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ARQUITECTURA
De memória.
Por entre sonhos e devaneios: uma torre
em Monsaraz
Mariana Cabrita Ferreira
M
2021
Nota à edição:
Orientador:
Professor Doutor Luís Sebastião da Costa Viegas
Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
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Ao meu pai, pela confiança e compreensão Ao Miguel, a quem agradeço a paciência e
desmedidas, – e pela atenta revisão ortográfica presença desde o primeiro dia, por nunca me
desta prova; à minha mãe, pela força e inspiração, ter falhado e por ter esculpido uma escarpa
– e pela insistência constante para não me esquecer fantástica em esferovite para a minha entrega da
de guardar o trabalho; ao meu irmão, pelo amor e casa, no 1º ano.
apoio incondicional, – e por me aturar quando
sou chata. À Maria pelo compreensão, pela amizade, por
ouvires cada insegurança minha, como se fossem tuas.
Ao Gui, pela beleza das coisas e da vida. Por ser
a minha metade. Aos demais amigos da FAUP, de quem gosto
tanto: Rodrigo, António, Ricardo, Diogo, Tomé,
Às minhas amigas de sempre. À Francisca: Chica; pelo que fica e pelo que ainda está por vir.
pela preocupação. À Maleitas: pela lealdade.
À Matilde: pelo conselho. À Nocas: pela Às minhas estrelas no céu que me inspiraram a
compreensão. À Reis: pelo interesse. Sem vocês ser quem sou. Aos meus avós e à minha tia Isabel.
não seria possível. À minha madrinha Fátima, que dolorosamente
nos deixou nesta última fase do meu percurso.
À Joana, pelo caminho que fizemos lado a lado À minha prima Lena, com especial carinho, com
e, por durante muito tempo, ter sido sinónimo quem partilhei o gosto de desenhar e a quem
de casa. agradeço pelo livro O que é a imaginação, que
contribuiu diretamente para o desenvolvimento
À Natacha por ter também feito parte dessa casa. desta dissertação.
Por preencheres cada canto com a tua espontaneidade e
por nunca te esqueceres de trazer húngaros. Besonderer Dank gilt dem gesamten Semadeni-
Team, das mich im April 2021 in Zürich empfangen
Aos meus companheiros de dissertação (e da hat. Insbesondere an Armon Semadeni für den
vida): bibliographischen Beitrag. Hannah, Diana und Chiara
dafür, dass sie mir immer einen weiteren Anreiz geben,
À Xana, minha mana do coração, que só tenho weiterzumachen. Bis bald.
pena de não ter entrado nesta aventura mais
cedo. Obrigada pela partilha, amizade e apoio Aos que, ainda que não mencionados, estão
incondicional. Por seres abrigo e por seres casa. sempre na minha memória.
obrigada.
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«Somos feitos de memórias.»
José Saramago
resumo
This is an exercise from memory, - a continuous After a better understanding of what memory
remembering. is, and how it actively contributes to the
Our place in the world is defined by a collection of materialization of an architecture that goes
fragments that become cohesive and make us as beyond the tangible, - that we touch in its material
a whole. Memory is the basis of life, in the sense dimension, but that touches us through memory
that it is through memory that we assume the and imagination, beyond what is visible –, we
passage of time. Without memory we would be focus on our memory as experience, a memory
imprisoned in fractions of a second. that is not static and allows us to create narratives
The awareness of memory as an operative about our own architectural apprehension.
tool in life, but also in architecture, motivates But, being aware that architecture is concrete and
this study about a space-in-between; a tenuous this cosmos is a consequence of the real materiality
membrane that separates the real world from of the building, we propose an exercise, in a
the imaginary. We are in the presence of an competition context, where the principles of
investigation about the ontology of architecture, an architecture that wants to be sensitive are
in what is the encounter between Self and place fomented, accepting that, in the appropriate
- and, therefore, the construction of memory. words of Sérgio Fernandez, it does not guarantee
This is a journey about the essence of the Self; happiness, but it can be the place of happiness, a way to
about the material we are made of; without a achieve happiness.
certain destination, but with the conviction that
the return will be more certain.
#00 Ursula Schulz-
Dornburg, ‘The Land
in Between’, 2018
Agnès Varda
conteúdos
Agradecimentos
Resumo
Abstract
0 Preâmbulo 19
sobre partir e regressar
2 Memória (i)material 95
sobre a memória como experiência
O que fica 97
Do Sul. Quinta Queimada 98
Do Porto. Piscina das Marés 104
De Berlim. The Feuerle Collection 114
Da Suiça. La Congiunta 120
De um lugar entre. Vill’Alcina 130
4 Epílogo(s) 185
Bibliografia 197
Créditos de imagem 203
0 preâmbulo
preâmbulo
sobre partir e regressar
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a memória que habitamos
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a memória que habitamos
o olho fosse o centro do mundo e imagem do refletir sobre a hegemonia da visão e o privilégio
conhecimento. que é atribuído pela nossa cultura aos olhos. A
Atualmente, a visão e a audição são visão, de certo modo, provoca o afastamento e
privilegiadas em função de um mundo cada vez isolamento e a arquitetura não pode negligenciar
mais digital – mas não podemos esquecer que o corpo e os restantes sentidos, essenciais para
uma ida ao cinema se torna mais agradável entre a construção de proximidades. Segundo Jean-
o cheiro e o sabor das pipocas; e que uma ida Paul Sartre, foi devido ao privilégio da visão
a um concerto não dispensa o movimento do que “o espaço superou o tempo na consciência
corpo, do qual resulta, muitas vezes, o toque; humana”19, e esta relação de interdependência
mas, ainda que num entendimento distinto do tempo-espaço constitui um paradigma
formulado pelos filósofos da Grécia Clássica, fundamental para a reflexão da arquitetura.
a visão continua a ser considerada, em muitos Apesar desta clara, e muitas vezes
contextos, o órgão sensorial mais importante. inconsciente, preponderância da visão é
A arquitetura exerce um papel mediador necessário entender em que consiste efetivamente
entre o nosso corpo e o mundo e permite-nos ver, mirar através de…, e como os restantes
#06 Sergio Larrain,
afirmar a nossa experiência existencial. Uma sentidos contribuem para uma apreensão total
‘Fishermen daughters’,
Village of Horcones,
vez que a visão ocupa um lugar distinto no da experiência. Para o arquiteto esta consciência
1957
entendimento da existência humana, importa- é essencial no momento de criar: a consciência
nos, compreender o ato de ver, para além da multissensorial do estar no espaço.
ação mecânica da visão, querendo com isto
compreender que dessa ação resultam sensações “Ver precede as palavras. A criança olha
e emoções que, de algum modo, retemos para e reconhece, mesmo antes de poder
lá da nossa retina. Mas para que a compreensão falar.”20
seja total, a visão não pode ser considerada um
ato que se esgota em si mesmo; a desmistificação Ver, como refere John Berger, é uma
de que ver é com os olhos, porque afinal podemos das primeiras aprendizagens do Ser e está, por
ver com as mãos, com os ouvidos, com o nariz, desde isso, antes da palavra. Mas na verdade, existe
que a nossa memória e imaginação o permitam. um outro sentido em que a visão antecede a
A arquitetura é o principal meio para a palavra, apontado por John Berger: é através
atribuição de uma dimensão humana, na relação do ato de ver que nos posicionamos no mundo.
entre o espaço e o tempo, “(…) domestica o Quando tentamos explicitar um acontecimento
espaço ilimitado e o tempo infinito, tornando- com palavras, temos como base a observação
os toleráveis, habitáveis e compreensíveis para dos factos. No entanto, existe um limite entre
a humanidade.”18 David Michael Levin, citado a palavra e a imagem que é analisado por John
por Juhani Pallamaa, refere que é apropriado Berger, em Modos de ver, através da obra de
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a memória que habitamos
René Magritte, La Clef des songes, quando refere ato isolado em si mesmo: “só vemos aquilo que
que existe uma distância entre o que vemos e o olhamos. Olhar é um ato de escolha. Como
que compreendemos e que, muitas vezes, somos resultado dessa escolha, aquilo que vemos é
incapazes de estabelecer relação entre a palavra trazido para o âmbito do nosso alcance (…).”24
e o alcance da nossa visão, – desmistificando Quando olhamos, estamos a estabelecer relações
certas crenças que defendiam que visão e entre o mundo e as coisas, entre nós próprios e o
conhecimento eram um só. que nos rodeia. Estamos em constante movimento;
Também Luis Moreno Mansilla faz movimento esse necessário à apreensão e
#07 René Magritte,
‘La Clef des songes’, referência a uma falta de “correspondência entre que nos permite compreender que fazemos
Brussels, 1935
a palavra e a imagem”21, ilustrada na obra de parte de um universo maior: vemos e somos
Marcel Duchamp, Le Grand Verre, no seu título vistos, “(…) somos parte do mundo visível.”25
original, La mariée mise à nu par ses célibataires, Maurice Merleau-Ponty defendia a osmose entre
même: “O Grande Vidro é um sonho. É o sonho a individualidade e o mundo26: o nosso corpo
da expansão poética da pintura, encontrado na ocupa o mesmo espaço que o que nos rodeia;
ausência de correspondência entre palavra e somos o observador e o objeto observado, em
imagem.”22. Através deste grande vidro, quem o simultâneo. Ver está antes da palavra exatamente
observa é convidado a apreendê-lo e a conhecer devido a esta dualidade de ver e ser visto; através
a sua dimensão poética, que está para além da palavra tentamos explicar o nosso próprio
do que vemos e somos capazes de expressar. ponto de vista, enquanto tentamos compreender
Duchamp deixa uma parte da obra para ser como o outro vê as coisas.27
terminada pelo observador, que caminha através
da sua visão e corporalidade. Colocar o corpo “(…) para alguém capaz de usar todos os
no espaço, é corporificar a nossa visão: o que seus sentidos, a experiência da arquitetura
vemos, de onde vemos, como vemos. A obra, é principalmente visual e cinestésica
que se detém no nosso olhar, transcende-se em (usando o sentido do movimento das
si mesma e transforma-se em “objeto expectante partes do corpo).”28
perante o nosso olhar”23, para deixar de ser
potência e passar a ser ação, do possível ao ineludível. Tudo o que absorvemos, por via dos
Este quadro sem fundo, frente ou trás, alto ou cincos sentidos, é armazenado na nossa
baixo, provoca-nos; desperta-nos para a nossa mente, como uma interpretação daquilo que
#08 Marcel Duchamp,
‘La mariée mise à nu ação como parte integrante da obra. experienciamos e essa interpretação depende
par ses célibataires,
même (Le Grand Como explica John Berger, ver não é um da nossa perceção sobre as coisas. Apesar da
Verre), 1915-1923
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a memória que habitamos
visão ser um dos mais importantes mecanismos não alcançamos através do olhar; há uma relação
para a memorização e essencial para a perceção que se estabelece entre a pele e a materialidade
da arquitetura, isso não significa que devemos das coisas, da qual resultam reações que nos
abdicar de uma experiência total, da qual fazem permitem sentir se é quente ou frio, liso ou rugoso,
parte os restantes sentidos29. A experiência deve macio ou áspero… e que é, de certa forma,
ser multissensorial. imprevisível porque nos permite compreender
que nem tudo o que parece é.
