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Adriana Gelinski1
Introdução.
O presente trabalho está norteado pela seguinte questão central: Compreender como as
diferentes vivências espaciais dos membros LGBT da Igreja Episcopal Anglicana de Curitiba
(IEA-Curitiba) e da Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá (ICM-Maringá)
constituem as significações de suas sexualidades. Assim, as imaginações geográficas que
foram proporcionadas pela vivência cotidiana na ICM-Maringá, levaram-nos à construção do
recorte do grupo de pessoas LGBT e frequentadoras da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba.
Desta forma, ambas diferenciam-se das igrejas fundamentalistas, pois suas práticas
teológicas e interpretações dos textos bíblicos não são fundamentalistas. A interpretação
fundamentalista dos textos bíblicos pressupõe que cada detalhe é divinamente inspirado, não
há erros ou incoerências, bem como tende a “absolutizar o sentido literal da bíblia” (WEGER,
1
Bolsita técnica Centro Tecnológico de Pesquisa em Ciências Humanas - CETEP e Pesquisadora do Grupo de
Estudos Territoriais - GETE da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR - UEPG; Mestra em Geografia,
Bacharel e graduanda em Licenciatura em Geografia pela UEPG; drycagelinski@gmail.com.
1998, p. 12). Tais textos contém a palavra de ‘Deus’, “inspiradas de tal forma à mente
humana que não são historicamente condicionadas, mas provêm, infalivelmente e de certa
forma, extra-historicamente de Deus” (CASTRO, 2015, p.19). No entanto, ao compreender os
textos bíblicos como fundamento da teologia, faz-se necessário atentar-se que há uma reflexão
humanas sobre tais textos e sobre o divino. Isto se dando em uma perspectiva histórica “,endo
presente o fundamento cristológico que a identifica e como esse fundamento foi
compreendido nas diferentes fases de evolução do cristianismo” (CASTRO, 2015, p.20).
Por conseguinte, evidencia-se o fortalecimento do movimento fundamentalista cristão
de um lado, e de outro há o movimento contrário ao movimento fundamentalista que acolhe e
se aproxima das perspectivas teológicas inclusivas e contextuais. As igrejas ICM-Maringá e
IEA-Curitiba são exemplos dessas igrejas, as quais não utilizam os textos bíblicos como
fundamento único de fé e prática social. Para tanto, a ICM-Maringá e a IEA-Curitiba
questionam e contextualizam as afirmações de textos bíblicos como “Com homem não te
deitarás, como se fosse mulher; abominação é” Levítico 18:22; “Quando também um homem
se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente
morrerão; o seu sangue será sobre eles”Levítico 20:13.
Outro ponto em comum entre os membros LGBT da ICM-Maringá e dos membros
gays da IEA-Curitiba está na vivência religiosa ao decorrer das vidas do grupo pesquisado.
Pois, todas as pessoas foram batizadas e cresceram em ‘berço religioso’ (Adventista,
Assembleia, Batista, Brasil para Cristo, Católica, Presbiteriana, Universal do Reino de Deus).
Desta forma, é evidenciado pelas pessoas entrevistadas que as antigas comunidades
religiosas formalmente são tidas como uma espacialidade confortável, de alívio frente às
mazelas da vida. Todavia, simultaneamente, configuram-se enquanto espaços de opressão e
exclusão para pessoas/grupos que não se enquadram naquilo que é tido por cada denominação
enquanto correto e natural. Ademais, os discursos religiosos presentes nas antigas
comunidades religiosas compreendem o mundo a partir da noção binária e heterossexual
mulher/feminina e homem/masculino. Assim, as pessoas que não seguem esta linearidade são
lidas como desviantes, ‘doentes espiritualmente’.
Este artigo compreende as experiências, as práticas e os discursos religiosos como
agentes para o funcionamento do mecanismo de gênero, regulando as práticas das pessoas e
criando ficções de feminino e masculino (BUTLER, 2013). Neste sentido, evidencia-se o
discurso religioso relacionado às sexualidades, reiterando a heteronormatividade, sendo
justificada pelo discurso sexualizador do pecado, caso as pessoas não sigam a linearidade
sexo, gênero e desejo (Butler, 2002).
Estes discursos estão relacionados com as espacialidades e, por sua vez, estão
conectados com as práticas espaciais. Assim, o discurso contribui para dar sentido e reiterar
práticas espaciais, como afirma Spin (1996). Sendo assim, adotou-se a análise de discurso
proposto por Bardin (1977) para a análise das falas dos membros LGBT da ICM-Maringá e
dos membros gays da IEA-Curitiba. Posteriormente, foram inseridas e sistematizadas no
banco de dados utilizado pelo Grupo de Estudos Territoriais (GETE) por meio do Software
LibreOffice. Através do banco de dados, é possível organizar os dados entre evocação
discursiva, elemento, categoria discursiva e espacialidades discursivas.Assim o elemento é um
resumo da Evocação, qual é retirado a Categoria Discursiva e a Espacialidade Discursiva. Isto
tudo possibilita à compreensão dos discursos, bem como a relação das evocações discursivas
e as espacialidades.
Portanto, esta pesquisa propõe compreender as diferentes vivências, os discursos e as
experiências espaciais dos membros LGBT da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba e como
influenciam na significação das suas sexualidades. Busca-se então, um diálogo entre conceitos
trabalhados na ciência geográfica como o espaço, por intermédio das reflexões de Massey
(2008); gênero e sexualidades pensado por Butler (2003) e Silva e Ornat (2011). Outros
conceitos utilizados neste trabalho como teologia por Musskopf (2008) e Natividade e
Oliveira (2009).
encontros entre as pessoas, e das pessoas com a ideia de que a vivência espacial da/na ICM-
Maringá e IEA-Curitiba possibilita o contato com o divino/Deus.
No processo de investigação desta deste trabalho evidenciou que tanto a ICM-Maringá
quanto a IEA-Curitiba são simultaneamente singulares e plurais. São singulares no seu início
e na sua construção, sendo, portanto, espacialidades específicas e únicas para cada pessoa. Ao
mesmo tempo são plurais, devido às relações e práticas sociais vivenciadas coletivamente,
como nos momentos de celebração eucarística/culto e atividades em grupo vivenciadas pelas
pessoas frequentadoras da ICM-Maringá e IEA-Curitiba. Pensando assim, espaços religiosos
podem atuar como um articulador dos discursos, das fantasias e das corporeidades, bem como
contribui para “dar forma nas alianças, inscrições e conquistas”, o que Rose (1999 p. 248)
denomina de Performing Space ao problematizar a vida de mulheres lésbicas.
Nessa perspectiva, a partir de nossa investigação, a ICM-Maringá e a IEA-Curitiba
são, portanto, entendidas de maneira relacional, constituídas através da interação e das
práticas entre as pessoas, mesmo a ICM-Maringá e IEA-Curitiba tendo especificidades de
práticas e discursos como no momento eucarístico, em que a ICM-Maringá é mais ‘avivada’
nas orações e no louvor. A IEA-Curitiba é mais suave nos discursos e no louvor, de origem
anglicana também é caracterizada por sua flexibilidade teológica.
Ambas as igrejas interpretam os textos bíblicos a partir de um entendimento contextual
e histórico-crítico, buscando compreender o contexto de cada texto bíblico. Assim,
compreendem a sexualidade como parte integrante de cada pessoa, rompendo com a relação
de sexualidade entendida como pecado. Assim, realizam interpretações alternativas dos textos
bíblicos tentando romper com estigmas e discursos homofóbicos sobre a diversidade sexual.
Para tais articulações entre discursos, fantasias e corporeidades, Rose (1999) denomina
enquanto performances relacionais, as quais contribuem para a formação de 'um espaço
específico'. Como, por exemplo, a ICM-Maringá e IEA-Curitiba que possuem práticas e
discursos teológicos específicos, tais como o discurso teológico feminista, queer e histórico-
crítico. Por outro lado, igrejas com práticas e performances de outros tipos, com outra
“relacionalidade, produzem outros espaços” (ROSE, 1999, p. 250). O espaço, portanto, não é
algo fixo e sem aberturas, mas está em constante movimento de ser feito, é ativo, e, é
produzido de acordo com as “performances situacionais de relação entre eu e outro” (ROSE,
1999, p. 250).
Dito de outra maneira, o espaço ICM-Maringá e IEA-Curitiba atuam como um
articulador, dando forma às alianças, às práticas, discursos e às fantasias. E quanto as fantasias
dos membros LGBT das respectivas comunidades religiosas, estas estão relacionadas à
norma heterossexual). O espaço religioso Fundamentalista, por sua vez, é composto por
normas binárias e heterossexuais, sendo assim entendido como um espaço heterossexual
(VALENTINE, 1993).
Não obstante, cada espaço religioso está envolto por práticas e discursos sobre como
se comportar, se vestir e se expressar, esses elementos compõem a corporeidade das pessoas.
Para tanto, este corpo não é imóvel, é constituído pelas relações e negociações presentes em
um espaço e tempo, como propõem Silva e Ornat (2016).
A relação entre gênero, sexualidade e religião é um importante caminho para
compreender o desenvolvimento das igrejas e as relações de poder que se estabelecem nas
disputas espaciais em torno da conquista de fiéis (NATIVIDADE, 2006). A vivência religiosa é
permeada pela forma em que as pessoas são interpretadas socialmente, nas relações de poder,
nas práticas e nos discursos religiosos.
Silva (2009) ressalta que a Geografia Brasileira produziu um não dito geográfico sobre
as temáticas de gênero, sexualidades e religiosidade. A autora afirma isso ressaltando que a
ciência geográfica brasileira segue uma base eurocêntrica, tem um apego à forma material do
espaço e a permanência de um discurso generalizador, invisibilizando as especificidades e
subjetividades dos grupos sociais. Ao pensar a construção do dispositivo da sexualidade e do
mecanismo de gênero, Foucault (1988) ressalta que são processos que estão envoltos por
relações de poder, bem como estão em movimento e tensões.
Desta forma, Foucault (1979) define o dispositivo da sexualidade como um conjunto
de discursos (científicos, biológicos, morais, filosóficos e religiosos), passando por
instituições até decisões regulamentares como as leis. Resumindo, “o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo, é a rede que se pode tecer entre estes elementos, que inventam,
modificam, reajustam, segundo as circunstâncias do momento e do lugar, a ponto de se obter
uma estratégia global, coerente, racional” (Foucault, 2000, p. 244).
Dito de outra forma, Butler (2003), ao conceituar o mecanismo de gênero, ressalta que
este mecanismo também é um mecanismo de poder. Scott (1989) compreende o gênero como
uma forma de significar as relações de poder. O mecanismo de gênero, regula e normatiza os
corpos, esses corpos, por sua vez, que não seguem este modelo regulatório são passíveis de
punição e vigilância para se adequar às regras estabelecidas (BUTLER, 2003) nas mais
variadas instituições e espaços como a casa, escola, igreja. Neste sentido Butler (2003) afirma
que o mecanismo de gênero reforça e naturaliza as noções de masculino e feminino. Segundo
a autora, é a partir dos discursos e práticas constantemente repetidos que a noção de gênero é
concebida. Reforça que o gênero não é o que somos em essência, mas é algo que foi
produzido, reproduzido e naturalizado.
O ser de cada pessoa é composto pelo corpo, gênero, sexualidade, religiosidade
constituindo assim a identidade de cada pessoa. E não há um destino único e fixo para os
corpos (BUTLER, 2003), mas sim são mutáveis para subverter e rearticular a lógica
normativa imposta pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo.
Para tanto, o espaço, as relações e os discursos estão conectados e compõem a
vivência das pessoas, ao passo que determinados espaços podem ser acolhedores e outros
excludentes. Além disso, os espaços, de acordo com Massey (2000), são constituídos pelas
relações, compreendendo que o espaço é o lugar de encontro. É possível compreender o
espaço como lugar, o qual se dá por uma constelação de histórias e relações que se encontram
e se refazem constantemente, como evidenciado no processo de levantamento de campo na
Igreja Episcopal Anglicana em Curitiba e na Igreja da Comunidade Metropolitana em
Maringá, Paraná. Evidenciou-se assim, que todas as pessoas entrevistadas foram socializadas
em igrejas evangélicas ou católica, as quais reiteram compreensões teológicas, discursos e
práticas religiosas que reiteram a sexualidade como pecado.
Desta forma, há uma defesa da heterossexualidade compulsória, ou seja, uma
desqualificação de sexualidades dissidentes da heterossexualidade como norma. Assim, ao se
afirmar a “heterossexualidade” como única e legítima forma de exercício do desejo
(BUTLER, 2003) legitima-se o pensamento linear de sexo, gênero, desejo e práticas como
algo natural, ‘correto’, esperado por Deus. No entanto, tal pensamento confere
inteligibilidade, importância e materialidade ao “sexo” biológico, tomando diferenças de
gênero e subordinações culturalmente constituídas como se fossem “naturais”, como afirma
Butler (2003).
Sendo assim, são várias as formas e intensidades de reiteração da heterossexualidade
compulsória, “variando desde o total silêncio acerca da diversidade sexual e de gênero até a
produção de estereótipos que operam por uma franca estigmatização de pessoas LGBT”
(NATIVIDADE e OLIVEIRA, 2009, p. 13). Ademais, as perspectivas teológicas hegemônicas
articulam-se com políticas que justificam seus posicionamentos homofóbicos na cosmologia,
passagens bíblicas e práticas cristãs preconceituosas. Indo além, tais discursos permeiam
todas as espacialidades cotidianas reiterando assim a norma heterossexual.
FONTE: Entrevistas realizadas com membros LGBT da ICM-Maringá, Paraná e da IEA-Curitiba entre
os dias 4 de janeiro de 2016 a 28 de julho de 2016. Organizadora: GELINSKI, 2017
Lá fora a gente se sente como um pássaro preso na gaiola. Na ICM a gente sente que
não tem nada que tem que prender a gente, que a gente é livre, Deus ama a gente
como a gente é, Então a gente basta seguir o caminho Dele e o que os outros pensa,
e o que as outras igrejas pensa não vale a pena, vale a pena você acreditar assim e
seguir como é. Deus ama eu como eu sou então tá bom demais, tá ótimo. (Entrevista
realizada com Veja na ICM-Maringá, Maringá, em 27/01/2016)
Revela-se assim, que as espacialidades religiosas atuais são locais que despertam o
sentimento de pertença ao grupo, aquela coletividade (ROCHER, 1971). Pois é no espaço
ICM-Maringá ou no espaço IEA-Curitiba que seus respectivos membros têm a liberdade de
vivenciarem as práticas e os discursos religiosos, conciliando com as suas sexualidades. Tais
espaços constituem-se como locais de “consagramento, pertença e solidariedade entre os
membros” (ROCHER, 1971, p. 169). Por outro lado, as categoriais discursivas evidenciadas
pelos membros LGBT da ICM-Maringá e dos homens gays da IEA-Curitiba relacionadas à
espacialidade ‘antiga comunidade religiosa’ são semelhantes em sua maioria. Visto que para
os membros LGBT da ICM-Maringá a categoria discursiva ‘vida religiosa’ constitui-se com
35%, precedida da categoria discursiva ‘preconceito’ com 13% e ‘homofobia’ com 10%.
Seguida ainda pelas categorias discursivas ‘interpretação da bíblia’ e ‘relações sociais’ com
8% e a categoria ‘acolhimento’ com 3%.
Por sua vez, para os membros gays da IEA-Curitiba, a categoria discursiva ‘vida
religiosa’ é evidenciada com 20%, já a categoria ‘preconceito’ constitui-se com 5%
juntamente com a categoria ‘relações sociais’. A categoria discursiva ‘interpretação da Bíblia’
é evidenciada com 23% e a categoria ‘acolhimento’ com 3%.
Desta forma a categoria discursiva ‘Vida religiosa’ foi evidenciada com 35% pelos
membros da ICM-Maringá e 20% pelos membros gays da IEA-Curitiba’, dados estes
relacionados à espacialidade 'Antiga Comunidade Religiosa'. Segundo o discurso de Procyon,
a antiga comunidade religiosa fazia parte de sua rotina, assim como os discursos e as práticas
religiosas, constituindo-se em espaço de sociabilidade e contato com algo divino.
Evidenciando-se, desse modo, a importância deste espaço nas experiências sociais e
religiosas, ademais, este espaço está conectado com o processo de descoberta e revelação da
sexualidade, como pode ser visto na fala a seguir: Nossa era muito legal, eu gostava bastante
porque antes assim tinha grupo de jovens à gente saía, a gente conversava muito, a gente
ensaiava e jogava também. Tipo era muito legal aquele convívio que tinha entre os jovens, né.
(Entrevista realizada com Procyon, Maringá, em 6/11/2015).
A espacialidade ‘antiga comunidade religiosa’ dos membros LGBT da ICM-Maringá e
a IEA-Curitiba aflorava o sentimento positivo pela vivência da fé. No entanto, os discursos
religiosos acabavam reiterando a heterossexualidade como norma, bem como o pecado
relacionado diretamente com as sexualidades.
Diante do exposto, comprova-se o preconceito presente na espacialidade ‘antiga
comunidade religiosa’. Logo, a categoria discursiva ‘preconceito’ é evocada pelos membros
LGBT da ICM-Maringá totalizando 13% e pelos membros gays da IEA-Curitiba com 5%.
Evidencia-se que a espacialidade discursiva 'antiga comunidade religiosa' constitui-se como
um espaço de preconceito em relação às sexualidades. Pensamento fundamentado em
‘verdades divinas’, pois a sexualidade que não corresponde à heterossexualidade é vista como
uma doença demoníaca, a qual precisa passar pelo processo de ‘cura’ e ‘libertação’. Como
enuncia a fala que segue:
Assim porque quando assim você é menininho, você menininho sem os trejeitos
gays, eles até aceitam mais, mas naquela época eu era muito afeminado. Ai eu era
muito gay na verdade, era uma bichona, era uma bichona mesmo, passava lápis e
tudo. Então eles se assustavam sabe, eles falavam que eu tava com o demônio, orava
por mim, ponhava a mão na minha cabeça expulsando satanás “sai satanás” essa
coisa toda aí. Então, eles acham que isso é errado sabe, que não que Deus não aceita
a gente, que Deus odeia a gente e pronto. Eles querem curar a gente, faziam eu ler e
ler a bíblia para ser e essas coisa para curar, sendo que a gente não tem nada. Então,
era difícil eles aceitarem, mas assim eu ia mesmo assim, mas eu não podia participar
de nada, eu não podia cantar, eu não podia dançar, não podia nada nada nada. Só
tava lá só. (Entrevista realizada com Rigel, Maringá, em 21/01/2016).
E a minha família, meu pai meu pai foi um homem muito ruim sabe. Até hoje ele é
ruim sabe, ele é aquele muito rústico sistemático, na verdade ele nunca foi pai, foi
pai por ser assim na verdade. Porque quem criou a gente foi a minha vó e assim ele
foi ele é muito bruto, ele assim homem é homem, mulher é mulher e pronto. Não
tem esse negócio de homossexual, de gay isso é coisa do satanás e pronto pra ele.
Deus o livre travesti ou trans não tem isso pra ele. E eu tinha muito muito medo
dele, muito medo dele sabe, Deus me livre se ele soubesse de alguma coisa. E eu fui
crescendo, aí tive uma experiência com menino tal e foi incrível. E aí pronto, mas
demorou pra mim aceitar, pra mim entender o que é gay, o que é homossexual, o que
é uma drag. Até, no entanto, eu achava que isso era errado, que era a pior coisa do
mundo ser gay sabe, que eu não queria sabe, eu me perguntava muito por que Deus
permitiu ser assim que eu não queria. (Entrevista realizada com Rigel, Maringá, em
21/01/2016).
A fala de Rigel vai ao encontro do que Musskoph (2009) problematiza, quando aborda
sobre as formas normativas de vestimentas, demonstração de afeto e relacionamentos,
apreendidos e reiterados pelo discurso religioso. Para a pessoa ‘ser bem-vista’ pela
comunidade religiosa e pela sua família, é necessário seguir um rol de normas. No momento
em que as pessoas deixam de cumprir um dos requisitos ‘listados’, tornam-se assim
desviantes da palavra de Deus.
Noutros termos, a sexualidade é um dos ‘requisitos’, e as pessoas que fogem das
regras estabelecidas são entendidas como doentes, filhas/os das trevas, em pecado constante.
Assim, as pessoas vivenciam a negação e o conflito entre ‘sair do armário’ e o discurso
sexualizador do pecado, pois, como afirma Natividade e Oliveira (2009), qualquer prática
homossexual é interdita pelo discurso religioso fundamentalista.
Deste modo, evidenciamos que para ambos os grupos, tanto os membros da ICM-
Maringá como para os membros da IEA-Curitiba, Paraná, a 'casa da família' é evocada como
uma espacialidade majoritariamente desconfortável, pois a ausência de aceitação se fez ou se
faz presente entre os familiares perante suas sexualidades. Isto por sua vez, se fez presente no
desenvolvimento da sexualidade dessas pessoas, contribuindo assim para a sua negação, para
a ausência de autoaceitação devido aos conflitos, aos medos e culpas internalizadas pelos
discursos e práticas preconceituosas da família, esses permeados de concepções normativas e
fundamentalistas.
Considerações Finais.
Referencias
AZEVEDO, Dermi. A Igreja Católica e seu papel político no Brasil. Estudos Avançados,
v. 18, n. 52, p. 109-120, 2004.
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião.
São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999.
BUTLER, Judith. Cuerpos que Importan: sobre los limites materiales y discursivos del
‘sexo’. Buenos Aires: Paidós, 2008.
CASTILLO, José María. O Reinado de Deus. Teologia Popular II. São Paulo: Edições
Loyola, 2016 [2013].
CATONNÉ, Jean-Phillipe. A sexualidade, ontem e hoje. 2ª edição. São Paulo: Cortez, 2001.
Resumo: O presente trabalho tem como campo de pesquisa Penitenciária Talavera Bruce
(SEAPTB), unidade prisional feminina de regime fechado, localizada no Complexo de
Gericinó, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Nesse cenário buscou-se analisar de que
forma à assistência religiosa na SEAPTB, torna-se uma forma de acesso às demais
assistências, listadas nos artigos 10º e 11º da Lei de Execução Penal, nº 7210 de 1984
(assistência material, à saúde, jurídica, educacional e social), frente à ineficiente prestação de
políticas públicas direcionadas a presa ou a egressa, nos atuais marcos de precariedade do
Estado.
De acordo com diversas legislações como a Lei de Execução Penal (1984), art.24; Decreto
8897/84, art. 42; Lei 9982/00, a assistência religiosa é posta legalmente como uma
possibilidade de amparo espiritual as (os) presas (os), com intuito de contribuir para o
processo de “ressocialização”, em conjunto com as demais assistências previstas na LEP
(1984). Porém, devido à baixa oferta ou ao fornecimento precário de políticas públicas
dirigidas à população carcerária, organizações privadas, como as instituições religiosas,
assumem funções, de cunho público, concedendo direitos na forma de benefício,
configurando o Estado como principal violador de direitos.
Visando compreender esse fenômeno, e como ele afeta as mulheres privadas de liberdade,
foram levantadas um conjunto de informações acerca dessa temática, tendo como
instrumentos metodológicos: entrevistas, pesquisas documentais; normativas legais existentes
sobre o assunto; relatórios institucionais publicados; além de pesquisa bibliográfica, para dar
suporte teórico à elaboração da discussão em questão. Concernente às entrevistas, a amostra
foi composta de 14 presas; 3 adptas ou simpatizantes de cada orientação religiosa presentes no
SEAP/TB, tais como: evangélica, católica, testemunha de Jeová, e espírita, 2 presas que
declaram não ter religião, além de 2 funcionárias da unidade prisional. A partir dos
procedimentos metodológicos citados, identificou-se que a omissão do Estado em suas
atribuições legais frente à população carcerária, em especial a feminina, permite que lacunas
sejam preenchidas por instituições religiosas, que auxiliam a presa com uma série de
benefícios, a saber: roupas, atendimento a família, utensílios de higiene, acessoria jurídica,
entre outros. Assim, as presas da Penitenciária Talavera Bruce veem seus direitos, de
responsabilidade do poder público, atendidos de forma particular, benevolente e condicionada
a oferta de instituições religiosas. Nesse sentido, para além da assistência religiosa, essas
instituições prestam assistência social, jurídica, e material, situação que ocorre com o
consentimento do Estado, que valoriza o privado em detrimento do público, e que mesmo de
forma não oficial, confere benefícios a todos os envolvidos: Estado, instituições religiosas e
presas.
1
Universidade Federal Fluminense; Mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social.
Email: gavvieira@oi.com.br.
Introdução
trabalho. Com base na pesquisa realizada nesse cenário, constatou-se que a assistência
religiosa torna-se uma forma de acesso às demais assistências, listadas nos artigos 10º e 11º da
Lei de Execução Penal, nº 7210 de 1984 (assistência material, à saúde, jurídica, educacional e
social), frente à ineficiente prestação de políticas públicas direcionadas a presa ou a egressa,
nos atuais marcos de precariedade do Estado.
Oliveira (2012, p.45) sublinha que a religião no cárcere assegura as presas (os), algo
inatingível pela instituição em si, uma forma de proteção, acolhimento, que tende as auxiliar,
nesse período de cerceamento físico, tendo como previsão, ao menos, uma liberdade
espiritual, que lhes assegurem certo conforto frente a esta realidade lindada. Vargas (2005,
p.35) assegura que “... a presença dos grupos religiosos, bem como a adoção do seu discurso,
são como um mecanismo de ‘adaptação-resistência’”. Compreende-se que a religião, suas
ao ser inquirida acerca do que, em sua opinião, levam as internas a se associarem a uma
orientação religiosa, apontou, dentre outras justificativas a possibilidade de sair da cela,
conforme o trecho abaixo:
Há sim aquelas que se aproximam a uma religião por ser a mesma que seguiam lá
fora e tem fé naquilo. Há aquelas que fazem disso um meio de sair da cela, poder
conversar com as demais, e quem se associa pelo que pode ganhar dessas
instituições.
Em outro momento, a respeito da assistência material concedida pelo Estado, tal como
colchões e outros itens, a Funcionária 1 reiterou a fala da interna testemunha de Jeová citada
acima:
São solicitados ao almoxarifado, mas atualmente o Estado não tem entregue o
material solicitado. Quando recebemos novas presas, não temos esses itens para
oferecer. Muitas vezes contam com a solidariedade ou permuta das demais presas.
Por vezes, ao recebermos novas presas, não temos colchão nem lençol para dar.
Quando não, ficam sem os utensílios, até que a família traga, ou que uma instituição
religiosa doe, ou recebem de alguma presa que esta de saída ou daquelas que por
terem novos, não querem mais os velhos itens. Se não conseguirem com as demais
presas, podem até dormir no chão.
que a visitam, residem próximo aos seus familiares. Sendo assim, como não recebe visita
constante, consegue comunicar-se com os seus familiares, por meio dos visitantes dessa sua
amiga.
Os agentes religiosos evangélicos, também proporcionam informações dos familiares
das detentas. Em entrevista, uma das detentas evangélica, condenada a 13 anos de reclusão, o
qual esta a 5 anos presa, informou que aproximadamente a dois anos, agentes religiosos da
evangélicos foram em sua casa e trouxeram notícias da sua mãe e do seu filho.
Outra questão referente à família, relatada por uma interna são os parentes de prisão.
Segundo uma presa católica, a única a relatar esse fato, possui uma mãe de cadeia. Segunda a
mesma, trata-se de uma senhora evangélica, a qual confia muito, e por esta lhe tratar com
atenção e cuidado, a pediu para ser sua mãe, e essa abraçou a ideia. Ressalta que além da mãe
constitui outros parentes na prisão, como tias, primas, entre outras. Mesmo sendo essas
evangélicas e professarem uma fé diferente da sua, isso não a constrange de também
participar dos cultos.
Partindo de Freitas (2002), podemos caracterizar esses acontecimentos como uma rede
de solidariedade, em que, as
“(...) estruturas solidárias e de reciprocidade (...) levam a formação de uma agenda
de valores comuns que determinam um padrão de sociabilidade e de costumes na
qual as ideias e referencias acerca da solidariedade e dos direitos humanos
fomentam esse tipo de relação.”
É nesse estágio da pesquisa, que vêm à tona outra vertente da assistência religiosa no
cárcere, a distribuição de auxílios materias. Em minha opinião, os benefícios materias
concedidos por grupos religiosos, principalmente de origem protestante no cárcere, representa
hoje um dos carros chefes desse trabalho, escamoteando inclusive sua função primacial, que é
levar o consolo espiritual aos reclusos. A pesquisa evidenciou que o segmento religioso que
mais outorga as presas algum tipo de doação ou ajuda, é o evangélico, com destaque para uma
instituição religiosa específica, conforme o gráfico abaixo:
Gráfico 1: Instituições religiosas que auxiliam materialmente na SEAP/TB
IURD
Demais evangéicas
Espírita
Nas entrevistas, as presas informaram os grupos religiosos que lhes auxiliam com
algum benefício material. Relataram que os segmentos católico e testemunha de Jeová, não
costumam fazer algum tipo de doação na penitenciaria, exceto em casos pontuais, quando
uma interna pede algo específico para esses agentes, que na medida do possível, procuram
atender suas solicitações. Apenas uma entrevistada, vinculada ao segmento espírita, disse ter
ganhado algo do grupo espírita que frequenta: recebeu um par de óculos.
É notório, de acordo com relatos das presas e inclusive das funcionárias
entrevistadas, que as instituições evangélicas, são as que mais preenchem as lacunas materias,
deixadas por parte do Estado. Tal fato torna-se evidente na fala de uma das presas: “Aqui no
presídio ter assistência religiosa é uma coisa muito boa para quem não tem visita e para
ganhar as coisas da igreja” - declaração de uma presa que informa não ter religião.
Esses grupos religiosos doam roupas, medicamentos, material de limpeza, chinelo de
dedos, ministram cursos e capacitações, entre outros, que a muito não tem sido fornecido pelo
Estado. A Funcionária 2, ligada à administração/direção da unidade prisional, disse que:
“Mensalmente solicitamos todos os materiais mencionados ao setor almoxarifado, entretanto,
devido à crise financeira do Estado, (...) recebemos de acordo com a disponibilidade”.
Até mesmo o uniforme da instituição não é mais fornecido pelo Estado, conforme
declarado pela Funcionária 1:
Quanto ao uniforme oficial da SEAP, fornecido pelo Estado de forma escassa
(camisa verde clara, escrito SEAP em letras brancas), só são utilizados pelas
“faxinas” ou quando as presas, por algum motivo, são levadas por escolta a locais
externos (hospital, fórum, audiência, etc). Por serem em pouca quantidade, essas
camisas são guardadas na sala da direção e são emprestadas as presas. No retorno da
atividade externa, elas devem devolver para que sejam lavadas e guardadas para que
outras possam usar.
2
Declaração dada pela Funcionária B em 19/01/2018.
3
Efetivo Carcerário SEAP/RJ, emitido em 19/09/2017
Considerações finais
A partir das análises realizadas nesse estudo, apreende-se que a assistência religiosa se
configura como um mote rico em aprendizado e gerador de conhecimento dentro do sistema
prisional. E, no que compete a sua funcionalidade, suscita-se que sua incumbência não se
limita apenas ao refrigério espiritual ofertado aos presos. Nesse sentido, identificou-se que a
parte das presas se associam a determinado seguimento religioso em função dos múltiplos
benefícios que possam vir a adquirir, dada a ineficiência do Estado na prestação legal das
assistências material, educacional, social, saúde e jurídica, previstas nos artigos 10º e 11º na
LEP (1984).
Em vista do que fora evidenciado, o Estado se afasta de suas obrigações para com as
presas, deixando-as muitas vezes a cargo de instituições privadas de cunho religioso o
cuidado e o atendimento das Políticas Públicas, em que o que era direito, é concedido na
forma de benefício, condicionando a detenta a participar desses segmentos religiosos como
forma de estratégia, em função do desamparo vivido. Assim sendo, o Estado ao assumir uma
postura omissa, se desvincula de seu papel de representante de todos os cidadãos e entidades,
na garantia da igualdade de direitos e de deveres.
Enfim, a omissão do Estado em suas atribuições legais frente à população carcerária,
em especial a feminina, permite que lacunas sejam preenchidas por instituições religiosas, que
auxiliam a presa com uma série de benefícios. Assim, as presas da Penitenciária Talavera
Bruce veem seus direitos, de responsabilidade do poder público, atendidos de forma
particular, benevolente e condicionada a oferta de instituições religiosas. Nesse sentido, para
além da assistência religiosa, essas instituições prestam assistência social, jurídica, e material,
situação que ocorre com o consentimento do Estado.
Referências
FREITAS, Rita de Cássia Santos. “Em nome dos filhos, a formação de redes sociais de
solidariedade – algumas reflexões a partir do caso Acari”, Revista Serviço Social e
Sociedade, nº 71, São Paulo: Cortez, 2002.
OLIVEIRA, Marina Marigo Cardoso de. A religião nos presídios. São Paulo: Cortez &
Moraes, 1978.
QUIROGA, Ana Maria. Religiões e Prisões no Rio de Janeiro: presença e significados. In:
Religiões e Prisões. Comunicações do ISER. N. 61. Ano 24, 2005.
Ser mulher, ir à igreja, cursar uma universidade: conciliando ideias, princípios e valores
distintos
Resumo
Cada instituição religiosa tem costumes e crenças diferentes, e muito desses costumes vêm
como uma característica da igreja e é refletida pelos fiéis, como o modo de se vestir, como
socialmente se portar. As igrejas cristãs, apesar de cada vez mais estarem se “renovando”, ainda
reforçam a ideia de como a mulher deve se portar na sociedade, pois não é difícil encontrar nos
discursos dos líderes religiosos falas que se referem ao papel da mulher na sociedade. Tendo
por objetivo investigar como as estudantes do curso de Serviço Social conciliam o que
aprendem em sala de aula com seus valores e princípios religiosos e entender as religiosidades
presentes no meio acadêmico, no ano de 2017 realizamos uma investigação junto aos discentes
do primeiro ano do curso de Serviço Social da UEL, por meio da aplicação de 2 (dois)
questionários com 15 perguntas: um questionário para ser aplicado junto às estudantes e outro
para os alunos do primeiro ano - matutino e noturno. Podemos inferir que há uma busca por
uma igreja em que a jovem possa vivenciar uma prática religiosa adequada ao seu estilo de
vida, de pensar, de ser e de agir. Porém, verificamos que os discursos religiosos por vezes vão
de encontro ao que pensam as estudantes no que se refere ao papel da mulher na sociedade, por
um lado há certa concordância em relação ao papel da mulher na família. Essas e outras questões
que estão surgindo pretendemos responder com a análise dos questionários aplicados.
1
Universidade Estadual de Londrina; Estudante do Curso de Serviço Social. Bolsista IC/Fundação Araucária.
2
Universidade Estadual de Londrina; Professora do Departamento de Serviço Social. Dra. em História Social
INTRODUÇÃO
Cada instituição religiosa tem costumes e crenças diferentes, e muito desses costumes
vêm como uma característica da igreja e é refletida pelos fiéis, como o modo de se vestir, como
socialmente se portar. As igrejas cristãs, apesar de cada vez mais estarem se “renovando”, ainda
reforçam a ideia de como a mulher deve se portar na sociedade, pois não é difícil encontrar nos
discursos dos líderes religiosos falas que se referem ao papel da mulher na sociedade.
Citamos como exemplo a “escritora, apresentadora, colunista e palestrante sobre
relacionamentos” Cristiane Cardoso, filha do Pastor Edir Macedo, que em seu blog
encontramos orientação sobre várias situações, entre elas não falar palavrão até mascar chiclete
em lugares públicos, ou na frente de seus maridos.
(...) Não vai adiantar muito a busca pelo certo e errado da moda e da
maquiagem quando não sabe o certo e errado do comportamento e da vida.
Falar palavrões: se eles fossem bons, certamente não precisam ser censurados
na TV, o que também pouco adianta, já que estão em toda parte na boca de
quem não consegue uma forma melhor de se comunicar.
(https://blogs.universal.org/cristianecardoso/pt/o-que-uma-mulher-nunca-
deve-fazer)
Outra religiosa que fala como a mulher deve se portar é a pastora e cantora Ana Paula
Valadão, quem em palestra proferida no Culto Mulheres Diante do Trono no ano de 2012 (Ser
a Esposa que o Marido Sonha!) fala sobre a importância de a mulher obedecer ao seu marido,
respeitá-lo e não interferir em seu papel de chefe de família.
As orientações que destacam o papel da mulher na sociedade também estão presentes
em documentos da Igreja Católica:
Esta Encíclica Papal foi publicada em 1930, porém ainda hoje há pessoas que a
consideram válida e atual, como pudemos constatar no blog “A mulher Católica”:
(http://amulhercatolicaoficial.blogspot.com.br/2017/03/a-mulher-deve-ser-
submissa-ao-marido.html )
Já a pesquisadora Maria Isabel da Cruz (2013) destaca que este documento papal coloca
a mulher na condição de segunda classe:
[...] O papa pio XI dedica boa parte da encíclica Casti Connubii ao papel da
mulher na Igreja e na sociedade. Ao afirmar que ela deve se submeter ao
marido, reforça o estereótipo de que deve ocupar posição secundária, o
homem sendo o centro sua cabeça, regendo-a, comandando-a determinando o
que deve ou não fazer. (CRUZ, 2013, p. )
Nós dizemos que esta é uma sociedade com uma forte atitude masculina e que
a mulher é para lavar a louça. Não. A mulher é para trazer harmonia. Sem a
mulher não há harmonia. Não são iguais, não são um superior ao outro. Só
que o homem não traz harmonia. É ela que traz a harmonia, que nos ensina a
acariciar, a amar com ternura e que faz do mundo uma coisa bela.
(https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/mulher-e-
harmonia-poesia-e-beleza-diz-papa-francisco/ )
O movimento, por mais diverso que seja, parte de uma ideia simples e,
convenhamos, mais do que justa: mulheres também são pessoas. Então é
possível resumir dizendo que as feministas defendem a humanidade das
mulheres. Não seria nada de mais, se não fosse em um mundo onde tanta gente
luta diariamente justamente para tirar isso de nós. (VALEK, Aline, Carta
Capital, .16/jul/2014)
De acordo Maria Isabel da Cruz (2013), a igreja tem condições objetivas e subjetivas
para empoderar as mulheres, mas o feminismo parece amedrontar a sua hierarquia e também a
vida religiosa, deixando de apontar e construir nos paradigmas.
Também destacamos que algumas correntes do movimento feminista se fazem presentes
nas Igrejas, como é o caso do grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), que se
posicionaram em luta, para serem ouvidas, em uma Igreja hierarquizada e dominada pelos
homens. Lucila Scavone (2008) descreve o CDD como uma forma de interligação entre a igreja
e o movimento feminista.
Deve-se destacar que os movimentos sociais têm a participação de todos os segmentos
sociais, fazendo-se presentes, portanto, entre os membros de igrejas e de universidades. E
algumas estudantes do curso de Serviço Social tem significativa participação em movimentos
voltados para a defesa dos direitos das mulheres.
Por meio de pesquisa que vem sendo realizada desde o ano de 2009 junto às estudantes
do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, verificou-se que muitas
discentes declaram participar ativamente de alguma igreja. Também foi verificado que, não
obstante os anos passados em uma universidade e o contato com conceitos e categorias sócio
histórica, os valores e princípios religiosos pouco se arrefeceram, conforme a ex-bolsista Júlia
Teruel, do projeto de pesquisa “Questão social e religião: possíveis implicações na prática
profissional do Assistente Social”, pode constatar (2016):
(...) 4°ano matutino de quinze, nove afirmaram que frequentam algum espaço
religioso, já no período da noite, de vinte e três, 13 afirmaram que têm alguma
religião. Mesmo questionando algumas posições que sua doutrina religiosa
defenda, os valores e princípios religiosos ainda se encontra presente.
Gráfico 3: Seu entendimento sobre, ser mulher é o mesmo que o da sua doutrina
religiosa
0
sim não não quis responder
As mulheres são orientadas como se vestir e portar dentro e fora do templo religioso.
Mas, há outro fato que chamou a atenção, o número cada vez maior de adolescentes, com idade
variando entre 15 e 23 anos de idade, usando véu nas celebrações da Igreja Católica e a presença
de grupos nas redes sociais que incentivam este uso.
O uso do véu dentro da instituição era comum e significava pureza. Nos dias atuais ele
significa, conforme descrito pelas adolescentes e nos grupos das redes sociais: respeito ao
divino, uma forma de não se sentir digna de estar a presença de algo maior; também há o uso
do véu por meio de consagração à Maria, significando proteção e intercessão.
Apesar de uma grande parte das estudantes terem declarado que a igreja que frequentam
terem perspectivas diferentes da sua afirmado, esta situação não as desmotivam. Podemos
inferir que há uma conciliação entre estas perspectivas diferentes, porque as dificuldades
cotidianas por vezes levam a buscar respostas para além do mundo profano. De acordo com
Silva e Lanza (2015, p.162-163):
Isto ressalta que muitas vezes a igreja é um lugar de socorro para essas mulheres,
encontram voz que em muitos lugares não têm, tendo em vista que a igreja chega em uma
particularidade da mulher, que muitas vezes psicólogas, assistentes sociais e mesmo o
movimento feminista não alcança.
Também podemos destacar que a igreja torna-se um refúgio na contemporaneidade em
que há exaltação do individualismo e a competição, como observou Mori e Silva (2016, p.453)
em pesquisa realizada junto às estudantes do curso de Serviço Social:
A partir das primeiras análises, podemos fazer algumas ponderações iniciais, como o
fato de as estudantes seguirem a religião que lhes foi apresentada por sua família, o pouco
trânsito religioso entre estas estudantes e a pouca diferença numérica entre as alunas que
participam de uma igreja e as que não frequentam uma denominação religiosa, demonstrando
que a doutrina e os princípios e valores religiosos estão presentes no interior da sala de aula.
Algumas considerações
Referência
CARDOSO, Cristiane. O que uma mulher nunca deve fazer. 30 jul. 2014. Disponível em:
<https://blogs.universal.org/cristianecardoso/pt/o-que-uma-mulher-nunca-deve-fazer/>
CRUZ, Maria Isabel. A mulher na igreja e na política. Outras expressões: São Paulo, 2013.
MORI, Vanessa T.; SILVA, Claudia N. A religiosidade dos estudantes de uma universidade
pública: considerações a partir do curso de Serviço Social. PLURA, Revista de Estudos de
Religião, vol. 7, nº 1, 2016, p. 439-457. Disponível em:
file:///C:/Users/silva/Downloads/1131-4464-1-PB.pdf
TERUEL, Julia Mirian. A religião e a religiosidade durante a formação acadêmica: elementos que
constituem essa religiosidade. 2017. 66 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço
Social) –Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
TOLEDO, C. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. 2.ed. Série Marxismo e
opressão. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sudermann, 2003.
Resumo: O objetivo principal da pesquisa é estudar e apresentar uma parcela da realidade dos
estudantes de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, que se autodeclaram
homossexuais, e que mantém fortes vínculos religiosos: como convivem com as múltiplas
formas de pensamento e como interpretam o seu pertencimento junto a uma comunidade
religiosa enquanto homossexuais e estudantes de um curso, cujos fundamentos teóricos são
críticos.
Palavras-chaves: religiosidade, pertencimento religioso, homossexualidade
1
Bolsista de iniciação cientifica IC/CNPq; estudante de graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual
de Londrina; joaopaulorosalorenco@gmail.com
2
Profa. Departamento de Serviço Social/ Universidade Estadual de Londrina; Doutorado em História pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008); claudianess@uel.com
Introdução
Enquanto boa parte dos movimentos sociais que foram mais visíveis nos anos 1980
experimenta um processo de “crise”, o movimento LGBT não apenas cresce em
quantidade de grupos e diversifica os formatos institucionais, como também amplia
sua visibilidade, sua rede de alianças e espaços de participação social. Assim, entre os
interlocutores do movimento LGBT, temos movimentos de direitos humanos, de luta
contra a Aids e movimentos de “minorias”, especialmente o feminista, em âmbito
nacional e internacional; temos também agências governamentais, parlamentares e
setores do mercado segmentado. Além disso, temos uma ampliação dos espaços de
participação: comissões que discutem leis ou políticas públicas, mas também há a
construção de espaços para o advocacy em âmbito internacional. A ampliação da
visibilidade social se dá basicamente pelo debate público em torno de candidaturas e
projetos de lei; pela adoção da estratégia da visibilidade massiva através da
organização das Paradas do Orgulho LGBT; e pela incorporação do tema de um modo
mais “positivo” pela grande mídia, seja pela inserção de personagens em novelas, seja
em matérias de jornais ou revistas que incorporam LGBT como sujeitos de direitos
(FACCHINI, 2005; FRANÇA, 2006a; 2007b) (Facchini, 2009, p.13)
Neste sentido, identificamos alguns aspectos dos estudantes que fizeram parte do
universo da pesquisa, como nos expõe Melchior à luz de Bauman, e que são o ponto de partida
para analisarmos o tema proposto:
As experiências individuais criam uma certa ânsia pela incerteza do futuro e medo pelas
situações presenciadas em nossa sociedade, Marcelo Melchior nos apresenta que na
pósmodernidade
Tudo é muito frágil e provisório, afinal, a experiência não se esgota. O amanhã poderá
ser diferente e, nesse caso, as determinações de hoje poderão não ser as mesmas de
amanhã. Neste contexto um Deus inerte e autoritário não faria mais sentido. (Melchior,
2009, p.5)
A Teoria Queer dentro do mundo das sexualidades trabalha com as bichas, os “viados
poc poc”, as “sapatonas caminhoneiras”, as travestis, drag-queens, transexuais. A
Teoria Queer, portanto, não é uma defesa da homossexualidade, “é a recusa dos
valores morais violentos que instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira
rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e ao
desprezo coletivo” (Jesus, 2016, p.27)
É nesse momento que os domadores dos gêneros sentem que o seu trabalho de
“domesticação” das expressões e performatividades dos gêneros falhou, e assim como
um domador de cavalos selvagens, a sociedade busca com a negativa do normal do
sujeito desviante, puni-la para que assim ele possa voltar a caminhar nas trilhas da
naturalidade.
Afim de analisarmos a manutenção dos padrões binários nas relações e nos estudos de
gênero é importante compreendermos a confusão que se é criada para punir todo os
comportamentos e orientações que destoem dos padrões heteronormativos, como por exemplo
a homossexualidade, e que segundo a visão conservadora deve ser punida assim como nos
explica Ferraz
(...) modelo dominante na qual vem se construindo a nossa sociedade, modelo esse
que é incentivado publicamente em quase todos os espaços sociais pelos quais
transitam as pessoas. Há inclusive diferentes maneiras de se contribuir para a sua
hegemonia e manutenção no simbólico social. Talvez a maneira mais eficaz depois da
homofobia expressa, no sentido de ser mais facilmente propagada pela sociedade, se
constitui no silêncio. (Silva e Barbosa, 2016 p. 139)
dos padrões morais e comportamentais de uma sociedade que caminha a passos lentos e
conservadores, trazendo para as relações sociais os valores religiosos que emanam de seus
templos, como nos expõe Silva e Barbosa
igrejas e que mostram a grande diversidade de opiniões dentro de uma mesma religião, e até
mesmo de uma mesma igreja.
O Papa Francisco preconizou em uma entrevista seu posicionamento quanto a forma que
trata as pessoas homossexuais, ele disse (Francisco, 2013) “Se uma pessoa é gay, busca Deus e
tem boa vontade quem sou eu para julgá-la? ”. Já o padre brasileiro Paulo Ricardo, expoente de
um site na internet, possui um artigo totalmente dedicado ao “homossexualismo” explicando
que:
Muitas pessoas estão totalmente mergulhadas na fé, organizam a vida a partir dela e
não abrem mão da participação ativa. São xiitas, ortodoxos, crentes e se reconhecem
pertencentes ao mundo dos já salvos e com a missão de salvar os “perdidos”, os
“infelizes”; outros são totalmente indiferentes a uma única instituição religiosa, dando
preferência às soluções rápidas e preenchimento de um vazio de sentido. […]
(Melchior, 2009, p.5)
O mesmo espaço que congrega a busca por respostas às situações objetivas e subjetivas
legisla os padrões morais e comportamentais da sociabilidade burguesa, conforme destacou
Silva e Barbosa (2016, p.131):
Este é papel dos líderes religiosos na construção social e na reafirmação dos valores
comportamentais aceitos pelo ser humano que vive neste contexto.
A partir das primeiras aproximações com os dados obtidos junto aos dois estudantes
estudados “uma pessoa identifica pelo sexo masculino e outra feminina”, de ambos os turnos
do curso de Serviço Social, verificamos que os dois mantêm fortes vínculos religiosos,
frequentando espaços religiosos cristãos. Verificar a presença desses corpos no espaço religioso
cristão é compreender que
Esta pessoa participa assiduamente das celebrações da Igreja Católica em seu bairro. Diz
conciliar muito bem os valores religiosos e sua sexualidade, visto que é autodeclarado
homossexual, mas não mantém um relacionamento no momento. Relatou que em seu espaço
religioso há debates sobre as questões LGBT e que atualmente não participa de forma direta dos
debates do movimento por nenhum meio social. Nos informou que mesmo no espaço da
Universidade Estadual de Londrina, supostamente espaço acolhedor, já sofreu preconceito
advindo por parte de docentes em relação à sua orientação sexual e tipo de vestimenta.
O segundo caso que buscamos aproximação é de uma pessoa identificada pelo sexo
feminino, que assim como no primeiro caso não apresenta padrões e comportamentos do sexo
a qual é identificada, e neste momento é importante frisar o que seriam os comportamentos
esperados para uma mulher em nossa sociedade segundo as análises dos discursos
conservadores feita por Silva e Barbosa:
A mulher foi direcionada, a partir da sua biologia e de concepções religiosas, para uma
ordem hierárquica inferior à do homem; a ela foi estabelecido o âmbito privado, como
a casa sendo a sua segunda prisão. Ela deve possuir atributos que a sociedade considera
“normais” para uma mulher (meiga, frágil, mãe). O homem igualmente possui suas
prisões, pois ele também deve possuir naturezas do ser homem (forte, viril, não pode
expressar sentimentos) (BARBOSA; SILVA, 2016, p. 132)
Algumas considerações
Referência:
JESUS, C.C. O que é a teoria queer? Notas introdutórias de um saber subalterno, subversivo e
contra-hegemônico. Veredas da História, v. 9, n. 2, p. 21-34, dez, 2016. Disponível em:
http://www.seer.veredasdahistoria.com.br/ojs-
PEREIRA. G.B.F. Salih, S. (2012). Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte:
Autêntica. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan-jun, 2013, p. 157-162.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v6n1/v6n1a12.pdf. Acesso em 9 jan. 2018
Sayonara Sardo1
Luciana Butzke2
Resumo:
O objetivo desse artigo foi o de analisar a relação entre família e ativismo político-religioso
em Blumenau. Como objetivos específicos, destacam-se: (a) descrever o perfil das famílias e
da religião em Blumenau; (2) identificar polêmicas envolvendo família e religião em
Blumenau e sujeitos sociais envolvidos; (3) levantar estudos sobre o tema na Universidade
Regional de Blumenau (FURB); (4) sintetizar os principais pontos do debate. Para tanto, a
metodologia adotada envolveu uma abordagem qualitativa e quantitativa. A pesquisa
combinou descrição e explicação (MINAYO, 2011). Em relação aos procedimentos, se tratou
de uma pesquisa bibliográfica: foram coletados dados do IBGE sobre família e religião,
notícias na internet, consultas a sites e estudos na Biblioteca da FURB. Os resultados mostram
que a realidade das famílias de Blumenau é diversa, não se restringindo apenas ao modelo XX
e XY. A universalização de modelos em um mundo diverso é violenta e deve ser considerada
com a devida atenção. Por isso, a reflexão sobre o ativismo político-religioso em sua relação
com os movimentos feminista e LGBT é tão importante e urgente.
1
Bolsista Furb; Acadêmica da sexta fase do curso de Ciências da Religião; sayonarasardo@gmail.com.
2
Cientista social; Professora na Furb; Doutora em Sociologia Política pela UFSC; butzkeluciana@gmail.com
Introdução
O título do artigo remete a mensagem de um outdoor colocado pela Ordem dos
Ministros do Evangelho de Blumenau (OMEBLU) em dezembro de 2017 no município de
Blumenau em homenagem ao dia da família, comemorado no dia 8 de dezembro. A
mensagem XX e XY, uma questão de genética. Família, projeto de Deus, acompanhada de
11.000 balões vermelhos espalhados por toda a cidade marcaram a comemoração do dia da
família. As ações causaram muita polêmica e, em resposta, o movimento LGBT posicionou
em diversos pontos da cidade balões coloridos representando a diversidade além da ação em
frente a prefeitura. O município de Blumenau, com o avanço do ativismo político-religioso,
passou a contar com representantes religiosos no governo e; passou a conviver mais
intensamente com situações conflituosas envolvendo o tema das relações de gênero
(BERTOLI, 2017; BOLDA e SOUZA, 2016; JM NOTÍCIA, 2017; SOUZA, 2016).
Temos um tripé que ancora essa discussão: a família, a religião e a política. A família
mudou e os movimentos feministas e LGBT lutam pelo reconhecimento de seus direitos: de
expressar livremente sua afetividade, não serem discriminados, poderem constituir família,
etc. Parte dos ativistas político-religiosos, por sua vez, defendem um modelo de família e se
posicionam contra leis que assegurem direito aos homossexuais e as mulheres. O cenário dos
conflitos se dá, principalmente, na política, que na modernidade é marcada pela laicidade e
deveria prezar pelo respeito à diversidade (LIMA, 2011). É esse tripé que pautou nossa
análise.
na compreensão das autoras, a família vai muito além dos dados apresentados. Famílias
existem de várias formas e elas não necessariamente precisam ser institucionalizadas. Os
dados disponíveis servem apenas para mostrar a diversidade dessa instituição social (família),
mas entendemos que ela é muito mais diversa e complexa do que mostram os dados.
sua diversidade, expressa por outras formas, tal qual as dos mosaicos 3. (FERREIRA,
pg 2).
SEXO Nº de pessoas
FEMININO 157.469
MASCULINO 151.542
3
Mosaicos = (do grego mosaikós) – são embutidos de pequenas pedras ou outras peças de cores, que pela sua
disposição aparentam desenho. Trabalho intelectual ou manual composto de várias partes distintas ou separadas.
Relativo à legislação mosaica do profeta Maomé. (FERREIRA, pg 2).
4
Barganha é a troca, permuta, negócio. Barganhar: Negociar efetuar transação pouco ética (BRASIL, 2011).
119; 2016), além de uma listagem com os agentes políticos da CIADESCP5 que totaliza 71
vereadores em SC entre as legislaturas de 2009-2012 (SOUZA, pg 117. 2016).
Em 2017, na ocasião do dia da família, a OMEBLU, Ordem dos Ministros do
Evangelho de Blumenau, dispôs de organização e articulação prévia, a considerar os outdoors
dispostos e pagos em pontos estratégicos da cidade com aproximadamente um mês de
antecedência ao feito de distribuir balões. Contou também com significativas contribuições a
considerar os custos e manutenções de outdoors que ainda estão sendo mantidos em alguns
lugares da cidade (Figura 1).
Em sua página oficial, a OMEBLU fez poucas publicações com relação a sua
homenagem a família, conforme sugere a figura 2, a homenagem era restringente ao público
religioso cristão evangélico e simpatizantes da ideologia. Mas com a divulgação em outdoors
e o ato com balões, aquilo que seria “discursivamente” restrito, passou a ser público e
excludente, considerando a diversidades de famílias existentes em Blumenau (ver dados do
IBGE apresentados neste artigo). Abaixo a imagem utilizada na página oficial da OMEBLU
no facebook (Figura 2), que faz uma vez mais alusão ao modelo de família composto por
homem e mulher.
5
CIADESCP é a sigla de: Convenção das Assembléias de Deus de Santa Catarina e do Sudoeste do Paraná.
Figura 2 - Capa utilizada pela página oficial da OMEBLU na rede social facebook em
dezembro de 2017
Fonte: foto de capa da página oficial da OMEBLU na rede social facebook. Link:
https://www.facebook.com/Omeblu/photos/a.316597371760077.77585.315967098489771/15
98421640244304/?type=3&theater
6
Link para acessar a publicação: https://www.facebook.com/marcos.darosa.7739
fazem declarações de cunho religioso, dois mencionam trechos bíblicos sem ser possível
aferir pertencimento a nenhuma denominação e apenas um não é encontrado virtualmente nas
redes sociais.
Figura 3 - Fotos do ato: SOMOS FAMÍLIA promovido pelo coletivo LGBT Liberdade
no dia oito de dezembro de 2017
Fonte: Elaboração própria com fotos feitas por Mikke Nienow no ato somos família
promovido pelo Coletivo LGBT Liberdade.
Considerações parciais
O objetivo desse artigo foi o de analisar a relação entre família e ativismo político-
religioso em Blumenau. Para tanto, partimos de um fato: a manifestação da OMEBLU
relacionada ao dia da família e as reações do Coletivo LGBT Liberdade. Na descrição do
perfil das famílias e da religião em Blumenau, podemos com isso afirmar que o modelo XX e
XY não é majoritário e a realidade das famílias é outra: reforçamos que os dados mostram que
em Blumenau 32% das famílias é chefiada por mulheres sem cônjuge e tem mais pessoas
vivendo em união (57%) do que casadas (40%) (IBGE, 2018).
Em relação a polêmicas envolvendo família e religião em Blumenau, elas se
relacionam com o ativismo político religioso tanto no espaço público quanto na Política
institucionalizada. O ponto central do artigo é a manifestação pública da OMEBLU no dia da
família, mas também contamos com exemplos de ativismo político religioso na Câmara de
Vereadores. Os mais recentes são a alteração no plano municipal de ensino retirando as
discussões sobre Gênero e Sexualidade (BOLDA; SOUZA, 2016) e uma moção de repúdio
direcionada a um festival de cinema de uma Escola Estadual que abordaria a diversidade, por
se tratar, segundo os vereadores de ativistas de gênero que disseminariam o que chamam de
“ideologia de gênero” (GLOBO, 2017).
A Universidade Regional de Blumenau tem se posicionado criticamente em relação ao
ativismo político religioso. Vários grupos de pesquisa envolvidos com a diversidade fizeram
pronunciamentos sobre os acontecimentos descritos aqui. Dos estudos levantados na
Universidade, destacamos Souza (2016) e Bolda e Souza (2016). Das buscas realizadas na
Biblioteca da Universidade poucos trabalhos envolvem a pesquisa sobre ativismo político
religioso. Considerando o tema deste artigo e os fatos que estão se repetindo na cidade e na
Câmara de Vereadores, caberia um debate público amplo sobre ativismo político religioso e a
realização de mais estudos sobre o tema.
O debate é atual, pertinente e urgente, desconsiderá-lo com “vistas grossas” não é
possível, haja vista que a omissão e o silêncio, também são maneiras de se posicionar. Os
avanços de políticas públicas, dos direitos humanos em equiparação e reparos históricos as
populações marginalizadas e oprimidas, como o exemplo da população LGBT e mulheres,
não pode perder conquistas por tanto tempo pleiteadas, em detrimento ao fascismo,
fundamentalismo e conservadorismo religioso.
A prevalência de ideais religiosos em questões públicas e aplicadas via políticas de
governo (governo esse de um Estado dito laico) a população, não deveria ser prioridade,
todavia Souza (2016) nos remete a questão democrática que elege esse representante que de
forma “legítima” defende bandeiras de seu eleitorado, promovendo e fortalecendo o ativismo-
religioso.
Seriam antagônicas as ideologias? Quais são as disposições ao diálogo? Porque criar
pontes que superem as barreiras e diferenças soam tão assustador? De maneira utópica
insistimos discursivamente que é por meio do conhecimento que se promove o diálogo e o
respeito à diversidade em seu caráter mais plural, mas até que momento que esse
Referências
ANDRADE, Paula. IBGE contabiliza mais de 8.500 casamentos homoafetivos desde regra do
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https://www.ufrgs.br/sicp/wp-content/uploads/2015/09/WALTER-Alice-e-RIBEIRO-
Ednaldo.pdf. Acesso em: 22 maio 2018.
Resumo: Este artigo apresenta discussões a respeito da temática envolvendo a luta pelos
direitos humanos, o exercício da cidadania da população homossexual e como a presença da
Frente Parlamentar Evangélica no Congresso gera grande impacto na realidade social dessa
população. Como a base das argumentações da Frente Parlamentar Evangélica é a Bíblia
Sagrada e a fé de matriz cristã, a homossexualidade encontra reprovação perante a ótica cristã
e tem como resultado reproduções do preconceito, da intolerância e tentativas de retrocesso ao
avanço aos direitos à cidadania. Objetiva-se então, a análise da ação desse grupo, do seu
surgimento e expor as consequências ocasionadas por frentes religiosas no Parlamento
Nacional na incansável luta pela repressão de direitos de grupos considerados minoria, sempre
alheios aos ideais religiosos defendidos por seus participantes e pelos eleitores de tais
parlamentares. Utilizando-se da revisão bibliográfica e análise de marcos legais (leis e
decoros) como objeto metodológico, concluiu-se que a Bancada Evangélica produziu um
retrocesso na conquista de proteções aos homossexuais, assim como tal discurso
fundamentalista e opressor divulgado por eles contribuiu para instaurar um clima beligerante
na sociedade, muitas vezes favorecendo a prática de violência contra tal população e,
consequentemente, refletindo nos índices recordes de violência contra Lésbicas, Gays,
Transexuais, Travestis e Intersexuais no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística e Organizações Não Governamentais de apoio aos LGBTIs.
1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; graduando em Direito; pedro.arthur@pucpr.edu.br .
2
Docente Universidade Norte do Paraná; doutora em Educação; luana.molina@educadores.net.com.br.
Introdução
O Brasil, ao formular novas leis e o ordenamento jurídico para acompanhar o
desenvolvimento da República e se afastar do Estado colonizador português, buscou por meio
do Poder Legislativo, e consequentemente da modernização do Direito Brasileiro, garantir
proteções específicas, interpretadas como direitos natos ao indivíduo, como a liberdade
religiosa, garantida pelo Estado desde sua gênese democrática e constitucional:
Com o advento da democracia brasileira em meados dos anos 1980, a população pôde
eleger livremente seus representantes para os poderes Legislativo e Executivo, além de que “a
crise do regime militar, o início do pluripartidarismo, a redemocratização do país e a
elaboração da nova Constituição Federal em 1988 marcam [...] um período no qual diversos
grupos sociais buscam as garantias de seus direitos civis” (TREVISAN, 2013, p. 33). Dentre
estes grupos, destacou-se a presença dos pentecostais, em crescente número de adeptos e que
possibilitaram o surgimento da Frente Parlamentar Evangélica, concordante com a moral
religiosa, que possuía por objetivo representar parte da população brasileira que defende,
devota e compactua com os ideais religiosos do cristianismo, tendo seu início na Constituinte
Nacional iniciada em 1987, demonstrando sua “crescente habilidade evangélica para
mobilizar e organizar parlamentares para a defesa de interesses supradenominacionais e
suprapartidários” (TREVISAN, 2013, p. 35), juntamente com outras frentes de representação
e apoio a projetos como a Frente Parlamentar dos Ruralistas, por exemplo.
Em 2003, ano de início da popularização da Frente Parlamentar Evangélica, a mesma
já somava aproximadamente 58 deputados signatários, representando 11,3% do total de
cadeiras do Congresso. Atualmente, a Bancada Evangélica tem 199 deputados, isto é 38,7%
do total, e expandiu-se também para o Senado Federal, agregando 15 senadores. Tendo em
vista a proximidade político-ideológica dos representantes da Frente Parlamentar Evangélica e
da Frente Parlamentar Mista Católica Romana, por estas partilharem do cristianismo como
objeto de fundamentação religiosa, os parlamentares signatários de ambas as bancadas
frequentemente unem-se para a votação de projetos, tendo como amparo em suas
fundamentações jurídicas e teóricas os dogmas e preceitos definidos na religião, somando,
nesse caso, cerca de 414 deputados federais signatários, representando 82,6% do total de
parlamentares da Câmara, a maciça maioria parlamentar (TREVISAN, 2013, p. 34).
O teórico Zedequias Alves (2009) nos expõe a importância de analisarmos a política
dos parlamentares protestantes no Congresso, tendo em vista o iminente conflito entre os
dogmas religiosos devotados por tais representantes religiosos e determinados grupos sociais
considerados minoritários ou defesa de causas que encontram certo tabu, a exemplo dos
LGBTIs e a legalização do aborto. Neste sentido, o autor explicita que:
[...] A visão religiosa tradicional não mudou, e de acordo com ela as pessoas
podem realizar a sexualidade de forma correta que é a heterossexualidade, ou
de forma incorreta que é qualquer forma que não seja a heterossexual. A
sexualidade está na área da ética e existe um certo consenso entre os
religiosos acerca dos desvios sexuais: necrofilia, zoofilia, estupro,
prostituição, pedofilia, fornicação, incesto, masturbação, aborto, sadismo,
- existem homens que se sentem bem como homens e gostam de ser homens;
- há os que vivem como homens, não rejeitam o seu órgão sexual, mas em
alguns momentos sentem necessidade de se travestir de mulher;
- há os que sentem necessidade de estar sempre travestidos de mulher e
muitos que até mudam seu corpo, por exemplo, com silicone – são as
travestis;
- há os que não se sentem homens, de forma alguma, que até rejeitam o seu
órgão sexual e desejam fortemente alterar seu sexo biológico – são as
transexuais; (FIGUEIRÓ, 2006, p. 9)
distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito à igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal
discriminação” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 3).
No Brasil, o debate para o instauro de políticas públicas voltadas para os
homossexuais gira em torno do campo jurídico com certa polêmica. O jurista Roger Raupp
Rios (2011) expõe que, perante o Direito brasileiro, os direitos voltados para os LGBTIs
foram inicialmente suprimidos pelo conservadorismo envolto na comunidade do setor, ainda
presente nos dias atuais. Nesse sentido, “o Direito foi produzido como instrumento de reforço
e conservação dos padrões morais sexuais majoritários e dominantes” propiciando a
valorização “da família nuclear pequeno-burguesa, as atribuições de direitos e deveres sexuais
entre os cônjuges e a criminalização de atos homossexuais” (RIOS, 2011, p. 74).
Com a crescente representatividade política dos movimentos sociais, surgiram as
demandas em torno do reconhecimento dos novos arranjos familiares e, consequentemente,
levantaram a discussão acerca da defesa de proteções e direitos voltados para as/os
homossexuais, ainda em construção no Direito brasileiro. Roger Raupp Rios (2011)
acrescenta que “o surgimento destas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda
que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova modalidade na relação entre os
ordenamentos jurídicos e a sexualidade” de forma que “os direitos sexuais devem ser
compreendidos no contexto da afirmação dos Direitos Humanos” (RIOS, 2011, p. 74).
Por fim, adequando-se a uma perspectiva modernista do Direito, assim como um
enrijecimento com as normas que regem o Poder Legislativo e descaracterizando a união de
Frentes Parlamentares que utilizam da religião para embasamento do preconceito e da
discriminação, é necessário “visualizar os direitos sexuais a partir dos princípios fundamentais
que caracterizam os direitos humanos, criando as bases para uma abordagem jurídica que
supere as tradicionais tendências repressivas que marcam historicamente as atuações de
legisladores, promotores, juízes e advogados neste domínio” e neste sentido, “estabelecem-se
as bases para, superando-se os princípios básicos de liberdade, da igualdade, da não
discriminação e do respeito à dignidade humana na esfera da sexualidade”, de acordo com o
posicionamento do doutrinador e jurista Roger Rios (2011, p. 75).
Referências
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São Paulo. XI SIMPÓSIO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA
DAS RELIGIÕES. Sociabilidades religiosas: mitos, ritos e identidades. Goiânia: Editora
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direitos. In: TORNQUIST, Carmen Susana. Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder.
Florianópolis: Editora UFSC, 2008.
BRASIL. Resolução da Câmara dos Deputados nº 25, de 2001. Brasília: Edições Senado,
2018.
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e o direito à diferença. Porto Alegre: MBD, 2009.
FIGUEIRÓ, Mary Neide. Diversidade Sexual: O que é?. In: FIGUEIRÓ, Mary Neide.
Homossexualidade e Educação Sexual: construindo o respeito à diversidade. Londrina:
EDUEL, 2007.
Que voz é essa que fala por mim? A luta do Instituto Geledés por dignidade,
reconhecimento e representação da mulher negra no Brasil
Resumo
Não se pode negar a existência do racismo, do machismo e da misógina enraizados na cultura
nacional, pois é certo que toda sociedade tem sua mentalidade moldada pelas influências e
fatos históricos aos quais foi submetida durante todo seu processo de formação e
desenvolvimento. Não se pode negar também que, devido a esses fatores de opressão social,
mulheres negras e, principalmente, pobres se encontram à margem da sociedade. Este artigo
foi elaborado por meio de levantamento bibliográfico e propõe uma breve análise de
acontecimentos históricos com o intuito de demonstrar o modo como mulheres negras foram
tratadas e representadas durante a história do Brasil e os reflexos dessas ocorrências nos dias
de hoje. A pesquisa tem como pauta principal as problematizações, reivindicações e
participações políticas e sociais do portal Geledés, Instituto da Mulher Negra, além de
apresentar dados e estatísticas de escala nacional que comprovam a disparidade social e
econômica das mulheres negras em comparação à média do país. Por fim, fica evidente que a
limitada representação política e social, além das ínfimas políticas públicas voltadas
especificamente para mulheres negras são os principais agentes causadores da situação social
que deixa essas mulheres em circunstâncias de marginalização e vulnerabilidade a quaisquer
tipos de violência por parte da população e do próprio Estado.
¹ Graduanda em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; e-mail:
breenda.k.ps@gmail.com.
2
Docente dos cursos de licenciatura do Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; Doutora em
Educação; e-mail: jamillynicacio@hotmail.com.
Introdução
A teoria da democracia racial desenvolvida por Gilberto Freyre na década de 1930
foi amplamente difundida ao longo dos anos e, atualmente, faz parte da mentalidade do
brasileiro. Os casos de racismo que repercutem na mídia são vistos como situações isoladas,
o que resulta na frequente negação da existência de um racismo institucional e, portanto,
dificultando a aceitação de elaboração e aplicação de medidas sociais ou políticas de ação
afirmativa para combater essa realidade.
Quando se fala a respeito de questões de gênero, a temática é ainda mais
negligenciada e contestada como digna de debate. Fora do contexto acadêmico acredita-se
que a discrepância de oportunidades sociais, econômicas e políticas entre homens e mulheres
seja condição dos séculos anteriores e sem reflexo algum nas relações sociais
contemporâneas. Segundo Adichie (2015), colocar questões de gênero em pauta é,
geralmente, desconfortável e pode até causar incômodo. Isso porque as possibilidades de
questionar e redefinir o status quo são sempre hostis.
Se os dois temas individualmente já são postos de lado, a discussão deles
concomitantemente é ainda mais precária. Assuntos étnico-raciais raramente são debatidos
como elementos integrados à história, mas como um segmento de análise específica. Davis
(1975 apud Scott 1989) já salientava a importância de se estudar a história das mulheres e
dos homens como um todo. Não partindo de uma perspectiva exclusiva de
oprimido/opressor, mas compreendendo a importância do gênero para a história.
Fraser (2001, p. 3) estabelece a relação entre as opressões. Segundo a autora,
“Gênero e “raça” são paradigmas de coletividades bivalentes. Embora cada qual tenha
peculiaridades não compartilhadas pela outra, ambas abarcam dimensões econômicas e
dimensões cultural-valorativas”. É em cima dessa bivalência que esta pesquisa se debruça
com o intuito de encontrar os fatores responsáveis pela marginalização da mulher negra, área
de interesse que também deu o pontapé inicial para a fundação do Geledés, o Instituto da
Mulher Negra.
A proposta de analisar as relações étnico-raciais contemporâneas exige a
apresentação de um epilogo sobre o tema para que seja possível compreender os fatores que
moldaram a sociedade, tornando-a o que é hoje.
Geográfico Brasileiro (IHGB) na década de 1840. Foi ele o responsável pela valorização da
chamada “fusão das raças”, teoria que consiste em definir o brasileiro como produto da
mistura entre portugueses, indígenas e africanos, embora não especifique o modo como essa
miscigenação ocorreu.
Na obra “O povo Brasileiro: Formação e Sentido do Brasil”, Ribeiro (1995) faz uma
crítica sociológica a respeito do fundamentado surgimento do nativo brasileiro:
Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de poucos brancos com multidões de
mulheres negras e índias. Essa situação não chega a configurar uma democracia
racial, como quis Gilberto Freyre e muita gente mais. Tamanha é a carga de
opressão, preconceito e discriminação antinegro que ela acaba por encerrar-se
(Ribeiro, 1995, p. 225).
É de conhecimento mútuo que o brasileiro foi constituído por meio do hibridismo
cultural e “racial”, contudo, não necessariamente consensual. A ideia de um caldeamento
natural e anuente é uma utopia que traz consolo a quem a admite. Pressupor que esse
“cruzamento de poucos brancos com multidões de negras e índias” aconteceu sem uso de
força, violência, coação e convicções racistas é ingenuidade.
Priore (1988) faz uma análise da obra Casa-Grande & Senzala que explica a relação
entre os senhores e as escravas, além de elucidar a participação da mulher negra escravizada
para o desenvolvimento do nativo brasileiro (segundo a concepção de miscigenação de
Martius) durante o período colonial.
Desnudando os corpos quentes e sensuais das escravas negras em constante
intercurso sexual com seus senhores, Freyre descobre os corpos marmóreos, porque
brancos e frios, das sinhás sem prazer. Sob o signo da dupla moral, corpos femininos
de cores e situações sociais diversas fariam, segundo ele, o prazer ou a prole dos
homens do Brasil colônia (PRIORE, 1988, p. 15).
Pode-se perceber pelo trecho supracitado que as relações de exploração sexual entre
senhores e escravas negras eram habituais, além de designar a elas uma imagem de objetos
de consumo. A expressão “corpos quentes e sensuais” é implicitamente carregada de um teor
racista e sexista que perdura até os dias de hoje, tendo em vista que denota à mulher negra
um símbolo de satisfação sexual, apesar de ser socialmente compreendido como elogio tanto
quando destinado às brancas, quanto se destinado a mulheres brancas, já que ambas são
sexualizadas em proporções diferentes, o que estimula uma competitividade entre essas
mulheres.
A título de exemplo, Pinsky (1993) traz em sua obra duas expressões populares
recolhidas por José Alípio Goulart que demonstram o caráter de objeto sexual dado às
escravas bonitas: “Preta bonita é veneno, mata tudo o que é vivente; Embriaga a criatura, tira
a vergonha da gente” e “Mulata é doce de coco, não se come sem canela; Camarada de bom
gosto não pode passar sem ela”, além dos vocábulos que se tornaram adjetivos nos dias de
hoje, como “da cor do pecado” e “mulher de carnaval” que, se analisados a fundo em seu
contexto histórico, constata-se a mais sutil forma de relegar a essas mulheres um papel social
de deleite erótico. Mulheres para prazer de uma noite.
Saindo da perspectiva do Brasil colônia e escravista, o historiador Joaquim Nabuco
(1900) em seu livro “Minha formação”, já compreendia que, devido ao fato da inexistência
de medidas sociais, econômicas e políticas que beneficiassem os recém-libertados, a
escravidão marcaria a História do Brasil por um longo período. Esse pensamento pode ser
confirmado com as estatísticas que apresentam a disparidade entre brancos, negros e
mulheres.
Um ponto que pode ser facilmente observado é a exposição, sexualização e
comercialização dos corpos negros. As propagandas de cervejas como aquela “Vai, Verão”
da Itaipava, a escolha da sambista para representar a “Globeleza” ou os comentários
populares a respeito dos corpos dessas mulheres: “mulheres negras têm cintura fina, quadril
largo, bunda grande...”.
O fim da escravidão e a falta de políticas públicas voltadas para ex-escravos os
obrigou a manter vínculos empregatícios com aqueles que um dia foram seus senhores. As
condições de trabalho não eram (e ainda não são) muito diferentes. Carga horária extensa,
salários que garantem a sobrevivência, mas não a vida, falta de oportunidade e acesso à
educação, saúde, segurança ou saneamento básico de qualidade.
Um levantamento feito pelo portal de notícias G13 através de dados oficiais do
Ministério do Trabalho e Emprego de 2016 mostra que negros ocupam a maioria dos
trabalhos braçais ou que exigem pouca escolaridade, como cortadores de cana, operadores de
telemarketing, vigilantes ou empregadas domésticas, setor ocupado majoritariamente por
mulheres negras, que tende a estender a discussão para compreensão de serviço análogo à
escravidão, tendo em vista que só foi regulamentado e contemplado pelos direitos oferecidos
pela Consolidação das Leis Trabalhista (CLT) em 2015, antes disso, todas as trabalhadoras
da classe viviam à mercê de negociações informais quanto às condições de serviço, horário e
salário, como mostra o gráfico abaixo, a discrepância, fruto do abismo social que distancia
brancos de negros, desde o acesso à educação até às oportunidades de ascensão profissional,
reflexos da escravidão que teve fim há 130 anos com a assinatura da Lei Áurea no Brasil.
3
GOMES, Helton Simões. Brancos são maioria em empregos de elite e negros ocupam vagas sem qualificação.
Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/brancos-sao-maioria-em-empregos-de-elite-e-negros-
ocupam-vagas-sem-qualificacao.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-
smart&utm_campaign=share-bar> Acesso em: 16 de Maio de 2018.
estabelecidos programas sociais ou planos que alcancem e tenham resultados efetivos para
essas mulheres que estão à margem da sociedade.
O instituto Geledés atua em diferentes esferas. Em relação à saúde, interfere na
elaboração e implementação de políticas públicas e dos direitos sexuais e reprodutivos que
atendam às necessidades e interesses das mulheres negras em particular e da população
negra em geral. Também desenvolve projetos de prevenção e promoção da saúde e atua pela
implementação do Plano Nacional de Saúde da População Negra, como forma de reduzir os
padrões superiores de morbidade e mortalidade encontrados na população negra quando
comparada à população branca.
No que diz respeito às questões raciais, o Geledés se une aos movimentos negros
pela criminalização efetiva do racismo e discriminação racial, além de defender a
implantação de políticas públicas de ações afirmativas com o intuito de reduzir as
desigualdades e promover a valorização da sociedade e cultura negra.
No tocante de gênero se une às agendas feministas e se posiciona contra as situações
de violências doméstica e sexual contra a mulher, a favor da igualdade de gênero no mercado
de trabalho, defende os direitos reprodutivos e sexuais femininos, a descriminalização do
aborto e o fim dos estereótipos e estigmas sobre as mulheres reproduzido pelos meios de
comunicação e, no tema da violência contra a mulher, desenvolveu o Aplicativo PLP 2.0,
para socorrer mulheres em situação de violência.
Para proteger, assegurar e expandir os direitos educativos de negras e negros a ONG
criou o Programa de Educação Geledés. Tendo a educação como um direito humano, cabe ao
Estado garantir e efetivar seu acesso para todos. Luta pela melhoria da qualidade de ensino e
maiores investimentos na área, além de desenvolver o projeto para a implementação da Lei
10639/03 que alterou a LDB no que diz respeito à formação de profissionais de educação e
de publicação de materiais didáticos voltados para o combate ao racismo e sexismo.
Quanto à comunicação, compreendida como questão vital para os movimentos
sociais e, especialmente, mulheres negras, o instituto trabalha para trazer visibilidade e
empoderamento, investe na capacitação de mulheres negras em comunicação, mídia e na
atuação em rede através das Comunicadoras Negras, uma estratégia para a formação em
educomunicação e empoderamento de ativistas e instituições dos movimentos sociais.
O termo “geledé” designa uma espécie de festival de uma “sociedade secreta”
formada exclusivamente por mulheres e tem como intuito expressar o poder feminino sobre
a fertilidade da terra, procriação, forças poderosas da fé e o bem-estar das comunidades
Yorubas do sudoeste da Nigéria e do Benin.
Há pouco mais de dois meses, a execução da quinta vereadora mais votada no Rio de
Janeiro, Marielle Franco (PSOL/RJ), desencadeou sucessivos debates sobre o descaso para
com a vida da mulher negra. Em homenagem a ela, cinco de seus projetos foram levados à
Câmara Municipal para votação. Quatro propostas foram aprovadas em primeiro turno (criar
creches públicas noturnas para mães que trabalham à noite; instituir o Dia da Mulher Negra a
ser comemorado em 25 de julho; desenvolver campanha permanente contra o assédio e a
violência sexual em ônibus e trens e produzir o Dossiê Mulher) e uma teve apreciação adiada
(projeto que inclui dia de luta contra a homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia).
O líder do PSOL, vereador Tarcísio Motta, assume em entrevista ao portal5 que os
projetos foram aprovados como prestação de homenagem e reconhecimento à parlamentar
que levantada bandeira em defesa de LGBTI+, pobres e, principalmente, mulheres negras.
Para ele, a votação foi histórica por defender os direitos e propor políticas públicas voltadas
para mulheres trabalhadoras e moradores de favelas.
Diante da proporção do caso, foram criadas “campanhas políticas” em redes sociais,
principalmente no Twitter, com o intuito de propagar a imagem e o ativismo de mulheres
negras pouco conhecidas no Brasil. A principal motivação para tal ato foi o fato de que o
5
Câmara aprova projetos de Marielle e dá seu nome à tribuna. Disponível em: <
https://www.geledes.org.br/camara-do-rio-aprova-projetos-de-marielle-e-da-seu-nome-tribuna/> Acesso em: 25
de Maio de 2018.
Considerações Finais
Existe um abismo entre as contestações feitas sobre as mulheres negras no âmbito
político e acadêmico e o que elas vivenciam. Esses debates elitistas não chegam às mulheres
que precisam dele, por consequência, são levadas a se conformar com a realidade sem sequer
saber da possibilidade de uma existência diferente.
Por fim, nota-se que o ativismo político de uma organização não governamental
reflete em diferentes setores sociais. O coletivismo é essencial para o alcance da qualidade
de vida da mulher negra e enquanto não se cria mecanismos eficazes para mudar a realidade
dessas mulheres os civis devem se unir para atender às demandas negligenciadas pelo
Estado.
O posicionamento de Cabral e Maluf a respeito da gestação das mulheres negras
mostra o descaso do funcionalismo público para com quem está à margem da sociedade. Em
suma, pode-se dizer que, se nem parlamentares, que deveriam propor estratégias para a
devida equidade de acesso a serviços públicos, elaboram políticas que efetivamente
transformem a realidade, quem não tem possibilidade de ser ouvido como civil é cada vez
mais preterido.
A falta de oportunidade para as mulheres negras debaterem a própria realidade
também é prejudicial ao seu desenvolvimento das mesmas. As mulheres que as representam
nos programas televisivos, como filmes e novelas, perpetuam estereótipos e muitas vezes as
levam a acreditar que apesar do machismo e racismo, não existe preconceitos institucionais
que limite suas expectativas.
O portal Geledés abre espaço para intermediar essa discussão entre mulheres comuns
e órgãos governamentais nacionais e internacionais. O fato de impulsionar a acessibilidade a
pesquisas e dar voz a quem não é ouvido pelo Estado já aumenta a representatividade de
quem precisa disso para melhores condições de vida. Trazer esses debates para quem não
tem acesso ao meio político e acadêmico é a melhor forma de reconhecer às demandas de
mulheres negras e assim tentar atendê-las.
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Companhia das Letras, 1996.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of
history. New York, Columbia University Press, 1989.
1
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN, discente em Psicologia; nathalycrfernandes@gmail.com.
2
Faculdade de Jandaia do Sul – FAFIJAN, orientadora desse trabalho; doutoranda pela Universidade Estadual de
Maringá – UEM, Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, graduada em
Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; carolina.s.j.natividade@gmail.com.
Introdução.
O interesse por esse estudo surgiu frente a questionamentos com relação ao lugar
ocupado pela mulher negra no mercado de trabalho. Problematizou-se o assunto levantando
algumas questões: a) Qual é a situação de mulheres negras no ambiente de trabalho? b) Quais
os cargos mais ocupados por mulheres negras?.
Desenvolvimento.
Mulheres sofrem inúmeras dificuldades na entrada no mercado de trabalho, tendo
conforme Santos et al. (2017 p. s/p ) maiores risco de desemprego, segregação ocupacional e
discriminação nos rendimentos. As taxas de desemprego de mulheres crescem mais e
permanecem mais elevadas do que as dos homens, além do tempo de procura de trabalho, ser
maior para as mulheres. A segregação ocupacional refere-se ao papel das mulheres estarem
relacionados a papéis tradicionais, responsáveis pelos cuidados domésticos.
Essa disparidade existente no mercado de trabalho é descrita:
Como uma divisão sexual do trabalho, que é uma das formas de exploração do
capital, hierarquizando assim homens e mulheres, dessa maneira, a mulher fica na
hierarquia do capital abaixo do homem, e isso é algo construído historicamente e
que tem origem em um patriarcalismo das sociedades, fazendo com as mulheres
trabalhem em locais precarizados e sejam desvalorizadas (CISNE 2015 apud
SANTOS et al. 2017 p. s/p )
A escravidão não era questionada pois tinha como sustento a religião, que
disseminava a ideia de conformismo, como se o lugar do negro fosse o de inferioridade,
umainferioridade imposta e legitimada através da escravidão. O fim da escravidão, não foi
sinônimo de liberdade, pois essa população continuou (e continua) a margem da sociedade, a
igualdade social ainda não aconteceu, continuamos excluíndo e inferiorizando.
“As mulheres negras, desde a escravidão, vivenciam o trabalho de modo peculiar.
Enquanto escravas trabalhavam desde a lavoura até a “Casa Grande” executando atividades
domésticas e/ou utilizadas como instrumento de prazer sexual.” (ASSIS 2009 p. 5) As
mulheres afro-brasileiras são estereotipadas como exóticas ou promíscuas e estão associadas,
em todo o mundo, como fortes, capazes de suportar tudo, sexualizadas, enfim, quando
falamos em mulher negra e mercado de trabalho as associamos com determinadas profissões.
Isso acontece devido à chegada da mulher negra no país enquanto escrava, consequentemente
sua imagem foi sendo construída com base nisso, sendo duplamente rejeitada.
As mulheres negras são a parcela mais pobre da sociedade brasileira, vimos que isso
é resultado de todo um processo histórico de exploração e opressão, por serem a parcela mais
pobre da sociedade, se inserem no mercado de trabalho muito cedo, se submetendo muitas
vezes a humilhações, baixos salários, informalidade, posições menos qualificadas, dentre
outros.
O preconceito na sociedade brasileira assume diversas formas, uma das mais
evidentes é referente ao mercado de trabalho. O racismo dentro da esfera do trabalho
é constatado por meio de estudos comparativos, desde o rendimento mensal até
características como: tipos de trabalho; ter carteira assinada ou não; permanência no
mercado de trabalho. (SOARES, 2000 apud BOTHREL-ECEHEVERRIA, 2015 p.
75)
A maior parte das mulheres negras ocupa cargos inferiores e/ou desvalorizados, com
baixos salários, devido a pouca qualificação profissional, por falta de oportunidades, têm
maior dificuldade de completar a escolarização, além de possuir chances mínimas de chegar a
cargos de direção e chefia, que refletem a baixa qualidade de vida social. Quando uma mulher
negra consegue chegar a um cargo de prestígio levanta-se muitas vezes a ideia de
meritocracia, como se tudo dependesse de esforço e mérito, precisamos discutir também, o
fato que mulheres negras precisam provar com freqüência sua capacidade intelectual para
ocupar determinados cargos.
Esses marcadores sociais são representados no 3° modulo do livro Políticas Públicas
e Raça onde encontramos o perfil da mulher negra no mercado de trabalho: As
mulheres que começam a se movimentar para ocupação de nível superior são
predominantemente brancas, enquanto que há uma forte concentração de mulheres
pretas e pardas no serviço doméstico. As mulheres provenientes das classes mais
pobres (majoritariamente negra) se dirigem para a prestação de serviços e para
empregos ligados à produção na indústria, enquanto que as mulheres de classe
média se dirigem para o serviço de produção e de consumo coletivo (setor terciário)
devido aos seus melhores níveis educacionais. (PPR, p.165-166 apud SANTOS et
al. 2017 p. s/p)
engenheiras, dentistas, atrizes, modelos e quantas zeladoras, faxineiras, cozinheiras são negras
e assim por diante, no mercado de trabalho em geral existe uma diferença muito grande sobre
esses papéis ocupados.
Como citado anteriormente, a escolaridade é outro fator agravante da situação da
população negra no mercado de trabalho. Segundo Gonzalez (2008 apud SANTOS;
CANUTO 2017 s/p):
A falta de escolarização dos negros é um mecanismo de desigualdade, aponta que a
população negra esta condicionada a uma pequena chance de chegar às
universidades, resultando na conclusão que a situação das famílias negras no Brasil
não condiz com a realidade da família dos brancos pobres, que perante a pobreza
ainda podem contar com os privilégios que sua cor de pele oferece.
cargo por sua capacidade, ou seja, qualificação, nos dias atuais, nas competências do sujeito
contratado. Competências essas de difícil definição, algo que surge para atender demandas do
próprio mercado de trabalho. Por exemplo, o quesito “boa aparência”, onde os atributos
estéticos, basicamente eurocêntricos, estão escondidos nesse discurso.
Percebemos que existem determinados atributos, que constituem um determinado
perfil, de quem pode e quem não pode ocupar determinado cargo, isso diminui as
possibilidades de inserção e de alocação das mulheres negras no mercado de trabalho, pois os
quesitos são discriminatórios, o racismo silencioso é muito comum dentro das empresas.
Estudos de Silva; Lima (1992, apud BENTO, 1995 p.482) revelam que em funções
para as quais são exigidos determinados atributos estéticos as mulheres brancas e amarelas
estão representadas mais do que as negras. Mulheres negras apresentam as menores taxas de
participação em ocupações cujos salários são mais elevados e que implicam atividades
consideradas nobres, esses cargos acabam sendo destinadas preferencialmente aos homens
brancos e mesmo quando preenchidas por mulheres, estão reservadas as mulheres brancas e
amarelas. É visível a presença da mulher negra em posições menos qualificadas e recebendo
os mais baixos salários.
Quando o perfil das trabalhadoras domésticas no Brasil é analisado em relação ao
percurso histórico apesar dos avanços, ainda mostram que o critério de sexo e raça são
existentes na composição dessa ocupação. Dados da ONU- Organização das Nações Unidas,
(2016 apud VIEIRA 2017 p. 07) revelaram que em 2014, 14% das mulheres eram
empregadas, mais de 6 em cada 10 eram mulheres negras (65%). Essa situação precária nas
relações de trabalho predomina: 68% sem registro, em sua maioria por trabalhadoras com
baixa escolaridade. Além dessa informalidade existe também o não acesso aos direitos
vinculados ao trabalho, pois recebiam 42% do rendimento médio das trabalhadoras.
A candidata negra excluída são oferecidas justificativas do tipo a vaga já foi
preenchida, encontramos uma candidata mais adequada as exigências deste trabalho
etc etc. Dessa forma ela fica impossibilitada de ter explicitado o critério que de fato
a excluiu, a cor. Ela terá ainda que procurar elaborar quase sempre o impacto
emocional que repetidas situações desse tipo podem provocar, não estar
suficientemente adequada para a vaga, reunir as mesmas condições objetivas que a
colega branca porem não conseguir emprego não ter como lutar contra o
desemprego prolongado porque raramente tem elementos concretos para denunciar o
que obstaculiza seu ingresso nas empresas. (BENTO, 1995 p.486)
Vale lembrar que pesquisas apontam que essas mulheres negras recebem menos que
os homens. Um homem negro ganha 40% a mais que uma mulher negra. Se comparando a
uma mulher branca, essa diferença aumenta: uma mulher branca ganha 70% a mais que uma
mulher negra.
Considerações finais.
Concluímos que o lugar da mulher negra no mercado de trabalho é em sua maioria
cargos com baixos salários, de pouco prestígio, dificuldades na ascensão a posições
superiores, essas dificuldades existem na entrada do mercado de trabalho e também na
manutenção de seu emprego. Existe o acesso restrito a determinados cargos, uma divisão
racial do trabalho, resquício de uma sociedade patriarcal e escravocrata.
A inserção da mulher negra no mercado de trabalho começou muito cedo, enquanto
mulheres brancas lutavam para conquistar espaços no mercado de trabalho, mulheres negras
sempre estiveram ali, resistindo a diversas dificuldades. É importante entender quais são os
obstáculos enfrentados por mulheres negras na inserção no mercado de trabalho, para a
superação dessas desigualdades. Foi possível entender alguns problemas vividos por mulheres
com relação a mercado de trabalho, como a produção e reprodução de desigualdades sociais
no Brasil.
Essas desigualdades existentes no mercado de trabalho precisam ser refletidas de
forma interseccional, ou seja, levando em consideração a articulação entre gênero e raça. Pois
as mulheres negras fazem parte de um grupo historicamente vulnerável, cheio de
atravessamentos, demandas e necessidades específicas, tanto de gênero quanto de raça. É
necessário avanços no recrutamento, seleção e demissão, bem como às desigualdades de
tratamento, para quebrar a barreira da invisibilidade da mulher negra no mercado de trabalho,
Referências.
ASSIS, J. F de. Relações de trabalho da população negra no Brasil: situação das trabalhadoras
negras e a contribuição das políticas públicas e do Serviço Social para o enfrentamento das
desigualdades. In: IV Jornada Internacional De Políticas Públicas. Neoliberalismo e lutas
sociais: perspectivas para as políticas públicas, 2009, São Luis - MA.
SANTOS, E. F. D., DIOGO, M. F., & SHUCMAN, L. V. (2014). Entre o não lugar e o
protagonismo: articulações teóricas entre trabalho, gênero e raça. Cadernos de Psicologia
Social do Trabalho, 17(1), 17-32.
1
Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral; graduanda em Serviço Social;
thaiscaroline.rodriguesrd@gmail.com
2
Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral; docente doutora no curso de Serviço Social,
karlacuellaradv@hotmail.com.
INTRODUÇÃO
O presente artigo, busca trazer reflexões em torno das dificuldades que as mulheres
negras sofrem diariamente, devido à desigualdade de gênero, com a presença muito forte do
machismo e do racismo institucional, no que tange ao mercado de trabalho e acesso a ensino
superior no Brasil, ainda faz breve análise sobre políticas afirmativas para inserção social das
mulheres negras a fim de superar a desigualdade de gênero e questões de preconceito racial,
destacando assim a escassez de políticas públicas na sociedade capitalista brasileira.
Em 1888, promulgou-se a Lei Geral de Libertação dos Escravos conhecida como a
Lei Áurea. Com um texto curto, simples e direto, a lei libertava cerca de 700 mil escravos,
num país com então 15 milhões de habitantes. Esse acontecimento não foi planejado,
tampouco foram criados dispositivos que amparassem a população negra, simplesmente
aboliram a escravidão, não viabilizando nenhum subsídio para autonomia dessas(es) mulheres
e homens, os deixando a mercê da própria sorte. Tendo em vista esses acontecimentos,
mulheres e homens negras(os) sem preparo ou condições de mínima subsistência passaram a
sofrer ainda mais opressões, na qual foi e ainda é sustentada pelo capitalismo patriarcal, que
adotou como estratégia para o desenvolvimento capitalista uma indústria seletiva, incentivando a
empregabilidade de trabalhadores(as) brancos(as), vindo da Europa, resultando no
“aprofundamento da divisão racial do território, num momento crucial para se construir um
projeto de Nação”. (HASENBALG, SILVA, 1992, p. 55), violando seus direitos de acesso à
educação, habitação e renda, fato este que obrigou tais pessoas a viverem em locais
insalubres, periféricos e marginalizados já que não possuíam saneamento básico, estando
apartados a viverem nas encostas dos morros e rios.
A constituição promulgada em 1988 foi o grande marco da redemocratização no
Brasil após um longo período de ditadura. O intuito principal do texto constitucional era
garantir, em linhas gerais, direitos sociais, econômicos, políticos e culturais que estavam
suspensos no período anterior, e que posteriormente seriam regulamentados por leis
específicas. Assim a partir de 1988, com a redemocratização do Estado e através da
articulação do movimento negro que antecede a promulgação da Carta Magna supracitada,
foram criados alguns dispositivos que promovem a valorização da história da cultura afro-
brasileira, dentre estes temos a Lei nº. 10.639 de 2003 que dispõe sobre a inserção no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira”, temos ainda a Lei nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, que reserva aos negros 20%
(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos
efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das
fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas
pela União, conhecida popularmente como a lei de cotas.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada denominado
Dossiê Mulheres Negras, retrata as condições de vida das mulheres negras no Brasil “embora
as mulheres apresentem um melhor desempenho educacional, elas ainda enfrentam desafios
no que diz respeito aos retornos esperados pelo investimento educacional” (MARCONDES,
M., PINHEIRO, L., QUEIRÓZ C., QUERINO A. C., VALVERDE D., Brasília, 2013). Foi
somente a partir do ano de 2001 como relata Domingues (2007), após a III Conferência
Mundial contra o Racismo e a Xenofobia, aprovou-se um plano de ação visando a equidade
de direitos dos negros, promovendo maior inserção das mulheres negras no ensino,
influenciado por movimentos sociais que incluíram na agenda pública a discussão de temas
como a discriminação e desigualdades enfrentadas pela população negra. Em conjunto com
esses progressos socais algumas políticas públicas sugiram posteriormente para inserção da
população negra e de baixa renda no ensino superior. Após as ações afirmativas supracitadas,
em conjunto a promulgação da Lei de Cotas para o Ensino Superior 12.711, observa-se no
Brasil um avanço no que diz respeito à inserção das mulheres negras no ensino superior,
ocupando cada vez mais as vagas que são destinadas como forma de direito a essa população,
que durante muito tempo foi escravizada e excluída social e economicamente. Entretanto, isso
não se demonstra suficiente no combate ao racismo e machismo que essas mulheres sofrem
em seu cotidiano nessa sociedade capitalista racista e patriarcal.
O racismo se manifesta das mais diversas formas no Brasil: está na falta de
representatividade de homens e mulheres negras nos espaços públicos, nos guetos de exclusão
e pobreza, mas também no imenso número de assassinatos que ocorrem todos os anos.
O Mapa da Violência mostra que enquanto o homicídio de mulheres negras
experimentou um crescimento de 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o homicídio
de mulheres brancas caiu 9,8%. Não bastasse a violência contra si, a mulher negra também
experimenta com maior intensidade a violência contra seus filhos, irmãos e companheiros. De
acordo com o Mapa da Violência de 2012, dos cerca de 30 mil jovens entre 15 e 29 anos
assassinados por ano no Brasil, 93% são homens e 77% são negros.
É necessário que a sociedade reconheça o problema que é o racismo, somente com
políticas de Estado; criando e gerindo as políticas públicas de modo eficiente é que podemos
reconhecer meios de enfrentar dito preconceito. Também precisamos reconhecer que sem as
mulheres negras e sua participação ativa não teremos o pleno exercício de nossos direitos. Ser
mulher negra é enfrentar a dor, o racismo, machismo e a violência de gênero como luta
Desse modo fica evidente que a monarquia brasileira não planejou este
acontecimento, tampouco proveu/criou dispositivo que amparassem a população negra,
simplesmente aboliram a escravidão, não viabilizando nenhum subsídio para autonomia
dessas(es) mulheres e homens, as deixando a mercê da própria sorte. Sendo assim, o termo
mais correto a ser adotado seria liberação das(os) escravizadas(os).
Mesmo após 138 anos, da liberação das escravizadas, poucos foram os espaços que
as mulheres negras conseguiram ocupar. Para compreensão e ampliação desse debate, faz-se
Essas desigualdades, citada por Godinho, é fruto de uma construção histórica para
legitimação do patriarcado, que é discutida por Saffioti, com a naturalização da desigualdade
de gênero, através dos processos socioculturais, que legitimou o patriarcado, considerando o
trabalho desenvolvido pelas mulheres inferior, mesmo que elas viessem desempenhar a
mesma função de um homem e ao reconhecer como natural essa desigualdade de gênero e
divisão sexual do trabalho, torna-se comum que ‘’...a mulher se ocupe do espaço doméstico,
deixando livre para o homem espaço público’’(SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani, 1987, p.
11)
No entanto, enquanto a mulher branca de classe trabalhadora precisa lutar contra a
desigualdade de gênero e classe, para ter sua inserção social, a mulher negra é triplamente
segregada, pois,
Podemos dizer que a mulher enfrenta a barreira de classe e de gênero, e a mulher
negra enfrenta um problema a mais: a raça, como os dados estatísticos demonstram,
uma vez que a desigualdade por cor não pode ser reduzida à desigualdade de gênero
e classe. Ou seja, a mulher negra sofre discriminação tripla: como mulher, como
negra e como pobre, considerando-se que a pobreza é negra e atinge principalmente
a mulher negra. (GARCIA, Antonia dos Santos, 2012, p. 156)
Conforme mais marcadores sociais uma mulher negra carrega – como os relativos a
classe e/ou orientação sexual – esta estará mais vulnerável a sofrer opressão e violência, assim
como ser restrita ao acesso a seus direitos.
âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas
públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, conhecida popularmente
como a lei de cotas.
Com base nas leis e em consonância com a pesquisa realizada pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada em seu documento denominado Dossiê Mulheres Negras, nos
diz que.
Embora as mulheres apresentem um melhor desempenho educacional (média de
anos de estudos mais elevada, maiores taxas de escolarização em todos os níveis de
ensino e uma maior proporção de pessoas com nível superior concluído), elas ainda
enfrentam desafios no que diz respeito aos retornos esperados pelo investimento
educacional: seus rendimentos são inferiores aos dos homens, sua participação nos
postos de comando e na condição de proprietárias-empregadoras ainda é restrita.
Estas desigualdades também estão relacionadas à condição de gênero, como a média
de horas trabalhadas das mulheres ser inferior à dos homens, dada a necessidade de
dupla jornada, além de estarem concentradas nos setores de atividade com salários
mais baixos, como saúde e educação. (MARCONDES, Mariana, PINHEIRO,
Luana, QUEIRÓZ Cristina, QUERINO Ana Carolina, VALVERDE Danielle, 2013,
p. 54).
Foi somente a partir do ano de 2001 como relata Domingues (2007), após a III
Conferência Mundial contra o Racismo e a Xenofobia, aprovou-se um plano de ação visando
a equidade de direitos de negros(as), promovendo maior inserção das mulheres negras no
ensino, influenciado por movimentos sociais que incluíram na agenda pública a discussão de
temas como a discriminação e desigualdades enfrentadas pela população negra. Após as ações
afirmativas supracitadas, em conjunto a promulgação da Lei de Cotas para o Ensino Superior
12.711, que determina nas universidades federais
Desse modo, mesmo havendo um avanço no que diz respeito à inserção das mulheres
negras no ensino superior, ocupando cada vez mais as vagas que são destinadas como forma
de direito a essa população, que durante muito tempo foi escravizada e excluída social e
economicamente, não demonstra suficiente na superação do racismo e machismo que essas
mulheres sofrem em seu cotidiano nessa sociedade capitalista racista e patriarcal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Ao período que antecede a redemocratização do Estado, concluímos que,
O país não ofereceu subsídios para a sobrevivência de negras e negros, tão pouco
buscou incluí-los nos diversos espaços institucionais e sociais. Ao absterem-se da
situação de marginalidade na qual o(a) negro(a) foi colocado(a) após 1888, os
representantes da elite brasileira deram margem a subalternização dessa população,
dando condição para a continuidade de práticas racistas sob o véu da “liberdade”.
(PENAS, Thais Caroline Rodrigues, 2017, p.2)
Cultura Afro-Brasileira", temos ainda a Lei nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, que reserva
aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para
provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública
federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de
economia mista controladas pela União, conhecida popularmente como a lei de cotas.
Mas mesmo com os dispositivos legais, é visível nas universidades e nos demais
espaços institucionais o modelo hegemônico burguês, que reforça através do racismo
institucional e o machismo que os espaços públicos não são para mulheres, tão pouco, para
mulheres negras. E no que se refere ao acesso das mulheres na universidade, Georgina diz
que,
A ausência ou pequena presença de mulheres negras como pesquisadoras e docentes
acadêmicas num momento em que a universidade brasileira está bastante
feminilizada, com exceção de algumas áreas e cursos, é apenas um dos aspectos de
uma trajetória que marca o corpo negro [...](NUNES, Georgina Helena Lima, 2009,
p. 224)
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/digital/138/sistema-de-cotas-completa-
dez-anos-nas-universidades-brasileiras/>. Acesso em: 19 de maio 2018.
GARCIA, Antonia dos Santos. Mulher Negra e o direito à cidade: Relações raciais e de
gênero. In: SANTOS, Renato Emerson dos. Questões Urbanas e Racismo. Rio de Janeiro, De
Petrus et Alii Editora Ltda, 2012.
GEORGE Reid Andrews. O protesto político negro em São Paulo (1888-1988), Estudos
AfroAsiáticos, n. 21, Rio de Janeiro, 1991.
GODINHO, Tereza Martins. Traços da violência praticada por mulheres brancas contra
mulheres negras no período escravocrata, em fazendas no estado de Goiás. In: Seminário
Internacional Fazendo Gênero, 7., 2006, Florianópolis. Anais eletrônicos... Florianópolis,
UESC, 2006. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/st_18.html>
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
PENAS, Thais Caroline Rodrigues, SILVA, Barbara Antunes da, ESCORSIM, Silvana Maria.
NEGRAS E NEGROS – “TÁ” FALTANDO AQUI! : análise do ingresso da população negra
no curso de Serviço Social da UFPR através das políticas de cotas conforme a Lei n.º
12.711/2012. In: Seminário Nacional de Serviço Social, Trabalho e Política Social,2, 2017,
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna,
1987.
VICENT, Sylvie. Heterofogia e racismo nas organizações, luta de raças e luta de classes. In:
TORRES, Ofélia de Lanna Selte.(Org). O individuo na organização: dimensões esquecidas.
São Paulo: Editora Atlas S.A, 2012
Alessandra Benedito1
Resumo
O processo de inserção da mulher no mercado de trabalho sempre foi marcado por
muitos obstáculos no Brasil, em virtude de o país ter em sua origem uma cultura
patriarcal e escravagista, com uma visão machista que naturaliza a discriminação e a
interiorização feminina e favorecimento das estruturas organizacionais de produção
capitalista. A mulher negra está envolta em um binômio de discriminação
historicamente naturalizado na sociedade brasileira machista e sexista. De modo que, ao
observar-se a situação da trabalhadora negra no Brasil de hoje, percebe-se que se
apresenta como uma extensão da realidade vivida por elas no período da escravidão.
Não ocorreram muitas mudanças significativas, pois permanecem em último lugar na
escala social, sendo preteridas no mundo do trabalho. Dados estatísticos revelam que
elas continuam a ocupar a maioria dos postos de trabalho nos serviços domésticos,
recebem os piores salários, trabalham mais, entretanto com rendimento menor e
apresentam menor nível de escolaridade se observados todos os níveis de escolarização.
Logo possuem limitações para ingressar, permanecer e ascender no mercado de
trabalho, restringindo-se assim as possibilidades de terem uma vida digna com
oportunidades iguais. Na luta cotidiana, por dias melhores, foi no empreendedorismo
que elas se tornam menos invisíveis, no entanto, ainda estamos longe do ideal de
inserção, ampliação e amadurecimentos necessários para garantir vida longa ao negócio,
por elas empreendidos.
O arcabouço normativo nos âmbitos constitucional, infraconstitucional e internacional
vigente no Brasil criou uma estrutura de proteção ao trabalho da mulher e ao negro,
contudo pouco do que foi estabelecido na norma com a finalidade de garantir a
igualdade de tratamento entre homens e mulheres e entre brancos e negros concretizou-
se na prática diária do mundo do trabalho. Portanto, os direitos que visam à proteção
1
Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico, professora da graduação e pós em Direito e
Trabalho na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Aluna Especial na Economia- Unicamp.
O trabalho da mulher negra na sociedade escravagista não tinha valor, uma vez que,
elas eram parte das coisas dos seus senhores e como tal, eram exploradas até a morte.
A mulher negra trabalhava nos afazeres domésticos, nas zonas rurais e nos centros
2
FERNANDES, Florestan. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional”. São Paulo:
Hucitec, 1979, p. 12.
3
DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 144.
4
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989, p. 21.
5
MORAES FILHO, Evaristo. Prefácio ao livro Apontamentos de direito Operário. São Paulo: LTr, 1971, p.
25
6
Características do Emprego Formal segundo a Relação Anual de Informações Sociais – 2013. Disponível
em:
http://portal.mte.gov.br/data/files/FF80808148855DD70148A92767C34D76/Principais%20Resultados%
20-%20Ano%20base%202013.pdf. Acesso em:14/08/2015.
7
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. Revista USP n. 69, São Paulo, março/maio 2006, pp. 36-
43. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/69/04-flavia.pdf>. Acesso em 08.10.2014.
8
O debate público das ações afirmativas tem revelado, de um lado, aqueles que argumentam constituírem elas uma violação de
direitos, e, de outro lado, os que advogam serem elas uma possibilidade jurídica ou mesmo um direito. A respeito, note-se que o
anteprojeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e toda forma de Discriminação e Intolerância, proposto pelo Brasil no
âmbito da OEA, estabelece o direito à discriminação positiva, bem como o dever dos Estados de adotar medidas ou políticas
públicas de ação afirmativa e de estimular a sua adoção no âmbito privado. Cf. PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas no Brasil:
desafios e perspectivas. Revista de Estudos Femininos [online] vol. 16, n. 3, 2008, pp. 887-896. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300010, p. 894.
9 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de
transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40.
Isso se faz necessário para que as mulheres sejam selecionadas com base em sua
capacidade de realizar o trabalho, não havendo distinção, exclusão ou preferência sob
outras alegações.
No caso de mulheres que desejem abrir seu próprio negócio, formalizar e organizar
negócios já existentes é imprescindível a criação de programas de incentivo econômico
e de formação para estas mulheres.
Mesmos com uma estrutura normativa que garante igualdade entre homens e mulheres,
entre brancos e negros, o arcabouço normativo sozinho não dá conta de expurgar o
preconceito e discriminação que afasta mulheres negras da invisibilidade na economia
brasileira, ou seja, as trabalhadoras que sofrem discriminação no trabalho, seja na busca
por uma ocupação, seja durante a vigência do contrato de trabalho, ou no memento em
procuram uma instituição financeira para fazer um empréstimo para abrir ou expandir
seus negócios “têm a oportunidade negada e seus direitos humanos básicos violados.
Isso afeta o indivíduo envolvido e influencia negativamente em uma contribuição maior
que poderiam oferecer à sociedade”.11
Sendo assim, o Estado e toda a sociedade são responsáveis pela sedimentação da prática
do Trabalho Decente12 (digno), com a desígnio de proporcionar e garantir justiça social
e desenvolvimento para toda a população de forma isonômica.
10
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e princípio da igualdade: o Direito como
instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 197.
11
Manual do Global Compact. Entendimento prático da visão dos princípios. Disponível em:
<www.pactoglobal.org/doc/manual%20 do%20global%20compact.doc>. Acesso em 30.08. 2014.
12
O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito
aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos
Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade
sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)eliminação de todas as formas
de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de
discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade,
15
MARCONDES, Mariana Mazzini; PINHEIRO, Luana; QUEIROZ, Cristina; VALVERDE, Danielle (orgs.).
Dossiê Mulheres Negras - retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Disponível em:
<http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/39/livro_dossie_mulheres_negras.pdf>. Acesso
em 08.10.14.
16
Princípios de Empoderamento das Mulheres. Disponível em:
<http://www.pactoglobal.org.br/Artigo/136/Premio-WEPS-internacional-abre-inscricoes-para-edicao-
2015>.
17
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e princípio da igualdade: o Direito como
instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 197.
18
THEODORO, Mário (org.); JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. As
políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/Livro_desigualdadesraciais.pdf>. Acesso em 30.08.2014.
19
“O Ministério Público do trabalho (...) tem poder de investigação nas práticas de discriminação no
trabalho; quando instaura inquérito civil público com tal objeto, realiza uma análise do histórico da
empresa. Para tanto, normalmente, utiliza-se de questionário, em que observa o acesso, a promoção e a
despedida de grupos tidos por vulneráveis dentro da empresa investigada”. SILVA, Ana Emília Andrade
Albuquerque da. Discriminação racial no trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 53.
20
THEODORO, Mário (org.); JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. As
políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/Livro_desigualdadesraciais.pdf>. Acesso em 30.08.2014.
Conclusão
21
Disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00001126.pdf. Acesso em: 12/08/2015.
22
Disponível em: http://noticias.serasaexperian.com.br/brasil-tem-mais-de-5-milhoes-de-mulheres-
empreendedoras-revela-estudo-inedito-da-serasa-experian/. Acesso em: 14/08/2015.
23
E quanto ao reconhecimento e distribuição? Se vivemos em um modelo no qual dinheiro atribui status
e poder, o Direito terá que centrar seus esforços em redistribui-lo, pois sem ele o reconhecimento se
torna falso e verdadeira exclusão permanece. Cf. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; GRAMPA, Victor
Henrique. As ações afirmativas no Direito do Trabalho: redistribuição e reconhecimento. In:
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. CLT, 70 anos de consolidação: uma reflexão social,
econômica e jurídica. São Paulo: Atlas, 2013, p. 159.
Sites:
http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00001126.pdf
http://www.oitbrasil.org.br/prgatv/prg_esp/genero/incl_gen_rac.php
http://portal.mte.gov.br/data/files/FF80808148855DD70148A92767C34D76/Principais
%20Resultados%20-%20Ano%20base%202013.pdf
http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente.
http://portal.mte.gov.br/antd
http://www.oitbrasil.org.br/prgatv/prg_esp/genero/incl_gen_rac.php
http://noticias.serasaexperian.com.br/brasil-tem-mais-de-5-milhoes-de-mulheres-
empreendedoras-revela-estudo-inedito-da-serasa-experian/
Resumo: O debate público sobre a imigração na Itália tem sido marcado, desde a
década de 1990, pela vinculação entre o racismo popular e o racismo institucional,
assim como por expressões de sexismo e racismo de classe. As vozes que destoam do
paradigma securitário em curso tem sido alvo constante de ataques tanto de movimentos
sociais, quanto de partidos e expoentes políticos, ao passo que o alvo preferencial destes
ataques tem sido as mulheres que ocupam cargos políticos proeminentes, como é o caso
da Presidente da Câmara dos Deputados, Laura Boldrini, e da ex-Ministra da
Integração, Cècile Kyenge. Também as mulheres migrantes, em especial as mulheres
árabes e africanas, tem sido alvo de discursos e práticas xenófobas e racistas, articulados
com a misoginia e o sexismo. O objetivo deste artigo é analisar, desde uma perspectiva
interseccional, o modo pelo qual a posição social da mulher-especialmente da mulher
migrante -é condicionada pela interação entre gênero, raça, classe e pertencimento
nacional, apontando para a construção dos estereótipos sobre os sujeitos migrantes, isto
é, dos corpos considerados perigosos no debate sobre imigração na Itália.
1
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
e pesquisadora de Pós-Doutorado pela mesma Universidade. Doutora em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: ferdiflora@uol.com.br.
2
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual Júlio de Mesquita
Filho (UNESP-Araraquara). Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). E-mail: zuin@fclar.unesp.br
3
Partido que até o ano de 2017 utilizava o nome e o símbolo Liga Norte, mas teve sua simbologia
alterada com o objetivo de modificar sua imagem vinculada a um partido eminentemente regionalista e
obter consenso eleitoral ao nível nacional.
4
Deputada e Ministra das pastas da Integração e da Política Juvenil no Governo Letta nos anos de 2013 e
2014, atualmente Eurodeputada.
5
Alta Comissária para os Refugiados da Organização das Nações Unidas nos anos de 1998 e 2012,
Deputada e Presidente da Câmara dos Deputados nos anos de 2013-2018, reeleita Deputada na eleição de
2018.
6
A Padânia nunca existiu histórica ou geograficamente, mas a Liga criou, desde sua fundação, uma
narrativa histórica e geográfica para justificar suas reivindicações políticas e territoriais, tratando-se
sobretudo de uma construção política voltada, inicialmente, para emancipar as regiões que compõem o
norte da Itália e formar um novo país.
7
Cujo dirigente, Alberto Palladino, recentemente afirmou que “no coração de todo italiano há um
espacinho para o fascismo”. Cf. “Partido de extrema direita rompe tabu do discurso do fascismo na
Itália”, Folha de São Paulo, 02\03\2018.
8
O termo “interseccionalidade” aparece pela primeira vez em um texto de K. Crenshaw, no final dos anos
1970, com o objetivo de elaborar uma crítica ao feminismo branco, de classe média, heteronormativo,
que, de acordo com o feminismo negro emergente no período, desconsiderava as determinações de raça,
gênero, classe e sexualidade na potencialização das múltiplas formas de opressão, apontando haver não
apenas diferenças entre as mulheres, mas relações de privilégio.
A racialização do sexismo
Na cidade alemã de Colônia, na passagem do ano de 2015, diversas mulheres
sofreram desrespeitos, abusos, violências físicas, agressões verbais, tentativas de
estupro, que, no dia seguinte, foram imputados aos imigrantes e refugiados presentes na
Alemanha de Angela Merkel. A imediata culpabilidade atribuída aos estrangeiros pelos
jornais alemães e europeus, que estampavam notícias alarmistas e apocalípticas, gerou
diversos protestos de repúdio ao ingresso de imigrantes oriundos de culturas que são
vistas como não respeitadoras das liberdades das mulheres e da igualdade de gênero. O
movimento social PEGIDA e o partido Alternative für Deutschland promoveram
diversas manifestações públicas nas quais reafirmavam os nexos entre a imigração e a
insegurança, um tema que levou o partido político ao Parlamento Alemão em 2018. O
ponto mais significativo ocorreu nos slogans das passeatas anti-imigração, nas quais
eram destacadas as seguintes palavras de ordem: "defendamos as nossas mulheres" e,
em alguns casos, evocavam o “estupro da Europa”, como é possível observar na capa da
revista polonesa abaixo, exibida logo após os eventos de Colônia.
O uso do pronome possessivo é extremamente
revelador da fortíssima mentalidade machista, patriarcal
e patrimonial, que se sente ameaçada pela presença de
outros homens. Como afirmou a socióloga italiana
Chiara Saraceno (2016), os movimentos anti-imigração
e anti-islamismo e os partidos da nova direita, "são
poucos ou nada sensíveis às moléstias e agressões que as mulheres europeias e
http://www.liberoquotidiano.it/news/italia/13227508/forza-nuova-manifesto-stupri-fascismo-razzismo-repubblica-
sociale-italiana.html
- MbBgt6 luigi @MBgt65 in risposta a @matteosalvinimi: Ela será uma puta por
toda a vida;
- Cocci-nella @Cocci1309 in risposta a @matteosalvinimi: Matteo força contra esta
prostituta que representa 3% dos italianos!!!
- Virginia @Virgini87207398 in risposta a @matteosalvinimi: “DEVE SER
ELIMINADA”;
- Francesco Bartolomei @frances_bart) in risposta a @matteosalvinimi: “denuncia a
jornalista comunista Boldrini que em um país normal já teria acabado na prisão ou em um
instituto psiquiátrico;
Conclusão
A força semântica e simbólica contida na linguagem e no discurso político
populista não apenas capta com crescente sucesso a atenção dos cidadãos expostos à
vulnerabilidade e à incerteza, ao medo pela queda do nível de vida e às transformações
do modo de vida (REYNIÉ, 2013), mas produz a construção social dos novos
mecanismos de desumanização e discriminação. No início do século XXI, os slogans e
as imagens políticas promovem novos processos sociais de negação da existência
humana nos grupos e classes subalternos e minoritários. A linguagem vulgar e agressiva
ativa energias pulsionais e estimula a ação verbal e física de desrespeito e vexame tanto
para pessoas que não são reconhecidas como plenamente humanas e identificadas como
ameaçadoras e perigosas à ordem da comunidade nacional orgânica e homogênea. A
presença do outro – a mulher livre, a imigrante, o imigrante, o homossexual, o
bissexual, o transexual – incomoda profundamente a figura do homem branco e dos
seus tradicionais privilégios e papeis em todos os espaços sociais.
Não estamos apenas presenciando uma radical passagem de época em direção
àquilo que não é ainda, como afirmava o sociólogo alemão Ulrich Beck em suas
análises da modernidade radicalizada, mas também estamos testemunhando a
articulação de forças sociais e políticas que promovem uma ampla negação das
conquistas sociais criadas com liberdade e justiça social da democracia moderna e do
Estado Social. Na avançada contrarrevolução em curso na Europa e no mundo, a Itália
representa um dos países no qual os fenômenos morbosos da época do interregno – o
termo usado por Gramsci para expor a dura passagem de época quando as forças velhas
Referências Bibliográficas
a) Livros:
BASSO, P. (org.) Racismo di stato. Stati Uniti, Europa. Italia. Milano: Franco Angeli,
2011
FERRAJOLI, L.. Poteri selvaggi. La crisi della democrazia italiana. Roma: Laterza,
2011.
b) Artigos em coletâneas:
PETTENÒ, M. Sulla violenza contro le immigrate e gli immigrati. In: BASSO, P. (org.)
Racismo di stato. Stati Uniti, Europa. Italia. Milano: Franco Angeli, 2011
c) Artigos em periódicos:
d)Páginas da Internet:
Resumo: Tecido a partir das ocorrências da infância, o fio narrativo do conto “Metamorfose”,
de Geni Guimarães, verte-se da memória. A voz/escrita questiona a história oficial a respeito
da escravatura e da condição do sujeito negro, numa sociedade movida por manifestações
racistas que em muitas situações se apresentam de forma sutil e dissimulada, por isso,
desconsideradas como práticas preconceituosas. O racismo fere, sobremaneira, a população
negra, causa-lhe transtornos, dificulta-lhe a integração social. Centrando nessa proposição, o
presente artigo objetiva analisar, a partir das lembranças elaboradas pela protagonista - uma
menina na fase escolar do ensino fundamental que pelas pistas textuais parece cursar a
terceira série, possivelmente, conta com a idade de 10 anos - a reflexão autoral sobre a
valorização cultural, a ressifignificação identitária dos sujeitos descendentes dos povos
africanos. Atentar-se-á à construção da palavra, pelos mecanismos da memória/voz/escrita,
instrumento utilizado pela escritora afrodescendente para exteriorizar, artisticamente, o
entendimento do que é ser negro numa sociedade excludente e discriminatória. Assim, ao
examinar a narrativa, pretende-se compreender a reelaboração da identidade individual e
coletiva, visto que a reinvenção da diferença outorga-se na escrita literária de uma mulher
negra, definida pelo caráter revolucionário e político, portanto. Sob essas orientações, aspira-
se que as formulações discutidas alcancem professores, pesquisadores, alunos, comunidade, e
que o intercâmbio favoreça a discussão, o enfrentamento a qualquer forma de negação do
outro, no reconhecimento e valorização de diversas culturas constituintes da sociedade
brasileira.
1
UNESP-ASSIS; Pós-doutoranda em Letras; mapdebarros@gmail.com.
Introdução
Professora, escritora, poeta e ficcionista ascendente dos povos de África, Geni
Mariano Guimarães, nasceu em uma das áreas rurais do interior paulista, fazenda Vilas Boas,
São Manuel, em 8 de setembro de 1947. Aos cinco anos, seus pais deslocaram-se para outra
fazenda, localizada no município Barra Bonita e, posteriormente, ela se transferiu a este
município, lugar em vive até hoje. Recantos promissores para que a menina exercitasse o
imaginário, na interação com a natureza e os animais que se avizinhavam ao seu reino
encantado, bem como tornar público as máscaras do racismo que persistem em preterir e
desqualificar os de origem africana; cenários e episódios recriados em seus textos e poesias
que, tempos depois, foram publicados nos jornais da região. “Bem antes de frequentar a
ensino oficial, eu “lia” poesias e histórias em tudo quanto eram livros, revistas, jornais que
encontrava. Quando entrei para a escola, o professor me contou que eu era poeta e, vendo que
era bom, assumi por inteiro o privilégio do dom” (GUIMARÃES, 1998, p. 94). Proeza
alargada na trajetória existencial, juntamente com a amplitude acerca do racismo e do
preconceito, mecanismos mantenedores da histórica injustiça social, que continua a vitimar as
comunidades afrodescendentes pelos tempos afora.
Denúncias que se fazem notórias em seus depoimentos e suas produções poéticas:
Terceiro filho, Editora Jalovi, 1979, Da flor o afeto, da pedra o protesto, Barra Bonita: Ed. da
Autora, 1981; Balé das emoções, Barra Bonita: Ed. da Autora, 1993; nas obras de contos:
Leite do peito, Fundação Nestlé de Cultura, 1988; Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001; A
cor da ternura, Editora FTD, 1989; e nas publicações dedicadas ao público infantil: A dona
das folhas, Editora Santuário, 1995; O rádio de Gabriel, Editora Santuário, 1995; Aquilo que a
mãe não quer, Barra Bonita: Ed. da Autora, 1998.
Técnica em que irriga a superfície textual, com os referenciais da cultura de origem
africana, veiculada pela oralidade, difundida pelos saberes da ancestralidade. Do trabalho
literário brota múltiplos significados, basilares para expressar o modo de ser, de se avaliar a
vida, de se organizar o pensamento, nas estratégias para forjar a própria identidade, em
espaços margeados pela violência e exclusão. Exterioriza que as pessoas, independente de
suas etnias e credos, devem respeitar as diferenças, pois cada indivíduo porta subjetividades
que não podem ser julgadas como superiores ou inferiores. São por estas manifestações que
Geni Guimarães desenha, por intermédio das produções literárias, alternativas outras para que
sociedade brasileira encare o problema do racismo, a fim de organizar formas de combatê-lo
e superá-lo.
legitimaram lhe a habilidade poética, mas nada lhe disseram, somente ao término da aula, na
saída, foi que o diretor a parabenizou.
No entanto, a desenvoltura poética da personagem principal não foi levada em
consideração por dona Cacilda, para uma atividade de declamação no evento comemorativo a
Princesa Isabel. “Levantei a minha mão, que timidamente luzia negritude em meio a cinco ou
seis mãozinhas alvas, assanhadas” (GUIMARÃES, 2001, p. 59). Resoluta, a aluna dirigiu-se à
docente: “Dona Cacilda, eu tenho aquela que eu fiz outro dia, que eu mostrei pra senhora e a
senhora chamou o diretor e ele falou parabéns e eu deixo ela mais grande...” (GUIMARÃES,
2001, p. 59). No dia seguinte, 13 de maio, a aula se inicia com a seguinte explanação docente
e o consequente abalo à dignidade da estudante de ascendência africana:
A ideia me surgiu quando a minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a
tirar da panela o carvão grudado no fundo. Assim que ela terminou a
arrumação, voltou para casa. Eu juntei o pó restante e, com ele, esfreguei a
barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era
impossível tirar todo o negro da pele. (...) Dentro de uma semana, na perna
só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim
mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando (GUIMARÃES, 2001, p.
66).
no apagamento de sua voz. Pela experiência social e pelas práticas de leitura e escrita, Geni
Guimarães compreende a sua própria vivência e a de seus antepassados e, deliberadamente, a
escrita assume contornos reivindicatórios para políticas de inclusão e de coesão social.
Considerações finais
No conto “Metamorfose” evidencia-se o engajamento político da escritora Geni
Guimarães na ostensiva manifestação contra as formas de intolerância cometidas contra as
comunidades negras, por indivíduos que depreciam a diversidade cultural, divergente da
eurocêntrica, com práticas cotidianas que infringem as leis e violam os direitos humanos.
Então, a arte literária dessa mulher negra representa a promoção da identidade africana, bem
como alternativas para a edificação de uma sociedade igualitária, na valorização das culturas
que a compõem.
Nesse sentido, existem diversas leis, dentre elas a de número 10.639/2003,
posteriormente alterada pela a de número 11.645/2008, dirigido ao sistema educacional, por
considerar os espaços pedagógicos, com o rol das ciências que os caracterizam, mecanismo
imprescindível à reflexão, ao debate acerca dos problemas emergentes da realidade atual,
pautando as questões étnico-raciais. Ao se contextualizar, em diversos ângulos culturais, a
composição e manutenção do racismo, do preconceito, da exploração, há possibilidade do
desenvolvimento do pensamento crítico, aflorado do processo investigativo que instiga o ser
social a tomada de decisão para a resolução dos problemas cotidianos. E, desse modo, a
conjuntura pode ser profícua para a efetivação de mudanças comportamentais, sobretudo, ao
que se refere ao respeito à igualdade de direitos, ações promissoras ao processo de
humanização.
Referências
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Tradução Davi Arriguci Jr. e João Alexandre
Barbosa; organização Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr.- São Paulo: Perspectiva, 2006.
______. A cor da ternura; ilustrações Saritah Barboza. 12ª ed. São Paulo: FTD, 1998.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. In. SILVA, Tomas Tadeu (Org.) Identidade e
Diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000, p.103-133.
LIMA, Heloisa Pires. Personagens negros: um breve perfil na literature infant-juvenil. In:
MUNANGA. Kabengele (Org.). Superando o racismo na escolar. 2ª ed. Revisada. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005.
NOA, Francisco. Perto do fragmento a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo. São
Paulo: Editora Kapulana, 2015.
INTRODUÇÃO
1
UEL; Doutora em Ciências Sociais; Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UEM; E-
mail: angellamaria@uel.br
2
UEL; Doutora em Ciências Sociais; Colaboradora do LENPES. E-mail: lyradearaujo@hotmail.com
3
A versão encaminhada ao Legislativo encontra-se no site:
http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/PEE/PEEPR_ANEXO_UNICO.pdf. Acesso em 02/02/2018.
4
O anexo da Lei nº 18.492/15 encontra-se no site:
http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=143075 Acesso em
02/02/2018.
Onde constava “relações de gênero” foi colocada a frase: “educação que efetive o
respeito entre homens e mulheres” e, no lugar de “sexualidade direitos humanos LGBT”,
aparece apenas “direitos humanos”, como pode ser visualizado a seguir;
proteção contra formas associadas de exclusão [...]. (PARANÁ, 2015b, p.65) Grifo Nosso
No que diz respeito à Meta 7: “fomentar a qualidade da educação básica em todas
as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir
as seguintes médias estaduais para o IDEB”, a Estratégia 7.22, na versão encaminhada ao
Legislativo, assim dizia:
Percebe-se que essa Estratégia trazia o termo “violência doméstica e sexual”. Essa
foi uma das poucas expressões que se mantiveram na Lei nº 18.492, após muita luta de alguns
agentes das IES/PR (Instituições de Ensino Superior do Paraná) e dos sindicatos, sob pressão
dos movimentos sociais LGBTI (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas
intersex). Observamos que até a palavra mais genérica “conteúdos sobre diversidade” foi
suprimida do texto da lei. Ela aparecia na Estratégia 7.23, acompanhada da relevância de se
considerar “as especificidades previstas em legislação”.
Na Meta 12, que trata da articulação com a União para a elevação da taxa bruta
de matrícula no ensino superior, a Estratégia 12.6 era assim descrita, contemplando a
representação da população LGBT:
mulheres”.
Fortalecer, em regime de colaboração entre União, Estado, municípios e IES
(preferencialmente públicas), a formação inicial e continuada dos
profissionais de instituições de Educação Básica, em todas as etapas e
modalidades de ensino, promovendo a educação sobre as relações étnico-
raciais, sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira, indígena e cigana,
sobre a educação que efetive o respeito entre homens e mulheres, sobre os
direitos humanos, a Educação do Campo e Meio Ambiente (Paraná, 2015b,
p. 89) Grifo Nosso.
Uma diferença significativa se instala entre esses termos, pois, ao utilizar homens
e mulheres em vez de gênero, nega-se toda a perspectiva histórica e cultural que envolve os
indivíduos e passa-se a levar em conta apenas o sexo biológico. Se fosse utilizada a categoria
gênero, essa categoria representaria melhor toda a complexidade que envolve os indivíduos.
Substituir a palavra gênero pelas palavras homens e mulheres ocorre de maneira a fomentar a
heteronormatividade e o binarismo de gênero presente nas relações sociais, binarismo esse
que fomenta que um dado papel social compete ao indivíduo que é ser mulher, enquanto outro
papel cabe ao indivíduo que é homem.
Mais especificamente acerca das questões étnico-raciais, podemos afirmar que
mesmo desconsideras em metas onde deveriam ter sido demarcadas e mesmo sendo
suprimidas em algumas estratégias, estas foram menos prejudicadas do que as questões de
gênero na troca das versões dos textos do PEE/PR (2015-2025). A palavra “étnico-raciais”
aparece poucas vezes no texto da lei, tanto na primeira quanto na segunda versão, mas em
vários momentos diferentes populações étnico-raciais, historicamente excluídas no Brasil, são
identificadas nas estratégias do PEE/PR.
Demarcamos alguns exemplos da inserção dessas populações no PEE/PR. As
populações ciganas, em situação de itinerância, do campo, indígenas e quilombolas, são
lembradas na Estratégia 1.11 que trata do estabelecimento de programas para garantir o
direito de acesso às creches e pré-escolas. A Estratégia 2.21 suprime as questões de gênero,
mas fala da proposta de “assegurar que a educação das relações étnico-raciais [...], o ensino de
história e cultura afro-brasileira, indígena e dos ciganos [...] sejam contemplados nos
currículos [...]. (PARANÁ, 2015b, p.62).
A estratégia 3.1 especifica as populações cigana e em situação de itinerância,
indígenas e quilombolas, quando fala da ampliação da oferta e matrícula no Ensino Médio,
registrando inclusive que essa deve se dar “preferencialmente em suas comunidades”.
(PARANÁ, 2015b, p.63). As mesmas populações são demarcadas na Estratégia 3.5, que fala
da elaboração, organização e disponibilização de materiais teórico-metodológicos no Ensino
Médio.
