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Gravura I

1968
xilogravura colorida
37,3 × 29,3 cm
Marc Chagall

POEMAS
POÈMES
Tradução
Saulo Di Tarso
8 de fevereiro a
22 de maio de 2023
CCBB SP
APRESENTAÇÃO
Cynthia Taboada

Chagall é pintor. É pintor, mas também natureza e seus elementos dentro de si, o português pelo artista Saulo di Tarso,
poeta. Ou um poeta com asas de pintor, em que elabora internamente as recorda- atentando ao trânsito entre idiomas, às
tal como o definiu o escritor norte- ções e reminiscências familiares, mantendo imagens poéticas, aos tempos e espaços
-americano Henry Miller. Seja como for, essas imagens impregnadas na retina. sugeridos por Chagall na forma particular
palavras não podem conter a força como ele pinta e vê o mundo, e em seu
criadora de Chagall, nem sua forma única Com a realização da exposição Marc ofício como pintor e gravador. Valendo-se
de transpor as linguagens: do desenho Chagall: sonho de amor no Brasil, debru­ da transcriação poética na perspectiva
para a pintura, da pintura para a poesia, çados sobre a natureza poética da pintura de Haroldo de Campos,6 esta tradução
da poesia para a pintura, num caminho de Chagall – trazida desde a concepção da apresenta um material lírico de grandeza,
de mão dupla, e de suspensão do mundo mostra pela curadora Lola Dúran Úcar –,3 inédito em nossa língua portuguesa,7 que
cotidiano. Se Chagall pinta como enxerga encontramos a oportunidade de reunir compartilhamos nesta edição especial.
o mundo, sua poesia verte do coração, e traduzir para o português a seleção de Os temas evocam o mundo familiar
essencialmente influenciada por sua poemas escritos entre 1909 e 1965, publi- russo-judaico de Vitebsk, que formou
origem judaica, hassídica, que o faz com- cados pela primeira vez em 1968,4 em a sensibi­lidade de Chagall, assim como
Algumas pessoas me preender espiritualmente que o homem francês, por Gérard Cramer, incluindo aludem ao amor, à pintura e à solidão,
recriminaram por eu colocar é parte da natureza e com ela comunga, as mesmas 24 xilogravuras coloridas feitas num tom melancólico que indaga sobre
poesia nas minhas pinturas. pelo artista na ocasião, obras produzidas
ao respirar, caminhar, pintar e amar. a trans­cendência do amor e a fusão entre
Se Chagall pinta sua Vitebsk desde jovem, sem a preocupação de ilustrar fielmente a terra natal e as novas paisagens encon-
É verdade que há algo mais
a exigir da arte pictórica. também escreve poesia, pois os dois os poemas, mas que acompanham visual- tradas na alma do artista. “Manter a terra
meios servem ao propósito de expressar mente o lirismo das estrofes. nas raízes e encontrar outra terra, isso é um
Mas que me mostrem uma única
a natureza do seu sentir: “Assim que verdadeiro milagre.”8
grande obra que não tenha Os poemas, inicialmente escritos em russo
aprendi a me expressar em russo, comecei
uma porção de poesia! 1
a escrever poesia. De forma tão natural e em iídiche, tiveram uma primeira versão
Agradecimentos especiais são aqui
quanto respirar. Que diferença faz se traduzida para o francês por Moshe Lazar
Marc Chagall dedicados ao Comité Marc Chagall
é uma palavra ou um suspiro?” 2 E sentir e, em seguida, foram poeticamente refor-
e a Patrick Cramer, pela colaboração
a vida requer força, uma força espiritual mulados por Philipe Jaccottet, com a
com esta primeira publicação da poesia
capaz de manejar os obstáculos exteriores colaboração de Chagall, para a primeira
de Chagall no Brasil.
e desafios internos, sem perder a sensibi­ edição.5 A partir dessa versão referencial
lidade, aquela em que ele reconhece a de 1968, os poemas foram traduzidos para
6 Referim
1 Harshav, B 3 Úcar, Lola Durán. “
7 À exceção do poe
2 Marc Ch 4 Chagall, Marc. P.
8 Meyer, Franz. Marc
5 Os poemas Si 6. Referimo-nos ao conceito de tradução como criação,
a uma poética da tradução, enunciada como
“transcriação” pelo poeta e ensaísta Haroldo de Campos.
3. Úcar, Lola Durán. “Pintura poética”. In: Marc Chagall: 7. À exceção do poema Seul est mien (traduzido por
sonho de amor. Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Manuel Bandeira e intitulado “Um poema de Chagall”.
São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), In: Bandeira, Manuel. Poemas traduzidos. Rio de Janeiro:
2022 [catálogo da exposição]. R.A. Editora, 1a ed., 1945, il. Guignard), os demais poemas
1. Harshav, Benjamin. Marc Chagall and 4. Chagall, Marc. Poèmes. Genebra: Cramer Éditeur, 1968. desta edição são inéditos em língua portuguesa.
His Times: A Documentary Narrative. Stanford: 2. Marc Chagall. My Life. Nova York: 5. Os poemas Si mon Soleil e Seul est mien foram 8. Meyer, Franz. Marc Chagall, Life and Work. Nova York:
Stanford University Press, 2004, p. 325. The Orion Press, 1a ed., 1960, p. 95. traduzidos por Assia Lassaigne. Harry N. Abrams, Inc., 1964, p. 529.
SUMÁRIO
POEMAS E GRAVURAS

