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consequência da intuição
de seres espirituais
Eu tenho a África dentro de mim
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Pedrina de Lourdes Santos
EU TENHO A ÁFRICA
DENTRO DE MIM
Organização:
Luciana de Oliveira
Ester Antonieta Santos
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86963-70-0
Prefácio 8
Créditos 5 318
A grafia de termos específicos do
universo das religiões de matriz
africana no Brasil utilizados no
decorrer do presente livro segue
a forma da escrita nas línguas dos
povos bantu de Angola-Muxicongo
compreendendo as línguas kimbundu,
kikongo e umbundu, de acordo com
orientações da Capitã Pedrina em
face de suas pesquisas linguísticas.
PREFÁCIO
UM LIVRO,
VÁRIAS MÃOS E
SOPROS INFINITOS
Luciana de Oliveira1
Ester Antonieta Santos2
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Prefácio
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Eu tenho a África dentro de mim
UFMG nos anos de 2014 e 2015; das aulas ministradas na disciplina Catar
Folhas nos anos de 2016 e 2017 na mesma instituição; sua fala no Fórum.doc
de 2018 - em que compartilhou conhecimentos em uma mesa com a saudosa
Makota Valdina; da abertura do curso “Chamando o mato de volta”, das aulas
ministradas na Estação Ecológica deste mesmo curso, no ano de 2019, que
contou com a participação de Alice Pinto e Júnior Pakapim, sobrinhos de
Makota Valdina; de uma aula especial ministrada no PPGCOM (Disciplina
Outras Filosofias da Imagem, 2020); e de quatro sessões de gravação de
toadas do Reinado nos estúdios da Escola de Música da UFMG em 2017,
um sonho antigo realizado por ela para que as futuras gerações não percam
na poeira do tempo as toadas e as formas de cantá-las. Além dos materiais
de base oral, incluímos também no acervo-base para a conformação do livro
dois textos publicados pela Revista da Comissão Mineira de Folclore (1992;
2005) de sua autoria.
3 Utilizando as vestes específicas de terreiro, o que, depois de sua iniciação no Kandomblé, foi o estilo de
vestimentas exclusivo escolhido por ela para seu dia a dia.
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Prefácio
de afirmar que o livro não é filosofia abstrata, mas um fazer que da vida de
todos os dias e de todas as horas, envolvendo o que ela depois nomeou de
“soberania de si”, no capítulo “Abstrato é o Ser do Outro”.
Após ter todo o material bruto revisado pela Capitã Pedrina, uma nova
rodada de escutas se iniciou. Nosso principal objetivo era entender como
o livro sairia daqueles materiais brutos, como ele seria apresentado, como
ele seria dividido. Numa dessas conversas da segunda etapa, Pedrina nos
disse que o título do livro seria : “Eu tenho a África dentro de mim”. Ele foi
trazido por uma lembrança que ela teve de um encontro no ano de 2019 na
FAFICH/UFMG com um colega de turma de Ester que estava, na ocasião,
fazendo doutorado, Ousmane Sané, um simpático senegalês que é um
admirador da Capitã. No dia do encontro, ela compartilhou com Ousmane
sua preocupação em manter vivos os conhecimentos ancestrais ligados às
matrizes africanas no Brasil. Ele, de modo alegre e festivo, disse a ela que
não se preocupasse com isso, porque ela era a própria África. “Eu vejo a
África na senhora”, disse Ousmane, o que a deixou exultante e emocionada.
Além do título, ela trouxe os seguintes pontos para que observássemos na
nova etapa do processo de edição:
4 Entrevista concedida a Ester Antonieta Santos e Luciana de Oliveira em 07/01/2020. Para conhecer em
detalhes todos os processos de transcriação do oral ao escrito, ancorados numa discussão em torno da
linhagem matrilinear da família da Capitã Pedrina em uma abordagem genealógica feminina e feminista, ver:
SANTOS, Ester Antonieta. Põe Sentido. Das performances orais ao livro: poéticas-saberes-resistências de
Pedrina de Lourdes Santos. Belo Horizonte, Dissertação de Mestrado/PPGCOM/UFMG, 2021.
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Prefácio
Nkisi/orixá/santo;
5 Como o material bruto foi transcrito sem levar em conta as modulações idiomáticas que a mestra queria na
grafia do livro, pesquisamos alguns dos termos em sua escrita convencionada, como é o caso de candomblé.
6 Este nome era o utilizado para nomear a casa de Kandomblé que atualmente se tornou Nzó Atim Kaiango
ua Mukongo.
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Prefácio
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Eu tenho a África dentro de mim
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Prefácio
Embora eu venha de um
caminho que passa sua
história de forma oral, mas
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Eu tenho a África dentro de mim
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Eu tenho a África dentro de mim
Akoko Gameleira
Alfavaca Guiné
Algodão Jaca
Alecrim Jacarandá
Amoreira Jamelão
Arruda Jatobá
Bananeira Manjericão branco
Barbatimão Obi
Café Pellegum
Cajá-manga Pitanga
Cana Sabugueiro
Erva cidreira
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Prefácio
Junto com “Eu tenho a África dentro de mim”, circula o livro “Meu
Rosário, Minha Guia: trajetos de fé e de luta da Capitã Pedrina de Lourdes
Santos”, organizado também por nós, fruto de um processo colaborativo que
envolveu muitas pessoas. O livro é resultado da construção do “Memorial
descritivo” sobre a vida e a obra da Capitã Pedrina, com vistas à obtenção do
título de Notório Saber junto à UFMG. Ele contém um panorama detalhado
de sua biografia notável no Reinado, na Umbanda e no Kandomblé, tendo
este último entrado em sua caminhada no ano de 2016, quando se iniciou no
culto africano aos 55 anos. Além disso, fizemos um minucioso levantamento
de artigos acadêmicos, dissertações e teses escritos sobre ela e com
influência de seus conhecimentos para compor seu memorial descritivo, e
rastreamos documentação comprobatória, clipping de imprensa, fotografias
do arquivo familiar, dentre outros.
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Eu tenho a África dentro de mim
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Prefácio
Pitanga
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Guiné
PARTE I
SOBRE O
REINADO
Eu tenho a África dentro de mim
REINADO
experiência e trabalho
espiritual de cura da
escravização
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Prefácio
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Eu tenho a África dentro de mim
Ouvi dos capitães de Reinado, sobretudo de meu pai, Leonídio João dos
Santos, sobre a história de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e depois
que me mudei para Belo Horizonte, continuei ouvindo, de outros capitães
de Reinado, inclusive daqueles que não conheciam meu pai, a mesma
história, com pequenas variações. Meu pai pouco conhecia Belo Horizonte.
Muitos ainda ficam sem entender como é que a Nossa Senhora apareceu no
mar porque Minas Gerais não tem mar, então como é que a Nossa Senhora
teria aparecido no mar e dado origem a essa Festa. Então surgiam pequenas
variações: alguns diziam que Nossa Senhora teria aparecido no mar, outros
na gruta, outros numa pedra, e ainda outros numa árvore, mas a essência
da história é sempre igual. A santa apareceu para os negros escravizados.
Dentre as várias versões que ouvi escolhi esta:
escravizados, dizendo: “É
memo sinhô, tem memo um
vurto de muié num grande
resplendô”. O senhor então
comunicou com o padre da
Igreja Católica, que organizou
procissões com rezas, banda
de música, cantos e foram
até o local, puseram a Santa
num andor e levaram para
a Igreja, rezaram, louvaram
e foram para casa. No outro
dia, quando o sacristão
abriu a Igreja, cadê a Santa,
não estava mais lá, e ele
até viu os passinhos dela
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
a chamá-la de Mamãe do
Rosário. O senhor, mandou
o feitor atrás porque os
negros demoravam voltar
e o feitor acompanhou os
passos e os encontrou,
cantando e dançando no
lugar que tinham preparado,
mas não viu e nem ouviu
nada e voltou, relatou ao
senhor. E no outro dia os
negros levaram a Santa para
Igreja, que ficou lá e nunca
mais voltou para o mar. E
assim, cresceu, floresceu e
chegou até os nossos dias,
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Eu tenho a África dentro de mim
passando de geração em
geração. Quando eu percebi,
que muitos capitães falavam
da mesma história, com
pequenas variações, entendi
que a moral da história era de
que a santa católica aceitava
o modo de ser e de crer dos
negros escravizados. O meu
entendimento é que ela
não queria que os negros
mudassem sua maneira de
culto. Os africanos sempre
entram em conexão com
o criador, a divindade,
é tocando, dançando e
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
Ê vem do mar,
ê vem do mar,
ela é Nossa Senhora,
Virgem Santa,
Mãe de Deus,
ela é a mãe dos negros,
Santa que todo mundo adora
Chorei, Chorá
Chorei, Chorá
Ah eu chorei pelo balanço do mar
Ah eu chorei pelo balanço do mar
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Eu tenho a África dentro de mim
capitã Pedrina
Aiôiêiô
Coro
Ôôôôôôô
capitã Pedrina
Ei, é chegada a nossa hora, olha vamos kurimar
Com Deus e Nossa Senhora, vamos juntos pelejar
Coro
Êêêêê
capitã Pedrina
Vou contar-lhe uma história, peço preste atenção
é uma história muito antiga do tempo da escravidão
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
Coro
Êêêêê
capitã Pedrina
No tempo da escravião, era branco quem mandava
quando branco ia pra missa, oi era nego que levava
Coro
Ôôôôôô
capitã Pedrina
No dia 13 de Maio, uma assembleia trabalhou
olha nego era cativo e a princesa libertou
Coro
Êêêêêêêêêê
capitã Pedrina
Olha nego era cativo e agora virou Sinhô
Coro
Êêêêêêêêêê
capitã Pedrina
No tempo da escravidão, era branco quem mandava
quando branco ia pra missa oi era nego que levava
Coro
Ôôôôôôôôôô
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Eu tenho a África dentro de mim
[Continuação do Lamento]
capitã Pedrina
Quando branco ia pra missa,
era nego que levava,
branco entrava pra Igreja
e nego cá fora ficava
Coro
Êêêêêêêêê
capitã Pedrina
branco entrava pra Igreja,
nego cá fora ficava,
e se nego reclamasse de xiquirá
ele apanhava
Coro
Êêêêêêê
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
[Continuação do Lamento]
capitã Pedrina
E se nêgo reclamasse, de xiquirá ele apanhava,
nêgo só ia rezar, quando na senzala ele chegava
Coro
Êêêêêêêê
capitã Pedrina
Nêgo só ia rezar, quando na senzala ele chegava.
Ele fazia as orações e pra N’Zambi ele entregava
Coro
Êêêêêêêê
capitã Pedrina
Ele fazia as orações, e pra N’Zambi ele entregava,
para as almas desses nêgo que morreram na
senzala
Coro
Êêêêêêêêê
capitã Pedrina
Que dó, que dó.
Jesus Cristo está no céu, amparando essas almas
desses nêgo sofredô
Coro
Êêêêêêê
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Eu tenho a África dentro de mim
Ainda tem muitos milhões de negros que não conseguiram perdoar essa
violência da escravização e do tráfico, e quando a gente não consegue perdoar
a gente quer a vingança. O Brasil tem uma dívida enorme com esse povo e eu
já vi em reunião mediúnica da doutrina espírita alguns anos atrás, na qual a
espiritualidade estava reencaminhando alguns africanos desencarnados, ou
criando um ambiente propício parecido com as aldeias dos desencarnados,
para que eles, entendendo que estavam de novo na sua terra ou que estavam
acolhidos de alguma forma pudessem, vamos falar assim, aliviar o Brasil. Tudo
que nós passamos, ainda tem muito a ver com essa carga, esse peso, com esse
massacre que foi feito. Então o perdão - um dos ensinamentos principais
do Cristo - não favorece a quem fez o mal, favorece a quem está perdoando,
porque se eu não perdoar, eu vou querer vingança.
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
responsabilidade para galgar na vida das tradições africanas onde quer que
elas se manifestem. Isso pode ter certeza que é muito sério para mim. Há
Irmandades que têm o primeiro e o segundo capitão de terno e como há uma
hierarquia, porque nos reconhecemos como irmãos, nos cumprimentamos
primeiro e depois vamos cumprimentar os dançadores e as dançadoras. Se
estamos diante do rei e da rainha, nós vamos cumprimentar o rei e a rainha.
Ô ê Angola
Esse gunga vei foi de lá
Correu mundo
Ô correu mar
Correu mundo
Ô correu mar
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Eu tenho a África dentro de mim
Meu pai se esforçava muito por manter a nossa festa e ele se esforçava
por preservar o que os antigos chamavam de língua da senzala. Como
ele nasceu em 1894, apenas oito anos após o fim da política oficial da
escravização, ele falava bem, falava, gostava de manter essa língua. Seu
esforço, que é um esforço de manter essa fala, essa língua porque se não morre
acaba, ninguém mais fala nada. Nossos irmãos imigrantes falam o português,
mas cada um, nas suas comunidades, conservam as suas línguas, sejam eles
alemães, sejam eles franceses, sejam eles ingleses. Mas nós, os negros, não
tivemos direito nem mesmo ao nosso nome. Eu fui registrada como Pedrina
de Lourdes Santos, então Santos, não é do meu antepassado, não é do meu
ancestral. Ou é de todos os santos, ou é de algum dono de escravizados ou
porque simplesmente alguém criou esse nome. Mas a mulher não tinha o
direito de participar de um terno de massambike e lá pelos idos de 1972, o
meu pai, Leonídio João dos Santos que faleceu em 1981, teve dificuldades para
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
formar o terno de Nossa Senhora das Mercês com meninos do sexo masculino.
Foi então que permitiu que eu, a minha irmã Virgínia Ferreira dos Santos,
minha sobrinha Luísa de Lurdes dos Santos e a Heloísa Dias participássemos.
Nós entramos para compor o massambike. E aí o tempo foi passando e eu fui
ficando. Em 1980, eu e o meu irmão capitão Antônio Eustáquio dos Santos
assumimos a capitania . Meus primos faziam parte do terno. Eu entrei para o
Reinado por uma peculiaridade de não ter componentes para o terno. Eu me
lembro que nós éramos adolescentes.
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Eu tenho a África dentro de mim
Eu tive que assumir a capitania não por uma escolha direta minha.
Foi porque não tinha nem um dos meus primos ou dos meus sobrinhos,
dentre os que já estavam no terno, que teve a coragem para assumir. Eu
tive coragem. Não teve quem quisesse e eu entrei com a coragem que Deus
me deu. A festa são oito dias, a gente sai dia e noite, eu por exemplo estava
afônica. Meu timbre de voz era muito mais alto e a cada ano, nesses quarenta
anos, eu estou ficando prejudicada. Porque a gente, na verdade, acaba não
cantando, mas se esgoelando. Imaginem dezessete ternos tocando um atrás
do outro, com uma média de três caixas cada um, se você não põe um timbre
de voz alto, o seu terno não te escuta e não sabe a hora que vai andar, a hora
que vai entrar a resposta de uma toada. Todo mundo sempre me vê muito
brava, eu tenho uma impostação e tenho os meus rompantes. Minha fala é
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Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização
firme e, por isso, quando eu falo as pessoas já acham que eu estou xingando.
