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AS PARÁBOLAS EM LUCAS 15:

Jesus e a revelação do rahamim de Deus

João Victor dos Anjos Sousa

Trabalho de Processo da Lectio Divina após a


experiência vocacional no Mosteiro de São Bento do
Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO
2022
Resumo
O presente trabalho trata-se de um estudo sobre a temática da Misericórdia de
Deus, revelada por Jesus Cristo, de modo especial, no capítulo 15 do Evangelho de Lucas.
Neste trecho, o evangelista procurou demonstrar a relevância desse anúncio para o
Messias, bem como seu significado na vida do povo sofrido e marginalizado de todas as
épocas. A partir da conceituação de rahamim (amor visceral, que brota das entranhas
maternas) e de hesed (fidelidade à Aliança) no Antigo Testamento, apresentou-se também
a visão do Magistério e da Tradição Eclesial no que concerne às parábolas contadas neste
capítulo lucano e sua ligação com outros trechos da Sagrada Escritura. A mensagem
acolhedora e amorosa de Jesus, vista como escandalosa por alguns, é explicada por
diversos autores e estendida à vida da Igreja e, de modo especial, à vida monástica. Torna-
se um convite a redescobrir a graça do amor misericordioso de Deus.

2
Introdução
O ponto principal da missão do Filho é tornar conhecido o Pai como ele conhece,
ou seja, pleno de amor.1 A Aliança de Deus é estendida, por ele, a toda humanidade. Pelo
método parabólico, de modo especial o lucano, Cristo expõe a Misericórdia Divina. O
Messias responde, pois, às acusações revoltosas daqueles alguns seguidores que o
acompanhavam apenas com o intuito de encontrar elementos prejudiciais a sua missão.
Um dos textos mais belos e conhecidos da Sagrada Escritura é, sem sombra de
dúvida, a série de parábolas apresentada por São Lucas no 15º capítulo do seu evangelho.
Ele se popularizou pondo sua centralidade na pessoa de um filho jovem e sonhador, no
entanto, a perícope apresenta, na verdade, a prodigalidade do pai em amar os filhos, ir ao
encontro deles, querê-los junto de si e se encher de alegria pelo retorno. O escritor do
terceiro evangelho, todavia, ainda trata sobre uma ovelha e uma moeda perdidas, que
introduz e transforma as três em uma única parábola. Transmite uma mensagem.
Mostra um Deus preocupado com o seu povo. Um Pai e Pastor atento às
necessidades de todos. O Mestre Galileu esquadrinha uma maneira de conscientizar seus
seguidores dessa profunda relação de amor entre Criador e criatura, Pastor e rebanho, Pai
e filhos. Tanto os pecadores como os “justos” precisam de uma reaproximação com esse
Pai cheio de amor que se alegra ao estar na companhia da humanidade. Ele visita o ser
humano, trata-o com desvelo, presenteia-o com a esplendorosa coroa da glória.2 Deus
ama a todos como a um filho, mostrando intimidade ao chamar cada um pelo nome.3
O “evangelista da misericórdia”,4 desse modo, revela, na pessoa de Jesus, esse
rosto do “Deus misericordioso” 5 que perdoa a todos, dá acolhida no banquete para eles
preparado6 e espera a reunião de uma grande família, unida pelo amor.

1
Cf. JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980. n. 16.
2
Cf. Sl 8, 5-7.
3
Cf. Os 11,1-4.
4
Cf. JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980. n. 18.
5
Cf. FRANCISCO PP. Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia “Misericordiae
Vultus”, 2015. n. 1.
6
Cf. Lc 14,15-24.

3
O conceito de misericórdia
Misericórdia é um termo amplo que se refere a benevolência, perdão e bondade
em uma variedade de contextos éticos, religiosos, sociais e até mesmo legais. Tem origem
latina, é formada pela junção de miserere (ter compaixão) e cordis (coração). Significa a
capacidade de sentir aquilo que o outro sente, aproximar seus sentimentos dos de alguém.7
O presente texto frisa a referência que Jesus faz nas parábolas à Misericórdia
Divina. E que este não é um conceito lançado pelo Cristo. Na verdade, Ele está retomando
a tradição do povo-eleito, a história do seu povo com Deus. Esta é a primeira característica
que Deus atribui a Si quando fala ao escolhido para guiar o seu povo da escravidão até a
terra prometida.8 Desde então o Senhor não mediu esforços para se dar a conhecer. É
necessário, pois, fixar o olhar nesta misericórdia para percebê-la mais eficazmente não só
na última parábola, como também naquelas que a antecederam.
Os escritos veterotestamentários se servem de dois vocábulos para definição de
misericórdia, ambos com uma semântica diversa: hesed e rahamim. O primeiro termo
expressa uma bondade intensa. E se tal disposição benévola é entre duas pessoas ela ganha
a significação de amor e é gerada a partir de uma fidelidade a princípios pessoais. Aponta
para características, em certo sentido, masculinas. Na Sagrada Escritura o termo é
utilizado, diante disso, quando se tratava da Aliança com Israel. Tinha um sentido
jurídico. Entretanto, da parte de Deus, hesed ganhava uma outra conotação, mais
profunda: “tornava-se manifesto daquilo que fora ao princípio, ou seja, amor que doa,
amor mais potente do que a traição, graça mais forte do que o pecado”.9

Israel, embora sob o peso das culpas, por ter quebrado a aliança, não pode ter
pretensões em relação ao hesed de Deus, com base numa suposta justiça
(legal); no entanto, pode e deve continuar a esperar e a ter confiança em obtê-
lo, já que o Deus da aliança é realmente “responsável pelo seu amor”. Fruto
deste amor é o perdão e a reconstituição na graça, o restabelecimento da aliança
anterior.10

A segunda palavra utilizada é rahamim. Sua significação se diferencia um pouco


de hesed. Partindo da sua raiz rehem, o vocábulo toma a denotação de um amor materno.
Deste vínculo visceral e uterino, emerge uma relação particular de amor. Um amor
totalmente gratuito, sem necessidade de merecimentos para ser transmitido. É uma
necessidade interna, exigida pelo coração. Daí se origina uma sucessão de sentimentos:
bondade, ternura, paciência e a prontidão para perdoar. Quando atribui ao Senhor estas
faculdades, o Antigo Testamento utiliza justamente o vocábulo rahamim.11 Este expressa
solução dos riscos, perdão dos pecados e prontidão na realização da promessa mesmo
diante da infidelidade do povo.12 Graças ao poder da maternidade é um amor invicto e
devotado.
Há outras expressões referentes a tal conteúdo, como: hanan (benevolência e
clemência), hāmal (poupar o inimigo, perdão), hus (piedade e compaixão, sobretudo em
sentido afetivo) e ’emet (solidez e segurança). Contudo, nas duas que receberam maior
enfoque “se manifesta claramente o seu originário aspecto antropomórfico: para indicar
a Misericórdia de Deus, os autores bíblicos servem-se dos termos que correspondem à

7
SIGNIFICADOS. Misericórdia. Disponível em: https://www.significados.com.br/misericordia/. Acesso
em: 26/06/2022.
8
Cf. Ex 34,6.
9
JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, nota 52, p. 15.
10
Obra Citada.
11
Cf. Is 49,14-16; Jr 31,20.
12
Cf. Os 14,5.

4
consciência e à experiência dos homens seus contemporâneos”.13 Como é o caso das
parábolas aqui tratadas.
Longa e rica é a história da conceituação veterotestamentária de “misericórdia”.14
Tantas foram as vezes que o povo de Israel rompeu a aliança realizada por Adonai quantas
as que Ele perdoou, pois desde o momento que tomava consciência de seu delito o povo
apelava à sua misericórdia. Numerosos são os relatos apresentados tanto em livros
históricos quanto em proféticos, podendo ser destacados: o auxílio do Senhor após o povo
arrepender-se de suas maldades,15 a prece e a súplica de Salomão na consagração do
Templo,16 as garantias do Senhor proclamadas por Isaías,17 a rogação dos exilados
hebreus,18 a prece sálmica de Miquéias,19 e o rito de expiação e renovação da Aliança.20
O povo eleito é amado por Deus com uma predileção toda especial, única e
pessoal, também com um amor esponsal;21 perdoando suas faltas, infidelidades e traições.
Quando o objeto do seu amor é encontrado arrependido e penitente, de imediato o
reestabelece na sua graça. A misericórdia anunciada pelos profetas é uma sumidade
amorosa que precede ao pecado e à infidelidade. A ela se apela a partir de uma experiência
pessoal, um mal vivido, como é visto com Davi,22 com Jó,23 com Mardoqueu e Ester24 e
muitos outros exemplos.25
Há que expor, à vista disto, a passagem do povo eleito da escravidão no Egito à
libertação, sua caminhada no deserto e sua chegada à terra prometida: o Senhor atentou-
se às agruras da escravidão imposta ao povo, ouviu seus rogos, foi-lhe ao encontro e o
libertou.26 Quando tratou desse trecho da história salvífica do povo eleito, o Profeta deu
ênfase na individualidade do amor e da compaixão do Senhor.27 É ratificada, com isso, a
confiança do povo na misericórdia de Deus, invocada em toda e qualquer circunstância
adversa. Mais tarde, cantarão as maravilhas por Ele realizadas.28
No meio do deserto, prestes a receber das mãos de Moisés o Decálogo, 29 o povo
cai em pecado, erguendo um bezerro fundido para adorá-lo. Contudo, foi o momento
oportuno, encontrado pelo Senhor para solenemente se apresentar ao povo como um
“Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em graça e em fidelidade” 30, ou
seja, um Deus misericordioso. Nessa manifestação o povo – e cada um em particular –
encontra motivo para, contrito, abrir o coração diante Senhor31 e recordar que Ele é
amoroso, tolerante para com o pecador.32 Transborda compaixão e ternura.33

13
JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, nota 52, p. 16.
14
Cf. JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, n. 21-32.
15
Cf. Jz 3.
16
Cf. 1Rs 8,22-53.
17
Cf. Is 1,18; 51,12-16.
18
Cf. Br 2,11 – 3,8.
19
Cf. Mq 7,18-20.
20
Cf. Ne 9.
21
Cf. Os 2,21-25.
22
Cf. 2Sm 12; 24,10.
23
Cf. Jó passim.
24
Cf. Est 4,17s.
25
Cf. Ne 9,30-32; Tb 3,2-3.11-12; 8,6s; 1Mc 4,24.
26
Cf. Ex 37s.
27
Cf. Is 63.
28
Sl 136,4.10-11.13-14.
29
Cf. Ex 32,1-20.
30
Ex 34,6.
31
Cf. Jl 2,13a.
32
Cf. Nm 14,18; Sl 86,15.
33
Cf. 2Cr 30,9; Eclo 2,11.