1 GRAVURA I 24 NA MINHA MEMÓRIA 40 ONDE ESTÁ O DIA 1940-1945 56 NA NOSSA RUA 1930-1935
1930-1935
41 GRAVURA XIII
57 GRAVURA XIX
25 GRAVURA VIII
8 COMO UM BÁRBARO
1930-1935 42 SOBRE O NOVO PAÍS 1955-1960
58 EU ME DISTANCIEI 1955-1960
9 GRAVURA II 27 COMO NUM ÚLTIMO SONO 43 GRAVURA XIV
59 GRAVURA XX
1935-1940
45 ESQUECI MEU NOME 1950-1955
11 NÃO SEI 1955-1960
61 QUANTOS ANOS 1960-1965
28 DESCANSO 1950-1955
46 COM AZUL, VERMELHO, 63 GRAVURA XXI
29 GRAVURA IX AMARELO 1930-1935
12 O JARDIM 1909
13 GRAVURA III 47 GRAVURA XV
64 MINHA MÃE 1930-1935
31 SEM LÁGRIMAS 1940-1945
65 GRAVURA XXII
14 PELA MARGEM 1930-1935 48 ELA VOA 1930-1935
32 VOCÊ DOTOU 49 GRAVURA XVI
15 GRAVURA IV MINHAS MÃOS 1940-1945 66 DOS CAMINHOS 1945-1950
33 GRAVURA X 67 GRAVURA XXIII
16 COMO HERANÇA 1930-1935 50 A CIDADE 1930-1935

17 GRAVURA V 51 GRAVURA XVII


34 A TERRA 1940-1945 69 O AZUL DO AR 1935-1940
35 GRAVURA XI
53 ATRÁS DAS NUVENS
19 MINHA BRANCA NOIVA
1950-1955 70 EU HABITO MINHA VIDA
1935-1940
37 SOZINHO 1940-1945 1960-1965

54 DAVID 1930-1935
71 GRAVURA XXIV
20 SE O MEU SOL 1945-1950
38 SÓ É MEU 1945-1950 55 GRAVURA XVIII
21 GRAVURA VI
39 GRAVURA XII

22 PARA HOJE 1930-1935


23 GRAVURA VII

8 9
COMO UM BÁRBARO COMME UM BARBARE

Ali onde as casas curvas estão apinhadas Là où se pressent des maisons courbées
Ali onde segue o caminho para o cemitério Là où monte le chemin du cimetière
Ali onde corre o rio se alargando Là où coule un fleuve élargi
Ali sonhei minha vida Là j’ai rêvé ma vie

À noite, um anjo voa no céu La nuit, il vole un ange dans le ciel


Um branco clarão sobre os telhados Un éclair blanc sur les toits
Ele prediz um longo, longo caminho para mim Il me prédit une longue, longue route
Vai lançar meu nome acima das casas Il lancera mon nom au-dessus des maisons

Meu povo, é para ti que eu canto Mon peuple, c’est pour toi que j’ai chanté
Quiçá esse canto te agrade Qui sait si ce chant te plait
Uma voz ecoa dos meus pulmões Une voix sort de mes poumons
Toda tristeza e cansaço Toute chagrin et fatigue

E à tua semelhança que pintei C’est d’après toi que je peins


Flores, florestas, pessoas e casas Fleurs, forêts, gens et maisons
Como um bárbaro colori a tua face Comme un barbare je colore ta face
Noite e dia eu te abençoo Nuit et jour je te bénis

Gravura II
1968
xilogravura colorida
10 37,3 × 29,3 cm 11
NÃO SEI JE NE SAIS PAS

Não sei mais se vivi. Não sei Je ne sais pas si j’ai vécu. Je ne sais pas
Se estou vivo. Olho para o céu Si je vis. Je regarde le ciel
E não reconheço o mundo Je ne reconnais pas le monde

Meu corpo passa feito sombra Mon corps passe dans l’ombre
O amor, as flores, os quadros L’amour, les fleurs, les tableaux
Me fazem ir e vir Me font aller et venir

Não deixe minha mão sem luz Ne laisse pas ma main sans lumière
Quando a casa estiver sombria Quand la maison sera plus sombre
Como verei a tua brancura Comment verrai-je ta blancheur

Como ouvirei o teu chamado Comment t’entendrai-je appeler


Quando não houver além de mim mesmo Quand je n’aurai plus avec moi
Nada mais do que a noite trêmula Que la nuit qui tremble

12 13
O JARDIM LE JARDIN

O jardim, a lua Le jardin, la lune


A noite, e você Le soir, et toi
Fábula. Doçura Conte. Douceur
De reseda De réséda

Um beijo Un baiser
Milhares de beijos Mille baisers
Ou recusas Ou éconduit

Tristeza. Doçura Chagrin. Douceur


Ele ama, ao entardecer Il aime, le soir
Um perfume de jardim Un parfum de jardin
De reseda De réséda

Gravura III
1968
xilogravura colorida
14 37,3 × 29,3 cm 15
PELA MARGEM VERS LA RIVE

Uma casa velha, cega Une maison vieille, aveugle


Noite adentro negra noite La nuit dedans toute noire
Sou o primeiro a sair Le premier je suis sorti
E a estender a mão Et j’ai allongé la main

Vejo o rio e as águas frias Je vois le fleuve, les eaux froides


Pela margem, à noite, caminho Vers la rive, le soir, je marche
Corre em mim uma oração Une prière coule en moi
Que soa do fundo das águas Elle chante au fond des eaux

Venha, branca nuvem Approche, blanc nuage


Me leve a suas alturas Emporte-moi dans les hauteurs
Ouço os sinos soarem lá embaixo J’entends en bas sonner les cloches
E das casas se eleva a fumaça Et des maisons s’élève une fumée

Minha boca quer falar uma palavra Un mot ma bouche veut dire
Para os parentes sob a neve Pour les parents sous la neige
O tanto que você suportar, meu fôlego Tant que tu me porteras, mon souffle
Eu estarei com eles Je serais avec eux

Mas tu, minha cidade, esqueceu de mim M’as-tu oublié, ma ville


Suas águas falam no meu corpo J’entends tes eaux dans mon corps
E sentado nos teus bancos eu esperava Assis sur tes bancs j’espérais
O teu chamado Ton appel

Gravura IV
1968
xilogravura colorida
16 37,3 × 29,3 cm 17
COMO HERANÇA EN HÉRITAGE

O pai, parece que o vejo Le père, il me semble le voir


Sob a terra, distante Sous la terre, au loin
Ele rezava todas as noites Toute la nuit il priait
Distinto de tudo Séparé de tout
O aço lhe acabou L’acier l’a fini

Na sinagoga, esperando milagres Dans la synagogue, tu attendais les miracles


Uma lágrima, amarga, escorria na sua barba Tombait une larme, amère, dans ta barbe
Para Abraão, Isaac, para o sereno Jacó Pour Abraham, Isaac, pour Jacob le doux
Seu coração emanava uma oração Ton cœur versait une prière