“O olho é o órgão da distância e da Cada detalhe num edifício deve ser
separação, enquanto o tato é o sentido da pensado para estimular sensações e convidar à sua
proximidade, intimidade e afeição.”30 apropriação; como refere Juhani Pallasmaa: “o
puxador da porta é o aperto de mãos do edifício,
É através do tato que a visão adquire que pode ser revigorante e cortês ou proibitivo
uma dimensão física. Tocamos o que o nosso e agressivo.”32 Também Peter Zumthor faz,
olho observa e é, por isso, um dos principais curiosamente, referência à maçaneta do portão
auxiliares à perceção do espaço, até pelo simples de casa da tia, quando era criança, e que ainda
facto de tocarmos o chão quando caminhamos hoje recorda como um “sinal especial de entrada
sobre ele; essa simples relação, da qual nem num mundo de ambientes e cheiros diversos.”33
sempre estamos conscientes, é uma forte ligação As mãos são a parte do corpo mais
entre o Ser e a arquitetura, estabelecendo-se uma dotada de um sentido háptico e permitem
relação física de clara apropriação. a compreensão do mundo material. A mão
“(…) tem os seus sonhos e suposições. Ajuda-
“A gravidade é medida pela sola dos nos a compreender intimamente a essência da
pés; seguimos a densidade e a textura do matéria. É por isso, que nos ajuda a imaginar
chão através da sola de nossos pés. Ficar [a matéria].”34 Numa perspetiva explicada por
descalço sobre uma lisa rocha glaciar Pallasma, em The Thinking Hand, relativamente
junto ao mar, durante o pôr do sol, e sentir à pintura e ao momento da sua criação, a mão
na pele o calor da pedra aquecida pelo sol vê, o olho pinta e a mente toca35, permitindo
é uma experiência muito revigorante que compreender que existe uma relação intrínseca
nos faz sentir parte do ciclo eterno da entre estas três partes do nosso corpo. Uma não
natureza; faz-nos sentir a respiração lenta existe sem outra, naquela que é a sua totalidade.
da terra.”31 O movimento da mão é medido pelo olho e
Da ação do toque, resulta uma energia que executado pela mente.
35
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a memória que habitamos
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a memória que habitamos
A pele é o invólucro do Ser, o limite entre grande, coleciona, amplia e transmite os sons.”40
um mundo exterior e a sua interioridade. É o Encontramos som nas pessoas que conversam,
órgão que nos permite sentir o aconchegar da casa, preenchendo o espaço, nos pés que pisam o
apontada por Bachelard como uma ação que pavimento, no vento que bate sobre as paredes.
“pertence à fenomenologia do verbo habitar Abrimos a janela de nossa casa e a cidade entra
e, somente aqueles que aprenderam a fazê- dentro dela: o metro que se aproxima, a água
lo [a aconchegar-se] conseguem habitar com da chuva sob os pneus dos carros, as folhas
intensidade.”36 Este aconchego remete-nos para as das árvores que se movimentam umas sobre as
memórias da nossa infância de uma forma que a outras… O som que se aproxima e afasta permite
visão, por si só, não permite. medir distâncias e calcular o espaço, auxiliando
o movimento do corpo. Na cidade, permite-nos
“Acho muito bonito construir um compreender que fazemos parte de um todo,
edifício e pensá-lo a partir do silêncio. que não estamos sozinhos no interior da casa.
Ou seja, fazê-lo calmo, o que hoje em dia Sabemos que o barulho dos carros em constante
é bastante difícil, porque o nosso mundo movimento se difunde pelas ruas, o sino da igreja
#11 Helena Almeida, é tão barulhento.”37 diz-nos que horas são, a gaivota em terra anuncia a
‘Tela Habitada’, 1976
tempestade no mar.
O som dá vida ao espaço, “estrutura e O mesmo espaço pode ser muito distinto
articula a experiência e o seu entendimento.”38 consoante a sua sonoridade: em silêncio, oferece
Como explica Pallasmaa, o som confere ao calma e intimidade; com ruído, traz movimento e
espaço um continuum temporal39, através do qual agitação. Na casa vazia ecoam os sons da solidão,
ficamos cientes da passagem do tempo numa da vida adormecida; enquanto na casa habitada
determinada ação. No cinema, os filmes mudos o som é refratado pelos objetos pessoais, que lhe
permitem compreender a necessidade da banda atribuem uma essência singular. É no ruído dos
sonora para a compreensão das ações. Sem lugares que encontramos afinidades.
qualquer som, o cenário seria como um espaço
vazio, sem vida. Neste caso, o uso exagerado de “A visão isola, enquanto o som
expressões e movimentos do corpo, em junção incorpora; a visão é direcional, o som
com música e sons rudimentares, dão sentido é omnidirecional. O sentido da visão
aos cenários e ações do filme. implica exterioridade, mas a audição
A audição, apesar do seu vínculo mais cria uma experiência de interioridade.
performativo, está também relacionada com a Eu observo um objeto, mas o som
forma e materialidade do edifício e como ambas aborda-me; o olho alcança, mas o ouvido
são pensadas para absorver e refletir o som, recebe.”41
“cada espaço funciona como um instrumento
36 BACHELARD, Gaston, The Poetics of Reverie cit in PALLASMA, Juhani, Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos, p.55
37 ZUMTHOR, Peter, Atmosferas, p.28
38 PALLASMA, Juhani, Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos, p.47
39 PALLASMA, Juhani, op. cit., p.47
40 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p.28
41 PALLASMA, Juhani, op. cit., p.46
39
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a memória que habitamos
Entre os universos sonoro e visual, é capazes de recordar a memória visual a que está
possível estabelecer um infindável número de associado, fazendo-nos caminhar pelo mundo
relações, sendo que, pela imagem, procuramos da imaginação quando o tentamos recriar. No
materializar o que o nosso ouvido capta. entanto, o cheiro é uma das características que
Podemos considerar que o som é uma abstração mais facilmente somos capazes de associar a
que tentamos compreender e traduzir através um espaço ou momento. A dificuldade passa
de imagens, mas, como refere Pierre von Meiss: por traduzir essa abstração que habita a nossa
“se, por vezes, fecharmos os nossos olhos para memória.
remover a dominância do mundo visual, com o Num texto de Gaston Bachelard, em A
intuito de ouvirmos mais atentamente, é a prova poética do Espaço, o autor refere a essência da casa,
real do puro prazer da experiência auditiva.”42 a sua atmosfera, que só ele pode relembrar,
Esse prazer da experiência auditiva, está através do cheiro… A descrição seria infiel
associado à arquitetura como a arte do silêncio, à verdadeira experiência, uma vez que não
já abordada por Peter Zumhor e aqui ilustrada podemos descrever de forma justa um cheiro,
por Pallasmaa. Esta dimensão possibilita ao uma sensação; como refere: “só eu, nas minhas
utilizador uma experiência total de corporização lembranças de outro século, posso abrir o
na perceção do espaço que se retém na sua armário profundo que guarda ainda, só para
memória. O tempo e o espaço estão consagrados mim o cheiro único das uvas que secam no
na arquitetura do silêncio, “a matéria, o espaço e vime. O cheiro da uva! Cheiro-limite, é preciso
o tempo fundem-se numa experiência elementar muita imaginação para senti-lo.”46 Deste modo,
e singular: a sensação de existir.”43 podemos colocar o olfato no universo do Ser
único e individual; o olfato como uma parte da
“Um cheiro específico faz-nos reentrar experiência, que é intransmissível e que tem, por
de modo inconsciente num espaço isso, que ser vivida na primeira pessoa.