5
Assim o Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras como nas palavras,
desde os primórdios do povo que escolheu para si; e no decurso da sua história,
este povo, quer em momentos de desgraça, quer ao tomar consciência do
próprio pecado, continuamente se entregou com confiança ao Deus das
misericórdias. Na misericórdia do Senhor para com os seus manifestam-se
todos os matizes do amor: Ele é para eles Pai, dado que Israel é seu filho
primogênito; Ele é também esposo daquela a quem o Profeta anuncia um nome
novo: “bem-amada” (ruhama), porque será usada misericórdia para com ela.34

Deduz-se, assim, que a misericórdia não é só uma definição divina que levou à
conclusão apostólica de um Deus que ama e também é amor.35 É uma realidade que
caracteriza a vida daqueles que são chamados a serem povo de Deus, filhos e filhas de
um mesmo Pai. Cria uma intimidade com o seu Senhor. Anunciada primeiro a Israel, esta
verdade toma uma perspectiva que engloba toda a história humana. É nela que se dá a
revelação por parte de Jesus, que apresenta de uma nova forma essa realidade entranhada
na vida do povo de Israel.
Com a significação de misericórdia, abre-se um claro horizonte no estudo sobre
as parábolas desse capítulo 15 de Lucas que é concluído com a intensa narração sobre um
pai e seus dois filhos extraviados, isso mesmo, os dois estão extraviados. Para pedagogia
divina, bem como para aqueles que creem, nada está perdido, nada pode ser desprezado.
As parábolas são progressivas: perde-se uma ovelha dentre cem, uma moeda dentre dez
e por fim, um filho dentre dois. Tomando a matemática, as perdas são, respectivamente,
de 01%, 10% e 50%. Aos olhos de Deus contentar-se com o que ficou não é suficiente, é
necessário importar-se com aquilo que está perdido.36

A murmuração de alguns (Lc 15,2)


É possível surgir, a partir desse versículo, o seguinte questionamento: Por qual
razão os escribas e fariseus murmuraram a respeito dessas duas atitudes de Jesus? No
Oriente, segundo Tiago C. S. Dias, alguém com posses pode alimentar qualquer
quantidade de necessitados que lhe for possível e tal ato será expressão de sua
benevolência e generosidade. Contudo, esse nobre benfeitor deve ter em mente não lhe
ser permitido tomar parte na mesa: alimentar não implica, necessariamente, acolher em
casa e comer junto. 37
O costume pede que, ao receber um hóspede, o anfitrião preste-lhe as homenagens
prescritas pelo ritual de acolhida e façam juntos a refeição.38 Eis a causa de tamanha
admiração por parte dos murmuradores.39 Para eles, orgulhosos de sua moral
inquestionável e proprietários de sua religião, era ofensivo a recepção dos pecadores por
Jesus e sua comunhão (comer juntos) com eles. Algo inconcebível esse anúncio de um
Deus que pertencia aos pobres.40
Como era possível receber alguém, Aquele que não tinha nem mesmo onde
repousar a cabeça?41 Ele recebia junto de si, onde quer que fosse ou estivesse. Ele os
acolhia em seu coração. Eram também filhos do Criador, faziam parte do rebanho a ele

34
JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, n. 27.
35
Cf. 1Jo 4,8.16.
36
Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas – A antropologia da salvação, 1999. pp. 147-148.
37
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 316.
Acessado em 14/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
38
Cf. Lc 7,36-50.
39
Cf. DIAS. Op. Cit. Loc. Cit.
40
Cf. GONZALES, Angel et al. Commento della Bibbia Liturgica, 1982, p. 1244.
41
Cf. Mt 8,20.

6
confiado e não poderia lançá-los fora nem os perder.42 A todo momento os chamados
pecadores queriam fazer comunhão com o Messias anunciado. Todos sabiam quem eles
eram, afinal já havia uma predefinição de “pecantes”, o próprio evangelista, mais à frente,
traz uma classificação destes: ladrões, injustos, adúlteros.43 A lista da época também
incluía pessoas que exercessem uma profissão desonrosa como os cobradores de
impostos, pastores, tropeiros, vendedores ambulantes. A estes eram negados alguns
direitos civis (cargos públicos e testemunho em tribunais).44
Percebe-se, em vista disso, que Jesus age de modo contrário aos princípios
rabínicos que proíbem um homem fazer companhia a um ímpio até mesmo se for para
conduzi-lo a conversão e também contra uma importante convenção destes. Deus não
pode amar um pecador sem que antes ele se converta.45 Cristo, que a essa altura do
Evangelho, percorre o caminho rumo a Jerusalém,46 dá uma resposta defensiva rápida,
não direta, mas seguindo a tradição dos antigos, através de uma série de três parábolas.

Jesus e as Parábolas (Lc 15,3)


Na leitura dos evangelhos sinóticos nota-se um considerável uso da expressão
“parábola”, levando a pensar em uma utilização natural, na época, desse tipo de
linguagem literária para instruir alguém ou um grupo. Empregada a fim de elucidar um
“além da situação”, não há como encontrar neste estilo literário um sentido em si, mas
somente em virtude de uma prática posterior.47 A parábola possui uma relação conceitual
que necessita ser explicada para ensinar o caminho a ser tomado na vida cotidiana.
O termo vem do grego parabolé que, de modo literal, significa colocar de lado,
lançar junto, fazer paralelo. No uso bíblico por vezes é entendido apenas como
comparação, apesar de as histórias de Cristo possuírem características mais amplas do
que o conceito grego. No hebraico encontra-se um correspondente com a palavra mashal:
dito ou provérbio que exprime sabedoria. Para o hebraico, segundo Joachim Jeremias,
não há uma classificação tão precisa de parábola:

O mashal hebraico... designava, mesmo no judaísmo pós-bíblico, sem que se


possa fazer um quadro esquemático, toda sorte de linguagem figurada:
parábola, comparação, alegoria, fábula, provérbio, revelação apocalíptica, dito
enigmático, pseudônimo, símbolo, figura de ficção, exemplo (tipo), motivo,
argumentação, apologia, objeção, piada.48

Com suas raízes no Antigo Testamento e na literatura rabínica, as parábolas


evangélicas são o fruto de um desenvolvimento, dentro de séculos, desta forma literária.
Chegou-se a enumerar pelo menos nove parábolas veterotestamentárias, sendo elas: a
ovelha (2Sm 12,1-4), o fratricida e a vingança (2Sm 14,6-11), a fuga do cativo (1Rs
20,35-40), o vinhateiro (Is 5,1-7), a águia e a vinha (Ez 17,3-10), a leoa e seus filhotes
(Ez 19,2-9), a vinha (Ez 19,10-14), a floresta incendiada (Ez 21,1-5) e a panela fervente
(Ez 24,3-5).49 Excetuando as duas primeiras citações, a lista, na realidade, é composta por
alegorias, que induzem o ouvinte a admitir um fato, até então, imperceptível em relação
a si mesmo.
42
Cf. Jo 6,37; 17,12.
43
Cf. Lc 18,11.
44
Cf. JEREMIAS. J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 135.
45
Cf. Nuovissima Versione della Bibbia: LUCA. Versão de Carlo Ghidelli, 1981, cap. 15, vers. 2, nota de
rodapé.
46
Cf. Lc 9,51 – 19,28.
47
Cf. DUPONT, Jacques. Por que parábolas? O método parabólico de Jesus. p. 7.
48
JEREMIAS. J. As Parábolas de Jesus, 1978. p. 13.
49
MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, 1983. p. 691.