Esforçou-se a vida inteira Toute une vie tu as peiné


E chorou entre as mãos Et pleuré de tes mains
Em silêncio, no quarto Dans la chambre, silencieux
Repartia o pão entre as crianças Tu partageais le pain pour les enfants

Como herança, me deixaste En héritage tu m’as laissé


Teu velho odor disperso Ta vieille odeur dispersée
Teu sorriso a me nutrir Ton sourire m’a nourri
Tua força passou para mim Ta force est passée en moi

Gravura V
1968
xilogravura colorida
18 37,3 × 29,3 cm 19
MINHA BRANCA NOIVA MA FIANCÉE BLANCHE

Ando pelo mundo como dentro Je marche par le monde comme


de uma floresta dans une forêt
Sob meus pés e minhas mãos, lá e cá Sur les pieds, sur les mains, de-ci de-là
De árvore em árvore, caem as folhas D’arbre en arbre les feuilles tombent
E elas me acordam, sinto medo Elles me réveillent, j’ai peur

Pinto imerso num sonho Je peins comme endormi en rêve


Enquanto a floresta está plena de neve Quand la forêt se charge de neige
Meu quadro parece um outro mundo Mon tableau semble un autre monde
Eu, sozinho, depois de tantos anos! Moi seul, depuis tant d’années !
fiquei aqui je reste ici

Esperando a aparição de um milagre J’attends qu’un miracle apparaisse


Que me aqueça e afaste o meu medo Me réchauffe, chasse ma peur
Por todos os lados espero que J’attends que de tous les côtés
venhas até mim tu viennes à moi

Assim voarei bem longe Alors je m’envolerai


E subirei contigo a escada de Jacó Je monterai avec toi sur l’échelle de Jacob
Acima das nuvens, minha branca noiva Au-dessus des nuages, ma fiancée blanche

20 21
SE O MEU SOL SI MON SOLEIL

Se o meu sol brilhasse durante a noite Si mon soleil brillait dans la nuit
Quando durmo todo coberto de cores Quand je dors tout couvert de couleurs
Numa cama de pinturas Dans un lit de tableaux
Quando o teu pé na minha boca Quand ton pied dans ma bouche
Me sufoca, me tortura M’étouffe, me torture

Eu me desperto no desespero Je me réveille dans le désespoir


De um novo dia, dos meus desejos D’une journée nouvelle, de mes désirs
Ainda não desenhados Pas encore dessinés
Ainda não frotados nas cores Pas encore frottés de couleurs

E corro lá para cima Je cours là-haut


Para os meus pincéis secos Vers mes pinceaux séchés
E, como Cristo, sou crucificado Et tel le Christ je suis crucifié
Fixado com pregos sobre o cavalete Fixé avec des clous sur le chevalet

E estou acabado, eu Suis-je fini, moi


A minha pintura está acabada Mon tableau est-il fini
Tudo brilha, tudo flui, tudo corre Tout brille, tout coule, tout court
Pare! Mais um gesto Arrête ! Encore une touche
A cor preta La couleur noire
O vermelho, o azul se instalam Le rouge, le bleu s’installent
E isso me inquieta Et cela m’inquiète
Oh! Como isso me inquieta Oh ! comme cela m’inquiète

Ouça-me Entends-moi
Camada funerária Couche funéraire
Erva definhada Herbe desséchée
O amor se foi Amour disparu
Renascendo novamente A nouveau revenu
Ouça-me Entends-moi

Caminho sobre a tua alma Je marche sur ton âme


Sobre teu ventre Sur ton ventre
Eu bebo o resto dos teus anos Je bois le restant de tes années
Eu engoli a tua lua J’ai avalé ta lune
O sonho da tua inocência Le rêve de ton innocence
Para ser o teu anjo Pour devenir ton ange
E proteger-te novamente Et te protéger à nouveau
Gravura VI
1968
xilogravura colorida
22 37,3 × 29,3 cm 23
PARA HOJE POUR CE JOUR

Sob seus longos cabelos você avança Sous tes longs cheveux tu avances
Tremendo, vem ao meu encontro Tremblante à ma rencontre
Dos seus olhos me presenteia De tes yeux tu me fais cadeau
E a vontade de lhe perguntar Et je voudrais te demander

Onde estão elas, as flores, brancas Où sont-elles, les fleurs, les blanches
O dossel do nosso caminho De notre dais sur les chemins
Da sua casa, que desde o primeiro encontro Chez toi dès la première fois
Lhe adornavam a noite toda Toute la nuit le long de toi

Nós apagamos a lua La lune, nous l’avons éteinte


Acendemos velas brancas Allumé des bougies blanches
Diante de você meu amor transbordava Mon amour débordait vers toi
Descobrindo o seu rosto Découvrait ton visage

E você se tornou minha esposa, Tu m’es devenue, mon épouse


Uma doce amêndoa Douce amande
Por tantos anos Pour tant d’années
Do seu ventre me agraciava Ton ventre m’apporte en étrennes
Uma filha, tão linda quanto o ano novo Une fille belle comme l’an nouveau

Obrigado, Deus da arca sagrada Merci, Dieu de l’Arche sainte


Por esse dia e esse mês Pour ce jour et ce mois

Gravura VII
1968
xilogravura colorida
24 37,3 × 29,3 cm 25
NA MINHA MEMÓRIA DANS MA MÉMOIRE

Morta no ar a mãe flutua Morte dans l’air la mère flotte


Ofegante. Sozinha, ela chora Respire à peine. Seule, elle pleure
Meu filho, onde está, que faz agora Où est mon fils, à présent, que fait-il
Outrora balançava o seu berço J’ai bercé jadis son berceau

Bendito seja seu caminho, inocente Béni soit son chemin, innocent
Com esforço, o conduzi e criei Dans les douleurs je l’ai élevé et porté
Ele bebeu minhas primeiras forças Il a bu mes premières forces
Eu pela mão o levei para os outros Je l’ai conduit par la main vers les autres

