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O conteúdo desse livro é

consequência da intuição
de seres espirituais
Eu tenho a África dentro de mim

2
Pedrina de Lourdes Santos

EU TENHO A ÁFRICA
DENTRO DE MIM

Organização:
Luciana de Oliveira
Ester Antonieta Santos

Editora Selo PPGCOM/UFMG


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Santos, Pedrina de Lourdes.
S237e Eu tenho a África dentro de mim / Pedrina de Lourdes Santos;
organizadoras Luciana de Oliveira, Estr Antonieta Santos. – Belo
Horizonte, MG: PPGCOM/UFMG, 2022.
14 x 21 cm - (Limiares; v. 1)

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86963-70-0

1. Saberes tradicionais. 2. Oralidade. 3. Cultura afro-


brasileira. I. Oliveira, Luciana de. II. Santos, Ester Antonieta.
III. Série.
CDD 305.896

Elaborado por Maurício Armormino Júnior – CRB6/2422


Sumário

Prefácio 8

PARTE I - sobre o Reinado 37

1 Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura 38


da escravização

2 A Festa do Rosário ou Festa do Kongo na tradição 62


dos Leonídios (Oliveira-MG)

3 O Reinado é uma herança africana 96

PARTE II - Tradições, saberes e fazeres 111

4 As toadas do Rosário 112

5 Línguas africanas e falares em diáspora 220

6 Vivências da espiritualidade na vida 234


dos objetos rituais

7 Nsabas e seus usos 246

8 Rezas, benzeções, simpatias 258

PARTE III - Aprendo, vivo, sinto 281

9 Nkisi, Orisà, Santo 282

10 Abstrato é o ser do outro 296

11 Eu tenho a África dentro de mim 306

Créditos 5 318
A grafia de termos específicos do
universo das religiões de matriz
africana no Brasil utilizados no
decorrer do presente livro segue
a forma da escrita nas línguas dos
povos bantu de Angola-Muxicongo
compreendendo as línguas kimbundu,
kikongo e umbundu, de acordo com
orientações da Capitã Pedrina em
face de suas pesquisas linguísticas.
PREFÁCIO

UM LIVRO,
VÁRIAS MÃOS E
SOPROS INFINITOS

Luciana de Oliveira1
Ester Antonieta Santos2

É muito mais do que honra o que nos moveu no projeto de organizar o


primeiro livro da Capitã Pedrina de Lourdes Santos. É amor, é alegria, é
esperança, é fé. É desejo de “fazer maravia”, como diz o povo Reinadeiro,
auxiliando-a a ocupar esse espaço de poder tão colonizado que é o livro. Mas

1  Professora-pesquisadora-extensionista no Departamento e no Programa de Pós Graduação em Comuni-


cação Social da UFMG, integrante do Comitê Gestor da Formação Transversal em Saberes Tradicionais, líder
do Coletivo de Estudos, Pesquisas e Ação Comunicacional em Contextos de Risco (Corisco).
2  Psicóloga, mestre em Comunicação Social (PPGCOM/UFMG), filha e aprendiz da Capitã Pedrina, inte-
grante do Corisco.

8
Prefácio

é também desejo de fazer livro de outro jeito, mostrando a pluralidade das


formas e regimes de conhecimento e marcando, de forma relevante, o estilo
singular da Capitã Pedrina e, ao mesmo tempo, as profundas raízes coletivas
desse vasto legado dos povos da diáspora africana no Brasil.

A proposta de organizar um livro a partir de conhecimentos calcados


na oralidade, sugere, de cara, a sensibilidade da escuta. Assim, o livro surge
de um processo de co-criação que envolveu a Capitã Pedrina, como autora,
e nós, como organizadoras. Nossas posições envolviam desde a oralidade
plena de Pedrina; passando pela formação híbrida na pesquisa acadêmica e
na pesquisa de dentro das religiões afro-brasileiras de Ester; até chegarmos
em Luciana que tem formação na escrita plena mas uma sensibilidade
formada pela escuta de Pedrina, dos mestres Kaiowá e demais participantes
do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.
Para darmos os primeiros passos, em março de 2018, foi iniciado o trabalho
de transcrição do material que continha falas públicas e aulas da Capitã
Pedrina de 2014 até 2019. De lá para cá, fizemos reuniões presenciais e
virtuais, bem como tivemos inúmeras conversas informais com a autora,
com o objetivo de possibilitar que a Capitã Pedrina nos orientasse e guiasse
nessa construção de um livro com a sua pronúncia do mundo.

Nosso maior desafio foi manter as tradições orais o mais próximas


quanto possível das vivências da Capitã e, com isso, as possibilidades de
concretizar o que Conceição Evaristo chama de escrevivência. Não tínhamos
ideia de como seria feita esta transformação, sem ferir a vivência da
oralidade, mas de uma coisa não tínhamos dúvida: nossa missão era, a partir
de uma escuta fina e um trabalho conjunto, “pedrinizar” o livro, deixando-o
o mais próximo possível de tudo o que ela é e representa como uma mulher
preta, periférica, reinadeira, umbandista, kandomblecista, que circula entre
o mundo dos vivos e se relaciona muito bem com o mundo dos mortos.

Reunir todo o material da capitã Pedrina tampouco foi tarefa fácil


porque ela é verbo, ela é ação, ela sempre está em movimento e não para,
não se dá por vencida, não se cansa de ser e atuar no mundo. Assim, tivemos
que fazer um recorte para conseguirmos sistematizar um tímido registro de
seu enorme cabedal de conhecimentos. Os materiais orais transcritos foram:
aberturas do semestre da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da

9
Eu tenho a África dentro de mim

UFMG nos anos de 2014 e 2015; das aulas ministradas na disciplina Catar
Folhas nos anos de 2016 e 2017 na mesma instituição; sua fala no Fórum.doc
de 2018 - em que compartilhou conhecimentos em uma mesa com a saudosa
Makota Valdina; da abertura do curso “Chamando o mato de volta”, das aulas
ministradas na Estação Ecológica deste mesmo curso, no ano de 2019, que
contou com a participação de Alice Pinto e Júnior Pakapim, sobrinhos de
Makota Valdina; de uma aula especial ministrada no PPGCOM (Disciplina
Outras Filosofias da Imagem, 2020); e de quatro sessões de gravação de
toadas do Reinado nos estúdios da Escola de Música da UFMG em 2017,
um sonho antigo realizado por ela para que as futuras gerações não percam
na poeira do tempo as toadas e as formas de cantá-las. Além dos materiais
de base oral, incluímos também no acervo-base para a conformação do livro
dois textos publicados pela Revista da Comissão Mineira de Folclore (1992;
2005) de sua autoria.

Após a reunião de todo o material e transcrição de todo o


conhecimento que foi performado oralmente, repassamos o conjunto
bruto, apenas ordenado cronologicamente, para que a Capitã Pedrina
fizesse as primeiras observações quanto à transcriação do oral ao escrito.
Nosso objetivo é que ela acrescentasse o que mais lhe fosse pertinente e
interessante, cortasse o que achasse desnecessário, além de apontar para
possíveis eixos temáticos ou formas de organização (por fala, por assunto) do
livro. Por meio de conversações espontâneas e não estruturadas por roteiros,
ouvimos o que ela queria que fosse concretizado na estruturação geral do
seu primeiro livro, valorizando cada associação livre que ela nos trazia,
mesmo que não estivéssemos falando diretamente do livro ou da escrita. Um
dos pontos enfatizados em sua fala que nos chamou atenção foi o desejo de
começar cada capítulo com uma experiência vivida por ela e lembrou-se,
por exemplo, de um vendedor ambulante que sempre a ajudava a carregar
suas inúmeras bagagens, sacos e bolsas quando chegava na cidade de
Contagem, vinda de Oliveira, no ponto em que pega outro ônibus para o Nzó
em Juatuba. Pareceu-nos que ela gostaria de destacar a delicadeza de gestos
dirigidos a sua pessoa, principalmente quando ela está “em performance” do
Kandomblé3 pela cidade. Além disso, ela nos informou que gostaria também

3  Utilizando as vestes específicas de terreiro, o que, depois de sua iniciação no Kandomblé, foi o estilo de
vestimentas exclusivo escolhido por ela para seu dia a dia.

10
Prefácio

de afirmar que o livro não é filosofia abstrata, mas um fazer que da vida de
todos os dias e de todas as horas, envolvendo o que ela depois nomeou de
“soberania de si”, no capítulo “Abstrato é o Ser do Outro”.

Dentre os aspectos mais importantes destacamos o trecho da conversa


a seguir que nos ofereceu bases para fundamentar as conexões na linhagem
familiar como algo central na resistência operada pelos Reinos negros no
Brasil. Além disso, nos pareceu ser um ponto de estruturação do livro a
relação que ela estabelece entre a resistência e a visbilidade-invisbilidade:

Eu não tenho o sentimento


de superioridade nem de
grandeza. Já me disseram, o
povo de lá, que estou muito
tempo na frente. Tem horas
que eu penso que tenho
dificuldades de expressar…
Minha filha outro dia me
disse que só agora ela está
me entendendo. Entendendo
a minha alegria em fazer
alguma coisa grandiosa. Nós
11
Eu tenho a África dentro de mim

tivemos acessos a algumas


coisas que outras famílias
negras não tiveram. É por
isso que eu dou aquela
comida faustosa, mesmo que
fique devendo o último fio de
meu cabelo. (...) O sistema
quer que a gente desista.
Eu nunca quis desistir. É
isso que eu quero passar
para esses meninos que me
acompanham na Umbanda,
no Kandomblé e no Rosário:
não tem outro caminho!
Mesmo que a gente tenha
que pular as cercas, pular os
12
Prefácio

espinhos, pisar nas pedras…


O tempo ainda é esse! Mas
se entregar não! Não foram
meu pai e minha mãe que
me disseram “faz isso ou faz
aquilo”. Mas minha mãe nos
colocou pra estudar, esse
mérito é dela. minha mãe foi
uma guerreira. Tudo o que ela
vivenciou foi muito pesado.
Ela é a mulher que eu mais
admiro no mundo. A luta dela
é a de não se deixar abater.
Até mesmo com meu pai que
não a intimidava, mesmo
quando era violento. Meu
13
Eu tenho a África dentro de mim

sangue é indígena e negro.


Minha mãe foi discriminada
por não ser casada, por
meu pai ser negro, sendo
que a família dela não era
branca. Ela viveu com muito
custo. Mas o tempo passou
e a família dela voltou para
pedir ajuda espiritual a
ela. Ela me ensinou a não
me revoltar, mas também
a não me intimidar. Essa
é minha luta. Por vezes a
gente sai arranhada, a gente
sai machucada, mas os
arranhões curam e qualquer
14
Prefácio

machucado pode ser auto-


curado. É esse caminho que
a gente tem que fazer. E a
gente aprende! Aprende a
ficar visível e invisível.
Eu tenho uma alegria muito
assim. Eu gosto de me definir
assim: eu sou - o verbo é no
presente mesmo - eu sou
da senzala, passei pela casa
grande mas sem perder a
origem da senzala. Porque
muitos negros e negras, ao
ter uma posição qualquer,
elas querem apagar da sua
mente e da sua vida essa
15
Eu tenho a África dentro de mim

relação. Eu não esqueci. Eu


levo essa bandeira
(SANTOS, 2020)4

Após ter todo o material bruto revisado pela Capitã Pedrina, uma nova
rodada de escutas se iniciou. Nosso principal objetivo era entender como
o livro sairia daqueles materiais brutos, como ele seria apresentado, como
ele seria dividido. Numa dessas conversas da segunda etapa, Pedrina nos
disse que o título do livro seria : “Eu tenho a África dentro de mim”. Ele foi
trazido por uma lembrança que ela teve de um encontro no ano de 2019 na
FAFICH/UFMG com um colega de turma de Ester que estava, na ocasião,
fazendo doutorado, Ousmane Sané, um simpático senegalês que é um
admirador da Capitã. No dia do encontro, ela compartilhou com Ousmane
sua preocupação em manter vivos os conhecimentos ancestrais ligados às
matrizes africanas no Brasil. Ele, de modo alegre e festivo, disse a ela que
não se preocupasse com isso, porque ela era a própria África. “Eu vejo a
África na senhora”, disse Ousmane, o que a deixou exultante e emocionada.
Além do título, ela trouxe os seguintes pontos para que observássemos na
nova etapa do processo de edição:

4  Entrevista concedida a Ester Antonieta Santos e Luciana de Oliveira em 07/01/2020. Para conhecer em
detalhes todos os processos de transcriação do oral ao escrito, ancorados numa discussão em torno da
linhagem matrilinear da família da Capitã Pedrina em uma abordagem genealógica feminina e feminista, ver:
SANTOS, Ester Antonieta. Põe Sentido. Das performances orais ao livro: poéticas-saberes-resistências de
Pedrina de Lourdes Santos. Belo Horizonte, Dissertação de Mestrado/PPGCOM/UFMG, 2021.

16
Prefácio

a necessidade de uma introdução mais informal, diferenciando


a estruturação do livro e indicou que devíamos manter as toadas
que ela puxa junto das explicações dos temas que estavam sendo
desenvolvidos, sendo a música parte constituinte do seu ensino.

a expectativa de que o livro tivesse aproximadamente 250 páginas,


contendo texto e imagens (fotos do Reinado, fotos do Kandomblé
e da Umbanda, ela caminhando na Praça Sete cheia de gente com
suas vestes, plantas, desenhos.

devem ter acesso à leitura do livro políticos, povos tradicionais


(embora muitos não sejam afeitos à leitura ou à aquisição de
conhecimentos pela escrita), acadêmicos, pesquisadores, pessoas que
refletem, ou seja, pensadores e pensadoras do povo de forma geral

terreiro é um território tradicional e de inclusão. A mestra


destacou seu gosto por nomes e lutas de afirmação de pessoas com
deficiência, por exemplo, porque às vezes o corpo está ruim mas o
espírito não está. Compartilhou conosco a expectativa de produzir
também um audiolivro para que as pessoas possam escutar seu
livro, preservando de algum modo a oralidade.

tudo o que ela fala é intuitivo e que, com o tempo, aprendeu a


confiar na intuição. Acredita que os atores e atrizes também são
intuídos e pediu que as páginas iniciais do livro contivesse uma
advertência: “O conteúdo desse livro é consequência da intuição de
seres espirituais”, ponto a partir do qual ela discute a inadequação
da autoria individual. Nisso, sublinha uma grande diferença
com os conhecimentos profundamente estéticos nos regimes de
conhecimentos tradicionais em que a autoria é sempre coletiva.

foram definidos alguns eixos temáticos para o livro na ordem abaixo:

1. Terreiro é povo tradicional


2. Reinado: uma experiência afrodiaspórica de trabalho
espiritual
3. Nkisi, Orixá, Santo

17
Eu tenho a África dentro de mim

4. Eu tenho a África dentro de mim


5. Os cantos do Rosário
6. Os tambores de kandombe e as vivências da
espiritualidade na vida dos objetos (gungas, caixas,
patangomes, o rosário, ganzuás, espadas, tamborins,
bastões, coroas)
7. Rezas, benzeções e simpatias
8. As nsabas: folhas e seus sistemas de classificação
(quentes/frias, por ex)
9. Línguas africanas em diáspora - o pretoguês nosso de
cada dia
10. Sou eclética, sou ecumênica, sou sincrética (reflexão
ético-filosófica vivencial sobre termos e temas e seus
sentidos na perspectiva autoral da Capitã)
11. Conversações com a espiritualidade
12. Abstrato é o ser do outro: amor, pandemia, comunicação
sutil, palavra, toque e imagens.

Além de retomar a conversa com o senegalês Ousmane, mencionada


acima, ela também falou de um poema de autoria de um poeta moçambicano
que falava sobre o tema. Após a entrevista, localizamos o poema
Africanizando, do poeta Morgado Mbalate que compôs, por desejo da
Capitã, o capítulo que também leva o título do livro.

Os temas levantados acima, nos serviram como embriões dos capítulos.


A seguir, o trabalho se desenvolveu assim: após a revisão do material bruto e
levantamento dos eixos temáticos definimos juntas, Pedrina e nós, palavras-
chaves e indícios que compuseram nosso norte para estruturar cada capítulo
porque foram utilizados para uma varredura dentro do material bruto que,
já comentado pela mestra, foi, a um só tempo, reduzido em alguns pontos
e ampliado em outros. As palavras-chave e indícios escolhidas por nós para
cada eixo temático foram:

Línguas Africanas: língua; dialeto; kimbundo; quimbundo;


kicongo; quicongo, kongo, congo, angola;

18
Prefácio

As insabas: erva; planta; folha; banho; remédio; mato; plantinha;


árvore; mata; insaba; manjericão, guiné, arruda; rosa, alfavaca;
rosmaninho;

Rezas e benzeções: reza, pai nosso, ave-maria, cruz, rosário; cura;


benzeção, benzição, benzer, benzimento;

Nkisi/orixá/santo;

Candomblé5 e os objetos que vivem;

Cantos do Rosário: cantiga, música, toada, zuela; arquivos da


música na íntegra, arquivos formato canto/poesia;

Terreiro é comunidade tradicional: terreiro, comunidade,


candomblé, Juatuba, Piratininga, Oliveira, Nzó Atim Oyá Oderim6 ,
Angola, muxikongo);

Reinado: Reinado, Rosário, Santa Manganá, Angana Musambi,


gunga, patangome, caixa, capitã, Ngoma, Rua, Festa do Congo,
Oliveira, Angola);

Eu tenho a África em mim: África, africano, conhecimento,


ancestral, africana, saber, sabedoria;

Eclética-ecumênica: eclética, ecumênica, sincretismo;

Conversações com a espiritualidade: comunicação, pai, exu, mãe,


boiadeiro, preto, vungi, erê, espírito, espiritualidade, intuição,
intuído(a), inspirada, inspiração;

5  Como o material bruto foi transcrito sem levar em conta as modulações idiomáticas que a mestra queria na
grafia do livro, pesquisamos alguns dos termos em sua escrita convencionada, como é o caso de candomblé.
6  Este nome era o utilizado para nomear a casa de Kandomblé que atualmente se tornou Nzó Atim Kaiango
ua Mukongo.

19
Eu tenho a África dentro de mim

Abstrato é o ser do outro (aula da disciplina Outras Filosofias da


Imagem), sendo esse o único eixo temático que correspondeu a
uma aula específica7

É desejo de Pedrina incluir um capítulo que falasse sobre os


indígenas, em reverência às raízes de minha avó Ester que era
descendente indígena.

No trabalho de busca das palavras-chaves e indícios, nós demarcamos


com cores distintas os temas que localizávamos nos materiais brutos. Como
dividimos essa parte do trabalho entre nós duas, esse procedimento foi
importante para acompanharmos o trabalho uma da outra e não repetirmos a
utilização dos trechos em mais de um lugar. Os trechos eram assim copiados
para outro arquivo com o título de cada um dos doze eixos temáticos
elencados acima (exceto Abstrato é o Ser do Outro que correspondeu a
uma fala única, transcrita e vertida em capítulo em sua inteireza). Mesmo
trabalhando separadamente nessa etapa, as tarefas foram realizadas de
forma conjunta, pois, além das marcações em cores diferentes, criamos um
arquivo compartilhado com uma tabela que organizava os procedimentos
e dividia o trabalho entre nós e um espaço para fazer anotações sobre
achados e dúvidas, além de termos mantido um diálogo próximo e constante.
À medida que localizávamos algum tema referente ao que estava na
incumbência da outra, separávamos também nos arquivos afins aquela
temática e nos avisávamos sobre o achado.

Apesar de termos tentado seguir à risca a organização dos capítulos


de acordo com os eixos temáticos anteriormente definidos, havia também a
agência dos materiais em si, ou seja, das falas da Capitã Pedrina transcritas.
Assim, mudanças aconteceram. Havíamos planejado um capítulo para o
Reinado que acabou se desdobrando em três. Eles conformam a primeira
parte do livro, dedicados a este tema, que foi chamada de “Sobre o Reinado”.
Nessa primeira parte, são trabalhadas três dimensões fundamentais da
reflexão da Capitã: o Reinado e suas raízes africanas, as dimensões de cura
dos traumas históricos aportada na experiência dos Reinados e, por fim,

7  Essa aula foi transcrita por discentes da disciplina, no 1o semestre de 2020.

20
Prefácio

as tensas relações com o cristianismo. A segunda parte, congrega cinco


capítulos e foi chamada de “Tradições, Saberes, Fazeres”. Começa pelas
toadas, pensando na importância que o canto tem para a Capitã Pedrina e
para as religiões de matriz africana. As línguas africanas compõem o quinto
capítulo do livro que traz as reflexões sobre os conhecimentos aprendidos
e vivenciados por ela com as línguas africanas e o “dialeto de senzala”
aprendido com seu pai e alguns de seus familiares que tiveram vivência com
pretos escravizados e vivenciaram o período pós assinatura da Lei Áurea. O
capítulo seis é composto pelas trocas que a Capitã Pedrina vivencia com e
através da espiritualidade, que contribuem para suas ações, seus pensamentos
e determinam sua caminhada. O capítulo sete contém informações sobre as
nsabas e seus usos ritualísticos ou não, em que ela ensina muitos remédios que
curam os mais diversos males. No capítulo oito, ela ensina rezas e benzeções,
segundo ela sua grande missão. A terceira parte do livro, intituilada “Aprendo,
vivo, sinto”, compreende três capítulos e são reflexões mais gerais, embora
também conectadas com as experiências da Capitã. No capítulo nove ela
apresenta a discussão sobre Nkisi, Orixá e Santo, falando das diferenças
entre cada um dos termos e apresentando algumas de suas correlações com
o Reinado. No capítulo dez, apresenta reflexões sobre o ser humano imerso
nas vivências e rotinas cotidianas, finalizando, não por acaso, com o capítulo
onze, em que ela fala e reflete sobre si e sua caminhada neste mundo que é
inseparável dos legados da diáspora africana.

Cada capítulo finalizado era entregue para a Capitã revisar, incluir ou


excluir informações, consertar possíveis erros de transcrição e conferir a
costura dos parágrafos que propusemos. Ela então nos devolvia os materiais
com anotações e depois de todo o material devolvidos a nós, fizemos,
conjuntamente, todas as alterações indicadas por ela, contactando-o por
meio digital ou telefone em caso de dúvidas, e revisamos novamente o
material. Esta etapa do trabalho foi mais demorada, porque contávamos com a
disponibilidade restrita da agenda da Capitã Pedrina, que esteve ocupada com
as atividades do Nzó em Juatuba e suas atividades corriqueiras de cuidados
e benzeções com as pessoas necessitadas e que recorriam a ela para alguma
orientação. Conseguimos finalizar este trabalho em agosto de 2021, iniciando
assim a etapa de preparação do projeto gráfico e da diagramação.

21
Eu tenho a África dentro de mim

Descrevemos até aqui, portanto, o trabalho com o texto, mas era


preciso também pensar nas formas do livro. A transcriação da oralidade se
completa com o design gráfico, as imagens, as cores e o formato do livro.
As reuniões com a equipe de design foram bem extensas e a Capitã Pedrina
pôde levantar aspectos visuais e experienciais de sua trajetória, revelando o
que José Jorge de Carvalho8 tem nomeado como epistemologias do cosmos
vivo, que encantaram os designers. Numa das ocasiões de encontro, a
Capitã Pedrina começou sua fala narrando sobre sua participação no grupo
de preservação de Oliveira, em que escreveu um texto para um arquiteto
chamando-lhe para o olhar do povo preto e suas edificações.

Em seguida, contou que recebeu um altar da rainha perpétua de


Nossa Senhora das Mercês da Irmandade do Jatobá, Leda Martins, e juntou
com contas, água do mar, coroa e tambores enfeitando a senzala, casa dos
Pretos Velhos em Juatuba. Contou também sobre um tambor que também
ganhou da rainha Leda, vindo da África e nos conta que “Viver a Umbanda,
o Kandomblé e a Kimbanda, que é o conhecimento profundo do sagrado,
é o que me dá alegria”. Contou-nos de uma mensagem que recebeu da
pombogira Sete Nós e do exú Seu Meia Noite.

Em suas próprias palavras, foram trazidas as seguintes ideias à


inspiração das formas e escolhas gráficas:

Antes dos seres humanos


saberem a fala que têm
hoje, eles se comunicavam
de outra forma, havia um
canto para falar com os
8  CARVALHO, J.J. O Encontro de Saberes nas artes e as epistemologias do cosmos vivo. Salvador:
EDUFBA; Brasília: Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa -UNB, 2020

22
Prefácio

ancestrais, sendo o canto


um modo antigo de falar.
Ferrugem não corrói, traça
não destrói, ladrão não rouba
esses conhecimentos. O que
eu falo não é meu, eu não sou
autora, não sou dona. Aqui na
terra somos muito pequenos.
E para quem é esse livro?
Para aqueles que têm
consanguinidade com
africanos, para aqueles
que se interessam pelas
religiosidades de matriz
africana, para devotos e
não devotos que não se
23
Eu tenho a África dentro de mim

reconhecem, para o povo,


para a academia, para os
políticos.

Tudo o que acontece, na


maioria das vezes, as coisas
vieram acontecendo.
Eu até que, ao me graduar, ao
trabalhar numa instituição
financeira, onde tive que
aprender a planejar, eu me
lembro que no último setor
eu era analista e fazia um
parecer de 8 folhas, uma
coisa estupenda precisar
disso tudo.
24
Prefácio

Mas nunca consegui fazer


coisas muito planejadas de
um jeito ocidental. As coisas
acontecem pra mim de uma
forma como aconteciam com
os antepassados, ancestrais
– as coisas fluem.

São as coisas simples que


têm sentido na vida. Os
grandes feitos partiram das
coisas simples. Eu participo
de um grupo chamado
Defensores da Preservação.
Fazem parte engenheiros,
biólogos, até o bispo, porque
25
Eu tenho a África dentro de mim

ele tem conhecimento dos


casarões, das igrejas, que
ainda são construções
da época colonial. E tem
um grupo interessado na
preservação em contraponto
com gente da cidade, que
quer destruir para construir
prédio.

Nesse grupo eu compartilhei


uma visão minha, e logo
recebi retornos das pessoas
pedindo que eu escrevesse
mais. Tem anos que as
pessoas sugerem que eu
escreva. Agora, damos o
26
Prefácio

passo para materializar


esse livro, e tem muita coisa
acontecendo comigo. Eu
acredito que é a bondade
divina, dos Minkisi, de Nossa
Senhora, Santa Efigênia, por
tudo que tive que passar,
ultrapassar nessa minha
caminhada.

Antes de iniciar no Kandomblé


eu já sabia que o que eu tinha
vivenciado no Reinado, as
intempéries, o desprezo, o
pouco caso, as humilhações,
eu sabia que não ia ser
diferente.
27
Eu tenho a África dentro de mim

Como eu dei conta no Reinado,


eu vou dar conta aqui
também, mas no Kandomblé a
convivência é maior.

Com tudo isso, o livro tem


por objetivo passar um pouco
desse conhecimento que
eles mesmos me fizeram
chegar. Os antepassados, os
ancestrais, me fizeram chegar
e chegar até mim.

Tudo na África, todo mundo


sabe, mesmo os que não
fazem, o que a gente aprende,
28
Prefácio

a gente não pode morrer sem


ter passado pra alguém.

A academia acabou sendo um


lugar onde minha voz pôde
ecoar mais fortemente. Já
que no Reinado minha voz
não é tão considerada assim,
até hoje. O que me faz sentir
sensação de dever cumprido,
que de alguma forma vai ficar
registrado.

Embora eu venha de um
caminho que passa sua
história de forma oral, mas
29
Eu tenho a África dentro de mim

o registro também é válido.


Aqueles que não têm mais
alegria, a oportunidade de
sentar embaixo de uma
árvore e ter conversas, que
possam de alguma forma
alcançar esse legado, que não
é só meu. É de todos. É de
toda humanidade.
Não é uma coisa que eu posso
pedir direito autoral, porque
tudo na humanidade é
compartilhado. Nós na terra
somos muito pequenos por
pedir isso, somos amplamente
abençoados por aqueles
maiores que já tiveram esse
30
Prefácio

conhecimento, pessoas que já


viveram vários continentes –
inclusive na África, onde a vida
começa.

Em outra ocasião de conversas sobre as formatações finais do livro, ela


estava estruturando o Reinadinho da Irmandade de Juatuba com as crianças
que moram lá no Nzó em Juatuba. Eram cinco e estavam se preparando para
se apresentarem para mãe Conceição, que estava em viagem junto com Pai
Sidney. Ela nos descreveu a criação dos objetos pelas crianças que fizeram
sua bandeira de guia com saco de pano e o desenho da estampa, feito por
elas mesmas, era a imagem de Nossa Senhora das Mercês. As caixas foram
feitas utilizando baldes de plástico e o bastão feito com madeira encontrada
no entorno do Nzó. Ela combinou com as crianças do Reinadinho de nos
mostrarem como estava seu processo de aprendizado sobre a vivência
do Reinado e assim, eles tocaram, dançaram e cantaram para nós, nos
mostrando o que estavam aprendendo com a Capitã Pedrina. Ao longo da
execução da performance das crianças, ela fazia algumas intervenções no
sentido de corrigir e lembrar aos participantes de como é desempenhado
o passo a passo de uma abertura de trabalhos no massambike. Foi muito
emocionante para nós acompanhar esse momento e ver a disposição
da Capitã, atenta e sempre pronta a ensinar-aprender. Apresentar-nos
esse trabalho foi muito importante para a Capitã nos mostrar que o que
importa verdadeiramente para ela está na simplicidade e nas formas de
transmissão da oralidade e da memória ancestral. Isso é o que traz felicidade
e contentamento para ela nas relações com o mundo espiritual.

31
Eu tenho a África dentro de mim

Além dos conteúdos textuais e do design, a transcriação da oralidade


lança mão de muitos conteúdos imagéticos. Os desenhos das plantas,
solicitados pela Capitã Pedrina, são exclusivos e feitos pelo artista
Marconi Marques, cuja pesquisa artística se enreda com sua biografia e
ascendência afroindígena somada a seu profundo interesse pelas formas da
espiritualidade afrobrasileiras e ameríndias. A Capitã Pedrina sugeriu então
que os livros tivessem desenhos de árvores que são cultuadas/utilizadas
no Kandomblé e ervas que são de sua especial devoção e conhecimento no
Reinado e nos processos de cura que realiza pelas benzeções e atendimentos
espirituais. São elas:

Akoko Gameleira
Alfavaca Guiné
Algodão Jaca
Alecrim Jacarandá
Amoreira Jamelão
Arruda Jatobá
Bananeira Manjericão branco
Barbatimão Obi
Café Pellegum
Cajá-manga Pitanga
Cana Sabugueiro
Erva cidreira

Seguindo o desejo de diagramação dos livros, a Capitã Pedrina


solicitou que as páginas fossem margeadas com motivos africanos, desenhos
e cores, ankarás e grafismos que remetem à África. Pediu alguns trechos
com caligrafia manual, possibilitando a diferenciação de algumas partes,
tirando a organização da formalidade acadêmica, aproximando assim o
leitor dela. As capas são totalmente brancas, em alusão às vestes rituais do
Kandomblé. No primeiro livro, optou-se por um relevo seco com o mapa
estilizado do continente africano e, no segundo, com o mapa estilizado do
Brasil. A ideia é de que a capa de um livro seja complemento da capa do
outro, apresentando a travessia transatlântica como conexão e a imagem

32
Prefácio

do Brasil e do continente africano, possibilitando, o encontro entre as


capas e por consequência entre os livros. Toda a pesquisa e interação com a
criação do design do livro teve o intuito de colaborar e completar a tradução
intermundos, além de favorecer a “pedrinização” do livro.

Foi também característica de um livro “pedrinizado”, a grafia das


palavras na língua africana estarem conforme se escreve na própria pesquisa
da Capitã acerca das línguas, procurando manter assim a proximidade
com a cultura e com o fazer do continente africano. O interesse pela
língua kimbundu e o “dialeto de senzala”, sendo comuns a utilização de
termos africanos – e muitos estão presentes no português, que apresenta
uma herança muitas vezes não reconhecida. Este é um trabalho que as
comunidades tradicionais fizeram através de manter salvaguardados o
conhecimento linguístico, dentre outras formas de conhecimento.

Junto com “Eu tenho a África dentro de mim”, circula o livro “Meu
Rosário, Minha Guia: trajetos de fé e de luta da Capitã Pedrina de Lourdes
Santos”, organizado também por nós, fruto de um processo colaborativo que
envolveu muitas pessoas. O livro é resultado da construção do “Memorial
descritivo” sobre a vida e a obra da Capitã Pedrina, com vistas à obtenção do
título de Notório Saber junto à UFMG. Ele contém um panorama detalhado
de sua biografia notável no Reinado, na Umbanda e no Kandomblé, tendo
este último entrado em sua caminhada no ano de 2016, quando se iniciou no
culto africano aos 55 anos. Além disso, fizemos um minucioso levantamento
de artigos acadêmicos, dissertações e teses escritos sobre ela e com
influência de seus conhecimentos para compor seu memorial descritivo, e
rastreamos documentação comprobatória, clipping de imprensa, fotografias
do arquivo familiar, dentre outros.

33
Eu tenho a África dentro de mim

O Reinado de Nossa Senhora do Rosário, também conhecido como


Festa do Kongo em Oliveira-MG, é cheio de ensinamentos, mas como
bem diz a Capitã, “aprendemos, aprendemos, aprendemos e morremos
sem saber”. Formada na tradição de saberes resguardados por sua mãe,
a Rainha Konga de Santa Efigênia Ester Rufina Borges, e por seu pai,
Capitão Leonídio João dos Santos, sua trajetória foi marcada por uma
ética do segredo. Os segredos do Reinado, especialmente no que tange às
suas matrizes africanas, não deveriam e nem poderiam ser partilhados ou
revelados pois muitos perigos sempre os cercaram. As perseguições cristãs
e das elites econômicas supremacistas brancas vinham desde o tempo da
escravização e permaneceram sob a forma das opressões sustentadas pelo
legado da colonialidade. A necessidade de, ao mesmo tempo, cultuar os
Minkisi e lutar pela sobrevivência, foi o que criou essa alternativa criativa
de afirmação afrobrasileira. A trajetória de Capitã Pedrina foi e ainda é de
muita luta e começa pelo fato de ser ela uma mulher em um ambiente que
se tornou de mando masculino, mas também por sua opção em fazer uma
caminhada diferente: ela faz questão de ensinar para as pessoas, dentro da
observância de códigos éticos comunitários e respeito à memória ancestral,
conhecimentos que conformam uma afirmação africana do Reinado. Há que
se ter olhos de ver e ouvidos de ouvir e pôr sentido no que é falado, feito,
ensinado por meio de palavras, gestos, objetos, cantos e danças.

Além de sua sólida formação em âmbito familiar, o aprendizado da


Capitã Pedrina se deu na pesquisa com os mais velhos e as mais velhas
de outros Reinos, na retomada de conhecimentos integrados a acervos
acadêmicos e na sua trajetória religiosa que envolve diversas vivências.
Mas, segundo ela, o seu principal suporte veio da espiritualidade que, por
meio de intuições e comunicações espirituais mais diretas, possibilitou
o seu aprendizado sobre as formas de fazer o Reinado de acordo com os
ensinamentos dos ancestrais.

Capitã Pedrina é verbo, à medida que empunha a bandeira de


suas causas, e luta por suas comunidades reinadeiras, kandomblecistas,
umbandistas e tantas outras das quais participa e tem com elas a
possibilidade de reconexão com a história vivida antes de sua vinda para este
plano físico. Ela luta sobretudo por si, pelo direito de ter e ser voz ativa na
sociedade através das várias imagens presentes em cada movimento e fala

34
Prefácio

empreendidas por ela. Sua teimosia em se manter viva e presente dentre os


conhecimentos transmitidos apenas pelos e para os homens no Reinado,
possibilitou que capitã Pedrina vivencie o que considera como ensinamentos
do Reinado: humildade, fé e aceitação.

Pitanga

35
Guiné
PARTE I

SOBRE O
REINADO
Eu tenho a África dentro de mim

REINADO
experiência e trabalho
espiritual de cura da
escravização

38
Prefácio

39
Eu tenho a África dentro de mim

Ouvi dos capitães de Reinado, sobretudo de meu pai, Leonídio João dos
Santos, sobre a história de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e depois
que me mudei para Belo Horizonte, continuei ouvindo, de outros capitães
de Reinado, inclusive daqueles que não conheciam meu pai, a mesma
história, com pequenas variações. Meu pai pouco conhecia Belo Horizonte.
Muitos ainda ficam sem entender como é que a Nossa Senhora apareceu no
mar porque Minas Gerais não tem mar, então como é que a Nossa Senhora
teria aparecido no mar e dado origem a essa Festa. Então surgiam pequenas
variações: alguns diziam que Nossa Senhora teria aparecido no mar, outros
na gruta, outros numa pedra, e ainda outros numa árvore, mas a essência
da história é sempre igual. A santa apareceu para os negros escravizados.
Dentre as várias versões que ouvi escolhi esta:

Era ainda muito cedo,


madrugadinha, o sol
ainda não aparecera, uma
criança, beirando o rio
para ir buscar água nas
proximidades do mar, viu
uma luz resplandecente que
envolvia um vulto de uma
mulher. Assustada, voltou e
contou a seu pai o que viu,
40
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

foi repreendida, mas como


insistia, o pai foi e encontrou
no lugar o que disse a criança.
Assustado e maravilhado,
esse homem foi falar com
o feitor e este ao senhor
de negros escravizados. O
senhor ordenou que o feitor
fosse verificar o local, e
se não encontrasse nada,
castigasse o pai e a criança.
O feitor chegando ao local
viu um grande resplendor
que envolvia um vulto de
mulher. Voltou e confirmou
ao senhor de negros
41
Eu tenho a África dentro de mim

escravizados, dizendo: “É
memo sinhô, tem memo um
vurto de muié num grande
resplendô”. O senhor então
comunicou com o padre da
Igreja Católica, que organizou
procissões com rezas, banda
de música, cantos e foram
até o local, puseram a Santa
num andor e levaram para
a Igreja, rezaram, louvaram
e foram para casa. No outro
dia, quando o sacristão
abriu a Igreja, cadê a Santa,
não estava mais lá, e ele
até viu os passinhos dela
42
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

voltando pela mesma estrada


que tinha vindo, lá do mar.
O padre organizou outra
procissão novamente e foram
lá buscar a santa, puseram
na Igreja e noutro dia cadê
a Santa , tinha voltado
novamente lá para o mar.
E assim fizeram mais um
vez, inteirando 3 vezes, e
aconteceu a mesma coisa. Aí
um terno - termo usado para
designar um grupo de negros
num leilão, em hasta pública
- de negros escravizados,
tomou coragem, foi até o
43
Eu tenho a África dentro de mim

senhor pedir para ir buscar a


santa lá no mar, dizendo que
eles iam tocando e cantando
a seu modo, quem sabe
ela vinha com eles e ficava.
O senhor ficou nervoso,
dizendo que eles queriam era
fugir da labuta no eito, se a
santa não ficou trazida pelos
brancos, pela Igreja, imagina
se ia querer acompanhar
negro. Mas os negros
insistiram com o senhor e
disseram a ele que, caso ela
não viesse ou não ficasse,
eles podiam ser castigados
44
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

no tronco. Assim, o senhor


concordou e lá foram os
negros, pés descalços, roupas
rotas e seus tambores,
que tinham feito de tronco
de árvore, seus bastões,
suas espadas, foram os
negros kandombeiros. Aí,
eles contaram que quando o
vulto viu os negros, tocando
e cantando à sua maneira
ela deu um largo sorriso,
tocando mais um pouco e
chegando já mais perto dela,
deu uns passinhos, foi então
que os capitães puseram
45
Eu tenho a África dentro de mim

seus bastões cruzados,


na forma de um assento e
Ela foi carregada do mar e
colocada sentada no tambor
Santana, o maior, e lá foram
eles, alegres, cantando,
tocando, dançando e a
Santa os acompanhou. Mas
eles levaram a Santa para
o lugar deles, que tinham
feito no mato e lá cantaram
e dançaram a noite toda. E
os negros pediram a ela se
ela aceitava ser a mãe deles
e ela aceitou abençoando a
todos e a partir daí passaram
46
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

a chamá-la de Mamãe do
Rosário. O senhor, mandou
o feitor atrás porque os
negros demoravam voltar
e o feitor acompanhou os
passos e os encontrou,
cantando e dançando no
lugar que tinham preparado,
mas não viu e nem ouviu
nada e voltou, relatou ao
senhor. E no outro dia os
negros levaram a Santa para
Igreja, que ficou lá e nunca
mais voltou para o mar. E
assim, cresceu, floresceu e
chegou até os nossos dias,
47
Eu tenho a África dentro de mim

passando de geração em
geração. Quando eu percebi,
que muitos capitães falavam
da mesma história, com
pequenas variações, entendi
que a moral da história era de
que a santa católica aceitava
o modo de ser e de crer dos
negros escravizados. O meu
entendimento é que ela
não queria que os negros
mudassem sua maneira de
culto. Os africanos sempre
entram em conexão com
o criador, a divindade,
é tocando, dançando e
48
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

cantando. Não tem essa


coisa da genuflexão ou do
louvor, como se faz nas
Igrejas católica e evangélica.
Nossa Senhora do Rosário
aceitava a maneira que os
negros tinham de fazer suas
orações e os seus cultos.
Esse foi o meu primeiro
entendimento. Mas depois
eu fui compreendendo que
é bem mais profundo que
isso. Há pouco tempo, um
ancestral me disse: “olha,
quem fez esse culto aparecer
foram os próprios africanos
49
Eu tenho a África dentro de mim

porque eles precisavam


fazer, queriam fazer essa
festa, mas tinha sempre a
perseguição. Sempre eram
perseguidos. Morriam muitos,
muitos morreram por não
negar a sua crença, sua
religião, seu culto”.

Essa é uma das versões do aparecimento de Nossa Senhora do Rosário


no mar. O que me deixava encucada era o seguinte: na Igreja Católica
nenhuma Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar, muito menos uma
cheia de vontade que só aceitou ir com os negros. Com os brancos ela ia e
voltava. Para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir vai saber entender
o que que é que nós estamos dizendo. Mais tarde pude perceber como
conseguiram preservar sua crença, sua fé, sem precisar mais morrer no
tronco, por não negar sua maneira de ser, sua fé. Afinal, para quem sabe ler
um pingo é letra. Com licença?

50
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

Foi mamãe do Rosário quem ensinou nêgo a esperar.


Ela deu força pra nêgo, tudo poder agüentar.

Ê vem do mar,
ê vem do mar,
ela é Nossa Senhora,
Virgem Santa,
Mãe de Deus,
ela é a mãe dos negros,
Santa que todo mundo adora

Chorei, Chorá
Chorei, Chorá
Ah eu chorei pelo balanço do mar
Ah eu chorei pelo balanço do mar

51
Eu tenho a África dentro de mim

É por isso que eu digo que o Reinado é um grande trabalho de cura


da escravização e das violências da travessia transatlântica forçada que
nos arrancou vidas e tantas outras coisas. No massambike, principalmente,
temos os “Ôlêlê”. Certa vez me mostraram no Facebook uma comunidade
em que alguém postou assim “Eu tenho medo do Ôlêlê”. Contam que, certa
feita, um capitão - que eu conheço mas não vou contar o nome - viu uma
pessoa rindo na festa. Ele passou perto dessa pessoa e falou “ Então tá, cê
vai ficar rindo aí”. E ele foi e voltou diversas vezes e a pessoa estava rindo,
não conseguia parar por vontade própria. Se ele não tivesse feito nada, rindo
ela estaria até hoje, possivelmente teria, literalmente, morrido de tanto
rir. Então tem ôlêlê pra fazer dormir, tem ôlêlê pra fazer levantar, parece
uma coisa boba o ôlêlêêlê. Há quem diga “lá vai aquele povo tocando caixa,
cantando e todo dia a mesma coisa, não muda”. “É um bando de saudosista
que fica carregando rei e rainha”, dizem, e ninguém para pra pensar o que
é aquilo. Será que nós temos tanta saudade assim do tempo da monarquia?
Vamos cantar para aprender:

capitã Pedrina
Aiôiêiô
Coro
Ôôôôôôô

capitã Pedrina
Ei, é chegada a nossa hora, olha vamos kurimar
Com Deus e Nossa Senhora, vamos juntos pelejar
Coro
Êêêêê

[Lamento do negro na porta da Igreja]

capitã Pedrina
Vou contar-lhe uma história, peço preste atenção
é uma história muito antiga do tempo da escravidão

52
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

Coro
Êêêêê

capitã Pedrina
No tempo da escravião, era branco quem mandava
quando branco ia pra missa, oi era nego que levava
Coro
Ôôôôôô
capitã Pedrina
No dia 13 de Maio, uma assembleia trabalhou
olha nego era cativo e a princesa libertou
Coro
Êêêêêêêêêê
capitã Pedrina
Olha nego era cativo e agora virou Sinhô
Coro
Êêêêêêêêêê
capitã Pedrina
No tempo da escravidão, era branco quem mandava
quando branco ia pra missa oi era nego que levava
Coro
Ôôôôôôôôôô

Os massambikeiros falam sempre as últimas palavras juntos:

capitã Pedrina + coro


Quando branco ia pra missa, era nego que levava
branco entrava pra Igreja e nego cá fora ficava
capitã Pedrina + coro
Êêêêêêêêê

53
Eu tenho a África dentro de mim

Prestem atenção nessa letra, que está contando a situação da


escravização. A Igreja queria cristianizar os negros, Mas havia essa
vertente dos reinadeiros, como havia várias outras vertentes que estavam
no Kandomblé e na Umbanda, querendo conservar a sua fé. A Igreja e suas
contradições: por um lado, querendo cristianizar os negros, por outro não
aceitava que os negros frequentassem a mesma Igreja que os brancos. As
Igrejas mais antigas têm um sino, tem uma entrada e depois um outro portal.
O máximo que os negros circulavam é da porta da Igreja até o portal central.
O negro não podia passar o portal central. Ficava de fora ou chegava até
esse limite. A Igreja do Carmo em Diamantina, por exemplo, tem a sua torre
do lado oposto. Ao invés de ser no fundo, ela fica na frente. Os negros não
podia nem entrar nessa Igreja porque o limite para os negros era a torre do
sino. Esse é o amor da Igreja católica pelo povo negro.

[Continuação do Lamento]

capitã Pedrina
Quando branco ia pra missa,
era nego que levava,
branco entrava pra Igreja
e nego cá fora ficava
Coro
Êêêêêêêêê
capitã Pedrina
branco entrava pra Igreja,
nego cá fora ficava,
e se nego reclamasse de xiquirá
ele apanhava
Coro
Êêêêêêê

O xiquirá é um chicote com cinco pontas, alguns ainda colocavam essa


ponta com ferro pontiagudo. O bom manuseador desse chicote, com cinco
chicotadas no lombo, ele conseguia quebrar as costelas e perfurar o pulmão
no tronco. Daí o que acontecia? Se o castigo era trinta, mesmo que no
quinto ele já tivesse matado, ele completava trinta chibatadas. Se fôssemos
nós todos e todas uma senzala e fosse um de nós que tivesse no tronco,

54
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

nós éramos obrigados a assistir a toda a cena de tortura. Não importava a


idade. As crianças, os velhos, todo mundo assistia, por que? Era um meio
de amedrontar e controlar quem estivesse ali. Agora, quem não apanhava
com o xirquirá, mas com um outro chicote, ficava bem machucado. E desde
sempre existiu uma nêga véia ou um nêgo véio, que sabia de ervas que
masserava e curava. Porque quem batia, deixava quem apanhava lá, ou batia
e arrastava feito um animal pra dentro da senzala. Aquelas feridas poderiam
infeccionar, dar gangrena, fora que o alimento não tinha e as pessoas que
apanhavam ou já estavam fracas ou ficavam com a saúde debilitada. Então,
o conhecimento das ervas e raízes é que servia, porque nenhum senhor ia
dar uma chicotada desse jeito e depois falar “Ah coitadinho, dá alguma coisa
para aliviar a dor”. O xiquirá era isso.

[Continuação do Lamento]

capitã Pedrina
E se nêgo reclamasse, de xiquirá ele apanhava,
nêgo só ia rezar, quando na senzala ele chegava
Coro
Êêêêêêêê
capitã Pedrina
Nêgo só ia rezar, quando na senzala ele chegava.
Ele fazia as orações e pra N’Zambi ele entregava
Coro
Êêêêêêêê
capitã Pedrina
Ele fazia as orações, e pra N’Zambi ele entregava,
para as almas desses nêgo que morreram na
senzala
Coro
Êêêêêêêêê
capitã Pedrina
Que dó, que dó.
Jesus Cristo está no céu, amparando essas almas
desses nêgo sofredô
Coro
Êêêêêêê

55
Eu tenho a África dentro de mim

Ainda tem muitos milhões de negros que não conseguiram perdoar essa
violência da escravização e do tráfico, e quando a gente não consegue perdoar
a gente quer a vingança. O Brasil tem uma dívida enorme com esse povo e eu
já vi em reunião mediúnica da doutrina espírita alguns anos atrás, na qual a
espiritualidade estava reencaminhando alguns africanos desencarnados, ou
criando um ambiente propício parecido com as aldeias dos desencarnados,
para que eles, entendendo que estavam de novo na sua terra ou que estavam
acolhidos de alguma forma pudessem, vamos falar assim, aliviar o Brasil. Tudo
que nós passamos, ainda tem muito a ver com essa carga, esse peso, com esse
massacre que foi feito. Então o perdão - um dos ensinamentos principais
do Cristo - não favorece a quem fez o mal, favorece a quem está perdoando,
porque se eu não perdoar, eu vou querer vingança.