Quando eu estou xingando mesmo, elas saem correndo! É que sou daquelas
que xingam e a pessoa tem que ficar quieta, calada, escutando: aquele
regime antigo. Mas ninguém parou pra pensar como que eu consegui esse
feito diante do machismo da comunidade. Isso não foi fácil, não! Foi com
luta, com dor, para eu me impor. E às vezes até para me impor, por exemplo,
eu sempre mantive minha cara fechada, no sentido real, para que ninguém
viesse com nenhuma conversa para cima de mim. E com zombaria.
Por um outro lado, eu juntei o que eu aprendi com o meu pai, que
a vida me ensinou, que os ancestrais me ensinaram, para eu formar a
minha percepção do que é ser capitã. Em verdade, capitão ou capitã, nós
nos tornamos pais e mães. Porque exercer bem uma capitania é exercer
bem um sacerdócio. Com tudo que um sacerdócio pede. A capitania no
Reinado é equiparável ao papel de pais e mães de santo no Kandomblé ou
de sacerdotes e sacerdotisas na Umbanda. Dentro do Reinado, os capitães,
por obrigação, devem ser também benzedores, curandeiros, conhecedores
de tudo isso que vem desse povo que nós todos descendemos que é o povo
africano. Quando nós estamos nas ruas tocando e dançando, nós estamos
exercendo um culto, nós estamos exercendo o nosso sacerdócio. A gente
percebe que o Reinado, a gente aprende, aprende, aprende, e morre sem
saber. Essa manipulação de fluidos mesmo é muito poderosa. Então a luta foi
muito grande para eu exercer a capitania. Nos primeiros anos, eu tirava uma
toada - porque é assim que fala no Reinado, não é música ou canto, fala-se
toada -, e todos os componentes do terno riam de mim. E eu aguentei muita
coisa. Hoje eu sou respeitada, mas nem sempre foi assim. Foi na luta mesmo,
de mulher, de negra, de estar onde a maioria entendia que não era o lugar de
eu estar. Mas tudo que a gente quer a gente vence, dando graças a N’Zambi,
eu entendo que eu estou tendo uma boa formação na capitania. O bastão,
muitos empunham, mas saber cantar, saber que toada tirar e que momentos
simples são muitas vezes os mais espetaculares. Isso poucos sabem. Até
mesmo entre meus pares, poucos sabem, porque o que vai fazer mover o céu,
a terra, o mar e o ar é você aprender o sacerdócio que você está. Eu sei que
essa toada atravessa o tempo, ela é atemporal. Para atravessar o espaço, os
limites geográficos e alcançar quem estiver precisando em qualquer ponto
do globo. E mais ainda: no plano físico e no plano espiritual, a um só tempo.
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A FESTA DO ROSÁRIO
OU FESTA DO KONGO NA
TRADIÇÃO DOS LEONÍDIOS
(OLIVEIRA-MG)
Eu tenho a África dentro de mim
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Algumas Irmandades ainda usam até uma sabatina, para alguém se tornar
capitão, para alguém se tornar rei perpétuo, rei kongo, faz-se uma sabatina
porque espera-se que se tenha o mínimo de conhecimento dos antepassados
para que possa carregar aquela coroa. A Festa do Kongo representa a
prática cultural das sociedades bantu, o próprio nome dos festejos indica
essa sua origem. Porque a festa é do Kongo - o grande império que existia
à época da escravização - e é desse império que surgiram essas festividades
transatlânticas. Nelas nós nos imergimos, nos renovamos e nos fortalecemos
sempre, porque somos de lá, porque as nossas raízes são de lá. Muitas dessas
toadas que cantamos chegam para a gente intuitivamente.
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Eu tenho a África dentro de mim
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Nós temos três ternos na Casa Azul. Nossa família, conhecida como Os
Leonídios é composta por três ternos: o massambike de Nossa Senhora das
Mercês, capitaneado por mim e meu irmão Antônio Eustáquio dos Santos;
o massambike de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 2004 pelos netos
de Leonídio João dos Santos e Ester Rufina Borges, Carlos Tadeu Sabino
Gonçalves, Ester Antonieta Santos e Washington Luis Santos de Oliveira; e o
kongo de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 2005 sob a responsabilidade
de Kátia Aracelle Gonçalves, também neta do capitão Leonídio e da Rainha
Ester. Na cidade de Oliveira existem mais quatorze ternos. Quem não quiser
seguir regras rígidas que observamos em nossa família, tem mais catorze onde
podem dançar e encontrar o ambiente que desejam, onde possam fazer como
queiram. Não tem necessidade de dançar comigo. Quem dança comigo, se
for assim, vai ser assim. Porque o trabalho não vai ser feito de qualquer jeito.
Me refiro ao trabalho espiritual que acontece todos os dias da festa de Nossa
Senhora do Rosário, depois das duas horas da madrugada. Nessa hora, todo
mundo já se deitou, os que vão dormir na Casa Azul e os que vão dormir em
suas casas. Faço as orações finais e vou me recolher porque a espiritualidade
me chama para eu prestar contas do dia. A cobrança não é pequena e ela atua
até de forma invisível, mas como nós costumamos dizer: a gente apanha e não
é brincadeira não, não é brincadeira! Muitas vezes penso que seria preferível
pegar a varinha de atori ou mesmo a vara de marmelo, porque o coro da
espiritualidade é grande.
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Eu tenho a África dentro de mim
Ei nego no Rosário
Custa a perender
Nego no Rosário
Custa perender
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Eu fico vendo como é que o mundo dá muita volta, como naquela toada,
porque antes havia a palmatória que o professor podia bater no aluno, agora
os alunos estão batendo nos professores. Então, é mais um momento de
refletir: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem está certa a palmatória,
nem está certa a agressão de estudantes a professores e professoras. E o mais
triste é que às vezes os pais vão na escola para se juntar com o filho e bater
no diretor, na diretora, nos professores, nas professoras. Mas por que estou
falando disso? Porque isso faz parte, isso é consequência da da ausência da
oralidade, da falta de conversa, da falta de educação, da falta de formação.
Eu conheci uma senhora que era companheira de fé de minha mãe, parteira
como ela, que se chamava Floripes e hoje, quando eu fico um bom tempo
com esse cachimbo, eu fico me lembrando dela, porque ela ficou conhecida
como a mulher do cachimbo. Daí eu penso: “Ah, o povo vai me chamar
também de mulher do cachimbo”. Mas o cachimbo é o que me conecta com
a espiritualidade, eu não fumo assim por vício. Eu sou benzedeira, eu não
gosto de ficar falando, porque é uma função minha, mas eu sou benzedeira,
faço banhos e faço remédios, mas o cachimbo me ajuda na percepção do
problema que a pessoa tem e também me defende, porque se não, eu benzo
um monte de pessoas e tudo que é delas vai ficar comigo. Mas ela usava o
cachimbo e dizia uma coisa interessante, ela falava assim, no português dela:
“Mãe, até as cachorra é”. Ela queria dizer o seguinte, pôr filho no mundo,
qualquer um pode pôr, até os cachorros, agora, formar bons cidadãos,
formar boas pessoas que amanhã, ao assumir a presidência de um país,
um ministério ou coisa assim, sejam pessoas honestas, isso é para poucos.
Então, nós estamos aqui pra aprender tudo isso e refletir sobre tudo isso.
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Com tudo contra inclusive até mesmo o próprio fazer da festa que já foi
modificado várias vezes. O Reinado é um dos meios de seus participantes
tomarem conhecimento de si mesmos e de seu papel na sociedade. Eu tenho
um primo que agora não é mais dançante no Reinado, mas na época que
ele dançava, trabalhava em uma fazenda prestando serviços de pedreiro.
O encarregado passou para ele o serviço e explicou o que deveria ser feito
e disse para ele que ele devia fazer um serviço de branco. Meu primo, em
termos de instrução, tem até a quarta série primária. Ele conta que procurou
caprichar ao máximo e chegou o dia de entregar o trabalho. Quando ele
chamou o encarregado, perguntou se ele estava satisfeito, se era aquilo
que ele queria, aí ele falou, sim, ficou muito bom, elogiou. Daí meu primo
respondeu: “pois é, esse daqui é um serviço de preto”. Essas coisas que,
por vezes, as pessoas no dia a dia não prestam atenção é a ação ferrenha do
racismo contra o qual nós temos que lutar incessantemente.
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Eu tenho a África dentro de mim
ela sempre acha que é uma diversão, ela não sabe, o povo não sabe o quê
que é que está ali porque se soubesse talvez nem fosse participar. Mas eles
vão com aquela intensidade com aquela coisa fazendo toda aquela festa.
O Boi do Rosário e a multidão que ele arrasta junto consigo fazem com
que o espaço ritual da festa seja limpo. Então a gente faz aquilo tudo para
demarcar território mesmo. Vamos observar que é um caminho onde o
boi passou, é isso mesmo porque está demarcando um território. Para que
aquelas ruas, aquelas energias sejam dissipadas para que depois ocorra a
passagem daqueles que estão representando as coroas dos Minkisi, ou seja,
o que nós estamos festejando no pano de fundo. No pano da frente são
os santos da Igreja, porque a Igreja não permitia aos negros festejar suas
próprias divindades ou seres espirituais em sua própria crença.
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Iê
Iê, Nossa Senhora
quando no mar apareceu
nego véio na beira da praia ajoelhou
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minha casa, numa alegria, numa alegria, numa alegria. Poucos dias depois,
um preto velho que trabalha com meu filho chegou e falou “esses tambores
são os de Oliveira”. Eu falei, “mas como que esses tambores de Oliveira
foram parar em Lagoa de Santo Antônio”. Ele me disse, “a misericórdia de
Nossa Senhora é muito grande, mas eu não posso contar”. E eu fiquei lá,
olhando os kandombe, procurando aprender a tocar. Inclusive eram esses
tambores de Oliveira que o tal Seu Domingos levava numa missa konga que
a Federação dos Congados fazia com função de folclore, mal sabia ele...
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Porque tudo isso deve ser feito, com a porta da Igreja fechada, com
todos do lado de fora para relembrar e para contar essa história.
Coro
Êêêêêêêêê
Uma missa sem isso, não é missa konga. O “Lamento do nêgo na porta
da Igreja” é cantado sem o toque de instrumentos. As toadas de entrada e de
ofertório e do evangelho, primeira leitura, comunhão e todos os momentos
da missa devem ser dos reinadeiros e não os cantos impostos pela igreja.
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Senhora Aparecida. Há, nesses dias, a troca de coroas dos reis e rainhas
de ano: quem pegou no anterior entrega e há uma nova coroação que será
trocada no ano que vem. Ao longo da semana, os ternos dos Leonídios
tocam e saem em cortejo para visitas a lugares sagrados ou lugares de
carrego, aos reinos coroados e a pessoas que nos pedem visitas e oferecem-
nos homenagens. Em geral, visitamos os bairros Dom Bosco e o Bairro
Aparecida, nos quais residem parentes - tias e avós - que são nossas anciãs.
Nesses dias ocorrem ainda os pagamentos de promessas que são atos de
demonstração pública de uma graça alcançada, além de momento de fé
popular e de grande emoção. Lá em Oliveira já não se faz mais do jeito que
tradicionalmente é o correto, no qual o cumprimento da promessa são sete
voltas ao redor da capela, ou ao redor dos mastros. Já não se faz mais assim
porque concluíram - o verbo é indefinido mesmo - que cada um vai pagar
sua promessa vestindo-se de rei ou de rainha.
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regente. Esse “ôlêlê”, ele move céu, move tudo. A gente tem “ôlêlê” pra
tudo. Tem “ôlêlê” pra por o povo pra cima. Tá cansado? Eu tenho um “ôlêlê”
que vai fazer esse povo levantar o ânimo para fazer o trabalho. Nós estamos
andando desde dez horas da manhã no sol quente, rachando. Tocando e
suando. Sem comida, o almoço só será servido lá pelas duas horas da tarde.
Oliveira é uma cidade montanhosa. Tem uma ladeira pra subir, eu tenho a
coisa certa a fazer em termos de canto e ritmo. Para acontecer aquele mover
céu, terra e mar, eu tenho que saber o que cantar, que horas cantar e em qual
ritmo. E ainda fazer com o que aquele terno, aquelas pessoas se conectem.
se não eu não consigo fazer as coisas acontecerem. O ritmo que se toca no
massambike dita o tipo de trabalho que vai ser feito.
1 Álbum Os Negros do Rosário. OS NEGROS DO ROSÁRIO (LP/1992), (CD/1999). Acessível em: http://bit.ly/
ndrmpedrina
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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
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Eu tenho a África dentro de mim
partilhados pela Irmandade, também são feitos após orações para que a
alimentação seja abençoada, para que o pão de cada dia não falte nas mesas
e nos lares dos dançadores, seus familiares, bem como das cozinheiras.
Ôi que beleza
Ôi que beleza
Vamos pedir
Nossa mãe do Rosário
Pra abençoar nossa mesa
Agradeço à cozinheira
A comida que fez com alegria
Essa comida era igual
À que São Benedito fazia
86
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô
Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
87
Eu tenho a África dentro de mim
Lêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlê, ôlê
Lêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlê, ôlê”
88
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Aliás é maravia mesmo, assim como é beija fulô. Na época não sabia.
Nada de beija flor, é beija fulô. E nós não vamos fazer maravilha não, é
“Vamo fazer maravia...” porque o negro quando vem, intermediando o
português pra sua língua, ele falava assim. Aliás, foi com a professora
doutora Yeda Pessoa de Castro por meio do Seminário Internacional
Acolhendo as Línguas Africanas (SIALA)2 na Bahia que me veio essa
confirmação. O brasileiro fala assim “nóis vai, nóis vem” é porque os verbos
nas línguas dos povos bantu não se flexionam como no português.
2 Criado pela pesquisadora baiana Yeda Pessoa de Castro, reconhecida como a maior conhecedora das
línguas africanas em contato com a língua portuguesa no território brasileiro, o SIALA teve cinco edições
bienais em Salvador – Bahia, no campus da UNEB. O VI SIALA foi realizado na UFMG em 2016 e o VII SIALA
foi realizado na UFES em 2018.
89
Eu tenho a África dentro de mim
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
90
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
91
Eu tenho a África dentro de mim
Katé jibueto
Katé jibueto
Olha Ngana N’Zambi
Olha Ngana N’Zambi
Olha Ngana N’Zambi
Katé até katé até
Jibueto
Ô Senhora do Rosário,
teu rosário me clareia
e as estrelas lá do céu
a sua coroa alumeia
92
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios
Ei, ô mamãe
cheguei agora,
pra pedir sua benção.
93
Eu tenho a África dentro de mim
94
Caja manga
O REINADO É UMA
HERANÇA AFRICANA
Eu tenho a África dentro de mim
98
O Reinado é uma herança africana
Afinal, foi esse povo escravizado que idealizou o Reinado. Eles e elas
idealizaram uma festa com os santos católicos, mas estavam louvando os
M’kisi. E muita gente morreu e levou isso embora. E hoje ninguém tem
99
Eu tenho a África dentro de mim
coragem de falar, a não ser eu. Mesmo porque, de tanto morrer, quase
ninguém não sabe mais disso. Então quando eu tomo benção do rei, eu
me ajoelho porque eu estou tomando benção do Nkisi que ele representa.