Onde estás agora, meu filho Où es-tu à présent, mon fils


Na minha memória tu habitas Dans ma mémoire tu habites
Uma noite estrelada, dentro de mim Une nuit d’étoiles au fond de moi
Fechando meus olhos M’a fermé les yeux

E nada restou além de teus ossos Il n’est resté de toi que des os
Findou-se a tua jovem beleza Finie ta jeune beauté
Tu te deitaste só entre as pedras Tu es couchée seule parmi les pierres
E eu, tu me deixaste aqui Et moi, tu m’as laissé ici

Eu queria beijar a erva e a tua areia Ja voudrais embrasser l’herbe et ton sable
Chorar como tua pedra Pleurer comme ta pierre
Queria te deixar a minha alma Je voudrais te laisser mon âme
E te coroar como uma rainha Et comme une reine te couronner

Gravura VIII
1968
xilogravura colorida
26 37,3 × 29,3 cm 27
COMO NUM COMME DANS
ÚLTIMO SONO UN DERNIER SOMMEIL

Vou rezar a Deus que iluminou Vais-je prier Dieu qui a conduit
o caminho até o fogo le peuple dans le feu
Pintá-lo num quadro de chamas Le peindre dans un tableau de flammes
Me levantar do meu lugar Me lever de ma place
Para lutar com o povo da minha tribo Pour combattre avec ceux de ma tribu

Deixe meus olhos chorarem sem parar Laisser mes yeux pleurer sans cesse
As lágrimas se somam ao rio Les larmes s’ajouter au fleuve
Eu não quero que minha tristeza se aproxime Je ne veux pas que ma tristesse approche
Quando eu for na sua direção Quand j’aborderai vers vous

Quando meu cansaço tocar a areia Quand ma fatigue touchera le sable


Eu conduzirei minha noiva pela mão Je conduirai par la main ma fiancée
Vocês olharão para a santa no céu Et vous regarderez la sainte au ciel
E como em um último sono Comme dans un dernier sommeil
Ao seu lado eu sonharei A son flanc je rêverai

28 29
DESCANSO RÉPIT

Minha hora, meu dia, meu ano Mon heure, mon jour, mon année
Como é delicado o calor da minha lágrima Qu’elle m’est douce la chaude larme
Meu coração a espera e silencia Mon cœur attend et se tait
Vejo o sol que flui Je vois le soleil qui ruisselle
Seus raios cobrindo meu rosto Ses rayons couvrent mon visage

Ele me anuncia um descanso Il me présage un répit


Que o meu destino e eu Que mon destin et moi
Caminhemos juntos Nous allions de compagnie
E que ao longe eu escute a sua voz Que j’entende au loin ta voix

Gravura IX
1968
xilogravura colorida
30 37,3 × 29,3 cm 31
SEM LÁGRIMAS SANS LARMES

Meu povo, você está sem lágrimas Mon peuple, tu es sans larmes
Nem a nuvem, nem a estrela Ni la nuée ni l’étoile ne
nos guiam mais nous guident plus
Ele está morto, nosso Moisés, ele está Il est mort, notre Moîse, il s’enfonce
soterrado na areia dans les sables
Ele doou, e retomou a Terra Prometida Il a donné, repris la Terre promise

Os últimos profetas estão mudos Les derniers Prophètes sont muets


Eles perderam a voz de tanto gritar por você Ils sont enroués de crier pour vous
Não ouvimos mais o som de suas palavras On n’entend plus le bruit de leurs paroles
Que fluíam das suas bocas Qui ont coulé de leur bouche
como um rio comme un fleuve

Todos querem em teu coração Tous veulent dans ton cœur


quebrar as Tábuas briser les Tables
Pisotear a tua verdade e o teu Deus Fouler aux pieds ta vérité et ton Dieu
Um mundo culpado quer roubar tua força Un monde coupable veut voler ta force
E não te deixar senão num único lugar Et ne plus te laisser de place
debaixo da terra que sous la terre

32 33
VOCÊ DOTOU MINHAS MÃOS TU M’AS REMPLI LES MAINS

Eu sou Seu filho Je suis ton fils


Sobre a terra que move lentamente Sur terre qui marche à peine
Você dotou minhas mãos Tu m’as rempli les mains
De cores, de pincéis De couleurs, de pinceaux
Mas eu não sei como pintar Você Je ne sais pas comment te peindre

Eu preciso pintar a terra, o céu, meu coração Faut-il peindre la terre, le ciel, mon cœur
As cidades que incendeiam, as pessoas fogem Les villes en feu, les gens qui fuient
Meus olhos em pranto Mes yeux en pleurs
Para onde fugir, voar para quem Où faut-il fuir, vers qui voler

Eis Aquele que dá o dom da vida Celui qui là-bas donne la vie
Aquele que envia a morte Celui qui envoie la mort
Talvez Ele faça Peut-être fera-t-il
Com que minha obra se ilumine Que mon tableu s’illumine

Gravura X
1968
xilogravura colorida
34 37,3 × 29,3 cm 35
A TERRA A TERRE

Por todos os lados perseguem meu povo On chasse de partout mon peuple
A sua coroa caiu por terra Sa couronne est à terre
Por terra o símbolo de David A terre le signe de David
Onde está a sua auréola, sua honra Où est son auréole, son honneur

Das suas mãos ele condena o céu De ses mains il condamne le ciel
Ele pisa no seu exílio Il piétine son exil
Um raio consome a sua miséria Un éclair consume sa misère
Ele avança com a espada Il s’avance avec l’épée

Se você deve ser destruído Si tu dois être détruit


Para redimir o Templo em ruínas Pour expier le Temple en ruine
Outra estrela se elevará Se lèvera une autre étoile
E dos seus olhos voará uma pomba Et de tes yeux volera une colombe

Pudera eu realizar o seu sonho Je voudrais exaucer ton rêve


Mostrar uma outra verdade Montrer une autre vérité
Percebida da sua luz Prendre à ta lumière
Minhas cores Mes couleurs

Gravura XI
1968
xilogravura colorida
36 37,3 × 29,3 cm 37
SOZINHO TOUT SEUL

A velha sinagoga, a velha rua La vieille synagogue, la vieille rue


Eu as pintei no ano passado Je les ai peintes l’an dernier
Elas são cinzas e fumaça Elles sont cendre et fumée
A cortina da Arca arrancada Le rideau de l’Arche arraché