Por isso existem aqueles que, desde o tempo antigo, souberam e


conseguiram, apesar de todas as dificuldades, perdoar. Esses seres são
conhecidos como pretas velhas e pretos velhos. Mas há também os pretos
velhos e as pretas velhas que não conseguiram perdoar. É bonito entender
a vida num sentido maior por isto, porque nesse vai e vem da vida damos
sinal de ignorar como é que a lei do criador funciona por não entendermos o
mecanismo desta lei. Porque não é a pele, a cor da pele, nem a posição social o
que nos diferencia diante de Deus. Não é o nosso sexo, se somos homens ou se
somos mulher. O que diferencia é o que nós sentimos e o que nós pensamos,
que acaba que nós somos o que nós pensamos e o que nós sentimos. O que
nós falamos não é o que vale porque muitas vezes a gente fala e não faz. Nós
somos capazes de dizer coisas uns para os outros só para agradar na mais
pura conveniência, porque não é o que nós estamos sentindo. Deveríamos ser
sinceros, não precisamos ser grosseiros, mas devemos ser sempre sinceros.
Acontece que muitas vezes nos enganamos muito, mas o que a gente pensa e o
que a gente sente é que é o nosso retrato real.

No Reinado, a capitania é o lugar de coordenar todo esse trabalho


espiritual . A capitania é um lugar de poder mas de muitas responsabilidades
também. Eu preciso manter tudo sob grande disciplina, observar regras
rígidas em relação ao uso de roupas e acessórios de quem participa,
manter o ambiente tranquilo. É preciso concentração para o trabalho
espiritual. Preciso cobrar das pessoas porque eu também sou cobrada
pela espiritualidade. Porque existem cobranças que são dadas a pessoas
que estão como referência e é assim que a gente tem que aprender a ter

56
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

responsabilidade para galgar na vida das tradições africanas onde quer que
elas se manifestem. Isso pode ter certeza que é muito sério para mim. Há
Irmandades que têm o primeiro e o segundo capitão de terno e como há uma
hierarquia, porque nos reconhecemos como irmãos, nos cumprimentamos
primeiro e depois vamos cumprimentar os dançadores e as dançadoras. Se
estamos diante do rei e da rainha, nós vamos cumprimentar o rei e a rainha.

A minha história na Festa do Rosário é singular, porque todos esses


malungos dya mussambe, todos os irmãos e todas as irmãs do Rosário
sabem, como eu sei, que à mulher não era permitido o direito de dançar o
massambike. Inclusive eu tenho lembrado que todos os capitães antigos de
Oliveira, falavam massambike. Fomos nós, vamos dizer assim, os contra-
mestres, capitães da minha geração, achando que os mestres falavam errado
é que reagíamos: “Ah, esse povo não conhece, fala errado, não estudou.”
E passamos a falar moçambique. Então, muito recente, eu descobri que
massambike é uma dança sagrada que vem de Angola e aí fez todo o sentido
com o que cantamos e com o que fazemos. Por isso, prefiro usar massambike
em lugar de Moçambique que é um outro país do continente africano. O
Reinado de Nossa Senhora do Rosário - Festa do Kongo - Kongo de que se
fala na programação até hoje - é o reino de uma época antiga no continente
africano do qual faziam parte vários países da atualidade, inclusive Angola.
Os capitães mais antigos, eles sempre falaram massambike. Os mais novos,
a geração da qual eu entrei, dos anos de 1970 pra cá é que começou a falar
Moçambique e ficou Moçambique. Eu sempre fiquei intrigada: porque
chama moçambique se viemos de Angola? A gente canta o tempo todo que a
gente veio de Angola:

Ô ê Angola
Esse gunga vei foi de lá
Correu mundo
Ô correu mar
Correu mundo
Ô correu mar

57
Eu tenho a África dentro de mim

A Festa do Kongo que na verdade é um grande trabalho espiritual é


a festa da ancestralidade em um grande trabalho espiritual que se faz em
benefício da terra. Não só das pessoas é que se faz, mas da terra. Porque com
o conhecimento africanos que ficaram para nós, os descendentes, aprende-
se a fazer o que convencionamos a chamar de manipulação de fluidos
numa fala mais moderna, mas sabe mover o céu, a terra e o ar, buscando as
energias salutares para dissipar, queimar, extinguir as energias negativas ou
aquilo que não é bom, aquilo que não presta, aquilo que incomoda, aquilo
que desestabiliza as pessoas.
Onde eu morava nós não tínhamos luz elétrica, nem água. As ruas
eram esburacadas. Nós fazíamos essa festa de oito dias. Fazia-se a festa em
oito dias do mesmo jeito. Fazer a Festa do Kongo era muito custoso para
nós. Então, como as comunidades antigas, era assim: a gente tinha apenas
um ponto de água encanada. Desse ponto todo o derredor ia buscar água
na cabeça para abastecer a sua casa, algumas pessoas iam lavar roupa nesse
lugar, às vezes, ia lavar o vasilhame e chegava a Festa do Rosário com cerca
de 25 a 30 pessoas que participavam diretamente e mais os que estavam ali
na retaguarda para alimentar. Tínhamos que carregar a água na cabeça e a
gente não tinha condição nem de ter um reservatório. Eu lembro que depois
de muita luta, conseguimos uma manilha de cimento que eu tenho até hoje
e a gente carregava para encher essa manilha para dar condição de fazer a
alimentação, lavar roupa e prover água para os banhos do terno.

Meu pai se esforçava muito por manter a nossa festa e ele se esforçava
por preservar o que os antigos chamavam de língua da senzala. Como
ele nasceu em 1894, apenas oito anos após o fim da política oficial da
escravização, ele falava bem, falava, gostava de manter essa língua. Seu
esforço, que é um esforço de manter essa fala, essa língua porque se não morre
acaba, ninguém mais fala nada. Nossos irmãos imigrantes falam o português,
mas cada um, nas suas comunidades, conservam as suas línguas, sejam eles
alemães, sejam eles franceses, sejam eles ingleses. Mas nós, os negros, não
tivemos direito nem mesmo ao nosso nome. Eu fui registrada como Pedrina
de Lourdes Santos, então Santos, não é do meu antepassado, não é do meu
ancestral. Ou é de todos os santos, ou é de algum dono de escravizados ou
porque simplesmente alguém criou esse nome. Mas a mulher não tinha o
direito de participar de um terno de massambike e lá pelos idos de 1972, o
meu pai, Leonídio João dos Santos que faleceu em 1981, teve dificuldades para

58
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

formar o terno de Nossa Senhora das Mercês com meninos do sexo masculino.
Foi então que permitiu que eu, a minha irmã Virgínia Ferreira dos Santos,
minha sobrinha Luísa de Lurdes dos Santos e a Heloísa Dias participássemos.
Nós entramos para compor o massambike. E aí o tempo foi passando e eu fui
ficando. Em 1980, eu e o meu irmão capitão Antônio Eustáquio dos Santos
assumimos a capitania . Meus primos faziam parte do terno. Eu entrei para o
Reinado por uma peculiaridade de não ter componentes para o terno. Eu me
lembro que nós éramos adolescentes.

A festa em Oliveira é muito antiga e já foi interrompida várias


vezes por questões de conflito com a Igreja Católica e de conflito com a
sociedade, com a alta sociedade, com a sociedade branca e racista. Nessas
cidades mais antigas sempre tem uma rua direita que funcionava assim:
o lado direito da rua era para os brancos e o lado esquerdo era para os
pretos. Isso não tem muito, eu sou 100 anos mais nova que Oliveira. Eu
não estava lá, mas isto era real. Nós íamos à missa e nós ficávamos assim
um tanto quanto com vergonha por sermos quatro meninas no meio dos
homens. Eu lembro que o padre um dia falou que nós tínhamos que sair,
descobriu sobre nossa participação e não podíamos, na visão dele, de
jeito nenhum integrar o terno. Segundo esse padre, assim todo mundo ia
ver que nós éramos mulheres e foi uma luta, foi uma luta muito grande.
Ao final elas foram saindo, foram casando e eu, acredito que por vontade
divina, permaneci. Até 1979, o meu pai, já sem saúde, fez a festa que
dura oito dias e ele deu conta, com essa idade avançada. Aliás, fez três
anos de festa sozinho no massambike como capitão. Mas em 1980 ele
já não aguentava então ele saía só de noite e nós somos oito filhos que
sobreviveram, dos 21 que ele e minha mãe tiveram no total. Mas só tem
um homem, que é meu irmão Antônio, meu cumpadre, com quem, mais
tarde passei a dividir a capitania. Dentre os meus sobrinhos e primos que
já estavam fazendo parte do terno há mais tempo, nenhum quis assumir a
capitania. E eu penalizada pela situação falei: “eu fico”. Depois de muitos
anos, muitas vezes eu já pensei: “podia ter ficado só ali...”. Mas, enfim,
foi uma luta, porque não me aceitavam, uma mulher, não aceitavam que
eu cantasse dentro deste terno . Mas no terno de massambike de Nossa
Senhora das Mercês, do qual eu sou a capitã, no início, chegou a acontecer
de eu cantar e os componentes, todos homens, rirem, debocharem. Eles me
desprezavam pelo simples fato de eu ser mulher. Mas, por amparo divino,

59
Eu tenho a África dentro de mim

eu vim fazendo essa minha caminhada e aqui estou. Eu costumo dizer


que, acredito que eles, os homens da minha Irmandade, não têm do que se
envergonhar de mim, porque eu não os envergonhei.

Toda essa luta de afirmação das mulheres no Rosário tem muito a


ver com o modo como as Irmandades se organizaram, espelhadas nas
corporações de ofício da idade média. Se há uma “herança” ou “marca” do
catolicismo no Reinado, penso que é essa. Frei Chico, por exemplo, não
gosta muito quando digo isso, mas na minha percepção, a Igreja estratificou
a sociedade brasileira através das Irmandades. A Irmandade que podiam
os negros cativos ou forros participar, eram as Irmandades do Rosário
dos Pretos, a Irmandade das Mercês, as Irmandades de Santo Antônio de
Categeró. As Irmandades eram a única maneira que os negros tinham para
se reunir no período da escravidão sem ser considerado motim ou rebelião.
Mas todas essas Irmandades, elas são muito autoritárias, elas são machistas
e as mulheres não poderiam participar. Então as estratificações impostas
por elas eram de posição social, cor da pele/raça e gênero. Vocês perceberam
que eu tive minha entrada numa situação que faltaram homens e nós éramos
só cinco. Não era concebível, naquele tempo, uma mulher erguer um bastão
de massambike e por as gungas nos pés. Isso era considerado um horror!
Certa vez, um capitão de outra Irmandade me disse assim: “não sei por conta
de que seu pai te pôs na capitania, mas aqui na minha Irmandade você não
vai cantar como capitã.” Depois ele refez a fala dizendo que como eu não era
da Irmandade dele, me permitiria cantar em sua Irmandade.

Eu tive que assumir a capitania não por uma escolha direta minha.
Foi porque não tinha nem um dos meus primos ou dos meus sobrinhos,
dentre os que já estavam no terno, que teve a coragem para assumir. Eu
tive coragem. Não teve quem quisesse e eu entrei com a coragem que Deus
me deu. A festa são oito dias, a gente sai dia e noite, eu por exemplo estava
afônica. Meu timbre de voz era muito mais alto e a cada ano, nesses quarenta
anos, eu estou ficando prejudicada. Porque a gente, na verdade, acaba não
cantando, mas se esgoelando. Imaginem dezessete ternos tocando um atrás
do outro, com uma média de três caixas cada um, se você não põe um timbre
de voz alto, o seu terno não te escuta e não sabe a hora que vai andar, a hora
que vai entrar a resposta de uma toada. Todo mundo sempre me vê muito
brava, eu tenho uma impostação e tenho os meus rompantes. Minha fala é

60
Reinado: experiência e trabalho espiritual de cura da escravização

firme e, por isso, quando eu falo as pessoas já acham que eu estou xingando.
Quando eu estou xingando mesmo, elas saem correndo! É que sou daquelas
que xingam e a pessoa tem que ficar quieta, calada, escutando: aquele
regime antigo. Mas ninguém parou pra pensar como que eu consegui esse
feito diante do machismo da comunidade. Isso não foi fácil, não! Foi com
luta, com dor, para eu me impor. E às vezes até para me impor, por exemplo,
eu sempre mantive minha cara fechada, no sentido real, para que ninguém
viesse com nenhuma conversa para cima de mim. E com zombaria.

Por um outro lado, eu juntei o que eu aprendi com o meu pai, que
a vida me ensinou, que os ancestrais me ensinaram, para eu formar a
minha percepção do que é ser capitã. Em verdade, capitão ou capitã, nós
nos tornamos pais e mães. Porque exercer bem uma capitania é exercer
bem um sacerdócio. Com tudo que um sacerdócio pede. A capitania no
Reinado é equiparável ao papel de pais e mães de santo no Kandomblé ou
de sacerdotes e sacerdotisas na Umbanda. Dentro do Reinado, os capitães,
por obrigação, devem ser também benzedores, curandeiros, conhecedores
de tudo isso que vem desse povo que nós todos descendemos que é o povo
africano. Quando nós estamos nas ruas tocando e dançando, nós estamos
exercendo um culto, nós estamos exercendo o nosso sacerdócio. A gente
percebe que o Reinado, a gente aprende, aprende, aprende, e morre sem
saber. Essa manipulação de fluidos mesmo é muito poderosa. Então a luta foi
muito grande para eu exercer a capitania. Nos primeiros anos, eu tirava uma
toada - porque é assim que fala no Reinado, não é música ou canto, fala-se
toada -, e todos os componentes do terno riam de mim. E eu aguentei muita
coisa. Hoje eu sou respeitada, mas nem sempre foi assim. Foi na luta mesmo,
de mulher, de negra, de estar onde a maioria entendia que não era o lugar de
eu estar. Mas tudo que a gente quer a gente vence, dando graças a N’Zambi,
eu entendo que eu estou tendo uma boa formação na capitania. O bastão,
muitos empunham, mas saber cantar, saber que toada tirar e que momentos
simples são muitas vezes os mais espetaculares. Isso poucos sabem. Até
mesmo entre meus pares, poucos sabem, porque o que vai fazer mover o céu,
a terra, o mar e o ar é você aprender o sacerdócio que você está. Eu sei que
essa toada atravessa o tempo, ela é atemporal. Para atravessar o espaço, os
limites geográficos e alcançar quem estiver precisando em qualquer ponto
do globo. E mais ainda: no plano físico e no plano espiritual, a um só tempo.

61
A FESTA DO ROSÁRIO
OU FESTA DO KONGO NA
TRADIÇÃO DOS LEONÍDIOS
(OLIVEIRA-MG)
Eu tenho a África dentro de mim

A Festa do Rosário ou Festa do Kongo, como a chamamos em Oliveira,


é uma grande confraternização de fé, de respeito, de amor, na qual faz-se um
elo de um tempo passado com o tempo presente e ainda buscando o tempo
futuro. Agosto a outubro é o ciclo das festas do rosário porque era o período
que vinha depois das colheitas, no qual os senhores permitiam às pessoas
escravizadas fazerem essa festa. Muita gente confunde achando que é uma
festa da colheita, mas não é. É que quem estava na condição de escravizado
e escravizada tinha que dar conta de colher tudo o que dava na época para
depois fazer a festa. Mas a colheita não era de posse dessas pessoas, era dos
senhores. Então, não tinha o que festejar em relação à colheita, mas sim em
relação à necessidade de reafirmar as raízes africanas para não esquecê-las.
É uma festa da memória ancestral. Como pequenos reinos bantu, temos
nossos soldados - os karombe de angola e suas okaia que no caso significa
mulheres que são escolhidas e coroadas por nós -, nas comunidades do
antigo grande reino de Kongo.

Esses reis do Reinado são coroados pelos membros da comunidade


do rei de Kongo, pela Irmandade. A coroação de reis e rainhas, a escolha
de capitães são também o momento da escolha de seguir firme em nome
de Nossa Senhora, em nome do Rosário e em nome da ancestralidade e dos
Minkisi. Na época da escravidão costumava-se alforriar o rei eleito. O rei que
fosse reinar naquele ano ganhava a alforria. Essa coroação vai para além do
plano físico. É uma realeza que transcende a natureza. Por isso, o cortejo
dos reis e das rainhas. Protegendo, reverenciando, se imantando da energia
das coroas transcendentais. Antigamente, o cortejo era feito por juízes
e juízas também (hoje já não temos mais) que buscavam os reis kongos e
perpétuos e as rainhas kongas e perpétuas bem como seus príncipes e suas
princesas. Esse trono coroado é que buscava as pessoas que seriam os reis
festeiros, por vezes também chamados de reis de coroa grande e iniciava-
se o cortejo para chegar até no lugar onde se realizava a troca de coroas.
Por isso, os reis festeiros também são chamados de reis de ano porque os
do ano anterior entregam a coroa para os do ano presente. Nós fazemos a
coroação na rua porque a Igreja Católica tomou a nossa capelinha, nosso
templo. A Igreja onde se realiza a missa atualmente era um espaço dos
escravizados que foi derrubado para construírem a Igreja que chamaram
de Nossa Senhora de Oliveira. Mas aquele espaço foi erguido e sacralizado
para Nossa Senhora Senhora do Rosário pelas mãos de pessoas escravizadas.

64
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Algumas Irmandades ainda usam até uma sabatina, para alguém se tornar
capitão, para alguém se tornar rei perpétuo, rei kongo, faz-se uma sabatina
porque espera-se que se tenha o mínimo de conhecimento dos antepassados
para que possa carregar aquela coroa. A Festa do Kongo representa a
prática cultural das sociedades bantu, o próprio nome dos festejos indica
essa sua origem. Porque a festa é do Kongo - o grande império que existia
à época da escravização - e é desse império que surgiram essas festividades
transatlânticas. Nelas nós nos imergimos, nos renovamos e nos fortalecemos
sempre, porque somos de lá, porque as nossas raízes são de lá. Muitas dessas
toadas que cantamos chegam para a gente intuitivamente.

Nos terreiros de Umbanda costuma-se também batizar as crianças até


hoje. Quem acha as vezes que batismo é só na Igreja católica, evangélica,
não é. Nas religiões de matriz africana também se faz o batismo. E nós
dançadores e dançadoras do Reinado, nós fazemos o batismo também, toda
vez que a pessoa entra para o Reinado, ela vai receber aquele angu que é
feito com feijão preto, fubá, gengibre e rapadura para que ele possa adentrar
o Reino. E os demais vão renovando aquele batismo. E quando saímos desse
plano físico, somos descoroados e descoroamos. Nossos corpos são levados
aos sons dos tambores para emergir novamente nas forças telúricas da terra.
Todo mundo que é coroado que é capitão, rei, rainha, quando a gente parte
dessa vida é preciso ter o ritual de descoroação. É um dos rituais que se
faz nas comunidades reinadeiras, uma das vivências que temos. Qualquer
pessoa, seja ela um capitão, um rei, uma rainha que está coroado, mesmo
que não seja rei perpétuo ou rainha perpétua, nem rei kongo ou rainha
konga, mas se coroou rei de ano e vai entregar a coroa ano que vem, então
só ano que vem na festa que ele vai ser descoroado. Mas, se acontecer dele
ou dela partir antes, aí o capitão tem que ter essa responsabilidade de ir lá
descoroá-lo/descoroá-la. Quando acontece o falecimento de capitães, juízes
e juízas, reis e rainhas, faz-se também um cortejo com toadas de despedida
e toadas de descoroação. E todo o cortejo fúnebre é acompanhado pelos
ternos tocando, cantando e dançando, com toadas próprias. Aos dançadores

65
Eu tenho a África dentro de mim

e às dançadoras também é feito um ritual de despedida. Essa é a nossa


resistência e resistiremos sempre na fé. Porque quem sabe de onde vem com
certeza saberá para onde quer ir. Então é muito importante no meio dessas
dificuldades todas que nós seres humanos atravessamos na vida, saber quem
se é, de onde está vindo, o que se deseja, a que se pertence, o que se faz,
o que chama atenção, porque é isso que dá norte a uma pessoa, mostra o
caminho. Quem não sabe disso fica como uma folha ao vento. Um chama pra
aqui, vai, o outro chama pra ali, vai, sem nenhuma resistência, mas também
sem nenhum comprometimento com nada e nem consigo próprio.

A coroa que um rei ou uma rainha carrega na verdade não é aquela


que os olhos veem, aquilo é só uma representação. Ao coroar, a pessoa
recebe uma coroa transcendente e ela não pode ir para o plano espiritual
com essa coroa. Porque o tanto de gente que já veio reclamar e pedir pra ser
descoroado porque está sofrendo... Porque a pessoa entra no plano espiritual
com uma coroa e essa coroa, a partir de então, passa a incomodar, porque
lá quando chegar a hora ela vai receber aquilo que tiver merecimento,
então é como se ela ficasse com duas coroas, uma que não tirou daqui, e
a outra que vai receber lá. Por isso a capitania, quem é capitão ou capitã
tem que respeitar e saber fazer isso, sob pena de fazer essa pessoa que foi
coroada sofrer. Tanto que, por exemplo, eu pelo menos uso fazer isso: se a
Irmandade não é a minha, eu não vou participar da coroação, mesmo em
Oliveira, se o Reinado não é meu eu não vou participar, porque ao participar
eu me torno cúmplice e eu vou ter que dar um jeito de fazer o que deve ser
feito, sob pena, de eu ser penalizada. Tem as coisas que a gente pode fazer,
tem as coisas que a gente não pode fazer. Então tanto a coroação e quanto
o cumprimento de promessas têm que ser feitas com muito cuidado, com
muito critério e sabedoria.

66
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Nós temos três ternos na Casa Azul. Nossa família, conhecida como Os
Leonídios é composta por três ternos: o massambike de Nossa Senhora das
Mercês, capitaneado por mim e meu irmão Antônio Eustáquio dos Santos;
o massambike de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 2004 pelos netos
de Leonídio João dos Santos e Ester Rufina Borges, Carlos Tadeu Sabino
Gonçalves, Ester Antonieta Santos e Washington Luis Santos de Oliveira; e o
kongo de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 2005 sob a responsabilidade
de Kátia Aracelle Gonçalves, também neta do capitão Leonídio e da Rainha
Ester. Na cidade de Oliveira existem mais quatorze ternos. Quem não quiser
seguir regras rígidas que observamos em nossa família, tem mais catorze onde
podem dançar e encontrar o ambiente que desejam, onde possam fazer como
queiram. Não tem necessidade de dançar comigo. Quem dança comigo, se
for assim, vai ser assim. Porque o trabalho não vai ser feito de qualquer jeito.
Me refiro ao trabalho espiritual que acontece todos os dias da festa de Nossa
Senhora do Rosário, depois das duas horas da madrugada. Nessa hora, todo
mundo já se deitou, os que vão dormir na Casa Azul e os que vão dormir em
suas casas. Faço as orações finais e vou me recolher porque a espiritualidade
me chama para eu prestar contas do dia. A cobrança não é pequena e ela atua
até de forma invisível, mas como nós costumamos dizer: a gente apanha e não
é brincadeira não, não é brincadeira! Muitas vezes penso que seria preferível
pegar a varinha de atori ou mesmo a vara de marmelo, porque o coro da
espiritualidade é grande.

A Festa do Rosário no Reino d’Os Leonídios é o momento culminante


de quatro momentos rituais cíclicos, um ligado ao outro, que acontecem
anualmente. A abertura do Reino que coincide com o sábado de aleluia:
ritual que dá início às atividades do ciclo do Rosário em Oliveira, conta
com vários procedimentos que afirmam os elementos africanos no Reinado,
como a maceração de ervas, o toque do kandombe e as rezas cantadas em
kimbundu. A Festa da Abolição acontece em maio. A Abolição, para os
reinadeiros, não é exatamente o fato histórico narrado pelos livros escolares
e encenado na data do 13 de maio como se passa visivelmente na oficialidade
da comemoração. A libertação da escravatura, enquanto momento crucial de
descontinuidade com os horrores do cativeiro, é acontecimento que ainda
se faz presente ou precisa ser realizado, que se desenrola em diferentes
planos, que é ritualmente reinstaurado ao longo de toda a festa reinadeira
de setembro. O levantamento dos mastros acontece em agosto e é um ritual

67
Eu tenho a África dentro de mim

de banho dos mastros, bastões, espadas, imagens de santos e outros objetos


sagrados do Reinado, que acontece na noite anterior ao levantamento das
bandeiras – na primeira semana de agosto.

Sobre o levantamento dos mastros é um aviso da proximidade da festa.


É o centro energético da festa. Simboliza a união do céu e da terra, vivos e
mortos, corpo e alma, orienta e atrai, solta-se foguetes quando se elevam
os mastros. Com isso se elevam também os corações, as toadas, os sons
dos instrumentos, caixas batendo e gungas repicando. Em Oliveira faz-se
um cortejo de quatro horas seguidas, às vezes até cinco, no qual os catopês
levam os mastros enquanto as bandeiras dos mastros vão sendo buscadas
nas casas dos mordomos uma a uma pelos massambikes até que se complete
todo o conjunto e então faz-se o levantamento das bandeiras. As bandeiras
que eu levanto são ritualizadas. O procedimento ritual envolve a coleta, a
maceração e o banho composto por 14 ervas com o qual sacralizamos os
mastros e as bandeiras antes de levantá-los. Os mastros e as bandeiras, uma
vez banhados com essas ervas, têm que dormir uma noite no sereno para
depois serem levantados. Nos Leonídios buscamos observar com disciplina
e respeito esses fundamentos. Até porque os quatro mastros com as quatros
bandeiras, não obstante estampadas com as figuras dos santos católicos,
remetem a Kitembu, Nkisi que mostrou onde se poderia plantar num tempo
de seca e escassez, há muito tempo no continente africano. A observação
minuciosa da posição das bandeiras levantadas diz-nos, de forma oracular,
como será a festa naquele ano.

Por fim, temos a Semana de Reinado que acontece em setembro e é o


momento ritual no qual acontece a Festa do Rosário que dura nove dias para
nós, Leonídios. Tem uma toada do Reinado que diz assim:

Ei nego no Rosário
Custa a perender
Nego no Rosário
Custa perender

A vivência do sagrado na Festa do Rosário dos Pretos, a Festa do


Kongo, Reinado de Nossa Senhora do Rosário evoca, primeiramente, a reza
do Rosário de pessoas escravizadas na senzala . Na busca da manutenção da

68
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

sua fé genuína no meio de um sistema escravocrata, os negros souberam


através de muitas maneiras preservar as suas tradições. Obrigados a se
converterem ao cristianismo souberam interpretar no rosário católico
em um rosário adaptado a sua fé. O rosário aí não é o rosário, esse fio
de conta. No Rosário, quando a gente diz “custa a perender”, isso tem os
dois sentidos: primeiro que custa a aprender o que seja a Festa de Nossa
Senhora do Rosário. Até mesmo, dentre os que fazem parte, há os que não
sabem. Muitos que sabem, sabem com limitação, porque vão viver, vão
aprender e vão morrer sem saber. No Rosário com mais essência, com mais
profundidade significa a própria vida, o próprio ser. Então nós custamos
a aprender a viver. O que é viver? Às vezes, os que se esforçaram bem, vão
aprender o que é viver já no finalzinho da vida, quando já não dá muito
tempo para refazer os caminhos. Por isso, nós devemos começar a perceber,
analisar e refletir isso desde cedo. Mas assim como a conta desse fio que
trago em meu pescoço - e eu sou do tempo que não chamava de conta,
chamava de guia - , o Rosário é a nossa guia, tanto que a gente canta:

Ô meu Rosário, é minha guia


Ô meu Rosário, é minha guia
Pega com Nossa Senhora, minha mãe querida
Pega com Nossa Senhora, minha mãe querida

Para nós o rosário é a vida e é nossa grande proteção para cuidar


dessa vida, para “perender” o caminhar da vida. É o que nos dá força para
levantar o dia-a-dia. Muita gente quando se fala em rosário, pensa logo nos
cortejos no seu sentido estético. Os cortejos são mesmo estéticos, mas não
porque são bonitos. Embora eles realmente o sejam. Mas eles são um sentir
ético. Cortejo é percorrer caminhos, reviver a força de comunicação com
o mundo invisível, com os que já se foram e os antepassados. Celebrar a
vida é o Reinado que devemos exercer sobre nós mesmos. Reinar é exercer
soberania sobre nós mesmos. Porque nós cada um de nós temos uma coroa,
não sei se todo mundo sabe. Independente da religião, nós somos criados
para reinar, nós somos filhos de Deus, então todos nós somos de essência
divina, não importa o nome que você dê para esse Deus, se é Alá, se é
N’Zambi. Além disso, o cortejo é um conjunto. As caixas, os pantagomes, as
vozes, as gungas, os ganzoás, os tamborins, as toadas. É esse conjunto que
faz o trabalho ecoar no tempo. E esse trabalho ecoa na humanidade, não é

69
Eu tenho a África dentro de mim

só dentro de Oliveira, mexe com o céu a terra e o mar e no mundo inteiro.


Tanto que em outra toada de massambike nós o louvamos assim:

As contas do meu rosário


São balas de artilharia,
Dá combate no inferno
Quando eu rezo Ave-Maria

Nós aprendemos a fazer o rosário, ensinamos os meninos e as meninas a


fazerem também. O ideal é que cada um faça o seu, como se faz com as contas
do Kandomblé, cantando e rezando. Mas mesmo assim, é preciso preparo. A
pessoa que faz é preparada para poder exercer esse ofício. Tudo que a gente
usa tem um preparo. Os africanos, quando eles rezavam, e nós temos a grata
felicidade de ter aprendido isso e repassar, nós não rezamos como os católicos.
O santo não é bem o do catolicismo que nós estamos reverenciando. O rosário
não é rezado como o católico. Hoje em dia é difícil, porque às vezes nem
mesmo os católicos sabem rezar mais o rosário. No nosso caso, é o conjunto
que faz o trabalho. O conjunto das boas vozes, do dueto, do chacoalhar dos
guizos, das gungas, dos patangomes. Toda a energia que movemos com
os nossos corpos, o canto, os instrumentos sagrados, o encontro coletivo.
Dançando, estamos rezando o rosário dos pretos de senzala.

Por isso os Reinados são também comunidades de aprendizagem que


ensinam para dentro e ensinam para fora. É uma grande oportunidade
de fazer-se gente enquanto se aprende a fazer coletivo. Isso aqui é muito
interessante dentro da cosmologia, porque é uma manifestação político-
religiosa caracterizada por uma relação com a Igreja e com a herança
africana. E aí entra aquela coisa lá do tem que fazer como o colonizador
queria pra poder sobreviver. Mas tem uma coreografia, tem os instrumentos
e todo um repertório oral onde tudo é bem diferenciado do nosso jeito. E aí
nessa vida nós vamos tentando mostrar que nós não somos descendentes de
pessoas que foram escravizadas mas que tinham o seu saber, a sua sabedoria,
a sua tecnologia, e que nós devemos nos ater a isso. Mas com o tempo
vai mudando e como tudo na vida a gente pode sofrer descaracterização.
Mantido sob o prisma de preconceito étnicorracial, da manipulação como
mão de obra barata, do artificialismo e dos condicionamentos que nos
afetam subjetivamente, as comunidades reinadeiras resistem culturalmente.

70
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Impondo, em contrapartida, o exercício da cidadania, o bom exemplo de


afirmação política e de reivindicação de direitos. Trata-se da festa pela
qual os reinadeiros, através dos tempos, têm resistido e resistirão sempre,
com a proteção de fortalecimento dessa resistência e aprendendo com os
mais velhos e as mais velhas que atravessaram o tempo sem perder o rumo,
conscientizados e conscientizando diferentes segmentos culturais que
compõem o povo brasileiro, valorizando o ser humano como senhor da sua
história e agente transformador do espaço. É nesse valor que a gente quer
que os meninos e as meninas estejam ali compenetrados para que saibam
quem eles são e o que eles detêm. E que não tem que se modificar porque
outros pensam diferente.

A dança é uma linguagem corporal e para o negro é via de comunicação


e integração com a natureza. Integração da criatura com o seu Criador.
Dançando e cantando é que faz suas preces, reza os mistérios do rosário
contemplando através de suas toadas repetidas vezes fazendo com que
o pensamento, a firmeza contemple os mistérios da criação, da vida, da
luta, da dor, da vitória, da glória. O negro e a negra nunca fizeram a sua
manifestação religiosa em genuflexo, a sua comunicação com o outro lado
da vida, com os seus ancestrais, sempre ocorre dançando, cantando, tocando
tambor. Nesse movimento de cantar e de dançar é que ele celebra sua fé.
Porque o que a gente vivencia na hora da festa só quem está ali pode sentir
e, embora pareça que todo ano é a mesma coisa, as situações vivenciadas são
muito diferentes. A cada ano é como se fosse uma reflexão diferente, não é
algo repetitivo. Parece repetitivo mas não é. Porque essa manifestação ela
é viva, e ela busca o ser, ela busca as entranhas do ser e faz esse ser vibrar
diferentemente. Estou há quase cinquenta anos fazendo essa festa e nunca
acho que é repetitivo porque o que eu sinto, o que eu vivencio é sempre
diferente de um ano para o outro.

71
Eu tenho a África dentro de mim

A humanidade ainda não se aceita, não se compreende, não se tem


respeito de uns para com os outros, mas muitas vezes esse respeito não
está sendo ensinado. Porque a criancinha de dois anos, ela não respeita o
pai e a mãe porque ela pode xingar e falar o que ela bem entender. Mais
tarde, quando ela se torna uma adulta, acha que pode transferir isso para
sua convivência. Se ela não precisa, se não aprende a respeitar pai e mãe,
como é que vai respeitar o outro anônimo que nunca tinha visto ou que
está vendo pela primeira vez ou, até mesmo, que encontrou por um acaso...
Os pais e as mães como educadores têm grande responsabilidade. Muito
mais do que a instrução. É devagarinho, é devagarinho, é insistir, e insistir,
e insistir até a pessoa aprender e isso é para poucos. Porque para ensinar
sem violência é preciso ter capacidade de persuasão. E não é todo homem e
nem toda mulher que se torna pai e mãe que sabe usar da persuasão para se
fazer entender e se fazer obedecer. Na base da chibata é fácil, mas na base
do diálogo e da conversa está cada vez mais difícil. Muitos preferem deixar
pra lá. “Deixa pra lá... Não tem jeito”, dizem. E desistem logo nos primeiros
embates dessa educação, educação para viver em sociedade.

São os educadores que ajudam a construir essa percepção. Os


educadores são professores, mas nas nossas comunidades são pais, são mães,
são tios, são tias, são primas e primos, que estão próximos das crianças,
dos jovens e das jovens e dos adolescentes e das adolescentes, ajudando-
os a perceber a vida. No rosário, somos também educadores. Porque a
educação vem do berço, é isso que nós aprendemos. E se ensinava isso.
As famílias ensinavam isso a seus filhos, mesmo quando não tinha berço,
porque a gente não tinha berço não, mas eles ensinavam e davam educação
de berço. Já a escola deve instruir. Pais e mães ficam perdidos porque
começaram a entender que a educação agora fica a cargo da escola. No meu
entendimento o que a escola oferece é instrução. A escola dá instrução e a
família dá educação. Mas por outro lado eu vejo que existe instrução para
tudo, menos para ser pai e para ser mãe. As pessoas se tornam pais e mães
totalmente despreparadas. Elas não têm noção do que que seja o ser. Não
têm noção do que foi entregue pra elas pra que elas possam transformar
aquele ser num cidadão, numa pessoa boa, numa pessoa de caráter. Acima
das religiões. Acima dos partidos políticos. Acima das crenças. E nem os
pais, nem a escola estão conseguindo formar bons cidadãos. É, eu posso
dizer isso, porque eu nunca vi isso, o aluno agredir os professores em sala de

72
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

aula. Porque no tempo que a gente tinha educação de berço, o professor, a


professora eram autoridade, apenas a gente respeitava.

Eu fico vendo como é que o mundo dá muita volta, como naquela toada,
porque antes havia a palmatória que o professor podia bater no aluno, agora
os alunos estão batendo nos professores. Então, é mais um momento de
refletir: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem está certa a palmatória,
nem está certa a agressão de estudantes a professores e professoras. E o mais
triste é que às vezes os pais vão na escola para se juntar com o filho e bater
no diretor, na diretora, nos professores, nas professoras. Mas por que estou
falando disso? Porque isso faz parte, isso é consequência da da ausência da
oralidade, da falta de conversa, da falta de educação, da falta de formação.
Eu conheci uma senhora que era companheira de fé de minha mãe, parteira
como ela, que se chamava Floripes e hoje, quando eu fico um bom tempo
com esse cachimbo, eu fico me lembrando dela, porque ela ficou conhecida
como a mulher do cachimbo. Daí eu penso: “Ah, o povo vai me chamar
também de mulher do cachimbo”. Mas o cachimbo é o que me conecta com
a espiritualidade, eu não fumo assim por vício. Eu sou benzedeira, eu não
gosto de ficar falando, porque é uma função minha, mas eu sou benzedeira,
faço banhos e faço remédios, mas o cachimbo me ajuda na percepção do
problema que a pessoa tem e também me defende, porque se não, eu benzo
um monte de pessoas e tudo que é delas vai ficar comigo. Mas ela usava o
cachimbo e dizia uma coisa interessante, ela falava assim, no português dela:
“Mãe, até as cachorra é”. Ela queria dizer o seguinte, pôr filho no mundo,
qualquer um pode pôr, até os cachorros, agora, formar bons cidadãos,
formar boas pessoas que amanhã, ao assumir a presidência de um país,
um ministério ou coisa assim, sejam pessoas honestas, isso é para poucos.
Então, nós estamos aqui pra aprender tudo isso e refletir sobre tudo isso.

73
Eu tenho a África dentro de mim

Subverteu-se a ordem, mesmo depois de tantos avanços na pedagogia,


chegou-se nesse patamar que nós estamos vivendo. Mas quando me falam
assim que não tem como corrigir, eu fico lembrando da Festa do Rosário.
Porque é uma religião que começou dentro da senzala. Inteligentemente,
sabiamente, vem atravessando séculos. Ela é feita por e com pessoas pobres,
por e com pessoas que não tinham o direito nem do seu ir e vir. Será que
ninguém presta atenção nisso? Atualmente, quando eu me visto com as
roupas do Kandomblé e saio pra rua, eu estou fazendo uma contestação.
Porque eu sei que alguém está se incomodando com esse meu vestir. Muitas
pessoas de terreiro, ainda nos dias de hoje, têm vergonha e/ou medo de
andar com as suas roupas, com as suas vestes. É assim que a gente enfrenta
o preconceito. Porque eu sou das que luta, eu gosto dessa luta que atravessa
os séculos. Eu gosto da luta de Ghandi. Eu gosto da luta de Chico Rei que,
caladinho, alforriou mais de 400 pessoas que estavam escravizadas para
que pudessem ter liberdade. Porque ficar só no embate físico pode não
trazer um resultado que a gente queira ou que a gente deseja. Mas quando a
gente tem coragem de fazer enfrentamento, vestindo, cantando e andando.
Caminhando e cantando. Procura fazer, apesar de. Apesar daqueles que não
querem, daqueles que contestam, daqueles que não aceitam. Aí eu estou
fazendo aqui a luta. Eu me arrisco dentro da minha cidade a andar assim
por isso tenho um pensamento muito sério daquilo que eu quero. Porque
Oliveira é uma cidade que todos os umbandistas tocam nos seus fundos de
quintais e para todos os efeitos eles são católicos. Por causa da perseguição.
E aí pra não ter coragem de sair. Porque isso é um enfrentamento pacífico.
Eu saio com o Rosário. Eu saio com as contas. Eu estou atenta às pessoas.

Já comuniquei ao capitão-mor, pois ele é católico, que eu havia


escolhido andar pela cidade assim e que tinham algumas crianças e
adolescentes do Reinado que estavam entrando para o meu terreiro. Porque
muita gente lá quer ser católica porque quer ser aceita. É uma bobagem do
ser humano querer ser aceito. Ser aceito significa abrir mão daquilo que se
é para que os outros o aceitem. Quantos de nós, na nossa vida particular,
abrimos mão do que somos para sermos aceitos pelos outros. Quem fizer
isso, mais à frente, verá que essa estratégia não dá certo já que ninguém vai
dar conta de fingir uma vida inteira. No meu entendimento, há várias formas
de luta, e essa do Reinado atravessando Brasil Colônia, Brasil Império e
Brasil República com tudo contra é uma das mais gigantes que conheço.

74
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Com tudo contra inclusive até mesmo o próprio fazer da festa que já foi
modificado várias vezes. O Reinado é um dos meios de seus participantes
tomarem conhecimento de si mesmos e de seu papel na sociedade. Eu tenho
um primo que agora não é mais dançante no Reinado, mas na época que
ele dançava, trabalhava em uma fazenda prestando serviços de pedreiro.
O encarregado passou para ele o serviço e explicou o que deveria ser feito
e disse para ele que ele devia fazer um serviço de branco. Meu primo, em
termos de instrução, tem até a quarta série primária. Ele conta que procurou
caprichar ao máximo e chegou o dia de entregar o trabalho. Quando ele
chamou o encarregado, perguntou se ele estava satisfeito, se era aquilo
que ele queria, aí ele falou, sim, ficou muito bom, elogiou. Daí meu primo
respondeu: “pois é, esse daqui é um serviço de preto”. Essas coisas que,
por vezes, as pessoas no dia a dia não prestam atenção é a ação ferrenha do
racismo contra o qual nós temos que lutar incessantemente.

Em Oliveira tem muitos lugares que são ultra carregados: onde se


vendiam os escravos, onde era a forca, onde era a Igreja do Rosário. No
sábado, antes de começar oficialmente a festa com o Boi do Rosário, às três
horas tenho que preparar cinco banhos para a semana para uso nosso, de
dançadores e dançadoras, e, às seis horas, eu tenho que estar com o mingau
das almas arriado, ou seja, pronto, entregue, encantado. Às oito horas é o
Boi que sai da Associação dos Congadeiros e retorna meia noite. O boi, ele
tem uma significação. Há o significado material que é a morte de um boi
que foi distribuído, mas a saída do boi ali é aquilo que os terreiros fazem
como despacho para Exu. Não o Exu catiço, mas sim o mensageiro que
limpa as ruas por onde depois vai passar um cortejo de Minkisi, que são os
reis coroados e rainhas coroadas. Eu já não tenho mais medo de falar nem
estou escondendo, uns nunca souberam disso, aí eles se horrorizam e outros
quiseram não contar e foi se perdendo no tempo. Então aquela multidão

75
Eu tenho a África dentro de mim

ela sempre acha que é uma diversão, ela não sabe, o povo não sabe o quê
que é que está ali porque se soubesse talvez nem fosse participar. Mas eles
vão com aquela intensidade com aquela coisa fazendo toda aquela festa.
O Boi do Rosário e a multidão que ele arrasta junto consigo fazem com
que o espaço ritual da festa seja limpo. Então a gente faz aquilo tudo para
demarcar território mesmo. Vamos observar que é um caminho onde o
boi passou, é isso mesmo porque está demarcando um território. Para que
aquelas ruas, aquelas energias sejam dissipadas para que depois ocorra a
passagem daqueles que estão representando as coroas dos Minkisi, ou seja,
o que nós estamos festejando no pano de fundo. No pano da frente são
os santos da Igreja, porque a Igreja não permitia aos negros festejar suas
próprias divindades ou seres espirituais em sua própria crença.

Meia noite é a hora de tocar o kandombe. Kandombe são os


instrumentos feitos em madeira de lei ocada pelas mãos de pessoas que
estiveram na condição de escravizadas em Oliveira. Esses instrumentos têm
duzentos e quarenta anos. Alguns dizem que eu tenho ciúmes deles, mas o
que tenho mesmo é o respeito e o cuidado. Mesmo porque são instrumentos
que já foram sacralizados, então são entidades. Todo cuidado é pouco. No
princípio era tudo com kandombe, até mesmo os cultos. Atabaque é coisa
recente na história das religiões de matriz africana, antes tudo se fazia com
os kandombe. Seja o culto no kandomblé ou no Reinado. o que se fazia era
com os tambores de kandombe.

Tocar o kandombe, é o início do Reinado. Depois que acaba o kandombe,


que já são quatro, quatro e meia da manhã, já é hora de sair para a matina que
é um ritual que se faz de madrugada, antes do sol sair. Aí a gente faz um giro,
tocando e dançando e eu vou com quem estiver disposto a ir e toco também
com quem se apresenta disposto a tocar, porque eu tenho colocado as coisas
assim: quando não tem ninguém, eu toco só eu o kandombe. Quando não tem
ninguém na alvorada, que acontece em seguida, eu vou também. A alvorada
é muito importante. O kandombe é importante porque nós vamos tocar para
iniciar-se um cortejo de reis que, na verdade, é um cortejo de Minkisi. Sai o
Boi, depois a gente toca o kandombe sacralizando, assim como a matina e a
alvorada. São momentos rituais para sacralizar os pontos mais importantes
por onde este Reinado vai passar, por onde esse grande trabalho espiritual vai
acontecer. O capitão João Lopes da Irmandade do Jatobá tinha uma toada de
saudação que ele fazia aos kandombes:

76
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios


Iê, Nossa Senhora
quando no mar apareceu
nego véio na beira da praia ajoelhou

Iê, o branco batia no preto


enquanto resolvia a questão
Nossa Senhora chorou, iê
iê, Nossa Senhora chorou
a lágrima caiu no chão
e da lágrima assim brotou

foi no tambu ngoma


que Nossa Senhora assentou, ê
ê, tamborete sagrado com licençê
tamborete sagrado com licençá
tamborete sagrado com licençê
tamborete sagrado com licençá.

Ele gostava sempre de fazer essa versão que eu o ouvi cantando e


que me faz lembrar dos meus antepassados quando eu toco o kandombe
no tempo da festa. Lembrar o capitão João Lopes também me leva a uma
história muito profunda que envolve a Irmandade do Jatobá. A festa de
Oliveira foi interrompida muitas vezes pelos opressores. Numa delas,
os tambores de kandombe que estavam sob a guarda de meu pai foram
removidos de lá. Um dia comentei com a professora Leda Martins sobre
isso e ela se lembrou: “Uai, eu era menina muito pequena, eu lembro que
eu fui com a mamãe lá em Oliveira e eu lembro que eles cantaram três dias
pra tirar esses tambores de lá”. Quem orientou essa retirada dos tambores
foi o capitão Edson Tomás que detinha muitos conhecimentos no Reinado
e coordenava a festa em Oliveira nessa época. No entendimento dele e
de antigos reinadeiros, lugar de Reinado, kandombe que não tocava, não
poderia ficar porque poderia prejudicar o Reinado. Eu não lembro muita
coisa, mas eles não deixaram a gente participar. Mas, eu lembro que eles
cantaram três dias pra poder tirar esses tambores.

77
Eu tenho a África dentro de mim

Na última apresentação de meu pai, no ano de 1980, antes dele falecer


em junho de 1981, ele faz um verso e o deixa gravado:

Adeus, kandombeiro, adeus


Quando o escutei, logo me veio na cabeça: “aqui teve kandombe?”.
Ninguém nunca falava nada, porque a festa em Oliveira sempre foi muito
conturbada, muito perseguida pela Igreja Católica e pela elite. O povo
reinadeiro teve que se esconder muito. Aí eu fiquei perguntando aos mais
velhos sobre o kandombe, mas ninguém falava nada. Entretanto, eu não
desisti e pensava que se teve, alguém haveria de saber. Depois eu descobri
porque ninguém me contava nada, foram os espíritos que me falaram “eles
fizeram um pacto de segredo, ninguém pode contar não”. Daí eu conheci
o Seu Domingos de Lagoa de Santo Antônio perto de Pedro Leopoldo,
Aí eu confiava muito nesse Seu Domingos e pensei: vou pedir a ele pra
fazer os tambores de kandombe porque eu não sei aonde estão os de
Oliveira. Enquanto isso, na minha mente ficava martelando a ideia de que
eu tinha que mexer, que eu tinha que ter esse kandombe. Quando eu pedi
ao Seu Domingos para fabricar os instrumentos, ele me pediu seiscentos
cruzados. Como era muito dinheiro, foi custoso conseguir, mas eu arrumei o
pagamento. Então o Seu Domingos falou que o companheiro que o ajudava
a tirar a madeira de lei estava doente, depois que estava chovendo muito
pois era novembro e, por último, que tinha o Ibama que não permitia mais
tirar aquele tipo de madeira. Diante de tantas dificuldades para a fabricação
dos instrumentos, eu fiquei triste e pensei que não iria ter os tambores de
Kandombe porque os originais de Oliveira eu não sabia onde estavam. E
ele parecia não querer fazer. Quinze dias depois ele me ligou e falou “tá
pronto.”. Eu assustei porque estava tão difícil e, de repente, ele falou que
estava pronto... Pedi à rainha do terno das Mercês que tinha um carro, cujo
filho era motorista, para me levar em Lagoa de Santo Antônio à noite, sem
saber o endereço, nem nada. Conseguimos achar a casa do Seu Domingos.
Ele levou a gente para um cômodo no fundo e falou assim, “Oh, esse aqui”.
Aí o menino motorista, muito novo, cochichou comigo: “Oh, ele está te
enganando esses daí tão muito velhos”. Daí eu cochichei em resposta: “Cala
a boca, que esses é que são bons”. Fui logo levando esses candombes para

78
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

minha casa, numa alegria, numa alegria, numa alegria. Poucos dias depois,
um preto velho que trabalha com meu filho chegou e falou “esses tambores
são os de Oliveira”. Eu falei, “mas como que esses tambores de Oliveira
foram parar em Lagoa de Santo Antônio”. Ele me disse, “a misericórdia de
Nossa Senhora é muito grande, mas eu não posso contar”. E eu fiquei lá,
olhando os kandombe, procurando aprender a tocar. Inclusive eram esses
tambores de Oliveira que o tal Seu Domingos levava numa missa konga que
a Federação dos Congados fazia com função de folclore, mal sabia ele...