A coroa dele representa um Nkisi. Essa reverência não é porque eu estou
saudosa do tempo da monarquia. Congado é diferente de Reinado. Quem
está fazendo congado, está fazendo só esses outros conhecimentos, cristãos,
talvez. Quem está fazendo o Reinado, ainda tem conhecimento da essência
africana da relação com a espiritualidade. Às vezes, não tanto assim, mas
alguma coisa se faz. Porque do mesmo jeito, não se faz nada sem as ervas,
mas quando eu me ajoelho, eu me ajoelho porque eu reverencio não essa
coroa de rei monarca, mas o Nkisi que ele representa dentro do Reinado.
100
O Reinado é uma herança africana
Goiás era uma Canaã. Voltavam ricos os que tinham ido pobres. Iam e viam mares de
aventureiros. Passavam boiadas e tropas. Seguiam comboios de escravos. Cargueiros
intérminos, carregados de mercadorias, bugigangas, miçangas, tapeçarias e sal. Diante
disso, negros foragidos de senzalas e de comboios em marcha, unidos a prófugos da justiça
e mesmo a remanescentes dos extintos cataguás, foram se homiziando em certos pontos da
estrada (“Caminho de Goiás”ou “Picada de Goiás”). Essas quadrilhas perigosas, sucursais
dos kilombolas do rio das mortes, assaltavam transeuntes e os deixavam mortos no fundo
2 Refere-se aqui ao Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango no contexto da cidade de Belo Horizonte. Makota
Kidoiale é uma das lideranças da comunidade junto a Mametu Muyandê, a matriarca.
101
Eu tenho a África dentro de mim
dos boqueirões e perambeiras, depois de pilhar o que conduziam. Roubavam tudo. Boiadas.
Tropas. Dinheiro. Cargueiros de mercadorias vindos da Corte (Rio de Janeiro). E até os
próprios comboios de escravos, matando os comboeiros e libertando os negros trelados. E
com isto, era mais uma súcia de bandidos a engrossar a quadrilha. Em terras oliveirenses
açoitava-se grande parte dessa nação de “caiambolas organizados” nas matas do Rio
Grande e Rio das Mortes, de que já falamos. E do combate a essa praga é que vai surgir
a colonização do território (de Oliveira, Minas Gerais e região). Entre os mais perigosos
bandos do Campo Grande, figuravam o kilombo do negro Ambrósio e o negro Canalho3.
3 FONSECA, Luíz Gonzaga da. História de Oliveira. Oliveira, Edição Centenário, 1961, p. 37.
102
O Reinado é uma herança africana
4 Por exemplo, Tancredo Neves era da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo. E foi enterrado no cemitério
da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo. Então, existem irmandades das pessoas mais abastadas, como a
Nossa Senhora do Carmo que era dos brancos ricos da elite.
103
Eu tenho a África dentro de mim
quando Dom Cabral, que tem o nome de bairro aqui na cidade de Belo
Horizonte, se torna arcebispo e hoje eu tenho o documento que antes eu não
tinha. Eu só sabia da história de que houve um tempo que o papa proibiu
o festejo do Reinado, da Festa do Rosário, e os negros em Oliveira saíram
assim mesmo e eles foram presos com a bandeira. Esse fato gerou uma
interrupção da festa entre os anos de 1948 e 1952. O que temos agora é um
pouco o resultado dessa volta, dessa interrupção que foi muito violenta. Eu
sempre que vinha a Belo Horizonte conversava com as Irmandades daqui
e ninguém sabia dessa história, o que que tinha acontecido e eu ficava
pensando, porque meu pai tinha cantado na porta da Igreja assim:
104
O Reinado é uma herança africana
105
Eu tenho a África dentro de mim
106
O Reinado é uma herança africana
Por tudo isso, eu estou em permanente campanha para que nossa gente
volte a falar Reinado e deixe de falar congado, e me explico: é que quando se
faz Reinado, ainda se fazem os ritos desde os tempos da senzala. Enquanto
se faz e diz congado, é tudo lindo. Quem não conhece acha tudo maravilhoso
porque as pessoas só vêem por fora. Outro chamado do povo africano: ver por
dentro. Quem faz o congado, em geral, reúne pessoas, arruma a vestimenta,
arruma os instrumentos e coloca para dançar. Dançar é maravilhoso! Os povos
negros sempre se comunicaram com as divindades, com a ancestralidade
dançando e tocando tambor. O que acontece muito hoje é que pela
necessidade ou pela impossibilidade de dizer o que era na verdade, a maioria
dos reinos acha que este Reinado que é chamado Festa de Nossa Senhora do
Rosário é católico e não é. Este é outro ponto importante da minha reflexão.
Por conta dele minha cabeça está à degola na minha cidade já faz décadas.
107
Eu tenho a África dentro de mim
108
O Reinado é uma herança africana
Café
109
Jatobá
PARTE 2
TRADIÇÕES,
SABERES E
FAZERES
AS TOADAS DO ROSÁRIO1
1 No ano de 2017 foram realizados quatro encontros na Escola de Música para gravação das toadas de Reina-
do com a Capitã Pedrina. Neste capítulo, constam também registros de toadas cantadas durante as aulas dos
Saberes Tradicionais ministrados pela Capitã Pedrina nos anos de 2016, 2017 e 2019.
Eu tenho a África dentro de mim
Aqui nas Minas Gerais, a Festa do Rosário não começa com Chico Rei, a
quem tenho o maior respeito. Chico Rei conseguiu dar projeção à ela naquela
época, mas essa festa sempre existiu com os negros dentro da senzala.
Esse dia de hoje para mim, 10 de abril de 2017 é um dia muito feliz,
eu estou muito agradecida por esta oportunidade de poder concretizar este
sonho, esse desejo e eu não tenho como não começar agradecendo a Ngana
N’Zambi, Deus criador. Mona dya N’Zambi, nosso senhor Jesus Cristo, Mona
114
As toadas do Rosário
dya Guembê, o Divino Espírito Santo que, na verdade, nessa trindade, nessa
trilogia estão todos aqueles que são importantes, porque embora tenha
passado pela igreja católica, instituição que respeito muito, não acredito
que haja um só Deus em três pessoas distintas, mas respeito esta maneira
de descrever a crença, e quando eu digo Guembê, Divino Espírito Santo,
aqui onde eu cultuo, se inclui todos os espíritos, porque todos os espíritos
são santos, independente da hierarquia moral, porque somos criados por
um ser que chamamos de Deus, de divino, então a nossa essência é divina.
Podemos até estar caminhando por subidas, morros, pedras, espinhos, mas
isso é periódico, isso não é o que somos e quando andamos por caminhos
considerados descabidos, e isso é muito relativo, o que é inconveniente para
um, pode ser perfeitamente conveniente para o outro, mas nós vivemos
numa sociedade com regras e esse próprio Deus até então, em todas as
religiões ele também tem as suas regras. E na verdade, se alguém foge às
regras, vamos dizer assim, alguém que esteja apenas procurando o seu
caminho, ele quer fazer a sua descoberta, mas todos nós somos divinos, e
não há um Deus que chama três pessoas e que um deles é o Espírito Santo.
Acredito que essa terceira pessoa é justamente a criação que tem a essência
divina. Esteja onde estiver, esteja com quem estiver.
115
Eu tenho a África dentro de mim
116
As toadas do Rosário
1 Nas religiões de matriz africana, adobar é uma espécie de reverência e reconhecimento da importância de
alguém ou alguma coisa. A pessoa deita-se no chão com a cabeça próxima aos pés de quem ou o quê quer
reverenciar ou próximo a algum espaço sagrado.
117
Eu tenho a África dentro de mim
aos meus irmãos, que sobreviveram nessa trajetória difícil, numa época de
mortalidade infantil, de desnutrição, de abandono total pelo poder público,
e que essas pessoas sabiam dividir o pão literalmente, para que o outro não
morresse de fome. E eu, por causa disso tudo, sou uma pessoa que se tiver
fubá é o bastante para eu sobreviver. Então, não sei dizer dos meus 13 irmãos
que não sobreviveram dos 21 que foram gerados dessa união. A eles também
a minha gratidão, mas eu quero citar a minha irmã Inês, o meu irmão
Antônio, a minha irmã Amásia, a minha irmã Efigênia, a minha irmã Lena,
a minha irmã Berenice e a minha irmã Regina, alguns já desencarnados. Sei
que ele e elas me ouvem, sei que me percebem, e eu quero dizer a ele e a elas
o quanto eu sou grata e o quanto eu tenho respeito, o quanto eu admiro cada
um/uma na sua peculiaridade, na sua maneira de perceber a vida, e que esse
respeito continuará ad eternum. Agradeço também a esta entidade que se
chama UFMG, e às pessoas com as quais aqui eu tenho convivido e formado
até uma amizade e diretamente à Bárbara Altivo e à Dalva Soares que aqui
estão, que conseguiram culminar ou fazer concretizar esse desejo através
do Fernando2. Neste momento, este povo todo que eu chamo à memória me
possibilita extravasar e abrir meu coração, a minha mente e o meu ser que
vibra diferente e vocês acabam entrando nesse oceano. Ad eternum, façam o
que fizerem, seja como forem, vocês terão a nossa gratidão eterna.
2 Bárbara Regina Altivo é doutora em comunicação, tendo pesquisado o Reinadinho em Oliveira-MG com
co-orientação da Capitã Pedrina. Dalva Soares é doutora em antropologia e escritora. Fernando Braga Cam-
pos é o técnico responsável pela gravação das toadas no estúdio da Escola de Música da UFMG.
118
As toadas do Rosário
Diz um ditado que quem canta, seus males espanta, mas esse momento
não é de males, é de emoção pura, e eu gosto da emoção. Eu já aprendi que
o ideal é o equilíbrio entre o que se sente e o que se pensa, embora eu não
tenha conseguido ter esse equilíbrio, mas eu prefiro a emoção do que o
raciocínio puro. Eu acho que o raciocínio puro é mais tendencioso a nos
fazer errar, do que a emoção, do que o sentimento. É claro que tem um
verso que diz que “O coração tem razões que a própria razão desconhece”,
mas acontece que o raciocínio puro desconstrói o ser se ele não tiver
a sensibilidade para dar esse equilíbrio. Eu, sendo da estatura que sou,
pequena, mas forte, e o caráter foi formado assim numa rigidez, totalmente
fora dos padrões atuais. Eu não sou uma mulher que chora por qualquer
coisa. Eu digo isso, não que eu ache que o choro seja inválido, mas tem
momentos na vida e são momentos assim que eu vivi, que para vencer a
gente tem que segurar o choro e levantar a cabeça. Não chorar e não ficar
cabisbaixa. Não tenho nenhuma vergonha, das lágrimas virem ao meu
rosto, se o contexto assim o fizer necessário. Eu não vou chorar porque
me pisaram, porque me humilharam. Se eu chorar, vai ser depois, vai ser
separado, vai ser sozinha entre as pessoas que eu entendo que estão comigo.
Eu digo isso para reforçar que neste momento, esse choro é a minha emoção
fluindo de gratidão, de gratidão ao universo, de gratidão a esse ser que uns
chamam de N’Zambi, outros chamam de Olodumare, outros chamam de
Tupã, outros chamam de Alá. Outros chamam simplesmente de Deus, por
tudo que Ele construiu, pois o universo não nasceu do nada. Quero deixar
esse registro para quando eu for embora, quando eu tiver 120 anos, ou 140
anos ou os anos que N’Zambi me permitir viver, recebam estas minhas
memórias. Quero chegar lá com saúde, dentro do Reinado, dentro dos
terreiros, junto com o povo.
Engraçado que eu não vejo nenhum povo na terra mais especial, mais
singular que esse povo brasileiro, eu não consigo ver. Com tudo que já foi
e que é, eu não consigo. Eu acho que é porque eu estou no meio do povo,
e o povo brasileiro, não tem nenhum povo igual, que sabe conviver e sair
das maiores dificuldades: alegre, feliz e lutando. E não é porque é um povo
bobo não, é um povo que sabe reagir bem. É um povo que até então, sabe
sair das situações, buscando a alegria, buscando a harmonia. Outros povos
não dariam conta de vivenciar o que nós brasileiros vivenciamos, da forma
como nós vivenciamos. O povo brasileiro sabe tirar leite das pedras. A única
119
Eu tenho a África dentro de mim
ressalva, é que eu acho que esse mesmo povo devia se dar mais valor e nem
sempre consegue isso, porque fica só visualizando o outro: o outro povo que
é isso, o outro povo que é aquilo, sendo que o povo brasileiro tem todas as
forças aqui. Então, o dia que o brasileiro olhar para si próprio, se valorizar
e deixar de querer copiar outros povos, não tem nada que nos segure. É um
povo fabuloso. E no meio deste povo, no dia a dia, nas ruas, descendo ou
subindo de ônibus, é que a gente vai conhecendo melhor o valor do povo
brasileiro, porque eles e elas não são qualquer povo, como eu já disse que
conseguem ser. É esse povo que me faz amar esse país, mesmo acreditando
que o Brasil deveria ter mais políticas públicas, mas esse povo me encanta.
120
As toadas do Rosário
incentivo para que quem não saiba o que é a Festa do Rosário, procure
saber. Porque atrás de morro, tem morro, debaixo de angu, tem carne. Não
se deixem levar, tão simplesmente por achismo. Não fiquem preocupados
com o que a sociedade vai dizer, com o que as religiões oficiais vão achar,
ou até mesmo o que Deus vai achar, porque muitas vezes Deus coloca pra
nós de uma forma tal que existe um extremo oposto e muitas vezes nós
somos chamados e qualificados como esse extremo oposto entre o bem e
o mal. Nesta comparação, nós reinadeiros somos tidos como o mal. Diante
disso, desejo que não tenham medo, se acham que somos o mal, o diabo, o
satanás, o capeta, ou sei lá mais o que, então que sejamos. Porque é assim
que nós vamos ser verdadeiros. Quem diz, quem pensa sobre nós sem nos
conhecer, fala sem conhecimento de causa, fala sem propriedade. O que não
pode é você estar no meio sem saber o que é feito, porque aí você acaba por
acreditar facilmente no que o outro que não conhece o Reinado diz. O outro
fala sem embasamento, mas você sem embasamento, acaba por aceitar e
acredita que você é o que você não é.
Isto é só um incentivo, para que essa toada bonita, essa toada que
muitas vezes de forma alegre, às vezes chorada, incentive a quem escutar a
buscar, a ver o que está além das aparências.
121
Eu tenho a África dentro de mim
122
As toadas do Rosário
Então vamos começar pela travessia. Essa toada é uma que os capitães
mais velhos lembram a vinda dos negros nos tumbeiros e a chamam assim3.