Onde estão os rolos da Lei Où sont les rouleaux de la Loi


Os castiçais, os candelabros Les chandeliers, les candélabres
O ar respirado por eras e eras L’air respiré par des âges et des âges
Se desfaz no fundo do céu Se défait au fond du ciel

Tremendo eu pus o verde En tremblant j’ai posé le vert


A cor verde da Arca La couleur verte de l’Arche
Na sinagoga, sozinho Dans la sybagogue, tout seul
Eu reverenciei, como a última pessoa Le dernier, je me suis incliné

38 39
SÓ É MEU SEUL EST MIEN

Só é meu Seul est mien


O país que encontro em minha alma Le pays qui se trouve dans mon âme
No qual entro sem passaporte J’y entre sans passeport
Tal como em minha casa Comme chez moi
Ele vê minha tristeza Il voit ma tristesse
E minha solidão Et ma solitude
Ele me acolhe Il m’endort
No manto de uma pedra perfumada Et me couvre d’une pierre parfumée

Em mim florescem jardins En moi fleurissent des jardins


Minhas flores são inventadas Mes fleurs sont inventées
As ruas do meu país me pertencem Les rues m’appartiennent
Mas nelas as casas já não existem mais Mais il n’y a pas de maisons
Vieram destruídas desde a infância Elles ont été détruites dès l’enfance
Seus habitantes seguem vagueando pelo espaço Les habitants vagabondent dans l’air
Em busca de abrigo A la recherche d’un logis
Eles moram na minha alma Ils habitent dans mon âme

Eis por que sorrio Voilà pourquoi je souris


Mesmo quando meu sol se esforça para brilhar Quand mon soleil brille à peine

Ou choro Ou je pleure
Como a leve chuva Comme une légère pluie
Na noite Dans la nuit

Houve um tempo em que eu tinha duas cabeças Il fut un temps où j’avais deux têtes
Tempo em que esses dois rostos Il fut un temps où ces deux visages
Se cobriam de um orvalho amoroso, Se couvraient d’une rosée amoureuse
Entrelaçados como o Et fondaient comme le
perfume e a rosa parfum d’une rose

Mas hoje sinto A présent il me semble


Que mesmo quando recuo Que même quand je recule
Vou seguindo Je vais en avant
Para um alto portal Vers un haut portail
Atrás do qual se pressentem as muralhas Derrière lequel s’étendent des murs
Onde dormem trovões extintos Où dorment des tonnerres éteints
E relâmpagos evanescidos Et des éclairs brisés

Só é meu Seul est mien


Gravura XII
O país que encontro em minha alma Le pays qui se trouve dans mon âme 1968
xilogravura colorida
40 37,3 × 29,3 cm 41
ONDE ESTÁ O DIA OÙ EST LE JOUR

Passa um judeu com o rosto de Cristo Passe un Juif au visage de Christ


Ele grita: a praga está sobre nós Il crie : le fléau sur nous
Vamos correr e nos esconder nos fossos Courons nous cacher dans les fosses
Nos debateremos agachados Nous nous battrons courbés

Um mendigo corre com sua bolsa Un mendiant court avec sa besace


Nós só queríamos ganhar o nosso pão Nous ne voulions que gagner notre pain
Deus, onde Você está? A morte avizinha-se Où es-tu, Dieu ? La mort avance
Desça e nos diga um sermão Descends et dis-nous un sermon

Um homem velho com seu xale branco Un vieillard dans son châle blanc
Cai com seu livro de salmos Tombe avec son livre de psaumes
A miséria exprime de seus olhos La misère lui coule des yeux
Devolva-lhe sua vida, meu Deus Rends-lui la vie, mon Dieu

Piedade. Eleve Seu povo Pitié. Relève ton peuple


Onde está o dia em que Você Où est le jour où tu l’as
o elegeu e o abençoou élu et béni
Onde está a pomba da Arca Où est la colombe de l’Arche
Que nos mostra o amanhã Qui nous ouvre l’avenir

Gravura XIII
1968
xilogravura colorida
42 37,3 × 29,3 cm 43
SOBRE O NOVO PAÍS SUR LE PAYS NEUF

Dois mil anos de meu exílio Deux mille années mon exil
Tão curta é a idade da nova terra Si court l’âge du pays nouveau
A idade de meu filho David L’âge de mon fils David
Eu estico meus braços Je tends le bras
Eu procuro as estrelas e o signo de David Je cherche les étoiles et le signe de David

Sob as ondas nadam os Profetas Sous les vagues nagent les Prophètes
Moisés se acende de longe Moîse de loin s’éclaire
Por muito tempo seus raios me tocaram Depuis longtemps ses rayons me touchent
O vento que se levanta em seus passos Le vent qui se lève sur ses pas

Todos estes anos contando lágrimas Toutes ces années à compter des larmes
Eu o procurei sob o céu na terra Je t’ai cherché sous le ciel sur la terre
Dois mil anos eu esperei Deux mille années j’ai attendu
Para o meu coração acalmar e ver você Que mon cœur s’apaise et te voie

Deitado como Jacob adormecido Couché comme Jacob endormi


Eu sonhei um sonho J’ai rêvé un rêve
Um anjo me agarra e me iça à escada Un ange m’empoigne et me hisse sur l’échelle
Almas extintas cantam Des âmes éteintes chantent

Sobre a nova terra Sur le pays neuf


Cerca de dois mil anos de exílio Sur deux mille années d’exil
Sobre David, meu filho Sur David mon fils
Elas cantaram mais doce Elles ont chanté plus douces
do que Mozart e Bach Que Mozart et Bach

Gravura XIV
1968
xilogravura colorida
44 37,3 × 29,3 cm 45
ESQUECI MEU NOME J’AI OUBLIÉ MON NOM

Quando você virá, minha hora Quand viendras-tu, mon heure


Quando eu me desfizer como uma vela Quand me dénouerai-je comme bougie
Quando reencontrar você, longínqua Quand te rejoindrai-je, ma lointaine
Quando meu nome for descansar Quand me rejoindra mon repos