No que diz respeito à diversidade linguística, as populações indígena, cigana, em
situação de itinerância e quilombolas são singularizadas na Estratégia 5.2, assim como a
alfabetização bilíngue para as crianças indígenas é considerada na Estratégia 5.5;
Já a Estratégia 6.6 foi totalmente retirada do PEE/PR tornado lei estadual. Ela
falava das populações do campo, cigana e em situação de itinerância na elaboração,
organização e disponibilização de materiais teórico-metodológicos específicos para Educação
Integral em tempo integral;
Como bem explicitam essas Diretrizes Curriculares Nacionais, que devem orientar
o trabalho não só de formação dos sujeitos da Educação Básica, mas também a formação
inicial e continuada de professores que atuarão nessa etapa da escolarização, o “currículo é
fruto de uma seleção e produção de saberes: campo conflituoso de produção de cultura, de
embate entre pessoas concretas, concepções de conhecimento e aprendizagem, formas de
imaginar e perceber o mundo”. (BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.24). Mesmo porque a
educação é direito de múltiplos sujeitos, devendo ser abordada sob múltiplas abordagens se se
pretender ser inclusiva.
A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de
saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes
abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais,
intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens,
contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é
preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma
opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e
provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional.
(BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.25).
Afinal, “na Educação Básica, o respeito aos estudantes e a seus tempos mentais,
socioemocionais, culturais, identitários, é um princípio orientador de toda a ação educativa”.
(BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.35). Por isso, a importância nas atuais diretrizes
nacionais de formação inicial e continuada de professores destacarem o “currículo como o
conjunto de valores propício à produção e à socialização de significados no espaço social e
que contribui para a construção da identidade sociocultural do educando”. (BRASIL, Resol.
CNE/CP nº 02/2015). Esta concepção de currículo dá base para os debates acerca da
efetivação da educação inclusiva nos processos de formação de profissionais do magistério.
Este é apenas um dentre tantos outros desafios para formação inicial e continuada
de professores, assim como para a organização de currículos da Educação Básica que
realmente considerem os direitos de aprendizagem de todos os sujeitos, indistintamente,
assumindo os direitos humanos como princípio social norteador nas políticas educacionais.
Entretanto, todas essas mudanças não se fazem por decreto. É necessário mobilização política
constante.
[...] a educação para todos não é viabilizada por decreto, resolução, portaria
ou similar, ou seja, não se efetiva tão somente por meio de prescrição de
atividades de ensino ou de estabelecimento de parâmetros ou diretrizes
curriculares: a educação de qualidade social é conquista e, como conquista
da sociedade brasileira, é manifestada pelos movimentos sociais, pois é
direito de todos. (BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.14).
REFERÊNCIAS
BRASIL. BNCC (Base Nacional Curricular Comum). Ensino Médio. MEC. Brasília: DF,
2018. Inserido em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-
content/uploads/2018/04/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site.pdf Acesso em 26/05/2018.
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil: 1988. Casa Civil. Brasília: DF, 1988. Inserido
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em
11/05/2018.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação. In: Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
BRASIL. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. In: Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica MEC, SEB, DICEI, 2013.
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Deputados, Edições Câmara, 2014. Paraná. Documento-base do Plano Estadual de Educação
do Paraná 2015-2015. Curitiba: 2015.
BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília: DF, 1996. Inserido em:
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf. Acesso em 11/05/2018.
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formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica
para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. MEC.
CNE. Brasília. 2015.
CRUZ, Andréia Cristina da. Gênero nos currículos e nas percepções das/dos estudantes do
ensino médio: uma caracterização sociológica. 2017. 129 f. Dissertação de Mestrado
(Mestrado em Ciências Sociais) – UEL- Londrina, 2017.
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estaduais do Paraná: coalizões, permanências e persistências. 2017. 140 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais). UEL- Londrina, 2017.
1
Docente do Centro Universitário Toledo de Ensino/ Araçatuba; Doutora em Educação;
jamillynicacio@hotmail.com.
Introdução
Trabalho e educação
Nossa mobília escolar vinda de Nova York, não chegou antes de novembro e está
em uso há apenas três semanas. As salas agora ocupadas, acomodarão 100 alunos,
36 do Primário, 28 do Intermediário e 36 do secundário. O Internato acomodará três
professores e 12 alunos (RELATORIO, 1892).
Na noite passada, estávamos tão desalmados que ficamos contentes com o anúncio
de Mr. Schneider para Ella Kuhl de seu noivado com a “doce Alice”. Ele começou
por pedir-lhe para mostrar a carta a todas as pessoas da missão, para que ninguém
pudesse pensar que ele fosse culpado do rompimento de seu noivado com Mr. Ker.
Então, aparentemente esquecendo o grande público que ele tinha atraído, agiu como
um menino de 20 ou uma menina de 16, ou como num romance do tipo mais
romântico! Eu não estou tão horrorizada com a diferença de idade entre eles, quanto
com o caso romântico que aconteceu no Rio, de Miss Leslie (professora), encontrar
um affair, que vai se casar com o sorridente Willie Hentz, dentista, 5 anos mais
jovem do que ela. A sensação hoje foi tremenda. Remigio declarou isto uma
imoralidade! Guilherme da Costa ficou corado, de maneira bela, com a surpresa. Ele
realmente tem um refinamento incomum – aquele garoto – ele só poderia mesmo
servir para o trabalho! (GOLDMAN, 1961, p. 262).
Miss Dascomb, assim como outras educadoras, como Maria Guilhermina, Carlota
Kemper e Elmira Kuhl, não se casou, o que, em grande medida, possibilitou maior dedicação
ao trabalho. Essas quatro mulheres foram também consideradas excelentes professoras,
detentoras de grande soma de conhecimentos, tanto em termos de uma cultura mais geral
como em termos de métodos e processos pedagógicos avançados, o que não pode ser
considerado comum para a época. Todas elas dirigiram escolas, escreveram e traduziram
livros pedagógicos e lecionaram diversas disciplinas.
Nas cartas escritas por Mary Dascomb também encontramos muitos relatos da
dificuldade que a escola tinha em conseguir bons professores e principalmente, professores
permanentes. Fosse pelo clima, condições sanitárias e de saúde, fosse pelos baixos salários e
compensações oferecidas. No trecho a seguir, Mary comemora a chegada de quatro novas
professoras e lamenta os casamentos prematuros que seriam outro problema para a
contratação de docentes: “Nossa casa não vai estar animada com quatro jovens professoras!
Mas as nossas professoras brasileiras estão se casando tão rápido que precisamos de
professores permanentes. Nenhum dos nossos americanos tendem a ser permanentes”
(GOLDMAN, 1961, p. 355-356).
Em 1902, duas ex-alunas, Isabel Bickels e Isabel Withers, passaram a lecionar na
escola. Segundo relatório, as jovens professoras vinham desenvolvendo um bom trabalho,
reafirmando a importância de se manter na instituição a classe normal:
Ambas tem provado ser excelentes jovens professoras e têm pego mais
responsabilidades do que se poderia esperar de moças de 16,17 anos: isto é uma
recompensa por se educar meninas para professoras. Elas conhecem completamente
o trabalho do 1º Primário até o 8º Secundário e em uma emergência, encaixam-se
em quase todos os lugares (cf ABREU, 2003, Relatório Manuscrito de 1902).
De acordo com Barbanti (1977), a implementação dessas leis não garantiu o sucesso
das instituições escolares, pois muitas vezes as escolas eram criadas, mas não providas por
falta de professores, além de outros fatores, como falta de material. Ribeiro (2006) aponta que
essa lei, ao mesmo tempo em que garantia às mulheres o direito à educação, foi usada
sintomaticamente como instrumento de discriminação, uma vez que estabelecia estudos
distintos para cada sexo, sendo que as mulheres teriam o seu primário limitado às quatro
operações no ensino de matemática, excluindo a geometria.
Em 1885, Mary Dascomb e Miss Kuhl imploravam por ajuda na escola de São Paulo,
para que pudessem se preparar para entrar na grande província de Minas, onde viam
possibilidades para o trabalho escolar. Três anos depois, no Décimo oitavo relatório anual da
sociedade missionária estrangeira da Mulher da Igreja Presbiteriana – 1888, a Escola
2
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-15-10-1827.htm
3
Art. 7º Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados publicamente perante os Presidentes,
em Conselho; e estes proverão o que for julgado mais digno e darão parte ao Governo para sua legal nomeação.
Americana de São Paulo continuava prosperando, sob os cuidados de Dascomb e Kuhl, que
relata: "Agora é uma das mais antigas e mais bem estabelecidas escolas naquela cidade. Das
trinta meninas que foram matriculadas durante o ano, vinte e uma foram mantidas ou ajudadas
por fundos da missão" (THE WOMAN’S, 1885).
Muitas meninas educadas na escola, eram encaminhadas para o trabalho,
posteriormente. Em 1888, seis delas já trabalhavam, ensinando nas escolas em Caldas,
Botucatu, Brotas, Sorocaba, e Rio de Janeiro, e no externato em São Paulo. Todas as alunas
aprendiam trabalho doméstico, o que era bem aceito pelos agricultores, que sabiam que o
processo de abolição da escravatura estava em curso e, consequentemente achavam bom que
suas filhas aprendessem a trabalhar. Corte e Costura foi adicionada à lista de afazeres, e as
meninas ficaram entusiasmadas com ele (THE WOMAN’S, 1888).
No Relatório de 1908, vemos que a conduta de algumas professoras, refletia os
preceitos de moral presbiteriana feminina oitocentista: “Algumas professoras abandonam o
romance Iracema – do programma official – por julga-lo pouco conveniente à educação moral
de meninas”.
O autor da obra, José de Alencar, ao ter como objeto de criação personagens femininas
como Iracema, trabalha com maestria para delineá-la numa visão dinâmica e diversa, e mostra
que o comportamento dessas personagens não se limita ao de uma mulher idealizada para os
padrões morais e intelectuais daquela época, muito menos com os valores presentes nas
famílias patriarcalistas.
Já para os meninos, as leituras e materiais didáticos teriam outro viés:
Em relação aos livros didacticos devemos preferir aquelles, cuja leitura amena,
attrahente e entremeada de citações e factos relativos á educação civica despertem os
sentimentos affectivos e forneçam uma cópia consideravel de uteis conhecimentos,
que concorram para formação do caracter do menino, de modo a tornal-o um futuro
cidadão, prestante á familia e á sociedade. Para satisfazer estas aspirações, é mister
que a escola tenha uma organisação compativel com os destinos do individuo e da
sociedade em que vive, é mister que, além das disciplinas inherentes aos cursos
primários, o menino conheça os principios fundamentaes da educação nacional, taes
como – os direitos e deveres de cidadãos na hierarchia social, o respeito ás leis do
paiz e á respectiva constituição, as regras da civilidade e os preceitos da moral, que
exalçam os altruisticos sentimentos de amor á patria, á justiça, á verdade e inspiram
os actos de philantropia, benevolencia e caridade.
A exigência para com a conduta dos garotos aparece em algumas cartas também, onde
Mary cita, por exemplo, a criação de uma Escola de Artes e Ofícios para os meninos de rua
em Curitiba:
Nós temos uma coisa fundamental por aqui – organizado por um homem
moralmente sem valor. Uma Escola de Artes e Ofícios para os meninos de rua. A
presença deles é estritamente controlada - eles aprendem a fazer coisas muito bem-
feitas para eles mesmos e para vender - ao final de seus anos de atendimento eles
recebem US$ 600 para começar sua vida. Eles têm estudos, jogos e exercícios
militares para variar o trabalho manual. Existe uma certa ajuda, mas é bom que o
homem receba ajuda por um trabalho tão bom. Não nos falta, no entanto, de modo
algum, moleques, grandes e pequenos. Nossos jornais publicam semanalmente,
quase que diariamente, relatos de facadas e tiros, brigas e suicídios. Suponho que os
Cinemas são os grandes culpados por esse estado de coisas (GOLDMAN, 1961, p.
355).
Mary defendia o trabalho manual como ferramenta para ocupar e dar ensinamentos
que poderiam servir como uma futura profissão a esses meninos: “Há também, um artigo de
Jacob Riis sobre o modo de educar meninos - dar-lhes trabalho manual, especialmente algo
como jardinagem, o que eu acho que devemos copiar do nosso bom Dr. Claudino dos Santos.
Um homem aqui tem se saído muito bem em sua Escola de Aprendizes, de meninos de rua e
isso poderia funcionar” (GOLDMAN, 1961, p. 338).
Segundo Abreu (2003), havia diferença também para as alunas internas, a quem as
missionárias procuravam ensinar alguns trabalhos domésticos:
Nós tentamos fazer sua educação a mais prática possível. Nós não podemos ensiná-
las todo tipo de trabalho doméstico, como tampouco elas tem tempo para isso, mas
todas fazem parte do trabalho doméstico. Nós dizemos: - “venha trabalhar” e não
“vá trabalhar”. O espanador é um elemento em sua educação, assim como mapas e
dicionários. Elas são ensinadas a fazer pão, a manter a casa em ordem, e algumas
das mais velhas a fazer vestidos simples (ABREU, 2003, p. 88).
Apesar de dizer que chamava as meninas para o trabalho doméstico, Mary Dascomb
não falava de si como uma mulher capacitada para tais afazeres, não se reconhecia como uma
dama que atenderia aos anseios do patriarcado, mas por vezes relata os dotes e prendas de
outras mulheres de sua rede. “Eu sinto muito que Fanny não esteja bem. Ela está sentindo
dor? Ela consegue ler e tricotar?” (GOLDMAN, 1961, p. 277). E apesar de não ter filhos,
Mary, do alto de sua experiência com a educação de outras crianças, acredita poder opinar
sobre o comportamento de suas alunas e outras mulheres da missão:
Em 1906: “Eu esperava que você e Fanny dessem um pulo aqui por uma semana ou
duas e eu os mostraria o quão diferente são os nossos jovens - o tipo que você espera que as
meninas imitem. Somente uma, alemã gorda tem algo do mesmo preconceito de todas as
pessoas infelizes em casos de amor. Ela é o máximo” (GOLDMAN, 1961, P. 313).
Em Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola, Daniela Auad discute a
questão da escola mista relacionando-a com a ideia de coeducação com base na análise de
práticas escolares e no debate contemporâneo sobre o tema, dialogando com estudiosas
feministas que teorizam sobre a questão. Seu argumento central é o de que a escola mista
pressupõe a coeducação, mas não é suficiente para a efetivação da mesma.
Segundo Auad (2006) a escola, através das práticas escolares, pode se constituir como
um espaço privilegiado para o "aprendizado da separação" que discrimina meninos e meninas
de forma a justificar desigualdades ou pode, ao contrário, promover transformações no
sentido da igualdade a partir do respeito às diferenças. A autora chama a atenção para a
função privilegiada que a escola possui no que diz respeito à aprendizagem de papéis sociais e
sexuais por parte dos alunos.
Para além dos meninos e meninas, a reta conduta moral dos docentes das Escolas
Americanas também era importante para Mary Dascomb:
São brilhantes e talentosos, mas não são o tipo que eu gosto de ter na escola. Há uma
corrente social tremendamente forte aqui que muitas vezes envolve crianças dos 3
anos de idade para cima. Eu não desejo que nossas meninas altas que estão entrando
na adolescência tenham este estilo de professor. Alguns dos teus vão a bailes e
teatros, ocasionalmente, mas são em geral sérios e dignos (GOLDMAN, 1961, p.
308).
forneciam inúmeros relatos e informações sobre sua vida, seu trabalho, sobre sua rede de
pertencimentos.
Ela o fez como sujeito posicionado, participando de esquemas de percepções e de um
horizonte de expectativas que deram sentido às suas escolhas e às apropriações que realizou.
Mary experimentou, assim como outras missionárias norte-americanas que vieram para o
Brasil, maior liberdade de movimento, desfrutava de certo reconhecimento social e
legitimidade.
Nas “tramas” de sua história, separou-se de sua família para trabalhar no Brasil, em
diferentes cidades. Conheceu outros mundos, apropriou-se de um projeto de educação e
civilização e os fez circular. A missivista utilizava suas correspondências como instrumento
de aproximação, de sociabilidade, buscada numa relação estreita de intimidade e respeito com
seu interlocutor.
As cartas traduzidas para este trabalho, trocadas entre um homem e uma mulher,
ambos americanos, não são de amor. Uma mulher solteira que durante vinte e seis anos se
correspondeu com um homem, sem que ao longo de 193 cartas – escritas em inglês arcaico e
pessoalmente traduzidas – ficasse evidente nenhuma relação afetiva/ sexual, apenas de
trabalho.
No entanto, sua obra também relata o quanto reproduziu a respeito do modelo ideal de
mulher, da educação desejada para que, apesar do método inovador e da excelente estrutura
física, para a época, suas alunas seguissem com altivez o caminho, não se contaminando com
leituras inadequadas, por exemplo. Trabalhos manuais como o crochê e a talargaça eram
exaltados como essenciais para meninas. O currículo diferente para meninos e meninas
evendiciava o que ainda experienciamos nos espaços escolares, um modelo de
comportamentos e habilidades definidos não a partir do desempenho individual, mas das
perspectivas definidas socialmente para cada gênero.
Referências
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Contexto, 2006.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
GOLDMAN, Frank. As Cartas de Miss Mary P. Dascomb ao Dr. Horace Lane (1886-1907).
In: ANAIS do Museu Paulista. São Paulo, 1961. T. 15.
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da Educação. Revista de Educação do Cogeime. Ano 11, nº 20, junho/ 2002, p. 93-98.
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http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe4/individuais-
coautorais/eixo03/Ester%20Fraga%20Vilas-Boas%20Carvalho%20do%20Nascimento%20-
%20TExto.pdf. Acessado em 10/05/2012.
RELATÓRIO apresentado ao Exm. Snr. Dr. Francisco Xavier da Silva, Presidente do Estado
do Paraná, pelo Coronel Luiz Antonio Xavier, Secratrio d’Estado dos Negocios do Interior,
Justiça e Instrucção Publica, 1908.
STOLKE, Verena. O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo, sexualidade. A formação
dos impérios transatlânticos do século XVI ao XIX. In: Estudos Feministas, Florianópolis,
14(1): 336, janeiro-abril/2006. p. 15-42.
XVIII THE WOMAN’S Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church, 1888.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal investigar as análises sobre disciplina
e vigilância propostos por Michael Foucault nos espaços formativos escolares no contexto da
sociedade contemporânea. A disciplina e a vigilância atuam como mecanismos de controle
que por meio de técnicas minuciosas tem por objetivo moldar o comportamento dos seres
humanos para se tornarem suscetíveis a obediência e subservientes a norma. Desta maneira,
tais mecanismos acarretam na produção de corpos dóceis, ou seja, sujeitos submissos,
passivos, obedientes que se encaminham na contramão do objetivo pedagógico das mesmas
instituições, que é o de formar indivíduos autônomos, pensantes, críticos e reflexivos. A
questão norteadora é: quais são as implicações do trabalho pedagógico na escola referente à
atribuição de papéis de identidade de gênero e disciplina dos corpos infantis? Os corpos de
meninas e meninos são educados na escola a partir da educação infantil, portanto é preciso
discutir a reprodução dos papéis sociais padronizados atribuídos aos meninos e meninas como
integrantes da escola. Como resultado, concluímos que há a necessidade de que, os
profissionais educacionais compreenderem os mecanismos disciplinares frequentemente
utilizados nas instituições de ensino, a fim de que haja possibilidades emancipatórias de se
pensar a escola enquanto formadora e interceptora de espaço e tempo de liberdade e
autonomia.
1
Universidade Estadual de Londrina; Mestrando em Educação; ravelli_28@hotmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br.
Introdução
Para ter um controle individual sobre cada sujeito e acabar com a displicência
estudantil, as técnicas disciplinares transformaram as instituições escolares em verdadeiras
maquinas de ensinar, pois através delas, foi possível atender um número com maior
abrangência de alunos ao mesmo tempo. A organização do espaço serial foi uma das grandes
modificações técnicas do ensino elementar que “permitiu ultrapassar o sistema tradicional”
(um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância
o grupo confuso dos que estão esperando) (FOUCAULT, 1996, p. 173). Isso propiciou o
controle simultâneo dos alunos que se distribuíam em seus lugares individuais. Então o
mecanismo disciplinar “organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez
funcionar espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de
hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 1996, p. 173).
acordar, brincar, ir ao banheiro, tomar banho, em suma, todas as atividades são determinadas
por uma rotina diária, que faz com que os sujeitos sejam disciplinados e obedientes a partir da
infância.
Outra forma de controle disciplinar, definida por Foucault (1996) é ainda hoje, na
segunda década do século XXI, utilizada pelas instituições de ensino, a saber: a decomposição
do tempo. Dessa forma não só o controle temporal é necessário, mas nas atividades escolares
o tempo deve ser decomposto por sequências. Para tanto, seria necessário “Organizar essas
sequências segundo um esquema analítico — sucessão de elementos tão simples quanto
possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente” (FOUCAULT, 1996 p.183).
São propostas aos alunos uma série de atividades, e na medida em que vão concluindo essas
tarefas, o grau de complexidade vai aumentando, sendo possível assim, também, controlar o
ritmo da aprendizagem. Ao final desses ciclos de atividades os sujeitos passam por uma
avaliação, mecanismo este que, segundo Foucault (1996) tem uma tripla função: “indicar se o
indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade
com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo” (FOUCAULT, 1996 p.184),
além de vigiar e controlar os próprios professores, já que o fracasso dos alunos diante dos
exames, reflete também a forma de ensinar do professor.
Não satisfeita com essas técnicas, a escola ainda se utiliza do exame para possibilitar
uma espécie de produção de saber para ser documentado referente aquele determinado aluno.
O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de
anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e
os fixam (FOUCAULT, 1996, p. 213). Intensificando assim, um processo de individualização
em que são anotadas as dificuldades, desempenhos e avanços dos alunos. Os procedimentos
de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de
acumulação (Ibid, p. 213). Que por fim, através desse processo é possível também classificar
os alunos, separá-los por séries, com níveis de aprendizagem diferentes.
Ainda com base nas ideias de Vianna e Finco (2009) é na educação infantil que se
impõe a conduta nos alunos, pois além do cuidar, o corpo também é construído e educado. É
na educação infantil que as crianças passam a maior parte do tempo com outras crianças da
mesma idade, mas com manifestações corporais diferentes, frutos da cultura e construção
social de cada indivíduo. Meninos e meninas são educados de formas diferentes, seja em casa,
na igreja ou na escola. Diferenças essas que não são expressadas pelo fator biológico e sim
impressas no corpo das crianças para satisfazer as expectativas de uma determinada
sociedade, julga-se de passagem, opressora.
Não é por ingenuidade que os indivíduos obedecem a norma, pois desde há muito
tempo eles foram instigados por discursos autocratas, a acreditar que alguém exerce o povo e
que devem obedecer passivamente a esse mecanismo, sem reconhecer que o poder é
expansivo e que toda relação se trata de poder. Faz-se necessário que os indivíduos se
identifiquem dentro destas relações de soberania, para que assim possam atingir sua
autonomia, tendo a consciência que estão submersos em relações de poder e que não existe
uma exterioridade a elas.
Desde muito cedo as instituições disciplinares controlam os corpos dos sujeitos e os
moldam segundo convicções pré-estabelecidas agindo de acordo com os princípios da
sociedade capitalista que:
ensinar, pois a matéria já vem toda pronta em apostilas em que o professor deve apenas
reproduzir o que foi estabelecido anteriormente, antes mesmo de conhecer as necessidades
dos educandos, perdendo assim sua subjetividade. Apesar da produção de saber, ser um dos
aspectos positivos do poder disciplinar, como Foucault ressalta, as técnicas disciplinadoras,
transforma os indivíduos em sujeitos obedientes e submissos, prontos a acatarem há todas as
ordens, deste modo ao invés de formar indivíduos críticos, as instituições de ensino formam
sujeitos que irão servir a mecânica do poder sendo condicionados a atenderem as exigências
do mercado de trabalho.
Conclusão
Referências
1
Universidade Federal de Goiás; Licencianda em Ciências Biológicas; e-mail: nathany.ribeiro.315@gmail.com
2
Universidade Federal de Goiás; Licencianda em Ciências Biológicas; e-mail: psara2294@gmail.com
3
Universidade Federal de Goiás; Doutora em Ensino em Biociências e Saúde; e-mail: zilenemor@gmail.com
Introdução
A gravidade das situações de discriminação por gênero e orientação sexual pode ser
atestada por estatísticas recentes de violência contra a mulher (SOARES, 2017) ou violência
homofóbica (GRUPO GAY DA BAHIA, 2017) que aparecem com frequência nos meios de
comunicação. As iniciativas voltadas para abordagem da diversidade sexual no contexto da
rede pública de ensino representam um desafio frente aos diferentes valores e às normas
morais, culturais, religiosas e familiares que permeiam os temas gênero e sexualidade, que
ainda se fazem presentes na segunda década do século XXI. Essa tensão é resultado
principalmente de forças reacionárias diante de conquistas no plano dos direitos humanos,
sexuais e reprodutivos. A pressão exercida por esses grupos tem impactado as políticas
públicas, especialmente na área da Saúde e da Educação voltadas para as ações de igualdade
independente da orientação sexual e ao combate à epidemia de AIDS. De acordo com o
relatório da UNAIDS (2017) a violência contra as mulheres e os estereótipos de gênero
colocam a saúde de homens e mulheres em risco e são um desafio no combate à epidemia.
Considerando que ações educativas podem desestabilizar saberes e práticas naturalizados na
sociedade, é importante conhecer o que os documentos curriculares sugerem (ou não) a
respeito da temática a fim de que a/o docente tenha respaldo legal que o ampare em suas
ações pedagógicas.
O trabalho possui uma abordagem qualitativa e foi dividido em etapas: busca dos
documentos curriculares no âmbito nacional; leitura na íntegra dos documentos procurando
identificar se e como aparecem os temas gênero e sexualidade, e a concepção apresentada
sobre esses temas. Considerando a área de interesse e atuação das pesquisadoras foi dado um
enfoque mais detalhado para orientações específicas para a área de ciências. Dentre os
principais documentos curriculares que norteiam a Educação Básica e que serão aqui
analisados estão: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica (DCN), o Plano Nacional de Educação (PNE), e a Nova
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Desenvolvimento
tratadas atravessam todas as áreas de conhecimento. Exemplo disso são as relações de gênero
articuladas às questões biológicas, a predisposição para a mudança de posturas frente à
discriminação e desigualdade na escola, o destaque para uma visão ampla, não reducionista de
temas que envolvem a sexualidade e a projeção da discussão sobre AIDS, reconhecendo a
mudança de enfoque na prevenção da epidemia nos últimos anos. Todos esses exemplos
assinalam progresso nas intervenções com vistas a diminuir a vulnerabilidade dos/as jovens.
Em relação ao tema da diversidade sexual, os PCN, de uma maneira geral, têm como
objetivo principal que ao final do Ensino Fundamental os/as alunos/as sejam capazes de:
“respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos relativos à sexualidade,
reconhecendo e respeitando as diferentes formas de atração sexual e o seu direito à expressão,
garantida a dignidade do ser humano” (BRASIL, 1998, p.311). Cabe observar que na época
em que esses documentos foram produzidos a visibilidade e as reivindicações do movimento
gay ainda eram incipientes no debate educacional. Os PCN tratam do assunto em poucas
linhas e de forma muito superficial ao afirmar que a discussão dessa questão deve ser sob uma
ótica democrática e pluralista.
tópico “As múltiplas infâncias e adolescências” (p. 110) os termos gênero e sexualidade são
apresentados juntamente com o reconhecimento das transformações biológicas, psicológicas,
sociais e emocionais que ocorrem durante essas fases, e reforçam que os conhecimentos sobre
sexualidade e as relações de gênero permitem a construção de valores durante essa faixa
etária. As DCN sustentam que em concordância à Base Nacional Comum (até então apenas
idealizada) e à parte diversificada do currículo as diversas áreas de conhecimento devem
articular-se a temas abrangentes e contemporâneos que afetam a vida humana nas diversas
escolas, tais como: sexualidade, gênero, saúde, direitos das crianças e adolescentes, meio
ambiente, etc. Da mesma forma estimula que os órgãos executivos dos sistemas de ensino
produzam e disseminem materiais que contribuam para a eliminação de discriminações e
preconceitos, aí incluídos o racismo, sexismo e a homofobia.
As DCN apresentam a exigência de problematizar questões organizacionais da
escola, fomentando o debate sobre a complexidade da diversidade humana e as práticas
sociais voltadas para grupos excluídos historicamente. Assim, refere-se, dentre outras
temáticas, às questões de gênero, às mulheres, às diferentes orientações sexuais, e a “todos
que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados
pelas políticas públicas” (BRASIL, 2013, p. 16).
Além disso, afirma que a escola, em sua missão de formar cidadãos e cidadãs na
cultura de direitos humanos, seja reconhecida como uma instituição acolhedora e
transgressora destinada a múltiplos sujeitos, tendo como objetivo “a troca de saberes, a
socialização e o confronto do conhecimento” sob diferentes abordagens (BRASIL, 2013, p.
25). Os pressupostos nos quais se fundamenta a escola devem apontar para o respeito e
valorização das diferenças de classe social, gênero, etnia, dentre outras, com o objetivo de
superar desigualdades de qualquer natureza.
Especificamente na Educação Básica há inúmeras referências às questões de gênero.
Logo no primeiro tópico, de apresentação do documento, explicita-se que a problematização,
o debate e as práticas relacionadas ao processo de inclusão social são imprescindíveis, de
modo que as discussões sobre gênero, orientação sexual, mulheres, entre outros temas,
precisam existir para abranger a diversidade da sociedade brasileira contempladas pelas
políticas públicas.
Ainda na perspectiva de currículo considerado como um “conjunto de valores e
práticas que proporcionam a produção e a socialização de significados no espaço social e que,
contribuem, intensamente, para a construção de identidade sociais e culturais do estudante”
(BRASIL, 2013, p. 27), atenta-se que a escola precisa dedicar-se à construção de um ambiente
heterogêneo e plural, atendendo à diversidade e à busca por emancipação. Para isso, faz-se
necessário a valorização e respeito às diferenças de gênero, classe social. etnia, entre outros,
por meio de medidas proativas e preventivas adotadas pela instituição, pelos/as educadores/as.
Por conseguinte, analisando a organização da Educação Básica, há o reconhecimento
das singularidades dos sujeitos, dentro do seu momento de desenvolvimento e do seu contexto
sociocultural, no qual a escola deve ter como princípio norteador o respeito aos/às estudantes
e suas identidades.
As DCN também apontam que as escolas, na elaboração de seus Projetos Político-
Pedagógicos (PPP), devem incorporar temas que se relacionem com fatos relevantes da
realidade. Nesse aspecto as questões de gênero, etnia, classe, dentre outras, devem subsidiar
as partes integrantes do PPP e do Regimento Escolar.
De acordo com a Nota Técnica nº 32/20154 as DCN (BRASIL, 2013):
Indicam para tanto uma abordagem focada não na padronização de comportamentos
ou na reprodução de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão crítica, na
autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso à informação e ao conhecimento, no
reconhecimento das diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento a toda
forma de discriminação e violência (NOTA TÉCNICA Nº 32/2015, p. 3).
Portanto, por mais que não aprofundem nas questões de gênero, são documentos
importantes para esta temática, porque propõe a necessidade de discutir as diferenças. Assim,
as diretrizes podem ser vistas como uma forma de fazer com que a escola saia de sua zona de
conforto e cumpra seu papel na superação das desigualdades.
Diante da análise pode-se concluir que as DCN além de recomendar a abordagem das
questões de gênero e sexualidade, sugerem que estas sejam inseridas nos PPP das escolas nos
diversos níveis e modalidades de ensino. Além disso, indica que estas temáticas sejam
abordadas ao longo de todo o contexto escolar, para a construção de uma ambiente plural e de
respeito às singularidades dos indivíduos, à igualdade de gênero e à orientação sexual.
4
Nota Técnica elaborada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(SECADI) com o objetivo de trazer o escopo legal para subsidiar as redes de ensino quanto à pertinência da
abordagem de temas relacionados a gênero e sexualidade.
ao Ensino Superior. Vale destacar que após a aprovação desse Plano, seus objetivos devem ser
executados nos dez anos seguintes, uma vez que antes dessa versão sua modificação era
plurianual. Essa alteração e muitas outras foram alvo de contestações envolvendo o
documento.
Uma grande polêmica relacionada às alterações diz respeito ao artigo 2º, inciso III, que
antes da modificação dispunha que uma das diretrizes do PNE era promover a “superação das
desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero
e de orientação sexual”. No entanto, o trecho foi substituído por “superação das desigualdades
educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação” (BRASIL, 2014 p. 43).
Estas alterações estão muito ligadas à atuação da bancada evangélica, constituída por
deputados e senadores muito influentes, cujas reivindicações na maioria das vezes possuem
grande repercussão midiática (GONÇALVES, 2016). Sabe-se que esse grupo sempre esteve
focado em exterminar as questões de gênero das pautas educacionais, e na verdade de
quaisquer outras áreas. Convém destacar que esse movimento reacionário na educação se
intensificou na contestação do Projeto Escola Sem Homofobia de 2011. De acordo com
Oliveira Junior e Maio (2017) o projeto suscitou uma explosão discursiva na mídia sob a
argumentação de que o governo estaria incitando práticas homoafetivas para crianças e
adolescentes.
Grupos religiosos conservadores causaram grande repercussão nacional ao deturpar o
conteúdo de gênero e sexualidade nos documentos escolares, alegando que toda essa
discussão acerca do tema colocaria em risco o conceito de homem e mulher e destruiria o
modelo de família tradicional, com o argumento que esse assunto é dever dos pais e não da
escola, com isso disseminaram um termo pejorativo chamado “ideologia de gênero”
(ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016). Essa resistência conservadora
constitui-se num obstáculo para a equidade de gênero e o livre exercício da sexualidade.
A opressão e exclusão que envolve as questões de gênero abre espaço para que os
indivíduos continuem a sofrer agressões e desrespeito. O próprio Estado participa como
reforçador da violência exercida por estudantes ao ocultar as questões de gênero e sexualidade
nos documentos, consequentemente exerce um efeito de privação de direitos sobre crianças e
jovens (ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016).
De acordo com Dourado (2016) o plano aprovado possui uma concepção restrita de
inclusão e participação haja vista a repulsão na relação entre educação e a diversidade sexual
e de gênero. A ideia de diversidade visa uma convivência harmoniosa com as diferenças, de
Curricular a passa a ser referência obrigatória para elaboração dos currículos e propostas
pedagógicas para Educação Infantil e o Ensino Fundamental. A base impacta diretamente a
formação de professores, os processos avaliativos, e o material didático das escolas públicas.
É importante destacar que o caráter democrático de construção da Base é questionável,
haja vista que a 3ª versão da base, apresentada à equipe dirigente do MEC, não foi discutida
com a sociedade tem como opositores as principais organizações científicas educacionais e
dos sindicatos dos educadores da educação básica (AGUIAR, 2018).
Neste documento, as redes de ensino pública e particulares passam a ter uma
referência obrigatória para a elaboração dos currículos. Dentre os principais objetivos da
BNCC além da adequação dos currículos, está o desenvolvimento dos estudantes no respeito
às diferenças, à discriminação e ao preconceito, visando também a redução das desigualdades
educacionais no Brasil. A BNCC está estruturada de modo a explicitar as dez competências
gerais. Nesse documento o ensino fundamental está organizado em: áreas do conhecimento,
competências específicas de área, componentes curriculares e competências específicas de
componente.
A BNCC reconhece a educação básica como essencial para a formação plena do
estudante, voltada para a singularidade e a diversidade. Ademais “a escola como um espaço
de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não
discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades” (BRASIL, 2017, p.
14). Nesse sentido o cotidiano escolar deve reconhecer as desigualdades entre os estudantes
definidos por raça, sexo e condição socioeconômica objetivando a igualdade, diversidade e
equidade.
De acordo com Oliveira et al. (2017) a possibilidade de inclusão da discussão sobre
identidade de gênero e sexualidade nos currículos é polêmica e vem provocando calorosos
debates entre grupos favoráveis e contrários a sua inserção. O exemplo mais recente desse
embate foi a retirada das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” da versão
final da BNCC devido às pressões exercidas por grupos religiosos conservadores. De acordo
com Adrião e Peroni (2018) essa ausência foi questionada pela Relatora Especial para o
Direito à Educação da ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, a partir de denúncia
apresentada pela Campanha Nacional pelo direito à Educação. De acordo com o documento a
exclusão do termo “orientação sexual” do currículo escolar vai de encontro às recomendações
do Comitê dos Direitos das Crianças ratificado pelo Brasil em 30 de outubro de 2015. O
Comitê recomenda que o Brasil fortaleça seus esforços no combate a discriminação de
crianças vivendo áreas marginalizadas; proíba a incitação da violência baseada na orientação
Considerações finais
De acordo com Girotto (2017) tanto os PCN (BRASIL, 1997) quanto a BNCC
(BRASIL, 2017) fazem parte de uma lógica de Estado que têm como base princípios
neoliberais que atendem a interesses de determinados grupos econômicos, em especial do
Banco Mundial. Esses grupos apontam para a necessidade da construção de um currículo
único que atenda aos requisitos das avaliações internacionais, e que também serviriam de base
para os cursos de formação de professores.
Soma-se a esse fator o crescimento de movimentos conservadores principalmente a
partir do ano de 2010. Esse conservadorismo vai desde questões como a redução da
maioridade penal, o apoio à pena de morte até a oposição ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo, e à legalização do aborto (TOLEDO, 2018).
Em se tratando de políticas educacionais, dentre os documentos analisados pode-se
afirmar que apesar das críticas, os PCN foram os documentos que possibilitaram o maior
avanço na abordagem do tema. Vale destacar que os PCN foram concebidos num contexto do
impacto da epidemia de HIV/Aids, e do grande número de casos de gravidez na adolescência
Referências
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Clara HankeErcoles1
Eliane Maio2
Resumo: Este relato tem por objetivo não apenas narrar sobre um caso de lesbofobia
vivenciado por uma professora de uma escola municipal pública, mas de problematizar acerca
dessa violência e da importância do não silenciamento. Para isso, será posta em discussão a
heteronormatividade presente na escola, no Currículo escolar e na imagem estereotipada de
professoras. Também entender qual é o espaço da lésbica no trabalho e o conceito de
violência simbólica, a partir do ocorrido, quando a professora foi chamada para uma reunião
na escola sem aviso prévio, porque expôs para suas alunas e alunos de duas turmas de quinto
ano do Ensino Fundamental I que tinha uma namorada ao discutir sobre o assunto famílias em
sua aula e ser questionada sobre sua dinâmica familiar. O fato gerou reação de uma suposta
mãe que reclamou na escola e que resultou nesta reunião, que foi solicidado a ela que fosse
sutil e que evitasse esse tipo de assunto para essa faixa etária e para essa comunidade
religiosa. Não concordando com tal postura, a professora procura a diretora do ensino
fundamental na Secretaria de educação, que tenta acalmar a situação, sendo verbalmente
naquele momento de reunião a favor da professora e substituindo o termo ―sutil‖ para ―ética‖.
É preciso que o espaço escolar não imprima sua matriz heterossexual no corpo docente e
discente, marginalizando de seus Currículos a pluralidade de relacionamentos, como o
lésbico. Sendo assim, não permitir que uma professora que está dentro de um relacionamento
lésbico ser impedida de responder aos alunos e alunas apenas para perpetuar as sexualidades
hegemônicas e produzir em seu corpo a heterossexualidade é uma violência simbólica que
precisa ser apontada e visibilizada, pois ela é sutil e imperceptível e resulta no fortalecimento
do Poder e silenciamento da vítima.
1
Universidade Estadual de Maringá; mestranda do programa de pós-graduação em Educação da UEM;
claraercoles@hotmail.com.
2
Doutora em Educação Escolar; Psicóloga; Professora da Universidade Estadual de Maringá; e-mail:
elianerosemaio@yahoo.com.br.
Introdução
Este trabalho tem por objetivo duas funções: primeiro, relatar um caso de lesbofobia
vivenciado por mim, Clara, uma das autoras dele, detalhando o porquê se deu, como foi e
como eu reagi a tal violência. Também objetiva analisar como a escola é um espaço
heteronomativo, tanto na produção quanto na reprodução, através de discussões e reflexões
trazidas por Guacira Louro (2003). E que para isso é necessário garantir um Currículo que
exclua identidades que não seja de interesse político da burguesia, como Tomaz Tadeu da
Silva (2011) propõe. Para a formação dessas identidades, é necessário que professores e
professoras tenham uma imagem estereotipada para garantir a cis-heteronoratividade, com
respaldo em Louro (2003). E quando esses professores e professoras não se adequam a essa
imagem, são lançados dispositivos disciplinares que discorre Foucault (1987), como é o caso
dessa reunião escolar que será narrada. Por fim, entender como é para as lésbicas o ambiente
de trabalho e como acontece a violência simbólica, discutida por Pierre Boudieu (2003).
Este relato é sobre um fato que aconteceu comigo em uma escola pública municipal,
no sul do Brasil. Proponho esse grande recorte para que não exponham pessoas, nem se
determine o município, já que são poucos os que oferecem a língua inglesa no Ensino
Fundamental I, posto que não é obrigatória a oferta.
Inicialmente já esclareço que a violência pode não ser entendida por algumas leitoras
e leitores como algo impactante ou brutal, porém, faço este relato porque acredito que
qualquer forma de lesbofobia deve ser visibilizada e colocada em discussão para que seus
efeitos minimizem e que outras pessoas passam se reconhecer nesses casos e percebam que se
trata de uma violência que não podem ficar caladas.
Desenvolvimento
contexto sobre a escola na qual vivenciei as experiências deste relato. Nesta escola, tenho
quatro turmas, sendo duas delas quintos anos. Com essas duas turmas tenho um ótimo
relacionamento. Vagaroso, porém, possível desenvolver um trabalho de trocas e de ensino-
aprendizagem. É uma escola periférica e de contextos hostis. Por isso, tento fazer de minhas
aulas o ambiente mais amistoso possível, com materiais extras lúdicos e buscando ouvi-las/los
ao máximo, já que uma das maiores ansiedades deles e delas é não terem suas opiniões e
dúvidas tomadas como importantes às adultas e adultos.
As aulas de inglês são separadas em assuntos e, a partir deles, são explorados os
vocabulários e as estruturas de língua inglesa. Iniciamos com a problematização do assunto
exigido pela Secretaria de Educação (SEDUC), com perguntas que tomam o conhecimento
prévio das alunas e alunos e que façam refletir sobre. Na aula a ser relatada neste trabalho o
assunto era famílias. E o fato se deu na primeira aula quando iniciamos por meio da
problematização, que será relatado no próximo item.
Introduzi o conteúdo família em quatro turmas de quinto anos, duas turmas para duas
escolas municipais diferentes. Na primeira aula houve o momento de problematização,
seguida de uma discussão oral de forma lúdica, usando cartazes que ilustravam famílias de
desenho animado, sendo: 1- Simpsons, representando a família hegemônica, 2- Meu Malvado
Favorito I, II e III, tratando sobre adoção e a reconstituição familiar (que se amplia ao longo
dos três filmes), 3- Frozen, explorando sobre a perda de familiares, 4- Procurando Nemo, que,
além de tratar da perda de familiares, ainda mostra a ajuda e apoio da comunidade. 5 – A
família do Jeff, de ―Clarêncio, o otimista‖, cuja família é formada pelo personagem e suas
duas mães, que são um casal lésbico.
Interagimos sobre nossos formatos de família e, nesse momento também
compartilhei sobre a minha, formada pelo meu filho e eu. De diversas formas as alunas e
alunos souberam sobre eu ter uma namorada. Em duas das turmas, perguntaram se eu tinha
marido, já que eu tinha um filho. Ao dizer não, logo perguntaram se eu tinha namorado.
Então, eu dizia que tinha e especificava que era uma namorada. Outros momentos, comentei
que me identificava com a família do Jeff, pois tinha também uma namorada. Tal assunto
desperta muito a curiosidade deles e delas e me procuram em momentos de refeitório e em
sala de aula para saber mais, conhecendo sobre esse modelo não hegemônico de
relacionamento.
Com relação às reações das duas escolas, em uma delas não houve qualquer
problema ou questionamento sobre a concepção metodológica, nem mesmo pontuações de
familiares. Entretanto, na escola de análise, a equipe diretiva chamou duas representantes da
Secretaria de Educação do município para uma reunião sem que houvesse uma discussão
anterior ou qualquer aviso prévio.
A primeira reunião que foi na escola aconteceu antes mesmo que minha aula
completasse uma semana. Fui tirada de sala de aula sem aviso prévio e fui para a sala da
diretora sem ao menos saber sobre o que se tratava esta reunião. Fiquei bem assustada ao
entrar, por haver lá tantas pessoas, sendo elas: a diretora, a supervisora e a orientadora da
escola, juntamente com a assessora do ensino fundamental e a assessora de língua inglesa.
As questões a serem discutidas eram: eu me recusar a fazer oração no momento de
entrada na escola, sendo que a escola pública é laica, mas neste momento não discorrerei
sobre isso, por não ser o foco central deste relato. E o segundo assunto era sobre as
reclamações de muitos pais e mães por eu estar falando sobre minha vida pessoal, que depois
foi pontuado que a razão era eu ter verbalizado às crianças sobre eu ter uma namorada. Segui
explicando que essa é minha concepção metodológica, baseada na sinceridade e no meu
direito de ensinar e de eles e elas aprenderem sobre tal diversidade familiar.
O fato é que, desses ―muitos pais‖, na verdade, era apenas uma mãe que apareceu na
escola dizendo que iria organizar um abaixo-assinado contra mim por falar de minha vida
pessoal em sala de aula. Que nada mais era sobre eu ter exposto sobre ter uma namorada. Eu
não tive acesso a essa mãe, não vi nem comentaram nada comigo anteriormente sobre isso na
escola. Tomei conhecimento no momento dessa reunião. Até questionei, ironicamente, se
haveria tamanha mobilização quando eu falasse que eu tinha dois gatos em uma aula que
tratasse sobre animais.
Argumentei sobre livro de língua inglesa adotado pela rede municipal de ensino que
sugere que seja trabalhada toda a diversidade familiar, inclusive as ―famílias que tem dois pais
e duas mães‖ (conforme citado no anexo do Livro do Professor, do livro didático adotado pela
SEDUC). Conforme conversávamos, ficava claro que o motivo daquela reunião era discutir o
porquê foi dito às crianças que eu tinha uma namorada, ficou explícito não se tratar de discutir
a minha prática pedagógica. Depois sugeriram que esse assunto não era adequado para essa
faixa etária, que para assessora de língua inglesa, a Base Nacional Comum de língua inglesa
expõe que deve ser trabalhado no Ensino Fundamental II. Mas o que não foi dito é que esse
documento é organizado para Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Não há um para o
Fundamental I. E por não existir não quer dizer que esses assuntos não devam ser trabalhados
ou que sejam inadequados a tal faixa etária. Argumentei sobre o direito da criança em
conhecer essa pluralidade, para cultivar o respeito, pontuei que iria, sim, falar de minha vida
pessoal quando questionada.
Ficou decidido que eu devo ser ―sutil‖, como sugeriu a assessora de língua inglesa,
quanto a minha apresentação de vida pessoal, pois a comunidade desta escola ―não está
preparada‖ para essas discussões, conforme registrado em ata. Neste ponto indaguei duas
problemáticas: 1- se a comunidade não está pronta, assim é que se faz mais necessário falar
sobre, pois falta conhecimento científico cuja responsabilidade pertence à escola, preparando
e lidando com isso. 2 – o que significaria ―ser sutil‖ de forma prática? Que foi respondida
para que eu fosse discreta quanto ao que dizer, não ficasse falando quanto a minha vida
pessoal. De preferência nem falasse sobre eu me relacionar com uma mulher, já que era um
assunto ―polêmico‖. Fui ácida ao perguntar se eu deveria, então, mentir quando alguma
criança perguntasse quanto ao meu relacionamento, já que essa pergunta é bem comum e com
certeza seria feita novamente. Ela se contradisse ao responder que eu poderia, sim, falar a
verdade, mas sempre mudando de assunto em seguida, trazendo a atenção dos alunos e alunas
para a aula.
Problematizo e problematizei às duas assessoras, quando que uma delas da SEDUC
teve que sair de seu espaço para ir a uma escola por que uma professora heterossexual disse
aos alunos e alunas que é casada com um homem. A resposta, não muito direta e meio
confusa era: porque este assunto é mais polêmico.
Sobre o tão ―polêmico assunto‖, ou seja, uma mulher amar outra mulher, foi
comparado pela assessora do ensino fundamental a casos extraconjugais. Ela me questionou,
colocando em igualdade as ―polêmicas‖, se eu contaria às crianças se estivesse traindo em um
relacionamento apenas por ter sido questionada. Eu fiquei estarrecida com tal comparação e
respondi que não achava proporcional, porque amar uma mulher não deveria ser comparado à
falta de caráter de um relacionamento. Em outro momento a assessora de língua inglesa
comparou que falar de homossexualidade no Ensino Fundamental I é tão polêmico quanto um
professor querer falar sobre legalizações de drogas, mesmo que ele acredite ser positivo, ou
seja, não é porque eu ache válido e necessário falar de pluralidade de famílias que isso seja
―adequado‖. Foi pontuado que eu representava a escola e toda a equipe dela e que, assim,
deveria ter cuidado com o que falo. Eu não perdia minha energia de fala, porém, escutar
colocações como estas, de pessoas que estão à frente de uma secretaria de educação, era como
ser golpeada com socos. É como se a minha existência atrapalhasse o mundo.
Em alguns momentos eu manifestava meu incômodo com essa situação de ter que
reunir tantas pessoas para tratar de um assunto que não era meu trabalho pedagógico, mas de
minha vida pessoal. Mas elas respondiam que não era uma sentença, mas um momento de
conversa ―tranqüila‖ e estava sendo registrado em ata porque se houvesse mais alguma
reclamação seria mais fácil para elas me defenderem, porque essa conversa aconteceu e já foi
esclarecido. Mas o que me pergunto hoje é: por que precisaria de cinco pessoas para tal
registro?
Antes que se encerrasse a reunião, ainda tive tempo de escutar da assessora de
Ensino Fundamental o termo ―ideologia de gênero‖. Então, eu pude testemunhar que há
pessoas que estão à frente da nossa secretaria de educação muitas vezes sem formação
suficiente para o cargo, sem conhecimentos básicos sobre o assunto de gênero e sexualidade.
E ainda toma como verdade discursos midiáticos que perpassam por nossa sociedade e
instituições religiosas que formam pensamentos manipuláveis e não-reflexivos. Apenas tentei
ter a paciência de explicar as discussões em gênero e sexualidade e ponderar que não se trata
de uma ideologia.
Assim, em ata ficou decidido, além de algumas ações sobre a oração no espaço
escolar, que eu deveria ser mais ―sutil‖ com que falo nessa comunidade escolar e que o que
aconteceu foi apenas uma resposta de alunos e alunas que me questionaram sobre meu
relacionamento.
Depois dessa reunião, fico-me questionando se as demais professoras e professores
da equipe sabem ou não, se apoiam essa atitude ou não. Ao entrar nas salas de quinto ano, fico
sempre em estado de alerta, pensando se algum aluno ou aluna está perseguindo-me por
ordem da família, fico com a sensação de estar sendo observada, mas tento não deixar afetar a
minha relação com eles e elas. Tento não deixar que aquela abordagem na reunião afete meu
trabalho e meu afeto com as turmas. A propósito, não quis saber quem era essa mãe, nem de
qual aluna/o. Não acho que seria bom para mim ter acesso a essa informação.
Eu sabia que reuniões como esta não deveriam ter acontecido. Entretanto, ainda
estava muito confusa. Graças a uma amiga dentro da SEDUC que me alertou que isso se
tratava de assédio moral e graças a meu grupo de pesquisa em gênero e sexualidade a
Universidade, consegui apoio para levar um pouco mais adiante essa situação, entendendo
como uma forma de violência, assédio e que não me deveria calar. Penso que muitas
professoras e professores, por não ter conhecimento ou apoio podem ter-se calado em
situações como esta. Então, decidi levar mais adiante, levando para as diretoras de Ensino
Fundamental na SEDUC, que será relatado no próximo item.
gênero em uma lógica binária, ou seja, resumida apenas em feminino e masculino, ignorando
ou neganod todas as demais identidades de gênero. Romper com essa dicotomia é um afronta
à matriz heterossexual.
A escola, para Louro (2003), para além de entender sobre diferenças e desigualdades,
também produz. E essa diferença, é claro, abarca questões de gênero, pois separa meninos de
meninas. Ela delimita e institui o que pode e o que não pode.
A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada
um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e
dos grandes, dos meninos e das meninas. Através de seus quadros, crucifixos, santas
ou esculturas, aponta aqueles/as que deverão ser modelos e permite, também, que os
sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos. O prédio escolar informa a
todos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos
"fazem sentido", instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.
(LOURO, 2003, p.58)
Quando a escola marca uma reunião sem aviso prévio com várias pessoas que
ocupam cargos acima do meu para pontuar o que devo ou não devo dizer aos meus alunos e
alunas é uma forma clara de exercer poder, delimitando meu espaço de fala e de produção da
sexualidade hegemônica heterossexual em meu corpo. Não poder dizer que tenho uma
namorada, não só invisibiliza minha identidade lésbica, mas produz, estampando a matriz
heterossexual.
A escola é (re)produtora das concepções heteronormativas e de gêneros binários,
assim como o padrão social. Sendo assim, todos e todas que fazem parte dela são sujeitos
femininos ou masculinos heterossexuais.
Transgredir tais normas, ensinando e visibilizando identidades não-hegemônicas, é ir
além de cumprir conteúdos curriculares, mas uma forma de atuação política, de confrontar as
relações de poder.
Longe de minha aula tratar-se diretamente sobre Educação Sexual, mas por suscitar
reflexões acerca da diversidade sexual que compõe os arranjos familiares, por que a escola,
enquanto formadora de cidadãos e cidadãs, nega-se a problematizar sobre sexualidades não
hegemônicas?
Para discutir sobre o Currículo, Tomaz Tadeu da Silva (2011) aponta que é uma
questão de identidade, não só de conteúdos. Há uma seleção de quais identidades serão e não
serão contempladas. ―Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de
conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma
identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder‖ (SILVA, 2011, p.
16). Desse modo, o Poder é que seleciona o que faz ou não parte desse currículo, que, por
dentro dela, garantindo a matriz heterossexual. Como eu rompo, tenho e terei que lidar sempre
com a imagem destoante da figura ideal de professora.
Louro (2003) lembra que até mesmo os trajes devem ser assexuados, de vida pessoal
―discreta‖ e ―reservada‖. Apesar de meus trajes não serem algo tão conflitante diretamente
com a matriz heterossexual, minha vida pessoal não é reservada, o que faz lembrar novamente
as sugestões em ser ―sutil‖ e ―ética‖.
Contudo, ainda não é possível uma única representação identitária de professores e
professoras. E muitas professoras feministas, dos estudos negros e dos estudos de gênero e
sexualidade buscam subverter as desigualdades nas escolas, ainda timidamente. Ser
professora que assume e responde com tranqüilidade suas alunas e alunos que se relaciona
com uma mulher é, também, uma atitude política e é entendida pelo Poder como subversiva
porque nossa sociedade é cis-heteronormativa, e traz a tona a problematização das
desigualdades.
Ser professora lésbica no contexto público de educação, em si, já é um desconforto
para o Poder. Quando essa professora assume publicamente sua identidade, então, é
subversão, é atitude política. Nosso corpo lesbo precisa ser dominado pelas instâncias de
poder, tornando-se submisso por meio do medo.
Assim, quando nós lésbicas ousamos transgredir, são entravas para controle. É
preciso coibir nossos corpos por meio do medo, é preciso corrigir o que é anormal, através de
dispositivos disciplinares, conforme Foucault (1987). Desse modo, a reunião escolar serviu
como forma de amedrontar, para calar o meu corpo, foi um dispositivo de controle e uma
forma de violência simbólica e sutil.
Descreveria que essa violência aconteceu de forma sutil, quase que imperceptível em
primeiro momento. Apenas meu sentimento apontava um desconforto que não conseguia
nomear como violência. Assim aponta Bourdieu (2003), conceituando a violência simbólica
como ―suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas
vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última estância, do sentimento‖. (Bourdieu,
2003, p. 7). Assim foi a sensação que tive ao sair da reunião: um sentimento de ter sido
violentada sem saber ao certo nomear essa violência, nem apontar o que me incomodava
diretamente.
As instituições como família, Igreja, Escola e Estado precisam garantir sua estrutura
de poder, seja através da violência física ou simbólica, a fim de dominar e de ter essa relação
de dominação naturalizada. Bourdieu (2003) aponta a incorporação de classificações
Referências
Introdução.
Este artigo tem por objetivo promover uma reflexão acerca das chamadas ‘pedagogias
feministas’, buscando descrever a identidade dessas práticas pedagógicas e suas possíveis
inserções institucionais, com alguns exemplos de ações desenvolvidas no Colégio Pedro II,
uma escola federal no Rio de Janeiro. Para tanto, serão evocadas as contribuições teóricas de
pensadoras e estudiosas do campo de estudos de gênero e dos estudos feministas, como
Guacira Louro (2014) e bell hooks (1989; 1994), entre outras.
Antes de mais nada, começaremos refletindo sobre o que as pedagogias feministas
efetivamente não são: um tipo de prática pedagógica com apelo apenas para mulheres,
fundada na experiência apenas de mulheres e meninas, ou que traz benefícios tão somente
1
Colégio Pedro II; Doutora em Letras; cristiane.cerdera@gmail.com.
para as mulheres (WALLER, 2005, p. 1, 2). Como veremos adiante, as concepções sobre as
pedagogias feministas são muito mais abrangentes e complexas.
As chamadas ‘pedagogias feministas’ podem ser compreendidas, em sentido lato,
como um conjunto de “(...) princípios e práticas que objetivam conscientizar indivíduos, tanto
homens quanto mulheres, da ordem patriarcal vigente em nossa sociedade, dando-lhes
instrumentos para superá-la e, assim, atuarem de modo a construir a equidade entre os sexos”
(SARDENBERG, 2011, p. 20) 2. Guacira Louro (2014, p. 117) assim resume o caráter
transgressor dessa abordagem pedagógica:
Convém destacar que, sob a ótica feminista, não existe uma epistemologia neutra;
portanto, dado que a escola reflete os arranjos sociais vigentes, o currículo escolar será a
expressão clara dessa “cosmovisão masculina” (SILVA, 2007, p. 94). Além do mais, segundo
Silva (idem), o currículo é um “artefato de gênero” (p. 97), o qual, ao mesmo tempo,
“corporifica e reproduz relações de gênero” (Idem, p. 97).
As pedagogias feministas integram o conjunto das “pedagogias críticas” ou
“alternativas”, as quais estão voltadas para uma educação libertadora e não-hierarquizada.
Não por acaso, encontram inspiração, em maior ou menor grau, nos escritos do educador
Paulo Freire, marcadamente pela crítica que fazem às questões relacionadas ao poder e ao
controle3.
A teórica, ativista e feminista negra bell hooks4 dedica um capítulo inteiro de seu livro
(Teaching to transgress) ao brasileiro, a ponto de relatar – acerca de seu encontro com Freire
2
Sobre isso, ver também: SANTOS; BOMFIM, 2010.
3
Sobre esse aspecto, Sardenberg ressalta que “De modo geral, as pedagogias críticas feministas compartilham
essas noções. No entanto, em linha com a avaliação feminista do marxismo, fazem uma importante análise da
“Pedagogia do Oprimido”, a começar pela ênfase de Freire na questão da exploração econômica em detrimento
de outras formas de dominação e opressão, tais como as de sexo, que não têm apenas bases econômicas”. (P. 20,
21).
4
bell hooks é o pseudônimo da escritora americana Gloria Watkins que o escolheu como um tributo à sua
bisavó, Bell Blair Hooks, em reconhecimento à sua ancestralidade. hooks prefere grafar seu nome em letras
minúsculas, segundo ela, para colocar em evidência o conteúdo de seus escritos e não o seu nome e também
– que sua experiência com ele “(...) restaurou sua fé na educação libertária” (HOOKS, 1994,
p. 18).5 bell hooks também testemunha sua profunda identificação com Freire em um
momento de sua vida em que questionava o impacto do racismo, do sexismo e da dominação
de classe nos Estados Unidos. Ao tomar contato com os escritos do autor de Pedagogia do
Oprimido – longe de ter uma experiência “voyeurística”, segundo suas próprias palavras –
bell hooks sentiu uma profunda identificação com os sujeitos marginalizados que emergiam
das obras do educador brasileiro (HOOKS, 1994, p. 46).
Pelos motivos elencados acima e pelo caráter polissêmico do termo, não seria possível
definir a identidade do conceito das pedagogias feministas de forma unívoca, já que existem
diferentes abordagens a reivindicar abrigo nesse ‘guarda-chuva’; por isso mesmo, nos
alinhamos àquelas que acreditam não ser possível usar o termo “pedagogia feminista”, no
singular.
experiências que nunca foram documentadas de forma acadêmica e, segundo, todos/as os/as
envolvidos/as podem experimentar um aprendizado transformador.
Guacira Louro (2014) acrescenta ainda que, ao posicionar os saberes acadêmicos e
pessoais no mesmo plano, conferindo-lhes igual legitimidade, as pedagogias feministas
acabam por “estimular a fala daquelas que tradicionalmente se veem condenadas ao silêncio,
por não acreditarem que seus saberes possam ter alguma importância ou sentido” (p. 117,
118).
Finalmente, um outro importante aspecto para a caracterização dessas pedagogias
reside no fato de que elas buscam uma aprendizagem que seja verdadeiramente
transformadora, de maneira que os/as participantes não apenas adquiram conhecimento, mas
permitam que seu pensamento tome novas direções. Portanto, ao recusar uma distinção
hierárquica, ao valorizar as experiências pessoais e estimular novas abordagens de
ensino/aprendizagem, as pedagogias feministas contrapõem-se a alguns “pilares” da educação
tradicional, ousando transformar o ensino formal em uma “relação onde todos os personagens
podem alternar, constantemente, suas posições, sem que nenhum sujeito (ou, mais
especialmente, sem que o/a professor/a) detenha um saber ou uma autoridade maior que os
demais” (LOURO, 2014, p. 118).
Em resumo, mais do que simplesmente reduzir as pedagogias feministas a um
conjunto fixo de características, devemos compreendê-las como fragmentadas, pertencentes a
diferentes pessoas e lugares e em permanente transformação; uma perspectiva pedagógica que
convida professores, estudantes e demais atores da arena educacional a “contribuir para sua
evolução” (HENDERSON, 2016).
Por último, é importante ressaltar que, para aquelas pessoas familiarizadas com a
Pedagogia Crítica, pode parecer que falta especificidade aos princípios das pedagogias
feministas, no sentido de que ambas as abordagens pedagógicas partem de pressupostos
semelhantes. No entanto, vale destacar que o vetor das pedagogias feministas são as opressões
de gênero – as quais não encontravam espaço no escopo da Pedagogia Crítica de viés
marxista. Além disso, as pedagogias feministas desenvolveram-se a partir dos exercícios de
partilhar experiências que eram comuns nos grupos comunitários de mulheres durante os
movimentos feministas dos anos 70 (HENDERSON, 2016).
No Brasil, de acordo com Burginski (2011, p. 574), as mulheres encamparam os
grupos em defesa dos direitos humanos no final dos anos 70, a partir da progressiva abertura
política, o que fez com que esses grupos tivessem um papel fundamental na posterior
elaboração e difusão das pedagogias feministas. É importante destacar o fato de que as
uma perspectiva plurivocal, que se coloquem contra as opressões de gênero, raça e classe e
façam um investimento na formação da consciência crítica dos sujeitos envolvidos.
Acreditando que é dever da escola engajar-se em uma educação não-sexista, buscando
a equidade entre os gêneros, elaboramos um projeto no Colégio Pedro II a fim de oferecer não
certezas e respostas definitivas, mas com o intuito de fomentar “a dúvida e o
autoquestionamento” (LOURO, 2014, p. 125), com vistas a “exercitar a transformação a partir
das práticas cotidianas mais imediatas e banais, nas quais estamos todos/as irremediavelmente
envolvidos/as” (idem, p. 126).
Nas próximas seções descreveremos o contexto no qual as oficinas que compõem o
projeto foram geradas e falaremos acerca da metodologia aplicada.
7
Usamos o termo “empoderamento” neste artigo na acepção que o termo assume no verbete “empoderamento”
do Dicionário Feminino da Infâmia. No referido verbete, “empoderamento” é tomado, entre outras
possibilidades, como “um processo de afirmação que emerge da interação com outras mulheres” e que surge “da
faixa etária, mas também para cumprir o compromisso da escola democrática de educar os
meninos para a não-violência.
Cabe a nós como educadores promover reflexões acerca da maneira como a violência
contra a mulher é produzida e reproduzida através de relações sociais hierarquizadas, bem
como através de mecanismos das relações de trabalho que continuam relegando às mulheres
posições de menor remuneração, sujeitas ao assédio sexual (BLAY, 2008, P. 218).
Sabe-se que o machismo e as violências engendradas por ele são causam danos para as
vidas das mulheres, mantendo-as debaixo de uma estrutura opressora, impondo a elas um jugo
desigual e atingindo-as nas suas subjetividades. Porém, isso não significa que os homens e
meninos também não sofram os efeitos perversos da estrutura patriarcal. Já existe certo
consenso entre especialistas da área dos estudos de gênero de que é preciso educar os meninos
para a não-violência, já que a virilidade é aprendida e imposta socialmente aos meninos pelo
grupo dos homens que convivem com eles, para que haja uma distinção hierárquica das
mulheres (HIRATA, 2009, p. 101, 102). Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental no
enfrentamento dessa violência, educando meninas e meninos para uma sociedade com maior
equidade entre os gêneros.
As oficinas que compuseram o projeto foram elaboradas durante os anos de 2016 e
2017 no Campus São Cristóvão II e tiveram como foco as representações de mulheres em
videogames e a invisibilização das mulheres na historiografia, respectivamente. Foram
construídas no âmbito de projetos de Iniciação Científica Junior promovidos pelo colégio e
contaram com a participação de pesquisadores-bolsistas e voluntários/as do Laboratório de
Estudos em Educação e Diversidade (LEDi), em parceria com o Núcleo de Games, Atividades
e Metodologia de Ensino (NuGAME), dois coletivos de pesquisa do Colégio Pedro II.
Participaram da construção das atividades 21 integrantes, sendo 2 professores e
dezenove estudantes, com idades variadas entre 13 e 16 anos. Houve encontros semanais nos
quais foram feitas leituras e posterior discussão de artigos, debates acerca de notícias
veiculadas pela internet e de interesse do projeto, sessões de jogos e de elaboração de cartazes
e planejamento das atividades das oficinas.
consciência que deriva da troca de experiências e se contrapõe às limitações impostas por uma sociedade
patriarcal, como, por exemplo, em casos de violência, subserviência, isolamento e discriminação [...].
Empoderamento quer dizer tomar o poder sobre sua própria vida, valorizando suas potencialidades e
capacidades, em busca de uma vida melhor. [...] Quando as mulheres se empoderam, assumem o controle de seus
próprios corpos, de sua sexualidade, de seu aparelho reprodutivo, recusam a violência doméstica, [...] buscam
maior acesso à educação e compartilham a responsabilidade com a casa e com os filhos.” (FLEURY-
TEIXEIRA; MENEGHEL, 2015, p. 119, 120)
8
A oficina mencionada acima foi desenvolvida originalmente para o evento Rio Indie Games, um circuito que
tem como objetivo disseminar técnicas e experiências vividas pelos entusiastas de games, conjugadas ao
aprendizado e reflexão. É realizado pela ONG Cinema Nosso e tem diversos parceiros, como a Prefeitura do Rio
de Janeiro, entre outros. Desde então, vem sendo aperfeiçoada e apresentada em outros espaços, como a
Universidade Federal de Juiz de Fora e o Colégio Pedro II. A oficina foi organizada com o objetivo de
contribuir para o debate acerca das questões de gênero – o qual, na maioria das vezes, é apagado do currículo
escolar – bem como desconstruir a ideia de que os jogos digitais não são ‘educativos’, ou seja, não podem ser
considerados instrumentos de reflexão e aprendizagem.
d) Debate final: para encerrar a oficina foi feito um debate, retomando a experiência
dos jogadores e jogadoras, compartilhando suas observações em relação aos jogos expostos e
suas vivências.
Na construção da oficina, partiu-se do pressuposto de que os jogos digitais comerciais,
tomados no âmbito da perspectiva das práticas de multiletramento (ORLANDO, 2013; ROJO,
2012) pela possibilidade de agência, interação e, ainda, pela enorme capilaridade com o
segmento etário do qual fazem parte os estudantes da escola básica (mas não apenas entre ele,
devemos frisar), são artefatos culturais apropriados para a desestabilização de sentidos
cristalizados acerca de identidades, sociais de gênero e sexualidade.
Também se considerou que, nas interações dos jogadores com a “retórica cultural” dos
jogos (SALEN; ZIMMERMAN, 2012, p.35), novos entendimentos puderam ser construídos e
novas questões emergiram, num movimento contínuo de desconstrução e reconstrução.
9
Esse trocadilho só faz sentido na língua inglesa, na qual, valendo-se dos pronomes possessivos ‘his’ (dele) e
‘her (dela), o termo ‘herstory’ pode ser lido como ‘história dela’ em oposição a ‘history’, entendido como
‘história dele’.
Carneiro. Foi feito um debate com os estudantes, quando foram discutidos os conceitos de
“patriarcado”, “silenciamento” e “invisibilização” a partir das vivências dos estudantes
presentes na oficina.
Os cartazes confeccionados ao final da oficina mostraram alguns dos entendimentos
coconstruídos pelos participantes e foram colocados em lugares estratégicos do espaço escolar
a fim de compartilhar com outros estudantes as reflexões feitas durante a atividade.
Resultados
Os relatos de estudantes que participaram da construção do projeto sugerem que, para
além de ganhos acadêmicos, houve também um movimento de desconstrução e reconstrução
de crenças e valores, a consciência de privilégios e o reconhecimento das lutas das mulheres e
do quanto ainda é preciso avançar na quebra de paradigmas e estereótipos.
Sobre o primeiro aspecto, os estudantes destacaram a capacidade de fazer pesquisa na
escola básica e o reconhecimento dessa produção em espaços acadêmicos ‘adultos’:
“Nossas conquistas, de maneira geral, mostraram a mim a capacidade dos alunos do ensino
fundamental e médio na área da pesquisa.” (G. 17 anos)
“Eu descobri que amo pesquisar e sou boa nisso, nós tínhamos textos para ler e sugeríamos
artigos, além de termos encontros semanais onde discutíamos sobre o que tínhamos lido.
Tudo que eu aprendi lá mudou meu jeito de encarar o mundo e a sociedade, além de nos
levar para lugares novos para falar sobre o que descobrimos: Curitiba (SBGames na PUC) e
Juiz de Fora (UFJF).” (A., 15 anos)
Também emergiram dos relatos questões identitárias, relacionadas à construção de
uma subjetividade e a um ‘estar no mundo’, perpassado por interrogações, aproximações e
fugas:
“A partir disso resolvi me aprofundar especificamente no feminismo negro; eu precisava de
referências que pudessem me compreender, ou seja, entender o que é ser mulher e negra na
nossa sociedade atual e o "fardo" que carregamos por conta disso. Graças ao projeto tive a
oportunidade de estudar grandes nomes da militância negra que fizeram história, a exemplo
de Lélia Gonzalez (fundadora do Grupo Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras do Rio de
Janeiro), Sueli Carneiro e Ângela Davis.” (E., 15 anos)
“Além de poder compreender mais sobre questões como o feminismo, racismo, LGBTfobia,
sexismo, machismos e outros “ismos” que circundam nossa sociedade, foi uma jornada de
autoconhecimento e autoaceitação como mulher e negra, pois não me enxergava dessa
forma, ou tentava me esconder de mim mesma. Parece óbvio demais mas, compreender as
diferenças do outro e respeitá-las é também um processo para aceitar suas próprias
diferenças, trabalhar sua autoestima, autosegurança e autoaceitação.” (B., 15 anos)
“Em ações simples como assistir uma série ou novela, jogar um jogo ou ler um livro, as
mulheres são vistas como objetos e a população majoritariamente não consegue ver isso pois
as pessoas normalmente não problematizam ou param para pensar naquilo que estão
consumindo.” (A., 15 anos)
“Ao meu ver, reservar um momento pra discutir sobre a diversidade, pesquisar artigos e
referenciais teóricos que explicam a formação de esteriótipos, problematizam o padrão da
normalidade e mostram como nossos comportamentos estão muita das vezes limitados dentro
de um estrutura social é esclarecedor e enriquecedor para que possamos nos desconstruir e
nos reconstruir sobre outra perspectiva.” (B., 15 anos)
Considerações finais
Partindo da realidade e experiência dos sujeitos envolvidos no projeto, buscamos mais
do que tematizar as mulheres e suas questões nessas oficinas. Na verdade, procurou-se colocar
em prática alguns pressupostos centrais das pedagogias feministas, notadamente estimular
“(...) a análise das noções trazidas pelos participantes e das novas concepções geradas no
grupo” (SARDENBERG, 2011, p. 27), além de buscar “(...) as raízes dos preconceitos, mitos
e condições de subordinação das mulheres” (Idem). Além disso, buscamos ter em mente que
“a ação político-educativa é um processo” (Idem, p. 26); portanto, as oficinas não se
constituem em um fim em si mesmas, mas encerram possibilidades de desdobramentos, ao
incentivarem a voz de todos/as, levantando, assim, novos questionamentos.
Consideramos importante e necessária a articulação de coletivos no sentido de buscar
a consolidação e construção de políticas públicas que possam fazer frente à situação de
exclusão e opressão vivida por mulheres e grupos em situação de vulnerabilidade social.
Entretanto, alinhando-nos ao pensamento de Guacira Louro (2014), acreditamos ser
igualmente importante subverter e desestabilizar as desigualdades que operam no tecido
escolar, prestando especial atenção às formas que produzem e reproduzem essas
desigualdades. Para isso, é necessário atuar com base em nossas experiências e nas
experiências pessoais dos/as estudantes, mas também operando “com apoio nas análises e
construções teóricas que estão sendo realizadas” (LOURO, 2014, p. 125), notadamente no
campo de estudos de gênero, a fim, principalmente, de superar as “fraquezas” conceituais
apresentadas pelas pedagogias feministas, sendo a mais marcante delas o possível reforço a
uma lógica dicotômica e binária.
Finalmente, é preciso que haja mudanças sutis nas ações desenvolvidas no cotidiano
escolar – dividindo grupos de estudantes de formas diversas, promovendo discussões sobre
representações de gênero em livros e na mídia em geral, investigando grupos e sujeitos
Referências:
BLAY, Eva Alterman. Assassinato de mulheres e direitos humanos. São Paulo: USP, Curso
de Pós-Graduação em Sociologia; Ed. 34, 2008.
BRASIL. Colégio Pedro II. Carta de Serviços ao Cidadão. Rio de Janeiro, 2016. Disponível
em: https://www.cp2.g12.br/images/carta_servicos_assinada.pdf. Acesso em 28 de maio de
2018.
BRASIL. Colégio Pedro II. CPII em números. Perfil discente. Rio de Janeiro, 2016a.
Disponível em:
http://cp2.g12.br/images/comunicacao/2017/PRODI/Perfil%20Discente%202016.pdf. Acesso
em 28 de maio de 2018.
BRASIL. Colégio Pedro II. CPII em números. Efetivo discente. Rio de Janeiro, 2016b.
Disponível em:
http://www.cp2.g12.br/proreitoria/prodi/cpii_numeros/ensino/quadro_efetivo_discente/educac
ao_basica/2014. Acesso em 28 de maio de 2018.
BURGINSKI, Vanda Micheli. Educação e gênero: uma leitura sobre as pedagogias feministas
no Brasil (1970-1990). Revista de Ciências da Educação, UNISA, Americana/SP, Ano XIII,
nº 24, p. 569 – 593, 2011.
HIRATA, Helena et al (Orgs). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP,
2009.
HOOKS, bell. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press,
1989.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2017.
SANTOS, Ana Célia de Souza; BOMFIM, Maria do Carmo Alves do. Pedagogia feminista na
construção de uma “alternativa de gênero”. In: Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades,
Deslocamentos. Anais Eletrônicos. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina,
2010.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
WALLER, Alisha. What is feminist pedagogy and how can it be used in CSET education? In:
35th ASEE/IEEE Frontiers in Education Conference. Anais… Indianapolis, IN, 19-22 out.
2005. Disponível em: <http://archive.fie-conference.org/fie2005/papers/1585.pdf>. Acesso
em: 27 de maio de 2018.
Do privado ao público:
identidades femininas católicas na contemporaneidade e seus sentidos
Resumo: Resumo: Esta comunicação envolve uma pesquisa de cunho etnográfico, em nível
de mestrado, sobre vida religiosa e cotidiana no cenóbio (ou instituto religioso, ou ainda,
convento) “Pobres Filhas de São Caetano”, localizado na cidade de Cândido Mota, estado de
São Paulo, Brasil. O objetivo desta comunicação é contribuir para uma melhor compreensão
de como as identidades de gênero são construídas e ressignificadas na vida cotidiana dessas
freiras e dinamizadas pelo discurso institucional cenobítico. Foram realizadas entrevistas com
o grupo de religiosas e etnografia, buscando compreendê-las através da administração do
tempo no cenóbio e da análise da rede de complexas relações sociais em que essas religiosas
estão situadas. O espaço privado conventual foi o lócus para a compreensão da vivencia
doméstica entre as freiras que lança luz às performatividades de gênero existentes.
Palavras-chaves: cenóbio; mulheres; vida religiosa
1
Graduada em Ciências Sociais, atualmente é professora e mestranda em Ciências Sociais/Capes pelo Programa
de Pós Graduação em Ciências Sociais da Unesp, campus de Marília. E-mail: cravinajoyce@gmail.com
Introdução
O “IPFSC” (Instituto Pobres Filhas de São Caetano) é uma casa de religiosas de vida-
ativa, pertencentes a esta Congregação italiana, fundada em 1884, em Pancaliéri, na Itália,
onde possui sua sede localizada na cidade de Turim. Em Cândido Mota o convento está
localizado na Rua São Caetano, esquina com a Rua Sebastião Leite, no centro da cidade de
Cândido Mota, interior do estado de São Paulo.
Entendemos mulheres consagradas como atores sociais que estão presentes em grande
parte da história da Igreja (SALISBURY, 1994). Elas tiveram grande influência no próprio
processo de formação da Igreja Católica – suas bases teológicas e sacramentais/dogmáticas –
e também na formação da sociedade brasileira, por meio da prestação de serviços
asistencialistas e da ação católica missionaria (BIDEGAIN, 1993; ALGRANDI, 1993).
Existe no grupo estudado de mulheres religiosas católicas um ideal de vida a ser seguido e
desejado. Mas este ideal não permanece apenas no plano das ideias, as mulheres que participaram
desta pesquisa vivem na prática uma idealização de vida mais santificada aos moldes institucionais da
Igreja Católica Apostólica Romana. Esse ideal de vida está no sentido prático. No esmaecer do
cotidiano é produzida uma sensação de que seus ideias estão sendo realizados e praticados através de
uma rotinização cotidiana à concretização por meio dos rituais.
O tema da pesquisa tem relativo apelo no campo dos estudos históricos. Riolando Azzi
(1979), por exemplo, elaborou extensos trabalhos que permitiram contextualizar a história dos
conventos femininos no Brasil. A historiadora Leila Mezan Algrandi (1994) em sua obra
“Honradas e devotas: mulheres da colônia”, propôs lançar os olhos para a condição de
religiosas durante o período do Brasil colobial e na formação dos conventos e recolhimentos
do sudeste do país.
Porém, quando consideramos os aspectos sociológicos e antropológicos, observamos
que o referido tema de estudo – religiosas católicas consagradas –, ainda é frequentemente
desprezado como objeto de investigação, possivelmente porque as mesmas não compõem a
hierarquia da Igreja (Conf. FERNANDES, 2010, p. 24).
Maria José Rosado Nunes (1985) é uma das pesquisadoras das Ciências da Religião
que inaugurou esse tipo de análise no Brasil ao investigar a modernização da vida religiosa
feminina catalisada por um determinado estilo de opção religiosa: as freiras inseridas nos
meios populares. A autora faz uma análise institucional, sob o ponto de vista das mulheres
freiras, revelando, de modo crítico, uma intrincada teia de relações. E, ainda, evidencia as
influências da Teologia da Libertação em seus discursos, revelando a emergencia de auto
crítica, institucional e religiosa que abarcavam os aspectos históricos e políticos nas mudanças
sociais durante os anos 60, 70 e 80 no Brasil. É neste período, partir dos anos 60 do século
XX que italianas consagradas foram enviadas ao Brasil para missões, inserindo-se em bairros
periféricos de regiões pobres, dedicando-se à evangelização e aos trabalhos de educação
informal e de pastoral popular.
A socióloga e freira Maria Valéria Rezende (1999), em sua obra “A Vida Rompendo
Muros: Carisma e Instituição”, analisou comunidades de religiosas inseridas nos meios
populares na região Nordeste. A autora trabalhou com a abordagem weberiana das conexões
de sentido como motivadora para o ingresso na vida religiosa, e defende a existência de uma
tensão entre carisma e instituição. Um trabalho antropológico relevante foi realizado por
Mirian Grossi (1990), que abordou as formas de construção da identidade das religiosas
residentes em conventos da região Sul do Brasil, provenientes de famílias camponesas.
No caso específico desta pesquisa, todas as referências bibliográficas citadas sobre
freiras somam-se à afirmativa de que as religiosas são rigorosamente treinadas para não terem
história pessoal ou comunitária (ALGRANDI, 1994). Esse fator, segundo a feminista e
historiadora da religião Ana Maria Bidegain (1996) tem sido objeto de pesquisa histórica e
sociológica, em que a incorporação da categoria de gênero, cruzada com as de classe social e
etnia, não são úteis apenas para a elaboração da história das religiões, mas também para a
compreensão da historiografia invisível das mulheres nas religiões e suas relações com todas
as formas de estruturação do poder.
Metodologia
criação das classes de idade, das etapas de vida e dos conflitos de geração apresentados com
mais amplitude.
As mais novas, que estão passando pelo período de formação, apresentaram maiores
dificuldades para abordar temas relacionados à Igreja, à formação religiosa e a algumas
deliberações do magistério eclesiástico. Essa dificuldade pode representar uma desigualdade
quanto ao acesso a informações na etapa de formação da mulher que deseja ser freira.
Tais notas etnográficas iniciais ainda necessitam de mais análises para a produção
final das conclusões da pesquisa, mas é possível chegar a conclusões preliminares ou, pelo
menos, a hipóteses fundamentadas a respeito do lugar que a vida religiosa feminina ativa
ocupa na Igreja Católica, sua valorização e conservação pela mesma, mas, particularmente, na
Congregação Pobres Filhas de São Caetano no convento em Cândido Mota, num contexto
histórico e nacional onde proliferam vocações nas chamadas Novas Comunidades (conf.
CARRANZA e MARIZ, 2009).
Através da observação das relações estreitas entre as formas de existência dessas
mulheres, as tomadas de posições estabelecidas no processo de ingresso à instituição, suas
trajetórias de sentidos de vidas numa instituição religiosa tradicional, que possui marcas
institucionais e de conduta direcionadas ao feminino com longa permanência na história do
cristianismo, como reações dotadas de sentido. O chamado e a construção deste ultrapassa a
questão celibatária, é sentido de vida.
sentimento ambivalente que sentia ao observar a experiência de vida das mulheres com as
quais convivia, demonstrando que sua escolha pela vida religiosa foi uma tentativa de valer
por si mesma e não pelos serviços ou funções femininas que pudesse desempenhar como
esposa em uma família. A teóloga diz ser bastante contraditório que uma mulher, como ela
própria, busque liberdade dentro de uma estrutura patriarcal, machista e conservadora como a
Igreja Católica.
Gebara entrou na vida religiosa em 1967, quando tinha 22 anos. Sua interpretação da
condição das mulheres dentro da Igreja é particularmente expressiva. Nos anos noventa,
Gebara lecionava no Instituto de Teologia do Recife e numa atitude de grande rebeldia, ousou
desafiar publicamente preceitos católicos considerados obsoletos em determinadas
circunstâncias sociais. Pronunciou-se em relação ao aborto, defendeu o direito das mulheres
ao próprio corpo, até sua dissolução decretada pelo Vaticano em 1999, impondo à Gebara um
longo período de silêncio.
Desde então, dedica-se principalmente a escritos, cursos e palestras sobre
hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e aos fundamentos
2
A autora referida é freira e teóloga feminista. Uma religiosa da Congregação “Irmãs de Nossa Senhora
Cônegas de Santo Agostinho” de origem francesa. Atualmente a Congregação está presente em vários países
como: França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Vietnã, Hong Kong e na América Latina, no Brasil e México. Gebara
é uma das expoentes da Teologia Feminista brasileira. Filha de pais libaneses e sírios. Vive há décadas em
Recife, numa vida de “inserção” no meio popular. Participou intensamente ao lado de Dom Hélder Câmara, da
organização das Comunidades Eclesiais de Base e da elaboração da Teologia da Libertação.
Semelhante situação foi observada em entrevista que realizei com Irmã Rosa (66 anos)
na sede da Congregação em Turim, Itália. Sua entrada para o convento Pobres Filhas de São
Caetano deu-se, entre outras coisas, como uma forma de encontrar a liberdade que não
experimentaria se viesse a se casar com seu namorado à época:
Eu me submeter a um homem? Eu não. Eu não quis isso para mim. Aqui, eu
encontrei a minha liberdade. Aqui, eu sou livre. (Rosa, 66, freira brasileira
de votos perpétuos).
[...] enquanto mulher, está-lhe vedado do sexo feminino, não poderá pensar
que é imagem daquele Deus que vê representado apenas no masculino.
Assim, quando reza a um Deus que interiorizou no masculino e do qual não
tem disponível quaisquer outras representação, tem, consciente ou
inconscientemente, de se ver, como disse Simone de Beouvoir, como a
‘alteridade’ e como ‘o segundo sexo’. (HENRIQUES, 2011, p. 30).
Em entrevista, Irmã Graça (64 anos) comentou sobre a sua própria experiência,
quando morou na comunidade religiosa do instituto localizada no norte de Minas Gerais,
ponderando o que, para ela, justifica o posicionamento do clero em relação à possibilidade de
ordenação de mulheres na Igreja:
É eles lá e nós aqui. Mas, quando eles precisam de ajuda nós ajudamos sim,
na paróquia e com participação em celebrações. Lá em Minas que faltam
mais padres, aí as Irmãs trabalham muito; mas sabe o que eu acho que é?
Dor de cotovelo eles não deixarem as Irmãs celebram a missa também.
(Graça, 64, brasileira, freira de votos perpétuos).
Conforme demonstra Pierre Bourdieu (2007, p. 71), em sua análise sobre o poder
político e o poder religioso, o efeito da “absolutização do relativo e de legitimação do
arbitrário” ocorre,
[...], sobretudo, pela imposição de um modo de pensamento hierárquico que,
por reconhecer a existência de pontos privilegiados tanto no espaço cósmico
como no espaço político, “naturaliza” (Aristóteles costumava referir-se a
“lugares naturais”) as relações de ordem (BOURDIEU, 2007, p. 71).
Nesse contexto, Henriques (2011) sugere pensar naquilo que qualquer mulher tem à
sua disposição como modelo direto no horizonte religioso. Como primeiro modelo, ser santa,
ter o horizonte partilhado com os homens e ter reservado para a sua situação, enquanto
mulher, duas hipóteses específicas: ser uma prostituta arrependida, como Madalena ou ser
uma mãe sofredora, como a Virgem Maria. Nessa mesma linha de reflexão, outra teóloga,
Esperanza Bautista (1993), chega a problematizar a condição feminina como eterna
infantilidade:
“[...] hace que la mujer se sienta em uma condición de eterna infantilidad,
impotente y em exceso dependient; y Le hace desconfiar de poder llegar
alguna vez a autorealizarse, de poder conseguir la autonomia, la liberdad y la
responsabilidad que son imprescindibles para alçanzar esse respecto de sí
misma que es tan necesario para lograr uma vida adulta y plenamente
Cristiana” (BAUTISTA, 1993, p. 111).
Considerações finais
Referências
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Boitempo, 2014.
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2, Petrópolis, RJ: Vozes, 1979.
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crescem? In: CARRANZA, Brenda; MARIZ, Cecília e CAMURÇA, Marcelo (org.). Novas
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GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. São Paulo:
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Estudos Feministas. Florianópolis: 14 (1); 336, jan.-abr, 2006.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2004.
O espaço composto através da lógica do vigiar e punir divino nos discursos Cristãos
Fundamentalistas das Lideranças Religiosa das Igrejas Evangélicas de
Ponta Grossa, PR
Adriana Gelinski1
Resumo: A presente reflexão está norteado pela seguinte questão central: como o espaço
compõe a lógica do vigiar e punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das
lideranças religiosas das igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR? Os caminhos estabelecidos
de reflexão buscam identificar como as experiências espaciais são ditadas pelo discurso
religioso das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR.
Identificar as compreensões de uma lógica vigiar e punir divino das lideranças religiosas das
primeiras Igrejas Evangélicas de Ponta Grossa, PR. E compreender como se estruturam as
perspectivas teológicas das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta
Grossa, PR. Este trabalho é resultado da vivência em Igrejas Evangélicas nas cidades de
Carambeí, Curitiba e Maringá no estado do Paraná. Vivências e pesquisas desenvolvidas entre
os anos de 2012 a 2017. Além da realização de quatro entrevistas com lideranças de Igrejas
Evangélicas do município de Ponta Grossa, PR no ano de 2017. Evidenciou-se que nas
pregações, as lideranças religiosas tanto da igreja como as lideranças dos jovens pautavam
suas falas em 'ser exemplo' para as outras pessoas, para se vigiar constantemente, pois o
divino tudo vê e o pecado estava nas músicas, nas práticas e nos espaços do ‘mundo’. Assim
ao vivenciar práticas entendidas como desagradáveis aos olhos do divino estariam sujeitas a
punição, deixando assim de ser ‘abençoados’.
1
Bolsita técnica Centro Tecnológico de Pesquisa em Ciências Humanas - CETEP e Pesquisadora do Grupo de
Estudos Territoriais - GETE da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR - UEPG; Mestra em Geografia,
Bacharel e graduanda em Licenciatura em Geografia pela UEPG; drycagelinski@gmail.com.
Introdução
A presente reflexão está norteado pela seguinte questão central: como o espaço
compõe a lógica do vigiar e punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das
lideranças religiosas das igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR? Os caminhos estabelecidos
de reflexão buscam identificar como as experiências espaciais são ditadas pelo discurso
religioso das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR.
Identificar as compreensões de uma lógica vigiar e punir divino das lideranças religiosas das
primeiras Igrejas Evangélicas de Ponta Grossa, PR. E compreender como se estruturam as
perspectivas teológicas das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta
Grossa, PR.
As questões foram estabelecidas após a vivência em igrejas evangélicas nas cidades de
Carambeí, Curitiba e Maringá, as quais resultaram em duas pesquisas: Trabalho de Conclusão
de Curso e Dissertação de mestrado. Durante os momentos religiosos, conversas e entrevistas
com as pessoas das comunidades religiosas, os discursos em relação às práticas, vivências e
os espaços frequentados eram fundamentados em textos bíblicos. Em suas pregações, as
lideranças religiosas tanto da igreja como as lideranças dos jovens pautavam suas falas em 'ser
exemplo' para as outras pessoas, para se vigiar constantemente, pois o divino tudo vê e o
pecado estava nas músicas, nas práticas e nos espaços do ‘mundo’. Assim ao vivenciar
práticas entendidas como desagradáveis aos olhos do divino estariam sujeitos a punição,
deixando assim de ser ‘abençoados’.
Semelhantemente evidenciou-se no campo exploratório que tais pensamentos estão
baseados em quatro pressupostos: (1) Deus existe, (2) È onipresente e onipotente, (3) Se
revela através da Bíblia, pois a Bíblia é sua revelação, e (4) este evangelho é divulgado aos 4
cantos da Terra por pessoas que são Ungidas do Senhor [nunca toque em um ungido do
senhor]. Tudo isto tem lastro no texto que é a revelação do ‘Todo Poderoso’. É nesse contexto
que nasce a inquietação em compreender as noções de espaços sagrados e profanos, de
práticas aceitáveis e não aceitáveis. Indo além compreender como o espaço pode compor uma
lógica e dentro da religiosidade fundamentalista é uma lógica que vigia e pune. Pois o divino
é onisciente, onipresente e onipotente. Além disso, esta compreensão tem relação com
algumas espacialidades especificas, as quais podem ser compreendidas como licitas e ilícitas,
segundo Paulo todas as coisas são licitas, porém nem todas convém.
Ademais através do o levantamento realizado no banco de dados de artigos do Grupo
de Estudos Territoriais (GETE) no dia 19/07/2016, onde foram investigados 15.568 artigos de
Espaço, discurso religioso e a noção de um ser divino capaz de vigiar, abençoar e\ou
punir.
O Panóptico assim “pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar
o comportamento, treinar ou reiterar” práticas e concepções (FOUCAULT, 2014 [1975],
p.199). Logo, este modelo nas mais variadas aplicações, contribui para o aprimoramento do
poder.
De acordo com o autor, não é necessário à utilização de força física para que as
pessoas cumpram as regras, as doutrinas e as funções estabelecidas por este modelo: nas
escolas o bom comportamento, nos hospitais psiquiátricos a calmaria e nas Igrejas o
cumprimento de um conjunto de regras, abdicações e vivências espaciais. Por sua vez, este
modelo não esta baseado somente em relações de soberania, mas sim nas relações de
disciplina (FOUCAULT,2014 [1975]).
Neste sentido, a figura pastoral esta encarregada de zelar pela disciplina e atitudes dos
membros da sua Igreja. O pastor desempenha a função de ter o conhecimento das ações e dos
pensamentos dos membros da sua Igreja, é ele quem tem o poder de ajuizar sobre os assuntos
cotidianos dos membros. Tem-se assim, a vigilância constante das práticas e das vivencias
espaciais por parte do pastor, isto tudo em nome da salvação. Como evidenciado na fala que
segue: Por que creio que nós pastores viemos para cuidar e orientar nossas ovelhas, é nossa
aqui missão buscar a nossa salvação e a delas. Passar a palavra, o que agrada os olhos de
Deus, os desígnios né. (Entrevista realizada com a Liderança Religiosa da Primeira Igreja
Presbiteriana de Ponta Grossa, em Ponta Grossa no dia 04 de abril de 2017).
Desta forma, a figura do pastor é a mais importante dentro da espacialidade Igreja, o
qual é visto como mestre, ser sagrado. Pois, acredita-se que é uma pessoa enviada por Deus,
isto é, Deus fala através dessa pessoa. Ela é quem passa a verdade das escrituras e dos
mandamentos, bem como é ela que contribui para direcionar as práticas e as vivencias
espaciais que ‘agradam’ a deus ou não.
Considerações Finais.
A presente reflexão evidenciou como o espaço contribui para uma lógica do vigiar e
punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das lideranças religiosas das Igrejas
Evangélicas de Ponta Grossa, PR. Ademais como a sensação de estar sendo observadx
diariamente potencializa a noção de práticas aceitáveis e não aceitáveis, podendo assim ser
abençoadx ou punidx.
Pensando assim, a relação entre pastor e comunidade religiosa é fortalecida pelo elo de
obediência e disciplina, dá-se primeiro pela crença que o pastor é um representante de Deus,
ou seja, é uma pessoa abençoada e imune a erros. E segundo, a crença que ambos (membro e
pastor) partilham verdades e uma delas é a crença da salvação. “È nesse sentido que a
salvação mesmo que nas suas formas seculares é uma obrigação que está indexada á presença
de um outro”. (LEME, 2012, p. 31). Para tanto, a relação dos membros com o pastor é de
confiança, tendo como base a prática de confidenciar suas vivencias, questionamentos e
conflitos internos e externos.
Nesse sentido, o poder pastoral é exercido, tal poder provém da figura hierárquica e do
papel que o pastor desempenha. Porém ambos membros e pastor creem em uma divindade
suprema, onipresente e onipotente. Desta forma pastor e membros sentem-se observados
diariamente, 24 horas por dia por uma divindade que pode abençoar ou punir de acordo com
as ações e espacialidades vivenciadas.
Evidenciou-se também que o discurso religioso faz-se presente em todas as
espacialidades e instâncias da vida do grupo pesquisado (membros LGBT da ICM-Maringá e
para os membros gays da IEA-Curitiba) como evidenciado nas pesquisas anteriores. Tal
discurso revela-se como um ‘agente’ diretamente associado ao funcionamento do mecanismo
de gênero, justificando e reiterando assim as noções normativas e binárias de gênero.
Portanto, o discurso religioso conecta-se e reforça outros discursos formando assim uma rede
entre os discursos que se interligam para defender e reproduzir uma heterossexualidade
compulsória.
Referências
______. Pelo Espaço: Uma nova Política da Espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008.
Samira El Adass1
Karina de Toledo Araújo2
Introdução
1
Universidade Estadual de Londrina - UEL; Estudante de graduação Educação Física - licenciatura;
sami.eladass@gmail.com
2
Orientadora.Universidade Estadual de Londrina - UEL; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br
O cenário atual é marcado por algumas mudanças no que diz a respeito das
representações de sexualidade e identidades de gênero. Ocorrendo uma constante
transformação na maneira de pensar conceitos relacionados a comportamentos femininos e
masculinos, e buscando ter novos olhares sobre o que é considerado natural e construído.
apesar dos avanços da última década e dos marcos normativos, a formação inicial docente
segue incorporando poucas as discussões referentes ao gênero e à sexualidade.
A maneira com que a sociedade vem se organizando diante a questões relacionadas à
sexualidade e gênero, é coerente propor alguns questionamentos, reflexões e esclarecimentos
de alguns conceitos, para que seja evitado qualquer tipo de intolerância. Ao tratar destas
questões é preciso ter a clareza do que cada termo significa e qual a sua implicação na
sociedade, e de que maneira esses conceitos influenciam na organização política, social e
educacional de um determinado lugar. Com a clareza de que alguns conceitos
descontextualizados histórico e culturalmente perdem o sentido. A naturalização de condutas
sociais construídas por meio de um processo histórico-cultural da interrelação do sexo e com
a identidade de gênero influenciou e continua a influenciar a organização social.
Entretanto e conforme a Apostila de Gênero e Diversidade na Escola (2009), gênero
refere-se à construção social do sexo anatômico, significa que homens e mulheres são
produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos. Segundo Louro
(1997), a complexidade do conceito de gênero compreende que que paralelamente à
existência da opressão, a sociedade produz formas não hegemônicas de pensar, agir e ser.
As representações sociais de homens e mulheres são decorrentes de rótulos que a
sociedade constrói com o decorrer do processo histórico cultural. Sendo designados papéis
sociais que cada um deve conter em uma sociedade, e a partir do momento que uma criança
nasce já possui um papel pré-determinado a seguir, tendo que se engajar em uma função
social se for menina e em outra função social se for menino. Portanto, houve desta maneira a
naturalização desses processos construídos históricos, sociais e culturalmente.
Segundo o Caderno SECAD (HENRIQUES, 2007), no Brasil ocorre o
fortalecimento dos movimentos feministas por meio de repercussão do contexto internacional,
apoiando-se a legitimidade de direitos por meio dos direitos humanos. A formulação de
políticas educacionais inclusivas no âmbito educacional está amparada na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), que assegura o direito à escola a todas as
pessoas (brasileiras ou estrangeiras residentes no País), sem discriminar negativamente
singularidades ou características específicas de indivíduos ou grupos humanos.
Considerações Finais
Referências
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. – Rio de Janeiro, RJ,
2008.
SCOTT J.W. Gender and the politics of history (Revised edition). New York: Columbia
University Press; 1999
SEMINÁRIO de Educação em Sexualidade e Relações de Gênero na Formação Inicial
Docente no Ensino Superior. Relatório final. Brasília, DF: 2014. Publicado em 2014 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Resumo:
Os projetos de ensino desenvolvidos no Instituto Federal Farroupilha são mais uma das
possibilidades de ampliar as vivências dos seus discentes, visto que trabalha temáticas que
vão além das questões já problematizas nos projetos pedagógicos dos cursos. Os projetos
desenvolvidos no campus Santo Augusto –RS foram resultantes de demandas estudantis a
partir das aulas de Geografia no ano de 2016 e 2017. Em seu primeiro ano de estudos o
projeto foi intitulado “A situação das mulheres na contemporaneidade: reflexões entre
discentes e docentes no IFFarroupilha”, cujo objetivo foi o de analisar e refletir a situação das
mulheres na sociedade atual. A partir dessas análises, houve a conclusão da pouca presença de
mulheres em cargos eletivos nos municípios de origem dos/das estudantes e no Brasil,
portanto esta constatação levou há uma preocupação relacionada ao desenvolvimento de
políticas públicas que combatam a violência e as desigualdades entre os gêneros. O grupo de
estudos, assim, no de 2017, buscou estudar a presença das mulheres na política brasileira com
um enfoque à região noroeste do Rio Grande do Sul, tendo como objetivo propor uma
conscientização-participação dos/das estudantes no processo político brasileiro. Os
referenciais teóricos dos projetos envolveram os estudos de FREIRE (1980,1987 e 1996),
(VELEDA (2013) COLLING (2015), SANTOS (1987), LEON (1997), BATLIWALA (1997)
e SARDENBERG (2006).
Para realizar esses estudos foram trabalhados os movimentos e as movimentações das
mulheres destacando os direitos universais, a violência contra a mulher, as desigualdades na
divisão do trabalho, os diversos empoderamentos femininos e a presença das mulheres em
cargos eletivos. Estes temas foram abordados em diversas escalas geográficas (global,
nacional, regional e local) através de filmes, documentários, notícias jornalísticas e artigos
acadêmicos. A partir das reflexões e aprendizados no decorrer do projeto, houve intervenções
internas no Campus Santo Augusto, apresentações artísticas e palestras com a comunidade
acadêmica do campus, e também comunidade externa, entre outras atividades. Por fim, vale
destacar o crescimento pessoal de todos os participantes do grupo enquanto seres humanos
empáticos à problemática das mulheres no mundo e, em especial, no Brasil.
1
Instituto Federal Farroupilha; Professora; claudia.santos@iffarroupilha.edu.br
2
Instituto Federal Farroupilha; Técnica em Agropecuária; strossileticia@gmail.com
Introdução
Metodologia
O projeto, em forma de grupo de estudos, foi desenvolvido a partir de encontros
presenciais e a distância entre a professora coordenadora, professores colaboradores e os
estudantes do ensino médio técnico integrado. Nesses momentos, foram trabalhados os
movimentos e as movimentações das mulheres destacando os direitos universais, a violência
contra a mulher, as desigualdades na divisão do trabalho, os diversos empoderamentos
femininos e a presença das mulheres em cargos eletivos. Estes temas foram abordados em
diversas escalas geográficas (global, nacional, regional e local) através de filmes,
documentários, notícias jornalísticas e artigos acadêmicos. Houve a criação de uma página no
facebook para a interação dos participantes e postagem de materiais para embasamento nos
encontros presenciais, bem como a presença de duas bolsistas (uma no ano de 2016 e a outra
no ano de 2017) responsáveis por catalogar dados, pesquisar artigos e descrever as atividades.
Importante destacar que no ano de 2017 houve a opção por trabalhar apenas com a temática
relacionada à presença da mulher na política, pois a partir dos resultados do ano anterior o
grupo percebeu que muitas demandas das mulheres só seriam resolvidas no âmbito da
política, como por exemplo, a questão da legalização do aborto no Brasil que ainda é um tabu
para a nossa sociedade.
Resultados
Partindo-se do pressuposto que se faz necessário reconhecer os movimentos e as
movimentações históricas das lutas das mulheres pelo reconhecimento de suas cidadanias o
grupo começou os seus estudos a partir da exibição de um filme intitulado “ As sufragistas”.
Mesmo reconhecendo que o filme não abrange todas as nuances de uma discussão mais ampla
sobre o direito ao voto no mundo, julgou-se como um material interessante para iniciar as
discussões. Naquela sessão-debate foi importante perceber que a maioria dos e das estudantes
não sabia sobre aquela movimentação na história de luta das mulheres. E, após, a exibição do
filme, foi sugerido ao grupo a leitura do texto “ Feminismo, História e Poder” da professora
Celi Pinto3. O grupo reconheceu, inicialmente, uma certa dificuldade na leitura do texto,
porém, este propôs várias discussões e construções de várias intervenções na escola, ao ponto
de no ano de 2017 o grupo trabalhar apenas com a temática da presença da mulher na política.
Um dos exemplos de como esse texto apresentava discussões presentes no cotidiano
do grupo foi a proposta de uma das estudantes de apresentar dados e reflexões sobre “A
legalização do aborto”. Esse tema bastante polêmica para elas e eles se fez necessário repetir
no ano de 2017 quando se propôs discutir a presença da mulher na política. Percebíamos
durante a construção do grupo que essa discussão era quase um tabu e que existia muita
discordância, principalmente entre as meninas mais religiosas.
Além dessas discussões, foi trabalhado uma crônica do Duvuvier “ É menina” e a
exibição do documentário “It’s a Girl”. Este documentário sensibilizou bastante o grupo e a
ideia foi promover reflexões acerca da situação das mulheres em outros lugares no mundo. O
documentário em si propõe uma reflexão muito impactante sobre o direito à vida das
mulheres chinesas e indianas, mas a questão que a coordenadora pensou para dar continuidade
às discussões foi: e no Brasil como se desenrolou a questão da cidadania da mulher brasileira?
Assim, foi sugerido a leitura do texto de Tânia Maria dos Santos sobre “A mulher nas
constituições brasileiras” e a coordenadora construiu uma aula expositiva sobre o tema.
O grupo também discutiu os limites do contexto social dos/nos lugares sobre certas
discussões através do filme “O Sorriso de Monalisa”. Este filme apresentou que nem sempre
as nossas discussões trariam rebatimentos reflexivos, mas poderia existir, inclusive, algumas
proibições de nossas ações.
Após, a essa temática, foi ensinado ao grupo como pesquisar as leis do nosso país no
site do planalto.gov, e, assim, o grupo leu a Lei Maria da Penha, assistiu um mini
documentário sobre a vida dela e propôs que estava “na hora de aparecer na escola”. O grupo
que ficava apenas funcionando dentro de uma sala, a partir de agosto de 2016, começou a
aparecer através de intervenções provocativas e informativas na/para a escola.
3
O texto é dividido em duas partes: a primeira parte a autora propõe um histórico das lutas das mulheres no
mundo e no Brasil e a segunda parte demonstra a importância da mulher na política.
4
Esse foi cantinho foi interessante porque muitas trabalhadoras terceirizadas da limpeza vieram conversar com
a coordenadora e diziam o quão era importante era destacar que estamos em todos os lugares.
Para finalizar o primeiro ano de estudos foi realizada uma apresentação para todos e
todas do campus, no dia 8 de março de 2017. Nessa apresentação, houve uma encenação
musical apresentada pelas estudantes ao som da música Triste, Louca ou Má –da banda
Francisco El Hombre (ver figura 5) e, logo, após a coordenadora ministrou uma palestra sobre
as lutas feministas, conceitos relacionados ao empoderamento feminino e as pesquisas
realizadas pelo grupo no decorrer do ano.
5
As saídas de algumas estudantes foram relacionadas às proibições familiares, pois duas famílias foram contra
os estudos realizados no grupo e as outras relacionadas à entrada de estudantes no 3ºano e terem direcionado
seus tempos para o estudo de vestibulares.
Também é preciso destacar que durante os dois anos de realização dos estudos
ocorreram “atos de resistência” por parte dos participantes e de estudantes “simpatizantes” da
causa dentro do campus Santo Augusto, desse modo, podemos concluir que houve uma
expansão do objetivo do projeto, pois resistir e lutar por um mundo menos preconceituoso
para todas, todos e todes se deu de forma coletiva na escola.
Por fim, como forma de encerramento do projeto, houve a apresentação dos
resultados dos estudos no ano de 2018 sobre a temática da mulher na política. Para tanto, uma
estudante (não participante do projeto) se propôs a cantar “O bêbado e o equilibrista” para
abrir a palestra “Mulheres na política: um lugar polêmico”, proferida pela coordenadora do
grupo e a bolsista Letícia Strossi, e, ao fim, cada participante deu seu depoimento sobre sua
experiência no grupo.
Conclusão: Não é porque somos de cidades pequenas é que precisamos ter mentes
pequenas!
Durante os dois anos do projeto o grupo foi se constituído como uma referência e
resistência dentro campus Santo Augusto no Instituto Federal Farroupilha, pois é sabido que a
escola não é um espaço distante do contexto social. E, infelizmente, o nosso país apresenta
dados alarmantes de assassinatos relacionados às mulheres e outros grupos minoritários. Bem,
como vem vivenciado um período bastante conservador com alusões a um movimento
chamado “Escola sem partido”, que surge em 2004, mas que ganha destaque nos anos de
2014-2015. Portanto, Santo Augusto, um município do Rio Grande do Sul, não estaria
descolado dessa realidade, logo os conflitos inerentes ao projeto de ensino construído, ao
mesmo tempo que ganhava força, também era visto com desconfiança por professores(as) e
alguns pais.
Durante os dois anos de desenvolvimento do projeto foi notável o amadurecimento
dos participantes, incluindo, também, a coordenadora professora e os ganhos que foram além
das discussões. Oxs estudantes envolvidos durante o processo aprenderam novas formas de
estudar e no princípio de seleção de dados as reflexões eram mais apuradas e cuidadosas. No
início do grupo elxs pouco se posicionavam, pouco faziam propostas, porém já no segundo
ano coordenavam e modificavam os encontros. Ao ponto de no ano de 2018, uma das
bolsistas organizar e coordenar a palestra juntamente com a professora para todes os
estudantes do campus. Também é preciso citar que durante o ano de 2017 duas estudantes
organizaram uma intervenção, em uma das turmas do curso técnico em informática, devido a
um caso de memes sexistas e machistas que ocorreu na sala. Como a questão foi vista como
uma brincadeira entre os estudantes o grupo fez uma proposta à coordenação do curso:
realizar uma atividade reflexiva sobre a discussão dos memes na nossa sociedade. Acredita-se
que a fase da adolescência é uma fase de construções, portanto ao invés de usarmos de
recursos tradicionais como advertências, suspensões, foi proposto uma intervenção
informativa-reflexiva.
No processo de finalização do projeto uma das falas mais marcantes foi a da
estudante Letícia Strossi quando ao explicar a importância do projeto e, principalmente, das
discussões relacionadas à presença das mulheres na política, ela deixa bem claro que podemos
viver em cidades pequenas, porém não precisamos ter “mentes pequenas”. Esclarece que não
necessariamente precisamos nos envolver com partidos políticos, mas que devemos,
principalmente aqueles que defendem mundos menos desiguais, ocupar os espaços de
representação como, por exemplo, as lideranças estudantis.
Ficou claro que ao final do projeto o conceito proposto por Leon (2001) sobre o
empoderamento foi construído no grupo “ empoderarse significa que las personas adquieren
el control de sus vidas, logran la habilidad de hacer cosas y de definir sus propias agendas”
(p.94 e 95). E que toda a construção não se deu no campo do individual, mas nos processos
coletivos de construções entre os participantes do grupo e a escola.
Muitos dos resultados jamais poderemos saber com nitidez e clareza, pois os
rebatimentos e reflexões não transpareceram no percurso do projeto. Mas, as necessidades de
discussões relacionadas às questões de gênero são latentes e importantes na educação básica.
Referências
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20na%20Perspectiva%20Feminista.pdf>. Acesso em: 15.06.2016.
Perspectivas de futuro sob uma ótica de gênero entre beneficiários/as do Bolsa Família
no ensino médio
Luís Gabriel Ramiro Costa1
Silvana Mariano2
Resumo: O Programa Bolsa Família, criado em 2003, tem como propósito combater a pobreza
e reduzir a desigualdade social. Para tanto, opera com objetivos para o alívio imediato da
pobreza, a curto prazo, com transferência de renda às famílias, e, a longo prazo, com o estímulo
ao acesso a serviços públicos via condicionalidades, visando, com isto, a quebra do ciclo
intergeracional da pobreza. Os/as jovens de 16 a 17 anos foram incluídos como público
beneficiário do Programa em 2007, a fim de diminuir o abandono e evasão escolares,
oferecendo maiores oportunidades com acesso à educação. Muito se discute a relação entre
juventude e educação no Brasil, destacando problemas como distorção idade-série, desinteresse
e evasão. Por outro lado, estudos sobre gênero e educação, bem como sobre mulher e ciência,
exploram a questão sobre as interferências dos padrões sociais de gênero nas vivências e nos
percursos escolares de estudantes, de acordo com o sexo. O objetivo deste trabalho é
sistematizar as principais contribuições desses estudos, com vistas ao propósito, a posteriori,
de discutir as possíveis influências dos padrões sociais de gênero na configuração das
expectativas de futuro de jovens beneficiários do Programa Bolsa Família frequentando o
ensino médio regular.
Palavras chave: Programa Bolsa família; Educação; Gênero.
1
Universidade Estadual de Londrina; 7º semestre da graduação em Ciências Sociais; luis-gabriel47@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Sociologia; Professora do Departamento de Ciências Sociais e
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia; silvanamariano@yahoo.com.br
Introdução
A quantidade de matrículas no ensino médio nas escolas brasileiras se distribui com
vantagem numérica para as mulheres, sendo 4.117.158 de matrículas delas, diante de 3.813.226
de matrículas de pessoas do sexo masculino (INEP, 2018). Acrescenta-se, ainda, o fator de que
as mulheres com idade entre 15 e 17 anos têm menor taxa de distorção idade-série (série
conforme a idade), em comparação com os homens, sendo, respectivamente, 21% a 31,6%. Isso
se distribui também por cor, sendo que estudantes pretos e pardos (31,4%) têm uma maior
distorção do que brancos (18,9%) (IBGE, 2015). Verifica-se que o acesso à educação brasileira
aumentou significativamente em todos os níveis, porém, persistem problemas relativos às
desigualdades como as de raça, renda, gênero e região geográfica.
Nas últimas décadas, as políticas educacionais de acesso à educação reduziram
significativamente a evasão escolar e, neste caso, pode-se apontar também as contribuições do
Programa Bolsa família (PBF). Seu desenho, com focalização nas famílias em situação de
pobreza, supõe que as condicionalidades em educação, saúde e assistência social resultam na
promoção de condições necessárias para a chamada quebra do ciclo intergeracional da pobreza.
Deste modo, espera-se que as novas gerações terão melhores oportunidades que as anteriores,
principalmente pela via da educação (BRASIL, 2010).
Neste artigo, optamos por discutir a juventude3 como recurso conceitual para estudos
com jovens beneficiários/as do PBF em idade de ensino médio (15 a 17 anos). O propósito é
constituir um referencial teórico a partir do qual conduziremos, a posteriori, as análises dos
materiais empíricos já produzidos e em fase de organização.
Procedimentos metodológicos
Este trabalho, ao colocar como objetivo sistematizar os estudos sobre nosso tema, tem
como base a abordagem qualitativa. Em uma pesquisa qualitativa,
o pesquisador utiliza os insights e as informações provenientes da literatura enquanto
conhecimento sobre o contexto, utilizando-se dele para verificar afirmações e
observações a respeito de seu tema de pesquisa naqueles contextos. Ou o pesquisador
utiliza-o para compreender as diferenças em seu estudo antes e depois do processo
inicial de descoberta (FLICK, 2009, p.62).
3
Juventude é entendida por seu recorte etário composto por jovens de 15 a 29 anos, conforme estabelece o Estatuto
de Juventude (BRASIL, 2013). Esta faixa etária inclui a juventude presente no ensino médio, notadamente em
idade de 15 a 17 anos.
Termos sociológicos como origem social, meio social e grupo social estão
relacionados a causas gerais que a estatística utiliza para explicar o sucesso e o fracasso escolar
(LAHIRE, 1997). Essa concepção é salientada na pesquisa por Brandão (2000) quanto ao
cruzamento de dados e informações estatísticas.
Uma outra preocupação constante diz respeito aos instrumentos utilizados em
conformidade com o objeto de pesquisa. No caso do questionário, a função é “coletar gosto,
estilo de vida, costumes culturais e outros” (BRANDÃO, 2000). Os dados assim construídos
auxiliaram na elaboração do roteiro da entrevista qualitativa.
São nestes moldes que tomamos como caminho a realização da pesquisa com jovens
beneficiários/as do PBF na educação, selecionando instrumentos para entender suas estratégias
para o prolongamento da escolarização. Para a construção dos dados, a serem analisados em
outra oportunidade, fizemos uso de informações sobre as condicionalidades em educação,
produzidas por órgãos oficiais, bem como realizamos a aplicação de questionário e entrevistas
narrativas com estudantes no cotidiano escolar.
Ao apontar para jovens pobres, entramos no tema da relação com a pobreza e damos
atenção à existência de políticas públicas dirigidas a esse público. As políticas públicas para
juventude no Brasil estão fortemente focalizadas em jovens em situação de exclusão social ou
condições de vulnerabilidade. Tais políticas geralmente enfocam a juventude a partir de
concepções que a toma como problema, perigosa e violenta. Nota-se a criação de políticas com
objetivos de retirar os/as jovens da situação de risco e induzi-los a frequentar a escola ou cursos
de capacitação como um meio de para “ocupar” os jovens (SPOSITO; CORROCHANO, 2005).
A proposta de escolarizar a população em situação de pobreza por meio da instituição
de contrapartidas dos benefícios assistenciais, com a exigência de frequência escolar mínima,
está no desenho desses programas utilizados no Brasil desde a década de 1990. Esses programas
seguem ordenamento como o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) e a Constituição de 1988(BRASIL, 2010).
O PBF, criado em 2003, atua para reforçar o acesso de jovens beneficiários/as a esses
direitos, incluindo-os ou mantendo-os na escola, por pressupor que a maior escolaridade
propicia mais acesso a oportunidades (BRASIL, 2004). Nesse caso, as famílias, ao receberem
o benefício e cumprirem as condicionalidades, atuariam no sentido de promover a quebra do
ciclo intergeracional da pobreza. No entanto, existem muitos questionamentos sobre as
Tabela 1 – Taxa líquida de frequência no ensino médio entre a faixa etária de 15 a 17 anos
em 2013 a partir do censo escolar - Brasil
Situação Frequência
Beneficiários 62,60%
Não beneficiários 78,70%
Meta 85%
Fonte: Elaborado pelo próprio autor adaptado de Soares Neto et. al (2015).
4
Para mais informações sobre a condicionalidade em educação e a quebra do ciclo intergeracional da pobreza, ver
Pires (2013).
informações, etc. Essa teoria é questionada por Bourdieu com o conceito de habitus5 que está
relacionado à origem. Para estudantes pertencentes às camadas populares sua origem representa
deficiência de capitais, o que produz obstáculos nas trajetórias escolares (NOGUEIRA, 2013).
Para quem anseia o ingresso no ensino superior, as trajetórias escolares ao final do
ensino médio são marcadas por entraves decorrentes das desigualdades e obstáculos na
preparação com vistas a este objetivo. O ato de escolha do ensino superior é resultado de
caraterísticas sociais, perfil acadêmico, etnia, sexo e idade do estudante. Por seu caráter seletivo
e excludente, indivíduos de camadas médias e superiores da sociedade ingressam em cursos
mais prestigiados, enquanto os originários das camadas populares acessam cursos de menor
prestígio, conforme Bourdieu destacava no sistema francês (NOGUEIRA, 2013).
A discussão sobre a juventude na realidade brasileira é feita por Schwartzman (2016)
a respeito das capacidades de planejamento, organização, formulação de estratégias e controle
emocional. As influências das desigualdades escolares em relação à condição no sistema de
ensino fazem muitos alunos, provenientes das camadas populares, se sentirem sem escolhas. A
escolha pelo ensino superior muitas vezes pode ser algo distante, em função da condição do
sistema de ensino. Para esse autor, o ensino técnico6 seria uma alternativa viável, considerando
que nem todos alunos pobres de escola pública consegue uma vaga no ensino superior.
Esses aspectos, vistos por Bourdieu (2007) na França, ocorrem diante das
transformações na estrutura e aumento da escolaridade, o que afeta as competições por diplomas
e cargos e intensifica os processos que garantem a reprodução. A reprodução está relacionada
à origem social, isto é, o lugar de onde o agente vem exerce influência, ou determina, o acesso
a cargos de influência e, com a mudança na distribuição de cargos, os não “herdeiros” acabam
sendo vítimas da desvalorização dos diplomas, recorrendo, assim, às estratégias de curto e longo
prazo na escolarização.
Todavia, em meio a um futuro aberto dos/as sujeitos/as, podemos destacar as
estratégias para enfrentar a mudança, com jovens empenhados, diante das novas relações no
processo de produção e criação pessoal do futuro (LECCARDI, 2005). A despeito dos
obstáculos existentes, a expectativa de que maior escolarização representará melhor inserção
5
Segundo Bourdieu (2007, p.97) é um princípio gerador de práticas, ou seja, ao habitus de classe, como forma
incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe;”
6
Cabe apontar aqui a presença de um debate a respeito do ensino técnico apontado por Bourdieu (2007), diante da
exclusão em massa de crianças das classes populares e médias. No Brasil, ocorre tal opção é vista pela sociedade
como de segunda qualidade, para pobres e operários, e, por isso mesmo, desvalorizada pelos que buscam a
educação como via de ascensão e mobilidade social. Dayrell (2013) aponta que o ensino técnico ou profissional é
pouco citado por jovens em suas pesquisas em virtude de poucas opções existente, além da dificuldade de acesso
a escolas técnicas federais que tem processo seletivo.
no mundo trabalho é o que motiva as famílias dos segmentos mais pobres a incentivar crianças
e jovens a continuar os estudos.
De acordo com Lahire (1997), os/as sujeitos/as dependem da mobilização familiar em
torno do projeto escolar. Cabe lembrar aqui o que Carvalho, Senkevics e Loges (2016) destacam
sobre a influência da família que acaba diferenciando os papéis sociais de meninos e meninas,
papéis esses reforçados pela escola e pela estrutura social, ilustrando com isso a lógica da
desigualdade multiplicada.
Ao tratarmos das desigualdades que envolvem os/as jovens na sociedade, destacam-se
as desigualdades de gênero e de raça, com forte influência no cotidiano escolar, fenômeno esse
também induzido pela heterogeneidade gerada pela expansão das matrículas no ensino médio.
A teoria de habitus produzida por Bourdieu (2007), apesar de ser importante para parte das
explicações sobre o processo de escolha escolar e a posição do indivíduo no espaço social,
acaba desconsiderando as ações múltiplas individuais em contato com muitas instituições
sociais (NOGUEIRA, 2013).
Lahire (2002;1997) discute os prolongamentos dos estudos entre estudantes das
camadas populares e aponta que Bourdieu desconsidera os atores do jogo, frente ao conceito de
habitus. Por outro lado, não podemos deixar de apontar que as dificuldades estruturais estão
presentes no caso da juventude brasileira.
Ao pensar nas desigualdades, chegamos a um outro ponto que concerne aos estudos
na sociologia da educação, com fortes influências da perspectiva bourdiesiana. Desde quando
Bourdieu e Passeron (1992), na década de 1960, constataram que a escola reproduz
desigualdades sociais, constituíram um paradigma pautado na violência simbólica. Essa
situação refere-se à imposição de um poder cultural das classes dominantes no espaço social
que concentram maior quantidade de capital cultural, adquirido principalmente pela família,
com transmissão desigual. É desigual pelo fato de haver um resultado de que filhos oriundos
das classes populares teriam maiores condições ao fracasso escolar e o sistema escolar
constituiria uma legitimação dessa lógica.
Este debate acerca da escola é muito dissipado para explicar a desigualdade social e
passou a ter um papel importante nas pesquisas realizadas nesse campo. Para entender um
pouco da trajetória da sociologia da educação Carvalho, Senkevics e Loges (2016) apresentam
que raramente penetraram nas diferenças entre os sexos. Os/as autores/as apontam, com isso,
que a teoria de Bourdieu, ao examinar o processo de escolarização, deixou em aberto as
desigualdades de gênero.
Dubet (2001), por seu turno, pretende ampliar as análises de influência bourdesiana
tratando do fenômeno das desigualdades multiplicadas. Ao refletir sobre a justiça escolar, no
contexto francês, Dubet concede importância às transformações da sociedade, através da
ampliação da igualdade e da homogeneização, o que tem gerado, contraditoriamente,
desigualdades multiplicadas. O paradigma de classe não daria conta de explicar as
desigualdades multiplicadas. Para o autor (2001, p. 10):
A dominação já não se insere nas relações de classes concretas e estáveis. Os
problemas da estratificação e da mobilidade se destacam dos conflitos estruturais e a
análise das desigualdades não conduz a uma visão organizada e estruturada das
relações sociais. Do mesmo modo que as desigualdades são múltiplas, os registros da
dominação não são homogêneos, como deixa claro a teoria dos “capitais” de
Bourdieu.
produzir discursos para o controle da sexualidade, desenvolvendo um saber que exercia o poder
da sociedade sobre o sexo.
Como a ciência tem ligação com o saber, percebe-se a relação com a produção da
verdade, e a educação exerce esse papel através da pedagogia, apontada por Foucault (1988) na
presença de discursos que destacam a produção dessa verdade articulada ao controle. Percebe-
se, ainda, um poder relacionado à questão de gênero na educação quando pensada a realidade
de meninos e meninas na educação. Para Zago e Paixão (2013, p. 451),
o primeiro patamar é a diferença de escolarização entre as pessoas de sexo feminino
e as pessoas de sexo masculino, qual é o acesso das mulheres e dos homens aos
diferentes níveis de escolarização, qual o desempenho a que vêm tendo, em termos de
permanência na escola, de conclusão desses níveis de ensino, aquilo que eu já
coloquei, que as mulheres vêm demonstrando ter uma escolarização mais linear,
menos problemática, menos interrompida, e os rapazes, são os maiores vítimas dos
problemas escolares.
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2013.
Samira El Adass1
Karina Toledo de Araújo2
Resumo: Este relato de experiência tem como objetivo descrever algumas intervenções sobre
o ensino do conteúdo futsal e as relações de gênero nas aulas de Educação Física em uma
escola no município de Londrina- PR. O trabalho foi realizado durante o estágio
supervisionado no curso de Educação Física - licenciatura, com uma turma de com 30 alunos
entre 8 e 9 anos de idade que estudam no 3º ano do Ensino Fundamental I da Educação
Básica. Foram desenvolvidos quatro planos de aula e as intervenções pedagógicas sobre o
conteúdo Futsal. Todas as aulas tiveram como ponto de partida a discussão sobre a equidade
de direitos e o respeito à diversidade de gênero. Na primeira aula foi proposto que os
estudantes se separassem os times (aletoriamente e de forma livre) e jogassem o futsal; na
segunda intervenção separamos os times e misturamos meninos e meninas, os meninos
resistiram em jogar com as meninas, dizendo que elas eram “ruins” ou “elas não sabem jogar
porque futsal é coisa de menino”. Percebemos nesta experiência manifestações entre os alunos
que permeiam as relações desiguais de gênero baseadas em estereótipos e preconceitos nas
aulas de Educação Física.
Introdução
A educação no Brasil passou a ser direito efetivo de todos e todas a partir do início
do século XX, no entanto, isto não garante que as pessoas sejam tratadas da mesma forma e
que os direitos à educação seja pautada na equidade e no respeito às diferenças incluindo as
de gênero. Uma maneira de romper com essas desigualdades é inserir na escola a discussão da
temática gênero enquanto conteúdo de ensino e esteja presente nas práticas pedagógicas das
variadas áreas de conhecimento para que assim, seja possível possibilitarmos o entendimento
de todas as nuances que cercam as relações de gênero, abrindo caminho para reduzir as
violências identificadas no cotidiano escolar e na sociedade de maneira geral.
Entre as áreas de saber presente na escola, encontra-se a Educação Física responsável
pelo ensino das práticas corporais. Cabe ressaltar que e estas são geradoras de desigualdades
de gênero. A relevância da discussão da equidade de gênero nas aulas de Educação Física é
fundamental. Segundo Dornelles et al (2013), a equidade de gênero está na condição de
1
Universidade Estadual de Londrina - UEL; Estudante de graduação Educação Física - licenciatura;
sami.eladass@gmail.com
2
Orientadora - Universidade Estadual de Londrina - UEL; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br
Metodologia
Araújo (2015) destaca que o futebol é um dos símbolos identitários do Brasil pelo
símbolo cutural que a ele foi atribuído paulatinamente ao longo da nossa história do esporte
toma como orientação uma educação crítica que valorize as diferenças e possibilite a
autonomia de pensamento dos estudantes.
Neste sentido, para D’Elaqua, Souza e Araújo (2011), o estágio supervisionado
cumpre um papel importante na conciliação e transição para a escola, da qual os alunos
entram em contato direto com a realidade escolar, não fugindo essa do que são discutidos no
cotidiano nos demais componentes curriculares do curso de formação em Educação Física –
licenciatura.
jogadoras profissionais e de como elas podem ser “melhores” que os meninos, tudo depende
da prática do esporte no decorrer de sua vida.
Na terceira aula levamos os dados do questionário, sendo que mais da metade das
meninas responderam que se sentiam excluídas e o restante assinalou sentiam incluídas e
nenhuma colocou que jogavam com os mesmos direitos. Já os meninos, mais da metade
assinalou que sentiam jogando com os mesmos direitos, apenas um assinalou que se sentia
excluído e o restante incluído. Após dado o resultado para a turma, pedi que se dividissem em
equipes e novamente dividiram meninas e meninos. Propus a mudança de duas regras e que
no decorrer do jogo iriamos as inserindo. A primeira foi que os meninos só poderiam fazer gol
de cabeça e a segunda foi que toda vez que encostassem nas meninas seria pênalti. Com isso
as meninas que estavam perdendo viraram o jogo e ganharam com muita vantagem, os
meninos ficaram muito bravos, alguns até choraram.
No final da aula as meninas disseram ter gostado do jogo enquanto os meninos
inconformados dizendo que não valeu, pois elas foram favorecidas e que não tinham jogado
com os mesmos direitos. Explicamos que da mesma forma que os meninos se sentiram as
meninas se sentem na vida delas, pois são impossibilitadas de fazer determinadas atividades
por simplesmente ser menina e que se todos têm os mesmos direitos porque não escolhemos
as meninas para nosso time, porque as xingamos. Perguntamos também se era justo os
meninos que treinam futsal se juntar em um time e jogar contra as meninas que não treinam
em outro, se realmente teriam os mesmos direitos no jogo.
Na quarta aula retomamos as discussões anteriores, chegando a um acordo de que os
meninos que treinavam futsal em um time só e as regras favorecendo só as meninas eram
atitudes injustas, pedimos então para que escolhessem os times de forma que todos teriam os
mesmos direitos. O resultado foi que as equipes saíram todas mistas e no decorrer do jogo
parávamos e perguntávamos se todos já tinham cobrado a saída lateral, ou apenas um da
equipe que estava cobrando. Chegou a um ponto que não precisávamos mais atentar os
estudantes as atitudes tomadas, pois estavam jogando coletivamente, com os mesmos direitos.
No final da aula perguntamos qual foi a sensação, todos os estudantes gostaram e
sentiram estar jogando com os mesmos direitos, inclusive os atentei ao fato de que não
marcaram quantos gols fizeram, pois, a preocupação foi em jogar juntos e não apenas com o
resultado.
Discussões
sempre foram reconhecidos como conteúdos – muitas vezes exclusivo – das aulas de
Educação Física para os meninos; às meninas, jogos e brincadeiras infantis e entre as
modalidades esportivas podia-se encontrar o voleibol, o basquetebol e o handebol.
Encontramos essa mesma situação em nossa pesquisa quando os estudantes questionaram
durante as aulas sobre a participação das meninas na prática do futsal.
Considerações Finais
Assim como Araújo (2015) apresenta há avanços percebidos no que diz respeito à
transformação de pensamentos e comportamentos no que diz respeito à superação de ideias
preconceituosas e a procura de um distanciamento da naturalização arbitrária das práticas
sociais destinadas aos gêneros masculino e feminino. Há indícios de uma conscientização da
geração de jovens nesta segunda década do século XXI, sobre a diversidade social, do
respeito às diferenças e da luta pela equidade de direitos. Entretanto, o preconceito – herança
social – ainda é latente preponderantemente por conta dos estereótipos que as mulheres
adquirem ao praticar uma modalidade esportiva que é historicamente de hegemonia
masculina.
Cabe à escola, enquanto instituição social, educacional, política e cultural, uma
reestruturação de seu aparato curricular, pedagógico e da formação dos educadores; gestar,
com vistas a essas necessidades, a elaboração de conhecimentos, de reflexões, discussões e
transformações referentes às questões de gênero nos processos formativos dos estudantes,
para que possamos superar as desigualdades e os processos de violência social sofridos pelas
mulheres em suas práticas corporais na escola e fora dela (ARAÚJO, 2015).
Referências
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. IN:
Teoria e Educação. Porto Alegre, nº 2, p. 177-229, 1990.
1
Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina. Graduanda em Pedagogia pela
Faculdade Campos Elíseos – Campus Londrina. nathalia.turke@hotmail.com.
² Graduando em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina. Educador da disciplina de
Ciências da Natureza do Ciclo Intercultural de Iniciação Acadêmica para Estudantes Indígenas.
felipe.tsuzuki@outlook.com.
³ Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina. Professora da
Universidade Estadual de Londrina. virginiamaistro@yahoo.com.br.
Introdução
Mosé (2013) questiona as atuais perspectivas das propostas de ensino que envolvem
uma preparação para a vida e o exercício da cidadania, um ensino como um meio,
desconsiderando, indiretamente, o seu presente e o seu contexto. Logo, se a escola por meio
da educação lhe ensinará como viver e como praticar sua cidadania, o indivíduo ainda em
aprendizado não vive e nem pratica a sua cidadania. A falha no sistema educacional é
caracterizada pela não democratização desses espaços de ensino-aprendizagem, bem como a
ausência do diálogo, onde ainda rege o autoritarismo nas relações professores-estudantes,
apresentando-se inviável uma abordagem que estimule a criação, permanecendo apenas na
reprodução dos conceitos.