Chorei, chorar
Chorei, chorar
Ai eu chorei pelo balanço do mar
Ai eu chorei pelo balanço do mar
3 Para que o leitor e a leitora compreendam o fluxo das toadas inseridas nesse capítulo, considere:
123
Eu tenho a África dentro de mim
Ê curva de Rio
Deixa rastro na areia
Ê curva de Rio
Deixa rastro na areia
Nêgo veio a beira mar
Pelo canto da sereia
Nêgo veio a beira mar
Pelo canto da sereia
Beira do rio
Ôlê ôlá
Beira do mar
Ôlê ôlá
Tava na beira do rio
Tava na beira do mar
Quando vi Nossa Senhora do Rosário
Ôlê ôlá
Ê na Angola ê
Ê na Angola
124
As toadas do Rosário
Aê Angola
Aê Angola
Essa gunga veio foi de lá
Essa gunga veio foi de lá
Êi correu terra e correu mar
Essa gunga veio foi de lá
4 Ver explicação mais ampla com as toadas desse momento no capítulo 2 deste livro.
125
Eu tenho a África dentro de mim
Pontos de abertura
5 No Kandomblé, este é um momento em que celebramos o recomeço de vida, em que todos os Minkisi retornam
do hilu (céu) para o ixi (terra) trazendo novos caminhos, novas soluções, nova caminhada para cada filho e filha.
126
As toadas do Rosário
127
Eu tenho a África dentro de mim
Ô Senhora do Rosário
Hoje eu vim te festejar
Ô Senhora do Rosário
Pede a Deus pra me ajudar
Ô Santa Manganá
No dya diambe kizomba
Ô Santa Manganá
Gundelela N’Zambi iô katisá
Ô Santa Efigênia
Hoje eu vim te festejar
Ô Santa Efigênia
Pede a Deus pra me ajudar
Acorda nego
O dia clareou
Vai trabalhar que a hora já chegou
Não fica esperando só Deus te ajudar
Pois Deus te ajuda, mas tem que trabalhar
Pois Deus te ajuda, mas tem que trabalhar
128
As toadas do Rosário
É novo dia
É novo dia
Deixa o dia clarear
Peço licença, com licença
Deixa o meu gunga passar
Ô chora ngoma
Ngoma chora
Ô chora ngoma, ngoma de Angola
Ngoma chora
129
Eu tenho a África dentro de mim
Saravá ê, saravá ê
Saravá meus irmãos do Rosário
Nossa festa já vai começar
Saravá meus irmãos do Rosário
Nossa festa já vai começar
Ô marinheiro
É hora, é hora de kurimar
Ô marinheiro
É hora, é hora de kurimar
Êia, êia, êia chegou nossa hora êia
Kurimar é trabalhar
Ô marinheiro
É hora, é hora de trabalhar
É céu, é terra, é mar
Ô marinheiro olha o balanço do mar
As toadas acima podem ser feitas tanto no ritmo serra abaixo, como
no ritmo serra acima, e dentre estas, umas são de kongo e outras de
massambike.
130
As toadas do Rosário
Ave Maria
Ave Maria
Pai Nosso, Ave Maria
Ave Maria
Ê mundo
Ê Angola
Ê mundo
Esse mundo é de Nossa Senhora
Ôiê ôiá
Vou pedir Nossa Senhora
Ôiê ôiá
Ela vai nos ajudar
131
Eu tenho a África dentro de mim
Lá no cruzeiro divino
Aonde as almas vão rezar
Lá no cruzeiro divino
Aonde as almas vão rezar
As almas choram de alegria quando seus filhos combinam
E de tristeza quando não quer combinar
As almas choram de alegria quando seus filhos combinam
E de tristeza quando não quer combinar
132
As toadas do Rosário
Ôlêôlêôlêia
Ôlêôlêôlêia
Ô jikula ongira
Êêiá
Ô jikula ongira
Êêiá
Katê jibueto
Katê jibueto
Óia Ngana N’Zambi
Katé até, katé até
Jibueto
133
Eu tenho a África dentro de mim
Ôi a coroa do rei
Veio do reino da glória
Ôi a coroa do rei
Veio do reino da glória
Vamos amparar ela com jeito meus irmãos, esta coroa é de Nossa Senhora
Vamos amparar ela com jeito meus irmãos, esta coroa é de Nossa Senhora
Ôi lá em casa
Lá no fundo da horta
Se a polícia me prende
Êê
Sá rainha me sorta
Todas as toadas que cantamos até agora foram para pedir proteção,
são pontos de pedir preparação para ir pro mundo afora. E agora veremos os
pontos de saída do reino para o mundo afora.
134
As toadas do Rosário
Jesus nascer ai ai
Quem somos nós
Quem somos nós Deus
Oi para ver, para ver
Jesus nascer ai ai
Senhora do Rosário
Ôi a senhora é uma mãe tão boa
Senhora do Rosário
Ôi a senhora é uma mãe tão boa
Ôi venha ver
Os seus filhos ajoelhados
A seus pés pedindo força
Pra vencer na vida
Ôi venha ver
Os seus filhos ajoelhados
A seus pés pedindo força
Pra vencer na vida
Senhora do Rosário
Senhora do Rosário
Senhora do Rosário
Eu tô aqui pra agradecer
Eu hoje cedo
Levantei pedindo força
Senhora me deu a força
Tô aqui pra agradecer
Eu hoje cedo
Levantei pedindo força
Senhora me deu a força
Tô aqui pra agradecer
135
Eu tenho a África dentro de mim
Eu vou pedir
Vou pedir Nossa Senhora
Eu vou pedir
Vou pedir Nossa Senhora
Pai, Filho, Espírito Santo
Vou andar o mundo afora
Pai, Filho, Espírito Santo
Vou andar o mundo afora
Caminhemos, caminhemos
Para a Virgem Senhora
Caminhemos, caminhemos
Para a Virgem Senhora
Óia Deus quem guarda nós
Santa Maria gloriosa
Santa Maria gloriosa
Ô Virgem Santa
136
As toadas do Rosário
Ô Virgem pura
Ô Virgem Santa
Ô Virgem pura
Minha mãe tá chamando
Eu vou passear na rua
Minha mãe tá chamando
Eu vou passear na rua
Sá rainha konga
Chega na janela
Sá rainha konga
Chega na janela
Venha ver marujo
Que já vai pra guerra
Venha ver marujo
Que já vai pra guerra
Vamos juntos
Para Belém
Vamos juntos
Para Belém
Visitar o santo Deus
Virgem Maria também
Visitar o santo Deus
Virgem Maria também
137
Eu tenho a África dentro de mim
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Ê ê minha mãe
Ê minha mãezinha
Ê ê minha mãe
Ê minha mãezinha
138
As toadas do Rosário
Lá no céu, cá na terra
Ela é a rainha
Lá no céu, cá na terra
Ela é a rainha
Ôi é hora, é hora
Coro
Vamos indo com Deus
Ôi vamos caminhar
Coro
Vamos indo com Deus
Ôi a Nossa Senhora
Coro
Vamos indo com Deus
Oi vamo kurimar
Coro
Vamos indo com Deus
139
Eu tenho a África dentro de mim
E N’Zambi amparar
Coro
Vamos indo com Deus
Yaô, yaô
Kamaverô yaô
Yaô
Então esses são alguns dos pontos que podem ser feitos na saída de
reino. As orações feitas no momento da saída, são para evitar quaisquer
problemas. Pedimos proteção, porque nós nunca sabemos o que vamos
encontrar pelo caminho.
Levantamento de bandeira
140
As toadas do Rosário
ensinou-me o meu pai, o terno, a guarda não pode parar de bater, e assim nós
temos feito: saímos e voltamos em casa batendo sem parar. Depois das 19h, que
chegamos em casa, fazemos orações e encerramos. São detalhes que hoje quase
ninguém mais cumpre. Toca um pouco, para um pouco. É claro que cada um
tem a sua situação, a sua peculiaridade, mas foi assim que eu aprendi e é assim
que eu e meu irmão, o capitão Antônio, estamos fazendo.
Tem as toadas, que tanto servem para abrir o reino, como servem para
caminhar, e para o levantamento de bandeira. Eu gosto muito de uma que
sempre que meu pai levantava bandeira, ele gostava de sair cantando e ele
cantava no serra abaixo. Sempre que eu tenho a oportunidade eu canto pra
sair, pra ir levantar bandeira.
141
Eu tenho a África dentro de mim
Ô Rosário é meu
Rosário é meu foi padre santo quem me deu
Ô Rosário é meu
Atenção para a seguinte questão: canto “filha criada” por ser mulher. O
“filho criado” é para o caso de quem estiver cantando ser homem.
É devagarinho é devagarinho
Ê no Rosário eu vou, eu vou
É devagarinho é devagarinho
Ê no Rosário eu vou, eu vou
142
As toadas do Rosário
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Então as toadas também não são somente essas que têm letra. Eu posso
cantar várias outras também que não tenham letra.
143
Eu tenho a África dentro de mim
Os pretinhos do Rosário
Quer bandeira
Quer bandeira pra beijar
Quer bandeira
E eu faço um convite aos reis para que nós possamos seguir com as
bandeiras:
Ê pai de Nganga
Pai de Nganga de Guiné
Vou levar minha bandeira
Vou levar com muita fé
Ê bandeira
Ê coroa
144
As toadas do Rosário
Ê Mandamento
Sobe pro ar
Ê Mandamento
Que eu quero ver
145
Eu tenho a África dentro de mim
Tira o chapéu
Tira o chapéu
Que a nossa bandeira
Subiu lá pro céu
Ê bandeira santa
Bandeira santa lá em cima, lá no ar
Ê bandeira santa
Abre os caminhos pra poder eu caminhar
Toda vez que se levanta uma bandeira, os capitães mais velhos, os mais
antigos, fazem uma toada cantada em derredor da bandeira, com o mastro já
levantado, com os bastões erguidos e tocando-os no mastro. Cada um tem
uma história pra contar dessa toada que também é uma história cantada.
Lá em Oliveira nós temos a notícia de um capitão que foi preso na época
da festa. E aí lá do fundo da cela ele cantou essa toada. E essa toada é pra
lembrar também que já houve um tempo que levantar bandeira era sinal de
cadeia, manifestar sua devoção através da Festa do Rosário já resultou em
pessoas presas na minha cidade. Levantava-se a bandeira e ia ser preso. E
essa toada é assim e vale a pena perpetuar, como todas as outras
Então são várias toadas. Não precisa tirar todas no mesmo dia, mas
precisa ter um repertório para ir guardando.
Alevantar bandeira
Alevantar bandeira
146
As toadas do Rosário
(Pergunta) Ê mandamento
(Resposta) Sobe pro ar
(Pergunta) Ê mandamento
(Resposta) Que eu quero ver
Entoamos também toadas que têm ôlêlê que tem uma diferença dentro
do Reinado, tem toda diferença dentro do massambike e do kongo. Com o
ôlêlê se move o céu, se move a terra e se move o mar.
Aiô lêlêêêia
Ôlêlêê êia
Ô lê
Ô lêlê ê ia
Ô lê
Ô lêlê ê ia
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô
Lêlê lêlê
Ô lêlê lêlê lêlê
Aiô lêlê
Ôlê
147
Eu tenho a África dentro de mim
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
148
As toadas do Rosário
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô
Ô ôlê
Ô ôlá
Ô ôlê
Ô ôlê êia
Ôlê
Ôlá
Ôlê ôlêlê êia
Ôo ôo lê
Ôo ôo lá
149
Eu tenho a África dentro de mim
Ôo ôo lê
Ôlêlê lêlê lálá
Ôlêlê
Ôlêlê lálá
Tem uma toada com “ôlêlê” que acalma qualquer pessoa e qualquer
ambiente. Ela faz até dormir. Só de a ir cantando já acalma e se souber a
pessoa dorme.
A toada tem “lêlê lêlê lêlê”, só que aí, quando você põe o “lá”, você
direciona. Fazendo uma comparação, o povo da magia gosta de usar uma
varinha de condão, o “lá” é quando você pega essa força que é o “lê” e a
direciona. Quando você diz o “lá”, você dá direção, você diz “lá”. Então ele
é mais perigoso quando coloca o “lá” no meio do “lêlê”, você torna o “lelê”
mais perigoso ainda, porque ao invés de deixar ele fazer uma jornada, você
induz, direciona.
Ôlê ôlá
Ôlêlê êia
150
As toadas do Rosário
Chora ngoma ué
Ôtarilêlê êiô
Ôtarilêlê êiô
Ô lêlê êiô
Ôlê ôlêlêia
Ôlê ôlêlêia
Ô ngoma
Ôlêlê ngoma
Aiôlêlêêêia
Aiôlêlêêêia
Lêlêlêlê
Ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlêlê
ôlê
Ôlê
Ôlêlêlálá
Lêlêlêlêlêlêlê
Ôia
Lêlêlêlêlêlêlê
Ôia
Ô ilêlêlêlê
Ô ilêlêlêia
Ôtilêlê ôô
Ôtilêlê ôô ôô
151
Eu tenho a África dentro de mim
Ôtilêlêlê
Ôtilêlêlê tilêlêlê tilêlêlê
Ôtilêlêlê ôtilêlêlê
Aiôlêlêlêlêlê ô
Ô ô ôlêlêlêiô
Lêlêlêiô
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê ôlêlê ôlálá
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê ôlêlê ôlálá
152
As toadas do Rosário
Ô ô ô lêlêiô
Ôlêlêiô
Aiô lêlê iô
Aiô lêlê ôô ôô
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô
153
Eu tenho a África dentro de mim
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô
Ôtindô lêlêlê
Ôtindô lêlêlê
Ôtindô lêlêlê
Êiô
Ô lê iô
Kaô, kaô
Kaô tindolêlêlêio
Kaô, kaô
Kaô tindolêlêlêio
154
As toadas do Rosário
Festa da Abolição
155
Eu tenho a África dentro de mim
(Pergunta) Sariême
(Resposta) Tem que mocotar
(Pergunta) Sariême
(Resposta) Tem que mocotar
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) No tempo do cativeiro
No tempo do cativeiro
Quando o sinhô me batia
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
(Resposta) No tempo do cativeiro
No tempo do cativeiro
Quando o sinhô me batia
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Ôlê ôlê êêia
156
As toadas do Rosário
157
Eu tenho a África dentro de mim
Toadas de cortejo
158
As toadas do Rosário
Ôi Senhora do Rosário
Olha a sua casa cheira
Cheira cravo, cheira rosa
Cheira flor de laranjeira
Ô meu rosário
É minha vida
Ô meu rosário
É minha vida
Pega com Nossa Senhora
Minha mãe querida
Pega com Nossa Senhora
Minha mãe querida
Eu sou devota
Da Virgem Maria
Ela é nossa força
Ela é nossa guia
159
Eu tenho a África dentro de mim
160
As toadas do Rosário
161
Eu tenho a África dentro de mim
Akuendê akuendê
Akuendê onjira mussambi
Akuêndê
162
As toadas do Rosário
Ô Capitão
Ô capitão
Papai morreu, mamãe já teve fim
Vou pedir Nossa Senhora
Pra tomá conta de mim
Senhora do Rosário
Seu Rosário me clareia
E as estrelas lá do céu
Oi a sua coroa alumeia
Embelezou, embelezou
Embelezou o Rosário de Maria
Embelezou
163
Eu tenho a África dentro de mim
Massambikeiro ê, massambikeiro ah
Massambikeiro ê, massambikeiro ah
Uuu, aaa
Uuu, aaa
164
As toadas do Rosário
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
165
Eu tenho a África dentro de mim
(Verso)
Ei, ô mamãe cheguei agora, pra pedir sua benção
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Abençoe a minha vida, oi me dê a direção ê
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Olha a volta do mundo, olha o mundo devagar
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Ê olha eu vou caminhando, caminhando devagar ê
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Ê olha é de passo em passo, olha que se chega lá
166
As toadas do Rosário
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Olha peço a proteção, ô mamãe que aqui venha socorrer
(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu
(Verso)
Olha eu peço sua benção, ô mamãe ô que venha me valer
Ôlê ôlêlêêêia
Ôlê ôlêlêêêia
Nossa Senhora
Foi morar na lapa
Na lapa não pode morar Nossa Senhora
É no Rosário
Na lapa não pode morar Nossa Senhora
É no Rosário
Senhora do Rosário
Foi quem me trouxe aqui
Senhora do Rosário
Foi quem me trouxe aqui
A água do mar é santa
Eu vim, eu vim, eu vim
A água do mar é santa
Eu vim, eu vim, eu vim
Foi na lapinha
Onde ela apareceu ai
Foi na lapinha
Onde ela apareceu ai
Relampiou
Quando ela apareceu
Oi Senhora do Rosário
Abençoe os filhos seus ai
168
As toadas do Rosário
Mas ela é
A Rainha das Flores
Oi lá no campo do Rosário
Onde ela é uma flor
Oi lá no campo do Rosário
Onde ela é uma flor
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Ô sabiá
Essa gunga me faz chorar
Ô sabiá
Essa gunga me faz chorar
169
Eu tenho a África dentro de mim
Viva o Rosário
Viva nossa mãe Santa Maria
Aê, aê
Ôi viva o Rosário
Ôi viva Maria ô
Ôlêlê
Ôlêlê
Ôlêlê tilêlêlê
Tilêlêlê
170
As toadas do Rosário
Aiôlêlêiô
Aiôlêlêiô
Ôlêlêlêlêlê ôô
Meu pai gostava de cantar no terno das Mercês e nesta toada, existem
duas respostas: a primeira é o “Ôôôôôôôôôôô”, e a segunda é “Ôlêlêêiá,
ôlêlêiô”. Vou apresentar algumas possibilidades de versos para utilizá-las.
Lêlêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Aiô lêlêlê, ôlê
171
Eu tenho a África dentro de mim
Aiôlêlêlêlê
Aiôlêlêlêa
Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
Ô ngoma
Ô lêlê ngoma
Ô ngoma
Ôlêlê chora ngoma
Hoje em dia, primeiro você tira a toada, pra depois você começar a
versear, mas antigamente não era assim. O capitão já começava verseando e
a gente já tinha que entender qual era a toada que ele queria. E aí tem umas
muito pequenas que é muito interessante, que ele já fazia aquele verso e a
gente respondia.
Ôlê ôlêlêiô
Aí a gente já sabia:
Ôlê ôlêlêiô
172
As toadas do Rosário
Hoje não é assim mais, se eu fizer o verso eles não sabem, ficam
olhando para mim sem entender.
Inclusive esse é um serra abaixo que é rápido. Não quer dizer que o
serra abaixo deve ser sempre lento.
(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô
(Verso)
Êi, oi eu vim de Angola
De Angola que eu veio tocar
(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô
(Verso)
Êi, ô minha mamãe que me chama, ô mamãe mandou me chamar
(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô
173
Eu tenho a África dentro de mim
Ôlê ôlá
Ôlêlêêiá
174
As toadas do Rosário
Ajoelhai Sinhô
Ajoelhai Sinhô
Diante de Deus e de Nossa Senhora
Ajoelhai Sinhô
Ajoelhai Sinhá
Ajoelhai Sinhá
Diante de Deus e de Nossa Senhora
Ajoelhai Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei o manto sagrado
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei o manto sagrado
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei coroa santa
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei coroa santa
Ô recebei Sinhá
175
Eu tenho a África dentro de mim
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei seu centro santo
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei seu centro santo
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei o seu Rosário
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei o seu Rosário
Ô recebei Sinhá
Enjuelhai Sinhô
Enjuelhai Sinhô
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Enjuelhai Sinhô
Enjuelhai Sinhá
Enjuelhai Sinhá
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Enjuelhai Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O manto de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô
176
As toadas do Rosário
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O manto de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
A coroa de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
A coroa de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O cajado de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O cajado de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O Rosário abençoado
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O Rosário abençoado
Ô recebei Sinhá
177
Eu tenho a África dentro de mim
Em qualquer dessas versões que for escolhida, quando acabar canta “Lá
do céu invém descendo uma coroa”.
Alevantai Sinhô
Alevantai Sinhô
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Alevantai Sinhô
Alevantai Sinhá
Alevantai Sinhá
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Alevantai Sinhá
178
As toadas do Rosário
Aí a toada, se vai tocar serra acima, se vai tocar serra abaixo, se vai só
rufar os tambores, fica a critério de cada capitão de terno.
Ê coroa nova
Ê coroa nova
Coroado, coroado
Oi viva a coroa minha
Coroado, coroado
Sinhô rei, Sinhá rainha
Está coroado
Está coroado
Está coroado neste reinado
Está coroado
Está coroado
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Para fazer coroação dos capitães, as toadas são essas mesmas apenas
mudando de Sinhô ou Senhor rei, de Sinhá ou Sá rainha para capitão ou
capitã, mas a maneira de fazer é a mesma.
Quando for o caso de coroação de reis festeiros, reis de ano, reis que vão
entrar em um ano e sair no outro, a toada a seguir pode ser entoada também.
Coroar
Coroar Sinhá Sinhô
Coroar
Coroar Sinhá Sinhô
Coroar nosso rei de ano
Nosso rei imperador
Coroar nosso rei de ano
Nosso rei imperador
179
Eu tenho a África dentro de mim
Tem outras toadas para fazer a louvação de coroa. Tem uns que podem
ser cantados também no cortejo sem nenhum problema, sem incorrer em erro.
Ê coroa
Ôlêlê coroa
Tem uma muito antiga que meu pai gostava de cantar louvando os reis.
Seja porque tinha acabado uma coroação ou seja porque eram reis perpétuos
ou reis kongos.
Oi viva o rei
Viva rainha
Oi viva o príncipe
E a princesinha
Viva, viva
Viva a coroa sagrada
Viva, viva
Foi por Deus abençoada
Coroas de promessa
180
As toadas do Rosário
fizer promessa para cumprir de joelho, o capitão ou capitã que for cumprir
puxando o terno, caso a pessoa não dê conta de ir de joelhos, o capitão ou
capitã tem que ajoelhar e cumprir o restante da promessa. Promessa é dívida
e é dessa forma que tem que ser feito, porque senão não fica cumprida.
Outra coisa que eu aprendi é que cumprimento de promessa tem que dar
sete voltas. Hoje tem gente dando apenas uma volta, mas o cumprimento
de promessa mesmo são sete voltas. Os capitães mor, os capitães regentes,
os capitães de terno devem orientar as pessoas quando forem cumprir a
promessa porque senão não fica feito direito e aí o próprio capitão vai ficar
junto devendo a promessa.
Podemos entoar
181
Eu tenho a África dentro de mim
182
As toadas do Rosário
Ô entregai Sinhô
Ô entregai Sinhô
Entregai o manto sagrado
Ô entregai Sinhô
Saruê Galanga
Vencedor de Mara Mara
Chico Rei não foi vencido
Nem no tempo da senzala
Galanga é o nome de Chico Rei. Eu ainda vou gravar o nome todo dele,
gravar que eu falo é mentalizar. Galanga era um guerreiro que depois virou
capitão de guerra preta. Essa expressão “capitão de guerra preta” equivale
a um general nosso hoje. E aí a família, a ascendência dele é Aluquene,
e Aluquene é uma rainha, e não um reino. Ela teve o reino tomado, e aí
Galanga refugiou numa cidade, numa aldeia chamada Bula. E lá no final eles
tiveram uma guerra num campo chamado Mara Mara.
183
Eu tenho a África dentro de mim
Na história conta que o campo de Mara Mara estava muito nublado, e ele
com as estratégias de guerra, conseguiu vencer. Reassume o reino de Kongo,
se tornando imperador do Kongo. Galanga ganhou o nome de Chico Rei aqui
em Minas Gerais, título dado pelo povo, por saberem de sua história como
imperador de Kongo que se torna escravo em Vila Rica, Ouro Preto.
Mas quando eu canto que Chico Rei não foi vencido nem no tempo da
senzala, é porque ele não perdeu o porte, não perdeu a nobreza, não perdeu
nem mesmo a coroa, ele é conhecido como rei até hoje. E aí em poucos
versos eu vou resumindo a história, e embora o Reinado não comece com
ele, é uma pessoa importante na história do Brasil.
Sua coroação deu visibilidade ao Reinado. Quando ele saiu coroado, ele
começou a fazer esses cortejos com a autorização da coroa portuguesa para
sair coroado, e usava isso em benefício do próprio povo negro.
Ele alforriou perto ou mais de 400 pessoas, com recursos dele e isso
ninguém fala. Teve a vivência na mina e já não carpia mais. Antigamente
usava-se o termo não carpir mais para falar das minas que não se achava mais
ouro, mas ele conseguiu chegar no ponto que tinha ouro e ela voltou a carpir,
isso que é bonito, em um momento ele foi preso numa hora que os guerreiros
estavam guerreando, então foram raptados a guarda real e os mais velhos,
184
As toadas do Rosário
em Minas Gerais ele saiu dando a liberdade. O filho ficou preso na senzala
e ele foi trabalhando até conseguir a liberdade do filho e em seguida foi
trabalhando os dois até conseguir, com realização de quermesse, ele comprava
a alforria. Vendia o pouco que achava de ouro e libertou toda a guarda real que
ainda estava escrava. E aí eles dançaram pela primeira vez naquela igreja que
está lá até hoje, em Ouro Preto-MG, que é a Igreja de Santa Efigênia.
Quem fez aquelas pinturas da igreja, sabia muito bem o que estava
fazendo, porque o desenho no teto é de um papa negro, e todos os altares
estão esculpidos, a madeira esculpida de búzio. Aquela Igreja ali foi feita
para virar um marco.
Cantar a toada que conta a história de Chico Rei não é uma regra: posso
cantá-la, como posso fazer outros tipos de cumprimento aos reis kongos.
Atenção que essa toada é louvar e não levar, porque tem outras toadas
que é levar. Esse é um momento de cumprimento de coroa, não é uma toada
que se canta na rua andando. Ou é no reino, na casa dos reis, quando for
fazer os cumprimentos a gente canta fazendo o cumprimento a cada um.
Ê coroa
Ôlêlê coroa
Coroa, coroa
Coroa, coroa
Coroa de lágrima, coroa
Coroa de lágrima, coroa
185
Eu tenho a África dentro de mim
A Senhora do Rosário
É a nossa padroeira
Nesse palácio tem amor
A Senhora do Rosário
É a nossa padroeira
Ê coroa
Ôlêlê
Coroa
186
As toadas do Rosário
Ê balaim de fulô
Ê balaim de fulô
A coroa do rei balanciô
Ê balaim de fulô
Esse “ê” é o que deixa ainda mais bonita a toada e o pessoal mais
antigo dava conta de fazer esse devorteio que é muito lindo.
187
Eu tenho a África dentro de mim
Ô Sinhá, ô Sinhá
Vamo fazê maravia Sinhá
188
As toadas do Rosário
Ô Sinhó
Ô Sinhá
Ô Sinhô
Eu vou plantar canaviá
189
Eu tenho a África dentro de mim
Viva o Rosário
Rosário viva
Viva o Rosário
Rosário viva
Rei, rainha, príncipe e princesa
Rei, rainha, príncipe e princesa
Ave Mareia
Ave Mareia
Pai Nosso Ave Maria
Ave Mareia
190
As toadas do Rosário
Toadas de demanda
Sereia, sereia
Saia do fundo do mar
Venha brincar na areia
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô
Aiô lêlê iô
Aiô lêlê ôô ôô
191
Eu tenho a África dentro de mim
Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô
192
As toadas do Rosário
Oi no tempo de Reinado
Saracura não pisa no molhado
Oi no tempo de Reinado
Saracura não pisa no molhado
Oi no tempo de Reinado
Tico-tico não sobe no telhado
Oi no tempo de Reinado
Tico-tico não sobe no telhado
Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô
Capela do olho é a pálpebra. Falo que ele me perturba, mas que não me
atingiu.
Marimbondo miúdo
Vai picar tico-ti
Marimbondo miúdo
Vai picar tico-ti
193
Eu tenho a África dentro de mim
Vassourinha
Varre o meu caminho
Vassourinha
Varre o meu caminho
Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô
Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô
194
As toadas do Rosário
Marimbondo pequenino
Faz sua casa de sapé
Pego todos inimigos
Boto na sola do pé
Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô
195
Eu tenho a África dentro de mim
Ô Sariema
Canela fina corredeira
Nunca vi bicho de pena
Deixar rastro na ladeira
196
As toadas do Rosário
Eu vi, eu vi
Eu vi o pio da ema
Eu vi, eu vi
Eu vi o pio da ema
Ela piou
Ela piou
Lá embaixo em Barbacena
Lambari morreu
Na beira do mar
Joga areia nele marinheiro
Pisa devagar
197
Eu tenho a África dentro de mim
(Pergunta) Ê massambike
(Resposta) Soca no pilão
Ê massambike
Soca no pilão
Massambike
Soca no pilão
Massambike
Soca no pilão
198
As toadas do Rosário
199
Eu tenho a África dentro de mim
É preto, é preto
Kalunga
Todo mundo é preto
Kalunga
Passarinho piou
Deixa ele piar
Passarinho piou
Deixa ele piar
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá
Ê samba preto
Branco não vem cá
Se vier
Pau vai quebrar
200
As toadas do Rosário
Tem dó tem dó
Tem dó tem dó
Não mata não machuca só
Não mata não machuca só
201
Eu tenho a África dentro de mim
202
As toadas do Rosário
Senhora rainha
Que na minha frente está
Viajamos dia e noite
Noite e dia sem parar
Vim trazer meus marinheiros
Para lhe cumprimentar
Viajamos dia e noite
Noite e dia sem parar
Vim trazer meus marinheiros
Para lhe cumprimentar
203
Eu tenho a África dentro de mim
Tem dó tem dó
Tem dó tem dó
A camisa de nêgo é mulambo só
A camisa de nêgo é mulambo só
Oi Senhora do Rosário
Tenha pena de nós alembra
Alembra, alembra, alembra
Oi Senhora alembra
Pelo amor de Deus
Tenha pena de nós alembra
Ôlê ôlá
Vou pedir Nossa Senhora
Ôlê ôlá
Ela vai nos ajudar
204
As toadas do Rosário
205
Eu tenho a África dentro de mim
Katé jibueto
Katé jibueto
Óia Ngana N’Zambi
Katé até
Katé até
Jibueto
Auê auê
Auê auê auê
Auê auê
Aiô
206
As toadas do Rosário
Ô guiné
Ô guiné
Ô guiné
Até um dia se Deus quiser
207
Eu tenho a África dentro de mim
Pavão bonito
Bateu asa e avuou
Pavão bonito
Bateu asa e avuou
Adeus irmã (ã)
Eu já vou, já vou
Adeus irmão (ã)
Eu já vou, já vou
208
As toadas do Rosário
209
Eu tenho a África dentro de mim
Adeus irmão
Até no dia do juízo
Um dia encontraremos
Óia lá no paraíso
Ai ai que dor
Ai ai que dor
Que dor no meu coração
Ai que dor
Meu coração tá doendo ai que dor
Ai que dor
Capitão chorou
Lá embaixo na bahia
Capitão chorou
Lá embaixo na bahia
Chorou, chorou, chorou
No Rosário de Maria
Chorou, chorou, chorou
No Rosário de Maria
210
As toadas do Rosário
(Pergunta) Oi Mariazinha
(Resposta) Não soube remar
Tem uma muito antiga também que serve pra fazer uma limpeza em
todos que estão ali. Isso pode ser cantado perante a mesa, pode ser cantado
na sede do terno sempre que precisar.