Eu não sei se sigo em frente Je ne sais si j’avance


Eu esqueci meu nome J’ai oublié mon nom
Eu esqueci meu lugar J’ai oublié mon lieu
Minha cabeça e minha alma, onde estarão Ma tête et mon âme, où sont-elles

Olhe, mãe, minha morta Regarde, mère, ma morte


Seu filho que desilumina Ton fils qui sombre
Olhe, minha amada coroa Regarde, ma couronne aimée
Silencioso, profundo Silencieux, profond
Meu sol se põe Mon soleil qui descend

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COM AZUL, AVEC DU BLEU,
VERMELHO, AMARELO DU ROUGE, DU JAUNE

Pintei paredes claras J’ai peint les murs clairs


Pintei músicos, dançarinos no palco J’ai peint les musiciens, les danseurs en scène
Com azul, vermelho, amarelo Avec du bleu, du rouge, du jaune
Para ti eu pintei o tabernáculo Pour vous j’ai peint le tabernacle

Brinca, canta, pula Jouez, chantez, bondissez


Representavas o papel do velho Rei Vous jouiez le rôle du vieux Roi
Comigo. Devoravas-me Avec moi. Vous m’engloutissiez
Chorávamos de rir On riait aux larmes

Conosco, silenciosos Avec vous, silencieux


Pularemos até a lua Nous sauterons jusqu’à la lune
Na noite branca Dans la nuit blanche
Ouviremos novamente nossa voz On entendra de nouveau notre voix

Gravura XV
1968
xilogravura colorida
48 37,3 × 29,3 cm 49
ELA VOA ELLE VOLE

Ela voa, a cabeça do velho rabino Elle vole la tête du vieux rabbin
Para me encontrar e saudar A ma rencontre et ma salue
Minha sabedoria eu lhe doei Ma sagesse je t’ai donné
Teu pé não entrará mais em minha casa Ton pied n’entrera plus chez moi

Adeus, mestre do cavanhaque, Adieu, maître à la barbiche,


mestre dos pincéis maître aux pinceaux
Aquele gatuno te matou por alguns tostões Quel rôdeur t’a tué pour quelques sous
Um pequeno cavalo preto atravessa o portal Un petit cheval noir à travers le portail
Leva-te para o outro mundo L’emporte dans l’autre monde

Tua lâmpada se apagou Elle s’est éteinte sa lampe


Através da janela entre uma nuvem Par la fenêtre entre un nuage
Em frente, uma porta pregada com tábuas En face, porte clouée de planches
Ali está a igreja Il y a l’église

Suas pinturas judaicas, na lama Tes tableaux juifs, dans la boue


A cauda de um porco toca-lhes La queue d’un cochon les touche
Mestre, por um longo tempo Maître, depuis longtemps
Sinto tua falta, longe de ti Je te regrette, loin de toi

Gravura XVI
1968
xilogravura colorida
50 37,3 × 29,3 cm 51
A CIDADE LA VILLE

Ela soa dentro de mim Elle sonne en moi


A cidade longínqua La ville au loin
Suas sinagogas, suas igrejas brancas Ses synagogues, ses églises blanches
Porta aberta, o céu em flor Porte ouverte, le ciel fleurit
A vida voa, vai embora La vie s’envole, s’éloigne

Elas desaparecem em mim Elles languissent en moi


Suas vielas tortuosas Ses ruelles tortueuses
Os túmulos Les tombes grises de la colline
Suas estacas mortas enterradas Leurs pieux morts enfouis

Cores e manchas Couleurs et taches


Sombra, luz Ombre, lumière
Minha pintura naquele lugar Mon tableu là-bas
Eu quero cobrir meu próprio coração Je veux m’en couvrir le cœur

Eu ando em farrapos, queimando Je marche en loques, en flammes


Os flashes dos anos Les éclairs des années
O que eu pinto me vem nos sonhos Ce que je peins me vient en rêve
Eu caminho, eu me perco Je marche, je me perds

Não me procuro hoje nem amanhã Ne me cherchez aujourd’hui ni demain


Eu me afastei de mim mesmo Je suis parti loin de moi
Eu estou Je suis
Num poço de lágrimas Dans une fosse le larmes

Gravura XVII
1968
xilogravura colorida
52 37,3 × 29,3 cm 53
ATRÁS DAS NUVENS DERRIÈRE LES NUAGES

Na noite, alguém diz Dans la nuit quelqu’un dit


Não misture as palavras e as cores Ne mêle pas mots et couleurs
As flores e o sol Fleurs et soleil
A alma atrás das nuvens L’âme derrière les nuages
A meia-luz, voa e foge A peine éclaire, vole et fuit

Alguém diz Quelqu’un dit


Não espere muita luz N’attends pas trop de lumière
Pela estrada Sur la route
Suas lágrimas você beberá sozinho Tes larmes, tu les boiras seul
No final do caminho Au bout du chemin

Alguém me disse Quelqu’un m’a dit


Existe ali, lhe vigiando Il y a là-bas aux aguets
Uma cruz Une croix
Um cavaleiro que veio do alto Un cavalier d’en haut venu
Leva-me em seus braços M’enlève dans ses bras

54 55
DAVID DAVID

Para que seu nome seja lembrado, David Pour que ton nom soit rappelé, David
Meu jovem irmão que foi apagado Mon jeune frère effacé
Desapareceu da vida sem seguidores Parti de la vie sans convoi
E ninguém sabe onde está Et nul ne sait où il gît

Elas riem, minhas irmãs, elas choram Elles rient, mes sœurs, elles pleurent
Juntas, na porta e em pé Ensemble, debout, dans la porte
Na janela elas olham A la fenêtre elles guettent
E procuram, persistentes, a felicidade Et cherchent, têtues, le bonheur

Gravura XVIII
1968
xilogravura colorida
56 37,3 × 29,3 cm 57
NA NOSSA RUA DANS NOTRE RUE

Ela caminha, minha lua Elle chemine, ma lune


A minha convidada de todo o mundo Mon invitée d’ailleurs venue
Uma bandeira vermelha ao longe me acena Un drapeau rouge au loin me hèle
Eu acordo na nossa rua Je me réveille dans notre rue