Retornando ao ciclo da festa, depois do kandombe segue-se a alvorada


ou matina que é o momento das primeiras orações, em que saímos às ruas da
cidade passando pelos principais pontos da festa. Quando voltamos, já está
na hora de nos aprontar e tomar o café para ir à missa konga que é às onze
horas. A missa konga é um momento de reverência ao criador e aos santos
padroeiros pedindo a proteção para os dias da festa. Mas é um ritual novo,
inserido na festa na década de 1960 para cá, depois do Concílio Vaticano II.
Antes não tinha essa missa. Mas a característica da missa konga é o lamento
do negro na porta da Igreja.

Dentre todas as vivências no Reinado, o lamento do negro à porta da


igreja, o descimento dos mastros, no encerramento da festa, são momentos
de fortes emoções, dor, fé e esperança de que voltaremos. Nós estamos
resistindo há séculos, então nós vamos continuar resistindo. No final,
principalmente, é um momento de muita alegria, de dever cumprido, mas
também de pedir para que no outro ano nós estejamos bem, com saúde
e com disposição para voltar. E se tiver passado para o outro lado, que os
irmãos saibam fazer as reverências, as devidas despedidas.

79
Eu tenho a África dentro de mim

Voltando ao lamento, chegamos à porta da Igreja, que está fechada, e


cada capitão tem uma maneira melódica de fazer esta toada. Cada capitão
tem uma maneira muito própria de fazer a sua letra, mas na essência é a
mesma coisa. A minha maneira é assim:

Vou contar-lhes uma história, peço preste


atenção, é uma história muito antiga do
tempo da escravidão.
No dia 13 de maio, a assembleia trabaiô, olha
nêgo era cativo e a princesa libertou.
Óia nêgo era cativo e agora virou sinhô.
No tempo da escravidão, era branco que
mandava, quando branco ia pra missa oi era
nêgo que levava.
Quando branco ia pra missa, era nêgo que
levava, branco entrava pra igreja e nêgo cá
fora ficava.
Branco entrava pra Igreja e nêgo cá fora
ficava, e se nêgo reclamasse de xiquirá ele
apanhava.
E se nêgo reclamasse, de xiquirá ele
apanhava, nêgo só ia rezar quando na
senzala ele chegava.
Nêgo só ia rezar quando na senzala ele
chegava, ele fazia as orações e pra N’Zambi
ele entregava.
Ele fazia as orações e pra N’Zambi ele
entregava, pelas almas desses nêgo que
morreram na senzala.
Que dó, que dó, Jesus Cristo está no céu,
amparando estas almas desses nêgo
sofredor.

No final de cada trecho, os integrantes do ternos entram cantando


junto. E aí, quando chega no final, o capitão que entoa o lamento, bate o
bastão três vezes na porta da Igreja e canta:

80
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Ôi seu padre abre a porta


Que os nêgo quer entrar
Pra ouvir a santa missa
Que o senhor vai celebrar

Porque tudo isso deve ser feito, com a porta da Igreja fechada, com
todos do lado de fora para relembrar e para contar essa história.

Depois do lamento, chego com o bastão, dou três toques na porta.


Nessa hora, o padre previamente avisado, canto.

Oi seu padre abre a porta


Que os nêgo quer entrar
Para ouvir a santa missa
Que o senhor vai celebrar

Coro
Êêêêêêêêê

Ele abre as portas e então todos adentram cantando:

Oi seu padre abre a porta


Que os nêgo quer entrar
Para ouvir a santa missa
Que o senhor vai celebrar

E depois pode cantar o hino de Nossa Senhora do Rosário.

Virgem do Rosário, sois rosa mimosa,


entre as outras flores, sois a maais formosa
Coro
Virgem do Rosário, sois rosa mimosa,
entre as outras flores, sois a mais formosa

Maria concebe, o verbo encarnado,


que veio ao mundo, remir o pecado
Coro
Virgem do Rosário, sois rosa mimosa,
entre as outras flores, sois a mais formosa
81
Eu tenho a África dentro de mim

Uma missa sem isso, não é missa konga. O “Lamento do nêgo na porta
da Igreja” é cantado sem o toque de instrumentos. As toadas de entrada e de
ofertório e do evangelho, primeira leitura, comunhão e todos os momentos
da missa devem ser dos reinadeiros e não os cantos impostos pela igreja.

Este lamento na verdade é um relato de como era a vivência ou de


como era a situação do negro na época da escravidão. E assim de toada em
toada, nós vamos cantando e contando a nossa história. E as crianças e os
adolescentes começam a tomar conhecimento de sua história.

Quando vivenciamos essa experiência na festa, nesse instante, as imagens


de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Mercês, São Benedito e Santa
Efigênia são trazidas à minha frente e, com muito respeito e devoção, beijo
as imagens uma a uma e as devolvo a seus lugares. No ritual, seguiria a missa.
Nessa minha escrita, peço licença para registrar mais uma toada pedindo a
Nossa Senhora do Rosário, aos Minkisi, às entidades que abençoem a quem me
lê e às minhas palavras para que possam plantar sementes fortes e germinar
amor da melhor forma possível. Essa toada é cantada e tocada no ritmo serra
acima (um dos que são tocados pelo massambike).

La invém o meu barquinho


Todo enfeitado de luz
La invém o meu barquinho
Todo enfeitado de luz
Ôi Senhora do Rosário
Entra nessa casa adentro
Abençoando os quatro cantos
Com o santíssimo sacramento
Ôi Senhora do Rosário
Entra nessa casa adentro
Abençoando os quatro cantos
Com o santíssimo sacramento

Depois dos acontecimentos rituais de sábado e domingo, vêm os


Reinados dos santos. No domingo e na segunda, homenageamos Nossa
Senhora do Rosário, na terça e na quarta, Nossa Senhora das Mercês,
na quinta a São Benedito, na sexta a Santa Efigênia e no sábado a Nossa

82
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Senhora Aparecida. Há, nesses dias, a troca de coroas dos reis e rainhas
de ano: quem pegou no anterior entrega e há uma nova coroação que será
trocada no ano que vem. Ao longo da semana, os ternos dos Leonídios
tocam e saem em cortejo para visitas a lugares sagrados ou lugares de
carrego, aos reinos coroados e a pessoas que nos pedem visitas e oferecem-
nos homenagens. Em geral, visitamos os bairros Dom Bosco e o Bairro
Aparecida, nos quais residem parentes - tias e avós - que são nossas anciãs.
Nesses dias ocorrem ainda os pagamentos de promessas que são atos de
demonstração pública de uma graça alcançada, além de momento de fé
popular e de grande emoção. Lá em Oliveira já não se faz mais do jeito que
tradicionalmente é o correto, no qual o cumprimento da promessa são sete
voltas ao redor da capela, ou ao redor dos mastros. Já não se faz mais assim
porque concluíram - o verbo é indefinido mesmo - que cada um vai pagar
sua promessa vestindo-se de rei ou de rainha.

O Rosário serve para os sete irmãos , mas eu vou cantar à moda do


massambike. Basicamente no massambike nós temos os ritmos “serra
acima” e “serra abaixo”. Meu pai chamava o “serra acima” de samba. Ele
nunca falava “serra acima”, ele sempre falava samba. Olha ao que vai
arremeter. Samba significa oração. Dentro dos ritmos chamados de “serra
acima” e “serra abaixo”, há variações de padrões entre mais rápido ou mais
compassado. Com mais compasso, significa dizer com mais leveza. Para
exercer uma capitania a pessoa também tem que ser maestro ou maestrina. É
como se fosse uma orquestra que está sendo conduzida por uma regência. O
capitão ou a capitã, dentre as coisas mais fáceis que tem que fazer, é cantar.
Na capitania tem que saber qual ritmo tirar para subir e para descer, para
andar no reto, de acordo com o trabalho que está sendo feito. Porque eu não
posso pôr a pessoa cantando, pra subir uma ladeira, “Aiôlêlêlêlê/Aiôlêlêlêa”,
em ritmo acelerado. Por isso, o capitão ou a capitã tem que ser também

83
Eu tenho a África dentro de mim

regente. Esse “ôlêlê”, ele move céu, move tudo. A gente tem “ôlêlê” pra
tudo. Tem “ôlêlê” pra por o povo pra cima. Tá cansado? Eu tenho um “ôlêlê”
que vai fazer esse povo levantar o ânimo para fazer o trabalho. Nós estamos
andando desde dez horas da manhã no sol quente, rachando. Tocando e
suando. Sem comida, o almoço só será servido lá pelas duas horas da tarde.
Oliveira é uma cidade montanhosa. Tem uma ladeira pra subir, eu tenho a
coisa certa a fazer em termos de canto e ritmo. Para acontecer aquele mover
céu, terra e mar, eu tenho que saber o que cantar, que horas cantar e em qual
ritmo. E ainda fazer com o que aquele terno, aquelas pessoas se conectem.
se não eu não consigo fazer as coisas acontecerem. O ritmo que se toca no
massambike dita o tipo de trabalho que vai ser feito.

Quando as pessoas utilizam saberes do Reinado que eu pratico e


sequer me perguntam o que eu penso dessa aproximação, eu penso que é
uma apropriação. Uma coisa é se um músico acha que tem que compor uma
música falando de tal santo ou de tal orixá, outra coisa é ele se apropriar de
uma coisa que eu nem posso falar que é minha, porque quase tudo que a gente
canta em Reinado a gente recebe intuitivamente. Tanto que eu não vou ao
ECADE registrar uma música como de minha autoria porque eu recebi isso
como qualquer capitão ou capitã pode receber. Sobre essa questão discutimos
muito quando da gravação do disco Os Negros do Rosário1. Como iríamos
colocar a autoria se o canto que eu canto não é meu. Eu o recebo na intuição.
Aliás, na verdade, os músicos são intuídos também. Mas eles se acham no
direito de falar que quem escreve letras, quem escreve livros, quem escreve
música, quem canta é autor ou autora. Mas todo mundo é intuído a produzir
suas obras. Nesse sentido, é preciso prestar muita atenção: a intuição tanto
pode vir do lado do bem quanto do lado do mal. Então você pode ser intuído a
trazer algo que vai elevar as energias da humanidade, como você pode receber
coisas que vai deixar essa energia bem rasteira.

1  Álbum Os Negros do Rosário. OS NEGROS DO ROSÁRIO (LP/1992), (CD/1999). Acessível em: http://bit.ly/
ndrmpedrina

84
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Outra coisa é essa apropriação dos grupos que são chamados de


parafolclóricos. Eu não faço folclore porque essa palavra ganhou um sentido
pejorativo. Se penso em seu sentido primordial que é sabedoria do povo,
sim eu faço folclore. Mas o que esses grupos fazem é copiar as danças
regionais do Brasil e ganhar dinheiro fora. Mesma lógica de pessoas que
vão lá fotografar a festa. Na maioria das vezes, sequer trocam uma palavra
com as pessoas do Reinado, não nos dão nenhuma atenção. Não falam, não
pedem e fazem uso da imagem da gente para compor a sua própria imagem,
para o seu próprio ganho, na qual não nos reconhecemos. O mesmo caso se
aplica às filmagens. Vai filmar, tem uma parte que você pode mostrar. Tem
uma parte que não convém. O interessante não é isso, o interessante é que
se cresça e que se fortaleça e que permaneça, ainda, eras e eras e eras que
vão vir. Então isso pode ser positivo e pode ser negativo, depende de como a
pessoa engendra, de como a pessoa faz. Com que respeito, com que objetivo.

Mencionei há pouco sobre o almoço. Esse é outro momento


importantíssimo na festa: partilhar da comida. O almoço, a confraternização,
o kuriáta. Lá no kandomblé ficou gudiá mas no meio do Reinado ficou
kuriatá. Gudiá é comer, curiá é comer. O alimento do corpo recebe junto o
alimento para alma fortalecendo os pontos vitais do corpo e saciando-lhe
a fome. Ganha a força para continuar o caminho. Não se deve, em nenhum
momento ou em qualquer lugar, alimentar-se sem fazer uma oração, uma
prece, uma reza, ainda que mentalmente. As pessoas não sabem, mas nós
temos um universo de matérias e de vírus circulando no nosso meio. Até
mesmo por causa disso, se deve pedir, para que nós nos livremos dessas
bactérias e desses vírus que pululam independentemente de onde ou
qualquer lugar que esteja. E além disso pedir para nos livrar do mal e do
perigo do poder de todo inimigo. Que reinadeiro é assim. Ele desenvolveu
um poder mental. Então ele não precisa chegar, só com a mente ele pode
fazer algo pra prejudicar. Por isso nós temos que estar todos preparados
pedindo sempre o amparo e a proteção. O alimento, a gente não faz ou serve
o alimento sem rezar, sem orar, sem cantar, muitas vezes na nossa língua
para que possa ser abençoado. O alimento nesses dias é sempre feito em
conjunto. O alimento é para todo mundo que chegar lá. Não tem que pagar
dez ou vinte reais pelo prato não. É aí que aquele senhor Mutakalambo
- para quem São Benedito aceitou fazer frente nesta linda história de
alimento - não deixa faltar. Não deixa faltar! Os momentos da alimentação,

85
Eu tenho a África dentro de mim

partilhados pela Irmandade, também são feitos após orações para que a
alimentação seja abençoada, para que o pão de cada dia não falte nas mesas
e nos lares dos dançadores, seus familiares, bem como das cozinheiras.

Ôi que beleza
Ôi que beleza
Vamos pedir
Nossa mãe do Rosário
Pra abençoar nossa mesa

Da mesma forma que se pede a bênção para o alimento antes das


refeições, também agradecemos à N’Zambi e à Nossa Senhora e à São
Benedito, o santo cozinheiro pela graça de termos saciado nossa fome e
por termos o que comer em nossa mesa, momento em que as cozinheiras
também recebem os agradecimentos e as homenagens por serem as agentes
do cuidado nos preparativos da alimentação.

Nós já comemos já bebemos


Não temos nada pra dar
Peço à Senhora do Rosário lá no céu
Nessa casa
Nada faltar

Agradeço à cozinheira
A comida que fez com alegria
Essa comida era igual
À que São Benedito fazia

Voltando aos “ôlêlê”, tem aqueles que acalmam do mesmo jeito


que tem “ôlêlê” pra aprumar porque as energias que ficam na rua são
cuidadosamente trabalhadas. É por isso que nós não nos dispersamos ou
atuamos cada um numa direção. Nós somos um terno, harmoniosamente.
Do nada, pode ocorrer de um começar a rir do outro, em cascata, se o
capitão ou a capitã não souber o que fazer, não tiver a maestria, um mata
o outro dentro do terno. Isso é resultado das energias com as quais nós

86
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

estamos trabalhando, se houver uma boa condução as energias atuam de


forma descontrolada dentro do coletivo. Comigo já aconteceu em época
mais antiga: eu consegui apaziguar conflitos entre as crianças, mas na hora
que eu olhava pra trás, os caixeiros estavam quase quebrando a caixa um no
outro. Tem gente que diz que reinadeiro é um povo macumbeiro. Eu não
acho ruim, primeiro porque eu assumo mesmo o que sou, segundo que esse
povo reinadeiro sabe das coisas. Agora, alguém de outro terno fica com
mil elogios para seu terno. Como é que é o ser humano? Nós vamos falar
assim: “Dá pra ver que o terno dele está lindo e que está funcionando? Daí
se eu canto: “A lêlêlêlêlêlê” daqui a pouquinho, o povo de outro terno está
brigando e é capaz de acabar ali na rua mesmo! Então quando eu digo isso
para que se possa entender como é que age o “ôlêlê”, que, conforme já dito
antes, pode ser entoado tanto de modo mais rápido quanto mais devagar, a
depender do efeito que se quer.

Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô
Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô

87
Eu tenho a África dentro de mim

É pra fazer maravilha como nossos antepassados. A toada é tão


profunda, tão forte, que muitos dançadores passam mal ou não aguentam.
Não é todo mundo que entra que está pronto. É como a erva, como o
remédio: mal dosado, ao invés de ajudar ele mata. Por isso tem gente que
fala assim: “Que coisa mais boba, todo ano aguentar esse povo aí, com esses
tambores batendo pra baixo e pra cima, esse troço parece tudo a mesma
coisa”. Mas não é a mesma coisa! Todo ano a mesma coisa não é. Toda essa
toada, esse nosso “olelê” tem poder. É uma oração. Mas muita coisa com
sons guturais ou palavras que as pessoas não conhecem o quê querem dizer
parece uma coisa sem sentido ao raciocínio de hoje, parece uma coisa que
não vale nada, ou então, que é só uma música. Existem várias toadas com
“ôlêlê”. A Ave Maria é o mesmo canto. Não pode faltar o lê. Mas pode ter
“lêlê” ou pode ser só o “lê”. Por exemplo ó:

Lêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlê, ôlê

Esparrama outro fluido

Obembua kuna N’Zambi


Pala oso mumu abanjá
Ô Ngana N’Zambi, iô katisá

Lêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlê, ôlê”

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A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Mexe com o tempo e com o espaço. Dança na alegria, dança na dor.


Então nos enterros a gente vai dançando, cantando, ainda que esteja com
as lágrimas escorrendo. No momento da dança nos magnetizamos. Essas
nossas danças e os nossos cantares, eles nos magnetizam e magnetizam
quem tiver por perto que estiver precisando. O corpo se converte em
receptáculo de muitas possibilidades. A dança restabelece a memória e a
recuperação dos antepassados e os capitães, investidos que estão do poder
direcionado e organizador do bastão, da espada, do tamborim, fazem o
comando dos acontecimentos que muitas vezes transcendem sua própria
imaginação. Então a gente canta assim:

Vamo fazer maravia Sinhá


No Rosário de Maria
Vamo fazer maravia Sinhá
No Rosário de Maria

Aliás é maravia mesmo, assim como é beija fulô. Na época não sabia.
Nada de beija flor, é beija fulô. E nós não vamos fazer maravilha não, é
“Vamo fazer maravia...” porque o negro quando vem, intermediando o
português pra sua língua, ele falava assim. Aliás, foi com a professora
doutora Yeda Pessoa de Castro por meio do Seminário Internacional
Acolhendo as Línguas Africanas (SIALA)2 na Bahia que me veio essa
confirmação. O brasileiro fala assim “nóis vai, nóis vem” é porque os verbos
nas línguas dos povos bantu não se flexionam como no português.

2  Criado pela pesquisadora baiana Yeda Pessoa de Castro, reconhecida como a maior conhecedora das
línguas africanas em contato com a língua portuguesa no território brasileiro, o SIALA teve cinco edições
bienais em Salvador – Bahia, no campus da UNEB. O VI SIALA foi realizado na UFMG em 2016 e o VII SIALA
foi realizado na UFES em 2018.

89
Eu tenho a África dentro de mim

Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou

Então vamo cantar, que é assim que se faz.


Vamo cantar!

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

Padre Nosso, Ave Maria eu vim aqui pra rezar


Pra pedir Nossa Senhora seja a luz que vai
nos guiar

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

Virgem Mãe Nossa Senhora


Veja o mundo como está
Vejo o mal baixar cabeça
Pros filhos de Deus passar

90
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

Ei chegou o nosso tempo


Oi é tempo de louvar
Olha vamos festejar
Esse tempo consagrado

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

Com amor no coração


E com muita alegria
Vou cumprir minha missão
Vou festejar Virgem Maria

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

91
Eu tenho a África dentro de mim

Vamo rezar o Pai Nosso


Vamo fazer oração
Vamo rezar o Pai Nosso
Vamo fazer oração
Pai Nosso Ave Maria
Oi eu bato o joelho no chão
Pai Nosso Ave Maria
Oi eu bato o joelho no chão

Katé jibueto
Katé jibueto
Olha Ngana N’Zambi
Olha Ngana N’Zambi
Olha Ngana N’Zambi
Katé até katé até
Jibueto

Qual é a essência do Reinado? A essência é fé, humildade e aceitação,


sem os quais, a gente não consegue seguir. Vamos na toada do Reinado:

Ô Senhora do Rosário,
teu rosário me clareia
e as estrelas lá do céu
a sua coroa alumeia

Sou eu, sou eu,


sou eu mamãe
sou eu.

92
A festa do rosário ou festa do kongo na tradição dos Leonídios

Os versos são bem precisos, é como dizer assim: “Cuida de mim, eu


estou aqui”.

Ei, ô mamãe
cheguei agora,
pra pedir sua benção.

Sou eu, sou eu,


sou eu mamãe
sou eu

Abençoe a minha vida,


oi me dê a direção ê

Olha a volta do mundo,


olha o mundo devagar

Ê olha eu vou caminhando,


caminhando devagar ê

Ê olha é de passo em passo,


olha que se chega lá

Olha peço a proteção,


ô mamãe que aqui venha socorrer

Olha eu peço sua benção,


ô mamãe ô que venha me valer

93
Eu tenho a África dentro de mim

Viva Senhora do Rosário


Viva
Viva São Benedito
Viva
Viva Santa Efigênia
Viva
Viva Nossa Senhora das Mercês
Viva
Divino Espírito Santo
Descei sobre nós

Então viva a coroa sagrada


Viva
Viva o Rosário de Maria
Viva
Viva todos que aqui se acham
Viva
Viva quem gosta dessa festa
Viva
E viva também quem não gosta
Viva
E viva os que fingem que gostam

Esses também fazem parte. Não são só os de fé não.

94
Caja manga
O REINADO É UMA
HERANÇA AFRICANA
Eu tenho a África dentro de mim

As descobertas e as pesquisas nos saberes tradicionais são muito


custosas, o aprendizado é longo. Nós aprendemos, aprendemos e morremos
sem saber. Porque muito, muito mais há. Um dia o professor Romeu Sabará
me parou na rua e me disse, bem ali no cruzamento das ruas Espírito Santo
e Santos Dumont, no centro de Belo Horizonte. Encontramos e ele disse:
“Pedrina, como é que vocês estão andando com as bandeiras dos santos
brancos até hoje?”. Eu respondi: “É que virou uma tradição, não tem como
mudar!”. E daí ele disse “Que é isso, já passou, esse tempo não existe mais”.
Mal sabia ele que eu já conhecia a verdadeira história. Quando se sabe o
que se está fazendo, quando se sabe de onde se vem, sabe-se para onde ir. O
que acontece hoje, é que a maioria das pessoas não sabem de onde vêm, não
sabem suas raízes, não sabem valorizá-las. Por isso estão com dificuldade
para ter um norte, para ter um encaminhamento. Quando eu falo em Reinado,
falo de conhecimentos ancestrais que foram recriados e repassados dentro
da violência do comércio de vidas humanas nas travessias transatlânticas. Eu
tenho na minha cabeça o corte por causa disso, porque é de tanto ficar calada
e calado que muitas pessoas vão embora dessa vida. Ninguém sabe a hora de
ir, mas o que se sabe, no caso de líderes reinadeiros e reinadeiras, é que vai
embora um conhecimento muito grande. E o Reinado surgiu assim.

Eu não conheço esse Reinado que muitos acreditam ser o catolicismo


negro. Eu sei que existiu, historicamente, uma corrente de africanos que
foram cristianizados na África e que vieram pra cá também. Mas esse
Reinado do qual eu faço parte, não é originário desses negros cristianizados
que faziam mea culpa ou que diziam “sim senhor” para a Igreja católica. O
Reinado surge de uma situação de buscar manter, fazer sobreviver no meio
do regime da violência total da escravidão, essa sabedoria de um negro
poder falar com o outro. E como a Igreja tinha um poderio muito maior do
que hoje, muitos, muitos, muitos morreram, porque não queriam ignorar
ou desprezar este conhecimento, este saber. Como tudo que se sabia, tudo
que se fazia não era - como até hoje, para muitos não é assim - conforme o
catolicismo, o destino de quem teimava em afirmar este saber era (e ainda
é) a fogueira. Hoje não se faz a fogueira armada, mas a fogueira existe de
muitas maneiras. E o povo negro, as pessoas escravizadas que idealizaram
o Reinado, o idealizaram no conflito com a vontade da Igreja que era e é
contra ele existir como existe até hoje, mas todo esse conhecimento foi
muito mais forte. Agora, o que eu sei, é que o povo bantu tem uma reserva

98
O Reinado é uma herança africana

muito grande a respeito desses conhecimentos, então muitos morrem.


E mesmo eu venho falando um pouco mais porque eu entendi - seja por
intuição, seja por vontade e escolha minha - que a gente não vai contar o que
nós fazemos dentro dos nossos rituais, mas aquilo que o povo precisa saber,
está na hora do povo saber.

Makota Valdina gostava de cantar: “singuê, singuê, balanga, balanga


tumba kako”1. O que ela traduzia como “se permancermos juntos, unidos,
não nos destruirão”. Esse verso em língua bantu me faz lembrar de outra
coisa que eu aprendi no Reinado, que é outra ponta dentro da enorme
variedade de religiosidades e formas de se expressar da espiritualidade de
matriz africana no Brasil. A maioria dos troncos, aquele terrível objeto de
tortura, era feita da árvore aroeira. Os troncos de suplício eram feitos de
aroeira porque é uma árvore cuja madeira não acaba fácil e ela não se parte
fácil tampouco. Mas não vamos, a partir dessa imagem da tortura, voltar ao
pensamento fácil dos donos do poder de que a negrada era abobada. Não,
não era. As pessoas negras escravizadas eram e são torturadas, mas elas não
se partem facilmente. Nós aprendemos assim: que o negro é como a aroeira:
enverga mas não quebra. Eu aproximo esse pensamento do “singuê, singuê,
balanga, balanga tumba kako”. Então eu penso nisso como uma tradução
entre nossas vivências.

Afinal, foi esse povo escravizado que idealizou o Reinado. Eles e elas
idealizaram uma festa com os santos católicos, mas estavam louvando os
M’kisi. E muita gente morreu e levou isso embora. E hoje ninguém tem

1  Refiro-me ao que vi no documentário “Retrato da Mestra Makota Valdina” (2018).


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FAc4CJr4qtM

99
Eu tenho a África dentro de mim

coragem de falar, a não ser eu. Mesmo porque, de tanto morrer, quase
ninguém não sabe mais disso. Então quando eu tomo benção do rei, eu
me ajoelho porque eu estou tomando benção do Nkisi que ele representa.
A coroa dele representa um Nkisi. Essa reverência não é porque eu estou
saudosa do tempo da monarquia. Congado é diferente de Reinado. Quem
está fazendo congado, está fazendo só esses outros conhecimentos, cristãos,
talvez. Quem está fazendo o Reinado, ainda tem conhecimento da essência
africana da relação com a espiritualidade. Às vezes, não tanto assim, mas
alguma coisa se faz. Porque do mesmo jeito, não se faz nada sem as ervas,
mas quando eu me ajoelho, eu me ajoelho porque eu reverencio não essa
coroa de rei monarca, mas o Nkisi que ele representa dentro do Reinado.

Faço aqui um parênteses. Nasço de uma família de reinadeiros e


umbandistas que tiveram o terreiro de umbanda apedrejado por católicos
fundamentalistas. Nasço de dois seres que eram muito humanos. Dois
médiuns do terreiro de umbanda, dentro da comunidade muito pobre, que até
hoje é, que é o bairro São Sebastião em Oliveira-MG, onde eu nasci. Terreiro
que atendia o povo pobre. Meu pai e minha mãe eram médiuns, benzedores,
raizeiros - saberes e seres dos quais eu sinto muito orgulho de ser aprendiz.
Minha mãe era parteira, mas não era aquela parteira da classe média e da
elite de hoje não. Ela era parteira na comunidade, a ponto de nós, que não
tínhamos o que comer, termos que renunciar o pouco que tínhamos. Ela tinha
que ir cuidar da parturiente e pegar dos lençóis que nós tínhamos, que nem
era tanto, porque aquela mulher a quem minha mãe ia atender não tinha um
lençol limpo adequado para receber a criança, nada de luxo, o básico. Era
assim que a minha mãe fazia, era isso. Só que benze um, benze outro, trata de
problemas de obsessão de outro, nasce outro, então era comum os dois serem
chamados para apadrinhar pessoas adultas e crianças. Aí a hora que chegava

100
O Reinado é uma herança africana

lá na Igreja, era um problema, porque os padres não queriam aceitar, que


aqueles dois pudessem apadrinhar alguém. Tem um, o monsenhor Leão, que
Deus o tenha (é assim que se fala lá em Oliveira), ele vivia chamando o meu
pai no confessionário pra ele prometer que nunca mais ia tocar uma sessão. E
antigamente era sessão, não era toque. Hoje o povo faz toque.

Nós morávamos numa casa pequena, o cômodo do terreiro era menor


ainda. Mas era tão pequenininho e eles começaram a fazer escondido,
dentro de casa, nunca deixaram de fazer dentro de casa. Então eu tenho
essa alegria de poder permear por situações assim. Nesse bairro tem um rio
que passa nele até hoje mas, com tudo que foi feito contra a natureza, ele
não é mais como foi no tempo da escravidão: rio caudaloso e próximo era o
lugar de hasta pública de venda de negros que seriam escravizados e muitos
pulavam pra banda de lá que é este lado e muitos morreram lá na travessia,
mas muitos sobreviveram. Por isso a população negra é maior nesse bairro.
De repente virou território da Igreja católica e todo mundo depois, se quis e
pôde, teve que comprar da Igreja. Mas eu acredito que foi um kilombo que
os negros não tiveram como se apropriar e depois tiveram que comprar da
Igreja católica. Eu penso que nós somos kilombo, eu entendo assim, kilombo
urbano como o Manzo da Makota Kidoiale2.

A escravidão no Brasil levou à formação de muitos kilombos que eram


vistos como sinônimo de insegurança e de prejuízos a viajantes e produtores
rurais. Em Minas Gerais, por exemplo, em torno do Caminho de Goiás, a
Picada de Goiás, único acesso ao atual centro-oeste do Brasil, o Kilombo do
Ambrósio, o maior de Minas Gerais, foi assim descrito por Luís Gonzaga da
Fonseca, em sua “História de Oliveira”:

Goiás era uma Canaã. Voltavam ricos os que tinham ido pobres. Iam e viam mares de
aventureiros. Passavam boiadas e tropas. Seguiam comboios de escravos. Cargueiros
intérminos, carregados de mercadorias, bugigangas, miçangas, tapeçarias e sal. Diante
disso, negros foragidos de senzalas e de comboios em marcha, unidos a prófugos da justiça
e mesmo a remanescentes dos extintos cataguás, foram se homiziando em certos pontos da
estrada (“Caminho de Goiás”ou “Picada de Goiás”). Essas quadrilhas perigosas, sucursais
dos kilombolas do rio das mortes, assaltavam transeuntes e os deixavam mortos no fundo

2  Refere-se aqui ao Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango no contexto da cidade de Belo Horizonte. Makota
Kidoiale é uma das lideranças da comunidade junto a Mametu Muyandê, a matriarca.

101
Eu tenho a África dentro de mim

dos boqueirões e perambeiras, depois de pilhar o que conduziam. Roubavam tudo. Boiadas.
Tropas. Dinheiro. Cargueiros de mercadorias vindos da Corte (Rio de Janeiro). E até os
próprios comboios de escravos, matando os comboeiros e libertando os negros trelados. E
com isto, era mais uma súcia de bandidos a engrossar a quadrilha. Em terras oliveirenses
açoitava-se grande parte dessa nação de “caiambolas organizados” nas matas do Rio
Grande e Rio das Mortes, de que já falamos. E do combate a essa praga é que vai surgir
a colonização do território (de Oliveira, Minas Gerais e região). Entre os mais perigosos
bandos do Campo Grande, figuravam o kilombo do negro Ambrósio e o negro Canalho3.

Esse modo de contar a história, conforme exemplificado pela citação


ao livro de Luís Gonzaga, foi uma das grandes formas de controle dos corpos
negros e de controle dos caminhos da colonização. A suposta violência
no caminho de Goiás creditada ao Kilombo do Ambrósio, habitado por
negros, negras, indígenas cataguases, concretiza uma das formas de racismo
mais eficazes: esse trabalho de construir a imagem dos negros como seres
perigosos, ferozes e selvagens. A violência supostamente praticada pelos
kilombos e pelos kilombolas era nada mais do que a resistência, a prática do
auto-cuidado e a geração de comunidades frente ao caos subjetivo, espiritual
e coletivo causado pelo comércio de vidas humanas. Foi a maior experiência
kilombola dessas terras de Minas Gerais, um dos núcleos do chamado
Kilombo de Campo Grande. Nós trazemos tanta potência, tanta história do
povo! Só que nosso espaço territorial é pequenininho. É pequeno e gigante!

3  FONSECA, Luíz Gonzaga da. História de Oliveira. Oliveira, Edição Centenário, 1961, p. 37.

102
O Reinado é uma herança africana

O Reinado, segundo nossa transmissão oral, vem desde esses tempos,


do Brasil colônia. Inclusive, eu costumo dizer, isso é muito forte, porque
vem do Brasil colônia, passa pelo Brasil Império, chega no Brasil República
e tudo feito por pessoas sem recursos. Tem-se notícia de irmandades de
Nossa Senhora do Rosário em todo o mundo. No Brasil, em Penedo (AL),
desde 1634. Em Recife (PE), desde 1674. Em Viamão (RS), desde 1754 e em Rio
Pardo (RS), desde 1774, citando somente alguns lugares. Em Minas Gerais,
no ciclo do Ouro (fins do séc. XVII início do séc. XVIII), tendo a Coroa
Portuguesa proibido a entrada das ordens religiosas, por motivos públicos e
econômicos, a Igreja cria as confrarias, saindo daí as Irmandades, inspiradas
nas Corporações de Ofícios da Idade Média. Tais Irmandades passaram a
ser um meio de estratificação social e etnicorracial4. Assim, da Irmandade
de São Francisco de Assis participavam os mais abastados, da Irmandade de
Santo Antônio de Categeró, os homens pardos. Existiam várias irmandades e
as pessoas delas participavam conforme a classe social a que pertenciam. Da
Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos participavam os negros
e as negras cativas, com licença por escrito de seus senhores, e os negros e as
negras libertas. Em nosso estado, Minas Gerais, entre as mais antigas estão a
Irmandade de Sabará, a Irmandade do Serro, a Irmandade de Contagem (Os
Arturos), a Irmandade do Jatobá, a Irmandade de Oliveira, dentre outras.

Nós temos notícia de um documento na Irmandade de Oliveira, nós


temos só notícia, porque os documentos ficaram sob a guarda da Igreja
católica e ela nunca passou pra nós nem permitiu que nós o acessássemos.
Nós temos notícia de uma ata da Irmandade de 1813. Já o estatuto, o
primeiro estatuto da Irmandade é de 1860, ainda na Diocese de Mariana e
a Igreja do Rosário, construída por mão-de-obra escravizada, serviu àquela
época para a reunião da câmara municipal. O sino da igrejinha singela é
que batia chamando. Então vejam bem, nós temos um estatuto de 1860 e
a cidade é emancipada em 1861. Um ano depois... E, naquela época, para
que uma entidade tivesse condições de estabelecer um estatuto é porque
suas atividades já vinham acontecendo há muito tempo. A formalização,
só acontecia depois. Porque assim era. E as lutas vão continuando, até que

4  Por exemplo, Tancredo Neves era da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo. E foi enterrado no cemitério
da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo. Então, existem irmandades das pessoas mais abastadas, como a
Nossa Senhora do Carmo que era dos brancos ricos da elite.

103
Eu tenho a África dentro de mim

quando Dom Cabral, que tem o nome de bairro aqui na cidade de Belo
Horizonte, se torna arcebispo e hoje eu tenho o documento que antes eu não
tinha. Eu só sabia da história de que houve um tempo que o papa proibiu
o festejo do Reinado, da Festa do Rosário, e os negros em Oliveira saíram
assim mesmo e eles foram presos com a bandeira. Esse fato gerou uma
interrupção da festa entre os anos de 1948 e 1952. O que temos agora é um
pouco o resultado dessa volta, dessa interrupção que foi muito violenta. Eu
sempre que vinha a Belo Horizonte conversava com as Irmandades daqui
e ninguém sabia dessa história, o que que tinha acontecido e eu ficava
pensando, porque meu pai tinha cantado na porta da Igreja assim:

Homem de saia na porta da aruanda


pode saber que nego vai vencer essa demanda

Ah, é muita coisa! Eles se apropriaram da igrejinha das pessoas negras


escravizadas e fizeram outra maior e agora por último mudaram o nome
porque era de Nossa Senhora do Rosário, agora é de Nossa Senhora de
Oliveira. Nossa Senhora é uma só, muita gente não sabe, mas é uma só. A
Igreja criou vários títulos para fazer quermesse e aí ganhar mais dinheiro.
Mas a nossa Senhora com o título de Oliveira, agora tem duas Igrejas, e
nós, desde essa época que perdemos a capelinha, nós fazemos a coroação
no meio da praça, a praça principal. Isso aconteceu, naquela época, pela
necessidade e, com o tempo, tornou-se algo ruim porque subimos num
tablado que depois veio a chamar palanque e as pessoas adoram se exibir no
palanque, e aquele sentido inicial foi perdendo a conotação. Foram vários
conflitos - seja com a Igreja, seja com a classe elitista - que fizeram com que
a festa tivesse algumas interrupções, mas nunca por muito tempo, nunca
sem luta e resistência de nossa parte.

104
O Reinado é uma herança africana

Em 1999, veio na minha cabeça que nós voltaríamos a adentrar aquela


Igreja que inclusive foi construída com muita mão de obra de reinadeiros e
que quando eu subisse aquelas escadas, eu subiria de joelhos. Eu cheguei lá
rapidamente e cumpri de joelhos e quando eu consegui, o capitão-mor veio
me perguntar o motivo daquele meu gesto e eu falei que estava cumprindo
uma promessa. Lá em cima tinha uma senhora branca chorando que era
amiga dos capitães da época do meu pai. Ela chorava copiosamente e disse
pra mim assim: “O dia que seu pai falou, que ele já tinha cantado ‘Homem
de saia na porta da aruanda, pode saber que nego vai vencer essa demanda’
ele prometeu que o dia que conseguisse entrar na capela de novo, ele
entraria de joelhos e eu estou aqui chorando porque você que não sabe da
promessa dele está cumprindo aquilo que ele falou”.

E não pára. Em 2009 teve a epidemia de gripe suína. Abro parênteses:


nós vamos aprender a votar, só com muita dor e com muita lágrima.
Havia sido eleito um senhor lá em Oliveira-MG para prefeito que não é
simpatizante de ninguém que tenha a pele negra e para coroar o desejo dele
de nos açoitar, veio a gripe suína. Fizeram as reuniões, levaram médicos
para atestar que não tinha condições de ter a festa. A gente já havia feito
o levantamento da bandeira. Em Oliveira levanta-se a bandeira, não se diz
hastear. Tem todo um ritual e o cortejo. Esse prefeito falava com os capitães
que não podia mais fazer a festa que estava muito perigoso pois a gripe,
os micróbios, as bactérias, os vírus poderiam proliferar no meio de tanta
gente... E o povo sem saber o que falar. Por resto, alguém resolveu falar “
Mas nós já levantamos a bandeira” e os médicos falavam “Não, preocupa
não que a gente arranca tudo, a prefeitura banca e leva tudo de volta procês
num caminhão”. Foi o maior terror porque o prefeito disse que se nós
saíssemos ele ia nos colocar presos. Eu ficava imaginando que teriam que
nos levar para o ginásio poliesportivo porque são cerca de mil pessoas, a
cadeia comum não nos caberia. Mas, independente de tudo, eu fiz as minhas
compras todas que eu tinha que fazer para festa. Já era quarta-feira, o Boi
do Rosário sairia no sábado. Estávamos preparados para fazer a festa, com o
então prefeito fazendo todo o terrorismo possível, dizendo através da rádio
local, dos jornais locais, ó, veja bem, ele tinha chamado até a marinha do Rio
de Janeiro, o exército, a aeronáutica, porque se nós saíssemos, ele iria nos
prender. Isso era o ano de 2009!

105
Eu tenho a África dentro de mim

Começamos a nossa reação. A cantora Titane me chamou para me


avisar que já tinha conversado com Maurício Tizumba e o Frei Chico e
nós decidimos ir para a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais. Era quarta-feira. Fomos até lá para expor nossa
situação. Nós devemos isso para Durval Ângelo, porque ele era o então
presidente dessa comissão, foi ele quem acatou a nossa ideia e arrumou um
promotor porque para poder deter o prefeito, nós tivemos que entrar na
justiça para fazer a nossa festa. E como era de praxe, a primeira instância
já tinha acumpliciado com o prefeito e nós perdemos. No sábado que seria
o Boi, os desembargadores se reuniram e daí a gente pode observar como
opera a providência divina. É como a gente gosta de cantar:

Ôi viva Deus e ninguém mais,


quando Deus não quer, ninguém nada faz.

O desembargador relator, tinha duas opções: ou ele levava o processo


para casa, estudava o caso sozinho e fazia a defesa, ou repartia a cópia com
seus pares para que cada um já viesse dando a sua opinião. Ele resolveu
estudar sozinho. É isso que eu chamo de ação divina, porque foi aí que nós
vencemos, porque soubemos depois que o então prefeito já tinha aliciado
os demais desembargadores. Então nós não teríamos nenhuma chance. Os
desembargadores se reuniram em 2a Instância no sábado do Boi às onze
horas da manhã. Às quatro horas da tarde, lá em Oliveira, nós recebemos
a notícia de que tínhamos ganho a causa e que nós íamos sair. O Boi do
Rosário saiu com, pelo menos, três vezes mais gente e a população da cidade
gritando e xingando o prefeito de tudo enquanto é nome. Ele apagou as
luzes da praça principal quando nós lá adentramos. Porque ele poderia até
recorrer na justiça, mas quando saísse uma nova sentença nós já tínhamos
feito a festa da semana, então já não nos importávamos mais. A gente viu o
quanto a providência justiceira da ancestralidade nos possibilitou realizar a
nossa festa, por isso que a gente costuma cantar:

Viva Deus e ninguém mais


quando Deus não quer, ninguém nada faz

106
O Reinado é uma herança africana

E também, para aquele tipo de homem, nós cantamos:

Papagaio louro, do bico dourado,


que falava tanto agora ficou calado

Então é esta caminhada. Estamos fazendo essa travessia. Quando falo


em travessia me inspiro no capitão Edson Tomaz que gostava de usar esse
termo para falar do que fazemos no Reinado. Todos esses conflitos estão
nos preparando. Porque sempre vão existir prefeitos e autoridades terrenas
dispostas a inventar motivos para que nós, povo negro, não possamos sair às
ruas. Em Oliveira é assim quatro pretos conversando, é reunião de Reinado,
não importa se são evangélicos. A luta é a mesma aqui e em qualquer lugar,
mas nós não podemos desanimar! Em outro texto, eu escrevi: “Nosso nome é
resistência, resistimos e resistiremos sempre, e é no sempre de setembro que
a nossa voz e a nossa vez se faz maior.”

Por tudo isso, eu estou em permanente campanha para que nossa gente
volte a falar Reinado e deixe de falar congado, e me explico: é que quando se
faz Reinado, ainda se fazem os ritos desde os tempos da senzala. Enquanto
se faz e diz congado, é tudo lindo. Quem não conhece acha tudo maravilhoso
porque as pessoas só vêem por fora. Outro chamado do povo africano: ver por
dentro. Quem faz o congado, em geral, reúne pessoas, arruma a vestimenta,
arruma os instrumentos e coloca para dançar. Dançar é maravilhoso! Os povos
negros sempre se comunicaram com as divindades, com a ancestralidade
dançando e tocando tambor. O que acontece muito hoje é que pela
necessidade ou pela impossibilidade de dizer o que era na verdade, a maioria
dos reinos acha que este Reinado que é chamado Festa de Nossa Senhora do
Rosário é católico e não é. Este é outro ponto importante da minha reflexão.
Por conta dele minha cabeça está à degola na minha cidade já faz décadas.

107
Eu tenho a África dentro de mim

Porque eu me posiciono. É claro que eu tenho respeito pela Igreja. Mas


em face da perseguição religiosa, eu fui levada a me posicionar.

Claro que se for buscar uma tradução mais correta, os ensinamentos


africanos têm a ver com os ensinamentos de Jesus dentro do cristianismo.
Não pense no catolicismo nem no evangelismo, pense no que Jesus trouxe:
que é preciso pensar no outro sempre, que é preciso viver com o outro, que
é preciso estender as mãos para o outro, que é preciso buscar o diálogo
quantas vezes forem necessárias. Mas isso não significa ficar rezando como
os católicos, porque eu, por exemplo, aprendi a rezar como os negros de
senzala rezavam o rosário. Assim, se se perceber que o Reinado de Nossa
Senhora do Rosário, em contra argumento ao que muitos pensam, nada
mais é do que, sob orientação espiritual, uma criação, nada mais é do que
um arranjo dessa sabedoria africana para se contrapor aos ensinamentos do
opressor europeu e poder fazer a sua caminhada. Mas no decorrer do tempo,
as coisas vão se modificando na cabeça de cada um, e os que não lutam
pela preservação, correm um risco maior de se perderem no caminho deste
sentido, como diziam nossos mestres e nossas mestras: “põe sentido”.

Ah mukuetos, meus irmãos e minhas irmãs, é muita alegria poder


saber tudo isso, poder ser continuadora desse trabalho maravilhoso. O
caminho é longo, não tem dúvida, é um processo. Tem que ser! Porque
agora as pessoas ainda não estão preparadas para receber a verdade e
precisam aprender no próprio processo da demora. Quando os judeus
saem do Egito num percurso de mais ou menos vinte quilômetros, levaram
quarenta anos para percorrê-lo. Para que? Para o amadurecimento das
ideias, para se energizar daquilo que era o seu povo e não do que tinham
aprendido sobre si com o outro. Nós vamos fazer este processo e ele

108
O Reinado é uma herança africana

chegará. O meu pedido é que quando nós estivermos desbravando todos


estes caminhos, porque no Jikula Ongira, no abrir dos caminhos, é que
nós vamos chegar lá. E quando chegarmos, vamos ocupar os espaços de
conhecimento com isso que nós já sabemos que nós sabemos, que nós
temos da nossa herança. Que Nganga Mukixe diplomaticamente e sob o
chamamento dos mais velhos e das mais velhas possam estender ainda
mais essa missão, trazendo o público para também aprender e reaprender o
que se perdeu. Hoje convencionou-se que a ciência do “mundo civilizado”
é que manda e a maneira de nós fazermos esse caminho e fortalecer nossas
formas de conhecimento vai agora fazer com que as escolas e espaços de
conhecimento façam o caminho inverso. Estamos desbravando e vamos
desbravar porque o nosso nome é resistência. Resistimos e resistiremos
sempre e sempre, repassaremos porque, como diz a toada:

meu pai não veio, minha mãe me mandou,


eis aqui a herança que meu pai me deixou.

Café

109
Jatobá
PARTE 2

TRADIÇÕES,
SABERES E
FAZERES
AS TOADAS DO ROSÁRIO1

1 No ano de 2017 foram realizados quatro encontros na Escola de Música para gravação das toadas de Reina-
do com a Capitã Pedrina. Neste capítulo, constam também registros de toadas cantadas durante as aulas dos
Saberes Tradicionais ministrados pela Capitã Pedrina nos anos de 2016, 2017 e 2019.
Eu tenho a África dentro de mim

Sempre falei da importância de termos um registro das toadas que são


cantadas no Reinado para a posteridade. Meu desejo é que as novas gerações
tenham um pouco da grandiosidade dos registros musicais que temos na
Festa do Rosário.

Com todas as atividades que eu faço, que envolvem atividades no


Reinado, no terreiro, as palestras religiosas ou não, eu sou fã da música
erudita também. Gosto muito. E sou fã dos clássicos, dos grandes clássicos.
Mas hoje, a gravação dessas toadas é tão importante para mim e eu quero
deixar isso registrado.

É com muita emoção que começo minhas primeiras palavras. Sou


Pedrina de Lourdes Santos. Há um ano recebi outro nome que é Seji Danji.
Eu sou de religião de matriz africana, mas também me considero ecumênica,
porque eu estive no catolicismo muito tempo e estou na doutrina espírita,
enfim, eu me considero ecumênica, porque eu penso que o jeito de ver a
vida, o jeito de perceber a Deus nunca pode ser de uma única forma. Digo
isso para que as pessoas compreendam melhor de onde nasceu esse desejo
de gravar essas toadas de Reinado. Reinado que é da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos no qual eu tive a alegria muito grande de nascer, numa família
que sempre soube valorizar essa cultura, esse povo, a sua sabedoria, os seus
conhecimentos. Então eu já nasci no Reinado de Nossa Senhora do Rosário
na minha cidade que é Oliveira, Minas Gerais, onde até hoje o programa vem
“Reinado de Nossa Senhora do Rosário - Festa do Congo”, para que nós nunca
percamos a memória desse povo do império de Kongo, onde existiram vários
sobás, vários reis, vários imperadores, mas que um ficou na memória do povo
negro pela história de ser imperador que foi escravizado.

Aqui nas Minas Gerais, a Festa do Rosário não começa com Chico Rei, a
quem tenho o maior respeito. Chico Rei conseguiu dar projeção à ela naquela
época, mas essa festa sempre existiu com os negros dentro da senzala.

Esse dia de hoje para mim, 10 de abril de 2017 é um dia muito feliz,
eu estou muito agradecida por esta oportunidade de poder concretizar este
sonho, esse desejo e eu não tenho como não começar agradecendo a Ngana
N’Zambi, Deus criador. Mona dya N’Zambi, nosso senhor Jesus Cristo, Mona

114
As toadas do Rosário

dya Guembê, o Divino Espírito Santo que, na verdade, nessa trindade, nessa
trilogia estão todos aqueles que são importantes, porque embora tenha
passado pela igreja católica, instituição que respeito muito, não acredito
que haja um só Deus em três pessoas distintas, mas respeito esta maneira
de descrever a crença, e quando eu digo Guembê, Divino Espírito Santo,
aqui onde eu cultuo, se inclui todos os espíritos, porque todos os espíritos
são santos, independente da hierarquia moral, porque somos criados por
um ser que chamamos de Deus, de divino, então a nossa essência é divina.
Podemos até estar caminhando por subidas, morros, pedras, espinhos, mas
isso é periódico, isso não é o que somos e quando andamos por caminhos
considerados descabidos, e isso é muito relativo, o que é inconveniente para
um, pode ser perfeitamente conveniente para o outro, mas nós vivemos
numa sociedade com regras e esse próprio Deus até então, em todas as
religiões ele também tem as suas regras. E na verdade, se alguém foge às
regras, vamos dizer assim, alguém que esteja apenas procurando o seu
caminho, ele quer fazer a sua descoberta, mas todos nós somos divinos, e
não há um Deus que chama três pessoas e que um deles é o Espírito Santo.
Acredito que essa terceira pessoa é justamente a criação que tem a essência
divina. Esteja onde estiver, esteja com quem estiver.