7
Já nos primeiros decênios, após a paixão do Senhor, as parábolas têm sofrido
desvios interpretativos, sendo tratadas como alegorias, atribuindo a cada ponto da história
uma profunda significação, que acabou por envolvê-las em uma espessa névoa no que
concerne ao seu sentido.50 Por influência helenística, pode ter havido, para tal, uma ânsia
inconsciente de encontrar na simplicidade de se expressar de Jesus uma definição mais
densa. Joachim Jeremias afirma que: “No meio helenístico estava amplamente espalhada
a interpretação alegórica[...], a exegese alegórica fez escola; coisa semelhante era de se
esperar neste assunto também dos mestres cristãos”.51
Jesus é simples para falar com os simples. Ele se utiliza das figuras que eram
comuns tanto para Ele quanto para aqueles que o seguiam. Fala sim dos assuntos divinos
e elevados, contudo com uma linguagem acessível para que todos possam se aproximar
dele e buscar viver os ensinamentos por ele pregado. Até pode ter bebido das fontes do
Antigo Testamento, porém verte de si algo de original, único, de tal modo a prender e
cativar o ouvinte, que não se sacia e o busca para ter mais desta salutar bebida.52
Em suas parábolas, o Galileu busca colocar aqueles que o circundam em situações
concretas. Ele fala com o salmista: “Vou abrir minha boca numa parábola, vou expor
enigmas do passado”.53 Faz referência a momentos vividos, leva-os a uma mudança de
visão e comportamento, ou seja, está intimamente ligado a um condicionamento histórico.
Tudo isso levando em consideração o seu propósito: Revelar Deus e Anunciar o seu
Reino. Por meio delas Ele faz o irrecusável convite de participar do Reino, tornam-se um
traço típico de sua pedagogia. Através do método parabólico há um chamamento não só
para o banquete54 como também à uma escolha radical: para possuir o Tudo (Deus/Reino)
é necessário dar tudo.55 É preciso mais ação que somente palavras.56

O tema principal do ensinamento em parábolas é o próprio Deus, seu


comportamento em relação aos homens[...], e sobretudo o estabelecimento do
seu Reino, o processo modesto, e o avanço progressivo que levarão finalmente
a esse estabelecimento[...]. Mas as parábolas falam também do homem, do seu
comportamento em relação a Deus ou ao próximo, do comportamento dos
discípulos de Jesus[...] etc.57

Muitas vezes – como no caso do capítulo 15 de Lucas – a parábola é pronunciada


por Jesus como defesa ou justificativa diante de uma situação conflitante. Ela pode ser
ataque e até mesmo desafio. “As parábolas são, não exclusivamente, mas em grande parte,
armas de luta”58 utilizadas contra a dureza dos corações59 de alguns que o cercavam. No
capítulo em questão, elas defendem e iluminam a atitude de Cristo que perdoa os pecados,
derruba as barreiras religiosas e chama os pequenos ao Reino. Neste caso elas ganham
um nome, são as Parábolas do Perdão ou da Misericórdia.60

50
JEREMIAS. J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 9.
51
JEREMIAS. Loc. Cit.
52
CERFAUX. L. O tesouro das parábolas, 1974, pp. 5-14.
53
Sl 78,2; Mt 13,34-35.
54
Cf. Mt 22,1-4; Lc 14,15-24.
55
Cf. Mt 13,44-45.
56
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2000, n. 546.
57
MONLOUBOU, Louis; DU BUIT, F.M. Dicionário Bíblico Universal, 1996, pp. 588-589.
58
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 15.
59
Cf. Mt 13,10-17.
60
Cf. GONZALES, Angel et al. Commento della Bibbia Liturgica, 1982, p. 1244.

8
O rebanho, as ovelhas de um Pastor (Lc 15,4-7)
Deus é revelado como a força61 de um amor que não se cansa de ir ao encontro.
Um amor que salva e cria.62

Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como


a de um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o
pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia [...] Deus é
apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa [...] a
misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de
amor e consola com o perdão.63

Na primeira parábola Jesus utiliza uma imagem muito comum e cara ao povo
daquela região: a de um pastor de ovelhas. Nota-se a alusão ao Antigo Testamento
mostrando um Deus-Pastor, a exemplo de Israel ao abençoar José64 e se despedir de seus
filhos,65 ou dos profetas ao pronunciarem oráculos do Senhor contra os maus pastores.66
O evangelista Mateus ao expor uma semelhante parábola67 trata apenas da consequência:
“do mesmo modo, vosso Pai do céu”...68; já Lucas, em contrapartida, apresenta o modo
como o Divino Pastor se volta para o pecador, oferecendo não apenas um perdão estático.
A Misericórdia Divina é algo dinâmico. Ele busca de maneiras diversas, até que encontre
a ovelha perdida.69
Ao observar que o Senhor é o Pastor, percebe-se assim, que o rebanho que ele
pastoreia é o povo eleito e este proclama tal fato em vários momentos da Sagrada
Escritura, atestando de fato que ele é conduzido por Deus qual um rebanho.70 Por vezes
antecipa a imagem da parábola e se apresenta como ovelha perdida implorando pela busca
do seu pastor71 e também como seguidores do próprio caminho, errantes, pelos quais o
Senhor toma sobre si as suas dores.72
Jesus inicia sua apresentação com uma pergunta, não dando outra opção a não ser
a de uma resposta positiva. No entanto, poderia surgir outro questionamento por parte dos
ouvintes: para quê fazer tanto caso por uma ovelha se ainda restam noventa e nove? Não
é à toa que ocorre a insistência de repetir o número de ovelhas “deixadas” na pastagem
que é muito superior à de uma única ovelha. Neste ponto expõe-se uma reflexão sobre a
visão de superioridade daqueles que murmuravam, aqui qualitativa, lá quantitativa, em
relação aos que se aproximam do Senhor. Ele usa do psicológico, no qual algo perdido,
por esse simples fato, ganha um valor superior ao real.73 Ainda mais para quem pastoreia
tal número de ovelhas, para ele cada ovelha é importante, pois de cada uma ele tira o seu
sustento.

61
Cf. Rm 1,16.
62
Cf. 1Jo 3,1-2.
63
FRANCISCO PP. Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia “Misericordiae
Vultus”, 2015. n. 9.
64
Cf. Gn 48,15.
65
Cf. Gn 49,24.
66
Cf. Jr 23; Ez 34; Nuovissima Versione della Bibbia: LUCA. Versão de Carlo Ghidelli, 1981, cap. 15,
vers. 4, nota de rodapé.
67
Cf. Mt 18,12-14.
68
Mt 18,14.
69
Cf. TUYA, Manuel et al. Biblia Comentada: Evangelios, 1962, p. 163.
70
Cf. Sl 23.
71
Cf. Sl 119,176.
72
Cf. Is 53,6.
73
Cf. DUPONT, Jacques. Por que parábolas? O método parabólico de Jesus, pp. 51-52.

9
De fato o dono do rebanho não é homem muito rico. Entre os beduínos, o
tamanho do rebanho oscila entre vinte e duzentas cabeças de gado miúdo;
trezentas cabeças já se tem no direito judaico como um rebanho
descomunalmente grande. Como dono de cem ovelhas, o homem tem, pois,
um rebanho de tamanho médio; ele próprio cuida delas [...], não podendo pagar
ninguém para fazê-lo para ele.74

O pastor só cessa sua busca quando o objeto desta é reencontrado. E eis que Jesus
toma uma outra imagem veterotestamentária, profética e bela: a ovelha que é carregada
no regaço e é carinhosamente conduzida.75 Cansada por vagar a ermo, sem forças e
podendo até mesmo estar ferida, ela espera; assim como conhece a voz daquele que a
conduz,76 no seu íntimo ela também sabe não ser abandonada pelo pastor. Ele virá ao seu
encontro.77 Chega de fato e se alegra ao vê-la. Jesus manifesta um Deus cheio de alegra
pela conversão de um pecador,78 alegria transbordante e fecunda, que tranquiliza e gera
força.79 Um gozo que anseia ser comunicado e partilhado. Para Lucas, ele deve ser quase
que epidêmico, deve encontrar um caminho em direção ao outro. Quando fala de amigos
e vizinhos, a alegria ganha uma dimensão comunitária e fraterna.80 Pode ser feita uma
ligação de amigos com profetas e vizinhos com aqueles que os ouvem. A alegria diante
desse retorno ganha definição e perspectiva novas, não se limita ao contentamento terreno
de convidar amigos e vizinhos para festejar: ela ecoa nos céus.81

A “maior alegria” de Deus pela conversão de um pecador, em comparação com


a “multidão” dos justos, não deve ser tomada em sentido literal: Jesus com
linguagem intencionalmente paradoxal quis apenas realçar a grandeza e a
intensidade da alegria divina, deixando na sombra todos os outros aspectos,
como identificação dos “justos” com os fariseus, a predominância numérica
dos justos sobre os pecadores na proporção sugerida pela parábola.82

Jesus está falando, ao povo de Israel, para que Ele veio. Os “justos” (fariseus e
escribas) necessitam entender a frase dele dirigida a cananeia.83 Veio senão para reunir o
povo de Israel, juntar como ovelhas no aprisco e rebanho nas pastagens.84 É a estes a
direção desta parábola de Cristo. É aos filhos de Israel que estão dispersos e
marginalizados. Eles não deixaram de ser herdeiros da aliança e da promessa, apenas
necessitam ouvir de novo a voz do pastor,85 permitir-se serem acomodados nos ombros e
se alegrarem diante da festa que Deus faz por estarem em comunhão. Deus quer a
conversão e a vida para todos.86

74
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 135.
75
Cf. Is 40,11.
76
Cf. Jo 10,27.
77
Cf. Pr 7,15.
78
Cf. Sl 16,9.
79
Cf. Ne 8,10.
80
Cf. Nuovissima Versione della Bibbia: LUCA. Versão de Carlo Ghidelli, 1981, cap. 15, vers. 5-6, nota
de rodapé.
81
Cf. TUYA, Manuel et al. Biblia Comentada: Evangelios, 1962, p. 163.
82
LANCELLOTTI, Boccali. Comentário ao Evangelho de São Lucas, 1979, p. 158.
83
Cf. Mt 15,24.
84
Cf. Mq 2,12
85
Cf. Jo 10,27.
86
Cf. Ez 18,23.