Os espaços de educação formal que se pautam nesses princípios, se assemelham aos
presídios ao constituírem metodologias e fins parecidos. Neste local, os estudantes são
silenciados e seus conhecimentos prévios desconsiderados, pois se valorizam os conteúdos
impostos e fragmentados. A partir desta análise, Mosé (2013) responsabiliza esse
distanciamento da escola com sociedade como uma barreira para as relações humanas, como
pode ser observado no trecho abaixo:
Essa falta de conexão da escola, tanto com a sociedade quanto consigo mesma, não é
apenas prejudicial para o desenvolvimento cognitivo dos alunos, que se dá pela
capacidade de fazer relações cada vez mais amplas e complexas, mas prejudica
também as relações humanas, a prática da justiça social, o exercício da cidadania,
implica diretamente o aumento do grau de angústia e solidão e impulsiona cada vez
mais ao consumo de produtos, de pessoas, de drogas lícitas e ilícitas. Participar da
sociedade, interferir em suas instâncias, construí-la, nos dá uma sensação de
pertencimento que nos fortalece e fortalece os acordos. Mas a escola foi se afastando
dessa continuidade e se baseando em um conhecimento dividido e abstrato. (MOSÉ,
2013, p. 51).
A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos
parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem
de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante
cotidianos escolares atuais, nos quais podemos perceber o quanto e como se está
tratando (e constituindo) as sexualidades dos sujeitos (LOURO, 1997, p. 81).
Embora Britzman (2000) afirme que o termo “educação sexual” esteja relacionada a
uma proposta de higienismo social, no qual compreende apenas uma visão biológica e
instrumental da sexualidade, neste trabalho esta terminologia apresenta um viés mais
abrangente que engloba uma perspectiva também social e histórica. Portanto, assemelha-se do
significado de “orientação sexual”, pois este termo diz respeito ao trabalho pedagógico
escolar de discussão da sexualidade (FURLANI, 2009).
Segundo Furlani (2003), a manutenção dessa educação fragmentada e que
desconsidera os/as estudantes no âmbito da educação sexual, resultará e perpetuará nos mitos,
tabus e preconceitos trazidos e reproduzidos pelos/as estudantes. Assim, Furlani (2003)
caracteriza os mitos sobre as sexualidades:
Mitos sexuais existem e podem ser compreendidos como concepções errôneas e/ou
inadequadas que podem surgir a partir de rumores, ou mesmo, através de uma
educação sexual pouco elaborada e crendices populares. Os tabus sexuais são
aspectos da sexualidade que a sociedade, de certa forma, não aceita, como a
homossexualidade, a masturbação, a iniciação sexual da mulher antes do casamento,
etc. Ainda hoje, quando se fala sobre sexo e sexualidade, muitos remetem a valores
e crenças revestidas de preconceitos, tabus, mitos e estereótipos. (FURLANI, 2003).
Metodologia
As aulas práticas foram desenvolvidas nas aulas de Ciências de turmas do Ensino
Fundamental II (sexto ao novo ano), em escolas da rede pública na cidade de Londrina/PR.
Para tal, foram utilizadas dinâmicas com os seguintes temas: educação sexual, gênero,
preconceitos, bullying/exclusão, estereótipos e respeito.
Dinâmica 01: Educação Sexual
Após ser explicado o significado de Educação Sexual, foram abordados temas como
higiene pessoal, menstruação, gravidez precoce e prevenção. Foram levados para a sala de
aula diferentes tipos de absorventes femininos (externo, interno e coletor menstrual), bem
como os métodos contraceptivos (diafragma, camisinha masculina e feminina, DIU, anel
vaginal, adesivo, pílula e anticoncepcional injetável) e de emergência (pílula do dia seguinte),
sendo explicada a maneira de utilizá-los e eficácia.
Faz-se importante salientar que ao falar sobre sexualidade, além de abordar os
assuntos citados inicialmente, devem-se incluir temas como gênero, orientação sexual,
masturbação, pedofilia, estupro, virgindade, pornografia, feminismo e machismo, orgasmo,
ejaculação, desempenho sexual, bem como auto-estima e sentimentos.
A oficina foi dada como finalizada ao esclarecer as dúvidas dos participantes, sobre
qualquer tema voltado à sexualidade, onde as indagações puderam ser feitas em voz alta ou
através de papéis em branco, em anônimo.
Dinâmica 02: Gênero
Inicialmente fez-se um diálogo sobre as diferenças existentes entre conceitos como
sexo, gênero e orientação sexual. Logo em seguida, esquematizou-se uma tabela no quadro,
com a separação “Menino X Menina”.
Os discentes foram convidados a categorizar coisas que imaginavam ser específicas
para meninas e coisas específicas para meninos, como características físicas, biológicas,
atitudes, objetos que os mesmos usariam no dia-a-dia, como cores, brinquedos, jogos, roupas
e assim por diante.
Após isto, todos tiveram a oportunidade de concordar ou discordar da separação feita,
no quadro, pelos colegas, argumentando sobre sua posição. Através desta atividade foi
possível desmistificar algumas ideias do que “é ser homem” e do que “é ser mulher”.
Dinâmica 03: Bullying/Exclusão
Foram confeccionados papéis com algumas características utilizadas ao julgar uma
pessoa sem conhecê-la, bem como modos de tratá-la por conta disso, como: “Sou confiável:
ouça-me”, “Sou arrogante: conteste o que eu digo”, “Sou chato, afaste-se de mim”, “Sou feio,
tire sarro de mim”, “Sou extrovertido, me dê um sorriso”, “Sou popular, faça-me um elogio” e
assim sucessivamente.
Os papéis foram fixados com fita crepe na testa de cada participante, os quais não
sabiam as características que estavam recebendo e, apenas através do que se podia ler nas
fichas dos colegas, seguiram o que a frase mandava fazer durante determinado tempo.
Ao final, foi feita uma discussão sobre como cada discente se sentiu ao ser tratado de
certa maneira e sobre os modos capazes de melhorar a forma de comportamento perante as
pessoas a sua volta.
Dinâmica 04: Respeito
Cada estudante encheu uma bexiga e a amarrou em seu tornozelo. Após o sinal da
professora, todos deveriam manter sua bexiga cheia, a fim de ganhar um prêmio ao final.
Rapidamente, um tentou estou estourar a bexiga do outro, terminando a dinâmica quando
apenas um possuía sua bexiga intacta. Foi conversado sobre como todos poderiam ter sido
presenteados, caso não houvessem tentado levar os colegas ao fracasso, visando a importância
de haver diálogo e respeito entre as pessoas.
Dinâmica 05: Concordo e Discordo
Considerações finais
Durante as discussões, abordaram-se temas sobre a forma de tratar as pessoas, no dia-
a-dia tanto dentro da escola como fora dela, onde às vezes, um cidadão acaba sendo excluído
dos círculos de amizade ou trabalho simplesmente por ser “diferente” do esperado, como ser
negro, estar acima do peso ideal imposto pela sociedade, possuir alguma deficiência, usar
óculos, ser tímido, utilizar roupas ou cabelos diferentes dos colegas e assim sucessivamente.
Também foi discutido sobre preconceitos contra negros, índios, deficientes, homossexuais,
bissexuais, pansexuais, assexuais, transexuais, diferentes religiões, distintos padrões de moda
e beleza. Destacou-se a necessidade de desmitificar tabus sobre as relações de gênero na
sociedade, advindos de uma reparação de “coisas corretas para homens e mulheres”. Assim,
visou-se a igualdade e o direito de “poder ser você mesmo”, sem ser julgado por padrões pré-
estabelecidos por uma sociedade arcaica e preconceituosa.
Foi possível perceber que, no início das oficinas, muitos jovens demonstraram
preconceitos e falta de respeito, muitas vezes escondidos em piadas e ironia. Contudo, notou-
se que muitos participantes se quer sabiam a diferença entre sexo, gênero e orientação sexual,
bem como desconheciam algumas religiões, ou as compreendiam de maneira equivocada –
fato que pôde ser percebido quando equipararam a Umbanda com macumba.
Durante as discussões foi enfatizado o preconceito pré-estabelecido em cada um,
mesmo quando a pessoa acha que está livre do mesmo, utilizando exemplos do dia-a-dia,
como: o modo de olhar para uma pessoa com deficiência; julgar alguém pelo seu modo de se
vestir ou se portar, por possuir tatuagens ou piercings; não ajudar um idoso ou um deficiente a
atravessar a rua quando necessário ou não ceder seu lugar no banco do ônibus para uma
mulher grávida; se sentir perseguido apenas por haver um indivíduo negro andando próximo
na rua; não respeitando as diferentes religiões e assim por diante.
Parte do preconceito que os jovens possuem vem de uma influência existente em casa,
na escola, na igreja, entre outros lugares, mas outra boa parte apenas está presente por conta
da falta de informação sobre a diversidade de indivíduos e a necessidade de respeitar uns aos
outros, sem julgar o caráter de alguém através de sua aparência.
Constatou-se que a falta de espaços para discussões sobre esses assuntos ainda
provoca, pela falta de informação, conceitos errôneos, levando a preconceitos. Entretanto, ao
tratar as discriminações e as maneiras de minimizá-las, de maneira lúdica, através de
atividades práticas, com os discentes, é possível contribuir para a diminuição da intolerância
existente dentro das escolas, bem como fora delas, demonstrando ser importante e necessário
levantar essas questões com os jovens, instigando-os a repensar sobre seus atos e,
principalmente, a modificá-los, a fim de diminuir agressões físicas e verbais.
Referências
Resumo:
Este trabalho tem por objetivo relatar as observações, atividades, incômodos, inquietações e
sugestões que surgiram ao longo das oficinas sobre gênero e a realidade da mulher na sociedade
brasileira, realizadas em colégios públicos de Niterói, Magé e Rio Bonito, no estado do Rio de
Janeiro, durante o mês de março de 2018. Além da introdução, no qual é reportado o caminho
percorrido até as oficinas, durante a construção da Greve Internacional de Mulheres no 8 de
Março de 2018, dividimos o artigo em dois momentos: o primeiro no qual apresentamos as
oficinas criadas por nós, pontuando o objetivo de cada uma, o material necessário e a
metodologia que utilizamos nas escolas. Todas as oficinas pedagógicas são de caráter
experimental e continuam em análise e aperfeiçoamento. O segundo em que relatamos nossas
experiências nas diversas salas de aulas que tivemos, contando algumas situações que vivemos
junto aos mais de 400 jovens que entramos em contato ao longo mês. Por fim, conclui-se que,
apesar das dificuldades criadas com fim de proibir o debate sobre gênero nas escolas, é possível,
através da ação de alguns professores, subverter as políticas institucionais e construir uma
educação engajada. Por Marielle Franco, por Dandara, por Angela Davis, por Audre Lorde, por
bell hooks, e por Andrea Dworjin e por Gloria Anzaldúa: não vão nos calar!
1
Mestra em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (PPGMC/ UFF); natkbb@gmail.com
2
Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos campus Sorocaba (PPGed/UFSCar);
thisdsr@gmail.com
1. Introdução
“E é possível ser outra coisa?” – nos perguntou uma aluna de escola pública de Niterói,
sobre a falsa dicotomia criada entre mulheres putas e mulheres que são esposas e mães. O
debate era acerca da frase da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea,
2013) – “Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama”, projetada em uma das
dinâmicas que realizamos no mês de março de 2018. As observações, atividades, incômodos,
inquietações, sugestões, que surgiram ao longo desse tempo, nesses espaços, realizados em
colégios públicos de Niterói, Magé e Rio Bonito, no estado do Rio de Janeiro, são o objeto de
análise do relato que se segue.
A ideia da realização das oficinas surgiu durante a construção da Greve Internacional
de Mulheres, no 8 de Março de 2018, tanto em nível estadual quanto local, na cidade de Niterói,
quando pudemos perceber, enquanto feministas independentes, uma articulação que não nos
representava. Por um lado, a presença de mulheres organizadas em partidos e correntes de
esquerda nos frustrou, já que não conseguíamos trazer demandas historicamente feministas,
muito devido ao pouco tempo das escassas reuniões, mas também pelas demandas trazidas pelas
militantes, que se organizavam antes com seus núcleos para tirarem o que seria levado aos
nossos encontros de construção.
Éramos mulheres que discordavam politicamente em diversos assuntos, juntas, ali para
a organização de uma intervenção específica: o 8 de Março feminista. Porém, a nossa impressão
era que, mesmo ausentes, as vozes masculinistas das organizações importavam mais do que as
demandas das mulheres. O acúmulo de participação em partidos e movimentos sociais nos
colocou nesse ponto de inquietação, e à margem. Qual foi o espaço em que nos sentimos
seguras? Com nossas pautas tratadas com prioridade? Onde o ego – principalmente o masculino
– não afundava todo nosso desejo de trabalho coletivo? É um assunto até batido, os partidos
não dão conta da experiência das mulheres – muito menos das mulheres lésbicas/negras. O
movimento LGBT também não – e ainda tende a se esquecer com mais facilidade das questões
de classe, algo muito difícil para uma mulher periférica. Não conseguíamos entrar nesses
debates, mas também não conseguíamos tratar da nossa insegurança dentro do próprio
movimento feminista.
Temas como, por exemplo, o direito ao aborto seguro e gratuito; a violência doméstica;
a pauta da segurança em universidades públicas para jovens – debates como estes perdiam
espaço para outros assuntos, ao nosso ver, menos importantes nas lutas por autonomia feminina,
uma educação sexista, religiosa e misógina, ainda é possível ser crítica e desconfiada;
debochada e participativa; receptiva e esperançosa.
2. As oficinas
Inicialmente acreditávamos que iríamos trabalhar com dois dias de oficina num período
total de 8h. Por isso dividimos as dinâmicas em dois momentos, o primeiro dia denominamos
de “O despertar”, no qual o objetivo era demonstrar situações que, por mais corriqueiras que
fossem, são parte de uma estrutura social que hierarquiza as diferença entre os sexos. Queríamos
tirar da “normalidade” situações como relacionamentos abusivos, frases e acontecimentos de
senso comum que oprimem as mulheres – como as presentes na publicidade e letras de música.
Neste dia, as dinâmicas utilizadas seriam: Dinâmica Cartazes da revelação; Dinâmica Linha
da violência; Dinâmica ‘É violência ou não é?’; Quiz do relacionamento abusivo;
Arrumando letras.
Desta forma, o objetivo dessas oficinas era trabalhar com questões sobre a violência
contra a mulher. Para isso, também passamos o vídeo da Camtra sobre relacionamentos
abusivos que, em determinado momento, apresenta e diferencia os tipos de violência: física,
psicológica, sexual, patrimonial, moral.
O segundo dia chamamos de “O agir”. Se no dia anterior trouxemos um debate pesado,
que muitas vezes desestrutura as alunas, podendo gerar um sentimento de impotência, neste
queríamos passar uma mensagem mais otimista, ressaltando a resistência e a luta das mulheres
ao longo da história. Começaríamos com uma atividade de gancho com o dia seguinte através
da: Dinâmica Publicidade para quem?, e logo mostrando outras possibilidades através da
Dinâmica Representatividade importa. Depois teríamos a Dinâmica Mulheres na História
(esquetes); Dinâmica Conhecendo mulheres incríveis e, por fim, a atividade de encerramento
que seria a elaboração de um zine.
A seguir apresentamos um pouco a proposta de cada oficina.
Atividade: fixa-se na parede duas cartolinas, uma com o nome MENINAS escrito e
outra MENINOS, lado a lado. As/os participantes devem ficar em fila indiana mista, e um de
cada vez deve correr na cartolina a sua frente e escrever uma característica relacionada a ele,
na sociedade. Ex: MENINOS: corajosos; MENINAS: fofas. Após todas participarem, deve-se
explorar os adjetivos citados nas cartolinas e trabalhar os comportamentos de gênero.
Elas lerão, em grupo, as letras que entregarmos, farão anotações e rabiscos sobre as
letras, e fazer uma nova versão das letras, fazendo com que elas deixem de ser abusivas. (Nesta
oficina é importante tomar cuidado para diversificar o estilo musical).
O material que tínhamos preparado para dois dias de dinâmicas, em oito horas seguidas,
era para aplicação em uma escola de Niterói, no bairro do Barreto. Porém, não foi possível
realizar conforme o planejado. A professora tentou pedir liberação das turmas, mas muitos
professores se opuseram. Nesta escola, ao longo de dois dias, tivemos um pouco mais de duas
horas com diversas turmas, cerca de 30 alunos em cada. Tivemos que escolher quais dinâmicas
priorizar no último momento – porque não havíamos sido informadas das alterações.
Fragmentar as oficinas foi extremamente desgastante e como algumas eram continuações de
outras a sensação era que o processo de aprendizagem não era completo.
É importante ressaltar que essas oficinas foram exatamente no dia seguinte ao
assassinato da vereadora Marielle Franco, com a qual nós tínhamos grande proximidade política
e, portanto, estávamos emocionalmente frágeis.
As turmas eram compostas majoritariamente por alunas/os negras/os ou pardos.
Estavámos a convite da professora de História, embora outros professores tenham liberado suas
turmas e, portanto, estivemos com eles em sala. Em alguns momentos, tivemos que lidar com
o senso comum também dos professores - situação que aconteceu em outras escolas - que
concordavam com frases opressivas, por exemplo. Nesta escola também ficou marcado o fato
de que, durante o período do intervalo, alguns estudantes organizavam um pequeno “culto”
onde de dentro de uma sala liam a bíblia ou cantavam músicas da igreja.
Ainda nessa escola, recebemos denúncias de alunas sobre o comportamento dos
funcionários com cargo de coordenação, que pudemos comprovar durante os intervalos, e na
manhã seguinte. Acontece que, em pleno mês de março, com poucos ventiladores funcionando,
prédios antigos e pouquíssima ventilação, as jovens eram constrangidas por esses funcionários,
que alegavam que elas “não sabiam se vestir” para assistir aula. Muitas vezes, sendo
responsabilizadas pelo assédio sofrido dentro das salas, pelos seus colegas do sexo masculino.
Essas meninas, quando iam de camiseta de alça, eram forçadas a voltar para suas casas, e
impedidas de assistirem às aulas, por “causarem distração” nos meninos.
Tendo que trabalhar com as dinâmicas separadas, focamos nas que abordavam
relacionamentos abusivos. Foi possível observar que a grande maioria das garotas concordavam
que os relacionamentos que tiveram – ou tinham, no presente – eram abusivos. Já os garotos
eram resistentes com algumas situações, pontuando que não eram abusivos, mas só
“cuidadosos” ou “ciumentos”. Em outros momentos, alegavam que “se não insistissem, nunca
ficariam com ninguém”. Todos concordaram que nenhum deles ficaria com uma menina que já
tivesse saído com muitos caras. Em contrapartida, as meninas afirmaram que, se utilizassem o
mesmo critério, não ficariam com ninguém. Em duas turmas tivemos alunas que saíram
chorando, e houve um caso de uma estudante dizer que o namorado, sabendo do que estava
acontecendo na escola, a proibiu de “assistir a aula que iria colocar coisas na cabeça dela”. Na
hora da saída, um aluno chegou a nos abordar questionando se queríamos destruir o
relacionamento dele.
Dentro desta programação, fomos convidadas a fazer as dinâmicas numa ONG, no
centro de Niterói, com pouco alunos – aproximadamente 20, e mais tempo para debater – cerca
de 4h. Neste dia, a conversa foi mais aprofundada e acolhedora. Foi possível realizar quase
todas as dinâmicas do primeiro dia e mais algumas do segundo, inclusive a proposta de que
falassem de uma mulher inspiradora para eles (a maioria falou de suas mães ou avós).
Foi perceptível que a presença dos homens tende a monopolizar as falas e o tempo para
debater questões pertinentes a eles. Por exemplo, foi o longo o período dedicado a debater se
existiam ou não mulheres que gostam de apanhar na cama; ou sobre a liberdade das mulheres
em venderem seus corpos – principalmente através das propagandas. Segundo a opinião dos
meninos, as mulheres se submetem a esse tipo de trabalho porque querem.
As outras duas escolas que fomos, uma em Magé e a outra em Rio Bonito, no interior
do Rio de Janeiro, foram marcadas por grandes públicos. As professoras que nos convidaram
acharam que iríamos ministrar uma palestra no lugar das oficinas, e ampliaram o convite para
toda a escola. Nesses dois dias conversamos com mais de 200 alunos e optamos para um modelo
mais palestra-interativa. Nosso desafio foi garantir a participação dos estudantes para que não
ficasse apenas um monólogo de nossa parte. A matriz que usamos foram gráficos selecionados
da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2014 - Tolerância Social à
violência contra as mulheres, numa adaptação da Dinâmica ‘É violência ou não é?’. Pedíamos
para que as alunas e alunos levantassem a mão se concordassem ou discordassem da frase
apresentada e, a partir da defesa de alguns deles, é que fazíamos nossas ponderações, guiando
o debate para além do senso comum, sempre deixando eles mesmos se contradizerem.
Na frase “Os homens devem ser cabeça do lar” muitas das alunas/os entraram na
contradição de concordar com frase e perceber que sua própria realidade não condizia com esse
modelo. Ambas as escolas eram localizadas em bairros periféricos de suas cidades, com maioria
de estudantes negros e pardos, muitos deles tinham seu cuidado garantido apenas pela mãe ou
alguma outra mulher da família, como a tia ou a avó. A figura paterna é algo ausente em
diversos casos e, em outros, é a figura do agressor.
Por isso, é comum que jovens e adolescentes defendam a tese de que “homem que bate
em mulher é porque está bêbado”. Esta é a desculpa que mães e avós costumam utilizar para
justificar a agressão sofrida pelos “patriarcas” da família – e é desta forma que seus filhos e
netos entendem: quando estão sóbrios, eles se tornam menos violentos. Mas, e quando suas
mães bebem? Elas também ficam agressivas? E bebida pode justificar agressão? E, desta forma,
vamos desconstruindo os padrões discursivos que foram cristalizados durante os anos.
Outra frase que gera bastante controvérsia, presente na pesquisa, é “Em briga de marido
e mulher, ninguém mete a colher”. Neste caso, os próprios alunos e alunas completam a frase,
e nós aproveitamos a deixa: por que é tão fácil para todas nós reproduzir certas “verdades”,
certos “ditos comuns”? Como a esta altura já debatemos relacionamentos abusivos, através dos
vídeos e quiz, eles já sabem que isso é violência contra mulher. Então, “até que ponto devemos
esperar para interferir numa briga de casal”? O que tememos, ao nos meter numa briga de
casal? É melhor perder a amiga, e ela ficar sabendo que pode contar com você; ou é melhor
ficar quieta e vê-la sofrer por um relacionamento que não a faz bem? Ao fim do debate,
esperamos encorajá-las a conversar com as vítimas que conhecem, inclusive disponibilizamos
nossos contatos, caso precisem de ajuda. Algumas vezes fomos acionadas.
Uma consequência deste debate é a afirmação de que “tem mulher que gosta de
apanhar”. De forma descontraída, a gente devolve a pergunta: “quem aqui gosta de apanhar?
Quem aqui apanha e sai correndo para contar para os amigos; posta foto nas redes sociais
apanhando?”. Elas riem. E continuamos. Elencamos juntos quais os motivos que fazem uma
mulher permanecer morando com seu agressor. Elas sabem. Elas conhecem histórias. Elas
compartilham histórias. Suas mães, primas, irmãs, amigas, avós. Muitas mulheres que tentaram
resistir, outras fugiram com os filhos, outras permaneceram junto pelos filhos, outras não sabem
o que fazer quando o marido sair da prisão. No final do debate, eles entenderam que esta é só
mais uma frase usada para diminuir a dor das mulheres agredidas, e também de responsabilizá-
las pela própria agressão sofrida.
“Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama” é outra das frases. Nessa,
sempre começamos apontando a incongruência. Enquanto uma das alunas no pergunta: e tem
outra possibilidade, professora, dá pra ser outra coisa? Nós dizemos: na verdade, esta frase não
oferece possibilidades à mulher. Em ambos os casos, supõe-se que a mulher vive para o homem:
seja no casamento, seja como prostituída; seja como fiel, seja como amante: quando afirmamos
essa frase, estamos dizendo que a vida e os corpos das mulheres servem somente para satisfazer
os homens. Elas ficam sempre impactadas. E dá para ser outra coisa? Sim, dá para ser
professora, irmã, filha, advogada, amiga, jornalista, pescadora, feminista.
4. Considerações finais
Enquanto militantes feministas e pessoas que acreditam no trabalho de base, na
pedagogia engajada, na emancipação política através da educação, nós defendemos que as
oficinas pedagógicas são ferramentas primordiais no caminho para o despertar crítico de
estudantes que, imersos na materialidade da sociedade patriarcal, muitas vezes são sufocados
por uma ideologia que direciona seus olhares para a manutenção de um sistema opressor.
Cada vez que entramos em uma sala de aula, ao mesmo tempo que estamos abertas para
encarar uma realidade que se mostra para todas nós, o tempo todo, de forma violenta e
intimidadora, estamos também abrindo portas para um diálogo que nos ensina e nos fortalece.
É, portanto, uma via de mão dupla. Enquanto proporcionamos um espaço em que está em debate
a autonomia dessas jovens, através de seu próprio protagonismo, através de suas próprias
narrativas, conseguimos construir pontes para a transformação social – tudo isso dentro de um
espaço institucional e regrado, como a escola.
A problematização dos papéis de gênero e suas hierarquias, quando realizada dentro das
escolas, faz com que os professores também percebam que podem e devem desenvolver tais
debates; que podem e devem se informar sobre as violências contra as mulheres; e que
desnaturalizá-las e colocá-las em cheque é essencial para que as alunas e alunos se tornem
adultos emancipados, conscientes dos lugares que ocupam na sociedade, mas que estejam
dispostos a transvê-los: que meninos desocupem o lugar de agressores, que meninas não
aceitem agressões. Que saibam que estão sendo violentadas; que possam dizer não; que
consigam ver nas outras meninas um espelho delas mesmas, e não rivais. Que possam ajudar
outras mulheres de suas famílias. Acreditamos, pelo resultado do que vimos e vemos em
escolas, que as oficinas pedagógicas podem auxiliar no caminho para a libertação de meninas
e mulheres.
Referências Bibliográficas
BRASIL. IPEA. SIPS. Tolerância Social à violência contra a mulher. Disponível
em:<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulhe
res.pdf>. Acesso em 28 maio 2018.
CANDAU, Vera. et al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos
humanos. Petrópolis: Vozes, 1995.p.126.
HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
SAMPAIO, Paula Faustino. Oficinas de gênero e cidadania na escola. Mneme – revista
de humanidades, v. 16, n. 36, p. 54-76, Caicó, jan./jul. 2015. Dossiê Ensino de História.
Introdução
4
Segundo o IBGE, a última edição do MUNIC foi feita em 2015, porém, esta não traz dados sobre a gestão da
política de gênero, portanto, o último MUNIC que contém essas variáveis no banco de dados é o de 2013.
Ressaltamos ainda que mesmo tendo se passado 5 anos, o volume de dados analisados (todos os municípios
brasileiros) se faz relevante para tal análise. Além disso, gostaríamos de pontuar a necessidade de atualização
dos dados por parte dos órgãos competentes.
O movimento feminista no Brasil possui um histórico muito rico, e sempre foi guiado
pelas particularidades de nosso contexto histórico5. Para fins do objeto que nos propusemos
cumprir e por falta de espaço neste trabalho, tratamos aqui de dois momentos históricos fun-
damentais que nos ajudarão a entender a perspectiva proposta, ainda que reconheçamos que
toda a história do movimento é importante e nenhum aspecto deve ser descartado. Esses mo-
mentos são o período de ditadura militar e a redemocratização vivida com o fim da ditadura.
A importância de se rever o clima político do regime militar, no início dos anos 1970,
se dá pelo destaque da presença das mulheres na luta anti-ditadura, que foi o berço de novas
formas de atuação política, onde Pinto (2003, p. 43) enfatiza “as condições específicas em que
nasce o feminismo brasileiro e os efeitos que estas terão no seu desenvolvimento”.
O período ditatorial é sempre elencado como marco para o movimento feminista. Se-
gundo Márcia Tavares et al. (2011), nesse contexto a ação direta foi a primeira estratégia do
movimento feminista, na medida em que diferentes grupos de ativistas procuraram atender
mulheres atingidas pelas mais variadas formas de violência, criando coletivos com essa finali-
dade. Além de defender suas pautas próprias, muitas mulheres participavam em organizações
clandestinas de esquerda e em grupos guerrilheiros de combate à ditadura militar.
Essas atuações serviram como instrumento de emancipação, segundo Lúcia Avelar
(2015), e foram delas que decorreram eventos como, fóruns, convenções, conferências, movi-
mentos populares e, posteriormente, também a criação de departamentos femininos dentro dos
partidos e dos movimentos sociais.
Portanto, essa foi uma “escola” para o que Céli Pinto (2003) chama de terceira onda
do movimento feminista brasileiro, sendo um momento marcado pela forte participação das
mulheres brasileiras em todo o processo de redemocratização e na construção daquilo que a
autora identifica como uma espécie de “feminismo difuso” e com maior ênfase sobre proces-
sos de institucionalização e discussão das diferenças entre os gêneros.
Essa nova relação entre Estado e sociedade, que foi se desdobrando dos processos de
abertura política, contou com diversos novos repertórios de atuação dos movimentos, havendo
até mesmo a ocupação de cargos comissionados nos governos por ativistas. Essa estratégia foi
usada também por feministas, que ocuparam estes espaços buscando operar as políticas “por
dentro”, sendo chamadas de feministas institucionais (BELANÇON, 2018).
Além das estratégias dos movimentos, houve também a investida por parte do Estado
– ainda que em atendimento às demandas dos movimentos – a partir da criação de canais
abertos no sistema político com intuito de aproximar a sociedade da elaboração das políticas
públicas, o que foi pauta dos movimentos na luta pela redemocratização. Essas instâncias são
representadas pelos Orçamentos Participativos, Conselhos Gestores, conferências temáticas,
comissões, secretarias, etc.
Estes avanços na participação ajudaram ainda a trilhar o caminho para a fundação da
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM). A SPM foi instituída em 2003, no
primeiro mandato do Presidente Lula (PT), e adquiriu caráter de ministério em 2009, o que
demonstra a importância das oportunidades políticas por parte do Estado para o sucesso da
institucionalização dos movimentos. A bibliografia já tratou exaustivamente da diferença que
um governo mais alinhado com a esquerda faz na absorção das demandas dos movimentos
sociais pelo Estado (BELANÇON, 2018; BOHN, 2010; RANGEL, 2013).
A criação da SPM acarretou em grandes avanços para as políticas públicas de mulhe-
res, principalmente por abrir canais nas demais instâncias governamentais, e também por re-
presentar a vontade política em consolidar a institucionalização das políticas de gênero, signi-
ficando, portanto, um marco no que diz respeito às políticas públicas para mulheres. Essas
tendências de institucionalização são caracterizadas por Marlise Matos (2010) como uma
“quarta onda” do feminismo no país.
Influenciada pela criação da SPM, ocorre a I Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres (CNPM), em 2004, que traz em seu relatório, segundo Céli Pinto (2007), demandas
não só por políticas públicas em favor das mulheres, mas como tais políticas devem ser
criadas, discutidas e implementadas. O relatório da CNPM é marcado pela reivindicação das
mulheres como agentes políticos tanto de suas próprias demandas, quanto pela participação
política em todos os conselhos e esferas da política nacional. Nos anos seguintes, as con-
ferências continuaram constituindo-se como importante polo mobilizador de discussões e pro-
positor de políticas para as mulheres.
No que diz respeito ao enfrentamento à violência contra as mulheres, a institucionali-
zação da SPM representou uma ação importante no processo de fortalecimento das ações e es-
tratégias de gestão e monitoramento das políticas públicas (MARTINS, CERQUEIRA e MA-
TOS, 2015, p. 9). Foi também a partir de sua criação que as demandas passaram a ser vistas
em rede, buscando operar em parceria com as instâncias de atendimento às mulheres em situa-
ção de violência, CPMs, CNPM e Planos Nacionais de Políticas para Mulheres (PNPM).
A preocupação com a capilaridade das políticas para mulheres já estava presente desde
o I PNPM, onde foi enfatizada a necessidade de estados e municípios criarem instituições de
defesa dos direitos das mulheres, através de seu princípio de transversalidade vertical 6 (BRA-
SIL, 2004). Tal difusão vertical dos OPMs é fundamental, uma vez que é nos municípios que
as cidadãs e os cidadãos veem a política acontecer de fato e são por ela atendidas. Nesse senti-
do, os Organismos de Política para as Mulheres
Um dos objetivos deste trabalho foi verificar a associação entre a presença de OPMs e
CPMs, acreditando que essa “rede” logra benefícios para a elaboração de políticas públicas
para mulheres. Para tanto, realizamos um teste estatístico que mede, além da associação entre
duas variáveis, a força e direção em que ela ocorre7. Nesse teste, os resultados variam de -1 a
1, e os valores (negativo ou positivo) indicam a direção da associação. Portanto, quanto mais
próximo de 1, mais forte é a associação entre as duas variáveis. Constatamos que no caso
6 A transversalidade vertical visa a ampliação da rede de parcerias nos âmbitos estadual e municipal.
Visando a construção da capilaridade necessária para o atendimento às referidas demandas.
7 Trata-se do teste de independência de Yule, que tem por objetivo testar a independência de associação
entre duas variáveis dicotômicas, verificando também a intensidade em que esta relação acontece .
desta pesquisa, a existência de órgão gestor é acompanhada pela existência do conselho, com
um valor bastante alto (0,74).
Entretanto, aferimos também que a difusão dessas instâncias é bastante restrita, tendo-
se em vista o total de municípios brasileiros, os CPMs estão presentes em apenas 18% e os
OPMs em 28%.
Afim de verificar a influência do contexto histórico e político para a criação destes
órgãos, iniciamos a análise com o gráfico 1, que contém a distribuição dos CPMs por ano de
criação.
Gráfico 1 – Distribuição dos CPMs de acordo com ano de criação
Elaboração Própria
Fonte: Munic/IBGE 2013
Entre as variáveis do MUNIC não consta o ano de criação dos OPMs, por isso neste
momento nos bastamos à análise dos CPMs.
A partir da observação do gráfico 1, podemos identificar alguns picos da expansão
dessas instâncias. Iniciando-se por 2007, ano que marca a criação de 75 CPMs, outro pico se
dá em 2009, com 112 CPMs e ainda, 2011, com 102 CPMs.
Afim de apontas algumas hipóteses para os picos de criação dos CPMs demarcamos
alguns momentos no processo de redemocratização e no período posterior que são im-
portantes da luta por políticas de gênero. Como forma de esquematizar e facilitar a visualiza-
ção, elaboramos o quadro 1, abaixo descrito.
essa influência se dá pelos convênios firmados com os entes federativos, que beneficiaram os
municípios que aderiram à política.
É preciso enfatizar ainda, que as políticas demoram a ser implementadas, e por isso, é
possível que o boom dessas instâncias tenha se dado apenas durante o II PNPM, onde pôde
ser melhor capilarizado e assimilado pelas prefeituras para torna-se realmente uma política.
Ainda segundo o relatório final de implementação do I PNPM (BRASIL, 2009), foi
ressaltado que a II CNPM – realizada em agosto de 2007 – trouxe alguns dados novos para a
questão da verticalização do PNPM. A primeira e mais importante foi o detalhamento das de-
mandas em prioridades e ações que ampliaram o número de eixos estratégicos do I para o II
Plano. Ademais, foi possível avaliar que a simples assinatura de termos de adesão ao Plano
Nacional por parte de prefeitos/as e governadores/as não foi capaz de transformar o PNPM
em uma realidade para as mulheres. Em vários casos, a adesão ao Plano resumiu-se à assina-
tura do termo, não havendo quaisquer outros desdobramentos de relevância. Assim, para o II
Plano Nacional a estratégia adotada pelo governo federal para regionalizar o Plano foi o estí-
mulo à construção dos planos estaduais e municipais, de forma a adequar as grandes linhas e
objetivos do PNPM às realidades locais.
Uma dessas estratégias, foi a criação do Fórum Nacional de Organismos Governamen-
tais de Políticas para Mulheres, que buscou discutir importantes pautas de ação política, den-
tre as quais as dificuldades de implementação do Plano na realidade local. Promovendo inicia-
tivas como, os Encontros Nacionais e Regionais do Fórum; as web conferências com a partici-
pação das gestoras de OPM estaduais e municipais; a criação de um banco de dados com in-
formações sobre os OPM; a troca de informações e experiências, e também a criação de docu-
mentos oficiais que orientavam sobre a criação de um OPM.
Mas além disso, como afirmado no relatório,
Ou seja, os fatores políticos, sociais, e espaciais de cada município contam muito para
a explicação da difusão. E por esse motivo buscamos conhecer com um pouco mais de deta-
lhes os municípios que absorveram os OPMs e CPMs.
Uma das variáveis utilizadas para analisar esses municípios que concentram CPMs e
OPMs foi o porte. Do qual obtivemos a tabela 1, abaixo.
Tabela 1 – Distribuição de CPMs e OPMs por municípios de acordo com seu
porte8
Porte CPM (%) OPM (%) Total de Municípios
Metrópole 82 100 17
Grande 79 74 282
Médio 50 52 339
Pequeno 2 26 36 1080
Pequeno 1 7 19 3847
Total 18 28 5565
Elaboração Própria.
Fonte: MUNIC/IBGE 2013.
De acordo com a tabela 1, podemos notar que tanto CPMs quanto OPMs se concen-
tram majoritariamente nas metrópoles, e diminuem a cada grau do porte que descemos, saindo
de uma marca de 100% de OPMs nas metrópoles, por exemplo, e chegando a 19% nos muni-
cípios classificados como “Pequeno 1”.
Outra medida que levamos em conta na análise foi o Índice de Desenvolvimento Hu-
mano Municipal (IDHM), onde obtivemos a tabela 2.
8 Classificação de porte de município segundo o IBGE, onde: Municípios de Pequeno Porte 1: até 20.000
habitantes. / Pequeno Porte 2: de 20.001 até 50.000 habitantes. / Médio Porte: de 50.001 até 100.000 habitantes. /
Grande Porte: de 100.001 até 900.000 habitantes. / Metrópole: mais de 900.000 habitantes.
9
Classificação de IDHM segundo o IBGE, onde: IDHM Muito Baixo: 0 a 0,499: / Baixo: 0,5 a 0,599 / Médio:
0,6 a 0,699. / Alto: 0,7 a 0,799. / Muito Alto: 0,8 a 1.
Sobre a distribuição dos municípios pelo IDHM, podemos notar, de acordo com a ta-
bela 2, que a presença significativa de CPMs e OPMs se concentra naqueles municípios com
IDH muito alto, onde 77% desses têm OPM e 66% têm CPM.
Porém, há um diferencial se tratando da distribuição de OPMs, que ao contrário do
porte não diminui a cada estágio de classificação, pois podemos observar que em segundo lu-
gar na distribuição percentual de OPMs estão os municípios de IDH muito baixo. A nossa hi-
pótese para esse dado é que os municípios de IDH muito baixo viram na adesão ao OPM uma
janela de oportunidades para angariar recursos orçamentários.
Segundo Costa (2015, p. 19) a SPM auxiliaria financeiramente o município na capaci-
tação dos funcionários do órgão e na compra de equipamentos, por exemplo. Além dos de-
mais convênios possíveis entre a secretaria e o município.
O mesmo não ocorre com os CPMs, que seguem o padrão do porte de município,
como demonstra a tabela 2, quanto menor o IDHM, menos conselhos. Isso porquê, em geral,
carecem de verbas, recursos humanos e infraestrutura para seu funcionamento e instalação.
Além disso, a mobilização de organizações e movimentos de mulheres compreende papel ex-
tremamente importante para a instalação de CPMs, já que para participar como representante
da sociedade civil é necessário participar de alguma organização civil.
Como último objetivo, buscamos ainda identificar se a presença de CPMs e OPMs nos
municípios esteve associada à quantidade e qualidade dos serviços oferecidos para as mulhe-
res. Para isso criamos um índice composto por variáveis que fazem parte do MUNIC.
O índice de serviços é composto por três medidas. A primeira mensura os serviços es-
pecializados para mulher em situação de violência ofertados pelo município em cumprimento
à Lei Maria da Penha. Para a construção dessa medida foram agrupados nove categorias que
descrevem os tipos de serviços, conforme quadro 2, abaixo.
Já segunda medida que compõe o índice de serviços é formada pela existência de Casa
Abrigos para o atendimento à mulheres em situação de violência ou risco de morte e os servi-
ços ofertados por estas instituições, reunindo 12 itens, conforme quadro abaixo.
A tabela 3 aponta, portanto, a diferença que a presença dessas instâncias faz na vida da
cidadã propriamente. É importante pontuar que, conforme descrito acima, nosso índice foi
bastante exigente, e por isso as médias se mostraram baixas. Ainda assim, notamos uma gran-
de diferença dos municípios que possuem CPM e OPM, que chegam a uma média de 0,25 no
índice. Estes resultados apontam também a importância dessa “rede”, uma vez que a existên-
cia de CPM e OPM no município já faz bastante diferença, mas quando juntos a diferença é
ainda mais notável.
Considerações finais
cretaria esta que foi dissolvida de seu caráter ministerial em 2016, operando atualmente como
um pasta vinculada ao Ministério de Direitos Humanos.
Gonzalez (2018, p. 4), levando em conta a influência do contexto político, disputas
internas e demais fatores no funcionamento dessas instâncias, sugere analisá-las a partir de
uma “perspectiva relacional e conjuntural, não como parte de uma maquinaria burocrático-
estatal homogênea e fixa, mas antes em seu caráter dinâmico e complexo, como arenas de/em
disputas”. Desse modo, a autora analisa os diferentes níveis hierárquicos que essas instâncias
de políticas para mulheres podem ocupar, atestando que no Brasil já passamos pelo mais alto
nível e atualmente nos encontramos no mais baixo. Portanto, em nossa realidade o futuro
dessas instâncias se mostra bastante incerto, assim como as políticas de gênero de modo geral.
Referências
AVELAR, L. Mulher, Gênero e Política. In: _____; CINTRA, A. O. (Orgs.). Sistema político
Brasileiro: uma introdução. 3a ed. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2015.
BOHN, S. R., Feminismo estatal sob a presidência Lula: o caso da Secretaria de Políticas para
as Mulheres. Revista Debates, v.4, n.2, Porto Alegre, jul.-dez. 2010.
PINTO, C. R. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2003.
RANGEL, P. Feminismo de Estado e direitos políticos das mulheres: Argentina e Brasil. In:
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10. Anais eletrônicos. Florianópolis, 2013.
1
Universidade Estadual de Londrina; Graduanda; e-mail:thaisaime@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; Pós-Graduanda; e-mail: brunalais.duarte@gmail.com.
3
Universidade Estadual de Londrina; Docente;e-mail:elianacristinasantos@outlook.com.
4
Foi possível o acesso aos dados, decorrentes à autoras manterem um vínculo institucional com o Patronato
Penitenciário de Londrina.
visto que no banco de dados não encontramos tais recortes que possam auxiliar nos estudos
socioeconômicos das mulheres já atendidas pelo Patronato Penitenciário de Londrina-PR.
Palavras-chaves: penas alternativas; mulheres; perfil socioeconômico
11%
Regime Fechado (11705)
30%
51% Regime Aberto (19847)
Medida de Segurança -
7% Internação (294)
Medida de Segurança -
Tratamento ambulatorial (201)
b) Que o réu não seja reincidente em crime doloso (cometido com intenção);
A partir das condições citadas acima, o artigo 43 Código Penal brasileiro, prevê que
as penas restritivas de direito são “... I- prestação pecuniária; II-perda de bens e valores; III
– (vetado); IV - prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; V- interdição
temporária de direitos;VI- limitação de final de semana.”(Lei nº 9714/1998).
O cálculo utilizado para sentença, geralmente é o de 1 hora de trabalho para cada dia
de pena que a pessoa cumpriria no regime fechado. Desta forma, ocorre que o cumprimento se
dá em um período maior.
5
Secretaria de Justiça Trabalho e Direitos Humanos.
6
Ressaltamos que o curso de Serviço Social se vinculou ao projeto somente no ano de 2018.
No que se refere à faixa etária das mulheres que cumprem medida em meio aberto
atendidas pelo Patronato Penitenciário de Londrina, podemos observar que grande parte das
assistidas atendidas pela instituição possui de 20 a 30 anos (37%), seguidas pelo grupo de 31
a 40 anos (29%), sendo um público mais jovem, que ocupa mais da metade das assistidas pela
equipe da instituição.
Faixa Etária
de 20 anos à 30
1% anos (58)
9% de 31 anos à 40
anos (45)
37% de 41 anos à 50
24% anos (37)
acima de 51 anos
(15)
Não possue registro
29%
(1)
Sobre a composição familiar das assistidas, fato que merece destaque e sendo que
uma das dificuldades apresentadas pelas assistidas é a impossibilidade de cumprimento da
pena, principalmente quando esta é por forma de Prestação de Serviços à Comunidade, devido
à insuficiência de vagas para a educação infantil disponível na cidade ou no território da
mesma que possa atender seus filhos neste período, demanda esta que dificilmente aparece
nos casos masculinos. O que sugere que o serviço não reconhece que a responsabilidade
materna é um fator que interfere na forma como a medida em meio aberto será cumprida.
Conciliar o cumprimento da medida em meio aberto, com a rotina pessoal, e mais a rotina e
cuidados com filhos/filhas é fator determinante, que deve ser considerado inclusive na hora de
definir como esta pena será cumprida. Quando o serviço ignora esta informação logo verifica
que este não debruça preocupação em reconhecer e enfrentar as particularidades que a
maternidade impõe para o cumprimento da pena.
Número de filhos
Renda Familiar
de 1 à 5 sálarios
mínimos (51)
33%
de 5 à 10 salários
mínimos (1)
67% Não possui registro
0% (104)
Regiões de Moradia
2% 0% 1%
Oeste (40)
10% Norte (34)
21%
Centro (33)
Leste (56)
30% Sul (18)
18%
Aréa Rural (3)
Situação de rua (1)
18%
Não possui registro (1)
Considerações finais.
Após o levantamento e análise destes dados sobre a perspectiva de gênero podemos
preliminarmente dizer que não aparecem apontamentos específicos nos documentos oficiais
referentes ao regime aberto ou nos documentos que orientam à atividade profissional no
Patronato Penitenciário de Londrina, o reconhecimento das particularidades de gênero, a
respeito da maternidade e quanto ao acesso às demais políticas sociais. Tal indicação pode ser
visto como a invisibilidade feminina se faz presente também no sistema penitenciário.
O que ficou também evidente é que mesmo tendo um aumento três vezes maior de
mulheres no encarceramento feminino nos últimos dezesseis anos em relação ao aumento do
encarceramento masculino, os homens acessam mais o regime aberto que as mulheres.
Quando se dá visibilidade as mulheres, requisitando levantamento de dados referentes à suas
condições particulares, demonstram que o fato de ser mulher dificulta o cumprimento da
sanção penal.
O que observamos no cotidiano de trabalho é que as assistidas, via de regra devem
quase que sozinhas superar as possíveis dificuldades para cumprir a pena imposta, conciliando
que o exercício de suas atividades domésticas, compromisso com os filhos, além de garantir o
sustento familiar.
Assim, com a sistematização de dados, verificamos que a condição da mulher na
sociedade na qual é reservado a ela quase que exclusivamente às funções domésticas recai
como um obstáculo a ser superado também para conseguirem cumprir a pena.
Além disso, informações importantes que poderiam explicitar a condição dessas
mulheres, são ocultadas ou não identificada sua importância, principalmente a respeito da
composição e renda familiar, das condições que exercem a maternidade, sobre as
peculiaridades de sua participação no crime, e como elas se sentem frente a um sistema penal
pensado sob a lógica masculina, pois são informações fundamentais para se pensar ações que
auxiliariam no cumprimento da sanção penal imposta as mulheres.
Referências
ALAPANIAN, Silvia Colmán e DUARTE, Evaristo Emigdio Colmán. Sistema Penitenciário,
Penas Alternativas E Serviço Social.In: 10º CBASS, 2001.
TREVISAN, Carolina. Brasil é o 4º país que mais prende mulheres: 62% delas são negras. 16
de maio de 2018. GeledésInstituto da Mulher Negra. Disponível em
<https://www.geledes.org.br/brasil-e-o-4o-pais-que-mais-prende-mulheres-62-delas-sao-
negras/> Acesso em 24/05/18.
Resumo:
A proposta deste trabalho é analisar o surgimento do Movimento Escola Sem
Partido, compreendendo sua trajetória e finalidades ao defender a implementação de
legislação específica que visa regular temas e determinar a conduta dos profissionais da
educação em sala de aula. Apesar da agenda defendida pela Escola Sem Partido abarcar
inúmeros temas, damos especial atenção ao conceito de gênero e como o mesmo é tratado
pelos membros do mencionado grupo. Lança-se mão de entrevistas e textos divulgados pelos
membros do movimento, especialmente por seu fundador, o procurador do estado de SP,
Miguel Nagib. Além disso, analisa-se os conteúdos disponibilizados em site de divulgação
criado por seus seguidores. Para realização das referidas análises, parte-se do
desenvolvimento teórico-metodológico proposto pelo historiador alemão Reinhart Koselleck
em favor de uma história dos conceitos. Consideramos, a partir dessa perspectiva, a
ressignificação do conceito de gênero pelo programa Escola Sem Partido, que cunha o termo
“ideologia de gênero”.
Por fim, conclui-se que o Movimento Escola Sem Partido pode ser encarado como
uma reação à discussão de temas progressistas realizadas nas salas de aula de ensino básico e
superior. Pautado na defesa dos diversos temas e interesses que compõem a agenda
conservadora, esse grupo tem ocasionado discussões e difundido seus ideais em todo o Brasil
com a finalidade de interferir nas políticas públicas para a educação. O principal objetivo do
programa Escola Sem Partido é atender a demanda reacionária ao censurar e proibir a
presença de determinadas temáticas no ensino, bem como determinar o que e de qual forma os
profissionais da educação devem ensinar em suas aulas, tolhendo a autonomia docente e
tornando a educação um mecanismo da manutenção da ordem patriarcal, racista e capitalista
vigente, e não instrumento de libertação e transformação social.
1
Graduada em História e especialista em Patrimônio e História pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail:
rochamandacamargo@gmail.com
Introdução
Repercutindo no cenário político brasileiro a partir de 2010, o Movimento Escola
Sem Partido (MESP) foi fundado no ano de 2004 pelo advogado e procurador público do
estado de São Paulo, Miguel Nagib. Segundo o criador, sua motivação surgiu ainda em 2003
após ser informado por sua filha que em uma aula de História, cujo intuito era abordar
personalidades que lutaram por seus ideários, seu professor havia comparado o santo da Igreja
Católica São Francisco de Assis ao revolucionário cubano Ernesto Che Guevara. Motivado
por tal acontecimento, Nagib teria escrito uma carta aberta ao professor em questão, tendo
distribuído o texto entre os pais dos alunos do colégio. A reação desses sujeitos, teria sido
contrária ao seu objetivo, motivando-o a organizar um movimento para lutar contra aquilo que
chama de “doutrinação ideológica”, que estaria abusando dos estudantes nas escolas do país.
(NAGIB, 2016, Entrevista concedida a Thalita Benedinelli)
De acordo com Nagib, ao serem obrigados a frequentar a sala de aula e não poderem
desviar-se das falas e ideias emitidas por seus professores, os alunos se tornariam público
cativo, ou seja, não teriam a liberdade para se retirar e deixar de ouvir o que seus professores
têm a dizer, estariam presos às salas de aula. Dessa forma, o professor que tem objetivos
políticos e ideológicos específicos, acabaria utilizando da obrigatoriedade da presença de seus
alunos para incutir-lhes opiniões e ideários; a isso o MESP conceitua como doutrinação.
Nesse sentido, ao determinar os objetivos do movimento, Nagib afirma que:
Nosso movimento tem, basicamente, dois objetivos: combater o uso do
sistema educacional para fins políticos, ideológicos e partidários; e defender
o direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos. O que
pretendemos é assegurar que a Constituição Federal seja respeitada dentro
dessas pequenas frações do território nacional que são as salas de aula. (2015
- Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros)
Afirma também que se trata de movimento sem filiação política, independente e sem fins
lucrativos. No entanto, suas próprias convicções políticas, ideológicas e religiosas são
facilmente identificáveis quando nos deparamos com as principais bandeiras que têm sido
levantadas pelo MESP, a saber: a luta contra aquilo que chamam de “doutrinação marxista”
efetivada por professores de esquerda e a extirpação de discussões cujo tema se relacione ao
que chamam de “ideologia de gênero”. Em entrevista concedida ao site católico zenit.org,
Miguel Nagib afirma que:
[...] o Estado não pode usar o sistema de ensino para promover concepções e
valores que sejam hostis à moralidade de uma determinada religião. Se ele
fizer isso, deixará de ser neutro em relação a essa religião (é o que está
acontecendo, por exemplo, com a chamada “ideologia de gênero”: ao adotar
e promover os postulados dessa ideologia — que são claramente hostis à
moral sexual da religião cristã –, as escolas e os professores estão
hostilizando a própria religião cristã, e violando, portanto, o princípio
constitucional da laicidade). [...]
Os danos causados pela doutrinação em sala de aula não se limitam ao plano
do conhecimento e das escolhas políticas e ideológicas que serão feitas pelo
indivíduo ao longo desta vida (o que não é pouca coisa, diga-se).
Infinitamente mais graves são os efeitos que se projetam sobre a vida eterna.
Refiro-me, por exemplo, ao jovem cristão que vem a perder a fé por
influência de algum professor marxista. E não é segredo para ninguém que
as instituições de ensino estão infestadas de ateus militantes. (2015,
Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros).
Não é necessário que seja feita uma análise aprofundada do trecho acima citado para que se
compreenda as convicções, princípios e valores que as guiam. O discurso é, em seu todo,
permeado pelo conservadorismo; a moral cristã aparece de forma latente, bem como
encontramos o repúdio a pensadores marxistas e, consequentemente, teóricos políticos ligados
aos pensamentos da esquerda. Não é por acaso que as demandas defendidas pelo Escola Sem
Partido foram não apenas aceitas, como abraçadas por partidos políticos conservadores de
direita e membros da chamada “bancada evangélica” que têm ou tiveram seus mandatos
vigentes nos últimos anos. Sinal disso são os dados informados pelo blog “Pesquisando o
Escola sem Partido”, surgido a partir da dissertação de mestrado intitulada “Escola sem
Partido”: Relações entre Estado, Educação e Religião e os impactos no Ensino de História, de
autoria de Fernanda Pereira de Moura, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino
de História (ProfHistória), da UFRJ, também divulgados na página da web do coletivo
“Professores Contra o Escola sem Partido”, que indicam que no Brasil, contabilizando as
esferas Estadual e Municipal, já foram apresentados aproximadamente 146 projetos de lei até
08 de janeiro de 2018. No mesmo período encontramos também 12 projetos que tramitam na
esfera federal.
Ao se referir ao Programa Escola sem Partido na frente legislativa, Nagib remete aos
princípios que têm orientado a apresentação dos Projetos de Lei nas diversas esferas de
governo. A principal proposta é que seja obrigatório que em todas as instituições de ensino
básico, ou seja, escolas públicas e particulares, as quais atendam alunos de Educação Infantil,
Ensino Fundamental e/ou Ensino Médio, sejam afixados cartazes nas salas de aula e na sala
de professores (no caso da Educação Infantil) com os “6 deveres” do professor, impondo aos
profissionais aquilo que consideram as obrigações deles em relação aos alunos, cujos também
são informados do que consideram ser os seus direitos. No site de divulgação do Programa
Escola sem Partido encontramos um modelo de Projeto de Lei para proposição em cada esfera
legislativa. Segundo Eveline Algebaile,
Nesses modelos, são estabelecidos mecanismos de monitoramento de
atividades escolares e de materiais educativos – especialmente as atividades
docentes e os materiais que não estejam em conformidade com as
“convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis (...) nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa”, considerando que, no que
diz respeito a esses aspectos, os “valores de ordem familiar” teriam
“precedência sobre a educação escolar” –, bem como de recepção e
encaminhamento de denúncias das supostas “práticas de doutrinação” ao
Ministério Público. (2017, p.64)
Nesse sentido, fica claro o caráter de “vigilância, controle e criminalização”, que pretende ser
institucionalizado pelo MESP através da legislação brasileira em todos os seus níveis no que
se refere ao papel social das escolas, dos professores e da relação entre docente e aluno.
Esse aspecto fica mais evidente ao analisarmos o que se defende nas duas frentes
restantes do movimento, anteriormente explicitadas: a frente judicial e a extrajudicial. A
primeira, demonstra o incentivo do movimento para que pais e responsáveis judicializem
casos em que considerarem que os direitos de seus filhos foram lesados pelo professor em sala
de aula ao ser promovido o debate de assuntos para “doutrinação ideológica ou partidária” dos
estudantes. Para isso, orientam os alunos e pais a serem vigilantes dos professores, anotando
informações importantes que constituiriam provas do que consideram inapropriado. Em uma
breve busca realizada na plataforma online de compartilhamento de vídeos YouTube,
encontra-se inúmeras gravações feitas por alunos que lançam mão de seus Smartphones
durante a aula e registram momentos das falas de seus professores, considerados como
tentativa de “doutrinação”. A frente extrajudicial, por sua vez, trata de uma espécie de
“formação” dos docentes, pais e alunos para divulgação da agenda do Movimento Escola Sem
Partido e apresentação das implicações jurídicas do mesmo. Nagib afirma que:
Nessa frente, temos encontrado grande resistência por parte dos professores.
A maioria, infelizmente, não parece muito inclinada a refrear o ímpeto de
“fazer a cabeça” dos alunos. Diante dessa atitude, elaboramos um modelo de
notificação extrajudicial para ser utilizado pelos pais dos alunos. Por meio
dessa notificação, o professor é cientificado de que poderá vir a responder
civilmente pelos danos que causar, caso não respeite a liberdade de
consciência e de crença do estudante e o direito dos seus pais de dar a ele a
educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
(NAGIB, 2015 - Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros)
pensam e exercem, bem como o projeto de sociedade que se almeja. Neste sentido, a
educação torna-se campo de disputa, uma vez que estão em jogo interesses de diferentes
classes e setores sociais ao se determinar o que e como deve ser ensinado aos alunos em todos
os níveis. Dessa forma, para que se pense sobre a educação e o que se tem feito dela é
imprescindível que o contexto social, econômico e político o qual temos vivenciado seja
analisado de uma perspectiva histórica. De forma sucinta, não podemos nos esquecer que,
O Brasil, no contexto do capitalismo mundial, estruturou-se sob o signo
colonizador e escravocrata e, como tal, produziu uma das sociedades mais
desiguais e violentas do mundo. Das burguesias clássicas que lutaram para
constituir nações autônomas e independentes e que, mesmo cindidas em
classes, estruturaram sociedades com acesso aos direitos sociais básicos,
diferentemente dessas, a burguesia brasileira sempre foi antinação, antipovo,
antidireito universal à escola pública. Uma burguesia sempre associada de
forma subordinada aos centros hegemônicos do capital. A desigualdade
econômica, social, educacional e cultural que se explicita em pleno século
XXI resulta de um processo de ditaduras e golpes da classe dominante com
objetivo de manter seus privilégios. Ao longo do século XX convivemos, por
mais de um terço do mesmo, com ditaduras e submetidos a seguidos golpes
institucionais como mecanismos de impedir avanços das lutas populares e da
classe trabalhadora na busca dos direitos elementares do acesso à terra,
comida, habitação, saúde, educação e cultura. (FRIGOTTO, 2017, p.20)
Dessa forma, o aluno não deve ser encarado como mero repositório, no qual o professor pode
arbitrariamente depositar informações e dados como bem desejar, conforme aponta o Escola
Sem Partido ao expor o que chamam de “doutrinação ideológica”. O aluno deve ser visto
como ser atuante em sua própria educação, capaz de reflexão e justaposição de suas vivências
e concepção de mundo em relação ao que é abordado em sala de aula como saber elaborado.
A realidade encarada pelo estudante e os conhecimentos obtidos de maneira informal através
de suas relações sociais devem ser considerados como parte importante do processo de ensino
e aprendizagem ao promover a possibilidade de debate dentro da sala de aula.
Diversos teóricos têm se preocupado em trabalhar os temas brevemente expostos até
aqui no que se refere à função social da escola, suas relações com a realidade social, política e
econômica vivenciada no país e a própria história da educação brasileira. Ignorando tais
produções feitas ao longo das últimas décadas, o Movimento Escola Sem Partido tem
defendido uma concepção completamente arbitrária da escolarização no Brasil. Segundo
Fernando de Araújo Penna,
Nós temos uma primeira característica dessa concepção que é a afirmação de
que o professor não é educador. Eu vou usar muito aqui o site do Escola sem
Partido e sua página de Facebook. O site tem uma “biblioteca politicamente
incorreta”, na qual eles indicam apenas quatro livros: os dois últimos são os
guias politicamente incorretos da história do Brasil e da América Latina, mas
o primeiro da lista é o livro Professor não é educador (de autoria de Armindo
Moreira). Qual é a tese desse livro? Uma dissociação entre o ato de educar e
o ato de instruir. O ato de educar seria responsabilidade da família e da
religião; então o professor teria que se limitar a instruir, o que no discurso do
Escola sem Partido equivale a transmitir conhecimento neutro, sem
mobilizar valores e sem discutir a realidade do aluno. (2017, p.36)
Nesse sentido, ocorre uma deturpação da função social da escola, que é encarada como local
de obtenção de instrução, o que remete a uma ideia puramente técnica de escolarização. O
professor seria responsável por transmitir conhecimentos, lembrando que tais saberes
deveriam obedecer ao que é preconizado pelo próprio MESP. Todo processo de escolarização
ocorrido em sala de aula seria asséptico, ou seja, ao docente caberia apenas repassar
informações aos alunos, sem relacioná-las aos seus cotidianos e deixando de promover
reflexões mais aprofundadas. Sendo assim, os professores considerados doutrinadores são
também vistos pelo Escola sem Partido como perversores da função social da escola na
medida em que não se atêm a administrar uma instrução neutra, usurpando o direito das
famílias de proporcionarem a seus filhos a verdadeira educação baseada em seus princípios
morais, religiosos e políticos. Nesse sentido, devemos considerar que essa visão de
escolarização defendida pelo MESP é que caracteriza uma verdadeira perversão à função
social da escola, uma vez que,
O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente,
no que a define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em
manuais ou apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função
docente no ato de ensinar tem implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo
confronto de visões de mundo, de concepções científicas e de métodos
pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler criticamente a realidade e
constituírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia da confiança e do diálogo
crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função: estimular os
alunos e seus pais a se tornarem delatores. (FRIGOTTO, 2017, p.31)
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
ALGEBAILE, Eveline. “Escola sem Partido: O que é, como age, para que serve”. In: FRIGOTTO, G.
(Org.) Escola “Sem” Partido – Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de
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https://www.cedes.unicamp.br/dl/1IA6TwzA0_MDA_85208_ Acesso em: 28 de maio de 2018.
Resumo: Tendo em vista as desigualdades sociais presentes em nossa sociedade, neste artigo
iremos tratar das desigualdades de gênero, a partir de referenciais teóricos de Nancy Fraser e
Will Kymlicka, e demonstrar que essas desigualdades acabam acarretando em práticas
discriminatórias, que afetam principalmente mulheres e homossexuais, não obstante, iremos
também demonstrar de qual forma estas práticas discriminatórias estão presentes no ambiente
escolar, apresentando dados da UNESCO e casos relatados pela mídia. E com base nesta
constatação apresentar a importância da discussão de gênero nas escolas, como uma forma de
tornar esses espaços mais inclusivos, sem anular as diferenças entre os indivíduos, e sim
compreende-las em sua diferença, em vista disso, nossos/as alunos/as poderão adquirir respeito
e reconhecimento da diversidade de gênero.
1
Universidade Estadual de Londrina – Especialização em Ensino Sociologia; Licenciada em Ciências Sociais;
lorenamoreira1403@gmail.com
INTRODUÇÃO
Sabendo que as desigualdades sociais são várias em nossa sociedade, portanto, são
necessários estudos que deem importância aos grupos de maior exclusão – mulheres,
homossexuais e negros/as, que sofrem com sobreposições de injustiças em nossa sociedade.
Neste artigo, trataremos especificamente das desigualdades de gênero e seus vários estigmas
construídos pela sociedade, e nesse caso, principalmente, analisarei de qual forma estas
questões estão presentes no ambiente escolar.
No Paraná de acordo com a pesquisa feita pela Secretaria dos Direitos Humanos
(SDH), em 2012, foram registradas 182 denúncias referentes a 370 violações relacionadas à
população LGBT e 61,16% das vítimas estão entre a faixa etária de 15 a 29 anos. Comparado
com a relação de 2011 houve um aumento de 167%. Já no caso de desigualdade de gênero que
afetam as mulheres, através de várias formas de subordinação, na qual uma delas é o estupro,
no Brasil a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e 70% das vítimas são crianças e
adolescentes, no entanto esse número pode ser até 10 vezes maior, já que esses dados foram
coletados apenas de denúncias feitas pelas vítimas (NUNES, 2016).
Dessa forma, dentro do ambiente escolar existem oprimidos e opressores, já que na
mesma é um lugar de diversas realidades, nas quais em muitos casos esses jovens sofrem
diversos tipos abusos (físicos ou/e psicológicos) ou são incentivados ao preconceito pelos
próprios familiares e amigos, dessa maneira, a escola deveria ser um lugar onde esses estigmas
construídos pela sociedade deveriam ser descontruídos, é um lugar onde nossos jovens
poderiam obter o entendimento, de que a violência seja ela sexual ou psicológica que sofrem
em casa, na escola ou em qualquer outro lugar, não é culpa deles, mas que eles são as maiores
vítimas destas ocorrências.
Sendo assim, o objetivo desse artigo é demonstrar que esses casos de discriminação,
preconceitos e abusos sexuais e psicológicos estão presentes dentro de muitas instituições
sociais, mas principalmente nas escolas, como podemos ver a partir desses dados apresentados
é possível identificar que a maioria das vítimas são crianças e adolescentes, portanto, grande
parte dessas vítimas frequentam escolas diariamente, e consequentemente é dentro do ambiente
escolar que essas práticas discriminatórias também ocorrem.
Dessa maneira a construção do objeto é feita a partir de dois tópicos, o primeiro tópico
(A construção social de gênero e seus grupos vulneráveis) será feita uma abordagem teórica
dos/as seguintes autores/as, Nancy Fraser que é sem sombra de dúvida uma importante
referência para o feminismo, seus textos são centrais para entender o debate sobre as
concepções de justiça social, contamos também, com a abordagem teórica de Will Kymlicka
que redigiu um sintético, mas extremamente relevante, manual sobre os grandes temas da
filosofia política contemporânea, e um dos temas por ele abordados é o feminismo. Neste
tópico, tratamos da construção social de gênero, que consequentemente acarretam em várias
formas de estigmas, subordinações e discriminações que afetam principalmente as mulheres e
os homossexuais e explicamos de forma sintetizada os conceitos de orientação sexual e
identidade de gênero.
No segundo tópico (Gênero e escola), evidenciamos a partir de uma um
panorama diversificado, uma coleta de dados diversos que expõe os casos de violência no
ambiente escolar, enfatizando também o despreparo dos/as professores/as com a abordagem,
com relação a isso apresento as discussões que acontecem em tornos do PNE2 e as DCN’S3
para tornar a educação mais igualitária e democrática, no entanto a temática em torno da questão
de gênero, é alvo de muita polêmica, desse modo acaba resultando trazendo vários percalços
para que esses assuntos sejam abordados em sala de aula.
Após a apresentação destes dois tópicos, propomos nas considerações finais,
juntamente com a abordagem teórica de Juarez Tarcísio Dayrell, que desenvolve pesquisas em
torno da temática juventude, educação e cultura, que nos aproximemos mais da nossa juventude,
e tentemos perceber o que é ser jovem, quais são as maneiras de ser jovem, e também que
tenhamos um olhar mais sensível em relação a realidade de cada um dos nossos jovens , uma
vez que a escola é um dos principais espaços de formação de cidadania e socialização, por essa
razão, é importante que investiguemos as desigualdades de gênero, podendo assim explorar os
problemas que são causados e ao entende-los e estarmos cientes, poderemos falar em meios
parar introduzir as discussões de gênero nas escolas.
Kymlicka (2006) relembra que a lei contra a discriminação sexual foi baseada na lei
contra a discriminação racial e que ambas preveem uma sociedade “cega” para cor e sexo.
Porém, ainda que seja concebível, com muito esforço, imaginar uma sociedade “cega para a
cor” é muito difícil afirmar isso em relação ao sexo.
No entanto, esse tipo de raciocínio resultou em processos positivos para as mulheres,
garantindo o acesso ou a competição neutra em diversos espaços da sociedade, como, por
exemplo, na educação, nas diversas carreiras, nas modalidades esportivas, etc. Porém, o que
essa abordagem não fez foi trabalhar com a hipótese de que acesso e competição poderiam não
ser suficientes para uma sociedade livre de desigualdades sexuais. Isso porque, na maior parte
das vezes, as instituições sociais são construídas baseadas nos interesses dos homens e mesmo
em uma competição neutra os cargos são feitos por e para homens, ou seja, quanto mais uma
sociedade demarca as posições de neutralidade de gênero, mais difícil é enxergar as
desigualdades sexuais.
Os homossexuais também são alvo das desigualdades de gênero, assim como Fraser,
podemos chamar essa desigualdade de “sexualidade menosprezada”. Os homossexuais, sofrem,
construção autoritativa de normas que privilegiam heterossexuais. Ao lado disso está
a homofobia, desvalorização cultural da homossexualidade. Ao terem sua sexualidade
desacreditada, os homossexuais estão sujeitos à vergonha, molestação discriminação,
enquanto lhe são negados direitos legais e proteção igual (...); gays e lésbicas podem
ser despedidos de trabalho assalariados e têm benefícios de previdência social
baseados na família negados. (Fraser, 2001, p. 257-258).
Muitos ainda pensam que a homossexualidade é uma escolha, no entanto, se fosse uma
escolha, muitas pessoas escolheriam ser hétero, para não terem que sofrer com todas essas
opressões e estigmas construídos pela nossa sociedade. É necessário que saibamos diferenciar
identidade de gênero e orientação sexual; Identidade de gênero é o modo de ser feminino ou
masculino independente do seu sexo biológico, é maneira do como a pessoa se vê, seja ela
feminina, masculina, ambas ou até mesmo nenhuma, porém, aquilo que foge do parâmetro da
normalidade - quem tem vagina é considerado mulher (feminino) e quem tem pênis é
considerado homem (masculino), tende a ser visto como anormal. Consequentemente, dessa
forma, lésbica gays, travestis, transexuais, transgêneros são vistos como "anormais”.
E a orientação sexual seria o desejo, o sentimento e a atração. Atualmente são
reconhecidos 3 (três) tipos de orientações sexuais: a heterossexualidade, homossexualidade e a
bissexualidade, ao contrário do que muitas pessoas ainda pensam, pessoas transgêneros
(travestis ou transexuais) não são necessariamente homossexuais, assim como homens
homossexuais não são forçosamente femininos ou afemininados e tampouco mulheres lésbicas
são necessariamente masculinas ou masculinizadas (JESUS et al., 2006), no entanto, a
heterossexualidade e a heteronormatividade ainda é a esperada como a forma correta na ordem
social.
Dada a multiplicidade e variação da sexualidade humana, não se pode afirmar que
haja alguma escolha mais natural ou normal do que outra, pior, melhor, superior ou
inferior (SOUSA FILHO, 2003). Como nos lembra Jurandir Freire Costa: “Não existe,
na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou
adequada a todos os sujeitos. (COSTA, 1992: 145). (HENRIQUES, Ricardo, et al,
2007, p.18)
GÊNERO E ESCOLA
No site da secretaria da educação do Paraná, é encontrado um espaço que disponibiliza
diversos materiais (cadernos temáticos, recursos didáticos, etc.) para contribuir com a prática
pedagógica, com temáticas que reconhecem as diversidades e propõem uma igualdade de
Não obstante, uma pesquisa realizada pela UNESCO67, revelou que para 59,7% dos
professores/as é inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que 21,2%
deles/as não gostariam de ter vizinhos homossexuais, outra pesquisa, também realizada pela
UNESCO em 13 capitais brasileiras, forneceu certa compreensão do alcance da homofobia no
espaço escolar (nos níveis fundamental e médio) (HENRIQUES, 2007), como podem ser
observados nas figuras 1, 2, 3, 4 e 5.
5
Os cadernos SECAD (Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e diversidade), são produzidos para
de documentar as políticas públicas da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do
Ministério da Educação (HENRIQUES 2007)
6
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura
7
A pesquisa foi realizada entre maio e abril de 2002, para descrever o perfil dos/as professores/as em todas as
unidades da federação brasileira, incluindo 5 mil professores da rede pública e privada
47,90%
30,5%
Vitória
Belém
Figura 1 - Percentual de professores/as que declara não saber como aborda relativos à homossexualidade em
sala de aula
Fonte: HENRIQUES (2007, p. 27)
18%
São Paulo
10%
Manaus
9%
Recife
7% Porto Alegre
20%
18%
Distrito Federal
São Paulo
10% Manaus
9% Recife
Porto Alegre
7% 7%
6% Florianópolis
Campo Grande
Figura 3 – Percentual dos estudantes do sexo masculino que não gostariam de ter colegas de classe
homossexuais.
Fonte: HENRIQUES (2007, p. 28)
Distrito Federal
20% São Paulo
18% Manaus
Recife
Porto Alegre
Florianópolis
10% Campo Grande
9%
7% 7% Goiânia
6% 6%
5% 5% 5% Vitória
4%
3% 3% Fortaleza
Belém
Salvador
1
Figura 48 - Alunos, por capitais das Unidades da Federação, segundo relatos de violência sexual e/ou estupros
no ambiente da escola, 2000 (%)
Fonte: ABRAMOVAY e RUA (2002, Pg. 250)
8
“solicitou-se aos informantes: "Marque com um X se você sabe que já aconteceu nesta escola:
estupro ou violência sexual dentro ou perto da escola. Os percentuais referem-se apenas as
respostas afirmativas. (ABROVAY, Miriam, RUA, Maria das Graças, 2002, pg. 250).”
Distrito Federal
7% 7% Goiânia
6% 6%
5% 5% 5% Vitória
4%
3% 3% Fortaleza
Belém
Salvador
-
Figura 59 - Membros do Corpo Técnico-pedagógico, por capitais das Unidades da Federação, segundo relatos
de violência sexual e/ou estupros no ambiente da escola, 2000 (%)
Fonte: ABRAMOVAY e RUA (2002, Pg. 250)
Alguns casos também foram relatados pela mídia, neste artigo apresentamos 4 dados
coletados que exemplificam as afirmações por sites de jornalismo e entretenimento, sendo eles,
o Pragmatismo Político, UOL Educação, G1 e Catraca Livre.
9
“solicitou-se aos informantes: "Marque com um X se você sabe que já aconteceu nesta escola:
estupro ou violência sexual dentro ou perto da escola. Os percentuais referem-se apenas as
respostas afirmativas. (ABROVAY, Miriam, RUA, Maria das Graças, 2002, pg.252).”
“Às vezes eu sinto que ninguém gosta de mim e que a única solução é me matar”. Essa
frase é de um garoto de 15 anos que teria sido vítima de bullying homofóbicos na Escola
Estadual Onofre Pires, na cidade de Santo Ângelo, Rio Grande. De acordo com o relato do
jovem, um colega de sala o atingiu com socos e pontapés na saída do colégio (...) estudando há
apenas um mês na escola, ele afirmou que desde o início das aulas vinha sofrendo ofensas
verbais da maioria da turma. No dia em que apanhou do colega, o menino disse ter pedido para
ficar até mais tarde na escola uma vez que o agressor já teria feito ameaças durante o período
de aula. No entanto, ainda segundo ele, seu pedido não foi atendido. Na saída da aula, ele foi
agredido. (MARTINS, 2012).
Toda via, vale ressaltar que violência/assédio sexual no debate feminista e de direitos
humanos, de acordo com Abramovay, Castro e Silva (2004, pg. 259-258) tais práticas são
impostas por meio
de jogo emocional, violência física, ameaças ou indução de sua vontade, podendo variar
na prática sem ou com contato sexual (...) olhares, gestos, piadas, comentários obscenos,
exibições – de abusos como propostas, insinuações e contatos físicos aparentemente não
intencionais.
Desta forma, uma das metas propostas para garantir a equidade e a qualidade da
educação em um país tão desigual como o Brasil, dessa maneira, o objetivo da meta proposta
era de promover a igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual entre suas
diretrizes (INSTITUDO UNIBANCO 2016). Mas, durante a tramitação do projeto, as metas do
PNE foram alteradas, e a versão final, preconiza a promoção da cidadania e a erradicação de
todas as formas de discriminação de maneira genérica (INSTITUTO UNIBANCO, 2016),
sendo assim, foi eliminada a meta voltada à promoção de igualdade de gênero e orientação
sexual nas escolas.
Dessa maneira, a partir das DCNs’ as quais são normas obrigatórias para a
Educação Básica que orientam o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino,
10
Ministério da Educação
é encontrado um tema direcionado para a “Educação em Direitos Humanos”, que tem como
principal objetivo, promover uma educação universalizada, que valorize e desenvolva
condições para a garantia da dignidade humana, a partir dos seguintes princípios: Dignidade
humana; igualdade de direitos; reconhecimento e valorização das diversidades; laicidade do
Estado; democracia na educação; transversalidade, vivência e globalidade e por último
fundamenta-se na sustentabilidade socioambiental.
A partir da nossa temática - gênero, destacamos dois princípios:
• Igualdade de direitos: O respeito à dignidade humana, devendo existir em
qualquer tempo e lugar, diz respeito à necessária condição de igualdade na orientação
das relações entre os seres humanos. O princípio da igualdade de direitos está ligado,
portanto, à ampliação de direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais a todos os cidadãos e cidadãs, com vistas a sua universalidade, sem
distinção de cor, credo, nacionalidade, orientação sexual, biopsicossocial e local de
moradia.
• Reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades: Esse princípio
se refere ao enfrentamento dos preconceitos e das discriminações, garantindo que
diferenças não sejam transformadas em desigualdades. O princípio jurídico-liberal de
igualdade de direitos do indivíduo deve ser complementado, então, com os princípios
dos direitos humanos da garantia da alteridade entre as pessoas, grupos e coletivos.
Dessa forma, igualdade e diferença são valores indissociáveis que podem impulsionar
a equidade social. (DIRETRIZES CURRICULARES, 2013, p. 502).
No entanto mesmo que exista esta categoria de Educação em direitos humanos nas
Diretrizes, com tais fundamentos, é importante resaltar que na prática é necessário que
enfrentemos alguns desafios para ser colocado em prática todos estes fudamentos nas escolas,
é necessário que exista uma formação por parte dos/a profissionais da educação - de diversas
areas, pautadas nas questões pertinentes aos direitos humanos, mas não só isso, é necessário
também que haja respeito e valorização desses/as profissionais, garantindo condições dignas de
trabalho (DIRETRIZES 2010) e principalmente é indispensavel que haja o reconhecimento do
quão grande é importante a Educação em Direitos Humanos nas escolas,
posto que direitos humanos e educação em direitos humanos são
indissociáveis, o oitavo desafio se refere à efetivação dos marcos teórico-
práticos do diálogo intercultural ao nível local e global, de modo a garantir o
reconhecimento e valorização das diversidades socioculturais, o combate às
múltiplas opressões, o exercício da tolerância e da solidariedade, tendoem vista
a construção de uma cultura em direitos humanos capaz de constituir
cidadãos/ãs comprometidos/as com a democracia, a justiça e a paz.
(DIRETRIZES CURRICULARES, 2013, pg.510)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola ainda é vista como uma instituição universal e única, que compreende uma
homogeneização dos/as alunos/as e consequentemente dos conteúdos, sem dar importância a
diversidade dos/as alunos/as, mas assim como confirma Dayrell:
A relação que os jovens têm com a escola é baseada em diversos significados tanto
positivos quanto negativos. Ela é um espaço de enorme relação de sociabilidade entre os jovens,
os valores e comportamentos apreendidos no âmbito da família, por exemplo, são confrontados
com outros valores e modos de vida (DAYRELL 2007). Dessa maneira é necessário que
também haja uma sociabilidade entre dos/as alunos/as e os/as professores/as, onde possa haver
um diálogo entre o professor/a e aluno/a, mas não apenas para a transmissão de conteúdo, mas
para que também possa criar uma relação na qual tenha uma confiança mutua, e o resultado
seria de um impacto positivo na relação dos jovens com a escola (LEÃO, DAYRELL e REIS
2011), já que a mesma possui dificuldades para a compreender estas diversidades existente
entre os jovens, seja ela étnica, de gênero, classe, orientação sexual entre outras expressões
(DAYRELL 2007).
Sendo assim, é fundamental olhar para esses jovens como sujeitos socioculturais e
compreendê-los na sua diferença, já que os mesmos chegam na escola com um acúmulo de
experiências vivenciadas em diversas instituições sociais, que possuindo uma historicidade,
com visões de mundo, mesclas de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos com lógicas
de comportamento e hábitos que lhe são próprios (DAYRELL, 1990) à sua situação, ou seja,
o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais
– classe, gênero, etnia (DAYRELL, 2007), e entre outros aspectos, são dimensões que vão
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LOURO, Guacira L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Trad. por Tomaz Tadeu
da Silva. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Inserir nome do autor para que possa ser
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MARTINS, Felipe, Aluno do RS é agredido na saída da escola por ser gay - professores
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NUNES, Fernanda, Uma Mulher é violentada a cada 11 minutos no Brasil. Estadão, 2016.
Disponível em: < http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,uma-mulher-e-violentada-a-cada-
11-minutos-no-pais,10000053690> Acesso em 30 dez 2017
1
Universidade Estadual de Londrina; Graduação em História (2013), Graduanda de Biblioteconomia;
barbara.colono@hotmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Ciência da Informação; lucifbc@gmail.com.
Introdução.
O processo histórico e os avanços tecnológicos nos fizeram desaguar em um
universo sustentado pela informação, vivemos no que muitos definem como Sociedade da
Informação, na qual as estruturas econômicas, políticas, tecnológicas e sociais se configuram
em função da informação e do conhecimento, propalados intensamente no século XX. A
quantidade e a velocidade com que somos atingidos por mensagens, atualmente, é
incalculável; a tecnologia possibilitou maior autonomia e acesso aos mais diversos conteúdos,
porém precisamos nos questionar: todos os sujeitos estão inseridos nessa sociedade da
informação? Ela existe de fato ou é apenas uma utopia?
O capitalismo fez da informação um elemento de poder, ao mesmo tempo que a
informação possibilita a emancipação dos indivíduos, ela controla e segrega quando se torna
um produto da indústria capitalista. As desigualdades no Brasil, fruto desse sistema, criam
duas realidades opostas, uma marcada pelo desenvolvimento tecnológico e informacional e
outra onde a pobreza limita o acesso às tecnologias e à informação. As unidades de
informação deveriam combater essas disparidades, possibilitando o acesso e apropriação 3 da
informação, porém muitas unidades públicas agem como mantenedoras da ordem social
vigente.
Como reação a esse cenário, as comunidade menos privilegiadas desenvolvem ações
para promover a democratização da informação, entre essas ações percebe-se o surgimento de
bibliotecas comunitárias, que são unidades informacionais criadas e gerenciadas pelo próprio
grupo de maneira não estatal. As bibliotecas comunitárias surgem em espaços marginais e sua
população tem necessidades informacionais específicas.
Pensando nas desigualdades informacionais existentes na cidade de Londrina/PR e
na opressão em relação às mulheres, este projeto se propõe a conhecer as bibliotecas
comunitárias presentes na cidade, com objetivo de perceber como se dá a mediação da
informação nesses espaços no que diz respeito às questões em torno das mulheres dessas
comunidades e como essas bibliotecas podem colaboram para a emancipação das mulheres.
Para tanto, optou-se pela pesquisa de natureza bibliográfica, qualitativa, exploratória e
descritiva, tendo como ferramenta para coleta de dados a entrevista semiestruturada.
3
Apropriação (informacional e cultural) na Ciência da Informação é compreendida como construção de sentido
na relação entre sujeito e objeto, “resultado de reflexões críticas sobre experiências passadas”. (BATISTA, 2018,
p. 17).
Todo esse caminho que percorremos até aqui foi para visualizarmos o quanto a
biblioteca se transformou e no quão importante pode vir a ser, enquanto ferramenta para
emancipação dos sujeitos, especialmente no que diz respeito às mulheres de comunidades
periféricas. Entretanto, o protagonismo social só é possível por meio da mediação e da relação
cultural entre os sujeitos, por esse motivo propomos pensar sobre os fatores que estabelecem a
opressão sobre a mulher e como as mediações e o papel social do bibliotecário podem
colaborar para alcançarmos o ideal de biblioteca forum, tornamos a biblioteca algo para além
de um “deposito de livros”, um local para reflexão, debate e desconstrução das estruturas
opressoras.
Almeida Junior (1997) que discorre sobre o modelo tradicional e as propostas alternativas que
surgiram na tentativa de transformar a concepção e a atuação da biblioteca pública tradicional;
e a tese de Elisa Machado (2008) “Bibliotecas comunitárias como prática social no Brasil”
que busca conceituar a biblioteca comunitária e tenta compreender a relação entre os sujeitos
e o objeto da pesquisa, possibilitando responder questões referentes a construção desses
espaços, o perfil do profissional que neles atuam, como se relacionam com a comunidade,
qual o papel da Biblioteconomia e da Ciência da Informação e quais as políticas públicas são
realizadas para esses projetos.
Segundo Machado (2008), as bibliotecas e as práticas sociais estão vinculadas ao
contexto no qual ocorrem, a biblioteca comunitária surge como uma resposta aos impactos
causados pela pós-modernidade, como a sensação de desequilíbrio, a aceleração do tempo e
das relações provocada pelo avanço tecnológico, assim como o individualismo e a
desigualdade no acesso à informação.
A informação e o conhecimento tornaram-se um problema social ao serem
convertidos em produtos aos quais somente quem tem poder de compra tem acesso, situação
agravada ainda mais pela falta de políticas pública. Como forma de combater a exclusão
social e solucionar a falta de acesso à informação e à leitura, surgem as bibliotecas
comunitárias a partir de ações comunitárias coletivas (MACHADO, 2008).
A definição do termo é complexo, muitas bibliotecas com as mesmas características
e objetivos usam o termo biblioteca popular, porém a autora ressalta que a criação da
biblioteca popular esta imersa no movimento populista do governo brasileiro entre as décadas
de 1930 e 1960. Muitas vezes a mudança ocorre apenas na esfera semântica, conservando os
mesmos serviços da biblioteca pública, como observado por Almeida Junior (1997).
Entretanto, Machado (2008) elenca algumas particularidades da biblioteca
comunitária:
1. a forma de constituição: são bibliotecas criadas efetivamente pela e não
para a comunidade, como resultado de uma ação cultural.
2. a perspectiva comum do grupo em torno do combate à exclusão
informacional como forma de luta pela igualdade e justiça social.
3. o processo de articulação local e o forte vínculo com a comunidade.
4. a referência espacial: estão, em geral, localizadas em regiões periféricas.
5. o fato de não serem instituições governamentais, ou com vinculação direta
aos Municípios, Estados ou Federação (MACHADO, 2008, p. 60-61).
Dessa forma, a biblioteca comunitária pode ser considerada um outro tipo de espaço,
diferente da biblioteca pública, pois se pauta na autonomia, flexibilidade e articulação local,
além de valorizar a ação cultural acima da organização e tratamento da informação
(MACHADO, 2008), contrariando Almeida Junior (1997) que a define apenas como um
simulacro da biblioteca pública.
Paulo Freire (1983, 1996, 2011) defende que a revolução acontece por meio da
educação crítica, que ao contrário da educação bancária promove a conscientização política
dos sujeitos, que percebem-se como oprimidos e buscam mudança através da práxis. O
diálogo e a comunicação são promotores da libertada, pois por meio destes os indivíduos se
colocam como sujeitos do processo histórico, capazes de transformar o mundo.
Freire vê a educação como uma ação política e cidadã, que deve acontecer não
apenas na sala de aula, mas em todos os espaços de interação social – e por que não nas
bibliotecas comunitárias? Flusser (1983), define a biblioteca como um instrumento de ação
cultural, sendo a ação cultural a ideologia política de uma profissão, que possui uma
motivação manipuladora (normativa) ou visa promover a emergência cultural
(transformadora). Para que a ação cultural seja transformadora é preciso promover o encontro
entre os sujeitos fora desse sistema normativo, possibilitando a criatividade e criação, por
meio da qual o indivíduo se torna cidadão(ã).
Segundo Flusser (1983, p. 162), “para que uma biblioteca possa vir a ser uma
biblioteca-ação cultural é necessário que ela se volte para o não público” – são aqueles a
quem a sociedade limita ou recusa os meios para optar livremente. Na prática, podemos tornar
as biblioteca comunitárias em espaços de transformação social por meio do diálogo crítico
que objetive a autonomia e da aproximação entre as instituições/movimentos que lutem por
direitos humanos e sociais.
No caso das mulheres, as biblioteca comunitárias podem estabelecer relações entre as
políticas pública de acesso à informação e de fomento à leitura com as políticas públicas de
gênero, raça e classe social. É possível promover campanhas de combate ao racismo e à
violência contra a mulher, disponibilizar informações sobre as centrais de atendimento à
mulher, esclarecimento sobre os direitos sexuais, reprodutivos e no campo da saúde em geral,
não apenas para as mulheres brancas, mas as negras, indígenas, com deficiências, LGBT’s
jovens e idosas. Além de proporcionar orientação sobre a os direitos trabalhistas, promover
cursos de capacitação e educação financeira para que as mulheres conquistem a autonomia
financeira.
No âmbito cultural, a biblioteca pode realizar ações de valorização da mulher e da
diversidade; viabilizar a apresentação de teatros, danças, palestras e rodas de leitura em torno
das questões femininas, que deem visibilidade as figuras femininas do mundo das artes e às
próprias moradoras da comunidade, criando condições para o empoderamento dessas
mulheres. Entretanto, para que essas ações se efetivem é preciso que haja recursos
financeiros, tecnológicos, humanos e intelectuais – o que permanece sendo o maior desafio
das bibliotecas brasileiras se levado em conta o descaso do Governo frente a essas unidades –
além da ação mediadora e da responsabilidade social das pessoas que atuam nesses espaços.
alcançado por meio do processo dialógico e da consciência do mediador enquanto sujeito que
age, constrói e interfere no meio, sendo responsável pela produção humanizadora do mundo.
A base da ação mediadora é a dialogia; é através da comunicação e do
compartilhamento que os sujeitos constroem significações, promovem o encontro e a
manifestação das subjetividades, colaborando para a reflexão crítica sobre os conhecimentos
que nos faltam e torna possível o desenvolvimento intelectual, como sugere Vygotsky (apud
GOMES, 2014), é pela ação mediadora que desenvolvemos nossa potencialidade. A
mediação, segundo Freire (1996), nos transforma em sujeitos da nossa própria história, pois
nos faz capazes de pensar sobre as coisas do mundo e nosso papel na sociedade, com essa
consciência podemos interferir na realidade e modificá-la, agindo como protagonistas.
O mediador da informação é movido pelas necessidades informacionais e, por meio
de sua ação todos os envolvidos na mediação podem descobrir novas possibilidades e
potencialidades. O mediador, como um protagonista social, tem a responsabilidade de cuidar,
organizar, preservar, disseminar e recuperar a informação para acesso, uso e apropriação pela
sociedade, sua ação reflete em autoconhecimento e auto realização, configurando assim, a
dimensão estética da mediação, na qual os sujeitos encontram a poética e o belo no ato de
criar e conforto no ambiente informacional, conforto esse garantido pela dialogia, pela
comunicação colaborativa entre mediador e mediado (GOMES, 2014).
Henriette Gomes (2014) chama nossa atenção para a dimensão ética da mediação,
que estabelece uma linha tênue entre interação e manipulação. A ação mediadora é uma
interferência na realidade, porém é preciso agir com cautela para amenizar os riscos de
manipulação, com ética, consciência e competência é possível interferir sem manipular,
estabelecendo uma relação de confiança, diálogo e cooperação:
A consciência e a competência para interferir evitando a manipulação são
dependentes da conduta ética associada à busca de identificação de sinais
que indiquem o grau de conforto, confiança, cumplicidade e cooperação que
se pode gerar na ação mediadora. Isso implica no desenvolvimento de
competências para acolher, ouvir e dialogar com o outro, implica na
capacidade de escuta e observação sensíveis dos comportamentos que se
desdobram da ação mediadora, além da adoção de princípios que inibam a
censura e o direcionamento do acesso à informação que desconsidere a
igualdade de direitos e a liberdade de pensamento. (GOMES, 2014, p. 53).
Assim, a dimensão ética revela a mediação como um ato de cuidar, pois se preocupa
com o coletivo, em garantir o direito à informação, em estabelecer um sentimento de pertença
e com a humanização do mundo. A mediação também implica na formação de usuários,
partindo da perspectiva de Pareyson na qual os seres humanos estão em constante formação,
Gomes (2014) demonstrar que a mediação tem papel determinante na formação, pois é através
das experiências e da interação – entre sujeitos, sujeitos e objeto e sujeitos e o meio – que a
formação acontece, alterando o estado cognitivo e afetivo do indivíduo.
Considerações finais.
A falta de acesso à informação é produto das desigualdades sociais e ao mesmo
tempo produtora/mantenedora das condições de subordinação e desigualdade. Acredita-se que
a mediação da informação possibilita as mulheres tornarem-se protagonistas sociais e
melhorarem suas condições de vida a partir da conquista de sua autonomia e que as
bibliotecas comunitárias são espaços promotores da emancipação.
O projeto se inspira na luta do movimento feminista por direitos sociais que
compreende a existência feminina sob vários aspectos – de gênero, étnicos, financeiros,
regionais, etc. – e julga que tais conquistas só serão possíveis por meio da educação das
mulheres, mas uma educação voltada para a autonomia e protagonismo social, sendo as
bibliotecas espaços capazes de promover a apropriação cultural e informacional por parte
delas, desde que a ação mediadora seja pautada nas usuárias e em suas necessidades
informacionais, para isso torna-se essencial conhecer a realidade dessas mulheres, colocando-
as como sujeitos da ação.
Este foi o primeiro passo de uma pesquisa que pretende se estender ao campo prático
ao fazer um mapeamento das ações de mediação da informação direcionadas às mulheres das
bibliotecas comunitárias de Londrina, conhecendo a realidade desses espaços e das mulheres
que as frequentam, na intenção de contribuir com fortalecimento dessas unidades
informacionais e com a emancipação da mulher. A pesquisa não pretende apresentar ideias
conclusivas, mas sim continuar promovendo o debate em torno do acesso à informação e a
opressão sobre a mulher.
Referências
ALMEIDA JUNIOR, Oswaldo Francisco de. Bibliotecas públicas e bibliotecas
alternativas. Londrina: Ed. UEL, 1997.
ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Correntes teóricas da ciência da informação. Ci. Inf.,
Brasília, DF, v. 38, n. 3, p.192-204, set./dez., 2009. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ci/v38n3/v38n3a13.pdf. Acesso em: 03/04/2018.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. 2.ed. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1967.
______. O segundo sexo: fatos e mitos. 4.ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 1996. (Coleção Leitura).
______. Pedagogia do oprimido. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
MACHADO, Elisa C. Bibliotecas comunitárias como prática social no Brasil. São Paulo:
USP, 2008.
PERROTTI, Edmir. Sobre informação e protagonismo social. In: GOMES, Henriette Ferreira;
NOVO, Hildenise Ferreira (Orgs). Informação e protagonismo social. Salvador: EDUFBA,
2017. 11-26p.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v.lS,
n.2, jul./dez. 1990.
WERTHEIN, Jorge. A sociedade da informação e seus desafios. Brasília: Ci. Inf., v.29, n. 2,
p. 71-77, maio/agosto. 2000.
Resumo: Esse trabalho teve como objetivo geral analisar as relações de gênero no ambiente
escolar, com foco na participação feminina no campo da ciência, a fim de despertar a
consciência coletiva para o reconhecimento e valorização de práticas sociais justas e
igualitárias nos anos finais do ensino fundamental. Inicialmente foi feito um estudo de revisão
de literatura de autores que dialogam sobre o tema gênero e ciência para subsidiar a discussão,
dentre eles se destacam Schiebinger (2001); Louro (2008), Silva (2008) e Del Priore (1994).
Para a leitura e interpretação das produções imagéticas dos estudantes foi feito uso da Análise
de Conteúdo de Laurence Bardin (2011) e representações de Roger Chartier (1990). Partimos
de uma abordagem qualitativa, a fim de refletir sobre as relações de gênero, focalizando a
participação feminina no campo da ciência. Utilizamos como principal instrumento para a
coleta de dados a produção imagética de estudantes dos anos finais do ensino fundamental
com a finalidade de identificar quais as representações que esse grupo possui acerca da
participação feminina na ciência. Pedimos que desenhassem uma pessoa cientista, sem se
identificarem, apenas colocando se o autor do desenho era “homem” ou “mulher”. A
caracterização de cientista retratada por esses estudantes revela uma pessoa que tem uma
inteligência acima dos padrões e está longe de ter uma vida com atividades rotineiras como,
por exemplo, comer, dormir, se divertir, ter um convívio social. A discrepância em relação às
quantidades expressas, de mulheres e homens, e as características dos desenhos é reflexo de
uma sociedade machista que ainda não legitima a mulher como protagonista no meio
científico.
1
E. E. E. F. M. Cel Jorge Teixeira de Oliveira; Graduada em Matemática pela Universidade Federal de
Rondônia - UNIR; eronildalimeira@gmail.com.
2
E. E. I. E. F. Mundo do Balão Mágico; Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal de
Rondônia- UNIR; adrielen.amancio@gmail.com.
Introdução
Escrever sobre a história das mulheres não é uma tarefa fácil, pois durante muitos
séculos elas foram invisibilizadas nos registros dos historiadores. Apenas em 1980 que esse
tema começa a ganhar força. Mas, afinal, o que significa escrever uma história das mulheres?
E quais as implicações de citá-las ou invisibilizá-las na história da ciência?
Na verdade, “não apenas a ciência é masculina, mas a maioria das produções humanas
(ainda) é predominantemente masculina” (CHASSOT, 2013). Como primeiro ponto, Silva
(2008) coloca que a história é um local onde as mulheres vêm questionar o papel central que
os homens, tradicionalmente, têm ocupado nas narrativas. Em países como Estados Unidos e
França, a busca pelos direitos das mulheres e o reconhecimento da condição feminina se deu
mais cedo que entre nós.
Então, quando as mulheres passaram a fazer parte das preocupações dos/das
historiadores/as? Em que momento suas vozes passaram a ser ouvidas? Para alguns isso se
deu por influência das transformações trazidas pela Escola de Annales3; há ainda argumentos
que seja pela própria mudança na noção de ciência e também as contribuições do movimento
feminista. O fator importante foi as mudanças surgidas de novos paradigmas científicos. A
crítica ao racionalismo e o fim da exigência de conceitos teóricos muito rígidos relativizou o
conhecimento histórico. Os historiadores provocaram uma reviravolta na perspectiva de
análise, por passarem a interpretar os dados históricos de forma dialética. Assim, passaram a
dar mais valor a questões antes não tidas como importantes. A das mulheres é um exemplo
(SILVA, 2008).
De acordo com Bruschini e Unbahaum (2002 apud SILVA, 2008), com a entrada das
mulheres nas universidades, as pesquisas começaram a envolver mulheres, pois todo
pesquisador se sente motivado a estudar sua própria realidade. E ao começarem a questionar
sobre “n” fatores que envolviam as mulheres na história da humanidade, começaram a
questionar a si mesmo sobre seus papéis dentro da sociedade.
Começaram, então, a questionar sobre a conquista de seu espaço social, criando
movimentos feministas. Esses movimentos nasceram intimamente ligados aos movimentos
políticos dos anos de 1960 e estreitamente vinculados à efervescência cultural e política que
3
De acordo com Michelle Perrot (2005 apud SILVA, 2008), o foco da escola de Analles centrava-se na ruptura
significativa no campo historiográfico, não reservando atenção à figura feminina, mas apenas aos planos
econômicos e sociais. Contudo, é preciso destacar que quando se falou de social, a Escola de Analles possibilitou
estudos sobre a vida privada, as práticas cotidianas, o casamento, a sexualidade, ou seja, temas que acabaram
permitindo a inclusão das mulheres na história.
varria todo o mundo ocidental. Esses movimentos foram extremamente importantes, pois
vinham questionando e desmontando valores de famílias que consideravam a mulher numa
posição subalterna.
Por isso, para começarmos esse diálogo, é preciso que conheçamos um pouco da
história das mulheres, principalmente no Brasil, frente aos avanços científicos e tecnológicos.
Não dá para falar, pesquisar ou até mesmo defender a igualdade entre os gêneros sem antes
conhecer a história que envolve grandes movimentos de luta. Dentre esses movimentos, um
dos que impulsionaram e revolucionaram, tanto as discussões sobre o assunto, quanto a
posição das mulheres dentro da sociedade em relação à igualdade de gênero, foram os
movimentos feministas. Esses movimentos se caracterizam em três grandes momentos, ou,
como estudiosos os chamam, em três grandes Ondas do Feminismo.
A primeira onda se refere ao movimento que ocorreu na América do Norte, que
visava a promoção de igualdade de direitos e direitos contratuais e de propriedade para
homens e mulheres e o fim dos casamentos arranjados. No final do século XIX elas incluem a
conquista do poder político e começam a fazer campanha por direitos sexuais, reprodutivos e
econômicos das mulheres (MIRANDA; SCHIMANSKI, 2014).
A segunda onda se preocupou mais com as desigualdades sociais, culturais e
políticas. Com isso houve críticas ao movimento de liberação feminina, principalmente com
relação às mulheres intelectuais afro-americanas, “[...] argumentando que o movimento teria
desconsiderado as diferenças de raça e classe e não daria conta de atingir as questões que
dividiam as mulheres” (IBIDEM, p. 85).
A terceira onda vem de início para tentar suprir as “falhas” da segunda onda. Visava
desafiar os significados essencialistas de feminilidade. O foco começa a ser sobre
considerações de subjetividades relacionadas com a raça. Demonstrando que a questão de
gênero não se resume em apenas uma situação, mas está vinculada a uma diversidade ampla,
como o próprio universo humano (IBIDEM).
Com esse breve esboço, podemos notar quão importante os movimentos sociais são
para provocar mudanças na sociedade, principalmente quando falamos em mudanças que
tiram as chamadas “minorias” da marginalidade. Com isso, ao longo dos anos, as mulheres
estão conseguindo ocupar um pouco mais de espaço dentro dos ambientes antes considerados
exclusivamente masculinos. Mas ainda falta muito a se conquistar, muito a subverter.
As pesquisas científicas que focalizam a participação das mulheres na ciência são
muito importantes para compreendermos como foi (e ainda está sendo, principalmente nos
últimos anos, quando olhamos para o nosso atual cenário político brasileiro) difícil, a luta por
direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres. Esse cenário ainda muito
preconceituoso e machista é um reflexo da própria colonização (ou invasão) do Brasil.
Uma importante obra que nos ajuda a compreender o “papel” da mulher branca,
negra e indígena, nesse processo colonizatório do Brasil, é a de Del Priore (1994) intitulada A
mulher na História do Brasil. Podemos perceber que esse papel atribuído à mulher branca,
assim como à escrava ou à indígena, obedecia a estereótipos herdados do mundo europeu e de
seu processo civilizatório. A criação de normas e punições severas exclusivas às mulheres
criou uma atmosfera de vida austera e de subordinação. Essa realidade durou séculos.
Foi apenas a partir do sistema de produção colonial no Brasil que a história das
mulheres começa a ser registrada e contada formalmente. Esse momento foi fortemente
influenciado pelas reformas tanto católica como protestante que pretendiam garantir a
subordinação da mulher, seja a seu marido ou a qualquer estrutura coercitiva do Estado.
Vemos a influências que as entidades religiosas tiveram na construção do conceito de mulher
no início de nossa história (IBIDEM).
Mergulhada numa cultura na qual padrões e normas eram ditados por homens com fins
de garantir a supremacia masculina, o único feito reconhecido das mulheres que as tornavam
um ser admirado e num patamar superior até mesmo ao dos homens era o da gestação. Ou
seja, “[...] numa relação de hierarquia e dependência do homem, a gravidez, inundando a
gestante de privilégios e poderes, mistérios e fascinação, esvazia o conteúdo da subordinação
feminina, tornando os homens inúteis e excluídos do processo de gestação (IBIDEM, p. 51).
Porém, é importante destacar que, segundo a autora mesmo em meio a essa história de
percalços, existiu uma linha tênue de resistência feminina, manifestada pelo seu apoio em
“pregações religiosas” para superarem esse movimento de exploração e sofrimento. Essa
realidade perdurou por um bom tempo. O emponderamento das mulheres na história do Brasil
foi um processo gradativo. A luta dos movimentos de esquerda, a Semana de 22, o direito do
voto feminino foram só o começo das conquistas que os grupos minoritários iniciariam.
Louro (2008) recorda que somente a partir da década de 1960 os movimentos
feministas, bem como os demais movimentos de luta pela defesa do direito das minorias,
começaram a aparecer no cenário mundial. Na verdade, foi o movimento feminista que abriu
caminho para toda ação expressiva de luta das minorias. É importante entender que o conceito
de minoria não está ligado à minoria quantitativa, mas ao conceito que inferiorizou e silenciou
determinadas categorias ao longo da história da humanidade que se constituem, na verdade,
em maiorias. Quando grupos feministas passaram a debater a situação posta, outros foram
Metodologia
modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos, mas não se restringem a eles” (BARROS,
2005, p. 135).
Resultados e Discussões
Fazendo uma análise quantitativa dos dados (desenhos), notamos que dos 75, 61
deles trazem a figura de um homem cientista; em 11, a cientista é mulher; em 3 aparecem
mulher e homem trabalhando juntos.
6° 12 16 6 0 22
7° 13 14 1 2 17
8° 14 11 3 0 14
9° 15 20 1 1 22
Total de desenhos 61 11 3 75
Outra questão muito interessante, é que o 6º ano foi a única turma que mais desenhou
mulheres como cientistas. Este dado nos é de grande valor, pois essas crianças são egressas
dos anos iniciais do ensino fundamental, ou seja, a referência que elas têm de alguém que
estuda e ensina, sendo essa uma possível relação com uma pessoa cientista, é sua própria
professora (pedagoga), que como sabemos bem, na educação infantil e anos iniciais, a grande
maioria são mulheres.
Podemos perceber outro ponto que fugiu da regra, sendo também algo não previsto
por nós pesquisadoras. Nos 7º e nos 9º anos apareceram desenhos que indicavam um homem
e uma mulher trabalhando juntos. Isso nos deixou intrigadas e, ao mesmo tempo, com um ar
de satisfação, pois nesses desenhos percebemos que homens e mulheres podem ser cientistas
juntos. Esse dado nos dá um pontinho de esperança quando pensamos em igualdade de
gênero, pois a luta não é tirar os homens de cargos importantes, mas é promover
oportunidades justas para que mulheres chegarem a esses cargos e terem seus trabalhos
reconhecidos.
Assim, também podemos acrescentar que os nossos estudos e pesquisas só terão
impacto quando a sociedade, universidades, escolas começarem a discutir e refletir sobre
essas questões. Não basta que façamos pesquisas para ficarem “engavetadas”, precisamos de
mais.
Os estudos de gênero só têm real valor à medida que, desnaturalizando as
desigualdades, contribuam para uma efetiva transformação nas relações entre
homens e mulheres, equalizando as relações. Neste caso, não se trata apenas
de estudos que possibilitem a emergência de uma nova mulher, mas, de
maneira simultânea, é preciso que os homens aceitem participar da
construção de uma nova masculinidade (SILVA, 2008, p. 229).
Sabemos bem que essa não é uma tarefa fácil, principalmente quando pensamos na
resistência das famílias tradicionais em reconhecer a participação feminina na esfera pública
da sociedade. Outro ponto também que cabe refletirmos é sobre a atual conjuntura política
que vivemos, onde a grande maioria dos atuais governantes são homens brancos e velhos. Ou
seja, não há um interesse, por parte desses poderes, em dividir o espaço com as mulheres.
4
Eronilda de S. Limeira realizou essa mesma pesquisa com estudantes dessa mesma escola, porém com alunos
do Ensino Médio, em 2016. Assim, o ambiente social desses dois grupos é o mesmo. Por isso, ao pensarmos na
relação dos dois dados verificamos grandes semelhanças.
Assim como nossos e nossas estudantes poderão reconhecer que uma mulher possa fazer parte
desses poderes?
Apesar de poucos desenhos, 12 foi uma quantidade considerável para nós enquanto
pesquisadoras, pois em uma pesquisa anterior feito por Limeira (2016), como já citado
anteriormente, não haviam tantos que fugiam da regra. Isso nos fez refletir sobre a questão da
idade e a escolaridade desses estudantes. Nesses anos finais do fundamental, conseguimos
perceber ainda uma certa “inocência” no sentido de não estarem tão “poluídos” pelas
desigualdades presentes em nossa sociedade. Assim, sabemos que ninguém nasce
preconceituoso, nós vamos nos tornando. E se aprendemos o preconceito, podemos também
aprender o reconhecimento do outro e a igualdade de direitos.
Considerações Finais
A caracterização de cientista retratada por esses estudantes revela uma pessoa que
estuda bastante e está longe de ter as atividades rotineiras de um ser humano comum, como,
por exemplo, comer, dormir, se divertir, ter uma família ou um convívio social. A concepção
de cientista refere-se ao profissional ligado diretamente às ciências naturais, sobretudo
química, biologia e física, mas há inferências à matemática e à astronomia.
Foram poucas as situações que fugiram dessas características, mas elas nos fizeram
refletir que mesmo não tendo sido desenvolvido um trabalho que retratasse essas questões na
escola, como por exemplo uma intervenção, que discutisse questões de gênero, percebemos
que muitas crianças revelaram pensamentos críticos sobre essas situações.
Quando vemos 11 desenhos que destacaram a mulher como cientista, sem
descaracterizá-la como “mulher”, e 3 desenhos que apresentaram os dois, homens e mulheres,
trabalhando juntos, nos fizeram pensar que essas crianças tem uma “semente” plantada sobre
a igualdade de gênero. O que cabe agora é seus educadores regá-la por meio de projetos,
palestras e estudos.
Porém, ainda há uma discrepância em relação às quantidades expressas dos desenhos
e as características destes. Infelizmente é reflexo de uma sociedade preconceituosa que ainda
não legitima a mulher como protagonista no meio científico. Ao refletirmos sobre o ambiente
social no qual essas crianças e adolescentes pertencem, ao analisar o Projeto Político
Pedagógico da instituição, bem como os meios de comunicação que eles e elas têm acesso,
percebemos que o espaço escolar ainda é um dos poucos lugares de socialização para esses
estudantes dialogarem sobre uma sociedade que determina papéis distintos para homens e
mulheres.
Referências
CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
CHASSOT, Attico Inacio. A ciência é masculina? É, sim senhora! Coleção Aldus, n. 16, 6 ed,
São Leopodo/RS: Unisinos, 2013.
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 4 ed. São Paulo: Contexto, 1994.
MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-
32. 1999.
Resumo: O objetivo deste artigo é identificar as redes e articulações responsáveis pelas etapas
iniciais do Programa Pró-Equidade e Gênero enquanto política pública. Tais etapas
representam os primeiros estágios das políticas públicas, de acordo com o modelo utilizado
comumente para análise de política. Assim, elencamos as coalizões responsáveis pela
determinação da equidade de gênero e raça no mercado de trabalho como um problema a ser
discutido, incluído na agenda política e posteriormente tido na pauta para a formulação e
implementação de política pública. Para tanto, realizamos uma pesquisa qualitativa, de
documentos referentes ao Programa. Os resultados apontam para a atuação de coalizões de
diversas frentes, coordenadas pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM)
em parceria com organizações de atuação em âmbito nacional e internacional. No mais, a
pesquisa destacou a importância de se considerar aspectos históricos, culturais, políticos e
econômicos para o processo de análise do Programa enquanto política, tendo em vista as lutas
feministas, as desigualdades de gênero e raça no país, bem como as transformações no jogo
político nacional ocorrida nos últimos anos: fatores estes que influenciam no processo de
elaboração de políticas públicas que impactem a favor da equidade de gênero e raça no
mercado de trabalho.
Palavras-chaves: políticas públicas; mulheres; Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça.
1
UNESPAR; Mestre; ericacngdias@gmail.com.
2
UNICAMP; Doutora; dacosta@ige.unicamp.br
1. Introdução
Consolidar a participação das mulheres no mercado de trabalho, de forma equitativa,
inclusiva e capaz de eliminar diferentes formas de discriminação é um desafio para as
políticas públicas que têm como foco o público feminino, de diferentes raças. Um desafio
amplo e, ainda que tenha ganhado espaço nos últimos anos na agenda governamental,
demonstra um incipiente avanço quando determinados índices são analisados, como a
participação das mulheres em cargos de alta gerência nas empresas ou o salário das mulheres
negras diante de outras parcelas da população.
Todavia, as políticas existentes representam conquistas louváveis por promoverem a
inclusão na pauta e orçamento governamentais de temas historicamente tidos como não
prioritários por diferentes esferas do poder. Um daqueles exemplos é o Programa Pró-
Equidade de Gênero e Raça, cujas características se diferem de outras ações no sentido de
incentivar empresas e instituições, públicas ou privadas, a inserirem em suas culturas novas
formas de gestão, voltadas à equidade de gênero e raça em seus âmbitos internos. O que
representa, dessa forma, uma política pública com vistas também à atuação de entes de
entidades privadas na tentativa de redução das desigualdades de gênero e raça.
A participação das organizações no Programa é voluntária e restrita a instituições de
médio e grande porte. Ainda assim, é possuidora de grande potencial, tendo em vista que no
Brasil as médias empresas compõem a parcela das organizações que mais contratam no país e
as grandes corporações, como as que mais estão incentivando a diversidade e inclusão em
suas estruturas (PWC, 2017;SEBRAE, 2014).
Faz-se também importante salientar, no que tange à relevância da pesquisa, que
comumente é perceptível a reprodução de cenários da sociedade que são desfavoráveis às
mulheres nas relações de trabalho dentro das organizações. Aspectos que se traduzem em
discriminação racial, divisão sexual horizontal e vertical e a consequente diferença salarial em
relação aos homens, segmentação de mercado baseada em gênero, formas de recrutamento
seletivas, permanência no mercado de trabalho, flexibilização das relações trabalhistas, dentre
outras, e que representam algumas das dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mundo
globalizado de trabalho (BRUSCHINI, 2007). O conjunto daquelas discriminações contrasta
com a grande representatividade das mulheres no mercado de trabalho. Como afirma Abramo
(2004), discriminação e desigualdades de raça e gênero atinge a camada que compõe a
maioria da população brasileira e não grupos específicos.
2. Desenvolvimento
Para discorrermos sobre o Programa, suas características e desenvolvermos uma
análise sobre formação de redes e articulações, faz-se necessário antes tratarmos de alguns
conceitos tidos como chave para a análise de políticas públicas, como segue.
o quê, o porquê e que diferença faz determinada política, quando de sua formulação e
posterior implementação.
Realizar análise de política requer, portanto, considerar interesses de indivíduos ou de
grupos, de fatores culturais, políticos, de comportamento e atitudes dos atores envolvidos.
Logo, os estudos das políticas públicas não se limitam apenas aos seus conteúdos, mas outras
dimensões, como a institucional e a processual (FREY, 2000).
Comumente, a análise considera um modelo de ciclo da política, o qual é dividido em
cinco partes:
a) Identificação de problemas;
b) Conformação de agenda;
c) Formulação de política;
d) Implementação de política;
e) Avaliação de política.
Este trabalho baseia-se nas primeiras fases deste ciclo: Identificação de problemas,
conformação de agenda e formulação de política. Sendo assim, nos limitaremos a discorrer
sobre eles.
O momento inicial deste ciclo se dá pelo reconhecimento da necessidade e demandas
sociais que se dão de maneira explícita ou não, e é influenciado por interesses daqueles que
identificam o que é considerado como problema. É nele que, através de mecanismos, um tema
se torna problema, fazendo com que as autoridades públicas intervenham e o incluam na
agenda. Agenda, por sua vez, constitui como um conjunto de problemas percebidos e
passíveis de debates públicos (ROTH DEUBEL, 2009).
Todavia, não são todos os problemas que são inseridos na agenda pública. Há a
questão da representação social e política destes problemas, resultante de lutas de atores
distintos que, de acordo com o poder que detêm, estabelecem uma leitura do problema, dentro
de um contexto de disputas no jogo político. Processo este que enfatiza, novamente, que as
políticas públicas constituem um processo de construção social (e de disputas) derivadas da
interação entre o Estado e a sociedade (ROTH DEUBEL, 2009).
Neste contexto, a conformação da agenda representa um momento de negociação entre
os atores, na qual os que detêm maior poder a moldam de acordo com seus interesses e cujas
disputas tendem a ocorrer com mais frequência em ambientes politicamente plurais e
democráticos. Ou ainda, um espaço no qual há atores visivelmente detentores de maior poder
que tentam bloquear o avanço de agendas tidas como concorrentes, impedindo negociações e
debates. Este tipo de negociação é refletido numa postura de não tomada de decisão, nas quais
questões simplesmente não são discutidas pelos atores de maior poder. Por fim, a
conformação da agenda pode refletir a existência de conflitos latentes, não passíveis de serem
identificados, tendo em vista as características contra-hegemônicas dos temas em questão.
Neste, os atores dominantes nem ao menos permitem a introdução destes temas na agenda
(DIAS, 2012).
Quanto à formulação, comumente afirma-se que corresponde ao momento das
tomadas de decisão: diante das diversas soluções possíveis para resolver determinado
problema, há de se estabelecer o que é prioritário, quais são as metas e os objetivos para a
revolução. Neste processo, o Estado possui uma limitada influência de dominação, tendo em
vista a participação de atores com interesses materiais e ideológicos diversos, cujo confronto é
que resultará nas decisões tomadas, e as pautas das agendas serão traduzidas em ações a
serem implementadas (ROTH DEUBEL, 2009; DIAS, 2012).
A distinção e ênfase nestes momentos iniciais do ciclo de políticas públicas se faz
importante pois são neles em que se determinam as características das políticas, bem como os
atores nelas envolvidos, seus interesses e poderes. Portanto, para se entender o quê os
governos escolhem fazer ou não, por que fazem e que diferença isso faz, há de se considerar
aquelas fases como essenciais nas observações dos valores e interesses na identificação do
problema e conformação da agenda pública.
Assim, o processo de construção da política pública requer uma análise também da
interação dos atores e da maneira como articulam seus interesses e decisões, que afetam as
posteriores características gerais da política. Processo este que pode também representar um
exercício capaz de “levar ao aprimoramento da política pública” (DIAS, 2012, p.58). A
articulação entre estes atores, bem como a maneira como se organizam e interagem é
chamado do advocacy coalitions. A atuação destes grupos tende a influenciar mudanças nas
políticas públicas e, consequentemente, no âmbito Estatal, tendo em vista que as políticas
seriam resultado do prevalecimento de seus pontos de vista (SABATIER, 1993). No mais,
estes grupos seriam também caracterizados como sendo composto por elementos que
compartilham de crenças semelhantes, detentores de coordenação de suas atividades e que
ocupam diferentes posições na sociedade (DIAS, 2012).
Quando consideramos as políticas pública voltadas às mulheres, percebemos avanços
na inclusão da agenda governamental de temas fundamentais como ações contra a violência,
de promoção da saúde e de inclusão e inserção no desenvolvimento econômico do país.
Avanços estes que foram sendo conquistados após décadas de lutas organizadas por diferentes
entidades, em distintas esferas do poder e com claros conjuntos de atores contrários a esse
A participação das empresas ocorre de forma voluntária, não gera obrigações e as que
se candidatam o desenvolvem ao longo de 18 meses, nos quais é realizado um Plano de Ação
para cada participante, liderado por um Comitê Gestor interno. O Programa oferece suporte
para a execução daquele Plano, visando o desenvolvimento de “novas concepções na gestão
de pessoas e na cultura organizacional, visando à igualdade de gênero e raça no mundo do
trabalho, eliminando todas as formas de discriminação no acesso, remuneração, ascensão e
permanência no emprego” (SPM, 2014, p.12).
Ao realizar o Plano de Ação no período estipulado e os compromissos assumidos, a
empresa que cumpra no mínimo 70% das ações recebe o “Selo Pró-Equidade de Gênero e
Raça”, que representa o reconhecimento de ações incorporadas pelas organizações nos seus
respectivos âmbitos institucionais.
Nas descrições que a SPM faz sobre o Programa em seus materiais de divulgação, se
faz clara a ênfase dada às redes de colaboração para o desenvolvimento do Programa. Dentre
as instituições citadas: a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a ONU Mulheres
(Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres),
a SEPIIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), além de Ministérios,
Conselho Nacional da Mulher e diversos grupos de estudos e pesquisas de diferentes
universidades brasileiras.
Adicionalmente à questão das colaborações institucionais, é importante salientar que o
Programa é resultado de compromissos assumidos pelo Brasil internacionalmente, com vistas
à promoção de igualdade entre homens e mulheres (inclusive no mundo do trabalho), assim
como das ações estabelecidas no Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres, a partir da I
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja demanda se fez presente no capítulo
referente à “Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania”.
A partir da identificação das entidades e suas participações no surgimento do
Programa, conseguimos dar alguns passos rumo ao objetivo deste trabalho, de compreender a
formação de redes e articulações para a conformação da agenda e formulação de políticas
voltadas às mulheres. Fatos estes que discutiremos no tópico seguinte.
problema a ser discutido, posteriormente como item a ser incluído na agenda pública e nesta,
como política a ser formulada e em seguida implementada. Características que o torna um dos
programas mais importantes implementados nos últimos anos pela SPM, alinhado e
impulsionado pelas lutas de diferentes entidades e atores e essencial, segundo as palavras da
ex-ministra Eleonora Menicucci, à consolidação da “autonomia econômica das mulheres (...)
pelo reconhecimento de seu papel ativo no desenvolvimento econômico do país” (SPM, 2014,
p.12).
Sobre o processo de formulação do Programa, como citado anteriormente, além da
Secretaria, membras da OIT e da UNIFEM (United Nations Development Fund for Women,
ou Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, em português), colaboraram
para a realização daquele processo. Entretanto, é preciso compreender o papel que cada
entidade desempenhou nesta etapa, como se deu as tomadas de decisão e a perspectiva
utilizada pelos atores neste momento. Esta fase necessita de análises documentais que ainda
estão em andamento pelas pesquisadoras. Porém, a partir dos objetivos estabelecidos pelo
Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça é possível perceber que as intenções da agenda
política estabelecidas no Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres foram traduzidas e
conduziram as ações a serem implementadas pelo Programa.
3. Considerações finais.
Os resultados iniciais desta pesquisa demonstraram que a formação de redes e
articulação de mulheres nos processos iniciais de políticas públicas se deram a partir de
diferentes frentes, quando consideramos o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça como
objeto de análise. A partir da articulação central realizada especialmente pela Secretaria de
Políticas Públicas para as Mulheres (SPM), a formulação e posterior implantação do
Programa se deu através de parcerias com entidades representativas regionais, municipais,
estaduais e de atuação internacional.
A grande quantidade de atores envolvidos nas etapas de identificação de problemas, de
conformação da agenda e de formulação de política pública demonstrou a existência de uma
forte e democrática coalizão de pautas e interesses que, ainda que pudessem ter sido
conflitantes durante as etapas, convergiram em resultados positivos para o campo de políticas
públicas para as mulheres. O Programa analisado nesta pesquisa demonstrou ser resultado de
uma coalizão inicial que envolveu cerca de 120 mil mulheres que participaram de discussões
em instâncias regionais, por todo o país, de diferentes entidades e níveis de representação
política.
Referências
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Mercado de Trabalho, n.25, nov.2004.
BRASIL. Portaria nº 39, de 22 de setembro de 2005. Diário Oficial da União. Brasília, DF,
23 de setembro de 2005.
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2005/2007. Brasília: SPM, 2009.
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Pesquisa, v. 37, n.132, p. 537-573, set/dez. 2007.
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2016.
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programa pró-equidade de gênero e raça nas empresas. Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, n.4,
p.237-250, dez./2015.
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FREY, K. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise
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IPEA. Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negra no Brasil.
Disponível em:< http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=
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LASSWELL, Harold. Politics: Who Gets What, When, How. Cleveland: Meridian Books,
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SABATIER, P. Policy change over a decade or more. In: SABATIER, P.; H.C. Jenkins-Smith
(org) Policy change and learning: na advocacy coalition approach. Boulder, CO: Westview
Press, 1993.
SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão de literatura. Revista Sociologia. Porto
Alegre, n.16, p. 20-45, jul/dez.2006.
RESUMO:
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar as políticas públicas dirigidas à
maternidade e à infância no Brasil, ao longo dos séculos XX e XXI, ressaltando avanços, recuos
e desafios. Ademais, examina-se como essas políticas oscilaram entre propósitos conservadores
e emancipatórios. Por fim, são discutidas as mudanças propostas na nova CLT concernentes
aos direitos da mulher/mãe/trabalhadora. O método adotado compreende a pesquisa
bibliográfica e documental. Por fim, considerando a reforma na CLT, discorre-se sobre recuos
– notadamente a questão do trabalho de grávidas e lactantes em situação de insalubridade –
implicando em atrasos na luta por novas e velhas demandas comprometidas com o processo de
emancipação das mulheres.
Introdução
As mulheres constituem o contingente majoritário na população brasileira (51,8%,
conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2014) e embora componham cerca
de 44% da força de trabalho formal, continuam experimentando formas variadas de desrespeito,
não reconhecimento e privação de direitos no mercado de trabalho (são maioria no mercado de
trabalho informal e ocupações mais vulneráveis, como o trabalho doméstico, apresentam taxas
mais altas de desemprego, possuem remuneração média inferior a recebida pelo segmento
masculino, além de assédio e discriminação sexual) e outras dimensões da vida cotidiana. A
despeito de seu papel de agente ativo na economia do país, ainda ocupam posições de cidadãs
1
Universidade Federal de Santa Maria; Acadêmica de Licenciatura em Ciências Sociais;
nandasefernandes@gmail.com
2
Professora Adjunta no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria; Dra. em
Sociologia Política pela UFSC/Freie Universität Berlin; janainaxn@gmail.com
de segunda classe, seja no que se refere aos direitos de igualdade (não discriminação salarial,
por exemplo), seja no que se refere aos direitos à especificidade (como aqueles relativos à
maternidade e ao cuidado). Ainda que realizem jornadas duplas, triplas e até quádruplas, tendo
de conciliar trabalho remunerado, trabalho doméstico, cuidado dos filhos e estudos,
permanecem tendo que enfrentar o não reconhecimento de seus direitos. Considere-se, por
exemplo, a discriminação no mercado de trabalho em razão de sua função reprodutiva, o que
caracteriza uma espécie de paradoxo social: se por um lado são constantemente levadas a crer
que a maternidade é seu papel natural, chegando a serem coagidas cultural e psicologicamente
a viverem de acordo com as necessidades de seus filhos, vendo-se obrigadas a abrirem mão de
outras esferas de suas vidas, como a profissional e a acadêmica; por outro são discriminadas
justamente por tê-los, o que é agravado pelos altos índices de abandono paterno, resultando em
mulheres divididas entre o sustento do lar e a criação dos filhos, o que as torna mais vulneráveis
no âmbito socioeconômico, configurando o fenômeno da feminização da pobreza.
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar as políticas públicas dirigidas
à maternidade e à infância no Brasil, ao longo dos séculos XX e XXI, ressaltando avanços,
recuos e desafios, além de examinar como essas políticas oscilaram entre propósitos
conservadores e emancipatórios. Por último, são discutidas algumas mudanças na nova CLT
concernentes aos direitos da mulher/mãe/trabalhadora. Esta discussão se faz ainda mais
necessária em um momento em que o país sofre retrocessos em políticas públicas há muito
estabelecidas e consolidadas, pautadas por uma agenda conservadora que tem cerceado direitos
adquiridos por anos de luta dos movimentos sociais. O método adotado compreende a pesquisa
bibliográfica e documental. Para tanto, o artigo está estruturado em quatro tópicos. No primeiro,
realiza-se uma breve discussão conceitual em torno dos conceitos de políticas públicas e gênero.
No segundo, discorre-se sobre o papel desempenhado pelas Convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). No terceiro, são sistematizadas e analisadas as principais
políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no Brasil ao longo dos séculos XX e XXI.
No quarto tópico, discute-se a flexibilização da CLT e as políticas para as mães trabalhadoras.
Por fim, nas considerações finais, sistematiza-se e analisa-se alguns avanços e desafios no que
concerne as políticas sociais dirigidas à maternidade e à infância.
com condições mínimas de trabalho. Deste modo, em meados de 1830, iniciam os estudos sobre
a vida dos trabalhadores, de maneira mais concentrada na Inglaterra, onde se buscava entender
os efeitos de jornadas de trabalho exaustivas e baixos salários. Junte-se à isto o fato de que as
crianças adquiriam nesse período um papel diferente do que lhes havia sido atribuído até então,
passando a serem não apenas indivíduos sociais, mas também um grupo vulnerável que
necessitava de cuidados, visto que sob uma ótica nacionalista emergente, representavam o
futuro das nações.
Assim, instituições filantrópicas e Igreja passaram a cobrar do Estado medidas que
combatessem as altas taxas de mortalidade infantil e materna, admitindo que a intervenção do
Estado se fazia crucial dada a dimensão da crise que se alastrava por toda a Europa. Em resposta,
o Estado assume uma conduta assistencial com programas remediadores para tratar dos
problemas associados à pobreza. Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado passa a usar seu
aparato para planejar e implementar programas e ações visando os interesses sociais coletivos
de seus membros. Assim, nasce o estado de bem-estar que, conforme defendia Marshall,
ampliou o ideal de cidadania. Ao longo do tempo, as políticas sociais acabaram adquirindo
importante papel no funcionamento do Estado, compondo importante ferramenta de equilíbrio
social e econômico, incorporando um conjunto de ações diversas voltadas para emprego, saúde,
educação, moradia, serviços sociais, sendo considerado como mecanismo imprescindível para
um desenvolvimento pleno das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, as políticas sociais
como uma modalidade de políticas públicas compreendem políticas voltadas para o bem-estar
dos cidadãos e reconhecimento de direitos sociais. Contudo, conforme observou Walby (2004),
a noção de cidadania de Marshall sofre de uma cegueira de gênero, sendo necessário incluir aos
direitos civis, políticos e sociais, direitos específicos das mulheres como direitos reprodutivos,
direitos à contracepção e ao aborto, à preferência sexual e o direito de não sofrer violência
sexual ou física. Abordar as políticas públicas pelo viés da discussão de gênero3 é entender que,
ao priorizar os estudos sob a ótica feminista, colocando a mulher em evidência, não estamos
3
Enquanto o conceito de sexo remete às diferenças biológicas entre mulheres e homens, o conceito de gênero surge expressando
os aspectos socioculturais das diferenças entre os sentidos atribuídos ao feminino e ao masculino. Nesse sentido, estudos
pioneiros como o de Margareth Mead sobre sociedades polinésias, revelam que o que moldava as diferenças - ou semelhanças
- comportamentais entre os sexos eram os códigos comportamentais adotados por cada sociedade. Na filosofia, Simone de
Beauvoir afirma: “a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro?”
(2016, p.65). E mesmo no cuidadoso trabalho historiográfico de Thomas Laqueur sobre a história do estudo da anatomia dos
órgãos sexuais encontramos seu questionamento a respeito deste determinismo: “quanto mais examino os registros históricos,
menos clara se torna a divisão sexual; quanto mais o corpo existia como o fundamento do sexo, menos sólidas se tornavam as
fronteiras” (2001, p.8). Neste sentido, adotar outra palavra que não “sexo” tornava-se urgente; não se podia continuar a adotar
um termo que atrela diferenças construídas socialmente ao sexo biológico. Desta forma, “o gênero se torna [..]uma maneira de
indicar as ‘construções sociais’ - a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres”
(SCOTT, 2012 p. 7).
supondo apenas uma história das mulheres, mas sim a relação entre os gêneros e de que maneira
isso se reflete nas estruturas sociais e de poder existentes, compreendendo contextos e pensando
soluções. Esta perspectiva nos permite, por exemplo, compreender que gênero tem dimensões
político-econômicas, estruturando a dimensão fundamental entre trabalho produtivo assalariado
e trabalho reprodutivo doméstico e, dentro do trabalho assalariado estruturando a divisão entre
ocupações mais prestigiadas e bem pagas, exercidas por homens, e ocupações menos
prestigiadas e mal pagas exercidas majoritariamente por mulheres (FRASER, 2001, p. 259).
E em que consistem as políticas públicas de gênero? Trata-se de políticas implementadas pelo
Estado de modo a incorporar direitos civis, políticos e sociais, em suma, os direitos humanos
das mulheres, mas também incluem políticas de inclusão e reconhecimento de direitos LGBTs.
Sua definição pode ser feita considerando três fatores, conforme destacado por Nascimento
(2016, p.319), quais sejam: foco, modelo de formulação e orientação/propósito. Podem ter um
foco exclusivo nas mulheres ou incluí-las como beneficiárias de políticas mais gerais. Podem
ser formuladas por mulheres ou apenas tê-las como beneficiárias. Por último, podem estar
orientadas pelo princípio de igualdade de gênero e propósitos emancipatórios ou apenas
reproduzir a assimetria de poder. Inicialmente, as políticas públicas dirigidas às mulheres
voltavam-se para a condição de mãe-trabalhadora. Nas últimas décadas do século XX,
observou-se uma ampliação das áreas contempladas pelas políticas de gênero, incluindo saúde,
violência, direitos reprodutivos, educação, sexualidade, emprego, entre outros. No presente
trabalho, trata-se de analisar como as políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no
Brasil têm se configurado. Neste sentido, é importante compreender o que já foi alcançado e o
que ainda precisamos atingir, mas isso não basta. É também necessário analisar se dentro das
políticas implementadas há de fato um intuito emancipatório, ou se apenas estamos sendo
submetidas a padronizações de comportamento e regulação que perpetuam a desigualdade de
gênero. Antes, porém devemos analisar o papel das convenções internacionais na formulação
dessas políticas.
da classe trabalhadora. A OIT tornou-se, dessa forma, importante órgão para a conquista de
direitos dos trabalhadores, aí incluídas as mães inseridas no mercado de trabalho.