Faço meus agradecimentos a Ngana N’Zambi, à mona dya N’Zambi, à


Guembê, Undamba Berê Berê ou Santa Manganá ou Angana Mussambi, Angana
Libambu, Ngana Kuriá e à Angana Ndaro, por esta oportunidade, por eu ter
nascido numa família de negros, mas como se dizia no tempo da escravidão,
de negros sabidos. De negro que nunca abaixou a cabeça, para as imposições
de quem quer que seja. Quando eu digo que todos somos divinos e todos
somos santos, subentende-se que é necessário haver um respeito de um para
com o outro, independentemente de como e de onde nasça, da profissão,
da cor da pele, da cor dos olhos, do cabelo, do gênero da opção sexual, nós
somos todos divinos, todos da essência divina.

115
Eu tenho a África dentro de mim

Eu entendo que religião, que é religare, tem como papel religar a


criatura ao criador, ao que é divino, porque o que nós chamamos de Deus
é essa energia cósmica que vibra e faz funcionar o universo, embora não
saibamos de sua magnitude, desde muito tempo nos arvoramos em dar
significados. Seja o povo negro, como qualquer outro povo, que pode ser o
povo hindu ou um povo indígena ou um povo oriental, porque eu não estou
falando de grupos caracterizados tão somente de uma formação ou uma
compleição física eu estou falando de pessoas que fazem parte de vários
povos que sabem de onde vêm e sabem para onde querem ir e sabem lutar
para que aquilo que ele acredita seja respeitado. É melhor ainda, quando
essas pessoas sabem fazer essa luta com respeito pelo outro.

Temos inúmeros representantes de lutas pelos povos negros, mais


recentemente o mundo tem o grande Mandela mas tem também no meio do
povo bantu, para mim Pedrina, esse senhor Galanga, imperador de Kongo
que aqui ficou conhecido como Chico Rei e por todos aqueles negros que
o conheceram e foram contemporâneos dele. Estes que hoje já não estão
mais no plano físico, e eu tendo a alegria de ser de religião de matriz
africana, tenho oportunidade de conversar com alguns, como eu converso
com qualquer um que ainda está fazendo parte desta vida. Em várias
oportunidades eu ouvi histórias de espírito que relatou ter se aleijado para
não ter que se submeter ao que o mundo branco queria ou entendia que
fosse o correto.

Eu agradeço a possibilidade de circular em vários meios que me


possibilitam compreender melhor a vida, compreender melhor o ser humano
e me compreender melhor. Então, em primeiro lugar essas pessoas que são
seres espirituais, eu não posso deixar de citar aqui os Minkisi para o povo
bantu, os Orisàs para o povo nagô, pouco importa para mim a nomenclatura
mas que são seres da natureza e mensageiros do senhor do universo, dêem
a ele o nome que quiser, e que traz para esse universo físico e espiritual
as condições para que nós possamos sobreviver, porque eles é que fazem
circular na natureza tudo que nós necessitamos seja de um lado ou do outro,
e que são mal-entendidos e espoliados mas que eu tenho alegria de fazer
parte de um grupo, uma comunidade de negros que, uns mais outros menos,

116
As toadas do Rosário

souberam entender e valorizar isto. E nesta hora eu estou me adobando1,


porque o europeu se curva, o africano adoba aos pés de todos os Minkisi,
daqueles que governam o meu mutuê, a minha cabeça, meu ori que são
Hongolo, N’Dandalunda, Nkosi, Nsumbu, Mutakalambô e Matamba, mas
também de todos os outros porque são muitos, são milhares, pela paciência
que tiveram comigo até que eu pudesse compreender mais um pouco a
didática divina, a beleza da vida. Mas também eu estou adobando aos pés
daqueles que tragicamente vieram para esse país que eu amo tanto que é o
Brasil, para essas Minas Gerais, e que deram o seu suor, o seu sangue para
que o Brasil, com todos os poréns de hoje, pudesse chegar até os nossos
dias. Adobo principalmente aos pés daqueles que não se curvaram, daqueles
que não se entregaram, que morreram para não perder a sua fé. A sua fé
na vida, a sua fé nos Jinkisi, a sua fé nos Orisàs e é por causa desses que eu
estou aqui, é por causa desses que eu tive a oportunidade de fazer essas
gravações, me emociono e me sensibilizo com muita alegria, com muita
gratidão, com muito agradecimento. Então eu quero agradecer aos que eu
ainda consigo lembrar na linhagem genealógica mas que muitos deles eu
nem convivi. Eu sei que são pessoas valorosas, porque se eu sou o que eu
sou antes de mim eles foram valorosos. Então eu agradeço ao Pedro e à Inês,
que foram meus avós paternos, a Amásia que foi minha tia paterna, à Maria
Inês, minha tia paterna. Agradeço aos meus avós maternos Joviano, e Ana
Albertina, e aos meus pais Capitão Leonídio e rainha Konga Ester, que são
duas das pessoas que eu mais respeito no mundo. São as pessoas que eu mais
admiro no mundo. Pela trajetória que tiveram na vida vencendo isso tudo de
dificuldades, vencendo os preconceitos, porque em 1944 eles foram morar
junto, o que hoje é comum, mas naquela época era um pandemônio. Houve
preconceito, venceram discriminação, enfim: dois médiuns, um carcereiro
que foi preso injustamente porque um preso fugiu, que depois passa a ser
pedreiro, mas acima de tudo, um benzedor, um curador, um raizeiro, uma
pessoa sensibilizada com a dor do outro e uma benzedeira, parteira no meio
dos mais pobres, que formataram meu caráter. Então eu agradeço a eles
principalmente, porque eu existo literalmente, tanto física, como mental,
como religiosamente por causa do modo de ser deles. Agradeço também

1  Nas religiões de matriz africana, adobar é uma espécie de reverência e reconhecimento da importância de
alguém ou alguma coisa. A pessoa deita-se no chão com a cabeça próxima aos pés de quem ou o quê quer
reverenciar ou próximo a algum espaço sagrado.

117
Eu tenho a África dentro de mim

aos meus irmãos, que sobreviveram nessa trajetória difícil, numa época de
mortalidade infantil, de desnutrição, de abandono total pelo poder público,
e que essas pessoas sabiam dividir o pão literalmente, para que o outro não
morresse de fome. E eu, por causa disso tudo, sou uma pessoa que se tiver
fubá é o bastante para eu sobreviver. Então, não sei dizer dos meus 13 irmãos
que não sobreviveram dos 21 que foram gerados dessa união. A eles também
a minha gratidão, mas eu quero citar a minha irmã Inês, o meu irmão
Antônio, a minha irmã Amásia, a minha irmã Efigênia, a minha irmã Lena,
a minha irmã Berenice e a minha irmã Regina, alguns já desencarnados. Sei
que ele e elas me ouvem, sei que me percebem, e eu quero dizer a ele e a elas
o quanto eu sou grata e o quanto eu tenho respeito, o quanto eu admiro cada
um/uma na sua peculiaridade, na sua maneira de perceber a vida, e que esse
respeito continuará ad eternum. Agradeço também a esta entidade que se
chama UFMG, e às pessoas com as quais aqui eu tenho convivido e formado
até uma amizade e diretamente à Bárbara Altivo e à Dalva Soares que aqui
estão, que conseguiram culminar ou fazer concretizar esse desejo através
do Fernando2. Neste momento, este povo todo que eu chamo à memória me
possibilita extravasar e abrir meu coração, a minha mente e o meu ser que
vibra diferente e vocês acabam entrando nesse oceano. Ad eternum, façam o
que fizerem, seja como forem, vocês terão a nossa gratidão eterna.

Muito obrigada, muito obrigada a todos vocês.


Ngasakidila

2  Bárbara Regina Altivo é doutora em comunicação, tendo pesquisado o Reinadinho em Oliveira-MG com
co-orientação da Capitã Pedrina. Dalva Soares é doutora em antropologia e escritora. Fernando Braga Cam-
pos é o técnico responsável pela gravação das toadas no estúdio da Escola de Música da UFMG.

118
As toadas do Rosário

Diz um ditado que quem canta, seus males espanta, mas esse momento
não é de males, é de emoção pura, e eu gosto da emoção. Eu já aprendi que
o ideal é o equilíbrio entre o que se sente e o que se pensa, embora eu não
tenha conseguido ter esse equilíbrio, mas eu prefiro a emoção do que o
raciocínio puro. Eu acho que o raciocínio puro é mais tendencioso a nos
fazer errar, do que a emoção, do que o sentimento. É claro que tem um
verso que diz que “O coração tem razões que a própria razão desconhece”,
mas acontece que o raciocínio puro desconstrói o ser se ele não tiver
a sensibilidade para dar esse equilíbrio. Eu, sendo da estatura que sou,
pequena, mas forte, e o caráter foi formado assim numa rigidez, totalmente
fora dos padrões atuais. Eu não sou uma mulher que chora por qualquer
coisa. Eu digo isso, não que eu ache que o choro seja inválido, mas tem
momentos na vida e são momentos assim que eu vivi, que para vencer a
gente tem que segurar o choro e levantar a cabeça. Não chorar e não ficar
cabisbaixa. Não tenho nenhuma vergonha, das lágrimas virem ao meu
rosto, se o contexto assim o fizer necessário. Eu não vou chorar porque
me pisaram, porque me humilharam. Se eu chorar, vai ser depois, vai ser
separado, vai ser sozinha entre as pessoas que eu entendo que estão comigo.
Eu digo isso para reforçar que neste momento, esse choro é a minha emoção
fluindo de gratidão, de gratidão ao universo, de gratidão a esse ser que uns
chamam de N’Zambi, outros chamam de Olodumare, outros chamam de
Tupã, outros chamam de Alá. Outros chamam simplesmente de Deus, por
tudo que Ele construiu, pois o universo não nasceu do nada. Quero deixar
esse registro para quando eu for embora, quando eu tiver 120 anos, ou 140
anos ou os anos que N’Zambi me permitir viver, recebam estas minhas
memórias. Quero chegar lá com saúde, dentro do Reinado, dentro dos
terreiros, junto com o povo.

Engraçado que eu não vejo nenhum povo na terra mais especial, mais
singular que esse povo brasileiro, eu não consigo ver. Com tudo que já foi
e que é, eu não consigo. Eu acho que é porque eu estou no meio do povo,
e o povo brasileiro, não tem nenhum povo igual, que sabe conviver e sair
das maiores dificuldades: alegre, feliz e lutando. E não é porque é um povo
bobo não, é um povo que sabe reagir bem. É um povo que até então, sabe
sair das situações, buscando a alegria, buscando a harmonia. Outros povos
não dariam conta de vivenciar o que nós brasileiros vivenciamos, da forma
como nós vivenciamos. O povo brasileiro sabe tirar leite das pedras. A única

119
Eu tenho a África dentro de mim

ressalva, é que eu acho que esse mesmo povo devia se dar mais valor e nem
sempre consegue isso, porque fica só visualizando o outro: o outro povo que
é isso, o outro povo que é aquilo, sendo que o povo brasileiro tem todas as
forças aqui. Então, o dia que o brasileiro olhar para si próprio, se valorizar
e deixar de querer copiar outros povos, não tem nada que nos segure. É um
povo fabuloso. E no meio deste povo, no dia a dia, nas ruas, descendo ou
subindo de ônibus, é que a gente vai conhecendo melhor o valor do povo
brasileiro, porque eles e elas não são qualquer povo, como eu já disse que
conseguem ser. É esse povo que me faz amar esse país, mesmo acreditando
que o Brasil deveria ter mais políticas públicas, mas esse povo me encanta.

Dedico a todos os seres desse mundo e do outro mundo, seres amigos


ou não tão amigos, mas também à posteridade que tudo isso só terá sentido
se a posteridade souber compreender. Será importante que essa posteridade
pertencente à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
comece a entender bem o que é isso, de onde nasceu, de onde veio.

É importante compreender que o negro africano, não cultua a sua


divindade genuflexo, de joelho, e sim dançando e cantando. Ele veio pra cá,
tendo que se adaptar a uma nova terra, uma nova maneira de ser. Mas ele
não deixou de ser alegre, não deixou de cantar e não deixou de, no seu canto,
contar a sua história, contar a sua cultura, cantar a sua fé. E aos que vão
chegar e aos que estão aí, aos que vão ouvir, primeiro lembre o seguinte: os
africanos nos ensinam e esses africanos são os que idealizaram, formataram,
projetaram isso que nós hoje chamamos de Festa de Nossa Senhora do
Rosário, da Irmandade dos Homens Pretos, Festa do Kongo, onde é preciso
ter fé, humildade e aceitação para fazer bem o Rosário. Na verdade, para
fazer bem, todas as coisas. Esta é a base. Espero que esse registro seja um

120
As toadas do Rosário

incentivo para que quem não saiba o que é a Festa do Rosário, procure
saber. Porque atrás de morro, tem morro, debaixo de angu, tem carne. Não
se deixem levar, tão simplesmente por achismo. Não fiquem preocupados
com o que a sociedade vai dizer, com o que as religiões oficiais vão achar,
ou até mesmo o que Deus vai achar, porque muitas vezes Deus coloca pra
nós de uma forma tal que existe um extremo oposto e muitas vezes nós
somos chamados e qualificados como esse extremo oposto entre o bem e
o mal. Nesta comparação, nós reinadeiros somos tidos como o mal. Diante
disso, desejo que não tenham medo, se acham que somos o mal, o diabo, o
satanás, o capeta, ou sei lá mais o que, então que sejamos. Porque é assim
que nós vamos ser verdadeiros. Quem diz, quem pensa sobre nós sem nos
conhecer, fala sem conhecimento de causa, fala sem propriedade. O que não
pode é você estar no meio sem saber o que é feito, porque aí você acaba por
acreditar facilmente no que o outro que não conhece o Reinado diz. O outro
fala sem embasamento, mas você sem embasamento, acaba por aceitar e
acredita que você é o que você não é.

Isto é só um incentivo, para que essa toada bonita, essa toada que
muitas vezes de forma alegre, às vezes chorada, incentive a quem escutar a
buscar, a ver o que está além das aparências.

No Rosário falamos Salve Maria, e eu estou aqui pelo Rosário, eu


tenho que seguir os ditames da ordem. É só que é o seguinte: eu falo Salve
Maria pela imposição da época. A Festa do Rosário vem desde a época da
colonização não é novidade para quem está inserido nestas Irmandades e na
colonização, a imposição do cristianismo, do catolicismo é enorme. Então
o único lugar que os negros podiam se reunir sem ser considerado rebelião
era nas Irmandades. As Irmandades foram formatadas pela Igreja, moldada
nas corporações de ofício da Idade Média. Entendo que a igreja estratificou
a sociedade. Alguns clérigos, não concordam comigo, mas quando ela diz
que na Irmandade de Nossa Senhora do Carmo, faziam parte certas pessoas,
a Irmandade de São Francisco, tais pessoas, em cada Irmandade, as pessoas
participavam de acordo com seu nível social, é a prova desta questão. A
Irmandade que sobrava para os pretos, para os negros escravizados ou
forros, libertos, era a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
porque tinha e tem a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Brancos.
Santo Antônio de Catejeró, por exemplo, era dos pardos.

121
Eu tenho a África dentro de mim

O negro se insere nessas Irmandades, mas os negros sabidos,


conseguiram aproveitar disso como uma grande estratégia. Os negros
sabidos entravam ali, ficavam “Sim Senhor, Sim Senhor” e ia copiando,
tudo. Os que souberam, os negros sabidos trouxeram isso, de uma maneira
valorosa inserido num Brasil Colônia, que atravessou o Brasil Império e está
aqui no Brasil República, como diziam também sem eira nem beira. Primeiro
o negro foi escravizado e agora continua marginalizado. É impressionante
ver como o negro e seus saberes atravessaram os séculos da forma como se
estruturou, sobreviveu e sobrevive até hoje a todo tipo de achincalho, a todo
tipo de provocação.

A estrutura dessas Irmandades do Rosário dos Homens Pretos é a


mesma estrutura da polícia militar do Brasil Colônia. Então nós temos
capitães mores, capitães regentes, capitães fiscais, capitães de terno,
meirinhos, alferes de bandeira. O certo é falar capitão, só no Reinado que
existe capitã, como no meu caso. A polícia mesmo é capitão, mesmo para o
feminino, mas no Reinado eu sou uma capitã.

Ser capitão, ser capitã é muita coisa: somos sacerdotes, somos


maestros. Somos um pai, uma mãe, e temos que entender que as toadas
podem ser cantadas em várias situações. É responsabilidade do capitão,
da capitã, manter a firmeza do terno, o bem estar dos dançadores e a
preparação para várias situações adversas como mal estar físico e espiritual.

Toadas são os cantos, que entoamos no Reinado. Nos terreiros, o


que cantamos chamamos de zuela ou muimbo. No Reinado em Oliveira
usamos essa nomenclatura e procuramos ter um mínimo de acervo para a
posteridade, para quem quiser e se interessar e para que isso não se perca
no tempo, porque com o passar do tempo a memória pode falhar, pode ir
esquecendo mesmo.

Em alguns momentos, quando não temos ou não podemos fazer uso


das caixas, usamos as mãos para acompanhar as toadas. Através das palmas
temos o nguzu, ou seja, a força para junto com as toadas fazer girar ainda
mais as energias salutares emanadas no momento.

122
As toadas do Rosário

Então vamos começar pela travessia. Essa toada é uma que os capitães
mais velhos lembram a vinda dos negros nos tumbeiros e a chamam assim3.

Chorei, chorar
Chorei, chorar
Ai eu chorei pelo balanço do mar
Ai eu chorei pelo balanço do mar

E aí vai uma sequência de cantos falando dessa travessia, falando de vir


de lá, que eu não sou daqui, até chegar no Brasil.

Chora, chora, chora


Chora mugangá
Chora, chora, chora
Chora mugangá
Eu vim lá de Aruanda, eu vim aqui pra saravar
Eu vim lá de Aruanda, eu vim aqui pra saravar

Ê chora beira mar


Ê chora beira mar
Ê chora beira mar
Povo de Angola chora beira mar

Eu vim beirando o rio ó


Eu vim beirando o mar
Eu vim beirando o rio ó
Eu vim beirando o mar
Oi eu vim de Angola
Ê êia
Oi eu vim de Angola
Ê êia

3  Para que o leitor e a leitora compreendam o fluxo das toadas inseridas nesse capítulo, considere:

. Espaçamento curto: mesma toada


. Espaço longo entre as toadas: toadas diferentes
. Toadas de pergunta e resposta são cantadas sem tempo definido para mudar para outra toada.

123
Eu tenho a África dentro de mim

Ê curva de Rio
Deixa rastro na areia
Ê curva de Rio
Deixa rastro na areia
Nêgo veio a beira mar
Pelo canto da sereia
Nêgo veio a beira mar
Pelo canto da sereia

Beira do rio
Ôlê ôlá
Beira do mar
Ôlê ôlá
Tava na beira do rio
Tava na beira do mar
Quando vi Nossa Senhora do Rosário
Ôlê ôlá

Foi na beira do mar


Onde o nego chorou
Foi na beira do mar
Onde o nego chorou
Quando viu a Nossa Senhora
Saindo da praia coberta de flor
Foi na beira do mar
Onde o nego chorou

Ê na Angola ê
Ê na Angola

124
As toadas do Rosário

Aê Angola
Aê Angola
Essa gunga veio foi de lá
Essa gunga veio foi de lá
Êi correu terra e correu mar
Essa gunga veio foi de lá

Foi agora que eu cheguei auê


Dá licença pra eu entrar
Foi agora que eu cheguei auê
Dá licença pra eu entrar
Eu deixei o meu barco na areia
Pra louvar santa Mareia
Eu deixei o meu barco na areia
Pra louvar santa Mareia

Dentre os vários momentos que constituem o Reinado, temos a missa


konga. No período escravocrata, os sequestradores de negros africanos, os
traziam para cá, mas não respeitavam sua crença. Impunham o cristianismo,
mas não os permitia entrar nas Igrejas. Eles podiam carregar os senhores
dentro de suas liteiras, mas tinham que parar na porta da Igreja. E até hoje
nas missas, é o que caracteriza uma missa konga, fazemos o “Lamento do
negro na porta da Igreja4”. As toadas dos reinadeiros durante a missa são
específicas para o momento, e específicas do Reinado, da nossa forma.
Então não permitam que algumas pessoas, até mesmo de boa vontade,
comecem a interferir nas toadas. Tem hinos lindos da Igreja, que eu também
canto e me emociono com eles, mas se eu estou numa missa konga, eu canto
minhas toadas como tal. Então não permito nem no canto de entrada, nem
no canto de missa, nada, porque quando você faz isso, você cede terreno.
Quando você faz isso você não é um negro sabido.

4  Ver explicação mais ampla com as toadas desse momento no capítulo 2 deste livro.

125
Eu tenho a África dentro de mim

Pontos de abertura

Em tudo que fazemos no Reinado, respeitamos o movimento cíclico de


início, meio e fim. Os pontos de abertura marcam o momento do início das
atividades no Reinado. Momento em que pedimos por nossos antepassados.
Pedimos força e sabedoria para irmos para a rua cumprir nossa missão.

Essa abertura pode ser abertura do ano, que convencionou-se chamar


de “Abertura do reino”, mas o reino não fecha, porque a gente acaba o ano e
começa outro, e o ano no Reinado, como no kandomblé5 começa no sábado
de aleluia, mas não por causa da Igreja. Esses pontos de abertura de reino,
podem também ser utilizados como pontos de abertura dos ensaios ou
cortejo, seja porque se vai buscar reis e rainhas, seja porque se vai visitar
pessoas doentes, seja porque se vai andar pela cidade fazendo a limpeza
espiritual que nós realizamos.

Gosto de iniciar minhas orações com esta específica em que peço a


paz de N’Zambi para todos, procurando me conectar com as boas energias
presentes. Esta oração me foi enviada por intuição, e nela utilizo o que
a professora Yeda Pessoa Castro chama de “Dialeto de senzala”, o que
vim saber anos depois, no feliz encontro com a professora em que pude
confirmar que no Reinado, a língua africana utilizada, embora ela possa ter
uma base seja ela kimbundu, umbundu, kikongo do grupo linguístico bantu,
dentre outras, como pelas línguas nagô, fez com que a vivência dos negros
escravizados na senzala, constituísse uma mistura das línguas africanas,
formatando o que alguns conhecem pelo termo “Dialeto de senzala”.

Ê ê aruê, aruê, aruê


Ê ê aruê, aruê, aruê
Okolofé kuna N’Zambi
Monu, monu gundelela
pala oso
mumu abanjá

5  No Kandomblé, este é um momento em que celebramos o recomeço de vida, em que todos os Minkisi retornam
do hilu (céu) para o ixi (terra) trazendo novos caminhos, novas soluções, nova caminhada para cada filho e filha.

126
As toadas do Rosário

Ê ê aruê, aruê, aruê


Ê ê aruê, aruê, aruê
Obembua kuna N’Zambi
Pala oso mumu abanjá
Ngana N’Zambi
iô katisá
Ê ê aruê, aruê, aruê
Ê ê aruê, aruê, aruê

O que possibilita acontecer a boa energia é a voz, o pensamento e


o sentimento. Ao iniciar esta gravação, comecei a cantar pensando que
aqui, sendo uma instituição de ensino, é também uma casa, e que a Santa
Maria entre nesta casa, como um todo: em todas as partes, em todos os
departamentos, em todas as salas.

No massambike existem dois ritmos que são o serra acima e o serra


abaixo. Qualquer um dos ritmos pode ser acelerado ou lento, de acordo com
a toada. Para a toada abaixo, utilizamos o ritmo serra acima.

Entra nesta casa


Entra nesta casa Virgem mãe Santa Maria
Entra nesta casa
Entra nesta casa Virgem mãe Santa Maria

Meu Divino veio do céu


Ele veio foi avoando
Meu Divino veio do céu
Ele veio foi avoando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando

127
Eu tenho a África dentro de mim

Ô Senhora do Rosário
Hoje eu vim te festejar
Ô Senhora do Rosário
Pede a Deus pra me ajudar

Na língua kimbundu, esta toada fica da seguinte forma

Ô Santa Manganá
No dya diambe kizomba
Ô Santa Manganá
Gundelela N’Zambi iô katisá

É possível colocar no lugar de Nossa Senhora do Rosário, Nossa


Senhora das Mercês, São Benedito, Santa Efigênia que também fica bom.

Ô Santa Efigênia
Hoje eu vim te festejar
Ô Santa Efigênia
Pede a Deus pra me ajudar

As toadas seguintes podem ser cantadas também na alvorada. Alvorada


é o que fazemos antes do sol sair. Acontece de madrugada e é o momento em
que visitamos os principais pontos que serão percorridos durante os dias da
Festa do Rosário, demarcando onde irão acontecer os principais rituais da
festa. É também uma abertura dos trabalhos espirituais da festa.

Acorda nego
O dia clareou
Vai trabalhar que a hora já chegou
Não fica esperando só Deus te ajudar
Pois Deus te ajuda, mas tem que trabalhar
Pois Deus te ajuda, mas tem que trabalhar

128
As toadas do Rosário

Levanta nego que o sinhô mandou chamar


Levanta nego que o sinhô mandou chamar
Pra quê sinhô, é pra trabalhar
Pra quê sinhô, é pra trabalhar

É novo dia
É novo dia
Deixa o dia clarear
Peço licença, com licença
Deixa o meu gunga passar

Ao fazer a abertura no reino ou mesmo quando inicio os ensaios,


sigo os seguintes passos: a louvação primeiro à N’Zambi. uma louvação aos
santos padroeiros; cumprimento aos instrumentos e dançadores. Nossos
instrumentos são todos batizados e preparados, não podendo de forma
alguma serem utilizados como instrumentos de fanfarra ou qualquer outra
coisa que não esteja relacionada ao Reinado. O instrumento consagrado,
batizado, preparado e firmado não é instrumento para ser usado em
qualquer hora e em qualquer lugar, muito menos não deve servir de assento.
Já presenciei dançador e capitão sentado em cima desses instrumentos,
e quando eu vejo isso percebo que o capitão não tem noção do que está
fazendo e o instrumento dele não foi preparado, que se tivesse sido ele ia
saber que não é tamborete para se assentar.

Uma das toadas que utilizo para cumprimentar os instrumentos é

Ô chora ngoma
Ngoma chora
Ô chora ngoma, ngoma de Angola
Ngoma chora

129
Eu tenho a África dentro de mim

Depois de fazer o cumprimento das caixas, dos patangomes, aí nós


vamos fazer o cumprimento entre os irmãos, um deles pode ser:

Dim, dim, dim


Vamos saravar
Dim, dim, dim
Vamos saravar
Saravá meus irmãos do Rosário ê aruanda
Saravá meus irmãos do Rosário ê aruanda

Saravá ê, saravá ê
Saravá meus irmãos do Rosário
Nossa festa já vai começar
Saravá meus irmãos do Rosário
Nossa festa já vai começar

Ô marinheiro
É hora, é hora de kurimar
Ô marinheiro
É hora, é hora de kurimar
Êia, êia, êia chegou nossa hora êia

Kurimar é trabalhar

Ô marinheiro
É hora, é hora de trabalhar
É céu, é terra, é mar
Ô marinheiro olha o balanço do mar

As toadas acima podem ser feitas tanto no ritmo serra abaixo, como
no ritmo serra acima, e dentre estas, umas são de kongo e outras de
massambike.

130
As toadas do Rosário

Ave Maria
Ave Maria
Pai Nosso, Ave Maria
Ave Maria

Quem manda no mundo é Deus


Quem manda no mundo é Deus
Ôiê, quem manda no mundo é Deus
Ôiê, quem manda no mundo é Deus

Ê mundo
Ê Angola
Ê mundo
Esse mundo é de Nossa Senhora

Eu vou pedir licença a N’Zambi


E ele vai me ajudar
Eu vou pedir licença a N’Zambi
E ele vai me ajudar

Ôiê ôiá
Vou pedir Nossa Senhora
Ôiê ôiá
Ela vai nos ajudar

Santa Maria mãe de Deus


Santa Maria mãe de Deus
Rogai por nós pecadores
Rogai por nós pecadores

131
Eu tenho a África dentro de mim

Pelo sinal da santa cruz


Eu começo a oração
Pelo sinal da santa cruz
Eu começo a oração
Vou pedir Nossa Senhora
Pela nossa proteção
Vou pedir Nossa Senhora
Pela nossa proteção

Lá no cruzeiro divino
Aonde as almas vão rezar
Lá no cruzeiro divino
Aonde as almas vão rezar
As almas choram de alegria quando seus filhos combinam
E de tristeza quando não quer combinar
As almas choram de alegria quando seus filhos combinam
E de tristeza quando não quer combinar

Quando eu lembro o dia de hoje


Eu me encho de alegria
Quando eu lembro o dia de hoje
Eu me encho de alegria
Nossa Senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria
Nossa Senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria

132
As toadas do Rosário

Ôlêôlêôlêia
Ôlêôlêôlêia
Ô jikula ongira
Êêiá
Ô jikula ongira
Êêiá

Jikula ongira significa abrir os caminhos, então essa toada é um pedido de


abertura de caminhos. Caminhos de paz, de prosperidade, de saúde, de união.

Vamos rezar o Pai Nosso


Vamos fazer oração
Vamos rezar o Pai Nosso
Vamos fazer oração
Pai Nosso, Ave Maria
Ôi eu bato o joelho no chão
Pai Nosso, Ave Maria
Ôi eu bato o joelho no chão

Katê jibueto
Katê jibueto
Óia Ngana N’Zambi
Katé até, katé até
Jibueto

(Pergunta) Ôi viva, ôi viva


Viva meus irmãos, a Senhora do Rosário
(Resposta) Ôi viva, ôi viva
Viva meus irmãos, a Senhora do Rosário
(Pergunta) Senhora do Rosário
(Resposta) Oi Viva
(Pergunta) Senhora do Rosário
(Resposta) Oi Viva
(Pergunta) Senhora do Rosário
(Resposta) Oi Viva

133
Eu tenho a África dentro de mim

(Pergunta) Senhora do Rosário


(Resposta) Oi Viva

Ôi a coroa do rei
Veio do reino da glória
Ôi a coroa do rei
Veio do reino da glória
Vamos amparar ela com jeito meus irmãos, esta coroa é de Nossa Senhora
Vamos amparar ela com jeito meus irmãos, esta coroa é de Nossa Senhora

Ôi lá em casa
Lá no fundo da horta
Se a polícia me prende
Êê
Sá rainha me sorta

Aiô lêlê coroa


Aiô lêlê coroa

Pontos de saída do reino

Todas as toadas que cantamos até agora foram para pedir proteção,
são pontos de pedir preparação para ir pro mundo afora. E agora veremos os
pontos de saída do reino para o mundo afora.

Semelhança que Deus fez no céu


Nós cá na Terra queremos fazer
Semelhança que Deus fez no céu
Nós cá na Terra queremos fazer
Quem somos nós
Quem somos nós Deus
Oi para ver, para ver

134
As toadas do Rosário

Jesus nascer ai ai
Quem somos nós
Quem somos nós Deus
Oi para ver, para ver
Jesus nascer ai ai

Senhora do Rosário
Ôi a senhora é uma mãe tão boa
Senhora do Rosário
Ôi a senhora é uma mãe tão boa
Ôi venha ver
Os seus filhos ajoelhados
A seus pés pedindo força
Pra vencer na vida
Ôi venha ver
Os seus filhos ajoelhados
A seus pés pedindo força
Pra vencer na vida

Senhora do Rosário
Senhora do Rosário
Senhora do Rosário
Eu tô aqui pra agradecer
Eu hoje cedo
Levantei pedindo força
Senhora me deu a força
Tô aqui pra agradecer
Eu hoje cedo
Levantei pedindo força
Senhora me deu a força
Tô aqui pra agradecer

135
Eu tenho a África dentro de mim

Viva a Senhora da Lapa


Nossa Senhora da Guia
Viva a Senhora da Lapa
Nossa Senhora da Guia
Viva Deus Nossa Senhora
E esse povo de Angola
Viva Deus Nossa Senhora
E esse povo de Angola

Eu vou pedir
Vou pedir Nossa Senhora
Eu vou pedir
Vou pedir Nossa Senhora
Pai, Filho, Espírito Santo
Vou andar o mundo afora
Pai, Filho, Espírito Santo
Vou andar o mundo afora

Fica com Deus


Que eu vou-me embora
Eu vou seguir Nossa Senhora
Fica com Deus
Que eu vou-me embora
Eu vou seguir Nossa Senhora

Caminhemos, caminhemos
Para a Virgem Senhora
Caminhemos, caminhemos
Para a Virgem Senhora
Óia Deus quem guarda nós
Santa Maria gloriosa
Santa Maria gloriosa
Ô Virgem Santa

136
As toadas do Rosário

Ô Virgem pura
Ô Virgem Santa
Ô Virgem pura
Minha mãe tá chamando
Eu vou passear na rua
Minha mãe tá chamando
Eu vou passear na rua

Salve meu Anjo da Guarda


Abre os caminhos pra mim
Salve meu Anjo da Guarda
Abre os caminhos pra mim
Eu sou filha da Virgem Maria
Oi me vale Senhor do Bonfim
Eu sou filha da Virgem Maria
Oi me vale Senhor do Bonfim

Sá rainha konga
Chega na janela
Sá rainha konga
Chega na janela
Venha ver marujo
Que já vai pra guerra
Venha ver marujo
Que já vai pra guerra

Vamos juntos
Para Belém
Vamos juntos
Para Belém
Visitar o santo Deus
Virgem Maria também
Visitar o santo Deus
Virgem Maria também

137
Eu tenho a África dentro de mim

Aonde vai marinheiro


Eu vou à igreja rezar
Aonde vai marinheiro
Eu vou à igreja rezar
Na hora da sua oração
Ai eu também quero rezar
Na hora da sua oração
Ai eu também quero rezar

Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus

Vamos rezar padre nosso


Vamos rezar Ave Maria
Vamos simbora com Deus
Nossa bandeira na guia

Hoje é nosso dia


É a nossa vez
Vamos festejar
A Senhora das Mercês

Ê ê minha mãe
Ê minha mãezinha
Ê ê minha mãe
Ê minha mãezinha

138
As toadas do Rosário

Lá no céu, cá na terra
Ela é a rainha
Lá no céu, cá na terra
Ela é a rainha

A próxima toada é tirada pelo capitão ou capitã e a resposta dos


dançadores sempre será “Vamos indo com Deus”. A medida que o capitão
ou capitã vai cantando, ele vai criando versos que vão falar do que vão fazer,
para onde vão, o lugar que estão, a critério do capitão ou capitã.

Ôi é hora, é hora
Coro
Vamos indo com Deus

Ôi vamos caminhar
Coro
Vamos indo com Deus

Ôi a Nossa Senhora
Coro
Vamos indo com Deus

Ê mandou nos chamar


Coro
Vamos indo com Deus

Ê chegou nosso tempo


Coro
Vamos indo com Deus

Oi vamo kurimar
Coro
Vamos indo com Deus

Vou fazendo oração


Coro
Vamos indo com Deus

139
Eu tenho a África dentro de mim

E N’Zambi amparar
Coro
Vamos indo com Deus

Minha mãezinha do céu


Eu não sei rezar
Só quero lhe pedir ô mãezinha
Deixa eu te amar

Yaô, yaô
Kamaverô yaô
Yaô

Então esses são alguns dos pontos que podem ser feitos na saída de
reino. As orações feitas no momento da saída, são para evitar quaisquer
problemas. Pedimos proteção, porque nós nunca sabemos o que vamos
encontrar pelo caminho.

Levantamento de bandeira

A bandeira no Reinado é levantada, nunca hasteada. Bandeira


de Reinado não se hasteia, bandeira de Reinado se levanta. E para nós
considerarmos que uma bandeira de Reinado está levantada, há que se ter
feito o preparo através de banhos, de ervas e chás, com a preparação da
capitania e do trono coroado. A bandeira significa o elo das forças telúricas
da terra com as forças telúricas do céu. Nós levantamos bandeira para que as
energias que vão circular e nos alimentar, para que nós consigamos fazer bem
feito a festa e todo o trabalho espiritual.

Se trata de um ritual de grande envergadura, não é coisa simples.


Na minha terra, por exemplo, nós saímos às 14h, debaixo de sol quente e
conseguimos chegar onde nós vamos levantar as bandeiras às 18h. Esse trajeto
todo é feito tocando, cantando e dançando. Um outro detalhe muito importante,
em trajeto de levantamento de bandeira, de descimento de bandeira, assim

140
As toadas do Rosário

ensinou-me o meu pai, o terno, a guarda não pode parar de bater, e assim nós
temos feito: saímos e voltamos em casa batendo sem parar. Depois das 19h, que
chegamos em casa, fazemos orações e encerramos. São detalhes que hoje quase
ninguém mais cumpre. Toca um pouco, para um pouco. É claro que cada um
tem a sua situação, a sua peculiaridade, mas foi assim que eu aprendi e é assim
que eu e meu irmão, o capitão Antônio, estamos fazendo.

Tem as toadas, que tanto servem para abrir o reino, como servem para
caminhar, e para o levantamento de bandeira. Eu gosto muito de uma que
sempre que meu pai levantava bandeira, ele gostava de sair cantando e ele
cantava no serra abaixo. Sempre que eu tenho a oportunidade eu canto pra
sair, pra ir levantar bandeira.

Vamos rezar pade nosso


Vamos rezar Ave Maria
Vamos simbora com Deus
Nossa bandeira na guia

Repare que é “pade nosso” e “simbora” e eu gosto de cantar assim,


igualzinho ele cantava.

No serra acima ela pode ser cantada da seguinte forma:

Vamos rezar Pade Nosso


Vamos rezar Ave Maria
Vamos simbora com Deus
Nossa bandeira na guia

Oia a Nossa Senhora


Mandou um recado
Festa do Rosário
Me chamou, me chamou, me chamou
Ai eu sou filha dela
Criada no colo
Eu vou, eu vou, eu vou

141
Eu tenho a África dentro de mim

Ô Rosário é meu
Rosário é meu foi padre santo quem me deu
Ô Rosário é meu

Atenção para a seguinte questão: canto “filha criada” por ser mulher. O
“filho criado” é para o caso de quem estiver cantando ser homem.

Meu cachorro acuou lá no alto da serra


Eu vou levando a bandeira
Meu cachorro acuou lá no alto da serra
Eu vou levando a bandeira do meu protetor

A percepção que eu tenho dessa toada é que (quem morou na roça,


quem já mexeu com caça, sabe o que quer dizer quando um cachorro acua)
o cachorro estar acuado significa que alguma coisa ele viu, que pode ser a
caça. Então ele se sente intimidado, ele está demonstrando certo receio.
Então “o cachorro acuou lá no alto da serra”, eu posso viver todas ou
quaisquer dificuldades, mas eu vou continuar fazendo o que eu faço, eu vou
continuar cumprindo a minha missão, eu vou continuar vivenciando aquilo
que meus antepassados me passaram. Então, “eu vou levando a bandeira”,
ou seja, eu vou seguindo em frente, nada há de me atemorizar, nada vai me
fazer desistir.

Hoje tem bandeirê


Hoje tem bandeira

Óia sobe bandeira, sobe bandeira


Hoje a bandeira sobe
Óia sobe bandeira, sobe bandeira
Hoje a bandeira sobe

É devagarinho é devagarinho
Ê no Rosário eu vou, eu vou
É devagarinho é devagarinho
Ê no Rosário eu vou, eu vou

142
As toadas do Rosário

Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou

Eu sou nêga do Rosário


E o Rosário me chamou, eu já vou
Pois eu sou abençoada pelo toque do tambor
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou
Eu vou, eu vou
Eu vou no Rosário eu vou

Então as toadas também não são somente essas que têm letra. Eu posso
cantar várias outras também que não tenham letra.

Temos no Reinado os cargos de mordoma ou mordomo, que são as


pessoas que ficam responsáveis pela guarda das bandeiras durante o ano.
As bandeiras só ficam fora dessas casas onde ficam guardadas, no tempo
que elas estão levantadas. Então se eu vou chegando e se eu estou puxando a
toada, eu gosto de cantar para a mordoma:

Cheguei para ver Nossa Senhora


Cheguei para ver nossa alegria
Cheguei para ver Nossa Senhora
Cheguei para ver nossa alegria
Cheguei para ver nossa união
Olha viva Deus no céu e viva meus irmãos
Cheguei para ver nossa união
Olha viva Deus no céu e viva meus irmãos

143
Eu tenho a África dentro de mim

Após os cumprimentos, fazemos a saudação à bandeira em que podem


ser cantadas várias toadas. Antes de levantar a bandeira, o capitão, os reis,
os dançadores têm que beijar essa bandeira, e um dos cantos pra beijar a
bandeira de mastro é esse

Os pretinhos do Rosário
Quer bandeira
Quer bandeira pra beijar
Quer bandeira

Vou beijar a bandeira de santá


Vou beijar a bandeira de santá

E eu faço um convite aos reis para que nós possamos seguir com as
bandeiras:

Sinhô rei, sá rainha, a bandeira eu vou levar


Sinhô rei, sá rainha, a bandeira eu vou levar
Com fé na Virgem Maria
De passo a passo a gente chega lá
Com fé na Virgem Maria
De passo a passo a gente chega lá

Ê pai de Nganga
Pai de Nganga de Guiné
Vou levar minha bandeira
Vou levar com muita fé

Ê bandeira
Ê coroa

144
As toadas do Rosário

Até chegar no local em que as bandeiras serão levantadas, tem várias


toadas de cortejo para leva-las. No momento em que estamos nos preparando
para levantar a bandeira, ou após o levantamento podemos cantar:

Ê Mandamento
Sobe pro ar
Ê Mandamento
Que eu quero ver

Levantar a bandeira agora


Levantar a bandeira agora
Com Deus e Nossa Senhora
Levantar a bandeira agora

A bandeira no mastro avuou


A bandeira no mastro avuou
Se ela foi lá pro céu eu também vou
Se ela foi lá pro céu eu também vou

Uma voz me chamou


A outra me respondeu
Levanta a bandeira santa
Que a terra toda tremeu

Oi dobra a marcha o instrumento


Para a bandeira levantar
Oi dobra a marcha o instrumento
Para a bandeira levantar
Apruma ela bem aprumaaada
Oi essa flor
De nós adorada

145
Eu tenho a África dentro de mim

Uma voz me chamou


A outra me respondeu
Levanta a bandeira santa
Que a terra toda tremeu

Tira o chapéu
Tira o chapéu
Que a nossa bandeira
Subiu lá pro céu

Ê bandeira santa
Bandeira santa lá em cima, lá no ar
Ê bandeira santa
Abre os caminhos pra poder eu caminhar

Toda vez que se levanta uma bandeira, os capitães mais velhos, os mais
antigos, fazem uma toada cantada em derredor da bandeira, com o mastro já
levantado, com os bastões erguidos e tocando-os no mastro. Cada um tem
uma história pra contar dessa toada que também é uma história cantada.
Lá em Oliveira nós temos a notícia de um capitão que foi preso na época
da festa. E aí lá do fundo da cela ele cantou essa toada. E essa toada é pra
lembrar também que já houve um tempo que levantar bandeira era sinal de
cadeia, manifestar sua devoção através da Festa do Rosário já resultou em
pessoas presas na minha cidade. Levantava-se a bandeira e ia ser preso. E
essa toada é assim e vale a pena perpetuar, como todas as outras

Eu não matei, eu não roubei, eu não fiz nada


Eu não matei, eu não roubei, eu não fiz nada
Mas o povo tá dizendo que amanhã é o meu jurado
Vou pedir Senhora do Rosário que ela mesma seja minha advogada

Então são várias toadas. Não precisa tirar todas no mesmo dia, mas
precisa ter um repertório para ir guardando.

Alevantar bandeira
Alevantar bandeira
146
As toadas do Rosário

(Pergunta) Ê mandamento
(Resposta) Sobe pro ar
(Pergunta) Ê mandamento
(Resposta) Que eu quero ver

Entoamos também toadas que têm ôlêlê que tem uma diferença dentro
do Reinado, tem toda diferença dentro do massambike e do kongo. Com o
ôlêlê se move o céu, se move a terra e se move o mar.

É preciso esclarecer que eu estou cantando as toadas no refrão, mas


um capitão deve saber versear, inclusive de improviso, e o que o capitão faz
de mais fácil nessa festa é cantar. Então ele tem que ter memória, tem que
buscar gravar e tem que aprender a criar, a fazer versos de improviso de
acordo com a situação ou ambiente em que se encontra, conversando com o
vento para as coisas fluirem. Então algumas toadas com ôlêlê servem para o
cortejo e vários outros momentos.

Aiô lêlêêêia
Ôlêlêê êia

Ô lê
Ô lêlê ê ia
Ô lê
Ô lêlê ê ia

Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô

Lêlê lêlê
Ô lêlê lêlê lêlê
Aiô lêlê
Ôlê

147
Eu tenho a África dentro de mim

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

(Verso) Padre Nosso, Ave Maria eu vim aqui pra rezar


Pra pedir Nossa Senhora seja a luz que vai nos guiar

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

(Verso) Virgem Mãe Nossa Senhora


Veja o mundo como está
Vejo o mal baixar cabeça
Pros filhos de Deus passar

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

(Verso) Ei chegou o nosso tempo


Oi é tempo de louvar
Olha vamos festejar
Esse tempo consagrado

148
As toadas do Rosário

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

(Verso) Com amor no coração


E com muita alegria
Vou cumprir minha missão
Vou festejar Virgem Maria

Ôlêlêlêlêô
Ôlêlêlêlêô
Ô ôlêlê êô

Ô ôlê
Ô ôlá
Ô ôlê
Ô ôlê êia

Ôlê
Ôlá
Ôlê ôlêlê êia

Ôo ôo lê
Ôo ôo lá

149
Eu tenho a África dentro de mim

Ôo ôo lê
Ôlêlê lêlê lálá

Ôlêlê
Ôlêlê lálá

Tem uma toada com “ôlêlê” que acalma qualquer pessoa e qualquer
ambiente. Ela faz até dormir. Só de a ir cantando já acalma e se souber a
pessoa dorme.

Aiô lêlê ôlê


Aiô lêlê êiô
Aiô lêlê ôlê
Aiô lêlê êiô
Aiô lêlê lêlê ôlê
Ôô ôô
Aiô lêlê lêlê ôlê
Ôô ôô

Parece uma coisa boba, mas não é, é de muito poder.

A toada tem “lêlê lêlê lêlê”, só que aí, quando você põe o “lá”, você
direciona. Fazendo uma comparação, o povo da magia gosta de usar uma
varinha de condão, o “lá” é quando você pega essa força que é o “lê” e a
direciona. Quando você diz o “lá”, você dá direção, você diz “lá”. Então ele
é mais perigoso quando coloca o “lá” no meio do “lêlê”, você torna o “lelê”
mais perigoso ainda, porque ao invés de deixar ele fazer uma jornada, você
induz, direciona.

Ôlê ôlá
Ôlêlê êia

Esse povo de Angola sabe mexer na natureza como ninguém.

Ôta lilêlê êiô


Ôta lilêlê êiô
Ôlêlê ôlêlê

150
As toadas do Rosário

Chora ngoma ué
Ôtarilêlê êiô
Ôtarilêlê êiô
Ô lêlê êiô

Ôtiô lêlê êiô


Ôtiô lêlê êiô

Ôlê ôlêlêia
Ôlê ôlêlêia

Ô ngoma
Ôlêlê ngoma

Aiôlêlêêêia
Aiôlêlêêêia

Lêlêlêlê
Ôlêlêlêlêlêlê
Lêlêlêlê
ôlê

Ôlê
Ôlêlêlálá

Lêlêlêlêlêlêlê
Ôia
Lêlêlêlêlêlêlê
Ôia

Ô ilêlêlêlê
Ô ilêlêlêia

Ôtilêlê ôô
Ôtilêlê ôô ôô

151
Eu tenho a África dentro de mim

Ôtilêlêlê
Ôtilêlêlê tilêlêlê tilêlêlê
Ôtilêlêlê ôtilêlêlê
Aiôlêlêlêlêlê ô

Ô ô ôlêlêlêiô
Lêlêlêiô

Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê ôlêlê ôlálá

(Verso) Pisa firme pisa devagar


Pisa firme pisa devagar
Devagarinho pra não machucar
Devagarinho pra não machucar

Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê
Ôlálá
Ôlêlê ôlêlê ôlálá

152
As toadas do Rosário

Ô ô ô lêlêiô
Ôlêlêiô
Aiô lêlê iô
Aiô lêlê ôô ôô

Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô

(Verso) Vim pedir a sua benção


Nos pés de Nossa Senhora
Diante de sua presença
Porque vou caminhar agora

Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô

(Verso) Êi Nossa Senhora nossa mãe


Ela sempre abençoa
É chegada nossa hora
Senhor rei Sinhá rainha
Convido pra me acompanhar

153
Eu tenho a África dentro de mim

Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô

(Verso) Deus te pague eu agradeço


Eu não tem com que pagar
Mas vou pedir Nossa Senhora
Que lhes pague em meu lugar

Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê
Ôlêlêlêlê ô

Quando cantamos alguma toada que tem


“tindôlêlê”, cantamos que “vamos fazer com
alegria”.