10
A mulher e sua pequena fortuna (Lc 15,8-10)
A segunda parábola vem imediatamente seguida a das ovelhas. Jesus não dá tempo
para contra respostas. O momento é de ouvir o mestre que ensina. Assim como a seguinte,
esta parábola é única em Lucas. Segue a estrutura daquela anterior: pergunta, solicitude
para com o pecador e alegria pelo retorno deste. Jesus descreve minunciosamente cada
passo da personagem. É uma história viva, que prende. Perde, acende a luz, varre e então
encontra. O destaque mais uma vez está no zelo de Deus pelo pecador. Neste instante
toda a providência está suspensa. O pecador se esconde para escapar do perdão que o
Senhor oferece.87
Por que o Mestre usa apenas dez moedas e por qual motivo a figura da dracma?
Não poderia ser um valor bem mais superior e, ainda mais, haveria a necessidade de ser
uma moeda estrangeira, de origem grega? As dracmas da mulher podem fazer referência
aos adornos de cabeça, constituídos de moedas, utilizados pelas mulheres palestinenses e
que são pertencentes ao seu dote. É algo precioso, de muito valor, inclusive sentimental.
São referências encontradas também nos antigos escritos rabínicos. É possível avaliar,
desse modo, que pela quantidade de moedas a mulher deveria ser alguém pobre, visto
que, se assim não fosse ela possuiria tanto um número maior como também elas seriam
de ouro. Era um dote modesto, segundo Joachim Jeremias.88
Ao usar a dracma e não uma outra moeda utilizada pelos judeus da época, Cristo
amplia o círculo da salvação. Aquela parábola da ovelha, como visto, é direcionada para
o povo-herdeiro de Israel. Esta, com a imagem da moeda grega, quer estender esta herança
para todos aqueles povos chamados gentios, estrangeiros, ou seja, aos não-judeus
presentes naquela região. Também para estes o Messias e sua mensagem foram enviados.
A estes Deus volta a sua atenção e os procura. Já que eles buscam o Senhor89 e acreditam
no projeto do Cristo, a eles, do mesmo modo, é garantido o cumprimento da promessa
salvífica.
Na narrativa Jesus não menciona o momento do dia em que ocorrem os fatos,
apesar de comentar que uma luz foi acesa. Não significa, todavia, que seja noite, pois
após encontrar, ela reúne um grupo para festejar. Esta informação pode significar que, de
fato, era uma mulher de condição humilde, ao ter o conhecimento que as casas dos
camponeses da época não eram possuidoras de janelas e que a luz que eventualmente
entrava no recinto vinha da pequena porta.90
A luz acesa e a dúvida da hora podem significar que para o Senhor, desejoso pelo
retorno do pecador, não há hora específica para a busca. Deus não descansa enquanto não
tiver de volta seu precioso dom: o ser humano. Cristo é a lâmpada usada por Deus e
através da qual ele vai ao encontro do objeto do seu amor, dissipando as sombras da
ignorância e do pecado.91 O povo é iluminado e arrancado das sombras da morte, enche-
se de vida.92 Vale lembrar que Evangelho já no seu início fala dessa luz e da misericórdia
do Senhor: “Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo qual nos visita o Astro
das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos
passos no caminho da paz”.93
O versículo segue com uma ação bem comum. É uma estratégia da mulher para
encontrar mais depressa a moedinha. Ora, a poeira recobre o chão da casa de terra batida
87
Cf. CERFAUX. L. O tesouro das parábolas, 1974, p. 74.
88
JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 137.
89
Cf. Is 55,6.
90
Cf. CERFAUX, L. O tesouro das parábolas, 1974, p. 74.
91
Cf. CONFESSOR, São Máximo. Das “Respostas a Talássio”. In: Lecionário Monástico. Volume V.
Semanas 12 a 23 (Ano II). Org.: Mosteiro de São Bento. Rio de Janeiro: [s.n.], 2016, p. 2.
92
Cf. Is 9,2.
93
Lc 1,78-79.

11
e pedras, ao tomar a “vassoura” que pode ser um ramo de palmeira, a mulher espera ouvir
o tilintar do objeto perdido. Encontrando-o, ela reúne as amigas e vizinhas. É um fato
importante que precisa ser partilhado, festejado e devem comungar de sua alegria. Afinal,
a moeda tem o valor de um dia de trabalho no campo.94

A alegria e a festa de Deus está toda concentrada no acontecimento salvífico


por excelência: o retorno e a conversão do pecador, a ponto de não haver mais
lugar para alegria em relação aos justos ou perfeitos. Mas pode-se encontrar
um justo que não precise de conversão? [...] Eles precisam de uma conversão
mais profunda, de uma revolução religiosa que os leve a compreender o estilo
de Deus para participar na sua festa, na sua alegria salvífica.95

Jesus mostra que o ser humano é propriedade divina, pertence a um Deus


misericordioso, transbordante de ternura e amor. Ele não revela uma novidade, como
expresso antes. Esta imagem da Misericórdia Divina, como tantas outras, já está presente
no Antigo Testamento, na história do povo de Israel, porém, os legalismos de alguns
encobriram essa face divina, sua verdadeira face. Esconderam debaixo das prescrições,
estatutos e normas, a figura daquele Deus atento, que ouviu o clamor do seu povo e foi-
lhe ao encontro.96 É necessário que o povo se recorde e volte ao primeiro amor.97 Que
possa, com o salmista, entoar a plenos pulmões: “seu amor (sua misericórdia) é para
sempre”.98

Em busca da liberdade (Lc 15,11-12)


Jesus é incansável quando se trata de abrir os olhos daqueles que veem somente o
exterior.99 Ele inicia o processo de conclusão desta sua pregação com uma drástica
mudança: não são mais animais ou objetos, agora são apenas pessoas para indicar aos
seus “opositores” o que lhe competia buscar e ganhar para si, de modo especial, esses
filhos e filhas afastados e errantes.100 A profundidade da história é tamanha; a ponto de
poder ser considerada a joia dentre tantas que o Senhor contou. A doutrina da misericórdia
cristã chega ao seu cume, “é um evangelho dentro do Evangelho”.101
O Senhor, com figuras, fala deles para eles. Espera que cada um se encontre nos
personagens dessa nova narração. Já prende a atenção do ouvinte quando discorre sobre
algo tão corriqueiro, ou seja, a família, mais ainda, quando se trata de conflito familiar.
Três são os personagens: pai, filho mais novo e filho mais velho. Os filhos vivem
pacificamente, cuidam dos bens junto com o pai, ajudam o progenitor a manter a
estabilidade do lar. Contudo,

Gradualmente o filho mais jovem julga esta vida tediosa, insatisfatória: [...]
levantar todos os dias, digamos, às 6 horas e depois, segundo as tradições de
Israel, uma oração, uma leitura da Bíblia Sagrada, e depois ir trabalhar e no
final novamente uma oração. Assim dia após dia, ele pensa: mas não, a vida é
mais do que isto, devo encontrar outra vida, em que eu seja verdadeiramente

94
Cf. JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus, apud FABRIS, Rinaldo; MAGIONNI, Bruno. Os Evangelhos
(II), 1992, p. 160.
95
FABRIS, Rinaldo; MAGIONNI, Bruno. Os Evangelhos (II), 1992, p. 161.
96
Cf. Ex 3,7-9.
97
Cf. Ap 2,4-5.
98
Sl 118,1b.
99
Cf. 1Sm 16,7.
100
Cf. BAUDLER, Georg. A figura de Jesus nas parábolas: a obra narrativa da vida de Jesus, um
acesso a fé, 1990, pp. 288-289.
101
LANCELLOTTI, Boccali. Comentário ao Evangelho de São Lucas, 1979, p. 158.

12
livre, possa fazer o que me agrada; uma vida livre desta disciplina e destas
normas dos mandamentos de Deus.102

Há um desejo de liberdade. Não quer preocupações com as tarefas dadas pelo pai
e, ao que parece, não se importa com as normas estabelecidas por uma divindade distante.
Ele tem uma solução para alcançar o seu propósito, bem simples: pedir ao pai a parte dele
na herança. À primeira vista, é algo normal e poderia ser interpretado como coragem,
autonomia e empreendedorismo. Entretanto, é interessante tomar sempre a Sagrada
Escritura e observar o que ela tem a dizer sobre o assunto.
O livro do Eclesiástico é claro ao dizer que somente na hora da morte, no último
dia dos dias, seja distribuída a herança.103 Aconselha que, durante a vida, a ninguém dê
poder sobre si, nem sobre os bens, sendo sempre o senhor de tudo,104 deixando, no
entanto, a possibilidade de fazê-lo. O rei Davi, em vista disso, seguindo um juramento
feito a Bersabéia, faz Salomão ser consagrado rei, tomar posse de seu trono e se rejubila
por conseguir ver seu filho reinando.105 Pode-se, com isso, afirmar que havia, na época,
duas formas de se conceder a posse dos bens: por direito de propriedade (doação) ou por
direito de uso (testamento). No primeiro – geralmente de difícil compreensão – o bem
pertencia ao filho, porém, este não tinha o usufruto, que só ocorreria na morte do pai.
O que pode passar despercebido, em tudo isso, é que não se vê a opção de requerer
uma herança. Um chefe de clã tem a autonomia de ceder seus bens. Todo filho tem o
direito de uma parte da herança.106 No entanto, ele não tem a prerrogativa de requisitá-la.
Ao fazê-la, ele incorre em uma grave falta. Entende-se essa atitude como que um atestado
de óbito do pai, ainda vivo, escrito e assinado pelo filho. O rapaz age como que quebrasse
com os laços familiares, lança fora a honra do pai. “Para mim o senhor não tem nenhum
valor, está morto”, diz o filho com esse ato.
A ação do pai, diante do pedido, torna a situação impensável. Imagina-se a
surpresa de todos ao ouvir que ele logo acata ao requerimento do filho. Seria de se esperar
que o filho fosse fortemente repreendido, disciplinado com o apoio da lei. 107 Este amor,
dramaticamente ilustrado, é difícil de acreditar. Até para rejeitar quem ama, ele dá
liberdade.108 Vale destacar, neste ponto, o vocabulário grego utilizado pelo evangelista.
Quando o filho pede sua porção, o termo usado é ousia (substância, propriedade, herança).
Já no momento em que o pai atende ao desejo, Lucas faz uso do vocábulo bios (vida). O
chefe daquela família, assim, ao entregar os bens, abre mão do bem mais precioso que é
a vida de seu filho. No silêncio do seu amor, o pai concede a liberdade ao filho.109
Os filhos receberam a vida do pai. O mais velho segue sua (in)dependência sem
sair de casa. O mais novo deseja tão logo ter o conhecimento do bem e do mal.110 Vale
ressaltar que nesses dois versículos que iniciam a parábola, o filho mais velho é citado
duas vezes e em nenhuma é revelada sua reação. Foi beneficiado tanto quanto o irmão.
Ele poderia muito bem receber sua parte protestando oralmente sobre as implicações que