No mesmo ano de sua criação o trabalho feminino nas indústrias foi pauta da Convenção
nº 3, que estabeleceu o período de seis semanas anteriores e seis posteriores ao parto, assim
como o pagamento de uma "indenização" durante o período de afastamento, a fim de garantir
o sustento das mulheres e de seus filhos, e também a proibição da demissão das mesmas em
razão do puerpério ou doença decorrente do parto, trazendo importantes avanços no que toca a
garantia de direitos das mulheres, especialmente das mães. Infelizmente as decisões tomadas
durante as convenções não são obrigatoriamente adotadas pelos países participantes, nem
mesmo pelos que assinam a favor das resoluções, caso do Brasil, que só implementou o que foi
acordado na Convenção de 1919 em 1943, com a Consolidação das Leis Trabalhistas.
Ao longo dos anos a OIT realizou novas Convenções que pautavam os direitos das mães
trabalhadoras. A própria Convenção nº 3 foi reformulada para se modernizar e acompanhar as
demandas, tendo sido ampliada para qualquer mãe trabalhadora, e não somente as empregadas
de indústrias e setores agrícolas, como constava anteriormente no texto. Também nessa revisão,
a licença de 12 semanas obrigatórias tem a possibilidade de ser estendida de acordo com a
necessidade da parturiente, e garante-se horas de intervalo que devem ser dedicadas a
amamentação (REA, 2002).
Mas há também retrocessos ao longo das Convenções da OIT. Em 1997, durante sua
183ª realização, a proibição de demissão após o parto foi flexibilizada, sendo permitida a mesma
desde que não se dê em razão da maternidade. Além disso, a responsabilidade do abono durante
o estágio final da gravidez e o puerpério foi estabelecido como sendo correspondente a ⅔ do
salário recebido anteriormente pela mãe, o que obviamente configura em um ganho
extremamente abaixo dos gastos referentes a um recém-nascido.
O Brasil se comprometeu com as resoluções encaminhadas durante as Convenções,
tendo mesmo adotado algumas das recomendações, num esforço para adaptar suas leis
trabalhistas de acordo com a necessidade dessas mulheres. Porém é importante entendermos
que este processo de garantia de direitos foi sempre resultante de lutas políticas. As políticas
públicas para as mães trabalhadoras só foram praticáveis a partir do século XX, diante de todo
um contexto político local e mundial que necessitava de novas abordagens neste campo.
Mas o projeto higienista não era unanimidade entre a elite e sofria grande resistência
especialmente por parte dos liberais, que acreditavam que o Estado não deveria regulamentar
comportamentos familiares, o que feria as liberdades individuais, conceito tão caro aos mesmos.
Mas as discussões permaneceram, e embora o papel do Estado fosse meramente garantir a
soberania do país e fazer valer as leis de maneira universal, passou-se a defender – como o
médico acima mencionado - que "o homem brasileiro ainda não tinha instrução e noção de
responsabilidade que lhe permitisse andar sozinho, precisando das muletas do estado"
(MARTINS, 2010) o que justificava a implementação gradual das políticas públicas dirigidas
às mulheres no país.
Dessa forma as mulheres e crianças passaram a estar no centro das discussões
assistencialistas e higienistas. As políticas públicas instauradas principalmente a partir de 1934,
com a promulgação da Constituição que colocava abaixo a República das Oligarquias, passam
a se construir em torno da regulamentação do trabalho feminino e da proteção dos direitos das
mães, culminando na Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943.
Com a CLT direitos importantes foram adquiridos, como as 12 semanas de afastamento
na somatória do pré e pós parto, previstas na Convenção nº 3; o abono salarial no período de
licença; o teto máximo de oito horas diárias trabalhadas, assim como a proibição da redução do
salário estipulado para as trabalhadoras. Mas também houve restrições baseadas num modelo
conservador que via a mulher como indivíduo frágil, como o veto a trabalhos femininos
noturnos e em funções braçais, como construção civil e mineração. Olhando com cuidado para
o contexto histórico e político do advento das leis trabalhistas no Brasil, é possível vislumbrar
o que de fato acontecia. Os avanços não vinham de forma emancipatória para as mulheres, antes
disso, visavam a
Assim, a “concessão” dos direitos, tanto políticos quanto sociais, exigia seu preço,
mostrando um dos traços marcantes do populismo varguista que usava do paternalismo como
forma sutil de poder e controle sobre as condutas sociais. Em relação às mulheres, era
necessário que essa forma de controle se desse de forma mais maleável, já que o franco
desenvolvimento industrial do país exigia não apenas mão de obra, mas mão de obra
qualificada, o que acabou por fazer nascer uma geração de moças de classe média letradas, que
empenhavam sua força de trabalho como secretárias, professoras e enfermeiras, numa clara
transposição dos trabalhos domésticos de cuidado para o espaço público.
Durante o período posterior a implementação da CLT poucas coisas mudaram em seu
texto referente aos direitos das mulheres mães. Somente após a abertura democrática, com a
elaboração da constituição de 1988 teríamos avanços significativos novamente. Definida como
“Constituição Cidadã”, foi elaborada por uma Assembleia Constituinte que trabalhou “fazendo
amplas consultas a especialistas e setores organizados da sociedade” (CARVALHO, 2008),
num esforço inédito de compreender as demandas de grupos sociais e de forma moderada,
atendê-los através das garantias de direitos. No que toca especialmente ao movimento feminista,
em 1985 é criado o Conselho Nacional da Condição da Mulher, que além de debater a criação
e a eficácia das políticas públicas para as mulheres, contribuiu de forma ativa na Assembleia
Constituinte (PINTO, 2001).
A partir disto, temos na Constituição de 1988 a implementação de importantes direitos
para as mulheres. Estipulando como objetivos fundamentais a erradicação das desigualdades
bem como a promoção do bem comum combatendo preconceitos diversos, inclusive o de
gênero, ela inaugura a possibilidade de pleitear novas (e antigas) demandas de maneira mais
eficiente e participativa. A partir desta garantia, novos artigos são introduzidos na CLT, assim
como alguns dos artigos existentes são modificados a fim de se remodelarem às reivindicações
postas. As políticas públicas para as mães trabalhadoras pós Constituição de 1988 trazem uma
nova gama de direitos: a licença maternidade passa a ser estabelecida em 120 dias, com
salvaguarda do vínculo empregatício desde o momento da confirmação da gravidez até
decorridos 5 meses após o parto; a licença passa a ser estendida também às mães adotantes,
bem como o direito ao abono durante o tempo de adaptação da criança; além da proibição de
práticas discriminatórias em entrevistas de emprego, como a exigência de exames de gravidez.
Além das leis trabalhistas, há avanços nas políticas públicas que contemplam as mães
também na inclusão da obrigatoriedade da oferta de vagas em creches para crianças de 0 a 6
anos, baseada no Artigo 6º da Constituição que garante a educação como direito social básico.
Ainda no que diz respeito às creches, elas passam a ter, segundo a Lei de Diretrizes e bases,
“como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.”
(MEC, 2017), o que, além de oferecer estrutura para as mães trabalhadoras que não contam
com uma rede de apoio, também contempla o comprometimento com a garantia do
desenvolvimento pleno das crianças, atendendo tanto às necessidades sociais de um grupo
quanto de outro. No entanto, embora contemplado em nosso ordenamento jurídico, a oferta de
vagas em creches segue sendo um desafio sem possibilidade de estimativa futura de
atendimento pleno ou mesmo majoritário. Segundo dados recentes do IBGE, na faixa etária de
0 a 4 anos, apenas 25% das crianças em todo o país estão matriculadas na pré-escola, cerca de
oito milhões de crianças estão privadas desse direito.
Embora a Constituição de 1988 tenha trazido muitos avanços em relação a garantia de
direitos de minorias sociais, é importante lembrar que a divisão social do trabalho permanece
atrelada a uma estrutura patriarcal que coloca as mulheres mesmo no mercado de trabalho como
peças fundamentais para a criação dos filhos e manutenção do lar. Ainda que existam avanços
A nova CLT aponta, no que tange ao direito das mães, para o grande retrocesso causado
pela retirada do artigo 394-A, que previa o afastamento de gestantes e lactantes de serviços
insalubres, tendo como objetivo preservá-las de possíveis doenças causadas por tal trabalho.
Esta retirada surge de maneira contraditória no momento onde campanhas da OMS juntamente
com órgãos de saúde pública conseguiram alavancar o número de crianças amamentadas
exclusivamente com leite materno até os 6 meses de vida, melhorando índices de mortalidade
infantil e doenças na primeira infância. Além disso, políticas que visem o incentivo da
amamentação por mães trabalhadoras faz-se imprescindível, já que “o trabalho das mulheres
fora de casa tem sido apontado como uma das razões para a não amamentação e o desmame
precoce” (OSIS, DUARTE, et. al. 2004). Nesta mesma pesquisa, em entrevistas com diversas
trabalhadoras, as mulheres apontaram que as informações massivas sobre a importância do
aleitamento materno foram determinantes para a decisão de fazê-lo. Portanto, expor lactantes a
ambientes insalubres configura não apenas riscos para a saúde das mesmas e dos bebês, mas
também desencorajamento do próprio ato de amamentar.
Não obstante, o formato que incentiva o trabalho autônomo, se reflete de maneira
negativa especialmente nas mães trabalhadoras. Segundo pesquisa do PNAD, “31,3% das
mulheres negras ocupadas com 16 anos ou mais de idade em 2014 estão inseridas no mundo do
trabalho através do emprego com carteira assinada” (2014, p. 32), o que torna este um grupo
vulnerável, já que dificulta a regulamentação das condições de trabalho. Desta forma, incentivar
o mercado informal é segregar ainda mais as mães, que por não possuírem uma rede de apoio
familiar e/ou não serem beneficiadas com ofertas de vagas em creches, especialmente em
berçários, acabam por optando por esta modalidade de trabalho por conta de horários flexíveis
que permitam a conciliação com os cuidados dos filhos. Ademais, nessa condição estão
privadas de um importante direito, a licença maternidade.
Ainda que os retrocessos causados pela “flexibilização” tenham impactos preocupantes,
há também inclusões feitas na nova CLT que podem beneficiar as mães trabalhadoras. O artigo
392-A declara que “À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de
criança ou adolescente será concedida licença-maternidade nos termos do art.392 desta Lei.”.
É importante repararmos que somente após a reforma o termo “adolescente” foi incluído, o que
categoriza importante avanço, levando em consideração que de acordo com dados fornecidos
pelo site do cadastro nacional de adoção, das 8729 crianças e adolescentes à espera de um lar,
3874 estão na faixa etária de 12 a 17 anos, sendo que dos 43.550 pretendentes a adotantes,
somente 708, no somatório, aceitam adolescentes acima de 12 anos. O período de licença,
portanto, é imprescindível para a construção de laços afetivos que facilitem e auxiliem na fase
de adaptação, especialmente de um grupo que notoriamente é rejeitado.
Importante notar que a licença paternidade também é dada para pais adotantes, e em
alguns casos pode mesmo ter período igual de 120 dias. Além disso, apesar de constar no texto
da CLT o direito a somente um dia de folga em decorrência de nascimento do filho, em uma
decisão histórica do Supremo Tribunal Federal de 2016, foram concedidos cinco dias de licença
paternidade para o empregado, o que acaba por abrir precedentes que favorecem tanto homens
quanto mulheres. A importância de tal medida se dá pelo incentivo a paternidade responsável e
participativa, que atinge diretamente as mães, indo de encontro à ideia do pai provedor e
detentor máximo da autoridade da casa (BADINTER, 1985). Dessa forma, a licença
paternidade de cinco dias, ainda que se configure curto período de tempo, considerando-se as
várias questões a respeito da divisão de tarefas bem como a própria criação de laços do pai com
o bebê, pode ser considerada um pequeno avanço na empreitada de igualizar as
responsabilidades concernentes à criação e cuidado dos filhos.
Ainda que apresente recuos em relação aos direitos adquiridos dos trabalhadores, a
reforma da CLT não o faz de maneira direta, deixando margem para interpretações múltiplas,
que no caso dos direitos das mães trabalhadoras, pode significar um retrocesso grave, já que
envolve questões complexas que vão além da simples problemática da relação de trabalho em
si, perpassando o reforço de estruturas patriarcais que impõe às mulheres jornadas de trabalho
intensas, violências psicológicas e coloca até mesmo seus filhos em risco. Mas há também
pequenas vitórias que podem abrir importantes precedentes para novas conquistas.
5. Conclusão
Ao atentarmos para a História, é fácil encontrar registros que apontam que a maternidade
tal qual conhecemos é resultado de processos históricos complexos, que foram modificando as
mentalidades, os costumes e a moral. Mais ainda, percebe-se que mesmo modificando seu
padrão comportamental, ou mesmo o papel da mãe na vida da sociedade, em um aspecto não
há qualquer transformação: somos constantemente associadas e impelidas à maternidade, como
se nossa função, de um modo ou outro, sempre culminasse nisso. Na sociedade capitalista, a
maternidade adquire outras nuances. Juntamente com a conquista de maior participação política
bem como de um certo grau de emancipação, as mulheres também adquiriram uma posição
ambígua: com a possibilidade de trabalhar fora, bem como a garantia do direito ao divórcio,
passaram a ser provedoras do lar, muitas vezes arcando com o sustento do mesmo e a criação
dos filhos. Nesse cenário, especialmente as mulheres de classes mais baixas, acabaram por
tornar-se vulneráveis, tendo de escolher entre criar os filhos, ou terceirizar este cuidado em prol
de seu sustento e do sustento de sua criança, entrando em novas categorias de julgamento moral:
a mãe “ruim’ que não assegura o sustento do filho, ou a mãe “ruim” que não o cria.
Dessa forma, a garantia de direitos trabalhistas, inicialmente, se instaurou como solução
não para assegurar a emancipação financeira das mulheres de forma que pudessem conciliar
sua maternidade, mas unicamente visando o bem-estar das crianças, “futuro” da nação e do
desenvolvimento moral do país. A CLT acabou por tornar-se mais um mecanismo de
padronização do comportamento feminino, instituindo trabalhos adequados ou não para as
mulheres, bem como abrindo prerrogativas para que as mesmas terminassem por serem
discriminadas no mercado de trabalho. Somente com a Constituição cidadã de 1988 demos um
passo de fato emancipador, instituindo licença maternidade mais ampla em nome da saúde da
mãe e do bebê, bem como a proteção ao vínculo empregatício durante o período de gestação e
lactação. Importantes avanços que finalmente tinham características emancipatórias, não
apenas na lei em si, mas também na sua redação, que contou com a participação ativa do
movimento feminista na Assembleia Constituinte, mostrando que para tornarmos as mulheres
agentes ativos na sociedade não precisamos somente assegurar seus direitos, mas também abrir
caminho para que as mesmas debatam e construam políticas voltadas para suas demandas.
Com a reforma da CLT apresentada pelo governo Temer devemos então nos perguntar:
qual seu impacto para as mães trabalhadoras? Ela configura retrocessos que tratam as mães
novamente de maneira instrumentalista? Ou traz avanços que garantem maior autonomia para
as mulheres?
Analisando as modificações feitas, bem como decisões em outras esferas que atingem
direta ou indiretamente as políticas públicas para a maternidade, podemos concluir que os
pontos principais que fizeram a Constituição de 1988 tão progressista, bem como a adaptação
que esta impôs à CLT, permanecem na nova CLT. Os pontos cruciais conquistados não nos
foram retirados, não configurando, portanto, num retrocesso a ponto de voltarmos às políticas
instrumentalistas. Mas também não há, de fato, avanços que contribuam para a emancipação
feminina no que toca não somente ao quesito econômico, mas também político e social.
Podemos dizer, na verdade, que o recuo se mostra mais sutil. Mesmo não voltando a
uma natureza instrumentalista, retrocedemos no que tange a luta por novas demandas. Ao
validar o trabalho em locais insalubres por gestantes e lactantes, retornamos a uma discussão
que já havia sido superada, tendo novamente que lutar pelo restabelecimento de uma política
que vise o bem estar das mães lactantes, bem como a própria saúde do bebê. Isto estabelece
obstáculos que acabam por obstruir novos debates e consequentemente a luta por direitos
derivados desta conquista retirada, dificultando, desta forma, o avanço nas pautas maternas.
Neste sentido discutir as políticas públicas para mães trabalhadoras faz-se necessário
em um contexto em que pautas conservadoras avançam de maneira preocupante. Alimentar os
debates acerca de perdas e conquistas de um grupo tão vulnerável configura símbolo de luta e
resistência em meio ao aumento da força política de grupos que visam, justamente, recolocar a
mulher ao espaço que lhe era destinado no início do século, um espaço de subserviência,
instrumentalização, e por que não, objetificação.
Em suma, ao analisarmos as políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no
Brasil, constatamos conquistas importantes (direitos de proteção à mãe trabalhadora, licença
maternidade e licença paternidade, intervalo para amamentação, direitos para a mãe adotante),
entretanto, grandes desafios permanecem, entre os quais: licença parental em lugar de licença
maternidade, efetivação do direito à creche, retorno do direito de grávidas e lactantes não
trabalharem em lugares insalubres, direitos reprodutivos. Para tanto, é essencial que políticas
públicas de gênero sejam formuladas, implementadas e avaliadas fundamentadas no princípio
de igualdade de gênero, evidenciando políticas supostamente defensoras dos direitos das
mulheres, mas de fato, reprodutoras de desigualdades que perpetuam o encarceramento das
mulheres no âmbito do trabalho reprodutivo ou a ele relacionado (ocupações pink collar). Nesse
sentido, o movimento feminista continua sendo crucial para o reconhecimento dos direitos das
mulheres e para sua efetivação por meio de políticas públicas comprometidas com um projeto
emancipatório e democrático, que possibilite a auto-realização em suas várias dimensões
(maternidade/paternidade, trabalho, lazer, participação política, entre outros). Assim, marcado
por recuos e grandes desafios, o caminho ainda é muito longo. Sigamos nele.
Referências bibliográficas:
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Especial da Mulher, 2004. p. 169-182.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre os desafios para a implementação
da política de creche assegurando a perspectiva de gênero por meio de uma digressão sobre
como ela foi construída ao longo do tempo, especialmente como se deu a sua transição da
assistência social para a educação infantil. Ainda visa refletir sobre o engradamento da creche
como política restrita à educação infantil, sem que seja considerada a transversalidade de
gênero, eis que desta forma pode haver impacto negativo na vida das mulheres, as quais
também são destinatárias deste serviço, ainda que indiretamente. Utilizou-se o método
dedutivo, a partir de fontes documentais e bibliográficas de conteúdo sociológico, histórico e
legislativo sobre gênero, feminismo e cuidado, analisando-se aspectos da sua construção
histórica e a interdependência entre o educar e o cuidar, bem como os desafios para a
implementação efetiva desta política na perspectiva do direito das mulheres. Conclui-se que,
apesar da grande contribuição do movimento feminista e de mulheres para a consolidação da
política de creche, há grande dificuldade em implementá-la, numa perspectiva que considere a
sua importância para a concretização da igualdade de gênero, uma vez que tanto seu déficit
quanto a implementação desarticulada deste viés têm impactos nas experiências das mulheres
no ambiente do trabalho.
Palavras-chaves: gênero; política de creche; educação, cuidado.
1
Mestre e Doutora em Direito pela UFPR e mestre em Derecho Humano pela Universidad Internacional
de Andalucía. Tutora Diritto na Universidade di Pisa - Italia. Professora na graduação, mestrado e doutorado em
Direito da UFPR. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Professora de Direito
Civil e de Direitos Humanos. Advogada. Diretora da Região Sul do IBDFAM. Vice-Presidente do IBDCivil;
a.c.matos@uol.com.br.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR; camillevc@gmail.com.
Introdução.
A política de creche constitui uma política pública que se revela como uma forma de
corresponsabilizar o Estado pela provisão social do cuidado com crianças pequenas de 0 a 3
anos de idade e como meio de transformação das práticas sociais do cuidado que giram em
torno das construções dos papéis sociais das mulheres. Isto porque historicamente o cuidado
vem sendo atribuído às mulheres, sejam elas mães, ou aquelas que formam uma rede de apoio
ou solidariedade para este fim, podendo ser outras mulheres da família nuclear ou da família
extensa, como irmãs e avós.
A oferta de creches pelo poder público é um serviço de apoio sobretudo para mulheres
pobres que precisam trabalhar e não podem contar com apoio mercantilizado para o cuidado
de seus filhos. Assim, esta política pode servir de instrumento capaz de abalar as raízes nas
quais se fixaram as concepções que sustentam até os dias de hoje a divisão sexual do trabalho,
uma das bases estruturantes das desigualdades de gênero na sociedade.
Se analisado um perfil histórico no debate sobre as creches, política ainda deficitária
no Brasil, notam-se os diferentes fundamentos que justificaram a sua implementação, ao
longo do tempo, tendo maior destaque a dicotomia entre a perspectiva da assistência social e
da educação infantil, ou na necessidade de cuidar e educar as crianças. Atualmente, isto se
mostra ainda mais presente considerando o deslocamento desta política da assistência social
para a educação infantil.
O déficit de vaga em creche é um problema que atinge grande número de mulheres
Brasil. Uma pesquisa realizada no ano de 2012, nas regiões metropolitanas de Pernambuco,
Pará, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e no
Distrito Federal, com apoio da Secretaria de Políticas para Mulher e da ONU Mulheres,
apontou que a falta de vagas em creches é um grave problema vivido em todas as 9 regiões
metropolitanas pesquisadas, mais o Distrito Federal, sendo que 88% das mulheres
entrevistadas apontam a creche como uma das principais demandas ao poder público, 45%
das mulheres que trabalham não têm ajuda para cuidar dos filhos e 34% das entrevistadas
apontam que encontrar vaga em creche é a principal dificuldade para as mulheres que
trabalham (Data Popular; SOS Corpo, 2012).
Dessa forma, é importante pensar tal temática como instrumento para a concretização
da igualdade de gênero. Do mesmo modo, pode igualmente ser considerada como política
para mulheres, uma vez que viabiliza sua autonomia e maior participação na esfera pública.
No início do século XX, antes da instituição formal das creches, havia preocupação
com crianças órfãs ou abandonadas e filhos concebidos fora do casamento, os quais eram
considerados ilegítimos, assim como os filhos decorrentes da exploração sexual da mulher
negra e índia pelo senhor branco. Essas crianças eram adotadas por famílias de fazendeiros ou
recolhidas nas “rodas de expostos” por entidades religiosas as quais tentavam lhes ensinar um
ofício para que quando adultas, essas crianças servissem de mão de obra barata na sociedade.
Naquela época creches, asilos e internatos eram considerados lugares para tratar dos
problemas dos pobres (OLIVEIRA, 1998, 44/45).
A sua associação à pobreza legitimou a atuação desses espaços como moralizadores
das vidas das famílias atendidas, por meio do estabelecimento de uma relação de favor em
que era salientada a incompetência destas famílias cuidarem de seus próprios filhos. Assim, a
existência de creches se justificava não no fato de a mãe precisar ingressar no mercado de
trabalho, devendo evitar e prevenir a desorganização familiar (HADDAD, 1993, p.25).
Posteriormente, a creche pode ser identificada como uma instituição criada para
responder às novas necessidades decorrentes da intensificação da atividade industrial, que
separou o local do trabalho do local da moradia, transformando cada indivíduo da família em
um assalariado independente. Também decorreu do aumento da migração do campo para a
cidade; do processo de urbanização; e da entrada da mulher no mercado de trabalho e a sua
maior participação na comunidade.
As discussões acerca das creches passam a girar em torno das reflexões sobre
maternidade, cuidado, família, educação infantil, o trabalho feminino, obrigações do Estado e
sobretudo a transformação do papel social da mulher.
Com efeito, a necessidade de auxílio para a promoção do cuidado com os filhos foi
criada em razão de mudanças promovidas pelo sistema econômico, pela urbanização e a pela
industrialização, sentida principalmente por mulheres mais pobres que tiveram de acumular o
trabalho doméstico com o trabalho na indústria para garantir a subsistência da família. No
entanto, este auxílio não era visto como um dever social capaz de impulsionar a criação de
uma política pública que não tivesse viés assistencialista.
Inicialmente, a creche é vista como uma instituição provisória, de emergência e de
substituição de certas mães, aquelas que trabalhavam fora dos limites domésticos. Não por
outra razão muitos setores da sociedade não apoiavam o fortalecimento e expansão desta
política, reconhecida inclusive como ilegítima, eis que tida como usurpadora ou como
adversária da figura materna, a mãe provedora dos cuidados das crianças (ROSEMBERG,
1984, 74).
A política de creche em alguns lugares do mundo chegou a servir de objeto para fins
diversos daqueles associados à proteção da criança ou à efetivação dos direitos das mulheres.
Nos Estados Unidos da América houve grande expansão do número de creches durante a II
Guerra Mundial. No ano de 1940, por meio do LANHAM ACT, autorizou-se a destinação de
verba do governo federal para o funcionamento de creches de mães trabalhadoras nas
indústrias da guerra, momento em que havia cerca de 1,6 milhões de vagas disponíveis em
creches e pré-escolas, sendo que finda a guerra, este número foi reduzido, em 1965, para
300.000 vagas apenas (ROSEMBERG, 1984, 74).
No mundo a nova expansão desta política e sua ressignificação ocorreram, no final da
década de 1960 e no início da década de 1970, por pressão de movimentos urbanos, dentre
eles, o feminista. Na França, após o movimento de 1968, as creches deixaram de ser
orientadas por uma perspectiva higienista e medicalizada e passou-se a buscar uma interação
desta com a família. Na Itália, a política de creches passa a ser reivindicada como local
alternativo para a socialização de crianças pequenas (ROSEMBERG, 1984, 75).
As creches no Brasil, em especial na cidade de São Paulo, desenvolveram-se com
associação a uma corrente assistencialista, cujo intuito era proteger os filhos de mulheres da
classe trabalhadora. Na década de 20, setores industriais criaram as primeiras creches, o que
significou o ponto de partida para a sua regulamentação na legislação trabalhista de 1943
(ROSEMBERG, 1984, 75).
Na década de 1930, em virtude do processo desordenado de urbanização e a ausência
de infraestrutura urbana quanto ao saneamento básico e moradia, as creches sofriam com
epidemias, motivo pelo qual sanitaristas se mostram preocupados com as condições insalubres
da vida da população operária da época. Posteriormente, no período compreendido entre as
décadas de 1940 e 1960, ao discurso médico soma-se o discurso da segurança pública. A
preocupação também passa a ser com formas de evitar a marginalidade e a criminalidade de
crianças oriundas de famílias pobres.
A partir da década de 1960 outras questões surgem para reforçar a necessidade da
implementação de creches, entre elas: o crescimento de mulheres de classe média no mercado
de trabalho; a redução dos espaços urbanos dedicados às crianças, como quintais, ruas e
praças por conta da especulação imobiliária; e o agravamento do trânsito e de problemas de
segurança (OLIVEIRA, 1998, 47/48).
A Consolidação das Leis do Trabalho foi a primeira legislação no Brasil que previu a
obrigatoriedade das creches imposta às empresas privadas no antigo parágrafo único do artigo
389, o qual tinha como objetivo garantir a amamentação dos bebês. Não havia, contudo,
fiscalização e a punição ao seu descumprimento era muito branda. Além disso, poucas
trabalhadoras conheciam esta previsão legal que sequer fazia parte de reivindicações
sindicais, o que tornou a obrigatoriedade sem efetividade.
Apesar de o golpe militar implantado no Brasil em 1964, o qual desmobilizou partidos
políticos, sindicatos e associações de classe, a expansão da política de creches se deu na
segunda metade da década de 1970. E ocorreu principalmente em São Paulo, pela organização
de movimentos de base criados em torno de relações de vizinhança, parentesco, compadrio ou
amizade, nos quais muitas mulheres participaram intensamente por clubes de mães com
vinculação ou não à Igreja Católica e associações de bairros. É a partir da declaração do dia
internacional da mulher pela ONU, em 1975, que surgem núcleos de organizações feministas
que também reivindicam creches (ROSEMBERG, 1984, 76).
Surge posteriormente, em 1979, como consenso do Primeiro Congresso da Mulher
Paulista, a criação do Movimento de Luta por Creche, o qual teve êxito em integrar feministas
de diversas tendências, grupos associados ou não à Igreja Católica, diversos partidos políticos
legais e clandestinos, grupos independentes e grupos dispersos de moradores que
reivindicavam por creches isoladamente em seus bairros.
Em que pese a congregação de tantos grupos diferentes em torno da luta pela
implementação da política de creches, havia dissidências e divergência políticas, sobretudo
dentre as feministas, as quais eram encobertas em nome de uma estratégia comum, qual seja,
a mobilização das mulheres.
Posicionavam-se de um lado as feministas consideradas como radicais que lutavam
contra a discriminação de gênero, e que viam na luta por creche uma reivindicação popular
vinculada às necessidades das mulheres de baixa renda e que autorizava a crítica ao papel
tradicional materno. Do outro lado estavam grupos recém-convertidos ao feminismo, ligados
a movimentos políticos que priorizavam a luta de classes, que enxergavam nesta pauta uma
forma de se aliar ao grupo de feministas radicais, mobilizando mulheres sem, contudo,
enfrentar questões como a sexualidade, o planejamento familiar, a descriminalização do
aborto, e o controle da mulher sobre o próprio corpo (ROSEMBERG, 1984, 77).
A participação de grupos feministas no Movimento de Luta por Creches foi breve,
embora a discussão acerca deste tema tenha se mantido presente em vários de seus encontros
como no Tribunal Bertha Lutz, realizado em 1982. O distanciamento dos grupos feministas
do Movimento de Luta por Creche pode ter se dado também em razão do desdobramento das
reivindicações em torno disso que além de pleitearem a sua criação, sustentavam a
necessidade do acompanhamento da implantação das novas creches, por meio da avaliação de
sua construção, equipamento, alimentação, seleção e acompanhamento do pessoal, o que para
muitas feministas eram atividades similares às desenvolvidas pela figura da mulher
tradicional, cujo estereótipo parte do movimento feminista tinha a intenção de romper. Sendo
assim, os grupos feministas da época vão se organizar em torno de outras questões como
violência, saúde, aborto e planejamento familiar (ROSEMBERG, 1984, 77/78).
A discussão teve lugar também durante o debate da constituinte por meio de grande
mobilização dos movimentos sociais, destacando-se a campanha do Conselho Nacional de
Direitos da Mulher – CNDM: “Filho não é só da mãe” (MARCONDES, 2013, 61). Este
conselho foi o resultado do reconhecimento da importância política da luta feminista e sua
criação em 1985 tinha importante papel junto ao movimento de mulheres, Poder Legislativo,
Poder Judiciário, governos estaduais e mídia (BASTERD, 1994, p.43/44).
assumida pela sociedade e não apenas pela mulher-mãe. Enfatizou-se também que as creches
deveriam ser consideradas espaços educativos e não apenas de natureza custodial, em
benefício de todas as crianças e não somente daquelas de mães trabalhadoras (CNDM apud
CAMPOS, 1999, p.123).
Instaura-se uma disputa pela identidade da creche, acirrada pelos profissionais da
educação e da assistência social. Contudo, havia resistência na área educacional de
compreender a creche como educação pré-escolar que incorpora necessariamente atividades
de cuidado, por considerarem tais práticas de caráter assistencialista; ao passo que na área de
serviço social sustentava-se a atribuição para a realização da gestão de equipamentos
comunitários e atendimento de populações marginalizadas (CAMPOS, 1999, p.124).
O cenário nacional era influenciado também pelo movimento internacional de defesa
dos direitos da criança e do adolescente que resultou na aprovação da Convenção
Internacional sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1989.
No Brasil, em momento próximo à aprovação da Constituição Federa, grupos de defesa de
direitos humanos integrados por profissionais e militantes que trabalhavam com crianças e
jovens passaram a denunciar as violações de direitos praticadas contra esse grupo vulnerável.
À época a creche era comparada aos espaços institucionais dedicados a programas de
atendimento a crianças e adolescentes que trabalhavam e mendigavam nas ruas das grandes
cidades, embora a grande preocupação deste grupo de defesa de direitos humanos centrava a
sua discussão sobre crianças maiores de sete anos de idade (CAMPOS, 1999, p.124).
Assim, o tensionamento produzido pelo movimento feminista e de mulheres, somado à
pressão de profissionais da área da educação e do grupo de defesa dos direitos humanos de
crianças e adolescente, desempenhou papel importante para a aprovação da Constituição
Federal que enquadra a creche e a pré-escola na política de educação; prevê esta mesma
política como direito da mãe-trabalhadora a ser garantido pelo empregador.
Embora desde 1988 a creche esteja vinculada formalmente à política de educação,
deve-se observar que ela esteve relacionada à assistência social por muito tempo, ainda que
fosse estimulada a sua inscrição no sistema educacional. O seu financiamento era feito pelo
Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, ao passo que a sua caracterização como
política educacional teve início somente em 2004 por meio da reorganização da assistência
social em razão da instituição da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, que
instituiu o Sistema Único de Assistência Social – SUAS.
A Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS (Resolução nº
130/2005/CNAS), responsável por estabelecer as bases do SUAS, fixou o piso básico de
transição que incorporou alguns serviços classificados como proteção básica no âmbito do
SUAS e autorizou a continuidade do cofinanciamento provisório nos casos das creches e pré-
escolas até que o sistema educacional as incorporasse definitivamente no ano de 2008, a partir
de quando passou a ser financiado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica – FUNDEB, criado pela Emenda Constitucional nº 53/2006 e
regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007 (MARCONDES, 2013,
p.71).
Assim, embora a política de creche não seja e tampouco tenha sido um tema central do
movimento feminista e dos debates acerca da igualdade de gênero, sua importância revela-se
como um dos instrumentos disponíveis para a redução das desigualdades entre homens e
mulheres. Especialmente porque a garantia deste direito viabiliza que mulheres, mesmo com
filhos, possam ingressar e se manter no mercado de trabalho bem como igualmente contar
com tempo disponível para si e para participar da vida em sociedade.
sido classificadas como necessidade da família, elas representam demandas das mães das
crianças que necessitam compartilhar o cuidado dos filhos com o Estado.
O parecer enfatiza que a solicitação apresentada deve ser analisada considerando que
creches e pré-escolas são estabelecimentos educacionais, e que devem ser refutadas funções
de caráter meramente assistencialista. Diz-se que não se ignoram as necessidades das famílias,
mas aponta-se que o financiamento, a orientação e a supervisão dos serviços solicitados
devem ser feitos por outras áreas, como a assistência social, saúde, cultura, esportes e
proteção social.
Os principais fundamentos para que sejam desconsideradas as necessidades das
mulheres são os objetivos distintos das políticas educacionais e de assistência social; assim,
alega-se que o funcionamento ininterrupto das unidades de educação infantil pode acarretar
problemas para a execução do planejamento curricular e avaliação das atividades
educacionais por parte dos professores; e que isto poderia comprometer as oportunidades das
crianças de conviverem mais intensamente com sua família.
Verifica-se, portanto, que o enquadramento da política de creche como política de
educação infantil, sem considerar a transversalidade de gênero, impõe óbice ao atendimento
de demandas das mulheres, especialmente as mais pobres, que não podem contar com apoio
mercantilizado de cuidado, assim como impõe obstáculo à concretização da igualdade de
gênero.
Considerações finais
A luta pela implementação da política de creche, historicamente, foi marcada pela
atuação do movimento feminista e de mulheres, tendo contado com o apoio de profissionais
de diversas áreas, como a assistência social e educação, assim como com grupos que lutavam
pelo direito das crianças e adolescentes.
A consolidação da política de creche como educação infantil representa uma inegável
conquista para crianças. Contudo, necessário avançar e revelar sua importância como política
de gênero capaz de impulsionar a autonomia das mulheres para que estas possam participar da
esfera pública em melhores condições.
Evidencia-se que a questão referente ao cuidado com os filhos, diante da deficiência
da política de creche no Brasil, ainda é percebida pelo Poder Público e pela sociedade em
geral como algo que deve ser gerido pelas famílias, especialmente pelas mulheres. Contudo,
para maior proteção das crianças aliada a isonomia de gênero, deve-se incorporar à noção
pedagógica da creche, o compartilhamento do cuidado com o Estado, especialmente quando
estas mulheres se encontram em situações em que não podem arcar com serviços privados,
por meio da contratação de empregadas domésticas ou redes mercantis de educação.
O déficit de vaga em creche até os dias atuais representa a desvalorização do cuidado
que deve ser dedicado à sobrevivência e socialização de crianças de 0 a 3 anos de idade, cujas
mulheres são as maiores responsáveis tanto quando prestado no ambiente familiar, por mães
ou outras mulheres integrantes de família extensa, quanto quando disponibilizado no ambiente
mercantilizado, por meio de empregadas domésticas ou de mulheres trabalhadoras de creches
privadas; representa uma perpetuação da concepção da divisão sexual do trabalho, além de
reforçar a ideia de que o Estado não é corresponsável pela sua prestação.
Assim, urge que a transversalidade de gênero tenha incidência na política de creche, a
fim de que as especificidades do sujeito de direito mulher seja contemplado na sua
implementação e efetivação.
Referências
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Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 47, jan. 2004. ISSN 1806-9584. Disponível em:
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Pesquisa., São Paulo , v. 43, n. 149, p. 486, Aug. 2013 . Disponível em:
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família e trabalho no Brasil. Cadernos de Pesquisa Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v.
37, n. 132, Setembro/Dezembro 2007. Disponível em:
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SOS CORPO; DATAPOPULAR. Creche com Demanda das Mulheres por Políticas
Públicas, 2012. Disponível em: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-
content/uploads/2012/10/Creches_-_Divulgacao.pdf>. Acesso em 25 maio 2018.
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL); mestranda em ciências sociais; agnesfgoncalves@gmail.com.
INTRODUÇÃO
2
A presente pesquisa é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “A trajetória da Organização
das Nações Unidas (ONU) na busca pela igualdade de gênero e sua consonância com as políticas públicas
brasileiras: da Conferência de Pequim (1995) à criação da ONU Mulheres (2010)”, apresentado no curso de
Relações Internacionais, na Universidade Federal do Pampa em 2015.
A Organização das Nações Unidas vem desde sua carta de constituição, trabalhando
para promover a igualdade de gênero, já em seu preâmbulo expressa que, perante a ONU,
promove-se a: “igualdade de direito dos homens e das mulheres” (ONU, 1945). Continuando,
em 1946 o ECOSOC, órgão responsável pela promoção dos direitos sociais, econômicos e
humanos, atesta que, “ciente da necessidade de um órgão especificamente responsável pelas
questões atinentes aos direitos das mulheres, o Conselho estabelece a Comissão sobre o Status
das Mulheres (CSW).” (GUARNIEI, 2009, p. 68).
Deste modo, após votação é criada a primeira comissão internacional responsável por
“estudar, analisar e criar recomendações que oferecessem subsídios à formulação de políticas
aos diversos Estados signatários do referido tratado, vislumbrando o desenvolvimento das
mulheres enquanto seres humanos” (SOUZA, 2009, p. 348). A ONU, desta maneira, começa
então a atuar na questão de busca pela igualdade de gênero em nível mundial, permanecendo
como marco institucional internacional desta defesa até os dias atuais.
Desta maneira a Organização das Nações Unidas elabora os primeiros documentos
internacionais a tratarem especificamente sobre a situação das mulheres. O grande exemplo
disto é a Comissão Sobre o Status da Mulher (CSW) que, foi e ainda é, a responsável pela
organização da agenda internacional sobre a igualdade de gênero. Visto a importância desta,
em seguida, serão apresentados brevemente os cinco períodos pelos quais a comissão passou.
Assim sendo na primeira fase, durante os anos de 1946 a 1962, a Comissão sobre o status da
Mulher apresentou, vários estudos sobre a situação das mulheres, os quais deram a origem a
diversos documentos oficiais.
Já durante a segunda fase da CSW que ocorre entre os anos de 1963 e 1975, percebe-
se uma maior mudança no cenário internacional. Ao decorrer desse segundo momento, está
acontecendo à segunda fase do movimento feminista nas potências ocidentais. Percebe-se,
então, que as feministas destes países pressionam a organização, assim como seus respectivos
países, a tratarem sobre a situação da mulher, uma vez que: “as mudanças nas condições
sociais em todo o mundo levaram os órgãos da ONU a uma definição mais ampla dos direitos
das mulheres e a tentativa de traduzir os princípios em políticas” (BARROSO, 1989, p. 01).
Assim, durante a década de 1970, as reivindicações das feministas, “sensibilizaram a ONU,
[...] para promoção de um debate amplo sobre a elaboração de estratégias para avançar na
igualdade entre os gêneros no planeta” (MIRANDA; PARENTE, 2014, p.418).
Nesta fase ainda, há a elaboração, em 1963, da Declaração sobre a Eliminação da
Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Assembleia Geral em 1967 (UN, 2000). A
declaração é tida como “um instrumento legal de padrões internacionais que articulava
direitos iguais de homens e mulheres” (SOUZA; FARIAS, 2009, p.03). Tal declaração
representa um importante avanço internacional para o direito das mulheres. No entanto, por
ser um documento de caráter recomendatório não houve a adesão de muitos países, e o nível
de respostas dos governos foram baixos.
Em 1975 foi designado o Ano Internacional da Mulher, com o intuito de “lembrar a
comunidade internacional de que a discriminação contra as mulheres estava profundamente
enraizada nas leis, sobretudo nas crenças culturais, e que este era um problema persistente em
muitas partes do mundo” (UN, 2000a, tradução nossa). A determinação de um ano
internacional para discutir-se a situação das mulheres ao redor do mundo foi de extrema
importância para diversos movimentos feministas, uma vez que: “consolidava o entendimento
do feminino em sua forma coletiva, pela conscientização do compartilhamento dos problemas
e dificuldades por diferentes mulheres de diferentes partes do globo” (GUARNIEI, 2009, p.
72). Ainda neste ano é realizada a Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, na Cidade
do México.
Já o terceiro momento da Comissão sobre o Status da Mulher estende-se dos anos de
1976 a 1985. E um dos principais feitos, nesta fase, é a recomendação feita para a Assembleia
Geral da ONU, com o intuito de estabelecer-se uma Década da ONU para as mulheres – que
estende-se desde 1975 até 1985. Não obstante, além da Década das Mulheres ocasionar essa
legitimidade aos movimentos feministas, ainda nesta terceira fase da CSW, ocorreu a adoção
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW), que em 1979 foi votada e aprovada pela ONU. A CEDAW é considerada o
primeiro tratado internacional que trata especificamente sobre os direitos humanos das
mulheres (SILVA, 2013; PIMENTEL, 2006).
A CEDAW entra em vigor em 1981, contendo o preâmbulo e mais 30 artigos que
tratam sobre a eliminação das discriminações contra a mulher. O Estado brasileiro assina a
convenção em 1981, e em fevereiro de 1984 ratifica o documento – com reservas ao artigo
cinco, que somente foram retiradas no ano de 1994. A Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres estabelece obrigações aos Estados-
partes, no:
que todas as áreas trabalhadas pela ONU incorporem uma perspectiva de gênero
(UN, 2000a, tradução nossa).
A figura 01 demonstra a influência exercida pelas mulheres perante o Estado, para que
o mesmo leve suas pautas para a Organização das Nações Unidas, o que é demonstrado em
dois momentos. O primeiro momento acontece na Conferência de São Francisco, quando a
brasileira Bertha Lutz propõe que se institua uma comissão para tratar a questão da igualdade
entre homens e mulheres dentro da ONU. E o segundo momento acontece na década de 1970,
quando a segunda onda do movimento feminista está eclodindo nas potências ocidentais, e
feministas principalmente dos EUA, da França e da Inglaterra pressionam seus países e a
ONU para a adoção de medidas não discriminatórias contra as mulheres. Neste momento a
ONU se sensibiliza com a pauta feminista e a adota com mais afinco, buscando promover a
igualdade de gênero para todos os países.
Além disso, um dos momentos em que se destaca essa legitimidade que a ONU
estabelece para os movimentos feministas nacionais é quando a organização denomina o Ano
Internacional da Mulher e, logo em seguida, define o período entre 1975 e 1985 como a
Década da Mulher. A Organização das Nações Unidas indica assim, que a pauta de direitos
das mulheres é importante e está presente no debate internacional. Deste modo, ela contribuí
para o entendimento de que as desigualdades e discriminações contra metade da população
não é algo natural e sim uma construção social, que, para além de ferirem metade da
população mundial, essa discriminação se coloca como um empecilho ao pleno
desenvolvimento humano.
Já na figura 02 é demonstrado como as mulheres pressionam a ONU e, a partir desta
influência, como a organização impacta as decisões do Estado que, por sua vez, formula
políticas públicas para a igualdade de gênero e os direitos das mulheres. Este fluxo de pressão
é evidenciado durante as Conferências sobre a Mulher, principalmente durante a Conferência
de Copenhague de 1980, onde as mulheres criticam a promoção de um feminismo para
aquelas que não possuem nem os direitos básicos, como saúde e educação, o que faz com que
se alterem os debates internacionais sobre os direitos femininos, comprovando a influência
das mulheres na organização. Na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim de
1995, em que houve muitas dificuldades durante a realização da mesma, e apesar das
mulheres terem que se deparado com discursos conservadores e contra seus direitos
proferidos pelo Vaticano e seus aliados, a Conferência foi considerada um sucesso, sendo a
maior realizada pela ONU.
Quando a Comissão sobre o Status da Mulher promove a primeira Conferência sobre a
Mulher, em 1975 no México, é dado início a tentativa internacional e global para se
conquistar a igualdade entre os sexos. Mais além, fica evidenciado, pela primeira vez, que
Até o momento, a pesquisa apresentou a evolução histórica da defesa dos direitos das
mulheres, como forma de superar as também históricas desigualdades. Pode-se dizer que há
um acumulado político internacional no sentido de que o movimento de organização das
mulheres repercutiu, também, em organizações internacionais, como visto anteriormente.
Deste modo o trabalho volta-se a investigar como esse acumulado histórico se traduziu em
ações Estatais de proteção e promoção desses direitos, com um olhar específico para o
período entre os anos de 1995 e 2010.
Neste momento a pesquisa se focará em responder a pergunta que conduziu o trabalho.
Destarte, neste momento a metodologia usada para responder a este questionamento será
diferente das até então apresentadas, se utilizando de tabelas com as legislações referentes aos
direitos das mulheres para expor como o governo brasileiro traduziu as demandas feministas
com medidas práticas, neste caso por meio das leis. A pesquisa por estas leis se deu através do
Portal da Legislação, se utilizando das palavras chaves: mulher; mulheres; trabalhistas;
econômicas; gênero; e direitos das mulheres. Para a analise será utilizada o texto integral das
leis e decretos apresentados.
Por conseguinte, para apresentar a tabela com a legislação, inicialmente precisam-se
entender conceitos utilizados. O primeiro conceito é o de política pública, a qual é entendida
como “uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público” (SECCHI, 2013, p.2),
neste caso o problema de discriminação contra as mulheres. Ou seja, quando há uma área de
dificuldades enfrentada por alguma parcela da sociedade, ficaria a encargo do Estado elaborar
políticas públicas para superara-las.
Política pública é um conceito amplo na qual possui diversos significados. Na presente
pesquisa se usará da abordagem estadista, onde se considerará como política pública
“analiticamente, monopólio de atores estatais” (SECCHI, 2013, p.2). Ou seja, na pesquisa se
utilizará da política pública feita pelo Estado para a sociedade. Estas na prática “podem
assumir múltiplas formas: legislação, recomendações oficiais em relatórios de organismos e
departamentos governamentais e resultados apurados por comissões apontadas pelos
governos” (STROMQUIST, 1995, p.27).
Então, a forma que a política pública pode adotar para superar os problemas da
sociedade, escolhida para analisar o trabalho será na forma legislativa. Portanto, o trabalho
levantará a legislação para analisar se ocorreu consonância entre a postura adotada pelo Brasil
e pela ONU na questão de equidade entre sexos. Destarte precisa-se entender o conceito
legislação, que se entende como: “[...] acordos de uma sociedade consigo mesma, regulando
as relações, as instituições e os processos sociais” (RODRIGUES, CORTÊS, 2006, p.11).
Assim, a legislação sobre as mulheres, resguardaria os direitos destas perante o Estado e a
sociedade, além de expressar o “desejo e a intenção de pautar novas realidades sociais”
(RODRIGUES; CORTÊS, 2006, p.01). Com estas mudanças na legislação, o Brasil estaria
em conformidade com o acordado durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher expresso
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_04.02.2010/CON1988.pdf>
Acessado em 26 de abr. de 2018.
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Disponível em: <
http://www3.weforum.org/docs/GGGR16/WEF_Global_Gender_Gap_Report_2016.pdf>.
Acesso em: 26 maio. 2017.
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out. 2015.
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em: < http://www.un.org/womenwatch/daw/CSW60YRS/CSWbriefhistory.pdf> Acesso em:
15 de out. de 2015
INTRODUÇÃO
1
Professora de Sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná (SEED/PR); Mestra em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); moreno.meire@gmail.com.
Quase metade do prazo do PNE 2014 já se passou, porém, consideramos que nossa
investigação em torno do processo político de sua formulação nos permitiu realizar uma
caracterização do cenário atual de resistências e oposições à inclusão da agenda feminista na
política brasileira e que têm criado novos obstáculos para a formulação de políticas públicas
com perspectiva de gênero, especialmente as políticas educacionais.
Neste sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar parte dos resultados da nossa
pesquisa2, especificamente nossa análise bibliográfica através da qual identificamos e
discutimos as possíveis convergências e diferenças entre feminismo e antifeminismo para,
então, revelar o “lugar” estratégico das políticas educacionais como campo de disputas no
qual esses interesses se colocam, e nossa análise documental que permitiu identificar quais os
principais pontos de avanços e retrocessos na inclusão da agenda de gênero no PNE 2014.
Para tanto, cabe ressaltar que adotamos certa perspectiva dos estudos feministas na qual o
gênero é entendido como um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas
diferenças de sexo e que estabelece relações de poder, por estar de acordo com as formas de
organização sociocultural nos diferentes contextos históricos e entendemos que nossa
discussão pode colaborar para a melhor compreensão dos desafios atuais para as políticas
públicas com perspectiva de gênero, especialmente no que diz respeito à participação das
mulheres e a inclusão de suas demandas nas políticas educacionais.
2
A pesquisa foi realizada para a elaboração da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina como requisito para obtenção do título de mestra.
sociais, no caso, a missão natural à maternidade atribuída as mulheres. Isso nos revela que as
formas através das quais se manifestam as oposições ao feminismo nem sempre são diretas.
Em nosso país, Estado e Igreja sempre serviram como sustentáculos para os discursos e
práticas antifeministas que, sob o apelo à retórica da família, fazem oposição às
reinvindicações das mulheres e aos feminismos (CRUZ; DIAS, 2015).
Desta forma, as expressões mais recentes dos antifeminismos no Brasil são aquelas
que procuram restringir os direitos das mulheres, principalmente o direito ao aborto e outros
temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos, como ocorre nas práticas dos movimentos
Pró-Vida. Há também os grupos que defendem o direito das mulheres de votarem, mas não de
serem votadas ao considerar que a vida pública não é coerente com o que defendem ser o
“papel natural” na sociedade, relativas ao matrimonio e a maternidade e sua participação na
vida pública representaria a negação da sua feminilidade (CRUZ; DIAS, 2015). Esse é o caso
dos movimentos Pró-família.
Os elementos de ambos os discursos de intercruzam e se manifestam nas práticas de
militantes fundamentalistas religiosos que advogam, com bases teológicas – apesar da
laicidade do Estado -, que o “papel” da mulher na família e na sociedade é o lar. Nessa
perspectiva, impõem-se às mulheres a adequação a certos comportamentos, como o cuidado
com a casa, a dedicação aos filhos e/ou filhas, a sujeição aos maridos, a discrição, etc.
Consideração interessante a se destacar é que o antifeminismo pode ser definido
como uma reação organizada ao movimento feminista e à luta por equidade entre homens e
mulheres, entendida como uma ameaça à dominação masculina (FLORES, 2004), cujas ideias
e concepções políticas são instrumentalizadas, predominantemente, por setores da direita. E
ainda mais interessante, o fato que as mulheres que militam nessas frentes se definem como
feministas, sob o argumento de que tratam de direitos das mulheres, ou neofeministas/pós-
feministas, defendendo que pregam um “feminismo”. Para as últimas, as principais
reivindicações das mulheres por igualdade em relação aos homens já foram contempladas.
Defendem o retorno das mulheres ao papel tradicional de gênero e afirmam que as vozes
hegemônicas dos movimentos feministas não podem representar adequadamente as atuais
demandas e anseios das mulheres (MACEDO, 2006).
Atualmente, a disseminação das ideias dos detratores do feminismo e da agenda de
gênero nas políticas públicas pode ser explicada, em partes, pelo advento da Internet e a
popularização do uso de tecnologias de comunicação, ainda que esses recursos tenham
fortalecido também os movimentos feministas. Destacam-se entre as estratégias utilizadas, o
uso dos meios de comunicação, especialmente sites, blogs e redes sociais (CRUZ; DIAS,
2015).
Em nosso país, no que diz respeito às políticas educacionais, podemos afirmar que a
trajetória dos movimentos feministas é marcada pelas lutas contra os discursos e práticas
conservadoras de fundamentalistas religiosos que justificam suas ideias com argumentos
baseados nas diferenças biológicas entre homens e mulheres.
No século XIX, advogavam a favor da suposta inferioridade intelectual das mulheres.
Tal argumento sustentava a tese de que elas não seriam educáveis. Com o passar do tempo, o
argumento da inferioridade intelectual das mulheres mostrou-se insustentável. No entanto
debatia-se se seria desejável que elas fossem educadas. Afirmavam que o esforço para os
estudos poderia surtir efeitos para a capacidade reprodutiva das mulheres. Argumentavam que
as mulheres com acesso a educação casam mais tarde e tinham menos filhas/os, o que afetaria
negativamente as famílias (CRUZ; DIAS, 2015).
No século XX, embora houvesse muitas concepções sobre a educação para as
mulheres entre os grupos conservadores, defendia-se que elas podiam ser educadas, mas não
deveriam receber instrução. O principal argumento era o moral: na medida em que o
conhecimento abria o mundo para as mulheres, fechava-lhes as portas do céu. A educação
para as mulheres tinha como objetivo, portanto, a formação de caráter. Argumentavam que
não havia a necessidade de instruir as mulheres já que a elas caberia a posição de mãe e de
pilar de sustentação da família (CRUZ; DIAS, 2015; LOURO, 2008)
Independente dos argumentos utilizados, o objetivo era sempre o de desencorajar as
mulheres a cultivarem qualquer atividade que lhes possibilitasse alguma autonomia e
realização pessoal, enclausurando-as na esfera privada da família e nos papeis exclusivos de
esposa e mãe (CRUZ; DIAS, 2015). Para tanto, alguns defendiam que a educação feminina
deveria ser fundamentada em uma sólida formação cristã e na moral religiosa. Quando
defendiam ensino para as mulheres ancorado em bases científicas, esse se limitava as áreas
tradicionalmente ocupadas por elas, como por exemplo. a economia doméstica, a puericultura
e a psicologia (LOURO, 2008).
No entanto, a partir dos anos de 1990, no campo educacional, reformas foram
realizadas no sentido de ampliar a oferta, obter ganhos em qualidade, reduzir o uso de
recursos públicos etc. Desde a década de 1990, questiona-se a ideia de que os sistemas de
ensino devem ser organizados, financiados e controlados pelo Estado nacional. A educação
tem se estabelecido, portanto, como uma área de intensa atividade dos organismos
internacionais, exercendo influências nos orçamentos locais, nos currículos, nas propostas
pedagógicas, etc. Entre as novidades, a educação passa a ser entendida como uma medida
estratégica para a superação das desigualdades entre mulheres e homens. (RESEMBERG,
2001; VIANNA; UNBEHAUM, 2004).
Diversas conferências mundiais foram realizadas ao longo da década de 1990,
promovidas por organismos como a ONU e suas organizações filiadas. Vale salientar que o
Brasil é signatário de todos os compromissos internacionais cujos objetivos relacionam-se à
promoção da igualdade entre mulheres e homens, firmados nesses eventos (VIANNA;
UNBEHAUM, 2004). Por isso, em nossa pesquisa, para entender a construção da agenda de
gênero em educação no Brasil e no Mundo, os seguintes documentos foram analisados:
Prioridades y Estratégias para la Educación, publicado em 1996, pelo Banco Mundial (BM);
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, publicado em
1995; a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, publicado em 2001 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO e pelo
Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; e as Orientações técnicas de educação
em sexualidade para o cenário brasileiro : tópicos e objetivos de aprendizagem, publicado em
2014, também pela UNESCO; Programa Federal Brasil sem Homofobia, de 2004, o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos, de 2007, o Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres 2013-2015, publicado em 2013 pela Secretaria de Políticas para Mulheres, e as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, publicada em 2013.
Nossa análise permitiu estabelecer algumas conexões entre as propostas dos
organismos internacionais e as propostas do Estado brasileiro em termos de políticas
educacionais. Do ponto de vista formal, os documentos apresentam certa convergência
quando o assunto é uma educação igualitária para homens e mulheres. Do conjunto das
problemáticas e propostas levantadas, ao menos cinco eixos básicos definem a agenda de
gênero em educação: i) o acesso e permanência; ii) currículos; iii) material didático; iv)
formação docente; v) incentivo a pesquisas.
Além do acesso igualitário de homens e mulheres às instituições de ensino, os
documentos revelam a preocupação dos organismos internacionais e do Estado brasileiro
quanto à necessidade de reformas currículares, de adequação das práticas de
ensino/aprendizagem, dos materiais didáticos, na formação inicial e continuada de professoras
e professores de modo que contemplem as experiências das mulheres.
Na contramão das propostas dos organismos internacionais e do próprio Estado
brasileiro, os discursos antifeministas voltam, no século XXI, a assombrar as possibilidades
de avanços em termos de políticas educacionais com perspectiva de gênero em nosso país.
Silva (PT). Uma das primeiras ações do governo foi a realização da Conferência Nacional da
Educação. De forma tardia, a Conae 2010 foi precedida de conferências estaduais, municipais
e intermunicipais de educação. As Conferencias Estaduais tinham como ponto de partida para
as deliberações um Documento-Referência sobre o qual era possível realizar exclusões de
partes do texto e/ou inclusões de temáticas complementares. Cabia a cada estado expressar as
suas posições políticas e pedagógicas em documento próprio e encaminhá-lo à União. Os
documentos elaborados nas Conferências Estaduais seriam considerados na elaboração de um
novo relatório dirigido aos/as participantes, delegados/as e convidados/as da Conae 2010.
Esse relatório norteou os trabalhos das conferências e colóquios da Conae 2010 que resultou
no Documento-Final.
No Documento-Referência da Conae 2010, estão presentes várias menções às
questões de gênero e diversidade sexual, sinalizando uma preocupação, por parte do governo
federal da época, de que essas temáticas fossem consideradas nas discussões e deliberações
que ocorreriam nas conferências municipais, estaduais e intermunicipais. Dos cinco eixos
prioritários da agenda de gênero para a educação, somente o eixo “acesso e permanência” não
foi contemplado. Os encaminhamentos resultantes das conferências municipais e estaduais
foram sistematizadas em um Documento-Base. O Documento-Base da Conae 2010
apresentou avanços em relação ao seu Documento-Referência. O eixo “acesso e permanência”
foi contemplado e foram acrescentadas propostas cujo foco era o reconhecimento das
identidades, uma novidade em relação a agenda internacional de gênero.
Das conferências, debates e deliberações, das quais participaram representantes do
poder público e da sociedade civil, consolidou-se o Documento-Final da Conae 2010 que
trouxe novas pautas para discussões não somente em relação ao processo de formulação do
PNE 2014, mas também quanto à agenda internacional de gênero em educação. Além dos
cinco eixos básicos, o documento apresenta outros três: “política de
reconhecimento/identidade”, “formação para o trabalho” e “sistema de ensino”. Tais avanços
são resultantes, em grande medida, das articulações dos movimentos feministas e LGBT
durante a Conae 2010.
Encerrado o processo de conferências sobre o PNE, o Executivo, sob a chefia de
Dilma Rousseff (PT), enviou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei sob o nº 8.035. Na
proposta, havia somente uma referência direta às questões de gênero e sexualidade,
desconsiderando as proposições contidas no Documento-Final e o seu próprio discurso3
3
Entendemos que, para o caso específico do processo de elaboração do PNE 2014, as ações do governo de
Dilma Rousseff são continuidades das ações do governo de Luís Inácio Lula da Silva.
Considerações finais
oculta as desigualdades que operam na e pelas políticas educacionais e que elas terão
implicações negativas para a educação e vidas das meninas e mulheres de nosso país.
Além disso, ao localizarmos os principais momentos de avanços significativos e
inflexões para a tentativa de introduzir a perspectiva de gênero do Plano Nacional de
Educação 2014 e as tensões entre os discursos da sociedade civil e poder público no que diz
respeito à inclusão da temática de gênero e sexualidade no Plano, algumas reflexões foram
suscitadas. Entre elas que, apesar das movimentações recentes, tanto por parte dos
movimentos feministas quanto pelo governo – antes do golpe parlamentar – para ampliar a
participação e a representação das mulheres nos espaços tradicionais de decisões políticas, o
cenário atual é pouco favorável para as mulheres quando o que está em jogo é a definição de
políticas mais inclusivas quanto às suas demandas, o que tem consequências para a
manutenção de direitos e inclusão da agenda de gênero nas políticas públicas em nosso país.
Foram nesses espaços, que na verdade sempre ofereceram obstáculos para a participação e
representação de mulheres, que ocorreram os principais pontos de inflexão apresentadas em
nossa análise.
O fato das mulheres ocuparem uma pequena minoria das cadeiras legislativas e nos
cargos de chefia do poder executivo no Brasil, por si só, não explica tais fenômenos. A
presença cada vez maior de vozes conservadoras na política brasileira e suas respectivas
ideias e noções de justiça e direitos amparadas nos discursos antifeministas se apresenta como
um fator relevante para os retrocessos atuais em termos de políticas públicas com perspectiva
de gênero no Brasil.
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Resumo:
Com mais de uma década de existência, hoje - mais precisamente em março de 2017 -
o Programa Bolsa Família beneficia cerca de 13,6 milhões de famílias, sendo considerado o
maior programa de transferência condicionada de renda do mundo. Se multiplicarmos
rapidamente esse número de famílias beneficiadas pelo número de integrantes que elas
1
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar);
mestranda; isaviannapinho@hotmail.com.
2
Informações disponíveis em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bolsa-familia-evita-o-colapso-de-
cidades,70001653194. Último acesso em: 30/06/2018.
A pesquisa
3
Quando faço referência ao Cadastro Único, existem duas diferenças: o espaço físico de atendimento dentro da
Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social ou o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal que, segundo o site do Ministério de Desenvolvimento Social (2018), “é um instrumento que identifica e
caracteriza as famílias de baixa renda, permitindo que o governo conheça melhor a realidade socioeconômica
dessa população” e pode ser considerado a porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas
públicas. Entre os anos de 2014 e 2016 fiz estágio como entrevistadora do Cadastro Único dentro da sede da
Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social do município de São Carlos.
4
Projeto aprovado no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de São Carlos. A autora é integrante do Na Margem – Núcleo de Pesquisas Urbanas UFSCar/CEM e bolsista
CAPES.
5
As mulheres (quase sempre mães) “usuárias”, “sujeitos receptores”, “públicos-alvo”, “bolsistas”,
“beneficiárias”, “responsáveis familiares” ou “titulares” são alvo e cumprem papel chave na implementação dos
programas sociais brasileiros. Isto pode ser visto no próprio Decreto Nº 6.135, 26 de junho de 2007, artigo 6º que
se refere ao programa, “o cadastramento de cada família será vinculado a seu domicílio e a um responsável pela
unidade familiar, maior de dezesseis anos, preferencialmente mulher”. A denominação “beneficiário” é a
utilizada pelo MDS para pessoas que usufruem do programa, direta (enquanto menor dependente) ou
indiretamente (enquanto membro adulto do domicílio) e é diferente do termo “responsável familiar”. Opto aqui,
como fez GEORGES e SANTOS (2016) pelo termo “titulares” para evidenciar o fato de que elas não apenas
recebem o benefício como devem cumprir às condicionalidades, além de que elas próprias não se identificam
frequentemente com o termo do MDS. Por esses motivos expostos acima, utilizarei a desinência feminina.
6
No dia 26 de abril de 2016, as chaves do mais recente residencial em São Carlos foram entregues às 986
famílias contempladas pelo programa federal “Minha Casa Minha Vida” faixa 1.
articulação - entre tantas outras possíveis - das titulares e o mundo comum, ou seja, a da
condicionalidade da educação. Além disso, nesse jogo de relações, me interessa mais
propriamente aquelas que conformam o que é chamado de Estado7 e, ademais, a pesquisa está
situada somente nos territórios do residencial Eduardo Abdelnur e no Cadastro Único (apenas
com a chefe da divisão e com a coordenadora municipal do PBF na condicionalidade da
educação).
Importa - através da pesquisa com caráter etnográfico que privilegia a trajetória das
titulares - mostrar os entrecruzamentos, as dinâmicas e movimentos, as relações e
articulações, os fluxos e nexos, bem como as divisões, demarcações, tensões, disputas e
conflitos entre Estado e margem, cena pública e universo cotidiano de beneficiárias, esfera
pública e privada. O próprio cotidiano e a existência dessas mulheres deflagra a centralidade
do caráter relacional, isto porque elas negociam a todo o momento, elaboram suas táticas a
partir da relação com o outro e, no limite, passam a existir relacionalmente enquanto
beneficiárias. Sustento, portanto, que a própria condicionalidade por si só é relacional. Ela
pode exercer a mediação, a interface, a articulação entre o universo das titulares e a cena
pública, entre a esfera pública e privada. Ela pode conectar, mas também pode segregar,
regular e controlar.
No que se refere aos objetivos específicos, me interessa: (a) apreender a articulação
dos marcadores de diferença (gênero, renda, origem social, geração, raça/cor, trabalho e nível
educacional) a fim de compreender os perfis das mulheres titulares; (b) analisar as interações
que se dão entre a pessoa responsável pelas condicionalidades e as titulares do programa,
observando as possíveis negociações e conflitos; (c) etnografar o cotidiano das titulares que
vivenciam ou vivenciaram situações de “descumprimento” da condicionalidade da educação,
a fim de analisar os espaços institucionais que elas circulam e agentes que mobilizam; (d)
mapear a literatura de interesse à pesquisa, ou seja, os cruzamentos entre as bibliografias de
implementação, gênero e políticas sociais.
A hipótese subjacente a pesquisa sustenta que, a partir das relações entre mulheres
titulares e o mundo público, articuladas pela condicionalidade, parecem emergir paradoxos
constitutivos ao próprio programa e, mais precisamente, ao próprio Estado. Os paradoxos
7
Essas mulheres interagem com diversos agentes (não) estatais e percorrem uma série de espaços (não)
institucionais como, por exemplo, escolas, creches, postos de saúde, secretarias municipais, CRAS, CAPS,
cadastro único, conselho tutelar, bancos, lotéricas, igrejas, delegacias, grupos criminais, polícia, etc. Dentro
desse universo do mundo comum, me interessa, sobretudo, pensar naqueles que conformam o que é denominado
comumente como Estado.
Como ponto de partida, a pesquisa visa fugir tanto da imagem consolidada de Estado
como forma administrativa de organização política racionalizada, como da ideia de
esvaziamento, menor articulação e enfraquecimento das formas de regulação e pertencimento
que o constituem e que se crê não estar nas margens. Em contrapartida, a perspectiva adotada
aqui é enxergar as margens como espaços em que o Estado é formado continuamente na vida
diária, ou seja, como as práticas políticas de vida nesses espaços moldam as práticas de
regulação e disciplina do que denominamos como aparelho estatal e vice-versa. As margens
são tomadas nesta pesquisa como pressupostos necessários à existência do primeiro e não
como um espaço fora desse, não são simplesmente lugares periféricos, mas atravessam o
interior do corpo político estatal como rios que fluem através do território (DAS e POOLE,
2008; DAS, 2004; SCOTT, 2011).
Nessa perspectiva, o Estado é reformulado e reconstruído sob novas formas a todo o
momento, nas interações e negociações da vida social. Devido ao fato de ser sempre um
projeto inacabado, ele é melhor observado em suas margens. Interessa observar, portanto, o
Estado pelas práticas, lugares e linguagens que são considerados as margens territoriais,
conceituais, espaciais e/ou sociais do estado-nação (DAS e POOLE, 2008; DAS, 2004;
SCOTT, 2011).
Ao analisar os camponeses da Malásia, James Scott (2011) desenvolve o conceito de
“resistência cotidiana” como expressão da luta diária entre sujeitos das classes dominadas e
aqueles que lhe extraem trabalho, comida, impostos, rendas e juros. Essa resistência “se
expressa na forma de corpo mole, dissimulação, falsa aquiescência, furto, ignorância fingida,
calúnia, incêndio ou sabotagem” (SCOTT, id.: p.243). Essas lutas, na maioria das vezes, não
necessariamente consistem no caráter de confrontação coletiva e, da mesma forma, não são
sempre dirigidas à fonte imediata de apropriação. Elas não têm objetivos simbólicos de
confrontação com a autoridade ou as normas da elite, de contestar as hierarquias e o poder.
Estão mais preocupadas, de outro modo, com ganhos imediatos de satisfação e de
necessidades básicas. Isto não significa dizer, na visão do autor, que os dominados se
submetem passivamente a ordem estabelecida, nem que exista uma “hegemonia” ideológica.
Pelo contrário, nota-se em sua argumentação a existência de agencia nos processos da vida
diária, nos atos de resistência.8
8
Essa referência foi fundamental para pensar nas lutas diárias de mulheres beneficiárias do PBF, elas que
circulam pelos labirintos (não) estatais e que são mobilizadas e mobilizam diversos agentes (não) institucionais.
Pensar por essas perspectivas permite que se quebre e que se abra a solidez
geralmente atribuída ao Estado. Além disso, elas são importantes para compreender como o
Estado gerencia as populações nas margens, mas também como aqueles que vivem nelas
navegam pelas lacunas existentes entre as leis e sua implementação, como negociam em torno
das linhas tênues entre o legal e o ilegal. É precisamente nas brechas que parecem incoerentes
que as pessoas encontram recursos para enxergar o Estado simultaneamente como “ameaça e
garantia”. No reino da ilegibilidade é possível ler como o Estado se reencarna sob novas
formas (DAS, 2004).9
Dessa forma, a escolha do termo “cotidiano” ajuda a pensar nas lutas diárias de
mulheres titulares que vivenciam problemas relacionados à condicionalidade da educação no
PBF. Elas podem utilizar-se de diversos instrumentos ou recursos a depender das negociações
cotidianas, ora podem significar consentimento, ora resistência, entre outras possibilidades, de
forma que se reconstroem social e subjetivamente nesse processo dinâmico da vida social.
Convém, ainda, discutir brevemente sobre as noções de mundo comum, regimes
normativos, política e direitos sociais. Esses que são categorias significativas para a pesquisa,
pois me interessa observar no cotidiano das mulheres titulares se as condicionalidades inibem
ou, por outro lado, estimulam suas representações no mundo público; se restringem, de fato,
quem tem ou não acesso aos direitos sociais; se segregam ou conectam essas mulheres ao
mundo comum; se as tornam ou não mais sujeitos políticos.
Primeiramente, as noções de mundo comum, mundo público ou cena pública
sustentadas na pesquisa levam em consideração principalmente as formulações de Arendt
(1987). A autora os designa como um espaço de visibilidade, da aparência dos indivíduos no
espaço público que ao menos tempo que os separa, estabelece uma relação entre eles,
conectando-os e separando-os simultaneamente. Existe uma sensação de pertencimento a um
Scott (2011) coloca em evidência a agência e a resistência nos sujeitos ditos “dominados” em situações como,
por exemplo, o silenciamento ou quietude. Esses últimos que geralmente são vistos como formas de submissão,
consentimento ou cumplicidade. A utilização do termo “resistências cotidianas” na minha pesquisa, entretanto,
pode soar com certa unilateralidade, como se essas mulheres estivessem sempre em confronto e resistindo ao
Estado, o que não necessariamente acontece. Por esse motivo, optei por não utilizar “resistências cotidianas”, e
sim o termo “cotidiano” para pensar o universo privado, suas trajetórias, seus cotidianos. Devo reconhecer
alguns problemas, sobretudo o risco de preservar as divisões estanques, clivagens ou bipolaridades que busco
fugir e que estou sempre em alerta nesta pesquisa.
9
Para Das (2004), o Estado possui um aspecto paradoxal, uma dupla existência que oscila entre um modo
racional de ser e um modo mágico de ser. Enquanto entidade racional, o Estado está presente na estrutura de
regras e regulações incorporadas na lei e instituições necessárias à sua implementação. Nas margens da vida
cotidiana, o Estado adquire uma presença através de práticas locais que a autora chama de “mágicas”. O Estado
institui formas de governança através das tecnologias da escrita e institui, simultaneamente, a possibilidade da
fraude, imitação e encenação mimética de seu poder. Na ilegibilidade da lei e na iterabilidade da escrita – na
situacionalidade de enunciações – se faz um modo por meio do qual o poder estatal é produzido e,
simultaneamente, no reino da ilegibilidade que é possível ler como o Estado reencarna sob novas formas. Este é
o paradoxo que a autora alerta.
mesmo espaço comum, mas nesse existem lugares ou intervalos diferentes a serem ocupados.
Ademais, é o espaço da palavra e da ação, da liberdade, da política.
Para Feltran (2014), há um “repertório de regimes normativos” – estatal, do “crime”
e religioso - que coexistem nas periferias urbanas e que ordenam a vida social. Embora os três
sejam distintos e vivam em tensão entre si, eles encontram coesão no fato de regularem
mercados monetarizados, o dinheiro que passa a mediar centralmente à relação entre os
grupos recortados. Dentro dessa cena pública explicada acima, interessa analisar
principalmente a relação das mulheres com o regime normativo estatal, porém suas relações
com outros regimes também devem ser observadas e descritas quando for necessário.
Utilizo aqui a categoria política baseada principalmente no Rancière (1995, 1996a,
1996b, 2005) que, em sua visão, se institui por um dissenso ou desentendimento. Nesses
termos, a política não se restringe às disputas de poder entre atores em espaços apenas
institucionais. Ela pressupõe, na realidade, um conflito anterior, subjacente à própria
instituição desses espaços e atores, ou seja, na própria conformação dos critérios, dos modos
de ser, das partes e divisões, na constituição mesma do mundo público. Como afirma Feltran
(2011), a política se constrói justamente no jogo de trânsitos e bloqueios, entre os espaços
locais e privados e, ao mesmo tempo, em dimensões para muito além deles.
Considerações Finais
O presente texto buscou apresentar, de forma sintética, algumas das questões centrais
da minha pesquisa de mestrado, como o objetivo, metodologias, conceitos-chave e discussão
teórica. No momento da escrita deste texto, a pesquisa encontra-se em fase de intenso trabalho
de campo que tem trazido reflexões e resultados surpreendentes, porém as análises ainda não
são tão consistentes, o que me fez optar por não as publicar no momento. Frequento o bairro
pelo menos três vezes por semana, acompanho o cotidiano de quatro mulheres e suas
respectivas famílias, fiz entrevistas gravadas e diversas anotações em diários de campo,
coletei desenhos das titulares e de seus filhos e acompanhei algumas vezes o trajeto de ônibus
para leva-los e busca-los nas creches e escolas.
No Cadastro Único também entrevistei a coordenadora do PBF na condicionalidade da
educação e com a chefe da divisão em três encontros distintos. A pesquisa tem trazido
resultados muito satisfatórios quando ao avanço etnográfico; as análises, entretanto, ainda
carecem de maturidade, por isso a escolha de não as apresentar aqui.
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1
Mestranda em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense; carolinnetorres@msn.com
Introdução
Em um processo de naturalização das diferenças entre gêneros, construídas
socialmente, deu-se a dicotomia entre a esfera pública e a privada.. Nancy Fraser (2007)
critica a ideia de essência dos gêneros como responsável por essa divisão, apontando a criação
e manutenção da mesma como fenômeno social.
Ao problematizar essa visão hegemônica, Fraser (2007) acaba questionando a própria
noção do que é político. Ao demandar a democratização das relações de poder, pleiteia-se
condições nas quais a igualdade seja efetiva e as diferenças sejam admitidas, ao invés de
hierarquizadas (MIGUEL; BIROLI, 2013). Parte-se do reconhecimento da necessidade de
reversão das injustiças históricas que definiram o presente panorama de exclusão (PHILIPS,
1995; 1998).
A teoria política feminista destaca que a inclusão de mulheres nas esferas da vida
pública não foi garantida pela ampliação do conceito de cidadania ou pelo processo de
universalização dos direitos políticos. Apesar dos reconhecidos avanços, ainda existe
desigualdade no acesso das mulheres aos espaços decisórios.
Essas desigualdades de acesso à participação política são um “defeito da democracia”
(JONES, 2008). Conforme aponta Clara Araújo (2009), a esfera política permanece como um
reduto masculino, no qual mulheres são sub-representadas. Estatísticas mundiais2, como
demonstradas por Kenworth e Malami (1999), apontam os baixos índices da presença de
mulheres em cargos eletivos.
Reconhecendo o acesso aos cargos de representação política, como decisivo para a
participação, negociação e tomada de decisões nas democracias contemporâneas, foi
idealizada a política de cotas de gênero, com finalidade de incorporar as mulheres na política
institucional, que antes eram grupo marginalizado (PHILIPS, 1998). O objetivo seria,
portanto, reparar o ingresso tardio das mulheres na arena política-institucional, estabelecendo
um percentual mínimo de candidaturas que garantisse sua participação nas disputas eleitorais.
Com essa percepção, foi elaborada a Lei n° 9.100, de 29 de setembro de 1995, que
definia um mínimo de 20% de candidaturas femininas nas eleições municipais. Dois anos
depois, a Lei n° 9.504, de 30 de setembro de 1997, fixava a cota para as eleições
proporcionais no Brasil, para um mínimo de 25% e máximo de 75%. Em seguida, a Lei n°
12.034, de 19 de setembro de 2009, conhecida como a Lei de Cotas, surge com alterações na
redação da lei anterior, alterando os percentuais para 30% e 70%: “Artigo 3º (...) § 3º - Do
2 A proporção de mulheres em assentos parlamentares em 1998 era de 6,6% no Brasil, 2,5% no Paraguai e 10,9% na França.
número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo”. (BRASIL, Lei n° 12.034/2009)
A Lei n° 12.034/09 visa promover uma minirreforma, instituindo novas disposições
para as disputas eleitorais, defendendo e garantindo participação feminina. Para isso, além de
aumentar a cota mínima de candidaturas de mulheres, a lei fixa uma cota mínima de repasse
de 5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário. Esses recursos devem ser mobilizados em
prol da divulgação e promoção da participação feminina na política. Ademais, fixa um
percentual mínimo de 10% do tempo do HGPE destinado à disseminação e incentivo da
participação política feminina.
Apesar de estarem em vigor, os percentuais mínimos de candidatura por sexo são
interpretados como meramente sugestivos, não sendo respeitados pelos partidos. Além disso,
a Lei regulamenta as candidaturas de uma perspectiva formal, não assegurando recursos que
potencializem a campanha eleitoral feminina ou instrumentos que garantam posições
competitivas. Dessa maneira, mesmo quando cumprida, a adoção uma cota mínima não
assegura mais do que um contingente forjado de candidaturas femininas.
Ao analisar o efeito das cotas adotadas em onze países da América Latina, Mala Htun
(2000) aponta que a presença feminina nos Parlamentos só atingiu o nível definido pela cota
em dois casos: o Senado do Paraguai e a Câmara dos Deputados da Argentina: “(...) [na]
maioria dos países, a perversa combinação do sistema de lista aberta, a inexistência de
obrigatoriedade de posicionamento competitivo e o pequeno tamanho da circunscrição
eleitoral reduz significativamente a eficácia de uma política de cotas”. (HTUN, 2001)
Conforme a autora aponta, o endosso às candidaturas femininas – ou a falta dele – se
soma às características de um sistema partidário que mantém o status quo. Em um sistema de
lista fechada, o partido ordena a lista e pode priorizar mulheres ou garantir que a campanhas
de ambos os gêneros sejam equilibradas. Em um sistema com alta magnitude eleitoral, as
chances de eleição de mulheres aumentam pelo aumento de vagas disponíveis. Além disso,
um sistema como o argentino, com a obrigatoriedade de posição competitiva na lista para as
mulheres, garante-se que as candidaturas femininas não sejam meramente para preenchimento
de cotas.
Sendo de lista aberta, o sistema brasileiro se caracteriza pela intensa competição no
interior do partido, já que quem ordena os candidatos é o próprio eleitorado. Na ausência de
mecanismos que garantam um posicionamento competitivo das mulheres, os partidos não
podem ordenar a lista de maneira equilibrada, fazendo com que o desempenho eleitoral de
Metodologia
Na intenção de contribuir para a literatura sobre sub-representação feminina, a
delimitação escopo da pesquisa foi orientada pela percepção de uma lacuna sobre a realidade
brasileira do impacto dos partidos nas candidaturas femininas, por conta dos recursos de
campanha disponibilizados pelos mesmos. Aqui, cabe verificar de que maneira os partidos
brasileiros contribuem para a manutenção do quadro de sub-representação feminina.
No que tange à delimitação do tempo, as análises centrar-se-ão nas eleições de 2014,
na tentativa de conciliar a intenção de produzir uma análise atualizada à indispensabilidade de
um suporte de dados. Por conta da disponibilidade de dados e de tempo, o foco do presente
trabalho é nas candidaturas a deputados federais e estaduais do Rio de Janeiro.
Na análise de dados, caberá aplicar testes estatísticos, verificando a existência de
associação3 entre a variável dependente e as variáveis independentes do presente estudo,
sendo a primeira o desempenho eleitoral feminino, e as últimas os recursos de campanha.
Uma vez que os métodos estatísticos forem utilizados, pretende-se negar a hipótese nula de
independência entre as variáveis, apontando o tempo de televisão no Horário Gratuito de
Propaganda Eleitoral e a receita de campanha como variáveis que influenciam o desempenho
eleitoral. Além disso, a pretensão é calcular uma taxa de sucesso eleitoral, mensurando se o
sexo é condição determinante para o desempenho.
Os dados a que se refere, foram coletados em diferentes fontes. Os dados sobre as
candidaturas, receita de campanha e votação foram extraídos dos sistemas de bases de dados
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), DivulgaCand4, Sistema de Prestação de Contas
Eleitorais (SPCE)5 e Repositório de dados eleitorais6. Filtrando a base do sistema pelos
candidatos e candidatas aptos à disputa das quarenta e seis vagas a deputado federal e das
setenta vagas a deputado estadual do estado do Rio de Janeiro, obteve-se um universo de 8637
candidaturas federais e de 17138 candidaturas estaduais.
As informações a respeito do tempo de televisão no Horário Gratuito de Propaganda
Eleitoral são dados processados das gravações cedidas pelo Laboratório de Estudos Eleitorais,
em Comunicação Política e Opinião Pública – Doxa. Para isso, foram cronometrados os
tempos de televisão de cada candidato nos Programas exibidos. Compilando as informações
supracitadas, foi possível construir uma base de dados. Aqui cabe ressaltar, que na variável de
A eleição de 2014
Para o cargo de deputado federal do Rio de Janeiro, o Tribunal Superior Eleitoral
aprovou, em 2014, 863 candidaturas como aptas. Dessas, somente 228 eram de mulheres,
9 É calculado pela divisão do total de votos válidos em cada partido pelo quociente eleitoral.
2,6%. Na dimensão estadual, a taxa de sucesso das candidatas foi de 1,6%, comparada à taxa
de 5% dos homens.
Considerando a situação pós-pleito como variável dependente e o sexo do candidato
como variável independente, foi realizado um teste estatístico de associação, que no caso
federal teve o p-valor de 0,03, enquanto no caso estadual teve o p-valor de 0,004. Sendo
assim, a hipótese nula de independência entre as variáveis está negada, confirmando que nas
eleições de 2014 a variável de sexo do candidato possuía impacto em seu desempenho
eleitoral.
Uma vez evidenciada a influência do sexo do candidato sobre suas chances eleitorais,
cabe verificar o impacto das duas ordens de recursos para compreender tanto a contínua sub-
representação feminina, quanto o desempenho bem-sucedido de algumas mulheres no pleito
eleitoral de 2014. Para isso, além de executar um teste de estatístico de associação,
comparando a disponibilidade de recursos entre os candidatos eleitos e não eleitos, cabe
ilustrar a disparidade de recursos entre os candidatos e as candidatas.
Nesse sentido, o Gráfico 1 evidencia a disparidade de tempo de televisão no HGPE
entre os candidatos e candidatas a deputado federal. O gráfico possibilita, através das médias,
a visualização da desproporção da disponibilidade de tempo de televisão no Horário Gratuito
de Propaganda Eleitoral entre homens e mulheres, ilustrando o posicionamento dos partidos
na distribuição de tempo de televisão. No que tange à disputa estadual, o Gráfico 2 reproduz a
mesma realidade: diferença significativa entre homens e mulheres na distribuição de tempo de
televisão pelos partidos políticos e coligações.
Gráfico 1- Gráfico de médias do Tempo de TV em segundos no HGPE para deputado federal por sexo
nas eleições de 2014
Gráfico 2 – Gráfico de médias do Tempo de TV em segundos no HGPE para deputado estadual por
sexo nas eleições de 2014
Gráfico de médias
Gráfico de médias
40
14
35
12
30
Média em Tempo de TV
Média de Tempo de TV
10
25
20
8
15
6
10
Sexo Sexo
Na intenção de testar essa relação, a situação pós pleito eleitoral foi analisada
enquanto variável dependente e o tempo de televisão no HGPE – em segundos-, enquanto
variável independente. Por conta da natureza da distribuição dos dados, que não segue uma
distribuição normal, contando com a presença de diversos outliers10, coube utilizar a
abordagem não paramétrica. Com a presença de apenas duas categorias (Eleito/Não Eleito) e
uma variável quantitativa (tempo de televisão no HGPE em segundos), o teste de Wilcoxon
foi realizado.
Ao submetê-las ao teste de Wilcoxon, no caso dos deputados federais foi encontrado o
p-valor de 0,00000000000000022, negando a hipótese nula de independência. No caso dos
deputados estaduais, o p-valor encontrado também foi de 0,00000000000000022,
evidenciando uma relação significativa entre as variáveis. Em suma, em ambas as disputas, a
disponibilidade de tempo de televisão influenciou o desempenho eleitoral do candidato ou
candidata.
10 Observação com grande afastamento das demais informações da série, valor atípico.
Gráfico 3 - Gráfico de médias de receita de campanha em reais para deputado federal por sexo nas
eleições de 2014
Gráfico 4 – Gráfico de médias de receita de campanha em reais para deputado estadual por sexo nas
eleições de 2014
Gráfico de médias
5e+05
Gráfico de médias
200000
4e+05
Média de Recursos
3e+05
150000
Média em recurso
2e+05
100000
1e+05
50000
Sexo Sexo
11
Observação com grande afastamento das demais informações da série, valor atípico. Um exemplo é o da candidatura da
Deputada Clarissa Garotinho, que é mulher, mas possui significativa quantidade de recursos de campanha.
Considerações Finais
Reconhecendo a importância da representatividade garantida pelo acesso de mulheres
à esfera política, foi preciso compreender quais são os obstáculos ao êxito no pleito eleitoral
encontrado pelas candidatas a deputadas estaduais e federais. Além, é claro, dos entraves
encontrados em seu sistema eleitoral de lista aberta, sem obrigatoriedade de posição
competitiva para mulheres ou punição para os partidos e coligações que descumprirem os
percentuais estabelecidos pela Lei de Cotas.
Logo no momento das candidaturas, a histórica exclusão das mulheres dos cargos de
decisão política já se delineava, uma vez que dos 2576 candidatos, somente 719 eram
mulheres – número que atinge o percentual de aproximadamente 27,9%. Um segundo ponto a
ser observado, é o da perspectiva partidária. Dentre os 32 partidos que pleiteavam uma vaga
de deputado federal, apenas 10 atingiram a cota mínima de 30% de candidaturas femininas.
Na dimensão estadual, dentre os 31 partidos, somente 14 o fizeram. Diante da ausência de
punição aos partidos e coligações no caso de descumprimento das cotas fixadas pela Lei, o
percentual mínimo adquire caráter sugestivo.
Quando a análise se voltou para o resultado das eleições o quadro se manteve, na
medida em que do universo de 116 vagas, somente 14 foram destinadas a mulheres. Na
tentativa de compreender esse cenário, optou-se por analisar a disponibilidade de recursos de
campanha – financeiros e de tempo de televisão no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral -
, enquanto entrave ao desempenho eleitoral feminino.
Uma vez levantados os dados de receita de campanha, foi possível perceber uma
significativa disparidade das médias de disponibilidade entre as candidatas e os candidatos.
Submetidos ao teste estatístico de associação, o p-valor alcançado confirmou o esperado: o
gozo de receita de campanha possui relação significativa com o desempenho eleitoral dos
candidatos a deputado federal e estadual.
No que tange à visibilidade, a discrepância entre homens e mulheres se mantém
quando os dados são a respeito do tempo de televisão no HGPE. Quando realizado o teste de
associação, o p-valor encontrado indicou que essa também é uma variável com relação
significativa no êxito do pleito eleitoral de 2014. Dessa maneira, fica evidente a importância
da visibilidade na Propaganda Político Partidária para obtenção de uma vaga para deputado
federal ou estadual do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a exiguidade de recurso financeiro de campanhas de mulheres e a
escassez de tempo de televisão se configuram enquanto entraves ao seu desempenho eleitoral.
Diante das dificuldades na captação de recursos financeiros e de tempo de televisão no HGPE,
por conta de sua inserção tardia na política e da perspectiva dessa esfera enquanto universo
masculino, a esfera política-institucional permanece como reduto masculino.
Mesmo dentre as mulheres que se elegem, foi preciso salientar o fato de que são, em
sua maioria, mulheres com mandatos externos, profissionais da política, possuindo
experiências de uma carreira previamente estruturada. Além disso, em alguns casos, as
candidatas têm suas candidaturas veiculadas à herança política de homens, sejam eles seus
maridos, pais ou irmão. Dentre as eleitas, conforme salientado, a todas possuíam um
contingente significativo de tempo de televisão e de recurso de campanha, além de deterem
carreiras políticas estruturadas.
Dessa forma, fica evidente que a Lei não é suficiente para promover a participação
política feminina. Além da necessidade de alteração no que tange à permissibilidade da
Justiça Eleitoral, que deve punir os partidos ou coligações que não cumprirem a cota
estabelecida pela Lei 12.034/09, é preciso implementar mecanismos que atuem além de um
percentual formal de candidaturas, promovendo incentivos à participação das mulheres.
Sendo assim, é preciso instituir mecanismos que auxiliem na consolidação da
participação feminina através do incentivo à formação de carreiras políticas por parte das
mesmas. Em combinação aos efeitos da Lei de cotas, esses incentivos à profissionalização da
trajetória política de mulheres devem incentivar o engajamento das mesmas. A elaboração e
implementação desses mecanismos se constituem enquanto uma possível agenda futura de
pesquisa.
Nessa direção se encaixa a Proposta de Emenda Constitucional N°134 de 2015, que
visa garantir a reserva de percentuais mínimos de cadeiras de representação para cada gênero
nas Câmaras Municipais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, nas Assembleias
Legislativas e na Câmara dos Deputados.
Para isso, existiria uma lista eleitoral composta por cada gênero, realizando a
distribuição das vagas de acordo com a votação alcançada pelos partidos. Adotado em alguns
países como o Afeganistão, a Jordânia e a Quênia, o mecanismo tem a vantagem de garantir
um número mínimo de assentos por gênero, garantindo o acesso feminino aos espaços
decisórios.
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Introdução
De acordo com Fausto-Sterling (2002) os europeus e os norte-americanos possuem
um modo de compreender o funcionamento do mundo a partir do uso de dualismos, ou seja,
pares de conceitos, sistemas ou objetos e seus opostos. Neste sentido, a autora trabalha com
três dualismos que são em grande medida fundamentais para analisar as questões de gênero na
nossa sociedade que são, sexo/gênero, natureza/criação e real/construído.
Fausto-Sterling (2002) inicia seu trabalho narrando um fato ocorrido com a atleta
Maria Patinõ, nas Olimpíadas de 1988. Patinõ, uma das principais corredoras com barreira da
Espanha, se esqueceu se levar seu atestado médico declarando um fato aparentemente óbvio:
de que era uma mulher. O Comitê Olímpico Internacional (COI) tendo previsto que algumas
mulheres poderiam se esquecer deste certificado de feminilidade2 tinham equipamentos para
realizar este teste ali mesmo, antes da prova. Patinõ então precisou raspar algumas células da
1
Universidade Estadual de Londrina.; discente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
E-mail: lais_kruczeveski@hotmail.com.
2
Até 1968, as mulheres deveriam ficar nuas diante de um conjunto de examinadores para atestar que elas eram,
de fato, “mulheres” (SENKEVICS, 2012).
bochecha para realizar o teste. Algum tempo depois, recebeu um chamado. A atleta teve que
passar por um novo exame. E neste novo exame houve a confirmação de que Patiño havia
sido reprovada no teste de sexo.
Apesar de parecer uma mulher, ter força de uma mulher, as células de Patiño
continham o cromossomo Y e seu corpo ocultava testículos, além de que ela não possuía útero
nem ovários. Com este resultado, a atleta foi impedida de participar das Olimpíadas. A
imprensa descobriu o ocorrido e sua vida virou de ponta cabeça quando seus títulos
conquistados foram retirados e Patinõ foi impedida de voltar a competir, foi expulsa da
moradia atlética nacional e a atleta precisou lutar para sobreviver.
Fausto-Sterling (2002) com base neste acontecimento, traz a vista a questão de como
estes dualismos interferem na vida de pessoas que não se encaixam neles. Há pessoas que
estão fora destes dualismos, e a ciência moderna não é capaz de incluí-las pois não há espaço
para elas nestes conceitos. A autora reflete então: o que é ser feminina e o que é ser
masculino? Existe uma linha divisória entre masculino e feminino? Qual é esta linha
divisória? Os médicos declararam que Patinõ nasceu com uma síndrome de insensibilidade ao
andrógeno. Portanto, mesmo tendo o cromossomo Y e seus testículos produzissem
testosterona, suas células eram incapazes de detectar os hormônios masculinos e seu corpo foi
moldado com características femininas.
O caso de Patiño não é o único3 no mundo4, na verdade é mais comum do que se pensa
este e outros casos que põe em prova as definições e as linhas divisórias criadas pela ciência
moderna que separam uma e outra coisa. O seguinte trabalho busca pincelar estas questões
com o objetivo de causar a inquietação acerca destas dicotomias que trazem o questionamento
da ciência moderna, e que a partir dos estudos feministas e de gênero nos permitiu uma
ampliação de olhar crítico para estes modos de fazer ciência.
disseminaram a ideia de que sexo e gênero são, na verdade, categorias separadas. De acordo
com estes autores, sexo deve se referir aos atributos físicos e é anatômica e fisiologicamente
determinado, enquanto que gênero se refere a uma transformação psicológica do eu, ou seja,
uma convicção interior de que se é homem ou mulher (identidade de gênero).
Outras feministas da década de 1970 também afirmam o sexo diferente de gênero e
que as instituições sociais são moldadas para perpetuar as diferenças e desigualdades de
gênero. Segundo Fausto-Sterling (2002), estas autoras argumentavam que os corpos feminino
e masculino apesar de terem funções reprodutivas diferentes, poucas diferenças de sexo não
poderiam ser mudadas pelas vicissitudes da vida. Ora, se as meninas não aprendem
matemática com a mesma facilidade que os meninos, o problema não está em seus cérebros.
Segundo a autora, estas dificuldades se dão pelas normas de gênero e das expectativas e
oportunidades pensadas para meninos e meninas.
Se entender o gênero como construção social, é possível também entender que este
trabalho não se trata de buscar uma igualdade entre os sexos num campo social, ou de negar
as diferenças entre homens e mulheres, mas sim de compreender essas diferenças como o
fruto de uma convivência que é mediada pela cultura.
Uma pesquisa realizada por Lindamir Salete Casagrande (2011) em uma escola da
rede pública de Curitiba analisa as relações de gênero das turmas de 5º à 8º série nas
disciplinas de matemática, e demonstrou o silenciamento e a invisibilidade que as meninas
apresentam a partir de certo momento da sua vida escolar. A autora acredita que uma pesquisa
acerca de gênero desenvolvida com estudantes desta faixa etária é de fundamental
importância, tendo em vista que os/as estudantes estão em pleno desenvolvimento do
processo de produção das identidades.
O curioso deste trabalho, foi que ao desenvolver a pesquisa de campo na escola,
Casagrande (2011) contatou que houve diferenças no posicionamento de meninos e meninas
em relação aos/as colegas, aos/as professores/as e também em relação ao conteúdo
matemático. Nos anos iniciais, não foram observadas diferenças de rendimento e
compreensão no conteúdo da disciplina, diferentemente dos anos mais avançados em que se
contatou um melhor rendimento dos meninos em relação as meninas.
Casagrande (2011) verificou que as meninas eram silenciadas e se silenciavam diante
da classe e do/a professor/a. A autora também averiguou que são esperadas expectativas
diferentes em relação a meninos e meninas, desde a organização do caderno, o
comportamento em sala e o desempenho escolar. Estas expectativas podem alterar, direta ou
indiretamente, o modo de pensar destas meninas, assim como pode alterar a percepção si
própria como sujeito e agente se conhecimento.
Neste sentido, como afirma Fausto-Sterling (2002), ter um pênis ou uma vagina é uma
diferença de sexo. Agora o desempenho inferior das meninas em relação a matemática, a
física, biologia, é uma diferença de gênero. Estas feministas, segundo a autora não estavam
questionando o domínio do sexo físico, mas sim os significados psicológicos e sociais dessas
diferenças, no caso, o gênero.
Judith Butler (2010) afirma que a teoria feminista tem, em sua essência presumido que
exista uma identidade definida, entendida pela categoria de mulheres, que além de atender aos
objetivos feministas, também constitui o sujeito mesmo em nome de que a representação
política é almejada.
A autora acrescenta que para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem
capaz de representá-las completa com o intuito de promover a visibilidade política das
mulheres. Recentemente essa percepção dominante da relação entre teoria feminista e política
passou a ser questionada. O próprio sujeito das mulheres não é mais entendido em termos
estáveis e permanentes. Os domínios da “representação” política e linguística estabelecem em
critério segundo o qual os próprios sujeitos são criados, com o resultado da representação só
se entende o que pode ser reconhecido como sujeito.
Butler (2010), contudo cita que além das ficções “fundacionistas” que sustentam a
noção do sujeito, há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o
termo mulheres denote uma identidade comum. Mulher passou a ser um termo problemático.
Se você é mulher, certamente isso não é tudo que uma pessoa pode ser. Essa presunção
política de que deve haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada numa
identidade supostamente existente em diferentes culturas é frequentemente acompanhada da
ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na estrutura
universal hegemônica da dominação patriarcal ou masculina. Apesar de que o patriarcado
universal vem sendo amplamente criticado.
Em relação a esta ordem compulsória sexo (corpo) e gênero, a autora acrescenta mais
um fator, o desejo. Butler (2010) afirma que embora a unidade indiscutida da noção de
“mulheres” seja frequentemente invocada para construir uma solidariedade da identidade,
uma divisão se introduz no sujeito feminista por meio da distinção entre sexo e gênero. Ela
acredita que se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se
pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira.
designar. Indo na contramão de Beauvoir, Irigaray argumenta que tanto o sujeito como o
Outro são esteios de uma economia significante falocêntrica e fechada, que atinge seu
objetivo totalizante por via da completa exclusão do feminino.
Já Butler (2010) aponta que as possibilidades interpretativas do conceito de gênero não
se exaurem absolutamente nas alternativas sugeridas por Beauvoir e Irigaray. A circulacidade
problemática da investigação feminista sobre o gênero é sublinhada pela presença de posições
que pressupõe ser o gênero uma característica secundária das pessoas, e também de posições
que argumentam ser a própria noção de pessoa como sujeito, uma construção masculina e
uma prerrogativa que exclui efetivamente a possibilidade semântica e estrutural de um gênero
feminino.
A autora volta a Beauvoir para falar que o “sujeito”, na analítica existencial da
misoginia, é sempre já masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um “Outro”
feminino que está fora das normas universalizantes que constituem a condição de pessoa
corporificada. Esse pensamento posto por Beauvoir levanta a questão: mediante que o ato de
negação e renegação posa o masculino como uma universalidade descorporificada, é o
feminino construído como uma corporalidade renegada?
Beauvoir (1960) propõe então que o corpo feminino deve ser a situação e o
instrumento da liberdade da mulher, e não uma essência definidora e limitadora. Essa teoria
de corporificação de Beauvoir é limitada pela reprodução acrítica da distinção cartesiana da
liberdade e corpo. A construção discursiva do corpo, e sua separação do estado de
“liberdade”, não consegue marcar no eixo do gênero a própria distinção corpo/mente que
deveria esclarecer a persistência da assimetria dos gêneros.
Beauvoir acredita que o corpo feminino é marcado no interior do discurso
masculinista, enquanto que Irigaray sugere que tanto o marcador como o marcado são
mantidos no interior de um modo masculinista de significação, no qual o corpo feminino é
como que “separado” do domínio de significável.
que não é possível fazer a incorporação da mulher na ciência sem balançar os alicerces da
ordem vigente.
Schiebinger acrescenta que a ciência nunca foi neutra em relação as questões de
gênero, e que as desigualdades entre homens e mulheres foram incorporadas à produção e à
estrutura do conhecimento. Estas incorporações de estereótipos e discriminação de gênero
estão presentes desde o modo como a ciência foi escrita como também em relação a exclusão,
abafamento e desvalorização de trabalhos elaborados por mulheres. Também é visto nas
barreiras culturais e sociais para o ingresso da mulher nas instituições de ensino, como
estudantes e como profissionais.
Schiebinger (2001) cita que no início dos anos de 1990, as características femininas
passaram a ser vistas como fenômenos culturais específicos e generalizava-se o pensamento
feminista de que as mulheres tinham “maneiras de saber” distintas. Ou seja, que as mulheres
tinham um modo de pensar diferente dos homens, nesta época também se acreditava numa
romantização dos valores considerados femininos.
Georgia Faust (2015) comenta que as mulheres geralmente são associadas a “virtudes”
e “qualidades” vinculadas à intuição e sensibilidade, compreensão e afeto, enquanto que os
homens são vinculados à autonomia, força, responsabilidade e coragem. E é sabido por todos
nós que a educação das mulheres sempre for diferente que a dos homens. Saffioth (1994)
comenta que no Brasil, a educação das mulheres nunca foi decidida e coordenada por elas,
mas sim por homens brancos, donos de terras. Segundo a autora, sua educação no período
colonial as preparava para serem passivas, submissas, sedentárias. Sua casa era seu mundo.
Segundo relatos de navegantes do período colonial, duas características marcantes das
mulheres brancas no Brasil eram “timidez” e “ignorância”. Muitas mulheres de posses eram
inclusive lesadas em suas fortunas por não saberem o português. Quando houve a necessidade
de educação das mulheres brancas, ela acontecia dentro das suas casas, com aulas de bordado,
etiqueta, música, francês e português. Com o advento da indústria, a preparação das mulheres
foi para funções “femininas” como a datilografia, professoras de primário, enfermeiras
(SAFFIOTH, 1994).
Além destes papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, Schiebinger (2001)
questiona o desenvolvimento da ciência ocidental, e mostra como a sua estrutura e
fundamentação está mergulhada em estereótipos de gênero. A autora cita que a identidade de
gênero do indivíduo que faz a ciência influencia no conteúdo desta ciência e não apenas isto,
mas também é importante observar o cânone desta ciência, uma mulher pode muito bem fazer
uma ciência masculina, o que em alguns casos aconteceu, porque somente deste modo o
estudo teria reconhecimento.
De acordo com Schiebinger (2001), muitos cientistas homens ainda defendem que o
conhecimento científico é neutro, mas a questão que a autora coloca é que a ciência moderna
é, na verdade, o resultado de centenas de anos de exclusão das mulheres, e é justamente por
este motivo que a inclusão da mulher na ciência deve causar impactos profundos na ciência a
partir de agora.
Um exemplo que mostra claramente este enviesamento da ciência masculina é dado
por Emily Martin (1996). A autora cita que quando se ensina biologia na escola, se ensina, na
verdade, muito mais do que o mundo natural, ensina-se também crenças e práticas culturais
como se também fizessem parte do mundo natural. Ou seja, a autora, analisando materiais
didáticos utilizados em sala de aula, no contexto americano, percebeu juízos de valor
diferentes para homens e mulheres.
Segundo a autora, nas aulas de biologia, quando se ensina sobre o sistema reprodutivo
masculino e feminino, os estereótipos implicam em seu discurso, não apenas que os processos
biológicos femininos valem menos que os correspondentes masculinos, mas também ensina
que as mulheres valem menos que os homens. Martin (1996) aponta que quando os materiais
didáticos se referem ao sistema reprodutor feminino, algumas palavras que apareceram foram:
“interrupção”, “morte”, “perda”, “privação”, “expulsão”, “desperdício”. Em relação ao
sistema reprodutor masculino, as palavras vistas foram: “extraordinária”, “fantástica”,
“enorme magnitude”.
Uma frase recolhida de um desses materiais, que compara o sistema reprodutor de
ambos os sexos diz sobre o sistema masculino:
Os mecanismos que guiam a extraordinária transformação celular do
‘spermatid’ em esperma maduro permanece incerta... Talvez a mais
fantástica característica da espermatogênese é sua enorme magnitude: o
homem normal pode produzir várias centenas de milhões de espermas por
dia (MARTIN, 1996, p. 1).
o óvulo é visto como grande e passivo, enquanto que o esperma é definido como ágil e
dinâmico.
Segundo Martin (1996), graças as novas pesquisas, foi comprovado que o óvulo
também possui papel muito ativo durante a reprodução, e que o esperma não é tão ativo e
independente do óvulo assim, na verdade ele precisa do auxílio do óvulo para chegar até ele.
Entretanto, mesmo sendo reconhecido esta nova versão da reprodução, o óvulo continua
sendo colocado nos textos como um gameta passivo. Este é um exemplo claro de como a
ciência de fato enviesa questões de gênero e não é neutra em relação a diversas outras
questões.
O que o estudo de Martin demonstra é que a falta de reconhecimento da mulher na
ciência não se refere apenas no silenciamento e ocultação dos trabalhos desenvolvido por
mulheres na academia, mas também no modo como a ciência é escrita e no modo como a
mulher e seus corpos são descritos pela ciência.
Schiebinger (2001) aponta que as pessoas costumam misturar as palavras “mulher”,
“gênero”, “fêmea” e “feminismo”, mas a verdade é que cada palavra possui uma definição
distinta, e “feminismo” não é um “palavrão”. Além de que cada definição não pode ser vista
como um conceito universal. Butler já nos mostrou que, por exemplo, a definição de mulher,
vista como sujeito universal limita a compreensão do campo, uma mulher pode ser muitas
coisas além de mulher. Ela poderia ser proprietária de escravos, enquanto outras mulheres
poderiam eram escravas. Uma mulher branca, rica, sente estigmas diferentes de uma mulher
pobre, negra. Neste sentido, a autora afirma que a forma como conhecemos é influenciado
pelos nossos valores.
A crítica do sujeito e da ciência moderna para a construção de uma nova ciência que
inclua as mulheres e outras minorias
Bruno Latour (1994) conta que os críticos desenvolveram três repertórios distintos
para falar sobre nosso mundo. O primeiro é o repertório da naturalização, neste sentido,
quando se fala em fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma de
discurso. O segundo repertório é a socialização, ou seja, o poder sociologizado em que não há
mais ciência, técnica, texto nem conteúdo. O terceiro e último é o da desconstrução. Este fala
sobre os efeitos da verdade no mundo. Estes três repertórios, segundo o autor são importantes
para a análise em si, porém não podem ser usados combinados entre si.
Latour (1994) aponta que os fatos científicos são construções de pessoas, ou seja, são
dotados de valores e vivencias, porém, não podem ser reduzidos ao social porque ele está
povoado por objetos mobilizados para construí-los. Neste sentido, o autor também faz uma
crítica os dualismos e as dicotomias que a ciência “moderna” utiliza para definir as coisas.
Segundo Latour, nunca seremos modernos enquanto a ciência se pautar nestas definições. O
autor acredita que uma ciência moderna que ainda mantenha os olhos nesses dois polos
(natureza-cultura) não é uma ciência moderna, e sim, não-moderna.
Neste mesmo sentido, a crítica lançada por Walter Mignolo (2008) também é em
relação ao desenvolvimento da ciência ocidental. Mignolo fala acerca da proposta de Quijano,
de 1990 sobre a desobediência epistêmica. Esta obra diz que se não iniciar este movimento de
desobediência, não será possível o desencadeamento epistêmico, e assim permaneceremos no
domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados. Ou seja, aqueles que
são enraizados nos conceitos gregos e latinos e nas experiências e subjetividades formadas
dessas bases, tanto teológicas quanto seculares.
Sem esta mudança, não seremos capazes de ultrapassar os limites do Marxismo, os
limites do Freudismo e Lacanismo, os limites do Foucauldianismo; ou até os limites da Escola
de Frankfurt. A proposta do autor não é “deslegitimar” as ideias críticas europeias, porém, o
autor aponta que o eurocentrismo, colocando-se como centro do pensamento humano, criam
periferias. Por exemplo, o selvagem só é selvagem porque existe uma definição do que é
civilizado, o que não se encaixa nesta definição de civilizado é considerado selvagem.
Mignolo (2008) usa o termo descolonial no sentido de descolonizar o pensamento
eurocentrado, este termo é importante pelo o autor porque além da identidade permear todo o
aspecto das identidades sociais, também exerce controle da política de identidade, construindo
uma identidade que não se parece como tal, mas como a aparência “natural” do mundo. Sendo
assim, a imagem de um ser branco, com posses, heterossexual, cristão e do sexo masculino
são as principais características de uma política de identidade que denota identidades tanto
similares quanto opostas como essencialistas e fundamentalistas. Neste sentido, os/as
negros/as, as mulheres, os indígenas não aparecem representados como sujeitos de
reconhecimento.
Gayatri Spivak (2010), faz uma crítica aos esforços atuais do ocidente em
problematizar o sujeito em relação ao “sujeito do terceiro mundo” representado no discurso
ocidental. A autora aponta que uma das críticas mais radicais produzidas pelo ocidente são
aquelas que procuram manter o sujeito do ocidente. A teoria dos “sujeitos efeitos”
pluralizados dão a ilusão de um abalo na soberania subjetiva. Mesmo que a história da Europa
seja narrada pela lei, pela economia, pela política, esse sujeito parece não ter nenhuma
conotação geopolítica. Deste modo, a autora faz uma argumentação que a difundida crítica ao
sujeito, realmente cria um Sujeito e para isto ela se utiliza de Foucault e Deleuze para
explicar.
Tanto Foucault quando Deleuze compartilham das contribuições da teoria pós-
estruturalista francesa, porém ambos ignoram a questão da ideologia e seu próprio
envolvimento da história intelectual e econômica. Spivak afirma que a conversa entre
Foucault e Deleuze esta demarcada por dois “sujeitos em revolução” monolíticos e anônimos
(um maoísta e a luta dos trabalhadores).
De acordo com Spivak (2010), Foucault e Deleuze ao deixarem de considerar as
relações entre desejo, poder e subjetividade, ficam incapacitados de articular uma teoria dos
interesses. O interesse de Foucault pela especulação “genealógica” o impede de localizar em
Marx e Freud os divisores de água de um fluxo contínuo da história intelectual. Quando
Foucault considera a heterogeneidade difusa do poder, ele não ignora e heterogeneidade
institucional que Althusser tenta esquematizar. Foucault, entretanto, não pode admitir que
uma elaborada teoria da ideologia reconheça sua própria produção material na
institucionalidade.
Spivak aponta que esses filósofos se veem compelidos a rejeitar todos os argumentos
que nomeiam o conceito de ideologia como sendo apenas esquemático ao invés de contextual.
Assim eles alinham-se a sociólogos burgueses que ocupam o lugar da ideologia com um
inconsciente continuísta ou com uma cultura parasubjetiva. Essa matriz parasubjetiva
entremeada com a heterogeneidade conduz o sujeito inonimado pelo menos para aqueles
trabalhadores intelectuais influenciados pela nova heterogeneidade do desejo.
Esta questão da identidade, segundo Stuart Hall (2006), vem sendo muito discutida na
teoria social, isto porque, segundo o autor, as velhas identidades que durante muito tempo
manteve estabilizado o mundo social estão entrando em declínio. Neste sentido, novas
identidades vão surgindo enquanto que o sujeito moderno vai se fragmentando. Há na
atualidade, portanto, uma crise de identidade, e as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça, nacionalidade, que no passado tinham sólidas localizações como
indivíduos sociais estão se fragmentando, ocasionando uma mudança nas identidades
pessoais, abalando as ideias e conceitos antigos. Esta fragmentação do sujeito tem como
consequência principal o questionamento da ciência moderna e a valorização de novas formas
de se fazer ciência.
Donna Haraway (2000), Londa Schiebinger (2001) e Sandra Harding (1996) são
algumas das autoras que constataram que o feminismo de fato balançou a teoria social,
causando uma série de questionamentos que devem ser debatidos e reformulado. Segundo
Haraway (2000), foi quase que exclusivamente pelo feminismo que se começou a pensar no
modo como a ciência se escreve. Segundo a autora, há um controle do corpo para se manter
uma ordem hegemônica, esta ordem, porém, está entrando em colapso.
Ao desenvolver o manifesto do ciborgue, Haraway (2000) propõe uma reflexão e uma
crítica a esta sociedade que cria um centro e deste modo, cria também as margens. Ciborgue é
uma palavra que não faz sentido no nosso vocabulário, e é por este motivo que a autora lança
esta proposta. Assim como ciborgue não se encaixa na nossa linguagem, há também outras
“coisas” e sujeitos que não se encaixam nesta sociedade de conceitos dicotômicos. Muitas
existências não são reconhecidas, até sofrem risco de vida quando não fazem parte de um
enquadramento, pois, na medida que se cria o centro, para alguns indivíduos que não se
encaixam neste centro, restando-lhes somente, a margem.
Um ciborgue não é inocente, ele tem intensão, ele busca abalar esta ordem vigente.
Ciborgue “é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de
realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2000, p. 36). Somos
híbridos de máquinas quando usamos óculos, aparelho odontológico, próteses. Neste sentido,
somos reais e ao mesmo tempo ficção.
Para a autora, realidades sociais significam relações vividas, ou seja, significa
construção política. Estas construções têm o poder de mudar o mundo. Haraway cita o
exemplo dos movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode
chamar de “experiência das mulheres”. Esta experiência pode ser vista como uma ficção e
também como fato. Neste sentido, a libertação das mulheres dependerá em princípio, da
construção da consciência desta opressão.
Ciborgue, para Haraway (2000) é, portanto, ficção e experiência vivida, uma junção de
corpo biológico e máquina. É por meio do ciborgue que o sujeito moderno, nomeado com
sujeito de direito, hétero, branco e com posses sofre alguns deslocamentos. A autora acredita
que o feminismo é o movimento fundamental para esta crítica da teoria social vigente, que
desmascara este homem abstrato universal. Se todos são iguais, porque durante muito tempo
as mulheres foram “cuidadas” pelos homens no sentido de não poderem ter propriedades,
votar, trabalhar fora e aprender e produzir ciência? Os movimentos feministas trouxeram estes
questionamentos e auxiliou nessas mudanças teóricas e práticas na vida das mulheres.
Haraway critica algumas teorias feministas que também contestam a prevalência deste
sujeito universal e abstrato, porém não as transcenderam. Butler é uma cientista que propôs
mudanças, Haraway, entretanto foi mais radical, ela propôs o fim da dualidade, das
dicotomias, pois como no caso de Maria Patinõ, há questões que não podem ser explicadas
por elas. Por exemplo, a anatomia se torna inútil ao tentar definir o tamanho que um clitóris
ou um pênis deve ter. Patiño é uma intersexo, ou seja, não se encaixa (segundo as definições
tradicionais da ciência) numa definição de masculino nem de feminino, ela se encontra entre
estas definições e fora delas.
Nestes casos, a ciência não encontra no corpo a definição do sexo, busca-se então os
cromossomos, como no caso de Patiño, mas então se percebe que a procura nos cromossomos
não é suficiente, então a ciência moderna vai em busca de outras definições. E este discurso
acaba se tornando um ordenamento do mundo.
Quando Butler (2010) faz a desvinculação de sexo, gênero e desejo, começa-se a
permitir pensar outras formas de desejo, outras formas de corpos, como Patinõ, outras formas
de gênero. Por isso a crítica de Haraway (2000) a Foucault, que segundo ela, o conceito de
biopolítica dele não passa de uma débil premonição da política do ciborgue, que abrange um
campo muito maior de análise. Hawaray aponta que:
Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo
racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da
apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição
da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre
organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras (HARAWAY, 2000,
p. 37).
Neste sentido, a autora acredita que as coisas que estão em jogo nesta guerra de
fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação, ou seja, esta
proposta argumenta em favor da confusão dessas fronteiras e da responsabilidade em sua
construção. Portanto, no que se refere a teoria feminista, o ciborgue é uma criatura de um
mundo pós-gênero, sendo assim, não tem compromisso nenhum com a bissexualidade, com a
simbiose pré-edípica, ou com o trabalho não alienado. O ciborgue é “oposicionista, utópico e
nada inocente” (HARAWAY, 2000, p. 38).
Considerações finais
Quando Donna Haraway foi convidada para escrever sobre o conceito sexo/gênero em
um dicionário marxista encontrou algumas dificuldades no trabalho de traduzir os mesmos
termos para o alemão, espanhol, francês e chinês e de encaixar o conceito de sexo e gênero
nesses idiomas que em muitos casos uma mesma palavra significavam a mesma coisa. A
autora comenta: “meu inglês era marcado por raça, geração, gênero (!), região, classe,
educação e história política” (HARAWAY, 2004, p. 205). Ela então se perguntou como
poderia ser este seu inglês a matriz definidora para sexo/gênero em geral? Ela constata que
obviamente ele não é. Este trabalho seria muito mais complexo do que apenas definir.
A partir do momento que o feminismo começou a ser uma fonte de questionamento da
ciência, Sandra Harding (1996), comenta que a questão de gênero deixou de ser um campo de
interesse limitado às mulheres. Neste sentido a autora acredita que “la ciencia no es sólo un
conjunto determinado de enunciados ni un método único, sino un conjunto global de prácticas
significativas” (HARDING, 1996, p. 81), ela é na verdade um campo de batalha, em que
ideias são rebatidas, contestadas e reformuladas. O feminismo pode ser considerado então, um
agente impulsionador de mudanças na ciência moderna.
Quando Fausto-Sterling (2002) analisou as dicotomias sexo/gênero, natureza/criação e
real/construído e quando foram apresentadas as ideias dos/as autores/as no decorrer deste
trabalho, como Butler, Hawaray, Schiebinger, a desvinculação e a desconstrução destes
dualismos possibilitou pensar em novas formas de se fazer ciência. O modo como a ciência
moderna foi construída ao longo dos séculos, sobretudo a partir dos princípios cartesianos e
da exclusão não apenas das mulheres, mas de muitas outras vozes, limitou muito o campo de
análise e conhecimento. Tudo o que não fosse possível encaixar nesses conceitos, seria
considerado margem, periferia, quando não expelidos e excluídos da sociedade.
Pensar em uma ciência sem as dicotomias e sem as vinculações
sexo/gênero/desejo/natureza/cultura permite-se ampliar o olhar. Entendendo que o
conhecimento científico moderno, defendido por tantos anos como uno e absoluto é algo
construído através de valores, percepções, vivências, olhares, lugares, é possível perceber que
ele pode ser desconstruído e reelaborado trazendo a vista uma grande parte desde mundo que
durante a vivência desta ciência moderna, permaneceu apagada e excluída.
Todas as mulheres, independente de classe, raça/etnia, orientação sexual, foram e são
sujeito e agente de história e conhecimento. Os movimentos feministas permitiram que muito
deste reconhecimento científico, político e social fosse permitido. Um caminho ainda longo
nos espera, sobretudo no âmbito cultural. Este é bem mais complexo de ser mudado.
Referências bibliográficas
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1960.
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Cadernos Pagu (220) 2004: pp. 201-246.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final
do século XX. In: SILVA, Tadeu. Antropologia do Ciborgue. As vertigens do pós-humano.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
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LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de
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SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência?Bauru: EDUSC, 2001.
SENKEVICS, Adriano. Arquivo da tag: Maria Patiño. Um breve histórico da participação
das mulheres nos Jogos Olimpicos. Ensaios de gênero, 2012. Disponível em:
<https://ensaiosdegenero.wordpress.com/tag/maria-patino/> Acesso em: 23 de fev. de 2018.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
Nathália Lipovetsky1
Aurélia Neves2
Letícia Vulcano de Andrada3
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as alterações implementadas pela
Emenda Constitucional 72/2013 e pela Lei Complementar nº 150/2015 nas relações de
trabalho doméstico remunerado à luz da ideia de justiça concebida na obra de Amartya Sen
(2011), com ênfase na sobreposição dos elementos gênero, raça e classe para delimitação da
amostragem de trabalhadoras domésticas. A metodologia empregada se fundamenta na análise
de dados secundários disponibilizados em sítios eletrônicos do Governo Federal e a discussão
desses dados à luz de obras nodais para a delimitação dos conceitos de gênero, trabalho e
justiça. Amartya Sen (2011) critica a tradição que teoriza um conceito de justiça perfeita, que
ele denomina de transcendental, e busca conceber uma ideia de justiça comparativa, com foco
na vida que as pessoas são efetivamente capazes de levar. Tem-se, então, uma teoria da justiça
que caminha junto ao conceito de injusto e que toma por base o conceito de que, embora não
seja possível alcançar uma justiça perfeita, existem no mundo injustiças perfeitamente
remediáveis que podem e devem ser eliminadas. Nesse artigo, o conceito de trabalho
doméstico será considerado aquele realizado dentro da esfera domiciliar, podendo ser
remunerado ou não. Enquanto trabalho não remunerado, a atividade doméstica é invisibilizada
e entendida como serviço não produtivo (IPEA, 2014). Em se tratando de trabalho doméstico
remunerado, a taxa de atividade de pessoas economicamente (PEA) ativas da população
acima de 16 anos mostra que 14% das trabalhadoras brasileiras ocupadas eram trabalhadoras
domésticas. Vale ressaltar a questão racial, uma vez que “17,7% das mulheres negras eram
trabalhadoras domésticas, ainda a principal ocupação entre elas –, ao passo que, entre as
brancas, 10% estavam no emprego doméstico” (IPEA, 2014). A redação anterior do parágrafo
único do art. 7º da CRFB/1988 assegurava aos trabalhadores domésticos apenas uma parte
dos direitos garantidos aos demais trabalhadores, o que foi alterado com a EC 72/2013. Com a
promulgação da EC 72/2013, entraram imediatamente em vigor direitos como salário mínimo,
irredutibilidade salarial, 13º salário, limitação da jornada de trabalho, repouso semanal
remunerado, licença gestante e paternidade, aviso prévio, aposentadoria, dentre outros. As
mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional 72/2013 e pela Lei Complementar nº
150/2015 nas relações de trabalho doméstico remunerado, à luz da ideia de justiça concebida
na obra de Amartya Sen (2011) representam, portanto, a correção de uma injustiça
remediável, para essa parcela da PEA, constituída principalmente por mulheres, em sua
maioria negras.
Palavras-chaves: Trabalho doméstico; Gênero; Raça; Teoria da Justiça.
1
Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia; Mestre e Doutora em Direito pela UFMG;
nathalialipovetsky@gmail.com.
2
Bacharel em Direito pela UFMG; Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; aurelianeves@gmail.com.
3
Mestre e Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais;
let.vulcano@gmail.com.
1. Introdução
As relações de trabalho doméstico remunerado no Brasil carregam consigo uma
herança histórica de servitude e elitização, além de terem sido recorrentemente alimentadas
por práticas conhecidas como uma espécie de “adoção” de moças, ainda muito jovens, em
cidades do interior, supostamente para que pudessem estudar, em troca de moradia e um
salário que muitas vezes era apenas simbólico, criando uma ligação social praticamente
inescapável e um vínculo trabalhista sem nenhuma limitação de horários ou proteção jurídica.
Esses contornos nitidamente escravocratas tiveram o amparo da legislação, uma vez
que os avanços nas conquistas dos direitos trabalhistas ocorridos, sobretudo, a partir da
década de 1930, deixaram de fora a categoria de empregados e empregadas domésticas.
Embora outras mudanças também significativas tenham ocorrido anteriormente, apenas com o
advento da Emenda Constitucional 72/2013 foram suficientemente eliminadas as diferenças
de tratamento jurídico entre esta e as demais categorias profissionais.
O presente trabalho analisa as alterações implementadas pela Emenda Constitucional
72/2013 e regulamentadas pela Lei Complementar nº 150/2015 nas relações de trabalho
doméstico remunerado à luz da ideia de justiça concebida na obra de Amartya Sen, uma teoria
da justiça que caminha junto ao conceito de injusto e que toma por base a ideia de que,
embora não seja possível alcançar uma justiça perfeita, existem no mundo injustiças
perfeitamente remediáveis que podem e devem ser eliminadas.
Essa análise será feita com ênfase na sobreposição dos elementos gênero, raça e
classe para delimitação da amostragem de trabalhadoras domésticas, uma vez que é
multifacetada a forma como as camadas da população são afetadas pelas injustiças causadas
pela seletividade da legislação para a categoria. O recorte feito para apresentação de dados
será exatamente no grupo que tem piores condições socioeconômicas dentro das coletas de
dados secundários: o grupo em que está a mulher negra.
A metodologia empregada se fundamenta na análise de dados secundários
disponibilizados em sítios eletrônicos do Governo Federal, especialmente IPEA e Ministério
do Trabalho e na discussão desses dados à luz de obras nodais para a delimitação dos
conceitos de gênero, trabalho e justiça.
caracterizar o que seria uma ideia ou modelo de justiça perfeita e que, na prática, não tem a
possibilidade de ser alcançada. Sen (2011) critica essa tradição e busca conceber uma ideia de
justiça comparativa ou alternativa, com foco na vida que as pessoas são efetivamente capazes
de levar. Assim, seu “objetivo é esclarecer como podemos proceder para enfrentar questões
sobre a melhoria da justiça e a remoção da injustiça, em vez de oferecer soluções para
questões sobre a natureza da justiça perfeita” (SEN, 2011, p. 11).
Sen rejeita as conclusões de Rawls (1971) na medida em que pretende estabelecer uma
teoria da justiça que seja base da argumentação racional no domínio prático; precisa, para
isso, incluir modos de julgar como reduzir a injustiça e, portanto, promover a justiça, em vez
de objetivar apenas a caracterização das sociedades perfeitamente justas. Há, em sua teoria,
uma identificação entre justiça e desenvolvimento, de forma que a justiça de um ato deve ser
medida quanto a sua capacidade de promover as liberdades e a expansão da liberdade. Essa
última se apresenta duplamente como fim primordial e principal meio do desenvolvimento
(seus papéis constitutivo e instrumental, respectivamente). (SEN, 2010, p. 55).
A ideia de injustiça e o diagnóstico do injusto são centrais para a teoria da justiça
segundo Sen, que averigua se uma teoria da justiça precisa ir além do senso de justiça e
injustiça. (SEN, 2011, p. 10) A partir disso, desenvolve o argumento de que o diagnóstico da
injustiça pode se dar por diferentes razões a partir do nosso senso de justo e injusto, mas sem
que uma delas seja apontada como dominante nesse diagnóstico e que chegar a conclusões
robustas acerca do que deve ser feito em cada situação não depende diretamente de reduzir os
critérios avaliativos a um único: “isso se aplica tanto à teoria da justiça quanto a qualquer
outra parte da disciplina da razão prática”. (SEN, 2011, p. 33-34)
Esse questionamento acerca da necessidade de uma teoria da justiça é sintomático da
própria teoria concebida na obra, que se mostra como uma teoria da justiça em sentido amplo:
autoritários. Por isso, a grande contradição dessa afirmação existe no fato de que a opulência
global cresceu historicamente e, ao mesmo tempo, vivemos hoje num mundo em que a
maioria das pessoas não possui ou pouco possui acesso a essas liberdades elementares ou
substantivas. (SEN, 2010, p. 17)
Por fim, Sen (2010) diz que essas liberdades substantivas devem ser promovidas por
meio de liberdades instrumentais, que são liberdades políticas, facilidades econômicas,
oportunidades sociais, transparência, e segurança (proteção), entendendo que, na prática as
liberdades de diferentes tipos fortalecem umas às outras e a privação das liberdades
econômica, social e política estão intimamente interconectadas e se implicam mutuamente.
(SEN, 2010, p. 25)
A seguir, é introduzida a discussão acerca da sobreposição de gênero e classe e,
posteriormente, essas noções são amalgamadas com a apresentação da situação do trabalho
doméstico remunerado e não remunerado no Brasil, com base em dados do IPEA (Instituto de
Pesquisa e Econômica Aplicada) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
persistente e recorrente de tornar eficaz a significação do poder no ocidente, por exemplo, nas
tradições judaico-cristãs e islâmicas.
No final dos anos 70, o movimento denominado Black Feminism (DAVIS, 2017, p.40-
54), critica a forma como as análises de gênero apenas interpretavam uma figura feminina de
origem branca e heteronormativa, sem levar em consideração as diversas variáveis de
interpretação fora desse eixo. Os estudos voltados para a comparação entre sexos não
contemplam pesquisas relacionada à divisão de gênero, é necessário que essas análises e
comparações sejam também realizadas levando em consideração a diferenciação entre
homens brancos e homens não-brancos e mulheres brancas e mulheres não-brancas.
(HIRATA, 2014, p.64).
Dito isso, a discussão das relações de trabalho, principalmente em países com
realidades desiguais como o Brasil, se deve, necessariamente, ao se falar em gênero, também
envolver as variáveis ligadas à etnia/raça e classes sociais. Quando discutimos o lugar da
mulher dentro do universo mercantil, devemos nos perguntar de qual mulher estamos falando.
O início da luta histórica dos movimentos feministas pela ampliação dos direitos das mulheres
trouxe poucos elementos de discussão de igualdade em esferas sociais e raciais. A
importância da mulher não-branca não foi igualmente reconhecida na construção dos
primeiros direitos da mulher como foram os das mulher branca. (DAVIS, 2017, p.57-59 )
A verdade é que, antes de ter acesso a direitos básicos, aos quais as mulheres brancas
clamavam a si, as mulheres não-brancas sequer tinham acesso a níveis educacionais, judiciais
ou políticos, portanto, qual o tipo de posição no mercado laboral essas mulheres teriam?
Durante as argumentações que justificam a entrada da mulher e o seus direitos dentro de
esferas tipicamente ocupadas por homens, a questão de raça e classe social foi pouco
aprofundada, e as consequências são sentidas até hoje.
Ao se referir às teorias de trabalho care4, Hirata (2014), explica o quanto esse tipo de
trabalho, que envolve o cuidado, é provido pelas dimensões de gênero, classe e raça. O
pertencimento a determinada classe social faz com que possamos identificar de que maneira o
care é praticado e por quem, e essa identificação possui uma forte distinção de níveis de
poder. (HIRATA & KERGOAT, 2008, p.267). Não é incomum que mulheres de classes
sociais altas saírem para os seus trabalhos enquanto outras mulheres cuidam se seus filhos ou
de seus parentes inválidos.
4
As formas de trabalho ligadas ao care são funções tipicamente dirigidas ao outro, visando melhoria e bem
estar. São funções como: cuidar de criança, cuidar de indivíduos inválidos e/ou acamados, afazeres domésticos e
cuidados na área de saúde. Exemplos: empregados domésticos, faxineira(o)s, babás, cuidadores e enfermeira(o)s.
4. Trabalho doméstico
Sobre o conceito de trabalho, é interessante notar que o IBGE define esse termo como
“contabilização da população ocupada” (IPEA, p. 4, 2016), nesse sentido, se considera apenas
as atividades econômicas relacionadas a:
Ocupação remunerada em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios
(moradia, alimentação, roupas, etc.) na produção de bens e serviços; b)
Ocupação remunerada em dinheiro ou benefícios (moradia, alimentação, roupas,
etc.) no serviço doméstico; c) Ocupação sem remuneração na produção de bens
e serviços, desenvolvida durante pelo menos uma hora na semana: - em ajuda a
membro da unidade domiciliar que tem trabalho como empregado na produção
de bens primários (as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração
vegetal ou mineral, caça, pesca e piscicultura), conta própria ou empregador; -
em ajuda a instituição religiosa, beneficente ou de cooperativismo; ou - como
aprendiz ou estagiário; ou d) Ocupação desenvolvida, durante pelo menos uma
hora na semana: - na produção de bens, do ramo que compreende as atividades
da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal, pesca e piscicultura,
destinados à própria alimentação de pelo menos um membro da unidade
domiciliar; ou - na construção de edificações, estradas privativas, poços e outras
benfeitorias exceto as obras destinadas unicamente à reforma) para o próprio
uso de pelo menos um membro da unidade domiciliar. (IBGE, 2015, p.128).
Fica evidente que este conceito de trabalho, utilizado pelo principal órgão produtor de
estatísticas do país, trabalha com uma noção de trabalho mercantilizado, o que implica a
invisibilidade de uma série de atividades produtivas não remuneradas.
Para o IBGE, as pessoas que possuem atividades não remuneradas são consideradas
inativas. No presente trabalho, esse aspecto se torna muito importante uma vez que diversas
funções não remuneradas são desempenhadas por mulheres, tanto na zona rural quanto na
urbana. Desse modo, as pesquisas e estatísticas do principal órgão dessa área no país auxilia
pouco, ou quase nada, na análise e no estudo a respeito das atividades de muitas brasileiras.
antes que a mulher branca. (IPEA, 2016, p.5). Essa inserção se deu de forma precária, em
trabalhos pouco remunerados, de baixo status social e de pouca possibilidade de ascensão
laboral.
De acordo com esse padrão mencionado, o trabalho não remunerado que as mulheres
deveriam desempenhar dentro de suas casas, isto é, o trabalho doméstico dedicado a cuidar da
casa, dos filhos e de outras pessoas vulneráveis não é considerado pelas estatísticas como
atividade produtiva ou de valor. Em 2010, 48,9% das mulheres compunham a PEA (ALVES,
2013, p. 2), assim, se tem que mais da metade das mulheres do país possui sua atividade
laboral invisibilizada.