Ôtindô lêlêlê
Ôtindô lêlêlê
Ôtindô lêlêlê
Êiô
Ô lê iô

Kaô, kaô
Kaô tindolêlêlêio
Kaô, kaô
Kaô tindolêlêlêio

154
As toadas do Rosário

Festa da Abolição

O festejo de 13 de maio, que na cidade de Oliveira acontece no mês da


abolição. Este é o momento em que rememoramos os negros escravizados:
os que morreram na senzala, os que conseguiram compreender o fim do
cativeiro, sempre buscando nos lembrar do quão fortes e corajosos foram.
São momentos em que é apropriado entoar toadas específicas que falam das
vivências no tempo do cativeiro, mas toadas de louvação, toadas com “ôlêlê”,
de reverência a reis e rainhas também podem ser utilizadas, dentre outras.

(Pergunta) Ôi o massambikeiro da linha de Angola, que anda pro


mundo com Nossa Senhora
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Olha nêgo zitava na senzala é
Olha nêgo zitava zirezando
Olha nêgo zitava zicutando
(Resposta) Choro de neném, choro de neném
(Pergunta) Sariema nebengue
Veja a coisa como anda
Veja a coisa como tá
Todo bicho anda direito, caranguejo anda de banda
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Todo bicho anda direito
Caranguejo anda de banda
Nêgo véio sabe andar
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Eu me chamo Rio Preto, escravo da ressurreição
No sonho da liberdade, me tornei um valentão
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Me armei de cartucheira, carabina e facão, pra cortar
zitupete de kurumba, espora de valentão
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Sariemê, bicho de capueraba, ôre quando sai do campo,
ôre tem que mocotar
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) Sariême
(Resposta) Tem que mocotar

155
Eu tenho a África dentro de mim

(Pergunta) Sariême
(Resposta) Tem que mocotar
(Pergunta) Sariême
(Resposta) Tem que mocotar
(Resposta) Ôlê ôlê êêia
(Pergunta) No tempo do cativeiro
No tempo do cativeiro
Quando o sinhô me batia
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
(Resposta) No tempo do cativeiro
No tempo do cativeiro
Quando o sinhô me batia
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Eu gritava por Nossa Senhora meu Deus
Quando a pancada doía
Ôlê ôlê êêia

(Pergunta) Marvado seja o carapina


(Resposta) Ôôôôôôôô
(Pergunta) Que bateu na árvore e o pau caiu
(Resposta) Êêêêêêêêêêê
(Pergunta) E da madeira fez o navio
(Resposta) Ôôôôôôôôô
(Pergunta) Pra mode trazer os pretos cá pras banda do Brasil
(Resposta) Êêêêêêêêêêê
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou

156
As toadas do Rosário

(Resposta) Deixa a pena avuar


(Pergunta) Na mesma tába que passa ocê, passô eu
(Resposta) Na mesma taba que passa ocê, passô eu
(Pergunta) Na mesma tába que passa ocê, passô eu
(Resposta) Na mesma taba que passa ocê, passô eu
(Pergunta) Meu senhor quer me vender, mas não sabe o que vai perder
Eu sou preto da canela fina, carcanhá rachado, nariz funilado
Moça bonita eu não mereço eu vou morrer
(Resposta) Eu não mereço, eu vou morrer
Eu não mereço, eu vou morrer
(Pergunta) Sinhazinha mandou me chamar
Sinhazinha mandou me chamar
(Resposta) Eu não vou lá, eu não vou lá, eu não vou lá
Eu não vou lá, eu não vou lá, eu não vou lá
(Pergunta) Ela tá com a chibata na mão e eu não quero apanhá
Ela tá com a chibata na mão e eu não quero apanhá
(Resposta) Eu não vou lá, eu não vou lá, eu não vou lá
Eu não vou lá, eu não vou lá, eu não vou lá
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Gunga atrapaiada é uma coisa danada
Toca na subida e para na chegada
(Resposta) Ôlêlêlêlêlêlêiô
Ôlêlêlêlêlêlêiô
(Pergunta) Gunga esquisita, gunga trapaiada
Toca na saída e para na chegada
(Resposta) Ôlêlêlêlêlêlêiô
Ôlêlêlêlêlêlêiô
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou

157
Eu tenho a África dentro de mim

(Resposta) Deixa a pena avuar


(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar
(Pergunta) Juriti avuou
(Resposta) Deixa a pena avuar

Tava dormindo a rainha me chamou


Tava dormindo a rainha me chamou
Acorda nêgo cativeiro acabou
Acorda nêgo cativeiro acabou

Bate tambor, bate tambor


Hoje é dia de alegria, hoje é dia de alegria
Bate tambor, bate tambor

Olha lá, olha lá


Olha lá tambor grande batendo, olha lá

No cativeiro nêgo muito trabalhou


No cativeiro nêgo muito trabalhou
Trabalhava tocando tambor
E na fria senzala fazia oração pra Nosso Senhor
E na fria senzala fazia oração pra Nosso Senhor

Toadas de cortejo

A todo momento que estamos no Reinado, buscamos pedir proteção.


Pode ser feito no momento de sair do reino, no trajeto que fazemos na
rua, em casa ou em momentos de cortejo. Toadas de cortejo são toadas
que podem ser feitas em qualquer lugar que estivermos, como no momento
da condução das coroas, nas visitas que fazemos durante o dia, visitas aos

158
As toadas do Rosário

doentes, caminhando pelos bairros, pelas ruas, fazendo a limpeza espiritual


que nós temos que fazer.

Quando estamos nas ruas, na verdade estamos guerreando. Mexemos


com as forças, com a energias, com forças espirituais do bem e do mal.
Então acaba que vivenciamos esse confronto.

Ôi Senhora do Rosário
Olha a sua casa cheira
Cheira cravo, cheira rosa
Cheira flor de laranjeira

Ê mukueto kurima, oi mukueto iô kurimá


Ê mukueto kurima, oi mukueto iô kurimá
Undamba Berêberê iô katisá
Undamba Berêberê iô katisá

Ô meu rosário
É minha vida
Ô meu rosário
É minha vida
Pega com Nossa Senhora
Minha mãe querida
Pega com Nossa Senhora
Minha mãe querida

Eu sou devota
Da Virgem Maria
Ela é nossa força
Ela é nossa guia

159
Eu tenho a África dentro de mim

160
As toadas do Rosário

161
Eu tenho a África dentro de mim

Akuendê akuendê
Akuendê onjira mussambi
Akuêndê

Beija fulô, toma conta do jardim


Beija fulô, toma conta do jardim
Vou pedir Nossa Senhora
Pra tomá conta de mim
Vou pedir Nossa Senhora
Pra tomá conta de mim

Louvado seja Deus


Louvado seja Deus
Para sempre seja louvado
Louvado seja Deus

162
As toadas do Rosário

Ô Capitão
Ô capitão
Papai morreu, mamãe já teve fim
Vou pedir Nossa Senhora
Pra tomá conta de mim

Senhora do Rosário
Seu Rosário me clareia
E as estrelas lá do céu
Oi a sua coroa alumeia

Embelezou, embelezou
Embelezou o Rosário de Maria
Embelezou

Vamos chegar no Rosário ôi


Vamos chegar no Rosário

163
Eu tenho a África dentro de mim

Massambikeiro ê, massambikeiro ah
Massambikeiro ê, massambikeiro ah
Uuu, aaa
Uuu, aaa

Olha a força do Angolê, ê, ê, ê,


Olha a força do Angola
Ê, ê,ê Saravá

Ôi viva Deus e ninguém mais


Quando Deus não quer, ninguém nada faz

164
As toadas do Rosário

Odé onde mora Odé


Odé nessa casa santa
Odé ôlêlêlêlêê
Nossa Senhora venha me valer
Não tenho pai, não tenho mãe
Ninguém vai chorar por mim
Nossa Senhora é a minha mãe
Meu pai Senhor do Bonfim
Nossa Senhora é a minha mãe
Meu pai Senhor do Bonfim

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

165
Eu tenho a África dentro de mim

(Verso)
Ei, ô mamãe cheguei agora, pra pedir sua benção

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Abençoe a minha vida, oi me dê a direção ê

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Olha a volta do mundo, olha o mundo devagar

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Ê olha eu vou caminhando, caminhando devagar ê

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Ê olha é de passo em passo, olha que se chega lá

166
As toadas do Rosário

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Olha peço a proteção, ô mamãe que aqui venha socorrer

(Refrão)
Sou eu
Sou eu
Sou eu mamãe sou eu

(Verso)
Olha eu peço sua benção, ô mamãe ô que venha me valer

Emi kuenda ongirá


Emi kuenda ongirá
Emi kuenda ongirá
Ongira mussambi
Kuenda ongirá

(Pergunta) Ei nego no Rosário


(Resposta) Custa a perender
(Pergunta) Nego no Rosário
(Resposta) Custa perender

São Benedito me deu um Rosário


Pediu para eu rezar todo dia
São Benedito me deu um Rosário
Pediu para eu rezar todo dia
Pra São Benedito rezo um Pade Nosso
Pra Nossa Senhora rezo Ave Maria
Pra São Benedito rezo um Pade Nosso
Pra Nossa Senhora rezo Ave Maria
167
Eu tenho a África dentro de mim

Ôlê ôlêlêêêia
Ôlê ôlêlêêêia

Nossa Senhora
Foi morar na lapa
Na lapa não pode morar Nossa Senhora
É no Rosário
Na lapa não pode morar Nossa Senhora
É no Rosário

Senhora do Rosário
Foi quem me trouxe aqui
Senhora do Rosário
Foi quem me trouxe aqui
A água do mar é santa
Eu vim, eu vim, eu vim
A água do mar é santa
Eu vim, eu vim, eu vim

Foi na lapinha
Onde ela apareceu ai
Foi na lapinha
Onde ela apareceu ai
Relampiou
Quando ela apareceu
Oi Senhora do Rosário
Abençoe os filhos seus ai

Nossa Senhora do Rosário


Nossa Senhora do Rosário
Ai ela é
A Rainha das Flores

168
As toadas do Rosário

Mas ela é
A Rainha das Flores
Oi lá no campo do Rosário
Onde ela é uma flor
Oi lá no campo do Rosário
Onde ela é uma flor

Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Santa Maria
Ela é a mãe de Deus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus
Me abençoa nesta hora
Protegei os filhos seus

Ô sabiá
Essa gunga me faz chorar
Ô sabiá
Essa gunga me faz chorar

Abre ala gente


Deixa a ema passear
Ôôôôôô
Abre ala gente
Deixa a ema passear
Ôôôôôô
Peito de pombo
Coração de sabiá
Massambikeiro
Quero ver gunga raiar

169
Eu tenho a África dentro de mim

Eu vou levar bandeira


Eu vou levar bandeira

Viva o Rosário
Viva nossa mãe Santa Maria

Viva o Rosário viva


Viva o Rosário viva
Rosário de Maria
Rosário de Maria

Aê, aê
Ôi viva o Rosário
Ôi viva Maria ô

Eu vou levar coroa


Eu vou levar coroa

Terra boa, ôi é terra de coroa


Terra boa, ôi é terra de coroa
Venha ver meu coração, meus irmãos
Ai meu Deus que coisa boa
Venha ver meu coração, meus irmãos
Ai meu Deus que coisa boa

Ôlêlê
Ôlêlê
Ôlêlê tilêlêlê
Tilêlêlê

170
As toadas do Rosário

Aiôlêlêiô
Aiôlêlêiô
Ôlêlêlêlêlê ôô

Meu pai gostava de cantar no terno das Mercês e nesta toada, existem
duas respostas: a primeira é o “Ôôôôôôôôôôô”, e a segunda é “Ôlêlêêiá,
ôlêlêiô”. Vou apresentar algumas possibilidades de versos para utilizá-las.

Ai o massambikeiro anda à meia-noite ai, ai, ai meu Deus


Ai o massambikeiro anda à meia-noite, procurando coroa maior
Chora ngoma
Ôôôôôôôôôôô
Oi chora ngoma
Ôlêlêêiá, ôlêlêiô
Ai o massambikeiro não bebe cachaça ai, ai, ai meu Deus
Ai o massambikeiro não bebe cachaça, pita cachimbo e sabora a fumaça
Chora ngoma
Ôôôôôôôôôôô
Oi chora ngoma
Ôlêlêêiá, ôlêlêiô
Oi no dia diambe
Oi eu vim festejar
Viva o treze de maio
Dia que nêgo forrar
Oia vei de Angola
Vem beirando rio, veio beirando o mar
Chora ngoma
Ôôôôôôôôôôô
Oi chora ngoma
Ôlêlêêiá, ôlêlêiô

Lêlêlêlê, ôlêlêlêlêlêlê
Aiô lêlêlê, ôlê

171
Eu tenho a África dentro de mim

Aiôlêlêlêlê
Aiôlêlêlêa

Aiôlêlê ô lê
Aiôlêlêiô

Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô
Aiôlêlêlêlê, ô lê ôôôô

Ô ngoma
Ô lêlê ngoma

Ô ngoma
Ôlêlê chora ngoma

Hoje em dia, primeiro você tira a toada, pra depois você começar a
versear, mas antigamente não era assim. O capitão já começava verseando e
a gente já tinha que entender qual era a toada que ele queria. E aí tem umas
muito pequenas que é muito interessante, que ele já fazia aquele verso e a
gente respondia.

Ôlê ôlêlêiô

Uma era essa. O capitão só falava assim.

Ôi é hora, é hora eu vou viajar


Nossa Senhora que vai me levar

Aí a gente já sabia:

Ôlê ôlêlêiô

172
As toadas do Rosário

Hoje não é assim mais, se eu fizer o verso eles não sabem, ficam
olhando para mim sem entender.

Ai o massambikeiro já vai viajar


Coroa santa vai me acompanhar
Ôlê ôlêlêiô
Ê segura que tem, essa ngoma não tem pra ninguém
Ôlê ôlêlêiô

Inclusive esse é um serra abaixo que é rápido. Não quer dizer que o
serra abaixo deve ser sempre lento.

Uma das responsabilidades do capitão e da capitã está relacionada


também ao tom de voz que ele ou ela tira a toada. Se não se toma cuidado,
pode prejudicar a voz do capitão ou da capitã e a voz dos componentes
do terno, dando uma sobrecarga e um desgaste desnecessários. Então na
capitania, além de saber o quê que cantar, que hora cantar, saber se localizar,
tem que saber versear e tem que entender esses momentos. O capitão/a
capitã tem que saber que hora que é a subida, que hora que é a descida, que
hora que é a baixada. Numa descida, numa baixada, pode tirar.

(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô

(Verso)
Êi, oi eu vim de Angola
De Angola que eu veio tocar

(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô

(Verso)
Êi, ô minha mamãe que me chama, ô mamãe mandou me chamar

(Refrão)
Ôlê ôlêlêiô

173
Eu tenho a África dentro de mim

Ôlê ôlá
Ôlêlêêiá

No massambike de Nossa Senhora das Mercês, aprendemos com o meu


pai que no ritmo serra abaixo, só repicamos as caixas depois da resposta e
é perfeito, porque é no repique das caixas, que as gungas repicam juntas.
O serra abaixo não tem que sair só no repicado, toda hora, as três caixas
vão repicar juntas e iguais. Não é cada um repicando para um lado, e repica
igual e isso precisa de um treino, precisa de ensaio e nessa hora do repique
das caixas que os patangomes vão vibrar mais intensamente e as gungas. O
serra acima não tem hora, mesmo que o capitão esteja verseando, ele vai,
e as gungas também podem ir repicando sem nenhum problema. Outra
característica é manter mais na marcação.

Toadas para louvar coroa

A coroação de capitães, reis, rainhas, príncipes e princesas é um


momento de muita devoção. Para realizar uma coroação não basta apenas
cantar, é preciso se informar corretamente sobre quais procedimentos
devem ser adotados para que tenha validade tanto no mundo físico quanto
no mundo espiritual.

As coroas em formato arredondado são coroas dos reis europeus.


Aprendi com um velho da Aruanda que as coroas africanas, principalmente
as de angolanos eram feitas em formato de cone, sem nenhum metal, feitas
com contas de lágrima e cipó.

Em uma cerimônia demorada, a coroação deve ter a presença de pelo


menos um dos capitães da Irmandade, podendo ser o capitão mor, capitão

174
As toadas do Rosário

regente, capitão de terno e estes devem orientar a quem for receber a


coroação, para que eles façam o que é pedido na toada cantada para cada
momento. Se canta para o rei, é o senhor então só o senhor que vai ajoelhar
e a rainha espera. São coroados desta forma os reis kongos, reis perpétuos e
reis de ano ou reis festeiros, bem como a capitania da Irmandade.

Ajoelhai Sinhô
Ajoelhai Sinhô
Diante de Deus e de Nossa Senhora
Ajoelhai Sinhô

Ajoelhai Sinhá
Ajoelhai Sinhá
Diante de Deus e de Nossa Senhora
Ajoelhai Sinhá

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei o manto sagrado
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei o manto sagrado
Ô recebei Sinhá

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei coroa santa
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei coroa santa
Ô recebei Sinhá

175
Eu tenho a África dentro de mim

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei seu centro santo
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei seu centro santo
Ô recebei Sinhá

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
Recebei o seu Rosário
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
Recebei o seu Rosário
Ô recebei Sinhá

Tem a opção de ao invés de


falar Deus e Nossa Senhora, falar
N’Zambi e Santa Manganá.

Enjuelhai Sinhô
Enjuelhai Sinhô
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Enjuelhai Sinhô

Enjuelhai Sinhá
Enjuelhai Sinhá
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Enjuelhai Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O manto de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô

176
As toadas do Rosário

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O manto de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
A coroa de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
A coroa de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O cajado de Santa Manganá
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O cajado de Santa Manganá
Ô recebei Sinhá

Ô recebei Sinhô
Ô recebei Sinhô
O Rosário abençoado
Ô recebei Sinhô

Ô recebei Sinhá
Ô recebei Sinhá
O Rosário abençoado
Ô recebei Sinhá

177
Eu tenho a África dentro de mim

Em qualquer dessas versões que for escolhida, quando acabar canta “Lá
do céu invém descendo uma coroa”.

Lá do céu invém descendo uma coroa


Ela vem é do reino da Glória
Lá do céu invém descendo uma coroa
Ela vem é do reino da Glória
Vamos receber ela com jeito meus irmãos
Esta coroa é de Nossa Senhora
Vamos receber ela com jeito meus irmãos
Esta coroa é de Nossa Senhora

Tem uns que gostam de cantar assim:

Lá do céu invém descendo uma coroa


Esta coroa é do reino da Glória
Lá do céu invém descendo uma coroa
Esta coroa é do reino da Glória
Vamos apanhar ela com jeito meus irmãos
Esta coroa é de Nossa Senhora
Vamos apanhar ela com jeito meus irmãos
Esta coroa é de Nossa Senhora.

Em seguida, cantamos para para os reis levantarem.

Alevantai Sinhô
Alevantai Sinhô
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Alevantai Sinhô

Alevantai Sinhá
Alevantai Sinhá
Diante de N’Zambi e Santa Manganá
Alevantai Sinhá

178
As toadas do Rosário

Aí a toada, se vai tocar serra acima, se vai tocar serra abaixo, se vai só
rufar os tambores, fica a critério de cada capitão de terno.

Para saudar os novos coroados.

Ê coroa nova
Ê coroa nova

Coroado, coroado
Oi viva a coroa minha
Coroado, coroado
Sinhô rei, Sinhá rainha

Está coroado
Está coroado
Está coroado neste reinado
Está coroado
Está coroado
Em nome de Deus e da Virgem Maria

Para fazer coroação dos capitães, as toadas são essas mesmas apenas
mudando de Sinhô ou Senhor rei, de Sinhá ou Sá rainha para capitão ou
capitã, mas a maneira de fazer é a mesma.

Quando for o caso de coroação de reis festeiros, reis de ano, reis que vão
entrar em um ano e sair no outro, a toada a seguir pode ser entoada também.

Coroar
Coroar Sinhá Sinhô
Coroar
Coroar Sinhá Sinhô
Coroar nosso rei de ano
Nosso rei imperador
Coroar nosso rei de ano
Nosso rei imperador

179
Eu tenho a África dentro de mim

Eu vou louvar coroa


Eu vou louvar coroa

Tem outras toadas para fazer a louvação de coroa. Tem uns que podem
ser cantados também no cortejo sem nenhum problema, sem incorrer em erro.

Ê coroa
Ôlêlê coroa

Tem uma muito antiga que meu pai gostava de cantar louvando os reis.
Seja porque tinha acabado uma coroação ou seja porque eram reis perpétuos
ou reis kongos.

Oi viva o rei
Viva rainha
Oi viva o príncipe
E a princesinha

Viva, viva
Viva a coroa sagrada
Viva, viva
Foi por Deus abençoada

Coroas de promessa

Um dos momentos sublimes é a hora das coroas de promessa, porque


promessa é dívida, e os capitães ficam cúmplices no cumprimento dessas
promessas.

Quando for cumprir promessa de saúde, a pessoa que vai cumprir a


promessa tem que ir cercada por três bastões fazendo um triângulo em
volta dela. Isso pouca gente sabe hoje em dia e pouca gente faz. E se alguém

180
As toadas do Rosário

fizer promessa para cumprir de joelho, o capitão ou capitã que for cumprir
puxando o terno, caso a pessoa não dê conta de ir de joelhos, o capitão ou
capitã tem que ajoelhar e cumprir o restante da promessa. Promessa é dívida
e é dessa forma que tem que ser feito, porque senão não fica cumprida.
Outra coisa que eu aprendi é que cumprimento de promessa tem que dar
sete voltas. Hoje tem gente dando apenas uma volta, mas o cumprimento
de promessa mesmo são sete voltas. Os capitães mor, os capitães regentes,
os capitães de terno devem orientar as pessoas quando forem cumprir a
promessa porque senão não fica feito direito e aí o próprio capitão vai ficar
junto devendo a promessa.

Esse tipo de coroa de promessa não requer todo o ritual de coroação,


porque conta com a presença de um mesário e os reis kongos e perpétuos que
ficam responsáveis por colocarem a capa, a coroa e podem até acompanhar a
promessa, dependendo da situação.

Podemos entoar

Ei que coroa é essa


Coro
É coroa de promessa

E depois que eu pergunto três vezes e três vezes os dançadores


terão respondido, todos juntos cantamos: “De promessa, de promessa, de
promessa”.

E ela fica assim:

Capitão que coroa é essa


É coroa de promessa
Capitão que coroa é essa
É coroa de promessa
Capitão que coroa é essa
É coroa de promessa
De promessa, de promessa, de promessa

181
Eu tenho a África dentro de mim

Oi caxeiro que coroa é essa


É coroa de promessa
Oi caxeiro que coroa é essa
É coroa de promessa
Oi caxeiro que coroa é essa
É coroa de promessa
De promessa, de promessa, de promessa

Patangomeiro que coroa é essa


É coroa de promessa
Patangomeiro que coroa é essa
É coroa de promessa
Patangomeiro que coroa é essa
É coroa de promessa
De promessa, de promessa, de promessa

E aí eu posso ir no cortejo com as coroas de promessa fazendo:

Oi que hora é essa


Oi que hora é essa
Oi que hora é essa
Hora de cumprir promessa

Que coroa é essa


Que coroa é essa
Que coroa é essa
Hora de cumprir promessa

Mas que hora é essa


Mas que hora é essa
Mas que hora é essa
Hora de cumprir promessa

Para entregar a coroa, no caso de reis de ano ou porque alguém desistiu, o


processo é o mesmo só que ao invés de falar “Ô recebei”, falamos “Ô entregai”

182
As toadas do Rosário

Ô entregai Sinhô
Ô entregai Sinhô
Entregai o manto sagrado
Ô entregai Sinhô

Vai pedindo o manto, o cetro, o Rosário e a coroa e é feita a


descoroação para que não fique muita gente indo para o outro lado sem ter
feito a descoroação. Se não atentamos para esta questão, traz sofrimento
para quem desencarnou e não foi descoroado.

Deve-se ter compromisso, deve-se ter responsabilidade. Se pegou,


faça direito. Não é para fazer de qualquer jeito porque além de ser coroa
de Nossa Senhora, a coroa de São Benedito, a coroa de Santa Efigênia, é
também coroa do Nkisi, a coroa do Orisà.

Baseado em um romance que conta a história de Chico Rei, criei esta


toada para louvação às coroas kongas:

Saruê Galanga
Vencedor de Mara Mara
Chico Rei não foi vencido
Nem no tempo da senzala

E aí eu faço vários versos contando a história dele

Era um nobre destemido


Da linhagem de Aluquene
Em Bula refugiado
Até o Reinado perene

Galanga é o nome de Chico Rei. Eu ainda vou gravar o nome todo dele,
gravar que eu falo é mentalizar. Galanga era um guerreiro que depois virou
capitão de guerra preta. Essa expressão “capitão de guerra preta” equivale
a um general nosso hoje. E aí a família, a ascendência dele é Aluquene,
e Aluquene é uma rainha, e não um reino. Ela teve o reino tomado, e aí
Galanga refugiou numa cidade, numa aldeia chamada Bula. E lá no final eles
tiveram uma guerra num campo chamado Mara Mara.

183
Eu tenho a África dentro de mim

Saruê significa salve, viva. Viva Galanga, vencedor de Mara Mara.


Quando eu falo vencedor de Mara Mara, é porque ele então, o capitão de
guerra preta, o general, que liderou essa guerra num campo chamado Mara
Mara, e Angola e Kongo são muito parecidos com o Brasil. Falo isso, porque
a África e o Brasil em outras épocas eram juntos. Tem muita gente que já
foi, chega lá, parece que tem alguma coisa muito parecida com o Corcovado,
dá a impressão que está chegando no Brasil de novo. E quando você olha o
mapa, mesmo agora que o oceano passa no meio, é possível perceber que se
trata de terras que já foram uma só.

Na história conta que o campo de Mara Mara estava muito nublado, e ele
com as estratégias de guerra, conseguiu vencer. Reassume o reino de Kongo,
se tornando imperador do Kongo. Galanga ganhou o nome de Chico Rei aqui
em Minas Gerais, título dado pelo povo, por saberem de sua história como
imperador de Kongo que se torna escravo em Vila Rica, Ouro Preto.

Houve uma organização da coroa portuguesa, que engendraram a


coroação de Galanga que já estava pelo povo da cidade como Francisco da
Natividade. Seu apelido de Chico Rei foi dado em função de sua história. Ele
foi coroado pela coroa portuguesa dia 06 de janeiro.

Mas quando eu canto que Chico Rei não foi vencido nem no tempo da
senzala, é porque ele não perdeu o porte, não perdeu a nobreza, não perdeu
nem mesmo a coroa, ele é conhecido como rei até hoje. E aí em poucos
versos eu vou resumindo a história, e embora o Reinado não comece com
ele, é uma pessoa importante na história do Brasil.

Sua coroação deu visibilidade ao Reinado. Quando ele saiu coroado, ele
começou a fazer esses cortejos com a autorização da coroa portuguesa para
sair coroado, e usava isso em benefício do próprio povo negro.

Ele alforriou perto ou mais de 400 pessoas, com recursos dele e isso
ninguém fala. Teve a vivência na mina e já não carpia mais. Antigamente
usava-se o termo não carpir mais para falar das minas que não se achava mais
ouro, mas ele conseguiu chegar no ponto que tinha ouro e ela voltou a carpir,
isso que é bonito, em um momento ele foi preso numa hora que os guerreiros
estavam guerreando, então foram raptados a guarda real e os mais velhos,

184
As toadas do Rosário

em Minas Gerais ele saiu dando a liberdade. O filho ficou preso na senzala
e ele foi trabalhando até conseguir a liberdade do filho e em seguida foi
trabalhando os dois até conseguir, com realização de quermesse, ele comprava
a alforria. Vendia o pouco que achava de ouro e libertou toda a guarda real que
ainda estava escrava. E aí eles dançaram pela primeira vez naquela igreja que
está lá até hoje, em Ouro Preto-MG, que é a Igreja de Santa Efigênia.

Quem fez aquelas pinturas da igreja, sabia muito bem o que estava
fazendo, porque o desenho no teto é de um papa negro, e todos os altares
estão esculpidos, a madeira esculpida de búzio. Aquela Igreja ali foi feita
para virar um marco.

Cantar a toada que conta a história de Chico Rei não é uma regra: posso
cantá-la, como posso fazer outros tipos de cumprimento aos reis kongos.

Eu vou louvar, coroa


Eu vou louvar, coroa

Atenção que essa toada é louvar e não levar, porque tem outras toadas
que é levar. Esse é um momento de cumprimento de coroa, não é uma toada
que se canta na rua andando. Ou é no reino, na casa dos reis, quando for
fazer os cumprimentos a gente canta fazendo o cumprimento a cada um.

Eu quero ver coroa


Eu quero ver coroa

Ê coroa
Ôlêlê coroa

Coroa, coroa
Coroa, coroa
Coroa de lágrima, coroa
Coroa de lágrima, coroa

185
Eu tenho a África dentro de mim

Eu cheguei no Rosário de Maria


Embelezou, embelezou
Eu cheguei no Rosário de Maria
Embelezou, embelezou
Ô em Belém
Ô em Belém
Onde a coroa for
Eu vou também

Nesse palácio tem coroa


Nesse palácio tem bandeira
Nesse palácio tem coroa
Nesse palácio tem bandeira
Nesse palácio tem amor

A Senhora do Rosário
É a nossa padroeira
Nesse palácio tem amor
A Senhora do Rosário
É a nossa padroeira

Palácio do rei, de longe avistei


Palácio do rei, de longe avistei
Rainha coroada, coroa do rei
Rainha coroada, coroa do rei

Ê coroa
Ôlêlê
Coroa

186
As toadas do Rosário

Ê balaim de fulô
Ê balaim de fulô
A coroa do rei balanciô
Ê balaim de fulô

Cheguei no palácio do rei


Cheguei no palácio do rei
Com Deus e a Nossa Senhora êêêê
Cheguei no palácio do rei
Com Deus e a Nossa Senhora

Esse “ê” é o que deixa ainda mais bonita a toada e o pessoal mais
antigo dava conta de fazer esse devorteio que é muito lindo.

Outra opção é cantar sem o devorteio:

Cheguei no palácio do rei


Com Deus e a Nossa Senhora
Cheguei no palácio do rei
Com Deus e a Nossa Senhora

Vamo fazer maravia Sinhá


No Rosário de Maria
Vamo fazer maravia Sinhá
No Rosário de Maria

Oi vem comigo coroa


Oi vem comigo coroa
Pra festejar Nossa Senhora
Oi vem comigo coroa

187
Eu tenho a África dentro de mim

Outra opção para esta toada é:

Oi vem comigo coroa


Oi vem comigo coroa
Vou louvar Nossa Senhora
Oi vem comigo coroa

Ô Sinhá, ô Sinhá
Vamo fazê maravia Sinhá

Vamo fazer maravia Sinhá


No Rosário de Maria
Vamo fazer maravia Sinhá
No Rosário de Maria

Venha ver, venha ver


Sá rainha de coroa
Venha ver, venha ver
Essa festa é tão boa

Ô ngoma chega no Rosário


Ô ngoma chega no Rosário

Óia firma a correia da sua gunga


Eu não posso ficar à toa
Massambikeiro, ele vai levar coroa
Massambikeiro, ele vai levar coroa

188
As toadas do Rosário

Terra boa, ôi é terra de coroa


Terra boa, ôi é terra de coroa
Venha ver meu coração, meus irmãos
Ó meu Deus que coisa boa
Venha ver meu coração, meus irmãos

Outra opção desta toada é:

Terra boa, ôi é terra de coroa


Terra boa, ôi é terra de coroa
Mora no meu coração, meus irmãos
Ó meu Deus que coisa boa
Mora no meu coração, meus irmãos
Ai meu Deus que coisa boa

Ô Sinhó
Ô Sinhá
Ô Sinhô
Eu vou plantar canaviá

Lá vai meu povo, lá vai meu povo todo


Rei, rainha, príncipe e princesa
Eu peço licença a N’Zambi
Deixa o meu povo passar
Eu peço licença a N’Zambi
Deixa o meu povo passar
Passa rei, passa rainha, oi viva a coroa
Passa rei, passa rainha, oi viva a coroa

189
Eu tenho a África dentro de mim

Viva o Rosário
Rosário viva
Viva o Rosário
Rosário viva
Rei, rainha, príncipe e princesa
Rei, rainha, príncipe e princesa

Ave Mareia
Ave Mareia
Pai Nosso Ave Maria
Ave Mareia

É possível cantar a toada acima tanto no ritmo serra abaixo, quanto no


serra acima, mais devagar.

E tem uma outra que eu gosto de cantar, quando já acabou Reinado


das Mercês, Reinado de N’Dandalunda. Entrega de coroa na terça e
o recebimento de coroa na quarta. Tocada no ritmo serra abaixo, os
dançadores cantando fica muito bonito, a firmeza e a vibração são outras. E
aquela firmeza faz as caixas ficarem tão afinadas.

Por estarmos em um estúdio na Escola de Música na UFMG, vale dizer


que todos nós somos muito intuídos, mas os artistas e os músicos de maneira
geral são muito intuídos. A melodia tem um tom vibracional que pode elevar o
ambiente, dependendo da melodia e da letra, como ela pode baixar a vibração
de qualquer ambiente. Pode elevar, e limpar o ambiente, como ela pode levar
também para uma vibração rasteira, porque a música é comunicação, e aí eu
gosto de cantar essa quando eu saio com o meu Reinado.

Eu vou-me embora Reinado


Eu vou-me embora Reinado
Eu vou levando o meu povo
Eu vou-me embora Reinado

190
As toadas do Rosário

Toadas de demanda

Eu faço parte da Irmandade da cidade de Oliveira-MG e costumo


me encontrar com outras Irmandades pela região metropolitana de Belo
Horizonte. Nestes momentos temos a bizarria, quando festejamos juntos,
cantamos juntos ou cantamos um para o outro. Em tempos passados as
demandas vinham com intuito de atacar outro terno em um momento em
que os capitães tinham algum tipo de desentendimento seja pela fala ou não.
É importante atentar para o momento em que se cantam as toadas. Qualquer
toada cantada fora do momento pode trazer problemas para o capitão, ou a
capitã e seus dançadores. Algumas toadas de demanda.

Sereia, sereia
Saia do fundo do mar
Venha brincar na areia

Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô

Minha mãe tá me chamando


Fala quela que eu já vou
Minha mãe tá me chamando
Fala quela que eu já vou
Tô tirando água do poço, foi agora que limpou
Ôi a água tava suja, lambari foi quem sujou, olha chora ngoma uê

Aiô lêlê iô
Aiô lêlê ôô ôô

191
Eu tenho a África dentro de mim

Nesta toada, o lambari que sujou a água está representado como


alguém que atrapalha a vida. Cada um, cada um pode ter um lambari
atrapalhando a sua vida sujando a água que você precisa beber, sujando a sua
essência, atrapalhando o seu caminhar.

Aiô lêlê ôlê


Aiô lêlê iô
Aiô lêlê ôlê
Aiô lêlê iô
Aiô lêlê lêlê
Ôlê ôô ôô
Aiô lêlê lêlê
Ôlê ôô ôô

Óia casca de burro raiz de araçá


Óia casca de burro raiz de araçá
Sai do caminho que eu quero passar
Sai do caminho que eu quero passar

Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô

Óia casca de burro raiz de araçá


Óia casca de burro raiz de araçá
Abre caminho que eu quero passar
Abre caminho que eu quero passar

Se ele é filho de passo


Ele aprende a bicar
Se ele é filho de passo
Ele aprende a bicar

192
As toadas do Rosário

Oi no tempo de Reinado
Saracura não pisa no molhado
Oi no tempo de Reinado
Saracura não pisa no molhado
Oi no tempo de Reinado
Tico-tico não sobe no telhado
Oi no tempo de Reinado
Tico-tico não sobe no telhado

Moro na loca de pedra


Mas não sou camaleão
Moro na loca de pedra
Mas não sou camaleão
Jararaca é meu Rosário
Urutú meu cinturão
O meu pai é jararaca
Deixa meu lenço no chão

Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô

Sô fio da cobra verde


Neto da cobra coral
Marimbondo miúdo me mordeu
Marimbondo miúdo me mordeu
Na capela do ôi não doeu
Na capela do ôi não doeu

Capela do olho é a pálpebra. Falo que ele me perturba, mas que não me
atingiu.

Marimbondo miúdo
Vai picar tico-ti
Marimbondo miúdo
Vai picar tico-ti
193
Eu tenho a África dentro de mim

Vassourinha
Varre o meu caminho
Vassourinha
Varre o meu caminho

Lá em casa matou porco


Nós fizemo até choriço
Lá em casa matou porco
Nós fizemo até choriço
Não mexa com marimbondo
Quem tem medo de feitiço
Não mexa com marimbondo
Quem tem medo de feitiço

Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô

Marimbondo é bicho bobo


Faz sua casa no ar
Não mexa com marimbondo
Sem ter paia pra queimar

Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô

194
As toadas do Rosário

Marimbondo pequenino
Faz sua casa de sapé
Pego todos inimigos
Boto na sola do pé

Aiô lêlêlê ôô
Aiô lêlêlê ôô ôô

Embaúba é pau ocado


Lugar de cobra morar
Embaúba é pau ocado
Lugar de cobra morar
Tira a cobra lá de dentro
E põe o inimigo no lugar
Tira a cobra lá de dentro
E põe o inimigo no lugar

Me dá a mão que eu te passo na pinguela


Me dá a mão que eu te passo na pinguela
A pinguela é de embaúba
Pode ter caruncho nela
A pinguela é de embaúba
Pode ter caruncho nela

195
Eu tenho a África dentro de mim

Eu vi uma onça gemer


Na mata do arvorê
Eu vi uma onça gemer
Na mata do arvorê
Ôlêlê São João
Oi me vale São Pedro
De onça eu tenho medo

Quem manda chuva é trovão


Quem manda chuva é trovão
Quem segura cerca é moirão
Quem segura cerca é moirão

Ô Sariema
Canela fina corredeira
Nunca vi bicho de pena
Deixar rastro na ladeira

196
As toadas do Rosário

Eu vi, eu vi
Eu vi o pio da ema
Eu vi, eu vi
Eu vi o pio da ema
Ela piou
Ela piou
Lá embaixo em Barbacena

Lambari morreu
Na beira do mar
Joga areia nele marinheiro
Pisa devagar

197
Eu tenho a África dentro de mim

Passarinho avuou pelo mundo


Avuou pelo mundo afora
Passarinho avuou e pousou
Na bandeira de Nossa Senhora
Xô xô passarinho
Xô xô
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô passarinho
Xô xô

Esta toada é de pergunta e resposta:

(Pergunta) Ê massambike
(Resposta) Soca no pilão

Ê massambike
Soca no pilão
Massambike
Soca no pilão
Massambike
Soca no pilão

198
As toadas do Rosário

Esse boi vermelho


Tá querendo me pegar ô kalunga
Esse boi vermelho
Tá querendo me pegar ô kalunga
Tira o couro dele kalunga
Pra fazer pandeiro kalunga
Tira o couro dele kalunga
Pra fazer pandeiro kalunga

Tira esse boi daqui,


Leva esse boi pra lá
Tira esse boi daqui
Leva pro fundo do mar

A água que o boi bebeu


A água que o boi bebeu
Ê cadê o boi
Ê o boi morreu

199
Eu tenho a África dentro de mim

Preto tudo preto


Eu também nasci assim
Lá em casa tem um preto
Que botou preto em mim

É preto, é preto
Kalunga
Todo mundo é preto
Kalunga

Passarinho piou
Deixa ele piar
Passarinho piou
Deixa ele piar
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá
Quem não pode com mandinga
Não carrega patuá

Eu joguei meu patinho na lagoa


Só pra ver meu patinho nadar
Veio um velho
Caçador
Atirou
Mas errou
Meu patinho na lagoa ficou

Ê samba preto
Branco não vem cá
Se vier
Pau vai quebrar

200
As toadas do Rosário

Toada de pergunta e resposta:

(Pergunta) Ê samba preto


(Resposta) Branco não vem cá
(Pergunta) Se vier
(Resposta) Pau vai quebrar

Essa festa é de preto só


Se branco entrar tá no cipó

Chegou lá em casa em casa


Que homem será
Chegou lá em casa em casa
Que homem será
Cabeça de fogo
Barba de fubá
Cabeça de fogo
Barba de fubá

(Pergunta) Eu plantei mandioca formiga comeu


(Resposta) Plantei, plantei não planto mais

Tem dó tem dó
Tem dó tem dó
Não mata não machuca só
Não mata não machuca só

201
Eu tenho a África dentro de mim

Toadas para coroa

A coroa da nossa rainha


Ela é linda ela é cheia de glória
A coroa da nossa rainha
Ela é linda ela é cheia de glória
Oi na terra coroa a rainha
Lá no céu é de Nossa Senhora
Oi na terra coroa a rainha
Lá no céu é de Nossa Senhora

Vou cantar uma marcha grave


Na casa do rei de Angola
Vou cantar uma marcha grave
Na casa do rei de Angola
Vou cantar uma marcha grave
Vou cantar uma marcha bem bonita
Na casa do rei de Angola

Vou cantar uma marcha grave


Na casa do rei de Angola
Vou cantar uma marcha grave
Na casa do rei de Angola
Vou cantar uma marcha grave
Uma marcha bem bonita
Vou cantar uma marcha grave
Na casa do rei de Angola

202
As toadas do Rosário

Sá rainha veio de Angola


Marinheiro de Guiné
Sá rainha vei de Angola
Marinheiro de Guiné
Jesus Cristo veio de Belém
Nossa Senhora de Nazaré
Jesus Cristo veio de Belém
Nossa Senhora de Nazaré

Senhora rainha
Que na minha frente está
Viajamos dia e noite
Noite e dia sem parar
Vim trazer meus marinheiros
Para lhe cumprimentar
Viajamos dia e noite
Noite e dia sem parar
Vim trazer meus marinheiros
Para lhe cumprimentar

Durante a Festa do Rosário nos comunicamos com todas as


pessoas envolvidas na organização e com todas as pessoas que nos
acompanham. É comum fazermos brincadeiras ou cantar pedindo
alguma coisa e estas são algumas toadas que podemos fazer para as
lavadeiras, por exemplo.

Cadê meu lenço branco


Oi lavadeira
Se não eu vou chorar
Semana inteira

203
Eu tenho a África dentro de mim

Ou podemos pedir alguma ajuda para fazer novo fardamento aos


presentes:

Tem dó tem dó
Tem dó tem dó
A camisa de nêgo é mulambo só
A camisa de nêgo é mulambo só

Toadas para velórios e enterros

Outro momento muito importante no Reinado é o momento dos


rituais fúnebres. Neles, cantamos a despedida do reinadeiro ou reinadeira e
fazemos também a descoroação para aqueles que tinham cargo de capitania,
porque capitão também é coroado ou alguém do trono coroado. Toadas com
“ôlêlê” também são cantadas, algumas toadas de cortejo e toadas de louvação
aos santos padroeiros do Rosário também podem ser feitas.

As toadas a seguir tanto podem ser cantadas nas despedidas, no trajeto


do enterro, pode cantar como manifestação de sentimento de gratidão e de
amizade desse irmão, dessa irmã que está partindo para o plano espiritual.
Na verdade ninguém morre, morre é o corpo. O corpo é que fica aqui, nós
continuamos vivos em outro plano.

Oi Senhora do Rosário
Tenha pena de nós alembra
Alembra, alembra, alembra
Oi Senhora alembra
Pelo amor de Deus
Tenha pena de nós alembra

Ôlê ôlá
Vou pedir Nossa Senhora
Ôlê ôlá
Ela vai nos ajudar

204
As toadas do Rosário

Santa Maria mãe de Deus


Santa Maria mãe de Deus
Rogai por nós pecadores
Rogai por nós pecadores

Pelo sinal da Santa Cruz


Eu começo a oração
Pelo sinal da Santa Cruz
Eu começo a oração
Vou pedir Nossa Senhora
Pela nossa proteção
Vou pedir Nossa Senhora
Pela nossa proteção

Vamos rezar o Pai Nosso


Vamos fazer oração
Vamos rezar o Pai Nosso
Vamos fazer oração
Pai Nosso Ave Maria
Oi eu bato o joelho no chão
Pai Nosso Ave Maria
Oi eu bato o joelho no chão

Logo depois que eu canto “Pelo sinal da Santa Cruz, eu começo a


oração”, eu rezo o “Katé jibueto”, e eu tô abrindo esse parêntese para dizer
que o “Katé jibueto” é uma oração que pode ser também cantada na hora de
uma despedida num velório de um irmão ou uma irmã do Rosário.

Essa oração nós fazemos de joelhos e fazemos o sinal da cruz no


momento em que cantamos “Oia Ngana N’Zambi”, devendo ela ser repetida
também três vezes.

205
Eu tenho a África dentro de mim

Katé jibueto
Katé jibueto
Óia Ngana N’Zambi
Katé até
Katé até
Jibueto

Essa toada eu canto sempre antes de entrar no cemitério. É um pedido


de licença, um pedido de passagem.

Auê auê
Auê auê auê
Auê auê
Aiô

Ô São Pedro abre a porta


Que um anjo quer entrar
Ô São Pedro abre a porta
Que um anjo quer entrar
Para ouvir a Santa Missa
Que o Pai Eterno vai celebrar
Para ouvir a Santa Missa
Que o Pai Eterno vai celebrar

Adeus marinheiro adeus


Adeus que eu já vou-me embora
Nas águas do mar eu vim
Nas águas do mar eu vou embora
Adeus adeus
Eu já vou embora
Vancê fica com Deus
E eu vou com Nossa Senhora

206
As toadas do Rosário

Ô guiné
Ô guiné
Ô guiné
Até um dia se Deus quiser

Oi abre a porta da Aruanda


Que o negro aí chegou
Oi abre a porta da Aruanda
Que o negro aí chegou
E pediu perdão de N’Zambi
E Maria o libertou
E pediu perdão de N’Zambi
E Maria o libertou

Dói dói dói


Deixa doer
Dói coração
Vai doendo até morrer
Dói dói dói
Deixa doer
Dói coração
De saudades de você
(ou vai doendo até morrer)

Deus mandou te chamar


Nossa Senhora vai te levar
Deus mandou te chamar
Nossa Senhora vai te levar
Adeus irmã (ã), adeus irmã (ã)
Adeus irmã (ã), adeus irmã (ã)

207
Eu tenho a África dentro de mim

Pavão bonito
Bateu asa e avuou
Pavão bonito
Bateu asa e avuou
Adeus irmã (ã)
Eu já vou, já vou
Adeus irmão (ã)
Eu já vou, já vou

208
As toadas do Rosário

Eu não sei se eu choro


Eu não sei se eu canto
Eu não sei se eu choro
Eu não sei se eu canto
Oi me empresta seu lenço marinheiro
Pra enxugar meu pranto
Oi me empresta seu lenço marinheiro
Pra enxugar meu pranto

209
Eu tenho a África dentro de mim

Adeus irmão
Até no dia do juízo
Um dia encontraremos
Óia lá no paraíso

Ai ai que dor
Ai ai que dor
Que dor no meu coração
Ai que dor
Meu coração tá doendo ai que dor
Ai que dor

Capitão chorou
Lá embaixo na bahia
Capitão chorou
Lá embaixo na bahia
Chorou, chorou, chorou
No Rosário de Maria
Chorou, chorou, chorou
No Rosário de Maria

Toadas perante a mesa de refeição

O reinadeiro não chega para fazer nenhum tipo de alimentação, sem


antes tirar uma toada para pedir a benção do alimento. Depois que ele
alimenta, ele também faz as toadas de agradecimento.

No café ou mesmo na mesa do almoço, nós aprendemos com o capitão


Leonídio, meu pai, que nunca se tira o último pedaço de nenhuma bandeja,
nem o último biscoito, este para nós é um sinal de respeito, um sinal de
educação. Então se precisar, quiser, pode até partir, se quiser comer, mas
nunca deixa vazio.

210
As toadas do Rosário

A oração é muito importante, porque nos livra de muito perigo e de


muito mal. Tem umas que são uma espécie de bizarria como essa:

(Pergunta) Oi cabeça de bagre não dá pra chupar


Cara de véio não dá pra olhar
Oi Mariazinha
(Resposta) Não soube remar

O capitão deve pegar um biscoito, uma broa da mesa, se for café e


começa passando entre seus dançadores. Deve passar em todas as mãos
enquanto está passando o biscoito, ele vai cantando isso:

(Pergunta) Oi Mariazinha
(Resposta) Não soube remar

Até chegar no último. Quando chegar no último orienta a ele, para


antes de comer, oferecer aos demais que precisam se alimentar também.

Tem uma muito antiga também que serve pra fazer uma limpeza em
todos que estão ali. Isso pode ser cantado perante a mesa, pode ser cantado
na sede do terno sempre que precisar.

(Pergunta) Botei a galinha chocar


Na moita de capim gordura
Botei a galinha chocar
Na moita de capim gordura
Os ovos goraram todos
E os pintos saiu dessa altura
Oi saiu dessa altura
(Resposta) Oi saiu dessa altura

Orientar os dançadores que quando falar “Oi saiu dessa altura” eles
devem pular, e é nisso que está o segredo de uma coisa que parece que não
tem nada, mas quebra qualquer mal.

211
Eu tenho a África dentro de mim

(Pergunta) Botei a galinha chocar


Na moita de bananeira
Botei a galinha chocar
Na moita de bananeira
Os ovos goraram todos
E os pintos saiu de carreira
Oi saiu de carreira
(Resposta) Oi saiu de carreira

Da mesma forma, eu devo orientar os dançadores, que na hora que falar


saiu de carreira, eles devem correr ali ao redor.