102
BENTO PP XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo – Pregações para o ano litúrgico (Ano A),
2017, p. 296.
103
Cf. Eclo 33,24.
104
Cf. Eclo 33,20-23.
105
1Rs 1 – 2.
106
O que correspondia ao filho mais novo, sendo apenas dois, segundo Dt 21,15-17, era a terça parte dos
bens.
107
Cf. Dt 21,18-21.
108
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 319.
Acessado em 21/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
109
Cf. ROHDEN, Huberto. Sabedoria das parábolas, [s.d], p. 20.
110
Cf. Gn 3,1-6.

13
tal pedido geraria para o clã ou então assumir uma posição conciliadora, tentando
persuadir o irmão a desistir da empreitada. Não. O silêncio fala bem mais. Manifesta que
este possuía um outro relacionamento com o chefe do lar.111

Do tudo ao nada (Lc 15,13-14a)


O jovem tem pressa para usufruir de sua liberdade. Segundo o narrador, foram
poucos os dias que ele ainda ficou em casa paterna. Ele vai em busca do seu projeto de
vida. Ao que parece ele pediu não só a posse, mas o direito de dispor, de fazer uso total.
Pode ter convertido a herança em dinheiro, ou seja, vendeu sua parte. Ele não tinha o zelo
e a ligação afetiva que, por exemplo, tinha Nabot por sua vinha, herança familiar. A
simples possibilidade de cedê-la faz com que o personagem do Antigo Testamento rogue
ao Senhor que isto jamais ocorra. No Oriente, o apego à terra é muito forte.112 O recém-
liberto, ao contrário, não quer ver o pai, nem nada que tenha ligação com ele; mostra-se
egoísta, separatista, sem a mínima noção cósmica de si. Tomando os haveres, ele, de
modo voluntário, se exila, faz sua diáspora porque interiormente já está, há muito,
disperso.
Estando com tudo o que poderia conseguir, ele deve ter vivido bem, sentia-se livre
e isso era sua felicidade. O texto nesse ponto é bem sucinto, não diz como gastou, apenas
expressa a vida desregrada que ele viveu. Deixa a imaginação do ouvinte voar solta sobre
o que o rapaz teria feito. Se teria confundido liberdade com libertinagem. Algumas
traduções expressam que levou uma vida libertina.113 O irmão mais tarde acusa-o de viver
embriagado e entre prostitutas, se assim foi, o final já era previsto pelas escrituras.114 Mas
deve, também nesse lugar distante, ter sentido o tédio de fazer sempre a mesma coisa.
Passa o dia fazendo o quer e no final da tarde o que resta? Vazio e inquietação. Ainda não
encontrou a vida, esta na verdade parece paulatinamente se esvair.115

O gênero humano desviara-se para a idolatria, partira para uma longínqua


peregrinação. O que está mais longe daquele que te criou que a representação
que dele fizeste? Partiu, pois, o filho mais moço para um país longínquo,
levando consigo os seus haveres. [...] Os meus passos [grifo do autor], disse.
Que passos senão os maus, que ele deu ao abandonar o pai, como se pudesse
ocultar-se aos olhos de quem podia castigá-lo?116

A Palavra enfatiza apenas uma realidade: a condição dele se desfazer


completamente do que recebeu e gastar até o fim. Ele perdeu tudo, não tinha mais nada.
O moço viveu como queria e podia. A sua herança ele espalhou pelos lugares onde passou.
Na versão grega utiliza-se o termo diascorpíso,117 ou seja, espelhar intensamente, sem
medida, ao bel-prazer, por cantos ou lugares diferentes. Aqui e ali foi deixando um pouco
da herança e também um pouco de si. Por isso e para tal deve ter adquirido parceiros e
parceiras que o acompanhavam em suas comilanças, bebedeiras e devassidões. Nada foi
comentado sobre investimentos, só gastos. Ideias de como poderiam consumir toda a

111
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 320.
Acessado em 22/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
112
Cf. 1Rs 21,1-3.
113
Cf. Bíblia do Peregrino, 1996, Lc 15,13, nota de rodapé.
114
Cf. Pr 23,21; 29,23; Eclo 18,30 – 19,2.
115
Cf. BENTO PP XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo – Pregações para o ano litúrgico (Ano
A), 2017, p. 297.
116
HIPONA, Santo Agostinho de. Dos comentários sobre os Salmos. In: Lecionário Monástico do Ofício
de Vigílias (Tempo da Quaresma), 1999, p. 341-342.
117
Diascorpíso. In: Léxico Analítico do Novo Testamento Grego, 2013.

14
porção recebida do pai não faltaram. Companhias que ajudaram o herdeiro na sua
dispersão. Entretanto, também estes se dispersaram, visto que, não se vê mais à frente
amigos para o ajudar na dificuldade.
Perdeu a filiação, a herança, a comida, a hospedagem, pouco sobrou de si mesmo.
O ocorrido com ele é explicito: “gastou tudo”. Não tinha mais nada. Tornou-se um
desvalido em terra estranha, um órfão por conta própria que optou em fazer um êxodo
para longe de Deus. Perdeu sua dignidade, sua humanidade, “reduzindo-se a escravo das
paixões”.118
Quantos daqueles que ouviam o Senhor não se viram refletidos nesse ponto da
história. Buscaram seus prazeres pessoais, foram egoístas e até mesmo viraram as costas
para Deus. Os olhos deveriam estar fixos naquele jovem mestre que falava com
autoridade.119 Desejavam saber o que ele havia preparado para eles, esperavam que o
Senhor operasse maravilhas na grandeza de seu nome.120 Os que dele se aproximaram
queriam soluções para suas vidas, ansiavam experimentar esse amor de Deus que ele
proclamava, porém só encontravam perdas e dores no caminho que eles mesmos haviam
traçado. Eles necessitavam tomar consciência que “fome e miséria não são castigos
extrínsecos, mas consequências de uma conduta”,121 era uma situação que poderia mudar.

Inferior aos animais (Lc 15,14b-16)


Intensa imagem para a Palestina do século I é a da fome. 122 E ela chegou e se
instalou na região em que estava o jovem errante. Como ele sobreviveria em terra
estrangeira, sem família, amigos ou quem pudesse ajudá-lo? Era esperar a morte. Afinal,
aquilo que agora ele tinha não era mais vida. Se alguns sofreriam com aquela escassez de
alimento, muito mais ele sentiria o peso da fome. O Nazareno em sua narrativa deixa isso
em destaque. O texto não fala de alguns nem de muitos. Contudo, usa apenas o pronome
“Ele”. Quem mais estava sofrendo com tudo o que acontecia naquela região era o jovem.
Ora, se ele gastara tudo, a solução encontrada ou apresentada foi a de buscar
trabalho. O único indivíduo que lhe concedeu “ajuda” e um modo para sobreviver foi um
pagão. O mais humilhante e vergonhoso não foi o fato de ser servo de um não-judeu que
já era ilícito,123 e sim o de ser mandado cuidar dos porcos.

Para os judeus, o porco é um animal impuro; servir aos porcos é então


expressão da extrema alienação e da extrema miséria do homem. O totalmente
livre tornou-se escravo miserável. Para os ouvintes da parábola o contraste não
podia ser mais chocante: um jovem judeu, de boa família, é obrigado a cuidar
de porcos como empregado de um patrão pagão.124

Não só entre os judeus a suinocultura era vista com maus olhos. Também para os
gregos e os romanos era algo desprezível. O Talmude é duro em falar sobre tal assunto,
amaldiçoando a pessoa que cuida da reprodução de porcos. Jesus não entrou nesta seara
sobre impureza à toa, pois da mesma forma eram vistos os cobradores de impostos por

118
MADALENA, Gabriel de Santa Maria. Intimidade Divina – Meditações sobre a vida interior para
todos os dias do ano, 1988, p. 236.
119
Cf. Mt 7,29.
120
Cf. Lc 1,49.
121
Cf. Bíblia do Peregrino, 1996, Lc 15,14, nota de rodapé.
122
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 320.
Acessado em 26/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
123
Cf. At 10,28.
124
PAIVA, Anselmo Chagas de. Anotações de Filosofia do Direito, 2013, p. 68.