O trabalho doméstico remunerado é muito importante quando se trata da ocupação das
mulheres no Brasil, principalmente em se tratando das mulheres negras. O legado pernicioso
da escravidão faz com que as classes superiores brasileiras se utilizem do trabalho de
mulheres das classes inferiores, geralmente negras, para cuidar da casa e dos filhos, as
remunerando de maneira precária e as mantendo em baixa condição social e economicamente
vulneráveis (IPEA, 2016, p. 14).
Até 2013, eram negados às trabalhadoras domésticas direitos atribuídos aos
trabalhadores em geral desde a Constituição Federal de 1988. Entre 2013 e 2015, quando
finalmente foi aprovada a lei complementar que regulamentou a emenda constitucional que
garantia esses direitos, houve debate na sociedade acerca dessa medida que apenas reparava
um erro crasso no ordenamento jurídico nacional (IPEA, 2016, p. 14).
A Lei Complementar 150/2015 revogou a Lei 5.859/1972, a primeira a tratar
especificamente da categoria do empregado doméstico. Essa lei de 1972 definiu em seu art. 1º
o empregado doméstico como “aquele que presta serviços de natureza contínua e de
finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas”. A Lei
Complementar 150/2015 atualizou essa definição introduzindo as noções de recorte temporal
e subordinação na prestação desse serviço: “aquele que presta serviços de forma contínua,
subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito
residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”.
Em função de fatores como o aumento da escolaridade das mulheres e as condições
precárias em termos de direito e remuneração, a proporção de mulheres no serviço doméstico
vem caindo ao longo do tempo. O que chama atenção é que há décadas o trabalho doméstico
remunerado não é a principal atividade entre as mulheres brancas, porém, de acordo com
dados de 2014, essa continua sendo a principal atividade das mulheres negras, 17,7% (IPEA,
2016, p. 15).
gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX -
licença-paternidade, nos termos fixados em lei; XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de
serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; XXIV - aposentadoria;bem como
a integração à previdência social. Vale dizer, então, que dos 34 incisos, os empregados e
empregadas domésticas eram contemplados apenas com 9.
A redação introduzida pela EC 72 ao parágrafo único do art. 7º da Constituição
passou a contemplar mais incisos e garantir, portanto, novos direitos à categoria:
gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e
pré-escolas; XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem
excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
Essa regulamentação ocorreu por meio da Lei Complementar 150/2015, que trouxe
uma nova definição do conceito de empregado/a doméstico/a e de contrato de trabalho no
âmbito doméstico, institui um regime unificado de pagamento de tributos para as relações
trabalhistas de cunho doméstico, altera a legislação previdenciária para incluir a categoria,
bem como revoga a legislação antiga que já não mais traduzia as relações sociais vigentes.
6. Considerações finais
As mudanças introduzidas pela EC 72/2013 regulamentada pela Lei Complementar
nº 150/2015 nas relações de trabalho doméstico remunerado, à luz da ideia de justiça
concebida na obra de Amartya Sen, representam uma tentativa de corrigir uma injustiça para
essa parcela da população economicamente ativa, constituída principalmente por mulheres,
em sua maioria negras. A superação de problemas relacionados à pobreza, desigualdade social
e desigualdade de gênero passa pela garantia de direitos trabalhistas e seguridade social aos
trabalhos precarizados, que são ocupados em sua maioria por mulheres não-brancas.
Os dados estatísticos entre gênero e raça apresentados nesse artigo, mostram como
em termos históricos o Brasil evoluiu e vem evoluindo na garantia de direitos às
trabalhadoras, mas ainda existe um considerável gap econômico, jurídico e social a ser
preenchido. Atualizar o conceito de trabalho com o qual os órgãos e autoridades do governo
trabalham e alterar as leis vigentes no sentido de expandir o guarda-chuva dos direitos
trabalhistas é uma maneira de remediar algumas das injustiças existentes no país, de acordo
com a visão de Amartya Sen (2011).
Articular a ideia de justiça de Sen (2010; 2011), com a empiria disponível nos dados
fornecidos pelos órgãos de produção de estatística brasileiros e com as recentes mudanças no
ordenamento jurídico nacional acerca do trabalho doméstico, permite analisar sob uma nova
ótica, a situação econômica e social de uma parcela significativa de mulheres, especialmente
as não-brancas, que além de serem invisibilizadas como população economicamente ativa nos
dados disponíveis, eram excluídas de uma série de direitos fundamentais atribuídos pela
CRFB às demais categorias de trabalhadores e trabalhadoras. As conquistas do período
recente (últimos 40 anos) precisam ser analisadas com rigoroso olhar crítico. Em regra, as
mulheres permanecem em trabalhos inferiorizados, precários e vulneráveis, em setores
tradicionalmente já ocupados por elas.
A melhoria das condições de inserção no mundo do trabalho nos últimos anos não
alterou, portanto, a estrutura da divisão racial e sexual do trabalho, motivo pelo qual uma
conjuntura econômica desfavorável tende a ser ainda mais regressiva, sobretudo para as
mulheres negras e pardas, inseridas majoritariamente em relações instáveis e desprotegidas de
trabalho. Como é possível perceber nos dados estatísticos aqui apresentados, há um longo
caminho a se percorrer para efetivamente superar as desigualdades, injustiças sociais e
econômicas que afetam as mulheres e principalmente as mulheres não-brancas no Brasil. Esse
processo precisa ser enfrentado com atuação firme e planejada de políticas públicas e sociais
que influenciam o mercado de trabalho e a sociedade de maneira objetiva.
Referências
ALVES, José Eustáquio Diniz. “O crescimento da PEA e a redução do hiato de gênero nas
taxas de atividade no mercado de trabalho”. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. Disponível em:
http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/artigo_112_a_reducao_do_hiato_de_genero_nas_taxas_de_a
tividade_no_mercado_de_trabalho.pdf. Acesso em 25/05/2018.
BRASIL. IPEA. Nota técnica n. 24. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
Brasília, 2016.
DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Bom Tempo, 2017.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
RAWLS, John. A theory of Justice. Cambridge: The Belknap of Harvard University Press,
1971.
SEN, Amartya Kumar. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
Resumo: Os avanços na legislação e nas políticas públicas de proteção às mulheres que são
vítimas de violência suscitam discussões sobre a eficácia das medidas estabelecidas em lei,
especialmente diante do desafio constitucionalmente posto de se promover uma sociedade
mais igualitária. Assim, considerando que o combate à violência contra a mulher não é
possível olhando para apenas um dos lados da questão, faz-se necessário compreender a
importância da atenção ao autor de violência e realizar o mapeamento da construção de
política pública voltada a este sujeito, a fim de entender como a intersetorialidade pode
contribuir para que os objetivos das políticas públicas sejam alcançados, notadamente no
Estado de Sergipe. A partir da análise da literatura especializada, em especial com
experiências de alguns estados que instituíram política pública voltada ao autor de violência,
percebe-se que a atuação intersetorial permite o encontro de várias percepções da
problemática, viabilizando a construção de uma política pública mais ampla. A experiência de
diversos atores sociais e, consequentemente, a maior participação da sociedade são fatores
que se destacam para que as discussões sejam mais plurais. Percebe-se que em Sergipe há
esforços conjuntos para a consecução de uma política pública para o autor de violência que já
sinaliza o papel da intersetorialidade.
1
Universidade Tiradentes; Mestranda em Direitos Humanos – UNIT; leticia.rocha.aju@gmail.com
2
Professora do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes e do Mestrado em Sociedade,
Tecnologias e Políticas Públicas do Centro Universitário Tiradentes; Pesquisadora do Instituto de Tecnologia e
Pesquisa; Doutora em Ciências Sociais – UFBA; veronica_marques@set.edu.br
1 Introdução
3
Segundo estudo feito em 2014 (BEIRAS, 2014), essas iniciativas estavam presentes em Blumenau (SC), Belo
Horizonte (MG), Ponta Grossa (PR), Vitória (ES), Santo André (SP), Diadema (SP), São Bernardo do Campo
(SP), Brasília (DF), Pouso Alegre (MG), Rio de Janeiro (RJ), Cuiabá (MT), Nova Iguaçu (RJ), São Paulo (SP),
Londrina (PR), São Gonçalo (RJ), Rio Branco (AC).
4
FLORES, 2009. SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena, 2016.
5
A violência contra a mulher é uma questão de poder legitimada pela cultura, um comportamento apreendido e
incorporado por várias gerações. A definição de gênero é considerada como construção cultural, entendendo-se a
violência como um fenômeno histórico, produzido e reproduzido pelas estruturas sociais de dominação e
reforçado pela ideologia patriarcal (OLIVEIRA et al., 2015).
6
VIEIRA DE CARVALHO, Grasielle Borges. Grupos Reflexivos para os Autores da Violência Doméstica:
Responsabilização e Restauração. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
7
As informações detalhadas sobre essas tratativas estão disponíveis na página da ALESE na internet. Ver
também: <https://www.al.se.gov.br/frente-parlamentar-em-defesa-da-mulher-apoia-implantacao-de-servico-de-
atendimento-ao-agressor/> e <http://www.al.se.gov.br/frente-palamentar-em-defesa-das-mulheres-e-lancada-na-
alese/>.
Levando-se em consideração que o Brasil ocupa a 5ª posição com uma taxa de 4,8
homicídios, em 100 mil mulheres, atrás apenas El Salvador, Colômbia, Guatemala, e da
Rússia (Mapa da Violência; 2015), é preciso admitir a complexidade do fenômeno,
reproduzido há séculos, com influência nas vidas de homens e mulheres em todos os âmbitos,
desde a vida doméstica até a vida pública.
Essa complexidade requer também soluções complexas que partam de outros vieses
com vistas a sua prevenção e combate: é preciso reconhecer como a violência contra a mulher
é um reflexo dos papéis sociais de homens e mulheres, papéis organizados e reproduzidos,
mesmo que simbólica e inconscientemente, perpetuando a dominação masculina, nos espaços
de poder e na vida privada.
As violências contra as mulheres são a expressão da vulnerabilização histórica e social
de todas as mulheres, independentemente de raça, classe, orientação sexual e outros
marcadores. Entretanto, para uma análise mais completa, deve-se atentar às múltiplas
características e realidades.
A partir da análise da literatura especializada, notadamente com experiências de
alguns estados que instituíram política pública voltada ao autor de violência, percebe-se que a
atuação intersetorial permite o encontro de várias percepções da problemática, viabilizando a
construção de uma política pública mais ampla. A experiência de diversos atores sociais e,
consequentemente, a maior participação da sociedade são fatores que se destacam para que as
discussões sejam mais plurais.
Desse modo, verifica-se que, em atendimento às prescrições da legislação, faz-se
necessária a criação de uma política pública que possibilite maior suporte a essas pessoas.
Percebe-se que em Sergipe há esforços conjuntos para a consecução de uma política pública
para o autor de violência que já sinaliza o papel da intersetorialidade.
Referências
______. Seminário Tecendo a Rede prossegue com debates sobre violência doméstica.
Agência de Notícias Alese. Disponível em: <https://www.al.se.gov.br/seminario-tecendo-a-
rede-prossegue-com-debates-sobre-violencia-domestica/>. Acesso em 27 mar. 2018.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
CASIQUE, Leticia Casique; FUREGATO, Antonia Regina Ferreira. Violence against women:
theoretical reflections. Revista Latino-Americana de Enfermagem, vol.14 n.6, 2006.
CUSTÓDIO, André Viana; SILVA, Cícero Ricardo Cavalcante da. A intersetorialidade nas
políticas sociais públicas. Seminário Nacional Demandas Sociais e Políticas Públicas na
Sociedade Contemporânea, 2015.
SCOTT, Joan W.; KLANOVICZ, Jó; FUNCK, Susana Bornéo. O enigma da igualdade.
Estudos feministas, p. 11-30, 2005.
Resumo: O presente trabalho foi parte dos resultados obtidos em uma pesquisa realizada no
município de Fazenda Rio Grande-PR em 2017, no curso de especialização em Gestão
Estratégica e Integrada de Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social, que teve
como objetivo geral investigar quais são os fatores impeditivos para a construção e
implementação da rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e de gênero no
município, bem como verificar e analisar o entendimento dos atores e gestores públicos sobre
o conceito de Rede de Proteção e os conhecimentos das Políticas Públicas à mulher, no
sentido de verificar as potencialidades e fragilidades no que diz respeito à construção da rede
de proteção e a existência de protocolos de atendimento, ações intersetoriais e articuladas. A
metodologia adotada partiu do levantamento documental e bibliográfico, de dados e órgãos
municipais e federais, através de pesquisa em normativas e legislação; de pesquisa das
políticas públicas existentes para a proteção da mulher vítimas de violência no âmbito
nacional, estadual e municipal para análise comparativa; A pesquisa teve caráter exploratório
no sentido de buscar compreender quais os desafios para a construção e implementação da
rede, sendo possibilitado através da aplicação de questionário aos gestores e profissionais
pertencentes aos serviços de atendimento, levantando também o perfil dos entrevistados e
identificando as potencialidades e fragilidades da rede apresentadas pelos mesmos; Para a
análise de dados quantitativos e qualitativos utilizou-se a de análise de conteúdo.
Palavras-chaves: Rede de Proteção à Mulher; Políticas Públicas; Violência Doméstica e de
Gênero.
Introdução
O presente trabalho é parte dos resultados de pesquisa realizada no ano de 2017 para
a conclusão do curso de especialização em Gestão Estratégica e Integrada de Políticas
Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social, tendo a Rede de Proteção à Mulher como
tema. O interesse pelo estudo surgiu da observação do trabalho desenvolvido no Centro de
Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), órgão pertencente à política de
assistência e que até o momento supre a demanda de atendimento de violência doméstica e de
gênero no município de Fazenda Rio Grande-PR (FRG-PR) e da sua relação com os demais
serviços de atendimento e proteção que a mulher recorre quando se encontra em situação de
violação de direitos.
1
Centro de Referência Especializado em Assistência Social- CREAS (Educadora Social Concursada). Bacharel
em Direito (FARESC 2011). Especialista em Gestão de Projetos Sociais (Centro Universitário Barão de Mauá-
2017). Especialista em Gestão Estratégica e Integrada de Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento
Social (Faculdades Futuro-2017) < martyane@hotmail.com>.
A pesquisa teve como objetivo geral a investigação dos fatores impeditivos para a
construção e implementação da rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e de
gênero, conceituando a Rede de Proteção em paralelo com o que se preconiza na Lei Marida
Penha, como forma de ampliar a análise sobre a Rede, assim tendo a possibilidade de
identificar as potencialidades e fragilidades da mesma, no sentido da construção da rede de
proteção. A primeira parte da pesquisa que não se apresentará aqui contextualizaou a
violência doméstica no tempo e espaço, com a observação de seus reflexos na sociedade,
tendo como fundamentação teórica Safiotti, Minayo, Fraser, Murilo de Carvalho e Hirata.
Desta maneira, a presente pesquisa apresentará os resultados que se concentraram
nos dois últimos tópicos (pesquisa documental, de normativas e entrevistas), que propiciaram
um levantamento das políticas públicas existentes, a observação da importância da temática,
bem como sua visibilidade e verificação se tais políticas fazem parte da agenda pública do
município e do interesse dos gestores e se há protocolos de atendimento, ações intersetoriais e
articuladas, também a análise da rede de proteção (órgãos e agentes) em consonância ao
disposto nas leis e normativas nacionais.
A metodologia que foi adotada partiu do levantamento documental e bibliográfico,
sobre políticas públicas e Rede de Proteção com objetivo no entendimento de sua ação no
município; Bem como o levantamento de dados dos órgãos municipais, e federais e demais
fontes de pesquisa para análise comparativa; Contou também com pesquisa exploratória no
intuito de verificar a construção e os desafios de implementação da rede de proteção à mulher;
pesquisa quantitativa e qualitativa por meio de questionários para coletas de dados sobre o
entendimento dos gestores e profissionais pertencentes aos serviços de atendimento, para
identificar as potencialidades e fragilidades da rede. Para as análises de dados quantitativos e
qualitativos se utilizou a metodologia de análise de conteúdo.
Desenvolvimento
da Penha procurou determinar e assegurar a forma de assistência que o poder público deve
oferecer a mulher vítima de violência. Além de trazer a definição de violência, preconizou
mecanismos para a implementação integral de políticas públicas “a serem adotadas pelos
poderes públicos nas esferas federal, estadual e municipal.” (DIAS, p. 201).
No site da SPM, Curitiba conta com uma Secretaria Municipal Extraordinária,
conforme decreto: 1635 de cinco de dezembro de 2013 e o Munícipio de FRG-PR constam
possuir uma Diretoria de Políticas Públicas para as mulheres, mas em decreto 4262, de 24 de
junho de 2016 o cargo de diretoria foi extinto, por consequência a diretoria. Desta maneira, os
dados apresentados pelo site não estão atualizados e FRG-PR aparece juntamente com mais
12 municípios do Paraná como tendo assinado o termo de adesão ao Pacto Nacional pelo
enfrentamento a violência e ao programa Mulher Viver sem Violência; No âmbito legislativo
de FRG-PR, realizou-se pesquisa com os verbetes: (Mulher 55 resultados; Violência 33
resultados; Violência Doméstica 4 resultados; Doméstica 7 resultados; Rede 338 resultados e
Intersetorial 4 resultados.) Afim, de verificar leis e ou atos normativos existentes no
município, tendo se destacado:
Lei n° 1122, de 14 de outubro de 2016, que cria a Patrulha Maria da Penha,
Lei n 927 de 27 de dezembro que altera a Lei n° 173/2003 de 8 de julho de
2003 que cria o conselho municipal dos direitos da mulher e o fundo
municipal dos direitos da mulher, Lei n°875 de 21 de dezembro de 2011 que
autoriza a criação da secretaria da mulher, Lei n°851/2011 de 7 de outubro de
2011 que autoriza a criação do centro de referência da Mulher e o Decreto n°
3662 de 12 de maio de 2014 que institui a comissão da rede de proteção
integral a família.
(1977) apud BERELSON tal técnica faz a descrição de maneira objetiva, sistemática e
quantitativa do conteúdo. (p.19) O método afasta a subjetividade e a interpretação leviana,
pois permite a análise das comunicações, através das descrições dos conteúdos das
mensagens, com a intencionalidade de “inferência” dos conhecimentos: “inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção),
inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não). ” (p28-30)
A pesquisa qualitativa pode trazer respostas de uma maneira mais particular, assim
satisfazendo, a pesquisa de âmbito social, que por muitas vezes não consegue ser
quantificada, pois o campo de trabalho está repleto de significados (aspirações, crenças,
valores, culturas, atitudes, classes e etc.), sendo então esse conjunto de fenômenos de natureza
humana, parte da realidade social, assim “o universo da produção humana que pode ser
resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da
pesquisa qualitativa dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos.”
(MINAYO, 2009, p.21). Sendo então realizados na presente pesquisa a abordagem
quantitativa e qualitativa, uma vez que possuem apenas diferenças de natureza e podem
coexistir juntas sem ordem hierárquicas determinantes para o seu uso, pois na pesquisa
quantitativa o pesquisador trabalha com estatística no intento de “criar modelos abstratos ou a
de descrever e explicar fenômenos que produzem regularidades, são recorrentes e exteriores
aos sujeitos”, por sua vez a pesquisa qualitativa, se atêm ao “mundo dos significados”,
precisando então ser interpretado pelo pesquisador, por se tratar de uma realidade não visível,
e que precisa ser exposta. (MINAYO 2009 APUD MINAYO, 2006).
Deste modo tais procedimentos se adequam para a finalidade proposta da pesquisa,
que se utilizou da coleta de dados por meio de entrevista social, instrumento de investigação
de um problema específico. (MANZINI, 1991, p.150). Uma vez, que o objetivo geral da
pesquisa foi verificar quais são os desafios para a implementação da rede de proteção à
mulher no município FRG-PR. Assim, para o desenvolvimento da pesquisa foram listados os
órgãos que devem compor a rede de proteção à mulher em comparativo com a cidade de
Curitiba que já possui uma rede formalizada, com mais de 60 órgãos (fonte do site Bem
Paraná). Desta listagem foram extraídos 23 órgãos presentes no município de FRG-PR, os
quais se tornaram o objeto da pesquisa, tendo seus gestores, coordenadores e membros
entrevistados.
Deste modo, foi realizada a aplicação de um questionário semi-estruturado,
composto por 5 perguntas fechadas (quantitativas) e 7 perguntas abertas (qualitativas), sendo
as primeiras assinaladas pelo próprio participante, e as demais respostas obtidas através de
respostas gravadas. O questionário foi aplicado no período de maio a junho de 2017, aos 13
participantes, sendo estes gestores de políticas públicas, coordenadores e representantes de
órgãos, e profissionais e técnicos de referência, todos pertencentes a órgãos que deveriam
fazer parte da rede de proteção, e que atendem a mulher vítima de violência doméstica e seus
dependentes. Foram entrevistados 2 homens e 11 mulheres, com faixa etária entre 30 e 60
anos de idade. Dos entrevistados 11 possuem formação de nível superior e 2 de nível técnico-
médio, lotados nas secretarias de Saúde, Educação, Assistência, Conselho de Direitos,
Conselho Tutelar, Ministério Público e OAB. Os entrevistados não foram identificados por
suas funções e ou órgãos que representam e nas análises por razões diversas e na apresentação
dos dados serão identificados por letras de a até n. A análise dos resultados foi realizada
mediante apresentação das falas dos participantes.
Questão I: Conhece a Lei Maria da Penha? SIM ( ) NÃO ( ) Para a questão I, com foram
obtidos resultados entre grau 4 e 10 de conhecimento. Destes, 4 dos entrevistados se
consideram com grau máximo de conhecimento enquanto o menor grau apresentado foi de 4
e diz respeito a somente a 1 entrevistado, entre os demais graus foram apresentados entre 5 e
9. Observou-se então que dos entrevistados, 10 se apresentam acima da média quanto ao
grau de conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, sendo apenas 3 com grau de
conhecimento abaixo da média.
Questão II: Já ouviu falar sobre o Pacto Nacional de Enfrentamento a violência contra a
mulher? Conhece as políticas públicas destinadas para as mulheres? Acredita que sejam
necessárias? (Pergunta aberta e gravada) Nesta questão a maioria dos entrevistados
relatou ter algum conhecimento, e apenas 2 entrevistados relataram não ter conhecimento
algum ou terem ouvido falar sobre.
Questão VI: O que você entende por Rede de Proteção? (Pergunta aberta e gravada)
Para a questão VI, os entrevistados foram indagados sobre o entendimento sobre rede de
proteção, assim será apresentado uma lista dos principais verbetes, substantivos e ou frases
extraídas das respostas, e o conceito de rede de proteção apresentado por Carvalho (2010).
Rede de proteção segundo os entrevistados é: “Solução; Grande estratégia;
Funcionamento; Construção; Formalização; Efetividade; Trabalho de
proteção, que abrange outras áreas, trabalho de defesa de direitos, proteção
que abrange todas as secretarias; Personalidade; Praticidade; Junção; Rede de
pessoas; Conjunto de Pessoas; Serviços, trabalhos, ações articuladas;
Atendimento, ações e órgãos integrados; Mecanismos; Mitigação de direitos
violados; Teia; Cobertura; Ação de prevenção, reparação e acompanhamento;
Rede interdisciplinar e intersetorial; Quando o todo se envolve pra
desenvolver ações, ou atendimentos específicos necessários; união entre os
vários departamentos; própria família, com a conscientização; Suporte;
Amplo.”
ela não existe instituída, este é um desafio para que a gente possa realmente
instituir uma rede de atendimento e uma rede de enfrentamento a violência
contra a mulher, existem serviços, você participa de um dos equipamentos
que é o CREAS, mas a gente sabe que na saúde têm que desenvolver, na
educação tem que se desenvolverem, provavelmente eles o desenvolvem,
mas não se tem a concepção de rede e de integralidade, ou seja, todo mundo
está fazendo e de repente a gente não está fazendo justamente por não ter
uma rede, então institucionalmente não existe rede de atendimento e nem de
enfrentamento.” f) “Desta perspectiva que eu te expliquei da rede de
proteção, que a gente está falando agora, nós temos equipamentos que
acabam isoladamente nesta questão de enfrentamento e atendimento a mulher
vítima de violência, então nos falta, e eu acho que é até a pergunta 10, nos
falta um protocolo de atendimento, então o que, que acontece nós temos
pontos de atendimento, que infelizmente e não necessariamente vem se
configurando como uma rede, porque eles não estão com aquele fluxo, com
aquele protocolo de trabalho que nos tranquiliza.” g) “Rede de atendimento
existe, mas não específica, mas existe rede de atendimento e enfrentamento
no meu entendimento, daí seriam as especificas ligada a saúde, as segurança
pública, questão de juizado especifico para esse atendimento, então eu
acredito que esses específicos no município não têm e dificultam bastante o
trabalho.” h) “Com esse nome rede não, nem tanto um como o outro. Mas
que eu acredito que aconteça o atendimento e o enfrentamento sim. ”
Questão VIII e IX: Acredita ser importante o trabalho articulado? Acredita ser
importante a Intersetorialidade e a Multidisciplinaridade nas ações desenvolvidas pela
rede de proteção?
Em políticas públicas a interdisciplinaridade é denominada como intersetorialidade, que
consiste na articulação entre os diversos saberes e experiências de maneira interdisciplinar, na
finalidade de planejar, avaliar e realizar programas e projetos. (GUARAJU p.3 apud
INOJOSA, 2011, p.105). Assim mantém-se a natureza de cada setor, objetivando a troca de
experiências e conhecimentos para os trabalhos em comum, articulados de alta complexidade
e de ordem social, na busca de resultados integrados. Tal trabalho aponta para a rede, para a
conexão entre os órgãos, equipamentos e setores envolvidos, de forma interdependente e
complementar, assim faz-se importante conhecer o trabalho em rede para desenvolver um
planejamento das ações entre os diversos setores, e compreender a dinâmica do processo. (p3-
6) Por sua vez, a interdisciplinaridade é confundida com a multidisciplinariedade, que
“significa a justaposição de diferentes campos de saber para a realização de determinado
trabalho sem que as disciplinas envolvidas se transformem ou sejam enriquecidas por outra e
sem que haja coordenação do trabalho em equipe”. (FERRO, et al, 2014, p130)
Nesta categoria 100 % dos entrevistados relataram a importância da interação entre
os órgãos, através do trabalho intersetorial, interdisciplinar e multidisciplinar. No entanto, em
outras categorias demonstraram não ter conhecimento dos órgãos específicos e especializados
de composição da rede de proteção, confundindo também os conceitos e entendimentos de
rede de atendimento e rede de enfrentamento, que estão presentes no Pacto Nacional pelo
enfrentamento a violência que por sua vez, relataram ter um bom conhecimento.
a)“Eu acredito que existe, mas se eu falar pra você que existe um setor
específico que é pra isso, para atendimento a mulher vítima de violência não
existe que eu saiba não existe (...) o CREAS ele tem o seu protocolo de
atendimento, na saúde eles também tem um procedimento, esse protocolo,
mas assim um setor específico pra isso não. Eu acho que não. ” b):
“Protocolo se existe eu nunca tive acesso, porem eu sei que existe a demanda
e um fluxo de atendimento, porem eu não sei, se protocolizado. ”c) “(...) no
CREAS tem protocolo pra atender a mulher, mas isso ainda está muito solto,
a gente tem que construir isso um protocolo de forma a institucionalizar uma
rede de atendimento ou de enfrentamento da proteção à mulher. ” d) “Não.
Eu acredito que não, embora chega na delegacia, vai direto pro CREAS, não
há um atendimento assim, eu entendo por protocolo quando você humaniza
também o atendimento” e):“Acredito que através do CREAS.”f)“Então o
protocolo é mais relacionado ao CRAS e ao CREAS, dai eles fazem um
trabalho lá voltado a essas especificidades.”
O Pacto Nacional em seus eixos reforça o disposto na Lei Maria da Penha, sobre a
importância da criação de protocolos, e fluxos de atendimento a mulher, a fim de humanizar
os atendimentos, bem como o programa “Mulher Viver sem Violência” que apresenta as
diretrizes para os protocolos de atendimento da “Casa da Mulher Brasileira. ”. Desta
maneira, verificou-se que entre a maioria dos entrevistados houve uma confusão quanto ao
conhecimento de protocolos, bem como de sua existência e natureza.
Questão XI: Quais seriam os principais desafios para construção da rede de proteção a
mulher vítima de violência? Dentre as respostas, algumas palavras foram recorrentes:
sensibilização dos agentes, a falta de articulação, a questão ou problema social,
conscientização da sociedade e do poder público e a necessidade da existência de empatia dos
gestores públicos com o tema.
Dos entrevistados 1 mencionou o machismo e o patriarcado, citou a criação de uma
“Secretaria Municipal” específica, que segundo o entrevistado, seria “importante para fazer
esse trabalho social de conscientização”. Em relação ainda a conscientização, foi relatado à
necessidade de entendimento e importância do trabalho em rede.
Como desafio também foi mencionada a inexistência de um protocolo e de um fluxo
de atendimento, “o maior desafio é formalizar, é protocolizar”. Também houve menção a
palavra debate, como instrumento para a conscientização dos órgãos intersetoriais e da
sociedade. Dos entrevistados 1 mencionou como desafio a própria questão de emancipação da
mulher. Outro que o maior desafio além da “conscientização é a questão social que é profunda
http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/diretrizes-gerais-e-protocolo-de-
atendimento-cmb.pdf
e que tem que haver a união de várias entidades da sociedade civil e mesmo do Estado para
tentar mudar essa realidade”.
Dos entrevistados 2 mencionaram a questão de conhecimento das politicas e questão
de investimento “envolve documentos, a questão de recursos financeiros (...) seriam os
recursos mesmo que o município oferece”. Ainda foi mencionada a falta de conexão da rede,
o não entendimento das ações integrais e da importância de cada órgão ou setor e de que seu
trabalho não deve ser isolado, a quebra de paradigma, “o principal desafio é a sensibilização
dos próprios atores que constituem essa rede, dos técnicos, a conscientização da importância
deste trabalho intersetorial e multidisciplinar”; A falta de comunicação entre os gestores, os
profissionais e equipamentos “os nossos gestores públicos ainda enxergam as políticas
públicas individualizadas”, “os equipamentos públicos não se comunicam”.
Ainda quanto à gestão, foi mencionada a questão de interesse público “querer fazer”,
“ter uma gestão que queira ter isso no município”. Por fim, alguns abordaram questões que
fugiam do questionamento principal que era o desafio para a construção da rede, como a
questão da divulgação dos trabalhos existentes “ser mais divulgado”, o “ciclo de violência”,
que por sua vez só poderá ser quebrado quando houver existência de uma rede, sendo então
este um desafio no que diz respeito ao enfrentamento a violência e não a construção de uma
rede de proteção, a questão do tratamento dado à mulher vítima de violência dentro do
equipamento público que também consiste num desafio que tem possibilidades de superação
quando houver uma rede instituída e com um protocolo e fluxo de atendimento formalizado, e
também como desafio, mas que também constitui uma ação após rede construída, a criação de
um centro de atendimento e acolhida para a mulher vítima de violência.
Na quinta categoria verificou-se que os entrevistados não possuem um entendimento
claro quanto ao protocolo de atendimento de rede à mulher, relatando desconhecimento e ou
incerteza de sua existência em FRG-PR, uma vez que o protocolo é um instrumento
importante da rede, para definição de um fluxo de atendimento. No segundo questionamento
feito na categoria, verificou-se que os desafios apresentados foram muitos, e teve como
unanimidade a questão da falta de articulação, a dificuldade do trabalho intersetorial e
integrado, a própria visão da importância do trabalho de rede e do sentimento de
pertencimento da rede. Verificou-se nessa categoria, que os entrevistados acreditam ser
importante a formação e o trabalho em rede, no entanto, não possuem entendimento do
protocolo, dos fluxos, confundindo os papéis dos órgãos, vendo os protocolos de maneira
individualizada.
Desta maneira, verifica-se que a sensibilização se faz necessário, pois a Lei Maria da
Penha por si só, não dá conta da problemática que se constitui a violência doméstica, sendo
necessária a adoção de políticas públicas, que abarquem a questão social e rompam o ciclo de
violência perpetuado pelo patriarcado e machismo. É necessário a constituição de órgãos e
instrumentos de proteção a mulher, que materializem o que a lei propõem, “Assim,
indispensável à implementação de uma Ação de Políticas Públicas voltada a alcançar os
direitos sociais e fundamentais de todos os cidadãos, incluindo, em especial, as mulheres
vítimas de violência doméstica. ” (DIAS, 2012, p.200) Deste modo, a Lei Maria da Penha,
impõem mecanismos de repressão a violência, através da condicionalidade de
“implementação integral” de seus mecanismos, enumerando as providências que os poderes
públicos (federal, estadual e municipal) devem adotar, sendo uma delas prevista no art. 8, VI,
que é a “celebração de convênios, protocolos, termos e outros instrumentos” (p.201) (grifo
nosso)
Considerações finais.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70,1977.
DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais,2012.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade.
Coleção temas sociais 29.ed. Petrópolis, RJ:Vozes,2009.
UBM, União Brasileira das Mulheres. Cartilha mulher protagonistas da sua própria história.
Lei n°11.340 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm . >. Acesso em 28
maio 2018
Secretaria reúne instituições de atendimento à mulher. Site Bem Paraná. Disponível em <
https://www.bemparana.com.br/noticia/secretaria-reune-instituicoes-de-atendimento-a-
mulher-- > Acesso em: 28 maio 2018
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma análise da atual estruturação
da rede de atendimentos às mulheres em situação de violência no município de Toledo,
partindo de dados coletados e informações obtidas a partir do recente início dos trabalhos do
Núcleo Maria da Penha – NUMAPE Toledo. A proposta é pensarmos a organização das
políticas voltadas ao combate às desigualdades de gênero a partir das identificadas
fragilidades da representatividade democrática das mulheres nos espaços de deliberação de
políticas sociais. Em seguida refletir como essas dificuldades se traduzem no cotidiano de
concretização das políticas públicas para mulheres em Toledo. A partir dos dados coletados
até o momento, se propõe analisar como o gênero é articulado às noções de violência e
conflito pelos atendimentos às mulheres em situação de violência; e de que forma os serviços
alimentam as lógicas de dominação masculina ao concentrar suas práticas somente no âmbito
do atendimento e acompanhamento destas mulheres, tencionando para a judicialização das
relações de conflito. Por fim, aponta-se o caminho da intersetorialidade como estratégia
fundamental para o desenvolvimento das políticas públicas. Os recursos metodológicos
consistiram em reuniões e visitas técnicas aos serviços de atendimento à mulher e instâncias
jurídicas – Secretaria de Política Para Mulheres (SPM), Patrulha Maria da Penha (PMP), 1ª
Vara Criminal da Comarca de Toledo; pesquisa bibliográfica pelas teorias de gênero que
abordam o tema da violência contra a mulher e pesquisa documental. Os resultados apontam
para importantes fragilidades no trabalho desenvolvido pela Secretaria de Políticas para
Mulheres que acabam por comprometer o atendimento ofertado pelo município.
1
Numape-Núcleo Maria da Penha / Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Assistente Social e
aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Mestrado da Unioeste;
pamelapecegueiro@hotmail.com.
2
Numape-Núcleo Maria da Penha / Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Licenciada em
Ciências Sociais; graduanda do Bacharel em Ciências Sociais; kalvescamila@gmail.com
Introdução
A partir dos dados coletados até o momento, se propõe analisar como o gênero é
articulado às noções de violência e conflito pelos atendimentos às mulheres em situação de
violência; e de que forma os serviços alimentam as lógicas de dominação masculina ao
concentrar suas práticas somente no âmbito do atendimento e acompanhamento destas
mulheres, tencionando para a judicialização das relações de conflito. Por fim, apontar como a
transversalidade do uso da categoria gênero como marcador de diferenças sociais em todos os
espaços da rede de atendimentos pode fornecer ferramentas importantes para a consolidação
de práticas de intersetorialidade.
Os recursos metodológicos consistiram em reuniões e visitas técnicas aos serviços de
atendimento à mulher e instâncias jurídicas – Secretaria de Política Para Mulheres (SPM),
Delegacia da Mulher (DDM), Patrulha Maria da Penha (PMP), juíza da 1ª Vara Criminal da
Comarca de Toledo; pesquisa bibliográfica pelas teorias de gênero que abordam o tema da
violência contra a mulher e pesquisa documental. Os resultados apontam para importantes
fragilidades no trabalho desenvolvido pela Secretaria de Políticas para Mulheres que acabam
por comprometer o atendimento ofertado pelo município.
3
Não se pode negar o fato de que, muito embora a ausência de condições objetivas torna-se o maior empecilho
para o abandono de uma situação de violência, processos subjetivos interferem nas respostas projetadas por essas
mulheres.
Para uma melhor compreensão das políticas para mulheres no país é importante
destacar que embora a elaboração de Planos Nacionais representa avanços significativos para
a oferta e garantia de direitos, não há no país uma Política de Igualdade de Gênero ou um
Sistema Nacional de Políticas para Mulheres, que exigem um arcabouço legal. Isso significa
que as políticas para as mulheres se desenvolvem no interior de outras políticas sociais
existentes, como a Assistência Social, Saúde e Segurança Pública.
Se por um lado isso estimula ou contribui para práticas intersetoriais, dimensão
importante para um atendimento integral das demandas sociais como veremos mais adiante,
por outro, as políticas para mulheres encontram-se sempre na periferia das discussões e
decisões, sendo também vulnerável a oscilações dos programas de governo e interesses
políticos.
Registra-se4, desde a criação da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres
(março, 2013), quatro Conferências Nacionais (2004, 2007, 2011 e 2016) e três Planos
Nacionais, elaborados a partir das três primeiras Conferências. A 4º Conferência realizada
entre os dias 10 a 13 de maio de 2016, que tinha como um dos objetivos discutir e definir
subsídios e recomendações para a construção do Sistema Nacional de Políticas para as
Mulheres, aconteceu simultaneamente à posse de Michel Temer (11/05/2016) e desde então,
as políticas para mulheres sofrem enormes retrocessos. Nesse sentido, importa propor uma
reflexão sobre a presença das mulheres na política e a luta pela representatividade,
participação e poder de decisão na construção das políticas sociais.
Acreditamos que para oferecer um panorama consistente das políticas sociais que
dizem respeito a gênero faz-se necessário, ainda que de maneira breve, considerar aspectos
estruturais do sistema político no Brasil. Para tanto, buscamos referências de uma abordagem
teórico-feminista das Ciências Sociais, propondo análises que desnaturalizam as relações de
4
Cabe ressaltar ainda, a existência e avanços com as Políticas Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres e de Atenção Integral à Saúde da Mulher, bem como com a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006,
conhecida como Lei Maria da Penha.
gênero e buscam interpretá-las evidenciando assim as relações de poder que organizam estas
dinâmicas sociais de desigualdade baseadas nas diferenças entre os sexos.
No Brasil, as lutas e mobilizações das mulheres, garantiram-lhes o direito ao voto,
maior acesso à educação e ao mercado de trabalho e romperam com muitas das relações de
submissão e dependência em relação aos homens. Ainda assim, a tradicional separação das
esferas público e privado, condiciona a grande maioria das mulheres a desempenhar relações
de reprodução das atividades domésticas, para além de cumprir sua função social produtiva,
sobrando pouco espaço e tempo para a participação na esfera das relações públicas e políticas.
Se observarmos o perfil dos representantes brasileiros, fica evidente a
predominância de homens, sobretudo da classe social dominante e em sua grande maioria,
brancos. Nas eleições municipais de 2016, segundo as estatísticas do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), 87% dos eleitos são homens e somente 13% são mulheres. Os dados indicam
também que, entre os 57.862 vereadores(as) eleitos no Brasil, somente 329 são mulheres
negras e 22 mulheres indígenas. Esses números tornam-se ainda mais alarmantes diante do
fato de que as mulheres correspondem a 51,6% da população brasileira, segundo o CENSO de
2010.
Em uma tentativa de garantir às mulheres espaço para a representação política, a
Justiça Eleitoral, por meio da Lei 9.504/1997, prevê, no artigo 10, parágrafo 3º, no mínimo
30% de candidaturas de mulheres nas legendas que disputam as eleições. No entanto,
assegurar juridicamente a presença de mulheres na política não dá conta de superar a
assimetria das relações de poder entre homens e mulheres. Como primeiro passo para
estimular a presença das mulheres nas arenas de representatividade, as instituições necessitam
de um acúmulo de reflexões sobre os contextos de inserção da mulher na política e as
dinâmicas das relações sociais. Neste aspecto, a teoria política, por meio dos feminismos
presentes nestes contextos de produção de conhecimento, passa a acionar gênero e outros
marcadores de diferença e desigualdade (raça e classe, por exemplo) para explicar porque é
tão difícil para as mulheres conseguir um lugar na democracia representativa.
Como observa Flávia Biroli (2016), gênero por si só não é o único marcador que
produz desigualdades para o acesso das mulheres à política; raça e classe combinados com
gênero vão alargando a distância entre a grande maioria das mulheres e os cargos
representativos. A autora afirma: “[...] são ativados filtros que incidem sobre as mulheres no
acesso a ocupações e no acesso ao âmbito da política institucional, constituindo padrões
sistemáticos de exclusão e de marginalização.” (BIROLI, 2016, p. 721). O argumento desta
autora consiste em apontar como as desigualdades geradas a partir divisão sexual do trabalho
refletem na presença das mulheres nos espaços representativos pois “[...] implica menor
acesso das mulheres a tempo livre e a renda, o que tem impacto nas suas possibilidades de
participação política e nos padrões que essa participação assume” (BIROLI, 2016, p.721).
A pequena participação das mulheres na política representativa, nos termos que aqui
foram expostos, demonstra uma forma de violência de gênero que se expressa na esfera
pública das relações sociais e compromete a consolidação de políticas sociais de gênero. As
dinâmicas das desigualdades de gênero estão enraizadas na cultura das sociedades ocidentais
contemporâneas, como é o caso do Brasil; superá-las requer o entendimento de como se
estabelecem, para que seja possível interferir na reprodução de práticas de exclusão por meio
da elaboração de políticas sociais de gênero que sejam eficientes.
Como indicado no início deste trabalho, no Brasil, desde o início do século 21, uma
série de avanços nas políticas sociais de gênero se consolidaram. A Lei Maria da Penha, a
Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, o acompanhamento
estatístico oficial dos casos de violência contra a mulher, previsto pela Lei 11.340 a Maria da
Penha, os Conselhos Municipais. Foram medidas institucionais que se somaram às políticas
de gênero que vinham se desenvolvendo desde a redemocratização política do Brasil.
Entre as demandas das mulheres por equidade de gênero na sociedade, a pauta da
violação dos direitos humanos causados pela violência doméstica ganhou grande visibilidade
e resultou na institucionalização de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
No município de Toledo, o combate à violência contra a mulher é o principal foco das
políticas públicas de gênero. A rede é composta pela Secretaria de Políticas para Mulheres
(SPM), a Delegacia da Mulher (DDM) e a Patrulha Maria da Penha (PMP). A aproximação
com a rede se deu por meio do trabalho que as autoras desenvolvem no programa de extensão
Núcleo Maria da Penha - Numape Toledo.
Iniciado em março de 2018, o Numape oferece atendimento sociojurídico à mulher
em situação de violência e desenvolve atividades socioeducativas e de prevenção à violência.
Cumpre também a função de contribuir para a articulação da rede de atendimento à mulher
em situação de violência no município de Toledo a partir da sistematização de conhecimentos,
5
A Rede Intersetorial de Proteção Social de Toledo/PR – RIPS surgiu em 2015 a partir da iniciativa de diversos
atores da rede de atendimentos de Toledo e foi estruturada em forma de Projeto pelo Serviço Social do
Ministério Público do Estado do Paraná. A RIPS atua em temáticas elencadas como prioritárias pelos(as)
profissionais do município e atualmente se debruça na problemática da violência sexual. Sobre a RIPS
recomendamos a leitura de SASSON, et. Al (2016).
para debates e Projetos de Lei para extinção da SPM6 que, com a resistência de alguns
profissionais e movimentos sociais foi arquivado.
Destaca-se ainda que o município de Toledo conta uma Delegacia da Mulher que em
muito contribui no acesso ao sistema de segurança e justiça, no entanto, o município apresenta
uma demanda importante que justificaria a criação de um Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher bem como de uma instituição de abrigamento. Tais aspectos são
levantados pontualmente por algumas organizações e movimentos, mas não fazem parte da
agenda política da atual gestão.
Nos próximos parágrafos, analisaremos como as noções de gênero e violência são
acionadas e articuladas na prática da rede de atendimento às mulheres em situação de
violência em Toledo, partindo das considerações feitas no artigo de Guita Grin Debert e Maria
Filomena Gregori intitulado “Violência e gênero: novas propostas velhos dilemas” (2008), no
qual as autoras buscam situar as variações de sentido no uso da noção de violência contra a
mulher com o objetivo de compreender a distribuição da justiça e a consolidação de direitos e
cidadania para as mulheres, a partir da década de 1980 até o os primeiros anos do século XXI.
A violência contra a mulher ganhou visibilidade na década de 1980 em um contexto
de ações políticas voltadas ao combate às violências sofridas por mulheres, por meio do
trabalho de ONGs como a SOS-Mulher. Esse movimento é fundamentado por noções que
explicam as relações entre homens e mulheres no âmbito do Patriarcalismo, um paradigma
dominante nos debates teóricos feministas da época. A condição feminina era tida como
universal e compartilhada por todas as mulheres de forma essencialista. Os debates sobre as
interseccionalidades, as experiências culturais e históricas só foram introduzidas a partir da
década de 1990, passando a revisar as produções teóricas e propor novas formas de analisar as
relações entre os sexos (DEBERT; GREGORI, 2008).
À parte estas considerações epistemológicas, o movimento feminista da década de
1980 no Brasil, colocou em evidência a dimensão dos conflitos e violências na relação entre
homens e mulheres, explicada a partir de uma estrutura de dominação (DEBERT; GREGORI,
2008).
Visto que,
6
No dia 02 de fevereiro de 2018, por meio da mensagem nº 7 anexa ao Projeto de Lei Municipal nº 09/2018, o
Poder Executivo, representado pelo prefeito Lucio de Marchi, evidenciou que o desenvolvimento de políticas
para mulheres não é prioridade em sua gestão. Sem qualquer estudo, análises ou dados que ofereçam
consistência ao PL 09/20186, o poder executivo propõe a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres e do
cargo de Secretário(a) da pasta. O PL foi arquivado no mês de abril.
(...) Tal interpretação não estava presente na retórica, tampouco nas práticas
jurídicas e judiciárias no enfrentamento de crimes até a promulgação, em
2006, da Lei n. 11.340 (‘Maria da Penha’) A questão da desigualdade de
poder implica nas diferenças marcadas pelo gênero, ainda que esteja
sugerida na Constituição e no delineamento dessa lei, encontra imensas
resistências nas práticas e nos saberes que compõem o campo da aplicação e
efetividade das leis.” (DEBERT; GREGORI, 2008, p. 168).
Assim, a Lei Maria da Penha foi a primeira expressão de âmbito jurídico que
compreendeu que os conflitos entre homens e mulheres se originam de relações de poder
assimétricas, estabelecidas pelo gênero (DEBERT; GREGORI, 2008).
Em Toledo, a prática da rede de atendimento à mulher em situação de violência tem
a Lei Maria da Penha como o principal orientador das lógicas de intervenção. Como exemplo,
temos a Patrulha Maria da Penha, que acompanha as Medidas Protetivas de Urgência,
previstas nos artigos 18 a 21. No âmbito da assistência social, a SPM, embora alegue possuir
um fluxo aberto para o atendimento às mulheres, em grande medida, orienta mulheres que já
registraram Boletim de Ocorrência por violência doméstica, por meio do trabalho
desenvolvido no âmbito da Patrulha Maria da Penha.
Com base nas informações coletadas com a Delegacia da Mulher e com a 1ª Vara
Criminal da Comarca de Toledo, que recebe os processos de Lei Maria da Penha; é percebido
como o teor de muitas queixas é de origem civil e não criminal, apontando para a recorrência
de relatos de mulheres que não se concebem em relações de violência, mas sim de desarmonia
das relações, as quais buscam retomar o equilíbrio por meio da intervenção jurídica. Observa-
se que as mulheres acionam a Lei Maria da Penha para resolver questões como divórcio,
pagamento de pensão, guarda dos filhos, etc.
Para entender porque há esta procura da proteção pela Lei Maria da Penha sem que
haja a compreensão das mulheres de que estão em uma relação de abusos faz-se necessário
considerar que as instituições que compõem a rede de proteção à mulher não atuam para
modificar a representação que as queixosas possuem de sua situação. Assim, prevalece a
“lógica da queixa” (GREGORI, 1993) na qual a prática dos atendimentos valoriza a
representação da mulher como vítima e não há espaço para a problematização das relações
nas quais se encontram:
[...] O pior não é ser vítima (passiva) diante de um infortúnio; é agir para
reiterar uma situação que provoca danos físicos e psicológicos. O difícil para
esse tipo de vítima é exatamente o fato de que ela coopera na sua produção
como não-sujeito. Isto é, ela ajuda a criar aquele lugar no qual o prazer, a
proteção e o amparo se realizam desde que se ponha como vítima. Esse é o
‘buraco negro’ da violência contra a mulher: São situações em que a mulher
Gregori (1993) indica aqui que, a mulher coloca-se como vítima na narrativa de sua
queixa para situar-se como sujeito de direito em uma relação que a desagrada, buscando
revertê-la, seja por meio do divórcio, decisão da guarda dos filhos, ou fazer com que o
companheiro cumpra suas obrigações como pagar a pensão ou ainda relatar a ocorrência de
violências na relação.
Estas considerações não são inéditas e fazem parte da perspectiva crítica de autoras
como Debert e Gregori (2008), ao analisarem a distribuição da justiça nos casos de violência
contra a mulher. Em nosso trabalho, chamamos a atenção para como outros serviços, que não
são exclusivos do âmbito jurídico, como a Secretaria de Política para Mulheres e demais
órgãos da política de assistência social tendem a empregar uma lógica de intervenção
delimitada pela compreensão da violência de gênero dentro dos limites das relações afetivas
de âmbito doméstico e familiar, consequência do emprego da Lei Maria da Penha como
principal orientador das práticas interventivas. Observamos outra consequência desta prática
que é a limitação das violências de gênero dentro de definições criminais, excluindo a
dimensão social desta violência, que apontariam para práticas de prevenção.
Pontualmente, essas impressões estão postas a partir dos relatos da delegada da DDM
ao afirmar que muitas mulheres procuram a delegacia para relatar queixas que muitas vezes
não se enquadram nos critérios de composição de um Boletim de Ocorrência. Entre os
membros da equipe da Patrulha Maria da Penha, há o relato de que muitas das atendidas
estabelecem uma relação de dependência com o serviço pois necessitam desabafar suas
contendas.
Neste aspecto, compreendemos ser necessário que a Secretaria de Políticas para
Mulheres oriente suas ações enquanto secretaria propositora de intervenções no sentido de
qualificar a oferta de serviços e os atendimentos às mulheres, além de ampliar o diálogo com
a rede de atendimento, em especial com os Centros de Referência Especializados de
Assistência Social (CREAS) para que a violência de gênero não seja entendida apenas como
sinônimo de violência familiar. Assim, ao constatar relações de abuso e violência os serviços
possam orientar esta mulher a exercer seus direitos ainda que isto implique em conceber uma
mudança das relações domésticas e outros arranjos familiares.
7
Segundo o documento “A rota crítica refere-se o caminho que a mulher percorre na tentativa de encontrar uma
resposta do Estado e das redes sociais frente à situação de violência. Essa trajetória caracteriza-se por idas e
vindas, círculos que fazem com que o mesmo caminho seja repetido sem resultar em soluções, levando ao
desgaste emocional e à revitimização” (BRASIL, 2011, p. 30).
positivistas a reduz a um arranjo técnico, ou seja, como mera articulação, soma ou superação
de fragmentações entre os setores.
8
A autora defende que: “[...] a tentativa de romper com esta postura positivista fez com que se descobrisse na
lógica dialética a orientação para um conhecimento da realidade no seu conjunto, ou totalidade, mas não de
qualquer totalidade; e sim, daquela que não suprime as suas contradições, não retifica as suas sinuosidades e não
desconsidera o seu caráter histórico, dinâmico e relacional (PEREIRA, 2014, p.29).
Considerações finais
Pautar o debate da igualdade de gênero nas políticas públicas num contexto onde
4.621 mulheres são assassinadas por ano no Brasil, o que equivale a uma taxa de 4,5 mortes
para cada 100 mil mulheres (IPEA, 2017) é não apenas uma necessidade de gestão pública,
mas uma demanda política urgente. Digno de nota é fato de que, a taxa de mortalidade de
mulheres negras em relação ao total de mulheres vítimas de morte por agressão passou de
54,8% em 2005 para 65,3% em 2015, ou seja, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil
eram negras (IPEA, 2017).
Não resta dúvida de que muitas dessas mortes poderiam ter sido (e podem ser)
evitadas com a efetiva proposição, execução, qualificação e articulação de políticas de
igualdade de gênero. Em muitas situações, diversas formas de violência antecedem uma
violência física fatal, é dever da rede de atendimento à mulher identificar essas diversas
formas de violência e concretizar alternativas para sua prevenção.
A intenção deste trabalho foi evidenciar como a violência de gênero está presente nos
ambientes que estruturam e elaboram as políticas sociais, por meio do distanciamento que
existe entre as mulheres e a política. E apontar como faz-se necessário que as práticas dos
diferentes agentes envolvidos na aplicação das políticas sociais estejam em sintonia com a
dimensão social da violência de gênero. Isto leva a compreender que uma mulher em situação
de violência e abusos não terá resolvido seus problemas somente por meio de registro do
boletim de ocorrência. É necessário um acompanhamento que fortaleça a sua decisão e
busque garantir o exercício de sua cidadania.
Para isso, a ampliação e aprimoramento das políticas públicas de gênero precisa estar
garantida independente de vontades políticas conservadoras. Oferecer opções reais para que
mulheres possam romper com o ciclo de violência exige o desenvolvimento de uma Política
para Mulheres, produção de conhecimento, qualificação profissional e evidentemente, atitudes
administrativas, como previsão orçamentária.
Por fim, ressaltamos que as intenções deste artigo foram apontar as dinâmicas e
práticas dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, articulando com
análises críticas da literatura sobre violência de gênero e políticas sociais. Este exercício
analítico indicou a possibilidade e necessidade de muitos aprofundamentos no que diz
respeito à distribuição da justiça, à judicialização das práticas sociais bem como outros
aspectos importantes para defender a luta das mulheres por direitos.
Referências
BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados. In: Dados – Revista de
Ciências Sociais, v. 59, n.3, Rio de Janeiro. 2016, p. 719-754. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582016000300719&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 08 abril 2018.
DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas,
velhos dilemas. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 23, n. 66, p. 165-185, Feb. 2008. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092008000100011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 23 março 2018.
GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas
e a prática feminista. Paz e Terra/Anpocs, São Paulo, 1993. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1247?show=full> Acesso em: 26 março 2018.
IPEA. Atlas da Violência 2017. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, Rio de Janeiro, 2017.
IPEA. Atlas da Violência 2017. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, Rio de Janeiro, 2017.
Resumo: O presente trabalho teve como objetivo geral identificar como os profissionais que
participam da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual do munícipio de
Londrina/PR avaliam o trabalho desta rede na cidade, a partir disso pautou-se os objetivos
específicos de identificar o funcionamento da Rede e os serviços que a compõem, e por fim
compreender os desafios e contribuições elencados pelos sujeitos da pesquisa para esse
instrumento de gestão. Para isso, a pesquisa de abordagem qualitativa foi construída através
de revisão de literatura a partir de autores de referência sobre a temática, além de documentos
oficiais elaborados pelo governo federal para estruturar o trabalho em rede e o atendimento às
mulheres em situação de violência, como também foi realizada pesquisa de campo com uma
amostra de cinco sujeitos, sendo estes profissionais de políticas públicas distintas: Segurança
Pública (Delegacia da Mulher), Políticas para as Mulheres (Secretaria Municipal de Políticas
para as Mulheres), Saúde (Hospital Zona Sul), Assistência Social (CREAS III) e sócio
jurídico (NUMAPE) que participam efetivamente da Rede Municipal de Enfrentamento à
Violência Doméstica e Sexual de Londrina/PR.
A aproximação com os sujeitos ocorreu nas reuniões da própria Rede nos meses de agosto e
outubro de 2017 que possibilitou conhecer as instituições mais presentes e os profissionais
mais assíduos, além da utilização das atas das reuniões disponibilizadas pela gerência do
Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CAM), viabilizando a identificação e a
realização dos contatos telefônicos com os sujeitos, verificando a disponibilidade destes e o
agendamento das entrevistas.
A coleta de dados aconteceu no mês de outubro de 2017 e a metodologia escolhida foi de
entrevistas semiestruturadas com um roteiro de questões abertas. Já a análise dos dados
norteou-se na associação de palavras, com o método de análise temática da autora Minayo.
Neste trabalho foi possível concluir que os entrevistados avaliam de forma positiva o trabalho
em Rede desenvolvido no município de Londrina, pois os sujeitos apontaram nas entrevistas
que existe integração e articulação entre os serviços para atender o objetivo de atendimento
qualificado e humanizado, assim como fortalecer os órgãos envolvidos, mesmo diante das
dificuldades estruturais de déficit de recursos humanos, alta demanda, precarização e
sucateamento das políticas públicas e dos serviços especializados, portanto essa estratégia tem
contribuído significativamente para o enfrentamento à violência contra as mulheres no
município.
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Bacharela em Serviço Social e estudante de Pós-graduação em
Serviço Social: Competências Profissionais, Política Social e Práticas Contemporâneas pela Unifil/PR; E-mail:
lo.frois.s@gmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Pós-doutora em Serviço Social pela PUC/SP; E-mail.
cmcarloto@gmail.com.
Introdução.
A violência contra as mulheres é uma realidade que permeia toda a sociedade, afinal
suas manifestações são resultadas por uma ordem patriarcal de gênero, que atribui dominação
e exploração dos homens sobre as mulheres tanto no âmbito público como privado,
expressando de forma notória a desigualdade dos gêneros.
O aspecto privado é uma forma de particularizar a violência contra as mulheres, pois
acontece no espaço doméstico, e o agressor pode ou não pertencer à família, e o seu domínio
no território/domicílio ultrapassa questões geográficas, torna-se também uma questão
simbólica (SAFFIOTI, 2015) que é dificultada pela relação de afeto e intimidade, além de ser
naturalizada por todos/as.
Nesse sentido, a urgência em buscar possibilidades de enfrentamento a esse
fenômeno foi iniciada pelo movimento feminista, no Brasil especificamente, o fortalecimento
e protagonismo feminino teve maior alcance no período de 1980 com a redemocratização. A
violência contra as mulheres foi compreendida como um problema social e estrutural, que
precisava de visibilidade e inserção nas políticas públicas.
A partir das lutas e mobilizações das mulheres e do movimento feminista no Brasil,
foram desenvolvidas políticas públicas, serviços especializados, além de legislações e
normatizações para atender as demandas voltadas a questão da violência doméstica e familiar
e aos direitos das mulheres.
Diante disso, a estruturação dos serviços no munícipio de Londrina seguiu as
recomendações nacionais e internacionais, e foi uma das cidades pioneiras na implementação
das instituições de atendimento as mulheres em situação de violência, como por exemplo, a
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher no ano de 1986 e o Centro de Referência
de Atendimento à Mulher no ano de 1993 (LONDRINA, 2018).
Contudo, o fenômeno da violência contra as mulheres é complexo e amplo, logo
perpassa diversas áreas, políticas públicas e instituições, afinal ela ocorre de forma transversal
e demanda respostas tanto para a área da saúde, assistência social, segurança pública, entre
outros.
Portanto, se faz necessária uma articulação entre os serviços instituídos para atender
de forma mais integral possível. O trabalho em rede surge como estratégia de gestão para
contribuir com atendimentos mais qualificados, pois são estabelecidos fluxos, normatizados
procedimentos e encaminhamentos das usuárias dos serviços.
Diante desse Decreto e dos órgãos elencados, foi apontado pelas entrevistadas que os
representantes dos serviços são designados a partir da disponibilidade, interesse e pelo convite
da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres.
A partir disso, organizaram-se as reuniões da Rede de Enfrentamento à Violência
Doméstica e Sexual contra a Mulher com as instituições interessadas em discutir e
desenvolver ações no município. Foram definidos encontros mensais na terceira sexta-feira de
cada mês, no auditório da Associação Médica de Londrina, com duração de duas horas.
Todavia a entrevistada 03 informou que no ano de 2017 houve variação na periodicidade dos
encontros conforme a seguinte fala: “[...] a gente ficou uns três meses sem reunião, a gente
teve alguns problemas, mas geralmente é todo mês”. Nesse caso, essas oscilações para
realizar os encontros, podem prejudicar o andamento das atividades planejadas.
Além das reuniões mensais, três entrevistadas informaram que existem também
grupos de trabalho para o desenvolvimento de atividades pontuais, ou seja, existe uma divisão
de alguns serviços que é consensuada por toda a Rede para a realização de trabalhos
específicos fora das reuniões, mas a demanda permanente é discutida, planejada e executada
por todos.
Com relação aos objetivos dos encontros da Rede, a entrevistada 01 destaca a
possibilidade de monitoramento e avaliação das ações desenvolvidas pelos serviços que
atendem mulheres em situação de violência.
[...] trabalhar de forma articulada, não tenho nem o que falar. Nas reuniões
da Rede são vários representantes de vários setores, e todo mundo
discutindo, buscando um consenso ali (entrevistada 01).
[...] Mas essa articulação que nós temos que tem contribuído muito para que
a gente consiga ser até referência no atendimento nesta área. Há articulação
porque a gente tem esse mecanismo bem estabelecido e há adesão, isso que
eu acho importante sabe, que eu vejo como aspecto positivo na Rede aqui
em Londrina, a adesão. Os principais serviços estão envolvidos, se
comprometem, entendem a importância de estar conversando, de estar
fazendo esse trabalho em rede, de garantir o trabalho em rede no
enfrentamento à violência, isso a gente percebe, há uma adesão e um
compromisso com isso. Então por isso que eu falo assim, Londrina tem
articulação, o trabalho está articulado! [...] (entrevistada 02).
A fala acima explicita aquilo que a Política Nacional estabelece ao conceituar a Rede
e o objetivo de “ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e
A maior parte das vezes sim, é lógico que sofre oscilações, mudanças de
gestão abalam a articulação da Rede, mudanças das pessoas nos serviços,
isso faz com que permanentemente precise ser refeitos os pactos, mas sim,
de alguma forma os serviços são articulados, não uma articulação ideal, mas
dentro do possível sim (entrevistada 04).
Sim, senão eu nem estaria lá. Eu acredito que tenha o trabalho em rede,
apesar de ter as falhas, porque assim, todos os serviços estão bem
articulados. E a Rede é isso, é essa articulação, essa integração entre os
serviços. Todas as vezes que nós precisamos pra algum atendimento da
mulher, houve esse atendimento. Talvez não da forma ideal, mas sempre ela
foi atendida, ela nunca ficou desprotegida nesse sentido (entrevista 05).
Essa foi uma questão muito explicitada nas falas das entrevistadas, pois devido a alta
demanda de casos de violência doméstica no município, há necessidade de contratação de
novos profissionais e que estes sejam capacitados para atender essas usuárias, entretanto o que
se observa é o contrário, o serviço público não tem contratado trabalhadores suficientes para
responder as necessidades da população, tanto no cenário local, como nacional.
Como exposto pelas autoras acima, esse avanço neoliberal acarreta no sucateamento
das políticas públicas, afetando também as Políticas para as Mulheres, além do fortalecimento
do conservadorismo, que nos últimos anos tem aumentado no Brasil e traz retrocessos para os
direitos das mulheres.
Segundo a entrevistada 04,
A gente consegue desde 2011 até agora, manter essa metodologia com
participação muito efetiva dos diversos setores, então isso é um ponto que
evidencia isso, e segundo que nós temos desde 2011, nós começamos a fazer
esse trabalho mais sistemático da Rede, muitos avanços, como eu já te falei
já, a notificação compulsória dos casos de violência. Antes quase não havia
notificação, hoje a gente tem um número significativo, as formações que nós
fizemos documentos, protocolos, que foram criados, fluxos que foram
estabelecidos, então é uma estratégia que funciona e tem funcionado muito
bem em Londrina, essa é a minha avaliação (entrevistada 02).
Considerações finais.
Pode-se concluir a partir dessa pesquisa que as profissionais que participam da Rede
de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual de Londrina avaliam de forma positiva o
trabalho em rede desenvolvido, pois existe integração e articulação entre os serviços, existe
envolvimento e interesse para atingir o objetivo de um atendimento mais humanizado e
qualificado para mulheres em situação de violência, mesmo que ainda não esteja de acordo
com o ideal.
A melhoria dos encaminhamentos é outro ponto relevante, pois diante do
conhecimento do trabalho desenvolvido pelas instituições que atendem essas usuárias, há um
direcionamento de acordo com a demanda explicitada pela mulher em situação de violência, o
acolhimento e a assistência acontecem de forma mais assertiva, evitando transtornos com
atendimentos e serviços que não respondem as necessidades da usuária.
Foram levantados também alguns pontos que dificultam a realização dos objetivos e
ações da Rede de Enfrentamento, como: déficit de recursos humanos, sucateamento das
Políticas para as Mulheres e precarização dos serviços, porém o comprometimento em
levantar a questão da violência contra as mulheres com diferentes políticas públicas é tão
presente, que fortalece no enfrentamento desses obstáculos e dá mais visibilidade para cobrar
do Estado e fazer com que assuma a responsabilidade diante das demandas trazidas pelas
mulheres e os serviços que as atendem.
Agora ficam algumas indagações para posteriores pesquisas; será que a avaliação das
usuárias seria tão positiva como das profissionais sobre a Rede de Enfrentamento? De fato,
elas reconhecem que existe articulação entre os serviços, atendimento humanizado e
qualificado?
Referências
Resumo: Estudos mostram que a integração feminina às polícias latino americanas vem
encontrando obstáculos decorrentes do modo como os policiais concebem o policiamento e o
papel que homens e mulheres deveriam desempenhar dentro dele. A representação do
policiamento como uma atividade arriscada de enfrentamento violento da criminalidade,
combinada com a visão segundo qual os homens são mais fortes e corajosos do que as
mulheres, favorece a defesa da divisão sexual de funções dentro da polícia entre homens que
deveriam se dedicar ao trabalho operacional de combate ao crime e mulheres que deveriam se
restringir ao trabalho administrativo e de cuidado, gerando assim barreiras à plena integração
das mulheres à polícia. Esse trabalho pretende contribuir para o entendimento da natureza
dessas representações e barreiras. Ser homem ou mulher condiciona a percepção de que força
física e coragem são atributos fundamentais para o policiamento? Influencia a visão segundo
qual os policiais masculinos são mais preparados para as atividades operacionais e as policiais
femininas para as atividades de cuidado e assistência? O artigo analisa essas questões por
meio de análise quantitativa multivariada de dados provenientes de uma pesquisa de survey
realizada em 2012 na Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR), Brasil. Os resultados
indicam que homens e mulheres têm visões distintas sobre quem é mais apto a atuar nas
atividades operacionais. Os homens tendem a pensar que as mulheres são menos capazes do
que eles no desempenho dessas atividades. Já as mulheres discordam dessa ideia. Isso indica
haver na PMPR obstáculos informais postos pelos homens à plena integração das mulheres à
polícia, bem como atitudes de resistências a esses obstáculos por parte das mulheres. Todavia,
essas atitudes de resistência convivem com uma visão masculinizada do policiamento que
acaba por favorecer os homens. Os dados indicam que homens e mulheres concordam
igualmente com a visão de que o policiamento é uma atividade que demanda força física e
coragem, a despeito do fato de sabermos que as qualidades mais exigidas no policiamento não
são essas e sim a sensibilidade para prestar serviços a pessoas em situações de vulnerabilidade
e o senso de justiça para dirimir conflitos que não envolvem violações claras da lei criminal.
Essas são qualidades socialmente associadas ao universo feminino e valorizá-las em
detrimento da coragem e da força física implicaria em um possível fortalecimento da posição
das mulheres nas atividades de policiamento, o que não ocorre. Assim, as mulheres buscam se
colocar como iguais dentro de um contexto de representações sociais permeadas por valores
masculinos ao invés de questionarem o sentido desses valores para as atividades policiais. Em
outros termos, aceitam a visão masculinizada do policiamento e procuram se afirmar como
iguais dentro desse universo
Palavras-chaves: Polícia Militar; Gênero; Paraná.
Introdução
O Brasil tem cerca de 73 mil mulheres empregadas nas polícias militares e civis, o que
corresponde a cerca de 13% do efetivo total dessas organizações (FBSP, 2015). Trata-se de
1
Docente da Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Ciência Política (USP); clopes@uel.br
um percentual inferior ao existente na década de 2000 nos países da Europa ocidental, mas
superior ao encontrado nos EUA (11,8%) e em muitos países da América Latina2. Essa
presença feminina e suas consequências foi até o momento pouco estudada. Enquanto a
incorporação das mulheres à polícia vem sendo amplamente pesquisada na bibliografia
internacional desde a década de 70, há poucos trabalhos brasileiros sobre o tema. Como
notado em estudo realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública/SENASP (Brasil,
2013), embora crescente, a produção nacional sobre polícia e gênero é ainda formada por
apenas três trabalhos de referência (Calazans, 2004; Soares e Musumeci, 2005; e Sadeck,
2005). Essa produção não dialoga com a vasta literatura internacional sobre o tema e é
dominada por estudos qualitativos.
Este trabalho pretende contribuir com essa bibliografia por meio de um survey
realizado junto à Polícia Militar do Paraná (PMPR) cujos dados serão analisados a partir de
hipóteses derivadas de perspectivas teóricas presentes na literatura internacional sobre polícia
e gênero. A PMPR foi a segunda corporação militar brasileira a incorporar mulheres em seus
quadros. Essa incorporação ocorreu em 1977 por meio da criação de uma divisão de
policiamento feminino. Em 2000 essa divisão foi extinta e as mulheres integradas a uma
carreira policial única. Apesar da unificação de quadros representar um avanço no processo
formal de incorporação das mulheres à polícia, estudos mostram que a plena integração
feminina ainda encontra obstáculos informais decorrentes do modo como os membros das
corporações policiais veem o policiamento e o papel que homens e mulheres deveriam
desempenhar dentro dele. A representação do policiamento como uma atividade arriscada de
enfrentamento violento da criminalidade, combinada com a visão segundo qual os homens são
mais fortes e corajosos do que as mulheres, favorece a defesa da divisão sexual de funções
dentro da polícia entre homens que deveriam se dedicar ao trabalho operacional de combate
ao crime e mulheres que deveriam se dedicar ao trabalho administrativo e de cuidado. Assim,
saber como os indivíduos policiais veem o policiamento e a adequação dos gêneros ao
trabalho policial é fundamental para a compreensão da natureza das resistências e desafios
existentes à integração das mulheres ao policiamento ostensivo.
Ser homem ou mulher condiciona a percepção de que força física e coragem são
atributos fundamentais para o policiamento? Influencia a visão segundo qual os policiais
2
Com exceção do Uruguai, que tem padrões discrepantes do restante da América Latina (25,6%), e do Chile,
que tem o mesmo percentual de mulheres que o Brasil (13%), as forças policiais dos demais países latino
americanos pesquisados por Donadio (2009) apresentam percentuais de mulheres em torno de 10% do efetivo:
Guatemala (11.1%), Peru (10,6%), Paraguai (10,2%), Bolívia (10,5%) e Gendarmeria Nacional da Argentina
(9,7%).
masculinos são mais preparados para as atividades operacionais e as policiais femininas para
as atividades de cuidado e assistência? Há na literatura internacional respostas distintas a
essas questões. Essas respostas estão relacionadas a três perspectivas teóricas: as teorias sobre
papéis de gênero; as teorias sobre socialização ocupacional; e as teorias sobre construção
social de gênero. O artigo analisará predições derivadas dessas três teorias por meio de análise
quantitativa multivariada. Para isso o trabalho está organizado da seguinte forma. A seção 1
apresenta as hipóteses de trabalho e seus fundamentos teóricos. A seção 2 descreve a
metodologia do estudo. A seção 3 testa as hipóteses de pesquisa por meio de regressão
logística. Os resultados encontrados na análise de regressão são discutidos na seção 4. Por
fim, o trabalho conclui com apontamentos sobre os achados de pesquisa e sobre o que ainda
precisamos entender melhor sobre a participação das mulheres na polícia.
Pelo menos três grandes perspectivas teóricas têm sido mobilizadas para explicar as
atitudes e visões dos indivíduos policiais: as teorias sobre papéis de gênero; as teorias sobre a
socialização ocupacional; e as teorias sobre construção de gênero. As duas primeiras estão
diretamente relacionadas, respectivamente, ao que Poteyeva e Sun (2009) chamaram de
abordagem teórica da diferença e abordagem teórica da semelhança atitudinal entre gêneros
na polícia. Já a terceira perspectiva pretende ser uma alternativa teórica às anteriores,
especialmente às teorias sobre papéis de gênero.
As teorizações sobre papéis de gênero oferecem os fundamentos da abordagem da
diferença. Essas teorizações sustentam que homens e mulheres tendem a ter visões diferentes
sobre o policiamento. Essas diferenças, por sua vez, gerariam a concordância de que algumas
atividades dentro da polícia devem ser desempenhadas por homens e outras por mulheres.
Enquanto os homens dariam mais valor ao trabalho de combate ao crime e imposição
coercitiva da lei, as mulheres dariam mais importância às atividades de manutenção da ordem
e prestação de serviços que ocupam a maior parte do tempo dos policiais – mediação de
disputas, resolução de conflitos domésticos, orientações ao público, atendimento de vítimas,
policiamento de trânsito e os demais trabalhos que ocorrem nas delegacias de polícia.
Subjacente a essas atitudes está a visão dos homens de que as habilidades físicas que eles
possuem os tornariam mais aptos ao trabalho de imposição coercitiva da lei do que as
mulheres (Chu, 2013), que se sentiriam mais vocacionadas para as atividades de atendimento
de vítimas, prevenção do crime e mediação de disputas que não envolvem violações claras da
lei criminal. A preferência das mulheres por essas atividades estaria relacionada ao fato de
elas serem socializadas desde a infância em papéis familiais e de cuidado que as levam a
desenvolver uma “moralidade do cuidado” (Guilligan, 1982; Worden, 1993; Poteyeva & Sun,
2009). Dessa forma, se as teorias sobre papéis de gênero estiverem corretas devemos
encontrar: (i) diferenças significativas entre policiais homens e policiais mulheres a respeito
da importância atribuída à força física e à coragem no policiamento, com os homens
valorizando esses atributos mais do que as mulheres; e (ii) nenhuma diferença de gênero em
relação à opinião de que os homens são mais preparados para as atividades operacionais e
de risco e as mulheres para as atividades que envolvem cuidado e assistência.
As teorias sobre socialização ocupacional levam a hipóteses contrárias à das teorias
sobre papéis de gênero e enfatizam que homens e mulheres tendem a ver o policiamento de
forma parecida e que as mulheres demandam igual participação nas atividades policiais. Essas
teorias estão por trás do que Poteyeva e Sun (2009) denominaram de abordagem da
semelhança. O ponto de partida dessas perspectivas é a ideia de que as crenças e atitudes dos
policiais são parte de uma cultura ocupacional que é forte o suficiente para suplantar
eventuais visões de mundo decorrentes do modo como homens e mulheres são socializados
antes da vida adulta. Essa cultura seria formada por um conjunto de símbolos, rituais e
estórias que valorizam o combate físico, o perigo, a bravura e outros atributos socialmente
reconhecidos como masculinos (Waddington, 1999; Reiner, 2004; Dick e Cassell, 2004;
Brown, 2007). Policiais homens valorizariam esses atributos para exaltar as peculiaridades e
dificuldades do seu trabalho frente ao olhar crítico do público e dos superiores hierárquico. As
mulheres fariam o mesmo, mas não apenas para afirmar a sua identidade policial perante o
público e supervisores; valorizariam o uso da força e a coragem também para fortalecer a sua
identidade profissional frente aos colegas de trabalho homens. Estes tenderiam a concordar
com a ideia de que o policiamento operacional deve ser controlado pelos homens porque é
uma atividade arriscada e conflituosa que requer coragem e capacidades físicas que as
mulheres não detêm a contento, razão pela elas se sairiam melhor nas atividades policiais que
envolvem cuidado e assistência. Essas atitudes masculinas de restrição à participação
feminina nas atividades operacionais e arriscadas seria rechaçada pelas policiais mulheres,
que demandariam igual participação no policiamento das ruas por se sentirem tão preparadas
quanto os homens. Assim, se as teorias da socialização ocupacional estiverem corretas
devemos encontrar: (i) nenhuma diferença significativa entre policiais homens e policiais
mulheres a respeito da importância atribuída à força física e à coragem no policiamento; e
(ii) diferenças de gênero em relação à opinião de que os homens são mais preparados para
hipotetizar que (i) policiais mulheres em estágios mais avançados da carreira ou com filhos
tenderão a atribuir menos importância à força física e à coragem no policiamento do que as
mulheres no início da carreira e sem filhos, assumindo assim uma posição diferente da dos
homens; (ii) policiais mulheres em estágios mais avançados da carreira ou com filhos
tenderão a concordar mais com a visão segundo qual os homens são mais preparados para
as atividades operacionais e de risco e as mulheres para as atividades que envolvem cuidado
e assistência do que as mulheres no início da carreira e sem filhos, assumindo assim posição
semelhante a dos homens.
Metodologia
Resultados
,965** - ,965*
Idade
(,012) (,012)
,985 1,08 ,992
Controles Operacional
(,255) (,250) (,257)
1,254 1,34 1,26
Oficial
(409) (,406) (,409)
% de acerto Bloco 0 59 59,3 60,7
% de acerto Bloco 1 60,2 59,3 60,7
Nota: **sig>,001 *sig>0,05
(36 anos ou menos) têm uma chance 18% maior do que os homens de concordar com a ideia
de que é preferível trabalhar com homens nas atividades operacionais.
2,72*
Mulheres sem filhos
- - (,447)
,65
Mulheres com filhos
- - (,659)
1,02 1,02
Idade
(,012) - (,012)
1,21 1,08 1,18
Controles Operacional
(,262) (,259) (,265)
,78 ,74 ,77
Oficial
(402) (,400) (,402)
% de acerto Bloco 0 65,1 65,0 65,1
% de acerto Bloco 1 68,3 68,1 68,2
Nota: **sig>,001 *sig>0,05
Discussão
uma forma de afirmação perante os colegas de trabalho homens, que as consideram pouco
preparadas para o trabalho operacional que envolve risco (Dick e Cassell, 2004). Daí a
tendência de os homens concordarem e de as mulheres discordarem das afirmações de que os
policiais masculinos são mais preparados do que as policiais femininas para o trabalho
operacional e a centralidade atribuída por ambos os gêneros à força física e à coragem no
policiamento. Os resultados gerais são então ambíguos do ponto de vista da corroboração das
hipóteses derivadas das teorias sobre papéis de gênero e das hipóteses relacionadas às teorias
sobre socialização ocupacional.
Mas essa ambiguidade está alinhada com as descobertas dos estudos qualitativos sobre
polícia e gênero realizados no Brasil. Soares e Musumeci (2005) já haviam notado que a
integração das mulheres à Polícia Militar do Rio de Janeiro por meio da criação de uma
carreira policial única, aliada à persistência de barreiras informais para impedir a participação
feminina no policiamento operacional, criava uma situação que contribuía para gerar atitudes
ambíguas nas mulheres, que frequentemente se dividiam entre “a necessidade de se afirmar
como iguais aos homens, demonstrando sua capacidade como policiais, e ao mesmo tempo
garantir o respeito às suas singularidades” (Soares e Musumeci, 2005, p 179). Esse
posicionamento feminino diverso também foi detectado pelo trabalho de Souza (2014), que
descobriu que uma parte das mulheres buscava se espelhar nos comportamentos masculinos
como forma de obter reconhecimento no policiamento operacional, enquanto outra
demandava o reconhecimento da condição feminina e disposição para as atividades que
demandavam maior sensibilidade e capacidade de comunicação.
Conclusão
Quais as implicações das opiniões reveladas pela pesquisa para a plena integração das
mulheres à Polícia Militar do Paraná? Os dados sugerem que a participação das mulheres em
atividades que envolvem cuidado e assistência não é objeto de discordâncias e está
consolidada dentro da corporação militar paranaense. Mas o mesmo não se dá em relação à
participação das mulheres nas atividades operacionais arriscadas e que são percebidas como
demandando coragem e força física. Os homens tendem a desaprovar a participação das
mulheres nessas atividades com base no argumento de que elas são menos capazes do que
eles. Em uma ocupação dominada por homens essa visão é decisiva, já que é da percepção de
mundo dos policiais que nascem as atitudes e comportamentos que impedem a participação
das mulheres no policiamento operacional. Já as mulheres tendem a discordar da ideia de que
elas têm um desempenho inferior ao dos homens no serviço operacional, indicando assim
haver na Polícia Militar do Paraná resistências aos obstáculos informais criados para a plena
integração das mulheres ao policiamento operacional. Worden (1993) já havia chamado a
atenção para o fato de que em contextos nos quais um grupo tenta excluir outro da igual
participação em determinadas atividades ou em uma determinada cultura é esperado que os
grupos excluídos reajam e expressem percepções e atitudes de resistência à exclusão imposta
pelos grupos dominantes. Os dados analisados parecem se ajustar bem à essa ideia.
Interessante notar que as resistências das mulheres à exclusão do policiamento
operacional parecem não colocar em xeque a visão masculinizada do policiamento. Estudos
realizados desde a década de 1960 mostram que o grosso do trabalho policial é formado por
atividades de prestação de serviços e manutenção da ordem que pouco demandam coragem e
força física (Reiner, 2004, p. 163-171). As qualidades mais exigidas no policiamento são a
sensibilidade e o cuidado para prestar serviços a pessoas em situações de vulnerabilidade
(policiamento como serviço) e o senso de justiça para mediar e dirimir conflitos que não
envolvem violações claras e inequívocas da lei criminal (policiamento como manutenção da
ordem). Essas são qualidades socialmente associadas ao universo feminino e valorizá-las
implicaria em um possível fortalecimento da posição das mulheres nas atividades de
policiamento. Mas isso não ocorre. As mulheres valorizam a força física e a coragem no
policiamento tal qual os homens e discordam da ideia de que apenas os primeiros estão aptos
a realizar o policiamento por serem os portadores dessas qualidades. Ao invés de
representarem o policiamento como uma atividade associada a valores que poderiam
favorece-las, as mulheres reproduzem assim visões tradicionais sobre as atividades policiais e
buscam se afirmar como iguais diante da desaprovação masculina à participação feminina no
policiamento operacional. Ao se posicionarem dessa forma elas buscam se colocar como
iguais dentro de um contexto de representações sociais permeadas por valores masculinos ao
invés de questionarem o sentido desses valores para as atividades policiais. Em outros termos,
aceitam a visão masculinizada do policiamento como uma atividade que depende
fundamentalmente de força física e coragem e procuram se afirmar como iguais dentro desse
universo.
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1
Professora Colaboradora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina; Doutora
em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná; leticia.kulaitis@gmail.com
2
Estudante do bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina; Licenciada em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual de Londrina; grazielepestana@live.com
No que diz respeito à construção social dos papeis das mulheres no Brasil, do ponto de
vista histórico destacam-se três elementos centrais: planejamento familiar, creches e violência
contra a mulher (DESOUZA, BALDWIN, 2000). Ao concentrarmo-nos no primeiro elemento,
percebemos uma atribuição à mulher do papel de encarregada da família, de cuidadora dos
filhos e do marido. Essas premissas encontram-se presentes inclusive nas políticas públicas.
Embora não se configure como uma política específica para combater a violência de gênero, o
Projeto Mulheres da Paz instrumentaliza mulheres para identificar jovens em risco infracional
e encaminha-los para programas de combate à violência do governo. Nesse sentido, há uma
correlação, na perspectiva do Ministério da Justiça, entre a dinâmica dessas mulheres, jovens e
violência. O objetivo deste artigo é compreender como se estabeleceu essa dinâmica na
elaboração da política pública do Mulheres da Paz em conjunto com o programa PROTEJO,
bem como investigar a execução da mesma. Para isso, avaliamos as atividades do Projeto
Mulheres da Paz por municípios e Estados da União no período compreendido entre 2008 e
2012.
Nacional de Segurança Pública (SENASP) em 1995. O programa teve suas ações dirigidas para
jovens entre 15 e 24 anos, identificados como aqueles em situação infracional ou no caminho
de situação infracional: adolescentes em conflito com a lei, jovens oriundos do serviço militar
obrigatório, jovens presos, jovens egressos do sistema penitenciário e jovens em situação de
descontrole familiar grave (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p.5). Estes jovens não estariam
integrados aos demais programas sociais do governo federal e seriam moradores das periferias
dos grandes centros urbanos do Brasil.
Partindo da afirmação da violência juvenil como uma questão de segurança pública, o
Ministério da Justiça destacou, dentre as 94 ações do PRONASCI, o projeto Proteção de Jovens
em Território Vulnerável (PROTEJO) – ação nº 62 – como uma ação destinada a atender jovens
de 15 a 24 anos, em situação de vulnerabilidade social e exposição à violência.
Os jovens, moradores dos territórios que concentravam a execução das demais ações
PRONASCI, eram selecionados por sua identificação como “aqueles em situação infracional
ou no caminho de situação infracional” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p.5). Na proposta
do Programa, estes indivíduos, por conta das características atribuídas a juventude3 e de sua
situação de marginalidade social, caminhariam numa linha tênue entre a prática concreta da
criminalidade e a possibilidade efetiva de realizá-la num futuro próximo. A solução proposta
ao problema apontado pelo governo federal é a inserção dos jovens pobres em programas de
qualificação profissional.
A identificação dos jovens participantes do PROTEJO seria realizada por integrantes do
Projeto Mulheres da paz; por equipe multidisciplinar contratada para acompanhar aexecução
do projeto; por assistentes sociais; por conselheiros tutelares; por agentes do Programa Saúde
da Família ou por indicação de parceiros do ente federado responsável pela execução do projeto
ou do Ministério da Justiça, como por exemplo, Ministério Público ou Vara da Infância e
Juventude.
Após processo de seleção, os jovens participariam de um percurso sócio formativo cuja
estrutura foi estabelecida pela Coordenação do PROTEJO e executada pelos gestores locais. O
percurso tinha uma carga horária de 800 horas, divididas em 2 ciclos:
3
Os jovens são comumente reconhecidos, em nossa sociedade, como impulsivos, emocionalmente instáveis,
egocêntricos e irresponsáveis, ou seja, como indivíduos que não hesitam em colocar-se em situações de risco.
b) 80h de informática
2º Ciclo (360h):
a) 273h de desenvolvimento de projetos locais e acompanhamento psicoterapêutico
b) 72h de informática
No 1º ciclo, os jovens deveriam ter presença mínima de 75% nas oficinas propostas.
Após os dois primeiros meses do 1º ciclo, os jovens, em idade escolar, que não estivessem
matriculados nas redes de ensino municipal ou estadual deveriam retornar à educação formal.
O PROTEJO oferecia aos jovens o pagamento de bolsa no valor de R$ 100,00 durante
a realização do percurso social formativo. A frequência às atividades do Projeto garantiria o
recebimento do benefício pelo período de um ano4.
De acordo com a Coordenação Nacional do PROTEJO, o percurso social formativo
tinha como objetivo a formação de jovens responsáveis pela disseminação da cultura de paz em
suas comunidades e envolvia a prática de atividades culturais, esportivas e educacionais sob a
forma de oficinas. Ocupando 320 horas do 1º ciclo de formação, as oficinas abordavam os
seguintes temas: adaptação, atividades psicossociais, construção do percurso social formativo
individualizado, violências, autoestima e estética, corpo e sexualidades, família e paternidade
responsável, meio ambiente, mitos, direitos humanos (abordagem em gênero, raça, sexualidade
e juventude), classes sociais, mídia, estado e sociedade, cidadania (formação sócio jurídica),
protagonismo juvenil, segurança pública e sistema penal, drogas e redução de danos, projeto
comunitário (rito de passagem) e prática cidadã (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2007).
Embora fosse apontada como uma ação voltada para o protagonismo juvenil, o projeto,
formulado pela Secretaria Executiva do PRONASCI, constituiu-se como um modelo a ser
reproduzido pelos entes responsáveis por sua execução. As oficinas, como descrito acima,
4
A Caixa Econômica Federal foi responsável pelo pagamento dos benefícios. O pagamento era feito por meio de
um cartão personalizado, com a logomarca do PRONASCI.
Podemos inferir que a identificação das mulheres integrantes do projeto como Mulheres
da Paz reforça as normas de gênero que definem os sexos em nossa sociedade. No vocabulário
da segurança pública, os homens protagonizam a guerra urbana como profissionais da
segurança ou criminosos. São, portanto, identificados como guerreiros. As mulheres, nessa
ordem, são aquelas que cuidam, protegem, defendem e pacificam.
Depois de nomeada a ação foi definida como um projeto de capacitação de lideranças
femininas para atuação como mediadoras sociais, contribuindo para a construção e o
fortalecimento de redes de prevenção e enfrentamento às violências que envolvem jovens e
adolescentes (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA; SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA
PÚBLICA: 2009).
As Mulheres da Paz seriam responsáveis pela identificação e acompanhamento de
jovens em “situação de risco infracional ou criminal”5 em suas comunidades e encaminhamento
dos mesmos para o PROTEJO ou demais projetos do Programa.
Novamente aponta-se uma aproximação entre a política pública proposta pela área de
segurança pública e a política pública proposta pela área de assistência pois as mulheres são
percebidas pelas duas áreas como responsáveis pela execução das políticas nas comunidades.
Sua esfera de atuação vai desde cuidados com a saúde, alimentação e escolarização de crianças,
adolescentes e jovens, cuidados com os idosos da família, administração da renda familiar e o
envolvimento de adolescentes e jovens com o tráfico de drogas e o crime organizado (MEYER;
KLEIN; FERNANDES, 2012).
Ao analisar a execução orçamentária do PRONASCI, enfocando as questões de gênero
e de “raça”, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) criticou a ausência de uma
política específica para combater a violência de gênero. Segundo o Instituto:
5
Expressão utilizada, pelo Ministério da Justiça, em múltiplos materiais de divulgação para caracterizar os jovens
que integrariam as ações do PRONASCI.
O papel atribuído às mulheres por estas políticas “reforça o lugar da mulher enquanto
responsável pelo gerenciamento da família e destaca a centralização das políticas públicas e
assistenciais na figura da mãe” (DETONI; MACHADO; NARDI, 2018, p.7). Ainda que a
palavra mãe tenha sido retirado do nome do projeto, as mulheres são reconhecidas como
referências na comunidade por conta da maternidade.
Para realizar a seleção das participantes do projeto nos territórios PRONASCI, os
convenentes poderiam contratar, com recursos dos convênios firmados, fundações
educacionais, universidades, Organização da Sociedade Civil para Interesse Público - OSCIPs
e empresas privadas6. Para participar da seleção, as candidatas deveriam atender os seguintes
critérios: pertencer às redes sociais ou de parentesco dos jovens foco do PRONASCI; ter idade
mínima de 18 anos; ter cursado, no mínimo, até a quarta série do ensino fundamental ou
6
A seleção de participantes do Projeto Mulheres da Paz, assim como a seleção de participantes do PROTEJO, era
divulgada por meio de edital e o processo incluía a análise de fichas de cadastro preenchidas pelos candidatos à
seleção e a realização de entrevistas.
comprovar capacidade de leitura e escrita; ser residente nas comunidades das regiões indicativas
do PRONASCI; ter capacidade de representar interesses coletivos e participação comunitária
atuante e possuir renda familiar de até 2 salários mínimos (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA;
SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA: 2009).
As mulheres selecionadas participariam de processo de capacitação de 150 horas/aula
divididas em 4 módulos: 1º módulo – 60 horas/aula em 1 mês e 2º, 3º e 4º módulos – 30
horas/aula - nos meses subsequentes. Os temas dos módulos, definidos pelo Coordenação
Nacional do Projeto Mulheres da Paz, eram: Acesso à justiça (direitos humanos e mediação de
conflitos); Lei Maria da Penha; apoio psicossocial; ações do PRONASCI e conhecimentos de
informática.
Cabe destacar que dentre as 94 ações propostas pelo PRONASCI, inexiste ação voltada
para o enfrentamento da violência masculina no ambiente doméstico. Não há, portanto, na
concepção ou execução do Programa preocupação quanto à violência de gênero. Resta no
módulo sobre a Lei Maria da Penha7 a única possibilidade de que as mulheres envolvidas no
Projeto Mulheres da Paz tivessem acesso às informações necessárias para denunciar e combater
a violência de gênero.
As participantes deveriam cumprir um mínimo de 75% da carga horária dos quatro
módulos para que iniciassem a atuação como Mulheres da Paz e recebessem benefício mensal
no valor de R$ 190,008. A continuidade do recebimento do benefício era condicionada a
realização de visitas domiciliares; promoção de reuniões e realização de palestras oficinas.
7
Promulgada em 07 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria Penha, criou mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispôs sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei
de Execução Penal; e dá outras providências.
8
Assim como no PROTEJO, a Caixa Econômica Federal foi responsável pelo pagamento do benefício às
participantes do Projeto.
9
A execução físico-financeira do Programa é analisada no CAPÍTULO 4 deste trabalho.
Por outro lado, as pesquisadoras indicam que as participantes eram apontadas como
“delatoras” ou “dedos-duros” em boatos que circulavam nos locais de execução do projeto. O
que “demonstra tanto a ausência de planejamento como a inexistência de um esquema positivo
de comunicação e divulgação detalhada e cuidadosa do programa para a sociedade, mas,
principalmente, para a comunidade local” (ROCHA; TAVARES, 2014, p. 298).
A percepção das Mulheres da Paz como “delatoras” ou “dedos-duros” reforçava-se pela
presença da polícia como parte do trinômio (jovens, mulheres e polícia) que configurava a
execução do Programa nos territórios PRONASCI.
A análise da execução orçamentária do PRONASCI indica que o projeto Mulheres da
Paz não ocupou um lugar central na execução do Programa. Em princípio, o projeto deveria ser
executado como apoio ao PROTEJO. Entretanto, apenas 24 municípios tiveram oportunidade
de executar ambas ações10.
Ao todo 34 municípios assinaram convênios para realização do Projeto Mulheres da Paz
no período compreendido entre 2008 e 201211. Nos anos de 2010 a 2012, a ação não recebeu
nenhum investimento. O montante de investimentos na ação foi de R$ 22.942.722,98.
10
Isto é: Alvorada/RS; Araucária/PR; Cachoeirinha/RS; Canoas/RS; Cariacica/ES; Curitiba/PR; Diadema/SP;
Esteio/RS; Fortaleza/CE; Gravataí/RS; Novo Hamburgo/RS; Passo Fundo/RS; Porto Alegre/RS; Rio de
Janeiro/RJ; Santa Luzia/MG; Santo André/SP; São Bernardo do Campo/SP; São Leopoldo/RS; Sapucaia do
Sul/RS; Serra/ES; Taboão da Serra/SP; Viana/ES; Vila Velha/ES e Vitória/ES.
11
A saber: Alvorada/RS; Araucária/PR; Bagé/RS; Cachoeirinha/RS; Canoas/RS; Cariacica/ES; Contagem/ES;
Curitiba/PR; Diadema/SP; Esteio/RS; Ferraz de Vasconcelos/SP; Fortaleza/CE; Gravataí/RS; Guaíba/RS;
Guarulhos/SP; Novo Hamburgo/RS; Passo Fundo/RS; Piraquara/PR; Pirenópolis/GO; Porto Alegre/RS; Rio de
Janeiro/RJ; Santa Luzia/MG; Santo André/SP; São Bernardo do Campo/SP; São José dos Pinhais/PR; São
Leopoldo/RS; Sapucaia do Sul/RS; Serra/ES; Taboão da Serra/SP; Uberaba/MG; Vacaria/RS; Viana/ES; Vila
Velha/ES e Vitória/ES. Bem como no caso do PROTEJO, o município de São Bernardo do Campo/SP assinou
dois convênios para execução do Mulheres da Paz. O primeiro em 2008 e o segundo em 2009.
Em 2008 e 2009 foram firmados 12 convênios para efetivação da ação Mulheres da Paz
com 9 estados12.
Não foram firmados, no período analisado, convênios da ação Mulheres da Paz com
OSCIPS. Ao todo foram executados 46 convênios e investidos R$ 42.810.099,13 conforme
demonstrado na TABELA 3
12
4 convênios foram firmados com o governo do estado do Rio de Janeiro. Os demais estados são: Acre; Alagoas,
Bahia; Distrito Federal; Goiás; Maranhão; Pará e Pernambuco.
A partir de 2012, a SENASP passou a publicar editais para que os municípios, estados
e Distrito Federal apresentem propostas para execução conjunta dos projetos Mulheres da Paz
e PROTEJO13. Após o primeiro edital, publicado em 18 de abril de 2012, foram aprovadas 12
propostas dos municípios de: Betim/MG; Canoas/RS; Cariacica/ES; Diadema/SP; Jandira/SP;
Lauro de Freitas/BA; Linhares/ES; Novo Hamburgo/RS; São José dos Pinhais/PR; São
Leopoldo/RS; Uberaba/MG e Vitória/ES. O valor total de repasse para execução dos projetos
foi R$ 8.147.997,12.
A execução conjunta dos projetos tinha por objetivo garantir a articulação entre as ações
e consequentemente, a integração das atividades realizadas pelas Mulheres da Paz e pelos
jovens que participavam do PROTEJO.
Considerações finais
O presente trabalho dedicou-se à análise da proposta e da execução do projeto Mulheres
da Paz no âmbito do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. A avaliação da
política pública nos permitiu avançar quanto à compreensão da articulação proposta entre
mulheres, jovens e polícia.
Partindo da constatação de que a maternidade se torna objetificada e codificada pelas
políticas públicas do Estado e de que as mulheres tornam-se agentes destas políticas e são
instrumentalizadas para a realização da estratégia do governo de cuidado, controle,
quantificação e organização dos sujeitos (DETONI; MACHADO; NARDI, 2018) é possível
identificar que na segurança pública, as mulheres são instrumentalizadas para o controle dos
corpos jovens.
Sendo assim, a análise do projeto Mulheres da Paz corrobora para os estudos de gênero
e políticas públicas como um estudo de caso na área de segurança pública que reforça a
compreensão de que:
[As mulheres] têm sido mobilizadas, ao mesmo tempo, como causadoras de boa parte
dos problemas enfrentados por seus núcleos familiares e como agentes responsáveis
13
No ANEXO I do referido edital, a SENASP informa que “os convênios celebrados entre o Ministério da Justiça
e municípios, estados e o Distrito Federal para a execução dos Projetos Mulheres da Paz e PROTEJO, terão como
objeto comum a seleção e capacitação de mulheres para atuação nas comunidades que constituem áreas
conflagradas, com vistas à construção e fortalecimento das redes sociais de prevenção e enfrentamento à violência,
bem como a promoção do atendimento aos adolescentes e jovens, com idade entre 15 e 24 anos, que estejam em
situação de vulnerabilidade familiar e social ou de violência, envolvidos na criminalidade e com drogas. Sendo
assim, o convênio atenderá dois públicos prioritários: mulheres e jovens. Os Projetos Mulheres da Paz e Protejo
integram um único termo de convênio devendo cumprir cronograma conjunto na execução das atividades. Nesta
perspectiva, ambos os Projetos são metas do mesmo termo de convênio a ser firmado. Tal orientação visa, além
de buscar a qualificação e maior eficácia no desenvolvimento dos projetos, atender o que determina a Lei 11.530
de 24 de outubro de 2007, em seu artigo 8º-D, além de otimizar os recursos investidos” (SECRETARIA
NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2012).
Referências
BRASIL. Integrantes do Projeto Mulheres da Paz. Brasil: 2012. Disponível em: <
http://goo.gl/d3t2wt>. Acesso em 18 abr 2014.
DESOUZA, Eros; BALDWIN, John R.; ROSA, FH da. A construção social dos papéis
sexuais femininos. Psicologia: reflexão e crítica, v. 13, n. 3, p. 485-496, 2000.
DETONI, Priscila Pavan; MACHADO, Paula Sandrine; NARDI, Henrique Caetano. “Em nome
da mãe”: performatividades e feminizações em um CRAS. Estudos Feministas [online]. Vol.
26, n. 1. Florianópolis: 2018. p. 1-17.
FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e políticas públicas. Estudos feministas, v. 12, n. 1,
p. 47, 2004.
_____. Um novo paradigma para segurança pública. Brasília: 2008. Disponível em:
<www.mj.gov.br>. Acesso em 14 set. 2011.
ROCHA, Fabiana dos Santos; TAVARES, Márcia Santana. Projeto Mulheres da Paz: uma
mirada de gênero. Revista Políticas Públicas. V. 18, n. 1. São Luís: 2014, p. 293-305.
SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anexo I. Diretrizes Nacionais
Projetos Mulheres da Paz e Proteção de Jovens em Território Vulnerável – PROTEJO. Brasília:
2012. Disponível em: <http://goo.gl/YYHVaJ>. Acesso em 14 set. 2011.
Introdução
1
Graduanda em Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Aluna colaboradora do grupo de
pesquisa Liberdades em Disputa (UEL); paulafrribeiro@gmail.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora pesquisadora do Grupo
Liberdades em Disputa (UEL) e Professora do curso de Graduação em Direito da Faculdades Londrina;
samoci26@gmail.com
3
Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.
4
Lei 9.504/1977, art. 10°, parágrafo 3° Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo,
cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por
cento) para candidaturas de cada sexo.
5
Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.
6
Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/eleicoes-2016-mulheres-
representam-mais-de-30-dos-candidatos>. Acesso em 27/05/2018.
7
Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/brasil-elegeu-apenas-32-vereadoras-negras-em-2016-
politica-e-branca-masculina-e-proprietaria-diz-estudo/>. Acesso em 27/05/2018.
8
Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/mais-de-16-mil-
candidatos-tiveram-votacao-zerada-nas-eleicoes-2016>. Acesso em 27/05/2018.
9
Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43424088>. Acesso em 27/05/2018.
10
Disponível em < http://www.spm.gov.br/assuntos/diversidade-das-mulheres/negras/dados>. Acesso em
27/05/2018.
11
Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/brasil-elegeu-apenas-32-vereadoras-negras-em-
2016-politica-e-branca-masculina-e-proprietaria-diz-estudo/>. Acesso em 27/05/2018.
CONCLUSÃO
12
Disponível em <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>. Acesso em 27mai2018.
Acesso em 27/05/2018.
13
Disponível em <https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>.
Acesso em 27 de maio de 2018.
REFERÊNCIAS
HOOKS, Bell. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro – abril de
2015, pp. 193-210.
<https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.
Lei 9.504/1977, art. 10°, parágrafo 3° Do número de vagas resultante das regras previstas neste
artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de
70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.
<https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>.
Acesso em 27mai2018.
<http://www.spm.gov.br/assuntos/diversidade-das-mulheres/negras/dados>. Acesso em
27mai2018.
<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/eleicoes-2016-mulheres-
representam-mais-de-30-dos-candidatos>. Acesso em 27mai2018.
<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/mais-de-16-mil-
candidatos-tiveram-votacao-zerada-nas-eleicoes-2016>. Acesso em 27mai2018.
Diversidade sexual e de Gênero: entraves postos pelo Movimento “Escola sem Partido”
para a Constituição da Escola Justa.
INTRODUÇÃO
1
UEL; Doutora em Ciências Sociais; E-mail: angellamaria@uel.br
2
UEL; Mestra em Ciências Sociais; E-mail: alinegomes131290@hotmail.com
3
UEL; Mestra em Ciências Sociais; E-mail: moreno.meire@hotmail.com
deficiências, dentre outras [...]”. (2012, p.516-517). A Resolução CNE nº 02/2015 vai nesse
mesmo caminho, quando exige que, dentre outros saberes relevantes que priorizam os estudos
das identidades, das diferenças e das diversidades com foco na redução das desigualdades, os
direitos humanos e as diversidades sexuais e de gênero configurem-se em conteúdos
obrigatórios na formação inicial e continuada de professores no Brasil.
4
Tal como anunciado no website http://www.escolasempartido.org/objetivos. Acesso em 10/05/2018.
distribuídos no Brasil como estratégia para disseminar a posição dos grupos contrários à
inserção das questões de gênero e sexualidade/orientação sexual no Plano Nacional de
Educação 2014-2024.
Esses textos, que consideramos representativos dos discursos antifeministas, revelam
que o antifeminismo tem como fundamento a naturalização das diversas dimensões das
desigualdades, reiterando divisões dicotômicas entre natureza e cultura, feminilidade e
masculidade, esfera privada e pública, emoção e razão. A sexualidade humana é compreendida
como a expressão das supostas naturezas femininas e masculinas. Sugerem, assim, que há uma
única expressão possível da sexualidade humana: a heterossexualidade. Adotam uma noção de
família que colabora para a essencialização dos sujeitos e que é entendida como o menor
fragmento social possível, tornado ela e não o indivíduo como sujeito de direitos. A mulher,
fora do contexto familiar heteronormativo, na percepção dos grupos reacionários, não se
complementa, tendo em vista que para a política antifeminista, a feminilidade é caracterizada
pela maternidade.
Cabe salientar que a construção do discurso antifeminista, que têm encontrado força
política no Brasil, especialmente na última década, e que vêm ocupando cada vez mais espaço
nas arenas formais de debate e decisão das questões públicas, se dá para/pela distorção dos
argumentos feministas em relação ao gênero, que se sustentam na defesa dos binarismos, na
fixidez dos papéis sociais, especialmente dos “papéis” tradicionais de gênero, numa concepção
e abordagem ahistórica e acultural com sérias consequências políticas, especialmente quando o
que se está em jogo é a concepção de direitos para minorias políticas e grupos sociais
historicamente marginalizados.
Segundo Stromquist (2007), a maior parte dos governos supõe, de forma errônea, que
questões de gênero não são problemas para a sua realidade. Elas não são entendidas como
prioritárias nos planos educacionais, com exceção dos casos em que existem sérias
disparidades. Stromquist (2007) afirma, ainda, que o Brasil é um exemplo das raras exceções,
com esforços no sentido de modificação dos currículos e melhoria dos livros didáticos. No
entanto, evidencia que a “tradução de tais princípios em práticas diárias, entretanto, dependerá
da formação e do apoio recebidos pela administração e pelo professorado das escolas em relação
a essa temática” (STROMQUIST, 2007, p. 18).
No campo das políticas educacionais, nas últimas décadas, esforços têm sido
empreendidos no sentido de promover mudanças na educação brasileira (VIANNA e
UNBEHAUM, 2004). Tal como afirma Fúlvia Rosemberg (2001), a década de 1990, no Brasil,
foi marcada por movimentações que, em grande medida, foram implicações dos
desdobramentos da promulgação da Constituição de 1988 e da nova conjuntura internacional.
Reformas foram realizadas no sentido de ampliar a oferta, obter ganhos em qualidade, reduzir
o uso de recursos públicos, etc. Tais reformas não se limitam ao contexto brasileiro, apontando
para um movimento internacional que busca, entre outros, estabelecer a educação como um
elemento estratégico para a redução de desigualdades de ordem econômicas culturais e sociais,
e, neste sentido, como possibilidade de promoção de justiça social.
No âmbito educacional, quando o que está em jogo é a noção de justiça, a proposta de
Nancy Fraser (2001), nos parece relevante. Uma abordagem a partir de uma perspectiva de
gênero para a educação pressupõe dois aspectos: a redistribuição ou transformação do acesso
aos bens materiais, estes relacionados à dimensão econômica; e o reconhecimento ou
encaminhamento de injustiças simbólicas e culturais presentes em representações
estereotipadas das mulheres e pessoas LGBTI+, vinculando-se, então, à dimensão cultural. Tais
questões são pensadas com pouco peso pelas políticas públicas educacionais. Quando se tem
uma preocupação com as questões de gênero e sexualidade, geralmente, a abordagem é
superficial, contemplando o contexto da igualdade de oportunidades, especialmente de acesso
(Stromquist, 2007, p. 18).
Defendemos, portanto, que a abordagem de gênero e da educação sexual são
importantes não apenas no currículo formal, mas também no currículo real e no currículo oculto.
Entende-se como currículo formal aquele que é oficialmente instituído como documento
vigente nas áreas específicas, tais como a Lei de Diretrizes e Bases, o Plano Nacional de
Educação, O Plano Municipal de Educação, os Parâmetros Curriculares, as Orientações
Curriculares e as duas Resoluções de âmbito nacional que recortamos para a análise neste
artigo.
Já quando falamos de currículo real, estamos nos referindo àquele que efetivamente é
ministrado nas salas de aula, pois sabe-se que na realidade nem todas as disposições e os
conteúdos obrigatórios nos currículos formais chegam a ser colocados em prática. O currículo
oculto consiste em todos os acontecimentos, costumes, simbolismos, atitudes e
comportamentos das pessoas que compõe o ambiente escolar (GIROUX, 1986). Em todas essas
configurações de currículo estão implicadas as concepções das/os professoras/es sobre
educação e sociedade, por consequência, suas concepções acerca das diversidades e das
desigualdades. Estas concepções norteiam suas lutas pelos currículos formais através das
associações, dos sindicatos, dos fóruns, dos conselhos, das entidades representativas de cada
área do conhecimento, dos colegiados de curso, etc. Elas também norteiam seus planejamentos,
aulas, avaliações e demais intervenções diretas com os estudantes em sala de aula, lá no espaço
vivo onde se concretiza os currículos reais e ocultos.
Por isso, a relevância da concepção de um currículo formal, que valorize os conteúdos
de diversidade sexual e de gênero, utilizado como referencial teórico-metodológico na
formação inicial e continuada de professores. São essas concepções que orientarão também as
concepções de escola. Nesse sentido, a escola é entendida como um espaço significativo de
difusão de conhecimentos e busca por uma sociedade mais justa e mais igualitária. Mesmo
assim, em determinadas épocas surgem tentativas para dificultar que as questões de gênero, de
educação sexual, assim como todos os conteúdos relacionados aos direitos humanos sejam
discutidos na escola. Ocorre que mesmo com essas incursões realizadas por movimentos
conservadores, tais conceitos e tudo que estes representam, mesmo que não sejam nominados,
citados, debatidos e explicados pelas/os professoras/es, continuarão presentes no ambiente
escolar, posto que permeiam a multiplicidade da vida em sociedade.
Assim, para que a prática dessas/es professoras/es não seja alvo de perseguições e
repreensões indevidas, são necessários documentos oficiais que amparem seus saberes/fazeres
pedagógicos, não só respaldando-os, como também exigindo o cumprimento dessas inserções
curriculares, muitas vezes negligenciadas por gestores adeptos às concepções conservadoras.
Lutar para que os conteúdos de diversidades sexuais e de gênero, por exemplo,
permaneçam em um documento referencial como a Resolução CNE nº 02/2015 é lutar para que
a educação sexual deixe de ser tratada como tabu. De um modo geral, muitas pessoas,
especialmente pela ausência de uma formação crítica, ainda evitam discutir essas temáticas com
os adultos e jovens e, principalmente, com as crianças. “Adultos/as que assim agem com as
crianças, enfatizando-se aqui os/as professores/as, acabam repetindo a educação sexual que
tiveram, repressora, acrítica, perpetuadora dos valores burgueses e, portanto, de um sexismo
que reforça a questão de gênero vigente” (BRAGA, 2008, p. 118).
O acesso ao aprofundamento teórico-metodológico dos conhecimentos sobre gênero e
sobre direitos humanos, concebidos pelo viés do empoderamento dessas “minorias sociais”,
que mesmo sendo maiorias populacionais como é o caso das mulheres e dos negros, são sub-
representados nos currículos e nas políticas educacionais, podem trazer mudanças no exercício
docente, posto que modificam olhares, posturas e comportamentos em sala de aula, em relação
ao enfrentamento das situações de discriminação, intolerância e preconceitos, mas, sobretudo
em relação ao estranhamento dos próprios preconceitos que persistem entre esses profissionais.
As/os professoras/es precisam superar seus preconceitos, tantas vezes explicitados no currículo
oculto, impregnados nos valores e padrões sociais que são transmitidos nos
planejamentos/práticas de ensino. Mesmo porque, segundo Giroux, (1986), essa forma de
currículo consiste nas práticas, valores e situações que permeiam a escola e acabam sendo
vivenciadas e incorporadas pelas/os alunas/os.
Os adeptos do conservadorismo sabem da importância que os documentos
educacionais oficiais como materializações relevantes do currículo possuem na formação
das/os estudantes, das/os professoras/es e na organização de práticas pedagógicas includentes,
por isso a insistência dos ataques que visam excluir conhecimentos, alterar metas/estratégias de
planos, chamar de exercício de ideologização o que na verdade é um exercício científico de
direitos sociais e políticos, especialmente no que tange às questões sexuais e de gênero. Nesse
sentido, tal como afirma Gaudêncio Frigotto (2017, s/p), as práticas e os discursos do “Escola
sem Partido não podem ser entendidas nelas mesmas e nem como algo que afeta apenas a escola
e os educadores”. Concordamos ainda com o autor quando este afirma que,
Ao por entre aspas o termo “sem” da denominação Escola sem Partido, quer-
se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por seus arautos, da escola
do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou
antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de
liberdade; partido, portanto, da xenofobia nas suas diferentes facetas: de
gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc.. Um partido que ameaça os
fundamentos da liberdade e da democracia. (FRIGOTTO, 2017, s/p).
5
Ver mais em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/02/14/interna_politica,659916/mpf-quer-que-
stf-julgue-inconstitucional-projetos-de-escola-sem-partid.shtml. Acesso em 10/05/2018.
Educação Nacional, de 1996, o artigo 3º, inciso IV, prevê “o respeito à liberdade e apreço à
tolerância” (BRASIL, 1996).
Para Dubet, “uma das formas de justiça social consiste em garantir um mínimo de
recursos e proteção aos mais fracos e desfavorecidos” (2004, p.546). Esse mínimo, neste recorte
de análise, julgamos passar pelo conhecimento dos documentos oficiais referenciais que
protegem e respaldam o exercício dos direitos das/os estudantes e das/os professoras/es,
atualmente atacados, inclusive, no seu direito social de educar especificando a relevância das
diversidades, com foco na redução das desigualdades. Fazê-los conhecer que há amparo legal
em documentos em vigor, como a CF/1988, a LDB/1996, a Resolução CNE nº 02/2015 e a
Resolução CNE nº 01/2012, é contribuir para o exercício de seus direitos.
Como mostra o Parecer das DCNs-Direitos Humanos (2013) justiça social, igualdade e
diversidade não são antagônicas. Aliás, no nosso entendimento, são elementos indissociáveis
na formulação de currículos, na elaboração de materiais didáticos, nas políticas educacionais e
nas práticas pedagógicas cotidianas dos professores em uma concepção de “Escola justa”, pois
só quando os saberes dos grupos humanos, marginalizados historicamente no país, forem
representados e valorizados nas propostas pedagógicas, podemos dizer que estamos mais
próximos da construção de um ideal de justiça escolar.
princípios da educação em direitos humanos, que tem por finalidade promover a educação para
a mudança e a transformação social. Esse princípio se refere “ao enfrentamento dos
preconceitos e das discriminações, garantindo que diferenças não sejam transformadas em
desigualdades”. (Idem, p.522).
Para Moreira e Candau (apud BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.55), “a escola
sempre teve dificuldades em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e
neutralizá-las”. Na perspectiva dos autores, “a escola sente-se mais confortável com a
uniformidade e a padronização”. Mas, ao contrário disso, ela “precisa acolher, criticar e colocar
em contato diferentes saberes, diferentes manifestações culturais e diferentes óticas”, afinal, “a
contemporaneidade requer culturas que se misturem e ressoem mutuamente”. De acordo com
as DCNs-Direitos Humanos (2013), as instituições de Ensino Superior não estão isentas de
graves violações de direitos. Compreendidas também como escolas, estas precisam se engajar
na luta pela reversão dessas desigualdades e formas de exclusão. Afinal, quando se trata de uma
concepção de “Escola justa” está se falando também na concepção de uma universidade justa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos que “nas sociedades onde as desigualdades são profundas, tal como a
brasileira, o sonho da igualdade está longe de se tornar realidade”. (VALLE, 2013, p.295). Mas
“reconhecendo que todo otimismo em relação à escola deve estar cercado de prudência,
consideramos que ela pode contribuir para uma ação política consciente, afinal ela é uma –
talvez a única – instituição social capaz de promover a justiça em contextos atravessados pela
injustiça” (VALLE, 2013, p.302).
No que diz respeito à Educação Básica a própria realidade, marcada pelo acirramento
das desigualdades e de diversas formas de violência contra os direitos humanos, que afeta
especialmente as minorias, deve ser conteúdo das disciplinas, não só na área de Ciências
Humanas. O conhecimento sobre o mundo real e suas exclusões significa um passo fundamental
no processo de criticidade dos estudantes. É a consciência sobre essa realidade que permitirá a
participação dos mesmos em organizações coletivas que poderão mudar os contextos sociais.
Trata-se, em outras palavras, de colocar em prática as exigências da Resolução CNE nº 01/2012
“Propõe-se assim que, no currículo escolar, sejam incluídos conteúdos sobre a realidade social,
ambiental, política e cultural, dialogando com as problemáticas que estão próximas da realidade
desses estudantes” (BRASIL, DCNS-Direitos Humanos, 2013, p. 527).
Quanto no Ensino Superior, além das obrigações com a inserção da temática de direitos
humanos em projetos de pesquisa/ensino/extensão, a criação de núcleos com atuação em várias
demandas que devem compor políticas públicas mais includentes, contemplando teorias e
práticas acerca das relações de gênero, identidade de gênero, diversidade de orientação sexual,
diversidade cultural, espera-se a implementação efetiva da Resolução CNE nº 02/2015 no que
diz respeito à inserção das diversidades sexuais e de gênero, assim como de direitos humanos
em todos os Projetos Político Pedagógicos dos cursos de graduação – Licenciatura.
mesmo que afirmar sua responsabilidade, assim como de seus professores e organizações
coletivas, na constituição processual da “escola justa”, que não pode ser concebida enquanto
persistir uma ideia de currículo formal ou real onde apenas um grupo sociopolítico e econômico
dominante é estudado e representado como intelectual, a saber, o grupo hetero, europeu, cristão,
masculino, rico, branco, perseguido por anos a fio como regra padrão para formação das
identidades e subjetividades humanas.
REFERÊNCIAS
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graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. MEC. CNE. Brasília. 2015.
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em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v34n121/a05n121.pdf . Acesso em: jan/2014.
1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; marcelo.ljarreta@gmail.com
2
Doutoranda em Direito, Instituições e Negócios pela Universidade Federal Fluminense, Mestra em ciências
sociais e jurídicas pela Universidade Federal Fluminense. natoliveira88@gmail.com
Introdução
3
Vale ressaltar que o debate normativo acerca das relações de educação tem sido constante no município e não
se restringem ao Plano Municipal de Educação, mas a propostas de emendas à Lei Orgânica do Município,
propostas de lei municipal que verse sobre a fiscalização do ensino aplicado nas escolas da rede pública
municipal, dentre outros mecanismos. Essa informação se faz útil de modo a se compreender que as discussões
são muito amplas e dinâmicas e incumbe ao presente artigo, tratar de uma fração do referido debate.
4
Deve ser claro que não é objetivo do trabalho oferecer uma variável definição de conceitos, mas apresentar
sentidos que sejam mais adequados à proposta, de modo a possibilitar maior compreensão da hipótese
formulada. Isso não significa restringir a discussão com base apenas nas definições apresentadas, essencialmente
em se considerar que, para os conceitos aqui tratados, são oferecidas inúmeras noções.
5
A sigla LGBTI+ compreende à Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais, sendo acompanhada
pelo sinal de adição (+) que representa a inclusão de demais sujeitos alinhados à diversidade sexual não
abrangidos pela sigla.
6
Dado o período histórico remetido no texto, referente à crescente nas reivindicações do movimento LGBT na
década de 70, o movimento que representava a diversidade sexual se limitava à sigla LGBTs, principalmente na
figura de homens gays (PEREIRA, 2017, p. 121). A inclusão de demais grupos identificados à diversidade
sexual, traduzida nas mudanças da sigla que representa o movimento, é uma discussão contemporânea.
Trataremos melhor desta questão no tópico acerca da compreensão do movimento LGBTI+ (tópico II).
sociais que disputam e requerem espaço, possam de fato adentrar às esferas públicas de
deliberação.
Vale ressaltar que o alinhamento à essa perspectiva acerca da representatividade
política não significa alinhamento necessário à política de quotas nos espaços deliberativos,
ou mesmo nos partidos políticos, à indivíduos LGBTI+, como se pode observar acontece com
as mulheres atualmente, uma vez que as particularidades que envolvem as problemáticas sui
generis aos LGBTI+, conforme desenvolveremos ao longo do texto, impossibilitariam ainda
mais a participação política destes em um formato de quotas, pois poderia ser encarada como
uma imposição de uma parcela de LGBTI+ na política, o que gera repulsa por parte da
sociedade que enxerga os representantes deste grupo uma ameaça à configuração
heteronormativa “normal”; ao contrário, promover a participação política LGBTI+ com base
em incentivos à paridade junto à própria comunidade LGBTI+ pode ser encarado como
menos ofensivo, o que diminui a aversão social a estes.
Em conformidade com essa análise, definir o que é o movimento LGBTI+ e sua
construção histórica é imensamente importante para o desenvolvimento da ideia central do
artigo, de modo a possibilitar maior compreensão acerca do movimento e possíveis razões que
geram o esvaziamento representativo LGBTI+ dos espaços de discussão, ressaltando o
dinamismo histórico que acompanha o movimento e a abrangência a atores alinhados à
questões de diversidade sexual.
Uma das principais barreiras quando se versa sobre a temática da diversidade sexual
é entender, simplesmente, o que é essa diversidade sexual e o que abrange o movimento
LGBTI+. Entretanto, definir um grupo social que se compõe com base em um enredo de
subjetividades de sujeitos e idealizações, assim como um dinamismo constante não se
constitui tarefa fácil nem mesmo para teóricos que se debruçam sob o movimento e ainda para
os próprios sujeitos inseridos ou representados pelo grupo. Podemos considerar que a
organização LGBTI+ enquanto movimento social se deu mais tardiamente, se compararmos
com demais grupos sociais como o movimento feminista, o movimento negro e o movimento
de trabalhadores da classe operária por exemplo.
A priori, é necessário compreender a metamorfose da sigla que acompanha o
movimento, já que, constantemente esta aparece com um ou outro formato distinto, o que
sempre gera dúvidas, dentro e fora da comunidade LGBTI+. Isso acontece pois,
7
A afirmação de que a sociedade brasileira é predominantemente cis e hétera advém da realização de pesquisas
esparsas realizadas pela USP (Universidade de São Paulo) em 2009 e dados extraoficiais publicados no site
Brasil de Fato em 2012 e que apontam que apenas cerca de 10% da população brasileira está inserida no quadro
representativo do Movimento LGBTI+. Ressaltamos a dificuldade de se encontrar tais dados, bem como a
imprecisão destes, já que ainda não existe um levantamento demográfico oficial acerca da população LGBTI+ no
Brasil. Apresentamos essas informações apenas para confirmar que a população brasileira é majoritariamente
heterossexual, conforme exposto no texto.
8
A sigla base que acompanha o movimento social ao longo do tempo é LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transexuais. A adição de demais caracteres indica a representação de algum grupo ao qual abrange a diversidade
sexual: Queer, Transgêneros, Intersexuais, Não-binários, entre outros.
Isto posto, é possível compreender que o modo com que se configuram as relações na
escola reflete no modo com que os alunos agirão perante as relações sociais fora da escola, o
que facilita entender que, sendo as questões de gênero e sexualidade questões presentes no
cotidiano social, é relevante demonstrar no ambiente escolar, ações que estejam em
consonância com essa “nova” dinâmica social. Para tanto, o mecanismo talvez considerado
mais relevante nas relações de ensino é preponderante para a adequação da escola às atuais
questões de gênero e sexualidade: a linguagem.
Por meio da linguagem, a naturalização das distinções de gênero e/ou discriminações
acerca da diversidade sexual se tornam evidentes. Termos e expressões naturalizadas que
tratam todas as pessoas com adjetivos masculinos, reforçam no consciente de meninas a
naturalização quanto ao masculino como preponderante. O mesmo acontece quando se trata
da diversidade sexual, mas aqui o problema se manifesta por meio da omissão, quando se
procura esconder, não tratar acerca da diversidade sexual, o que ocasiona aos alunos
reconhecidos ou em processo de reconhecimento, a sensação de não pertencimento àquele
ambiente, dando margem a que, quando manifestadas as sexualidades diversas no ambiente
escolar, atitudes repreensivas e discriminatórias entre os alunos, sejam internalizadas como
naturais (LOURO, 1997).
Procuramos até aqui apresentar uma ideia que nos possibilita perceber que a
compreensão acerca da representatividade política aqui versada, abrange a ideia de
representação com base na junção entre ter os interesses levados aos espaços deliberativos,
cuja formação conterá pares alinhados e identificados ao grupo social que representa, sendo
motivo desta pesquisa o movimento LGBTI+, que se constitui em movimento social
composto por inúmeros sujeitos identificados à diversidade sexual que objetivam alterar
padrões institucionalizados que atentam à dignidade, vivência e participação do grupo em
sociedade. Contudo, para o sucesso do objetivo do Movimento LGBTI+ em se alcançar
representatividade política nos espaços públicos de decisão, é necessário que as relações de
ensino estejam alinhadas a proporcionar paridade na abordagem da diversidade sexual, uma
vez que a escola reflete, a curto, médio e longo prazo, as relações sociais desenvolvidas em
seu âmago, influindo diretamente em como a sociedade compreende o movimento LGBTI+ e
seus atores.
Na tentativa de afastar as discussões acerca de gênero e diversidade sexual das
escolas, sob a justificativa de garantir um ensino livre de doutrinação ideológica e política por
parte dos educadores, grupos políticos alinhados a correntes ideológicas consideradas
conservadoras vêm propondo leis e promovendo discussões no âmbito legislativo do
município de Londrina que limitam e alguns casos até proíbem a abordagem escolar acerca de
gênero e diversidade sexual. É o caso do projeto de lei que visa instituir o programa Escola
sem Partido em Londrina; assim como o recente projeto de emenda à Lei Orgânica do
Município nº 32017, que insere artigo à carta orgânica de Londrina que visa impedir que seja
tratada, em qualquer âmbito da rede municipal de ensino, questões de gênero e diversidade
sexual. Entretanto, esses casos exemplificativos decorrem da alteração do Plano Municipal de
Educação de Londrina em 2015 que suprimiu das diretrizes educacionais locais o combate às
desigualdades de gênero e diversidade sexual.
Entendendo a educação como preponderante na formação social, é possível
compreendê-la como fundamental no processo de representatividade política. Desta forma,
podemos considerar que, quando a escola promove um processo de omissão frente à grupos
identificados à identidade de gênero e diversidade sexual, ela pode interferir direta e
indiretamente no processo de construção da representatividade política da comunidade
LGBTI+, já que, no caminho inverso, acaba reforçando a cultura padronizada
heteronormativa, o que se reflete na política, conforme aponta Clayton Feitosa Pereira:
"Como o campo político é pouco permeável às pautas e pessoas LGBT, há uma notória
tendência do eleitorado em votar em candidatos que detém o perfil dominante da arena
política, ou seja, masculina, burguesa, branca e heterossexual, mesmo entre o eleitorado
LGBT” (PEREIRA, 2017).
Considerando as recentes alterações nos documentos legais que constituem as bases
educacionais, como a supressão da diversidade sexual e identidade de gênero do Plano
Municipal de Educação de Londrina, que se intensificaram a partir de 2015, é possível fazer
uma relação com a queda na eleição de representantes engajados ao Movimento LGBTI+ já
nas eleições municipais de 2016, conforme estudo realizado pela Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), em que observamos que nas
eleições municipais de 2012 (anteriores às alterações nas bases curriculares), a comunidade
LGBTI+ elegeu 29 políticos no Brasil. Já nas eleições municipais de 2016 (posteriores às
alterações), este número caiu para 26.
Outra hipótese relacionada a esta é a de que a já carente representatividade política
LGBTI+ nas esferas deliberativas, possibilita que grupos que predominam essas esferas
promovam ao debate legislativo as propostas que visam suprimir o reconhecimento dos atores
identificados à diversidade sexual. Grupos formados por políticos alinhados à uma moralidade
religiosa, por exemplo, tem ocupado cada vez mais os espaços de representatividade política,
reforçando a ideia que reflete a padronização social na política.
Considerações finais
Referências
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ativismo queer. Salvador: EDUFBA, 2015.
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Brasília, 2012. p. 10.
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política. Disponível em < https://blog.mettzer.com/referencia-de-sites-e-artigos-online/> .
Acesso em 26 de maio de 2018.
CARTA CAPITAL. Eleição de candidatos LGBTs cresce no mundo, mas não no Brasil.
Disponível em < https://www.cartacapital.com.br/politica/eleicao-de-candidatos-lgbts-cresce-
no-mundo-mas-nao-no-brasil>. Acesso em 05 de maio de 2018.
Resumo: Muito se fala sobre como os direitos femininos evoluíram ou como estamos
caminhando para um mundo cada vez mais “igualitário”. É notável que em muitos aspectos
alguns locais do mundo evoluíram no que concerne ao tratamento prestado as mulheres ou as
leis de proteção contra a violência. Todavia, existem muitos outros locais que continuam a negar
direitos fundamentais. Nesse sentindo, a teoria de justiça pode auxiliar nesse processo de
expansão dos direitos femininos. Amartya Sen é um dos principais expoentes da teoria de
justiça contemporânea com sua teoria de “iguais capacidades”. É a partir dessa teoria, que foca
nas efetivas liberdades como meio de alcançar uma boa vida, na avaliação das liberdades como
a “capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar” (SEN, 2011,
p. 265), que se pretende entender quais são as capacidades de realização do feminino na
atualidade. O foco aqui é a liberdade que temos para efetivamente escolher diferentes modos
de vida e não simplesmente na vida que conseguimos levar com o que nos foi possibilitado ter.
Sendo o conceito de capacidades um aspecto da liberdade que se concentra particularmente nas
oportunidades substantivas (SEN, 2011), é possível constatar – não só a partir da obra de Sen
(2011) mas outras (OCKRENT; TREINER, 2011; WAISELFISZ, 2012; WAISELFISZ, 2015)
– que em várias partes do mundo essa capacidade é negada a muitas mulheres. Conclui-se assim
que a liberdade que uma pessoa tem sobre suas escolhas é fundamental para evitar abusos das
mais variadas formas. Nesse sentindo, a capacidade de realizações do feminino está
intimamente ligada a liberdade que elas possuem para ter o poder de agência sobre as próprias
vidas, e isto só será alcançado fazendo com que elas participem de formas mais ativa na
sociedade, mas também através do reconhecimento das mesmas para o desenvolvimento desta
sociedade.
1
UNESP/FCLAr. Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCS/UNESP/FCLAr e Bacharela em Ciências Sociais
pela UECE. julietaparente@yahoo.com.br.
Introdução
2
A política do filho único consiste na proibição do governo chinês de casais terem mais do que um único filho.
Foi implantada na década de 1970 e tinha como finalidade conter o crescimento populacional. Recentemente,
foi revogada, sendo permitido que casais possuam até dois filhos.
A teoria da justiça pode auxiliar nesse processo de expansão dos direitos femininos.
Desde Ralws, Dworkin, Amartya Sen, ou mulheres como Iris Young, Martha Nussbaum e
Susan Okin, muitos foram os que buscaram pensar como alcançar uma sociedade mais justa,
alguns com mais atenção voltada para o feminino, como no caso das últimas autoras.
Pode-se entende-lo como um grande defensor da emancipação feminina – mesmo que
este nunca tenha sido o foco de sua argumentação, apresentando de passagem e em um contexto
de uma ideia de justiça mais ampla, que é plausível – e de como esta levaria ao
desenvolvimento: Amartya Sen é um dos principais expoentes da teoria de justiça
contemporânea, com sua teoria de “iguais capacidades”.
Sen propõe uma teoria de justiça que foque nas efetivas liberdades como meio de
alcançar um boa vida. Estas liberdades seriam avaliadas de acordo com abordagem das
capacidades, que é medida pela “capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão
para valorizar” (SEN, 2011, p. 265).
É uma abordagem mais sutil, visto que apesar da maioria das privações que as pessoas
passam terem relação com a renda, nem todas podem ser medidas pelo o que um indivíduo
3
Fazer qualquer coisa sem o consentimento do marido, pai etc. ou ser vítima de um rumor. Desde a ter relações
sexuais fora do casamento, até realizar uma visita a sua família de origem sem a autorização prévia do marido.
possui ou deixa de possuir4. A complexidade da vida humana envolve muitas outras questões
que apenas a renda e recursos conseguem explicar.
Desta forma, pretende-se entender as capacidades de realizações do feminino a partir
da perspectiva da abordagem das capacidades de Amartya Sen
Qualquer teoria de justiça que se preze escolhe parâmetros através dos quais vai medir
a vantagem dos indivíduos, se uma sociedade é justa ou não. O utilitarismo, uma das primeiras
e principais correntes presentes na teoria da justiça, concentra-se na felicidade ou prazer
individual para julgar se o indivíduo possui ou não uma boa vida. É uma abordagem focada
na utilidade e nos recursos, avaliando a vantagem que uma pessoa possui a partir da sua renda,
sua riqueza, deixando de levar em consideração outros fatores que também são importantes5.
4
Nem sempre possuir recursos significa possuir boa-vida. É o que Sen chama de “capacidade de conversão”,
isto significa que a capacidade de possuir uma boa vida depende também da capacidade de uma pessoa
transformar seus recursos em algo que valoriza. Uma pessoa pode possuir a renda necessária para realizar todos
os seus desejos, mas não possui capacidade física – por eventual doença genética, por exemplo –, enquanto
alguém pode possuir pouco dinheiro, mas conseguir realizar aquilo que valoriza – por não possui esta doença
genética – com mais facilidade do que quem possui renda.