O mundo lá fora está florescendo Le monde là-bas refleuri


As famílias próximas e distantes Les familles proches et lointaines
Festejaram sem mim Ont fêté sans moi
O casamento Le mariage

Eu ouço os gritos distantes J’entends les clameurs éloignées


As pessoas dançam felizes Les gens dansent en joie
Agarram a liberdade Attrapent la liberté
Com palavras e armas ardentes Avec des mots et des fusils brûlants

Saia dos seus buracos Ressortez de vos trous


Tias, tios e avós Tantes, oncles, grands-parents
Um vento livre voa sobre vocês Un vent libre vole sur vous
Ao longe eu ouvi isso tudo De loin je l’ai entendu

Gravura XIX
1968
xilogravura colorida
58 37,3 × 29,3 cm 59
EU ME DISTANCIEI JE ME SUI ÉLOIGNÉ

Feliz do rouxinol Heureux le rossignol


Sua canção sem palavras Son chant sans mots
Eu choro, e canto também Je pleure, le chante aussi
As palavras me deslizam dos olhos Les mots me glissent des yeux

O trabalho de minhas mãos L’œuvre de mes mains


Penetra no fundo da alma Pénètre au fond de l’âme
Olhar os olhos dos outros Regarde les yeux des autres
Ilumina meu caminho Éclaire mon chemin

Eles não são meus amigos Ils ne sont pas mes amis
Eles desviam o olhar Ils détournent les yeux
Todos os dias acordo sozinho Chaque jour je me réveille seul
Eu vejo meus dias se afastando Je vois au loin mes jours

Minha mão tocou em Deus Ma main a-t-elle touché Dieu


Eu me distanciei Je me suis éloigné
Na escolha dos caminhos A la croisée des routes
O canto do rouxinol é o mais curto Il est plus court, le chant du rossignol
Eis onde eu estou Où suis-je

Gravura XX
1968
xilogravura colorida
60 37,3 × 29,3 cm 61
QUANTOS ANOS COMBIEN D’ANNÉES

Às vezes eu quero chamar alguém Parfois je voudrais appeler quelqu’un


Para pedir que as rosas floresçam Demander que s’épanouissent les roses
Quando você vier A ta venue

Eu gostaria de chamar alguém Je voudrais appeler quelqu’un


Para pedir que a aurora Demander que l’aurore
Se cobrisse de novo Se couvre de nouveau
Do azul da noite Du bleu de la nuit

E nua, perdendo a cabeça, eu Et nu, sans tête, moi


Vou procurar por você Je te chercherai
Onde você estiver Où es-tu

Acabei de acordar Je viens de me réveiller


Quantos anos eu dormi Combien d’années j’ai dormi
Você se lembra: ontem Tu te rappelles : hier
Eu estava lhe beijando Je t’embrassais

Seu cheiro adormeceu na minha mão Ton odeur dans ma main s’est endormie
De árvore a outra eu voei com você D’un arbre à l’autre avec toi j’ai volé
Eu lhe procurei Je te cherchais

Onde você está Où es-tu

Outono, inverno Automne, hiver


Primavera, verão Printemps, été
Me procuram Me chassent
Sem direção Vers où

Ela ilumina em suas mãos Elle s’éclaire dans tes mains


Minha jovem coroa de flores Ma jeune couronne de fleurs
Ela treme e espera Elle tremble et attend
A outra noite de núpcias L’autre nuit de noces

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Na minha mão restou Dans ma main il n’est resté
Somente a poeira dos meus anos Que la poussière de mes années
A minha busca por você Je te cherchais
Onde você está Où es-tu

Cada um de meus dias está se passando Chacun de mes jours court


Em direção a sua noite, me impulsiona Vers sa nuit, me pousse
Desta força De force

Eu não quero e eu quero Je ne veux pas et je veux

Estou pronto Je suis prêt


Mas agora minhas asas estão caindo Voilà que se baissent mes ailes
E se levantando Et se relèvent
Para eu lhe abraçar no céu Pour te prendre dans le ciel
Em meu caminho Sur mon chemin

E quando eu voo assim Et quand je vole ainsi


Eu lhe procuro Je te cherche
Mas onde você estará Mais où es-tu

As mãos se dobram e inclinam Les mains se plient et se penchent


Para pintar seu mundo breve Pour peindre ton monde bref
Minha boca e meu coração se abrem Ma bouche et mon cœur s’ouvrent
Para que minha oração lhe traga Pour que ma prière t’approche

Das minhas pinturas De mes tableaux


Meu sonho fui Mon rêve coule
A seus pés A tes pieds
Mas onde você está Mais où es-tu

Gravura XXI
1968
xilogravura colorida
64 37,3 × 29,3 cm 65
MINHA MÃE MA MÈRE

Se você é minha mãe, minha cidade Si tu es ma mère, ma ville


Seu filho sofre distante Ton fils est en peine au loin
Ele só espera uma palavra sua Il n’entend pas un mot de toi
Em resposta às minhas cores En réponse à mes couleurs

Minha mãe, eu a vejo Ma mère, je la vois


Ela me esperava no limiar Elle m’attendait sur le seuil
Ela me legou Elle m’a légué
Um outro destino, indistinto Un autre sort, indistinct

Se você é minha mãe, minha cidade Si tu es ma mère, ma ville


Eu continuo sendo um estrangeiro Moi, je reste étranger
Você não vê que a nuvem muda Tu ne vois pas le nuage changer
Que as águas dos rios derretem Les eaux des rivières fondre

Minha mãe me esperava na porta de casa Ma mère sur le pas de la porte attendait
Com ela eu aprendi a ter esperança Près d’elle j’ai appris l’espoir
Com seus seios ela alimentou meus sonhos De ses seins elle nourrissait mes rêves
Dia e noite ela rezava por mim Jour et noit elle priait pour moi

Gravura XXII
1968
xilogravura colorida
66 37,3 × 29,3 cm 67
DOS CAMINHOS DES CHEMINS

Minhas lágrimas caem como seixos Mes larmes tombent comme des cailloux
Elas se misturam no rio Elles se mêlent au fleuve
Elas flutuam como flores Elles flottent comme des fleurs
Assim, eu vivo, meu Deus. Por que Ainsi je vis, mon Dieu. Pourquoi

