
comparação de diversas traduções com o texto em hebraico, bem como relação com a
devida crítica textual. Vamos usar o método do doutor em Teologia Ruben Silva,
colocando cada linha da poesia hebraica em separado e evitando a tradução de
algumas expressões. Utilizaremos o Texto Massorético transliterado, bem como o
texto original, em caracteres hebraicos, sucedidos da respectiva tradução na língua
portuguesa.

1a Yoshêbh besêther ‘ elyon

ֹ ‫עלְיון‬ ֵ ְּ‫ ב‬,‫יֹשֵׁב‬


ֶ ‫סתֶר‬
Quem se sentar sob a cobertura de ‘Elyôn

1b Betsêl shadday yithlonân

‫ יִתְלוֹנ ָן‬,‫בְ ּצֵל שַׁ ַּדי‬


Sob a sombra de Shadday pernoitará.

2a ‘omarla yvhv machsiy umetsudhâthiy

‫חסִי וּמְצוּדָ תִי‬


ְ ַ‫ מ‬,‫אֹמַר–לַיהוָה‬
Direi para YHWH: Meu abrigo e minha cidadela,

2b ‘elohay ‘ebhthach-bo

ֹ ‫בּו‬-‫אבְטַח‬
ֶ , ‫אלֹהַי‬
ֱ
Meu Deus, me apoiarei n’Ele.

3 Kiy hu’ yatsiylkhamippach yâqush middebher havvoth


ּ ִ‫מ‬, ָ ‫לך‬
‫פַח י ָקוּשׁ; מִ ֶּדבֶר הַוו ֹּת‬ ְ ‫כ ִּי הוּא י ַצ ִּי‬
Porque ele arrancar-te-á da armadilha do passarinheiro, da pestilência destruidora.

4a Be’ebhrâtho yâsekh lâkh vethachath-kenâphâyv techseh

‫חסֶה‬ ֶ ּ ‫כ ְּנָפָיו‬-‫תחַת‬
ְ ‫ת‬ ַ ְ ‫לך ְ–ו‬
ָ ְ ‫סך‬ ֶ ְּ‫ב‬
ֶ ָ ‫ֹ י‬,‫אבְרָ תו‬
Com as suas penas, tapar-te-á e, debaixo das suas asas, abrigar-te-ás.

4b Tsinnâh vesochêrâh ‘amitto

ֹ ‫אמִתּ ו‬
ֲ ‫צִנ ָּה וְסֹחֵרָ ה‬
(São) um escudo e um muro.

5a Lo’-thiyrâ’ mippachadhlâyelâh
ּ ִ‫מ‬, ‫תִירָ א‬-‫ל ֹא‬
‫פַחַד לָיְלָה‬
Não estremecerás do espanto da noite,

5b Mêchêts yâ’uph yomâm

‫ י ָעוּף יוֹמָם‬,‫מֵחֵץ‬
Da flecha (que) voa de dia,

6a Middebher bâ’ophel yahalokh

ֲ ַ ‫ בָּאֹפֶל י‬,‫מִ ֶּדבֶר‬


ְ ‫הלֹך‬
Do Débher (que) anda na escuridão,

6b Miqqethebhyâshudh tsohorâyim

‫ יָשׁוּד צָהֳרָ י ִם‬,‫קטֶב‬


ֶּ ִ‫מ‬
Do Qetheb (que) arruína (ao) meio dia.

7a Yippol mitsiddekha ‘eleph urebhâbhâh miymiynekha

ָ ‫אלֶף–וּרְ בָבָה מִימִינֶך‬ ּ ִ‫י‬


ֶ ,ָ ‫פ ֹל מִצ ִּ ְּדך‬
Cairá do teu lado um milhar e dez milhares do teu lado direito,

7b ‘eleykha lo’ yiggâsh

ׁ‫ל ֹא י ִג ָ ּש‬, ָ ‫אלֶיך‬


ֵ
A ti não se achegará.
8a Raq be’êyneykha thabbiyth

‫תבִּיט‬
ַ ָ ‫ בְ ּעֵינ ֶיך‬,‫רַ ק‬
Somente com teus olhos observarás

8b Veshillumath reshâ’iymtir’eh

ּ ‫ל ּמַת רְ שָׁעִים‬
‫תִרְ אֶה‬ ֻ ִׁ‫וְש‬
E a retribuição dos malvados verás.

9a Kiy-‘attâh Adonay machsiy

‫חסִי‬ ּ ‫א‬-‫כ ִּי‬


ְ ַ‫ַתָה י ְהוָה מ‬
Porque tu (és) YHWH, meu abrigo.

9b ‘elyon samtâ me’onekha

ָ ּ ‫שַׂמ‬
ָ ‫ְת מְעוֹנֶך‬ , ֹ ‫עלְיון‬
ֶ
(Em) ‘Elyôn puseste a sua morada.