5
Como, e. g., a divisão de comida dentro das famílias, o esforço feito para a educação entre as crianças, o cuidado
prestado aos idosos e as pessoas com algum tipo de dificuldade na conversão de capacidades.
de vida que ela preza, mas que ela levaria de qualquer modo, ou uma abordagem que leve em
consideração as possibilidades que ela teve para escolher para, dentre todas, optar por uma.
Baseado na abordagem das capacidades de Sen, esta visão busca demonstrar que deve existir
uma gama de possibilidades a qual o indivíduo deve ter a liberdade de escolher.
Diferente das abordagens utilitaristas, que se concentram na felicidade ou prazer
individual como melhor forma de avaliar a vantagem que alguém tem6 – quanto mais prazer
possível e a menor dor evitável – a abordagem proposta com Sen, a “abordagem das
capacidades”, busca julgar a vantagem individual na capacidade de esse indivíduo tem de
fazer coisas pelas quais valoriza. Ou seja, ela é baseada na liberdade que um indivíduo pode
ou não desfrutar de fazer determinadas escolhas.
O conceito de capacidade proposto por Sen está ligado diretamente com o aspecto de
oportunidade de liberdade, explicado anteriormente. O conceito deve ser visto com relação
as oportunidades “abrangentes” e não concentrado na “culminação”. Ou seja, aquilo que
fazemos mesmo possuindo outras oportunidades e tendo a liberdade de desistir no processo.
Há, ainda, duas características fundamentais nessa abordagem, são elas: “1) ela aponta
para um ‘foco informacional’ para julgar e comparar vantagens individuais globais e não
propõe qualquer fórmula específica sobre como essa informação pode ser usada” (SEN, 2011,
p. 266); e 2) a perspectiva dessa abordagem é interessada em pluralidade de características
diferentes de nossas vidas e preocupações. A métrica das capacidades é
superior à métrica dos recursos por que se concentra nos fins e não nos
meios, pode lidar melhor com a discriminação contra pessoas incapacitadas,
é adequadamente sensível as variações individuais em funcionamento que
tem importância para a democracia, e é apropriada para orientar a justa
prestação dos serviços públicos, sobretudo a saúde e na educação
(ANDERSON, 2010 apud SEN, 2011, p. 298).
Desta forma, esta abordagem se concentra na vida humana e na sua pluralidade de
possiblidades, e não em certos objetos que uma pessoa poderá vir a possuir. Esta abordagem
também é pertinente por demonstrar o papel fundamental das desigualdades de capacidades
nas avaliações das diferenças sociais (SEN, 2011). Ela propõe um deslocamento de foco, pois
o que lhe importa são os meios para a oportunidade de satisfazer os fins e o papel da liberdade
para realizar esses mesmos fins.
O objetivo é chamar atenção para o quanto as pessoas podem de fato realizar;
“compreender que os meios para uma vida humana satisfatória não são em si mesmo os fins
6
O problema da teoria utilitarista está na ênfase de associação entre felicidade (prazer) e renda, o que fez com que
fosse interpretada e simplificada somente como renda ou esta sendo a sua melhor proxy (principalmente pela
economia neoclássica).
da boa vida ajuda a gerar um aumento significativo do alcance do exercício avaliativo” (SEN,
2011, p. 269).
A ideia de capacidade pode comportar a importante distinção entre passar fome por
não possuir alimento e passar fome por escolha própria – seja por motivo religioso, políticos
entre outros – visto que ela é orientada para a liberdade e as oportunidades, “ou seja, a aptidão
real das pessoas para escolher viver diferentes tipos de vida a seu alcance, em vez de confinar
a atenção apenas ao que pode ser descrito como culminação – ou consequências – da escolha”.
(SEN, 2011, p. 271).
Por essa abordagem se utilizar de objetos heterogêneos para medir as vantagens dos
indivíduos7, há um certo receio por parte de alguns teóricos em utilizá-la. Sen propõe fazer
uma análise e avaliação crítica – utilizando-se do debate público – para a escolha das
capacidades de avaliação social e, desta forma, ir além da ideia de contar para medir as
vantagens.
A necessidade de análise e avaliação crítica não é apenas uma exigência da
avaliação autocentrada por parte de indivíduos isolados, mas um indicador
da fecundidade do debate público e da argumentação pública interativa: as
avaliações sociais podem carecer de informações úteis e bons argumentos
se forem inteiramente baseadas em reflexões solitárias. A discussão pública
e a deliberação podem levar a uma melhor compreensão do papel, do
alcance e do significado de funcionamentos específicos e suas combinações
(SEN, 2011, p. 276).
Ele foca sua análise nos meios que levam as pessoas a chegar a determinados fins –
resultados abrangentes –, e não apenas nos fins – ou “resultado de culminação”. Desta forma,
é possível fazer uma real avaliação das efetivas capacidades que alguém tem de realização.
A partir disso surge o questionamento: E as mulheres? Quais são suas capacidades de
realizações a partir desta abordagem?
Ressalta-se aqui importante limitação do presente trabalho, para fazer essa discussão
(capacidades de realizações das mulheres) da maneira correta seria importante realizar
debates com essas mulheres, conversar com elas, e. g., por meio de grupos focais tralhando
com localizações específicas. Contudo, optou-se por uma discussão mais genérica.
As capacidades e o feminino
Em sua vasta obra sobre a questão da justiça, Amartya Sen é recorrente na defesa da
7
Ele não mede quantas pessoas estão desnutridas, por exemplo, mas quem está por não possuir alimento e quem
está por outros motivos que não a ausência de meios para se alimentar.
Estas privações são frequentes no Brasil, e além, o país é um dos que mais violenta e
mata mulheres. Até o ano 2012, o país ocupava a sétima posição do ranking de homicídios
femininos (WAISELFISZ, 2012), com uma taxa de 4,4 homicídios a cada 100 mil mulheres.
Atualmente, subiu no ranking internacional e figura a quinta posição (WAISELFISZ, 2015)
entre as nações que mais matam mulheres no mundo, com uma alarmante taxa de 4,8
homicídios a cada 100 mil mulheres. O Brasil só fica atrás de El Salvador, Colômbia,
Guatemala e da Federação Russa e chega a ter uma violência 24 vezes maior do que países
como Dinamarca e Irlanda, tidos como civilizados (WAISELFISZ, 2015).
Apesar destas taxas, no Brasil a violência contra a mulher é considerada crime, com
punição prevista em lei. O Estado brasileiro – depois de muita luta por parte dos movimentos
sociais, sobretudo o feminista – criminalizou a prática maneira específica (Lei Maria da
8
De menor importância, entre outros fatores, porque não tem um enfoque na prevenção, preocupação esta muito
presente na redação da Lei Maria da Penha.
9
As proibições vão desde não poder dirigir, viajar sozinhas ou ficar sozinhas com homens que não são seus
familiares até praticar educação física na escola ou poder denunciar alguém caso venha a sofrer violência
doméstica – as duas últimas foram recém permitidas, em 2015 e 2013 respectivamente.
10
Apesar de, por vezes, não serem políticas de Estado, que de maneira insistente e perene trabalhe para isso. Coisas
como o Estado brasileiro realizando políticas administrativas para diminuir o machismo no aparelho estatal, entre
a burocracia etc. ou por meio de uma formação de professores emancipadora e depois uma escola emancipadora
etc. seriam muito mais notáveis e relevantes.
11
A recomendação é que os conflitos sejam resolvidos no meio familiar que, dependendo do engajamento
religioso, não vê maiores problemas em agressões que busquem “corrigir comportamentos femininos”.
personae non gratae, recebem menos atenção quando chegam a nascer, ou nem isso
conseguem (OCKRENT; TREINER, 2011).
É na desigualdade contínua na divisão dos alimentos – e talvez (ainda mais)
nos cuidados com a saúde – que a desigualdade entre os sexos se manifesta
de modo mais flagrante e persistente nas sociedades pobres com
pronunciado viés antifeminino (SEN, 2010, p. 252).
E, mesmo que pertençam a famílias com recursos, não há nenhuma garantia de que
esses recursos serão convertidos em capacidades por elas, visto que há uma ordem patriarcal
que detém o poder familiar – incluindo aqui os recursos – nas mãos do pai, irmão ou filho,
de forma que sua liberdade de oportunidade fica à mercê de outrem.
Certamente, ser capaz de sobreviver é apenas uma capacidade entre outras
(embora sem dúvida uma capacitação básica), outras comparações podem
ser feitas com base em informações sobre saúde, morbidade, etc. A
capacidade de ler e escrever também é muito importante, e as taxas de
analfabetismo são muitas vezes escandalosamente mais altas entre as
mulheres em diversas partes do mundo. O efeito combinado de uma alta
taxa de analfabetismo em geral (a carência de uma capacidade básica nos
dois gêneros) e de uma desigualdade de gênero nessa taxa (carência maior
das mulheres com respeito a essa capacidade básica) tende a ser desastroso
para as mulheres. Aparentemente, mesmo deixando de lado muitos países
sobre os quais não dispomos de informações confiáveis, em muitos outros
a taxa de analfabetismo das mulheres é superior a 50%. Na verdade, é
superior mesmo a 70% em 26 países, a 80% em 16 e a 90% em pelo menos
5 (SEN, 1993).
Desta forma, não raro, meninas são privadas de oportunidades mesmo que pertençam
a famílias ricas. Vistas como mero objeto de troca.
Sendo a pobreza, não somente o baixo nível de renda, mas a privação de toda sorte
de oportunidade – saúde e educação, por exemplo – uma das formas de privação das
capacidades básicas, mulheres tendem a permanecer na pobreza por uma série de motivos
que não só a privação de uma renda explicam, apesar de esse fator ser importante.
responsáveis12 pelos filhos quando este precisa da mesma. Isto acaba por gerar um ciclo
vicioso, onde a falta de intervenção do estado também piora a situação de privações a que essas
famílias tendem a permanecer inseridas.
Um bom exemplo de política de estado que influenciou na melhora da autonomia das
mulheres foi o programa Bolsa Família. Ele logrou êxito, principalmente, pela renda ser
recebida pelas mulheres, o que não só as libertou financeiramente de relações privadas
opressoras13, como as auxiliou no aumento de autonomia, das suas respectivas capacidades
de agência. Ao saírem da miséria, elas passaram a protagonizar a própria vida (CAPAI, 2013).
De todo modo, argumentar que apesar de todas as privações que lhes são impostas,
essas pessoas são felizes, é no mínimo se utilizar-se da má fé, afinal esta felicidade não pode
ser considerada como boa vida caso estas pessoas não tenham tido as oportunidades – muitas
não o têm – de converter suas liberdades em capacidades. De todo modo, elas conseguem ser
felizes com aquilo que lhes foi permitido ser/ter, mas isso não significa o que são/têm pode
ser considerado uma vida justa. É apenas uma maneira que muitos encontram de viver em
paz com as persistentes privações pelas quais passam (SEN, 2011).
12
Dados do Conselho Nacional de Justiça revelam que 5,5 milhões de crianças não possuem o nome do pai no
registro. O abandono paterno é prática comum no Brasil, deixando toda a responsabilidade com a criança nas mãos
da mãe (ESTADÃO, 2013).
13
Refere-se, em específico, a uma pesquisa realizada no interior do estado do Piauí, sobre as mudanças ocorridas
na primeira cidade em que o Bolsa Família foi implementado.
Conclusão
Na atualidade, as formas de violência que a maioria das mulheres ainda estão sujeitas
é apenas uma das formas de negação da liberdade das mesmas. Suas capacidades de
realizações são drasticamente reduzidas ao longo de suas vidas, seja pela falta de alimento –
que as tornam mais frágeis e suscetíveis a doenças que podem, inclusive, matá-las –, pela
ausência de preocupação com a sua educação ou pelo não entendimento das mesmas como
indivíduos possuidoras de poder de agência sobre as próprias vidas.
A partir disto, é possível observar que a abordagem das capacidades possui um papel
central no reconhecimento que não só a renda14 é importante para entender as privações pelas
quais muitas pessoas passam. Nascer numa família possuidoras de renda e recursos não é
garantia alguma que a mulher possuíra alguma capacidade de agência sobre a própria vida,
ou conseguirá transformar este recurso – que ela tem direito, ou pelo menos deveria ter – em
capacidades. Muitas, mesmo possuidoras de recursos, não podem também converter esses
recursos em capacidades de liberdade como, por exemplo, ir e vir a qualquer horário sem
correr o risco de sofrerem algum tipo de violação sobre seus corpos, suas liberdades.
De modo geral, a perspectiva das efetivações e capacidade proporciona um
enfoque plausível para o exame das desigualdades de gênero. Ele não sofre
do subjetivismo que torna a avaliação baseada na utilidade particularmente
obtusa no tratamento de desigualdades consolidadas. Tampouco sofre da
superconcentração nos meios, tal como na avaliação baseada em bens
(SEN, 1993).
Conclui-se assim que a liberdade que uma pessoa tem sobre suas escolhas é
14
Reconhece-se que a renda tem um papel importante, principal na sociedade a qual todos estamos inseridos.
O capitalismo só reconhece o valor do indivíduo a partir daquilo que ele produz e que pode ser convertido em
dinheiro.
fundamental para evitar abusos das mais variadas formas. No caso feminino, a renda possui
um papel importante – o que Sen em nenhum momento negou – para que a mulher obtenha
mais autonomia dentro da relação familiar, visto que o trabalho doméstico, por não poder ser
convertido em renda, não é valorizado.
É claro que uma educação mais igualitária entre os gêneros, torna o entendimento que
todos devem ser tratados com respeito e possuírem as condições mínimas de oportunidades
para que suas liberdades possam ser convertidas em capacidades, naquilo que valorizam
realizar.
Esta educação mais igualitária levaria, inclusive, ao entendimento da sociedade como
um todo da mulher enquanto sujeito possuidor de agência, dona de si, consequentemente, ao
entendimento que mulheres devem ser respeitas e não terem suas liberdades violadas, como
qualquer ser humano, independentemente de qualquer circunstância.
A capacidade de uma pessoa pode ser caracterizada como liberdade para o
bem-estar (refletindo a liberdade para promover o próprio bem-estar) e
como liberdade da agencia (refletindo a liberdade para promover quaisquer
objetivos e valores que uma pessoa tem razão para promover.) (SEN, 2011,
p. 323).
A capacidade de realizações do feminino está intimamente ligada a liberdade que elas
possuem para ter o poder de agência sobre as próprias vidas, e isto só será alcançado fazendo
com que elas participem de forma mais ativa na sociedade, mas também através do
reconhecimento da importância das mesmas para o desenvolvimento desta sociedade.
Referências
CAPAI, E. Severinas: as novas mulheres do sertão. 2013. Disponível
em:
<http://apublica.org/2013/08/severinas-novas-mulheres-sertao/>. Acesso em: abril 2018.
ESTADÃO. No Brasil, 5,5 milhões de crianças não têm pai no registro. 2013. Disponível
em: < http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,no-brasil-5-5-milhoes-de-criancas-nao-tem-
pai-no-registro,1062741> Acesso em: abril 2018.
SEN, A. More than 100 million women are missing. 1990. Disponível
em:
<http://www.nybooks.com/articles/1990/12/20/more-than-100-million-women-are-
missing/>. Acesso em: abril 2018.
. O desenvolvimento como expansão das capacidades. Lua Nova São Paulo apr.
1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64451993000100016>. Acesso em: abril 2018.
. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso. 2010.
416 p.
. Uma ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 492 p.
1
Universidade Federal do Paraná (UFPR); Especialista em Gestão Social, Redes e Defesa de direitos
(UNOPAR); Mestranda pelo Programa de Educação (UFPR); Assistente Social do Núcleo de Apoio
Psicopedagógico e Assistência Estudantil (UTFPR); e-mail: claudiabpedro@gmail.com
2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Mestre em Desenvolvimento Comunitário
(UNICENTRO); e-mail: rafaelferrareze@hotmail.com
Introdução.
A violência doméstica contra as mulheres é um fenômeno histórico, cultural e
estrutural. Trata-se não somente de uma condição de dominação do masculino pelo feminino,
mas de uma condição de exploração, legitimado pelos valores do sistema capitalista.
É uma prática difundida no cotidiano, que se mostra de forma complexa e muitas
vezes difícil de ser identificada. Não se trata de uma questão pontual, mas de uma violência
estrutural. Assim a violência perpassa vários períodos históricos e nações mundiais, e não
escolhe classe social, credo ou etnia e configura um quadro alarmante de uma diversidade de
mulheres que sofrem a violência doméstica no mundo todo, ainda que existam normativas
jurídicas legais que as protejam3.
O presente trabalho tem como objetivo investigar os limites e possibilidades na
atualidade para a consolidação de políticas públicas para mulheres no Brasil, sobretudo no
que tange a coibição da violência doméstica contra mulheres, utilizando como metodologia a
revisão bibliográfica e documental, as quais faz saber que:
A pesquisa bibliográfica para GIL (2008, pg. 50):
3
Constituição Federal de 1988; Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
próprias vidas, mas fazem história limitados pelas condições de suas épocas e pelos desafios
concretos que encontram em uma determinada sociedade (Idem).
A violência supõe o uso da força para alcançar determinados objetivos. São diferentes
formas de violência com maior ou menor intensidade. Trata-se da ação de oprimir algo ou
alguém impondo a lógica dos que violentam aos violentados. De acordo com (SILVA, 2009,
s/p):
Há, portanto, um grau de consciência dos sujeitos, dos grupos e das classes sociais
que praticam a violência (mesmo que não a assumam como tal), ainda que possamos
discutir a diversidade e os níveis de consciência dos atores que fazem parte do
processo violento.
Silva (2009, s/p), afirma que a violência se materializa de forma estrutural, pois,
envolve “ao mesmo tempo, a base econômica por onde organiza o modelo societário (a
estrutura) e sua sustentação ideológica (a infraestrutura)”. Não se trata, contudo, de uma
relação mecânica entre a estrutura e a infraestrutura (política, cultura, entre outras); Mas é
necessário frisar que para a sobrevivência humana, primeiramente o homem precisa satisfazer
suas necessidades básicas (comer, beber, vestir, etc.). E ainda, que:
[...] a questão social possui uma historicidade marcada por determinado modelo
societário que busca a máxima mercantilização dos seres humanos [...]. A economia
não pode ser desconsiderada nesse contexto, o que não significaria atribuir-lhe um
papel único e mecânico ao influir na vida do ser social (SILVA, 2009, s/p).
Desta forma, embora a violência estrutural seja cotidianamente observada pela grande
maioria da população, não é apreendida e reconhecida como tal. Produzem e se reproduzem
na vida cotidiana, caracterizando-se por uma violência estrutural, mas quase sempre não é
considerado violência. Assim como a violência, a relação de gênero faz parte de construções
históricas e sociais, que “se refere ao modo como as características sexuais são
compreendidas e representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas
parte do processo histórico” (SILVEIRA; MEDRADO, p.120 e 121, 2009).
A violência contra as mulheres4 se insere no contexto da violência permeado por
valores da ordem patriarcal de gênero. Entende-se que a existência da relação patriarcal incide
não somente na hierarquização entre os sexos, mas também na contradição de seus interesses,
4
Ressalta-se a necessidade de utilizar-se do termo “Mulheres” no plural, para considerar o amplo arcabouço de
diversidade cultural, geracional, classe, etnia, região, dentre outros diferentes aspectos existentes entre as
mulheres.
isto é, na manutenção do status quo para o homem e a busca pela igualdade entre os sexos,
pela mulher, pois, não se trata apenas de um sistema de dominação, mas é, de forma
imbricada, um sistema de exploração
O patriarcado tem seu marco histórico datado desde o fim do século XVII. A partir
deste período de ascensão da família burguesa, surgem representações sociais hierarquizadas
definindo papéis específicos para homens e para mulheres, e de modo desigual, pressupõe a
superioridade do primeiro. Assim, o homem reina na esfera pública, é a autoridade na tomada
de decisões e a sociedade exige como seus atributos a agressividade, virilidade, austeridade e
comportamentos no controle do raciocínio e da razão (SCHAIBER, 2005); Enquanto “(...) a
mulher “reina” no lar dentro do privado da casa, delibera sobre as questões imediatas dos
filhos, mas é o pai quem comanda em última instância” (Almeida, 1987, p. 61).
A “violência contra as mulheres, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica,
não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero que privilegia o
masculino (SAFFIOTI, 1999, s/p)”. Ressalta-se ainda que a violência doméstica contra as
mulheres, além de apresentar determinantes estruturais, é considerada também de natureza
interpessoal, faz parte de um contexto de relacionamento homem/ mulher ou adulto/criança
que foram historicamente tratados de modo desigual nas relações hierárquicas de poder da
família (SAFFIOTI, 1999).
Schaiber (2005, p. 75) relata que a família é uma instituição que tem importância
reconhecida por todas as sociedades, porém,
[...] não se constitui de um grupo sempre harmonioso e sereno, mas como uma
unidade composta por indivíduos de sexos, idades e posições diversificadas que
vivenciaram um constante jogo de poder.
Para Foucault (1979, pg. 75), o poder é algo dinâmico, inserido em espaços de
relações de poder, ele se manifesta como algo “enigmático, ao mesmo tempo visível e
invisível, presente e escondido, investido por toda parte”. Não há, portanto, um poder estático,
mas sim relações de poder inseridas nas relações humanas.
[...] nas relações humanas, quaisquer que sejam elas - quer se trate de comunicar
verbalmente, como o fazemos agora, ou se trate de relações amorosas, institucionais
ou econômicas -, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um
procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em
diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, a,
podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas. (Ibidem,1984, pg. 276).
Marinho (2003) valendo-se de Foucault afirma que, ainda que as instituições fazem
uso de sua grande influência para manter uma falsa ideia de poder, estático e imutável, de tal
modo que poderiam manter seu status quo, transformando-se em algo indestrutível. O autor
não exclui a necessidade das instituições para impor normas necessárias para o funcionamento
da sociedade, entretanto, o mesmo afirma que existe um exagero nas normas e valores ditados
para controlar as relações entre os indivíduos.
Esta subjetivação apontada por Foucault na citação acima, ocorre nas sociedades
patriarcais, nas quais os direitos das mulheres são inferiores aos dos homens, e esta deve
renunciar seus direitos naturais em detrimento da superioridade masculina. Ricotta (1999, p.
29) alerta discorrendo que o ambiente doméstico é o local onde os agressores acreditam ter
maior poder, espaço onde tem domínio. “[...] a mulher, a filha, o filho [...] e até os animais são
as maiores vítimas, exatamente porque fazem parte do espaço onde os agressores acreditam
ser do seu domínio e reinado”.
De acordo com o secretário geral da Organização das Nações Unidas, cerca de 70%
das mulheres já sofreram algum tipo de violência ao longo de sua vida. Afirma ainda, que “As
mulheres de 15 a 44 anos correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica do que de
câncer, acidentes de carro, guerra e malária, de acordo com dados do Banco Mundial” (BAN
KI-MOON, 2013). As Organizações da Nações Unidas destaca ainda, que várias pesquisas
mundiais apontam que metade das mulheres mortas por homicídio são mortas pelo marido ou
parceiro, atual ou anterior.
Ao longo da história, sobretudo com a ascensão mundial do movimento feminista na
década de 60, trouxeram consigo algumas conquistas que foram concretizadas no âmbito de
políticas públicas para o enfrentamento desta questão. No Brasil, a eclosão dos movimentos
sociais ocorreu principalmente a partir da década de 1980. Neste momento histórico, o
movimento feminista também deixa sua marca através de lutas enfrentamento, que se
cristaliza mais tarde em políticas públicas e direitos garantidos pelo Estado. Contudo, ainda
que haja na atualidade políticas públicas para mulheres, que visam coibir a violência
doméstica e as práticas discriminatórias de gênero, estas não são suficientes para seu
enfrentamento, que se consolida na lógica complexa da violência estrutural.
No entanto, inseridos neste modo de produção, a luta pela ampliação e consolidação
de políticas públicas deve ser usadas como mecanismo de defesa das classes oprimidas,
portanto, representa uma vitória não só das mulheres, mas como também dos movimentos
sociais, e da classe trabalhadora como um todo.
Foucault (1979, pg. 75 e 76) aponta que o poder só é possível se considerar a condição
existencial das partes, ao passo que o submisso, desconhece suas condições de liberdade
(consciente possibilidade de tomar decisões) e assim legitima o poder que lhe é atribuído.
Quando se tem clareza da consciência dos níveis de poder, torna-se possível a luta contra as
injustiças inseridas em certas relações de poder. Assim as relações de poder, portanto, são
passíveis de serem invertidas, derrubadas, quando os sujeitos submetidos ao poder de outros
sujeitos, não aceitam mais os valores e as verdades que lhes foram impostas, de tal modo que
problematizam e tornam pública as injustiças que lhe são cometidas:
Como exemplo histórico disso, podemos citar a cristalização das políticas sociais,
resultado de lutas do movimento feminista, momento em que as mulheres vão a cena pública
para contestar os valores machistas e vão busca pela igualdade de direitos.
Sobre o surgimento das políticas sociais Behring (2006, pg. 64) afirma que este movimento:
5
Simone de Beauvoir, através de sua obra “O segundo sexo”, inaugurou no século XX uma nova discussão
sobre as relações de gênero, causando um impacto global em um momento onde ainda não havia sido cunhado o
termo “feminismo”. O trabalho desta consagrada autora, traz como tese, de que a figura feminina e as posturas
que lhes são atribuídas constituem construções históricas e sociais. Sua obra foi traduzida em mais de 30 idiomas
e foi incluída no Índex dos livros proibidos pela Igreja Católica, pois considerava que seu conteúdo era um
atentado para família. Seu legado foi trazer à tona, discussões ainda hoje considerados tabu, que submetem a
sexualidade feminina ao jugo masculino.
perspectiva, a partir 1975, registra-se um salto de qualidade: a reflexão a partir das categorias
gêneros. Porém, somente dez anos depois, é que a Comissão de direitos Humanos da ONU
(Organização das Nações Unidas) na Reunião de Viena em 1993, exigiu que fossem inclusas
medidas para coibir a violência de gênero.
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência
patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Contudo, mesmo após a criação da lei Maria da Penha, foi registrado o aumento dos
casos de violência contra as mulheres, mostrando que apenas a criação desta política não é o
suficiente para acabar com a violência. De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de
Família (2013), nos primeiros anos após a criação da Lei Maria da Penha (2006) houve um
decréscimo nas taxas de homicídio. Em contrapartida, após este período dos anos iniciais da
criação da Lei Maria da Penha, os índices de violência contra as mulheres tem aumentado nos
últimos anos conforme aponta o mapa da violência de 2012 (JUSBRASIL, s/p, 2013):
Desta forma, a violência doméstica contra as mulheres ainda constitui uma das
principais preocupações do Estado brasileiro que ocupa o sétimo lugar no ranking mundial
dos países com mais crimes praticados contra as mulheres. Este contexto coloca como
necessário o constante monitoramento da aplicabilidade e o alcance dessas políticas. Ainda de
acordo com a pesquisa (JUSBRASIL, s/p, 2013) a falta de falta de estrutura é um dos motivos
apontados para a ineficiência e o agravamento deste quadro:
Desde o advento da Lei Maria da Penha, em 2006, até o primeiro semestre de 2012,
foram criadas 6612 varas ou juizados exclusivos para o processamento e julgamento
das ações decorrentes da prática de violências contra as mulheres. O estudo analisou
O problema reside no conhecimento das relações de gênero, que não é detido por
nenhuma categoria ocupacional. Profissionais da saúde, da educação, da
magistratura, do ministério público, etc. necessitam igualmente, e com urgência,
desta qualificação (Safiotti, 199, s/p).
A falta de qualificação destes profissionais trata-se de uma questão muito grave, pois
pode ter como consequência a violência institucional, que se trata da violência praticada
através da ação-omissão de profissionais que deveriam garantir o atendimento humanizado.
Muitas vezes, para procurar o apoio da polícia, as vítimas dependem do apoio de parentes,
amigos, vizinhos e médicos, mas nem sempre as pessoas ou profissionais prestam o
atendimento necessário.
Identificar e combater a violência se mostra um grande desafio para os profissionais
que executam políticas públicas para este segmento, pois, é um fenômeno multifacetado e
complexo, legitimado pelos valores burgueses, e naturalizado na esfera cotidiana, tomando a
forma de violência estrutural. É cabal que estes profissionais considerem a violência não
como um fenômeno pontual e localizado, e que exige o comprometimento de investigar e
reconstruir o mais fielmente possível da totalidade de um movimento de uma realidade
complexa e contraditória que não é abstratamente criada (SILVA, 2099, s/p).
Desse modo, além dos desafios para a consolidação de políticas públicas para
mulheres e no combate a violência doméstica já discorridos acima, o contexto social e político
atual brasileiro traz à tona um projeto conservador que se revela no retrocesso dos direitos que
foram conquistados através da luta do movimento feminista por muitos anos. Como exemplo,
Considerações finais.
6
O projeto de Emenda Constitucional nº 181/2015 pretende criminalizar o aborto até em casos de estupro, risco
de morte para a gestante de fetos anencéfalos, onde há prerrogativa de aborto legal no Brasil desde 1940.
Referências.
CHRISTO, Carlos Alberto. Marcas de Baton. Revista Caros Amigos, 2001. Disponível em
<http://pensocris.vilabol.uol.br/feminismo.htm> Acesso em setembro de 2009.
CRESS/PR. Pela garantia dos direitos das mulheres: não a PEC 181/15! Conselho Regional
de Serviço Social – 11ª Região (CRESS – PR em movimento). Disponível em:
http://www.cresspr.org.br/site/wp-content/uploads/2017/12/cress-em-movimento-pec181.pdf
Acesso em: 10 de maio de 2018.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. Ed. Atlas S.A. São Paulo. 2008.
JUSBRASIL notícias. Mesmo com a Lei Maria da Penha, aumenta número de casos de
violência contra a mulher. Disponível em:
<http://ibdfam.jusbrasil.com.br/noticias/100407232/mesmo-com-a-lei-maria-da-penha-
aumenta-numero-de-casos-de-violencia-contra-a-mulher> Acesso em junho de 2013.
SAFFIOTI, Heleieth. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna LTDA, 1988.
SCHAIBER, L.B ... [et al.]. Violência dói e não é direito: a violência contra a mulher, a
saúde e os direitos humanos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
1
UFABC; Mestre em Políticas Públicas; ananunes14@gmail.com.
Introdução
As políticas públicas de gênero2 vêm se destacando enquanto temática de investigação
não somente pelos avanços políticos observados nas últimas décadas, mas também pela
urgência das questões que buscam resolver. Esse destaque se deve principalmente ao amplo
esforço do movimento de mulheres brasileiro em levantar essa pauta na agenda pública
(PINTO, 1994; SOARES, 1994), e à recente institucionalização das políticas públicas para
mulheres3, que se materializa na criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) com
status de ministério e na promulgação da Lei Maria da Penha (PITANGUY, 2003;
CALAZÁNS e CORTÉS, 2011).
Onze anos após a promulgação dessa Lei, que é considerada uma das três melhores
legislações do mundo pela ONU e é conhecida por 97% da população brasileira 4, segue na
agenda pública o debate sobre como efetivá-la. As políticas públicas de enfrentamento à
violência contra mulheres são iniciativas fundamentais para que a legislação se cumpra e,
segundo a previsão normativa, sua implementação deve envolver todas as esferas de governo
e atores não-governamentais. O acesso pleno a direitos pelas mulheres depende, portanto, do
trabalho articulado entre todos os entes federativos, os Três Poderes e a sociedade civil.
Neste sentido, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres
(PNEVCM) apresenta-se como uma iniciativa que busca capilarizar e potencializar as ações
do poder público a partir de uma visão integral do problema (CARDOSO, 2009) e articulação
entre os diversos atores e atrizes. O Pacto tem como premissas a transversalidade,
intersetorialidade e a capilaridade (BRASIL, 2010).
Quando se observa o contexto de implementação das políticas públicas de
enfrentamento à violência contra mulheres, é possível reconhecer que as desigualdades
regionais, sociais, raciais e étnicas, entre outras, impõem grandes desafios ao poder público. A
violência de gênero é um problema enraizado na sociedade brasileira e presente em todo o
território, mas atinge a diversidade de mulheres de maneiras distintas de acordo com sua
realidade. Nesse sentido, especialistas no tema destacam a importância de as políticas de
enfrentamento a esse problema serem adaptadas às realidades locais e desenvolvidas em
2
Considere-se a seguinte definição de para políticas públicas e gênero: iniciativas que consideram as diferenças
nos processos de socialização entre homens e mulheres e nas suas consequências nas vivências individuais e
coletivas de homens e mulheres, e se propõem a enfrentar e desconstruir as desigualdades geradas por esses
processos (SOARES, 2004).
3
Entende-se aqui que as políticas públicas para mulheres compõem as políticas públicas de gênero, mas com um
horizonte mais reduzido. Conforme destaca Bandeira (2005, 9): “As políticas para as mulheres não são
excludentes das políticas de gênero, embora tenham uma perspectiva restrita, pontual, de menor abrangência,
atendendo a demandas das mulheres, mas sem instaurar uma possibilidade de ruptura com as visões tradicionais
do feminino”.
4
Informações divulgadas pelo Portal Brasil
por sua vez, compõem as quatro dimensões da análise, adaptadas da proposta de análise dos
arranjos institucionais de Lotta e Favareto (2016). Dessa forma, os resultados podem
contribuir para a discussão posterior dos modelos de governança do Pacto Nacional.
Abordagens de análise
Para a investigação, usam-se as abordagens de análise dos arranjos institucionais e de
coprodução, adaptadas à pergunta de pesquisa. Ambas permitem agregar novas variáveis na
análise do processo de implementação – para além da comparação entre a proposta da política
pública e a sua entrega –, valorizando a compreensão das interações entre atores.
Compreendendo que o contexto brasileiro passou por um processo de complexificação
da produção de políticas, propõe-se analisar seus arranjos institucionais, que definem de que
maneira os processos são coordenados e quais são as atribuições dos diferentes atores
(LOTTA e VAZ, 2015; PIRES e GOMIDE, 2014; LOTTA e FAVARETO, 2016). A
compreensão do conceito mais utilizada pelas análises atuais na agenda brasileira, da qual
esse trabalho compartilha, é definida por Pires e Gomide (2012,14): “Por arranjos
institucionais entende-se o conjunto de regras, organizações e processos que definem a forma
como se coordenam os atores e os interesses em pauta em uma determinada política pública”.
Já a coprodução de políticas públicas é um conceito emergente na agenda de estudos
de políticas públicas, que aqui definimos como a participação de outros atores, que não a
organização provedora, na produção de serviços públicos e políticas públicas (OSTROM,
1996). Isso inclui desde a parceria com entes privados e conveniamentos até a participação de
cidadãs e cidadãos de forma institucionalizada (HUPE, 1993) ou não (TOPS, 1999). Hupe e
Hill (2002, 135) resumem a definição de coprodução como uma abordagem na qual um
governo nacional ou local envolve cidadãos, organizações sem fins lucrativos, empresas ou
outros governos na produção de uma política pública específica.
No âmbito da implementação de políticas nacionais em municípios, a análise das
formas de coprodução permite identificar a rede envolvida na execução das políticas, o que
contribui para compreender suas potencialidades e a influência dessas parcerias nos
resultados.
Metodologia
A pesquisa de campo foi realizada no ano de 2017, nos municípios de Afogados de
Ingazeira – PE e Palmeira das Missões – RS, além das capitais de cada estado. Foram
entrevistadas gestoras e gestores públicos de todas as áreas envolvidas nas políticas públicas
Há intersetorialidade na Quem faz as regras da Que atores participam Como a política lida com
formulação da política? política efetivamente? da formulação da a dimensão territorial?
(ex: sistemas e (governo federal, política? (descrever (há menções a
instrumentos de estadual ou municipal?) atores da sociedade, do especificidades espaciais
diagnóstico ou O que se prevê no pacto estado ou do mercado e ou à necessidade de
planejamento federativo em termos de que arranjo de diferenciar/adaptar os
interministeriais) competências participação há – instrumentos de políticas
constitucionais neste conselhos, conferências, a contextos específicos
tema/setor? audiências públicas, (como diagnósticos
GTs, fóruns etc.) locais)?
Palmeira Baixa. O que acontece é Baixa. Estado tem Judiciário Algumas gestoras e
das o trabalho conjunto do pouco conhecimento produzindo política burocratas de nível
Missões – CREAS e o Judiciário, sobre o que acontece pública junto com de rua consideram
RS sem a supervisão de nos municípios, apesar burocratas de nível o contexto
nenhuma secretaria. de, na gestão anterior, de rua. Organizações territorial na leitura
haver uma orientação da sociedade civil do problema, mas o
para ajudar a espalhar promovem ações diagnóstico não
as políticas públicas. com o apoio da gera respostas
Prefeitura. específicas.
Elaborada pela autora
Considerações finais
O presente trabalho visa contribuir para a discussão sobre a implementação de
políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres em diferentes contextos.
Buscou-se, portanto, compreender como essas políticas públicas podem ser implementadas,
observando as premissas estabelecidas pelo Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
Contra Mulheres, em municípios de pequeno porte – realidade pouco analisada no âmbito de
políticas públicas de gênero.
Os resultados apontam para algumas conclusões. A primeira diz respeito à atuação dos
OPMs nos municípios, organismos que se mostram essenciais para coordenar políticas
públicas. A trajetória política e as capacidades técnicas das pessoas que assumem a
coordenação dos OPMs – e, em municípios pequenos, geralmente trabalham sozinhas –
importa tanto quanto a própria existência dessas estruturas. Elas são responsáveis, pois, por
levar a perspectiva de gênero a todos as atrizes e atores atuantes no território, principalmente
aos outros setores do Poder Executivo; e articular uma rede de enfrentamento à violência
contra mulheres no território. Nesse sentido, as ferramentas de monitoramento e de gestão
intersetorial podem fazer a diferença.
É preciso formar uma agenda consonante com os princípios da Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, e nesse sentido, os OPMs dos governos
estaduais devem dar subsídios técnicos, acompanhar o trabalho dos municípios e promover a
temática de gênero. Isso leva à segunda conclusão: a atuação dos governos estaduais é
fundamental para municípios de pequeno porte, que trabalham com orçamentos curtos e têm
menores capacidades institucionais. Eles dependem de “intermediários” para conseguir
implementar políticas de âmbito nacional – especialmente quando se trata de uma agenda
emergente. Os governos estaduais, além de fazerem a ligação entre os recursos federais e os
governos municipais, são os principais responsáveis pela política de Segurança Pública, eixo
fundamental do enfrentamento à violência contra mulheres. Portanto, ainda que um município
disponha de gestoras e gestores comprometidos com a temática e tente implementar essas
políticas, o alcance de suas ações é limitado quando o governo estadual não cumpre suas
funções.
Ambos os casos não dispunham de equipamentos especializados de atendimento
psicossocial à mulher em situação de violência, mas conseguiam fornecer esse serviço por
meio dos equipamentos de Assistência Social. O que remete ao terceiro ponto, sobre a
dificuldade de municípios de pequeno porte manterem equipamentos especializados. Ainda
que haja apoio técnico e financiamento para a sua construção, a manutenção dos mesmos traz
custos incompatíveis com a realidade dessas Prefeituras. As soluções apontadas são a
formação de consórcios ou a “estadualização” da gestão de equipamentos especializados.
Outra questão relacionada é a necessidade de fortalecer a Assistência Social e vincular o
atendimento às mulheres em situação de violência aos programas federais financiados pelo
SUAS. A participação ativa desse setor na rede de atendimento, por sua vez, só reforça a
importância dos mecanismos de gestão intersetorial das políticas públicas no nível municipal.
A quarta conclusão é que a adaptação das políticas públicas às dinâmicas do território
Referências
BRASIL. 9 fatos que você precisa saber sobre a Lei Maria da Penha. Ministério da Cidadania
e Justiça. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/10/9-fatos-que-
voce-precisa-saber-sobre-a-lei-maria-da-penha> Acesso em junho de 2017.
HILL, M.; HUPE, P. Implementing Public Policy: Governance in Theory and in Practice.
London: Sage, 2002.
HUPE, P.L. (1993) ‘The politics of implementation: Individual, organisational and political
co production in social services delivery’, in M. Hill (ed.), New Agendas in the Study of the
Policy Process. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1993.
OSTROM, E. (1996) Crossing the Great Divide: Coproduction, Synergy, and Development.
World Development, 24:6 pp.1073–87.
Resumo: Com este trabalho temos como objetivo apresentar o processo de construção de uma
rede de ações que visam proteger e garantir direitos de travestis e transexuais (Rede T), na
cidade de Londrina. Tem como base teórico-metodológica a Psicologia Social, dialogando com
os movimentos sociais, estudos sobre gêneros e sexualidades, pensando nos diversos contornos
que contribuem para a construção de um corpo e suas subjetividades, pela inquietação dos
envolvidos na causa e por posicionamentos ético-políticos diante das desigualdades sociais e a
necessidade de mudanças. Considerando que o processo está em curso, podemos ponderar que,
os resultados embora parciais, já contribuem de maneira expressiva para alavancar a discussão
acerca da importância dos temas trabalhados no campo. Com base em relatos da população que
temos alcançado é notável o quão significativas as ações da Rede T tem sido naquilo que se
propõe. Destacamos também a importância da articulação de diversos setores sociais, visto que
as demandas não são apenas de saúde, como também de trabalho, cultura, educação, moradia,
entre outros aspectos que temos encontrado. Trabalhar em rede faz com que o alcance da
população em questão seja ampliado, contribui para o acesso aos serviços, aumento e
compartilhamento de informação. Todas estas questões têm sido problematizadas a partir da
experiência de Estágio Básico em Psicologia e se configuram como um importante eixo de
questionamento sobre o processo de formação, de modo a responder demandas da atualidade
que esta população tem colocado ao campo teórico-prático da Psicologia.
Palavras-chaves: Psicologia; Políticas Púbicas; Travestis e Transexuais.
1
Universidade Pitágoras Unopar; graduanda em Psicologia; dayasouza90@gmail.com.
2
Universidade Pitágoras Unopar; graduando em Psicologia; salvadorvinni@gmail.com
3
UNESP/Assis, mestrando em Psicologia; Professor de Psicologia Universidade Pitágoras Unopar;
herbert.proenca@gmail.com
Introdução
Nosso objetivo com este trabalho é apresentar algumas problematizações sobre o
processo de construção de uma rede de ações voltadas à garantia de direitos de travestis e
transexuais, na cidade de Londrina. Este processo, que se encontra atualmente em curso, foi
iniciado no final do ano de 2017, quando o Coletivo ElityTrans Londrina mobilizou a criação
da chamada “Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População Trans em Londrina”.
O Coletivo ElityTrans, formado por travestis e transexuais, foi fundado em 2012 por
duas ativistas com protagonismo trans na cidade de Londrina/PR. Surge com o objetivo de
reivindicar direitos, garantir o exercício da cidadania, denunciar situações de violência,
proporcionar visibilidade e empoderamento da população que representa.
Assim, como resultado da articulação com diferentes setores da sociedade, surge em
dezembro de 2017 a Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População Trans de Londrina,
formada pelo ElityTrans em parceria com a Defensoria Pública do Paraná em Londrina,
profissionais de diferentes serviços públicos, pesquisadores acadêmicos e voluntários. Os
principais objetivos da Rede são: criação de fluxos na saúde e demais políticas, promoção e
educação em direitos humanos e cidadania em diversos âmbitos da sociedade, promoção de
políticas públicas de gênero, formulação de um conjunto de ações e políticas para dar maior
apoio ao público - principalmente àqueles(as) que estejam em situação de risco ou
vulnerabilidade social.
O ElityTrans elaborou uma proposta de atividades ofertadas à população trans, que
representa parte das estratégias da Rede. Esta proposta visa diferentes formas de atendimento
que buscam se configurar também espaços de convivência e socialização. Estas atividades são:
EscutaTrans (recepção e atendimento psicossocial individual ou coletivo), Oficina de
Aquendação de Cidadania (Atividades grupais de sensibilização e reflexão) e atividades
artísticas como Ciranda das Cores (ciranda e grupo de movimento, na perspectiva da psicologia
corporal) e Grupo de Teatro Translúcidas (grupo formado em 2016 por LGBTs, principalmente
por pessoas trans).
Tais atividades têm sido elaboradas de modo participativo, por ativistas membros do
Coletivo em conjunto com professores de Psicologia e psicólogos(as) parceiros. Se tornaram,
assim, um importante campo de estágio básico em Psicologia vinculada à Universidade
Pitágoras Unopar. Assim, a oferta de tais ações visa a criação espaços individuais e grupais de
diálogo com as pessoas trans, contribuindo com as ações da Rede, mas também
problematizando noções de “atendimento” da Psicologia e ampliando referências formativas da
área.
4
O Canto do MARL é um espaço cultural resultado de uma ocupação de um prédio público abandonado no centro
da cidade de Londrina. Foi ocupado em junho de 2016 pelo Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL),
e realiza diversas atividades culturais, políticas e educativas oferecidas à população.
sobre o que esse campo vem se tornando. No início, nossa inserção neste campo iniciou com
observação participante. A partir desse contato inicial, o que observamos colocaram uma série
de questionamentos, bombardeavam (positivamente) aquele lugar. Eram resultado de uma ação
em construção e, por isso, não prescrita a priori, como acontece em outros campos que têm
uma orientação técnica do trabalho (por exemplo nos serviços de políticas públicas). Que lugar
é esse? O que faz um psicólogo nesse campo? Quem somos nós aqui, enquanto pesquisadores
em psicologia? O tempo todo buscando respostas. E elas vieram, de uma demanda social. Como
dito anteriormente, a Psicologia Social atenta para a condição coletiva do indivíduo e para sua
necessidade de relação com o outro, com o ambiente em que está inserido.
Segundo Silvia Lane (1984, p. 19), “toda a psicologia é social” e para a mesma, tal
afirmação não reduz as Psicologias à Psicologia Social, mas permite que, outras áreas
específicas da psicologia reflitam sobre a natureza histórico-social do ser humano. É a partir
dos relacionamentos (com o eu, o outro, o ambiente, a sociedade como um todo), das questões
que surgem desses encontros, das desigualdades e da necessidade de mudanças, que chegamos
em uma importante relação: o que a psicologia sabe sobre as demandas de travestis e pessoas
trans?
referência para práticas psicossociais que são, nos cotidianos, produtoras de violências
existenciais, ao não considerar a multiplicidade da experiência das pessoas. Nesse sentido, as
patologias mais do que as potências e, desse modo, a doença mais do que a saúde, remontam a
figurações e discursos que atravessam de maneira intensa os processos de formação em
Psicologia, a exemplo das disciplinas presentes das matrizes curriculares dos cursos de
formação na área. Efetuam, assim, exatamente o proposto por tais disciplinas: disciplinam os
olhos, a escuta e os corpos de profissionais voltados ao enfoque da patologização de aspectos
da experiência humana (SALES; LOPES; PERES, 2016).
Ao voltarmos o olhar, como proposto por Wiliam Peres (2013), sobre as teorias e
metodologias utilizadas em práticas em psicologias normativas, podemos observar que a
maioria destas se encontra comprometida com a manutenção do sistema que produz expressões
de sujeitas/sujeitos, de gêneros e sexualidades aceitas e tidas como normais, assim como exclui
e nega o estatuto de existência às expressões dissidentes, aos desejos marginalizados e às formas
de vida singulares como as expressas pelas travestilidades e transexualidades. E a partir disso,
vemos Psicologias comprometidas em “[...] observar, classificar, esquadrinhar, diagnosticar,
trancafiar, tratar, curar e até produzir morte civil das pessoas que de alguma maneira tornaram-
se dissidentes das ordens e modelos impostos como únicos, corretos e normais” (PERES, 2013,
p. 56).
Ao responder a tais modelos, de acordo com as problematizações apresentadas por
Michel Foucault (1988), a Psicologia corrobora com as ações do bio-poder e de regulações
biopolíticas, constituindo-se no eixo das relações de saber/poder, um dos vetores de manutenção
de modelos regulatórios, de práticas excludentes e de discriminação. Nossas implicações éticas
nos levam a fazer apostas em uma psicologia política e emancipatória de respeito e defesa das
diferenças e seus direitos.
Sob a perspectiva de um saber criado e vinculado às demandas da contemporaneidade,
os referenciais e significados conceituais disponíveis para análise das relações humanas não se
mostram mais adequados às complexidades que enredam tais processos de produção. Nesse
sentido, as posições de sujeitos e sujeitas postas em jogo trazem problematizações acerca das
noções clássicas de sujeitos(as) e subjetividade, geradas a partir das críticas às epistemologias
colonialistas e das ontologias afeitas aos essencialismos e reducionismos. Estas tradicionais
posições criam ficções de sujeitos-padrão, de ordem social e da normalidade.
Negar as dualidades e oposições binárias advindas de certa filosofia moral e modelo
científico, operante na produção e reprodução de indivíduos padronizados em séries e os “fora
do padrão” - o objeto de estudo e intervenção psicossocial, permite que pensemos, juntamente
com Michel Foucault (1988) os movimentos de resistências que estão presentes nestas
operações, que se constituem relações de poder. Ao resgatar o processo de ativismo travesti e
trans, Keila Simpson, ativista e atual presidente da ANTRA (Associação Brasileira de Travestis
e Transexuais, criada em 2000 que surge a partir da organização do movimento social travesti
e trans desde o ano de 1992), aborda que os desafios que o movimento tem enfrentado passam
pela ressignificação destas identidades, pois os próprios termos “travesti” e “transexual” são
historicamente considerados pejorativos. Além disso, conforme afirma Simpson:
Travestis e transexuais sempre estiveram na ponta de lança dos preconceitos e das
discriminações existentes no Brasil com a população LGBT. Isso ocorre porque essa
população ostenta uma identidade de gênero diversa da imposta pelos padrões
heteronormativos, em que homem é homem e mulher é mulher, e qualquer coisa que
fuja dessa norma é encarada com estranhamento. No caso de trans, esse estranhamento
se traduz em assassinato dessa população (SIMPSON, 2015, p. 09).
Na problematização acerca das concepções de pessoas que tencionam, na proposta
apresentada, as posições teóricas e políticas acerca do objeto de estudo tradicional da
Psicologia, na intersecção com as experiências de travestilidades e transexualidades,
consideramos importante destacar as categorias de gêneros e sexualidades, em suas interfaces
com outros marcadores sociais da diferença, tais como, classes/cores, gerações e estilos de vida,
como referenciais importantes através dos quais o poder opera. Como forma de manutenção
dos sistemas de dominação, a reprodução de modelização dos gêneros e sexualidades com base
em normas regulatórias, produzem referências para identidades tidas como fixas e como parte
de uma ordem natural.
Através do controle dos corpos e dos desejos, os dispositivos de poder atuam de forma
a tomar a materialização dos gêneros, dos corpos e das sexualidades, como elemento
fundamental da experiência das pessoas. Os gêneros podem ser pensados como relacionais, “um
ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes” (BUTLER, 2003, p. 29). Ao contrário de considerar o gênero
como um substantivo, noção essencialista, deveríamos pensa-lo como efeito de discursos e
práticas que operam sobre os corpos das pessoas, como parte de estratégias de regulação dos
prazeres e de disciplinarização dos corpos. São as vias nas quais se opera a materialização do
bio-poder, efetuados em consonância com instâncias de saber que lhe garantem legitimidades
(BUTLER, 2003).
Pensar as produções de novas expressões de gêneros e sexualidades que se configuram
a partir de rupturas aos processos normatizadores, que agem sobre essas produções, garantem
importantes conexões entre novas posições conceituais de sujeitos(as), em contraposição aos
modelos naturalizantes e binários de gêneros e sexualidades. Alinhadas aos gêneros e
sexualidades, temos a produção de outras categorias como classe, raça, etnia, orientação sexual,
estética corporal, entre outras, que operam no sentido reforçar processos de discriminação,
estigmatização e marginalização, intensificadas nas experiências travestis e transexuais,
conforme discutido por Wiliam Peres (2015).
Os gêneros que borram as delimitações predeterminadas são marcados por formas de
violências e exclusão em todas as esferas do cotidiano, como operações correcionais que visam
o mesmo processo regulatório, em formas mais ou menos extremadas, dando manutenção ao
que Judith Butler (2003) denominou sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais. Indagamos
em que medida as práticas em psicologia se constituem como parte da produção de sofrimentos
psicossociais, a que são chamadas a responder, na medida em que corroboram com a reprodução
dos referidos modelos. Garantir-se-ia, dessa maneira, os terrenos de ação psicossocial
hierarquizada pela capacidade de falar pelo outro(a), que participa das ações pautadas em
quadros diagnósticos.
Falar pelo outro(a) se configura uma forma de violência que aumenta os processos de
invisibilização que pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade tanto conhecem. Sobre este
aspecto, retomamos a posição de Keila Simpson que aborda a importância da articulação com
o movimento social organizado na criação de políticas públicas para a população de travestis e
transexuais. Em material organizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2015) sobre atenção
à saúde de travestis e transexuais, Keila Simpson faz questão de destacar a importância desta
relação:
As organizações da sociedade civil têm desempenhado um papel fundamental nessas
parcerias, pois é a partir delas que se dão as contribuições para a construção dessas
políticas públicas. É sobre o trabalho de base dessas organizações que estão sendo
pensadas as políticas públicas para responder às demandas de populações específicas.
Fazer esse trabalho sem a parceria do movimento organizado seria impensável e
ineficiente (SIMPSON, 2015, p. 14).
O desafio que tem sido colocado, inicialmente é considerar estas expressões de vida
singulares, dissidentes dos padrões sociais, como sujeitos e sujeitas de direitos e que se
constroem num panorama social que historicamente promove a exclusão social. A partir deste
desafio, levar gestores e profissionais que atuam com essa população a promover ações que
levem em conta as especificidades de travestis e transexuais, no que se refere ao acesso aos
serviços ofertados, além da necessidade de ampliação dos mesmos, de modo a alinhar os
objetivos destas ações com as reivindicações colocadas pelo movimento social organizado.
Desta maneira, pode-se contribuir para a construção de políticas públicas que garantam acesso
aos direitos sem preconceito de gênero, raça/etnia, orientação sexual e práticas sexuais e
afetivas, a exemplo do debate que se insere na saúde pública (BRASIL, 2015).
Nesse sentido, é importante destacar que a Psicologia é considerada pela Associação
Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP) órgão que fornece diretrizes curriculares para os
cursos de Psicologia no Brasil, como uma das profissões da área de saúde. Sobre este aspecto,
a compreensão de saúde é ampliada, não somente ligada aos campos de atuação em saúde
(clínica, hospitais, saúde pública), mas a perspectiva de promoção de saúde deve estar presente
em outras áreas de atuação, como a educação, assistência social, jurídica, prisional,
organizacional, etc.
No que se refere às diretrizes para atuação profissional no que se refere à atenção às
pessoas trans e travestis, destacamos a Resolução 001/2018 do Conselho Federal de Psicologia
(CFP, 2018). Tal resolução, recentemente lançada, estabelece normas para a atuação para
psicólogos(as) em relação às pessoas transexuais e travestis. Dentre os diferentes artigos da
resolução, encontramos a orientação de que os(as) profissionais devem atuar segundo os
princípios éticos da profissão (CFP, 2005), contribuindo com o seu conhecimento para uma
reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais.
A partir da resolução, compreende-se que nem toda intervenção realizada pela Psicologia está
de acordo com a perspectiva ética pautada no respeito à dignidade humana exigidos pelo Código
de Ética Profissional. Por isso é necessário pensar em modos de atuação que também respondam
a tais requisitos.
5 Organização Não-Governamental da cidade de Londrina que atuou no período de 2001 a 2007, referência nos
trabalhos com prevenção, trabalho e garantia dos direitos básicos para as pessoas travestis e transexuais. As
oficinas eram realizadas por Wiliam Siqueira Peres, psicólogo e professor universitário.
para travestis e pessoas trans que já são atendidas por um dos pontos da Rede T (a Defensoria
Pública e o atendimento médico voluntário).
A proposta é que conforme a consolidação das ações propostas, elas sejam divulgas e
ofertadas a outras travestis e pessoas trans que não se encontram nestas listas, o que implica um
trabalho de busca ativa da população. Todas estas atividades, garantidas de forma voluntária,
encontram limites nos recursos humanos e materiais que dispõe, o que influencia diretamente
sua capacidade de atuação.
Entretanto, este processo em plena ação e bastante fervilhante no que diz respeito às
mobilizações geradas (em estagiários, profissionais, ativistas e participantes), tem aberto canal
para identificar, pautar, estudar estas demandas específicas. Tais atividades tem possibilitado
campos de estágio para estudantes de psicologia, com a intenção de enriquecer e contextualizar
a formação e o fazer do psicólogo, visto que, infelizmente a formação acadêmica ainda deixa a
desejar no que diz respeito a atualizar-se diante das mudanças
Considerações finais.
Ainda que seja um processo em curso, é possível perceber na prática toda a
problematização que permeia o contexto. A falta acolhimento e respeito para com a população
trans e travesti é algo que temos nos deparado de modo recorrente. Já podemos mapear, mesmo
a partir dos relatos iniciais, que a vivência de situações de transfobia são marcantes e
compartilhadas em diferentes modos e níveis pelas pessoas que procuram as atividades. Temos
observado também que os relatos de transfobia também perpassam os serviços públicos, o que
se configura um obstáculo para a efetivação dos direitos dessa população.
Nos referimos a pessoas que têm seus direitos enquanto cidadãos impedidos diariamente
de serem acessados. O descaso e abandono afeta desde as relações pessoais e familiares, as
profissionais, saúde (de maneira integral). Vemos direitos que são garantidos por lei, serem
negados simplesmente pelo fato de não estarem encaixados no padrão imposto.
Não temos ainda dados organizado e analisados, uma vez que esta experiência se
encontra em fase inicial de desenvolvimento. Não foi nosso objetivo também como este
trabalho, apresentar estes relatos, mas antes apresentar as ações em rede que tem sido
articuladas. Nosso objetivo principal foi de apresentar este processo de formação de um trabalho
em Rede, onde se articulam saberes e forças advindas de diferentes atores/atrizes da sociedade,
implicados com a luta pela garantia do acesso aos direitos de travestis e transexuais, na cidade
de Londrina. Esta articulação, resultado da urgência do debate e de responda às violências
sofridas por essa população, orienta um processo coletivo de construção e reinvindicação que
visam a criação de políticas públicas, responsabilizando o Estado pela garantia dos direitos
constitucionais.
Toda essa experiência tem sido vivenciada e foi aqui relatada, a partir do envolvimento
de estagiários de Psicologia neste percurso. Temos experimentado um campo plural e diverso,
onde as fronteiras não são estritamente definidas, e os modos de se envolver de cada estagiário,
supervisor de estágio, psicólogos(as), ativistas, se encontram transpassadas, transformadas,
transbordadas de seus papéis socialmente definidos. Apontamos a necessidade de uma
perspectiva crítica no campo da Psicologia, no sentido de posicionar-se diante do cenário de
desigualdade social e transfobia. Assim, se faz necessária a revisão não somente das práticas de
psicólogos(as) de serviços que atendem (ou deveriam atender) essa população. Mas também a
revisão dos esquemas de referência teóricos de sujeito(a), subjetividade, sexualidade, gênero,
entre outros aspectos que compõem as composições subjetivas da experiência humana,
considerando a diversidade histórico-social.
As questões éticas que atravessam este campo de estudos e práticas se tornam um dos
pontos chaves para problematizar os aspectos de formação em Psicologia, a partir da
experiência relatada neste trabalho. Respondem, de alguma forma, às orientações dos órgãos
regulamentadores da formação e atuação em Psicologia. Estas questões se colocam como
desafios à Psicologia e à formação, no sentido de resgatar seu compromisso com a
transformação social, política e emancipatória de todo ser humano (PERES, 2013).NA
formação em Psicologia deve estar comprometida com a realidade social vinculando ética e
exercício da cidadania.
Referências
ANTRA – Associação Brasileira de Travestis e Transexuais. Sobre. Disponível em:
<https://antrabrasil.org/sobre/> Acesso em: 24 de Maio de 2018.
BOCK, A.M.B. (Org). Psicologia e Compromisso Social. São Paulo: Cortez, 2003.
LANE, S.T.M. A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In:
LANE, S.T.M; CODO, W. (Orgs.). Psicologia Social: O Homem em Movimento. Brasiliense:
São Paulo, 1984.
PERES, W.S. Psicologia e políticas queer. In: FILHO, F.S.T.; PERES, W.S.; RONDINI, C.A.;
SOUZA, L.L (Orgs.). Queering: problematizações e insurgências na Psicologia
Contemporânea. Cuiabá: Ed.FMT, 2013.
PERES, W.S. Travestis brasileiras: dos estigmas à cidadania. Curitiba: Juruá, 2015
SEGRE, M.; FERRAZ, F. C. O conceito de saúde. Rev. Saúde Pública, São Paulo. V. 31, n.
5, p. 538-542, Outubro 1997. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101997000600016>
Acesso em: 24 de Maio de 2018.
Reginaldo Moreira1
Resumo
1
Docente do Departamento de Comunicação, da Universidade Estadual de Londrina (UEL); Doutor em
Comunicação; email: regismoreiraregis@gmail.com
Para esta pesquisa, a inserção do pesquisador in-mundo é que valida as verdades dos
corpos, tanto das pesquisadas, quanto do meu próprio, numa proposta contra hegemônica de
produção do saber, que a mim é um caminho possível para tornar a ciência, de fato, potente e
livre de academicismos, que se baseiam tão somente em conceitos representação, enquanto
que a proposta cartográfica busca os conceitos vivência, sendo o pesquisador também um
cartógrafo, e também, segundo Rolnik, um antropófago.
Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se
espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades do seu tempo e
que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos
possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O
cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago. (ROLNIK, 2007, p. 23)
Nós, seres vivos, estamos num processo de produção de vida e de mundo, por meio da
criação dos sentidos que damos a eles. O real vivido é validado por nós por meio das
afetações, que constituem a realidade de como pensamos, somos e agimos. Nada é estanque
na produção das vidas e dos mundos, mas processual. Não há começos e nem fins, mas
caminhos. Não há qualquer tentativa de enquadramento ou formatação do que é
intrinsicamente processual, que não perca as amálgamas, as ligações imbricadas, as conexões
diversas, o rizoma apresentado por Deleuze e Guattari.
Um rizoma não começa, nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança. A
árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...
e... e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o
verbo ser. (...) É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as
coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação
localizável que vai de uma para outra reciprocamente, mas uma direção
perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho
sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 37)
(...) É bom lembrar que “sentimental” aqui não tem nada a ver com
sentimentos e muito menos com sentimentalismo (...) O “sentimental” aqui
tem mais a ver com afeto: cartografia do afetar e do ser afetado, dos corpos
vibráteis de uma geração. Devir desses corpos. (ROLNIK, 2007, p. 231)
Cena 1: Era uma tarde de sábado, coloquei-me como voluntário para ir ajudar a fazer
o jantar no evento Unir para Trans-Formar Sul, encontro realizado na cidade de Londrina, nos
dias 14 e 15 de julho de 2017, que reuniu lideranças do ativismo TT (travestis e transexuais),
vindas dos três estados da região sul do Brasil. O encontro acontecia no Canto do MARL,
uma ocupação do Movimento dos Artistas de Londrina, localizado no norte do Paraná.
Cheguei um pouco tarde e a produção do jantar já estava bem adiantada. Coloquei-me à
disposição para fazer o que fosse preciso e antes de mais nada, me dispus a cuidar da louça
após o jantar. O grupo havia se deslocado para a Plenária Pela Igualdade Racial, que também
acontecia na cidade, para apoiar Abelha Rainha3, uma das coordenadoras do evento trans. Na
cozinha estávamos eu, Tuluia (uma travesti com mais idade), um outro rapaz (que eu não
consegui identificar se era um gay ou um trans homem) e Tito, que era o cozinheiro chef
daquele momento. Passadas as apresentações iniciais, resolvi então puxar um assunto, eu que
sou gay, mas não sou trans; oriento trabalhos de pesquisa sobre trans, mas nunca havia estado
tão junto com eles/elas, e nessa dicotomia de pertencimentos, pertencer à causa, porém de
outra forma, de um outro lugar de certa forma historicamente privilegiado; vivo na pele um
pouco de tudo o que se vive com relação à violência de gênero, porém nem perto do que os/as
trans vivem, estava eu ali, puxando um papo para quebrar o gelo e falei de uma reportagem da
Globo local, que havia me incomodado muito naquela semana, pois mascarava o crime de
homofobia cometido contra um cabeleireiro da cidade, enquadrando o assassinato como
2
Por vezes utilizarei o “x” para conjugar muitos verbos no plural, artigos, rponomes etc, que a gramática da
Língua Portuguesa determina que sejam no gênero masculino, porém parte do movimento LGBT tem se
utilizado do “x” para deixar sem gênero definido, ampliado esse leque.
3
Os nomes reais foram substituídos para preservação das identidades.
latrocínio, sem nem considerar as condições em que a vítima havia sido duramente torturada e
morta. A reportagem dizia que o cabeleireiro havia saído de um bar, localizado numa avenida
da cidade, sabidamente um bar LGBT, porém não citava esse detalhe. Depois narrava que ele
havia dado carona para dois homens, na região da Catedral da cidade, conhecidamente como
área de prostituição masculina, porém também não fazia alusão à questão dos michês. Falei
do caso com indignação, pois o crime de homofobia não era considerado nem pela polícia,
nem pelo jornalismo, que me parecia hipócrita ou mesmo homofóbico (e as questões com o
jornalismo, com “j” minúsculo mesmo, me incomoda muito, por ser jornalista e professor de
um curso que forma futuros jornalistas). Enfim, ao final da minha prosa, veio a primeira
lambada, que me descolou completamente do lugar de onde eu estava falando, quando Tito,
nosso chef, diz: - “Eu sou surfistinha! (referindo-se ao seu trabalho como michê). E não tem
mais garotos de programa fazendo ponto perto da Catedral, eles se mudaram de lá. Ali só tem
nóia. Eu sou um dos poucos que ainda faço ponto por ali, porque falei com os nóia para eles
me respeitarem, que estou precisando trabalhar. Mas pelo que você disse, ele deve ter dado
carona pros nóia”. Eu me recolhi, diante de minha fala desatualizada e de quem não vive na
pele a realidade da prostituição. Somente perguntei pra onde é que eles haviam mudado o
local de trabalho, ao que ele não soube responder. A prosa continuou sobre violência entre
clientes e michês, travestis e trans, em que eles e elas narravam as violências ocorridas, na
maioria das vezes ocasionada pelo não cumprimento dos contratos e combinados iniciais. Fui
totalmente deslocado de meu saber limitado, analítico, crítico, de quem não vivencia a
prostituição para sobreviver. Era como que Tito tivesse me dito, nas entrelinhas: - “Você está
querendo insinuar que os michês são criminosos?” Longe de mim querer dizer isso, mas era
por um triz que não havia escapado algo que pudesse ser interpretado dessa forma. A
preparação para o jantar transcorria e eu me colocava, cada vez mais, como ajudante do chef,
que gostava do papel de coordenar como tudo se daria. Fiquei responsável pelo suco, ajudei a
cortar as frutas e comprei duas caixas de bombons para sobremesa, ao que ele determinou: -
“Vai ser um bombom para cada um”. E eu, ingênuo novamente, sugeri: - “Vocês não estão em
quinze? Acho que dá para ser dois pra cada um”. Ao que ele me retrucou: - “Um para cada
um! E se sobrar, a gente dá mais um. Você não sabe quanta gente vem para o jantar?” E eu
coloquei no meu lugar rapidinho: - “Nada melhor que ouvir a voz da experiência”. A maioria
dos ingredientes do evento tinham sido doados pelo Feirão do MST (Movimento dos Sem
Terra), que havia acontecido há uma semana naquela ocupação. Dali algum tempo todos
chegaram para o jantar. As trans traziam lanches, água e refrigerantes que haviam ganhado na
Conferência Pela Igualdade Racial. Era uma rede de solidariedade. Além dos e das trans,
chegaram para o jantar muitos artistas de rua, que estavam pela cidade, apresentando-se nos
semáforos e outros espaços públicos. Era uma riqueza de sotaques argentinos, chilenos,
peruanos... Entendia a história de ser um bombom, compreendia a rede solidária que ali
vibrava e comunguei com todos num prato de comida, que comi mesmo sem estar com fome,
mas para não fazer desfeita e também não parecer que era o “nojentinho do rolê”. O ato
antropofágico do comer, ali simbolizava a devoração das redes MST, MARL, TRANS,
Ocupações, que se fundiam em mim e eu me sentia um pouco mais pertencente.
Cena 2: As louças começaram a surgir e por ali, a regra era para cada um lavar a sua,
mas eu tinha me colocado à disposição para lavar de todos. E fui para meus afazeres. Certo
momento sai da pia e quando voltei, quem estava lavando os pratos e talheres era a Abelha
Rainha (coordenadora do evento) e eu tratei logo de dizer: - “Rainha, deixe que essa função
hoje é minha e você deve estar cheia de afazeres para o Cabaré4”. Ela só me olhou e naquele
olhar, quantos processos rizomáticos se fizeram ali. Era o corpo vibrátil da Abelha Rainha
comunicando para mim: - “Agora eu entendi o que você veio fazer aqui”. Assim eu interpretei
aquele olhar, que me autorizava a entrar na pia. E o nosso projeto dentro do Observatório,
localizado no Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
que se denomina “Plataformas Digitais: A Produção Comunitária de Novas Narrativas
Alternativas ao Discurso Hegemônico, como dispositivo de Produção de Novos Sentidos”, ali,
era buchinha e sabão. Nada mais analógico, nada mais verdadeiro. Quando se está no campo,
não é somente o cartógrafo/pesquisador que está pesquisando, somos também pesquisados o
tempo todo. E essa autorização para que possamos participar da cena, vem das sutilezas, dos
deslocamentos, daquele olhar da Abelha Rainha. Aqui em Londrina (uma cidade de 600 mil
habitantes), os docentes da UEL são mapeados e ganham certa autoridade, atribuída pelas
pessoas. Isso, por vezes, prejudica um pouco o trabalho de campo. Quando há esse tom do
distanciamento, é preciso, antes de mais nada desconstruí-lo e revelar outras nuances que a
universidade tem para ofertar e receber. Há certa reclamação de pesquisas realizadas sem
nenhuma devolutiva para os coletivos, como acontece em muitos casos e muitas instituições
de ensino. Quebrar esse gelo inicial e construir uma relação horizontal de respeitabilidade,
participação e confiança, são condições para as transversalidades múltiplas dos afetos e dos
devires.
4
Após o jantar foi realizado um evento cultural, com performances, música e dança, denominado Cabaré, que
encerrou o Encontro de Trans. Betinha Bafo, por ser atriz, estava toda envolvida com essa produção.
Cena 4: Mais tarde, o Cabaré ia chegando ao fim, e Abelha Rainha veio até mim e
presenteou com um lindo calendário, ilustrado com fotos de personas da cidade, entre elas, ela
própria. Fiquei emocionado, ela me agradeceu com um beijo na testa e, ainda para saber qual
era a minha e qual meu posicionamento diante da vida, falou: - “Ah, desculpe, deixei uma
marca de batom em você. Seu marido vai achar ruim. Porque você é casado, não é mesmo?”
No que eu respondi: - “Ihhh, tranquilo, tenho namorado, mas ele está em Curitiba esses dias,
até ele chegar essa mancha de batom já saiu...” Rimos. Coraçãozinhos popularam pelos ares,
como nos emotions digitais. Trans-bordadxs em trans-versos trans-formadores. Foi lindo! Foi
intenso! Foi pura afetação!
Tal como outros grupos oprimidos da sociedade, eles entraram para a história
na precisa medida em que foram detectados, estudados e controlados pelos
Como não é difícil de imaginar, a maioria das fontes acerca dos homossexuais
masculinos não foi produzida por eles próprios. Com efeito, levando-se em
conta os inúmeros preconceitos e perseguições sofridos pelas minorias
sexuais, foram raríssimos aqueles que ousaram deixar testemunhos de próprio
punho acerca de sua condição, pelo menos até os anos 1960. (GREEN &
POLITO, 2006, p. 17)
(...) O Lampião não pretende solucionar a opressão nossa de cada dia, nem
pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte
estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o
estigma da não-reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia
hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma
minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz. (GREEN & POLITO,
2006, p. 183)
O Lampião da Esquina teve duração até o ano de 1981 e fez parte de uma imprensa
denominada alternativa e de resistência. A partir do fim da ditadura militar e da reorganização
política democrática, as potentes ações dos movimentos sociais suscitaram por um novo tipo
de comunicação, cujo conteúdo fosse realizado pelas pessoas que vivenciavam essas
transformações, para a reconstrução das cidadanias, das lutas, das leis, tendo a Constituição
Federal de 1988, como um importante marco; da criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
entre tantas importantes pautas na reconstrução da democracia, maculada pelos 20 anos de
ditadura militar.
Esse novo precariado produtivo luta para obter o “copyright” sobre sua própria
produção cultural e imagem, sabendo que o agenciamento entre as diferentes
esferas (favelas, universidades, movimentos, Estado) pode apontar para uma
rede mais ampla de parcerias produtivas e profundamente transformadora da
cultura urbana brasileira. (BENTES, 2009, p. 61)
novos sentidos”, por mim coordenado, tem como uma das frentes de trabalho, o Grupo Elity
Trans, com o objetivo de criar novas possibilidades de dizibilidades e visibilidades desta
população.
Considerações finais
Foram tantas implicações, afetações e afetos entre os corpos pesquisados, tanto trans,
cis, bi, homo, hétero, binários ou não... nesses dez meses de trabalho para criação do
programa É BADADO, KYRIDA!, tantos entremeios, transversalidades e processos, que os
corpos se somaram num só corpo: o programa de rádio web. Os grupos Elity Trans e o grupo
do Projeto de Extensão “Plataformas Digitais”, composto por militantes, professores
universitários, profissionais da área do Jornalismo, da Assistência Social, das Artes,
estudantes das áreas do Jornalismo, Relações Públicas, Psicologia, Administração e Artes
Visuais, somaram forças, com parcerias com a Rádio UEL (rádio universitária), com o
Departamento de Comunicação da UEL e com a Alma Londrina Rádio Web. O corpo vibrátil
em ato! Os processos rizomáticos vivenciados em todo processo. Meu corpo já não é mais o
mesmo, trans-formou-se. Os corpos pesquisados também já não os são. Na política dos afetos
fez-se possível a criação de novas narrativas, a partir da própria pele.
viajando num evento ligado à militância do movimento trans, enviaram um áudio generoso,
em que davam o aval para que fosse representante do coletivo ou coordenador, achando isso
indiferente e colocando-se como parte do coletivo e colocando-me como quem havia tomado
iniciativa e integrante desta história. Sim, somos todos integrantes desta história, todos
integrantes deste coletivo, mas pedi as devidas alterações no texto de divulgação. Não há
porque alguém representar xs transexuais. Não há motivo para um professor universitário
representar esse coletivo produtor de narrativa contra hegemônica da população trans. O
protagonismo deve ser todo da comunidade trans. Basta de verticalizações. Deixemos que a
população trans fale por elxs mesmxs!
Referências Bibliográficas
RESUMO
A presente reflexão tem como objetivo compreender a partir dos comentários em sites
de notícias, publicadas no ano de 2018, sobre a participação e atuação da atleta Tiffany na
superliga feminina de vôlei do Brasil. Tendo como objetivos específicos identificar o conjunto
de ideais estabelecidos em relação a binariedade nos comentários dos sites de notícias
relacionados a atleta trans Tiffany. Quantificar comentários positivos e negativos em relação a
participação da atleta trans Tiffany na superliga feminina de vôlei do Brasil e averiguar o
discurso biológico nos comentários sobre a presença em quadra da atleta trans Tiffany na
superliga feminina de vôlei do Brasil. Apesar do mundo esportivo ser constantemente
marcado pelas relações binárias de gênero tradicionalista e cheia de estigmas (CHAVES,
2015), a atleta trans Tiffany teve aprovação do COI e federações para a sua atuação no esporte
de alto nível. A sua inserção no meio esportivo foi de grande destaque nos sites de noticias
esportivas, gerando assim apoio e revolta d@s internautas. Assim foram realizados buscas em
um total de 62 sites, deles 18 obtiveram 658 comentários dentre eles comentários positivos e
negativos em relação a participação da atleta Tiffany na superliga feminina de vôlei do Brasil.
E o restante totalizando 31 sites não obtiveram nenhum comentário em relação ao assunto.
Evidenciou-se assim a partir dos comentários que a maioria das pessoas preservam
concepções binárias em relação a gênero e mostram o quão negativo entendem a participação
da atleta na superliga feminina de vôlei do Brasil.
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa; graduandx de Bacharelado em Educação Física;
isasafraider@gmail.com.
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa; mestra em Geografia; drycagelinski@gmail.com.
Introdução.
Uma atleta trans? reflexões sobre identidade de gênero, corpo e discursos nas redes
sociais.
em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-
los como momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, mas
onde uma grande proporção dessas relações, experiências e entendimentos sociais se
constroem numa escala, seja uma rua, uma região ou um continente. (MASSEY,
2000, p. 10).
Desta forma, como afirma Butler (2003), o mecanismo de gênero reforça e naturaliza
as noções de masculino e feminino. Segundo a autora, é a partir dos discursos e práticas
constantemente repetidos que a noção de gênero é concebida. Reforça que o gênero não é o
que somos em essência, mas é algo que foi produzido, reproduzido e naturalizado.
Para Butler (1990), o gênero nada mais é que uma construção e uma ordem fantasiosa
sobre os corpos. Através de repetições, gestos, contextos e práticas há a reiteração sobre a
construção de feminino e masculino, isto é, através da performatividade. Butler (2003) reforça
ainda que a materialidade corpórea está diretamente ligada aos discursos. Para a autora, o
gênero e o corpo são elaborados e interpretados, ou seja, fazem parte de uma construção.
Desta forma, a autora ressalta que o sexo não pode ser entendido como uma unidade
estática do corpo, mas sim é entendido como algo discursivo, produzidos devido às práticas
regulatórias. Sendo assim, o gênero é resultado de um mecanismo. Para Scott (1989), o
gênero está associado com as relações de poder. Este por sua vez, não está desencaixado do
contexto cultural, social, histórico, político e religioso que o elaboram e o mantém, como
afirma Butler (2003). Noutras palavras, o gênero não é algo que a pessoa é em sua essência,
mas é elaborado de maneira pré-discursiva, aberta para atuação na cultura (BUTLER, 1990).
Butler (1990, p.15) ainda afirma que:
o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido
e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura.
Pensando assim, ao evocar que uma criança antes mesmo do seu nascimento é uma
menina ou menino, há uma suposição do sexo, gênero e desejo como algo a-histórico,
antecedente da cultura, constituindo assim um pensamento binário. Butler (2003) também
afirma que esta prática faz parte de uma ordem, leia-se, é parte da norma hegemônica
heterossexual. Logo,
O que equivale dizer que o gênero é entendido como uma produção, reprodução e
expressão ou, como conceitua Butler (2003), é uma identidade constituída. Pensando assim, as
roupas ou a forma de se vestir, seguindo uma norma ou não, transforma um corpo reconhecível,
„apropriado‟ ou não (LANZ, 2014). Para a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos
serem identificados ou estigmatizados dentro de contextos específicos. Logo, a roupa não é
apenas uma vestimenta, mas faz parte da identidade da pessoa, a qual se torna uma marca para o
corpo.
O corpo, antes de qualquer coisa, está no espaço como é o espaço (Lefebvre 1991
[1974]), e este mesmo corpo vivo dotado de energias, envolto por redes de relações (BUTLER,
2015), também carrega marcas. Noutros termos, o corpo não é somente natural e fixo, mas sim
é fluido e móvel, sendo entendido e significado no tempo e espaço (SILVA E ORNAT, 2016).
Para tanto, este “corpo não apenas existe no vetor das relações, mas é o próprio vetor”
(BUTLER, 2015, p. 85). Corpo este ilimitado em suas práticas, discursos e mobilidade na
exterioridade.
O corpo está em um tempo e espaço que não controla, estando social e geograficamente
distribuídos. (SILVA E ORNAT, 2016). Desta forma, as roupas ou a forma de se vestir,
seguindo uma norma ou não, transforma um corpo reconhecível, „apropriado‟ ou não (LANZ,
2014). Para a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos serem identificados ou
estigmatizados dentro de contextos específicos Porém, algumas marcas são mais suscetíveis à
estigmatização e preconceitos como evidenciado nos comentários analisados em relação a
atleta trans. Como evidenciado nas tabelas que seguem, onde os comentários foram
analisados e separados em evocações favoráveis e não favoráveis.
Comentários a favor
Evocações Quantidade
Seu direito 10
Está dentro das regras 9
Novos tempos 6
Opinião leiga 6
Muito treino 5
Preconceito/discriminação 5
Outros 8
Comentários contra
Diante de um total de 658 comentários, evidenciou-se que 540 foram não favoráveis e
dentre eles em sua maioria são comentários relacionadas a questão binária. Evidencia-se que
há uma leitura no corpo de uma pessoa trans diretamente relacionada a genitália e a questões
biológicas. Desta forma, para Lanz (2014, p. 4) o termo transgênero pode ser entendido como
“um termo guarda-chuva„, destinado a reunir debaixo de si todas essas identidades gênero-
divergentes, ou seja, identidades que, de alguma forma e em algum grau, descumprem, ferem
e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero”.
O termo transgênero é muito abrangente, nele não cabem apenas as pessoas
transexuais (pessoas que recorrem a hormonização e/ou cirurgias), mas também pessoas que
desviam do dispositivo binário de gênero desde a utilização de acassórios “masculinos” e/ou
Ser uma pessoa transgênera é ser um não-ser. [...] significa muito mais do que
simplesmente não ter a própria existência legitimada pela sociedade e, em virtude
disso, não gozar nem de cobertura na matriz de inteligibilidade cultural nem de
cobertura jurídica para a própria existência.
físicas: aos homens atribui-se a força, razão e objetividade, bem como uma pessoa identificada
como homem é aquela que possui características físicas, órgão genital masculino, músculos,
barba; por sua vez, são identificadas como mulheres as pessoas com certos atributos „ditos‟
femininos: cabelos cumpridos, seios e os gestos. No entanto, pessoas que não correspondem às
concepções binárias e normativas de feminino e masculino, como o grupo LGBT, são colocadas à
margem, lidas como desviantes e pecadoras diante das compreensões religiosas entre outras
instituições.
Entretanto, as diferenças físicas e a genitália não definem se a pessoa é mulher ou
homem, não definem se irá seguir a linearidade sexo, gênero e desejo; a exemplo do grupo
LGBT, tal noção é empregada de forma normativa pela sociedade. Visto que “a materialidade
corpórea só adquire existência quando assumida pela existência das ações” (SILVA, J. M.,
2009, p. 35) e de acordo com suas vivências e experiências. Noutros termos, não é o fator
biológico, mas sim a construção social que “transforma fêmeas e machos humanos em mulheres
e homens ou classifica em gênero feminino ou masculino, conforme os papéis desempenhados
na sociedade” (SILVA, J. M., 2009, p. 35).
Desta forma, corpos que destoam do ideal binário de gênero exercendo as mais variadas
formas de feminilidades e/ou masculinidades estão desempenhando performances de gênero.
De acordo com Silva (2009), o ato performático de gênero não existe de maneira individual ou
isolada, mas é uma construção através das relações.
Pensar o gênero como essência natural nada mais é que reproduzir o pensamento
heteronormativo regulatório. Para Ornat (2011), influenciado pelas reflexões de Butler (2003), a
concepção de gênero é construída através de atos repetitivos ou „performances‟. Assim, é tendo
práticas, expressões e se identificando como mulher que alguém se torna mulher, independente
do sexo/genitália.
É sendo mulher que alguém se torna mulher. Nós projetamos a nós próprios nos
modelos culturais de identidade que nos são oferecidos, e é a partir dessas projeções
que criamos em nós a noção da pré-existência de uma tal identidade. Através da
socialização, internalizamos os atributos, significados, valores e expressões dos
modelos identitários que a cultura tem para nos oferecer, tornando-os parte de nós ou,
melhor ainda, nos transformando no próprio modelo que nos serviu de inspiração.
(LANZ, 2014, p. 114).
fixo para os corpos (BUTLER, 2003), mas sim são mutáveis para subverter e rearticular a lógica
normativa imposta pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo.
Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente natural nesse terreno, a começar pela
própria concepção de corpo. Através de processos culturais, definimos o que é ou não natural;
produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos
históricas.
Considerações finais.
Referências
BUTLER, Judith. Critically Queer. In Playing with Fire: Queer Politics, Queer Theories.
Ed. Shane Phelan. New York & London: Routledge.11-29, 1990.
______. Performing Space. In: MASSEY, Doreen; ALLEN, John; SARRE, Phillip. Human
Geography Today. Cambridge: Polity Press, 1999.
SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose. Corpo como espaço: Um desafio à imaginação
geográfica. 2016
1
Mestranda em Ciência Política e Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-
graduanda em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). E-mail:
silvanagomes@id.uff.br
I. Introdução
Reflexões acerca do Poder Constituinte são, de longa data, um ponto focal na Ciência
Política e no Direito. Contudo, os esforços para inseri-las em um recorte de gênero ainda têm
sido tímidos, o que acarreta, além de uma deficiência teórica, implicações práticas para as
ações políticas.
A experiência constitucional brasileira é profundamente marcada pela obliteração das
mulheres tanto da participação nos processos constituintes quanto das Cartas Políticas deles
resultantes. Somente na terceira Constituição do país (1934), promulgada na porção inicial do
primeiro governo de Getúlio Vargas, os direitos políticos deixaram de ser um privilégio
exclusivamente masculino e foram estendidos às mulheres.
O constitucionalismo e seu predicado inerente de limitação do poder governamental
impõem amarras cogentes às autoridades públicas no exercício de suas funções. Dessa forma,
simultaneamente, inserem-se mecanismos contra-majoritários no arcabouço normativo-
institucional do Estado e se diminui a margem de liberdade para que governantes e
legisladores suprimam ou restrinjam direitos.
Em geral, as Constituições contemporâneas que se proclamam democráticas e
garantistas estão assentadas em três grandes pilares: fixação de direitos fundamentais,
organização do Estado e organização dos Poderes. Para Roberto Gargarella (2014), a fixação
de direitos se encontra na parte dogmática do texto constitucional, ao passo que a organização
institucional se inscreve na parte orgânica.
O Poder Constituinte, enquanto momento histórico de expressão máxima da soberania,
tem um forte sentido fundacional ou refundacional do Estado, significando a formulação de
uma nova gramática social que passará a nortear a totalidade do ordenamento jurídico, da
atividade jurisdicional, da formulação e implementação de políticas públicas. Hanna Lerner
(2011) sintetiza estas ideias afirmando que as Constituições devem desempenhar dois papéis:
um fundacional e outro institucional.
Antonio Negri (1999) enxerga o Poder Constituinte como uma ocasião de crise e,
como tal, de embate de forças políticas. Para o autor, este ponto crítico também deve ser
interpretado como uma chave de regulação da política democrática. Disto decorre que, apesar
de ser uma manifestação circunscrita no tempo e no espaço, o Poder Constituinte e seus
efeitos persistem, em algum grau, durante todo o período de vigência da Constituição que
originou.
Neste ponto, o vasto e denso pensamento de Nancy Fraser apresenta contribuições
relevantes para este debate. Frame-setting, aqui traduzido como “estabelecimento do
enquadramento” e “subaltern counterpublics” (esferas públicas subalternas) constituem
2
Embora não se inclua no escopo deste trabalho, é preciso notar que há quem defenda que existe, sim, uma
forma de limitação ao exercício do Poder Constituinte: o respeito aos direitos humanos elencados em tratados
internacionais dos quais o Estado em questão seja signatário.
Após um momento inicial de organização nos anos 1970, com a virada para a década
de 1980, os movimentos feministas vivenciaram um processo de ampliação e diversificação
da sua estrutura e das pautas defendidas, capilarizando-se, gradativamente, rumo às
agremiações políticas.
A contemplação da agenda feminista nas instâncias legislativas não se deu em um
único momento, mas
algumas conjunturas parecem ter sido favoráveis à introdução da discussão
parlamentar sobre a questão [feminina], a qual recebeu certa atenção em três
momentos – entre 1976 e 1979, entre 1981 e 1983 e entre 1989 e 1991. Os
períodos (transição de Geisel para Figueiredo; transição de Figueiredo para
Sarney e Constituinte) correspondem a momentos de abertura política e/ou
consolidação da ordem constitucional. A Constituição de 1988 provavelmente
tenha esvaziado, no curto prazo, a discussão sobre o tema, porém sua retomada, a
partir de 1995, indica que permaneceu como uma das áreas de concentração da
V. Considerações Finais
acometeram sua elaboração, esta Carta Política pavimentou o caminho para que uma série de
avanços normativos e institucionais com recorte de gênero pudessem alcançados.
Contudo, em boa medida, é possível identificar um nexo de causalidade entre as
dificuldades enfrentadas para promover pautas atuais como os direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres quando estas foram eclipsadas do próprio momento histórico de fixação das
balizas constitucionais.
Ainda que a ocupação feminina efetiva dos centros de poder seja a melhor via pela
qual as mulheres possam participar do estabelecimento do enquadramento, é igualmente
necessário que se construa uma teoria feminista do Poder Constituinte que suplante as práticas
políticas que venham a ser empreendidas.
Neste sentido, dois elementos são especialmente relevantes: a inserção de mulheres no
núcleo de comando do Poder Constituinte e a participação paritária institucional. Conforme
defendemos, o próprio ato convocatório da Assembleia Nacional Constituinte deve conter
normas que determinem e disciplinem uma representação equilibrada entre gêneros.
Em um contexto de fragilidade das instituições e da própria democracia como o
experimentado hodiernamente, a já elevada vulnerabilidade social das mulheres torna-se ainda
mais pungente. Com isto, um dos principais desafios a serem enfrentados reside na ampliação
da ocupação feminina da esfera pública para além daquelas de natureza subalterna.
A articulação entre instituições, justiça social, representação e atividade política sob a
perspectiva de gênero é essencial para a reconstrução do ethos democrático da sociedade
brasileira.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – fatos e mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.
CASTRO, Susana de. Nancy Fraser e a Teoria de Justiça na Contemporaneidade. In: Revista
Redescrições, nº 2. Rio de Janeiro, 2010.
FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: a contribution to the critique of actually
existing democracy. In: Social Text, nº 25/26. Durham: Duke University Press, 1990.
LEBON, Nathalie. Popular Feminism at Work: redistribution and recognition in the Marcha
Mundial das Mulheres in Brazil. In: BETANCES, Emelio; IBARRA, Carlos Figueroa.
Popular Sovereignty and Constituent Power in Latin America – democracy from below.
Londres: Palgrave Macmillan, 2016.
NEGRI, Antonio. Insurgencies, Constituent Power and the Modern State. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1999.
SARTI, Cynthia Andersen. O Feminismo Brasileiro desde os Anos 1970: revisitando uma
trajetória. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio/agosto 2004.
1
Procuradora Federal; bacharel e licenciada em História, Usp 1990; bacharel em Direito Ufsc 2004. Mestranda do
curso de Ciências Sociais da Uel 2016/18.
Introdução
Este trabalho é parte integrante de pesquisa que está sendo desenvolvida no contexto
de estudos para elaboração de dissertação de mestrado a ser defendida no programa de pós-
graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Durante a análise dos discursos parlamentares sobre as propostas de emenda
constitucional (Emenda aglutinativa n. 57 da PEC 182/07 e PEC 134/2015) que veiculam
projetos de reserva de cadeiras nos parlamentos, em todos os níveis da federação (exceto
Senado Federal), verificou-se que tanto contrários quanto favoráveis à existência de cotas de
sexo /gênero invocavam o princípio constitucional da igualdade para fundamentar a validade
de seus argumentos.
Inicialmente, apenas para fins de registro, faremos algumas observações sobre a
controvérsia sobre se as cotas previstas seriam para o sexo ou para o gênero.
Por ocasião da discussão da PEC 134/15 na Comissão de Constituição e Justiça, o
Deputado Evandro Gussi (PV/SP) apresentou voto em separado contra o acolhimento da PEC,
invocando, além do argumento da violação ao princípio da igualdade, a inconstitucionalidade
do projeto em razão da incompatibilidade entre os conceitos de sexo/gênero. Segundo o
parlamentar, a Constituição Federal ignora o que vem a ser a palavra “gênero”, o que poderia
causar uma distorção ainda maior na exigência da equivalência entre os votos conferidos,
constitucionalmente estabelecida no Art. 14, caput, da CF/88. Afirma o Deputado que a
Constituição Federal, quando quer distinguir homens de mulheres, vale-se exclusivamente da
palavra sexo, conforme é possível inferir dos regramentos constantes dos comandos
constitucionais presentes nos arts. 3º, inciso IV, 5º, inciso XLVIII, 7º, inciso XXX e 201, §7º,
inciso II. Como a proposição acrescenta art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias para reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias
Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais, nas 3 (três)
legislaturas subsequentes, manifestou seu voto pela inadmissibilidade e consequente
inconstitucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional nº 134, de 2015, como também
das Propostas de Emenda à Constituição nº 205, de 2007, e nº 371, de 2013, apensadas.
Ocorre que o argumento apresentado pelo deputado Evandro Gussi foi debatido e
decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, ao responder uma consulta2 formulada
pela senadora Fátima Bezerra (PT-RN), decidiu que candidatos transgêneros poderão utilizar o
nome social na urna a partir das eleições de 2018. O relator do caso destacou a necessidade de
2
Consulta 060293392 TSE.
3
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085 . Acesso em 11.
03.18
4
A decisão do STF foi aprovada por dez votos a zero e responde a duas ações distintas, agregadas em 2017 no
mesmo processo. Ela vai além dos pedidos originais, que usavam a palavra “transexual”, e adota “transgênero”
como um termo guarda-chuva amplo, que se refere a pessoas que se identificam com um gênero diferente do que
lhes foi atribuído ao nascer. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/02/STF-permite-a-
trans-mudarem-nome-e-g%C3%AAnero-direto-no-cart%C3%B3rio. Acesso 11.03.18
5
One man, one vote: o peso do voto de cada cidadão deve ser o mesmo. Ocorre que esta regra é relativizada nas
eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados (art. 45, § 1º, CF). Esse artigo coloca os limites mínimo e
máximo dos deputados federais por Estado. Os deputados representam a população, por isso, estados com maior
número de habitantes, por óbvio, terão maior número de deputados. No entanto, a CF coloca o limite mínimo de
8 e máximo de 70. Se fosse considerada a proporcionalidade estrita, a partir do número real de habitantes de cada
Estado, ocorreria que estados mais populosos – como São Paulo e Minas Gerais – teriam uma super-representação,
com capacidade superlativa de impor seus interesses aos demais entes políticos. Em algum medida, a
proporcionalidade que decorre do voto na legenda ou coligação também cria um desequilíbrio de valor de cada
voto, na medida em que candidatas(os) mais votadas(os) podem deixar de ser eleitos, em favor de outros menos
votados, mas que se beneficiaram do quociente partidário.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
a. a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que
singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a
ser colhido pelo regime peculiar;
b. o traço diferencial adotado necessariamente há de residir na pessoa, coisa
ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exista nelas
mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes.
(10, 12 e 16%), ao longo das próximas três legislaturas, após a aprovação da emenda
constitucional;
b. não se destina a instituir uma situação definitiva, mas sim uma regra que vigorará
por três legislaturas após a aprovação, criando uma espécie de “regra de transição” que
venha a assegurar a presença de mulheres nas casas legislativas e, a partir daí, crie
condições concretas de respeito à isonomia, condições estas capazes de se
reproduzirem a partir da dinâmica própria do exercício do poder político;
c. o traço diferencial – extrema dificuldade de acesso das mulheres aos cargos de
representação política – está comprovadamente presente na vida social, como
demonstram os inúmeros estudos e dados estatísticos oficiais6.
6
Nas eleições municipais de 2016, em 23% dos municípios brasileiros não houve a eleição de mulheres nas
Câmaras de Vereadores. Este percentual de cidades sem mulheres em cargos eletivos parlamentares é praticamente
o mesmo que o registrado nas eleições de 2012, assim como a proporção de mulheres eleitas para o cargo, que
também se manteve. Em 2016, 13,5% dos eleitos são mulheres – ou 7,8 mil de 57,8 mil candidatos. Em 2012, o
percentual foi de 13,3% – 7,7 mil de 57,4 mil candidatos. Informação disponível em
http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/blog/eleicao-2016-em-numeros/post/23-das-cidades-do-pais-nao-
terao-nenhuma-mulher-na-camara.html . As estatísticas mostram que 14 das 27 unidades federativas brasileiras
não contam com representação de mulheres no Senado Federal. Na Câmara de Deputados, nesta legislatura (eleição
2014), cinco estados não têm nenhuma mulher entre seus representantes. Informação disponível em
https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livreto-mais-mulheres-
na-politica.
Embora o argumento de que os votos de todos os cidadãos devem ter o mesmo peso
seja válido do ponto de vista filosófico, moral e político, na prática a própria Constituição
Federal prevê institutos - como o voto proporcional e as diretrizes do princípio federativo - que
se utilizam de técnicas de ponderação para evitar desequilíbrios que possam ser causados
quando são considerados números absolutos. Exemplo claro é a previsão de limites mínimo e
máximo de deputados de cada Estado na Câmara Federal.
No Congresso Nacional, Estados e Distrito Federal estão representados no Senado, em
igualdade numérica. Três representantes por ente federativo. Já a população de cada Estado está
representada na Câmara dos Deputados. Em tese, cada parlamentar representa uma quantidade
de pessoas / cidadãos, com uma relação de proporcionalidade entre a população e o número de
parlamentares na Câmara Federal. Mas, ao prever limite de piso e teto no número de deputados
(Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema
proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. § 1º O número total
de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido
por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários,
no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos
de oito ou mais de setenta Deputados) esta relação objetiva e direta entre número de pessoas e
quantidade de representantes se perde.
Com um número mínimo e um máximo de representantes para cada Estado, esta
relação de proporcionalidade entre representantes/representados passa a não ser numérica e
objetiva. De acordo com a norma constitucional, nenhum Estado pode ter menos de 8 nem mais
de 70 representantes na Câmara dos Deputados. Os casos de São Paulo e Roraima, que estão
nos extremos, exemplificam esta quebra de proporcionalidade. A título de exemplo, temos o
mais e o menos votados nas eleições 2014 para Deputado Federal, em Roraima e em São Paulo:
Eleitos em São Paulo: Celso Russomano (1.524.361 votos) e Fausto Pinato (22.097 votos)
de São Paulo, o único que, para ser corretamente representado, deveria contar
com mais de setenta deputados federais ou a diminuição do piso de
representação dos Estados, o que implicaria um resultado de mais difícil
realização, do ponto de vista prático (em face da realidade política), qual seja,
a diminuição da representação de sete estados - Roraima, Amapá, Acre,
Tocantins, Rondônia, Sergipe e Mato Grosso do Sul – e do Distrito Federal.
Essa expressão – voto com valor igual para todos, constante do art. 14 – é
mais do que a simples relação de igualdade de voto entre eleitores. Ela, além
do princípio do one man, one vote, traz a ideia da igualdade regional da
representação, segundo a qual cada eleito, no País, deve corresponder o
mesmo número ou um número aproximado de habitantes. Contraria a regra do
valor igual o fato de que um voto, por exemplo, no Acre, vale cerca de vinte
vezes mais do que um voto em São Paulo...
7
A teoria de Robert Alexy tem complexidade que não cabe aqui abordar; para os objetivos deste trabalho, basta
considerar que regras e princípios são subespécies de normas. Ambos são normas porque dizem o que deve ser
(estão num plano deontológico e podem exprimir ordem, permissão ou proibição). O ponto fundamental para a
distinção entre regras e princípios é que as primeiras obedecem a um funcionamento do tipo tudo ou nada,
enquanto que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes, sendo assim considerados comandos de otimização. A aplicação de
um princípio não deve ter como consequência a inobservância total de outros que se devem ser aplicados ao caso
concreto.
que o voto de outro cidadão ou cidadã” e será inconstitucional “qualquer critério que institua
uma modalidade de ‘peso’”, pois violará o princípio da igualdade do voto.
Com todo respeito ao acadêmico, ousamos discordar de tais afirmações. Retomando-
se o conceito de princípio como comando de otimização, assinala-se que a igualdade de voto é
um parâmetro, um objetivo a ser perseguido pelo sistema eleitoral, mas não é, de fato, uma
realidade aritmética. Exemplo é o caso da fixação de limites mínimo e máximo de Deputados
na Câmara Federal. Caso não fossem adotados, muito provavelmente a população de alguns
Estados não teria condição de exercer qualquer influência na construção do arcabouço
legislativo nacional, considerando a quantidade irrisória de votos que teriam no plenário da
Câmara.
Ao fixar o limite mínimo de 8 e máximo de 70 representantes na Câmara Federal o
constituinte originário reconheceu que existem desigualdades entre os estados por questões
históricas, geográficas, econômicas, sociológicas, etc. Decidiu, desta forma, criar critérios que
levaram em conta esta desigualdade fática e criaram mecanismos jurídico-constitucionais para
otimizar a realização do princípio federativo, que pressupõe a igualdade e não hierarquia entre
os entes políticos. O mesmo raciocínio lógico-jurídico pode ser empregado na defesa das cotas
parlamentares de gênero para reserva de cadeiras de representação.
Considerações Finais
Dois aspectos supostamente contraditórios estão presentes no contexto constitucional
brasileiro, no que diz respeito ao sistema eleitoral e ao sistema político que dele resulta: de um
lado, a centralidade que a ordem jurídico-constitucional brasileira confere ao princípio da
igualdade de voto – a manifestação político-eleitoral de um cidadão ou cidadã não pode ter um
peso superior à manifestação político eleitoral de outra pessoa - e de outro a fórmula adotada
pela própria Constituição para determinar o piso e o teto da representação das unidades
federadas do Brasil na Câmara dos Deputados, que importaria, em termos estritamente
numéricos, desrespeito a esse mesmo princípio da igualdade do voto.
No entanto, como foi observado acima, para a preservação da forma federativa de
Estado (cláusula pétrea de nossa constituição) é necessário que se encontrem mecanismos de
equilíbrio entre o poder político dos diferentes entes políticos, limitando-se a representação
parlamentar em patamares mínimo e máximo. A efetivação do princípio constitucional da
igualdade exige a adoção de práticas e políticas públicas que estão para muito além de uma
proporcionalidade numérica ou meramente "objetiva". Para a construção da justiça são
necessárias ponderações de ordem fática, com exame de dados de realidade.
Referências
AMORIM, Letícia B. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy.
Disponível em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/165/ril_v42_n165_p123.pdf
Acesso em 27/05/18
SILVA, José A. da. Curso de direito constitucional positivo. SP: Malheiros, 2012. 35ª ed.
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL – RORAIMA. Resultado da votação – eleitos.
Disponível em http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-rr-candidatos-eleitos-1o-turno
Acesso 12/04/18
Silvana Gomes1
Marcos Sepúlveda2
Barbara Botassio3
1
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF); E-mail:
silvana.sn.gomes@gmail.com
2
Mestrando em Ciência Política pela UFF; E-mail: marcosaraujoba@gmail.com
3
Mestra em Ciência Política pela UFSCar, doutoranda pela UFSCar; E-mail: barbara.botassio@gmail.com
Introdução
Passados aproximadamente 111 anos desde a Proclamação da República, somente em
2010 foi eleita a primeira presidenta do Brasil. Os motivos deste longo interstício ainda são
objeto de bastante investigação. Assim, este trabalho tem como objetivo elucidar algumas das
variantes que ocasionam a limitação da representação feminina no Congresso Nacional.
Em um primeiro momento, será exposta uma formulação hipotética sobre o
procedimento político adequado para um país. Nesse sentido, esse trabalho expõe inicialmente
os dois princípios de justiça de Rawls (2011) para então questionar com base nos números da
pesquisa do IBGE (2018) inter alia sobre a participação das mulheres na política. Da mesma
forma, é de grande valia a pesquisa realizada por Almeida (2015), que pode esclarecer alguns
pontos obscuros sobre quais motivos acarretam os referidos resultados.
Logo, incorre analisar as iniciativas por meio de atividade legiferante, outrossim de
algumas pesquisas realizadas pelos próprios órgãos legislativos federais. É interessante nesse
segundo momento observar a efetividade das normas no cenário brasileiro, em especial após a
instituição de cotas de gênero nos partidos políticos a partir de uma alteração na legislação
eleitoral. Da mesma forma, almeja-se jogar luz sobre os resultados produzidos em virtude de
tais ações institucionais.
Dessarte, é analisada a disputa intrapartidária entre dois dos principais partidos
políticos no Brasil: PT e PMDB. A este respeito, analisa-se como esta representação é posta
institucionalmente nos referidos partidos, bem como os resultados tanto para o partido quanto
para o sistema político brasileiro.
Representação
Atualmente, segundo dados do IBGE (2018), 10,5% da Câmara dos Deputados é
composta por mulheres, enquanto no Senado este percentual é da ordem de 16%. Em virtude
desta enorme inequidade, o Brasil atualmente ocupa a 152º posição em proporção de gênero
em representação nacional, sendo o último na América do Sul (IBGE, 2018). Diante disso, é
necessário fazer algumas considerações sobre uma representação adequada.
De acordo com Rawls (2016), é necessário que, em um país, seja estabelecido
procedimento político, legislativo inter alia que seja apropriado, tendo em conta que as
normas acordadas devem ser elaboradas desconhecendo suas características pessoais,
inclusive de renda, etc.
Para Rawls,
associada, mais o homem é visto como mais adequado e preparado para aquele cargo –
certamente uma das variantes de explicações sobre o porquê do longo interstício para ser
eleita a primeira presidenta brasileira em 2010. Outrossim, como esclarece Torquato (2014,
p.199):
[...] a mulher opta pelo valor da proximidade (física e psicológica) e
identificação. Ou seja, ela sente-se mais confortável em votar em um
candidato do seu sexo pela identificação de valores. As mulheres mais
pobres e menos instruídas, contudo, tendem a votar em candidatos do sexo
masculino, o que não deixa de revelar traços de subordinação e exploração.
Requer destacar que tanto Torquato (2014) quanto Almeida (2015) defendem, como
via hábil a aumentar a participação da mulher na política e na ocupação dos espaços, o
aumento do nível educacional e de renda. Sobre isso, é importante provocar alguns
questionamentos: no processo político, o aspecto econômico é, muitas vezes, determinante
para o desempenho eleitoral. Se por um lado há financiamento público de campanha, através
dos fundos partidários, há equidade de como os partidos distribuem esses recursos, em
especial para possíveis novos representantes em detrimento daqueles que estão hoje no
exercício do cargo?
Já as doações de campanhas e o autofinanciamento mostram-se naturalmente
limitados. Em primeiro lugar, pelo pensamento arcaico, retrógrado e conservador da
sociedade brasileira, o que inviabiliza inovações dos atores políticos. Por outro lado, se as
mulheres possuem menor renda e poder aquisitivo que os homens, como então financiar as
campanhas eleitorais femininas?
Oportuna é essa provocação tendo em vista as próximas seções desse trabalho, que
analisarão o desenvolvimento institucional e a efetividade das iniciativas para combater essa
assimetria na representação nacional entre os gêneros nos últimos anos.
seção, tem-se como objetivo mapear iniciativas que se proponham a superar tais obstáculos
nos planos normativo e institucional, neste último caso, focalizando o Congresso Nacional.
No âmbito do Congresso, em fevereiro de 2016, instituiu-se a Frente Parlamentar
Mista em Defesa dos Direitos Humanos das Mulheres, atualmente presidida por Ana Perugini
(deputada federal eleita pelo Partido dos Trabalhadores/São Paulo) e composta por 206
deputados federais e 5 senadores. Adicionalmente, também está em funcionamento a
Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher, sob a presidência da
deputada federal Elcione Barbalho (Movimento Democrático Brasileiro/Pará).
Na Câmara de Deputados, para além da existência da Comissão Permanente de Defesa
dos Direitos da Mulher, a Resolução nº 31/2013 alterou o regimento interno da Casa para
incluir as disposições pertinentes à criação da Secretaria da Mulher, composta pela
Procuradoria da Mulher e pela Coordenadoria dos Direitos da Mulher.
Esta Secretaria, que possui forte articulação com a Bancada Feminina, tem como
missão a prestação de serviços de apoio às parlamentares, sobretudo (i) acompanhamento
legislativo, (ii) assessoria jurídica e recebimento de denúncias, (iii) promoção da imagem e da
atuação da mulher na Câmara de Deputados e (iv) realização de eventos e audiências.
No Senado Federal, destacam-se dois órgãos: o Observatório da Mulher contra a
Violência e a Procuradoria Especial da Mulher. Além disto, o Instituto de Pesquisa
DataSenado vem conduzindo investigações relevantes para a produção de conhecimento em
matérias legislativa e eleitoral a partir de um recorte de gênero.
Em 2014, a Procuradoria Especial da Mulher divulgou uma pesquisa de opinião
intitulada “Mulheres na Política”, tendo em vista a realização de eleições gerais naquele ano.
Os resultados da pesquisa evidenciam, sobremaneira, as distorções presentes na prática
política brasileira sob uma perspectiva de gênero. A metodologia adotada pelo DataSenado
abrangeu a realização de entrevistas telefônicas com 1091 cidadãos que contassem com mais
de 16 anos em todas as unidades da federação.
Alguns pontos endereçados pela pesquisa são especialmente relevantes para os
propósitos da discussão desenvolvida no presente artigo. Em primeiro lugar, quando
questionados se “na hora de escolher alguém para votar, o sexo do candidato faz diferença
para você?”, 83% dos indivíduos entrevistados disseram que não, ao passo que somente 12%
afirmaram que sim. Além disso, quando indagados se já haviam votado em alguma mulher
para ocupar um cargo político, 79% assinalaram que sim, enquanto 20% indicaram que não e
1% não soube responder.
exercentes de mandatos eletivos. Tal constatação está relacionada com a existência de fraudes
praticadas pelos partidos que têm como efeito mais pernicioso a distorção dos mecanismos de
promoção da igualdade de gênero em termos de participação política.
De modo geral, tais fraudes têm como intuito burlar a determinação legal da cota
mínima de gênero. Com isto, o Tribunal, em conjunto com o Ministério Público Eleitoral, tem
investigado diversas condutas que caracterizam a indicação de “candidatas-laranja”.
O estopim para estas apurações deu-se com a verificação de que, no pleito de 2016 4,
um número superior a 16 mil candidatos não recebeu um voto sequer, ou seja, nem mesmo os
candidatos votaram em si próprios, o que é digno de estranheza.
Entretanto, um dado ainda mais alarmante – e que foi descoberto em uma etapa
posterior – veio à tona no curso das investigações: 14.417, dentre os mais de 16 mil citados
acima, eram mulheres. Para o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral,
esta circunstância excepcional apontava para a existências de “candidaturas-fantasma”, em
que, não raro, as próprias mulheres que haviam sido registradas enquanto candidatas perante a
Justiça Eleitoral estavam cientes disto.
A despeito da intenção dos legisladores quando da inserção da cláusula de cota
mínima de gênero na norma de regência das eleições, na prática, as agremiações políticas
acabaram por deturpar a aplicação do instituto com dois propósitos: (i) simular o
cumprimento do preceito legal e (ii) esquivar-se das sanções que decorreriam da constatação
de seu descumprimento.
Em 2016, a Procuradoria da Mulher promoveu nova pesquisa de opinião pública com
o objetivo de identificar as principais razões que conduzem à sub-representação política
feminina. Por ocasião deste estudo, apurou-se que 37% das mulheres afirmaram sofrer
discriminação no ambiente político em virtude do seu gênero.
Mais uma vez, resta claro que as políticas de fomento ao engajamento político
feminino não podem se exaurir na conquista de normas, mecanismos e estruturas
institucionais que proclamem assegurar formalmente os direitos políticos titularizados pelas
mulheres. A este respeito, Herrera Flores (2009) muito precisamente adverte que, sob uma
ótica emancipatória, a luta por direitos não deve se esgotar com o alcance de marcos legais,
posto que estes são insuficientes para imprimir efetividade às demandas dos atores
sociopolíticos. Desse modo, é pertinente analisar como a disputa entre os gêneros é ocorrida
no sistema intrapartidário de dois partidos: PT e PMDB.
4
Vale mencionar que as eleições de 2016 não foram gerais, mas locais. Dessa forma, foram sufragados somente
os cargos de prefeito e vereador.
5
Essa tendência é conhecida como “Lei de Michels” ou “Lei de Ferro da Oligarquia”.
direta, em que seus filiados podem escolher os membros da cúpula nacional. Desde 1993, o
partido adota uma política de cotas de 30% para representantes femininas.
6
15 diretórios e 16 executivas analisadas.
7
8 diretórios e 16 comissões executivas analisadas.
composições
Moda 1 1
Mediana 2 1
Fonte: Leveguen, Castro e Ribeiro (2017)
Considerações Finais
As práticas de representação, enquanto dimensão necessária da democracia e da justiça
social, são permeadas por distorções que, no limite, afastam, limitam ou obstaculizam a
participação de mulheres nas esferas públicas e nas instâncias de poder político.
Os diversos óbices que se impõem ao engajamento feminino na atividade política, para
além de serem historicamente sedimentados, apresentam naturezas distintas. Assim, aspectos
sociais, econômicos, normativos e institucionais colocam-se no caminho daquelas que
desejam integrar os centros de poder decisório do Estado.
Os princípios de justiça de Rawls são bons guias para que se possa reformar o arranjo
político altamente sexista e excludente vivenciado no Brasil. Ainda que medidas visando à
promoção da igualdade entre homens e mulheres tenham sido empreendidas nas últimas três
décadas, é preciso voltar os olhos para o plano da efetividade.
Conforme se expôs ao longo do desenvolvimento deste trabalho, as dificuldades de
participação e representação enfrentadas pelas mulheres são diversas e se manifestam
inclusive no âmbito dos partidos políticos aos quais são filiadas, o que é evidenciado pela
baixa proporção feminina em órgãos de cúpula das agremiações.
A promoção das pautas e reivindicações das mulheres na esfera pública depende, em
grande medida, do redimensionamento de sua representação no Congresso Nacional. Para
tanto, é fundamental que se altere a visão formalista predominante da democracia para uma
perspectiva substantiva que esteja ancorada no tecido social e comprometida com a superação
dos obstáculos à participação política feminina.
Referências
AMARAL, O. “O que sabemos sobre a organização dos partidos políticos: uma avaliação de
100 anos de literatura.” Revista Debates, Porto Alegre, v.7, p. 11-32, 2013.
TORQUATO, Gaudêncio. Novo manual de marketing político. São Paulo: Summus, 2014.
1
Artigo apresentado à disciplina isolada “Direito ao Desenvolvimento, Humanismo e Fraternidade”, do
Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe.
2
Universidade Tiradentes; Mestranda em Direitos Humanos – UNIT; Bolsista CAPES/FAPITEC;
leticia.rocha.aju@gmail.com
Introdução
Ao realizar qualquer pesquisa, ainda que bibliográfica, é necessário observar e
compreender o contexto social e político de onde se fala. No caso do Brasil, entender em que
medida a situação do país influencia no tema sob análise é crucial para fazer uma crítica
fundamentada e evitar discussões vazias.
Especialmente falando sob a perspectiva das ditas minorias, o que se evidencia é um
quadro político de retrocessos nos direitos sociais, a crise de uma democracia que sequer foi
consolidada e uma perseguição (com fundamentos questionáveis) à chamada “ideologia de
gênero”.
Para trazer elementos da teoria, será estudado o gênero enquanto categoria de
análise, compreendendo de que forma seu conceito vem sendo formulado e reestruturado ao
longo do tempo por biólogas, sociólogas e filósofas. A partir disso, será questionada a reação
social que ocorre quando o indivíduo foge dos moldes pré-estabelecidos na perspectiva de
gênero, as possibilidades que esse sujeito tem e os condicionamentos que sofre ao longo da
sua vida.
Esses elementos serão relacionados ao direito ao desenvolvimento na medida que o
cerceamento das liberdades é central na ideia desenvolvida por Amartya Sen. Dessa forma,
será estudada a perspectiva do autor e as mudanças na condição das mulheres, individual e
coletivamente, entendendo que o pessoal é político.
Desenvolvimento
Apesar de, na teoria, haver grande flexibilidade sobre essas questões, na vida prática
há uma grande dificuldade em compreender as diversas formas como as pessoas podem ser e
se expressar. Esta inclusive é a motivação para que as teorias feministas e os estudos de
gênero também sejam dotados de caráter militante, para os quais não basta a pesquisa e a
constatação da realidade existente, mas deve haver um estímulo à propagação dessas ideias, a
fim de gerar mudanças culturais.
Como meio de normatização e controle, existem padrões estabelecidos de formas e
comportamentos, determinações sobre o que é “coisa de homem” e “coisa de mulher”, tão
naturalizadas que parecem biológicas – o que já foi enunciado pela teoria dos papéis sociais.
Isso se evidencia quando se fala sobre direito à cidade, inclusive sobre como esses
corpos, de homens ou mulheres, devem se apresentar e se comportar em sociedade. Há uma
expectativa (e mesmo uma cobrança) social para que os homens sejam fortes, racionais e
provedores e para que as mulheres sejam frágeis, sensíveis e alvo de proteção. São narrativas
que vêm de longe e acabam condicionando e aprisionando não apenas as mulheres, mas
também os homens.
Por este breve panorama, nota-se que esse conceito pouco tem a ver com a temida
“ideologia de gênero”. Depois da passagem de Judith Butler pelo Brasil e das agressões
sofridas por ela nesse contexto, a autora escreveu que a “teoria da performatividade de gênero
busca entender a formação de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um
direito e uma liberdade fundamental. Não é uma ‘ideologia’.” (BUTLER, 2017b, p. 1).
Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório
quanto dogmático, algo que "tomou conta" do pensamento das pessoas de uma maneira
acrítica. Essa definição se distancia da perspectiva da autora, já que seu ponto de vista
é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adotam como
certas em seu cotidiano, e as premissas que os serviços médicos e sociais
adotam em relação ao que deve ser visto como uma família ou considerado
uma vida patológica ou anormal. (BUTLER, 2017b, p. 1)
Como foi dito, a existência de padrões de gênero não apenas cria padrões de
comportamento, mas também lança para o campo da invisibilidade ou marginalização formas
diversas de expressão de gênero.
Em relação aos homens, tem-se a ideia, por exemplo, de que não podem exagerar no
cuidado da aparência ou na sensibilidade – afinal, delicadeza é uma característica feminina.
Então, a partir do momento em que um homem destoa do que é esperado para o seu gênero,
está fugindo de um molde que estava pronto antes mesmo do seu nascimento.
Frequentemente o desvio desses padrões é relacionado à sexualidade do indivíduo,
corroborando a ultrapassada ideia de que homossexuais buscam se parecer com pessoas do
gênero oposto. Como se todos os homens gays fossem “afeminados” e todas as mulheres
lésbicas fossem “masculinizadas”. Ou até mesmo quando são alvo de suposições relativas à
sua sexualidade por se encaixarem em determinados estereótipos – e esses fatores acabam por
limitar suas opções de desenvolvimento e cercear sua liberdade.
Esses padrões estabelecidos geram condicionamentos e limitam possibilidades.
Condicionam as pessoas, que desde crianças escutam coisas como “chorar é coisa de menina”
ou “futebol é coisa de menino”, fazendo com que elas saibam desde cedo quais lugares devem
ocupar.
Ainda na infância, enquanto muitas meninas brincam com bonecas e utensílios de
cozinha, como se devessem aprender apenas sobre maternidade e serviços domésticos, muitos
meninos brincam com carrinhos e jogos, que estimulam a independência e o raciocínio lógico.
Pode parecer algo simples, mas é notável a influência de tudo isto ao decorrer da vida de
homens e mulheres e no aprimoramento de suas habilidades.
Apesar de esses padrões de comportamento e estereótipos atingirem tanto homens
quanto mulheres, os condicionamentos que as pessoas enfrentam ao se tratar do gênero
alcançam profundamente as mulheres por limitarem suas liberdades e acarretarem diversos
tipos de violência – até a morte. Como se verá adiante, o cerceamento da liberdade atinge
diversos âmbitos da vida da pessoa e limita o pleno exercício do direito ao desenvolvimento.
de agente” (SEN, 2010, p. 10), sendo a liberdade humana o seu objetivo supremo. Essa
perspectiva sugere uma análise integrada das perspectivas econômica, social e política,
enxergando os indivíduos como agentes ativos de mudança.
Trata-se de uma proposta para enxergar o mundo e seu desenvolvimento para além
do mero desenvolvimento econômico. Não por este não ser importante, mas sim porque ele é
relativo e é apenas um dos aspectos importantes para o desenvolvimento, que “tem de estar
relacionado sobretudo com a melhora da vida que levamos e da liberdade que desfrutamos”
(SEN, 2010, p. 28).
Partindo dessa análise, consequentemente ao desenvolvimento econômico o
indivíduo deve possuir uma autonomia para tomar decisões e exercer direitos, que muitas
vezes a ausência de recursos financeiros não permite. No entanto, o desenvolvimento pode ser
alcançado através da utilização de instrumentos que refletem a liberdade de escolha a pessoa
que tem oportunidades de conduzir a sua vida de acordo seus interesses e necessidades.
Assim, Sen (2010) coloca cinco liberdades instrumentais como elementares para o
direito ao desenvolvimento, quais sejam: (i) liberdades políticas; (ii) facilidades econômicas;
(iii) oportunidades sociais; (iv) garantia de transparência; e (v) segurança protetora. Cumpre
aqui mencionar que, observando de forma pormenorizada cada um desses instrumentos, há
uma interligação entre eles, a ponto de verificar a sua indissociabilidade, ou seja, coexistem
em um mesmo plano empírico.
Reitera essa colocação que o direito ao desenvolvimento em si não está adstrito a
riqueza, ou simplesmente desenvolvimento econômico e que, de forma inversa, não restringe-
se o baixo desenvolvimento à predominância da pobreza. Assim, as liberdades instrumentais
corroboram que há uma estrutura interligada ao ser humano no âmbito social que o permite
dialogar com as diversas vertentes sociais, tendo uma razoável participação em todas elas.
Essa perspectiva traz uma reflexão extremamente diversa do que se costuma
compreender como desenvolvimento, no sentido de observar, por exemplo, o que o senso
comum entende ser uma nação desenvolvida, que rapidamente é respondida como aquela que
possui um elevado desenvolvimento tecnológico, com aspectos mais urbanizados, um forte
desenvolvimento industrial, em suma, retrata aspectos de desenvolvimento econômico.
Porém, não são analisados pontos essenciais de toda uma estrutura social, que nesses
exemplos citados, retratam a concentração de riqueza e uma preocupação majoritária a
respeito do desenvolvimento econômico, que frequentemente é resultante de reiteradas
privações de liberdade.
Corrobora tal viés o fato de que, como bem se posiciona Amartya Sen (2010), é
melhor ser pobre em um país com baixo desenvolvimento econômico do que classe média em
um país com maior desenvolvimento econômico. Exatamente pelo fato de que tal modalidade
de desenvolvimento não reflete as garantias de exercício pleno de liberdades, pelo contrário,
há uma conjuntura social que possui mais índices de privação de liberdade.
Um exemplo disto é a Europa, que possui os maiores índices de desemprego do
mundo, o que reflete uma exclusão social. A taxa de mortalidade de mulheres no Sul da Ásia,
na Ásia ocidental, na África setentrional e na China, que está ligada aos aspectos de déficit no
acesso a saúde e educação, como também aspectos culturais onde a mulher não possui uma
posição de igualdade em relação aos homens na sociedade. Dentre vários outros exemplos
citados pelo autor, que demonstram com base em dados práticos que o desenvolvimento
econômico não está ligado a conquista de liberdades, pelo contrário, pode até restringir o seu
exercício.
Nessa perspectiva, observa-se que as liberdades instrumentais possuem papel
extremamente essencial se devidamente exercidas, vez que envolvem aspectos elementares da
condição do indivíduo de viver em sociedade exercendo direitos, ou seja, além do exercício
dos direitos econômicos, a participação política, acesso a direitos sociais básicos, estes, que
integram o desenvolvimento não apenas de determinada comunidade, mas de todo um país.
Ao falar sobre a condição de agente das mulheres e a mudança social, Amartya Sen
cita Mary Wollstonecraft, enquanto autora de um livro que contém reivindicações de direitos,
especialmente relacionados ao bem estar da mulher. Muito citada ao se falar sobre a história
do feminismo, pois “ao colocar, com clareza exemplar, o problema em termos de direitos,
Wollstonecraft promove uma inflexão na direção da construção de uma teoria política
feminista.” (BIROLI e MIGUEL, 2014, p. 21).
Amartya Sen, por sua vez, ressalta o fato de que por muito tempo as reivindicações
estavam voltadas ao bem-estar de mulher, não à promoção de sua condição de agente.
Esclarece que não se pode desconsiderar a urgência de corrigir muitas desigualdades que
atrapalham o bem-estar das mulheres, sujeitando-as a um tratamento desigual. Mas que
entender o papel da condição de agente é necessário para reconhecer os indivíduos enquanto
responsáveis por suas ações e omissões, pois ninguém ocupa unicamente o papel de
“oprimido” ou “opressor”, de “enfermo” ou “são”.
Portanto, o autor admite não ser descabido o foco anteriormente dado sobre o bem-
estar das mulheres, especialmente considerando que as privações de direitos básicos, como
direito à vida, ainda não é garantido. Cita a “mortalidade excessiva” das mulheres na Ásia e
na África setentrional como exemplo de como essas necessidades podem ser negligenciadas,
inclusive na distribuição de cuidados de saúde e outras necessidades.
Teóricas feministas apontam que a invisibilidade é uma das maiores marcas dessas
violências contra as mulheres, através do encobrimento do que ocorre no espaço privado, no
âmbito doméstico e pelo atravessamento das questões de gênero (MACHADO, 2002). Para
Heleith Saffioti (2015), o silenciamento desprotege a vítima e contribui com a perpetuação
das violências, notadamente na esfera privada, com a ideia de que nesta esfera o homem tem
direito sobre a mulher e ninguém deve intervir nisso.
Em contrapartida, não se pode esquecer que a limitação do papel da condição de
agente ativa das mulheres afeta a vida de todas as pessoas, sendo esta uma pauta urgente e
básica. Amartya Sen aponta que deve ser dado enfoque nessa condição pelo seu potencial para
remoção de iniquidades que restringem o bem-estar feminino.
Por exemplo, o potencial para auferir rendimentos influencia na condição dessa
mulher no seio familiar, sua participação nas decisões da família e aumenta a possibilidade de
que sua visão seja mais considerada. Da mesma forma acontece quando a mulher desenvolve
papéis econômicos e sociais fora da família, o que amplia tanto a visão da família sobre ela
quanto a visão da própria mulher sobre o mundo, inclusive sobre o mundo doméstico. O
acesso à educação também viabiliza a participação social e política, na tomada de decisões
dentro e fora da família.
Tudo isto contribui positivamente para fortalecer a voz ativa e a condição de agente
das mulheres. Então, segundo o autor, essas variáveis acabam dando poder às mulheres, o que
pode ter grande influência sobre as forças que governam as divisões dentro da família e na
sociedade. Também influencia no que é aceito como “intitulamento” das mulheres, o que é ou
não “papel de mulher”, até onde elas podem chegar.
Em uma introdução crítica ao direito das mulheres, ressalta-se que é preciso
caminhar em busca de legitimidade do poder exercido pelo Estado, pelas
instituições da sociedade e (por que não?) pelas próprias pessoas. Para tanto,
é preciso, primeiramente, que as mulheres assumam uma cidadania ativa.
Em outras palavras, é necessário que tenham consciência das fontes de
opressão, tanto históricas quanto pessoais, para que seja possível conciliar
experiências de diversas mulheres para formar a teoria e a estratégia de ação.
(COSTA; SENRA; SANTOS, 2011, p.234)
Nas relações interpessoais, Amartya Sen destaca que sempre existem conflitos entre
homens e mulheres e que isso tende a se resolver a partir de uma solução cooperada sobre os
aspectos conflitantes. Isto é característica geral de muitas relações de grupo, em que todos os
lados podem ganhar, conforme o que for acordado (geralmente implicitamente) entre os
envolvidos. Entretanto, esses ajustes podem assumir formas alternativas, que podem ser mais
favoráveis a um lado do que ao outro.
A partir das observações do autor, percebe-se que, no âmbito doméstico e familiar,
isto é influenciado pelo papel socialmente atribuído a mulher. O autor diz que “às vezes a
mulher que sofre privação nem sequer é capaz de avaliar claramente o seu grau de privação
relativa” (SEN, 2010, p. 250). Isto demonstra o lugar em que a mulher é colocada nas relações
familiares – mais do que as concessões e privações inerentes a qualquer relacionamentos,
costuma ser cobrado que a mulher tenha uma postura mais compreensiva e pacificadora. Esse
“instinto maternal” atribuído à mulher acaba fazendo com que a mesma acabe “naturalmente”
assumindo esse papel de cuidadora, não conseguindo enxergar que seu grau de privação
geralmente é maior que o do homem.
Isso se reflete no tópico seguinte, em que o autor fala sobre a influência de um poder
maior das mulheres para que salvem suas próprias vidas e outras vidas – como a de homens e
crianças. Por mais que demonstre a influência da posição das mulheres para o bem estar
dessas outras pessoas (inclusive através de dados) não se pode negar que essa perspectiva
também acaba atribuindo outra responsabilidade a essas mulheres. Como se não bastasse a
condição de “ser humano” das mulheres para que todas as pessoas lutem por seu
desenvolvimento e bem estar: é necessário ressaltar o quanto essas mulheres contribuem para
a vida de homens e crianças, como uma forma de reforçar algo que deveria ser óbvio: as
mulheres devem ter condições de assumir o papel de agentes, a autonomia sobre suas próprias
vidas.
Outro ponto levantado pelo autor é de que, mesmo quando trabalham fora de casa, as
mulheres frequentemente continuam sendo responsáveis pelo trabalho doméstico. Apesar de
ser um trabalho que demanda muitas horas, por não ter remuneração esse trabalho acaba
sendo desconsiderado ao computar a contribuição das mulheres para a prosperidade conjunta
da família. O trabalho feminino só se torna visível quando é feito fora de casa e gera
remuneração.
Então, assim como o desenvolvimento econômico pode contribuir na realização de
outras liberdades, a autonomia financeira da mulher parece influenciar na consecução de
“O pessoal é político”
luta dos movimentos feministas e dos estudos de gênero chamam a atenção “sobre o quanto o
que é da ordem privada da família é operado no social: ‘o pessoal, é político’”. (DANTAS-
BERGER e GIFFIN, 2005, p. 418).
Durante muito tempo, essas discussões não eram levadas à esfera pública, já que
o status subordinado das mulheres durante muito tempo não foi
considerado um problema público, assim como a violência contra a
mulher também não era considerada um problema público, mas um
problema que deveria ser resolvido na esfera privada e no qual o
Estado não deveria intervir. O que atualmente é considerado problema
público, provavelmente antes não era e possivelmente depois não será,
pois a formação da agenda pública é mutante. (VÁZQUEZ e
DELAPLACE, 2011, p. 37)
Dessa forma, o cerceamento das liberdades no âmbito privado deve ser levado em
conta, considerando que não se trata de algo individual ou isolado, mas sim como parte de um
sistema que estimula e legitima essas violações.
Considerações finais
Há muito tempo o cerceamento da liberdade de gênero tem prejudicado homens e
principalmente mulheres. Embora os homens também sofram com esses padrões, o grau de
liberdade de que eles desfrutam é inequivocamente maior, considerando que existem dentro
de uma sociedade patriarcal.
O estudo das teorias de gênero permite reflexões acerca do papel socialmente
atribuído a homens e mulheres, cerceando a sua liberdade de ser e existir em sociedade – seja
por conta do seu gênero, de como performam esse gênero ou por conta de sua sexualidade.
As reflexões sobre Amartya Sen nos permitem pensar sobre o papel do direito ao
desenvolvimento na sociedade atual, observando a concretização das liberdades como sendo
essencial a uma sociedade mais justa.
Além disto, estuda-se o gênero como um dos âmbitos em que a liberdade pode e
deve ser exercida, a fim de que os indivíduos tenham autonomia para serem quem são e que
suas expressões de gênero não resultem em violência, já que isto também acaba por cercear a
sua liberdade.
Referências
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2016.
BIROLI, Flavia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. 1. ed. São
Paulo: Boitempo, 2014.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 13. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017a.
______. Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. 2017b.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-
escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml>. Acesso em 20 nov
2017.
COSTA, Renata Cristina; SENRA, Laura C. de Mello; SANTOS, Luna Borges. Os Direitos
Humanos das Mulheres: lutas e protagonismos. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de;
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA Lívia Gimenes Dias da (Org.). O Direito
Achado na Rua, vol. 5. Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Brasília: CEAD, FUB,
2011.
MACHADO, Lia Zanotta. Atender vítimas, criminalizar violências. Dilemas das delegacias
da mulher. Brasília, Série Antropologia, v. 319, p. 23, 2002.
______. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015.
1
Este artigo, produzido de forma independente, é o desdobramento de um projeto de pesquisa
apresentado em forma de painel como trabalho de conclusão do curso de Ciências da Religião do Programa de
Pós-Graduação lato sensu em Ciências da Religião do Instituto Passo 1, sob orientação de Pollyana de Souza
Conceição Ribeiro.
2
Instituto Passo 1/Programa de Pós-Graduação lato sensu em Ciências da Religião, pós-graduanda em
Ciências da Religião; Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, mestranda em Ciências Sociais; ianeulhoafaria@gmail.com.
Introdução
mais amplo – sobre como funciona o controle sobre o corpo da mulher e a reivindicação da
autonomia feminina e do direito de escolha da mulher sobre não dar prosseguimento à
gestação. Por fim, são apresentadas as considerações finais.
Para dar início ao debate, a pesquisa parte da discussão de uma polêmica central, a
saber: quando tem início a vida? Do ponto de vista religioso, a vida começa desde a
concepção. Nesse sentido, no ventre materno o embrião já teria direitos independentes dos
direitos da mãe. Para “[...] perspectiva pró-vida ou antiaborto, o feto engloba a mulher, que é
encarada como suporte para seu desenvolvimento e não pode optar por interromper a
gravidez, pois a vida sagrada é uma totalidade maior do que ela” (DUMONT, 1997;
DWORKIN, 2003 apud LUNA, 2014, p. 105).