#12 ‘Gruta dos totalmente esquecido pela memória da
Capitães’, Algarve, 2020
retina; as narinas despertam uma imagem “Não me consigo lembrar da aparência da
esquecida e somos convidados a sonhar porta de casa da quinta do meu avô quando
acordados.”44 eu era muito pequeno, mas lembro-me
O olfato através da sua carga nostálgica muito bem da resistência imposta pelo
transporta-nos para um estado emocional e seu peso e a patine da sua superfície de
permite-nos identificar “lugares e momentos madeira marcada por décadas de uso, e
para toda a vida.”45 O olfato vive sobretudo de recordo-me especialmente do aroma da
uma capacidade de abstração, pois apesar de sua casa que atingia o meu rosto como
reconhecermos um cheiro, nem sempre somos se fosse uma parede invisível por trás
41
42
a memória que habitamos
da porta. Cada casa tem o seu cheiro sentidos não são apenas uma ferramenta que
individual de lar.”47 permite a nossa capacidade de compreensão,
mas também um meio para estimular a nossa
Cada lugar tem o seu cheiro. Quantas imaginação.
vezes, passado algum tempo, chegamos a um
lugar e, automaticamente, somos levados pela “O nosso contacto com a realidade
memória do seu aroma a viajar pelo tempo. nunca é puro ou direto, mas é sempre
Assim que chegamos e sentimos o cheiro daquela matizado por discursos, textos, imagens,
cidade, sabemos que estamos perante um aroma fotografias, filmes... ou seja, num sentido
único, de que tanto sentimos falta, mas que lato, pela linguagem, qualquer que seja
sem esse contacto direto não o conseguíamos a sua expressão, ou pela cultura. Assim,
recuperar através da imaginação. Há cheiros nunca nos relacionamos com as coisas
#13 Stephan Shore,
‘Transparencies’,
que nos fazem felizes na sua essência de ser; tal como elas são, mas apenas como as
1971-1979
nas coisas simples encontramos o cheiro a pão construímos.”48
quente e a café, pela manhã.
A visão, ao contrário do olfato, permite Segundo Luz Valderrama Aparício,
reter imagens que mais facilmente somos quando nos confrontamos com uma realidade
capazes de descrever. Conseguimos ter noção do estamos já a interpretá-la com base num
aroma, mas não o conseguimos sentir sem que conjunto de vários elementos que fazem parte
estejamos efetivamente expostos a ele. Ainda do nosso reportório pessoal: “não vemos, mas
que um cheiro seja mais marcante, uma imagem miramos através de.... ante pupila, ou seja, imagens
de um momento que fica retida na nossa mente é anteriores ao olho, anteriores ao olhar.”49
mais acessível à capacidade humana de recordar. Também John Berger refere que, “(…) embora
A possibilidade de registar a duas dimensões toda a imagem incorpore uma maneira de ver, a
um momento, permite definir um limite entre a nossa perceção ou apreciação de uma imagem
imagem, associada à visão, e os restantes sentidos depende também do nosso próprio modo de
que estão num grau de maior intimidade na ver.”50 Ver é a construção da nossa própria
relação do Ser com o espaço vivido realidade.
Nesse sentido, procuramos compreender Neste sentido, se considerarmos a visão
em que consiste este ato de ver através dos como uma ação única e individual, podemos
sentidos, como experiência sensorial total, e o que atentar que existem diferentes visões e,
acontece depois dessa ação. Como se processa consequentemente, a construção de diferentes
a informação que se traduz em memórias, que realidades, sobre uma mesma realidade. Como
muitas vezes, denominamos como memórias faz referência Peter Zumthor, a imaginação
visuais, mas que podem, na verdade, traduzir-se trabalha com a realidade e “(…) tudo existe
em abstrações, sensações e emoções. Os nossos apenas dentro de mim. Mas depois faço a
43
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a memória que habitamos
experiência e elimino a praça. E já não tenho os observação que o arquiteto consolida uma base
mesmos sentimentos. (…) Naquela altura, nunca para os seus projetos. Aprender a ver é aprender
os teria tido da mesma forma sem a atmosfera a relacionar. A arte, a literatura, o cinema, a
da praça. Lógico. Existe um efeito recíproco vida… Todo um universo que reúne distintas
entre as pessoas e as coisas.”51 Assim, quando disciplinas, confere ao arquiteto a capacidade de
visitamos um lugar, estamos já a apropriá-lo, criar de olhos fechados um caminho tateado pelas
olhá-lo à nossa maneira; essa maneira que é única mãos e pelos sentires. O arquiteto olha, interpreta
e que diz respeito ao Ser. Este, é imediatamente e relaciona, apreende e, mais tarde, cria através
dominado pela nossa mente através da memória dessas vivências revisitadas e imaginadas: “(…)
e da imaginação, que “(…) não se deixam já vi isto, enquanto sei ao mesmo tempo que
dissociar. (…) Ambas constituem, na ordem tudo é novo e diferente e que nenhuma citação
dos valores, uma união entre a lembrança e a direta de uma arquitetura passada trai o mistério
imagem.”52 de um ambiente cheio de memórias.”55
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a memória que habitamos
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a memória que habitamos
deste modo, as nossas primeiras referências de descoberta. Não uma viagem física, real, como
projeto e estão connosco desde o início da nossa relata Álvaro Siza, mas uma viagem através
existência. do olhar do outro; e neste caso, através do
Álvaro Siza, relembra as viagens em olhar de Stendhal, por via da sua autobiografia
família durante a sua juventude, em específico inacabada62. Associado a este contaminar da
no texto Barcelona, onde faz referência às férias ação projetual por diferentes meios, formas e
em Espanha “entre quarenta e cinco e cinquenta formatos, Aldo Rossi está consciente de uma
e poucos”59, como um momento de viragem liberdade associada ao ofício, que sendo baseada
na sua adolescência, quando os seus “olhos de em exemplos distintos se confunde, muitas vezes,
quinze anos brilhavam”60 e quando, talvez sem com a nossa história pessoal.
saber, descobriu o entusiasmo pela arquitetura,
através de Gaudí. “Talvez por intermédio dos desenhos
de Stendhal e esta estranha mescla entre
“Tive o primeiro pressentimento de autobiografia e plantas de casas se tenha
que talvez a arquitetura me interessasse manifestado em mim uma primeira
mais do que qualquer outra coisa; de apropriação da arquitetura; é este o
que estava ao meu alcance; bastava pôr a primeiro contributo de uma noção que
dançar janelas, portas, rodapés, ferragens, chega até este livro. Impressionavam-me
lambrins em cerâmica ou pedra, caleiras, os desenhos das plantas por parecerem
goteiras.”61 uma variação gráfica do manuscrito e,
precisamente, por duas coisas; a primeira,
#17 Frame do filme
‘Cinema Paradiso’, Estas vivências traduzidas em memórias, de como a grafia é uma técnica complexa
Giuseppe Tornatore,
1988 e aqui descritas por Álvaro Siza, são também entre a escrita e o desenho, e a isto
sobre a arquitetura que encontrámos nas voltarei ao falar de outras experiências, a
pequenas coisas e que ficam retidas como as segunda, de como as plantas prescindiam
nossas primeiras memórias, as pequenas memórias, e ou ignoravam o aspeto dimensional e
que são vitais para a formação do arquiteto, no formal.”63
sentido em que são, de certo modo, responsáveis
pelo despertar de uma sensibilidade necessária Numa era em que as verdadeiras
para a prática da arquitetura. referências perdem valor em prol de uma
Também Aldo Rossi lembra a sua primeira aceleração digital, e, da consequente – e fácil
apropriação da arquitetura. Neste caso, esse – propagação da imagem, é importante o
estímulo surge através de um livro, que pode, arquiteto manter-se fiel a si mesmo e não a
em si mesmo, ser também uma viagem, uma uma produção em massa, vazia de conteúdos e
49
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a memória que habitamos
significados. Como explica Italo Calvino, em Seis memória, de incalculável, anónima sabedoria.”67
proposta para o próximo milénio, antes das imagens Peter Zumthor faz também um exercício
pré-fabricadas que nos inundam, estávamos de memória e lembra o “tempo que vivia a
reduzidos à imagética criada pelas nossas arquitetura sem pensar sobre isso.”68 Trata-se de
próprias experiências diretas e a um conjunto um exercício que desconstrói as suas primeiras
limitado de imagens que refletiam a cultura. memórias e que se repercute nas suas intenções
A realidade atual do poder da imagem, resulta enquanto arquiteto e ator criador de espaço.
numa difícil separação entre a memória de uma
experiência direta e a memória do que vimos na “Tudo nesta cozinha era como nas
televisão64. As camadas de imagens que cobrem cozinhas tradicionais costumava ser.
a nossa memória e que não somos capazes de Não havia nada de especial nela. Mas
filtrar, “imaginam por nós” e “parecem estar talvez esteja tão presente na minha
a ameaçar até mesmo as nossas capacidades memória como síntese de uma cozinha
autênticas de imaginar.”65 precisamente por ser de uma forma quase
A intuição surge, muitas vezes, como natural apenas cozinha. A Atmosfera
motor que desbloqueia; vemo-nos dominados desta sala associou-se para sempre à
por tantas imagens e referências, que o desafio de minha imagem de cozinha.”69
hoje, não passa por memorizá-las, mas sim por
esquecê-las. Nesse sentido, as primeiras memórias Muitas vezes, os espaços que não têm
constituem parte ativa no momento da criação, nada de especial, são os que nos ficam. Pela sua
para que não nos esqueçamos da informalidade simplicidade, pela forma como nos envolveram
do que nos rodeia e para que possamos trazer e aconchegaram em certos momentos da vida,
essência para os espaços que desenhamos. E porque o sol entrava pela porta de vidro
quem sabe se não são as primeiras influências do quintal e manchava a cozinha branca
que ditam as ações do projeto, como confidencia de amarelo, porque cheirava a figos e
#18 Vista da cozinha da
casa de Peter Zumthor,
Aldo Rossi: “Talvez estes desenhos de Stendhal era verão… São os que ficam e que passam
Haldenstein, 2005
me tenham conduzido mais tarde, precisamente, a fazer parte de uma certa memória criativa.