10a Lo’-the’unneh ‘êleykha râ’âh

‫אֻנ ֶּה אֵלֶיך ָ רָ עָה‬-‫ת‬


ְ ‫ל ֹא‬
Não sucederá contra ti o mal

10b Venegha’ lo’-yiqrabh be’oholekha

ָ ‫לך‬ ֳ ָ‫בּא‬
ֶ ‫ה‬ ְ ‫יִקְרַ ב‬-‫ ל ֹא‬,‫וְנֶג ַע‬
E o flagelo não se ajuntará na sua tenda.

11a Kiymal’âkhâyv yetsavveh-lâkh

ְ ‫ל ּך‬
ָ -‫יְצַו ֶּה‬, ‫לאָכ ָיו‬
ְ ַ‫כ ִּי מ‬
Sim, instruirá os seus emissários contra ti,

11b Lishmârkha bekhol-derâkheykha

-ְּ ‫ בְ ּכ ָל‬,ָ ‫לשְׁמָרְ ך‬


ָ ‫דרָ כ ֶיך‬ ִ
Para guardarem-te em todas as tuas pisadas.

12a ‘all-kappayim yisâ’unekha


ּ ַּ -‫עַל כ‬
ָ ‫פַי ִם יִשָּׂאוּנְך‬
Sobre as palmas das mãos carregar-te-ão,

12b Pen-tiggoph bâ’ebhen raghlekha

ָ ‫לך‬ ֶ ָּ‫תִג ּ ֹף ב‬
ֶ ְ ‫אבֶן רַ ג‬ ּ
ּ -‫פֶן‬
Para que não batas teu pé em uma pedra.

13a ‘al-shachalvâphethen tidhrokh

ּ ,‫שַׁחַל וָפֶתֶן‬-‫עַל‬
ְ ‫תִדְ רֹך‬
Sobre o leão e a serpente peçonhenta pisarás,

13b Tirmos kephiyr vethanniyn

‫תִרְ מֹס כְּפִיר וְתַנ ִּין‬


ּ
Pisotearás o leãozinho e a cobra grande.

14a Kiy bhiy châshaqva’aphallethêhu

ּ ‫ל ּטֵהו‬ ָ ‫כ ִּי בִי‬


ְ ַ‫ וַאֲפ‬,‫חשַׁק‬
Sim, prendeu-se em mim fortemente e eu trá-lo-ei para fora do perigo.

14b ‘asaggebhêhu kiy-yâdha ‘shemiy

‫י ָדַ ע שְׁמִי‬- ‫ּ כ ִּי‬,‫אֲשַׂג ְ ּבֵהו‬


Pô-lo-ei em um lugar alto porque penetrou o meu nome.

15a Yigrâ’êniyve’e ‘enêhu ‘immo-‘ânokhiy bhetsârâh

‫אָנֹכ ִי בְצָרָ ה‬-ֹ ‫אעֱנ ֵהו ּ–עִמּו‬


ֶ ְ ‫ ו‬,‫יִקְרָ אֵנִי‬
Clamará a mim e responder-lhe-ei; no aperto, eu mesmo (estarei) com ele,
15b ‘achalletsêhu va’akhabbedhêhu

ּ ‫וַאֲכַבְּדֵ הו‬,ּ ‫ל ּצֵהו‬


ְ ‫ח‬
ַ ֲ‫א‬
Retirá-lo-ei e fá-lo-ei vultoso.

16a ‘orekh yâmiym ‘asbiy ‘êhu

ּ ‫אשְׂבִּיעֵהו‬
ַ ,‫א ֹרֶ ך ְ יָמִים‬
(Com) prolongamento de dias fartá-lo-ei

16b Ve’ar’êhu biyshu ‘âthiy

‫ּ בִּישׁוּעָתִי‬,‫וְאַרְ אֵהו‬
E embriagá-lo-ei com minha largueza.