Sá rainha me chamou
Me chamou pra kuriar
Já vou indo Sá rainha
Caminhando devagar

(Pergunta) Barriga de nego


(Resposta) É mulambo só

(Pergunta) Sá rainha matou uma galinha


(Resposta) Cada um comeu um pedacim

No momento da oração perante a mesa de refeição, podemos fazer a


seguinte reza:

Lá do céu desceu um anjo


Todo cheio de nobreza
Lá do céu desceu um anjo
Todo cheio de nobreza
É ma São Sebastião meu Deus
Que veio abençoar a mesa
É ma São Sebastião meu Deus
Que veio abençoar a mesa

212
As toadas do Rosário

Oi panela de barro
Colher de madeira
Oi panela de barro
Colher de madeira
A comida de São Benedito
Êta comida que cheira
A comida de São Benedito
Êta comida que cheira

Vamos agradecer
Essa nossa refeição
Vamos agradecer
Essa nossa refeição
Pois Deus nos deu de comer
Nos deu de beber
Por seu grande valor

Outra versão para o final:

Pois Deus nos deu de comer


Nos deu de beber
Sem nós merecer

Benedito chegou na cozinha


Pediu à Sinhá deixa eu cozinhar
Benedito chegou na cozinha
Pediu à Sinhá deixa eu cozinhar
Sinhazinha respondeu
Esse povo vei pra te louvar
Sinhazinha respondeu
Esse povo vei pra te louvar

213
Eu tenho a África dentro de mim

A toada a seguir é apenas cantada, sem bater, só rufando as caixas na hora


de responder e devem ser feitos os versos a seguir. Importante ressaltar que nessa
toada de agradecimento, quando cantamos que “os pretinhos se alimentaram”, se
curva perante a mesa. Quando fala que eles “se ajoelharam”, todos se ajoelham
perante a mesa, e quando fala “se alevantaram”, todos se levantam.

Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Se ajoelharam
Os pretinhos do Rosário
Se ajoelharam
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Se alimentaram
Os pretinhos do Rosário
Se alimentaram
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Alevantaram
Os pretinhos do Rosário
Alevantaram
Vamos agradecer
Esse mesário
Vamos agradecer
Esse mesário
Os pretinhos do Rosário
Agradecero
Os pretinhos do Rosário
Agradecero
214
As toadas do Rosário

Deus lhe pague eu agradeço


Deus lhe pague eu não mereço
Deus lhe pague eu agradeço
Tudo que vancê me deu

Já comeu, já bebeu
Já comeu, já bebeu
Óia vamo agradecer meus irmãos
O pão que Deus deu
Óia vamo agradecer meus irmãos
O pão que Deus deu

O pão que Deus deu


O pão que Deus deu
Nossa Senhora desceu do céu
Abençoando o pão de Deus
Meu Deus, minha Santa Graça
Meu Deus meu nosso Senhor
Meu Deus, minha Santa Graça
Meu Deus meu nosso Senhor
Pois Deus nos dá (ou deu) de comer, nos dá de beber por seu grande valor
Pois Deus nos dá (ou deu) de comer, nos dá de beber por seu grande valor

Eu quero, eu quero
Eu quero agradecer
Eu quero, eu quero
Eu quero agradecer
O que deu pra nós comer
O que deu pra nós beber
A Senhora do Rosário
É quem vai pagar vancê
A Senhora do Rosário
É quem vai pagar vancê

215
Eu tenho a África dentro de mim

Já comeu, já bebeu
Já comeu, já bebeu
Eu agora vou me embora
São Benedito que abençoe
Junto com Nossa Senhora

Toadas de despedida

Chegando ao final da festa, ou nos despedindo de algum lugar que


tenhamos visitado durante a própria festa ou na festa de outras Irmandades,
cantamos toadas nos despedindo do lugar e nos comprometendo a voltar no
ano seguinte.

Oi que felicidade
Quanta alegria
Até outro ano
Até outro dia

Amor de marinheiro
Amor de meia hora
Amor de marinheiro
Marinheiro vai se embora

Capelinha de Nossa senhora


Até para o ano que a festa acabou

Capelinha de Nossa Senhora
Até para o ano
Que a festa acabou

(Pergunta) Oi Adeus adeus


(Resposta) Até para o ano

216
As toadas do Rosário

Ô Guiné
Ô guiné
Ô guiné
Até paro ano se Deus quiser

Adeus adeus
Ôi Eu vim de Angola
Eu vou me embora
Adeus adeus
Ôi Eu vim de Angola
Eu vou me embora
Estes olhos que estão me olhando
Os ouvidos que estão me escutando
Falar neste terreiro
Eu vou sair daqui chorando
Estes olhos que estão me olhando
Os ouvidos que estão me escutando
Falar neste terreiro
Eu vou sair daqui chorando

Adeus terra diferente


Meu coração tá doendo
Adeus terra diferente
Meu coração tá doendo
Nossa Senhora que nos leve
Pelo mesmo caminho que viemos
Nossa Senhora que nos leve
Pelo mesmo caminho que viemos

Adeus adeus
Não chore não
Paro ano eu voltarei
Pra cumprir nova missão

217
Eu tenho a África dentro de mim

Se a morte não me matar tamborim


Se a terra não me comer tamborim
Ai, ai, ai, tamborim
Eu torno a chorar cocês tamborim
Ai, ai, ai, tamborim
Eu torno a chorar cocês tamborim

No Reinado, quando terminamos uma função ou quando termina a festa


daquele ano, informamos que conseguimos chegar até o final com a toada a
seguir, que também serve para pedir por saúde e para vencer demanda.

Ô jabalôa êêia
Ô jabalôa êêia

Sem a pretensão de esgotar o assunto, fica então um pouco das toadas


para o registro e para a posteridade. Reverencio humildemente todos os
ancestrais e todos os nossos antepassados.

Louvado seja Nosso senhora Jesus Cristo.


Salve Maria

218
Obi
LÍNGUAS AFRICANAS E
FALARES EM DIÁSPORA
Eu tenho a África dentro de mim

Diz o dito popular: “quem sai aos seus, não degenera”. Meu pai nasceu
em 1894, e contava que ele mesmo se registrou com 14 anos. O escrivão do
cartório cometeu o equívoco de registrar como o ano de seu nascimento, o
ano em que ele foi se registrar. Pela idade dos irmãos dele e contando os 14
anos, entendemos que ele é de 1894. Os meus avós paternos Pedro Miguel
Dias e Inês Maria da Conceição foram escravizados, bem como minha tia,
Amásia da Conceição. Desde pequena eu já sabia os vocábulos que meu pai
Leonídio usava no Reinado, porque ele falava cotidianamente. Eu tinha uma
tia, a Rosalina, irmã do vovô Joviano, muito pretinha, que chegou a ficar uns
dias na Casa Azul, que na época em que era a moradia de meus pais. Nos
mudamos para lá eu tinha treze anos. Ela só falava na língua de nêgo, eram
poucas coisas que entendíamos dentre as palavras que ela falava e cantava
também, sacudindo o corpo como se dança no masambike, palavra que
significa “dança sagrada que veio de Angola e cantava assim:

Eu passei no caminho
Eu pisei na tijuca
Quero saber se essa gunga machuca

Quase todos os vocábulos que nós aprendemos em Oliveira - MG,


havia a troca da letra “L” pela letra “R”, sendo então comum falar marungo,
quando na verdade é malungo. Malungo significa irmãos de barriga diferente.
Por exemplo, quando duas mães vizinhas ou amigas estavam grávidas e
iam ganhar filhos na mesma época, então as mães ensinavam para nós que:
“Fulano é malungo de ciclano”, que na forma de falar dos negros antigos era
pronunciado marungue. No kandomblé, quando eles dizem que são irmãos de
barco, estão se referindo a irmãos que vão receber aquela função, mas filhos
de pais carnais diferentes.

Eu descobri que a forma como os antigos falavam estava de acordo


com a palavra na língua de nêgo. Fomos nós, vamos dizer assim, os contra-
mestres, achando que os mestres falavam errado, ao falarem massambike.
Entendíamos como pronúncia errada por eles não terem estudado, e
passamos a falar moçambique. Mas eu descobri que massambique é uma
dança sagrada que vem de Angola aí fez todo o sentido do que cantamos e
do que fazemos.

222
Línguas africanas e falares em diáspora

Como o pessoal antigo não tinha costume de sentar para conversar


com as crianças, eu ficava ouvindo e prestando atenção no que era dito.

Durante o dia, quando meu pai saía com o terno para fazer as visitas,
na semana da Festa do Rosário, ele só cantava na língua de nêgo, raríssimas
vezes ele falava o português, isso devido a convivência com pessoas negras
que foram escravizadas, seus pais e tios, que sempre se comunicavam na
língua africana. A medida que foi crescendo, ele que gostava de falar nessa
língua de nêgo, ou o “dialeto de senzala”, como nomeia a professora Yeda
Pessoa de Castro, foi reproduzindo em casa sua prática nesta língua.

No ano de 1894, contavam poucos anos que tinha acabado a


escravidão, e por este convívio, meu pai falava bem, gostava de manter essa
língua. Eu me esforço, para manter essa fala, essa língua porque se não
morre, acaba e ninguém mais fala nada.

Em dia de Reinado de Nossa Senhora das Mercês, ele gostava de


cantar na hora da apresentação do terno na praça:

Intanagaiana é de taruê é de taruá


Boa noite Senhoras e Senhores
Zami taokuka chama kimbundi com seus kamoná pra vim saravá
Os mais velhos chamem os mais novos para virem festejar
Saravá karrombe, karrombinha que está junto de Sinhá Isabé aqui na paiaça
Salve os reis e rainhas grandes que estão juntos da Princisa Isabel aqui na praça
Karrombe de Angola e seu okaia, no dya diambe N’Zambi na kussassa
O rei kongo e a rainha konga, no dia de hoje, que Deus lhes abençoe

E ouvindo meu pai cantar, fui aprendendo também as palavras e


comecei por mim mesma, a pesquisar sobre significados, buscando também
aquisição de mais palavras.

Eu já fui muito ridicularizada por manter essa língua lá na minha


terra, mas eu sempre fiz questão de falar, de cantar, mas de explicar o que
é falado para que seja possível ter entendimento. Hoje em dia, muita gente
não sabe que incorporou a língua kimbundu, região central de Angola,
do povo Bantu no português, e todo mundo fala. Se você pegar um bom

223
Eu tenho a África dentro de mim

dicionário, você vai ver muitas palavras do kimbundu lá dentro, a


diferença é que na língua do povo Bantu não tem “q”, não tem ”c”,
não tem “ç”, não tem “ss”, então Kandomblé não é com “c” é com
“k”. E pouquíssimos sacerdotes do kandomblé sabem disso, porque
eles viram e escreveram com “c”. Todo mundo carrega uma mochila,
por exemplo. Mas ninguém sabe que mochila é kimbundu, e assim
um monte de vocábulo que nós já usamos dentro do cotidiano e não
sabemos, pelo costume do uso destas palavras no Brasil.

Trago aqui algumas delas, são somente poucas, como elas, tem muito
mais. Nos bons dicionários tais palavras de línguas do povo Bantu, vêm
com “kim” antes do vocábulo, apresentando a abreviação entre parênteses
e o “kim” é do kimbundu. São elas: angu, babaca, bagunça, balangandã,
bambolê, banzé, batuque, beleléu, birita, bitelo, borocoxô, bugiganga,
bunda, caçamba, cachaça, caçula, cafuné, canjica, capanga, capenga, catinga,
cachimbo, caxumba, cochilar, coque, cuíca, dengo, farofa, fofoca, fubá,
fuleiro, furduncio, futrica, fuzuê, forró, fuxico, gangorra, ganzuá, gogó,
gororoba, gunga, implicar, jiló, lambança, lambão, lenga-lenga, lero-lero,
maconha (fumo de Angola), maluco, mangar, mamona, manha, maracutaia,
marimbondo, miçanga, mingau, minhoca, moleque, molenga, moranga,
moringa, muamba, mulambo, muxiba, muvuca, pamonha, pindaíba, pirão,
quiabo, quindim, samba, sova, sunga, trambique, tribufu, farofa, tundá,
tutano, tutu, urucubaca, xará, xepa, zangar, zunzum, zoeira.

No ano de 2012, tive a oportunidade de conhecer a professora Yeda


Pessoa de Castro em um encontro na cidade de Ubá com outros membros
das Irmandades do Rosário que, como eu, procuravam preservar a língua de
nêgo. Através deste encontro e complementando meus estudos, busquei um
pouco da formação dos grupos linguísticos de acordo com sua localidade.

A África possui 54 países e 3 regiões:

África sub-equatorial (Bengue-Congo, Gabão, Congo-Brazzaville,


Congo-Kinshasa, Angola e Moçambique=Banto)

África Central (Adamaua Oriental ou África Asiática)

África Ocidental (Gana, Togo, Benim e Nigéria)

224
Línguas africanas e falares em diáspora

Kimbundu é uma língua Bantu, e Bantu é plural de muntu.


Muntu é pessoa, Bantu pessoas, povo.
Muntu singular. Ba plural

As línguas bantu (ou línguas bantus, ou línguas bantas) formam uma


família linguística de mais de 1500 línguas e dialetos e que englobam cerca
de 400 subgrupos étnicos diferentes. A partir desse conhecimento mais
geral, passei a colecionar palavras em línguas da família linguística bantu,
especialmente do kimbundu, que me ajudam a compreender melhor certas
toadas, assim como vão reativando essa língua em mim.

Pronomes pessoais em kimbundu

Eu - Eme
Tu – Eie
Ele/Ela – Mueme
Nós – Etu
Vós – Enú
Eles – Ene

Prefixos
Alteram o significado das palavras, mudam o tempo do verbo

Ba - plural
Ka - lugar ou diminutivo
Ke - negação
Ki - aumentativo
Ku - infinitivo ou imperativo
Mi - diminutivo
Mu - singular

Alguns exemplos:

Dilonga - prato
Indara - fogo
Ka - lugar; ndomblé - oração, orar, logo kandomblé - lugar de orar
Kale – caneca, copo (terreiro)

225
Eu tenho a África dentro de mim

ke kudia - não comer


ke kunua - não beber
ke kuriar - não comer
Kunua - beber
Kuriar – comer (reinado); kudia e iguidiá comer (terreiros)
Lombo - aldeia; Ki - aumentativo, logo Kilombo - aldeia grande
Muilo - luz do sol
Ndandu - abraço
Ndombe - orar; Ka - lugar, logo kandombe – lugar de orar
Omera - língua
Tanhara - lua
Timberê - vasilha para comer ou beber

Mais palavras e expressões em kimbundu, que vou pesquisando e


usando no dia a dia do Reinado e do Kandomblé:

Amaze - água
Ambia - borboleta
Ami - meu
Arunanga - roupa
Diambe - hoje
Dikanu - boca
Disa - milho
Dya - de
É - teu
Ê - seu
Ê angana - ô senhora
Ê ngana - ô senhor
Enza mundo
Ezundu - sapo
Fundanga - pólvora
Gundelela - pedir, rogar
Hongolo - arco-iris
Imbuia - cachorro
Ionene - grande
Jikula - abrir
Kalunga - mar, cemitério

226
Línguas africanas e falares em diáspora

kamba - amigo
Kamberera - carne
Kamutuê - cabecinha
Kangulo - porco
Kate - até
Katiovile - café
Katiô - chuva
Kaxitu - pedaço de carne
Kene, sem
Kia - já
Kimbote - baixo
Kinama - perna e pé
Kinene - muito
Kizua – dia
Kuala - unha
kuambe - hein
kuambe-tata - que tal, o que acha, o que me diz
Kuata - pegar, tomar
kuenda - andar, partir
Kurimar - trabalhar
Laloka - perdão
Lundembu - cabelo
Lupueno - espelho
Maionga - banho de purificação
Maku - mão e braço
Malungo - irmão
Mama múngua - madrinha
Mavu - terra
Mbotê – Salve, seja bem vindo, obrigado
Mesu - olho
Minhoka – cobra pequena
Mukongo - caçador
Mulele - pano
Mungu, lola - amanhã
Mungua - sal
Mussuru na indaca – silêncio
Mutuê – cabeça

227
Eu tenho a África dentro de mim

Muxima - coração
Muxitu - mata
Mênga - sangue
Ndandu - abraço, parente
Ndumbe - aprendiz
Ndungu - pimenta
Ngala - alegria
Ngombe - boi
Ngombo - boiadeiro
Ngulungu - veado
Nguzu - força
Nhoka – cobra
Njo, onjó, nzó - casa
Nzala - fome
N’Zambi - Deus
Obembua - paz
Oko - aí, nesse lugar
Okualê – boa noite
Okuasan – boa tarde
Oliá - venha cá
Ombera - chuva
Ombera, chuva
Omenha - energia da água
Ongira, ingira, nzila - caminho
Oto - fonte
Paku - arruda
Pala - para
Pokó - faca
Rieji - lua
Sambilê - igreja ou capela
Sangi - galinha
Sanji - galinha ou frango
Senguê, mata
Tadi - pedra
Tata múngua - padrinho
Tipokê - feijão preto
Ualua - cerveja
Ukamba - amizade

228
Línguas africanas e falares em diáspora

Ulungu - canoa
Vipaco - dinheiro
Walembessa - boa noite
Wana - rede
Wanange - boa tarde
Wazakele - bom dia
Xibulu - aluno
Xingu - pescoço
Zuela - fala

Números em Kimbundu

1 - Moxi
2 - Iari ou Iadi (Kari)
3 -Tatu
4 -Uana
5 -Tanu
6 - Samanu
7 -Sambuari ou Sambuadi
8 - Nake (Rinake)
9 - Ivua ou ‘vua (Rivua)
10 - Kuinii ou Kuinhi (Rikumi)
11 - Kuinii ni Moxi
12 - Kuinii ni Iari

Numerais Ordinais
Número Kimbundu

1⁰ - rianga (dianga), ou kamoxi


2⁰ - Kaiari
3⁰ - Katatu
4⁰ - Kauana
5⁰ - Katanu
6⁰ - Kasamanu
7⁰ - Kasambuari (Kasambuadi)
8⁰ - Kanake
9⁰ - Kavua
10⁰ - Kakuinii

229
Eu tenho a África dentro de mim

Entre os povos Bantu, três línguas se sobressaem, em número de


falantes e em relação à presença até hoje nos nossos falares e cantares: o
Kikongo (Congo e Angola, região norte de Angola), Kimbundu (Angola, região
central) e Umbundu ou Ambundu (Angola, sudoeste de Angola).

Assim como os terreiros de Umbanda e de Kandomblé, os reinadeiros,


são guardiães da língua, da religião e dos costumes dos povos africanos.

Tenho mais familiaridade com o kimbundu e o ambundu ou umbumdu,


línguas mais faladas entre os reindadeiros da cidade de Oliveira.
Antigamente toda Irmandade tinha vários capitães que sabiam das línguas
africanas. As palavras são muito parecidas. Vocábulos começam com a
vocalização de “in”, grafando com a letra “N” no início da frase com som
mudo em kimbundu, e com a vocalização “on” no ambundu

Na busca de preservar as palavras utilizadas pelos capitães mais velhos


e por meu pai, compartilho aqui algumas das toadas e versos cantados por
eles e por mim também.

Obembua kuna N’Zambi pala oso


Aiabá, kuiama kana, obembua apanijé
Paz de Deus para todos que estão aqui agora,
porque aqueles que não têm paz, não têm nada

Óia sarava kussambi, oi do reino de kangira,


de xita d’angombe, Manganá ovimi dya N’Zambi
Salve os coroados do reino de Kongo,
o sagrado e a Senhora do Rosário, Mãe de Deus

Em Minas Gerais, ouvimos muito a palavra do povo yorubá, Asè (Axé)


e asè todo mundo sabe o que é. Mas se falar Nguzu, ninguém sabe. Nguzu é
a palavra da língua kimbundu, do grupo linguístico bantu, que tem o mesmo
significado de asè, que significa força.

230
Línguas africanas e falares em diáspora

Toadas de Reinado na língua de nego cantadas pelos Leonídios

Ô Santa Manganá, no dya diambe Kizomba


Ô Santa Manganá gundelela N’Zambi iô katisa
Ô Senhora do Rosário, hoje eu vim te festejar
Ô Senhora do Rosário, pede a Deus pra nos ajudar

Ô mukueto kurima, ô mukueto iô kurima


Ê o mukueto kurima, ô mukueto iô kurima
Ndamba Berêberê, iô katissá
Ndamba Berêberê, iô katissá
Ei meu irmão que trabalha, meu irmão que sempre trabalhou,
a grande Senhora das Águas vai nos ajudar

Akuendê, Akuendê, Akuendê ongira musambe akuendê


Vamos para o caminho do Rosário

Ôlê olê olê ia, olê, olê, olê ia


Ô jikula ongira eia, ô jikula ongira eia

Ô jikula é abrir.
Então jikula é abrir e ongira é caminho. Este canto, é um canto que nós
fazemos pedindo... Pedindo essa abertura de caminhos.

Olha a força do Angolê


Êêê
Olha a força do Angola
Êêê saravá
Nguzu, nguzu, nguzu N’Zâmbi onko
Angana Musambe ió katisa

Dunga tara sinherê êêêê


Dunga tara sinherê êêêê Saravá

231
Eu tenho a África dentro de mim

Yaô, yaô
Camaverô yaô, yahô ô ô
Katê lola, katê mungu
Katê lola mukuetu, katê mungu

Obembua kuna N’Zambi pala oso mumu abanjá


Ngana N’Zambi , iò katisa
Kaô, kaô, kaô tindolelêô
Kaô, kaô, kaô tindolelêô

Ô tindolelêlê, ô tindolelelê, ô tindolelele, êêiô


Ôêiô

Ô ngoma, olêlê ngoma,

Anatuê, katuê
Anatuê, katuê

Dunga tará sinherê êêêê


Dunga tará sinherê êêêê
Saravá

Dunga tará sinherê êêêê é um grito de vitória


Que irá fortalecer com as bênçãos de Nossa senhora

Venho dizendo da importância de compartilhar os conhecimentos, para


que não percamos nossas tradições e é com muita alegria que compartilho
um pouco, do pouco que eu sei.

Ngasakidila (Obrigada)

232
Sabugueiro
VIVÊNCIAS DA
ESPIRITUALIDADE
NA VIDA DOS
OBJETOS RITUAIS1

1 Esse capítulo se baseia numa fala pública da Capitã Pedrina em dois textos publicados anteriormente no
Boletim da Comissão Mineira de Folclore (n. 15/1992 e n. 24/2005).
Eu tenho a África dentro de mim

Ê aruê aruê aruê


Ê aruê aruê aruê

Aba kuna N’Zambi pala oso mumu abanjá


Ngana N’Zambi iô katisá

Ê aruê aruê aruê


Ê aruê aruê aruê

(Paz de Deus para todos que estão aqui agora. Que Deus abençoe a todos.)

Nosso nome é resistência. Sempre resistimos e resistiremos sempre. É


no sempre de setembro que na cidade de Oliveira, nossa resistência se faz
mais presente, mostrando-se através da força e coragem de um povo, que, de
oprimido e quase vencido, transforma-se em povo vencedor através da Festa
do Rosário.

Saímos às ruas de nossa cidade, tocando, dançando, cantando e


contando a nossa história passada e presente.

É este o nosso momento de glória, onde nos reciclamos e buscamos força


para enfrentar as lutas e embates que a vida nos apresenta. Ao mesmo tempo
que passamos aos nossos filhos a nossa cultura. a nossa verdadeira história,
nosso valor maior, que não é contado nem ensinado nos livros e nas escolas.

236
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais

Eu escutei desde criança, que em um encontro de dois ternos, por


exemplo, acontecia alguma situação que o capitão de um terno cantava,
jogava o bastão no chão e o bastão virava uma cobra. O capitão do outro
terno, em resposta, cantava, tirava o lenço do pescoço, (porque antigamente,
o que diferenciava um capitão dos demais dançantes era somente o lenço no
pescoço), e o lenço virava um gavião, que ía lá e catava aquela cobra e saía
voando. Acredito que alguns dos leitores também já ouviram, mas a gente
achava que isso era só conversa, nós estamos neste outro século. Depois
ouvia também, lá na minha terra, que os capitães sabiam dançar e cantar
ao redor de um pé de bananeira e que a bananeira dava cacho, e que esse
cacho madurava, e então eles repartiam a banana e o povo comia. Então eu
pensava “ah, que nada, a gente num tá vendo isso mais…”, até que um dia, na
sede da Federação dos Congados, no bairro Floramar, em Belo Horizonte,
onde se realizava antigamente junto com a Comissão Mineira de Folclore
uma missa konga, e um fato aconteceu na hora do almoço. Uma senhora se
aproximou de mim e me perguntou: “Pedrina, ocê é de Oliveira?” Eu disse:
“Sou…”, “Ah, eu também sou, mas eu vim pra cá muito menina…” Ela fazia
parte de um terno de kongo no bairro Pirajá, onde morei por uns anos, cuja
a média de idade dos dançadores era de 65 anos. E então ela me disse: “tem
uma coisa que acontecia lá em Oliveira e que eu me lembro até hoje: o meu
tio reinadeiro, tinha uma mania de dançar ao redor da bananeira, a banana
dava cacho, amadurecia, ele repartia pra todo mundo, todo mundo comia,
mas a minha mãe nunca me deixou comer. Eu tenho vontade de comer essa
banana até hoje”. Ao que pensei: “Uai, então tem uma prova viva de que isso
realmente acontecia”.

Todos os fenômenos que aconteciam naquele tempo em que o bastão


virava cobra, o lenço virava gavião, a bananeira madurava e dava cacho,
dentre outras coisas, aconteciam pelos poderes dos instrumentos utilizados
pelos ternos e capitães, bem como pelo conhecimento que eles tinham em
relação à manipulação de elementos da natureza para que fosse possível ter
esses acontecimentos.

Dentre os instrumentos utilizados no Reinado na cidade de Oliveira,


temos as gungas, as caixas, os patangomes, o Rosário, os ganzás, as espadas,
os tamborins, os bastões. As coroas são usadas pelo trono coroado em seus
Reinados e são símbolos de poder, de força e imersão no sagrado dos povos

237
Eu tenho a África dentro de mim

escravizados. Cada instrumento deste tem seu uso e a ocasião certa em que
devem ser manipulados, e para isso, quem os manuseia deve ter um bom
conhecimento sobre as forças que estão envolvidas em cada momento ritual
do Reinado.

Dentre os rituais que existem no Reinado, há o kandombe, e esta palavra


significa lugar de fazer a oração, assim como o Kandomblé. São duas palavras
da origem Bantu, da língua kimbundu, que significa lugar sagrado, lugar de
fazer oração. O kandombe é o momento de reverenciar a ancestralidade, pedir
a bênção para as atividades que estão por acontecer, bem como a proteção e
amparo para os trabalhos que serão realizados durante os dias da festa.

Durante os dias do Reinado, temos as danças que acontecem nas


visitas diárias ou nos cortejos, que restabelecem a memória e a recuperação
dos antepassados. Os capitães, investidos que são do poder direcionador e
organizador, utilizam como instrumento de comando o bastão, a espada, e o
tamborim, comandando os acontecimentos que muitas vezes transcendem
sua própria imaginação.

O bastão, o tamborim, a espada, o Rosário, a gunga, e todos os


instrumentos são feitos ritualisticamente. Aprendi que se vamos fazer algum
ritual em um instrumento do kongo, este deve ser feito durante o dia, se é
instrumento do massambike é de meia noite pra frente. Trata-se de juntar
os elementos da natureza com os instrumentos de cada terno que através
de toda uma ritualização com elementos diversos, vão fortalecer e fazer a
ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual. Isto inclui as coroas,
também chamadas de “croas” pelos mais antigos.

Com o tempo, entendi que as coroas nossas, as que nós usamos no


Reinado, a maioria são coroas que seguem o modelo europeu e que as coroas
dos sobás dos africanos não são assim. Tenho buscado pesquisar e resgatar
o verdadeiro estilo. A questão não está relacionada a não ter um modelo,
porque o Sr Geraldo Artur, o patriarca da Irmandade dos Arturos, que já é
falecido, integra o grupo de reis que usavam a coroa no modelo africano em
formato de cone.

238
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais

Essa coroa de metal redonda, é a coroa dos opressores, e eu acredito


que o pessoal que fazia Reinado lá naquela época no período escravocrata,
sabia fazer essa diferença, mas com o tempo, vai se apagando, se não tiver
quem fale, quem relembre, vai se perdendo.

Nestes processos rituais, utilizamos as ervas, uma vez que não fazemos
nada sem elas para sacralizar todos os objetos que compõem o Reinado.

No meio da grandiosidade de valores e fatos que vivenciamos no


acontecimento do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, está o que
chamamos de Vivência do Sagrado. A dança é uma linguagem corporal, e
para o negro é via de comunicação e integração com a natureza. Integração
da criatura com o seu Criador. Dançando e cantando, o negro faz as suas
preces e ele reza os mistérios do Rosário dos negros, através de suas toadas,
repetidas vezes, firmando nosso pensamento, contemplando os mistérios
da criação, da vida, da luta, da dor, da vitória, da glória que há de vir um dia
para todos os seres criados por N’Zambi.

239
Eu tenho a África dentro de mim

O corpo negro que dança complementa a vivência dos mistérios que


anuncia também nos seus cantares. Os movimentos se fazem em função de
uma celebração de fé em que o ser negro manifesta diante da divindade. É
um ritual que, segundo muitos, reatualiza os antepassados, reverencia os
ancestrais e Nossa Senhora. Ali, dentro do ritual, vivenciamos o agora e o
ontem, nos preparando firmemente para o que vier no futuro. Dançar para
manifestar devoção é bíblico, como está no salmo 33, 1-3.

O massambike dança socando, como o próprio mastro levantando,


verticalizando o corpo entre o céu e a terra, e nos movimentos, conversa com
o tempo e com o espaço. Dança na alegria, dança na dor (nos enterros, por
exemplo). No momento da dança nos magnetizamos, o corpo se converte
em receptáculo de muitas possibilidades. Se dança rodopiando em torno
do próprio corpo, fazendo movimentos de interação das forças telúricas da
terra com as forças telúricas do céu. Ao bater a gunga, abaixar e levantar são
movimentos para possibilitar essa interação com as forças telúricas da terra
com as do céu. Para nós o nome de Deus é N’Zambi, Ngana N’Zambi. Ngana
significa senhor. Certa vez Frei Chico falou que N’Zambi no que ele tinha
estudado significava modelador de barro, o que torna o nome com sentido
no contexto cristão.

No momento do Reinado há um conjunto: as caixas, os patangomes,


as vozes, as gungas, a toada é que faz o trabalho ecoar no tempo. E esse
trabalho ecoa na humanidade, não é só dentro de Oliveira, mexe com o céu,
a terra e o mar no mundo inteiro. Por isso cantamos:

Vamo fazê maravia sinhá


No Rosário de Maria
Vamo fazer maravia sinhá
No Rosário de Maria

Eu vou
Eu vou
Eu vou no Rosário, eu vou
Eu vou
Eu vou
Eu vou no Rosário, eu vou
240
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais

O Rosário não é apenas o que estamos cantando, não é um simples


objeto. Ao utilizarmos o Rosário, nós também rezamos quando conseguimos
nos manter nessa vibração. Não basta colocá-lo como objeto, é preciso
vivenciar o Rosário. Onde é o Rosário que eu vou? Porque se eu pensar nesse
rosário físico eu não vou lá, por se tratar de um objeto.

A dança sagrada inicia no momento em que o corpo se investe do símbolo,


sendo tomado por ele. É a preparação para o Reinado. Os cumprimentos, as
saudações entres os irmãos do Rosário, capitães, reis e rainhas. Antigamente o
entendimento que se tinha entre os capitães antigos é que o ciclo da Festa
do Rosário ia de agosto a outubro, por causa de ser este o período em que os
negros tinham acabado os trabalhos nas colheitas.

Passo agora a explicar sobre os instrumentos sagrados do Reinado:

BASTÃO, ESPADA, TAMBORIM – Como armas mágicas esse conjunto


de instrumentos é o sustentáculo que afasta as influências perniciosas, atrai
as forças celestiais, relaciona-se com o os mastros e o cruzeiro. O corpo
se investe da força vital contida no bastão, na bandeira, nos tambores,
patangomes, gungas, ganzás, tamborins, espadas, rosários e as toalhas
de batismo. Há todo um preparo, há todo um ritual que sacraliza e que
inverte aquela madeira em um instrumento de poder. O bastão, a espada e o
tamborim juntos são como uma chave.

CRUZEIRO - Nos trás a lembrança dos antepassados e marca a presença


dos que já se foram.

TERREIRO – Local onde se recepciona os ternos, onde a dança se faz


com pujança total, ali está o Salão do Reino, onde se reverenciam os santos
padroeiros e os ternos, os instrumentos e os símbolos sagrados. Onde se reza
para sair e para chegar.

ENTRADA – Costuma-se fazer porteiras e arcos, para marcar a posição


limítrofe, símbolo de ligação entre os dois mundos, fechar a porteira e
circunscrever o espaço interno, desligando-o das influências exteriores.
O arco representa a força do alto em contato com o chão. Debaixo do arco
se dissolvem as energias contrárias e se prepara o corpo para os encontros
imprevisíveis do espaço externo.

241
Eu tenho a África dentro de mim

ENCRUZILHADAS – Elas são o nó , lugar de decisão, de desafio, luta, de


superação das adversidades. De decidir qual caminho seguir.

AS GUNGAS - As gungas, choram, chamam, repicam, reinam como


elementos mágicos , no meio da dança. Aqui no Brasil eles remetem aos
chocalhos que colocava nos pés dos negros que fugiam para os kilombos. Mas
desde lá da África, a gunga é feita de palha de cestinho e é um instrumento
que se toca com os pés, com um poder muito forte de energização.

CORTEJO – Percorrer caminhos, reviver a força de comunicação com o


mundo invisível, com os que já se foram, os antepassados. Celebrar a vida,
a vitória da luz, o reinado que devemos exercer sobre nós mesmos. Cada
um de nós temos uma coroa, não sei se todo mundo sabe. Independente da
religião, nós somos criados para reinar, nós somos filhos e filhas de N’Zambi,
então nós somos de essência divina, não importa o nome que você dê para
esse Deus, se é Alá, se é N’Zambi, se é Olodumare.

LEVANTAMENTO DE MASTROS – é o aviso da proximidade da festa.


Centro energético da festa. Simboliza a união do céu e da terra, vivos e
mortos, corpo e alma. Orienta e atrai. Como Kitembo um dia orientou o
povo africano, povo bantu, onde, o que fazer e como fazer para se ter o que
comer, o que beber para bem viver. O mastro é fincado no chão para que as
energias da terra se encontrem com as energias do céu. Cada vez que tocamos
no mastro, seja com a mão, seja o corpo, estamos revitalizando, reforçando,
reenergizando as nossas próprias energias. Não se trata de um simbolismo tão
somente sem nenhum valor, muito antes pelo contrário. É tempo de Reinado,
é tempo de “perender”. Soltam-se foguetes quando se eleva os mastros. Com
se elevam também os corações, toadas, sons dos instrumentos, caixas batendo,
gungas repicando.

ALVORADA OU MATINA - É momento das primeiras orações onde se


percorre os locais sagrados demarcando-os. É a sacralização do caminho, do
caminhar, do ir e vir.

CUMPRIMENTO DE PROMESSA - Ato de reconhecimento público da


graça alcançada, momento de fé popular e de grande emoção. Momento de
encontro, do reencontro consigo mesmo.

242
Vivências da espiritualidade na vida dos objetos rituais

COROAÇÃO DE REIS, RAINHAS E CAPITÃES – Momento da escolha,


da decisão de seguir firme em nome de Nossa Senhora, em nome do Rosário.
Na época da escravidão costumava-se alforriar o rei eleito.

MISSA KONGA – Momento de reverenciar o Criador e os santos


padroeiros, e as santas padroeiras, pedindo proteção para os dias da festa.

DESCIMENTOS DOS MASTROS E ENCERRAMENTO DA FESTA-


Momento de fortes emoções, dor, fé, esperança, de que voltaremos “ Se a
morte não me matar tamborim, se a terra não me comer tamborim, ai, ai, ai
tamborim, eu volto a cantar com ocê tamborim”.

O ALMOÇO – A confraternização – o kuriá. No alimento do corpo, recebe


junto o alimento para alma. Fortalecendo os pontos vitais do corpo e
saciando-lhe a fome, ganha força para continuar no caminho.

O KANDOMBE – Os tambores sagrados, que tiraram Nossa Senhora do


mar. Resistência negra, desafios do passado. O vencedor é sempre o negro
com seu conhecimento. Sua sabedoria traz à presença dos vivos o mundo
dos que já se foram. Esta é a nossa resistência. E resistiremos sempre na fé,
porque quem sabe de onde veio com certeza saberá para onde quer ir.

Haveremos de resistir. Até mesmo por uma questão de sobrevivência,


para não sermos coisificados, massificados e ainda mais marginalizados, em
meio aos conturbados conceitos e preconceitos da chamada “civilização”.

E assim o negro canta. O negro canta que a força vem de N’Zambi, e o


negro é aroeira, negro verga mas não quebra.

243
Eu tenho a África dentro de mim

Se precisar chore, chore a beira-mar, lembrando a travessia do oceano,


mas negro que veio de Aruanda (que possui conhecimentos profundos) veio
foi para saravá. Por isso, mostra a força do Angola. Ê angolê, ê angolá, pois
quando N’Zambi fez o mundo, e fez o mundo girar, ele fez a negra-mina e
fez o negro angolá. E prosseguimos pois “o meu pai não veio, minha mãe me
mandou, eis aqui a herança que meu pai me deixou”.

Se somos deserdados de bens materiais, possuímos uma herança


cultural muito forte, e para nós, que vivemos e acreditamos na
simplicidade das coisas, isto nos basta. De alguma maneira nos redime,
nos revigora e somos felizes.

Possuidores desta herança, no jikula onjira (no abrir dos caminhos)


sonhamos em ser agentes transformadores de nossas vidas, e certamente
conseguiremos. Sonhos? Sim, por que não? Todas as coisas reais antes
foram sonhadas. É preciso sonhar para concretizar. Que os bons sonhos
nos visitem sempre!

Nós nos sentimos resgatados pela cultura. Através da cultura nos


identificamos, descobrimos nossa origem, o que éramos, de onde viemos,
o que somos e assim sabemos para onde estamos indo. Quem não sabe a
sua origem, de onde está vindo, certamente não saberá para onde deve ir.
A cultura não deixa a esperança acabar, e talvez nem a morte consegue
acabar com ela.

E mesmo entre coroa de lágrimas, sentimos que do céu estão caindo


flores sobre nós.

244
E vocês, conhecem suas
histórias, suas origens, suas
culturas?

Nós estamos dançando e


cantando a nossa.
Venham ver

Flor azul
NSABAS E SEUS USOS
Eu tenho a África dentro de mim

Eu cresci no meio do mato, conhecia ervas e plantas. Percebo que


hoje as pessoas não estão mais preocupadas em aprender sobre estes
conhecimentos, e isso me entristece. Vejo pessoas de terreiros tomando
rivotril pra dormir, porque não conhecem ou não querem acreditar no poder
das ervas mais. Eu me entristeço com muitos tomando remédio. Eu falo
rivotril, mas tem uma gama de outras medicações que são usadas por várias
pessoas para os mais variados casos. As pessoas não dormem porque estão
estressadas, porque não conseguem conviver nessa luta que não é fácil do
dia a dia, principalmente nos grandes centros urbanos. Ao compartilhar
meus conhecimentos sobre as folhas e ervas sagradas, que no kandomblé
Angola nomeamos nsabas, é trazer o entendimento para a cura integral.

Desde os tempos coloniais, existia uma nega veia ou um nego veio,


que sabia de ervas que masserava e servia aos negros escravizados quando
tinham suas necessidades, suas dores, suas feridas. Quando os senhores
entendiam que os negros mereciam castigo, eles iam para o tronco e
apanhavam muito. Eram deixados lá ou arrastados feito animais para dentro
da senzala. Ali, aquelas feridas podiam infeccionar, dar gangrena, e como
não tinham alimentação adequada, tudo colaborava para a morte do negro
cativo. O conhecimento dessas ervas é que servia, porque nenhum senhor
ia dar uma chicotada dessa e depois falar “Ah coitadinho, dá alguma coisa
para aliviar a dor”. Eram os conhecedores das nsabas, das ervas, das folhas
sagradas, os grandes curandeiros e curandeiras que socorriam quem era
brutalmente açoitado. E até hoje, nos terreiros, as nsabas são usadas para a
cura do corpo físico, do corpo espiritual e do corpo mental.

248
Nsabas e seus usos

Sempre que vamos mexer com folhas e plantas, pedimos licença a


Katendê, o Nkisi responsável pelo domínio dos conhecimentos das folhas.

Atentem para a seguinte questão: Katendê é Katendê, Ossain é


Ossain. Os Minkisi é do povo bantu, os Orisàs é do povo nagô. Eu tenho o
entendimento de que o Nkisi é a natureza mesma, então veio antes, e os
Orisàs viveram na terra e eles vieram depois. Então os Orisàs cultuavam os
Minkisi. Katendê é a própria natureza das plantas, Ossain é quem cultuava
essa natureza, o que não quer dizer que um seja melhor que o outro. Se
completam, se complementam e se unem para o bem da humanidade.

Nós tivemos aqui nesse Brasil, após a convivência forçada no mesmo


espaço nas senzalas, que eram espaço de dor, de loucura, mas haviam
pessoas com muito conhecimento, muito saber e isso só engrandeceu,
porque aí foram trocando ideias uns com os outros. Trocando os saberes.

Quando vamos trabalhar com as nsabas, louvamos à Katendê,


reverenciando seus conhecimentos e sua sabedoria, pedindo licença para
trabalhar com as nsabas e reverenciando os domínios sobre a ciência da cura
integral que este Nkisi possibilita com suas folhas e ervas.

Katendêêêê
Katendêêêê
Tão me chamando na aruanda aldeia
Tão me chamando na aruanda aldeia

Quando mexemos com as folhas estamos, de certa forma, na aldeia


estamos na vivência com o mato, e estar no mato nos possibilita aprendizado
e conhecimento e assim aprendemos.

249
Eu tenho a África dentro de mim

Existem plantas que podem matar, conforme a dosagem. A


manipulação das plantas dependerá do sentimento, da cabeça e de saber
a dosagem e de saber como fazer medicação. Por isso é importante este
conhecimento para que seja possível a cura pelas folhas sagradas.

Todo ano, na época certa, é possível fazer remédio natural, observando


que tem a hora e que tem a lua certas para apanhar as ervas. Para nós
reinadeiros, a melhor época para fazer os remédios naturais é na quaresma.
Assim que eu aprendi e é assim que eu faço, olhando a lua e olhando os
horários todos.

Tem plantas que todo mundo conhece, plantas com propriedades anti-
inflamatórias, tem planta que tira a febre, que emagrece, que engorda e esse
povo de Reinado que recebeu este conhecimento sabe fazer bom uso delas.

Jaca

250
Nsabas e seus usos

As formas de uso dessas folhas e ervas varia podendo ser fervida ou


macerada1.

Para macerar, é necessário ter concentração. A primeira coisa que faz,


é tirar as folhas do galho, descartando o caule. Depois que separar tudo,
fazemos a firmeza com as zuelas ou toadas.

É importante que se coloque força na mão ao macerar, porque isso é que


vai fazer a erva soltar o sumo, e é com este sumo que vem as propriedades
curativas da planta, por isso é bom esfregar bem a planta nas mãos.

Hoje a medicina descobriu que se o paciente chegar no médico, e este


não souber conversar com o paciente, o remédio não cura, não faz efeito. Por
isso que o pastor chega lá e a pessoa melhora, por isso que o pai de santo
a mãe de santo, a benzedeira e o capitão de Reinado tem este acolhimento
com a pessoa, e é esse entendimento que vai nos levar ao que chamamos
de ser integral, porque a cura tem que ser integral: corpo, mente e espírito,
do contrário nós viramos dependentes desses remédios alopáticos que
melhoram uma coisa e pioram outra.

Fico triste e dói mesmo o coração ver as mães naquela avenida Ezequiel
Dias, no Centro Geral de Pediatria, em Belo Horizonte - MG, o dia inteiro
buscando acolhimento para o filho que tem só um resfriado, uma gripe,
porque hoje ela não sabe mais nada que possa curar. E o mais triste: ela fica
lá o dia inteiro, às vezes só tem a passagem, não tem nada para alimentar, não
tem como dar alimentação para o filho. Se não amamenta mais no peito, e no
final, se conseguir ser atendida, o médico fala que é um vírus, uma virose.

Hoje as pessoas pensam que o melhor é asfaltar tudo e cimentar os


quintais. E com isso deixou-se de plantar ervas. Deixou-se de conhecer, que
várias plantas tiram resfriado, tiram gripe.

1  Quando maceradas, coloca-se o ngunzu com a energia das mãos.

251
Eu tenho a África dentro de mim

É importante conhecer a planta e isso é possível quando conseguimos


reconhecê-las pelo aspecto, pelo cheiro, pelo tipo de folha para não se
confundir.

Existem várias comidas, que alimentam, mas também curam, como no


caso da anemia, por exemplo, podendo nos curar por inteiro.

Imagino que já tenha ouvido a palavra pindaíba. Que fulano ou fulana


está na pindaíba. Se trata de uma planta que tem serventia quando por
exemplo a pessoa está sem força, para baixo.

Não existe “O mau feitiço”. As pessoas têm o costume de entender que


feitiço é só para o mal, mas nós somos feiticeiros. Ser feiticeira não quer
dizer que fazemos maldade. Feiticeiro é um nganga mukixe, um grande
conhecedor e grande curador.

A planta pindaíba tira o mau, tira os maus fluidos, que muitas vezes
são construídos por nós mesmos, pelos nossos pensamentos ruins, pelos
nossos sentimentos ruins, pelas nossas ações ruins.

Na Festa do Rosário em Oliveira, eu preciso destes conhecimentos,


porque faço banho com 14 ervas para banhar os mastros e as bandeiras antes
de levantar. Os mastros e as bandeiras uma vez banhadas com essas ervas
tem que dormir uma noite no sereno para depois levantar. As ervas estão
em todo o ritual. A seguir, elaboro uma relação das principais nsabas de cura
com as quais eu trabalho:

252
Nsabas e seus usos

Abacate faz-se banho de limpeza com elas juntas.

Alecrim - alecrim da horta é bom para circulação sanguínea e é calmante.


Então a pessoa está lá e precisa. Toma um escalda, colocando um galhinho
na água quente. Espera esfriar, nunca tome quente, e bebe. Ele acalma e
melhora a circulação sanguínea. Se não melhorar, tomem uma banho de
canjica. Olha como os africanos só trabalham com a natureza. Agora cuidado
que o banho da canjica porque pode fazer dormir. Se você é trabalhador e
tem que sair cinco horas da manhã, é bom tomar no fim de semana.

Alfazema banho, chá e defumador.

Arruda descarrega. Feito como banho.

Assafeti só acha na casa de umbanda, coloca a metade do pacotinho também.


Assafeto, uma coisinha com cheiro forte danado. Um litro de vinho branco.
Coloca em uma garrafa de vidro, um cálice de vinho branco e o resto de água.
Enterra e deixa sete dias na lua minguante, por isso é importante aprender
a olhar o céu e conhecer as fases da lua. Se não tem onde enterrar, você não
pode fazer. Precisa arrumar um lugar. Coa e toma um cálice por dia.

Esse remédio é para acabar com a infecção, para acabar com o problema no
útero e ovário. Toma até acabar.

Barbatimão é um antibiótico natural. Você pode banhar o local ferido com


o chá feito com barbatimão.

Beterraba cura bronquite. Pega a beterraba, fatia ela em rodelas e coloca em


um frasco como o de maionese, por exemplo, uma camada de beterraba, uma
camada de açúcar, uma camada de beterraba, uma camada de açúcar e deixa
alguns dias. Vai sair um mel ali. Esse mel é que é o remédio para a cura.

Birosca ajuda a desenvolver a fala da criança e combate mal olhado e olho


gordo. Hoje, quando a criança demora a falar, é levada ao fonoaudiólogo,
mas até que a fonoaudiologia tem pouco tempo. Antigamente era preciso
encontrar uma solução. Tem um jeito de fazer a criança falar. Existem várias
simpatias. Uma delas é essa. Você fura a semente, que é dura, e pendura

253
Eu tenho a África dentro de mim

no pescoço da criança. Afugenta males também. Na minha época, eu via as


crianças andando tudo de corda no pescoço com essa semente.

Depois que viramos “macumbeiros”, que é assim que eles nos chamam,
passamos a ver tudo com olhos diferentes. Aquilo que está para ser jogado
fora, o que é desprezado, muitas vezes é o que vai salvar uma vida.

Buchinha paulista combate rinite e sinusite. Ferve a buchinha e inala aquele


vapor. É uma buchinha mesmo, compra também nessas casas de ervas e folhas.

Camará serve para descarrego.

Caninha de macaco é boa para os rins, inclusive ela é diurética.

Cebola cura bronquite, e é do mesmo jeito da beterraba.

Elevante combate a gripe. Elevante com poejo. Uma plantinha dessa


cura. A mãe e o pai não sabem mais que isso aqui tira resfriado. Bebê pega
bronquite as mães dão banho na criança e não sabem que bebê recém
nascido e gente idoso não sentem a temperatura igual ao adulto. Então está
quente, mas está quente para o adulto.

Reparem que tem um monte de pessoas idosas que andam com blusa de
frio? É que estão sentindo frio mesmo. Assim é com o bebê, mas as mães e
os pais de hoje desavisados, acham que faz calor, dá para deixar o bebê só
de fraldinha. Aí ele panha resfriado, aquilo vira bronquite e vira asma, que
é um problema muito maior. Então não é que tem que abotoar o bebê de
roupa não. Ao acabar de dar o banho, e era assim que nós fazíamos: primeiro
punha um pouquinho de álcool na banheira, que ajuda a cortar o resfriado,
acaba de dar o banho, põe uma camisetinha, para que o peito e as costas não
fiquem expostas. Põe uma camisetinha, mas não deixa ele peladinho, por
mais que ele esteja suando. Logo que terminava de arrumar o bebê, arrumava
uma chuquinha de funcho, erva doce ou de poejo e dava para o bebê.

A quantidade de bronquite que tem atualmente, as crianças pequenininhas


todas usando bombinha, a mãe e o pai desesperados, porque a falta de ar é
uma coisa horrorosa. E tudo porque houve um descuido. Ou um achou que

254
Nsabas e seus usos

estava cuidando muito bem ao deixá-lo com pouca roupa por entender que a
criança estava sentindo calor.