ao estudo dos tipos de habitação e do carácter Peter Zumthor refere as memórias antigas como
fundador da tipologia.”66 São os gestos do ferramentas do seu trabalho que integram um
pensamento que dão, muitas vezes, significado exercício particularmente interessante: revisitar
à ação do arquiteto. Como refere Álvaro Siza: essas memórias, da primeira casa, da casa dos
“Todos os gestos – também o gesto de desenhar avós ou da rua onde se brincava, das férias em
– estão carregados de história, de inconsciente família, e perceber que estão (e sempre estiveram)
64 Ideia expressa por Italo Calvino em As seis propostas para o próximo milénio, p.112
65 PALLASMAA, Juhani, La Imagen Corpórea: Imaginación e Imaginario en la Arquitectura, p.7
66 ROSSI, Aldo, op. cit., p.31
67 SIZA, Álvaro, op. cit., p.29
68 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p.7
69 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p.7
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a memória que habitamos
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a memória que habitamos
Uma leitura sobre a casa de Bachelard Neste estudo, não importa analisar a casa como
objeto e tentar descrever ou pormenorizar as partes
“Dentro [da casa] somos independentes que a caracterizam, mas antes compreender as
ou quase. Estamos protegidos da cidade virtudes primárias ligadas à função do habitar. Para
e do mundo inteiro.” 70 o fenomenólogo o habitar relaciona-se com o
que nos liga a um lugar, o apego ao lugar; e, nesse
A casa, aqui citada por Álvaro Siza, que caso, “como habitamos o nosso espaço vital de
encontramos na obra de Gaston Bachelard e que acordo com todas as dialéticas da vida, como
“mantém a infância imóvel nos seus braços.”71 é a nos enraizamos, dia a dia, num canto do mundo.”75
primeira casa, “(…) o nosso canto do mundo”72, Estas dialéticas da vida, estão para além
que reconhecemos em nós mesmos, e onde do espaço em si mesmo. A casa mais simples, a
tantas vezes regressamos à procura de refúgio e casinha humilde, é várias vezes evocada pelo poeta.
de respostas, também no momento de projetar. No entanto, Bachelard considera a sua descrição
À ideia de casa estão associados conjuntos de demasiado sumária, sem se focar na sua
imagens que encontramos na intimidade das primitividade, que na verdade não diz respeito ao
memórias passadas e que se vêm manifestar valor (material) da casa, mas sim a um outro tipo
quando sentimos necessidade de recorrer de valor, que diz respeito à memória individual.
a elas. É preciso encontrarmo-nos a nós O espaço verdadeiramente habitado transmite
próprios, não esquecer o que nos define e na casa a essência da casa. Através da imaginação
encontraremos proteção. conseguimos evocar o imemorial e construir as
Segundo Gaston Bachelard, a casa pode paredes que nos protegem e que nos permitem
ser lida como um instrumento de análise da alma abandonar a nossa zona de conforto, mas se a
humana, essencial para o estudo fenomenológico dos função do habitar não estiver consolidada, nem
valores da intimidade do espaço interior; e assim como os muros mais sólidos serão capazes de nos
#20 Vista da cozinha refere Álvaro Siza: “A casa é o eu de cada um. proteger.
da Vill’Alcina, Sérgio
Fernandez, Caminha, (…) A casa é eu e nós, conforme se queira.”73 A primeira casa manifesta-se: “os
2021
“Através das memórias das casas que habitámos, verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo
além de todas as outras que sonhamos habitar, é o passado vem viver, pelo sonho, numa casa
possível isolar uma essência íntima e concreta que nova.”76 As imagens da antiga casa permitem-nos
seja uma justificação do valor singular de todas recuar à infância imóvel onde encontramos fixações de
as nossas imagens de intimidade protegidas.”74 – felicidade. A casa permite o sonho e o devaneio;
esta é a questão central lançada por Bachelard.
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integra o pensamento e a experiência que de certo modo, uma dimensão concreta que não
fortalecem a condição da existência humana. lhe é inerente.
Será sempre associada ao primeiro universo As memórias individuais, vividas
do homem, o abrigo antes de se lançar sobre o na plenitude da solidão, marcam a nossa
mundo que o envolve. personalidade e são indissociáveis do nosso ser.
A título de exemplo, Bachelad refere que mesmo
“Casa, aba da pradaria, ó luz da tarde, que já não se tenha um sótão, não se apaga
De súbito adquires uma face quase que se tenha amado um sótão. Os espaços que
humana. vivemos na solidão e que armazenam as nossas
Estás perto de nós, abraçando, lembranças fazem parte da nossa existência:
abraçados.” 77
“Uma casa construída no coração
Na casa encontramos a nossa referência Minha catedral de silêncio
espacial no universo, a coordenada do nosso Cada manhã retomada em sonho
ponto de partida, a nossa ligação umbilical com E cada noite abandonada
o mundo físico. Apesar do lugar objetivo que a Uma casa coberta de aurora
casa ocupa, é, ao mesmo tempo, um organismo Aberta ao vento da minha mocidade.” 79
dinâmico e complexo onde depositamos as
#22 Barbara and nossas memórias. Assim, o espaço limitado da É neste sentido que a Poética do Espaço,
Michael Leisgen,
‘Mimesis - Kornfelder realidade que nos circunda confunde-se com as de Bachelard nos permite compreender que há
[Mimetic - Cornfields]’,
1971 suas próprias impressões. A casa (material), as suas um enraizamento complexo do Ser com o lugar,
paredes, janelas e portas, confundem-se com o que permite afirmar a simbiose entre a memória
calor, o aconchego, a relação de dentro para fora e a arquitetura, uma vez que a arquitetura
com a paisagem. materializa a memória e a memória funciona
Partindo do geral para o particular, como ferramenta essencial no momento de criar.
Bachelard entra em maior detalhe quando se Como será enunciado no texto Feito de
refere ao porão, ao sótão, cantos e corredores. memória. Do real e do imaginário, acreditamos que
A explicação da casa deixa de ser genérica para a arquitetura é a vida, é o invólucro que nos
se focar nas suas partes e nas relações que permite ser mais autênticos, mais humanos. Sem
estabelece com as mesmas. A este estudo chama arquitetura não existe sonho, nem devaneio. Não
topoanálise: “o estudo psicológico sistemático dos existe vida.
locais da nossa vida íntima”78, e que permite
compreender que não nos conhecemos através
do tempo, mas pela necessária fixação num
espaço. O espaço retém o tempo atribuindo-lhe,
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nos de certa forma na ação, que recordamos determinada pessoa, num determinado lugar.
sem fazermos parte dela. No fundo, é como Com pública, queremos dizer que a memória
se existissem diferentes anéis de memórias. No se relaciona com qualquer aspeto oposto
primeiro núcleo estão as pessoas que viveram ao universo íntimo do Ser. “Público significa
diretamente e que, por isso, recordam e relatam em campo aberto, no koinos cosmos [mundo
na primeira pessoa o sucedido; num segundo partilhado], onde a discussão com os outros é
núcleo estão as pessoas ligadas por algum tipo possível, mas onde se está também exposto e
de afinidade às pessoas ou lugares onde se deu o vulnerável, onde as limitações e falibilidades são
evento; e um terceiro, onde estão as restantes que demasiado aparentes.”87
moldaram as suas lembranças através de relatos,
dos media, da literatura ou do cinema. A memória “A memória pública não é uma busca
coletiva é, por isso, uma memória plural que se nebulosa que pode ocorrer em qualquer
distingue de memórias individuais e sociais. lugar; acontece sempre num determinado
A memória pública é influência pelos três lugar.”88
tipos de memória já mencionados. Ainda que
possa ser muito ampla, a memória pública depende, A existência de uma memória pública
em todo o caso, da perceção individual de cada depende da arquitetura. É através dos lugares de
um e por isso, está diretamente relacionada com encontro que as pessoas se relacionam e inserem
a memória individual. A memória social permite num contexto. Neste caso em concreto, o espaço
afirmar relações, adindo identidades e pontos público é vital para o processo de memorização.
de vista distintos, que ultrapassam a experiência A memória pública permite assentar a identidade
individual e que nos inserem num núcleo de coletiva de uma sociedade e fomentar o
proximidades e afetos. Já a memória coletiva, em diálogo; “é um horizonte contínuo à volta da
contrapartida, tem uma influência negativa arena pública”89 Este horizonte possibilita a
na memória pública, na medida em que, está construção de pensamentos e permite-nos olhar
implícita a partilha de uma memória sem que se para e sobre o outro. Nesse horizonte avistamos
estabeleçam relações entre quem a lembra. um futuro, através do confronto entre o passado
A memória individual e a memoria social e o presente.
são dois círculos interiores da memória pública, É o lugar que nos permite olhar este
enquanto a memória coletiva é “o seu perímetro horizonte; ajuda à construção das memórias,
exterior, a rede solta dentro da qual eventos e não só pela sua capacidade de nos colocar no
objetos são recordados”86 em comparação com mundo e estimular a nossa capacidade de nos
as memórias de outros e, portanto, de forma lembrarmos, mas também porque é através dos
oposta à recordação da memória individual, de uma lugares construídos que se criam relações de
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proximidade; não numa questão de intimidade, possui apenas uma dimensão temporal. A
mas naquela que é a construção de uma sociedade memória é corporificada93. É necessário colocar
e de um pensamento comum. Fernando Távora o corpo no espaço94, conferindo à memória
refere, em Da organização do Espaço, que o uma dimensão espacial, “o mundo é refletido
arquiteto deve alcançar “(…) a forma justa, a no corpo e o corpo é projetado no mundo.”95
forma correta, a forma que realiza com eficiência No entanto, o Ser é um organismo dinâmico
e beleza a síntese entre o necessário e o possível, e a memória não possui uma dimensão fixa,
tendo em atenção que essa forma vai ter uma no tempo e no espaço. Como já referido, a
vida, vai constituir circunstância.”90 interdependência entre o Ser e a memória está
diretamente relacionada com a interdependência
“Apreendemos desmedidamente; o que do Ser e do lugar, o que significa que memória e
aprendemos reaparece dissolvido nos lugar estão diretamente relacionados.