Orientar os dançadores que quando falar “Oi saiu dessa altura” eles
devem pular, e é nisso que está o segredo de uma coisa que parece que não
tem nada, mas quebra qualquer mal.
211
Eu tenho a África dentro de mim
Sá rainha me chamou
Me chamou pra kuriar
Já vou indo Sá rainha
Caminhando devagar
212
As toadas do Rosário
Oi panela de barro
Colher de madeira
Oi panela de barro
Colher de madeira
A comida de São Benedito
Êta comida que cheira
A comida de São Benedito
Êta comida que cheira
Vamos agradecer
Essa nossa refeição
Vamos agradecer
Essa nossa refeição
Pois Deus nos deu de comer
Nos deu de beber
Por seu grande valor
213
Eu tenho a África dentro de mim
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Se ajoelharam
Os pretinhos do Rosário
Se ajoelharam
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Se alimentaram
Os pretinhos do Rosário
Se alimentaram
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Alevantaram
Os pretinhos do Rosário
Alevantaram
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Agradecero
Os pretinhos do Rosário
Agradecero
214
As toadas do Rosário
Já comeu, já bebeu
Já comeu, já bebeu
Óia vamo agradecer meus irmãos
O pão que Deus deu
Óia vamo agradecer meus irmãos
O pão que Deus deu
Eu quero, eu quero
Eu quero agradecer
Eu quero, eu quero
Eu quero agradecer
O que deu pra nós comer
O que deu pra nós beber
A Senhora do Rosário
É quem vai pagar vancê
A Senhora do Rosário
É quem vai pagar vancê
215
Eu tenho a África dentro de mim
Já comeu, já bebeu
Já comeu, já bebeu
Eu agora vou me embora
São Benedito que abençoe
Junto com Nossa Senhora
Toadas de despedida
Oi que felicidade
Quanta alegria
Até outro ano
Até outro dia
Amor de marinheiro
Amor de meia hora
Amor de marinheiro
Marinheiro vai se embora
216
As toadas do Rosário
Ô Guiné
Ô guiné
Ô guiné
Até paro ano se Deus quiser
Adeus adeus
Ôi Eu vim de Angola
Eu vou me embora
Adeus adeus
Ôi Eu vim de Angola
Eu vou me embora
Estes olhos que estão me olhando
Os ouvidos que estão me escutando
Falar neste terreiro
Eu vou sair daqui chorando
Estes olhos que estão me olhando
Os ouvidos que estão me escutando
Falar neste terreiro
Eu vou sair daqui chorando
Adeus adeus
Não chore não
Paro ano eu voltarei
Pra cumprir nova missão
217
Eu tenho a África dentro de mim
Ô jabalôa êêia
Ô jabalôa êêia
218
Obi
LÍNGUAS AFRICANAS E
FALARES EM DIÁSPORA
Eu tenho a África dentro de mim
Diz o dito popular: “quem sai aos seus, não degenera”. Meu pai nasceu
em 1894, e contava que ele mesmo se registrou com 14 anos. O escrivão do
cartório cometeu o equívoco de registrar como o ano de seu nascimento, o
ano em que ele foi se registrar. Pela idade dos irmãos dele e contando os 14
anos, entendemos que ele é de 1894. Os meus avós paternos Pedro Miguel
Dias e Inês Maria da Conceição foram escravizados, bem como minha tia,
Amásia da Conceição. Desde pequena eu já sabia os vocábulos que meu pai
Leonídio usava no Reinado, porque ele falava cotidianamente. Eu tinha uma
tia, a Rosalina, irmã do vovô Joviano, muito pretinha, que chegou a ficar uns
dias na Casa Azul, que na época em que era a moradia de meus pais. Nos
mudamos para lá eu tinha treze anos. Ela só falava na língua de nêgo, eram
poucas coisas que entendíamos dentre as palavras que ela falava e cantava
também, sacudindo o corpo como se dança no masambike, palavra que
significa “dança sagrada que veio de Angola e cantava assim:
Eu passei no caminho
Eu pisei na tijuca
Quero saber se essa gunga machuca
222
Línguas africanas e falares em diáspora
Durante o dia, quando meu pai saía com o terno para fazer as visitas,
na semana da Festa do Rosário, ele só cantava na língua de nêgo, raríssimas
vezes ele falava o português, isso devido a convivência com pessoas negras
que foram escravizadas, seus pais e tios, que sempre se comunicavam na
língua africana. A medida que foi crescendo, ele que gostava de falar nessa
língua de nêgo, ou o “dialeto de senzala”, como nomeia a professora Yeda
Pessoa de Castro, foi reproduzindo em casa sua prática nesta língua.
223
Eu tenho a África dentro de mim
Trago aqui algumas delas, são somente poucas, como elas, tem muito
mais. Nos bons dicionários tais palavras de línguas do povo Bantu, vêm
com “kim” antes do vocábulo, apresentando a abreviação entre parênteses
e o “kim” é do kimbundu. São elas: angu, babaca, bagunça, balangandã,
bambolê, banzé, batuque, beleléu, birita, bitelo, borocoxô, bugiganga,
bunda, caçamba, cachaça, caçula, cafuné, canjica, capanga, capenga, catinga,
cachimbo, caxumba, cochilar, coque, cuíca, dengo, farofa, fofoca, fubá,
fuleiro, furduncio, futrica, fuzuê, forró, fuxico, gangorra, ganzuá, gogó,
gororoba, gunga, implicar, jiló, lambança, lambão, lenga-lenga, lero-lero,
maconha (fumo de Angola), maluco, mangar, mamona, manha, maracutaia,
marimbondo, miçanga, mingau, minhoca, moleque, molenga, moranga,
moringa, muamba, mulambo, muxiba, muvuca, pamonha, pindaíba, pirão,
quiabo, quindim, samba, sova, sunga, trambique, tribufu, farofa, tundá,
tutano, tutu, urucubaca, xará, xepa, zangar, zunzum, zoeira.
224
Línguas africanas e falares em diáspora
Eu - Eme
Tu – Eie
Ele/Ela – Mueme
Nós – Etu
Vós – Enú
Eles – Ene
Prefixos
Alteram o significado das palavras, mudam o tempo do verbo
Ba - plural
Ka - lugar ou diminutivo
Ke - negação
Ki - aumentativo
Ku - infinitivo ou imperativo
Mi - diminutivo
Mu - singular
Alguns exemplos:
Dilonga - prato
Indara - fogo
Ka - lugar; ndomblé - oração, orar, logo kandomblé - lugar de orar
Kale – caneca, copo (terreiro)
225
Eu tenho a África dentro de mim
Amaze - água
Ambia - borboleta
Ami - meu
Arunanga - roupa
Diambe - hoje
Dikanu - boca
Disa - milho
Dya - de
É - teu
Ê - seu
Ê angana - ô senhora
Ê ngana - ô senhor
Enza mundo
Ezundu - sapo
Fundanga - pólvora
Gundelela - pedir, rogar
Hongolo - arco-iris
Imbuia - cachorro
Ionene - grande
Jikula - abrir
Kalunga - mar, cemitério
226
Línguas africanas e falares em diáspora
kamba - amigo
Kamberera - carne
Kamutuê - cabecinha
Kangulo - porco
Kate - até
Katiovile - café
Katiô - chuva
Kaxitu - pedaço de carne
Kene, sem
Kia - já
Kimbote - baixo
Kinama - perna e pé
Kinene - muito
Kizua – dia
Kuala - unha
kuambe - hein
kuambe-tata - que tal, o que acha, o que me diz
Kuata - pegar, tomar
kuenda - andar, partir
Kurimar - trabalhar
Laloka - perdão
Lundembu - cabelo
Lupueno - espelho
Maionga - banho de purificação
Maku - mão e braço
Malungo - irmão
Mama múngua - madrinha
Mavu - terra
Mbotê – Salve, seja bem vindo, obrigado
Mesu - olho
Minhoka – cobra pequena
Mukongo - caçador
Mulele - pano
Mungu, lola - amanhã
Mungua - sal
Mussuru na indaca – silêncio
Mutuê – cabeça
227
Eu tenho a África dentro de mim
Muxima - coração
Muxitu - mata
Mênga - sangue
Ndandu - abraço, parente
Ndumbe - aprendiz
Ndungu - pimenta
Ngala - alegria
Ngombe - boi
Ngombo - boiadeiro
Ngulungu - veado
Nguzu - força
Nhoka – cobra
Njo, onjó, nzó - casa
Nzala - fome
N’Zambi - Deus
Obembua - paz
Oko - aí, nesse lugar
Okualê – boa noite
Okuasan – boa tarde
Oliá - venha cá
Ombera - chuva
Ombera, chuva
Omenha - energia da água
Ongira, ingira, nzila - caminho
Oto - fonte
Paku - arruda
Pala - para
Pokó - faca
Rieji - lua
Sambilê - igreja ou capela
Sangi - galinha
Sanji - galinha ou frango
Senguê, mata
Tadi - pedra
Tata múngua - padrinho
Tipokê - feijão preto
Ualua - cerveja
Ukamba - amizade
228
Línguas africanas e falares em diáspora
Ulungu - canoa
Vipaco - dinheiro
Walembessa - boa noite
Wana - rede
Wanange - boa tarde
Wazakele - bom dia
Xibulu - aluno
Xingu - pescoço
Zuela - fala
Números em Kimbundu
1 - Moxi
2 - Iari ou Iadi (Kari)
3 -Tatu
4 -Uana
5 -Tanu
6 - Samanu
7 -Sambuari ou Sambuadi
8 - Nake (Rinake)
9 - Ivua ou ‘vua (Rivua)
10 - Kuinii ou Kuinhi (Rikumi)
11 - Kuinii ni Moxi
12 - Kuinii ni Iari
Numerais Ordinais
Número Kimbundu
229
Eu tenho a África dentro de mim
230
Línguas africanas e falares em diáspora
Ô jikula é abrir.
Então jikula é abrir e ongira é caminho. Este canto, é um canto que nós
fazemos pedindo... Pedindo essa abertura de caminhos.
231
Eu tenho a África dentro de mim
Yaô, yaô
Camaverô yaô, yahô ô ô
Katê lola, katê mungu
Katê lola mukuetu, katê mungu
Anatuê, katuê
Anatuê, katuê
Ngasakidila (Obrigada)
232
Sabugueiro
VIVÊNCIAS DA
ESPIRITUALIDADE
NA VIDA DOS
OBJETOS RITUAIS1
1 Esse capítulo se baseia numa fala pública da Capitã Pedrina em dois textos publicados anteriormente no
Boletim da Comissão Mineira de Folclore (n. 15/1992 e n. 24/2005).
Eu tenho a África dentro de mim
(Paz de Deus para todos que estão aqui agora. Que Deus abençoe a todos.)
236
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais
237
Eu tenho a África dentro de mim
escravizados. Cada instrumento deste tem seu uso e a ocasião certa em que
devem ser manipulados, e para isso, quem os manuseia deve ter um bom
conhecimento sobre as forças que estão envolvidas em cada momento ritual
do Reinado.
238
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais
Nestes processos rituais, utilizamos as ervas, uma vez que não fazemos
nada sem elas para sacralizar todos os objetos que compõem o Reinado.
239
Eu tenho a África dentro de mim
Eu vou
Eu vou
Eu vou no Rosário, eu vou
Eu vou
Eu vou
Eu vou no Rosário, eu vou
240
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais
241
Eu tenho a África dentro de mim
242
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais
243
Eu tenho a África dentro de mim
244
E vocês, conhecem suas
histórias, suas origens, suas
culturas?
Flor azul
NSABAS E SEUS USOS
Eu tenho a África dentro de mim
248
Nsabas e seus usos
Katendêêêê
Katendêêêê
Tão me chamando na aruanda aldeia
Tão me chamando na aruanda aldeia
249
Eu tenho a África dentro de mim
Tem plantas que todo mundo conhece, plantas com propriedades anti-
inflamatórias, tem planta que tira a febre, que emagrece, que engorda e esse
povo de Reinado que recebeu este conhecimento sabe fazer bom uso delas.
Jaca
250
Nsabas e seus usos
Fico triste e dói mesmo o coração ver as mães naquela avenida Ezequiel
Dias, no Centro Geral de Pediatria, em Belo Horizonte - MG, o dia inteiro
buscando acolhimento para o filho que tem só um resfriado, uma gripe,
porque hoje ela não sabe mais nada que possa curar. E o mais triste: ela fica
lá o dia inteiro, às vezes só tem a passagem, não tem nada para alimentar, não
tem como dar alimentação para o filho. Se não amamenta mais no peito, e no
final, se conseguir ser atendida, o médico fala que é um vírus, uma virose.
251
Eu tenho a África dentro de mim
A planta pindaíba tira o mau, tira os maus fluidos, que muitas vezes
são construídos por nós mesmos, pelos nossos pensamentos ruins, pelos
nossos sentimentos ruins, pelas nossas ações ruins.
252
Nsabas e seus usos
Esse remédio é para acabar com a infecção, para acabar com o problema no
útero e ovário. Toma até acabar.
253
Eu tenho a África dentro de mim
Depois que viramos “macumbeiros”, que é assim que eles nos chamam,
passamos a ver tudo com olhos diferentes. Aquilo que está para ser jogado
fora, o que é desprezado, muitas vezes é o que vai salvar uma vida.
Reparem que tem um monte de pessoas idosas que andam com blusa de
frio? É que estão sentindo frio mesmo. Assim é com o bebê, mas as mães e
os pais de hoje desavisados, acham que faz calor, dá para deixar o bebê só
de fraldinha. Aí ele panha resfriado, aquilo vira bronquite e vira asma, que
é um problema muito maior. Então não é que tem que abotoar o bebê de
roupa não. Ao acabar de dar o banho, e era assim que nós fazíamos: primeiro
punha um pouquinho de álcool na banheira, que ajuda a cortar o resfriado,
acaba de dar o banho, põe uma camisetinha, para que o peito e as costas não
fiquem expostas. Põe uma camisetinha, mas não deixa ele peladinho, por
mais que ele esteja suando. Logo que terminava de arrumar o bebê, arrumava
uma chuquinha de funcho, erva doce ou de poejo e dava para o bebê.
254
Nsabas e seus usos
estava cuidando muito bem ao deixá-lo com pouca roupa por entender que a
criança estava sentindo calor.
Atentem para o manjericão branco, ele tem algumas diferenças do outro que
é o roxo. Ele é verde mais claro, dá um pendãozinho com umas florzinhas
brancas. Se você for ao Mercado Central, dificilmente acha dele, vendem
do outro. O talo dele é verde, no outro a folha é mais escura e o talo é meio
arroxeado. Tem um que a folha é roxa. Ele acalma. Tanto faz beber ou o
banho. Limpa o corpo físico e espiritual.