Energético natural gengibre, hortelã, manjericão branco e rapadura


raspada. Pica tudo, bate no liquidificador com água, coa e bebe. O corpo fica
mais disposto.

Atentem para o manjericão branco, ele tem algumas diferenças do outro que
é o roxo. Ele é verde mais claro, dá um pendãozinho com umas florzinhas
brancas. Se você for ao Mercado Central, dificilmente acha dele, vendem
do outro. O talo dele é verde, no outro a folha é mais escura e o talo é meio
arroxeado. Tem um que a folha é roxa. Ele acalma. Tanto faz beber ou o
banho. Limpa o corpo físico e espiritual.

Espada de São Jorge - Limpeza física e espiritual. Feito como banho.

Espinheira Santa cura câncer. Para fazer o remédio, é preciso observar a


hora de colher, a dosagem para fazer e tipos de folha.

Estilete de São Jorge - limpeza física e espiritual. Feito como banho.

Erva Cidreira é calmante, anti-gripal. Pode ser feito chá com ele.

Erva de Santa Maria ou Mastruz é vermífugo. É contra verme. Antigamente


usava outro nome, em um livrinho de orações da minha mãe está escrito:
oração contra as bicha. Naquele tempo não falava verme, falava bicha.
lombriga. Tem um cheiro muito forte . O sumo disso aqui em jejum com leite
tira qualquer verme. Soca a folha e tira o sumo, soca no leite e bebe. Pode
macerar como também pode ferver no leite. É bom usar na lua minguante.

Flor de algodão - para limpar o ovário. É importante tomar cuidado porque


limpa o ovário e aumenta o risco de gravidez. É importante redobrar os
cuidados depois de usar esse remédio. Usa-se a flor de algodão, metade de
um pacote de raiz de salsa, que é possível achar pacotinhos em lojas de ervas
e assafeti ou assafeto ou asafetida.

Goiaba faz-se banho de limpeza com elas juntas.

255
Eu tenho a África dentro de mim

Guaco melhora gripe e resfriado forte e também para o pulmão.

Guiné é muito bom para a garganta, só não pode ser demais que mata. Pode
ser feito banho com ele também. É uma beleza para tudo, só não pode usar
demais. Faz chá com a folha, lembrando que não pode beber muito, todo dia,
nem toda semana. Pode pegar algumas folhas e fazer, o beber demais é que
pode matar.

Hortelã vermífugo e antigripal. É feito o chá com ela.

Laranja da terra faz chá e banho com ela. Serve para limpeza.

Manga faz-se banho de limpeza com elas juntas.

Pitanga serve como banho e como chá. Para reenergizar, para abertura
de caminhos. Eu receito muito para as pessoas que eu atendo. Revigora
as forças do corpo e ajuda a pessoa até a arrumar um emprego. A pessoa
vai mentalizando o que precisa à medida que vai se fazendo. O banho é da
cabeça aos pés.

Quebra pedra para os rins e para expelir cálculos renais. Pode-se fazer chá
e bebe.

Saião resolve qualquer afecção da região do estômago. Pode mastigar com


água, ou bater no liquidificador.

Semente de emburana resolve problemas de rinite e sinusite. É possível


achar essa semente em loja que vende folhas e ervas. Soca a semente dura e
põe no álcool comum, melhor ainda. Assim é possível inalar. Cuidado para
não ficar viciada.

Tançagem é para garganta. Prepara ela como chá. Pode ser feito gargarejo.

Umbigo de bananeira também cura bronquite. A bananeira deu um cacho,


tem que tirar o umbigo, se não ela drena. Quem morou em roça sabe disso.
Umbigo é um alimento, podemos comê-lo. É uma das comidas típicas que eu
faço lá no Reinado, umbigo de bananeira.

256
Nsabas e seus usos

Tem que tirar as primeiras folhas. As que estão naquele umbigo. Ferventa
bem, e depois é que vai provar, com o tempero da sua forma. Isto se for para
comer.

Com o umbigo da bananeira faz também o remédio para bronquite da


mesma forma que faz com a beterraba, e esse remédio da bananeira fica com
gosto de remédio mesmo.

Urucum faz o coloral com ele. Vocês vão lá no supermercado e compram um.
Às vezes nem sabem que é feito do urucum. É uma sementinha, ralada com o
fubá solta aquela cor e isso não faz mal algum, ou socada. Ela sai a tinta.

Há um sem número de ervas e plantas que curam, que são sagradas.


Usadas para benzimentos, sacudimentos, rezas, chás e banhos. Citei apenas
algumas para este registro inicial. Nas religiões de matriz africana nada se
faz sem as nsabas.

Bananeira
REZAS, BENZIÇÕES
E SIMPATIAS
Eu tenho a África dentro de mim

Algumas décadas atrás, o tratamento disponível para a população


mais carente era através dos cuidados de benzedeiras e raizeiras. Era
possível tratar de um a tudo: vento virado, quebrante, dor de cabeça e
até torções em alguma parte do corpo. Com as garrafadas e raizadas, era
possível ajudar no tratamento de cura para mioma no útero, tirar vermes e
curar anemias. Este conhecimento, quando eu era adolescente, foi muito
desprezado, porque por exemplo: a minha mãe benzia dor de cabeça com
as brasas vivas, e eu ouvia, pessoas próximas falando: “Ah, mas isso é
normal, se coloca a brasa dentro d’água ela vai afundar”. O meu pai era
ridicularizado pelas garrafadas que fazia.

Eu afirmo que os africanos sabiam disso, porque todo mundo no Brasil,


a maioria católica ainda, sempre nessa conjunção, nessa comunhão de povos
e de crenças, muitos deles, não são todos, muitos deles são assim: domingo
na Igreja e sexta-feira na Umbanda e no Kandomblé.

As rezas, as benzeções, os chás, as garrafadas, tudo isso é a semente,


é fruto dessa semeadura que nossos antepassados fizeram aqui, e nós, do
Reinado de Nossa Senhora do Rosário, temos uma alegria profunda, uma
fé profunda e uma esperança de que consigamos, assim como chegou até
nós, passar para os mais novos. Entendo como uma obrigação, para quando
chegar nossa hora de ir, ainda assim, estes trabalhos continuem.

Existem pessoas que vão à Igreja, mas que também buscam as


benzeções e acham por bem esconder que recorrem a este trabalho espiritual
possivelmente por medo de serem reprimidos. Eu, lá em Oliveira benzo com o
Rosário, porque o padre não implica com o povo, e o que é dito é: “Ah não, ela
benze mas é com o Rosário”. Já tive experiência, na época da Festa do Rosário,
em que visitávamos uma Igreja, e três beatas pediram para que eu as benzesse
lá mesmo, e eu falei: “Mas o padre vai achar ruim com a Senhora”. Ela disse
pra mim que não porque ele sabe que eu benzo com o Rosário.

Muitos negam, mas na hora que aperta, vão atrás do raizeiro, atrás de
um benzedor e atrás da benzedeira. As pessoas buscam desse conhecimento
que eu tenho alegria também de participar. Nesta questão temos que ter a
sabedoria, porque para ajudar algumas pessoas preciso utilizar recursos que
sejam aceitáveis pela sua religião e que não prejudique a benzeção.

260
Rezas, benzições e simpatias

Paulo Apóstolo tem uma passagem na bíblia que diz: “Fiz-me fraco
com os fracos, forte com os fortes, para ver se no meio de todos, se salvava
ao menos um”. Se eu for falar que eu vou dar um passe, as pessoas não vão
querer por entenderem se tratar de coisas “erradas”. Os Pretos Velhos dão
passe, que acontece nos terreiros, e se for fazer isso, aí já não vai servir. A
oração, seja em qualquer religião, serve para nos conectar ao poder criador
do governo divino.

N’Zambi, mais conhecido no mundo como Deus, não fica esperando


nós pedirmos o que precisamos para nos dar, Ele já dá o que nós precisamos,
mas nós não conseguimos alcançar. Para receber o que N’Zambi nos envia,
precisamos elevar a mente e o sentimento, o pensar e o sentir.

O correto é estarmos sempre em oração, e fazer oração não é só ficar


com Ave Maria, Pai Nosso, ou qualquer um desses cantos que eu já entoei
rezando o Rosário, ou qualquer uns do Kandomblé ou da Umbanda.

Fico triste ao ver que as pessoas não fazem mais uso do banho de
canjica para se acalmar ou não acreditam na capacidade de cura que este
banho tem. No intuito de auxiliar as pessoas, eu me arvorei por mim mesma
a ensinar como se faz.

Nós que benzemos, trabalhamos com várias situações: aparece uma


pessoa de cobreiro e corta o cobreiro. No outro dia a pessoa vai lá e sarou.
Ela tem uma torção, cose de jeito e ela melhora. Houve uma ridicularização
do fazer do povo africano e fez com que brasileiros afrodescendentes
também passasse a ridicularizar e a desprezar este conhecimento que veio
sendo passado de geração para geração.

261
Eu tenho a África dentro de mim

Os conhecimentos com ervas e chás convencionou-se chamar de


homeopatia, foi depois que ridicularizaram bastante esse conhecimento, esse
saber popular, esse saber tradicional, o que eles fizeram: transformaram isso
em um curso acadêmico, onde essas mesmas pessoas afrodescendentes não
podem pagar, não conseguem passar numa universidade pública e o pior, os
senhores, os doutores e as doutoras na homeopatia passaram a cobrar uma
consulta, acima do que as pessoas conseguem pagar, impossibilitando a
população de ter este tratamento e o conhecimento passado de geração em
geração por causa da ridicularização, foi se perdendo com o tempo.

Há quem pense que quanto mais reza, mais assombração aparece.


Mas eu acho que a assombração sabe para quem aparece. Então a oração, é
sempre um meio de nos ligar com Deus. Hoje quase ninguém mais reza na
hora do almoço, ninguém reza na hora de jantar, ninguém reza na hora de
deitar. Não é assim? Vai atropelando e vira uma bola de neve. Mas a oração
não precisa ser grande, não precisa ser comprida, mas precisa rezar, precisa
orar, precisa fazer prece. Todos os dias, pela manhã e pela noite.

Certa vez, ouvi a seguinte história: tinha um senhor que todo dia ele
passava na Igreja e sentava lá. Ele entrava na Igreja e falava assim: “Oi Jesus,
eu sou o Zé”. Só isso, todo dia ele passava lá e falava: “Oi Jesus, eu sou o Zé”. O
tempo foi passando, foi passando, foi passando, até que um dia ele se adoentou
muito, ficou pra morrer e de repente, com uma coisa que fica entre ver o
mundo do plano físico e do plano espiritual, ele viu um senhor sentado ao
lado dele e esse senhor falou assim: “Oi Zé, eu sou Jesus”. Então não é muita
coisa, a mente é que vale. O mundo que a gente vive, está muito voltado para
as coisas materiais. A ciência se preocupa muito com vírus, com bactérias, e

262
Rezas, benzições e simpatias

devem mesmo se preocupar, de lavar as mãos, por exemplo, mas esquecem


dos miasmas mentais. Das bactérias e dos vírus fluidicos. Quando você vai
alimentar, você tem que preparar mentalmente, porque é essa formação mental
que vai te alimentar. Por isso que alguém que prepara a comida, não pode
preparar de mau humor, não pode preparar xingando palavrão.

Tinha um pessoal que queria ir a Oliveira para a festa de 13 de Maio, que


tínhamos combinado algumas vezes para compor a representação do terno
de escravizados. Fui convidada para falar em um grupo que trabalha questões
raciais sobre o Reinado, seu significado e como poderiam ajudar. Ao final, me
despedi rapidamente, e falei: “Olha, avisa o pessoal, que quem quiser ir que
seja bem vindo, mas lá não entra de shortinho, de decote exagerado e que as
palavras “merda” e “bosta” são palavrão e eu não aceito lá. Lembrei disso por
causa da comida. Às vezes as pessoas já incorporaram no seu vocabulário e
nem acham errado. Quem fala as palavras “merda” e “bosta” pode contaminar
o alimento com palavrões e pensamentos negativos. Às vezes nem é porque
está xingando, verbalizando, mas a mente está perturbada, a pessoa faz o
alimento com má vontade, não gosta de cozinhar mas é obrigada a fazer. Não
sei hoje, mas antigamente quando as pessoas cozinhavam obrigadas diziam:
“Ah, eu sou a Maria Preta aqui de casa”, isso porque tinha que fazer tudo.

Tomem cuidado! Porque aquele momento de cozinhar é um momento


excepcional. Uma mãe e um pai ou uma pessoa que cozinha, ela pode curar,
só ao fazer uma comida, só de fazer um café, só fazer uma benzição, e é isso
que buscamos passar a quem precisa e tem interesse, porque hoje, se tem
alguém sentado ali, conversando com um outro de cá, é por meio do celular,
e vendo a coisa mais estapafúrdia, sem se preocupar que nós somos um
conjunto, somos o resultado do nosso sentimento, do nosso pensamento e
da nossa fala e da nossa ação. Isso é o que nos resume. Nós não somos carne
e osso, isso é só uma veste que está por cima da essência que somos nós.
Inclusive os preconceituosos muitas vezes demonstram ignorância, falta de
conhecimento, porque não sabe sobre as limitações da matéria e a essência
que somos nós. Todos somos fortes, visto que fomos feitos da essência,
vamos chegar ao Criador. Se essa divindade nos criou, então nós somos parte
dela. Nós somos a essência da divindade. As religiões todas falam isso, e
cada uma tem a sua maneira de dizer.

263
Eu tenho a África dentro de mim

É importante sempre procurar fazer uma oração, porque pululam de


miasmas mentais. Não sei se todo mundo conhece, mas por exemplo os
trovões e os raios existem para destruir as emanações malfazejas dos nossos
pensamentos sob pena de nós morrermos sufocados pelas nossas próprias
emissões. Precisamos dar graças a Deus que tem estes recursos para limpar.
Percebam que depois da tempestade, o ar fica mais arejado, fica gostoso, um
cheirinho agradável.

Sabendo da importância de cultivarmos bons pensamentos e boas falas,


agora podemos começar a falar sobre as garrafadas ou receitas que curam.
Eles devem ser feitos na quaresma, e fora desta época pode ser feita na lua
minguante da seguinte forma: enterra sete dias na minguante e depois tira, e
toma um cálice por dia, coado.

Na época da escravidão, foi necessário desenvolver meios de conseguir


manter a fabricação de receitas que curam, garrafadas e outros. Na senzala,
os negros bebiam a jurema1, dançando ao redor da fogueira, que era um
pretexto para que fosse possível afirmar que estavam ali rezando e não
precisariam ser castigados porque faziam o que era mandado pelo Senhor e
a Igreja. Era uma forma de mostrar que não precisava matar, porque eles, os
negros escravizados, estavam apenas rezando o Rosário.

Hoje os tempos são outros e agora precisamos assumir nossa posição. Nós
estamos nesse tempo, vivenciando uma época em que todo mundo tem que
tomar uma posição, não vai mais ter lugar para quem gosta de ficar em cima do
muro. Todos os que trabalham em cima do muro, em qualquer área, vão cair.

1  Jurema são ervas medicinais curtidas na cachaça ou no vinho.

264
Rezas, benzições e simpatias

A oração do Rosário dos homens escravizados nas senzalas demonstra


exatamente a sabedoria, o discernimento e a fé de quem soube resistir no tempo.

Para a oração desse Rosário, usa-se o Rosário católico, com contas de


lágrimas, ou em contas de saboneteira. Que vem da árvore que alguns chamam
de para-raio ou Santa Bárbara. Ela dá uma continha preta e quando está menos
seca, tem um cheiro de sabonete, um perfume. Fazemos Rosário com ela.

Não contemplamos os mistérios católicos, podendo oferecer o Rosário


de acordo com a intenção dos presentes.

Na reza do Rosário católico, rezamos o Creio em Deus em Pai, o Pai


Nosso, três Ave Maria e um Glória e faz o oferecimento do terço, ou do
Rosário. Terços, são cinco mistérios, o Rosário hoje são 20 mistérios: era 7
passou para 10, foi para 15 e agora são 20.

Para rezar tocando o Kandombe há um ritual: primeiro chama os


tambores sagrados, depois deles presentes, pedimos licença, pedimos
a benção de Nossa Senhora, a benção das coroas, e aí faz conforme o
conhecimento que se tem. Pode acontecer de um terno cantar de um jeito, e
outro cantar de outra forma. É importante observar que a essência é a mesma.

Ao fazer uma oração, se você acender uma vela e colocá-la acesa lá e


não encantar, conforme aprendemos nos terreiros, não vai adiantar porque
a vela por si só não vai fazer nada, as orações e o canto que vão fazer a
comunicação, fazer fluir no tempo e no espaço os pedidos e as necessidades
de cada pessoa.

A oração vai da sua concentração. Se você for rezar aí um mistério, mas


você não puser a sua mente, você está repetindo palavras sem pôr em prática
nenhuma. E assim não tem jeito.

265
Eu tenho a África dentro de mim

A oração do Rosário das pessoas escravizadas


nas senzalas

Na busca da manutenção de sua fé genuína, no meio de um sistema


escravocrata, os negros souberam, através de muitas maneiras, preservar as
suas tradições. Obrigados a se converterem ao cristianismo, os negros souberem
interpretar no Rosário católico, um Rosário adaptado à sua fé. A oração do
Rosário dos Homens escravizados nas senzalas demonstra exatamente, a
sabedoria, o discernimento e a fé de quem soube resistir no tempo.

Inicia-se cantando cinco vezes um


Aiô iê iô
E a resposta dos presentes é
Ôôôôôô

Depois canta-se por três vezes:

Eu sou devota da virgem Maria


Ela é nossa força
Ela é nossa guia

Eu falo devota, porque eu sou mulher, os homens cantam devoto. Se


fosse um homem puxando, ele vai falar “eu sou devoto” e nós mulheres
responderíamos eu sou devota.

Depois que faz esta primeira parte, oferecemos o Rosário. Se eu falo, se


eu rezo alto e não ofereço, alguém mal intencionado pode oferecer. Então eu
posso fazer uma oração sem oferecer para nada nem mesmo mentalmente
porque alguém, no plano espiritual, do coração mal captura e oferece essa
oração para o que ele quiser.

Quero lembrá-los que isso não é brincadeira. São cantos de grande


vibração que provocam sentimentos fortes nas pessoas. Sempre peço e
ofereço essas orações pela paz no mundo, rogando ao ser supremo que nós
chamamos de N’Zambi que Ele, na sua bondade, na sua misericórdia e todos
os Minkisi proporcionem, sobre nosso canal central, a paz, a harmonia, a
sabedoria, a compreensão para que se resolvam os nossos problemas. Peço

266
Rezas, benzições e simpatias

pelas pessoas doentes nos hospitais, nas casas de saúde, nos seus lares ou ao
relento, que esse poder que pode tudo, dê para essas pessoas a cura ou alívio
das suas dores e as intenções particulares de cada pessoa que lê esse escrito.

A partir de então canta-se em cada mistério uma toada que tenha


“Ôlêlê” que corresponde a uma Ave-Maria e em seguida, um canto que fale
de algum Santo do Reinado, que corresponde ao Pai Nosso e ao Glória.

Em seguida, canta-se a oração da Salve Rainha, na qual entoamos o


seguinte refrão:

Aos vossos pés


Senhora minha
Peço socorro
Salve Rainha

Salve Rainha mãe de misericórdia


Vida doçura, esperança nossa Salve

(Refrão2)

A vós bradamos os degredados filhos de Eva


A vós clamamos, gemendo e chorando

(Refrão)

Eia pois, advogada nossa


Esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei

(Refrão)

E depois, deste desterro


Mostrai-nos Jesus, bendito fruto do Vosso Ventre

(Refrão)

2  Repete-se o refrão, conforme destacado acima.

267
Eu tenho a África dentro de mim

Ó clemente, ò piedosa, ó doce sempre Virgem Maria

(Refrão)

Rogai por nós Santa Mãe de Deus


Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

(Refrão)

Ou

Uma Salve Rainha


Uma Salve Rainha
Salve Rainha Senhora
Ô mãe
Verdadeira mãe
Ô mãe
Da misericórdia
Ô mãe
Verdadeira mãe
Ô mãe
Da misericórdia

É importante lembrar que não devemos fazer uma oração sem oferecer
o pedido que queremos, sob pena de alguém do mundo físico ou do mundo
espiritual fazer um pedido em nosso lugar, no lugar de onde colocar pois há
o risco deste pedido ser contra nós mesmos. Eu gosto de pedir pela Terra,
pela humanidade, por tudo o que nós estamos passando e por aquilo que
ainda vai vir, e que estejamos todos buscando o equilíbrio e a paz.

No começo do Rosário, tem cinco contas, nessas cinco contas é que


nós vamos iniciar. Quem está puxando canta:

Ai ô ie iô
E a resposta é
Ôôôôôôôôôôô

268
Rezas, benzições e simpatias

A cada um que se canta, muda a continha, quando vem a resposta,


novamente mudo a continha e rapidamente finalizamos a oração.

E a partir de agora, repetindo o que já disse, nós vamos começar com o


mistério, e cada mistério tem que ter um “Ôlêlê”, lembrando que uma toada
que tenha o “Ôlelê”, corresponde a uma Ave Maria, ao finalizar, cantamos
uma toada que fale de algum Santo, sem “Ôlêlê” que vai corresponder ao
“Glória” e ao “Pai Nosso”.

Nesse rosário rezamos dez mistérios. Existem muitas toadas com


“Ôlêlê”. Parece uma coisa à toa mas ele move, no sentido de mexer com o
céu, com a terra e com o mar. Pode variar entre serra acima e serra abaixo.

No momento da reza do Rosario dos Pretos de Senzala, nós estamos


ao redor de uma fogueira para rezar.

Aiô lêlê ô lê, Ai ô lêlêiô


Aiô lêlê ô lê, Ai ô lêlêiô
Aiô lêlê lêlê ôlê ôô ôô

Após o puxador cantar as toadas correspondentes às “Ave Maria”,


vem o “Glória”:

Cheguei cantei na casa de mamãe


Nossa rainha Senhora do Rosário

Esse canta só três vezes.

Após os dez mistérios cantamos:

1
Oi glória Deus
Glória a Deus Nosso Senhor
Oi glória Deus
Glória a Deus Nosso Senhor
Pai, Filho, Espirito Santo
Glória a Deus Nosso Senhor

269
Eu tenho a África dentro de mim

Pai, Filho, Espirito Santo


Glória a Deus Nosso Senhor

2
Meu Divino veio do céu
Ele vei foi avuando
Meu Divino veio do céu
Ele vei foi avuando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando
Ele veio abençoar
O povo que tava acompanhando

3
Quando eu lembro no dia de hoje
Eu me encho de alegria
Quando eu lembro no dia de hoje
Eu me encho de alegria
Nossa senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria
Nossa senhora me deu a luz
Colocou no meu pescoço
O Rosário de Maria

Louvado seja Deus


Louvado seja Deus
Para sempre seja louvado
Louvado seja Deus

Viva Senhora do Rosário - Viva


Viva a Senhora das Mercês - Viva
Viva São Benedito - Viva
Viva Santa Efigênia - Viva
Viva Senhora Aparecida - Viva
Divino Espirito Santo - Descei sobre nós (3x)

270
Rezas, benzições e simpatias

Viva a cora sagrada - Viva


Viva o Rosário de Maria - Viva
Viva quem gosta da nossa festa - Viva
Viva também quem não gosta
Viva os que fingem que gosta.
Salve Maria.

Depois pode cantar a “Salve Rainha” para finalizar. Tem muita gente
que entende que se não cantar a “Salve Rainha” não fechou o Rosário. E ela é
cantada tocando serra acima, e o capitão/a capitã pode cantar ou pode rezar
a “Salve Rainha” ou apenas rezada.

Cuidados com as benzições

Existem vários meios pelos quais realizamos as benzições. Tem gente


que gosta de terço, de Rosário, usam amuletos, patoás, arruda, alecrim,
imposição de mão. O que o padre faz, que o pastor faz é a mesma coisa, nós é
que separamos as coisas de acordo com cada maneira de crer. O importante
de se aprender desde sempre, é a responsabilidade que se toma, quando se
disponibiliza a fazer o trabalho como benzedeira ou como benzedor.

Ao assumir este compromisso, não se pode negar ajuda a quem


procura. É como um médico, não tem hora, cansaço não é razão para que
não seja realizada a benzição. O meio pelo qual conseguimos elevar nossas
preces e pedidos, é através das palavras e da mente.

A benzição pode acontecer em qualquer horário, na minha concepção,


mas eu olho a situação da pessoa. A minha mãe por exemplo achava que não
podia benzer domingo, mas a pessoa chegou lá passando mal e eu me sinto
na responsabilidade de ajudar. Sempre me lembro de Jesus. Sábado era dia
santo, e foram reclamar com Jesus que estava curando em dia de sábado, ao
que ele perguntou: “O que é mais importante, o sábado ou o burro que caiu
lá? Sua pergunta teve o sentido de fazer as pessoas refletirem sobre o que
tinha mais importância se o sábado ou o animal que caiu no buraco.

271
Eu tenho a África dentro de mim

Entendo que a qualquer hora Deus trabalha, Deus não para. Tem coisas
que realmente não se faz á noite, mas a pessoa trabalha o dia inteiro, só a
noite que ela pode ir lá, você vai orientar a ela que espere até domingo ou
só sábado se tratando de uma enfermidade? Não faço desta forma, utilizo o
bom senso. Tem algumas coisas que não se faz à noite, mas não é o caso da
benzição, se a pessoa só pode ir à noite.

Existe muito trabalho na seara de Jesus e infelizmente são poucas as


pessoas que queiram trabalhar. Nossa responsabilidade como benzedores
aumenta ainda mais.

Eu acho uma beleza, bom demais, mas é importante também atentar


para a questão da concentração na hora que se faz a benzição. Nós
precisamos ter o trabalho com seriedade.

Não nos esqueçamos que somos pensamento e sentimento, e não


adianta o corpo estar presente, mas o pensamento estar em qualquer outro
lugar. Quantas vezes estamos na aula ou no trabalho, mas a mente está
viajando. Nesses pensamentos, já fomos em casa, já fomos em vários outros
lugares. Precisamos atentar para a questão de que estamos onde está nosso
pensamento. Inclusive, vamos aprendendo isso e falo também para mim,
porque quando sairmos desse corpo, uma das dificuldades que os espíritos
tem é essa, porque o que guia o espírito é o pensamento.

Eu volto naquele outro ensinamento, já dito anteriormente: vocês já


pensaram nesse pessoal que adora xingar palavrão? Quando xinga, algo
negativo é chamado. Quando um palavrão é proferido, algum espírito com
energias ruins atende por aquele nome, não pense que não, porque atende.
Não se trata de falso moralismo. O hábito de usar palavras como essas, leva
as pessoas a naturalizem tanto que para elas não é.

Certa vez, ouvi lá no Kandomblé, depois de eu ter iniciado no Nkisi,


uma makota, das mais velhas, falando com a outra: “Eu cheguei em um lugar
assim, assim, aí eu ouvi um espírito que perguntou: ‘Quê que cê quer comigo
que cê tanto me chama? Cê me chama todo dia”. Ele se referia aos palavrões
e para mim foi a certeza de que de fato atrai negatividades. Fala quem
quiser, e quem quiser continuar assim, vai tendo as consequências.

272
Rezas, benzições e simpatias

Então são as suas orações e o seu canto que vão fazer a comunicação
com o mundo espiritual para ativar os fluidos necessários para possibilitar a
cura e a recuperação de quem busca por socorro.

Em conversa com um Preto Velho, ele me perguntou o que era mais


importante em uma vela e contou-me que o mais importante na vela é o
pavio porque ele que acende. Se você não souber, e é isso que faz a diferença
de quem sabe e quem não sabe o que está fazendo, pode colocar a vela,
aquele tanto de oferenda, que se você não souber encantar aquilo não dá o
resultado que precisa, ou o que se espera.

É importante que saibam, que benzedor faz remédios (receitas que


curam e garrafadas).

Toda benzição começa com uma oração: em nome do Pai, do Filho, do


Espírito Santo, Amém.

Oração para cortar hemorragia

Essa hemorragia pode ser interna ou externa.

Você que é um benzedor, ou então uma benzedeira, pode fazer com


a mão mesmo. Se você quiser usar um raminho, use; se quiser usar um
Rosário, use; se quiser usar o patuá, use, mas se não quiser, pode fazer com a
sua própria mão.

À medida que for rezando, vai fazendo o sinal da cruz. Vai, falando e
fazendo o sinal da cruz em cima de onde cortou:

Sangue para na veia, como Jesus parou na ceia


Sangue para no corpo como Jesus parou no horto
Sangue para em ti, como Jesus parou em si

Desta forma é rezado para benzer outra pessoa. Se a benzição for em


você, o final fica da seguinte forma:

273
Eu tenho a África dentro de mim

Sangue para em mim como Jesus parou em si

Essa oração já salvou muitas pessoas, inclusive em situações que o


médico perguntou como é que conseguiu parar a hemorragia no lugar que
tinha cortado. Em uma situação dessas, como é que fala com o médico: “Ah,
eu fiz uma oração assim, assim”. Ele pode não acreditar e ainda achar graça
da situação. Já teve hemorragia interna e hemorragia externa em que o
salvamento veio desta oração. Esta é uma oração que salva vidas, porque nem
sempre dá tempo de chegar a uma UPA ou a um hospital e uma pessoa pode
acabar morrendo de não souber fazer essa oração. Ela é rezada três vezes.

Coser de jeito

Para esta benzição, vamos precisar de linha branca, agulha e pano


branco, se não tiver pano branco, pode ser um pano claro. A costura será feita
no pano em cima do lugar torcido ou lesionado, como se fosse um alinhavo.

Dobra o pano e faz o sinal da cruz em cima do lugar a ser cosido “Em
nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém”. Onde embolou, ali é que
está o problema do entorce viu? Mas você não pode começar costurando
e ir falando. Quem está cosendo pergunta: “Que coso?”. A resposta que
ensina para quem recebe a benzição é: “Carne quebrada, osso rendido, junta
desconjuntada e nervo torto”

A resposta do benzedor, da benzedora: “Assim mesmo eu coso. Coso


pela carne, São Domingos cose pelo osso.” Enquanto isso o pano vai sendo
costurado acima do lugar que precisa do cosimento.

É importante tomar cuidado para não espetar o coitado ou a coitada


que recebe a benzição. Você enfia a costura sem acertar o pé ou a mão ou o
que precisa ser benzido.

Repete o trecho da oração acima. Vai fazer isso de novo, três vezes, no
mesmo momento, costurando o paninho e não pode tirar a agulha do pano,
enquanto não fizer três vezes. Em três dias. Ao acabar hoje, deixa guardado.
Amanhã, quando a pessoa chegar pega o mesmo pano, coloca nova linha. No

274
Rezas, benzições e simpatias

caso de não ter calculado bem a linha e ela não dar, acaba de coser aquela,
enfia outra e continua costurando.

É importante atentar para a questão de onde a linha embaraçar, é o


local que está o problema do jeito, do entorce. Vai deixar três, até acabar as
três benzições, só depois que vai tirar. Vai fazer três vezes, em cada dia, vai
repetir três vezes o que escreveu aí.

Separar briga

Em função de várias vivências, transitamos nos mais variados espaços


e de uma hora para outra, pode surgir uma briga ou desentendimento,
conflito em casa, no trabalho ou em outro lugar que você estiver. Ao invés de
entrar, a mente é que vai fazer o trabalho. Onde você estiver, caladinho, pode
ser mesmo em qualquer lugar que aconteça a briga, o desentendimento, o
conflito. Se a briga acontecer com os outros, você mentaliza:

Há perigo entre eles, registro as chagas de Nosso senhor Jesus Cristo

É dito repetidamente três vezes. Isso se for com os outros, mas


se estivermos no meio da briga, o que neste caso é mais difícil de ter o
controle emocional, porque quando não é conosco já ficamos nervosos, se
estivermos no meio, mais ainda, mas é o hábito que vai nos fazer adquirir
esse equilíbrio. Se estivermos no meio, mentalizamos:

Há perigo entre nós, registro as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo

Mentaliza três vezes, como na outra que se faz para briga com outras pessoas.

Abertura de caminhos

Compre um cará, ele é diferente do inhame. O inhame é mais


cabeludinho. Abre o cará no meio, coloca sete moedas, fecha o cará de novo,
ele tem uma baba, vai colar ali. Se você achar que não deu firmeza ao juntar e
quiser passar um barbante, pode fazer. Leva essa cará e põe numa encruzilhada

275
Eu tenho a África dentro de mim

bem movimentada. Enquanto está mexendo com o cara, até colocá-lo na


encruzilhada, peça para abrir os caminhos de saúde, de prosperidade e de paz.

Espanta o mal olhado, olho gordo, inveja,


perseguição espiritual

Santa Íris perguntou pra Santa Elia: quebranto, olho gordo, mal
olhado, inveja, reza brava, todo tipo de mironga, todo tipo de canjerê, todo
tipo de mandinga, todo tipo de trabalho feito, todo tipo de feitiçaria, todo
tipo de perseguição física e espiritual com que te curaria, água da fonte,
raminho do monte um Pai Nosso e uma Ave Maria. Então reza-se um Pai
Nosso e uma Ave Maria.

Lembrando que para quebrante, mau olhado e outros males o que


funciona muito bem é o trabalho da mente.

Para chamar alguém

Tambor, tambor, vai buscar quem mora longe tambor


Vai buscar mas sem demora tambor
Quem tá chamando é preto de Angola tambor

Essa oração desassossega a pessoa, enquanto ela não vem, ela não tem
sossego. Não é para trazer namorado de volta. Esta oração serve para um
filho, um parente, uma pessoa que foi embora e não deu mais notícia. Se for
à noite, depois da meia noite, melhor ainda. Vai cantando e vai pensando na
pessoa que tá querendo que volte.

Cortar cobreiro

Cobreiro é de bicho peçonhento, algum bicho como aranha, lagartixa,


escorpião, cobra ou outro que passou na pele e não vimos. Pode surgir daí
uma afecção na pele.

276
Rezas, benzições e simpatias

Corta a mamona, na região do início do caule e deixa só o caule.


Utiliza-se três caules de mamona para cada benzição.
É feito em cima do cobreiro do mesmo jeito.

Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo com os talinhos se


benzendo, e depois benze no lugar que está o cobreiro na pessoa fazendo
antes o sinal da cruz nele também.

Com os três talinhos pergunta à pessoa que recebe a benzição:

Que corto?

A pessoa responde: Cobreiro bravo.

Você então passa a cortar o caule e fala:

Corto a cabeça, corto o meio e corto o rabo

E vai cortando o talo. É preciso fazer isso três vezes com o mesmo.

Com os poderes de Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo, corto o mal
deste cobreiro. Seja de aranha, de cobra, de lagartixa, sapo, escorpião ou
qualquer bicho peçonhento

O que corto?
Cobreiro bravo
Assim mesmo eu corto

E vai cortando aos poucos.

Corto a cabeça, corto o meio e corto o rabo

Ao fazer o corte no talo da mamona, tem que durar as três vezes. Vai
picando, mas não é em cima da pessoa que pica, faz em cima da mesa. Ao final
tem que ter cortado tudo. Acabou de cortar, coloca nas três folhas, faz uma
buchinha e coloca para secar em cima do telhado. Na medida que ela seca, o
cobreiro desaparece. No outro dia que a pessoa aparecer lá, corta-se de novo
com novos talos de mamona, mesmo que já tiver limpado. Em geral faz dois
dias e no seguinte não tem nada. Faz o processo três vezes por três dias.

277
Eu tenho a África dentro de mim

Para curar mal olhado, quebranto, dor de cabeça


e doenças em geral

Lembrando sempre que a fé é que vai fazer o efeito.

O quebranto é algo que te dá mal estar, que você não sabe de onde vem,
nem como surgiu.

Jesus quando andou pelo mundo, sentou-se numa pedra fria curando to-
dos os males (aqui fala-se o nome do mal que está curando e o nome da pessoa)
com as bênçãos da Virgem Maria
Um Pai Nosso, três Ave Maria e um Glória

Eu sempre benzo três vezes, indiferente da pessoa ter melhorado ou não.


Tudo quanto é benzição eu marco e a pessoa vai três vezes. Se puder ser três
dias seguidos, muito bem, se não puder, três semanas não é problema, se não
puder, três vezes que a pessoa for lá. A pessoa só pode uma vez no mês, você
vai fazer as três vezes por três meses.

Vento virado/ espinhela caída

Vento virado é em criança. Acontece em adulto também e com o adulto


chamamos de espinhela caída. A pessoa fica assustando à toa.

Na criança

Vento virado, a criança está se assustando, caindo à toa, levando susto à toa.

Olha os pezinhos juntos com a criança deitada no seu colo de barriga para
baixo. Vai dar uma diferença. Uma perna fica maior que a outra.

Vai rezando e mexe em todos os dedos do pé e da mão, vira a mão pra cá, a
criança chora, criança grita, criança pequena então, é importante fazer, mesmo
com ela chorando. Vai conversando com ela para ver se ela aceita, se não ela vai
dar uma birra danada, a mãe e o pai ficam preocupados, às vezes nem tem costume
disso e podem achar que você está fazendo mal com o coitado do menino.

278
Rezas, benzições e simpatias

Reza Ave Maria e Pai Nosso em silêncio e vai mexendo dedos da mão e
vai puxando os seus dedinhos para acertar. Depois pega os dedinhos do pé e
repete o procedimento.

Com a criança virada de bruço, Encosta seu pé na sua mão. Por isso que
adulto não dá, por não tem como colocar no colo e fazer os movimentos.

Na criança de barriga para baixo, faz um movimento cruzado batendo a


mão direita no pé esquerdo três vezes e vice e versa.

Junta os pés e bate neles três vezes e depois fizer assim, ainda tem
que conseguir virar a criança, sacudindo-a com os pés para baixo. Segura
os pezinhos dela, põe ela de cabeça pra baixo e aí depois disso ela melhora.
Revira para um lado, revira para o outro, sacode a criança de cabeça pra
baixo e a criança fica boa.

Normalmente faz a medição antes de começar, e ver a diferença. Benze


e torna a medir, aí chegou no lugar. Repete três vezes. Você benze e chega
no lugar.

Agora o grande, o adulto, não tem como pegar no colo, não é criança.
O procedimento é o mesmo que o feito com a criança; manda ele pular três
vezes. Em cada um dos pulos a benzedeira ou benzedor puxa as mãos da
pessoa para baixo, como que descarregando ela: Isso aqui chega no lugar.

Para tirar gás no estômago

Esta simpatia é difícil de ser feita, porque o ingrediente é de difícil


acesso atualmente, uma vez que praticamente todas as casas agora o fogão é
a gás. Para tirar gás no estômago, é só pôr cinza no umbigo, cinza de fogão,
mas se não tiver, pode usar o de cigarro.

Para quem está com fraqueza e desânimo

Mel e canela, pra quem tá com fraqueza, com desânimo, já mais velho.

279
Cana
PARTE 3

APRENDO,
VIVO,
SINTO
NKISI, ORISÀ, SANTO
Eu tenho a África dentro de mim

Tenho o entendimento que a coroa sagrada que festejamos na Festa do


Congo é a coroa dos Minkisi que nós carregamos dentro do Reinado. Todos os
anos, na cidade de Oliveira, na abertura da Festa do Rosário, sai no primeiro
sábado do mês de setembro o Boi do Rosário acompanhado de uma multidão
de pessoas. Eufóricas, elas gritam, correm, pulam, se amontoam e não saem de
perto do Boi do Rosário enquanto não chega ao fim o seu cortejo.

O boi tem uma significação: que está relacionado ao sentido material


que é a morte de um boi que teve sua carne distribuída entre algumas
pessoas, mas a saída do boi ali pra nós, alguém até falou, significa o que os
terreiros fazem de despacho para Ngira, o conhecido despacho para Exú.
Mas não me refiro aqui ao Exu catiço1, e sim ao mensageiro dos Minkisi2,
porque ele vai limpar as ruas por onde depois vai passar um cortejo difícil,
um cortejo de Minkisi, que são os reis e as rainhas coroados.

É importante que sejam compartilhadas estas informações porque


algumas pessoas nunca souberam disso, aí alguns se horrorizam. Na cultura
Bantu o aprendizado se dá de forma oral, o que fez e ainda faz com que algumas
pessoas detentoras dos conhecimentos antigos do Reinado não sentissem
confiança em contar tais vivências e muita ciência foi se perdendo no tempo.

A tradição do Boi do Rosário, como uma tradição afrodiaspórica, tem


esta finalidade de abertura de caminhos aqui no Centro-Oeste mineiro, mas
eu entendo que por ser uma tradição ancestral, manifestações com a mesma
finalidade acontecem no Amazonas, no Maranhão com o mesmo sentido,
embora tenha sido para muitos escondido. Na Festa do Congo muita gente
já perdeu o significado e acham que é só uma diversão.

1  Exu que trabalha na Umbanda


2  Divindade do Kandomblé Angola-Muxicongo

284
NKISI, ORISÀ, SANTO

Por não saber do que se trata, aquela multidão costuma levar para
o lado da diversão, não sabendo ela e nem o povo do que se trata aquela
vivência, mesmo porque se soubessem talvez não participariam em função
do preconceito enraizado em nossa sociedade. Mas eles vão com aquela
intensidade, fazendo toda aquela festa, para que os caminhos sejam
limpados, para que aquelas ruas, aquelas energias sejam dissipadas para que
depois ocorra a passagem daqueles que estão representando as coroas dos
nossos ancestrais, a coroa dos Minkisi, que é o que nós estamos festejando
no pano de fundo. No pano da frente são os Santos da Igreja Católica,
porque a Igreja não permitia aos negros festejar sua própria crença.

O conhecimento e sabedoria dos povos africanos fez com que eles


analisassem bem, e encontrassem os quatro Santos com histórias muito
parecidas com a dos Minkisi, e nós festejamos esses Santos por isso. Eu
acho de uma inteligência, porque a história do Santo católico é próxima
da história dos Minkisi: o tempo todo nós estamos falando do mar, que nós
viemos foi de lá e aqueles que têm a fé tanto na Senhora do Rosário, quanto
em um Nkisi, conseguem vivenciar a mesma energia e emoção.

Vejam a história de uma Santa que apareceu no mar, a Nossa Senhora


do Rosário. A Igreja não conta nenhuma história de alguma Santa que tenha
aparecido no mar, só os negros reinadeiros. A outra Santa apareceu na mina, o
outro é o da fartura, o que não deixa faltar comida, e a outra é aquela que domina
o vento e as tempestades e o fogo. Veja como está tudo muito bem organizado.

Percebam que as imagens da Igreja Católica são de madeira ou de


gesso. Não tinha como ter uma imagem que apareceu no mar e de repente
dentro da Igreja ela se transformasse numa matéria ou de gesso ou de barro.
E que Senhora é essa cheia de vontade? Foi três vezes com os brancos, mas
não quis ficar. Voltou sozinha, para o mar e com os negros ela chegou já
se sentindo em casa, abriu um sorriso, quis ir com eles para a senzala. Que
Santa é essa que se encontra no mar? Para o povo de Bantu é Kaiaia, Yemonja
para o povo Nagô. Kaiaia é a própria essência da água do mar. Yemonjá é a
guardiã dessa essência. O Reinado é de origem Bantu.

285
Eu tenho a África dentro de mim

Sei da vivência e da história de muitos mouros relacionadas à Senhora


das Mercês, bem como aos critãos. Muitos dos Mouros eram negros, então
quem é que, afinal, estava certo na história? Na história, conta-se que ela
apareceu para livrar os cristãos dos Mouros, e ela é tida também como Nossa
Senhora da Boca da Mina, e mina é água doce. Logo ela ficou como aquela
Nkisi que é da água doce. Mas temos fé nos Santos do Rosário com os quais
temos vivências que se assemelham ao momento da chegada dos Minkisi.

Dentro da Igreja Católica tem uma história que ela liberta o povo
cristão que estava sob o jugo do povo árabe, sendo também chamada
de libertadora, mas para a população ela também tem o nome de Nossa
Senhora da Boca da Mina. Tem esse detalhe, Mina. São estes que nós
estamos apresentando dentro do Reinado, que na verdade faz-se de maneira
diferente, mas como foi idealizado lá dentro do sistema do povo escravizado,
estabeleceu uma forma de reverenciar os Minkisi, sem que os escravocratas
e a Igreja percebessem, e eles conseguiram porque até hoje a maioria não
percebe isso, mesmo estando dentro do que nós conhecemos como Reinado
e que alguns chamam de congado.

No meio de toda a situação feroz que a escravidão trouxe para os


africanos, na qual muitos morreram. Ou melhor, foram brutalmente
assassinados. Me pergunto se é possível dimensionar o que é ser arrancado
de sua terra, ter negado todos os seus valores, toda a sua cultura, a sua
religião, e no meio de toda essa perversidade, muitos morriam levando
sabedoria, sabedoria que esse povo tem, e esse grupo de pessoas, idealizou
formatar o que a gente chama de Reinado, para que na verdade eles tivessem
condições de continuar cultuando seus Minkisi e seus Orisà. Eu digo Minkisi
e Orisà, porque o Reinado é Bantu, mas dentro da senzala tinha o povo Nagô
também onde um respeitava o outro e a junção desse respeito resultou na
Festa do Kongo no Brasil.

286
NKISI, ORISÀ, SANTO

Para entender melhor, existe um Santo preto, que é o cozinheiro


que traz a fartura e não deixa faltar nada, e não deixa mesmo. Nos
conhecimentos do Reinado, São Benedito aceitou ocupar este lugar. Estamos
cultuando São Benedito, mas estamos cultuando também o nosso dono
da caça, da fartura que é Mutakalambô para o povo Bantu, Osòssi para o
povo Nagô. Depois veio uma Senhora que foi levada para dentro da Igreja
com um convento na mão, a Santa Efigênia, mas para os povos Bantu, está
relacionada à Matamba, e para os povos Nagô, Iansã, que coordena os ventos,
tempestades e foi capaz de salvar o convento do fogo. Olha a capacidade de
percepção, criação e tradução. Tem também a história de outra Senhora que
libertou o povo, sendo conhecida como a Senhora das Mercês, e a Santa que
apareceu no mar, formando os quatro Santos do Reinado.

Agora, na minha visão, no meu modo de crer, um não é o outro. Não é


aquele sincretismo que a Umbanda tem de um Santo como São Lázaro ser o
Orixá Obaluaê por exemplo. Eles estão ali, aceitando essa representação. Os
Santos da Igreja sabem disto e eles aceitaram representar ali pra que os negros
pudessem fazer no fundo aquilo que eles acreditavam, como nos é mostrado
no conto da aparição de Nossa Senhora no mar, e para nós negros ficou então
assim, todo mundo é louco de amor com essa Senhora do Rosário, com essa
Senhora dos Mercês, com São Benedito e com Santa Efigênia. Mas também
hoje, poucos sabem que ali, nós estamos festejando os Mukixi.

Nossa Senhora do Rosário é a nossa mãe. Ela é mãe da humanidade, a


quem ela fez nascer. Ao olharmos a história conta-se que Jesus a entregou
como mãe da humanidade aos pés da cruz. Nós, reinadeiros, indiferentemente
do conhecimento que tivermos, nós somos pessoas que carregamos água no
balaio para essa Senhora. Não sei se se é possível entender o que é carregar
água no balaio. Balaio é um cesto de taquara de bambu furadinho e a água

287
Eu tenho a África dentro de mim

ali não fica, mas ainda assim, nós carregamos água no balaio para ela, nós
fazemos que for possível e impossível, por Ela e para Ela.

Eu sempre soube que dentro do Reinado ela está ali com sua humildade
representando um Nkisi da natureza, da água salgada. Ela, na sua grandeza,
não se fez de rogada. Para ela não importa, mas eu quando eu canto pra
Senhora do Rosário, eu canto para ela com pensamento também naquela
Nkisi que é dona das águas salgadas. Quem não quiser aceitar isso continua
fazendo a sua tradição no seu lugar. Eu vou seguir conforme ensinado pela
espiritualidade no Reinado, pela ancestralidade, pelos antepassados.

Em visita a uma imagem de Nossa Senhora das Mercês, na cidade de


Oliveira, que é quase do meu tamanho, comecei a cantar e o povo da casa e
todos nós reinadeiros e reinadeiras quase chorando, por conseguir perceber
que se trata de algo real, um sentimento muito forte, como acontece quando
estamos na presença dos Minkisi.

Venho trazendo estas questões para voltar no assunto da transmissão


de conhecimento de forma oral à época da escravidão. Com a morte de
muitos negros e negras escravizados por castigos no tronco, por condições
de vida precária, muitos iam levando seus conhecimentos, sem repassar aos
demais, seja por não ter dado tempo, seja por não terem tido confiança em
compartilhar seus conhecimentos. Mas sempre me admiro que em meio a
tanta dor e sofrimento estruturaram meios e estratégias de sobrevivência.
Tais estratégias se apresentavam das mais variadas formas e alguns viam na

288
NKISI, ORISÀ, SANTO

morte uma saída para não ser colocado como escravo, mas tinham outros
tantos que arquitetaram com muita inteligência e sabedoria, costumes que
vieram até nossos dias. A não transmissão dos conhecimentos pelos negros
que conheciam da organização do Reinado, que naquela época se dava
exclusivamente pela via da oralidade, impossibilitou o conhecimento do
sentido da Festa do Kongo em muitas Irmandades.

Muitas pessoas não têm esse entendimento, mas Nossa Senhora é uma
só, recebeu diversos títulos pelos interesses da Igreja. Seja Nossa Senhora do
Rosário, seja Nossa Senhora das Mercês, estamos falando da mesma Nossa
Senhora, que tem alguma relação com o período ou contexto da história
escravocrata. Por isso não faz parte do Reinado a imagem de Nossa Senhora
de Pompéia, que tem outra história e outro contexto.