riscos que depois traçamos.”91 A memória está, presente na ação
projetual, não de forma direta ou mimética,
A memória existe no Ser como um mas por via do inconsciente; como explica Aldo
atlas de vivências. Há em nós imagens com Rossi, “nos projetos, também a repetição, a
diferentes graus de clareza que funcionam como colagem, a deslocação de um elemento desta para
#26 ‘Bonjour Tristesse’,
Álvaro Siza, Berlim,
ferramentas operativas no nosso quotidiano. aquela composição nos coloca perante um outro
2019
Imagens muito presentes e reais; outras que se projeto que queremos fazer, mas que também é
manifestam apenas por via do inconsciente. memória de uma outra coisa.”96 Há um processo
Através das nossas lembranças implícito no pensamento do arquiteto que tem
revisitamos o que é, no fundo, uma impressão como base: experienciar – memorizar – esquecer
do passado e, na impossibilidade de reviver um – lembrar. Este processo que está diretamente
determinado momento, tentamos reviver a sua relacionado com o esquecimento como síntese, será
dimensão espacial. As nossas memórias colocam mais à frente aprofundado.
o nosso corpo no espaço92; estão em nós através
dos lugares vividos e movem-se connosco, “Quando estou a projetar, encontro-me
sem perder o seu vínculo de origem, onde frequentemente imerso em memórias
regressamos em sonhos e pensamentos. antigas e meio esquecidas, e questiono-
Nesse sentido, e ao contrário do que me: qual foi precisamente a natureza desta
muitas vezes consideramos, a memória não situação arquitetónica, o que significava
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103 GREGOTTI, Vittorio, O Outro, prefácio: Siza, Álvaro, Imaginar a Evidência, p.27
104 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p.12
105 Referência ao texto Oito Pontos presente no livro 01 Textos de Álvaro Siza
106 SIZA, Álvaro, op. cit., p.22
107 ROSSI, Aldo, op. cit., p.27
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sempre relações com estes objetos porque anónimo nas suas representações e fotografias
nos lembram emoções, momentos, coisas. Os é, na realidade, um edifício que aconchega os seus
arquitetos não podem desenhar este layer. Por habitantes na intimidade da casa. Os espaços
esta razão a estrutura tem de ser simples. A habitados pelo quotidiano são ricos em objetos
arquitetura tem de obedecer a este princípio de e peças que se associam a viagens, pessoas e
austeridade para poder receber. A sua função é afetos, e que desenham esta segunda camada de
ir recebendo.”108 memórias que não está ao alcance do arquiteto.
No edifício de apartamentos da Seguindo um princípio enunciado por
Forsterstrasse, em Zurique, do arquiteto Christian Peter Zumthor no livro Pensar a Arquitetura,
Kerez, encontramos a mesma segunda arquitetura109 podemos afirmar que, apesar da sua dimensão
abordada por Eduardo Souto de Moura. O edifício onírica, a arquitetura tem o seu lugar no mundo
apresenta uma estrutura sólida e clara de paredes concreto, “encontra-se numa ligação física
estruturais sem subdivisões. Não existe qualquer especial com a vida”, não propriamente como
#31 Walter Mair,
hierarquia ou distinção do uso dos espaços110, uma “mensagem ou sinal, mas invólucro e
‘Apartment building
on Forsterstrasse’,
construídos com recurso às mesmas técnicas e cenário da vida, um recipiente sensível para o
Christian Kerez,
Zurich, 2003
materiais. As divisões estão interligadas entre si, ritmo dos passos no chão, para a concentração
permitindo a circulação fluida pelos espaços. As do trabalho, para o silêncio do sono.”111 Maurice
grandes paredes de vidro que fecham o edifício Merleau-Ponty refere que a intenção das pinturas
no seu perímetro ligam o interior e o exterior, de Cézanne é “tornar visível como o mundo nos
afirmando uma ideia de conjunto presente em toca”112; também este pode ser o propósito da
toda a conceção do edifício. O betão das paredes arquitetura.
interiores adquire um sentido único através dos Peter Zumthor afirma que “os materiais
reflexos verdes e azuis da paisagem exterior que podem assumir qualidades poéticas”113, no
invadem o espaço, como se a textura do betão entanto, os materiais em si mesmos não
estive ao alcance de ser manipulada pela própria são poéticos: é necessário conjugá-los com
natureza. Na mesma lógica mencionada por coerência de forma e sentido. Este sentido, a que
Souto de Moura, também aqui estão presentes o Zumthor faz referência, ultrapassa questões de
rigor e austeridade no tratamento arquitetónico linguagem e composição, diz respeito à essência
dos espaços, não como objetivo final do projeto, do objeto, no momento em que são atribuídos
mas como meio para a coesão da sua diversidade significados aos seus materiais, que não seríamos
espacial. O edifício que se esconde na vegetação capazes de sentir da mesma forma em nenhum
que o envolve e que conhecemos como outro objeto. Importa por isso, entender de que
108 MOURA, Eduardo Souto de, in, CREMASCOLI, Roberto, MILANO, Maria, Eduardo Souto de Moura: Gosto de Chegar a Casa, Coleção: A Casa de
Quem Faz as Casas, p.31
109 MOURA, Eduardo Souto de, in, CREMASCOLI, Roberto, MILANO, Maria, Eduardo Souto de Moura: Gosto de Chegar a Casa, Coleção: A Casa de
#32 Edifíco de Quem Faz as Casas, p.27
apartamentos na 110 KEREZ, Christian, Uncertain Certainty, p.32
Forsterstrasse, 111 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p. 12
Christian Kerez, 112 MERLEAU-PONTY, Maurice cit in PALLASMAA, Juhani, Olhos da Pele, p. 43
Zurique, 2021 113 ZUMTHOR, Peter, op. cit., p. 10
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diagramas, sem utopia, sem projeção, apenas sem memória, não existe memória sem ideias,
a presença das coisas. A sua juventude ideológica não existe arquitetura sem habitante.”120
tinha finalmente terminado.”116 Internado num
“(…) pequeno quarto no rés-do-chão junto
a uma janela donde via o céu e um pequeno
jardim”117, experienciou uma sensação de
impotência e imprevisibilidade, que o aproximou
do que poderia ser a conceção da morte. O
corpo é casa; e em cada dor sentia a presença
de cada elemento da sua estrutura anatómica.
“Em Slavonski havia identificado a morte com
a morfologia do esqueleto e com as alterações a
que este pode estar sujeito.”118. Torna-se assim
#36 Nuno Cera,
‘Untitled (Aldo Rossi, inegável a associação entre o esqueleto de Modena
San Cataldo)’, 2009
e este acontecimento marcante na vida de Aldo
Rossi, também apontada por Kersten Geers,
em Without Content: Aldo Rossi “traduziu o seu
estado físico imanente, deitado e a olhar através
da janela, numa série de molduras no desenho do
seu cemitério.”119
Assim, as memórias não são colagens,
nem referências diretas no projeto, mas estão
presentes e ajudam a construir a intuição e o gesto.
A memória tem, por isso, este duplo sentido de
construtora indireta de espaços e, ao mesmo
tempo, futura habitante. A memória do arquiteto
ajuda-o na conceção da ideia; a memória do
utilizador dá vida ao espaço. Será a obra vazia,
inabitada, arquitetura? Se arquitetura é, como
acreditamos que seja, a própria vida, só começa
com o habitar a casa, com as experiências, com
os diferentes momentos que marcam a nossa
passagem no tempo, e no mundo. Porque “não
existe arquitetura sem projeto, não existe projeto
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Sobre as coisas que colecionamos: um atlas vivo Aprendemos, desde a nossa infância, a
colecionar fragmentos da nossa memória: os
a·tlas álbuns de fotografias de família e as coleções
(latim Atlas, -antis, do grego Átlas, -antos, Atlas,
mitónimo [titã da mitologia grega que devia sustentar que vão desde os autocolantes comemorativos,
o céu])
aos pacotes de açúcar, moedas ou conchas da
1. Livro de mapas geográficos.
2. Volume de ilustrações elucidativas de um praia... qualquer que tenha sido a coleção e o
texto ou de uma área do conhecimento (ex.: tempo que lhe dedicámos, esta é uma virtude
atlas de anatomia)
3. [Anatomia] Primeira vértebra do pescoço, que adquirimos desde muito cedo e que está
entre o crânio e o áxis.121 ligada ao nosso instinto natural. Desde o
paleolítico que o homem primitivo recolhe e
Até este momento referimo-nos, organiza elementos que extrai da natureza, de
sobretudo, à memória que se manifesta de forma a melhor compreender o que o rodeia.
forma inconsciente. Mas referimo-nos também Este instinto permanece na nossa essência e, por
à vida, e às coisas, a uma segunda arquitetura. isso, temos tendência para trazer connosco parte
#37 Nadav Kander A nossa memória e a maneira como a ela dos lugares que visitamos.