O que parece é que os direitos do embrião chegam a ultrapassar os direitos da mãe
ou, no mínimo, negá-los. O argumento de que a vida é sagrada e de que preservar o feto é
preservar a vida perde o sentido quando não se pensa na vida da mãe, na sua preservação, na
sua dignidade.
No que diz respeito ao campo legal, "[...] a Constituição protege o direito à vida —
sem, no entanto, delimitar sua exata extensão ou indicar o momento preciso em que tal
proteção tem início ou fim [...]" (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.16). A vida é direito
fundamental, mas não absoluto. A Constituição por exemplo, prevê a pena de morte em caso
de guerra e o direito à legítima defesa, (GONÇALVES; LAPA, 2008).
No direito brasileiro existe apenas uma norma jurídica que prevê
expressamente a proteção do direito à vida desde a concepção, no caso, o
Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção
Americana de Direitos Humanos, tratado internacional [...] ratificado pelo
Brasil em 25 de setembro de 1992, sendo, portanto, válido em todo o
território nacional (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.56).
No entanto, até mesmo no Pacto de São José da Costa Rica é possível pensar em
exceções. Como afirmam Gonçalves e Lapa, o tratado internacional também deixa brechas
para se pensar casos particulares em que o aborto pode ser praticado sem configurar um crime
contra a vida.
Antes de mais nada, é importante observar que o referido documento prevê a
“proteção da vida desde a concepção, em geral”. Ao adicionar-se a cláusula
“em geral” abre-se a possibilidade de que haja exceções à proteção da vida
desde a concepção. É dizer, deve-se buscar garantir este direito, mas é
preciso também considerar que haverá hipóteses em que esta proteção
deverá ser flexibilizada (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.57).
Enfim, não há no direito brasileiro uma prerrogativa legal capaz de criminalizar todo
o aborto praticado no Brasil. Contudo, o aborto é crime segundo o Código Penal brasileiro.
O Código Penal Brasileiro pune o aborto provocado na forma do auto-aborto
ou com consentimento da gestante em seu artigo 124; o aborto praticado por
terceiro sem o consentimento da gestante, no artigo 125; o aborto praticado
com o consentimento da gestante no artigo 126; sendo que o artigo 127
descreve a forma qualificada do mencionado delito (JESUS, 1999 apud
MORAIS, 2008, p.50).
O aborto é crime e, “Apesar da proibição legal, estima-se que no Brasil são
realizados dois abortos por minuto, geralmente em condições precárias, devido à sua
clandestinidade. É o aborto a quarta causa de morte materna no Brasil, atingindo
principalmente as mulheres de baixa renda” (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.29). Assim,
percebe-se que a lei anda em descompasso com a realidade social e que a restrição legal, com
penas de reclusão previstas, não impede o acontecimento do fenômeno aborto e, mais ainda,
segundo o que nos aponta Morais:
A penalização do aborto não protege a vida das gestantes [...]. Segundo
estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), no Brasil, 31% das
gestações terminam em abortamento. Anualmente, ocorrem
aproximadamente 1,4 milhão de abortamentos espontâneos e inseguros, com
uma taxa de 3,7 abortos para 100 mulheres de 15 a 49 anos (MORAIS, 2008,
p.54).
Não obstante, o Código Penal prevê exceções. “No Brasil, admite-se duas espécies
de aborto legal: o terapêutico ou necessário e o sentimental ou humanitário” (JESUS, 1999
apud MORAIS, 2008, p.50). E, apesar dos dois casos que excluem a ilicitude, “[...] os
médicos escusam-se de realizá-lo sob alegação de divergência moral. Ademais, não há infra-
estrutura adequada para o procedimento e os profissionais de saúde exigem da mulher
autorização judicial, termo de boletim de ocorrência ou avaliação por uma Junta Médica
“(MORAIS, 2008, p.51).
Assim, mesmo nos casos de abortamento previsto em lei, a mulher encontra uma
série de dificuldades para fazer valer os seus direitos. Morais corrobora este pensamento
quando diz que: “O aborto legal é semi-clandestino no Brasil. A população é mal informada e
os serviços são invisíveis. As mulheres são constrangidas a peregrinar de hospital em hospital,
muitas vezes, de um estado a outro, para conseguir algo que lhes é assegurado por lei
(MORAIS, 2008, p.52)”.
Nesse contexto, nota-se que para além do debate religioso e jurídico, a questão do
aborto no Brasil é também uma questão de saúde pública. Em sendo assim, a questão do
aborto no Brasil, visto como um problema social de saúde pública, é uma questão política. E
aqui se chega à discussão sobre a pressão de parlamentares religiosos pela
A situação merece preocupação ainda que tenham sido poucos os casos com
interferência direta da religião ou com a efetiva participação de grupos religiosos. O que é
importante perceber é que esses dados apontam para uma persistente confusão entre Estado e
religião e isto, em última instância, pode significar substanciais restrições à autonomia sexual
e reprodutiva das mulheres, reafirmando um lugar social que lhes é destinado
preponderantemente por doutrinas de cunho religioso.
Feita essa breve explanação dos aspectos biológicos que conduziram e conduzem a
reprodução da humanidade, pode-se então tratar de discutir como essas determinações sobre
os corpos masculinos e femininos conduziram e conduzem a construção de expectativas
sociais. E a primeira expectativa construída socialmente é que o ser nascido com aparelho
reprodutor masculino torne-se homem e que o ser nascido com aparelho reprodutor feminino
torne-se mulher. Homem e mulher são, desse ponto de vista, construções sociais geradas pelas
expectativas reprodutivas de seres diferenciados sexualmente pela natureza.
Visto que a natureza sexual dos corpos humanos é, grosso modo, determinante das
funções reprodutivas, e acolhidas essas determinações como verdades absolutas, a
humanidade traduziu as diferenças percebidas nos sexos em representações sociais objetivas.
Assim pareceu óbvio que ao homem cabia apenas introduzir na mulher a sua contribuição
genética e à mulher cabia gestar, parir e cuidar.
Foi diante dessa construção social histórica e universal que "caminhou" a
humanidade. E é a partir dela que pretende-se discutir as maternidades e as expectativas
geradas em relação às mulheres. Expectativas estas que, senso comum, conduzem à
coisificação da mulher e à maternidade compulsória.
A ideia da mãe como ser sagrado, da mãe ideal e da maternidade como destino
biológico de toda e qualquer mulher precisa ser discutida. Não que seja uma novidade esse
tipo de problematização, mas, por se tratar de um tema ainda muito envolto por mitos, que
naturalizam e universalizam o que é ser mulher, é que se pretende entrar nessa seara.
Enfim, é preciso falar que existem muitas maternidades. Por se tratar de uma
construção social complexa, não se pode tratar da maternidade no singular, pois se correria o
risco de reforçar a naturalização que já se faz dela. Deseja-se, pois, discutir as maternidades e
também a possibilidade de não ser mãe.
Neste ponto retorna-se ao aborto. É quando se fala da possibilidade de não ser mãe,
no direito de decidir sobre o próprio corpo e desenvolvimento da gestação, que a posição das
feministas choca-se com a perspectiva religiosa. “Como se trata de uma relação hierárquica
entre a mulher grávida e o feto, na perspectiva feminista e pró-escolha, a mulher engloba o
feto e tem precedência sobre ele” (LUNA, 2014, p. 105).
A posição pró-escolha, na defesa da autonomia feminina e na luta pelas demandas
dos movimentos de mulheres, questiona as decisões parlamentares e jurídicas sob influência
religiosa que regulam o corpo das mulheres. E, a primeira coisa a se pensar e questionar é
quem são essas pessoas que decidem sobre os corpos das mulheres no Brasil. Em sua maioria
os parlamentares e magistrados no Brasil são homens, brancos e cristãos.
Considerações finais
debates. Também se espera que as críticas ao artigo venham contribuir para desenvolvimento
da autora enquanto mulher pesquisadora e feminista.
Referências
FARIA, Nalu e NOBRE, Mírian. O que é ser mulher? O que é ser homem? In: Gênero e
Educação: caderno de apoio para a educadora e o educador. São Paulo: Secretaria Municipal
de Educação, 2003, p. 29 – 43.
GONÇALVES, Tamara Amoroso; LAPA, Thaís de Souza. Aborto e religião nos tribunais
brasileiros. São Paulo: Instituto para a Promoção da Equidade, 2008. . Disponível em:
<https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/46446303/aborto_e_religiao_nos_tribu
nais_brasileiros.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1521322
742&Signature=LY%2FFlClHZDYBpc3vvjLb5urf8%2BY%3D&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DAborto_e_Religiao_nos_Tribunais_Brasilei.pdf>.
Acesso em 18 de março de 2018.
MORAIS, Lorena Ribeiro de. A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da mulher.
In: Senatus, Brasília, v. 6, n. 1, 2008, p. 50-58. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/131831/legisla%C3%A7%C3%A3o_a
borto_impacto.pdf?sequence=6>. Acesso em 18 de março de 2018.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista Educação e
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, julho/dezembro, 1995, p. 71 – 99.
Resumo: Esta pesquisa utilizou o método qualitativo e buscou por meio da revisão
bibliográfica e do estudo da arte produzida nos últimos anos, refletir sobre a influência das
religiosidades sobre os corpos que vivem e convivem com o vírus HIV, percebendo como elas
têm interferido no acolhimento das pessoas que vivem e convivem com HIV. Na revisão
bibliográfica fizemos uma busca por artigos científicos, produções acadêmicas e literatura
voltada ao tema, produzidas nos últimos 15 anos (2002 – 2017), que estivesse disponível no
Portal de Periódicos CAPES3/MEC, o que nos possibilitou perceber as relações construídas
em torno do corpo com suas sexualidades, religiosidades e o vírus HIV. Por meio da análise
feita percebemos a necessidade que nossos princípios morais passem por uma reavaliação do
ponto de vista da ética da alteridade, permitindo que nos reconheçamos e reconheçamos @
“Outr@” como ser humano, igual em direitos e respeito, pois, em uma sociedade que se
pretende igualitária @ “Outr@”, é, na verdade, um prolongamento do “eu” e do “nós”. A
pesquisa aponta para alguns resultados, a saber, a falta de pesquisas neste campo, a percepção
de ausências populacionais e a configuração moral em determinadas pesquisas.
Palavras-chave: Corpo. HIV. Religiosidades. Alteridade.
Introdução
O corpo não foi constituído para ser ilha, ele contém em si um arquipélago, que
desde sua origem primeira se faz belo, não por ser sozinho, mas pela profundidade do
encontro que faz com seus pares, com aqueles que o rodeiam. Se faz belo a partir de
experiências únicas e irreplicáveis que se dão no encontro, pois, as experiências são sempre
únicas, todas têm uma origem, um princípio, mesmo que a vida tenha já a muito tempo se
iniciado. Durante séculos, a religião tem buscado dar significados a existência do ser humano
em sua trajetória pelos caminhos que escolhe traçar, dando-lhe assim segurança para dar o
próximo passo na aventura principal do ser que é viver. Neste artigo, trabalharemos caminhos,
construídos por e num mesmo ser, embora, as principais vias a serem seguidas sejam, “o
corpo, as religiosidades e suas relações com o vírus HIV”.
O método escolhido é o método indutivo, de forma qualitativa e a epistemetodologia
a ser adotada segue o encontro da filosofia ocidental racional com a sabedoria ancestral
1
Flávio Fortunato Cardoso, FURB, Licenciando em Ciências da Religião, e-mail: ffcardoso@furb.br
2
FURB, Doutora em Sociologia Política, e-mail: butzkeluciana@gmail.com
3
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
africana dos Odus (caminhos)4. Foi feita uma pesquisa bibliográfica, mais precisamente
aquilo que chamamos de Estado da Arte (FERREIRA, 2002). A pesquisa foi feita no Portal de
Periódicos da CAPES em abril de 2018 e localizou oito publicações sobre o tema. A análise
dessas publicações possibilitou a identificação de diferentes leituras em torno do corpo, suas
sexualidades e o vírus HIV.
Machado (2014), afirma que existem oito odus originais, o primeiro deles seria o
Odu de Origem, que poderíamos definir como o caminho inicial, e que está contido em todas
as nossas ações, portanto, através de suas considerações podemos afirmar que o ser humano é
capaz de ter múltiplas origens durante o percurso da sua vida, desde o seu nascimento até a
sua morte, e segundo algumas crenças até depois dela.
[...]só didaticamente que se começa falando do Odu de Origem, entendendo que
origem não é começo [...] não há uma origem única, não tem um dia em que a
bondade começou, que a maldade começou, que o homem nasceu, que a história
iniciou [...] a origem é uma questão de escolha, não é uma questão ontológica, ou
seja, não é um fato consolidado, é só uma escolha, cada pesquisador, cada
pesquisadora escolhe o seu ponto de partida, porque o ponto de partida não é
arbitrário (MACHADO, 2014, p. 115).
Desde que o ser humano está sobre a face da terra, tem feito escolhas e essas escolhas
têm determinado novas origens para si e para as gerações seguintes, neste sentido todos os
dias (re)inventamos a vida e o viver sobre a terra, quando criamos ou recriamos teorias
filosóficas, quando indicamos a criação de um novo Odu (caminho).
a “origem não se impõe como um dado, a origem é uma construção epistemológica,
a origem é uma construção mental, é uma construção conceitual” (Idem), ela é uma
escolha. E essa escolha não se dá do nada, é uma pesquisa científica, ela se dá
porque somos livres, partindo de um princípio ético, onde essa ética apresenta-se
como a porta de entrada da liberdade e da escolha de cada um, ou seja, pauta-se na
liberdade e na ação ética (aula, 2011),[...] Isso eu acho maravilhoso, porque
desautoriza as autoridades absolutas e coloca como condição da produção do
conhecimento a interação com o outro. (MACHADO, 2014, p. 115 - 116).
Pedimos desta forma que nos acompanhe pelas nossas escolhas epistemetodológicas,
pelas nossas construções, não para torná-las verdades absolutas visto que nada é absoluto, mas
construção. Nosso intento não é apresentar respostas a nossos interlocutor@s, ao contrário
nosso intuito com esta pesquisa é trazer questionamentos e um pensar crítico de si, do outro e
da sociedade, como está constituída na atualidade.
4
Odu é uma espécie de signo que rege o nascimento de cada pessoa[...] Dentro dos odus estão os caminhos e as
possibilidades que cada um de nós carregará para o resto das nossas vidas. Nesse sentido, odu é o destino
possível de cada um. [...]. Nenhum homem escapa ao seu odu. Vive os caminhos ire (positivos) ou ibi
(negativos), mas não escapa. Odu é o desígnio de Olorum, o deus maior (ỢLAIGBO, 2011).
Conceituar corpo talvez seja uma das mais difíceis tarefas a ser realizadas, pois se
tratam de construções particulares (re)criadas constantemente durante o percurso da vida e
através dos séculos e das diferentes formas de pensamento, construindo-se a partir de diversas
origens. Não só a genética, mas as várias construções que vão se (re)afirmando culturalmente,
socialmente e estruturalmente com o passar dos anos, e das diversas leituras que fazemos ao
longo da vida, epistemetodologicamente, a partir de nossas construções. Entretanto, criaram-
se conceitos que buscam definir o que é o corpo, e como ele pode ser qualificado.
Entre os diferentes conceitos construídos filosoficamente através dos séculos de
construções epistemológicas, uma definição em particular nos chama bastante a atenção,
motivo pelo qual o trazemos a reflexão. Nela Merleau-Ponty, afirma que:
O corpo não é um objeto, uma coisa. "Quer se trate do corpo de outrem, quer se trate
do meu, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, isto é,
assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele".
Mas essa vivência do próprio corpo nada tem a ver com o "pensamento do corpo" ou
com "a ideia do corpo” que formamos por reflexão através da distinção entre o
sujeito e o objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência "ambíguo": se
procuramos pensar o corpo como um feixe de processos em terceira pessoa (p. ex.,
como "visão", "mobilidade", "sexualidade") perceberemos que essas funções não
estão ligadas entre si e com o mundo externo por uma relação de causalidade, mas
estão todas fundidas e confundidas num único drama. (grifos nossos)
(Phénoménologie de la perception, p. 231; cf. DESCARTES, Opera, III, p. 690)
(ABBAGNANO, 2007, p. 214).
Destacamos aqui dois pontos apresentados por Merleau-Ponty: o primeiro deles, onde
o autor afirma que, “não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o”
(ibid., p.214), cada sujeit@ viverá o seu corpo de maneira singular, não há como outro ser
viver o seu corpo, por mais que alguns tentem avisar das dificuldades do percurso formativo
desse ser corpo, apenas o “eu-sujeit@” é capaz de sentir/viver seu próprio corpo, onde o viver
a vida é a única forma de perceber-se enquanto corpo. É neste viver que tudo o que somos e
tudo o que vivemos, todas as experiências se fundem em um ser que se constitui diariamente,
(com)vivendo consigo e com os outros, é necessário que compreendamos as relações desses
corpos diversos com o mundo, pois como dissemos na introdução, o corpo não é uma ilha
isolada, não vive sozinh@, necessita de um corpo outro para que possa se perceber corpo. O
segundo ponto, alerta para a questão de que a vivência do próprio corpo nada tem a ver com o
‘pensamento ou com a ideia do corpo’ que formamos por reflexão ao separar o sujeit@ da
ideia de objeto. Segundo Merleau-Ponty, se procurarmos “pensar o corpo como um feixe de
processos em terceira pessoa (p. ex., como "visão", "mobilidade", "sexualidade")
perceberemos que essas funções não estão ligadas entre si e com o mundo externo [...] estão
todas fundidas e confundidas num único drama” (ibid., p. 214). Em outras palavras, não
podemos abandonar nenhuma parte de nós para viver, todos os órgãos e sentidos são
necessários para que possamos nos perceber como unidade completa, e através dessa unidade
‘perfeita’, sem partes faltantes, possamos reconhecer o outr@, como alguém que também é
complet@, e merece ser percebid@ como inteir@ e ‘perfeit@’. Esta reflexão converge para o
que os feminismos do Sul chamam de encarnação ou a corporificação da teoria. “No es
“teoría” de ideas y de conceptos abstractos, de lenguaje simbólico y de semiótica. Es teoría
hablada, vivida, sentida, bailada, olida, tocada.” (MARCOS, 2014, p. 23).
Todavia, o “ser corpo”, a corporificação da teoria é restrita pela “norma”. As
instituições sociais (família, escola, religião, Estado, dentre outras) nos orientam a seguir a
“norma”. Aprendemos nas instituições que este corpo nasce, cresce, se reproduz ou não, e um
dia morrerá, no entanto se somos preparados desde a tenra idade para crescer e ser o mais
produtivos possível, não somos preparados para morrer, por esse motivo durante os séculos
desde os primórdios da humanidade, o ser humano buscou formas de explicar o que virá após
a vida, podendo desta forma dar um significado mais valioso a vida terrena. “A morte sempre
inquietou o ser humano uma vez que parece tirar do sujeito qualquer possibilidade de
continuidade de seus projetos de mundo e de vida”. (PARANÁ, 2006, p. 104). Neste sentido a
religião vem como um alívio para as dúvidas do porvir, visto que muitas delas buscam dar
continuidade a existência do ser após sua vida terrena. Entretanto, as garantias de
continuidade da vida, trazem consigo algumas exigências, as quais o ser humano deve se
submeter, para que a sua continuidade, neste outro lugar próprio de cada visão religiosa, seja
boa. Em grande parte das visões religiosas para que o ser humano alcance um lugar de
descanso para sua alma, livre dos sofrimentos do mundo, um dos principais preceitos é a
libertação dos desejos carnais, sendo o principal deles o sexo.
Com o passar dos séculos não só a religião, mas também as classes dominantes viram
na dominação da sexualidade, uma forma bastante útil de disciplinar o corpo, seus instintos,
seus sentimentos e paixões, e desta forma disciplinar o “ser” que é a priori o seu próprio
corpo5 e tudo que o constitui como “ser”. Foucault (1988, p. 14) percebe que a construção
das dominações na modernidade perpassa a dominação do corpo, por meio da dominação de
um de seus aspectos básicos que é a vivência da sexualidade, e que esta, se dá por meio de
normas morais impostas pela religião, questão que fica clara quando afirma que o sexo “foi”
associado ao pecado, ao mesmo tempo que questiona o motivo pelo qual ainda nos culpamos
por termos feito dele um pecado.
5
Conforme conceito de Merleau-Ponty, citado na página três deste artigo.
Não demorou muito a partir deste momento, para que os primeiros casos fossem
descobertos no Brasil, e que junto com estes casos aterrissa-se também a discriminação e o
preconceito oriundos das primeiras nomenclaturas dadas pelos médicos estadunidenses, sendo
assim, logo a Aids foi considerada a “peste gay” também aqui em terras tupiniquins, este
estigma que aterrissou por aqui continua a existir na atualidade, e talvez seja o pior sintoma a
ser superado pel@s portador@s da síndrome.
O estigma que já não era pequeno foi reforçado pela literatura médica que vinha dos
Estados Unidos,
falava-se, portanto, do estilo de vida homossexual como causa primeira da epidemia.
[...]. Quando se falava em prevenir a doença, invocava-se imediatamente a redução
do número de parceiros sexuais e da frequência do coito anal, o que abria brechas
para a questão da moralidade sexual (idem, p.62-63).
Neste sentido, há a exigência de uma reflexão mais ampla dos conceitos de moral e
ética, como afirma Cesar Luiz Pasold, “a questão da AIDS deve ser prioritariamente
abordada, examinada e equacionada sob o prisma da Ética e não da Moral” (TRIDAPALLI,
2003, p. 14), uma vez que os sujeitos expostos ao vírus são transformados em nosso cotidiano
pela mídia sensacionalista e pela falta de (in)formação, em meros seres promíscuos e imorais
(principalmente aquel@s sujeit@s ligados a sigla LGBT+).
Quase meio século depois da descoberta desta que se não é a maior, é uma das
maiores pandemias a assolar o planeta, para a qual ainda não se descobriu “oficialmente” uma
cura, é sabido que ela não atinge apenas homossexuais, profissionais do sexo, usuários de
drogas injetáveis, hemofílicos, que eram considerados grupos de risco quando da descoberta
desse novo vírus. A Aids possui hoje filhos e netos, pessoas que nasceram com ele, atinge
mães de família que tiveram e têm que viver em relacionamentos abusivos, muitos deles
abençoados por expressões religiosas, que veem na sujeição da esposa ao marido uma forma
de santificação do lar. Enquanto isso, alguns grupos religiosos (fundamentalistas, com
destaque para algumas tradições religiosas neopentecostais e alguns grupos da igreja católica)
continuam buscando formas de culpar o público LGBT+, pela propagação do vírus, conforme
observam Natividade e Oliveira (2013), em sua obra “As novas guerras sexuais, diferença,
poder e identidades LGBT no Brasil”. É importante salientar que não é possível generalizar, e
que muitas expressões religiosas têm agido na contramão de grupos fundamentalistas,
buscando a inserção de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS6 , na sociedade de forma
igualitária, ou pelo menos, o mais próximo possível disso.
A PESQUISA
6
PVHA, forma utilizada atualmente para nomear de forma menos preconceituosa pessoas que foram expostas ao
vírus da imunodeficiência humana
mulheres entrevistadas, Martins destaca alguns mecanismos por meio dos quais a religião
pode influenciar a saúde a partir da obra analisada. Para ele,
comportamento e estilo de vida, apoio social, crenças religiosas, cognição fora do
ordinário, rituais religiosos, oração, meditação, confissão, perdão, conversão,
exorcismo, liturgia, bênção, direção espiritual, linguajar para depurar o estresse e
gerar adequação na conduta pessoal. (MARTINS FILHO, 2016, p. 684).
Nos assombra algumas relações que a religião impõe subjetivamente a essas mulheres
que já estão expostas a um vírus de deficiência maior que o HIV, impondo-lhes que mudem a
sua maneira de “ser” e “viver”, mudando a sua forma de conduta pessoal, pois na maioria das
vezes devem continuar se submetendo a relacionamentos abusivos. Fator esse analisado no
quarto capítulo da obra que vai buscar perceber o papel da família no combate à doença.
Destaca-se neste capítulo a busca da família como lócus de aconchego e afeto, condição que
nem sempre existe, frente a famílias que se vem “desestruturadas, imersas em crises das quais
talvez não conseguirão se libertar” (idem, p. 685).
O segundo trabalho analisado é de autoria de Faria e Seidl (2006), pesquisadoras
vinculadas a UNB, na área de Psicologia, publicado em 2006, portanto, há 13 anos. Nele as
autoras se propõem a “investigar as variadas estratégias de enfrentamento, incluindo o
Enfrentamento Religioso (ER), escolaridade e condição de saúde (assintomático ou
sintomático) em relação ao bem-estar subjetivo (afeto positivo e negativo) em pacientes HIV
positivos” (FARIA; SEIDL, 2006, p.155). Faria e Seidl (2006), definem através da
interlocução com Tix e Frazier (1998), o ER como, “estratégias cognitivas ou
comportamentais para lidar com eventos estressores, advindas da religião ou da
espiritualidade da pessoa” (FARIA; SEIDL, 2006, p. 155), afirmam ainda que, o ER pode ter
padrões positivos e negativos. Os positivos podem ser: “busca de apoio espiritual, perdão
religioso, enfrentamento religioso colaborativo, ligação espiritual e redefinição benevolente
do estressor” (idem, p. 156), associa-se a este padrão positivo o crescimento psicológico e
espiritual e a redução de problemas. Já os padrões negativos seriam caracterizados por
“descontentamento religioso, presença de conflitos interpessoais com membros do grupo
religioso e de dúvidas sobre os poderes de Deus para interferir na situação estressora”
(ibidem, p. 156), esse padrão foi correlacionado com sintomas de depressão. O interesse das
autoras pela pesquisa caracterizou-se pela percepção de não se ter controle sobre o
HIV/AIDS, por a mesma não ter cura, e ser “muitas vezes ainda percebida como sinônimo de
morte e altamente estigmatizante - pode remeter a conteúdos religiosos no processo de
enfrentamento, com possibilidade de influências [...] sobre o bem-estar subjetivo” (ibidem, p.
156). O estudo de Faria e Seidl (2006), as leva a concluir que: “a importância da religiosidade
como fonte de suporte emocional, mas também alerta quanto a possibilidade de ser fonte de
conflito e sofrimento” (FARIA; SEIDL. 2006, p. 163).
No artigo seguinte, Calvetti, Muller e Nunes (2007) ambas vinculadas a PUCRS7, área
da Psicologia, publicado no ano de 2007, cujo título é “Qualidade de vida e bem-estar
espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS”. Tiveram por objetivo, “avaliar a qualidade de
vida e bem-estar espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS” (CALVETTI; MULLER;
NUNES, 2007, p. 523). As autoras, não se afastam muito das conclusões que tiveram Faria e
Seidl (2008), quanto ao ER ambos consideram-no positivo para a vivência das PVHA, embora
Calvetti e suas companheiras não tenham analisado os possíveis aspectos negativos na vida
d@s portador@s de HIV/AIDS, fato que as leva a indicar a necessidade de que novas
pesquisas possam ser feitas no futuro analisando também os aspectos negativos do ER.
Prosseguimos com a pesquisa de Ferreira, Favoreto e Guimarães (2012), que fazem
uma pesquisa interdisciplinar entre a medicina e as ciências sociais, publicada em 2012, na
revista Interface. Para a produção dessa pesquisa utilizou-se o método qualitativo. A pesquisa
foi intitulada “ A influência da religiosidade no conviver com o HIV”, e teve por objetivo,
“apresentar os resultados da análise realizada a partir dos relatos das pessoas que convivem
com HIV, nos quais emergiram questões relacionadas a religiosidade, procurando interpretar e
captar o sentido desses relatos no enfrentamento da doença e suas repercussões sociais,
morais e clínicas” (FERREIRA, FAVORETO; GUIMARÃES, 2012, p. 385). Para a
efetivação dessa pesquisa foram entrevistadas nove pessoas no período de março a junho de
2008, no Hospital Universitário Pedro Ernesto na cidade do Rio de Janeiro, as entrevistas
buscaram abordar os seguintes temas com @s sujeit@s, “aspectos relativos à sua vida antes
do diagnóstico, no momento do diagnóstico e na fase atual de convivência com a infecção, e a
terapia utilizada” (idem, p. 385), segundo @s autor@s não houveram perguntas sobre o tema
religiosidade, espiritualidade ou congênere, e que o tema surgiu espontaneamente nas
respostas. Fator que leva @s autor@s a concluir que,
7
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
E em sua conclusão, quando afirmam que “existe uma relação fraca, mas
significativa, entre a perspectiva espiritual e o processo de enfrentamento e adaptação,
tornando-se recursos da natureza humana de grande relevância no cuidado à pessoa que vive
com HIV/AIDS” (PÉREZ-GIRALDO, VELOZA-GÓMEZ; ORTIZ-PINILLA, 2012, p. 337).
Na pesquisa de Lemos e Ecco (2014), intitulada “religião, sexualidade e família: o
caso em que um dos parceiros é soropositivo para o HIV”, buscou-se “verificar a repercussão
da constatação de que um dos (ou ambos) cônjuges é portador do HIV, nas representações e
na configuração de suas famílias, tendo por base o possível ideário religioso subjacente às
identidades de gênero masculina e feminina, bem como das formas de exercício da
sexualidade que tal identidade de gênero comporta” (LEMOS; ECCO, 2014, p. 568).
Consideramos importante transcrever parte do que Lemos e Ecco (2014) chamam de ideias
conclusivas, onde afirmam,
[...] embora os ideários religiosos sobre família sejam aceitos pelas pessoas
entrevistadas, estas posicionam-se criticamente em relação aos ensinamentos
referentes à sexualidade; no contexto familiar em que as pessoas entrevistadas se
encontram, suas famílias já se encontravam em situações deterioradas em suas
relações; as fronteiras entre as identidades masculina e feminina, bem como os
papéis sexuais delas esperados também encontravam-se pouco definidas,
destacando-se um significativo número de casais homossexuais em relações bastante
conflitivas; a notícia que um membro da família é soropositivo causa grande
impacto sobre os frágeis laços familiares, na maioria das vezes em relação à família
de origem da pessoa soropositiva para o HIV; os desdobramentos desses impactos se
8
Coping and adaptation and their relationship to the spiritual perspective in patients with HIV/AIDS, título
original em inglês.
REFLEXÕES INCONCLUSAS
Concluímos com esta pesquisa que dos oito trabalhos encontrados, cinco deles se
propõe claramente como qualitativos, totalizando 62,5% das obras. Ao analisarmos a área de
conhecimento a que tais pesquisas estão associadas, percebemos que 75% estão diretamente
ligados à área da saúde (seis trabalhos), dos quais dois deles fazem relações, um com a área
das Ciências Sociais e outro com a Estatística, e os demais 25% (dois trabalhos) a área das
Ciência(s) da(s) Religião (ões).
Estes dados nos fazem questionar, porquê nas últimas décadas se tem buscado saber
tão pouco sobre os efeitos da religião, religiosidade e/ou espiritualidade na vida das PVHA?
Seria esta uma área de estudos já esgotada em si, seriam est@s sujeit@s menos importantes
para o conhecimento científico? Ou seriam os nossos julgamentos morais empecilhos para o
reconhecimento das populações marginalizadas pela existência deste vírus duplamente
mortal? Percebemos na análise das pesquisas, a preocupação em definir quantitativamente
quando as mesmas foram feitas com grupos majoritariamente masculinos, femininos ou com
famílias, bem como a presença de casais homoafetivos, entretanto, sentimos falta de um outro
grupo marginalizado entre os marginalizados, @s transgêneros sejam eles masculinos ou
femininos. Queremos crer que este fato se deva, a uma humanização dos processos na área da
saúde que já os percebe em suas identidades sociais, que por incluí-l@s não vê mais a
necessidade de nomeá-l@s.
A verdade é que nossa pesquisa não consegue responder neste momento a essas
questões, apenas abre caminho para que elas aconteçam de maneira crítica e pertinente, livre
de preconceitos morais e quiçá rica de responsabilidade ética e alteridade. Para que o
Enfrentamento Religioso descrito na maioria das pesquisas possa ter maior efeito positivo que
negativo, possibilitando a est@s sujeit@s a superação das dores impostas por esta
enfermidade que lhes oprime física, psicológica e espiritualmente.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano. 1ª. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
CALVETTI, P. Ü.; MULLER, C. M.; NUNES, M. L. T. Psicologia em Estudo. Scielo, 2008.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n3/v13n3a13.pdf>. Acesso em: 29 abril
2018.
CALVETTI, Ü. Qualidade de vida e bem-estar espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, p. 78. 2006.
FARIA, J. B. D.; SEIDL, E. M. F. Psicologia em Estudo. Scielo, 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n1/v11n1a18.pdf>. Acesso em: 28 abril 2018.
FERREIRA, D. C.; FAVORETO, C. A. O.; GUIMARÃES, M. B. L. A influência da
religiosidade no conviver com HIV. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v.
16, n. 41, p. 383-393, abril/junho 2012.
Resumo: O presente trabalho objetiva estudar o papel social da líder cabocla da Guerra do
Contestado – Maria Rosa, conhecida como a Virgem Maria Rosa e, pela população secular
regional e por estudiosos e folcloristas, além de musicistas, como a Joana D´Arc do sertão do
Contestado. Busca, mesmo envolta por uma biografia muito curta e cheia de romantismos,
traçar um breve olhar sobre a figura feminina mais impactante que se fez tão importante
liderança durante a Guerra. O seu corpo, assim como a sua sexualidade não foram expostos a
ponto de denigrir sua imagem de líder, pois os poucos escritos e relatos a tratam a partir do
fato de ser uma menina-mulher no topo da hierarquia de uma guerra de proporções federais.
Sobressaem os atributos de bela, ousada, santa e guerreira nos registros mais facilmente
encontrados, não havendo termos depreciativos sobre Maria Rosa. Metodologicamente se
buscou na literatura brasileira produzida no meio acadêmico, na poesia, na música e no
folclore regional, as menções sobre a líder cabocla e seu papel na Guerra do Contestado.
Constatou-se que, num país machista como o Brasil daquela época, uma líder cabocla
perpassou um século sem ser vulgarizada pelo simples fato de ser mulher e bonita, permanece
Maria Rosa como uma representação de mulher-guerreira-líder, cujos apelos sexuais, não
sobressaíram no pouco rompimento da invisibilidade e do silêncio imposto ao povo caboclo
desde que ela os liderou. Maria Rosa é, para os que dela falam, aos sobreviventes da guerra e
seus descendentes, apenas uma grande líder – a Joana D´Arc do Sertão.
Palavras-chaves: Maria Rosa; Mulheres do Contestado; Guerra do Contestado.
1
Acadêmica de Administração; Universidade do Oeste de Santa Catarina; angela@editoraexito.com.br.
2
Professor na Rede de Ensino Básico; rochageologia@gmail.com.
3
Pesquisador do CNPq/PQ; Geógrafo. Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Meio Ambiente;
ncfraga@uel.br
Introdução
As questões de gênero, sobretudo o papel da mulher no decorrer da Guerra do
Contestado, ocorrida no sertão catarinense e paranaense, entre os anos de 1912 e 1916, ainda
são pouco estudadas. Há todo um vácuo de estudos sobre elas, sobremaneira nos estudos
geográficos, onde as concepções de gênero na Geografia, chamada também “geografia
feminista”, vem sendo discutidas e mesmo que os avanços deste tema em comparativo com
outros países ainda tenham sido escassos, cabe ressaltar sua importância. Embora a Geografia
tenha centrado suas análises espaciais durante muito tempo, ignorando a variável gênero
como um elemento de diferenciação social e considerando a sociedade como um conjunto
neutro, assexuado e homogêneo (REIS, 2015), esta ciência passou a levantar as diferenças
existentes entre homens e mulheres no uso do espaço já que “o conceito de gênero permite
compreender as relações sociais, especificamente, como os sexos contribuem para a
reprodução social” (REIS, 2015, p. 13). Tais elementos, do espaço geográfico e das questões
de gênero, são tratados aqui, abrindo a possibilidade de se pensar, inclusive, a organização do
territorial, a partir das mulheres atuantes na Guerra, com destaque para Maria Rosa, uma das
líderes mais carismáticas e atuantes nos arranjos do mundo caboclo.
Pensar o gênero no contexto geográfico se faz importante para que se compreenda as
relações existentes em todos os ramos da sociedade, demonstrando a complexidade em que se
insere a mulher, em meio a transformações no tempo e espaço. Desta forma, Joseli Silva et al.
(2003, p. 36) define gênero enquanto [...] “o conjunto de ideias que uma cultura constrói do
que é ser mulher e ser homem e tal conjunto é resultado de lutas sociais na vivência
cotidiana.” Deste modo, o fator predominante para se entender como se dão as relações entre
gêneros em uma sociedade, vem a ser a própria evolução desta, diante de fatores culturais,
determinantes nesse sentido.
De acordo com Joseli Silva et al (2009a, p. 38) a abordagem de gênero permite-nos
perceber que apesar da feminização da Geografia brasileira ter sido crescente, a análise
científica tem se demonstrado pouco permeável à expansão da compreensão das relações
entre espaço e gênero. No caso aqui tratado, quando se analisa o papel social de Maria Rosa,
há uma transcendência da relação espaço, tempo e gênero, pois ela avança disso, estando num
processo mais profundo, no caso, com poder de organização territorial, geradora de uma
territorialidade cabocla naquela região, para além da hegemonia masculina da sociedade
regional daquela época. “Tal impermeabilidade está alicerçada tanto na hegemonia masculina
nos postos de poder como na reprodução da versão epistemológica androcêntrica 4 [...]”, pois,
diversos estudos nesse sentido, promulgam a distinção de gêneros no decorrer da evolução
social. García (2004) destaca que a análise de gênero como processo teórico-prático na
pesquisa geográfica
permite-nos analisar diferencialmente entre homens e mulheres os papéis,
responsabilidades, conhecimentos, acesso, uso e controle sobre os recursos,
problemas e necessidades, prioridades e oportunidades, concretizadas única
e diferencialmente nos lugares. Sendo o propósito contribui para analisar
processos estruturais e locais que criam e reproduzem a ideologia
hegemônica de gênero, assim como as práticas de resistência presentes no
território da Luta pela Terra, no caminho da transformação e superação da
realidade social (GARCÍA, 2004, p. 59).
Joan Scott (1995) corrobora com esta visão ao teorizar gênero como uma categoria
de análise das relações de poder, tal como o são a classe social e a raça, referindo-se ao modo
como as diferenças sexuais são construídas e trazidas para as práticas sociais para se tornar
partes do processo histórico – a líder da Guerra do Contestado, Maria Rosa, deteve poder
muito superior aos homens que a cercavam e, ao mesmo tempo, eram líderes com ela. Assim,
o gênero é a organização social da diferença sexual (SCOTT, 1995), um conhecimento que se
refere não somente às ideias, mas abrange as instituições, estruturas, práticas cotidianas,
rituais, formas de representação, e tudo o que constitui as relações sociais.
É válido, ainda, destacar a visão de Simone de Beauvoir de que
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro (BEAUVOIR, 1967, p. 9)
Maria Rosa, não nascera mulher, tornara-se mulher entre os 15/16 anos da sua tenra
idade, para liderar seu povo numa das maiores guerras civis ocorridas no continente
americano, tendo, na condição de líder máxima do povo caboclo, astúcia política e controle
territorial, numa área vasta área do sertão sulista – seu serviço de espionagem, chamado de
bombeiros, por exemplo, são relados por militares, como imprescindíveis para a manutenção
do povo em guerra, por quatro anos seguidos. Nesse tocante, sobre as questões espaciais-
geográficas, numa perspectiva de geografias feministas insistido na concepção do gênero
como uma possibilidade de análise do espaço é que se coloca a líder cabocla, pois é
construído de tal forma que venha a ser modificado por meio das ações humanas para
4
O termo androcêntrico destacado pela autora, nesse sentido se refere a própria sociedade centrada em
valores masculinos, onde a mulher é vista como inferior.
Silva (2010) aponta que as Virgens detinham poder e influência sob o povo caboclo,
bem como sob o mundo mítico, já que adquiriram a insígnia de representantes do poder e da
inspiração divina, criando um elo entre o “mundo encantado” e o mundo dos sertanejos, numa
figura similar às representações de poder da Igreja Católica, notoriamente masculina. Dentre
as mulheres que tiveram destaque ao longo da Guerra do Contestado estão a Virgem Teodora,
que deu esperança à população por meio de suas visões; Chica Pelega, a guerreira que
espalhou coragem e bondade por onde passou, a despeito de sua história trágica; Nega Jacinta,
ou Nhá Jacinta, conhecida pela prática de benzeduras e parteira; e Maria Rosa, que liderou
milhares de homens e mulheres contra as forças repressivas republicanas, além de
proporcionar fé e esperança ao povo.
As meninas “virgens” eram capazes de estabelecer um elo entre o mundo
encantado e mítico com o mundo dos sertanejos, mundo este que os levaram
a lutar até a morte pela crença da Santa Religião e que nos remete à
possibilidade de conceber este movimento através de um olhar voltado para
universo mítico religioso em que as mulheres foram portadoras e
representantes de um grande poder simbólico, mas que trazidos para o plano
concreto, influenciaram certamente, muitas das ações e decisões nos redutos.
(FELDMAN, 2005, p.2-3.)
Queiroz (1977) aponta que Maria Rosa era vista como a principal representante da
vontade do Monge e dele conhecia os secretos desejos. Também cabia a ela a instrução de
uma rígida disciplina militar e, segundo Borges (2007), era quem determinava a execução de
exercícios diários.
Maria Rosa, aos 15 anos, em meio a orações, entrava em transe e discursava
dizendo receber ordens do monge José Maria. Durante os transes tinha
visões de batalhas e, daí em diante, era ela quem definia as ordens recebidas
pelo espírito do monge para organizar o comportamento do grupo. Com o
passar do tempo, além de líder espiritual, a virgem Maria Rosa se transforma
em chefe militar e comandou a retirada estratégica, após a primeira batalha
de Taquaruçú, em 1913, para o novo reduto em Caraguatá. (RUBIM, 2008,
s/p)
No que tange a disciplina militar, Maria Rosa se posiciona como sujeito e renuncia a
passividade da “mulher feminina” e se constrói fazendo-se ser, tal como permite-se
socialmente a ação masculina (BEAUVOIR, 1967). Analfabeta e comandante militar, ela
A figura de Maria Rosa, mulher respeitada e temida por todos é representada a partir
de declarações dos próprios caboclos. Willy Alfredo Zumblick pinta Maria Rosa em sua
pintura (Figura 1) onde a retrata ao cavalo, conduzindo as rédeas do animal com uma mão e
levantando a espada com a outra, sendo que sua cabeça e olhar, estão envolto por um halo de
luz, como se fosse, ao mesmo tempo, guerreira e santa – uma Joana D´Arc do Sertão do
Contestado.
Machado (2004) expõe que Maria Rosa comandou uma longa marcha para evacuar
Caraguatá indo em direção ao novo reduto de Bom Sossego com cerca de 2 mil homens e 600
cabeças de gado cargueiros de mantimentos, o que denota que tal feito não a diferenciava dos
homens. Ela teria morrido em 1915, na Páscoa Sangrenta do Brasil, quando do grande cerco
final da Guerra do Contestado ao vale de Santa Maria, hoje nos limites dos municípios de
Timbó Grande e Lebon Régis, em Santa Catarina, lutando contra as tropas do Capitão
Tertuliano Potyguara nas incursões do Exército brasileiro, que colocariam um final ao mundo
caboclo e, ao mesmo tempo, concluindo a participação do Governo Federal na campanha do
Contestado. Tais fatos, até aqui, consolidam Maria Rosa como mulher guerreira na busca
incessante de justiça social e pelo direito à terra do seu povo.
semântico de gênero, não se pode considerar uma linearidade entre o sexo, o gênero e o
desejo.
Na perspectiva desconstrucionista, o espaço é concebido de forma
paradoxal: de um lado, compõe as representações sociais hegemônicas dos
gêneros e das sexualidades; de outro é elemento de subversão dessas mesmas
representações, pois é por meio das ações espaciais concretas
desempenhadas pelos seres humanos que se dão as contínuas transformações
da realidade socioespacial (SILVA, 2009b, p. 47-48).
condições de lutar, e mais 500 crianças aptas a auxiliar as forças na retaguarda – aqui, sobre o
comando de Maria Rosa, a resistência cabocla alcança suas máxima aglutinação de gentes em
guerra, a líder, parecia, com a vitória em Caraguatá, ter conseguido o feito de unificação da
causa cabocla (FRAGA, 2017).
De 13 a 29 de maio de 1914, o General Mesquita efetuou ações contra Caraguatá (dia
13) e contra Santo Antônio (de 16 a 18), quando os ditos “fanáticos”, mais espertos, evitaram
o confronto direto e simularam dispersar. A missão foi dada por encerrada, ficando o capitão
Mattos Costa no comando do destacamento de guarda e policiamento (FRAGA, 2017).
Machado (2004) destaca que Maria Rosa teria recebido a visita do capitão Mattos
Costa, oficial do exército que comandou as forças federais na região entre maio e setembro de
1914, na tentativa de iniciar as negociações de paz. Com simpatia e compreensão pela causa
cabocla, o oficial adota uma postura conciliadora que é partilhada por Maria Rosa. Nas
narrativas sobre a Guerra do Contestado, é neste ponto em que a menina se apaixona e por seu
relacionamento com Mattos Costa, considera-se que “perdeu o aço”, ficando, tal como
Teodora, numa posição secundária nos futuros redutos (MACHADO, 2004).
Maria Rosa, a guerreira do Contestado, líder máxima e mulher-menina de prestígio,
volta a torna-se apenas mais uma menina-mulher nos meses finais da Guerra do Contestado,
com a ascensão e o retorno dos homens de “briga” ao poder, isso depois de ter “perdido o
aço”, ao ter mudado seu olhar, ao olhas da própria sociedade cabocla, quando deparou-se com
o culto Mattos Costa, mas, nada disso retira dessa personagem invisível, dentre as heroínas
brasileiras, o papel ávido da transgressão vivida na periferia do sistema patriarcal e
coronelista do sertão brasileiro. Maria Rosa, a Joana D´Arc do Sertão do Contestado é uma
guerreira e heroína invisível dentre tantas outras mulher fantásticas produzidas na resistência
dos perseguidos desta Nação, mas para o folclore e a música catarinense, ela se encontra em
pé de igualdade com Anita Garibaldi, a heroína do Litoral, sendo Maria Rosa, a heroína da
Serra Acima – um estado com nome e personagem mulher, tendo duas mulheres na
construção territorial e unificação da terra barriga verde – no mínimo contraditório, em terra
tão machista.
Considerações finais
A hierarquia social estruturada pelo patriarcado se confirma aos olhos das meninas
de muitas formas. Para Beauvoir (1967) a cultura histórica, a literatura, canções e lendas são
uma exaltação ao homem e foram eles que construíram a Grécia, o Império Romano, a França
e todas as outras nações.
E então, uma mulher irrompe pelos sertões do Contestado. A Joana d’Arc do Sertão.
A guerreira. A Virgem. Uma mulher que resiste ao massacre de uma guerra que reuniu mais
de 30 mil pessoas ao mesmo tempo e no mesmo espaço geográfico (FRAGA, 2017), no
episódio descrito por Galeano como uma das maiores guerras civis do Continente Americano,
já que o genocídio de milhares de camponeses pobres foi a sua principal marca. Uma mulher
que resiste à República - que seu povo chama de República do Diabo -, e que se mantém
virgem para não sujar suas mãos com o sangue da injustiça diante da fome capitalista de obter
terras e levar a cabo um plano de colonização que previa a eliminação do povo caboclo. Uma
mulher-menina resiste como virgem em uma terra coronelista, que usa e abusa de todas e
todos, mas permanece menina-mulher, 110 anos depois do aniquilamento do mundo Caboclo
do Contestado. Uma virgem com poderes messiânicos. Resiste Maria Rosa, uma ideia de
subversão e de posicionamento feminino perante a hegemonia do espaço.
Mas Maria Rosa é mais. É uma guerreira retratando as carências, a pobreza, a
violência e as práticas relacionadas aos espaços e sujeitos marginais-marginalizados. Ela é
fruto de uma trama expressa a oposição centro/periferia e homem/mulher quando delineia
espaços socialmente distintos no seu mundo social. Maria Rosa personagem central na
construção identitária cabocla, uma personagem reveladora das representações femininas do
início do século XX, que serve de inspiração para geografias feministas (de gênero) até os
dias atuais, mesmo sendo tão pouco estudada e ressignificada pela geografia do Brasil. A
Virgem Maria Rosa, a Joana d'Arc do sertão do Contestado – líder máxima do povo caboclo
em guerra - a menina-mulher e mulher-menina, cujo corpo e sexualidade sobressaíram ao
silencio secular imposto pela república. Lembrada até a Segunda Guerra Mundial nos
batalhões do Exército brasileiro, era uma inspiração para muitos soldados que traziam-na
como referência de destemida e controladora territorial, dizendo que ela seria ótima para o
serviço de espionagem e controle do território nacional, no caso de uma invasão do Eixo,
naqueles anos de 1940, 30 anos depois dela ter marcado a memória de muitos homens que
estiveram no território do Contestado, por ela controlado como líder (FRAGA, 2005)
Hoje, sobretudo nos movimentos sociais brasileiros, Maria Rosa, assim como outros
elementos e personagens da Guerra do Contestado, sobremaneira os ligados a sua resistência,
permanecem e se sobressaem, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra:
Aconteceu no último domingo (27), a festa de comemoração pelos dois anos
do aniversário do acampamento Maria Rosa do Contestado, localizado no
município de Castro, Paraná.
REFERÊNCIAS
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Cabocla. General Carneiro: O Herói do cerco da Lapa - PR. Curitiba: Editora do autor, 2007.
FRAGA, N. C. Vale da Morte: o Contestado visto e sentido - "entre a cruz de Santa Catarina
e a espada do Paraná". 2ª. ed. Blumenau, SC: Editora Hemisfério Sul, 2015.
FRAGA, N. C. (org.). Contestado, o território silenciado. 2ª. Ed. Florianópolis, Ed. Insular,
2017.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: EDUCAÇÃO e realidade.
V.20, nº 2, 1995. Porto Alegre: UFRS, 1995, pp. 71-97.
THOMÉ, N. Sangue suor e lágrimas no chão do Contestado. UnC – Caçador – SC: Incon
Edições, 1992.
WELTER, Tânia. “O Profeta São João Maria continua encantado no meio do povo”: um
estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria em Santa Catarina. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, p. 338. 2007
Resumo: Acredita-se que, em nossa sociedade o corpo das mulheres é submetido à um sistema
ditatorial, no sentido de que elas não têm autonomia sobre seus próprios corpos pois, devem
obediência à moral e à uma cultura machista. Assim, a proposta deste artigo é de compreender como
a epistemologia queer pode funcionar como instrumento de mobilização para a libertação do corpo
das mulheres, além de refletir sobre a representação desses corpos. Para isso, será analisado o ensaio
de Aleta Valente, uma artista contemporânea, presente na Revista Nin: naked for no reason, uma
publicação erótica carioca, criada por duas mulheres. O intuito é de mostrar como a política de
gênero queer é refletida na proposta editorial, estética e erótica da revista Nin, a fim de desconstruir
estereótipos sobre a mulher e a representação do corpo feminino. Na parte teórica foi abordado um
breve histórico sobre a sexualidade da mulher e apresentados conceitos sobre a teoria queer. Para a
análise foi utilizada a metodologia Iconografia e Iconologia, proposta por Panofsky, pela qual foi
possível concluir que a Nin de fato representa uma nova forma de ser mulher e de olhar para a
mulher em nossa sociedade.
1
Mestranda em Comunicação Visual pela Universidade Estadual de Londrina; bruna.pellegrini@hotmail.com
Introdução
Ao longo dos anos, a mulher foi vista e reconhecida em relação a sua sexualidade,
apenas como objeto sexual masculino “desde as civilizações primitivas até os nossos dias
sempre se admitiu que a cama era para mulher um ‘serviço’ ao qual o homem agradece com
presentes ou assegurando-lhe a manutenção” (BEAUVOIR, 2016, p. 126), mas como afirma
Beauvoir (2016), servir é ter um senhor, ou seja, não há reciprocidade nessa relação. Entende-
se que, a sexualidade é exercida como um poder político sob a mulher, o qual Foucault (1984)
aborda ao comparar as relações sexuais com as relações sociais, citando Aristóteles:
Todas as mulheres, sejam elas esposas, parteiras, bruxas, prostitutas ou freiras, são
sempre descritas exclusivamente em termos sexuais (a bruxa dorme com o diabo e a
freira, com Deus; a puta dorme com todos, a freira, só com Jesus – uma canção de
Chico Buarque nos revela como essas imagens exclusivamente sexuadas das
mulheres ainda permanecem no imaginário e no cotidiano brasileiro, de tal modo
que o encontro matinal da puta, voltando do trabalho, com a freira, indo à missa, é
uma espécie da síntese da imagem feminina brasileira para o olhar masculino
(CHAUI, 1984, p. 105).
Por outro lado, essa sexualidade serve apenas como juízo de valor sobre a mulher,
pois em nossa sociedade, a sexualidade feminina não pode ser vivenciada em seu corpo como
sujeito.
Fora desse padrão estereotípico, a nova política de gênero, como se refere Butler
(2017) a epistemologia queer, aponta novas possibilidades de identidade e representação, em
busca de desconstruir esses estereótipos. Afinal, o queer estende as pautas do feminismo e
passa a questionar o próprio sujeito do movimento pois, o gênero passa a ser visto como algo
construído culturalmente, como uma interpretação cultural do sexo.
Os fundamentos do queer, tem suas bases nas teorias sobre poder formuladas por
Foucault, em sua obra Vigiar e Punir. O filósofo francês explica como a concepção do poder
localizado apenas no repressor, não faz sentido, pois o poder está em toda parte para estimular
os sujeitos a agirem conforme os interesses hegemônicos – o que mudou por completo a luta
do movimento feminista e do movimento homossexual (MISKOLCI, 2015). Até as décadas
de 1960 e 1970, esses movimentos eram liberacionistas, ou seja, lutavam pela liberdade dos
homossexuais e das mulheres, acreditando em um poder repressor que agia de cima para
baixo, mas a partir de 1980, a nova política de gênero passou a refletir sobre cultura e sobre
construções sociais, em que os sujeitos também operam (MISKOLCI, 2015, p. 28). Partindo
desse ponto de vista, o queer vêm para questionar aquilo que é consolidado e difundido como
“normal”.
A Teoria Queer lida com o gênero como algo cultural, assim, o masculino e o
feminino estão em homens e mulheres, nos dois. Cada um de nós – homem ou
mulher – tem gestuais, formas de fazer e pensar que a sociedade pode qualificar
como masculinos ou femininos independente do nosso sexo biológico. No fundo,
gênero é relacionado a normas e convenções culturais que variam no tempo e de
sociedade para sociedade (MISKOLCI, 2015, p. 32).
encarado como eterno objeto de desejo e consumo do homem (LAURETIS, 1987, p. 222). No
entanto, Beauvoir propõe que o corpo feminino deve ser instrumento de liberdade da mulher
“e não uma essência definidora e limitadora” (BUTLER, 2008, p. 35 apud BEAUVOIR,
2016).
Pensando nisso, pretende-se analisar a Revista Nin: naked for reason, que pode ser
um meio de representação dessa libertação, que apresenta algo fora dos padrões, que opera
com imagens fora dos estereótipos consolidados. A Nin apresenta-se como uma revista
impressa de arte erótica e, diz pouco sobre sua identidade que parece querer não definir:
A Nin é uma revista impressa de arte erótica criada para aguçar os sentidos e
desmitificar o erotismo através de imagens e palavras. Criada por duas mulheres, a
Nin apresenta em suas edições bilíngues visões pessoais e amplas de colaboradores
do mundo inteiro sobre o corpo, a nudez e a sexualidade, combinando elegância,
humor, naturalidade e delicadeza. Para exibicionistas e voyeurs, para homens e
mulheres, para você! (Site da Revista Nin, grifo deles2).
Por meio dessa citação é possível perceber que a revista carioca não pretende
segmentar seu público por idade, sexo, gênero, ou, qualquer outra especificação. O foco é se
manter aberta e isso também pode ser observado em seu extenso leque de representações,
como afirma Neto e Amaral sobre a Nin:
A Nin também chama a atenção pela ousadia na maneira como expõe os corpos nus
em seus ensaios fotográficos, o que poderá ser observado na análise do ensaio de Aleta
Valente, que será abordado e que também, é possível de associação com o queer, termo inglês
que traduzido para o português significa: estranho, repugnante. Já para os estudos das
sexualidades, esses adjetivos expressam “os traços que operam fora do quadro considerado
normativo e, por isso, localizam-se o limbo das representações, o que não quer dizer que não
tenham valor social ou que não ofereçam uma riqueza de possibilidades de representações das
sexualidades” (NETO; AMARAL, 2018, p. 15).
2
Apresentação da Nin em seu site. Disponível em <http://www.ninmagazine.com/sobre/> Acesso em 01 fev.
2018.
Importante ressaltar que, o ensaio que será analisado faz parte da segunda edição da
Nin, publicada em 2016. Além disso, as imagens que acompanham os textos
“@ex_miss_febem é Aleta Valente bangu”, escrito por Letícia Gicovate e “Aleta Valente, a
boca do novo mundo”, de autoria de Alessandra Colassanti, foram inicialmente publicadas no
Instagram @ex_miss_febem, título inventado por Aleta Valente, cujo nome de registro é
Aleta Gomes Vieira.
de seus joelhos, suja de sangue menstrual. Já a segunda imagem, trata-se do seio esquerdo de
Aleta sendo exposto, com a blusa levantada, como se estivesse “amamentando” uma garrafa
de Coca-Cola. A terceira imagem, mostra Aleta sentada em um banco de ônibus, com fones
no ouvido – uma cena aparentemente cotidiana, com a língua para fora, quase encostando em
sua axila esquerda, expondo seus pelos. Na quarta e última imagem, é possível ver Aleta
ajoelhada com as mãos apoiadas no hão, em frente à uma pilha de tijolos, usando camiseta
branca e boné na cabeça. Já do lado direito da imagem, ver-se o texto escrito por Letícia
Gicovate, que acompanha as imagens na matéria da Nin, com a frase “pelos, poses e apelos”
em destaque.
Aleta é uma artista formada em Belas Artes pela UFRJ, mãe precoce, moradora de
Bangu – região periférica do Rio de Janeiro, e nas palavras de Gicovate (2016, p. 59): “uma
gostosa, que um dia se cansou de carregar estigma nas costas e passou a esfrega-los na própria
cara, na bunda perfeita, nos peitos prontos e nos braços fortes de mãe”, que usa sua página no
Instagram como uma mídia, um meio de protesto artístico. Na primeira imagem ela mostra a
calcinha com sangue de menstruação, algo tradicionalmente escondido – um tabu em nossa
sociedade. Na segunda, Aleta mostra os seios de forma escrachada, fora do padrão sensual em
que eles geralmente são expostos. Na terceira, ela confronta padrões estéticos, expondo as
axilas peludas e, na quarta imagem. Assim, no nível Iconológico podemos ver que, Aleta
mostra sua realidade, a periferia do Rio de Janeiro em uma rede social conhecida pelos filtros
que visam justamente mascarar e manipular a realidade. Ou seja, na rede social conhecida
pela glamourização das imagens e da vida cotidiana, Aleta mostra sua realidade sem retoques,
sendo esta composta por periferia, axilas peludas e vulva menstruada.
Aleta converge seu corpo sujeito, objeto e suporte, tese e tubo de ensaio, artista e
ativista, modelo e fotógrafa, médica e medusa, musa e antimusa. Abre seu corpo, sua
carne, sua casa, sua cama, seu banheiro, seu fogão, seus amigos, seu cotidiano, seu
imaginário e mídias sociais dissecando, ressignificando e ponto à prova estereótipos,
tabus, os limites da rede e seus próprios (COLASSANTI, 2016, p. 63).
poesia”. Entende-se que, não é comum ver a nudez feminina mostrando-se como algo natural
e expondo a menstruação. A nudez feminina é corriqueiramente explorada para apresentar a
beleza da mulher, de acordo com os padrões estéticos impostos socialmente, para servir como
objeto de desejo e consumo do homem. Com essa imagem, Aleta usa seu corpo e sua vulva
menstruada como meio de choque e ruptura do que é tradicional, moralista e convencional,
assim, transformando-se em instrumento de libertação do corpo da mulher, pois como afirma
Colassanti (2016, p. 64), colocar a vagina menstruada no Instagram é gritar pelos direitos da
mulher:
É dizer “eu sou mulher, a buceta é minha e eu faço o que eu quiser com ela”. É dizer
“eu sou mulher, o corpo é meu e eu escolho se quero mostra-lo, como quero gozar,
gozá-lo, se o quero gordo, magro, se quero fazer filhos, dar de mamar, dar, não dar
para quem dar, envelhecer, usar saia, usar barba, não usar. Não é a moral, nem os
costumes, nem os bons modos, nem a conduta burguesa, nem as regras estéticas,
nem o cânone, muito menos o Estado que vão decidir onde quando e como eu faço
uso do meu corpo” (COLASSANTI, 2016, p. 64)
A cada onze segundos uma menina tem seus órgãos genitais mutilados, e 140
milhões de mulheres sobrevivem a despeito dos clitóris ceifados com cacos de vidro,
a frio, a céu aberto, sem anestesia, em nome da cultura, de Deus, dos costumes e da
tradição (...) Sim, a interrupção da gravidez é considerada crime, e a cada uma hora
e meia um homem mata uma mulher no Brasil. E nessa coexistência estranha de
múltiplos tempos históricos, ingressamos na Idade do Deixa Ela em Paz. Ela quem?
Ela, a vulva, a vagina, a buceta. Ela, a boca do mundo” (COLASSANTI, 2016, p.
62).
Assim, entende-se o intuito deste ensaio para a revista Nin, que já alertou: “É preciso
ler Aleta dentro do campo das manifestações simbólicas. É esse o território de onde seu
discurso é emitido” (COLASSANTI, 2016, p. 62), ou seja, quando a Nin pede para deixar a
vagina em paz, ela diz para deixar a mulher em paz, os corpos femininos livres para que as
mulheres possam vivenciá-los como quiserem, sem que a moral, o Estado e as religiões
interfiram.
Além disso, sendo a Nin uma revista de arte erótica e explorando esse universo,
entende-se que, seu objetivo é trazer o erotismo e a nudez além do campo da sexualidade, mas
sim nas diversas possibilidades de identidade e representação, ou seja, pela libertação dos
estereótipos normalizadores – como também propõe as epistemologias queer.
Considerações finais
Aleta é uma artista visual radical, executando uma performance permanente com
fins de protesto, uma performance cotidiana com fins de crítica social, uma
performance em processo que confronta as normas culturais vigentes, com vistas a
uma transformação da realidade, a libertação do corpo da mulher, a dissolução da
ideologia machista dominante e o fim das minorias (COLASSANTI, 2016, p. 63).
Assim, quando Aleta Valente mostra os seios em seu Instagram aparentemente sem
motivo, assim como sugere o subtítulo da Nin: naked for no reason, ela proclama pela
liberdade da mulher mostrar seu corpo quando quiser e se quiser, sem que isso implique em
algo voltado para a sexualidade. Quando ela mostra a menstruação, trata de um lado humano e
natural do corpo da mulher que é renegado, encarado como algo nojento em nossa sociedade.
Entende-se que, tanto Aleta Valente, quanto a revista Nin – que fez a matéria sobre a
performance da artista, expõe o corpo e a sexualidade da mulher de forma ousada e fora dos
padrões, de maneira inaceitável dentro da cultura machista. A Nin mostra tudo o que a
sociedade misógina faz questão de castrar, por tanto, com uma nova forma de representação,
acredita-se que ela serve como instrumento de libertação do corpo da mulher e dos padrões
tradicionais de gênero.
Referências bibliográficas
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Nova Fronteira, 2016.
BHABHA. Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. – 15ª ed. –
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Editora
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FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: A vontade de saber. Rio de Janeiro,
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GOMES, Carla; SORJI, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil.
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KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. Indiana University Press: 1987. Disponível
em: <http://marcoaureliosc.com.br/cineantropo/lauretis.pdf> Acesso em 30 jan 2018.
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2 ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015.
NETO, José Miguel Arias; AMARAL, Muriel Emídio Pessoa do. A montagem perversa
positiva da revista Nin. Porto Alegre: Revista Famecos, v. 25, n. 1, jan, fev, mar, abr 2018.
Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/26869/0>.
Acesso em 02 fev 2018.
Nin: Naked for reason. Rio de Janeiro: Editora Guarda Chuva, 2016, vol 2.
PANOFSKY, Erwin. Significado as artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 19 – 87.
1
Professora Dr. Escritório de Aplicação de Assuntos Jurídicos - UEL; Mestre em Direito – UEL e Doutora em
Estudos da Linguagem - UEL; uelprofessorajuliana@hotmail.com.
2
Graduanda do 3º Ano de Direito - UEL ; Pós-Graduada em Ensino de Filosofia para o Ensino Médio - UNESP;
solcomchuva@msn.com.
Introdução
A Lei 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, nasceu diante da negligência
vivenciada por milhares de mulheres que sofriam agressões físicas e psicológicas de seus
pares no âmbito doméstico, traz uma nova perspectiva diante dos casos de violência
doméstica praticados contra as mulheres no Brasil, entre elas, está o afastamento do suposto
agressor do lar ou local de convivência com a vítima, a fixação de limite mínimo de distância,
o encaminhamento da mulher e de seus dependentes a programas oficiais ou comunitários de
proteção e atendimento, determina que o violência doméstica contra a mulher independente de
sua orientação sexual, entre outras mudanças.
Não é por acaso que está Lei tem o seu nome, visto que é uma gloriosa homenagem a
cearense Maria da Penha que lutou durante dezenove anos e seis meses para ver seu agressor
ser condenado e preso, após várias tentativas de aniquilar com sua vida, sendo que em uma
delas acabou deixando Maria com uma seqüela permanente da paraplegia dos seus membros
inferiores. Ainda hoje é uma figura de destaque na luta e resistência contra todo tipo de
violência feminina.
Segundo Teixeira e Moreira (2011, p.276), “a violência doméstica contra a mulher
era tratada como crime de menor potencial ofensivo, agraciando o agressor com os benefícios
da Lei 9.099/1995, a qual lhe impunha, quando muito, penas restritivas de direito de conteúdo
econômico (com o pagamento de cestas básicas) ou multas”. Nesse sentido, a Lei Maria da
Penha, em consonância a Constituição Federal de 1988, vislumbra uma série de dispositivos
regulamentares nos âmbitos do processo penal, administrativo, civil que podem ser utilizados
pelas mulheres no intuito de minimizar e coibir a violência ainda vivenciada nos redutos
domésticos.
Além disso, configura violência doméstica como está legalmente expresso no caput
do art. 5º, que diz:
Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais,
por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independente da coabitação.
direitos decorrentes do Direito das Famílias. Como afirma Matos (2011, p.133) “o sistema
clássico prioriza a formalidade nas relações jurídicas. Configura-se uma família a partir do
estabelecimento de um vínculo formal, sendo a certidão do registro de casamento a prova
dessa união”.
Assim sendo, o objetivo dessa pesquisa é demonstrar como a Lei Maria da Penha foi
um marco essencial para o alargamento e entendimento do moderno conceito de família. O
que era apenas um entendimento hermenêutico realizados pelos dispositivos constitucionais
expressos no art. 226, §§ 3º, 4º e 7º, hoje já pode vislumbrar a materialidade desse
entendimento em uma lei, o que garante uma maior legitimidade nos entendimento dados nas
ações judiciais para o pedido do reconhecimento de casamento civil dos casais homoafetivos,
que já estão sendo reconhecidos pela jurisprudência como poderemos analisar.
Assim, foi realizada uma pesquisa qualitativa a fim de demonstrar como a Lei Maria
da Penha foi um marco importante para o reconhecimento das uniões homoafetivas como um
vinculo familiar que devem ter suas relações reconhecidas no âmbito civil através do
casamento. Para isso, foi utilizado um arcabouço teórico referenciando as pesquisas já
realizadas sobre o assunto e na análise de algumas jurisprudências que reconheceram o
casamento de casais homoafetivos.
Do matrimônio ao afeto – uma nova visão de família
É inegável o entendimento que a família vai além de um conceito sociológico e
jurídico. A família é uma entidade orgânica e histórica, que passa por transformações e
alterações no decorrer do tempo. Segundo Chaves (2012, p. 95) “A organização ou estrutura
do grupo familiar, a fisionomia da família, não se manteve a mesma ao longo do tempo e, ao
contrário, passou por mudanças e transformações com o passar dos séculos”. O que antes era
apenas um arranjo social para o fortalecimento do patrimônio e da garantia das descendências,
atualmente é compreendido pelo viés do afeto e da busca da satisfação pessoal, pautada nos
sentimentos de solidariedade, lealdade, respeito e cooperação. Nessa seara, o STJ cada vez
mais referencia paternidade e família como vínculo afetivo e não vínculo jurídico. Assim,
Dias (2006,p.35) “A cultura do início do século passado levou o legislador a emprestar
juridicidade apenas ao relacionamento matrimonializado, como uma verdadeira instituição,
geradora de vínculo indissolúvel”. O que estivesse fora desse patrão institucionalizado
também estava excluído das garantias legais assegurados pela lei.
No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, novos rumos e
entendimentos foram traçados em relação ao conceito de família. Entende Chaves (2012,
Diante dessa omissão legislativa, coube ao poder judiciário a tutela dos direitos da
população LGBTI.
Segundo Dias (2011, p.251) “A omissão covarde do legislador infraconstitucional de
assegurar direito aos homossexuais e reconhecer seus relacionamentos, em vez de sinalizar
neutralidade, encobre grande preconceito”.
Diante da omissão do poder legislativo, o judiciário decidiu quanto às demandas que
buscavam direitos e reconhecimentos decorrentes das uniões homoafetivas. Durante muito
tempo a magistratura não deu razão às ações que traziam como fundamentos jurídicos as
normas do direito das famílias, indeferindo a petição inicial, sendo considerado impossível o
pedido do autor, pois os casamentos com pessoas do mesmo sexo eram inexistentes para o
mundo jurídico. Quando havia algum reconhecimento, a competência para julgar era das
varas cíveis, pois as uniões homoafetivas eram compreendidas como sociedade de fato, para
que pudesse ter efeito pelo menos de ordem patrimonial.
Ou seja, enquanto as questões referentes a casamentos heteroafetivos eram tratadas
em Varas de Família, os de relações homoafetivas eram tratadas em Varas Cíveis por estas
serem entendids como sociedade de fato.
Segundo Dias (2011, p.252):
“A primeira decisão que reconheceu a união homossexual como entidade
familiar é do tribunal gaúcho. O julgamento teve enorme repercussão, pois
Esse entendimento foi revisto em maio de 2011 quando o STF se manifestou sobre a
matéria através do julgamento da (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental)
ADPF 132 e da (Ação Direta de Inconstitucionalidade) ADI 4.277 que equiparou a união
homoafetiva com os mesmos direitos das uniões estáveis heterossexuais. A partir desse
entendimento, a competência para julgamento das causas envolvendo uniões homoafetivas
passou a ser a vara de família e não mais as varas cíveis, corrigindo um erro que se perpetuava
no judiciário, visto que se trata de afetividade familiar.
Mesmo antes dessa decisão, vale ressaltar a decisão pioneira da Justiça do Rio
Grande do Sul em junho de 1999 que julgou procedente a vara de família para julgar uma
causa envolvendo relacionamento homoafetivo.
Mesmo antes da decisão da ADI 4.277 e da ADPF 132 da Suprema Corte, a Lei
Maria da Penha, em um ato progressista, reconheceu os novos modelos de família existente
que tem como escopo as relações fundadas no afeto e na busca da felicidade.
Uma breve análise sobre as repercussões da decisão do STF após o julgamento da ADI
4.277 e da ADPF 132
Segundo o art. 5º da CF/88 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade”.
Destarte, cabe destacar que todas as pessoas merecem ser amparadas pela lei independente da
sua orientação sexual. Tendo em vista o princípio da igualdade de direitos e deveres, o
principio da dignidade humana, não faz sentido negar aos LGBTIs o desfrute de todos os
direitos correspondentes as pessoas heterossexuais. As sociedades em geral passaram por
diversas transformações em decorrência das transformações tecnológicas, sociais, culturais e
econômicas vivenciadas pelo mundo afora nos últimos tempos. O direito ainda não consegue
acompanhar essas transformações na mesma velocidade, no entanto, as discussões e
transformações devem acontecer. Como foi o caso do reconhecimento das uniões
homoafetivas.
O direito já havia avançado no reconhecimento de diferentes tipos uniões que
surgiram no decorrer dos anos, legalizando inclusive a união estável. Como consta no art.
226, § 3° da Lei: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”.
E isso foi reconhecido também no Código Civil de 2002 que estabelece no art. 1.723:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição
de família”.
No entanto, nada foi dito em relação às uniões homoafetivas, o que levou a
Procuradoria Geral da República ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.
4.277 para pleitear o reconhecimento da união estável para as pessoas do mesmo sexo. Esse
também foi o objetivo do governo do Rio de Janeiro ao ajuizar a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, alegando que o não
reconhecimento da união homoafetiva maculava os direitos fundamentais da pessoa humana
contidos na Constituição Federal. Essa ADPF teve perda parcial de objeto e foi recebida como
ADI. As duas ações foram analisadas conjuntamente no dia 05 de maio de 2011, sendo
publicada no dia 14 de outubro do mesmo ano. Os Ministros reconheceram a
inconstitucionalidade do não reconhecimento das uniões homoafetivas como instituto
jurídico, estabelecendo uma interpretação constitucional ao art. 1.723 do Código Civil, o que
na prática permitiu a união estável das pessoas do mesmo sexo, sendo que essa decisão teve
efeito erga omnes e vinculante, ou seja, valendo para todos os casos com o mesmo pedido de
regularização das uniões homoafetivas para uniões estáveis.
Essa decisão confirmou o que estava tentando ser comprovado desde a Lei Maria da
Penha, que é a nova interpretação sobre o conceito de família. A união estável estabelece as
mesmas garantias do casamento civil quanto a direitos. Nesse sentido, não existe mais porque
as uniões homoafetivas serem consideradas sociedades de fato, excluindo uma parte
significativa das pessoas devido a sua orientação sexual.
Essa decisão possibilitou que relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo
pudessem ser reconhecidos como união estável, garantindo e efetivando os direitos
estabelecidos por esse instituto jurídico.
No entanto, tanto a Constituição Federal no seu art. 226, § 3. ° como o art. 1.726 do
Código Civil, deixam claro sobre a possibilidade de a união estável ser convertida em
casamento: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos
companheiros ao juiz e ao assento no Registro Civil”.
No entanto, muitos cartórios estavam negando o registro das uniões entre pessoas do
mesmo sexo alegando que não sabiam como proceder, e isso levou a judicialização da
questão. No estado do Rio de Janeiro houve decisões favoráveis, tal qual a que segue:
aspecto da lei infraconstitucional apenas a lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, apresenta um
dispositivo que reconhece a união homoafetiva como entidade familiar.
Considerações finais
Diante do que foi exposto, verificamos que a equiparação das uniões homoafetivas as
uniões estáveis heterossexuais com a possibilidade dessa união ser convertida em casamento
civil foi árdua e ainda depende da jurisprudência para ser provida, pois o poder legislativo
coloca na gaveta os diversos projetos sobre o tema existente atualmente na casa legislativa.
Um deles, o Projeto de Lei do Senado Federal n. 612, de 2011 da senadora Marta Suplicy
propõe a alteração dos arts. 1.723 e 1.726 do Código Civil, para permitir o reconhecimento
legal da união estável das pessoas do mesmo sexo. Essa alteração se daria com a supressão
das palavras homens e mulheres, colocando „duas pessoas‟, o que afasta a concepção binária
feminina e masculino para a realização do casamento.
Apesar da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, reconhecer as uniões homossexuais
como entidades familiares, o que demonstra o avanço e a sensibilidade do legislador quanto às
mudanças existentes na formação familiar da contemporaneidade, formações essas que
compõe um mosaico de diversidade e estruturas.
Ainda existe um grande caminho a ser percorrido para a superação do preconceito.
Dados recentes mostram que o aumento da violência de pessoas homossexuais e transgêneros
aumentou 30% de 2016 para 2017. Segundo (Souto, 2018) o jornal O Globo a cada 19 horas
um LGBT é assassinado ou se suicida em virtude da “LGBTfobia” o que torna o Brasil
campeão de morte desse tipo de crime.
Não podemos deixar esses dados se perpetuarem, nem que os direitos adquiridos com
tanta luta sejam recuados, levando um retrocesso histórico e social no nosso país. Ignorar a
existência da diferença e permitir que a desigualdade e a injustiça permaneçam. O direito
sobre o corpo, o sexo é um direito personalíssimo, e não deve ser mantido à margem da lei, a
justiça deve garantir a liberdade de todas as pessoas exercerem e vivenciarem sua
personalidade de maneira segura e de forma legitima. Acreditamos que muito já foi superado
e que muito ainda há de ser feito. O debate não pode ser cessado para que as mudanças
possam acontecer.
Referências:
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de ago. de 2006. Lei Maria da Penha. Brasília – DF. 2017.
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Ed., 2006.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. O conceito de família na Lei Maria da Penha. In: DIAS,
Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011.
MONTEIRO, Isaías. Em três anos, cartórios registram 19,5 mil casamentos homoafetivos.
Agência CNJ de notícias. Distrito Federal, 11 mai. 2018. Disponível em: <
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86781-em-tres-anos-cartorios-registraram-19-5-mil-
casamentos-homoafetivos>. Acesso em 24 mai. 2018.
MOREIRA, Luana Maniero; TEIXEIRA, Daniele Chaves. O conceito de família na Lei Maria
da Penha. In: DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2011.
RITT, Eduardo; GOMES, Sabrina Netto. A Lei Maria da Penha e a Família Homoafetiva, p.1-
20. Disponível em:
<htpps://online.unisc.br/acadnet/anais/índex.php/efpd/article/download/15017/3639>. Acesso
em 12abr2018.
SOUTO, Luiza. Assassinatos de LGBT crescem 30% entre 2016 e 2017, segundo relatório. O
Globo, Rio de Janeiro, 17 Jan. 2018. Sociedade.Disponível em: <
https://oglobo.globo.com/sociedade/assassinatos-de-lgbt-crescem-30-entre-2016-2017-
segundo-relatorio-22295785>. Acesso em: 24 mai. 2018.
É a partir de tal premissa que são expostas as semelhanças entre a escravidão racial e
a escravidão sexual. Tais semelhanças são reveladas a partir da análise dos discursos
favoráveis e contrários à abolição da escravidão negra. Isto pois os que eram contrários à
abolição da escravidão negra defendiam práticas de regulamentação por parte do Estado, de
modo que fosse criado não só um sistema de normas mas sim a estrutura de um “setor
econômico”. Os ataques eram destinados ao tráfico de escravos e não à escravidão em si,
sendo apenas o primeiro considerado como um problema social, do mesmo modo que, no que
diz respeito à escravidão sexual, as críticas limitam-se ao tráfico de pessoas e à prostituição
forçada, nunca à prostituição.
Entretanto, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas, designado para acompanhar a
Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outros
de 1949, declarou a prostituição como uma forma contemporânea de escravidão. Mas este
Por trabalho, toma-se toda a produção humana em torno de sua sobrevivência; o ser
humano se apropria da natureza e a modifica para suprir suas necessidades. É a partir desse
primeiro sentido dado ao trabalho, que Marx defende o trabalho como inato à existência do
homem. Nesse sentido, expõe que:
“[...] a existência [...] de cada elemento da riqueza material não existente na
natureza, sempre teve de ser mediada por uma atividade especial produtiva,
adequada a seu fim, que assimila elementos específicos da natureza a
necessidades humanas específicas. Como criador de valores de uso, como
A partir de tal premissa é que Marx determinará, para além, a natureza dupla do
trabalho, nas noções consolidadas como trabalho concreto e trabalho abstrato, que se
identificam, respectivamente, como “trabalho-vivo” e “trabalho-morto”. Isto pois o trabalho
concreto é aquele presente em todas as formas de organização humana e que, mesmo sob o
controle do capitalismo, cria valores de uso essenciais para satisfação das necessidades
humanas. Por sua vez, o trabalho abstrato, deixa de ser uma atividade com o qual o ser
humano se identifica, produzindo valor de uso apenas se diante de um valor de troca.
Entretanto, não é a partir de tais conceitos que é construído o pensamento marxista
acerca das mulheres prostitutas, mas sim a partir do conceito de lumpemproletariado. Como
membros dessa classe degenerada, não útil para o processo revolucionário da classe
proletária, Marx inclui:
“os vagabundos, soldados dispensados, prisioneiros libertos, escravos fugidos
de navios, malandros, charlatões, lazarentos, punguistas, trapaceiros,
jogadores, cafetões, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de
realejo, trapeiros, amoladores de faca, funileiros, mendigos – em suma, toda
a massa indefinida, desintegrada, jogada aqui e acolá, denominada pelos
franceses de a boemia” (MARX, 1851-1852, p.149).
Para além da perspectiva moral, que, na visão de Engels, envolve tanto os homens
como as mulheres que se dispõe à mercantilização da sexualidade, é trazida a afirmação do
homem como “consumidor da prostituição” e da mulher em situação de prostituição como
“infeliz” e “degradada”.
Nesse contexto, Catharine MacKinnon enfim constrói o diálogo entre marxismo e
feminismo ao afirmar que “a sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o
marxismo: aquilo que é mais próprio de alguém, porém, aquilo que mais lhe é retirado”. Ao
Assim, quando se fala em corpo como mercadoria, que se traduziria por reificação,
tem-se em vista que, na prostituição, o usufruto do corpo como objeto para satisfação sexual
do comprador é uma condição intrínseca ao ofício. Reitera-se a relevância de se falar em
reificação visto que a prostituta não é monetariamente remunerada na condição de prestadora
de serviço, mas na condição de quem aluga seu corpo como uma mercadoria destinada ao
prazer masculino, inclusive no prazer masculino pela violência contra a mulher.
Importante afirmar que a prostituição se estabelece num comércio criado por homens
para satisfazer homens, que obtém lucro à custa da exploração das mulheres, seja como
proxenetas, como donos de casas de entretenimento erótico ou como diretores de filmes
pornográficos. Conforme afirma Andrea Dworkin:
“Se é necessário que uma classe inteira de pessoas seja tratada com crueldade
e indignidade e humilhação, colocada em uma condição de servidão, de
modo que os homens possam ter o sexo que eles pensam que têm direito,
então é o que acontecerá. Essa é a essência e o significado da dominação
masculina. Dominação masculina é um sistema político. [...] Assim, em
diferentes culturas, as sociedades são organizadas diferentemente para
alcançar o mesmo resultado: não somente as mulheres são pobres, mas a
única coisa de valor que uma mulher tem é sua assim chamada sexualidade,
que, junto com o seu corpo, tem sido transformada em um produto vendável.
(DWORKIN, 1992, p. 3)
Dessa forma, a prostituição só pode ser tolerada dentro de uma sociedade em que
prevaleça a hierarquia entre gêneros, que é justamente sustentada por instrumentos de
dominação que assegurem a supremacia masculina. Nesta lógica, apenas com a superação da
estrutura patriarcal, que reduz as mulheres à condição de classe inferior, subjugada por meio
da construção de uma sexualidade que atende apenas a classe dos homens, é que podemos
falar na completa abolição das prostituição.
Abolir a prostituição inclui sonhar um mundo em que as mulheres possam de fato
desfrutar da sexualidade de modo não violento e coercitivo. Ou como diz a letra do hino de
Mujeres Libres escrita por Lucía Sanchez Saornil, escrever de novo a palavra mulher.
Conclusões
Referências
MACKINNON, Catherine A.. Feminismo, Marxismo, Método e o Estado: uma agenda para
teoria. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p.798-837, 2016. Tradução: Juliana
Carreira Ávila; Juliana Cesario Alvim Gomes.
OLIVAR, José Miguel Nieto. Prostituição feminina e direitos sexuais...: diálogos possíveis?.
Sexualidad, Salud y Sociedad: Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n. 11, p.88-121, ago.
2012. Disponível em: <http:www.redalyc.org/articulo.oa?id=293323029005>. Acesso em: 23
mar. 2018.
RAYMOND, Janice G.. Not a choice, not a job. Massachusetts: Potomac Books, 2013.
Resumo: O presente trabalho visa apresentar o projeto de extensão e campo de estágio básico
em Psicologia vinculada à Universidade Pitágoras Unopar, denominado Ciranda das Cores:
Psicologia e Cultura popular como dispositivos de saúde e defesa de direitos. O projeto se
materializa através de uma ação desenvolvida junto ao Coletivo Elitytrans, formado por
transexuais e travestis, que compõe a Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População
Trans em Londrina. Esta rede, criada no final do ano de 2017, é composta pelo Coletivo
Elitytrans, Defensoria Pública do Paraná em Londrina, pesquisadores, profissionais de
diferentes serviços públicos, e voluntários. A Ciranda das Cores destina-se ao atendimento
psicossocial à população transexual e travesti, através da articulação entre a Psicologia
Corporal, Psicologia Social Comunitária e Artivismo, objetivamos esse trabalho como um
novo dispositivo, tendo a Psicologia e a Cultura Popular transdisciplinarmente articuladas na
reinvenção do cuidado como potência agenciadora de singularidades no processo de
construção da cidadania. Esse encontro se dá a partir de corpos vibráteis/brincantes, onde a
energia de vida circula na força do canto, do movimento e da roda. Roda que potencializa
saberes e poderes. A Ciranda das Cores possui encontros semanais onde dançamos, tocamos,
compomos cirandas, resistimos a uma sociedade transfobica nos sentindo inebriados pela
potência política da arte. Segundo Rolnik (2004,2007) nossa sociedade colonizada e
capitalista nos distanciou do contato com os conhecimentos tradicionais e com nossa potência
criadora, para ela a resistência está no próprio ato de criação. Pensamos em nosso
encontro/produção como um ativismo, onde nossos corpos ganham força como ativistas e
1
Universidade Pitágoras UNOPAR; graduando em Psicologia; edu_barbosa_freitas@hotmail.com.
2
Universidade Pitágoras UNOPAR; graduando em Psicologia; limahemilli@gmail.com
3
Universidade Pitágoras UNOPAR; professora no curso de Psicologia; especialista em Gestão de Políticas
Públicas para Crianças e Juventude; vabarreiros@hotmail.com.
Introdução
O presente trabalho pretende trazer reflexões iniciais de graduandos em Psicologia,
acerca da Ciranda das Cores, projeto de extensão do Curso de Psicologia da UNOPAR, que
propõe a perspectiva de um atendimento psicossocial a população de travestis e transexuais de
Londrina. Tem por objetivo criar um espaço de articulação entre a Psicologia
Corporal/Bioenergética e a Cultura popular através de Grupo de Movimento e Ciranda,
pretende ainda, contribuir para a defesa de direitos e promoção integral à saúde da população
transexual e travesti.
Ao trazermos a perspectiva da integralidade da atenção à saúde da população trans,
reconhecemos que a orientação sexual e identidade de gênero são fatores de vulnerabilidade
para a saúde. De acordo com Peres (2015) os estudos sobre as sexualidades, as relações de
gênero participam dos modos de subjetivação das pessoas, considerando as imagens,
discursos e sentidos que são construídos no seu contexto histórico diante de vivencias e
experiências, estabelecendo um modo de explicação de mundo e de relações.
A inscrição de gêneros - feminino ou masculino - nos corpos é feita, sempre, no
contexto de uma cultura e, portanto, como marcas dessa cultura. As possibilidades
da sexualidade das formas de expressar os desejos e prazeres - também são
socialmente estabelecidos e codificados. As identidades de gêneros e sexuais são,
portanto, composta e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de
poder de uma sociedade. (Louro, 1999, p. 11)
O coletivo Elitytrans é um dos coletivos que faz parte MARL, uma de suas
fundadoras é Melissa Campos4, ativista LGBTI, com propósito de reivindicar direitos
enquanto cidadãos, lutar por visibilidade e contra a transfobia e consequentemente buscar
empoderamento, causando reflexões na sociedade.
O coletivo desejava fazer uma nova militância, as (os) integrantes não queriam apenas
uma militância tão ligada a Hiv/Aids e entregas de camisinhas, pensavam e queriam ampliar
estas questões com uma militância que tivesse outros formatos, foi então que decidiram fazer
teatro, palco para reivindicar e problematizar questões políticas, com foco na temática de
gênero. Essa nova postura de militância se apresenta como Artivismo, conceito que
trataremos logo mais.
As integrantes do coletivo junto com o Herbert Proença5, pensaram em estratégias
para agregar pessoas trans e travestis para o movimento, sendo que as estratégias nada mais
eram que oficinas de teatro e ao fim de cada oficina, havia um bate-papo para discutir sobre o
acontecimento e partilhar experiências.
Inicialmente, o coletivo não pensava que houvesse a necessidade de montar uma peça
de teatro, mas sim, cenas que seriam usadas como atos políticos pela cidade, assim, aqui já se
percebe o caminho da arte na defesa de direitos. Dessa forma nasce uma das principais
estratégias de atuação, que através de apresentações artísticas principalmente cênicas,
levavam aos diversos cantos a discussão acerca das questões de gênero e transfobia, por nós
aqui identificada como Artivismo .
Em um dossiê sobre Artivismo da Revista Cult de agosto de 2017, Colling (2017), traz
a emergência de artistas e coletivos artivistas que se desenvolve na atualidade e se dá por
alguns razões, dentre elas estão o crescimento de estudos de gênero e sexualidade no Brasil,
em especial os ligado a perspectiva queer, o acesso as tecnologias e as redes sociais; a
ampliação da temática LGBT nas mídias em geral, e o aumento da visibilidade e das
identidades trans.
O ato de manifestação é denominado de ativismo /artivismo e discute questões
referentes ao mundo social, político, cultural e artístico, alguns autores consideram como arte
envolvida ou arte política. A arte e política, ambos têm autonomia e diversos instrumentos de
ação, ao trabalharem juntas ou em áreas semelhantes pode possibilitar uma série de novos
significados. Segundo Chaia, a arte politica pode ser compreendida a partir destas relações:
4
Melissa Campos: Artivista e Militante nas áreas da Saúde e Direitos Humanos, Atriz e Produtora Cultural.
5
Herbert Proença: Docente de Psicologia na universidade Unopar Pitágoras, Artista, militante e artivista.
Ao percebermos essa estratégia tão potente, pensamos em uma ação que pudesse
transversalmente articular cuidado em saúde, defesa de direitos e arte, que nesse cenário se
materializa com a junção da Psicologia Corporal e as tradições populares.
Desta forma o objetivo deste projeto é trabalhar a autonomia dos participantes,
trazendo potencialidade aos corpos para lutar pelos seus direitos. Trabalhamos com o
referencial teórico da Psicologia Corporal que é uma abordagem que buscar entender o ser
humano como um ser repleto de energia entre o psiquismo (mente) e o corpo. Busca ainda
compreender, como o indivíduo manifesta sua subjetividade e interação com o outro, e de
como será a manifestação energética da mente sobre o corpo, e o corpo sobre a mente. Com
intenção, que o indivíduo se encontre e sabia perceber a sua própria energia e
consequentemente seus pensamentos e emoções, obtendo uma vida saudável.
O projeto Ciranda das Cores traz a perspectiva de aliar o grupo de Movimento
Emocional e a tradição Popular da Ciranda, para tanto iremos trazer inicialmente alguns
conceitos importantes da Psicologia Corporal.
Wilhekm Reich (1897 - 1957) foi o percursor da psicologia corporal. Era médico e
psicanalista vienense e discípulo de Freud, que ao romper com a psicanálise criou sua própria
escola. Reich compreende que o ser humano é repleto de energia, e denominou a energia de
orgone. Segundo’’ Volpi e Volpi (2003, p. 02)’’: é uma energia que preenche todo o espaço
cósmico e se expressa em diferentes concentrações, movimento e forma.
Quando Reich era psicanalista ao lado de Freud, não entendia porque alguns pacientes
não conseguiam alcançar a ‘’ cura’’ diante dos métodos de análise tradicional. Afirmou-se
então, de que no modo de análise tradicional o terapeuta perdia contato de alguns
comportamentos típicos de cada pessoa, por exemplo, o modo de falar, gesticular, etc. Diante
dessa necessidade, levou Reich a atender os seus pacientes de forma que o terapeuta esteja
sentado enfrente a ele, olho a olho, sendo assim seria, mas eficaz intervir sobre processos
psíquicos do atendido. E desta forma que surgiu a técnica de análise do caráter.
Conforme ‘’ Volpi e Volpi (2003, p. 02)’’: o caráter de uma pessoa se forma com base
nos bloqueios sofridos nas etapas do desenvolvimento psico-emocional.
O objetivo é ajudar cada participante a fazer um maior contato com seu próprio
corpo, amplificar as sensações corporais, a torna-se consciente das tensões
musculares e dos bloqueios existentes em seu corpo e, trabalhando com movimentos
e respiração num processo bem grupal, buscar sua liberação. O resultado que
esperamos chegar com este processo é um fluxo mais livre e energia no corpo, o
qual traria consigo um sentimento mais intenso de estar vivo, que por sua vez,
aumentaria nos participantes a capacidade de sentir prazer. (Gama; Rego, p. 18,
1994 apud Green, 1990)
A partir dessa breve colocação sobre a Psicologia Corporal, iremos agora trazer
algumas considerações sobre a Ciranda, para ao final deste artigo compreender a potência
desse encontro.
A ciranda é uma dança típica brasileira, muito comum em danças de roda infantil
porém, no nordeste e principalmente em sua cidade de origem no litoral Pernambucano na
ilha de Itamaracá, devido as mulheres de pescadores que cantavam e dançavam a espera de
seus maridos chegarem do mar. Uma das representantes mais conhecida entre os
cirandeiros/cirandeiras é a Lia de Itamaracá.
A ciranda assim como a coco de roda, era mais dançada nas ruas e nos terreiros de
casa de trabalhadores rurais, e depois começaram a sair para as praças, avenidas, ruas, afirma
Gaspar (2009). A ciranda é uma dança comunitária e não faz discriminação quanto a raça,
Considerações finais.
Assim, pensamos na potência desse encontro também como uma estratégia de saúde
mental e empoderamento de corpos na luta por seus direitos. A população trans muitas vezes
(e literalmente) tem seus corpos negados, escondidos e mutilados pela violência da transfobia,
assim adotamos o artivismo como estratégia política, pois nossa Ciranda pretende dançar pela
cidade, em feiras, eventos culturais e acadêmicos, trazendo a leveza de corpos potentes.
Essa sabido que as organizações da sociedade civil tem desempenhado um papel
fundamental para construção de políticas públicas e pensando sobre o trabalho de base do
coletivo Elitytrans poderemos nos aproximar de demandas dessa população
Pensamos que a Ciranda das Cores, enquanto um projeto cultural pode dar visibilidade
às pessoas trans deslocando-as de seus cantos de dor para cantos de luta numa sinergia de
corpos rodopiando pela cidade.
Referências
MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: Arte Ativista e ação coletiva. São Paulo:
Annablume Editora, 2011.
PERES, Wiliam Siqueira. Travestis Brasileiras: dos estigmas a cidadania Curitiba: Juruá,
2015.
ROLNIK, S. "Fale com ele" ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In: FONSECA, T e
ENGELMAN, E. Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
GASPAR, Lúcia. Ciranda. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso 17 maio, 2018.
VILAS BOAS, Alexandre Gomes, A(r)tivismo: Arte + Política Ativismo- Sistemas Híbridos
em Ação, 312f. Dissertação de Mestrado em Artes- Universidade Estatual Paulista, São Paulo,
2015.
VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Psicologia Corporal – um breve histórico.
Centro Reichiano, Curitiba,2003. Disponível em: <http:/www.centroreichiano.com.br >.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo compreender como os egressos do sistema
penitenciário da cidade de Ponta Grossa interpretam a experiência do cárcere a partir das
vivências territoriais no interior da instituição prisional. Como fio condutor, utilizou-se o
conceito de território concebido por e a partir das relações de poder (SOUZA, 2009), criando
sobre uma malha diferentes pontos de acesso e limites diferenciado pelo sujeito que o acessa,
num processo dinâmico de apropriação e desconstrução. Para auxiliar na compreensão da
questão central foram elaboras questionamentos específicos no qual buscam compreender
qual é o perfil dos detentos da cidade de Ponta Grossa e como o cárcere é interpretado pelo
grupo. Para isso, foram realizadas 7 entrevistas semi-estruturadas com homens egressos do
sistema penitenciário da cidade de Ponta Grossa, resultantes de uma trajetória de pesquisa
vinda desde a iniciação científica e sistematizado a partir do método proposto por Bardin
(1970). Além disso, foram utilizadas fontes estatísticas de órgãos oficiais em relação a
dinâmica que tange a população carcerária. A pesquisa evidencia que o cárcere é
majoritariamente composto por homens de origem pobre, com baixa escolaridade e sem
qualificação profissional, com crimes de baixa periculosidade e em grande parte relacionados
com o tráfico de drogas e contra o patrimônio. Além disso, o cumprimento da pena é vivido
de forma diferenciada de acordo com o perfil de masculinidade que homem exerce durante o
cumprimento de suas penas, podendo ser agravado o sofrimento da pena de forma desigual
por aqueles que compõem o espaço carcerário.
Introdução
Atos criminosos são constantemente presenciados ao decorrer de nossas vidas. Suas
características se desenvolvem nas mais variadas formas. Fato transversal em todos esses
acontecimentos é a forma com que esses atos ilícitos serão cobrados, caso isso venha a
ocorrer, ou seja, qual a maneira mais justa dos autores desses atos arcarem com os prejuízos
ocasionados, nisso, a prisão é uma das primeiras imagens a surgir em nossa cabeça.
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mestrando Gestão do Território. Email:
gontarek.dimas@gmail.com
2
Disponível em:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Resultslookfor=cC3%A1rcere&type=AllFields&filter%5B%5D=format%3Adaa
sddada%22masterThesi22&limit=20&sort=relevance <. Acessado no dia 10/5/2018.
3
Disponível em: >http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses<. Acessado no dia 10/05/2018.
4
Disponível em: >http://www.prisonstudies.org/<. Acessado no dia 10/05/2018.
Grossa, ambas instituições de regime fechado. Por fim, serão tratados as espacialidades e
categorias discursivas a partir da análise de conteúdo de suas falas proposto por Bardin (1970)
resultantes do processo investigatório.
Esse fato nos permite ligar a realidade encontrada em campo com as reflexões de
Marcelo Lopes de Souza no qual afirma que toda modificação feita sobre um espaço de
primeira natureza (SANTOS, 1999) que implique sobre esse, diferentes formas de acesso,
modifique seu meio natural, transforme suas características orgânicas em matéria
sistematicamente organizada, que cria distinções entre diferentes grupos, produz
do possível, e de outro lado, impondo sobre a pena de um grupo determinado uma carga extra
de limitação e castigo além daquela prevista na forma constitucional da lei estatal.
Caracterizado o fio condutor teórico que tange esse trabalho, partimos agora para o
perfil das pessoas que vivenciaram esses territórios punitivos no Estado do Paraná e na cidade
de Ponta Grossa, para está em específico no ano de 2016, momento em que foram coletados
os dados.
a partir de Foucault (1998), este nos aponta o poder não enquanto algo possuído em sua
totalidade, mas que de maneira dinâmica é composto por um feixe de relações que
constantemente (re)configuram as posições de centro e margem entre aqueles envolvidos
nessas relações.
Pois bem, dentro de um território carcerário composto por limites e tensionamentos e
permeados por relações de poder diferenciadas entre os grupos, as masculinidades mesmo
sendo consideradas periféricas em seu contexto geral, possuem dentro de cárcere, práticas
diferenciadas que podem alocar esses sujeitos entre centro e margem nas relações de poder.
Além disso, outras práticas são impostas entre os detentos a fim de moldar um perfil
de convivência próprio da instituição penal, tendo os sujeitos suas práticas moldadas e que de
maneira direta, influenciam na construção de suas masculinidades no cotidiano de
cumprimento de suas penas. Podemos compreender melhor essa situação a partir do seguinte
trecho de entrevista:
'Daí eu tava passando no meio dos cara conversando assim e o cara chamou
eu de volta, "o cara, chegue aí" quando eu cheguei o cara deu assim na
minha boca. Daí quando eu olhei ´pra todo mundo assim eu tinha que matar
o cara né? Na hora que eu fui no mocó la no pátio que eu saquei da faca os
cara me colaram assim num canto "o que você vai fazer cara?", eu falei "eu
vou dar uma facada nesse cara, o cara bateu na cara de cara homem" os cara
falaram " não não não irmão, você não vai matar ninguém, isso dae é pra
você aprender. Sabe o que você ta aprendendo? você ta aprendendo de
quando tiver gente conversando você não passa pro meio, não é por causa
disso que você não vai ser cara homem. Você vai ser cara homem sim só que
você ta aprendendo. Nós sabemos que você chegou agora irmão, nós tamo te
ensinando a ser uma pessoa pá'. (Entrevista realizado com Vida Loka em
2015)
Tratado o perfil dos homens detentos da cidade de Ponta Grossa (PR), recorte espacial
deste trabalho, seguimos agora ao tratamento dos dados empíricos obtidos no processo de
campo no decorrer desta pesquisa, citando a metodologia proposta e os resultados finais deste
trabalho.
de regime fechado da cidade de Ponta Grossa. Após o contato e devida aproximação, ocorreu
a realização de entrevistas com roteiros semiestruturados aplicados de maneira individual e
gravada.5
Após isso ocorreu a transcrição das mesmas com o intuito de facilitar o processo de
análise e sistematização dos dados, sendo esta, realizada através da análise do conteúdo e
aplicado em um banco de dados através do método proposto por Bardin (1970) que implica na
definição de categorias de análise a partir da frequência de evocações identificadas em seus
discursos.
Assim, a sistematização das entrevistas transcritas e sistematizadas em um banco de
dados, resultou na caracterização de 441 evocações, que analisadas e sistematicamente
elencadas, caracterizam-se em 32 categorias discursivas nas quais, 14 fazem menção a
espacialidade ‘Cadeia, 7 estão relacionadas com a espacialidade ‘Cidade’, 8 contemplam a
espacialidade ‘X’ e 3 relacionadas a espacialidade ‘Seguro6’, fato esse que reflete as
diferentes territorialidades que compõem a cadeia.
Compreendendo que a experiência do cárcere marca a vida das pessoas presas de
maneira diferenciada e que influência no comportamento e modo de encarar a vida em
liberdade, partimos para a reflexão de como o cárcere é interpretado pelos homens ex-
detentos da cidade de Ponta Grossa, suas principais características a partir do ponto de vista
de quem o viveu de forma intensa, concebendo nisso o objetivo central deste trabalho.
O arranjo de posicionamentos ora centrais ora periféricos dentro de uma malha
constituída de limites, exclusões, e acessos diferenciados para cada sujeito (RAFFESTIN,
1993) é resultante das características que cada detento possui frente ao grupo, variando de
acordo com sua situação financeira, vínculo com o crime organizado, tipo penal, redes de
afetividade com outros detentos, dependência química, entre outros.
Esta vivência diferenciada do cárcere que ora amplia e ora reduz os direitos,
benefícios, auxílios e regalias que cada detento terá com o grupo, pode ser visto no seguinte
trecho de entrevista:
5
Totalizando seis horas e quarenta e quatro minutos de entrevista gravada
6 Nas entrevistas em geral apareceram 6 espacialidades discursivas , mas que apenas 4
serão tratadas pois apresentam mais que 2% de evocações em cada classe e juntas contemplam a
quantidade de 98,32% das evocações elencadas.
'É, porque antigamente era muito, era muito cruel, era cruel pra quem não
era marginal! Pra quem era marginal era até bom às vez, mais fácil, sabe?'
(Entrevista realizado com Vida Loka em 2015)
das agressões físicas aplicadas sobre esses homens, seja por parte de outros detentos ou por
parte da polícia e administração do presídio.
'A hora que eu vi minha mãe lá cara foi a hora que eu coloquei minha mão
na cabeça e pensei, "puta lá merda, o que que eu fui fazer”. Minha mãe
chorando eu me senti assim...Não sei cara. Não vou dizer estéril, por que eu
tava muito mais estéril, eu estava muito abalado com aquilo ali velho. Tava
abalado psicologicamente, mentalmente. Não por eu tá lá, mas por minha
mãe tá lá me vendo' (Trecho de entrevista realizado com Zapata em 2015)
Daí é melhor nós apanhar e ficamos uns quinze dias no veneno, só que nós
ficamos 45 dias no veneno, dormindo pelado, sem colchão, sem copo pra
tomar café, sem comida, a comida deles, café da manhã, almoço e janta.
Depois da rebelião era surra, todo dia. (Trecho de entrevista realizado com
Vida Loka em 2015)
Esta categoria serve para contextualizar a dinâmica territorial enquanto sendo algo
mutável e sobreposto, construída na mesma medida em que outras são desfeitas a partir de
regras que se sobrepõem em detrimento dos diferentes grupos que a compõem.
O “X”8 neste caso é algo que não é acessado por todos, e que tem regras diferenciadas
de acordo com o grupo que o sustentam, apresentando dinâmicas distintas daquelas
encontradas na cadeia em geral. Ela é a única espacialidade que apareceu a categoria
‘Conforto’, visto que é local que pode apresentar regalias diferenciadas, a partir do uso de
celulares, a presença de televisão e vídeo game, a possibilidade de uma melhor alimentação
compartilhada pelo grupo presente, etc.
Essa união é legal mesmo cara, tipo se tiver um pão ali, ninguém come se
não der pra todo mundo. Tudo é dividido, tudo tem que ser dividido dentro
do ‘X’. O que que não é dividido? Luxo, luxo que eles falam. Luxo é droga e
cigarro. (Trecho de entrevista realizado com Lobo em 2015)
A espacialidade ‘Seguro’ se faz enquanto algo bastante curioso por ser a espacialidade
que representa aquilo que não é aceito no convívio entre os detentos, sendo caracterizado
7
A espacialidade Cidade (18%) não será discutida nesse artigo, pois este está se prepondo em analisar
somente as espacialidades que compõe somente a prisão.
8
Cela
enquanto um local de exclusão (78% do total de evocações), desprezo e mal caráter (juntos
somam 22% do total das evocações), utilizando aqui para representar as diferentes
territorialidades existentes no espaço carcerário.
Essas celas em específico, são criadas pela organização interna e asseguradas pela
instituição para assegurar a segurança desses sujeitos não aceitos no convívio entre o restante
dos detentos. Podemos considerar que suas condutas ou práticas criminosas configuram em
seus corpos estigmas (GOFFMAN, 1988) que os impedem de acessar a centralidade das
relações de poder internas, limitados a vivências somente essas espacialidades e com isso,
aumentando o rigor de sofrimento em suas penas.
Considerações finais
Este trabalho preocupou-se em compreender como os egressos do sistema
penitenciário da cidade de Ponta Grossa interpretam a experiência do cárcere a partir de suas
vivências territoriais. Este objetivo inicial leva em consideração a experiência do individuo
dentro do território carcerário marcado por distintas relações de poder e que a partir dela,
carregará consigo marcas de ressignificação das relações no momento de sua liberdade.
Teve como condutor teórico o conceito de território, compreendido ao longo do
trabalho como relacional, pois ao mesmo tempo que é composto por individualidades envolve
desafios coletivos que constantemente alteram a sua composição, sobrepondo-se e coexistindo
de variadas formas.
A prisão a partir da vivência realizada pelo grupo entrevistado é definida enquanto um
local de sofrimento (22%), aprendizado (12%), coletividade (12%) e regras (9%), termos que
mais aparecem ao decorrer de suas falas.
Ele também nos indicou que a realidade em que se encontra atualmente a maiorias das
instituições penais é composta pelo descumprimento da legislação que assegura direitos dos
apenados, como por exemplo o alto índice de superlotação, o cumprimento da pena em
cadeias provisórias, a insegurança em relação a integridade física e moral dos reclusos, as
condições insalubres que essas instituições são encontradas, entre outros.
Cumpre finalizar esse trabalho ressaltando a importância e a necessidade de dar
visibilidade a essa dinâmica pouco valorizada dentro das discussões geográficas, tema
considerado ainda marginal na produção de análise científica.
Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa. Tradução: Luís Antero e Augusto Pinheiro, 1970;
RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993;
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo.
Hucitec. 1999;
SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Márcio José (Org.) ; CHIMIN JUNIOR, Alides Baptista
(Org.)
Espaço, gênero e masculinidades plurais. 1. ed. Ponta Grossa: Toda Palavra, 2011. v. 500.
358p;
SOARES, L. E. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2011;
SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Território: Sobre Espaço e Poder, Autonomia e
Desenvolvimento. Em: GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato.
T
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 577
V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Universidade Estadual de Londrina
13 a 15 de junho de 2018
ISSN 2177-8248
Nathália Lipovetsky1
1
Professora Adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia; Bacharela, Mestra e Doutora em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); nathalialipovetsky@gmail.com.
INTRODUÇÃO
SOBRE O TRABALHO
2
Ver Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson, um marco para a disciplina de história social,
lançado em 1963.
DISCUSSÕES ESTATÍSTICAS
MADALOZZO indica que mulheres casadas tendem a receber salários piores que
mulheres em união estável, que recebem salários piores que mulheres solteiras. A
maternidade também constitui um fator de descontinuidade da mulher no mercado de
trabalho. (MADALOZZO, 2012) Embora essas concepções pareçam evidentes em leituras
vulgares da realidade, é extremamente relevante que sejam comprovadas pelas estatísticas do
IBGE via PNAD, para que as afirmações a respeito da segregação sexual no mercado de
trabalho sejam inequivocamente demonstradas.
A divisão do trabalho doméstico também não é igualitária: as mulheres, em média,
contribuem duas a três vezes mais do que os homens para as tarefas domésticas. As tarefas
são distribuídas segundo critérios de feminilidade ou masculinidade e o que ocorre é que as
tarefas “tipicamente femininas”, como a preparação das refeições ou o cuidado da roupa, são
tarefas que consomem mais tempo e que precisam ser realizadas com maior regularidade do
que as tarefas “tipicamente masculinas”, como as reparações de objetos ou a manutenção do
carro. No trabalho de cuidado com os filhos as mulheres tanto se consideram como são
consideradas as principais responsáveis, de forma que as atividades que exigem mais cuidado
e tomam mais tempo, como higiene e alimentação ficam com as mães, enquanto os pais se
ocupam de atividades interativas, associadas à diversão. Essa crença em torno dos tradicionais
papeis familiares mostra-se fortemente arraigada nas mentalidades de ambos os cônjuges.
(POESCHL, 2010)
A alteração do conceito de trabalho ocasionada pelo capitalismo e a Revolução
Industrial impõe que a mulher oriunda de uma classe social mais baixa trabalhe fora para
contribuir com o sustento da família, isso quando não é exclusivamente responsável por esse
sustento. Isso criou a assertiva de que essa mulher estaria submetida a uma dupla jornada, ou
seja, trabalhar no mercado e ainda dar conta de todas as tarefas domésticas, que são de sua
responsabilidade. A ideia de dupla jornada mascara a economicidade do trabalho doméstico
ou de cuidado, que acaba sendo invisível, embora imprescindível. E a ironia está na conversão
de tudo em mercadoria operada pelo capitalismo, especialmente a força de trabalho, acontecer
sem que haja qualquer valorização do trabalho doméstico de cuidado, justamente por não ter
valor econômico imediato, o que é uma falácia, pois se se contrata uma terceira pessoa para
executar o mesmo trabalho, haverá um preço (considerável) a ser cobrado. A invisibilidade do
trabalho feminino de cuidado não se elimina nem por meio da conversão capitalista de toda e
qualquer atividade em mercadoria.
Medir o trabalho segundo critérios exclusivamente econômicos não é viável, uma
vez que o trabalho doméstico não remunerado não é facilmente substituível por nada que se
encontre no mercado, atende a necessidades emocionais e não tem prazo de duração definida,
pois mesmo que seja delegado, sua gestão precisa ser constante. Daí a necessidade de se
valorar o trabalho segundo uma perspectiva global, que abarque o trabalho no mercado e o
trabalho doméstico, ou seja, as esferas pública e privada da vida.
O processo de trabalho doméstico não remunerado produz
valor de uso que será posteriormente consumido como tendo valor de
troca a força de trabalho. Esse trabalho requer habilidades,
conhecimentos, meios de produção particulares para a realização de
cada um dos seus produtos que, no cuidado com as crianças,
contempla: gerar, parir, amamentar, preparar alimentos específicos,
manter o ambiente limpo e a saúde, fortalecer e desenvolver o corpo, o
intelecto, a socialização, o brincar, a educação formal para o trabalho
(ou para a emancipação), os afetos. Logo, esse trabalho produz valor
ponderado no interior da lógica de produção do valor. (GAMA, 2014,
p. 43)
No Brasil o conceito de trabalho adotado pelo IBGE na contabilização da população
ativa e ocupada, considera apenas o trabalho em atividades econômicas, excluindo boa parte
daquilo que é realizado pelas mulheres no seu cotidiano, e o próprio relatório do IPEA
pondera esse fato:
O conceito de trabalho que fundamenta a produção de estatísticas no
país caracteriza-se, portanto, pelas ideias de produção e
mercantilização. A produção de bens e serviços não remunerados no
mundo privado é invisibilizada e entendida como atividade não
produtiva que confere aos seus executores a condição de inativos, caso
também não desenvolvam atividades no mercado de trabalho. (IPEA,
2016)
Os apontamentos discutidos na doutrina se confirmam nas estatísticas: o conceito de
atividade é excludente e desconsidera o trabalho não remunerado desenvolvido no espaço
doméstico de cuidado do próprio domicílio, de filhos, idosos, doentes, como uma atividade
que contribui para a produção e reprodução da vida e que gera valor. Em se tratando de
distribuição do trabalho doméstico, não existem nem mesmo as diferenças entre os grupos
raciais, tão significativas em todos os outros aspectos: “a questão do trabalho doméstico não
remunerado tem um marcador de gênero que, estritamente do ponto de vista do envolvimento
e das jornadas, parece ser igualmente sentido por mulheres negras e brancas” (IPEA, 2016).
No período de 2004 a 2014, segundo o IPEA, observa-se a consolidação do que seria
uma feminização do trabalho, a partir da proporção de pessoas economicamente ativas (PEA).
Em 1970, 18,5% das mulheres eram economicamente ativas, número que sobe para mais de
50% em 2010. No entanto, é preciso ter cuidado com os números, pois
as mulheres permanecem em trabalhos precários e vulneráveis, em
setores já tradicionalmente por elas ocupados. Recebem os piores
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito de trabalho em sua acepção mais ampla nos leva à ideia de trabalho
decente, que é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos estabelecidos
recentemente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a saber: o respeito aos
direitos no trabalho, em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração
Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho; promoção do emprego
produtivo e de qualidade; extensão da proteção social; fortalecimento do diálogo social.
Levando em consideração essas diretrizes e os dados sobre a participação das
mulheres no mercado de trabalho e na economia do país, vemos que, apesar dos avanços
alcançados, especialmente em decorrência dos programas de redistribuição de renda
promovidos pela União no período analisado (sobretudo Bolsa Família e Benefício de
Prestação Continuada), a desigualdade de gênero persiste e só se aprofunda quando somada às
questões raciais e de classe. Os obstáculos a serem vencidos são muitos:
A estruturação de sistemas de proteção social e políticas
públicas capazes de contribuir efetivamente para a superação das
desigualdades de gênero e para o enfrentamento das tensões entre
família e trabalho pressupõe não apenas superar a tradicional
dicotomia entre “mulher cuidadora” e “homem provedor”, que esteve
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. The human condition. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1958.
BRASIL. IPEA. Nota técnica n. 24. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
Brasília, 2016.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008.
GAMA, Andrea de Souza. Trabalho, família e gênero – impactos dos direitos do trabalho e
da educação infantil. São Paulo: Cortez, 2014.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A classe operária tem dois sexos. In: Estudos
Feministas, v. 1, ano 2, p. 93-100, 1994.
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA,
Helena; LABORIE, Françoise; DOARE, Hélène le; SENOTIER, Danièle. Dictionnaire
critique du féminisme. Ed. Presses Universitaires de France. Paris, 2000. Traduzido por
Miriam Nobre em agosto de 2003. Disponível em <
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Consultado pela última vez em 15 set 2017.
MADALOZZO, Regina. GOMES, Carolina. The Impact of Civil Status on Women’s Wages
in Brazil. Est. Econ., São Paulo, vol. 42, n.3, p. 457-487, jul.-set. 2012.
MADALOZZO, Regina. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil: an
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VAN DER LINDEN, Marcel. História do trabalho: o velho, o novo e o global. In: Revista
Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.
1
Mestrando PPGEd – UFSCar campus Sorocaba e bolsista CAPES; caique.diogo@outlook.com.br
Introdução
Método
Neste estudo de caráter exploratório, cujos dados primários e secundários que remetem
as condições do mercado de trabalho brasileiro, realizamos uma coleta em bancos de dados
2
Chamaremos de homens negros e mulheres negras aqueles indivíduos auto-declarados pardos e pretos pelos
critérios do IBGE, uma vez que essa medida também é adotada pelo IPEA para a organização de dos dados que
serão utilizados nesse estudo.
como IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - como fontes primárias e os estudos
realizados por economistas e estudos direcionados a questões de gênero e cor/raça realizados
pelo IPEA – Instituto Brasileiro de Pesquisa econômica -. Os periódicos nacionais pesquisados
para a fundamentação dos dados foram da área de economia.
Para a instrumentalização do olhar investigativo iremos recorrer a dois conceitos: lugar
de fala e interseccionalidade como forma de aprofundamento dos dados mais gerais sobre o
contexto do mercado de trabalho brasileiro no período.
O trabalho de Ribeiro (2017) intitulado O que é lugar fala? Procura refletir sobre a
questão do lócus social do sujeito discursivo. A autora inicia o trabalho desvelando as
dificuldades que as intelectuais negras enfrentam para se fazerem presentes nos discursos
universitário e também nos espaços fora das universidades, dificultando articulações contra as
opressões de gênero e etnia/raça. Embora o livro esteja focado no debate sobre o papel do
feminismo negro e o conceito de lugar de fala como instrumento discursivo, refletindo sobre o
lugar que cada indivíduo pode ocupar no debate público Ribeiro (2017, p.61) entende que “Ao
ter como objetivo a diversidade de experiências, há a consequente quebra de uma visão
universal” (RIBEIRO, 2017, p.61), o que se propõe com a concepção de lócus social é
estabelecer novos caminhos de concepção e validação, diferentemente das críticas que se faz a
esse conceito argumentando que ele tende a encerrar discussões e restringir a troca de ideias
Considero importante ressaltar o lugar de fala ocupando no debate por esse estudo.
Portanto, nesse momento do texto quero deixar de lado a terceira pessoa e me referir ao leitor
a partir da primeira pessoa para delimitar meu lugar de fala nesse estudo. Sou um jovem
estudante que me identifico com o gênero masculino. Ao ser um homem olhando para o trabalho
feminino, farei um esforço de não descrever os sentidos das opressões do mercado de trabalho
assumidos na condição feminina, assim buscarei apresentar os dados no sentido de auxiliar e
contribuir com uma reflexão sobre as condições objetivas as quais estão inseridos os sujeitos.
Durante muito tempo, os estudos sobre a condição da mulher na sociedade tenderam a
olhar para a mulher como categoria genérica e universal fazendo o uso do termo mulheres como
elemento analítico (HIRATA, 2014) para levar em consideração as diferenças existentes entre
a condição humana das mulheres brancas, indígenas, negras, ou entre trabalhadoras e burguesas,
chegou-se à conclusão de haver uma impossibilidade de se pensar a mulher – e os próprios
movimentos sociais feministas - a partir de uma perspectiva universal.
Para que a reflexão proposta nesse texto alcance essas heterogeneidades que compõe
a realidade do gênero feminino, iremos recorrer ao conceito de interseccionalidade. No esforço
de olhar as transformações no mundo do trabalho Hirata (2014, p.61) aponta que
A análise interseccional procura estudar como os vários eixos de poder – como gênero,
raça, classe, etnia, orientação sexual, idade/geração, entre outras – se constituem e entrecruzam
em meio as relações sociais estabelecendo desigualdades sociais e hierarquizações (HENNING,
2015), ou como afirma Crenshaw3 (2002, p.177)
Entre as principais contribuições para a análise interseccional foi realizada por Davis
(2016), olhando para a realidade americana, a autora nos faz uma denúncia sobre o fato de
grande parte dos estudos feitos para resgatar a história dos ocorridos no período de exploração
da mão de obra escravizada esqueceram do papel das mulheres nesse período, em especial
dessas diferenciações em relação a gênero, raça e classe, assim como as opressões e lutas
enfrentadas por essas mulheres. Além disso a autora chama a atenção para o papel das mulheres
negras nas diferentes lutas por direitos como o voto ou os direitos a liberdade nos oferecendo
uma reflexão sobre a necessidade de olharmos para a realidade das mulheres negras.
3
Conforme afirma Henning (2015) foi Kimberlé Crenshaw quem utilizou o conceito de interseccionalidade pela
primeira vez, inicialmente como “metáfora” e posteriormente em seus textos como “categoria provisória”
está diretamente associada ao fato de que no período estudado ocorreu crescimento do número
de postos de trabalho com carteira assinada acima do crescimento da PEA. Embora o baixo
índice verificado entre os anos de 2013 e 2014 tenha acendido no Brasil uma discussão sobre
uma situação de pleno emprego. Mattos e Lima (2015) realizaram um estudo com bases
econométricas analisando o desemprego e o crescimento econômico ocorrido entre o período
de 2002 a 2013, os autores argumentam com base existência de elevada informalidade,
persistência de parcela expressiva de mão de obra subutilizada e tendo como referência algumas
reflexões teóricas, que a economia brasileira não operava em pleno emprego em meados de
2013, apesar de ter, naquele momento, atingido o patamar mais baixo de uma longa série
histórica.
Gráfico 1: Taxa média anual de desemprego no Brasil
Durante o período de 2004 – 2014 certamente pode ser considerado como um período
com mais postos abertos do que fechados no mercado de trabalho brasileiro. No período foram
gerados pouco mais de 14 milhões de empregos. Ocorrendo picos, como em 2010, com a
criação de mais de 2,1 milhões de empregos. E até durante a crise financeira de 2008-2009,
quando a instabilidade e a redução da atividade econômica ocorreram quase que em caráter
global, o Brasil conseguiu fechar o ano de 2008 com crescimento no PIB de 5% e 1,5 milhões
de novos empregos formais e 2009 com 0,2% de PIB e 995 mil novos postos de trabalho
(MATTOS, 2015; SABOIA, 2014).
Esse aumento quantitativo nos empregos formais nos levam a apontar a formalização
das relações de trabalho que até então eram muito informais, ou seja, um processo de
progressivo aumento da formalização das relações de trabalho, medida que abrange o emprego
assalariado com carteira assinada, funcionários estatutários do setor público e empregadores
(MATTOS, 2015). Saboia (2014, p.120) aponta que os empregos com carteira assinada
passaram a corresponder de 44% para 55% da PEA – População Economicamente Ativa –.
Como também
[...] No caso dos direitos trabalhistas, seu não cumprimento costuma resultar
em processos na Justiça do Trabalho, usualmente ganhos pelos empregados.
Por outro lado, o governo aumentou a fiscalização nas empresas para cobrar o
cumprimento da legislação trabalhista. Finalmente, a própria melhoria do
mercado de trabalho observada no período aumentou o poder de barganha dos
trabalhadores, com a possibilidade de escolherem melhores empregos que
respeitam a legislação trabalhista
4
Nesse período foi possível verificar um aumento no consumo de bens duráveis e serviços por aquelas camadas
da estrutura de renda que até então estavam privados desse consumo, todavia como afirma Pochmann (2014) isso
não significa que esses indivíduos passaram a constituir a classe média brasileira, uma vez que a ascenção de classe
não se dá pelo consumo, mas pela detenção dos meios de produção. Para Pochmann, assim como para Chauí, essa
“medianização” da sociedade brasileira não encontra fundamentação na realidade concreta, sendo então mais uma
implicação do contexto neoliberal como mais uma forma de fragmentação das classes sociais e das organizações
sociais que pretendem romper com as estruturas do capital.
gerais do mercado de trabalho têm afetado mulheres e homens, pessoas autodeclaradas brancas
e negras?
Considerando também a educação dos grupos analisados, nota-se que é nas faixas
extremas de anos de escolaridade que se encontram as menores taxas de desemprego, ou seja,
os indivíduos com muitos anos de estudo e os indivíduos com o menor tempo de estudo, assim
o desemprego tem se espalhado pelas camadas com escolarização média – 5 a 11 anos de estudo
(IPEA, 2013). A condição que se encontra sob maior vulnerabilidade no mercado de trabalho
são as mulheres negras com 5 a 11 anos de estudo, portanto aquelas com formação do ensino
fundamental e médio são as maiores vítimas do desemprego no Brasil.
Diversos estudos têm nos informado que há uma diferenciação entre cor/raça e gênero
com relação aos rendimentos médios desses grupos, a intersecção desses dois atributos na
análise nos conduz a descobertas de diferentes desigualdades. No ano de 2004, Segundo Pinto
(2006) verifica-se a desigualdade de rendimentos entre gênero e cor/raça, estruturando uma
hierarquização nos rendimentos, donde os homens brancos figuravam o topo seguidos das
mulheres brancas que ganham mais que homens negros, enquanto as mulheres negras são as
que mais sofrem essa disparidade ganhando os menores rendimentos. 10 anos depois, com uma
taxa de desemprego menor em relação a 2004, o Brasil não conseguiu superar essas hierarquias,
o homem branco continua com o maior rendimento, seguido da mulher branca, homem negro
e mulher negra, respectivamente (LEITE, 2017). E ainda, é importante ressaltar entre essas
desigualdades de gênero em relação a renda, o fato das estatísticas apontarem que as mulheres
brancas ainda recebem 60% do valor relativo aos homens brancos e as mulheres negras 40%
em relação ao homem branco (PINHEIRO et ali, 2016, p.11).
Entendendo o trabalho precarizado como aquele caracterizado por ser realizado sem
carteira assinada, renda de até 2 salários mínimos, trabalho por conta-própria. Considerando
esses requisitos na análise Pinheiro et ali (2016, p.11) argumenta haver uma queda expressiva
do trabalho precarizado entre 2004 – 2013 “[...] com leve tendência de aumento a partir de então
[2014], corroborada pelos dados da PNAD 2014.” Entre o trabalho precarizado, a mulher negra
é “sujeito preferencial” nessas ocupações, do total de mulheres negras ocupadas em 2004, 50%
estavam em condições de trabalho precarizadas, em 2014 esse percentual caiu para 39%, em
seguida aparece os homens negros – 45% em 2004 e 32% em 2014 -, mulheres brancas – 38%
em 2004 e 27% em 2014 – e por último os homens brancos – 31% em 2004 e 20% em 2014.
Além do aumento da participação da mulher no mercado de trabalho formal – e maior
visibilidade desse fenômeno pelas estatísticas - Guimarães (2009, p.27) observa nesse início de
século XXI no Brasil uma “recomposição etária da força de trabalho”, expressada no crescente
uso dos trabalhadores mais experientes, realizando um movimento de exclusão dos mais jovens
e os mais idosos, porquanto a convergência deste movimento de queda dos jovens no quadro
de empregos, alterou o perfil educacional dos indivíduos economicamente ativos. Em relação
a recomposição etária argumentada pela socióloga Nadya Guimarães podemos estabelecer um
cruzamento com os dados de Lima, Rios, França (2013), assim verificamos que a aplicação da
força de trabalho feminina com idades de 10 a 15 anos, entre os anos de 1995 – 2009, a
participação das mulheres brancas nessa faixa etária caiu de 15,7% para 6,9%. No caso das
mulheres negras, caiu de 19,3 para 8,3%. Apesar da aparente redução, é importante assinalar
que essas mulheres por iniciarem suas trajetórias profissionais ainda no ensino fundamental
tendem a não alcançar maiores anos de escolaridade, considerando que a atual conjuntura, como
supracitado por Guimarães (2009), requer cada vez mais anos em sala de aula, olhares precisam
ser direcionados para essas adolescentes.
Segundo Carvalho (2003) e Carvalho, Senkevics, Loges (2014) as mulheres têm
conseguido alcançar mais anos de estudo em relação aos homens no Brasil. Esse quadro é
resultado de mudanças que vêm ocorrendo desde os anos 1960 quando os homens brasileiros
estavam em maior número no ensino superior e médio, a democratização da educação ocorrida
junto a urbanização e principalmente com as conquistas da constituinte de 1988, possibilitaram
o aumento do alunado feminino em todos os níveis de ensino. Já a recente ampliação do acesso
ao ensino superior ocorrida no Brasil nos anos de 1990 - 2000 possibilitaram as mulheres uma
inserção cada vez maior no ensino superior.
O estudo de Lima, Rios, França (2013), Pinto (2006) mostram que na categoria de
funcionários públicos e/ou militares, encontra-se um contingente significativo de mulheres
trabalhando nas áreas de educação e saúde, a presença feminina se destaca. Sob a burocracia do
Estado, o preenchimento dos postos de trabalho se dá de maneira diferente em relação a
iniciativa privada. Como afirmam os pesquisadores do IPEA Lima, Rios, França (2013, p.68):
Embora sejam necessários estudos mais aprofundados sobre o assunto, não se
pode deixar de notar que, na categoria de funcionários públicos e militares,
cujo ingresso exige impessoalidade, meritocracia e certo grau de
escolarização, dado o caráter do concurso público, percebe-se que, nestes
segmentos, de modo geral, as mulheres possuem boa inserção, chegando a
superar os homens, situação singular, quando comparadas as demais
categorias analisadas.
Este parece ser um bom indicio da falta de democracia e justiça nos processos de
recrutamento e seleção da iniciativa privada. Como assinalado por Hirata (2002) A globalização
tem aumentado a divisão sexual do trabalho, podemos também iniciar uma reflexão sobre como
os padrões estéticos e sexistas tem reforçado barreiras com relação a gênero, classe e cor/raça.
Considerações Finais
Referências
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taxas de atividade no mercado de trabalho. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. Disponível em:
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351, maio/ago. 2004
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retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. MARCONDES, Mariana
Mazzini et al. Brasília: Ipea, 2013.
A homossexualidade vista por dentro: estudo de casos sobre a adoção por casais
homoafetivos1
Resumo: Este trabalho pretende mostrar, por meio de estudo de casos, as diferentes
experiências que contribuem com as abordagens sobre adoção de filhos (as) por casais
homossexuais e/ou em relacionamentos homoafetivos. Foram entrevistados três casais
homossexuais: dois são constituídos por mulheres e um por homens. Este estudo foi
desenvolvido buscando elementos que evidenciem o preconceito e a discriminação
relacionados ao gênero, as formas tradicionais de família em contraposição aos “novos”
arranjos familiares e à orientação sexual homoafetiva, buscando identificar as diferenças e
semelhanças de cada processo, principalmente nos sentidos jurídico, sociológico e
antropológico. Comparações feitas, notamos a falta políticas voltadas à conscientização da
sociedade com relação ao princípio da alteridade e aceitação das diferenças. Acreditamos que
é necessário dar visibilidade à diversidade de arranjos familiares. É preciso que as diferenças
sejam colocadas em questão de maneira a possibilitar a garantia de direitos da população
LGBT. Ainda são necessárias e urgentes as leis específicas à adoção homoafetiva, bem como
a lei contra a homofobia, para que os direitos a respeito da população LGBT sejam
considerados e levados em questão.
Palavras-chaves: Arranjos familiares. Homossexualidade. Adoção. Preconceito.
1 Este artigo utiliza entrevistas realizadas entre os anos de 2011 e 2012 e, também, para a
análise, a legislação vigente à época, o que deixa de lado tanto reformas nas leis utilizadas quanto novos
entendimentos quanto aos direitos sexuais e reprodutivos de brasileiras e brasileiros. Cabe destacar ainda que
não foram visitados os processos em que as famílias estavam inseridas e, com isso, eles foram interpretados
apenas a partir do ponto de vista das (os) entrevistadas (os).
2 Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais; mestranda em Ciências Sociais; marcellyolivia@yahoo.com.br.
3 Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais; mestranda em Ciências Sociais; ianeulhoafaria@gmail.com.br.
INTRODUÇÃO
Entre as várias instituições sociais que compõem uma sociedade, a família é uma das
que tem sido mais afetada no que diz respeito às transformações na sua estrutura tradicional.
Segundo Giddens (2000), a modernidade é contrária à tradição, contudo, devido ao
predomínio existente da família patriarcal, antidemocrática, com costumes e hábitos próprios
que prevaleceram em diferentes esferas da vida cotidiana, emergem empecilhos ao
surgimento de novas possibilidades e oportunidades, diferentes daquilo até então estabelecido.
Várias têm sido as mudanças sociais, nas sociedades ocidentais, que contribuem para
o surgimento de novas configurações familiares: a entrada da mulher no mercado de trabalho,
o aumento exponencial das taxas de divórcio, o progresso científico, principalmente no que
diz respeito às técnicas de fertilidade, entre outras. Todos estes fatores exercem fortes
influências que abalam as relações tradicionais relacionadas à família.
Surgem como fruto de um processo histórico as famílias monoparentais que
compreendem um adulto (pai ou mãe) a viver com o filho (a) ou filhos (as), famílias
recompostas que reagrupam pelo menos um membro do casal que é divorciado com filhos
(as) a outro membro também já com filhos (as) de outra relação, e cresce também o número
de famílias chefiadas por casais que vivem em uniões homoafetivas, tentando afirmar-se
juridicamente em diversas sociedades ocidentais. Todas estas mudanças implicam
consequências que influenciam diretamente os padrões de comportamento entre gerações, no
que diz respeito ao que seria socialmente esperado destes indivíduos e, consequentemente,
dando lugar a um novo ciclo de alterações na sociedade, em geral.
A instituição família sofre algumas alterações no que se refere à vida sexual e
reprodutora de seus membros. Ocorre uma separação entre sexualidade e reprodução, os
indivíduos têm a possibilidade de escolha de quando terão filhos (as) ou se têm vontade de tê-
los (as). A vida sexual deixa, assim, de ser algo dominado exclusivamente pelas relações
heterossexuais, conforme também aponta Giddens (2005).