Com o início do Reinado nas senzalas, o kandombe era responsável


pelo batismo. Seja no Reinado, seja no nascimento, seja na coroação de reis
e rainhas da festa. Trata-se de um momento muito sagrado em que se canta
e recebe as bênçãos de Nossa Senhora. Infelizmente esta tradição tem sido
cada vez mais rara de acontecer por não termos registrado este momento
importante dentre os rituais do Rosário.

Assim como o Reinado, acontecia também o Kandomblé dentro


das senzalas. Qualquer pessoa que veio da África e quisesse continuar
cultuando os Minkisi e os Orisàs, com tudo que precisava fazer, precisava

289
Eu tenho a África dentro de mim

encontrar maneiras de continuar com sua tradição em meio à repressão e à


imposição de uma religião muito diferente da sua. Se o escravizado fosse até
o senhor e falasse “Olha, hoje eu tô precisando de um frango”, além de não
conseguir, corria o risco de ser castigado pelo feitor. Mais uma vez eu vejo
a inteligência desse povo de Reinado porque eles conseguiram transformar
o sacrifício animal em vegetal, que faz o mesmo efeito. Mas no Kandomblé,
cada um arrumava um jeito, segundo informação dos próprios espíritos3 que
viveram na época da escravidão.

Segundo informações de uma Preta Velha, que certa vez eu ouvi, que
contou que raspavam as pessoas, diziam ao feitor que estavam com piolho,
ou que a pessoa não estava passando bem. Com isso eles ficavam com ele
vinte e um dias lá dentro fazendo os rituais que precisavam.

É comum ouvirmos a expressão Santo, referindo às divindades do


Kandomblé, mas este é um termo usado pela Igreja Católica. Convencionou-
se falar santo dentro do Kandomblé. Eu acho até mesmo pela opressão.

Convencionou-se a falar Santo porque não podia falar Nkisi. Esta


é outra questão, porque ao falar Nkisi no Brasil, as pessoas têm mais
dificuldade em localizar seu significado, mas se fala Orisà (Orixá) todo
mundo sabe e quando você diz que o Orisà não é Nkisi aí que embaralha
tudo. Importante a quem é da religião atentar para esta questão. Algumas
pessoas pensam que tanto faz falar Ogun ou Nkosi que está falando a mesma
coisa, e não está.

3  Entidades que trabalham na Umbanda

290
NKISI, ORISÀ, SANTO

Dentro do Kandomblé que é uma religião cíclica, e como tudo que


vem da África, busca-se valorizar os mais velhos. Na África, as pessoas não
envelhecem fisicamente só. As pessoas são ensinadas, desde a mais tenra
idade, a adquirir conhecimento, sabedoria. Então quando envelhecem,
chegam na velhice com muita bagagem, sendo efetivamente uma referência
para aquela comunidade, para aquela aldeia. Então ele acumulou idade,
conhecimento e sabedoria.

Pensando no contexto do Reinado, você pode ficar cinquenta, setenta


anos dentro do Reinado e não aprender nada, dentro dessa profundidade de
ensinamentos. É possível perceber as pessoas idosas que envelheceram o
corpo, mas mentalmente, emocionalmente, não conseguiram acompanhar
o passar dos anos no sentido do crescimento, a mente que produz tudo. Se
você tiver uma mente saudável, mais saudável vai ter seu corpo, mesmo com
todas as deficiências que essa máquina que se chama corpo humano tenha.
Vemos as pessoas acumularem os anos, mas sem acúmulo de sabedoria.

O sentido do mais velho é esse. No sentido de língua, quando alguém


chega para mim dentro do Kandomblé e fala “benção”, eu falo “Deus te abençoe”,
porque eu acho que é coisa que a gente aprendeu dentro do catolicismo, agora,
se falar pra mim “Makuiu” eu respondo “Makuiu kuna N’Zambi”.

Eu sou iniciada no Kandomblé de nação Angola-Muxikongo, então


eu cultuo Nkisi e vou ensinar na minha casa que a gente não cultua Santo,
cultuamos Nkisi, e o que é Nkisi? Se trata da própria natureza Então, por
exemplo eu tenho um bisavô de santo de Nsumbu, Vô Gitadê já falecido,
que é o Nkisi da terra e ele não gostava que cuspisse no chão porque estaria
desrespeitando Nsumbu, que é a própria terra. Tem coisa mais linda do que
isso? Ao invés da gente estar pelejando para o povo aprender jogar lixo na
lixeira, eu tenho uma religião que me ensina isso. Eles sabem que tem que
pisar na terra com cuidado, porque todos nós somos natureza, nós temos
que saber como é que pisa. Você não chega pisando duro, porque a sua
insatisfação, é sua insatisfação. A terra é mãe, não pise nela mau humorado,
não jogue nela a sua raiva. O que ela faz é te abraçar, o que ela faz é te dar
alimento. A água que corre nos rios corre por cima da terra. Então Nkisi é
a própria natureza, o Santo é a Igreja que nos traz. Nós aprendemos que
não somos Santo, agora podemos nos santificar dentro do entendimento do

291
Eu tenho a África dentro de mim

que seja a perfeição, ou seja nós podemos nos aperfeiçoar, mas aperfeiçoar
significa se respeitar e respeitar o outro.

Dentro da minha religião, eu vou batalhar pelas línguas ancestrais. Não


é benção meu filho, benção é na Igreja, padrinho e madrinha é na Igreja,
Santo é na Igreja aqui nós temos Nkisi e nós somos do povo Bantu de nação
Angola-Muxikongo, nós temos Nkisi. Mas, nós temos nossos irmãos Nagô
que podem ser Ketu, podem ser Jêje e lá eles cultuam Orisà. Não é a mesma
coisa, mas pra isso é preciso aprender e estudar.

No Kandomblé de Angola, temos como divindade o Nkisi, no plural


chamamos Minkisi, palavras na língua de Angola, no kimbundu, para aquilo
que todo mundo conhece como Orisà. Mas o que que são os Minkisi? São
os seres que governam esta natureza. Há uns estudiosos que dizem que os
Orisàs viveram na terra e cultuavam os Minkisi, que são a própria natureza.

De acordo com as histórias da criação, quando se formou a terra, houve


ensino sobre a formação da água? Como se deu este ensino? À partir de
qual ótica? Vivenciamos a escassez de água doce, e a falta desta água, nos
indica que a divindade responsável por ela está indo embora. Tudo isso está
relacionado à maneira como tratamos a natureza e nos relacionamos com
ela. A nomeamos Mam’etu N’Dandalunda na nação Angola. É ela quem rege
as águas doces... E se tem acontecido a seca de rios, seca de cachoeiras, é
porque nós não estamos sabendo respeitar essa natureza.

292
NKISI, ORISÀ, SANTO

Não é ensinado ultimamente sobre o respeito para entrar e sair dos


lugares. Certa vez alguém falou que não pede licença pra levantar, e por não
ser um costume, pode-se pensar “Que bobagem pedir licença”. Da mesma
forma acontece na natureza. Antigamente existiam muitos lugares que era
brejo e o ser humano, na ânsia de querer ocupar todos os cantos acabou
tampando estes espaços, mas o que é o brejo? É um berço de água. Felizmente
hoje temos conseguido voltar a pensar e a respeitar estes lugares da natureza.

Existe uma infinidade de Minkisi. São mais de quatrocentas divindades,


mas nós cultuamos dezesseis. É possível perceber a organização a
organização e o auto-cuidado para que tivéssemos as que cultuamos hoje.

Ao chegarem no Brasil e encontrarem elementos simbólicos de Ngira


ou Esù como o tridente, o falo, dentre outros, houve uma relação direta com
objetos diabólicos, sendo remetidos a coisas do mal, mas ninguém fala nada
de Poseidon que tem tridente, o que é curioso. Ngira para os povos Bantu e Esú
para os povos Nagô, tem como domínio as encruzilhadas que são o nó, o lugar
de decisão. Ao chegar em uma encruzilhada eu tenho que decidir se eu vou
em frente, se eu volto, se eu vou pra direita, se eu vou pra esquerda. Então é a
luta, é um lugar de decisão, de desafio de luta e de superação das adversidades.
Eu tenho que decidir, e seja o Nkisi ou Orisà, nenhum deles fica sentado lá na
encruzilhada esperando as pessoas passarem pra lá e pra cá. Se trata do senhor
dos caminhos. E quando precisa ele vai com a gente mesmo que a gente tenha
feito a opção errada. Era para eu ir a direita eu fui em frente, ele aí comigo, até
eu mesma descobrir que eu deveria ter virado para a direita.

293
Eu tenho a África dentro de mim

Então a encruzilhada é um lugar de tomar decisão, e as pessoas nem


sempre gostam de tomar decisão. Preferem ir empurrando com a barriga.
Vai deixando pra hoje mais tarde, pra amanhã, até virar uma bola de neve,
até a coisa não ter uma solução que podia ser mais fácil, mais plausível.

É importante levar em consideração as relações de poder que estão


envolvidas na divisão de classes e que imperam dando força para as
questões racistas e preconceituosas, sendo necessário que de alguma forma,
consigamos subverter isso, trazendo para as questões práticas aquilo que
temos de valor ancestral. Eu por exemplo, na minha interpretação, eu penso
que a Umbanda é Nagô. Porque a Umbanda não fala Nkisi, ela fala Orixá. Na
Umbanda não se fala Nzazi, se fala Xangô. A Umbanda não fala Matamba ela
fala Iansã. Popularizou-se a nomenclatura nas palavras yorubá e pouco ou
nada se sabe sobre as divindades da nação de Kandomblé Angola.

Imaginem a situação em que alguém está na Praça Sete, e resolve pedir ao


Ngana Nkosi. Ngana significa Senhor, Nkosi é o Senhor que abre os caminhos.
É o nome do Nkisi que abre os caminhos que para os Nagô é nomeado Ogun.
Assim que nós aprendemos dentro da nossa raiz de matriz africana.

Na coordenação dos Reinados, das casas de Umbanda e das casas de


Kandomblé, estão os capitães e os zeladores, popularmente conhecidos como
mãe ou pai de Santo que são verdadeiros xamãs seja no Reinado, na Umbanda e
no Kandomblé, porque eles têm os conhecimentos ancestrais de cura e cuidados
que estão relacionados ao uso saudável da natureza e que amparam as pessoas.

Tudo isso está relacionado ao modo de vida, às tradições e aos saberes


e fazeres do povo negro que com seus conhecimentos conseguiu manter
através dos séculos sua vivência, que temos hoje a honra de dar seguimento
em tão importante e valiosa herança ancestral.

294
Pellegum
ABSTRATO É O SER
DO OUTRO
Eu tenho a África dentro de mim

Outro dia estava conversando com uma menina que fez a graduação em
arquitetura e agora está fazendo uma pós e ela está querendo mostrar o olhar
do povo para a arquitetura, ela me pediu uma opinião sobre isso. No final da
nossa conversa, a fala dela para mim foi assim - e eu repito aqui sem nenhuma
soberba: “você me entendeu, a minha orientadora ainda não me entendeu”.
O que ela estava querendo na conversa que nós tivemos? Ela estava querendo
alcançar o abstrato do concreto. Vamos imaginar assim: a arquitetura é o
concreto, ou seja, o palpável, o que se pode pegar, o que se pode mensurar
pelas leis da física, da ciência, da academia. Eu acabo participando, vivendo
no concreto, que me puxa, mas o que me leva, o que me impulsiona na minha
caminhada é abstrato. E o que é abstrato no meu modo de ver? É o outro, é
o ser do outro. É compreender o outro, é buscar o sentido da vida a partir,
muitas vezes, das ideias, dos pensamentos do outro e quando esse outro pensa
a frente de mim eu tenho que argumentar minha maneira de pensar mas
também ouvir o outro. E é isso que precisava acontecer. Parar, ouvir, abstrair
e perceber que se nós precisamos de ter algo, pelo menos o mínimo para
sobreviver, no mundo material, precisamos de muita força para existir no
plano espiritual e na convivência é que se faz isso.

Gentilmente agora a humanidade começou a descobrir que se nós


matarmos a natureza, estamos matando a nós mesmos. Isso depois de muito
fogo, muito incêndio, muita mineração, muita poluição, muita devastação.
Hoje muitos já compreendem que se nós destruirmos a natureza, nós
estaremos nos destruindo porque nós fazemos parte dela. Hoje. Os africanos
já sabiam. Nós que trazemos esse legado desses ancestrais, nós cultuamos
a natureza o tempo todo. Lembrem-se do que estou dizendo: mover o céu, a
terra, o mar e o ar. Esse respeito, esse entendimento, essa aceitação, já vem
com os nossos ancestrais. Por isso, voltando à conversa com aquela aluna da
arquitetura, eu achei assim o máximo, ela estar tentando mostrar o abstrato
no meio do concreto, ou seja, existe arquitetura, mas foram as mentes de um
ser que as criou ou que as cria. Quando a gente olha para uma construção,
por exemplo Brasil colônia, tem muitas delas aqui em Minas, como casarões
que são lindos, mas eles foram feitos pela mão de obra escravizada, mas esse
ser, ou essas existências, não está no contexto da moldura do casarão. E tudo
que era feito pelo pobre - a moradia onde o pobre e o preto moram era e é
tudo casebre - é tido como uma construção sem valor, sem ciência.

298
Abstrato é o ser do outro

Há quem diga que o que fazemos é folclore. Esta é uma palavra de


origem inglesa que significa saber popular. Mas tanto a palavra folclore
quanto o saber popular foram caindo numa situação de desprezo. Quando
alguém diz “isso é folclore”, normalmente é para algo que não se dá valor,
não se dá valor como conhecimento. Eu não gosto de usar essa palavra, nem
mesmo a palavra Congado para nominar o que eu faço. Eu faço Reinado
porque existe no que faço fundamento, mandamento e sacramento. São essas
três coisas que consolidam uma busca de conexão do nosso eu, da nossa
divindade para que, estando bem, nós possamos fazer o que nós viemos
fazer, ao que nós damos o nome de missão. Missão. Cada um recebe a sua,
seja ela considerada de grande importância ou não.

Toda pessoa que nasce ela tem uma missão na terra, o peso para ela
descobrir o que é, ela tem que conectar tem que estar em conexão com seu
superior ou criador, da forma que achar melhor. Nós que fazemos Festa do
Rosário, nós chamamos N’Zambi que é o criador. Há quem chame de Tupã,
de Deus, de Oludamare, de Alá, enfim o nome que quiser dar a esse ser não
importa, o que importa é o caminho que se faz, que se trilha para encontrar
esse ser dentro de nós mesmos e se ligar a ele de forma tão profunda que é o
que nós chamamos hoje de conexão. Se você não estiver conectado, você não
estará ali. Uma das riquezas do povo africano foi não ser contaminado pelas
ideologias do evangelismo e nem do islamismo no sentido da destruição de
ser obrigado a falar e fazer como cristãos e islâmicos sob o risco de morrer.
O povo africano soube arriscar-se em parecer viver essas ideologias, para
não morrer as suas verdadeiras crenças e modos de conexão. Eu estou
dizendo desse povo africano que é parte do mundo, os povos africanos
espalhados pelo mundo inteiro nos ensinam como viver bem tudo aquilo que
a gente aprende com eles. Aprende essa busca constante do Deus interior
de estar bem e se conectar com o Criador e aí com os demais, os demais
seres de quem somos irmãos e irmãs pois temos um Pai em comum. Se não
soubermos respeitar um irmão ou uma irmã, essa conexão com o Criador
também fica falhas ou não se faz, porque eu não posso dizer que amo o
Criador e odeio meu irmão, é contraditório. Se a minha fala com o Criador
é de amor, mas minha fala é de destruir o outro. uma coisa contradiz a outra
porque eu não vou amar esse Criador na pessoa do outro aquele que se
convencionou chamar de irmão.

299
Eu tenho a África dentro de mim

A opressão, o conceito religioso, faz as pessoas entenderem que


aquilo que o outro faz, que eu desconheço - porque eu não aceito porque
desconheço -, eu já faço um conceito antes de entender. É um preconceito.
As pessoas têm um conceito antes de entender como se faz ou porque se
faz. A própria tradição pode se tornar opressão. O Reinado é tradicional
e o que trabalhamos é um saber tradicional. Mas eu lanço a seguinte
provocação: não podemos e não estamos nisso porque isso é tradicional.
Dizer que uma coisa é tradicional, não necessariamente significa que essa
coisa te conecte a alguma transcendência. Dizer que você está em alguma
coisa que é tradicional, só pelo fato de ser tradição, não significa que ela
tenha capacidade de te reconectar espiritualmente. As experiências da
espiritualidade, elas são para além da tradição, e são elas que, na verdade,
têm que nos fazer mover. Por isso, é preciso ter olhos de ver e ouvidos de
ouvir. Valorizamos as nossas tradições, não há dúvida. Mas a prioridade é a
espiritualidade, é a nossa reconexão com o sagrado, com a transcendência,
seja qual for o nome que damos ao ser criador. O que nos move tem que ser
para além da tradição. A tradição é um apontamento, uma consequência
desse fazer que vem de Tempo, de tempos. Mas não é a tradição que é o
fundamental da coisa. Quem faz por tradição, pode ser que esteja fazendo
só a repetição, só repete, sem compreender, sem se conectar. Nosso culto,
ele é vivo. Não é todo dia ou todo ano a mesma coisa. Mas, volto a falar, só
quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir que vai perceber. Cada hora, cada
minuto é um trabalho espiritual, repito, de grande envergadura que está se
fazendo, mas que é a maior parte do dia. Se a pessoa não se prepara - e não
se preparando, não se conecta - não tem condição de efetivamente realizar.

Por isso nós somos guardiãs e guardiões sim. Guardiãs e guardiões de


um saber que é vivo e atual. E se nós somos guardiãs e guardiões do culto,
temos que ser guardiãs e guardiões da linguagem, mesmo porque, para se
estabelecer uma conexão, talvez ela seja mais forte se estiver sendo falada
na língua originária, ou na língua na qual os ancestrais se expressavam.
Nós negros e negras, descendentes de negros e negras escravizadas, nós
não tivemos a oportunidade de guardar nem o nosso nome. Eu me chamo
Pedrina Santos, mas não é o nome dos meus ancestrais. Santos vem de
algum senhor ou quer dizer que meu ser pertence aos santos. O que o
Kandomblé faz muito bem, no meu modo de ver é te dar um outro nome, e
um outro nome em língua africana, que é a dijina. É difícil fazer isso hoje em

300
Abstrato é o ser do outro

dia… Eu vou dizer assim: o tempo… Porque eu compreendo que quando os


mais velhos vão morrendo, e não conseguem passar, aí vai se perdendo…

A maioria das Irmandades, inclusive em Oliveira, acha que Irmandade


e Festa de Nossa Senhora do Rosário é da Igreja Católica, e isso faz uma
diferença enorme. Não é a festa da Igreja Católica não1. A Igreja caminhava
lado a lado com os escravocratas exercendo assim um poder opressor sobre
os escravizados, obrigando-os a reverenciá-la para obter permissão a fim
de realizarem suas festividades, sem correr o risco da chibata ou da morte
horrenda no tronco. Dessa maneira, a Igreja adentra o Reinado. A partir daí,
é um universo de coisas que poderiam ser entendidas e compreendidas de
maneiras diferentes, do que na verdade se é… Não estou dizendo que nós
não devemos ou que não temos a fé nos santos cultuados pela comunidade
da Igreja Católica. E mais, eu sou uma Capitã e, quando falo, estou falando
por mim, não estou falando em nome de ninguém da Irmandade de Oliveira,
estou falando em meu nome e eu assumo o que estou falando. Pode ser que
os demais irmãos e irmãs do Rosário não pensem mais desse jeito. Eu não
vou brigar com o mundo, porque o mundo hoje não entende mais qual é
essa coroa que eu estou louvando. Não compreende e, às vezes, nem quer
compreender… Pois há uma grande diferença entre quem não sabe e quem
não quer saber. A gente vive no mundo de hoje, que as pessoas não querem
saber. O que que aconteceu com muitos Capitães? Essa coisa da Festa do
Kongo, isso é tão profundo, que a gente que é Capitão não pode morrer
levando o saber, mas também tem que ter o cuidado, porque não pode passar
esse conhecimento para qualquer mão, para qualquer cabeça, sob pena de
a gente ser cúmplice dos erros que aquela pessoa cometeu com aqueles

1  Ver argumentação completa sobre esse tema no capítulo 3.

301
Eu tenho a África dentro de mim

saberes que são tão profundos. Então, o que aconteceu: muitos preferiram
morrer sem repassar, de tão profundo que isso é.

Os negros africanos sempre foram tidos como pessoas de menos


inteligência e capacidade, e eles na verdade, eles sempre souberam fazer as
coisas para inglês ver. Eu, por exemplo, quando vou falar para um público de
acadêmicos, eu falo, mas eu falo com tristeza. Porque com tristeza? Porque
era pra eu estar falando essas coisas para o povo de Reinado, que muitas vezes
não tem mais essa formação. Mesmo porque, pra poder fazer isso, é preciso
sair do seu lugar de comodismo. Não pode estar acomodado em algo que não
vai te fazer mudar. Se for assim, você não vai andar. Eu senti uma tristeza tão
profunda no ano passado [2019], quando eu vi na rede social Facebook um
vídeo de um terno cantando assim: Caneta azul, azul caneta, caneta azul, azul
caneta… Dá para compreender a dimensão de um fato como esse?

Penso que fica mais fácil perceber que uma coisa é tradição, uma coisa
é congado e outra coisa é Reinado. Tudo isso conflitua muito hoje em dia.

Voltando à questão da linguagem, em qualquer Irmandade dentre


as mais antigas, o capitão tinha que saber cantar na língua dos africanos,
senão ele não era aceito como capitão, isso era uma imposição. Era regra,
aliás. Meu pai exigia que a gente cantasse mais olelê do que outras toadas
porque com o passar do tempo foi crescendo o espaço do louvor, ou seja, de
toadas com as quais se está louvando o santo, o santo da igreja, e que já não
têm mais olelê nenhum. Não é só o massambike que tem que cantar olelê,
o povo tem que cantar olelê, o catopê tem que cantar olelê. Eu hoje em
dia não sei o que fazer, porque as pessoas hoje estão mais interessadas em
aprender inglês, elas não querem aprender Kimbundu ou Kikongo. Pensam
que o inglês é o que vai dar projeção, vai melhorar o currículo, vai promovê-
las no emprego ou aprovar na primeira etapa de um processo seletivo. Por
outro lado, saber Kimbundu ou Kikongo, pensam que isso não vai ajudar
em nada no sentido do ter e do projetar-se profissionalmente. Em que pese
ainda o fato de que muitos negros são todos evangélicos e entendem que
tudo o que é de negro não presta, que a nossa religião é do demônio. Como
é que eu vou dizer: “Olha, o seu Deus é o mesmo meu e ele é o Criador, ele
é a força cósmica do universo”. Se eu digo em N’zambi, estou dizendo força
cósmica do universo. Cada um é livre para fazer sua escolha. Cada um é livre

302
Abstrato é o ser do outro

para escolher qual caminho tomar. Eu posso dizer que escolhi o meu e estou
super, super, super, super, super feliz! Realizada dentro desse meu caminho
nas religiosidades afro-brasileiras. Porque a coroa que estou louvando,
repito, não é nem da monarquia opressora, nem da monarquia africana, é
uma coroa transcendental.

E aí, vai indo. Tem quem vai sempre achar que tem coisas mais
interessantes para fazer, que têm ocupações maiores a fazer, vai até entender
que precisa viver do trabalho e esquece que esse seu fazer é que dá vida. As
pessoas não se alimentam só daquilo que ingerem pela boca. O ser humano,
inclusive, eu penso que o Criador nos possibilita esse isolamento social em
face da pandemia por Covid-19 para começarmos a perceber justamente isso.
Nós precisamos nos alimentar muito mais da transcendência, muitas vezes
mais do que da situação material. O material é passageiro e depois que você
enche bem a barriga, e aí o que acontece? Você sente que passou do ponto
e vai dormir. Entra numa espécie de letargia. Fica inativo. Ao passo que
quando você se alimenta e por isso a Festa do Kongo nos alimenta, alimenta e
realimenta a cada ano, você procura ou você passa a ter uma direção, coisa que
a maioria das pessoas na sociedade hoje não tem. Não tem um norte, não tem
uma direção. As pessoas da humanidade estão sem rumo e só pensando no ter.
E são situações e vivências como essa que nos ensinam e nos possibilitam ser.
A ser e nos integrar, nos conectar para além do concreto.

Eu percebo isso, a necessidade da humanidade da terra precisa crescer.


Principalmente nos grandes centros urbanos. Há uma correria louca, o viver
virou um enlouquecer. As pessoas tomam pílula para se manter sorrindo,
porque elas não sorriem mais. Porque a vida delas é uma tristeza mesmo,
angustiante. Dos mais pobres até os mais ricos, porque aí você percebe que não
é a questão do ter. A pandemia de Covid-19 que acometeu o mundo em 2020

303
Eu tenho a África dentro de mim

serve para buscar o isolamento, que deveria ser um tempo também para pensar,
conectar-se e crescer, mas só aumenta a sensação de que estamos perdidos das
formas de se relacionar com o outro. Hoje, até os relacionamentos, já afetados
e precarizados por muito tempo, são relacionamentos egoístas. O sentimento
imperante é: “eu fico com quem vai fazer a minha vontade, eu que mando, eu
penso em mim, eu quero ser feliz”. “Eu quero ser feliz mesmo que o meu jeito de
fazer a felicidade esmague o outro”.

Penso que o isolamento nos serve, a nós seres humanos, para pensar.
As pessoas, em primeiro lugar, precisam se reencontrar, se estabelecer ou,
no mínimo, se perguntar: “quem eu sou?”, “o que eu estou fazendo aqui?”,
“o que realmente é importante?”, “de que vale aquela correria louca pra eu
ter se agora eu não posso nem sair de casa, nem consumir?”. É isso que as
pessoas mais aprendem nesse modelo de sociedade do ter: “eu tenho que
consumir”, “se eu não consumir eu não sou ninguém, eu não serei amado”.
Agora, no contexto do isolamento social imposto pela crise sanitária, as
pessoas estão tendo que aprender a viver consigo mesmas, muitas vezes se
olhando no espelho e vendo o que não gostam, muita gente não gosta da
própria cara porque não aprendeu a se amar. Porque quer ser como são as
pessoas na TV e não como se é na vida vivida.

As pessoas aprenderam que têm que mentir, fingir, falsear aquilo que
se é para ser aceito. Esse mundo louco. Esse tempo me fez lembrar muito
do cantor Sílvio Brito que cantava assim: “Tá todo mundo louco, oba! Tá
todo mundo louco, oba!”. E também de Raul Seixas e sua canção “O dia que
a terra parou”. A pandemia já é uma realidade, vai permanecer ainda por um
tempo e mais outras coisas virão. Nós já sabemos. Mas nenhuma delas vem
com o intuito de nos prejudicar. É com o intuito que nós procuremos nos
reencontrar. Se eu não sou capaz de conviver comigo mesma, para que eu
vou me aventurar com o outro? Se eu não me suporto, como é que eu vou dar
conta de suportar o outro? Se eu não gosto de mim, como é que eu vou poder
gostar do outro? E se eu sou o centro do universo, eu nunca me importei com
os outros, para que eu preciso viver fora. Para que eu preciso sair da minha
porta fora, se o outro não importa. Se eu só olho para mim mesmo e para o
meu umbigo. E o universo gira em torno daquilo que eu quero. Daquilo que eu
penso. Das conquistas do ter e não do que eu estou procurando ser.

304
Abstrato é o ser do outro

Quem sabe essa parada não pode servir para muita gente pensar e
refletir e, com isso, se reencontrar. E aí sai outro ciclo. Um dia vai haver
um renascimento. Nós vamos renascer, algo vai sair de dentro. E outra
coisa: aquele que é conhecido como Jesus disse que haveria um tempo
que teríamos que aprender a amar a Deus em espírito e verdade e que
deveríamos erigir uma igreja, ou seja, um templo dentro de nós mesmos.
Eu entendo que esse tempo chegou. Porque até nós que entendemos que o
tempo é a própria natureza, nós também estamos permanecendo isolados.
Os nossos pensamentos e os nossos sentimentos precisam melhorar para
não contaminar o universo. Porque o que nós estamos fazendo aqui na terra
é contaminar o universo, poluir o universo, poluir uns aos outros, não é só
com emissão de gases tóxicos. Pior que a emissão de gases é a toxicidade de
nossos pensamentos e de nossos sentimentos malsãos.

A alegria é de todos nós. Todos nós. Que nós nunca nos esqueçamos
disso: nós somos dois domínios. E cada um com a sua força como no
passado, com seu saber e com a sua sabedoria. E nós estamos aqui num
momento em que o mundo e nós todos e todas estamos precisando muito de
apoio. O objetivo é trocar essa informação: ninguém é tão ignorante que não
possa doar nada a ninguém, nem tão sábio que não possa saber mais. Aliás,
em nossas religiões de matriz africana, a gente entende que neste mundo a
gente aprende, aprende, aprende e morre sem saber, porque é muito vasto,
é muito grande. E que isso nos ajude a nos inteirarmos, mesmo na natureza
entendemos que fazemos parte dela cada um na medida do possível seja
um vazio na boa convivência dentro da sua casa e você não ignorando, nem
desprezando a ciência, mas, buscando soluções alternativas.

305
EU TENHO A ÁFRICA
DENTRO DE MIM
Eu tenho a África dentro de mim

Certa vez minha filha Ester me apresentou a seu colega senegalês


Ousmane Sané. Eu não sei porque, mas quando encontro com um africano
meu coração bate mais forte. Me dá uma alegria imensa. Esses encontros
me parecem reencontros. Nesse reencontro expressei a Ousmane minha
preocupação em manter vivos os conhecimentos de nossos antepassados
aqui no Brasil. E foi o Ousmane quem me disse que eu não precisava me
preocupar com isso porque eu era a própria África: “eu vejo África na
senhora”. Ele me fez lembrar de um poema chamado Africanizando, escrito
pelo poeta moçambicano Morgado Mbalete que diz:

Quando o meu sonho me ilumina eu escrevo áfrica.


África me faz e me rodeia.
Eu amo essa gente cheia de áfrica.
O chão da áfrica tem cheiro de mim.
Na África, todos os caminhos nos levam às fontes da terra e às origens do mundo.
E o que me torna africano?
É o amor pela terra e pela cultura.
A terra me ilumina.
A cultura me encanta.
Minha alma é atravessada por imensos rios, como rio nilo, que nasce no meu corpo.
Em mim, há quedas de águas, sobre mim, caminham cursos de rios. a maioria dos rios da
África nasce no planalto dos olhos.
Por isso, eu caminho de mãos dadas com a flora e a fauna.
Sou savana africana de mim mesmo.
A poesia africana é para se vestir dela e correr poemas pelo mundo.
E eu escrevo para justificar a poesia africana.
Não acredito na riqueza material fácil e rápida para todos os africanos.
Mas acredito no ideal de riqueza espiritual através da promoção da cultura.
Eu hoje escrevo o coração da áfrica.
Nunca me separo da áfrica porque a trago dentro de mim.
África é dentro de mim.

Do encontro com Ousmane e das palavras de Mbalete, chego a


outro chamado do povo africano: ver por dentro. Então eu nasço no meio
desse povo que tem coisas maravilhosas de conhecimento, de sabedoria,
especialmente de comunhão, de comunidade. A conversa ao redor da
fogueira na vida comunitária africana muitas vezes passou a ser a conversa

308
Eu tenho a África dentro de mim

ao redor do fogão de lenha. Agora não tem mais o fogão de lenha. O fogão
a gás por si só já é frio, e o frio adentra as pessoas. As pessoas se sentavam
à mesa para fazer refeição junto da família, coisa que não acontece mais,
nem aos domingos. Agora, as pessoas costumam mandar mensagem para a
outra que está do lado, está no outro cômodo, porque perderam a percepção
do comum como o real do falar, porque quando se fala, um olha no olho
do outro e percebe. Percebe alegria, percebe tristeza. Por isso eu sempre
conclamo a todo mundo: passem a olhar mais nos olhos, porque olhando nos
olhos você sabe se a pessoa está falando a verdade ou não. Até a psicologia
ensina isso, que quando a gente não está falando a verdade, a tendência da
gente é desviar o olhar para outra direção.

Olhar no olho, compartilhar da comida, viver e ser em comum. Fazer


a vida é fazer também conhecimentos e transmiti-los. A transmissão de
conhecimento através da oralidade é da tradição africana. É assim, de
geração em geração, que a história verdadeira de diversos povos consolida-
se entre os que são treinados para perceber tamanha beleza. Meu coração
se emociona e eu fico admirada de ver uma clareza de percepção dessa
beleza que intelectuais de diversas formações - reinadeiros ou não - estão
alcançando e na abrangência que isso está ganhando em alguns lugares.
Daí vem outra coisa que eu admiro muito nos povos africanos é que eles
interagem com a natureza, ampliando a comunidade também para outras
existências, os animais e as plantas, as pedras, as águas, as montanhas. Essa
interação com a natureza, os povos africanos já sabem. Na minha opinião,
eles têm uma sabedoria, que a ciência mais evoluída de hoje não sabe.
Isso eu tenho certeza. Aqui na nossa modernidade - embora eu sempre me
pergunte que modernidade é essa - é bem diferente. Não posso falar mal
dessa modernidade pois é graças a ela que, muitas vezes, nós podemos ver
e ouvir pessoas que já se foram. E quantos dos nossos e das nossas foram
embora sem a gente saber seu valor real, sem sabermos da sua importância,
da sua fala, dos seus ensinamentos.

Atrás de morro, tem morro. E nós estamos desbravando nosso caminho,


não é mukueto Tukano1, como se fazia antigamente, no meio dos matos.

1  Dirige-se a Álvaro Tukano, com quem dividia a mesa de abertura do semestre da Formação
Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG (2014).

309
Eu tenho a África dentro de mim

Desbravando o mundo dos europeus e estamos conquistando sim, esse


nosso intento, esse nosso louvor àqueles e àquelas que, reafirmamos, estão
presentes! Eles e elas estão conosco porque nunca nos abandonaram. A
nossa crença é essa: o negro sempre se comunicou com o plano divino,
através do canto, do tambor e da dança. E o negro sempre fez e acreditou na
possibilidade desta comunicação depois da passagem do plano físico. E por
isto, nestes nossos cantos, nós também estamos reverenciando estes nossos
entes queridos... estes nossos antepassados. Por isso é preciso sempre cantar
àquela que é rainha das águas que é a senhora da vida:

Ô Santa Manganá, no dya diambe kizomba, ô Santa Manganá, gundelela


N’zambi iô katisá
Que significa:
Ô Senhora do Rosário, hoje eu vim te festejar. Ô Senhora do Rosário, pede a
Deus pra nos ajudar

E é assim que nós vamos indo: caminhando e cantando, festejando e


glorificando no acontecimento da graça, no acontecimento deste saber, que
nós não adquirimos nas escolas nem nos livros, mas nos sentimos honrados,
muito honrados por sermos os continuadores e as continuadoras desse saber.
Esse evento me lembra bem a história, que cada um de nós tem a sua, da
minha infância. Eu costumo dizer assim que eu nasci na senzala, fui até a casa
grande, mas não esqueci as minhas origens da senzala. O que que eu quero
dizer? A senzala, para mim, não no sentido pejorativo, mas a senzala que era
o grande centro de conhecimentos das pessoas negras escravizadas em que
faziam inúmeras trocas. Mas esses conhecimentos, que muitos chamaram de
populares, foram ridicularizados. Dos poucos negros, menos de um por cento
na estatística, que têm acesso à universidade ou mesmo que têm acesso ao
segundo grau, eles aprendem dentro das escolas e das universidades que todo
esse conhecimento é ridículo, que isso não passa de superstição.

310
Eu tenho a África dentro de mim

Quando eu digo, que os africanos sabiam do DNA, isso não é uma


metáfora. Todo mundo já ouviu falar que se pegar uma roupa, se pegar
um fio de cabelo, se pegar uma guimba de cigarro, você pode fazer mil e
uma coisas com a pessoa que é sua dona. Isso já foi ridicularizado. Alguns
dizem: “isso é coisa do demônio, isso é macumba, isso é maldade”. Mas todo
africano sabia que quando ele tinha um fio de cabelo, ele tinha a pessoa
inteira. Quando ele tinha a roupa, principalmente se ele tinha ali algum
suor, ele tinha poder sobre uma pessoa. Esse conhecimento já foi muito
ridicularizado. Entretanto, o que é chamado de ridículo é um conhecimento
e hoje podemos afirmar isso, porque ali estava o DNA da pessoa. Os
ridicularizadores diziam: “os africanos são um conjunto de povos atrasados,
coitados!”. Dentre as inúmeras formas de racismo que já sofri, eu já ouvi:
“Coitados de vocês! Se vocês não viessem aqui pro Brasil, não fosse isso,
estava todo mundo perdido”.

Não tem nem um mês que eu peguei um táxi no centro da cidade de


Belo Horizonte, porque fui levar umas compras que não dava para eu ir de
ônibus como sempre faço, eu escutei do motorista esse tipo de injúria. Ele
começou a falar, comprovando tudo o que nós ainda enfrentamos em termos
de preconceito. Ele começou dizendo que mora não sei aonde, mas que todo
mundo de lá está indo para Goiás, porque lá tem emprego e falta mão-de-
obra porque o povo de lá não gosta de trabalhar. De repente ele começou a
falar de Angola. “Assim é quem vem lá de Angola, coitado, coitados! Eles
não têm neurônio direito. Você vai lá de manhã, ensina ele a rodar, você
chega lá de tarde, ele está pelejando pra ver se lembra como é que foi que
você falou. Sabe por que? Porque eles só comem farinha”. Isso não tem um
mês e estamos em 2014. Aí eu falei assim - e olha que eu já melhorei muito
no meu trabalho de ter que letrar as pessoas sobre racismo: “Aqui, deixa eu
dizer ao Senhor: eu já conheci muitos angolanos acadêmicos. Até alguns
deles na UFMG que são doutores e doutoras em diversas áreas. E oh, deixa
eu falar com o Senhor, se o Senhor não sabe, todo diamante do mundo, vem
de Angola e essa guerra civil que teve lá, foram os brancos que patrocinaram
para arrasar com o povo, que é um povo que, um ou outro, é natural que
tenha as suas dificuldades, porque aqui nós também temos”. O homem
foi ficando tão sem graça e ele falou, “Ah, pois é, mas eu também sou lá
do norte de Minas eu também já comi muita farinha”. E foi aí que eu falei
“Então o Senhor já queimou os seus neurônios?”

311
Eu tenho a África dentro de mim

É uma grande luta preservar saberes em meio a esse tipo de violência.


Tem muita gente que fala que os africanos já se escravizavam uns aos outros
para justificar ou minimizar o tráfico de pessoas humanas na condição de
escravizadas. Mas na história de todo o povo, sempre houve guerras. E os
africanos que escravizavam os outros eram vencedores de guerra, e não
tinham aquele fito de torná-las mercadorias numa lógica de desumanização.
Ao contrário, tornar menor ou inferior o outro era ritualmente importante
dentro das lógicas dos reinos e não era só por dinheiro, só pelo ter, só pela
ganância. Os escravizados, nesse contexto, eram vencidos de guerra. Então,
nessa condição, de prisioneiros de guerra é que, por exemplo, as pessoas
eram dadas em garantia por uma dívida qualquer. Rapto individual ou de um
pequeno grupo de pessoas no ataque a vilas também eram guerras locais.
Troca de um membro da comunidade por comida, como pagamento de tributo
a outro chefe tribal. Com muita tristeza, por exemplo, a troca de um membro
da comunidade por comida ainda acontece em algumas regiões do Brasil até
os dias de hoje. Na África pré tráfico transatlântico, eram causas internas
registradas em várias civilizações antigas o que levava à escravização.

Com o tempo, diversas nações africanas ficaram com as suas


economias dependentes do tráfico de escravos e viam o comércio com os
europeus como mais uma oportunidade de negócio. Por isso, o tráfico de
escravos praticado pelos europeus causou verdadeira sangria na África:
alimentou guerras internas cujas proporções eram inéditas até então. A
África é um continente, mas muitos ainda veem ou percebem como se fosse
um país, mas é um continente. E dentro desse continente, por exemplo,
no que hoje é o país Angola, havia vários povos e formas de organização
autônomas. Essas divisões não são só do passado, elas ainda existem como
memória e experiência do presente. Quando Mandela saiu da prisão e

312
Eu tenho a África dentro de mim

foi eleito presidente, ele teve uma dificuldade enorme para montar o seu
ministério, porque ele queria uma coalizão de todos os povos. E é difícil
construir esse tipo de consenso, esse tipo de unidade, o nacional.

Uma das coisas bonitas na Irmandade é isso. Porque cada povo com
suas influências tem a sua maneira de fazer, tem sua maneira de perceber,
não é uma coisa coesa, igual. E, muitas vezes, quem está de fora dessa
lógica tem dificuldade em entender. E se não se respeitar essa diversidade,
é briga na certa. Dá briga. Essa é uma das coisas que as Irmandades do
Rosário trazem até hoje. É tal e qual. As Irmandades, cada uma tem seu
modo de fazer, seu modo de pensar. Os fundamentos, os mandamentos, os
sacramentos, a essência deve ser a mesma, só que cada Irmandade tem a sua
maneira de fazer e quem não entende isso pode criar um problema muito
grande, muito grave. Então foi isso que aconteceu na história.

O tráfico causou essa sangria, alimentou guerras internas, abalou


organizações tradicionais, destruiu reinos, tribos e clãs e matou
criminosamente milhões de negros. Foi genocídio e epistemicídio, tudo ao
mesmo tempo. Matar pessoas e matar conhecimentos. Infelizmente, o ser
humano custa a aprender. Custa a aprender. E, lá no Rosário a gente canta:

Ei nego no Rosário
Custa a perender
Nego no Rosário
Custa a perender

Então o que que aquela invasão dos holandeses, conhecida por todos nós
que estudamos a história do Brasil, quando ocuparam as regiões produtoras
de açúcar no nordeste brasileiro. Para suprir a falta de mão de obra escrava,
em 1638 lançaram-se na conquista do entreposto português de São Jorge da
Mina, e, em 1641, organizaram a tomada de Luanda e Benguela, em Angola.
Argumenta-se que a sobrevivência das primeiras engenhocas, o plantio de cana-
de-açúcar, do algodão, do café e do fumo foram os elementos decisivos para
que a metrópole enviasse, para o Brasil os primeiros escravos africanos, vindos
de diversas partes da África, trazendo, consigo, seus hábitos, costumes, música,
dança, culinária, língua, mitos, ritos e a religião, que se infiltrou no povo,
formando, ao lado da religião católica, as duas maiores religiões do Brasil.

313
Eu tenho a África dentro de mim

Os povos africanos detêm conhecimentos que a civilização ocidental


ainda desconhece. E quando foram trazidos forçada e violentamente para as
Américas, trouxeram junto todo esse conhecimento. Eles e elas não vieram
sozinhos e sozinhas. Eu cresci em Oliveira, sabendo que um capitão do
Rosário jogava um bastão no chão e o bastão virava cobra, o outro cantando
tirava o lenço ou o chapéu que virava um gavião e catava a cobra2. Outra
hora, que esses negros massambikeiros dançavam ao redor da bananeira, a
bananeira dava cacho, amadurecia e eles repartiam. Agora isso tudo fica no
plano do imaginário. Do mesmo jeito há quem ridicularize esta condição.
Dizem assim: “Ah isso é lenda, isso não acontecia não, não vejo acontecer
mais”. É por isso que eu afirmo que a ridicularização dos saberes tem raízes
no preconceito e no racismo. Por isso são tidos como coisa do demônio,
como coisa do capeta, é macumba e feitiçaria.

Tem plantas que são conhecidíssimas e que são pesquisadas desde a


África. Uma planta pode matar, conforme a dosagem. É possível matar a
pessoa e nenhum médico vai saber dizer a causa. Claro que utilizar desse
tipo de conhecimento depende do sentimento, da cabeça e de saber a
dosagem. Porque é como eu sempre digo: “Eu não falo, porque se a gente
conta como é que é, como a gente faz... ah, e depois eu fico sendo cúmplice.
A justiça humana não vai descobrir, mas a justiça divina...”. Então eles têm
todo esse conhecimento. Isso para mim, é manipulação de fluidos, não é
feitiçaria, não é coisa do demônio.

Repito sempre que posso falar sobre esse assunto: “Na história do
faraó lá com Moisés tirando o povo do Egito, tem uma situação dessa, que
os sacerdotes do faraó pegam seus cajados e jogam no chão e viravam várias
cobrinhas... o Moisés joga o cajado dele e vira uma cobra maior e engole
as outras... não é a mesma coisa do capitão que joga o bastão e faz virar
cobra?” Eu achei a mesma coisa e falei “Eu nunca vi a igreja dizer que isso
fosse macumba, que isso fosse feitiçaria, que isso fosse coisa do demônio.”
Aí, o Egito não tá na África? Moisés não foi iniciado nos grandes saberes
daqueles egípcios daquela época? Que todos nós admiramos até hoje as
suas construções, a sua matemática, a sua física? Mas por que que nós, os
“pretinhos do Rosário”, nós é que somos os macumbeiros?

2  A única insígnia nessa época da diferença para capitão era o lenço no pescoço, de
preferência vermelho.

314
Eu tenho a África dentro de mim

Então é por isso que eu crescendo, sentindo e entendendo isso tudo


como uma sabedoria e vendo esse povo ridicularizar ou ser ridicularizado,
vir pra uma igreja e começa a achar que uma benzição pra tirar o sol da
cabeça, uma benzição que joga a brasa viva... uma vez um desses negros
mesmo falou: “Ah mas é claro, se ocê jogar uma brasa ferventada ela vai
afundar, é física”. Fica ridicularizando. Agora eu venho, com muita alegria,
vendo que essa sabedoria hoje está para ser considerada. Ainda tem uma
caminhada longa. Temos uma caminhada longa, mas esse saber tradicional
que já foi desprezado, vilipendiado pelo saber acadêmico, volta pra ver e se
mostrar, porque é isso mesmo, a vida é cíclica. E quando o tempo e a história
demonstram que nós não conseguimos completar esse ciclo, nós vamos
ter que voltar, nós vamos ter que repensar e nós vamos ter que recomeçar.
E é isso que nós estamos vivendo nestes tempos, inclusive com a água. É
esse repensar de respeitar que nós somos parte do que hoje convencionou
chamar de bioma, que o mundo, o planeta, o ser vivo, nós estamos inseridos
nele. Não tem condição de um sobreviver sem o outro, e todas essas formas
de respeito com a natureza vão voltar.

Nós precisamos repensar porque quem não sabe de onde vem,


não vai saber para onde ir. E isso acontece é dentro, conosco que somos
afrodescendentes porque tem gente dentro do reinado que não está sabendo
respeitar e não está querendo aprender. Tem gente dentro da Umbanda,
dentro do Kandomblé que não está sabendo respeitar essa beleza que
recebeu por herança, porque nós recebemos isto por herança. Meu pai e
minha mãe me deixaram essa herança e eu dou graças a N’Zambi. Não ficou
recurso financeiro, mal mal uma casinha para morar, mas ficou essa herança
cultural, esse legado de saber. Como eu disse saí da senzala, porque eu nasci
na pobreza, estou na pobreza e vou morrer nela, passei pela casa grande e o
que eu chamo de casa grande são as universidades, são as faculdades, mas

315
Eu tenho a África dentro de mim

não perdi o sentido da importância daquele tesouro porque isso que eu sei
não foi a academia que me ensinou e dou graças a N’Zambi, de ter sabido
respeitar, considerar e levar, porque a maioria dos negros que frequentam
essa academia fazem como são levados a fazer: a desinteressar totalmente
por aquilo que é da sua origem. Este momento é o momento de repensar
isso já que algumas pessoas perceberam e tiveram o alcance de entender a
necessidade de repensar este caminho, porque um saber não anula o outro,
ao contrário, é da sabedoria que eles devem andar juntos porque na verdade
um complementa o outro.

Há um grande desafio que a humanidade tem: o equilíbrio entre o


pensar e o sentir, porque toda vez que nós agimos só com a mente, só com
o raciocínio, só com o pensar, nós vamos errar. E eu admiro os acadêmicos
ocidentais que reconhecem esse erro na própria academia, ou seja, projeto
que prioriza só o pensar e exclui o sentir. Da mesma forma que vamos errar
quando nós agimos unicamente com a emoção. Então a sabedoria está no
equilíbrio. Isso é uma coisa que os povos africanos sempre trabalharam:
esta condição, esta busca, que é uma busca de conhecimento e auto-
conhecimento para vida inteira.

316
Jamelão
Eu tenho a África dentro de mim

Créditos

Coordenação Editorial
Capitã Pedrina de Lourdes Santos
Luciana de Oliveira

Organização
Luciana de Oliveira
Ester Antonieta Santos

Fotografia
Cyro Almeida

Revisão Final
Luciana de Oliveira

Projeto Gráfico
Amí Comunicação e Design

Ilustrações
Marconi Marques

Diagramação
Talita Aquino

318
Apoio

Pró-Reitoria de Graduação e Pró-Reitoria de Extensão UFMG/Formação


Transversal em Saberes Tradicionais 2014, 2015, 2016, 2017, 2019

Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão de Saberes no Ensino


Superior e na Pesquisa - INCTI/UNB

Edital de Demanda Universal Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais


- FAPEMIG/2018

Coletivo de Estudos, Pesquisas Etnográficas e Ação Comunicacional em


Contextos de Risco - Corisco/UFMG

Fundo Kaiowá e Guarani Paulo Nazareth e Luciana de Oliveira

Nzó Atim Kaiango Ua Mukongo (Juatuba-MG)

Leonídios (Oliveira-MG)
Jatobá

Este livro foi composto pelas fontes Spectral, Kautiva Pro,


Neue Haas Grotesk Display Pro e Aktiv Grotesk; vinculadas
à plataforma Adobe Fonts.

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