‘Signs We Exist, Torn
Posters’ recorremos, acontece, como já explicámos, de Numa experiência proporcionada pela
forma espontânea, na resposta a determinados participação no Porto Academy Summer School
estímulos. Surge, por vezes, sem a procurarmos, 2021, com o estúdio Mary Duggan, visitamos a
permanecendo no mistério que é ainda o cérebro Casa Alves Costa de Álvaro Siza e a Vill’Alcina
humano. de Sérgio Fernandez. No enunciado, foi-nos
No entanto, existem formas de representação a pedido que, através das memórias evocadas
que recorremos para, de algum modo, acedermos pelo lugar, desafiássemos a nossa metodologia
às nossas memórias de forma consciente, e da prática do projeto e considerássemos formas
que são como uma muleta no momento de as alternativas de criar matéria, com base em dois
armazenar e classificar em gavetas122. Estes depósitos domínios: Dreaming & Making [sonhar e fazer]
constituem um importante papel naquela que é a e Action [ação]. Durante a visita deixámo-nos
ligação entre as coisas e a sua reminiscência. absorver pela paisagem e natureza envolventes
#38 Frame do filme ‘La
Collectionneuse’, Eric e fizemos, como ditou a nossa intuição, a recolha
Rohmer, 1967
“Há uma pessoa que faz coleção de areia. de pequenas lembranças: elementos extraídos da
Viaja pelo mundo e, quando chega a natureza que pudessem, de certa forma, traduzir
uma praia de mar, à orla de um rio ou de as nossas sensações e emoções. Desta viagem
um lago, a um deserto, a uma charneca, resultaram discussões pertinentes acerca da
recolhe um punhado de areia e carrega -o experiência individual de cada um; partilharam-
consigo.”123 se memórias que posteriormente traduzimos
121 “atlas”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, disponível em: https://dicionario.priberam.org/atlas [consult. 05-10-2021]
122 BERGSON, Henri, L’évolution créatrice cit in BACHELARD, Gaston, Poética do Espaço, p.88
(“A memória, como tentamos provar, não é a faculdade de classificar lembranças numa gaveta ou de inscrevê-las num registo. Não há registo, não há gaveta…”)
123 CALVINO, Italo, Coleção de areia, p.11
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em matéria. O resultado final foram peças em vida e sobre a vida – e não só sobre a arte (ou a
gesso, ao qual adimos elementos naturais crus arquitetura); e porque acreditamos que existam
que lembrassem o lugar, sem uma evocação resultados efetivos na afetividade que advém dos
demasiado direta. As peças abstratas são uma pequenos sinais que animam o quotidiano.
reinterpretação das divisões da Vill’Alcina, que
conservam a memória individual de cada um, “Qualquer atlas tem inerente à sua ambição
enquanto completam um conjunto coeso e totalitária uma entropia, que poderemos
harmonioso, naquela que seria a passagem para classificar desumana, consequente
uma memória coletiva. com um excesso de informação
Na arquitetura, mais do que um arquivo inassimilável. A incomensurabilidade
categorizador, interessa a mutabilidade de um da informação disponível na internet é
atlas [vivo], o caos, da ordem necessária. Esse muito provavelmente a melhor ilustração
cosmos que nos permite tomar decisões é o meio desta utopia, ou melhor, distopia,
onde se dão as ideias, as discussões e debates porque a ganância intrínseca desse meio
(interiores), enfim, o projeto. castiga-nos com uma inconsciência de
Organizar, nas palavras de Gonçalo M. impossibilidade. Impossibilidade de
Tavares, é arrumar e limpar os obstáculos do controlo, de limite, de conteúdo.”125
que já existe. Organizar é tornar útil o passado
e é, de certa maneira,”(…) direcionar o que já O termo atlas, por si só, tem implícita
se pensou, o que já se fez, o que já se falou; e a dimensão que ultrapassa a de uma pequena
direcionar significa dizer com as ações: isto vai coleção. O atlas requer uma (des)contrução
para aqui, aquilo vai para ali.”124 contínua das ideias que lhe são inerentes. Não
A coleção, ou o atlas vivo, como aqui lhe que se devam definir demasiadas regras, mas
chamamos, é o reflexo da fragilidade humana. devemos ter presente uma lógica de recolha e
Colecionamos por medo do esquecimento; organização que não seja demasiado ambiciosa,
o medo do esquecimento da nossa própria num processo que está em constante mutação. O
existência. Ao mesmo tempo, através de um formato em que se apresenta pode ser variado,
atlas, podemos viajar e voltar aos lugares onde – quer seja o formato físico sobre a mesa ou a
fixamos a nossa felicidade. No caso concreto dos parede, quer seja em formato digital em sites ou
atlas de imagens dos arquitetos e artistas, no Instagram – e pode ter intenções distintas de
interessou-nos particularmente o Atlas de comunicação. Pode ser parte de um processo
Gerhard Richter, por dois motivos distintos: o de trabalho que comunica a nível interno e que
primeiro, por existir uma afinidade com o artista permanece no íntimo do seu criador. Ou, no
que é anterior à elaboração desta dissertação, e caso dos atlas que encontramos online, há, por
o segundo porque se trata de uma coleção de vezes, uma clara intenção de o comunicar, não
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126 MULISCH, Harry, Die Prozedur, cit in HELMUT, Friedel, Gerhard Richter. Atlas, p.5
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127 ELGER, Dietmar, in ELGER, Dietmar, FRIEDEL, Helmut, Gergard Richter: Atlas, Dresden, disponível em: Gerhard Richter: Atlas » Videos » Gerhard Richter
(gerhard-richter.com)
#43 Gerhard Richter, 128 RICHTER, Gerhard, cit in, ELGER, Dietmar, in ELGER, Dietmar, FRIEDEL, Helmut, Gergard Richter: Atlas, Dresden, disponível em: Gerhard Richter: Atlas »
‘Sonnenuntergän’, 2002 Videos » Gerhard Richter (gerhard-richter.com)
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a memória que habitamos
#45 ‘Autobiografia
Iconográfica’, Valerio
Olgiati
93
2 memória (i)material
memória (i)material
sobre a memória como experiência
“Olho para esta fotografia e automaticamente sou levada a uma das fases mais bonitas da
minha vida. O cheiro a erva-doce e as alfarrobas são o que mais vivo tenho na minha memória.
Era um terreno do meu avô. Era muito grande, sobretudo para alguém que naquela altura era
tão pequena. A casa velha que existia naquele terreno, que era realmente velha, era onde o meu
avô tinha passado a sua juventude. Lembro-me de entrar por lá às escondidas… A casa, já em
ruína aquando da fotografia, era pequena, com apenas um piso e talvez meia dúzia de divisões.
Na parte de trás havia um estábulo onde curiosamente o meu avô escrevia nas paredes as
datas de nascimento dos animais. No exterior da casa havia uma cisterna – onde me divertia
bastante a atirar pedras para o seu interior – e um pequeno muro em seu redor – onde eu estou
sentada na fotografia. Não me recordo em particular deste dia, mas recordo-me deste espaço
sem paredes, pela sua dimensão que, para mim, parecia não ter limites; recordo-me do mar
ao fundo e dos figos pretos que ia comendo. É sem dúvida um espaço da minha infância que
recordo e caracterizo com a mesma inocência de criança. Ficaram as fotografias e uma saudade
enorme dos figos secos do meu avô.”131
131 Descrição de uma fotografia escrita para um trabalho, no âmbito da cadeira de TGOE, no ano letivo 2015/2016, acerca de uma memória de um espaço de infância
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A Arquitetura tem, por isso, a
capacidade de eternizar a memória
no tempo. Relembro as memórias
que não foram vividas por mim, mas
que são também um pouco minhas
através desta arquitetura; essas
primeiras memórias, que estão
também no gesto e no pensamento,
e que fazem parte da minha
arquitetura. O imaterial existe
em nós através da materialidade
das coisas, através da memória que
coloca o nosso corpo no espaço.
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Do Porto: Piscina das Marés
132 Excerto retirado do trabalho Piscina da Conceição. A construção de um projeto de arquitetura, realizado no âmbito da cadeira de História da Arquitetura
Contemporânea, no ano letivo 2017/2018, com Ana Francisca Silva, Francisco Oliveira, Luís Miguel Costeira e Maria Miguel Trindade
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Chegámos à rampa, que descemos da obra para com estes jovens
até ficarmos entre paredes ainda estudantes, nas proporções dos
a céu aberto; estabelece-se espaços, na materialidade do betão
uma relação terra-céu. Sentimo- cor de areia e na madeira escura,
nos absorvidos, ansiosos com o nas peças de zinco que rematavam
passo seguinte. Permanecemos a cobertura, nos elementos
entre estes muros durante alguns metálicos que encontrámos nas
minutos, atentos às explicações juntas… no detalhe, na ideia
do professor José Manuel Soares. de percurso: a rampa que nos
Expectantes avançamos até ao convidava a entrar para depois
interior dos balneários, escuros, sermos levados numa viagem de
húmidos, com um ar de cavername. descoberta, que se prolonga até
Parámos. O ar frio do inverno hoje, em que todas as etapas
confere ao espaço uma mística parecem pensadas, porque o
distinta, imprevisível – sobretudo são realmente. Senti naquele
porque estávamos na presença momento, com ingénua pretensão,
de um programa pensado para a que a Piscina das Marés tinha
estação mais quente do ano. O sido desenhada para envolver os
silêncio. Há algo de monumental estudantes de arquitetura e não
naquela atmosfera, ao mesmo os deixar partir – ou o contrário.
tempo tão desprovida de qualquer Acredito que estes momentos de
monumentalidade. Em nenhum contacto direto com certas obras
momento senti que aquele espaço são essenciais para a compreensão
tinha sido feito (apenas) para o do que é este interesse pela
verão. arquitetura. Esta empatia que
julgo que muitos de nós sentimos,
Naquela altura ainda não conhecia
mas que se calhar não chegou a
a obra de Siza com rigor, mas
outros, mas que é determinante.
recordo-me que senti a empatia
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109
O meu segundo contacto com
as Piscinas foi indireto, mas
detalhado, através do estudo da
obra, para as cadeiras de História
da Arquitetura Contemporânea
e Teoria 2, no 3ºano. Conheci
(também) através desta obra, e
pelos olhos de Álvaro Siza, os
grandes mestres da Arquitetura
Moderna, Alvar Aalto, Frank Lloyd
Wright e Le Corbusier.