10 – O Salmo 91 esquematizado
Podemos esboçar o Salmo em questão da seguinte forma, conforme a análise feita até
aqui:
I – A promessa protetora de Deus ao que se coloca sob sua proteção.
Sentar-se sob a sombra do Altíssimo assegura uma pernoite tranquila. Ele é o apoio e
abrigo para quem o busca.
II – As manifestações de Deus em favor dos seus protegidos.
Deus promete dar abrigo, sustento e livramento.
III – As ameaças a quem se afasta de sua proteção.
Aquele que se afasta da proteção de Deus, fica vulnerável às ameaças existentes no
mundo. Pode ser, a qualquer momento, seduzido por aquilo que João chama de
“...concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida...” (I Jo
2.16). Seu fim é a queda.
IV – O próprio Deus declara ser protetor.
Nos últimos 8 versículos vemos o próprio Deus declarando ser protetor daqueles que O
buscam. Em paralelo com os primeiros versículos, Ele declara ser protetor e abrigo dos
justos.
V – A condição da proteção.
Como já dito anteriormente, o efeito de ser guardado e protegido por Deus tem como
causa uma disposição voluntária em se colocar sob sua proteção e cuidado. Como em
toda a narrativa bíblica, Deus é o provedor das bênçãos, ou seja, desfrutamos da Graça
de Deus, pois, primeiro, Ele a disponibilizou para nós. É sempre Ele que dá o primeiro
passo, ou seja, que provê o abrigo, a proteção, o amor, a salvação, etc. O homem
apenas responde a essa provisão.
No contexto geral, podemos analisar que o mal do qual Deus promete nos livrar, não é
o mal predominante no mundo, o mal natural. O contexto nos leva a entender que Ele
nos livrará do mal espiritual, ou seja, daquele mal que é proveniente das situações em
que nos colocamos quando deixamos de seguir a orientação do Espírito Santo e
passamos a agir conforme nosso próprio entendimento e inteligência.
Portanto, o que Ele promete é a preservação de nossa fé. Se alguém passa por algum
problema associado com a condição pecaminosa da humanidade, como problemas
financeiros resultantes de situações macro econômicas, assaltos em função da
condição da sociedade de uma forma geral, como desemprego e outros fatores, não se
julgue desmerecedor da graça de Deus, tampouco impute injustiça a Ele.
Em resumo, como resultado de nossa disposição em deixar-nos conduzir por Deus,
descansando em seu abrigo ou esconderijo, encontramos respostas às nossas orações
em meio às aflições, honraria, prolongamento de dias e deleite na largueza de Deus,
que significa experimentarmos a grandeza e benignidade do Altíssimo por meio da
Salvação que nos é oferecida. A fim de que preservemos a nossa fé devemos nos
manter próximos à Ele, ou seja, descansando em seu esconderijo, sob as suas asas.
Com isso alcançaremos nossa regeneração, justificação, santificação e, por fim, nossa
glorificação.

Conclusão
Nos dizeres de Ryken, “a regra geral de interpretação é observar atentamente
qualquer coisa dentro da história que sinalize como o autor deseja que interpretemos
os personagens, os eventos e a história como um todo” (pág. 126).
Como percebemos, o trabalho do mestre bíblico demanda um esforço adicional com a
finalidade de extrair a verdadeira mensagem que a Palavra de Deus quer nos
transmitir. A interpretação dos Salmos é de natureza peculiar, dada suas características
poéticas, por isso, faz-se necessário conhecer as regras da poesia hebraica, para um
melhor entendimento de suas nuances.
O conhecimento das regras gramaticais do hebraico é essencial para compreensão de
qualquer texto do Antigo Testamento, bem como as circunstâncias históricas,
geográficas, políticas, culturais, etc.
Isso traz um enriquecimento sem igual, tanto para o estudante, quanto aos
destinatários de suas exposições, sejam em aulas ou pregações.
A vantagem de se conhecer a fundo o texto bíblico tem duplo aspecto: 1) Pregar e
ensinar com mais propriedade, ensinando de forma plena as verdades espirituais
contidas no Livro de Salmos; 2) Defender o rebanho contra interpretações que fujam
da ortodoxia necessária à compreensão da Bíblia.
Finalmente, o descanso e proteção prometidos por Deus, se cumprirão, de forma
plena, em nossa habitação futura, pois somos apenas peregrinos nesta terra. Em nosso
novo lar “Deus enxugará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem
pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” (Ap 21.4).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Literatura em Debate, v. 6, n. 11, p. 68-79, dez/2012.
FUTATO, M. D. – Interpretação dos Salmos, 1ª edição, Editora Cultura Cristã, 2011.
GUSSO, A. R. – Gramática Instrumental do Hebraico, Terceira edição revisada e
ampliada, Editora Vida Nova, 2017.
JAMIESON, R.; FAUSSET, A.R.; BROWN, D. – A Commentary on the Old and New
Testaments, vol. 2, Hendrikson Pub, fev/1996.
REI DAVID BEN ISHAI – O Livro dos Salmos, traduzido por Adolpho Wasserman e Chain
Szwertszarf, 2ª edição revista e ampliada, Editora Maayanot, 1995.
RUSHDOONY, R. J. – Numbers, Commentaries on the Pentateuch, Ross House Books,
p.1-4, traduzido por Felipe Sabino de Araujo Melo, retirado de
www.monergismo.com.br, pesquisa realizada em 03/12/2017.
RYKEN, L. – Formas Literárias da Bíblia, 1ª edição, Editora Cultura Cristã, 2017.
SILVA, R. M. B. – Salmo 91: Uma Exaltação de YHWH Protetor, Revista Contemplação,
Faculdade João Paulo II, 2015.
STERN, D. H. – Bíblia Judaica Completa 7ª reimpressão, Editora Vida, mar/2017.
VANHOOZER, K. – Há um significado neste texto? Interpretação Bíblica: Os enfoques
Contemporâneos, Editora Vida, 2005.
ZUCK, R. B. – A Interpretação Bíblica: Meios de descobrir a verdade da Bíblia, 1ª
edição, Editora Vida Nova, 1994, reimpressão 2012.

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