Erva Cidreira é calmante, anti-gripal. Pode ser feito chá com ele.
255
Eu tenho a África dentro de mim
Guiné é muito bom para a garganta, só não pode ser demais que mata. Pode
ser feito banho com ele também. É uma beleza para tudo, só não pode usar
demais. Faz chá com a folha, lembrando que não pode beber muito, todo dia,
nem toda semana. Pode pegar algumas folhas e fazer, o beber demais é que
pode matar.
Laranja da terra faz chá e banho com ela. Serve para limpeza.
Pitanga serve como banho e como chá. Para reenergizar, para abertura
de caminhos. Eu receito muito para as pessoas que eu atendo. Revigora
as forças do corpo e ajuda a pessoa até a arrumar um emprego. A pessoa
vai mentalizando o que precisa à medida que vai se fazendo. O banho é da
cabeça aos pés.
Quebra pedra para os rins e para expelir cálculos renais. Pode-se fazer chá
e bebe.
Tançagem é para garganta. Prepara ela como chá. Pode ser feito gargarejo.
256
Nsabas e seus usos
Tem que tirar as primeiras folhas. As que estão naquele umbigo. Ferventa
bem, e depois é que vai provar, com o tempero da sua forma. Isto se for para
comer.
Urucum faz o coloral com ele. Vocês vão lá no supermercado e compram um.
Às vezes nem sabem que é feito do urucum. É uma sementinha, ralada com o
fubá solta aquela cor e isso não faz mal algum, ou socada. Ela sai a tinta.
Bananeira
REZAS, BENZIÇÕES
E SIMPATIAS
Eu tenho a África dentro de mim
Muitos negam, mas na hora que aperta, vão atrás do raizeiro, atrás de
um benzedor e atrás da benzedeira. As pessoas buscam desse conhecimento
que eu tenho alegria também de participar. Nesta questão temos que ter a
sabedoria, porque para ajudar algumas pessoas preciso utilizar recursos que
sejam aceitáveis pela sua religião e que não prejudique a benzeção.
260
Rezas, benzições e simpatias
Paulo Apóstolo tem uma passagem na bíblia que diz: “Fiz-me fraco
com os fracos, forte com os fortes, para ver se no meio de todos, se salvava
ao menos um”. Se eu for falar que eu vou dar um passe, as pessoas não vão
querer por entenderem se tratar de coisas “erradas”. Os Pretos Velhos dão
passe, que acontece nos terreiros, e se for fazer isso, aí já não vai servir. A
oração, seja em qualquer religião, serve para nos conectar ao poder criador
do governo divino.
Fico triste ao ver que as pessoas não fazem mais uso do banho de
canjica para se acalmar ou não acreditam na capacidade de cura que este
banho tem. No intuito de auxiliar as pessoas, eu me arvorei por mim mesma
a ensinar como se faz.
261
Eu tenho a África dentro de mim
Certa vez, ouvi a seguinte história: tinha um senhor que todo dia ele
passava na Igreja e sentava lá. Ele entrava na Igreja e falava assim: “Oi Jesus,
eu sou o Zé”. Só isso, todo dia ele passava lá e falava: “Oi Jesus, eu sou o Zé”. O
tempo foi passando, foi passando, foi passando, até que um dia ele se adoentou
muito, ficou pra morrer e de repente, com uma coisa que fica entre ver o
mundo do plano físico e do plano espiritual, ele viu um senhor sentado ao
lado dele e esse senhor falou assim: “Oi Zé, eu sou Jesus”. Então não é muita
coisa, a mente é que vale. O mundo que a gente vive, está muito voltado para
as coisas materiais. A ciência se preocupa muito com vírus, com bactérias, e
262
Rezas, benzições e simpatias
263
Eu tenho a África dentro de mim
Hoje os tempos são outros e agora precisamos assumir nossa posição. Nós
estamos nesse tempo, vivenciando uma época em que todo mundo tem que
tomar uma posição, não vai mais ter lugar para quem gosta de ficar em cima do
muro. Todos os que trabalham em cima do muro, em qualquer área, vão cair.
264
Rezas, benzições e simpatias
265
Eu tenho a África dentro de mim
266
Rezas, benzições e simpatias
pelas pessoas doentes nos hospitais, nas casas de saúde, nos seus lares ou ao
relento, que esse poder que pode tudo, dê para essas pessoas a cura ou alívio
das suas dores e as intenções particulares de cada pessoa que lê esse escrito.
(Refrão2)
(Refrão)
(Refrão)
(Refrão)
267
Eu tenho a África dentro de mim
(Refrão)
(Refrão)
Ou
É importante lembrar que não devemos fazer uma oração sem oferecer
o pedido que queremos, sob pena de alguém do mundo físico ou do mundo
espiritual fazer um pedido em nosso lugar, no lugar de onde colocar pois há
o risco deste pedido ser contra nós mesmos. Eu gosto de pedir pela Terra,
pela humanidade, por tudo o que nós estamos passando e por aquilo que
ainda vai vir, e que estejamos todos buscando o equilíbrio e a paz.
Ai ô ie iô
E a resposta é
Ôôôôôôôôôôô
268
Rezas, benzições e simpatias
1
Oi glória Deus
Glória a Deus Nosso Senhor
Oi glória Deus
Glória a Deus Nosso Senhor
Pai, Filho, Espirito Santo
Glória a Deus Nosso Senhor
269
Eu tenho a África dentro de mim
2
Meu Divino veio do céu
Ele vei foi avuando
Meu Divino veio do céu
Ele vei foi avuando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando
3
Quando eu lembro no dia de hoje
Eu me encho de alegria
Quando eu lembro no dia de hoje
Eu me encho de alegria
Nossa senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria
Nossa senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria
270
Rezas, benzições e simpatias
Depois pode cantar a “Salve Rainha” para finalizar. Tem muita gente
que entende que se não cantar a “Salve Rainha” não fechou o Rosário. E ela é
cantada tocando serra acima, e o capitão/a capitã pode cantar ou pode rezar
a “Salve Rainha” ou apenas rezada.
271
Eu tenho a África dentro de mim
Entendo que a qualquer hora Deus trabalha, Deus não para. Tem coisas
que realmente não se faz á noite, mas a pessoa trabalha o dia inteiro, só a
noite que ela pode ir lá, você vai orientar a ela que espere até domingo ou
só sábado se tratando de uma enfermidade? Não faço desta forma, utilizo o
bom senso. Tem algumas coisas que não se faz à noite, mas não é o caso da
benzição, se a pessoa só pode ir à noite.
272
Rezas, benzições e simpatias
Então são as suas orações e o seu canto que vão fazer a comunicação
com o mundo espiritual para ativar os fluidos necessários para possibilitar a
cura e a recuperação de quem busca por socorro.
À medida que for rezando, vai fazendo o sinal da cruz. Vai, falando e
fazendo o sinal da cruz em cima de onde cortou:
273
Eu tenho a África dentro de mim
Coser de jeito
Dobra o pano e faz o sinal da cruz em cima do lugar a ser cosido “Em
nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém”. Onde embolou, ali é que
está o problema do entorce viu? Mas você não pode começar costurando
e ir falando. Quem está cosendo pergunta: “Que coso?”. A resposta que
ensina para quem recebe a benzição é: “Carne quebrada, osso rendido, junta
desconjuntada e nervo torto”
Repete o trecho da oração acima. Vai fazer isso de novo, três vezes, no
mesmo momento, costurando o paninho e não pode tirar a agulha do pano,
enquanto não fizer três vezes. Em três dias. Ao acabar hoje, deixa guardado.
Amanhã, quando a pessoa chegar pega o mesmo pano, coloca nova linha. No
274
Rezas, benzições e simpatias
caso de não ter calculado bem a linha e ela não dar, acaba de coser aquela,
enfia outra e continua costurando.
Separar briga
Mentaliza três vezes, como na outra que se faz para briga com outras pessoas.
Abertura de caminhos
275
Eu tenho a África dentro de mim
Santa Íris perguntou pra Santa Elia: quebranto, olho gordo, mal
olhado, inveja, reza brava, todo tipo de mironga, todo tipo de canjerê, todo
tipo de mandinga, todo tipo de trabalho feito, todo tipo de feitiçaria, todo
tipo de perseguição física e espiritual com que te curaria, água da fonte,
raminho do monte um Pai Nosso e uma Ave Maria. Então reza-se um Pai
Nosso e uma Ave Maria.
Essa oração desassossega a pessoa, enquanto ela não vem, ela não tem
sossego. Não é para trazer namorado de volta. Esta oração serve para um
filho, um parente, uma pessoa que foi embora e não deu mais notícia. Se for
à noite, depois da meia noite, melhor ainda. Vai cantando e vai pensando na
pessoa que tá querendo que volte.
Cortar cobreiro
276
Rezas, benzições e simpatias
Que corto?
E vai cortando o talo. É preciso fazer isso três vezes com o mesmo.
Com os poderes de Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, corto o mal
deste cobreiro. Seja de aranha, de cobra, de lagartixa, sapo, escorpião ou
qualquer bicho peçonhento
O que corto?
Cobreiro bravo
Assim mesmo eu corto
Ao fazer o corte no talo da mamona, tem que durar as três vezes. Vai
picando, mas não é em cima da pessoa que pica, faz em cima da mesa. Ao final
tem que ter cortado tudo. Acabou de cortar, coloca nas três folhas, faz uma
buchinha e coloca para secar em cima do telhado. Na medida que ela seca, o
cobreiro desaparece. No outro dia que a pessoa aparecer lá, corta-se de novo
com novos talos de mamona, mesmo que já tiver limpado. Em geral faz dois
dias e no seguinte não tem nada. Faz o processo três vezes por três dias.
277
Eu tenho a África dentro de mim
O quebranto é algo que te dá mal estar, que você não sabe de onde vem,
nem como surgiu.
Jesus quando andou pelo mundo, sentou-se numa pedra fria curando to-
dos os males (aqui fala-se o nome do mal que está curando e o nome da pessoa)
com as bênçãos da Virgem Maria
Um Pai Nosso, três Ave Maria e um Glória
Na criança
Vento virado, a criança está se assustando, caindo à toa, levando susto à toa.
Olha os pezinhos juntos com a criança deitada no seu colo de barriga para
baixo. Vai dar uma diferença. Uma perna fica maior que a outra.
Vai rezando e mexe em todos os dedos do pé e da mão, vira a mão pra cá, a
criança chora, criança grita, criança pequena então, é importante fazer, mesmo
com ela chorando. Vai conversando com ela para ver se ela aceita, se não ela vai
dar uma birra danada, a mãe e o pai ficam preocupados, às vezes nem tem costume
disso e podem achar que você está fazendo mal com o coitado do menino.
278
Rezas, benzições e simpatias
Reza Ave Maria e Pai Nosso em silêncio e vai mexendo dedos da mão e
vai puxando os seus dedinhos para acertar. Depois pega os dedinhos do pé e
repete o procedimento.
Com a criança virada de bruço, Encosta seu pé na sua mão. Por isso que
adulto não dá, por não tem como colocar no colo e fazer os movimentos.
Junta os pés e bate neles três vezes e depois fizer assim, ainda tem
que conseguir virar a criança, sacudindo-a com os pés para baixo. Segura
os pezinhos dela, põe ela de cabeça pra baixo e aí depois disso ela melhora.
Revira para um lado, revira para o outro, sacode a criança de cabeça pra
baixo e a criança fica boa.
Agora o grande, o adulto, não tem como pegar no colo, não é criança.
O procedimento é o mesmo que o feito com a criança; manda ele pular três
vezes. Em cada um dos pulos a benzedeira ou benzedor puxa as mãos da
pessoa para baixo, como que descarregando ela: Isso aqui chega no lugar.
Mel e canela, pra quem tá com fraqueza, com desânimo, já mais velho.
279
Cana
PARTE 3
APRENDO,
VIVO,
SINTO
NKISI, ORISÀ, SANTO
Eu tenho a África dentro de mim
284
NKISI, ORISÀ, SANTO
Por não saber do que se trata, aquela multidão costuma levar para
o lado da diversão, não sabendo ela e nem o povo do que se trata aquela
vivência, mesmo porque se soubessem talvez não participariam em função
do preconceito enraizado em nossa sociedade. Mas eles vão com aquela
intensidade, fazendo toda aquela festa, para que os caminhos sejam
limpados, para que aquelas ruas, aquelas energias sejam dissipadas para que
depois ocorra a passagem daqueles que estão representando as coroas dos
nossos ancestrais, a coroa dos Minkisi, que é o que nós estamos festejando
no pano de fundo. No pano da frente são os Santos da Igreja Católica,
porque a Igreja não permitia aos negros festejar sua própria crença.
285
Eu tenho a África dentro de mim
Dentro da Igreja Católica tem uma história que ela liberta o povo
cristão que estava sob o jugo do povo árabe, sendo também chamada
de libertadora, mas para a população ela também tem o nome de Nossa
Senhora da Boca da Mina. Tem esse detalhe, Mina. São estes que nós
estamos apresentando dentro do Reinado, que na verdade faz-se de maneira
diferente, mas como foi idealizado lá dentro do sistema do povo escravizado,
estabeleceu uma forma de reverenciar os Minkisi, sem que os escravocratas
e a Igreja percebessem, e eles conseguiram porque até hoje a maioria não
percebe isso, mesmo estando dentro do que nós conhecemos como Reinado
e que alguns chamam de congado.
286
NKISI, ORISÀ, SANTO
287
Eu tenho a África dentro de mim
ali não fica, mas ainda assim, nós carregamos água no balaio para ela, nós
fazemos que for possível e impossível, por Ela e para Ela.
Eu sempre soube que dentro do Reinado ela está ali com sua humildade
representando um Nkisi da natureza, da água salgada. Ela, na sua grandeza,
não se fez de rogada. Para ela não importa, mas eu quando eu canto pra
Senhora do Rosário, eu canto para ela com pensamento também naquela
Nkisi que é dona das águas salgadas. Quem não quiser aceitar isso continua
fazendo a sua tradição no seu lugar. Eu vou seguir conforme ensinado pela
espiritualidade no Reinado, pela ancestralidade, pelos antepassados.
288
NKISI, ORISÀ, SANTO
morte uma saída para não ser colocado como escravo, mas tinham outros
tantos que arquitetaram com muita inteligência e sabedoria, costumes que
vieram até nossos dias. A não transmissão dos conhecimentos pelos negros
que conheciam da organização do Reinado, que naquela época se dava
exclusivamente pela via da oralidade, impossibilitou o conhecimento do
sentido da Festa do Kongo em muitas Irmandades.
Muitas pessoas não têm esse entendimento, mas Nossa Senhora é uma
só, recebeu diversos títulos pelos interesses da Igreja. Seja Nossa Senhora do
Rosário, seja Nossa Senhora das Mercês, estamos falando da mesma Nossa
Senhora, que tem alguma relação com o período ou contexto da história
escravocrata. Por isso não faz parte do Reinado a imagem de Nossa Senhora
de Pompéia, que tem outra história e outro contexto.