Eu respiro, eu vivo Je respire, je vis


Procuro, eu procuro Você Je cherche, je te cherche
Acredito que Você está comigo Je te crois avec moi
Mas está em outro lugar. Por que Tu es ailleurs. Pourquoi

Ouço apenas o vazio ao meu redor Je n’entends pas un mot autour de moi
Os caminhos, as florestas se cruzam Des chemins, des forêts se croisent
Encaro meu dia sorridente J’aborde souriant ma journée
E eu ainda espero por Você. Por que Et je t’attends encore. Pourquoi

Noite e dia eu carrego uma cruz Nuit et jour je porte une croix
Sou movido, puxado pela mão On me pousse, on me traîne par la main
Já na noite ao meu redor Déjà la nuit autour de moi
Você se distancia, meu Deus. Por que Tu t’éloignes, mon Dieu. Pourquoi

Gravura XXIII
1968
xilogravura colorida
68 37,3 × 29,3 cm 69
O AZUL DO AR LE BLEU DE L’AIR

País emudecido Pays muet


Você quer que eu me acabe Tu veux que je me rompe
Que eu implore de joelhos os meus dias Que j’implore à genoux mes jours
Que o fogo me faça queimar Que le feu me brûle
Que eu lhe abandone tudo o que tenho Que je t’abandonne ce que j’ai

Eu lhe enviarei o sangue do meu sonho Je t’enverrai mon sang rêvé


Minha respiração se transformando em lágrimas Mon souffle peu à peu en larmes
Sob o azul do ar Sous le bleu de l’air
Ao pé das grades eu me deitarei Au pied des clôtures je serai couché

Lhe irritei T’ai-je irrité


Me abri diante de vocês Je suis ouvert devant toi
Como a água de um jarro Comme l’eau d’une cruche
E faz muito tempo, eu parti Depuis longtemps je suis parti
E um dia vou me deitar Me coucherai-je un jour
Sob a lápide da sua neve Sous une tombe de ta neige

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EU HABITO MINHA VIDA J’HABITE MA VIE

Nas minhas pinturas Dans mes tableaux


Escondi o meu amor J’ai caché mon amour
Eu habito a minha vida J’habite ma vie
Como a árvore na floresta Comme l’arbre la forêt

Quem ouve a minha voz Qui entend ma voix


Quem percebe meu rosto Qui aperçoit mon visage
Enterrado na luz da lua Enfoui dans la lumière de la lune

Como um morto há mil anos Comme un mort d’il y a mille ans

Minha mãe me deu um dom Ma mère m’a fait un don


Ele irradia do meu corpo Il rayonne dans mon corps

Eu não abro a minha boca Je n’ouvre pas la bouche


Para que o meu coração não fuja Pour que mon cœur ne se sauve
E jamais me lamento Et ne pas me lamenter
Como um pássaro na escuridão Comme un oiseau dans la nuit

Nos meus quadros Dans mes tableaux


Pintei o meu amor J’ai peint mon amour
Como veem os anjos Les anges le voient
E as noivas que não caminharam Et les fiancées qui ne sont pas allées
Para o dossel do casamento Vers le dais de mariage

O perfume de uma flor Le parfum d’une fleur


Acende as velas Allume les bougies
Sobe a chama azul En bleu se lève
O dia em que eu nasci Le jour de ma naissance

Os meus sonhos eu escondi Mes rêves je les ai cachés


Sobre as nuvens Sur les nuages
Meus suspiros Mes soupirs
Voam com os pássaros Volent avec les oiseaux

Me vejo parado e caminhando Je me vois immobile et en marche


E me desfaço Je me défais
Diante do fogo que vem do mundo Devant le feu qui vient du monde
O meu amor é como a água espalhada Mon amour est comme de l’eau dispersée
Aos quatro cantos Aux quatre coins
Gravura XXIV
E atrás de mim vão os meus quadros Derrière moi vont mes tableaux
1968
xilogravura colorida
72 37,3 × 29,3 cm 73
Edição
Cy Museum Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP)
Organização (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cynthia Taboada
CHAGALL, Marc. Poemas [Poèmes].
Cynthia Taboada (organização) ;
Tradução do Francês Saulo di Tarso (tradução) ;
Saulo di Tarso Lia Ana Trzmielina (revisão) ;
Cy Museum, 2023
Projeto Gráfico 72 p. il.:
Paulo Otavio - POG Design
Textos em Português e Francês.

Revisão Português ISBN 978-65-998004-1-2


Lia Ana Trzmielina
1. Título. 2. Chagall, Marc, 1887- 1985.
I. Taboada, Cynthia. II. Tarso, Saulo di.
Publicação realizada a partir
CDU: 75.036.7
da primeira edição em francês:
CDD: 759.7
Chagall, Marc. Poèmes.
Genebra: Cramer Éditeur, 1968.

Agradecimentos especiais
dedicados a Patrick Cramer.

Licenciamento de imagens
das obras de Marc Chagall
AUTVIS – Associação Brasileira
dos Direitos de Autores Visuais
©️ Chagall, Marc / AUTVIS, Brasil, 2023

© Cy Museum
www.cymuseum.com.br

1o Edição
Impresso em papel
Alta Alvura 120 gr m2
com fonte Absara Sans
em março de 2023
pela ST Graf
978-65-998004-1-2

Andei pelas ruas, procurei e rezei:

“Deus, Tu que Te escondes nas nuvens ou atrás


da casa do sapateiro, permita que minha alma
seja revelada, a alma triste de um menino gago.
Mostre-me o meu caminho. Não quero ser como
todos os outros; quero ver um mundo novo.”

Como que em resposta, parece que a cidade


se rompe, como as cordas de um violino, e todos
os habitantes, deixando seus lugares habituais,
começam a caminhar sobre a terra. Pessoas
que conheço bem instalam-se em telhados
e lá descansam.

Todas as cores viram de cabeça para baixo,


dissolvem-se em vinho e minhas telas o jorram.

Marc Chagall. My Life. Nova York:


The Orion Press, 1a ed., 1960.

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