Finalmente, visitei a obra de
pés descalços. Nadei na Piscina
das Marés, em agosto de 2021. Nos
tempos estranhos que vivemos não
pude entrar pelos balneários,
fazer o habitual percurso, o
expectável. Quero voltar. Não
fossem os tempos estranhos, seria
outra coisa; queremos sempre
voltar.
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113
De Berlim: The Feuerle numa sala escura, a Sound Room;
Collection silêncio. Somos completamente
absorvidos naquele momento, não
sabemos o que esperar. Entre o
Do exterior vemos um edifício cru,
silêncio ecoam notas musicais
em betão. Impõe-se com uma certa
subtis, como sons da natureza
austeridade. Estamos frente a um
em completa harmonia com o
bunker construído em 1942, durante
espaço; sentimos a humidade no
a Segunda Guerra Mundial, em
ar, o bunker que na sua essência
Kreuzberg, Berlim.
construtiva continua a ser um
bunker; é a Music for Piano No.
Não sabemos para o que vamos. 20 de John Cage que estamos a
ouvir. A composição de John Cage
é arquitetura; quase como se lhe
A entrada não é óbvia e o pudéssemos atribuir dimensão,
edifício parece encerrado. Quando escala e proporção; está, também,
descobrimos a entrada, somos a desenhar aquele espaço e a
recebidos por um segurança que envolver-nos. De repente não
rapidamente nos encaminha para existe mais nada; o momento é
um espaço fechado com algumas de reflexão e meditação. Estamos
portas que nos levarão depois até submersos no espaço quando a
ao início desta experiência. A nossa visão se começa a adaptar.
visita é feita apenas por marcação Compreendemos que aquele espaço
e para pequenos grupos. Reunidas é a transição entre o mundo
as pessoas que se juntam a nós – exterior e o que estamos prestes
a mim, ao Gui e à Joana –, somos a viver. O nosso corpo repele a
convidados a deixar os nossos escuridão, mas pela nossa natureza
pertences numa zona de cacifos; e instinto, em poucos minutos
telemóveis e máquinas fotográficas, desvanece-se para nos deixar ver
não são permitidos. as esculturas Khmer que surgem
repentinamente.
Estamos no piso subterrâneo
114
memória (i)material
115
116
memória (i)material
#58 Nic
Tenwiggenhorn, John
Pawson, The Feuerle
Collection, Berlim
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memória (i)material
119
Da Suiça: La Congiunta
120
memória (i)material
#61 Zugersee,
Suíça, 2021
121
A relação com o museu é de
intimidade. Espera-se que o
visitante se aproprie do espaço.
O museu deve ser aberto por nós
com a chave que se encontra numa
osteria perto de La Congiunta.
O pequeno restaurante, que fica
no rés-do-chão de uma casa com
dois andares independentes,
estava fechado devido à
pandemia. Ficámos, naturalmente,
desapontados. Tínhamos ansiado
muito por aquele momento. Ter a
chave de um museu na mão é, diga-
se, bastante empolgante. Tocámos
à campainha de um dos andares
e fomos recebidos por um senhor
que, entre barreiras linguísticas,
acabou por nos compreender e
levar-nos até à casa dos donos da
osteria.
Finalmente estávamos a caminho
de La Congiunta. O percurso é
muito bonito. Giornico fica num
vale, rodeado por vinhas; é uma
localidade pequena e não se vê
ninguém nas ruas; apenas uma
pizaria que estava aberta lhe
dava algum movimento. As casas
de antigos vinicultores são
pitorescas, em pedra e telhados
de xisto. Duas pontes de pedra
antigas atravessam o rio Ticino
e levam-nos até ao outro lado da
margem. Uma pequena ilha forma-
se entre as pontes. Entre casas
e ruas estreitas avistámos, ao
longe, a La Congiunta.
122
memória (i)material
#63 Museo La
Congiunta,
Peter Märkli,
Giornico, 2021
123
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memória (i)material
#64 Museo La
Congiunta,
Peter Märkli,
Giornico, 2021
125
126
memória (i)material
#65 Museo La
Congiunta,
Peter Märkli, Espaço-tempo. Luz-sombra. Arquitetura-
Giornico, 2021
paisagem. Natural-construído.
127
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memória (i)material
#66 Zugersee,
Suíça, 2021
129
De um lugar entre: Vill’Alcina
“Sala de Estar
O volume construído é uma abstração da
sala de estar de Vill’Alcina. Pretendíamos
compreender a simbiose entre a
natureza e o homem feita através da
nossa memória do lugar. O objetivo era
abstrair e interpretar os elementos que
permaneciam nos nossos sonhos. Acedida
através da cozinha e do corredor, a sala
abre-se em direção à paisagem. Através
do canto aberto, o ar e o cheiro do mar
fluem através da sala. A vista sobre a
foz do rio Minho é traduzida com uma
subtração. A essência do mar é traduzida
através do uso da areia como um material.
A cozinha e a sala estão ligadas através
da lareira e da chaminé que enfatiza o pé
direto duplo. O cilindro materializado
com cinzas, representa o fogo: o fogo
como uma sensação de conforto e o fogo
como uma sensação de perigo. Ambos os
elementos se traduzem num objeto que
representa as experiências interiores e
exteriores da casa.
“O fogo quase tocou a casa”.
Sergio Fernandez” 133
133 Texto acerca da sala de estar da Vill’Alcina, realizado no âmbito do Porto Academy 2021 (Estúdio Mary Duggan, com Edda Meinertz e Tomas Rofrano Arcos
(originalmente escrito em inglês)
130
memória (i)material
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memória (i)material
133
134
memória (i)material
134 Testemunho relativo à visita realizada à obra no âmbito do Porto Academy 2021
135 Testemunho relativo à visita realizada à obra no âmbito do Porto Academy 2021
135
virar para a porta de entrada à
esquerda, numa cota mais baixa.
Aos poucos, os nossos corpos
movimentam-se expectantes,
incapazes de abandonar a paisagem
que já nos tomou como parte dela.
136
memória (i)material
137
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memória (i)material
139
140
memória (i)material
#73 Vill’Alcina,
Sérgio Fernandez,
Caminha 2021
141
«Projetar: há um princípio quase em nebulosa,
raramente arbitrário.
Motivação
147
148
dar lugar à memória
136 Arquivo Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, O Berço do Concelho, disponível em: http://arquivo2020.cm-reguengos-monsaraz.pt/pt/site-municipio/
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138 OLIVEIRA, Catarina, op. cit., disponível em: http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-
em-vias-de-classificacao/geral/view/70568/ [consult. maio 2021]
139 Informações presentes no enunciado de concurso Site Tower ( January 21, 2021 - May 08, 2021), fornecido por ArkxSite
149
20 50 100 m
150
dar lugar à memória
#76 Planta de
implantação
151
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dar lugar à memória
153
154
dar lugar à memória
155
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dar lugar à memória
157
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dar lugar à memória
#81 Esquissos do
projeto
159
160
dar lugar à memória
142 Texto presente no painel do concurso, entregue a 08/05/2021 (originalmente escrito em inglês)
161
162
dar lugar à memória
163
164
dar lugar à memória
165
166
dar lugar à memória
167
4.
3.
2.
1. Entrada
2. Espaço de informação
3. Descanso /Vista sobre a paisagem
4. Miradouro
2 5 10 m
168
dar lugar à memória
1.
169
170
dar lugar à memória
cationalVersion
5 10 25 m
173
174
dar lugar à memória
175
+281.90
+260.8
+260
+257
2 5 10 m
176
GSEducationalVersion
dar lugar à memória
177
178
dar lugar à memória
179
180
dar lugar à memória
#96 Amostras do
estudo da materialidade
da ‘Torre’
#97 Maquete da ‘Torre’
em corte, vista exterior
181
182
dar lugar à memória
183
184
4 epílogo(s)
185
186
epílogo(s)
187
188
epílogo(s)
linguagem que é: sistema de referências, casa e rapidamente sair para brincar. Brincava na
RELAÇÃO, espaço plástico gerido por rua da escola primária. Naquela altura, o espaço
cada um e por todos. É a linguagem entre a minha casa e a escola era uma membrana
que preenche o espaço entre as pessoas; muito fina. Essa liberdade inerente ao espaço
é no envolvimento da linguagem que se da rua fez-me curiosa. O brincar estava muito
processa a comunicação. próximo do aprender, e encontrava o mesmo
A criança precisa de ter ESPAÇO para prazer em ambas.
descobrir e se descobrir, para se ver ao Quando fui estudar para o Porto, voltei
espelho, no OUTRO, nos outros, para a habitar a rua da escola numa estranha sensação
que alguém lhe possa estender as mãos, de reconhecimento. E a certa altura é muito fácil
para que ela receba a mensagem da romper a membrana que separa a casa e a escola.
cultura, para que a criança possa adquirir
sabedoria, para que possa ter um nome,
pôr nomes e criar OBRA que contribua III.