289
Eu tenho a África dentro de mim
Segundo informações de uma Preta Velha, que certa vez eu ouvi, que
contou que raspavam as pessoas, diziam ao feitor que estavam com piolho,
ou que a pessoa não estava passando bem. Com isso eles ficavam com ele
vinte e um dias lá dentro fazendo os rituais que precisavam.
290
NKISI, ORISÀ, SANTO
291
Eu tenho a África dentro de mim
que seja a perfeição, ou seja nós podemos nos aperfeiçoar, mas aperfeiçoar
significa se respeitar e respeitar o outro.
292
NKISI, ORISÀ, SANTO
293
Eu tenho a África dentro de mim
294
Pellegum
ABSTRATO É O SER
DO OUTRO
Eu tenho a África dentro de mim
Outro dia estava conversando com uma menina que fez a graduação em
arquitetura e agora está fazendo uma pós e ela está querendo mostrar o olhar
do povo para a arquitetura, ela me pediu uma opinião sobre isso. No final da
nossa conversa, a fala dela para mim foi assim - e eu repito aqui sem nenhuma
soberba: “você me entendeu, a minha orientadora ainda não me entendeu”.
O que ela estava querendo na conversa que nós tivemos? Ela estava querendo
alcançar o abstrato do concreto. Vamos imaginar assim: a arquitetura é o
concreto, ou seja, o palpável, o que se pode pegar, o que se pode mensurar
pelas leis da física, da ciência, da academia. Eu acabo participando, vivendo
no concreto, que me puxa, mas o que me leva, o que me impulsiona na minha
caminhada é abstrato. E o que é abstrato no meu modo de ver? É o outro, é
o ser do outro. É compreender o outro, é buscar o sentido da vida a partir,
muitas vezes, das ideias, dos pensamentos do outro e quando esse outro pensa
a frente de mim eu tenho que argumentar minha maneira de pensar mas
também ouvir o outro. E é isso que precisava acontecer. Parar, ouvir, abstrair
e perceber que se nós precisamos de ter algo, pelo menos o mínimo para
sobreviver, no mundo material, precisamos de muita força para existir no
plano espiritual e na convivência é que se faz isso.
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Abstrato é o ser do outro
Toda pessoa que nasce ela tem uma missão na terra, o peso para ela
descobrir o que é, ela tem que conectar tem que estar em conexão com seu
superior ou criador, da forma que achar melhor. Nós que fazemos Festa do
Rosário, nós chamamos N’Zambi que é o criador. Há quem chame de Tupã,
de Deus, de Oludamare, de Alá, enfim o nome que quiser dar a esse ser não
importa, o que importa é o caminho que se faz, que se trilha para encontrar
esse ser dentro de nós mesmos e se ligar a ele de forma tão profunda que é o
que nós chamamos hoje de conexão. Se você não estiver conectado, você não
estará ali. Uma das riquezas do povo africano foi não ser contaminado pelas
ideologias do evangelismo e nem do islamismo no sentido da destruição de
ser obrigado a falar e fazer como cristãos e islâmicos sob o risco de morrer.
O povo africano soube arriscar-se em parecer viver essas ideologias, para
não morrer as suas verdadeiras crenças e modos de conexão. Eu estou
dizendo desse povo africano que é parte do mundo, os povos africanos
espalhados pelo mundo inteiro nos ensinam como viver bem tudo aquilo que
a gente aprende com eles. Aprende essa busca constante do Deus interior
de estar bem e se conectar com o Criador e aí com os demais, os demais
seres de quem somos irmãos e irmãs pois temos um Pai em comum. Se não
soubermos respeitar um irmão ou uma irmã, essa conexão com o Criador
também fica falhas ou não se faz, porque eu não posso dizer que amo o
Criador e odeio meu irmão, é contraditório. Se a minha fala com o Criador
é de amor, mas minha fala é de destruir o outro. uma coisa contradiz a outra
porque eu não vou amar esse Criador na pessoa do outro aquele que se
convencionou chamar de irmão.
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Eu tenho a África dentro de mim
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Abstrato é o ser do outro
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Eu tenho a África dentro de mim
saberes que são tão profundos. Então, o que aconteceu: muitos preferiram
morrer sem repassar, de tão profundo que isso é.
Penso que fica mais fácil perceber que uma coisa é tradição, uma coisa
é congado e outra coisa é Reinado. Tudo isso conflitua muito hoje em dia.
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Abstrato é o ser do outro
para escolher qual caminho tomar. Eu posso dizer que escolhi o meu e estou
super, super, super, super, super feliz! Realizada dentro desse meu caminho
nas religiosidades afro-brasileiras. Porque a coroa que estou louvando,
repito, não é nem da monarquia opressora, nem da monarquia africana, é
uma coroa transcendental.
E aí, vai indo. Tem quem vai sempre achar que tem coisas mais
interessantes para fazer, que têm ocupações maiores a fazer, vai até entender
que precisa viver do trabalho e esquece que esse seu fazer é que dá vida. As
pessoas não se alimentam só daquilo que ingerem pela boca. O ser humano,
inclusive, eu penso que o Criador nos possibilita esse isolamento social em
face da pandemia por Covid-19 para começarmos a perceber justamente isso.
Nós precisamos nos alimentar muito mais da transcendência, muitas vezes
mais do que da situação material. O material é passageiro e depois que você
enche bem a barriga, e aí o que acontece? Você sente que passou do ponto
e vai dormir. Entra numa espécie de letargia. Fica inativo. Ao passo que
quando você se alimenta e por isso a Festa do Kongo nos alimenta, alimenta e
realimenta a cada ano, você procura ou você passa a ter uma direção, coisa que
a maioria das pessoas na sociedade hoje não tem. Não tem um norte, não tem
uma direção. As pessoas da humanidade estão sem rumo e só pensando no ter.
E são situações e vivências como essa que nos ensinam e nos possibilitam ser.
A ser e nos integrar, nos conectar para além do concreto.
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Eu tenho a África dentro de mim
serve para buscar o isolamento, que deveria ser um tempo também para pensar,
conectar-se e crescer, mas só aumenta a sensação de que estamos perdidos das
formas de se relacionar com o outro. Hoje, até os relacionamentos, já afetados
e precarizados por muito tempo, são relacionamentos egoístas. O sentimento
imperante é: “eu fico com quem vai fazer a minha vontade, eu que mando, eu
penso em mim, eu quero ser feliz”. “Eu quero ser feliz mesmo que o meu jeito de
fazer a felicidade esmague o outro”.
Penso que o isolamento nos serve, a nós seres humanos, para pensar.
As pessoas, em primeiro lugar, precisam se reencontrar, se estabelecer ou,
no mínimo, se perguntar: “quem eu sou?”, “o que eu estou fazendo aqui?”,
“o que realmente é importante?”, “de que vale aquela correria louca pra eu
ter se agora eu não posso nem sair de casa, nem consumir?”. É isso que as
pessoas mais aprendem nesse modelo de sociedade do ter: “eu tenho que
consumir”, “se eu não consumir eu não sou ninguém, eu não serei amado”.
Agora, no contexto do isolamento social imposto pela crise sanitária, as
pessoas estão tendo que aprender a viver consigo mesmas, muitas vezes se
olhando no espelho e vendo o que não gostam, muita gente não gosta da
própria cara porque não aprendeu a se amar. Porque quer ser como são as
pessoas na TV e não como se é na vida vivida.
As pessoas aprenderam que têm que mentir, fingir, falsear aquilo que
se é para ser aceito. Esse mundo louco. Esse tempo me fez lembrar muito
do cantor Sílvio Brito que cantava assim: “Tá todo mundo louco, oba! Tá
todo mundo louco, oba!”. E também de Raul Seixas e sua canção “O dia que
a terra parou”. A pandemia já é uma realidade, vai permanecer ainda por um
tempo e mais outras coisas virão. Nós já sabemos. Mas nenhuma delas vem
com o intuito de nos prejudicar. É com o intuito que nós procuremos nos
reencontrar. Se eu não sou capaz de conviver comigo mesma, para que eu
vou me aventurar com o outro? Se eu não me suporto, como é que eu vou dar
conta de suportar o outro? Se eu não gosto de mim, como é que eu vou poder
gostar do outro? E se eu sou o centro do universo, eu nunca me importei com
os outros, para que eu preciso viver fora. Para que eu preciso sair da minha
porta fora, se o outro não importa. Se eu só olho para mim mesmo e para o
meu umbigo. E o universo gira em torno daquilo que eu quero. Daquilo que eu
penso. Das conquistas do ter e não do que eu estou procurando ser.
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Abstrato é o ser do outro
Quem sabe essa parada não pode servir para muita gente pensar e
refletir e, com isso, se reencontrar. E aí sai outro ciclo. Um dia vai haver
um renascimento. Nós vamos renascer, algo vai sair de dentro. E outra
coisa: aquele que é conhecido como Jesus disse que haveria um tempo
que teríamos que aprender a amar a Deus em espírito e verdade e que
deveríamos erigir uma igreja, ou seja, um templo dentro de nós mesmos.
Eu entendo que esse tempo chegou. Porque até nós que entendemos que o
tempo é a própria natureza, nós também estamos permanecendo isolados.
Os nossos pensamentos e os nossos sentimentos precisam melhorar para
não contaminar o universo. Porque o que nós estamos fazendo aqui na terra
é contaminar o universo, poluir o universo, poluir uns aos outros, não é só
com emissão de gases tóxicos. Pior que a emissão de gases é a toxicidade de
nossos pensamentos e de nossos sentimentos malsãos.
A alegria é de todos nós. Todos nós. Que nós nunca nos esqueçamos
disso: nós somos dois domínios. E cada um com a sua força como no
passado, com seu saber e com a sua sabedoria. E nós estamos aqui num
momento em que o mundo e nós todos e todas estamos precisando muito de
apoio. O objetivo é trocar essa informação: ninguém é tão ignorante que não
possa doar nada a ninguém, nem tão sábio que não possa saber mais. Aliás,
em nossas religiões de matriz africana, a gente entende que neste mundo a
gente aprende, aprende, aprende e morre sem saber, porque é muito vasto,
é muito grande. E que isso nos ajude a nos inteirarmos, mesmo na natureza
entendemos que fazemos parte dela cada um na medida do possível seja
um vazio na boa convivência dentro da sua casa e você não ignorando, nem
desprezando a ciência, mas, buscando soluções alternativas.
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EU TENHO A ÁFRICA
DENTRO DE MIM
Eu tenho a África dentro de mim
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Eu tenho a África dentro de mim
ao redor do fogão de lenha. Agora não tem mais o fogão de lenha. O fogão
a gás por si só já é frio, e o frio adentra as pessoas. As pessoas se sentavam
à mesa para fazer refeição junto da família, coisa que não acontece mais,
nem aos domingos. Agora, as pessoas costumam mandar mensagem para a
outra que está do lado, está no outro cômodo, porque perderam a percepção
do comum como o real do falar, porque quando se fala, um olha no olho
do outro e percebe. Percebe alegria, percebe tristeza. Por isso eu sempre
conclamo a todo mundo: passem a olhar mais nos olhos, porque olhando nos
olhos você sabe se a pessoa está falando a verdade ou não. Até a psicologia
ensina isso, que quando a gente não está falando a verdade, a tendência da
gente é desviar o olhar para outra direção.
1 Dirige-se a Álvaro Tukano, com quem dividia a mesa de abertura do semestre da Formação
Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (2014).
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foi eleito presidente, ele teve uma dificuldade enorme para montar o seu
ministério, porque ele queria uma coalizão de todos os povos. E é difícil
construir esse tipo de consenso, esse tipo de unidade, o nacional.
Uma das coisas bonitas na Irmandade é isso. Porque cada povo com
suas influências tem a sua maneira de fazer, tem sua maneira de perceber,
não é uma coisa coesa, igual. E, muitas vezes, quem está de fora dessa
lógica tem dificuldade em entender. E se não se respeitar essa diversidade,
é briga na certa. Dá briga. Essa é uma das coisas que as Irmandades do
Rosário trazem até hoje. É tal e qual. As Irmandades, cada uma tem seu
modo de fazer, seu modo de pensar. Os fundamentos, os mandamentos, os
sacramentos, a essência deve ser a mesma, só que cada Irmandade tem a sua
maneira de fazer e quem não entende isso pode criar um problema muito
grande, muito grave. Então foi isso que aconteceu na história.
Ei nego no Rosário
Custa a perender
Nego no Rosário
Custa a perender
Então o que que aquela invasão dos holandeses, conhecida por todos nós
que estudamos a história do Brasil, quando ocuparam as regiões produtoras
de açúcar no nordeste brasileiro. Para suprir a falta de mão de obra escrava,
em 1638 lançaram-se na conquista do entreposto português de São Jorge da
Mina, e, em 1641, organizaram a tomada de Luanda e Benguela, em Angola.
Argumenta-se que a sobrevivência das primeiras engenhocas, o plantio de cana-
de-açúcar, do algodão, do café e do fumo foram os elementos decisivos para
que a metrópole enviasse, para o Brasil os primeiros escravos africanos, vindos
de diversas partes da África, trazendo, consigo, seus hábitos, costumes, música,
dança, culinária, língua, mitos, ritos e a religião, que se infiltrou no povo,
formando, ao lado da religião católica, as duas maiores religiões do Brasil.
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Eu tenho a África dentro de mim
Repito sempre que posso falar sobre esse assunto: “Na história do
faraó lá com Moisés tirando o povo do Egito, tem uma situação dessa, que
os sacerdotes do faraó pegam seus cajados e jogam no chão e viravam várias
cobrinhas... o Moisés joga o cajado dele e vira uma cobra maior e engole
as outras... não é a mesma coisa do capitão que joga o bastão e faz virar
cobra?” Eu achei a mesma coisa e falei “Eu nunca vi a igreja dizer que isso
fosse macumba, que isso fosse feitiçaria, que isso fosse coisa do demônio.”
Aí, o Egito não tá na África? Moisés não foi iniciado nos grandes saberes
daqueles egípcios daquela época? Que todos nós admiramos até hoje as
suas construções, a sua matemática, a sua física? Mas por que que nós, os
“pretinhos do Rosário”, nós é que somos os macumbeiros?
2 A única insígnia nessa época da diferença para capitão era o lenço no pescoço, de
preferência vermelho.
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não perdi o sentido da importância daquele tesouro porque isso que eu sei
não foi a academia que me ensinou e dou graças a N’Zambi, de ter sabido
respeitar, considerar e levar, porque a maioria dos negros que frequentam
essa academia fazem como são levados a fazer: a desinteressar totalmente
por aquilo que é da sua origem. Este momento é o momento de repensar
isso já que algumas pessoas perceberam e tiveram o alcance de entender a
necessidade de repensar este caminho, porque um saber não anula o outro,
ao contrário, é da sabedoria que eles devem andar juntos porque na verdade
um complementa o outro.
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Jamelão
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Créditos
Coordenação Editorial
Capitã Pedrina de Lourdes Santos
Luciana de Oliveira
Organização
Luciana de Oliveira
Ester Antonieta Santos
Fotografia
Cyro Almeida
Revisão Final
Luciana de Oliveira
Projeto Gráfico
Amí Comunicação e Design
Ilustrações
Marconi Marques
Diagramação
Talita Aquino
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Apoio
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Jatobá