15
prestarem serviços ao império romano.125 Para o jovem, o trabalho, que deveria ser
motivo de honra para um homem, torna-se causa de apostasia tendo em vista que ele
estava descumprindo a Lei. Servindo a um pagão e cuidando de porcos, o vínculo com
Elohim é rompido.
Em relação a fome, o Senhor apresenta que o jovem, ao ouvir os ruídos das bolotas
entre os dentes dos porcos e a sua satisfação ao deitarem de barriga cheia no chiqueiro,
sente o forte desejo de se alimentar quais esses animais impuros. Há algumas formas de
apresentar este trecho. As traduções falam de “encher a barriga” e “matar a fome”.
Contudo, não usa o “saciar-se”, visto que o jovem queria apenas enganar o estômago
vazio. Sentiu, talvez, vontade de ser um animal daqueles, já que a estes davam alimentos
e a ele não.

Desejava, pelo menos, esquecer sua insatisfação, já que não podia se satisfazer;
tentava enganar, narcotizar, com gozos materiais os seus anseios espirituais.
Mas, diz o texto, ninguém dava essa satisfação animalesca. Alimentos
materiais não saciam fome espiritual. Ali, no meio duma manada de animais
satisfeitos, desceu a insatisfação do jovem ao mais profundo nadir da
infelicidade.126

O jovem, para o ambiente bíblico, chegou ao ápice da degradação humana. Esta


fase da narrativa recorda aos ouvintes sua história como povo. É a erva amarga do ritual
da Páscoa Judaica, onde fazem memória da escravidão, fome e solidão longe de sua
terra.127 Como não lembrar dos períodos passados no Egito com um faraó que não sabia
quem havia sido José128 e suas panelas de comida no tempo da servidão?129 Ou do exílio
e a saudade de Sião como canta o salmista?130
O jovem passa a valer menos que os animais cuidados por ele, pois da sua comida
não lhe era permitido comer. Contempla-se o fracasso do jovem em vários aspectos
(físico, biológico e psicológico): cansaço, humilhação, fome e sede, frio e nudez, vazio e
solidão. A partir daqui a história começa a tomar um novo rumo. Jesus mostra onde pode
chegar a pessoa ao se afastar de Deus. Ao rejeitar a paternidade divina, a criatura se torna
menor que um animal. É possível imaginar o filho em meio aos porcos, revirando-se na
lama, sentindo dores por causa da fome, chegando a pensar em roubar a comida dada aos
suínos, visto que não davam para ele. Ele quase se esquece da sua humanidade.

Fome e confissão (Lc 15,17-20a)


Naquele estado animalesco, ele tem um lampejo daquilo que fora um dia: herdeiro
e coproprietário de terras. Ele se vê inferior aos empregados que tinha. Jesus revela a
mente do jovem, mostra o que passa em seu interior. Não é a primeira vez que o Senhor
utiliza o recurso de expor o que pensa o personagem. Foi o que fez após um jovem pedir
que o ajudasse na divisão da herança com o irmão;131 ao contar a parábola do esbanjador

125
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 321.
Acessado em 26/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
126
ROHDEN, Huberto. Sabedoria das parábolas, [s.d], pp. 21-22.
127
Cf. FABRIS, Rinaldo; MAGIONNI, Bruno. Os Evangelhos (II), 1992, p. 162.
128
Cf. Ex 1,8-13.
129
Cf. Ex 16,3.
130
Cf. Sl 137.
131
Cf. Lc 12,17ss.

16
dos bens do patrão;132 quando da do juiz e o processo da viúva,133 dentre outros
momentos.134
A expressão utilizada pelo evangelista para esse momento é “caindo em si” que
tanto no aramaico quanto no hebraico pode significar conversão.135 Todavia, entenda-se
como início do processo de mudança. Nesse monólogo interior, Lucas não deseja
exprimir grande sentimento de arrependimento, visto que a conversão se dá, de fato, no
encontro com o pai.136 A reflexão surge da necessidade, da falta de comida e do estado
degradante no qual ele se encontrava. Tudo não passava de interesse próprio. O jovem
não pensou no mal que causara ao pai, não pensou na mãe ou irmãos que ficaram em casa,
na saudade deles. Ele, na escassez, continuava egoísta e orgulhoso.

A situação em que ele veio a encontrar-se quando se viu sem os bens materiais
que dissipara deveria tê-lo tornado consciente, como é normal, também da
perda dessa dignidade. Ele não teria pensado nisso antes, quando pediu ao pai
que lhe desse a parte de herança que lhe tocava[...] parece que nem mesmo
agora está bem consciente dessa realidade[...]. Ele se avalia a si mesmo com a
medida dos bens que tinha perdido[...].137

O jovem, contudo, supera esse seu primeiro momento de interesse pessoal e


egocêntrico. Ele transcende as periferias do seu ego, descobre a autocompreensão.
Começa a fazer um caminho novo, um caminho interior, considera a partir do que está
vivendo e vê que em casa era mais livre. Chega ao conhecimento da finalidade de sua
vida.138 Percebe quem realmente é; seu verdadeiro eu. Ele não é um pastor de porcos, mas
filho de um homem que continua sendo seu pai.139
Ainda consigo mesmo ele se confessa, reconhece-se culpado, necessitado do
perdão do pai. Passa da consideração de sua miséria ao reconhecimento de sua culpa, da
recordação da abundância que tinham os servos do pai à bondade deste, da distância
material e espiritual ao reconhecimento da dimensão vertical do seu pecado. Ele pecou
contra os céus, contra o próprio Deus. Jesus mostra, mais uma vez, a ligação que sua
história tem com personagens do Antigo Testamento, como José diante da mulher
sedutora,140 o Faraó para Moisés,141 o povo em Cades depois de murmurar contra
Adonai,142 Davi após tomar a mulher de Urias.143 Ele fez ressoar no íntimo de cada
ouvinte as palavras: “Pequei contra ti, contra ti somente, pratiquei o que é mal aos teus
olhos”.144 Seguida de sua confissão interior, o jovem impõe a si a pena: deve ser tratado
não mais como filho, senão como servo.

Quando o homem está sinceramente arrependido dos pecados, mesmo se forem


gravíssimos – abandono da casa paterna, vida dissoluta, impiedade e desprezo

132
Cf. Lc 16,3.
133
Cf. Lc 18,4.
134
Cf. Lc 12,45; 20,13; Mt 24,28.
135
Cf. JEREMIAS, J. As Parábolas de Jesus, 1978, p. 131.
136
Cf. Nuovissima Versione della Bibbia: LUCA. Versão de Carlo Ghidelli, 1981, cap. 15, vers. 17, nota
de rodapé.
137
JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, n. 37.
138
Cf. BENTO PP XVI. Um caminho de fé antigo e sempre novo – Pregações para o ano litúrgico (Ano
A), 2017, p. 297.
139
Cf. ROHDEN, Huberto. Sabedoria das parábolas, [s.d], p. 22.
140
Cf. Gn 39,9.
141
Cf. Ex 10,16.
142
Cf. Dt 1, 41.
143
Cf. 2Sm 12,13.
144
Sl 51,6.

17
total da lei – os destrói Deus e esquece, como coisas que se calcam aos pés[...].
Criou Deus o homem livre; e quando este, como o filho pródigo, com gestos
de independência e rebeldia, afasta-se dele [...] não o detém à força, mas o
espera.145

Aquele que de filho se fez servo, toma a iniciativa de levantar-se do estado em


que se encontra. É mais que um estado físico, é também moral, religioso. Decide não mais
comer do próprio vômito nem voltar à lama.146 Tem a determinação de fazer o caminho
de volta. O caminho que outrora percorrera esbanjando riquezas, volta irreconhecível.
Estava pobre, sujo e encurvado pela fome. O jovem deixa para trás a sua pseudoliberdade
e vai de encontro à verdadeira liberdade impulsionado pelo temor do Senhor.

Um coração aberto (Lc 15,20b-24)


Chega-se no que poderia ser chamado coração da parábola. Esse era o momento
que Jesus ansiava ardentemente expor a todos aqueles seguidores que atentamente o
ouviam. Eles sabiam que o próximo passo tomado pelo Mestre seria mostrar a ação de
Deus. Devem ter percebido que a história fazia ligação do filho com a ovelha perdida.
Tanto um quanto o outro eram figuras do povo de Deus que por várias vezes se afastava
do amor e da proteção do seu Senhor. Surge, contudo, um diferencial nessa nova história.
Naquela, o pastor vai em busca. Nesta, o filho é quem retorna. A liberdade dada por Deus
é expressão máxima do seu amor.