para enriquecer o património cultural
da comunidade. A criança precisa de ter “Nós pedimos apenas um pouco de
espaço para criar tempo. Tempo para ordem para os protegermos do caos. Nada
brincar, tempo que seja TODO, TEMPO é mais doloroso, mais angustiante, do que
INTEIRO. Para sentir, aprender, um pensamento que se escapa a si mesmo,
pensar... nas coisas sérias da vida... no ideias que fogem, que desaparecem
brincar. Para que possa ler na Natureza, mal são esboçadas, já corroídas pelo
nas Pessoas e nas Coisas. Antes que seja esquecimento ou avançando para
tarde, antes que chegue a escola. outras, sobre as quais não temos maior
A escola ensina, ou deveria ensinar, domínio. São variabilidades infinitas
a comunicar à distância – no tempo cujo desaparecimento e aparecimento
e no espaço – mas só depois de as coincidem. São velocidades infinitas que
crianças e dos mestres entenderem que se confundem com a imobilidade do nada
a comunicação escrita é um instrumento incolor e silencioso que elas percorrem,
intermediário da cultura e não a própria sem natureza nem pensamento. É
cultura.”144 o instante de que não sabemos se é
demasiado longo ou demasiado curto
A minha primeira escola ficava na rua de para o tempo. Recebemos chicotadas
minha casa. Apesar do seu espaço limitado senti que estalam como artérias. Perdemos
sempre a escola como uma extensão da casa. continuamente as nossas ideias. É por
Saía cedo da escola para fazer os trabalhos de isso que nos queremos tanto prender a
opiniões fixas.”145
189
190
epílogo(s)
Procuramos, continuamente, categorizar ferramenta, como atlas vivo, que é individual, mas pode
as nossas ideias dentro das opiniões fixas, à ter uma dimensão coletiva); 5. as memórias gravam-se na
procura de uma segurança que lhes confira a matéria? (a arquitetura é concreta, real, mas chegamos
credibilidade necessária. Os pensamentos devem a ela por via do imaginário onde habitam as nossas
ser soltos para que se cruzem e interliguem. O memórias; o sentido que conferimos a um determinado
trabalho criativo não deve ser limitado, deve ser material está relacionado com a nossa perceção sobre o
arriscado e assumir o erro possível, muitas vezes, lugar em confronto com as nossas próprias memórias);
necessário. 6. como colecionamos memórias? (o ato de colecionar está
A memória deve ser livre e não dominada diretamente relacionado com o nosso instinto humano de
por versões que a deturpam e apropriam. As nos apropriarmos do que nos rodeia; colecionar é um ato
memórias pertencem ao Ser. que preserva a memória e que previne o esquecimento;
o atlas pressupõe uma organização clara que traduz
diferentes relações, e desse relacionar surge a reflexão, a
IV. pertinência e o diálogo).
Dou por terminada uma jornada que não A memória (i)material é a memória colocada
se esgota em si mesma. Daqui parte-se para em potência. É a síntese de um conjunto de
um novo ponto com a consciência de que é experiências que cruzam diferentes tempos e
necessário partir para regressar. lugares – o Algarve da infância, o Porto e Berlim
do percurso académico, a Suíça do início da
Na memória que habitamos encontramos experiência profissional, e o que chamei lugar
a nossa base, as memórias da infância e o que entre, que se refere à Vill’Alcina visitada em dois
nos molda enquanto parte de um universo. O períodos distintos, mas igualmente importantes:
arquiteto, antes de o ser, é pessoa. E por isso, o início e o fim do percurso –, que acredito
antes de ser arquiteta, quis compreender o que terem influenciado de forma direta o meu
me move, como me posiciono em relação a uma crescimento e que me permitiram compreender
determinada ação, porque reajo a determinados que a arquitetura, nas palavras apropriadas de
estímulos, … no fundo, onde me leva a minha Sérgio Fernandez, não garante a felicidade, mas pode
memória. A base teórica que se procurou ser o lugar da felicidade, um meio para que se possa
fundamentar, sem uma regra ou lógica demasiado atingir a felicidade.
evidente, segue um desencadear de respostas às
seguintes perguntas: 1. quando começa a memória? O dar lugar à memória subentende dois
(na infância); 2. como se criam as memórias? (através da princípios: o de priorizar a memória como
nossa visão sobre o mundo); 3. quais são as memórias? peça chave na ação projetual e a de conferir,
(as memórias que referenciam o nosso gesto e que não efetivamente, um lugar onde esta possa habitar.
estão associadas a esta proliferação da imagem que Na integração do projeto na dissertação surgiu a
enfrentamos, mas sim às nossas imagens, às imagens do dificuldade de a escrita ir além da materialização
nosso Ser); 4. mas o que é a memória? (a memória como concreta da ideia. É difícil escrever sobre
191
192
epílogo(s)
193
194
«Vou dizer como foi: aluguei uma casa. Só tinha uma cama para pôr lá dentro, mais nada. Bom. Alguns
livros e um gira-discos. Sim. Pois meti tudo isso dentro da casa. Vê-se como sobravam quartos? Pus-me a andar pela
casa, entrando e saindo dos quartos. Que se passava? Não compreendi logo. Parecia-me que sempre fizera aquilo,
nunca na vida fizera nada senão andar numa casa vazia, de quarto para quarto, ao longo de corredores. Não, não é
simbólico. A não ser no sentido em que tudo é simbólico. Aconteceu. Comecei então a escrever aquilo mesmo. A escrita
foi-me conduzindo a outro tempo, um tempo simétrico. À matéria cristalográfica do tempo. Na infância havia uma
casa onde eu andara assim, por corredores e quartos. Como direi? Escrevendo, descobrira que cada facto ocorrido hoje
correspondia a outro ocorrido na infância. Mas isto era também outra coisa. Verifiquei por exemplo que, ao escrever
sobre o passado, eu o atraiçoava, revelando-o apenas como visão presente. Assim, a experiência é mantida como
hipótese de investigação que acolhe sempre a dúvida, ou dela se alimenta. Relatos de sonhos, veja-se, tornam-se mais
seguros que relatos de acontecimentos. O sonho pode propor uma explicação exemplificativa no facto que se narra. As
relações entre as diversas partes desta realidade descontínua são esquivas, móveis, ambíguas.
(…)
Convinha a proliferação dos planos de tempo. Acumulei estratos. Importava encontrar uma tensão central,
instalar-se nela. Poder-se-ia então correr todos os riscos, pois existia uma zona sólida aonde regressar, e de onde partir
de novo. Era a minha segurança.
Trata-se de descrita circular, naquele âmbito em que se concebe a volta ao ponto de partida. E também porque
nenhuma solução é possível, por nunca se poder provar a hipótese de verdade da coisa escrita. O texto é fechado. Mas
também aberto. Fechado sobre si, pois o máximo e o melhor seria experimentar, dentro do mesmo espaço, uma nova
maneira de considerar os mesmos acontecimentos. Aberto, porque as possibilidades dessa consideração se mostravam
praticamente sem número.
(…)
Cada texto possui o seu natural movimento interior. Há uma escrita que corresponde ao ritmo brusco,
obsessivo, repetitivo, suspenso, recorrente, problemático, descontínuo da investigação que ela mesma, escrita, é realidade
que cria.
Certas obsessões (até vocabulares) iluminam-se durante a realização de um texto. A escrever é que se aprende
o que somos. Referências a objetos, situações, movimentos, aparecem como imagens ou metáforas de experiências muito
antigas, como elementos da composição interior, portanto: do mundo, da vida.
195
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#36 Nuno Cera, ‘Untitled (Aldo Rossi, San SOARES, Guilherme, Pensar a arquitetura com
Cataldo)’, 2009 disponível em: https://www. as imagens, Porto: Faculdade de Arquitectura
uncubemagazine.com/blog/16269531 [consult. da Universidade do Porto, 2018, Dissertação de
setembro 2021] Mestrado sob orientação do Prof. Doutor Luís
Sebastião da Costa Viegas e co-orientação do
Sobre as coisas que colecionamos: um atlas
Prof. Doutor Pedro Jorge Monteiro Bandeira
vivos
disponível em: https://repositorio-aberto.
#37 Nadav Kander, ‘Signs We Exist, Torn
up.pt/handle/10216/120684 [consult. 19
Posters’ disponível em: https://www.
outubro 2021]
nadavkander.com/works-in-series/signs-that-
we-exist/single#2 [consult. 19 outubro 2021] 2. Memória (i)material
#38 Frame do filme ‘La Collectionneuse’, Eric
Rohmer, 1967 disponível em: https://film- O que fica
grab.com/2013/08/15/la-collectionneuse/# #46 Casa Alves Costa, Álvaro Siza, 2021
[consult. 19 outubro 2021] Arquivo da Autora
#39 ‘Dear House’, Mary Duggan Studio, Porto
Do Sul: Quinta Queimada
Academy 2021
#47 Quinta Queimada, Armação de Pêra, 1952
Arquivo da Autora
Arquivo da Autora
#40 Maurice Jarnoux, ‘André Malraux chez lui’,
#48 Quinta Queimada, Armação de Pêra, 2018
1953 disponível em: https://neatlyart.wordpress.
Arquivo da Autora
com/2013/05/30/andre-malraux-chez-lui-
#49 Pai, Armação de Pêra, 2018
maurice-jarnoux-over-the-last/ [consult. 19
Arquivo da Autora
outubro 2021]
#50 Casa em ruína, Quinta Queimada, Armação
#41 Gerhard Richter, ‘Sterne’,1968 disponível
de Pêra, 2018
em: https://www.gerhard-richter.com/en/art/
Arquivo da Autora
atlas?sp=all [consult. 19 outubro 2021]
207
208
créditos de imagem
209
210
créditos de imagem
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De memória. Por entre sonhos e devaneios: uma
torre em Monsaraz
Mariana Cabrita Ferreira
FACULDADE DE ARQUITETURA