Jesus coloca assim, frente a frente, as duas liberdades que atuam no perdão: a
busca do pai que procura o pecador e a busca do pecador que vai ao encontro
do pai. São dois aspectos complementares do perdão: nele, como na conversão
e na fé, trata-se sempre do encontro de duas liberdades. O perdão não é algo
humilhante, não se olha o passado. O perdão é um respeito mútuo, são duas
vontades que se encontram.147

Chegando à casa paterna, que lhe permitiu descobrir por conta própria o que é
viver e não viver, o jovem é pego de surpresa. Tanto o arrependido como os ouvintes, em
especial os fariseus e escribas, esperavam uma reação diferente do patriarca. Entretanto,
ele esperava o retorno do filho desde sua partida. Ouve-se uma emocionante narração das
ações do pai. Ele nunca deixou de ser pai, apesar das ações do filho.148 Jesus abre o seu
coração e o coração de Deus neste instante. Ele quer, de todas as maneiras, revelar a
grandeza do amor e da misericórdia do Pai. Que não é uma abstração, é concreto, prático,
ativo.
O jovem ainda nem chegou, está no processo de retorno, não recebeu de volta a
glória do que era antes de sair daquele lugar. Ele é visto pelo pai. O olhar do patriarca
ilumina o caminho do filho, dissipando as trevas do erro que o envolvia. “Se o Pai celeste
não tivesse iluminado o rosto do filho que voltava, e não tivesse dissipado a tenebrosa
desordem de seu coração, [...] jamais esse filho teria visto o fulgor da face de Deus”.149
O pai se antecipa, e ao ver de longe o filho, sabe quão difícil está sendo para ele este
retorno. Os que por ele passam sentem desprezo, dele zombam, nem parece homem.150

145
MADALENA, Gabriel de Santa Maria. Intimidade Divina – Meditações sobre a vida interior para
todos os dias do ano, 1988, p. 208.
146
Cf. Pr 26,11; 2 Pd 2,22.
147
GEORGE, Augustin. Leitura do Evangelho segundo Lucas, 1982, p. 81.
148
Cf. Dt 1,31; 14,1; 32,6.
149
CRISÓLOGO, São Pedro. Dos Sermões de São Pedro Crisólogo. In: Lecionário Monástico do Ofício
de Vigílias (Tempo da Quaresma), 1999, p. 343.
150
Cf. Sl 22,7.

18
Vendo o filho ainda no caminho algo age dentro do pai. A palavra utilizada no
grego vem do substantivo splanchina e faz referência ao amor visceral, paternal e
misericordioso, atributos do amor de Deus.151 Toma uma atitude drástica: corre ao
encontro do filho errante. Para um oriental o ato de correr não é normal, ainda mais sendo
um homem abastado, pois o homem se faz conhecer pelo seu andar.152
“Além disso, o pai está à espera do teu regresso errante. Volta saltando para cima
dele, e quando estiveres ainda longe dele, correndo ao teu encontro, ele lançar-se-á ao teu
pescoço e com afetuosos abraços te apertará, já purificada pelo teu arrependimento”.153
O pai não toma o lugar de juiz que os interlocutores de Jesus esperavam. Ele só quer
demonstrar ao filho que seu amor de pai não o julga nem condena, só acolhe e ama.154
Esta foi, é e sempre será a forma de Deus amar seu povo. Israel tantas vezes se afastou
do seu Senhor e mesmo assim nunca foi por Ele esquecido.155
As ações do patriarca ao receber o filho atestam o seu perdão tanto para o jovem
quanto para a comunidade que será reunida. Após lançar-se ao pescoço do filho, que faz
lembrar a cena de perdão entre Esaú e Jacó,156 o encontro de José e seus irmãos,157 bem
como a despedida do apóstolo Paulo.158 Ele o cobre de beijos. É uma ação exagerada,
tendo em vista que tanto com Esaú159 quanto com Davi e Absalão160 o texto faz menção
de apenas um beijo. O pai, todavia, precisa mostrar ao filho que ele está perdoado, a ponto
de não deixar o filho continuar o discurso preparado. Com os feitos do pai, o filho
arrepende-se de verdade, e sabe que não será tratado como um servo, pois o pai tem por
ele um amor profundo e fiel. Há um mútuo acolhimento: o pai acolhe o filho pecador e o
filho acolhe o perdão do pai.
Por muito tempo, para cada ação do pai foi atribuído um significado, uma
explicação teológica, o que não ocorrerá no presente trabalho, visto que o texto lucano é
uma parábola e não uma alegoria. O que é necessário saber é que cada atitude do pai é
prova de que o filho foi perdoado, a filiação foi reestabelecida e que não precisa de
sacrifícios e penitências.161 A única “obrigação” do filho, neste momento, é deixar-se
acolher e festejar. Diferentemente das duas primeiras parábolas, não há um convite para
alegria, o que não significa sua ausência. A ordem de preparar um banquete162 e o motivo
para tal, já expressam o contentamento divino pelo retorno de um filho amado, mais que
isso, esse filho amado estava morto163 e tornou à vida.164 Não um simples voltar para
casa,165 mas uma compunção, uma remissão. É um reviver. Uma ressurreição.

Deveis observar que disse “comamos”, falando em plural, por onde podemos
entender que da carne santíssima deste novilho tão santo, não só come o filho
que estava morto e reviveu, perdido e foi achado, mas também comeu o pai e
os criados da casa. Nisto se vê que nossa conversão e saúde é a alegria do Pai

151
Cf. Ex 34,6; Dt 7,7-9; Is 54,8; Jr 31,3.20; Os 11,8.
152
Cf. Eclo 19,28.
153
BASÍLIO, São. Cartas 46. In: Os Padres da Igreja e a Misericórdia. Org.: Conselho Pontifício para
Promoção da Nova Evangelização. São Paulo: Paulos; Edições Paulinas, 2016, p. 99.
154
Cf. Jr 3,12.
155
Cf. Is 49,15-16a.
156
Cf. Gn 33,3-4.
157
Cf. Gn 45,14.
158
Cf. At 20,37.
159
Cf. Gn 33,4.
160
Cf. 2Sm 14,33.
161
Cf. Sl 51,18-19.
162
Cf. Eclo 32,1-1317.
163
Cf. 1Tm 5,6; Ef 2,1.
164
Cf. Sl 30,12; Cl 2,13.
165
Cf. Jr 3,14.

19
celestial, e sua alegria é o perdão de nossos pecados. E este gozo não é só do
Pai soberano, mas também do Filho e do Espírito Santo, porque a obra, a
alegria e o amor da Santíssima Trindade é una.166

Essa primeira parte da parábola (Lc 15,11-24) deve ser vista como que uma
“balada parabólica”. Possui doze estrofes que se combinam quando se utiliza o
paralelismo inverso. As seis últimas, deste modo, fazem a inversão das primeiras seis. O
discurso dirigido ao pai pela primeira vez está no início, já a segunda vez que o filho se
volta para o pai está no meio. O final inverte o inicial. O ponto de retorno encontra-se no
meio, como é de se esperar visto por esse ângulo de inversão 167 (Apêndice II). “Cada
desejo, perda ou necessidade física da primeira parte [...] corresponderá,
progressivamente, a restauração à filiação e a alegria que daí emana”.168

Filho ou servo? (Lc 15,25-30)


Há uma grande comemoração na casa, celebra-se a vida de um filho. Ruídos e
uma aglomeração diante da habitação. E nessa atmosfera chega o filho mais velho, aquele
que “ficou com o pai”. No Oriente não há uma formalidade ou algum cerimonial
específico para as festas. Ao ouvir a música, o povo que previamente fora convidado,169
chega. Canta-se, dança-se, há muita conversa e bebida. Depois mais uma rodada de
danças, comidas e bebidas. E assim acontece até durar o vinho e a carne.170
Era de se esperar que, independente do motivo da comemoração, o outro filho
fosse sondar, por conta própria, o porquê de tudo aquilo. Contudo, ele observa de longe
e prefere perguntar a alguém, que é bem superficial na resposta, alheio ao sentimento
profundo daquele pai de família. Há algo de estranho nesta primeira atitude do filho que
estava voltando do campo. Sente-se uma ausência de um relacionamento familiar por
parte dele. Mais uma vez é o pai que vai ao encontro. O filho – que Jesus faz intuir ser a
dracma perdida em casa – tem o que pode se chamar de espírito de Jonas, e não aceita um
pai (Deus) que seja piedoso e terno, “lento para ira, e rico em amor”.171
Não há a esperada saudação judaica172 por parte do filho quando o pai chega. Ao
tentar convencê-lo a entrar, a resposta é agressiva, cheia de rancor e amargura. Ele fala
dos serviços prestados ao pai. Contudo, em nenhum momento o chama assim, fala como
se fosse um empregado reclamando salário.173 O sentimento de não filiação por parte dele
é revelado quando ele não aceita um irmão, mas usa a expressão “este”. Como é visto na
parábola dos trabalhadores da última hora,174 ou como o fariseu em sua oração,175 ou
ainda como os oponentes de Paulo,176 e carrega em si um grande desprezo.

166
MAGNO, São Gregório. Sermão sobre o filho pródigo. In: Lecionário Patrístico Dominical. Trad. e
Comp.: Diác. Fernando José Bondan, 2016, p. 572.
167
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 316.
Acessado em 30/06/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
168
Ibid., p. 317.
169
Cf. Lc 14,15-24.
170
Cf. DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma releitura de Lc 15, 11-32 à luz do
contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v. 3, jul/dez-2020, nº 6, p. 325.
Acessado em 01/07/2022. http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.
171
Jn 4,2.
172
Shalom: significa, literalmente, paz e é utilizado como forma de saudação ou despedida.
173
Cf. Mt 20,1-16.
174
Cf. Mt 20,12.
175
Cf. Lc 18,11.
176
Cf. At 17,18.

20
Ele desdenha do que tinha em casa e também do pai. O que fazia era mera
obrigação, ambicionando um bem material futuro. “O destinatário de todas as suas
acusações é o pai, sem usar uma única vez a palavra ‘pai’. Cada uma das palavras [...]
destila sua autossuficiência e, ao mesmo tempo, transpira carência afetiva, inveja”. 177 O
pai, ao contrário, frisa a filiação dele e garante que ele não perdeu nada com a volta do
irmão, pois o amor dado ao filho regresso é o mesmo que o fez sair em busca daquele que
se perdeu em casa. O filho mais velho se perdera por conta própria, pois não se via como
filho.
Israel é mostrado neste “filho bom”, ofendido pelo fato do Pai, na pessoa do Filho,
acolher os pecadores e comer com eles. Há muito tempo acreditavam que a Casa pertencia
a eles e só eles detinham o direito de possuírem os bens prometidos. Jesus lhes mostra o
contrário.

Um convite (Lc 15,31-32)


A parábola poderia muito bem ter sido finalizada no versículo 24. Contudo, a
resposta às murmurações dos fariseus e escribas está na chegada do filho mais velho e na
repetição da frase paterna já dita aos servos. A conversão que Jesus também ambiciona é
a desse filho mais velho, perdido em meio aos legalismos e distante de Deus, incapaz de
se aproximar e acolher o Pai e os irmãos.
Na última parábola, Jesus une todas as demais (Apêndice I) do capítulo com o
único intuito de fazer conhecido esse Pai Celeste bondoso, cheio de ternura e
misericórdia, que apesar da infidelidade do seu povo mantem-se fiel a si e ao seu amor
visceral. É necessário revelar que Deus se alegra com o retorno dos filhos extraviados e
perdidos, que tal festa é símbolo de vida, de alegria, fruto de uma conversão, do
restabelecimento da dignidade humana.178 Humanidade criada a sua imagem e
semelhança179 e que por vezes se deixam levar por apetites que a faz ir para longe do seu
Criador. Esquecem-se de quem verdadeiramente são. Deus, contudo, não esquece, tem
seu nome na palma da mão,180 ama com amor infinito.181
O final é abrupto, convidando o ouvinte a fazer parte desta alegria divina, a seguir
seus passos de amor e acolhida. Jesus deixa claro que a misericórdia deve manifestar-se
na vida e nas obras dos filhos de Deus. Desvela, nele mesmo, o rosto genuíno deste
rahamim e ensina que apesar das diversas formas de preconceito, a misericórdia é
necessária em toda e qualquer situação. O seguimento alegre de Deus é próprio daqueles
que experimentam e transmitem a Misericórdia Divina. Falta com a verdade aquele que
diz amar a Deus e menospreza o irmão.182

Conclusão
Jesus ao introduzir esta resposta parabólica, no capítulo 15 do evangelho de São
Lucas, convida não só aos murmuradores, mas também a cada cristão ao conhecimento
de quem é Deus: um Pai misericordioso que em seu Filho revela um amor desmedido. E
que não são os erros humanos empecilhos para fidelidade e transbordamento deste amor
divino.
O próprio Deus no decorrer da História, segundo as Escrituras, foi demonstrando
e querendo que o povo tomasse consciência deste forte sentimento que o move em direção

177
PAIVA, Anselmo Chagas de. Anotações de Filosofia do Direito, 2013, p. 75.
178
Cf. JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, n. 41.
179
Cf. Gn 1,26-28.
180
Cf. Is 49,16.
181
Cf. Jr 31,3.
182
Cf. 1Jo 4,20.

21
a ele. É Ele quem corre ao encontro, quem busca e, por fim, envia o Filho como prova
desta misericórdia. Uma ação tão forte que não leva em consideração estar a humanidade
em pecado. Foi para o seu resgate que o Messias se encarnou. E Jesus quer mostrar esta
verdade paterna. Em vista disto, a cristandade, mais especificamente, aqueles que sentem
o forte desejo de seguir Cristo mais de perto, recebem do Divino Mestre um convite, um
mandato: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso. Não julgueis, para não
serdes julgados; não condeneis, para não serdes condenados; perdoai e vos será
perdoado”.183 Palavras ditas logo nos primeiros capítulos de São Lucas, como
conscientização da fragilidade humana e demonstração que ela é sempre o objeto deste
amor misericordioso do Senhor.
Quem está no Caminho deve saber que ninguém é deus a não ser o próprio Deus.
Portanto, só Ele é perfeito! O ser humano está em um contínuo crescimento e
desenvolvimento no seguimento do Evangelho. Quedas e distorções sempre haverá neste
processo de discipulado. “Expressões como ‘nunca mais confio naquela pessoa’ é própria
de quem tem vocação para viver não com os filhos de Adão, mas como deuses, num
Olimpo de sua imaginação”.184
Em Pedro, o Senhor ensina aos seus a “regra do perdão”. Deixa claro que a prática
da misericórdia, entre os discípulos, deve ser ilimitada,185 pois, sendo Ele modelo, não há
limites para o amor, o perdão e o acolhimento. Como seguidores, mais ainda, como filhos
de Deus, é preciso ser lento na cólera e pródigos na prática do amor e do perdão. A igreja
sempre entendeu isso e buscou constantemente lembrar aos fiéis. São João Paulo II afirma
que um mundo sem perdão seria um mundo de egoísmos, e que a convivência humana
seria um sistema de opressão, uma arena de luta.186
Com uma leitura atenta da regra beneditina, é possível vê-la impregnada por uma
chamada discretio que poderia, muito bem, ser interpretada como misericórdia.187 Para o
patriarca São Bento todo homem é considerado um ser de elevada importância. O irmão,
seja ele como for, é um outro Cristo, e deve ser amado e acolhido como tal. Se o irmão é
rejeitado e condenado, também o é Cristo. São Bento mostra-se um pai misericordioso e
deseja que seus filhos igualmente sejam. Ele não deseja ninguém triste na Casa de Deus,
tendo em vista que a falta de alegria é própria daqueles que não fizeram a experiência do
amor divino. Os mosteiros beneditinos bem como toda comunidade eclesial, deste modo,
devem ser Casa de Misericórdia. Onde se busca viver o Evangelho, aí se preserva a
misericórdia, caso isto não aconteça, a vida monástica e a vida eclesial tornam-se
superficiais e mentirosas.
A vida cristã, portanto, deve ser reflexo da misericórdia de Cristo, a quem nada
deve ser anteposto. Desde o mais moço na caminhada cristã até o mais alto grau
eclesiástico, deve ser notada a imagem do pai que acolhe de coração aberto, e não a do
filho perdido em legalismos que afastam. Unidos pela obediência ao Evangelho, possam
vivê-la por amor e não por obrigação. O santo legislador quis dar a vida eclesial, tomando
como exemplo a vida monástica o sentido de uma família, com membros complexos,
porém com a mesma finalidade: serem conduzidos juntos à Vida Eterna.188 Onde não há

183
Lc 6,36-37.
184
MARTINS, André. Eis o servo fiel e prudente: a vida de São Bento: comentários aos II diálogos de
São Gregório Magno, 2020, p. 124.
185
Cf. Mt 18,21-35.
186
Cf. JOÃO PAULO PP II. Encíclica “Dives in Misericordia”, 1980, n. 95.
187
Cf. Pról. 41 e 46; RB 2, 24. 31-32; RB 3,3; RB 4; RB 27, 1-3; RB 29, 3; RB 30, 1-3; RB 31, 17; RB
34, 1; RB 35, 1. 3. 12; RB 36, 9; RB 37, 2-3; RB 39, 1-2; RB 40, 3. 5; RB 41, 2. 5; RB 42, 4; RB 46, 5-6;
RB 48, 24-25; RB 50, 4; RB 53, 18-20; RB 55, 1-3. 20-21; RB 59, 8; RB 64, 10. 12-13.
188
Cf. RB 72.

22
misericórdia não há Deus, pois Deus é misericórdia. É necessário, pois, avaliar de que
modo o rahamim do Senhor é recebido no meio da comunidade.189

189
Cf. Sl 48,5.

23
APÊNDICE I

Quadro elucidativo dos elementos das parábolas:

QUADRO DE ELEMENTOS COMPARATIVOS


Pastor Deus
Ovelha Perdida Publicanos e pecadores
Noventa e nove ovelhas Fariseus e escribas
Mulher Deus
Dracmas Povo pagão
Amigos(as) e vizinhos(as) Profetas e quem os ouvem
Pai Deus
Filho mais novo Ovelha/Pecadores
Filho mais velho Dracma/Fariseus e escribas

24
APÊNDICE II

BALADA PARABÓLICA190

1- UM FILHO PERDIDO (Lc 15,11-12)


2- BENS GASTOS COM UMA VIDA DESREGRADA (Lc 15,13)
3- TUDO PERDIDO (Lc 15,14)
4- O PECADO (Lc 15,15)
5- REJEIÇÃO TOTAL (Lc 15,16)
6- MUDANÇA DE MENTALIDADE (Lc 15,17)
6’- “FALSO” ARREPENDIMENTO (Lc 15,19)
5’- ACEITAÇÃO TOTAL (Lc 15,20)
4’- ARREPENDIMENTO VERDADEIRO (Lc 15,21)
3’- TUDO GANHO; RESTAURAÇÃO DA FILIAÇÃO (Lc 15,22)
2’- BENS USADOS NA ALEGRE CELEBRAÇÃO (Lc 15,23)
1’- UM FILHO ACHADO (Lc 15,24)

190
BAILEY, K. As parábolas de Lucas. apud DIAS, Tiago C. S. A parábola do pai misericordioso: uma
releitura de Lc 15, 11-32 à luz do contexto histórico-cultural da Palestina no Tempo de Jesus. PqTeo, v.
3, jul/dez-2020, nº 6, p. 317. Acessado em 30/06/2022.
http://dx.doi.org/10.46859/PUCRio.Acad.PqTeo.2595-9409.2020v3n6p313.

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26
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