A partir dessas questões, o presente trabalho foi desenvolvido, enfatizando
abordagens do ponto de vista sociológico como, por exemplo, a dimensão da família – que
deve ser pensada a partir de novas configurações, de forma contemporânea, para que haja a
compreensão de expressões, como “novos arranjos familiares” – em contraste com o modelo
deferir idênticos direitos e qualificações aos (às) filhos (as), proibidas quaisquer designações
discriminatórias.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabeleceu em seu artigo
n° 227, os Direitos da Criança no Brasil. Foi proposto o Estatuto da Criança e do Adolescente,
o ECA, visando regulamentar tal artigo da Constituição, inspirado nos Instrumentos
Internacionais de Direitos Humanos da ONU e, em especial, na Declaração dos Direitos da
Criança, seguindo os "Princípios das Nações Unidas para a prevenção da delinquência
juvenil", de acordo com as "Regras mínimas das Nações Unidas para a administração da
Justiça Juvenil" e as "Regras das Nações Unidas para proteção de menores privados de
liberdade”.
O Estatuto descreve que a criança ou o adolescente possuem o direito fundamental de
serem criados e educados no seio de uma família, seja ela natural ou substituta, pois considera
a criança e o adolescente como sujeitos de direito. Primeiramente, deve-se ter o entendimento
de que a adoção é uma forma particular de substituição familiar definitiva, sendo por isso um
instituto que atribui a condição de filho (a) ao (à) adotado (a), com todos os direitos e deveres,
extinguindo qualquer vínculo com a família biológica, com exceção dos impedimentos
matrimoniais, como é estabelecido no artigo n°41 do ECA. O que se pretende com a adoção é
o bem-estar do adotando, proporcionando a ele carinho, afeto, cuidados e principalmente
amparo familiar.
É importante ressaltar que, segundo Dias (2006), a lei não limita a adoção a quem se
encontra previamente inscrito e também não impede concessões de adoção em outras
situações. Existe uma lista para organizar os pretendentes, que deve ser obedecida. Para
efetuar a adoção, além de estar inscrito no cadastro de pretendentes à adoção é necessário
possuir os seguintes requisitos básicos, de acordo com o artigo n°42 do ECA: ser maior de
dezoito anos, independentemente de estado civil e, em caso de adoção conjunta, é
indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável,
comprovada a estabilidade da família. Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-
companheiros podem adotar conjuntamente contanto que acordem sobre a guarda e o regime
de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período
de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com
aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão. A adoção
ainda poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a
falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
A adoção por casais homossexuais não é abordada no ECA, embora não exista
nenhum argumento no estatuto que proíba tal ato. Existiram no país casos de adoção por
pessoas consideradas homossexuais nos últimos anos e, segundo Dias (2006), desde o ano de
2001, assim como são indeferidas, também são deferidas às uniões homoafetivas, direitos, no
âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, sendo reconhecidas como entidade familiar,
ou aplicada por analogia à legislação da união estável. Juízes deram parecer favorável, de
acordo com o Estatuto que visa o bem-estar da criança, mas também de acordo com o bom
senso e desprovimento de preconceito, além da aceitação da existência de formatos novos de
famílias, o que é a proposta em questão.
Não existe nenhuma lei que legaliza a adoção de crianças por casais homossexuais,
porém existem projetos de lei em tramitação, inclusive um projeto que criminaliza a
homofobia5. Em se tratando de referência legal sobre homossexuais, encontra-se na Lei Maria
da Penha6 algum respaldo, visto que a mesma conceitua família como relação íntima de afeto,
independente da orientação sexual. E, a partir do ano de 2011, tem-se o respaldo referente à
união estável entre pessoas do mesmo sexo, que a torna legal.
Ainda de acordo com Dias (2006), as decisões pioneiras relativas às uniões
homoafetivas aconteceram no Rio Grande do Sul, mas todos os estados têm tomado decisões
no mesmo sentido. É recorrente a concessão de direitos previdenciários, pensão por morte e a
inclusão em plano de saúde de casais homossexuais. São inúmeras as decisões que deferem
direitos sucessórios, assegurando direito à meação, direito real de habitação, direito à herança,
bem como o exercício da inventariança. São deferidos também alimentos e assegurado o
direito à curatela do companheiro declarado incapaz. Da mesma forma, é assegurada a adoção
e a habilitação conjunta, bem como declarada a dupla parentalidade quando são usados os
meios de reprodução assistida. No caso de violência reconhecida como doméstica, mesmo
quando entre parceiros homossexuais, são aplicadas medidas de proteção da Lei Maria da
Penha.
Juridicamente poucos avanços a respeito da união e da constituição de famílias por
casais homoafetivos e ou por homossexuais aconteceram e, mesmo que de forma gradativa,
tendem a acontecer cada vez mais. Dessa forma e a partir das questões expostas no decorrer
deste capítulo, tratar-se-á no próximo especificamente do estudo de três casos de pedidos de
adoção. A proposta é perceber, através das falas desses sujeitos, que viveram/vivem
5 Atitude hostil a respeito de homossexuais, como preconceito, medo, desprezo, entre outros.
6 Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nesse caso independente da orientação sexual.
ativamente o processo de adoção, como se dão essas relações, que ultrapassam teorias e
pesquisas relacionadas ao tema.
7 O casal I pediu que o nome delas e das crianças (com exceção da criança que não se adaptou e
voltou para o abrigo) fossem colocados como forma de combate ao preconceito, “não podemos ficar no
anonimato se quisermos que o preconceito acabe”. Já o casal II disse que poderia colocar, mas como o processo
da adoção ainda não foi efetivado e para evitar problemas foram usados nomes fictícios, assim como para o casal
III que pediu para que não fosse usado o nome verdadeiro deles.
8 Por achar mais adequado, escolhemos citar apenas as iniciais dos nomes dos filhos dos casais
II e III e da criança que foi adotada e não se adaptou à convivência com o casal I.
seriam bem-vindos (as). Hugo porque tinha o sonho de ser pai e, ao entrar em contato com as
crianças, se apegou, acontecendo o mesmo com o parceiro Maurício.
O Casal I possui grandes particularidades em relação aos demais, pois foi o único
que entrou com o pedido de adoção e ao ser entrevistado já havia adotado todas as crianças e
passado pelo período de adaptação com sucesso. Como dito, adotaram dois irmãos da
primeira vez, ambos negros, e depois adotaram mais um bebê, de cor branca. A questão racial
é colocada nas entrevistas pelos casais I e III, já que convivem com a diferença nesse sentido
e enfrentam situações diversas no dia a dia, como pessoas que acham que a mãe Ana Cláudia
(negra) é “babá” do seu filho André (branco). Sobre como a questão racial é vivida em casa, o
casal I fala que quando adotaram o bebê de cor branca os irmãos negros ficaram com ciúme e
chegaram a falar que elas só davam atenção para o nenê branquinho, mas que depois ficou
tudo normal. Consideram que “é muita informação para eles assimilarem: abandono, duas
mães, irmãos de cores diferentes, mas que tudo é resolvido com atenção, carinho, amor e
diálogo.”
Os processos de adoção dos casais II e III se encontravam em andamento até a
conclusão da pesquisa. Fernanda, segundo orientações de seu advogado, tentava sozinha a
guarda da criança, para logo ser convertida em adoção, já que a mãe biológica ainda não tinha
perdido o poder sobre a mesma, apesar da criança já morar com o casal II. O que ocorre é o
fato de que, em audiência, a mãe biológica desistiu de entregar a criança para Fernanda
adotar, o que foi acordado inicialmente, e a juíza do caso negou a adoção.
O casal III entrou com o primeiro pedido de adoção, mas não conseguiu. Hugo há
pouco tempo entrou com o pedido sozinho. As crianças a serem adotadas pelo casal III estão
no abrigo e as visitas são constantes. Ao contrário dos casais I e III, Fernanda não declarou a
sua orientação sexual durante o processo de adoção. Ela tem medo que isto influencie de
forma negativa na decisão da juíza, apesar de acreditar que a mesma já sabe da sua orientação.
O único casal que não se mostra frustrado, indignado ou impotente diante do
processo de adoção é o casal I, que entrou com o pedido e obteve sucesso em todos os
processos. O casal assumiu a homossexualidade desde o começo da adoção. Em nenhum
momento omitiu ou mentiu sobre sua sexualidade. Ambas acharam que o processo foi
demorado, sentiram que um juiz ficava mandando o processo para outro, seja por medo de
julgar por ser um casal homossexual ou mesmo por não ter passado pela experiência e não
saber como proceder. Em nenhum momento se sentiram discriminadas ou sofreram
preconceito pela orientação sexual. Sentiram que era algo novo e que, portanto requeria
cuidado. Elas sabem que cabe ao juiz o deferimento, então esperaram pela “sorte” de
encontrar aquele que é mais livre de preconceito, aberto a novas possibilidades de família e
que aja de acordo com a constituição.
Os casais II e III sentem-se frustrados e discriminados quanto ao processo de adoção.
Tiveram os primeiros pedidos negados. No caso do casal II, a lei pesa muito, pois a mãe
biológica não perdeu o poder sobre a criança, embora não queira cuidar dela, fato que pode
ser claramente notado pela L morar com a Fernanda e a mãe biológica não se importar, pelo
contrário, liga para Fernanda buscá-la quando a mesma está em sua companhia. Embora
Fernanda não tenha colocado no estudo psicossocial sua orientação sexual, não descarta a
possibilidade de a juíza ter conhecimento sobre. Não descarta também a possibilidade da
mesma dificultar o processo devido a isso.
O casal III sente-se da mesma forma que o casal II. A diferença jurídica existente
entre os dois é que Hugo e Maurício declararam no estudo psicossocial a sua orientação
sexual e que os pais biológicos já perderam o poder sobre as crianças. O fato dos pais não
terem mais o poder sobre as crianças é favorável, mas pouco ajudou, pois o casal III não
conseguiu a guarda definitiva das crianças. Por sentirem-se muito frustrados, não buscaram
saber o motivo da negação do primeiro pedido e o prazo de consultar a decisão já se esgotou.
Se o casal tivesse consultado a decisão, hoje saberia o motivo pelo qual foi indeferido, o que
poderia ser favorável a eles agora no segundo pedido, pois o advogado poderia usar o motivo
do indeferimento para fazer suas fundamentações no atual processo, mesmo sabendo que o
juiz pode ter negado alegando um motivo que não seja por preconceito. Como Ana Cláudia
falou em sua entrevista, mesmo que o juiz negue um pedido de adoção pela orientação sexual
e não aceitação de outra forma de família, isso não será colocado na sua decisão.
Os processos de adoção diferem entre si em algumas especificidades e, como já dito,
são estudados psicológica e socialmente de acordo com as necessidades reais consideradas,
como: lar, educação, entre outros fatores que tendem a garantir determinado equilíbrio na vida
do adotado. O processo se torna mais rápido quando há acordo entre pais biológicos (ou
representantes legais destes) e pais adotivos. Fica a cargo do juiz responsável pelo caso, a
partir dos fatores citados acima, que dão assistência completa ao (à) adotando (a), homologar
ou não a sentença. A orientação sexual não é fator que deve ser considerado na decisão do
juiz, porém, em alguns casos, pode ocorrer de o mesmo levá-la em consideração, de acordo
com suas próprias concepções e valores acerca dessa questão.
Esta preocupação é vista no processo de adoção do casal III, que relata que foi
perguntado durante uma entrevista com a psicóloga responsável pelo processo sobre o motivo
de o casal preferir “meninos em vez de meninas”, deixando os interessados constrangidos,
pois a opção era por achar mais fácil cuidar, uma vez que são homens, e não por interesse
sexual. É como se o fato de ser homem com orientação homossexual significasse desejar todo
e qualquer homem, inclusive crianças. Este ponto foi levantado somente pelo casal III,
formado por homens, os casais I e II, formados por mulheres, não passaram por nada
parecido.
O casal I relata não ter encontrado grandes dificuldades ligadas a homossexualidade
para adotar, a não ser o processo burocrático que envolve qualquer adoção e o fato de ser algo
novo. O pedido de adoção dos primeiros filhos foi no nome de Cecília, somente. Já o de
André, o último adotado, o advogado aconselhou que as duas entrassem juntas com o pedido,
pois a adoção poderia ser concedido às duas. Elas entraram e conseguiram, na certidão de
nascimento da criança consta como filiação o nome das duas mães. Ana Cláudia pretende
entrar agora com o pedido para adotar os filhos de Cecília, já que estão em um relacionamento
e a lei permite que o (a) cônjuge adote o (a) filho (a) do (a) outro (a)9.
O preconceito em relação à homossexualidade é sentido de alguma forma por todos
os casais. Mesmo aqueles que se disseram respeitados, em algum momento passaram por
alguma situação desconfortável. Nota-se que existe um otimismo de que o conceito das
pessoas com relação à homossexualidade está mudando e que com o tempo a aceitação pela
sociedade aumentará. Este otimismo é perceptível quando o casal I menciona que a sua filha
sofreu um bullying10 na escola e, quando elas foram até a instituição reclamar sobre o
acontecido, a pedagoga propôs realizar debates sobre adoção homossexual.
Outro aspecto é quanto à orientação e comportamento sexual dos (as) filhos (as) de
casais homossexuais. Pode-se acreditar que os (as) filhos (as) sigam seus pais nesse sentido.
Como exemplo, os filhos biológicos de Maurício, que compõe o casal III, permitem uma
reflexão, diante do fato de que dois dos seus três filhos são heterossexuais, com relações
9 De acordo com o artigo 41, da Lei nº 8.069/90, a adoção atribui a condição de filho ao
adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e
parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. § 1º “Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro,
mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos
parentes”.
10 Bullying é um termo da língua inglesa (bully = “valentão”) que se refere a todas as formas de
atitudes agressivas, verbais ou físicas, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente e são
exercidas por um ou mais indivíduos, causando dor e angústia, com o objetivo de intimidar ou agredir outra
pessoa sem ter a possibilidade ou capacidade de se defender, sendo realizadas dentro de uma relação desigual de
forças ou poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do estudo de casos feito com os três casais neste trabalho pode-se
notar que cada casal passou por uma experiência particular, mas todos enfrentaram e dois
deles ainda enfrentam certa dificuldade quanto ao processo de adoção, por serem
homossexuais. O casal I está com os (as) filhos (as) todos (as) adotados (as), não sentiram
discriminação e preconceito por parte dos responsáveis pela adoção, mas sentiram que o
processo ficou travado nas mãos do juiz, por ser algo novo. O casal II sente que o fato de ser
homossexual pode ainda influenciar o processo, mas percebe maior desconforto em relação à
burocracia ligada à adoção. Questionam a lei, que faz de tudo para manter as crianças dentro
do seio familiar biológico, mesmo quando estas não tem o mínimo de amor e dedicação por
parte dos familiares. E o casal III, representado por Hugo, sente enorme indignação quanto ao
preconceito de que os homossexuais são alvos.
Pode-se constatar o preconceito e a resistência por parte da sociedade em aceitar a
homossexualidade bem como a nova família que assim se constitui. O casal I é totalmente
assumido, assim o foi durante todo o processo de adoção e, ao contrário dos demais, não se
sentiram inferiores ou estigmatizados diante o processo, mas sentiram que os juízes veem
como algo novo e que, portanto, requer cuidado, o que tornou o processo mais demorado do
que já é. A visão do casal I sobre o processo é de pessoas que aceitaram a homossexualidade e
não fazem questão nenhuma de esconder a sua orientação, inclusive durante o processo,
assumiram-se como homossexuais e foram respeitadas.
O casal II não se assumiu durante o processo de adoção apesar de aceitar a sua
orientação sexual, porém se assumem só quando se sentem confortáveis. Fernanda achou que
durante o processo não era relevante assumir sua orientação sexual. Teve medo do
preconceito e da resistência por parte das pessoas envolvidas e considera ter tido razão, pois
se deparou com situações preconceituosas durante o processo.
O casal III também aceita a homossexualidade a ponto de ambos se assumirem como
tais e assim procederam durante o pedido de adoção. De acordo com Hugo, ele passou por
constrangimentos e acredita que o seu pedido foi indeferido pelo juiz devido a sua orientação
sexual, pois preenchia todos os requisitos e inclusive estava adotando dois irmãos negros
visando não separá-los, o que é bem-visto pela justiça, já que crianças negras permanecem
mais tempo nos abrigos e adoção de irmãos é incentivada.
Propõe-se aqui pensar no conceito de estabilidade e relacioná-lo à vida de uma
criança, adotada ou não. Um casal que quer adotar e está apto a isso tem o direito de passar
pelo processo de adoção independente do núcleo familiar que constitui. Casais homoafetivos
que compõem os novos arranjos familiares estão inseridos nessa discussão e demonstram, de
diversas maneiras, que o preconceito estabelecido no passado relacionado à promiscuidade,
sexo e doenças hoje tende a diminuir cada vez mais, no sentido de que se percebe que os
grandes agentes dessas relações são o amor e a vontade de ser feliz. Nesse sentido, a
orientação sexual é e tem de ser vista como indiferente.
O debate é imenso e deve continuar. Esta pesquisa tem como finalidade inserir nos
espaços sociais – privados, públicos e íntimos – a discussão sobre o assunto. O preconceito
aos novos arranjos familiares ainda existe. No campo acadêmico, autores como Giddens
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2006.
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Graduanda do curso de Psicologia e bolsista de Iniciação
Científica BIC/UFRGS no Projeto de Pesquisa “A constituição das práticas psicológicas no campo das políticas
públicas de assistência social”; E-mail: thais_gomes.oliveira@hotmail.com.
2
Psicóloga. Especialista em Instituições em Análise (UFRGS). Mestre em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS). Doutoranda do PPG em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), bolsista CAPES; E-mail:
brunabattistelli@gmail.com.
3
Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do PPG em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS). Doutora em Psicologia (PUCRS); E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com.
Introdução
4
Caracteriza-se por equipamento público descentralizado, que é responsável pela organização e oferta dos
serviços de Proteção Social Básica.
5
Unidade pública estatal responsável pela oferta de orientação e apoio especializados, inserido na Proteção
Social Especializada.
6
Neste trabalho será utilizado o gênero feminino inicialmente, com objetivo de resistir ao gênero masculino
universal e neutro – que compõe a norma escrita do nosso idioma.
ideia de família que está em jogo nesse cenário e o que pode ser produzido a partir da
interface entre a Psicologia e a Política de Assistência. Assim, abre-se espaço para algumas
interrogações: de quais famílias estamos falando? Como trabalhar com essas famílias?
Alguém se responsabiliza por elas? Podemos falar de alguma função protetiva a priori?
Neste trabalho analisaremos como o conceito de matricialidade sociofamiliar aparece
nos documentos da Política de Assistência Social – investigando o que se entende por práticas
de proteção e de cuidado e analisando suas possíveis implicações em relação ao gênero, mais
especificamente a responsabilização pelo cuidado e proteção das/os filhas/os e o papel das
mulheres neste cenário. Para isso utilizamos a análise de documentos da PNAS. Os
documentos consultados foram/são os seguintes: Política Nacional de Assistência Social –
NOB/SUAS (2004); Orientações Técnicas Centro de Referência de Assistência Social –
CRAS (2009); Orientações Técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à
Família – PAIF II (2012); Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para
fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social (2016).
Além disso, utilizaremos como referencial teórico autoras/es que dialogam com estudos de
gênero e Políticas Públicas.
A análise dos quatro documentos se deu no intuito de pensarmos o que se entende
por família e por matricialidade sociofamiliar diretamente na PNAS e em documentos
subsequentes a ela. O texto da PNAS, de 2004, “demonstra a intenção de construir
coletivamente o redesenho desta política, na perspectiva de implementação do Sistema Único
de Assistência Social – SUAS” (BRASIL, 2004, p. 11); dessa forma, objetiva materializar
ações e diretrizes para efetivação da assistência social como responsabilidade do Estado. Em
um processo de amadurecimento da PNAS e do aprimoramento do SUAS, é lançado o
documento de Orientações Técnicas – CRAS, em 2009, que apresenta o funcionamento do
CRAS em todo o país, trazendo um conjunto de diretrizes e informações para auxiliar no
planejamento e implementação do mesmo (BRASIL, 2009). O PAIF II é marco organizador
para o principal serviço da PSB e trabalha minuciosamente a ideia de Trabalho Social com
Famílias (TSF), trazendo diretrizes, exemplos e recomendações; no documento é entendido
que “o PAIF é pedra fundamental e se caracteriza como eixo basilar para a ‘nova’ política de
assistência social que vem sendo construída no Brasil” (BRASIL, 2012, p. 05). O documento
mais recente que analisamos constitui referencial quanto ao TSF (2016). Este é redigido por
Regina Mioto, assistente social e pesquisadora sobre as famílias, políticas sociais etc., e uma
das referências utilizadas neste trabalho.
7
Todos os grifos encontrados nas citações deste trabalho são feitos pelas autoras do mesmo.
8
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
A partir do documento sobre trabalho social com famílias (BRASIL, 2016) encontra-
se, inicialmente, que “a família, independente de sua configuração, continua sendo espaço
privilegiado de convivência humana e, ao lado do trabalho, constitui um dos eixos
organizadores da vida social” e que “a família enquanto espaço de proteção e cuidado
permite que muitas necessidades de saúde e bem-estar não se transformem em demandas
para serviços sociais”. A partir desse fragmento, podemos entender que se as famílias
cumprissem suas funções de proteção e de cuidado “adequadamente”, não existiria demanda
para os serviços da Assistência Social. Dessa forma, fica evidente que os serviços operam
quando as famílias “falham” – o que gera uma cultura de responsabilização, em que as
famílias apenas acessariam o serviço quando incapazes de protegerem seus membros de
quaisquer adversidades possíveis. Além disso, acaba apontando para uma
desresponsabilização do Estado enquanto instância de proteção social das cidadãs/ãos. Meyer
et. al. (2014, p. 433) trazem que “[...] ‘a’ família tem se constituído como o alvo preferencial
de políticas e programas direcionados para a ‘inclusão social’; nesse contexto, ela tem sido
posicionada tanto como ‘origem’ quanto como instância de resolução de problemas sociais e
econômicos de países pobres e em desenvolvimento”.
Entendemos que é fundamental pensarmos sobre qual conceito de família está em
jogo na Política. Além disso, é fundamental pensarmos sobre qual função protetiva é essa que
se espera das famílias e sobre como trabalhar com essas ideias sem acabar culpabilizando as
famílias que “falharam” nessa função prévia que é escrita nos documentos – e que é
ferramenta de construção de verdades sobre as famílias e pessoas usuárias. Entendendo e
assumindo que a família enquanto instituição vem atravessando diversas mudanças que dizem
respeito a novas organizações societárias e relacionais, não seria contraditório reconhecer as
variedades das experiências familiares da atualidade e mesmo assim apostar em funções e
responsabilizações prévias? Desse modo, perguntamo-nos: que famílias são essas de que
falam os documentos? Podemos afirmar que elas devem compor função protetiva prévia? Elas
atuam como braço do Estado na proteção social? A família em questão é “órgão auxiliar”? Se
sim, sob responsabilidade de quem?
Surge neste documento algo que é novo, que está em construção. Mas é importante
lembrarmos que este é único momento em que essa direção é apontada. De acordo com
Membro adulto da família que responde pelo cuidado cotidiano dos demais
membros. Pode ser a mulher que não aufere renda, mas é responsável por
atividades diárias em relação ao domicílio e à família ou, ainda, a avó que
cuida das crianças e/ou adolescentes enquanto a mãe desempenha o
papel de provedora. O responsável familiar é a pessoa assim considerada
pelos demais membros, em função do reconhecimento de sua
responsabilidade de proteção e autoridade no âmbito familiar. (p. 22)
9
Respeitando a referência que foi produzida no ano de 2004, salientamos que a década passada diz respeito aos
anos 1990 do século passado.
em cumprir a função protetiva prévia que é esperada delas, como esse processo se daria de
forma a respeitar essas vidas e não a culpabilizá-las?
As autoras Cruz e Guareschi (2012) apontam que é responsabilidade das famílias
explicar e responder pelas ações inadequadas dos seus filhos, sendo que sobre elas recai a
culpa sobre tudo o que não ocorre dentro do esperado; ao passo que Meyer, Klein e
Fernandes, (2012) escrevem apontando “[...] para um processo de dupla responsabilização de
mulheres-mães (sobretudo de mães pobres), posicionadas como ‘alvo’ de políticas e
programas de inclusão social” (p.886).
No decorrer da análise dos documentos, deparamo-nos com um campo de tensões: em
alguns momentos, é apontado para a proteção familiar como algo que seria feito pelas
mulheres – como no fragmento citado acima, que aponta a mãe como alguém que seria
responsável pela família e, na ausência dessa, a avó; mesmo que em outros momentos os
documentos enfatizem que não é intenção que se responsabilize ou culpabilize essas famílias
pela sua condição (BRASIL, 2012). O que é pensado também por outras autoras como
Carloto e Mariano (2008, p.155) que falam “[...] de uma centralidade não tanto na família, que
é o termo que o documento adota, mas de uma centralidade na mulher-mãe”.
Nesse processo em que as mulheres são “alvo” das políticas sociais, elas têm sido
entendidas enquanto causadoras de boa parte dos problemas enfrentados pelas suas famílias,
bem como enquanto pessoas-referência para promoção da inclusão social que se almeja. Esse
processo é nomeado como “politização contemporânea do feminino e da maternidade”.
(MEYER; KLEIN; FERNANDES, 2012, p.886). Ainda no que diz respeito a esse lugar
atribuído às mulheres nas políticas sociais, as autoras afirmam que “isso tem intensificado
tanto o trabalho que elas realizam no plano familiar quanto fragilizado o seu trabalho no plano
profissional. [...] as mulheres têm sido interpeladas, também de diferentes modos e cada vez
mais incisivamente, como ‘produtoras’ de educação e de saúde no âmbito de suas famílias
[...]” (p.887).
As autoras Rodrigues e Hennigen (2012) apontam para o grande número de políticas
e programas que buscam incentivar certas condutas familiares com a justificativa de assim
operar na promoção da saúde, educação, proteção integral de crianças e adolescentes, entre
outros aspectos. As autoras afirmam também que além de prever condutas, os programas e
políticas de assistência preconizam a família como o melhor lugar para a criança, mas o que
não diz respeito a toda e qualquer família (organização familiar), mas sim a um tipo de família
ideal, marcada por lugares determinados. E nesse contexto, para existir uma família ideal,
seria preciso que essas mulheres-mães desempenhassem papéis vinculados a ideais de
Sabe-se que, muitas vezes, a psicologia sequer considerou outras realidades sociais,
que não fossem eurocentradas, como é dito por Maria Carolina Vecchio (2007):
É nesse imbricamento que nos colocamos a pensar: como a família, no contexto das
políticas sociais, pode ser entendida pela(s) Psicologia(s)? Nesse campo de tensionamento, as
autoras Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013) trazem contribuições que dizem respeito à (falta
de) formação política na psicologia, voltada também para o que concerne ao social:
Psicólogas/os compõem equipe mínima dos CRAS desde sua implementação. Mas é
possível pensarmos que muitas/os dessas/es não receberam e não recebem formação para a
execução de trabalho em políticas públicas. Em relação ao resgate dessa história recente entre
as práticas psicológicas na assistência, muitas ações foram pautadas na dicotomização entre
normal e patológico, famílias estruturadas ou desestruturadas – e ainda discursos que
culpabilizaram as famílias por sua condição socioeconômica (CRUZ; GUARESCHI, 2012).
Consideramos que a Psicologia tem outros entendimentos a construir a partir da sua
inclusão profissional – cada vez mais presente – no campo das políticas sociais. E que o
espaço para pesquisa em Psicologia Social é fundamental nesse contexto – o que se dá por
meio de desafios: o que pode a psicologia social na produção de entendimentos que se
desvinculem com a tradição psicológica normativa e reguladora, no que diz respeito às
famílias e ao trabalho com essas mulheres-mães?
Considerações finais
Dado o processo de pesquisa deste trabalho, fica evidente que os conceitos de família
e de matricialidade sociofamiliar são campos de investigação por diferentes áreas de
conhecimento e que seu modo de entendimento pode vir a reforçar estereótipos de gênero.
Nesse processo, mulheres-mães podem ser responsabilizadas pelo cuidado e pela proteção
dessas famílias usuárias da Assistência Social, em um processo de culpabilização destas, e de
consequente desresponsabilização de outras esferas possíveis, como o Estado. Desse modo,
entendemos como fundamental que as ideias envoltas às famílias sigam sendo amplamente
debatidas e desnaturalizadas, a fim de que se possa, nos documentos e em campo, construir
narrativas que promovam autonomia e acesso a direitos – desviando das lógicas que
normatizam e regulam o que essas famílias devem fazer para serem “boas famílias”,
respeitando suas multiplicidades e não as tomando como principais responsáveis pela
proteção e pelo cuidado em realidades em que, muitas vezes, elas não recebem o mínimo
necessário.
Nos documentos, é possível perceber que existe um rearranjo conceitual em relação
às famílias, rearranjo este que diz respeito às estruturas dessas famílias, em que é entendido
que essas não são mais aquelas compostas por pai/mãe/filhas/os – mas que são
estruturalmente multifacetadas na nossa organização social. E a partir dessa mudança de
atores familiares, talvez mudassem também as funções esperadas que cada um exerceria – até
para não recair responsabilidades sobre as mulheres, que permaneceram enquanto chefes
dessas famílias, em sua maioria. Porém, entendemos que se mantiveram as expectativas sobre
as funções das mesmas, que estão tradicionalmente calcadas em considerações da cultura
referentes ao papel materno. Recorrendo às autoras Carloto e Mariano (2008)
Pensamos que esse mesmo padrão de funcionalidade que é exigido dessas famílias
deve ser colocado em análise, e que outros estudos no campo da psicologia social nas
políticas públicas se fazem necessários. É importante salientarmos que neste trabalho
partimos de uma análise inicial e que é nosso objetivo complexificá-la e seguir propondo
Referências
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na Política de Assistência Social. Revista Sociedade em Debate, Pelotas, 14(2): 153-168,
2008.
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posição da família na política social brasileira. Revista SER Social, n. 12, p. 165-190, Brasília,
2010. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/281.
Acesso em: 18 maio 2018.
DETONI, Priscila Pavan; MACHADO, Paula Sandrine; NARDI, Henrique Caetano. “Em
nome da mãe”: performatividades e feminizações em um CRAS. Revista Estudos Feministas.
Florianópolis, 26(1), 2017.
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desafio de superar as práticas clientelistas. Serviço Social em Revista. Londrina, v. 17, n.2,
p.64 -90, 2015.
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LASTA, Letícia Lorenzoni. GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; CRUZ, Lílian Rodrigues
da. A psicologia e os centros de referência em assistência social: problematizações
pertinentes. In: CRUZ, Lílian Rodrigues da; GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima. O
psicólogo e as políticas públicas de assistência social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 52-65.
RODRIGUES, Luciana; GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; CRUZ, Lílian Rodrigues da.
A centralidade do vínculo familiar e comunitário nas políticas públicas de assistência social.
In: CRUZ, Lílian Rodrigues da; RODRIGUES, Luciana e GUARESCHI, Neuza Maria de
Fátima. Interlocuções entre a psicologia e a política nacional de assistência social. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2013, p. 11-22.
VECCHIO, Maria Carolina. Onde mora o perigo? Um estudo sobre noções e práticas de
proteção à infância entre moradores de uma vila popular de Porto Alegre. 136 f. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre/RS, 2007.
Resumo:
Neste artigo pretendemos discutir a transição do debate sobre o parto da esfera íntima
para a esfera pública. Defendemos que o nascimento vem passando por um processo de
politização nos últimos anos e argumentamos que recentes resoluções propostas pela ANS
(2015), CFM (2016) e Câmara dos deputados (2016) podem ser considerados exemplos disso.
Deste modo, estruturamos o artigo em quatro partes. Primeiramente, abordaremos os
modelos de assistência obstétrica presentes na sociedade ocidental e estabeleceremos um
panorama do processo de nascimento no Brasil contemporâneo. Depois, examinaremos o
papel dos media, das conversações e das histórias de vida nas discussões sobre o tema. Em
seguida, estudaremos como o debate se constitui em meio a assimetrias de poder entre
profissionais do parto e gestantes, bem como o modo pelo qual os sentimentos morais de
injustiça são percebidos pelas mulheres. Finalmente, observaremos como o processo de
nascimento passou a ser discutido na esfera pública ao longo dos anos. Nossa discussão será
exemplificada pela deliberação e conversação política centrada na resolução normativa 2144
do Conselho Federal de Medicina, divulgada em 22 de junho de 2016, e no Projeto de Lei
5687, proposto em 29 de junho de 2016, que buscam estabelecer diretrizes para o processo de
nascimento no país.
1
PPGCOM/UFMG; mestranda; juliaester.paula@gmail.com.
Introdução
pela qual é possível constituir uma discussão em meio a assimetrias de poder. Enfim,
observaremos como o debate saiu da esfera privada e atingiu a esfera pública, alcançando,
inclusive, a instância legislativa governamental.
O parto no Brasil
2
Relativo ao período entre 22 semanas completas de gestação e sete dias completos após o nascimento.
A pesquisa mostra ainda que todos os anos quase um milhão de mulheres são
submetidas a cesáreas sem indicação obstétrica adequada e que de 1970 pra cá – década em
que o modelo de assistência obstétrico tecnocrático começou a ser criticado - o número de
cesáreas quase quadriplicou no país, saindo de 14,5% para 52%. Os dados mostram que
apenas 5% das mulheres têm o parto normal sem intervenções e são 43% de parto normal com
intervenção, o que totaliza 48% de partos normais realizados no país. Dos 52% de cesáreas,
apenas 18% são realizadas com mulheres já em trabalho de parto e 34% de cesáreas
agendadas. São números muito diferentes do que acontece no Reino Unido, por exemplo,
onde 40% dos partos realizados são normais e sem intervenções, ressaltando o modelo de
atenção extremamente medicalizado no Brasil e com grande índice de violência obstétrica
(FIOCRUZ, 2014).
Deste modo, por vezes, a escolha pelo parto é na verdade uma escolha entre uma
cesárea e um parto normal com violência obstétrica, não podendo, portanto, ser considerada
uma escolha genuína. A autonomia nem sempre é percebida neste contexto - seja pela falta de
diálogo entre médicos e gestantes, seja pelo não reconhecimento da mulher enquanto um
sujeito apto a agir moralmente. Estas violações, contudo, vêm aos poucos sendo tematizadas
na esfera pública por atores envolvidos e que buscam uma discussão ampliada sobre o tema,
como a próxima seção deste ensaio discorrerá.
Maia fala ainda que na maioria das situações, as pessoas formam suas opiniões
combinando suas experiências pessoais com os discursos disponíveis nos media. Assim, como
os media não só difundem as informações, mas também selecionam como são mostradas, eles
podem ser vistos como fórum de debate e também como ator do debate,
No caso do debate sobre o parto, consideramos que os media ampliam o público
interessado pelo tema e fomentam a discussão. Entretanto, ao entender que eles não apenas
difundem as informações, mas as enquadram em viés específico, concordamos com Maia e
Oliveira (2017) quando as autoras dizem que a publicização das questões pode gerar efeitos
contraditórios.
Um exemplo disso é o caso da morte da enfermeira e professora da Universidade
Federal de São Carlos, Mariana Machado (ARAÚJO, 2015). Em junho de 2015, Mariana
passou por uma cesárea de emergência após tentar, por mais de 48 horas sem sucesso, ter um
parto natural humanizado. A enfermeira teve hipotensão e choque hemorrágico e morreu após
11 dias internada. Este caso teve forte repercussão midiática, mas os enquadramentos foram
diversos. Enquanto alguns portais destacavam que Mariana morreu depois de tentar o parto
natural por dois dias, outros focavam no fato dela ter morrido após a realização de uma
cesárea. Assim, apesar de impulsionar os debates sobre o tema e expor argumentos de ambos
os lados da discussão, os portais de notícia foram entendidos como sensacionalistas,
manipuladores e difusores de informações inverídicas e conflitantes.
A atuação desses sub-sistemas no processo de troca de razões, entretanto, não implica
que a deliberação deixe de ser perpassada por desigualdades e assimetrias diversas e que as
mulheres não passem por violências e privações no processo de parto. A próxima seção deste
ensaio explora melhor este aspecto.
Ainda que a deliberação seja perpassada por diferentes arenas e atores, destacamos
que o debate não se faz isento de relações de poder. Sabendo disso, Mendonça (2006) destaca
que não se pode desconsiderar as questões de poder que circundam os media enquanto espaço
de disputa por visibilidade, tampouco ignorar as transformações que eles promovem. Araújo e
Cardoso (2007) dizem que os media e a área da comunicação são palco para embates em
torno do poder simbólico e este poder está ligado à legitimidade do discurso.
“... o poder simbólico de uma pessoa, grupo ou instituição está na razão direta do
seu capital simbólico. Este resultado do reconhecimento, como legítimos, dos
capitais de outra espécie – econômico, cultural ou social. A legitimidade se
conquista, via de regra, no território da comunicação, que é o da produção e
circulação dos sentidos sociais. E, num movimento circular, a comunicação é mais
eficaz quando emanada de uma voz autorizada por legitimidade.” (ARAÚJO e
CARDOSO 2007. P. 38)
Ainda sobre poder, a teoria feminista trouxe uma forte contribuição à teoria política ao
ampliar os espaços em que ele é tematizado (FRASER, 1990). De acordo com Young (2001),
família, corpo e sexualidade podem ser percebidos como arenas que impedem a completa
efetivação da mulher enquanto sujeito político. Na sociedade atual, médicos têm um poder
simbólico perante pacientes e, deste modo, suas opiniões seriam deteminantes da escolha de
um parto.
“Por determinadas circunstâncias, algumas teorias adquirem prevalência sobre as
demais, ganham o estatuto da verdade, passando a orientar a percepção de um
grande número de pessoas, tornando-se hegemônicas. Mais que isto, algumas
teorias se naturalizam, passam a ser percebidas como algo natural e não construído
pelas pessoas, em determinada época e com determinados interesses. Assim, temos
caracterizada em seu mais alto grau a possibilidade do exercício do poder
simbólico, o “poder de fazer ver e fazer crer.” (Araújo e Cardoso, 2007. P. 36)
Argumentamos, a partir do que foi dito nas seções anteriores, que a abordagem
sistêmica da deliberação, a tematização do parto como um assunto de interesse social e os
sentimentos morais de injustiça – que a exposição de razões, os media, as conversações
cotidianas e as histórias de vida ajudariam a proporcionar – podem ser relacionados a um
processo de politização do parto na sociedade brasileira.
De acordo com Wood e Flinders (2014), a politização pode ser classificada em três
tipos. O primeiro é relativo à capacidade de deliberar sobre temas antes intocados. Neste
aspecto, durante muito tempo, como mostrado neste ensaio, o parto foi percebido como um
assunto íntimo e feminino. Logo, deveria ser resguardado aos limites da casa e às mulheres da
família. Homens e pessoas de fora não precisariam saber dos detalhes tampouco exigir
melhorias. Atualmente, esta situação é vista como descabida. Os media difundem informações
e mulheres relatam suas experiências. Diferentes pessoas refletem sobre o tema, ficam
indignadas quanto a alguns tópicos, fiscalizam abusos e discutem como alcançar melhorias
(MAIA, 2012).
O segundo tipo se refere à compreensão da questão como pública e não privada. O
debate sobre o modelo de parto, antes entendido como apenas uma questão de escolha da mãe,
passou a ser percebido num contexto mais amplo, perpassado pela relação com os médicos,
familiares e sociedade como um todo, bem como das condições físicas, psicológicas e
econômicas da mulher. Isto posto, não bastaria “mudar” a opinião da gestante, mas seria
preciso estabelecer possibilidades e materialidades para que as melhorias propostas fossem
viáveis.
Por fim, o terceiro tipo é referente a uma impulsão do debate para a esfera
governamental, que deveria propor alternativas à situação e tomar parte da responsabilidade.
Aqui, algumas legislações propostas pela Agência Nacional de Saúde/ANS, Justiça Federal,
Conselho Federal de Medicina/CFM e Câmara dos Deputados nos dois últimos anos podem
exemplificar esta interpretação.
Com o objetivo de reduzir a taxa de cesáreas no sistema particular, a ANS determinou,
em janeiro de 2015, que os planos de saúde devem informar suas taxas de parto normal e
Em resposta a esta resolução, no dia 27 do mesmo mês, menos de uma semana após o
lançamento da resolução, o Deputado Federal do Partido Social Cristão do Mato Grosso/
PSC-MT, propôs o Projeto de Lei 5687, com o intuito de autorizar o agendamento ao
completar 37 semanas de gravidez. O texto do documento alega que o projeto garante a
dignidade e autonomia da mulher que escolheu passar por uma cesárea. O texto diz
“Sabemos que O Conselho Federal de Medicina através da Resolução N.
2.144 de 22 de junho de 2016, em seu Art. 2º, traz uma nova regra para as gestantes
que preferirem a cesariana em vez do parto normal. Disciplinou que a mulher terá o
direito de fazer prevalecer sua escolha entre parto normal ou cesariana, desde que o
procedimento seja realizado após a 39ª semana de gravidez. Criando com certeza uma
polêmica sobre o direito de escolha dessas mães, sabendo que antes era de 37
semanas.
O Art. 2º da Resolução 2.144/2016, entendo que interfere diretamente na
autonomia da paciente. Agora é uma regra para ser seguida nos hospitais públicos e
privados. Não havendo situação de risco para a mãe nem para o bebê, a determinação
do Conselho é no sentido que a cesárea após agendamento seja feita a partir da 39ª
semana de gestação. Antes, a regra era a partir da 37ª.
Portanto, este projeto dará dignidade e autonomia para as mães que ao
escolherem através de agendamento prévio o procedimento cesariano, lhes será dado o
direito de escolher logo após a 37ª semana de gestação.” (GALLI, 2016. P. 1)
O Projeto de Lei foi rejeitado pelas comissões de Defesa dos direitos da mulher e de
Seguridade Social e Família. No parecer, a relatora destacou a importância deste debate e
enfatizou que a RN 2144 tem como objetivo proteger mães e bebês, garantindo o
desenvolvimento necessário para o feto e evitando os riscos proporcionados pela cesariana. O
texto diz:
Considerações finais
Neste artigo investigamos a discussão sobre o parto no Brasil, que saiu dos espaços
privados e atingiu esferas legislativas. Entendemos que o processo de nascimento passa por
uma politização e que a escolha pela via de parto vem sendo tematizada na esfera pública
Referências
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http://www.huffpostbrasil.com/2015/07/25/morte-de-professora-da-ufscar-11-dias-apos-dar-a-
luz-gera-debate_a_21689535/> Acesso em 25 de novembro de 2017.
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< https://www.terra.com.br/noticias/brasil/medicos-vao-receber-tres-vezes-mais-por-parto-
normal-determina-justica,7374662e3117bf069907da852ffc89bey21edb8m.html> Acesso em:
17 mai 2017.
FUTEMA, Fabiana. Ufscar divulga nota sobre morte de professora após cesárea em São
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nota-sobre-morte-de-professora-apos-cesarea-em-sao-carlos/> Acesso em: 17 mai 2017.
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http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=FD43250F5E860
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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Ed. 34, 2003.
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2012. v. 1. 373p .
MAIA, R; VIMIEIRO, C. “Recognition and moral progress: a case study about discourses on
disability in the media”.Political Studies, 2013
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como o programa HumanizaSUS tem
influenciado na transformação das políticas públicas de saúde da mulher, principalmente no
enfoque da saúde reprodutiva e no parto e puerpério. Ao longo dos últimos séculos a saúde da
mulher passa a ser tratada como uma questão de saúde pública, com maior medicalização do
corpo da mulher, inclusive na gravidez. Esta maior medicalização teve o efeito de criar
importantes políticas públicas voltadas para a prevenção de doenças, controle e prevenção da
gravidez indesejada, acompanhamento da gravidez e do parto, assim como o
acompanhamento do bebê recém-nascido. No entanto este controle sobre o corpo da mulher
teve consequências nem sempre benéficas, como a redução do controle da mulher sobre o
próprio corpo, a perda de conhecimentos ancestrais sobre a gravidez e o parto, conhecimentos
estes antes reservados ao âmbito feminino e repassado de mãe para filha, de parteira para
parturiente. A violência obstétrica também surge como um espectro do machismo da
sociedade patriarcal, muitas vezes por falta de informação a mulher leva muito tempo para
reconhecer ter sido vítima deste tipo de violência. Sendo assim é importante pensar a
violência obstétrica como um tipo de violência de gênero e entender quais são os programas e
políticas públicas voltadas para combater esta violência, oferecendo maior informação para
garantir maior autonomia e direito de escolha da mulher sobre o seu corpo, em específico no
momento do parto. Após a análise histórica das políticas públicas de saúde da mulher no país
será feita a definição sobre violência obstétrica para, em seguida, compreender como o
HumanizaSUS pode ajudar a combatê-la. Este trabalho é teórico e se baseia na leitura e na
análise de conteúdo do programa HumanizaSUS, comparando suas propostas com a aplicação
destas propostas demonstrada por outros trabalhos científicos.
1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFU. Trabalho realizado através do
financiamento da bolsa de mestrado da FAPEMIG e sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia
Vanucchi. Email: lusilva_4@hotmail.com .
INTRODUÇÃO
maternidade estas mulheres começam a pensar sobre qual parto desejam, como querem
vivenciar a maternidade e a cobrar uma participação maior do homem na gestação e criação
dos filhos.
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
A violência obstétrica pode ser considerada uma violência de gênero por ser
praticada contra a mulher, no exercício de sua saúde sexual ou reprodutora pelos profissionais
da saúde, do setor público ou privado ou por civis. A violência obstétrica pode ter caráter
físico, psicológico, sexual, institucional e reduz a autonomia das mulheres por passarem a
depender de uma intervenção técnica (médico) para lidarem com sua vida sexual e
reprodutiva (Gomes, 2015). Este tipo de violência pode ocorrer no pré-natal, durante o parto,
nos primeiros meses de vida do bebê ou após um abortamento.
Algumas formas de violência durante o pré-natal são: negar atendimento ou impor
dificuldades a este atendimento nos postos de saúde onde se realiza o pré-natal; ofender ou
humilhar a mulher e sua família; negligenciar atendimento de qualidade; agendar cesárea sem
recomendação baseada em evidências científicas; fazer comentários constrangedores à mulher
por sua etnia, idade, escolaridade, sexualidade, condição socioeconômica, número de filhos,
dentre outros.
Outras formas comuns de violência obstétrica durante o parto e pós-parto são:
humilhar, xingar, coagir, constranger, fazer piadas ou comentários desrespeitosos sobre seu
corpo, sua raça ou situação econômica; utilizar de forma inadequada de procedimentos para
acelerar o parto; submeter a mulher a jejum, nudez, raspagem de pelos, lavagem intestinal
durante o trabalho de parto; violar direitos da mulher garantidos por lei; não oferecer
condições de amamentação e do contato do bebê sadio com a mãe, entre outros.
2
Segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela
Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. A
pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, constatou o uso de ocitocina em 60% dos partos,
manobra de Kristeller em 56% dos partos e episiotomia em 86% dos partos.
3
Lei nº de 17.097 de 17 de janeiro de 2017.
4
São eles: PL 8219/17, do deputado Francisco Floriano; PL 7867/17, da deputada Jô Moraes; e 7633/14, do
deputado Jean Wyllys que definem que tipo de atitude pode ser considerada violência obstétrica e as punições
previstas, que vão de multa a dois anos de prisão.
parto à serviço de tecnologias que, por muitas vezes, são usadas de formas desnecessárias
atrapalhando o desenvolvimento do trabalho de parto.
A medicina baseada em evidências5 faz parte de um movimento na linha contrária à
lógica produtivista e colonial na assistência à saúde, inclusive no parto e na gestação. Através
dela é possível conhecer quais são as reais necessidades de intervenção no trabalho de parto,
sem gerar mais complicações ou riscos devido a intervenções desnecessárias. Para Pimentel
(2014):
Se no modelo biomédico, a gestação é entendida como uma patologia, a
noção de risco é mobilizada para corroborar a intervenção do médico, como
forma de salvação e cura de possíveis danos inerentes à gestação e ao parto.
Já na proposta de humanização, que entende a gravidez de forma
integralizada em seus aspectos bio-psíquico-sociais, o conhecimento dos
riscos inerentes às escolhas participa do planejamento esclarecido da
experiência subjetiva de parturição. (PIMENTEL, 2014, p. 169)
Enquanto o modelo biomédico é focado na intervenção e na tecnologia o modelo da
humanização questiona a onipotência dos médicos e enfermeiros, adota uma equipe
interdisciplinar (com fisioterapeutas, doulas), respeita as diferenças, fortalece a relação entre a
mulher e o seu potencial de conduzir o parto e estabelece um cuidado baseado nas
necessidades da parturiente.
As principais práticas de humanização do parto vigentes são: a privacidade para a mãe
e o acompanhante, possibilidade da mulher se movimentar, possibilidade de se alimentar com
líquidos e alimentos leves, acesso à métodos de alívio de dor (desde massagem, banho até
analgesia), ouvir os batimentos cardíacos do bebê e controle dos sinais vitais da mãe, escolher
a melhor posição para o parto, contato imediato do bebê com a pele da mãe, corte do cordão
umbilical após o fim das pulsações, estímulo da amamentação na primeira hora de vida e
realizar procedimentos de rotina no recém-nascido após a primeira hora de vida.
É fundamental que a mulher receba informações sobre o trabalho de parto, sobre como o corpo
feminino se prepara e age neste momento e sobre procedimentos rotineiros, mas comprovadamente
desnecessários, muitas vezes sendo inclusive prejudiciais. Alguns destes procedimentos são:
episiotomia (corte no períneo), tricotomia (raspagem dos pelos pubianos), enema (lavagem intestinal),
proibição de ingerir líquidos ou alimentos leves durante o trabalho de parto, soro com ocitocina para
acelerar o trabalho de parto, ficar deitada em macas durante o trabalho de parto, dentre outros.
A humanização do parto, passa pelo processo de humanização no tratamento do
profissional da saúde com a parturiente. Para que esta humanização ocorra é preciso pensar
5
Esta concepção se baseia na ideia de que todo conhecimento é enviesado, sendo preciso controlar estes vieses
na sua produção. Ao se falar de evidências científicas se considera também a humanização das práticas, a
participação da paciente e o direito à escolha informada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das análises realizadas no trabalho foi possível perceber que as diretrizes
para a humanização propostas pelo Ministério da Saúde têm como principais objetivos a
redução da taxa de cesáreas e a formação humanizada dos profissionais da saúde para garantir
a redução, se não o fim, da violência obstétrica. Por mais que não seja efetivamente uma lei
ainda assim o programa tem um papel importante ao expor como os partos vem sendo
realizados no Brasil e orientar quais as mudanças necessárias para se obter tratamento
humanizado e respeitoso nesse momento delicado para a gestante a sua família.
O programa de humanização do parto vem sendo bem-sucedido na sua
implementação nos hospitais públicos, principalmente por ter um enfoque de aumento de
informação para as mulheres, durante o pré-natal, e formação mais humanizada para os
profissionais da saúde. Muitos hospitais municipais e estaduais têm entrado para o programa e
oferecendo treinamentos para seus funcionários baseadas nas diretrizes do programa.
Infelizmente esta realidade não se repete nos hospitais particulares, responsáveis ainda por
taxas de mais de 80% de cesáreas.
Mesmo com a implementação do cartão da gestante, da cobrança da divulgação das
taxas de partos normal e cesárea por hospital, da exigência do governo sobre os hospitais para
explicarem os motivos das altas taxas de cesáreas, ainda há um longo caminho a ser
percorrido.
A legislação e as políticas públicas precisarão se voltar para o setor privado, de
forma a reduzir a taxa de cesáreas desnecessárias, reduzindo assim os riscos de vida da mãe e
do bebê, garantindo um nascimento mais respeitoso e mais saudável para os dois. Para
garantir que a legislação de fato seja melhorada e aplicada é necessário a sua melhor
divulgação e aumentar a pressão, por parte das gestantes e da sociedade civil, de forma a
garantir cada vez mais um tratamento com mais respeito e liberdade de decisão.
REFERÊNCIAS
BATISTA, Luís Eduardo. Alguns aspectos das políticas de saúde da mulher no Brasil – o
PAISM: um estudo de caso. In: BATISTA, Luís Eduardo; SCAVONE, Lucila. Pesquisas de
gênero: entre o público e o privado. Araraquara: Gráfica UNESP, 2000, p. 49-67.
BIO, Eliane. O corpo no trabalho de parto: o resgate do processo natural do nascimento. São
Paulo: Summus, 2015.
Botti ML. Violência institucional e a assistência às mulheres no parto. In: Anais do Colóquio
Nacional de Estudos de Gênero e História: contribuições de enfermagem. 2010.
QADEER, Imrana. Saúde Reprodutiva: uma perspectiva de saúde pública. In: FARIA, Nalu.
Mulheres, corpo e saúde. São Paulo: SOF, 2000, p. 25-43.
ROTANIA, Alejandra. Formas atuais de intervenção no corpo das mulheres. In: FARIA,
Nalu. Mulheres, corpo e saúde. São Paulo: SOF, 2000, p.11-24.
SCAVONE, Lucila. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo:
Editora UNESP, 2004, p. 141-169.
Resumo: Esse artigo apresenta a discussão teórica e jurídica que sustenta a pesquisa do
projeto de Iniciação Científica “O Feminicídio e a Condição Feminina sob a perspectiva dos
tribunais brasileiros” que discute o modo como os Tribunais Superiores e os Tribunais
Estaduais fundamentam e constroem sua argumentação jurídica sobre os crimes de
feminicídio. O feminicídio se evidencia pela assassinato de mulheres decorrente de uma
violência de gênero, haja vista que o delito é consequência direta das desigualdades de
gênero,da discriminação e do menosprezo à condição feminina. A Lei Federal nº
13.104/2015, promulgada em 09 de março de 2015, institui e reconhece o crime de
feminicídio em nosso ordenamento jurídico, dessa feita prevendo o delito como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e acrescentando-o ao rol de crimes hediondos, dando
continuidade ao processo de criminalização contra a violência à mulher junto a Lei Federal nº
11.340/06 (Lei Maria da Penha). Os processos metodológicos que norteiam essa pesquisa
estão sustentados pela revisão bibliográfica sobre o tema segundo a perspectiva dos estudos
de gênero, além da análise de dados produzidos sobre o tema. Essa discussão está fundada nos
autores que defendem o reconhecimento do feminicídio como elemento importante para o
entendimento dos crimes contra a vida, impactando na superação da visão da violência de
gênero, centrada em uma visão patriarcal de sociedade.
1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Graduanda do 7ºsemestre do Curso de Direito (Campus Londrina)
Bolsista de Iniciação Científica no projeto de pesquisa “Tribunas e Tribunais: os discursos de feminicídio nas
notícias jornalísticas e na jurisprudência”, coordenado pela Profª. Me. Marisse Costa de Queiroz; e-mail.
nbattini@gmail.com
2
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professora Mestra do Curso de Direito (Campus Londrina);
Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Tribunas e Tribunais: os discursos de feminicídio nas notícias
jornalísticas e na jurisprudência”, e-mail:marisse.queiroz@pucpr.br ou marisse_q@hotmail.com..
1. Introdução.
3
Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à
propriedade, nos termos seguintes. I-homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição.
4
Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] §8ºO Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações.
5
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade
absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda a
forma de negligência, discriminação, exploração violência, crueldade e opressão”.
Com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil, num grupo
de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial
da Saúde, ocupa uma pouco recomendável 5ª posição, evidenciando que os
índices locais excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países
do mundo. (WAISELFZ, 2015, p. 25)
Importante salientar que ocorreu uma mudança no termo, em virtude das
transformações sociais. Inicialmente a questão da violência contra a mulher era denominada
de femicídio, referindo-se a morte de mulheres por homens simplesmente pelo fato se serem
mulheres. Esse termo estava vinculado as manifestações feministas, ou seja, a necessidade de
compreender um homicídio pelo simples fato da vítima ser mulher. Esse termo é atribuído a
Diane Russel em 1976 no Tribunal Internacional de Crimes Contra a Mulher, em Bruxelas,
atribuindo que o femicídio é associado ao homicídio de mulheres por razões de gênero.
Posteriormente, o conceito foi alterado por Marcela Lagarde, a qual aduz que a
definição de femicídio de Diane Russel apenas indica que a vítima do fato ocorrido é mulher.
Desse modo, Lagarde (2008), que é uma antropóloga e parte integrante do Movimento
Feminista, passa a utilizar a expressão feminicídio, atribuindo a essa um significado de uma
perspectiva de justiça criminal, adotando a concomitância ao crime de feminicídio a
impunidade, omissão, negligência e a conivência das autoridades do Estado.
Muitas mulheres são vítimas de ameaças, agressões, maus tratos, lesões e danos
misóginos, sendo que as principais formas de violência e gênero são: familiar, comunitária,
institucional e feminicida (LAGARDE, p.33). Assim, podemos perceber que existe uma
relação entre gênero, violência simbólica e violência física, sendo essas a base para os
diversos tipos de violência contra a mulher, dentre eles o feminicídio.
Nações Unidas, já era atuante e pautava como demandas essenciais os seguintes objetivos:
identificar e denunciar as discriminações e as desigualdades que afetavam a situação da
mulher brasileira, lutar pela liberação das mulheres enquanto sexo dominado e oprimido,
promover a conquista de direitos civis para todas as mulheres e de espaços públicos de
atuação para as representantes dessa minoria política.
Segundo Bueno, feminismo é a denominação de um movimento social e político pelo
qual busca-se a melhoria da condição de vidas das mulheres, visando a eliminação das
diferenças e desvantagens condizentes ao status dos homens (2011, p.35)
O Movimento Feminista é uma resposta à submissão das mulheres e de sua forma de
viver em detrimento ao sexo masculino. Essa imposição e discrepância entre os gêneros pode
ser denominada de patriarcado, que nada mais é que o mais antigo sistema de dominação,
onde todas as esferas da vida social (economia, política, cultural...) são comandadas pelos
homens ou segundo as perspectivas e privilégios masculinos. O patriarcado é um sistema que
justifica a dominação sobre a base de uma suposta inferioridade biológica das mulheres
elevado tanto à categoria de política e econômica. O patriarcado é reafirmado nas instituições
sociais, muitas vezes responsável pela construção do caráter e da moral, como mostram os
autores:
A religião, a família, os mecanismos de comunicação de massa, a política, o
direito, têm como paradigma essencial o masculino ocidental. Desta forma, a
mulher é considerada e visibilizada dentro de todas essas instâncias de poder
somente como o outro sexo. Causa perplexidade pensar que a mulher não
existe ou não é enxergada, para essas instituições, sob outra ótica que não seja
a machista e patriarcal, e que a tentativa de outra visão impossibilita o
reconhecimento da mulher como sujeito de direitos. (NETTO; BORGES,
2013, p. 328)
É nessa perspectiva que se institui uma relação de normas regras sociais centradas na
superioridade do homem em detrimento a mulher, estabelecendo a violência de gênero,
raça/etnia, de classe, sendo que essas são a base da estrutura da nossa sociedade (BIJOS,
2004).
Nesse sentido, as mulheres, em grande parte, são submetidas a uma sociedade
patriarcal, a qual é composta, segundo Saffioti e Almeida, por três hierarquias, sendo elas a
hierarquia de gênero, de etnia e de classe. Conforme afirmam as autoras:
A violência de gênero, desconhece qualquer fronteira de classe social, de tipos
de cultura, de grau de desenvolvimento econômico, podendo ocorrer em
qualquer lugar - no espaço público como no privado – e ser praticado em
qualquer etapa da vida das mulheres e por parte de estranhos ou
parentes/conhecidos, especialmente destes últimos (SAFFIOTI E ALMEIDA,
1995, p.8)
Por isso é importante entender que o feminicídio inclui-se num contexto estrutural
que resulta num modo letal de governança dos corpos das mulheres. A estrutura de poder
denomina-se patriarcado e o regime político de governo da vida é que se denomina gênero8.
6
Conceito operacional utilizado por algumas teóricas feministas para descrever como as diferenças biofisiológicas e
psíquicas entre homens e mulheres subjazem e são construídas por relações hierárquicas e desiguais de poder (MATHIEU,
2009, p. 226). Nesse contexto sexagem se difere de sexismo, já que este se refere a um comportamento ou atitude
determinada, e aquele relaciona-se com a construção de sistemas sociais que justificam e naturalizam a “apropriação” das
mulheres (GUILLAUMIN, 2012) ou que cria uma ilusão naturalista, em que as marcas do sexo (sexagem) ressignificam a
ordem política das relações de gênero para não problematizá-las ao torná-las essencialistas (DINIZ, 2014).
7 Segundo os dados do Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015) o número de homicídio de mulheres no Brasil é crescente e
preocupante, tanto que o Brasil é o quinto país mais letal para as mulheres no mundo. Se analisarmos apenas números
absolutos, verificaremos que a quantidade de homens que morrem por homicídio é exponencialmente maior que o das
mulheres. Contudo, o contexto da morte provocada que atinge as mulheres é muito diferente e deflagra as marcas da
sexagem, que podem ser agravadas, com um potencial de letalidade maior, quando se agrega ao gênero questões geracionais,
raciais, geográficas e econômicas.
8 Gênero, de modo geral é um termo ou conceito operacional vinculado à diferenciação social dos sexos, diversa da
diferenciação funcional da natureza ou da biologia. Para SCOTT (1995) gênero é constitutivo das relações sociais baseadas
nas diferenças entre os sexos que, de modo primário, dá significado às relações de poder. Esse modo de organizar o poder
segundo as diferenças biológicas afeta também o modo de organização das instituições, e não só as relações individuais entre
homens e mulheres. Nas instituições são legitimados conceitos normativos que são elaborados em diversas esferas de
conhecimento, tais como na religião, na educação, na ciência, na justiça e na política, e expressam “interpretações dos
significados dos símbolos” que levam à representação binária do gênero. Em outro estudo, LAURETIS (1994), desenvolve o
conceito de gênero tendo por base a teoria do discurso (semiótica), ao expressar que essas esferas ou espaços relacionais (ela
inclui aí também o cinema) são tecnologias de gênero, no sentido que engendram subjetividades como representações e auto
representações dos indivíduos. Contudo, no contexto dessa pesquisa, procura-se incluir a categoria gênero como
intrinsicamente imbricada na ordem do patriarcado, nos termos trabalhados por Guillaumin (2012), Delphy (2009), Mathieu
(2009) e Diniz (2014, 2015).
Para Guillaumin (2012, p. 31), as formas de dominação da classe das mulheres pela
classe dos homens, têm um efeito material e um efeito ideológico. O primeiro se refere a uma
relação de poder – que para Safiotti (2001, p. 117) implica em dominação-exploração das
mulheres; o segundo efeito afeta o campo dos valores e dos símbolos, assim como afeta as
instituições e a linguagem. No campo ideológico a apropriação das mulheres e seu uso é
considerado natural e parte de uma ordem desconectada, aparentemente, das relações
materiais que as fazem existir. Nesse contexto, a forma ideologizada do patriarcado naturaliza
as relações sociais desiguais e afeta as representações discursivas e mentais: mulheres são
coisa no pensamento e no discurso, o que legitima, em muitos contextos, a apropriação de
seus corpos, de seu tempo e de sua sexualidade (GUILLAUMIN, 2012, p. 33-34).
Ressalta-se que o termo Feminicídio foi utilizado pela primeira vez no Brasil na obra
“Violência de gênero: poder e impotência” de autoria de Heleith Saffioti e Suely de Souza
Almeida (1995), que faz uma análise de morte de mulheres, decorrentes da violência de
gênero em relações conjugais. Para as autoras, isto equivale dizer que o inimigo da mulher
Cabe analisar ainda que para que exista a incidência da qualificadora do feminicídio,
o sujeito passivo deve ser uma mulher. Nesse sentido, Mello (2016) aponta três posições
doutrinárias para a finalidade de se reconhecer mulher. A primeira posição doutrinária condiz
ao critério psicológico, a segunda posição condiz ao critério jurídico cível, e a terceira, com o
critério biológico.
Segundo Mello, (2016, p.141) a primeira posição doutrinária diz respeito ao critério
psicológico que identifica como mulher aquela cujo aspectos psíquicos e comportamentais são
femininos. Adotando-se esse critério matar alguém que fez a cirurgia de resignação de gênero,
ou que, mesmo sem tê-la feito, psicologicamente, acredita ser uma mulher, será aplicada a
qualificadora da feminicídio; a segunda posição leva em conta, o critério jurídico-cível, que
deve considerar o que consta no registro civil, ou seja, se houver decisão judicial para
alteração do registro de nascimento, alterando-se assim, o sexo, teremos um novo conceito de
mulher, que deixará de ser natural para ser um conceito de natureza jurídica; e a terceira
posição, que adota o critério biológico, que identifica-se a mulher em sua concepção genética
ou cromossômica, sendo que mesmo com a cirurgia de resignação, existe a alteração da
estética mas da concepção genética, não será possível a aplicação da qualificadora.
Assim, quando se exige uma política de reconhecimento da especificidade da maioria
dos homicídios de mulheres como feminicídio (nomear para conhecer), subverte-se também a
estrutura patriarcal dos quais esses atos são resultado (nomear para simbolizar) e se estabelece
mecanismos mais objetivos e diretos de responsabilização dos agentes (nomear para punir)
(DINIZ, 2015; CAMPOS, 2015).
Além da configuração sujeito passivo do delito, a prática do delito se dá por razões
de gênero, ou seja, pelo fato da condição de ser mulher. Nesse sentido, deve-se verificar se a
agressão foi realizada com base no gênero e se o crime ocorreu no contexto de violência
doméstica, ou de relação íntima de afeto, ou com indícios de crueldade à condição feminina.
Em relatório do Ministério da Justiça, Marta Rodriguez de Assis Machado (2015)
demonstra que o feminicídio é um crime recorrente em nossa sociedade atual e patriarcal,
sendo, em muitos casos, executado de forma cruel. No referido estudo, constata-se que para a
execução do crime, os autores do mesmo utilizavam-se, muitas vezes de:
(...) Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa
de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar.
Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas
costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual, desfiguração.
Quando se volta o olhar para a maneira pela qual foi infligida a violência,
chamam a atenção a diversidade dos instrumentos usados no cometimento do
crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente à execução. A
arma branca (faca, peixeira e canivete) foi identificada em 14 dos 34 casos
analisados.24 A quantidade de facadas verificada em algumas situações é
expressiva – há processos em que as vítimas foram atingidas por dezenas de
facadas,25 o que tende a indicar tanto a intenção de provocar aflição
suplementar anterior à morte quanto o desejo de aniquilar fisicamente a
mulher. As facadas são profundas e não raro atravessam o corpo(...)
(MACHADO, 2015, p. 41)
Ainda no referido relatório são expostas, dentro dos casos analisados, as razões pelas
quais os autores do crime foram denunciados e processados pelo crime de feminicídio, sendo
elas:
Discussões por razões variadas foram mencionadas como motivo para o
cometimento do crime: término de relacionamento, compra de drogas, uso
do gás de cozinha. Em algumas situações, mobiliza-se o argumento de que a
ação do autor foi uma reação à conduta da mulher: a vítima permitiu a
entrada de um homem em casa na ausência do companheiro, a vítima
desferiu um tapa no rosto do marido, a vítima disse para o marido “lamber a
bunda” dos amigos, a vítima chamou o ex-companheiro de “corno”, a vítima
disse que o pênis do ex-companheiro era pequeno. (MACHADO, 2015 p.
45)
Por fim, os estudos de Waiselfiz (2015) indicam que os principais responsáveis pelos
crimes de feminicídio são: o pai, a mãe, o padrasto, a madrasta, o cônjuge, o ex-cônjuge, o
namorado, o ex-namorado, o irmão ou o filho da vítima. Segundo esse mesmo autor, entre
1980 e 2013, o País contabilizou 106.093 assassinatos de mulheres. Esse quantitativo
corresponde ao universo das meninas e mulheres de cidades do porte de Americana ou
Presidente Prudente, em São Paulo; Macaé, no Rio de Janeiro ou Itabuna, na Bahia.
3. Considerações finais.
Apresentamos dados significativos para pensar a necessidade de um maior
entendimento por parte do Poder Judiciários, sobre os crimes realizados sobre as mulheres.
Conforme mostrado, as estatísticas sobre os casos de feminicídio no Brasil são bem poucas,
frente a quantidade de crimes contra a vida, mesmo com a promulgação da Lei 13.104/2015.
Essa questão é importante pois, segundo os autores, é necessário que os legisladores
compreendam e reconheçam a prática do feminicídio, como fonte de crime, superando a visão
do crime pelo crime.
É urgente o entendimento da Lei, por parte da sociedade, visto que os padrões
culturais do patriarcado, ainda prevalecem, mesmo que em menor intensidade, nas relações
entre homens e mulheres. É essencial que todos entendam que quando o homicídio de mulher
acontece por “razões de condição de sexo feminino”, deverá ser considerado crime hediondo.
Nesse sentido, o Movimento Feminista e suas ações tornam-se ferramentas para a
consolidação não só na lei, mas no dia a dia da sociedade, da valorização da mulher como
sujeito de direitos e que deve ser respeitada em sua integralidade, e não sofrer violência física,
moral e simbólica, pelo simples fato de ser do gênero feminino.
Referências
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Educação, [S.l.], v. 19, n. 71-72, p. 111-128, maio 2013. ISSN 2179-1309. Disponível em:
<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoeducacao/article/view/1136>. Acesso
em: 22 maio 2018. doi: https://doi.org/10.21527/2179-1309.2004.71-72.111-128.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BRASIL. Lei Nº 13.104, de 9 de Marco de 2015.. Brasília, Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm>. Acesso em: 24
abril de 2017.
BUENO, Mariana Guimarães Rocha da Cunha. Feminismo e direito penal. São Paulo: USP,
2011. 180 f. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) - Programa de Mestrado em Direito
Penal, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2011.
DINIZ, Debora; COSTA, Bruna Santos; GUMIERI, Sinara. Nomear feminicídio: conhecer,
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São Paulo: Ed. RT, maio-jun. 2015.
GUILLAUMIN, Colette. Práctica del poder e idea de Naturaleza. In: CURIEL, Ochy;
FALQUET, Jules (Org.). El Patriarcado al desnudo: três feministas materialistas. Buenos
Aires: Brecha Lésbica, 2005. p. 19-56.
MELLO, Adriana Ramos de. FEMINICÍDIO: Uma análise sociojurídica da violência contra
a mulher no Brasill. Rio de Janeiro: Gz Editora, 2016. 196 p.
NETTO, Helena Henkin Coelho; BORGES, Paulo César Corrêa. A mulher e o direito penal
brasileiro: entre a criminalização pelo gênero e a ausência de tutela penal justificada pelo
machismo. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, a. 17, n. 25, 2013. Disponível em:
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Acesso em: 27 set. 2015.
SAFFIOTI, Heleith I.b; ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de Gênero: poder e
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto
Alegre, 20 (2), julho/dezembro 1995, p. 71 – 99.
SEGATO, Rita Laura. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos
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em: 03 abr. 2016.
Resumo: O presente estudo tem como objetivo principal discutir a violência simbólica que
permeia em nossa sociedade, de maneira em que a mulher é a sua principal vitima, sendo
embasada por um machismo estrutural em nossa cultura. A pesquisa é de abordagem
qualitativa e de caráter bibliográfico- explicativo, fundamentado nas principais obras de
Bourdieu, Beauvoir, Louro e Bonfim, e eentre outros que abordam a temática. Norteando o
estudo a questão central busca esclarecer sobre a violência simbólica contra as mulheres que
assumem lugares de destaques na sociedade, principalmente no campo político. A principio o
estudo buscou uma revisão conceitual em que busca esclarecer ao leitor princípios basilares,
para a temática. Em um segundo momento destaca se o quanto as mulheres são silenciada
dentro do contexto social atual, em diversas esferas, chegando assim no campo político,
mulheres na sendo caladas no legislativo e executivo. E por fim, busca evidenciar a triste
tragédia da execução da vereadora Marielle Franco, uma mulher de luta e que defendia as
minorias, pois ela também fazia parte dela. Até a presente data não há nada confirmado sobre
a morte da mesma. Concluindo se que é necessário o engajamento político de mais mulheres e
que o fundamental para a mudança desse contexto social machista, é a educação que
emancipe, transforma e humanize nossa sociedade, tornando a mais igualitária e equitativa.
1
Faculdade Dom Bosco, Professor na Prefeitura Municipal de Cornélio Procópio, Licenciado em Pedagogia, Pós
graduado em Psicopedagogia Clínica e Institucional e Neuropsicopedagogia Clínica FATEC.jr-junior88@live.com
Introdução.
O presente estudo tem como objetivo central discutir violência simbólica contra a
mulher, quando ela assume papéis políticos e evidentes na sociedade.
A pesquisa é de abordagem qualitativa e de caráter bibliográfico-explicativo. O
estudo se fundamenta especialmente em Bourdieu, Beauvoir, Louro, Bonfim, entre outros
autores que abordam a temática.
A questão norteadora busca esclarecer sobre a violência simbólica contra a mulher
que assume papeis evidentes na sociedade, sejam eles em departamentos públicos e privados,
assim questiona-se: quais formas de violência são utilizadas pelo machismo estrutural para
manter a invisibilidade histórica sofrida pelas mulheres especialmente no cenário político
brasileiro?
Conceitua-se gênero, igualdade, machismo, violência, violência simbólica,
dominância masculina entre outras categorias centrais do estudo. Compreende se que a
dominância masculina está estruturada e impregnada no machismo da sociedade patriarcal, a
qual distorce, por inúmeras vezes, o papel da mulher na sociedade, limitando-a, apenas a
papeis secundários.
Quando a mulher assume posições de destaque questionam não apenas sua
competência e sim, sua moral. É notável, que, quando uma mulher ocupa uma posição de
destaque, especialmente no cenário político, vem uma onda desprestigiando seu trabalho,
através da violência simbólica, muitas vezes, acompanhada de violência física. Muitas
pessoas veem, ouvem e até reproduzem esse discurso misógino sem, ao menos, reconhecer o
quanto é ofensivo para as mulheres.
É necessário identificar que esses discursos repugnantes, que passam por nós sem
percebermos o reflexo que isso causam no cotidiano. Atualmente, na política brasileira, as
mulheres vem sofrendo golpes, violências de toda ordem e até mesmo, sendo executadas por
lutarem por equidade de gênero, social e econômica.
O caso mais recente, é da vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco,
que foi assassinada, uma representante política que tinha como bandeira as minorias excluídas
e questionava os direitos das mesmas, especialmente, das mulheres, negras, periféricas, que
por vezes, foram ignoradas, ficando à margem da sociedade, sem vez, sem voz.
Considera-se que apontar os efeitos negativos dessa hegemonia masculina no cenário
político é essencial, pois as políticas públicas sociais voltadas ao público feminino,
geralmente são feitas e aprovadas por homens, os quais possuem um pensamento machista,
elitista e seguem uma “ideologia branca”, que não vislumbram uma totalidadeigualitária para
ambos os gêneros e classes sociais.A política brasileira deve ser composta por mais mulheres
atuantes, e não apenas pelos “coronéis”. A exclusão social e política que as
mulheres,historicamente sofreram,culminou na sua invisibilidade como sujeito, especialmente
no cenário político.
Ter mais representantes mulheres que realmente busquem romper com
ospreconceitos e desigualdadessociais irá contribuipara construção de uma sociedade
igualitária, que respeite as pessoas, independente do sexo, gênero ou orientação sexual.
Uma sociedade onde homens e mulheres possam ser igualmente respeitados e
tenham efetivados os mesmos direitos garantidos pela nossa Constituição, sem um gênero ou
classe sobressair o outro. Respeito independe de gênero, homens e mulheres devem lutar pela
uma igualdade social, politica e econômica, só assim será possível construir de uma sociedade
justa e pacífica, onde as pessoas sejam respeitadas em sua singularidade e humanidade.
Revisão Conceitual
a) SEXO
A palavra m si quando é dita em qualquer contexto social, ela já é imediatamente
ligada ao pratica, ato sexual,a cópula. Já atualmente com os estudos e grande bibliografia
sobre o tema, já pode se conceituar sexocomo apenas a distinção genital e órgãos reprodutores
dos seres vivos. Aprofundando a pesquisa, e citando Guimarães (1995, p23), o qual refere-se,
ao sexo como:
Já em outros autores, exemplo Nunes e Silva (2000, p.74), afirmam que “sexo é a
marca biológica, caracterização genital e natural”. Os próprios permitem o esclarecimento
da palavra em seu sentido biológico,referindo se a anatomia dos seres vivos, sendo esses
aspectos anatômicos que é considerável e classificado como homem e mulher, em nossa
sociedade. Sexo, é definido pela nossa genitália. E aprática, o ato sexual, tem comofinalidade
a conquista pelo prazer, e consequentemente é a forma de reprodução da espécie.
b) SEXUALIDADE
Freud afirma que a sexualidade não está limitada à função dos órgãos
genitais e ao ato sexual em si. Para ele, a vida sexual começa logo após o
nascimento e se desenvolve por meio de diversas atividades e estímulos que
ocorrem na infância, proporcionando um prazer que não está vinculado às
satisfações fisiológicas.
Dessa forma, pode se compreender que sexualidade é muito mais ampla do que
pode se imaginar, pois ela envolve a integralidade do individuo, a subjetividade, a afetividade,
é por meio do desenvolvimento da sexualidade que ambos os sexos se humanizam, se
diferencia dos animais, e são essas experiências sexuais afetivas, que possibilita a criação de
laços afetivos com outros, para que dessa maneira podemos ter um convívio harmonioso
socialmente.
c) GÊNERO
Essas características foram difundidas historicamente, e aceitas por uma grande massa
que não ousa em questionar essa imposição, e que consideram fazer parte da essência da
natureza biológica de homens e mulheres,e que não são fatores sociais e culturais construídos
a partir da moral exigida na sociedade hegemônica; e reproduzidos historicamente.
d) IDENTIDADE DE GÊNERO
Hoje, tem se debatido muito sobre esse tema, que se refere que a pessoas que
nasceram biologicamente e anatomicamente com um gênero, porem se reconhece e se
identifica com outro, essa identificação se trata tanto pelo modo de falar, de se vestir, agir,
sentir. Considerando Bonfim (2010, p.174), a identidade de gênero, refere se a:
Louro (2007, p. 11), considera que as “identidades de gênero e sexuais são, portanto,
compostas e definidas por relações sociais, elas são modeladas pelas redes de poder de uma
sociedade”. Dessa forma, podemos considerar que a identidade de gênero é uma construção
social, que passa ser um determinante no momento em que o individuo passa a conhecer a si
mesmo.
Romero apud Bonfim (2012, p.39), afirma que:
[...] O papel sexual que a criança vai desempenhar será punido ou reforçado,
segundo a cultura e o contexto social no qual ela está inserida. A
determinação e a manutenção do comportamento sexual para homens e
mulheres criam e mantêm as desigualdades entre eles existentes na
sociedade, quase sempre com prejuízos para a mulher, que acaba
desempenhando um papel de menor prestígio e valor. (ROMERO apud
BONFIM, 2012, p.39)
e) PRECONCEITO DE GÊNERO
O preconceito pode ser identificado em diversas esferas sejam elas, sociais, raciais e a
de gênero. O preconceito de gênero, refere se quando um gênero é posto em um papel inferior
f) PATRIARCADO
g) IGUALDADE
Esse seria um conceito imprescindível, não só para esse artigo, mas também para
toda uma sociedade, em que a desigualdade é alarmante em diversas esferas. Porém, na
sociedade brasileira, há uma desigualdade de direitos, a qual possui uma incoerência gritante,
a igualdade é um direito assegurado pela nossa Constituição , que deveria ter garantia em
todas as instâncias. Com isso o art. 5º de nossa Constituição Federal de 1988:
h) SEXISMO E MACHISMO
O machismo, ele prega em que as mulheres são dominada submissas aos homens, ele
categoriza as relações entre dominador e dominada. A mulher é semprevista como sensível,
frágil, e indefesa, a qual necessita sempre de uma figura masculina, para responder, decidir,
por ela. Considerando Drumont (1980, p.82) :
Os dois termos podem ser conceituados juntamente, pois um esta ligado ao outro
dentro desse contexto, pois a violência é uma conceito usado quando há o uso de força física,
porem quando é usado esse termo, é que não há uso de força física, e essa violência acaba
cerceando a vitima em diversos aspectos. Bourdieu( 2012, p. 47)
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado
não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação)
quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para
pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que
ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da
relação de dominação, fazem essa relação ser vista como natural;[...]
Essa violência, não necessita de coação física, no entanto, os resultados são morais e
psicológicos, pois acaba atingindo em vários campos sociais a vítima. Em uma relação
homem e mulher, os homens vem usando dessa tática para manter sua dominação masculina,
seja ela no campo sentimental, familiar, social. Pois a mulher acaba nem percebendo essa
violência, e achando natural o fato dela ser tratada dessa forma.
Por muito tempo, a sua decisão foi negada e transferida para alguma figura
masculina, fazendo a dependente principalmente no aspecto econômico. E ainda sim quando a
conquista os que é de direitos basta uma crise, que já é retirado. Considerando se Beauvoir
apud Gaivoto (1960) :
Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para
que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são
permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.
Infelizmente, essa realidade não esta totalmente fora de nosso cotidiano, pois há
muitas mulheres que não se emanciparam, pois devida a essa castração da liberdade
individual se tornou praticamente intrínseca a nossa cultura, e para romper com esses
paradigmas sociais, machista, as quais condicionam a mulher sempre em papel de submissão,
é preciso romper, presumindo se que a principal forma de transformação social, seja por meio
da educação, a qual promova a igualdade de gênero, social, humana, sem que seja uma
educação dual, machista e tecnicista, afim de romper a hegemonia vigente na sociedade.
Hoje quando a mulher assume uma posição de destaque seja ele qual for, as críticas
vem em massa também. Mas o problema das críticas, e que elas veem acompanhadas de
ofensas morais e pessoais, pois não apenas criticam por uma falha profissional ou algo do
tipo, pois todos estamos suscetíveis a falhas e a críticas.
A forma como desprestigiam o trabalho e a luta da mulher, seja ela em qual cenário
for, é uma violência simbólica, pois os ataques pessoais são morais, e que chegam a violência
física, o que já hoje é considerado crime devido a Lei 11.340 sancionada em 2006, a qual diz
no seu “Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:”
Ao perceber essa violência simbólica, nota se que ela esta presente em nosso
cotidiano quando referirmos algum comentário corriqueiro, porém o mesmo esta impregnado
de ódio e misoginia, despreciando a figura da mulher ou até mesmo incitando alguma
abordagem mais violenta, na mesma. Reconhecer esse discurso é fundamental, para que assim
não reproduzimos e perpetuamos.
O discurso misógino é reproduzido com muito mais ênfase, quando a mulher
assume um papel de destaque, seja ele na liderança de uma empresa, em departamentos
públicos, ou até quando a mesma entra no cenário politico.
Isso ficou bem notável nos últimos anos, onde a mulher teve um grande destaque no
cenário político, tivemos a primeira presidente mulher a senhora Dilma Rouseff, a qual
também sofreu um impeachment, que passou por um golpe político, legislativo, judiciário e
midiático, e ainda por cima com ataques misóginos.
Recentemente o que mais marcou dentro dessa violência foi a execução politica de
uma vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco, a qual foi morta a tiros por seu
posicionamento político, e que até presente data da produção desse texto, não foi solucionado
sua morte.
Marielle Franco, foi a quinta vereadora mais votada nas eleições 2016 na cidade do
Rio de Janeiro, com mais de quarenta e seis mil votos. Ela veio da favela da Maré, onde foi a
maior parte da sua vida, mãe aos 19 anos, ao mesmo tempo começou a tentar mudar sua
realidade a qual foi condicionada diante essa sociedade racista e elitista.
Após o nascimento da sua filha, ela começou a frequentar um curso pré vestibular
comunitário, o qual permitiu ela se matricular em 2002 na faculdade como bolsista pelo
PROUNI, um programa de universidade para todos, ela estudou na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, a Puc-RJ, cursando de Ciências Sociais.
Após a conclusão do seu curso, ela permaneceu no meio acadêmico e fazendo seu
mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense UFF. Foi a partir de
então que Marielle, entrou no meio político, se filiando ao Partido Socialismo e Liberdade-
PSOL.
Marielle, pode se dizer que é uma típica mulher brasileira, a qual sempre foi
negligenciada pela sociedade por trazer traços bem fortes, negra, da favela, lésbica, pobre.
Analisando essas características, sabe se que o Brasil é um país construído ao sangue negro, e
que foi um dos últimos países a abolir a escravatura (ao menos legalmente). Também é o país
que mais mata a população LGBT, Segundo dados da Rede TransBrasil e do Grupo Gay da
Bahia (GGB). Já a pobreza e as áreas periféricas nos Brasil, não são tratadas como uma
questão de desigualdade social, e sim como um status, o qual apenas beneficia a elite
burguesa, já os que sobram são vistos como preguiçosos, vagabundos.
Diante a todo esses estigmas sociais, ela conseguiu por meio da educação se
emancipar se e lutar pelos oprimidos, Marielle era uma feminista a qual discutia sempre em
sessões da câmara do RJ, que as mulheres teriam que tomar lugar em cargos políticos, e em
seu último discurso ela diz “ Uma mulher sobe e puxa a outra”, esse era o lema das marchas
das mulheres negras, ela ressalta ainda e cita a autora feminista reconhecida
internacionalmente Chimamanda“ e isso deve ser concretizado, e só isso só será operado se
as mulheres tiverem no espaço de poder, de fato, trouxerem, derem pé, abraçarem,
acolherem, construir, com outras mulheres”.
A parlamentar, era uma ativista em torno das causas feministas, raciais e dos direitos
humanos, ela abraçava as causas sociais que estava nas comunidades, pois ela vivenciou
quase todas. Em sua gestão ela foi presidente da Comissão da Mulher da Câmara , elaborou
projetos que beneficiassem a população carente, um dos principais projeto de lei foi o “
Espaço Coruja” o qual visa atender pais e mães que estudam ou trabalham a noite, que
tivessem uma creche noturna, para que as crianças ficassem em lugares seguros.
Em fevereiro desse ano ela foi relatora da Comissão contra a intervenção militar que
se instaurava nas periferias do Rio, onde a taxa de inocentes mortos estavam sendo altas,
questionando os critérios dos policiais.
Infelizmente Marielle Franco, foi executada com 13 tiros disparados em seu veiculo,
acertando ela e o seu motorista Anderson Pedro Gomes, o óbito foi de imediato, até o presente
momento na produção desse artigo, não se sabe o certo quem disparou e o por que, pois não
há vestígios de assalto, o que se sabe é que a vereadora, foi executada.
Partindo se dessa tragédia, a qual não podemos deixar passar em branco, pois Marielle
foi apenas uma que deu a cara a tapa, não se calou com a voz opressora masculina, batia de
frente, mulher, negra, feminista, mãe, ativista dos direitos humanos, periférica, lésbica. É
obvio, que não podemos limitar toda a sua batalha nesses estereótipos, no entanto seu
engajamento político, serviu de certa forma de combustão para que essa tragédia seja
executada, não podemos afirmar nada diante a uma investigação policial. Porém, o nosso país
esta em uma situação em que o caos político esta se instaurando, e de certa forma quem ouse
levantar a voz contra esse sistema conservador e caótico, sofre represálias.
O fato em si é triste, revoltante, no entanto, serve como uma forma sororidade, em
que mais mulheres engajem no campo político, e lutem por criações de políticas públicas que
visiabilizem as, e não as silenciem, que quando se filiarem a um partido, seja para buscar
melhorias e não apenas para servir de cota feminina, essa cota, já é uma violência simbólica, a
mulher é silenciada, e apenas a voz do homem, é o que vale.
A dominação masculina, está presente firmemente no cenário político, o que em sua
maioria não representa uma boa parte do povo brasileiro. E as poucas mulheres que estão no
poder, no congresso, são silenciadas, manipuladas, impeachmada, executada.
Isso é uma forma lógica que o machismo também está enraizado no campo político,
e que ele vem servindo de base há vários anos, e que há poucos anos as mulheres começaram
a ser donas de si, e a terem políticas públicas, as quais reconhecessem as suas necessidades e
singularidades. Há muito, a se lutar e ainda a conquistar, porém necessitamos de mais
ativismo, feminismo, de mais Marielles, para que assim futuras gerações sejam equitativas em
seus direitos e em suas conquistas.
Considerações Finais
Ao findar esse artigo, não há muitas esperanças, pois a luta contra o machismo de cada
dia é constante, é na forma de falar, expressões habituais, como já havia falado, o machismo é
estrutural em nossa sociedade, porém só hoje é visto como uma violência, uma violência
simbólica, que impede muito a forma como a mulher é vista atualmente na sociedade.
A forma como tentar romper com esse machismo, é ainda uma educação que seja
emancipadora, que não seja dual seja no aspecto social, ou de gênero, e o principal mais
mulheres e menos machismo ocupando a política brasileira, pois ocupando esses espaços é
fundamental para a redução da desigualdade que nos cercam.
A esperança é a integração de políticas publicas que priorize ou visibilize a mulher na
sociedade, e que ela se sinta segura e capaz de exercer o que é seu por direito, e
complementando uma educação que não reflita hábitos e expressões machista que estejam
enraizados em nossa cultura, rompendo esse estigmas, poderá alcançar uma sociedade mais
justa, humana e equitativa, respeitando todos os gêneros.
Referências
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https://www.estudopratico.com.br/quem-era-marielle-franco/. Acesso em 31 maio 2018.
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em: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2017/05/brasil-ainda-e-o-pais-que-
mais-assassina-lgbts-no-mundo.html. Acesso em 30 maio 2018
THERBORN, G. Sexo e poder: a família no mundo 1900-2000. São Paulo: Contexto, 2006
You Tube, Último pronunciamento de Marielle Franco antes de ser executada no Rio de
Janeiro. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Da7dqCqEJmA. Acesso em 31 maio 2018.
Resumo: Este trabalho se trata de um ensaio teórico produzido por meio de pesquisa
bibliográfica e documental a partir compilação de livros, artigos, dissertações, teses e
documentos que tratam sobre a pena de prisão, a gênese dos presídios femininos no Brasil e
divisão sexual do trabalho. O objetivo geral é apresentar como se constituem os presídios
femininos no Brasil e identificar as raízes históricas da divisão sexual do trabalho no sistema
penitenciário brasileiro. Destarte, o trabalho é dividido em: i) Pena de prisão; ii) Pena de
prisão na América Latina; iii) Presídios femininos no Brasil; e iv) Presídios femininos no
Brasil e sua relação com a divisão sexual do trabalho. Tem-se como norte epistemológico o
materialismo histórico-dialético, utilizando-se de autoras que tratam a questão de gênero de
forma articulada e interseccional. Ainda hoje, o aprisionamento de mulheres está permeado
por julgamentos morais da lógica patriarcal e da divisão social do trabalho que é regida pelos
princípios de separação e hierarquização de atividades realizadas por homens e mulheres. O
conhecimento e debate da gênese dos presídios femininos pode contribuir para a visibilidade
do encarceramento de mulheres e percepção do caráter histórico do patriarcado, fator
essencial para apreensão crítica das desigualdades entre homens e mulheres que ainda estão
presentes na sociedade.
1
Universidade Federal do Paraná; graduanda de Serviço Social; anaclaraggpicolli@gmail.com.
2
Universidade Federal do Paraná; Profa. Ms. substituta no curso de Serviço Social; flaviagfachini@gmail.com.
Introdução
Pena de Prisão
Cláudio do Prado Amaral (2016) aponta que durante a Antiguidade3 e Idade Média a
prisão era um espaço destinado a réus que aguardavam seus julgamentos e execução de suas
sentenças. Na Idade Média o autor alega já existir comutação da pena por meio de pagamento
de valores, permanecendo aprisionados nos cárceres dos senhores feudais aqueles que não
possuíam condições econômicas para pagar por sua liberdade. Nessa época, a aplicação de
pena de prisão era destinada a delitos considerados mais brandos, não condenados a
penalidades mais fortes. A Igreja e a Inquisição tiveram papéis relevantes no que condiz a
esses aprisionamentos
A Igreja vislumbrava o encarceramento como local de correção espiritual,
onde o pecador poderia refletir, em isolamento celular, sobre o erro
cometido, reconciliando-se com Deus [...] a Inquisição, por sua vez, utilizou
a prisão com fins de mera custódia, mas também como pena aplicada a quem
praticasse leves heresias (AMARAL, 2016, p. 26-27).
3
Para devidas contextualizações históricas, compreende-se por Antiguidade o período que chega até o ano de
476, Idade Média entre os anos de 476 e 1453 e Idade Moderna de 1453 a 1789 (AMARAL, 2016).
4
“Trata-se do processo que propiciou que se encontrassem duas espécies bem diferentes de mercadorias: de um
lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-
valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia; do outro, trabalhadores livres, vendedores da
própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho [...] com essa polarização do mercado estão dadas
as condições fundamentais da produção capitalista. Trata-se do processo de separação do trabalhador da
propriedade das condições de seu trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de
subsistência e de produção em capital, por outro os produtores diretos em trabalhadores assalariados” (MARX,
1984, I, 2:262).
Lucia Zedner (1995) afirma que a separação das prisões conforme o sexo foi uma das
maiores realizações da reforma penal de alguns países no século XIX. Lucia também relata
que surgiram dúvidas com relação ao modelo de regime penitenciário a ser aplicado as
mulheres na época de criação desses espaços. Uma dessas dúvidas foi com relação a interação
entre as mulheres presas, se deveria haver regime de silêncio absoluto com celas individuais
ou celas coletivas, variando os momentos de silêncio e convívio social. A opção por celas
individuais, para evitar que as mulheres de diferentes classes e condutas morais pudessem
estabelecer algum tipo de contato foi priorizado em grande parte da Europa durante o século
XIX (ZEDNER, 1995).
As mulheres aprisionadas eram submetidas a um controle muito maior se comparado
aos homens em igual situação, pois estas, além de terem de se submeter as regras do regime
da prisão, deveriam aprender condutas e comportamentos considerados femininos (ZEDNER,
1995. p. 342). Em alguns presídios dos Estados Unidos havia uma simulação do ambiente
doméstico, para que as mulheres pudessem praticar atividades relacionadas a manutenção do
lar. No início do século XX esse modelo de prisão feminina foi desestabilizado por conta do
aumento da população prisional durante a Primeira Guerra Mundial, pois muitas prostitutas e
usuárias de álcool ou drogas ilícitas foram aprisionadas nesse período (ZEDNER, 1995).
5
Com relação ao considerado como moderno Quijano (2006, p. 121) discorre “Como parte do novo padrão de
poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da
subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção de conhecimento”.
Artur (2017) discorre sobre as congregações católicas, afirmando que estas foram
instrumento de resistência e colaboraram com a difusão do catolicismo na França e Europa.
Ainda afirma as características dessas congregações, de intervenção social e de utilidade
pública “despontaram, portanto, ao longo do século XIX, como um braço da Igreja que
associava um novo modelo de vida religiosa ao comprometimento com projetos de atuação
social” (ARTUR, 2017, p. 95). Em poucas décadas essas congregações se disseminaram a
outros continentes e na maioria das vezes, haviam fundado mais de um estabelecimento por
país.
Concorde Andrade (2011), o Instituto Bom Pastor d’ Angers foi fundado na França,
em 1829, pela Madre Maria Eufrásia Pelletier e tinha como missão
A “salvação das almas” e a “cura moral” de meninas e mulheres em estado
de abandono material e moral. “Cooperar com Deus na salvação de almas” é
a vocação primeira das Irmãs que fazem voto de pobreza ao vestir o hábito e
prometem se dedicar à reeducação e reabilitação das “desafortunadas” por
meio da moral cristã (ANDRADE, 2011, p. 198).
liberdade deveriam corresponder ao esperado socialmente, e ainda, a própria ação das freiras
intricadas ao cuidado.
O cuidar foi construído e associado enquanto atribuição naturalmente feminina.
Quando as mulheres conquistam o direito de estudar e ocupar o mercado de trabalho, isto se
dá, em um primeiro momento, em profissões ligadas ao cuidado e que estariam associadas as
características “essencialmente” femininas e a maternidade, por isso, é ainda grande a
presença de mulheres em ocupações que exigem formas de cuidado (CARVALHO, 1999).
Destaca-se as ações desenvolvidas pelas educadoras, damas de caridades e as freiras que
ocupavam um papel reconhecido no âmbito público e que representavam um movimento
importante na vida das mulheres para o momento histórico (especialmente as brancas), mas
que não transgrediam os papéis considerados essenciais ao campo do feminino.
Cuidar é uma atividade regida pelo gênero (compreendido como uma construção
social/cultural e de relações sociais e de poder entre os sexos) tanto no âmbito público quanto
na vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas que envolvem cuidados,
além disso, elas acabam realizando um montante desproporcional de atividades de cuidado no
ambiente doméstico privado. Desta forma, a perspectiva tradicional de gênero em nossa
sociedade implica que os homens tenham “cuidado com” e que as mulheres “cuidem de” e
que consequentemente recaia sobre um juízo moral dessas mulheres havendo uma clivagem
considerável em relação ao que se é exigido dos homens (TRONTO, 1997).
Tortato e Carvalho (2009) discorrem ainda sobre quais sãos os comportamentos
construídos socialmente como essencialmente femininos e masculinos. Para elas, das
mulheres espera-se que estas sejam dóceis, silenciosas, recatadas e maternais e os homens
viris, agressivos e provedores.
De acordo com Luz (2009), a divisão sexual do trabalho é uma das formas da divisão
social do trabalho. Trata-se da separação entre as atividades desenvolvidas pelas mulheres e
das desenvolvidas pelos homens. Tal divisão associa o trabalho das mulheres a esfera da
reprodução (como por exemplo, o espaço domiciliar e da família no qual as atividades se
voltam para a reprodução e manutenção da vida, buscando suprir as necessidades de
sobrevivência familiar) e o trabalho dos homens ao âmbito produtivo (espaço público no qual
se produz bens e serviços para a sociedade). Para Hirata e Kergoat (2007) a divisão sexual do
trabalho é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e,
simultaneamente, apropriação pelos homens de funções com maior valor social adicionado
(políticos, religiosos, militares, entre outros). De acordo com as autoras, se organiza com base
Considerações finais
O contexto político, histórico e social em que se deu a gênese dos presídios femininos
no Brasil, é marcado pela transição da mulher urbana do espaço privado para o público. Como
forma de conter essa mobilidade os “papéis sociais” femininos foram reiterados, visando
normatizar comportamentos e corpos femininos em um padrão que não desestruturasse a
ordem social vigente, a família nuclear burguesa, o patriarcado. Isso refletiu no cárcere,
tornando os primeiros presídios femininos uma espécie de escola para que a reforma moral de
mulheres consideradas transgressoras do feminino pudessem refletir e reaprender a exercer
seus papéis conforme demandava a sociedade. Nesses espaços, dentre outros, ficou nítida a
relação da divisão sexual do trabalho, sendo o público destinado aos homens e o privado às
mulheres, sendo inclusive amparado por lei, já que constava no Código Penal que o trabalho
conferido às mulheres em situação de cárcere seria apenas em ambiente interno.
Os estabelecimentos penais femininos terem ficado por tanto tempo sob administração
de freiras só reforça o forte apelo moral destinado a esses espaços na época. A religião tinha a
missão de reestruturar a mulher delituosa às expectativas do Estado e da sociedade, pois suas
ações estavam voltadas, majoritariamente, no cuidado da educação moral dessas mulheres. A
prisão era tida como espaço de redenção e reeducação de mulheres para que pudessem ocupar
seus lugares na sociedade. Sua estrutura e funcionamento esboçam as expectativas capitalistas
e patriarcais referentes às mulheres naquela época e os espaços a elas destinados.
Ainda hoje o aprisionamento de mulheres está cerceado por julgamentos morais da
lógica patriarcal, sendo observadas nas instituições prisionais femininas, práticas laborais
Referências
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ROTHMAN, David. The Oxford History Of The Prision – The Practice of Punishment in
Western Society. New York: Oxford University Press, 1995.
Resumo: O objetivo central do trabalho em questão foi problematizar a concepção sobre o ser mulher
dentro do âmbito da Polícia Militar do Estado do Paraná na contemporaneidade, a partir da análise da
notícia "Policiais femininas participam de encontro para a valorização da autoestima do seu lado
mulher" publicada pelo site da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária -
Governo do Estado do Paraná, em 31 de outubro no ano de 2013, levando em consideração
perspectivas teóricas do campo da Psicologia denominada Análise Institucional (BAREMBLITT,
2002). As discussões aqui colocadas são frutos de uma pesquisa exploratória de materiais
selecionados conforme nosso objetivo, bem como da possibilidade de acesso aos materiais
bibliográficos, sendo estes materiais as obras de Baremblitt, publicações oficiais e não oficiais de livre
acesso que dizem respeito a inserção de mulheres na Polícia Militar do Paraná e notícias referentes aos
encontros denominados “Chá das Rosas” contidas no site Secretaria de Segurança Pública e
Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná . O estudo também se enquadra no campo
denominado Relações de Gênero, compreendendo uma análise de papéis sociais que são tidos como,
historicamente, denominados para um gênero específico, como é o caso do homem e da mulher
inseridos nas organizações da instituição Segurança Pública. Compreendeu-se que os encontros “Chá
das Rosas” foram iniciados através da reprodução de um discurso masculino dominante, propondo
uma divisão de funções de gênero, compondo lógicas instituídas como, por exemplo, a ideia de que
ser mulher e ser policial diz respeito a uma dupla jornada, levando em conta a concepção de que toda
mulher é dona de casa e mãe, estando ligada ao trabalho no ambiente público e privado, também uma
concepção de que feminilidade está atrelada a delicadeza.
1
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Londrina – UEL. Psicóloga
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. Mestranda em Psicologia Social e
Processos Institucionais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, e-mail
grisoskidaniela@gmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina – UEL, Psicóloga, Mestre em Psicologia e Sociedade e Doutora em Saúde
Coletiva pela Unesp-Assis. Atualmente é Professora Adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no
Departamento de Psicologia Social e Institucional e Docente no Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em
Psicologia (PPGP-UEL), e-mail ensantiagobr@yahoo.com.br
Introdução
O presente trabalho se caracteriza como parte do processo de desenvolvimento de uma
dissertação, iniciada em 2018, no programa de Mestrado em Psicologia, seguindo a linha em
Psicologia Social e Processos Institucionais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Como objetivo geral, visamos realizar uma problematização acerca da concepção sobre o que
é ser mulher dentro do âmbito da Polícia Militar do Estado do Paraná na contemporaneidade,
a partir da análise da notícia "Policiais femininas participam de encontro para a valorização da
autoestima do seu lado mulher" publicada pelo site da Secretaria de Segurança Pública e
Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná, em 31 de outubro no ano de
2013, levando em consideração perspectivas teóricas do campo da Psicologia denominada
Análise Institucional (BAREMBLITT, 2002).
A abordagem denominada Análise Institucional, de acordo com L’Abbate (2003), tem
a característica de desenvolver conjuntos de conceitos e instrumentos visando analisar e
intervir em instituições. No Brasil, a Análise Institucional começou a se destacar por volta da
década de 1970, a partir de pesquisas em universidades com variados tipos de profissionais. A
Análise Institucional não possui um caráter único, pois é formada a partir de um conjunto de
disciplinas as quais se iniciaram por volta das décadas de 1940 a 1950 na sociedade francesa,
tais disciplinas tem o intuito de problematizar a constituição de um campo como um conjunto
de saberes e práticas em um contexto amplo, enquadrados em uma ordem político-social,
ideológica e técnico-científica (L’ABBATE, 2003). Por sua vez, nesse trabalho em específico,
utilizou-se a produção a respeito da Análise Institucional do teórico Gregório Baremblitt,
renomado teórico da América Latina, que nasceu na Argentina, mudando-se para o Brasil na
década de 1970, após a instauração de uma ditadura militar em seu país de origem, tornando-
se, posteriormente, um dos maiores pensadores do campo da Análise Institucional (HUR,
2014).
Baremblitt caracteriza o chamado movimento institucionalista enquanto um leque de
tendências as quais não são unilaterais, mas que possuem um objetivo em comum: apoiar os
processos de autoanálise e autogestão de um meio social. Esses termos se caracterizam
conforme a organização de uma sociedade, o teórico aponta que o saber de nossa população
vem sendo produzido através de experts, sendo esses os conhecedores de uma sociedade, que
influenciam os modos de vida dos cidadãos. Já os processos de autoanálise e autogestão
compreendem a organização de uma sociedade para produzir saberes e dispositivos
necessários para a manutenção e melhoramento sobre suas vidas. Neles, há hierarquia através
em 27 eixos pelo Brasil, sendo correspondente um para cada estado e um para o Distrito
Federal, atuando também como campo subordinado do Exército Brasileiro (SECRETARIA
DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA, 2018). Entretanto,
essa organização, fundada no ano de 1854, se caracterizada unicamente como sendo formada
por homens, assim como todos os batalhões constituintes no território brasileiro da época.
A Polícia Feminina, por sua vez, se inseriu no estado do Paraná na década de 1970,
sendo o segundo estado a configurar os Batalhões da Polícia Militar com a presença de
mulheres, sendo o estado de São Paulo o primeiro, abarcando a presença feminina na década
de 1950. Moreira (2016), ressalta que a nova categoria de Polícia foi prevista a partir da
necessidade de criação de uma denominada “nova polícia”, ou seja, a partir de nossa analítica,
no processo de inserção feminina na Polícia, idealizava-se a figura da mulher como sendo
menos viril. Consequentemente, isso resultaria em uma polícia mais preventiva e menos
repressiva, contribuindo para a realização de tarefas específicas dentro da instituição, tais
como policiamento preventivo e operações ostensivas ligadas a menores, estando envolta em
um discurso de “humanização da polícia”, visto que mulheres, naquele meio social, eram tidas
como figuras de auxílio, proteção, maternidade e moral da época em questão. “A opção da
corporação policial militar foi por reforçar o estereótipo feminino vinculado à essência
biologicamente determinada e que se contrapõe à concepção de virilidade” (MOREIRA,
2016, p. 189).
Cabe ressaltar que a inserção de mulheres na organização da Polícia Militar contava
com uma seletividade de operações que por elas poderiam ser desempenhadas, sendo que
outras operações que precisassem ser realizadas seriam executadas por homens, deixando-se
claro tal fato a partir da Diretriz n. 048\77 (POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO
PARANÁ, 1977 Apud MOREIRA, 2016) que foi instituída posteriormente a inclusão da
presença feminina no batalhão, trazendo o seguinte conteúdo:
Cabe ressaltar que a ideia da mulher inserida dentro da organização Polícia Militar, em
primeiro plano, foi assegurar um ideal de “essência feminina” a qual estava diretamente
ligada a concepção de maternidade, delicadeza, cuidado e proteção, trazendo à tona, assim
como citado por Moreira (2016), a figura de um “anjo tutelar”, para o qual as questões
consideradas mais leves no âmbito da Segurança Pública seriam destinadas. Levando em
consideração as falas dos responsáveis pelo desenvolvimento do primeiro encontro “Chá das
Rosas” ocorrido no 20º BPM, identifica-se resquícios dessa representação de um “anjo
tutelar” ligado a figura da policial militar feminina.
Gênero, por sua vez, de acordo com a autora Joan Scott (1995), devendo ser compreendido a
partir de uma organização social entre os sexos, e, a partir dessa organização, dando sentindo
ao funcionamento das relações sociais humanas. A noção de gênero se refere aos domínios
estruturais e ideológicos que implicam nas relações entre os sexos. Tal preocupação, começou
a ocorrer nas décadas finais do século XX, sendo considerado uma categoria de análise a
partir do momento em que integrantes do movimento feminista encontraram aliados (as)
cientistas e políticos. Tomando como bases teórica as discussões do filósofo Michel Foucault,
Scott (1995), compreende que há linhas de pensamento em que dizem respeito a sexualidade
como sendo este um conteúdo produzido através de contextos históricos distintos (SCOTT,
1995).
“O corpo é construído no mundo social como realidade sexuada e como depositário de
princípios de visão e divisão sexualizantes” (MOREIRA, 2016, p. 131). A partir de um ideal
de corpo produzido pelas distinções de funções sociais determinadas, tem-se a noção de que
há a divisão social entre funções consideradas masculinas e femininas, sendo a função do
policial militar uma delas. Há a relação de gênero na inserção da Polícia Feminina no estado
do Paraná a partir do momento em que a mesma é pensada para funções desmilitarizadas, ou
seja, voltada ao cuidado ao outro (MOREIRA, 2016).
Em contrapartida, é necessário abarcar que as lógicas constituintes de processos
instituídos e instituintes se perpassam, havendo uma transversalidade dessas lógicas as quais
se encontram cristalizadas e, ao mesmo tempo, em constante movimento. Visto isso, é
possível fazer um ressalvo que, mesmo que com todas as mudanças inseridas pelo movimento
instituinte proposto pela entrada de mulheres na organização Polícia Militar, também houve a
reprodução de lógicas instituídas dentro desse mesmo contexto, havendo assim uma
contraposição entre instituído e instituinte.
Uma das lógicas que se mantiveram, a partir deste processo, foi a questão do corpo
militarizado estar voltado para a ideia de disciplina. As mulheres inseridas na instituição
militar em questão, assim como os homens, também deveriam cumprir leis que propunham
um padrão de comportamento que dava manutenção há um controle disciplinar estruturado e
estruturador de seu ambiente de trabalho. Entretanto, esses comportamentos eram
diferenciados para, mais uma vez, reafirmarem uma produção de binarismo de gênero onde o
masculino era visto como superior ao feminino.
nomeadas para marcar mais uma diferença nas identificações que existem no
espaço institucional, precisam assumir o comportamento feminino definido
pela legislação. Para serem reconhecidas como agentes institucionais
honradas, deveriam assumir publicamente um comportamento qualificado
para uma policial feminina (SCHACTAE, 2015, p. 4).
Considerações finais
Vale destacar que a Polícia Feminina foi ao mesmo tempo uma inovação —
a instituição deixou de ser exclusividade dos homens — e uma afirmação da
tradição, pois sua existência reafirma o domínio masculino. É a partir da
relação entre a inovação e a tradição que foi instituída a Polícia Militar
Feminina como um lugar de contradição (SCHACTAE, 2015, p. 3).
Baremblitt (2002), sustentando a análise do contexto em que os encontros “Chá das Rosas”
começaram a ocorrer no âmbito da Polícia Militar do estado do Paraná, além de concepção
históricas acerca da inserção de mulheres no campo da Polícia Militar do Paraná.
Compreendeu-se que os encontros “Chá das Rosas” foram iniciados através da reprodução de
um discurso masculino dominante, propondo uma divisão de funções de gênero. Nesse
contexto, cabe uma problematização para trabalhos subsequentes sobre como se derem os
encontros posteriores, tanto no 20º BPM, quanto nos demais Batalhões localizados na Polícia
Militar do Paraná.
Referências
BAREMBLITT, Gregório. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e
prática, 5ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari, 2002.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São
Paulo: Cortez, 2007.
1
Universidade Estadual de Londrina/Instituto Federal Catarinense Campus Fraiburgo-SC; Professor da rede de
ensino básico; rochageologia@gmail.com.
2
Universidade do Oeste de Santa Catarina; Graduanda em Administração; angela@editoraexito.com.br.
3
Pesquisador do CNPq/PQ; Geógrafo. Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Meio Ambiente;
ncfraga@uel.br
Introdução.
No espaço urbano e as relações que o compõem vão de encontro com a divisão social
do trabalho, isso quando pretende-se referir alguns setores da produção econômica e suas
implicações na sociedade. Mediante tais condições econômica que cada localidade tem,
surgem atividades para suprir necessidades do mercado em escala local e
nacional/internacional, tendo como objetivo, o baixo custo produtivo com maior
lucratividade. Nesse sentido, a produções irá refletir não somente no âmbito econômico,
estendendo as consequências para as relações sociais em geral.
Nessa ocasião, trata-se de uma sociedade que utiliza de meios técnicos para
transformar o natural em mercadorias, mantendo um ciclo das atividades que movem a
economia local e global. A lógica do sistema econômico, consiste, basicamente na produção e
comercialização, isso, para perpetuar um ciclo de atividades lucrativas e, ao mesmo tempo, o
consumo, transporte, moradia, tudo que envolva a participação do ser humano enquanto
elemento dentro de uma lógica mercantilista.
Mas, para que todo esse processo produção/produto seja concretizado, é preciso
quantidade significativa de pessoas inseridas em diversas tipos de funções, com salários e
ambientes diferentes e, espacialmente distribuídas pelo território. Logo, pode-se afirmar uma
divisão do trabalho, que culminará em realidades antagônicas do proletário com a dos
proprietários dos meios de produção. Santos (2008) vai pontuar esse cenário enquanto
conjunto de fatores no espaço urbano, sendo que:
A existência de uma massa de pessoas com salários muitos baixos ou
vivendo de atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito
elevadas, cria na sociedade urbana uma divisão entre aqueles que podem ter
acesso de maneira permanente aos bens e serviços oferecidos e aqueles que,
tendo as mesmas necessidades, não têm condições de satisfazê-las. Isso cria
ao mesmo tempo diferenças quantitativas e qualitativas no consumo. Essas
diferenças são a causa e o efeito da existência, ou seja, da criação ou da
manutenção, nessas cidades, de dois circuitos de produção, distribuição e
consumo dos bens e serviços (SANTOS, 2008, p. 37).
É interessante observar nas palavras de Santos (2008), quando trata sobre os impactos
de transformação, afirmando que são poucos os países atingidos por interesses distantes, mas,
a partir do momento que determinado setor da economia participa do mercado global,
qualquer tipo de oscilação tratará efeitos para sociedade local, obviamente que, dependendo o
nível de atuação que o setor tem nos países subdesenvolvidos, que o caso do município de
Birigui/SP, exportador de calçados para vários países, participando maciçamente do mercado
global.
Desenvolvimento
Para melhor compreender os dois circuitos na economia urbana, Santos (2008) cita
algumas características essenciais para diferenciá-los como também para apontar qual camada
social beneficia mais de um e de outro, no qual:
O circuito superior utiliza uma tecnologia importada de alto nível, uma
tecnologia “capital intensivo”, enquanto no circuito inferior a tecnologia é
“trabalho intensivo” e frequentemente local ou localmente adaptada ou
recria. O primeiro é imitativo, enquanto o segundo dispõe de um potencial
de criação considerável. As atividades do circuito superior dispõem do
crédito bancário. Acontece frequentemente de as grandes firmas criarem e
controlarem os bancos, o que é uma maneira de também controlar outras
atividades e eventualmente absorvê-las (SANTOS, 2008, p. 41).
É interessante observar uma das características que ambos os circuitos têm, enquanto o
superior utiliza capital intensivo, possibilitando melhores condições desde os meios de
produção como mão de obra qualificada, necessitando de poucas pessoas envolvidas no
Esses espaços informais, conhecido como banca de calçados, absorve a mão de obra
que não conseguiu ser inserida na grande empresa, forçando o aparecimento de bancas ao
longo de vários bairros da cidade, ou seja, o próprio sistema produtivo dá condições para a
permanência desses espaços, garantindo o lucro marginal das empresas. Ainda Santos (2008),
sobre o circuito inferior, pontua:
A extrema divisão do trabalho no circuito inferior constitui, em si mesma,
um elemento multiplicador. Antes de mais nada, ela estimula a utilização
produtiva do capital. A frequência das trocas aumenta a rapidez das
transações e, por isso mesmo, multiplica a formação dos lucros, qualquer
que seja seu volume. De outro lado, a multiplicidade dos atos de comércio
age como um acelerador da circulação da moeda. O fracionamento e a
descontinuidade das atividades do circuito inferior criam uma multiplicidade
de serviços de contato e de articulações, assim como toda uma cadeia de
outras atividades. O próprio terciário o setor moderno frequentemente cria
seu próprio círculo de serviços de nível inferior (SANTOS, 2008, p. 252-
253).
Esse melhor rendimento que Santos (2008) aborda, é possível apenas pelo
rebaixamento da mão de obra feminina no setor calçadista de Birigui/SP, pois, a partir do
momento que recebem pouco, exige que elas trabalhem muito mais horas para ganhar um
salário digno para sobreviver. Outro ponto importante a ser abordado são os direitos
trabalhistas que elas deixam de ter trabalhando nesses espaços informais, pois, qualquer
acidente de trabalho ou por outro fator não poder trabalhar, elas não tem como continuar
recebendo, como também, não tem décimo terceiro, férias, carteiras assinada e, se não
contribuir, deixam de ter o direito de aposentadoria. (MACHADO DA SILVA, 1993).
Segundo Araújo e Amorim (2001), as condições no mundo de trabalho, sobretudo para
quem está inserido no circuito inferior, acaba tendo uma realidade bastante cruel, pois o
sistema capitalista de produção não quer saber as condições das trabalhadas de fundo de
quintal em Birigui/SP, e sim, do barateamento da produção e do ganho marginal das
empresas, que, segundo o mesmo:
Emprega na maioria dos casos como expediente de redução de custos, a
terceirização tem imposto aos trabalhadores relações de empregos instáveis,
redução de salários e benefícios e condições de trabalho degradadas, que tem
como consequência o aumento dos acidentes de trabalho e das doenças
profissionais. Além disso, ela tem levado ao desalojamento de uma parcela
dos/as trabalhadores/as para a economia informal, submetendo-os/as a
condições precárias de trabalho e excluindo-os/as dos benefícios assegurados
por lei e da representação sindical (ARAÚJO E AMORIM, 2001, p. 275).
Percebe-se que, as mulheres que trabalham costurando calçados, deixam de ter uma
série de benefícios assegurados por lei e conquistados ao longo de muitos anos mediante a
luta de classe, que, aos poucos vem perdendo representatividade ao posso que políticas
deixam de priorizar o(a) trabalhador(a) e passam a atender mais o capitalista e suas formas de
lucrar mediante a perda de direitos, no caso, das mulheres do setor calçadista de Birigui, que,
acabam sendo invisibilizadas em seus domicílios através do trabalho mal remunerado.
Na imagem 1, pode-se ter uma noção do ambiente de trabalho de muitas mulheres que
estão inseridas no setor do pesponto (costura) do calçado.
Imagem 1: Mulher pespontando em sua residência em Birigui/SP
Para (SANTOS, 1978, p. 128) “o espaço não é nem a soma nem a síntese das
percepções individuais. Sendo um produto, isto é, um resultado da produção, o espaço é um
objeto social o que conhecemos como espaço geográfico”. É notável que ambos autores
trabalham como construção do espaço o resultado da produção, mas que antes disso há os
meios que conduzem o surgimento de fixos, de objetos e ações, sendo assim, Santos (1978)
conclui que o espaço é objeto social com infraestrutura que resulta nas relações sociais.
Dentro dessa temática, (SANTOS, 2008, p. 64) afirma que: “as coisas seriam um dom
da natureza e os objetos um resultado do trabalho”. Entretanto, os dois circuitos econômicos
que norteiam as ações e os resultados do trabalho exercido, logo, conclui que as técnicas são
instrumentos que atuam para o resultado final: os objetos, onde neles estão inseridos a força
de trabalho, tempo, tecnologia e infraestrutura, indo de encontro do que Pierre George (1974)
escreveu quando diz sobre a influência das técnicas no sentido de transformações no âmbito
natural e social atrás do uso das máquinas.
Nesse sentido, pensar na produção calçadista do espaço geográfico e nos processos de
como chegou a fase atual são necessários para entender as relações sociais, sobretudo o que
dá forma e condições para determinar arranjo espacial com suas funcionalidades. Se o espaço
geográfico é formado por objetos, ações, fixos, fluxos e a interrelação dos mesmos, incluindo
a participação do homem como elemento de transformação da natureza, entende-se que outros
fatores da ordem política e econômica fazem parte dessa configuração espacial, resultando nas
características dos dois circuitos, sendo eles o superior e o inferior como dois fatores dentro
de um sistema maior e que, de certa forma, perpetua as condições precárias das trabalhadoras
do setor calçadista de Birigui/SP. Santos (2012), vai abordar a configuração do espaço
geográfico na tentativa de permanecer a influência do capitalismo sobre o mundo do trabalho,
reafirmando a existência/permanência da divisão social do trabalho, sendo que:
As condições atuais do crescimento capitalista criaram uma forma particular
de organização do espaço, indispensável à reprodução das relações
econômicas, sociais e políticas. A forma como atualmente se distribuem as
infraestruturas, os instrumentos de produção, os homens – enfim, as forças
produtivas – possui até certo ponto um caráter de permanência, isto é, de
reprodução ampliada, isso amparado, exatamente, na longevidade de um
grande número de investimentos fixos. Tudo, pois, conspira para que a
organização do espaço se perpetue com as mesmas características,
favorecendo o crescimento capitalista e suas distorções (SANTOS, 2012, p.
73).
Nesse sentido é importante abordar o que Cavalcanti (2001) trata sobre a produção do
espaço urbano capitalista:
A produção do espaço urbano capitalista tem uma lógica na necessidade de
aglomeração que tem o capital, mas também na necessidade de ocultar
contradições sociais. Isso fez com que essa produção resultasse em
diferentes lugares, lugares de diferentes classes e diferentes grupos, lugares
contraditórios (CAVALCANTI, 2001, p.17).
Considerações finais
Referências
CISNE, Miria. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras
Expressões, 2012.
LINS, Hoyêdo Nunes. Têxteis Catarinenses anos 90. Atualidade Econômica. Universidade
Federal de Santa Catarina. Centro Socioeconômico – Departamento de Ciências Econômicas
Florianópolis: Ed. da UFSC, 2000.
SANTOS, Milton. O espaço Dividido: Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países
Subdesenvolvidos. 2. ed., 1. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitec, 1978.
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 5. Ed., 3. reimpr. – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2012.
Marcia Neves1
Samia Moda Cirino2
Resumo: Este artigo objetiva verificar as interações entre gênero, magistério e adoecimento
mental. De modo específico, o artigo objetiva expor por meio da análise histórica e de
indicadores sociais a feminização do trabalho no magistério da educação básica no Brasil e
desvelar a divisão sexual do trabalho que sustenta a hierarquização e precarização nessa
atividade ocupacional. Ainda, analisa-se de que modo a opressão e exploração das mulheres
nas suas atividades produtivas e reprodutivas, especialmente ocupações laborais feminilizadas
como o magistério na educação básica, indicam maiores fatores de risco para o adoecimento
mental. Trata-se de pesquisa que se utilizou de instrumentos qualitativos, exploratórios e
bibliográficos. A abordagem das interações das categorias de análise requer uma perspectiva
feminista, uma vez que essa teoria assume uma postura crítica acerca das relações de gênero.
Sob esse prisma, o gênero é adotado como categoria de descrição e análise das interações
sociais, as quais estão fundamentadas na diferença sexual que, por sua vez, é significada pelas
relações de poder no nosso contexto sócio-histórico dando ensejo à divisão sexual do
trabalho. O conjunto das análises permite afirmar que a predominância de mulheres no
magistério da educação básica acaba por representar uma extensão do papel tradicional de
gênero vinculado às mulheres profissionais de educação.
Introdução
A análise dos relatórios que cuidam da questão de gênero no trabalho evidencia que
as mulheres são o maior contingente de trabalhadores em empregos instáveis e mal
remunerados, principalmente por estarem concentradas em atividades socialmente menos
valorizadas, consideradas tipicamente femininas, associada a tarefas de cuidado e de
reprodução, como as áreas de educação e da saúde. Especificamente quanto ao trabalho no
magistério, o relatório elaborado a partir dos dados do Censo da educação básica de 20073
1
Graduanda no curso de Direito da Faculdades Londrina; Graduada em Pedagogia (UNIFIL) e Especialista em
Educação (UNOPAR); Professora/Coordenadora na Rede Municipal de Ensino; marcia.nb@hotmail.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Professora pesquisadora do Grupo
Liberdades em Disputa (UEL) e Professora do curso de Graduação em Direito da Faculdades Londrina;
samoci26@gmail.com
3
Relatório disponível em <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/estudoprofessor.pdf>. Acesso em 20 de maio
de 2018.
evidencia que nas creches, na pré-escola e nos anos iniciais do ensino fundamental o maior
contingente de docentes é predominantemente feminino (98%, 96% e 91%, respectivamente).
A análise dos dados empíricos em conjunto ao entendimento da historicidade da
inserção das mulheres em profissões ligadas a funções consideradas femininas e socialmente
desvalorizadas permite desvelar como as estruturas de poder, ao significar as relações sociais
a partir do sexo e do gênero, reificam a divisão sexual do trabalho, a exemplo do trabalho no
magistério da educação básica. Essa estrutura assentada na divisão sexual do trabalho aponta
para os desafios impostos pela articulação entre o sexo e o gênero na atividade docente e
indica diferentes significados das identidades docentes e das relações escolares, geralmente,
associando-se à imagem de mãe, de cuidadora e do trabalho como expressão do amor
maternal.
Nesses termos, o presente trabalho analisa o processo de inserção massiva de
mulheres no magistério da educação básica no Brasil a fim de averiguar o contexto sócio-
histórico que culminou na feminização e precarização da docência. Essa análise, ainda,
permite expor que esse processo decorreu de uma estratégia articulada para atender a
demanda da educação pública a um custo baixo e, ao mesmo tempo, garantir a reprodução dos
padrões sociais androcêntricos relativos ao papel da mulher na sociedade.
A fim de averiguar a real extensão desse processo, a análise perquire acerca das
consequências dessa lógica androcêntrica na saúde de docentes, especificamente a saúde
mental. Objetiva-se estabelecer uma relação entre a feminização da atividade docente no
ensino básico, fundamentada na divisão sexual do trabalho, e o sofrimento patológico do real
do trabalho.
Dessa forma, mais que denunciar a feminização de atividades como ocorre no
magistério da educação básica, é necessário abordar a lógica que sustenta essa divisão e
hierarquização, bem como avançar as análises para perquirir acerca de suas consequências na
saúde mental de docentes. Considera-se que fatores importantes na exigência da atuação nessa
profissão, muitas vezes acompanhados por restrições das políticas educacionais - com efeitos
diretos nas atividades de professores, no modo de execução de suas atividades - possuem
efeitos nefastos sobre a saúde de docentes, causando o adoecimento mental. Nesses termos,
desvela-se como essa estrutura feminizada e precária no magistério da educação básica
contribui para o sofrimento patológico expresso no grande contingente de docentes afastadas
de suas ocupações em decorrência do adoecimento mental.
sacrificarem sua vida pessoal, que não se submeterem a uma sofrível experiência de cabeça
erguida estão equivocadas e, de certo modo, não honram a profissão.
Além da apontada feminização, a atividade docente vive uma tendência de
precarização, conforme ressalta Nóvoa (1995, p. 15), ao descrever alguns paradoxos dessa
profissão. O primeiro paradoxo é o excesso das missões da escola, o excesso de exigência da
sociedade e a falta de prestígio da profissão. O segundo paradoxo refere-se à proposta de
professores reflexivos e, ao mesmo tempo, a inexistência de condições de trabalho concretas,
isto é, condições de tempo, a matéria-prima e o desenvolvimento profissional que possam, de
fato, alimentar a idéia de professores reflexivos. O último paradoxo refere-se ao fato de que as
escolas continuam a ser vistas como um agrupamento de salas de aula e como um lugar onde
se presta um serviço a alguém, ao invés de um lugar onde se institui a sociedade, a cultura,
onde nos instituímos como pessoas.
Todas essas questões reforçam o lado perverso que as questões de gênero
estabelecem sobre o trabalho docente, pois, de um lado, esclarecem Dametto e Esquinsani
(2015, p. 154), reforçam a primazia feminina na atividade da docência e, de outro lado,
indicam uma face ainda mais contundente: "a mulher está, dada sua condição física e sua
posição social, no seu cotidiano pessoal e na escola, mais vulnerável à violência, sendo alvo
preferencial das agressões".
O momento exige ressignificar teorias e práticas à luz das relações de gênero e de
suas articulações com o processo educativo, buscando questionar os valores, os
conhecimentos e os códigos dominantes. Assim, é necessário desnaturalizar o discurso
relativamente consensual acerca da docência feminina e da compreensão distorcida da tarefa
profissional da professora. Essa análise requer a compreensão da divisão sexual do trabalho
para efetiva reflexão sobre os aspectos contraditórios geradores de tal processo, consoante
será exposto na próxima seção.
acaba por representar uma extensão do papel tradicional de gênero vinculado às mulheres, ou
seja, a função materna.
Importante esclarecer que no presente trabalho gênero é empregado sob uma
perspectiva social, histórica e cultural não restrita, portanto, apenas ao aspecto da diferença
sexual, conferindo-se ênfase às significações atribuídas às relações de gênero em
determinados contextos sócio-históricos pelas estruturas de poder.
A feminização e a precarização da atividade docente que se busca evidenciar neste
trabalho não é um processo natural com gênese simplesmente no processo histórico. Decorre
da lógica das relações de poder - que engendram os parâmetros sociais, econômicos e
políticos de acordo com uma racionalidade androcêntrica - constitutiva dos próprios sujeitos,
representada pela divisão sexual do trabalho no aspecto específico das ocupações.
Diante disso, em uma perspectiva feminista, conforme definição elaborada por
Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007, p. 599):
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das
relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a
sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e
socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação
pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos,
militares etc.).
Nos termos da teoria proposta pelas autoras, (KERGOAT; HIRATA, 2007, p. 599),
são dois os princípios basilares da divisão sexual do trabalho: o princípio da separação,
segundo o qual existem trabalhos específicos destinados ao sexo masculino e outros ao sexo
feminino; e o princípio da hierarquização que consiste na afirmação de que o trabalho do
homem tem mais valor do que o trabalho da mulher.
Nessa estrutura androcêntrica, conforme crítica de Aldacy Rachid Coutinho (2000, p.
14), os homens ocupam um lugar de primazia na divisão social do trabalho, uma vez que a
eles são destinadas as atividades intelectuais ou de capital intensivo. Às mulheres restam,
prioritariamente, as atividades de reprodução e as atividades produtivas rotinizadas, de menor
qualificação, remuneração e prestígio social, gerando formas de exploração, dominação e
opressão tipicamente sexista.
Diante disso, há uma tendência de atribuir-se um status social secundário às
atividades produtivas e reprodutivas das mulheres. De acordo com essa lógica, "as profissões
feminizadas, que guardam alguma similitude com as tarefas domésticas e com o papel da
mulher na família, como enfermeiras, professoras e secretárias, são socialmente
desvalorizadas e mal remuneradas" (GOSDAL, 2006, p. 307).
A relação entre o trabalho docente, as reais condições sob as quais ele se desenvolve
e o possível adoecimento mental constitui um desafio e uma necessidade para se entender o
processo saúde-doença dessa profissão. O adoecimento da categoria docente surge como uma
saída socialmente aceitável para a superação da impotência e da frustração profissional e
como maneira de expressar silenciosamente o sofrimento vivenciado, no qual não aparecem
as condições de trabalho e as limitações as quais o professor é exposto.
Nesse sentido, uma pesquisa realizada pela Fundação Jorge Duprat e Figueiredo
(Fundacentro), órgão do Ministério do Trabalho e Emprego, destinado a pesquisas
relacionadas à segurança e saúde no Trabalho, aponta que no triênio 2013-2015 a rede
estadual de ensino de São Paulo concedeu uma média de 372 licenças médicas por dia a
professores, sendo que 27% dos casos de afastamento referem-se a transtornos mentais4.
Esses profissionais, ressaltam Souza e Leite (2011, p. 1116), são mais suscetíveis a
transtornos mentais, como a síndrome de bornout (síndrome do esgotamento profissional),
movidos pela crença da educação transformadora, diante do descompasso entre as
expectativas profissionais e a impossibilidade de alcançá-las. Da mesma forma, as referidas
autoras destacam que as expectativas sociais e dos dirigentes do sistema educacional "para
que os professores tenham um desempenho que seja capaz de superar as diversidades culturais
e sociais, sem lhes dar condições para atingi-lo, contribuem para gerar ansiedade, estresse e
acabam por levar ao burnout" (SOUZA; LEITE, 2011, p. 1116).
O estudo realizado por Diniz (1998, p. 203) sobre o sofrimento de mulheres
professoras das séries iniciais do ensino fundamental revela a vivência de um profundo mal-
estar:
Na escola, as professoras se queixam das condições de trabalho, dos alunos, do
salário. Mas nos consultórios, para os médicos que lhes concedem licenças para
tratamento de saúde, as queixas e sintomas apresentados mais frequentemente são
outros: "diarréia, pressão alta, vômito, dores na nuca, na cabeça, na coluna, nas
costas, dormência nas mãos, irritabilidade, choro fácil, depressão, ansiedade,
insônia.
Somada a essa ausência de condições dentro da profissão está a dupla jornada, uma
vez que as professoras ainda devem arcar sozinhas com as demandas cotidianas do trabalho
doméstico, vinculada às restrições orçamentárias do segmentos da sociedade a que pertencem
em sua maioria. De certa forma, essa constatação explica o cansaço expresso ao gerar
constrangimentos do tempo diferentes para homens e mulheres. Nesse aspecto, a divisão
sexual do trabalho tem implicações diferenciadas na saúde de homens e mulheres em termos
de maior ou menor margem de tolerância ao meio decorrente do acúmulo de atividades.
Embora a atividade docente apresente fatores de risco para adoecimento mental
indistintamente, Souza e Leite (2011, p. 1109) ressaltam que, em razão do maior contingente
da categoria ser do sexo feminino, "devem ser ressaltados, em particular, os efeitos desse
estresse na saúde das mulheres, como amenorréia, tensão pré-menstrual, cefaléia, melancolia
climatérica, frigidez, anorexia, bulimia, neurose de ansiedade e psicose depressiva".
Nesses termos, constata-se que a ausência de reconhecimento social do trabalho
docente - expressivo, por exemplo, na baixa remuneração e falta de investimento -, o acúmulo
pelas mulheres da atividade produtiva e reprodutiva (não remunerada), em uma dupla jornada
extenuante, a violência nas escolas e a exigência da figura de professora-mãe, impossibilita a
construção do sentido no trabalho e, consequentemente, de construção da subjetividade
saudável, dando ensejo ao sofrimento patológico.
Conclusões
As mulheres estão em maior proporção nos anos iniciais da educação de uma criança
relacionado a uma estrutura que prestigia o papel de educadora e mãe. Uma estratégia que
mascara a intenção de atender à demanda crescente da educação prestada pelo Estado à classe
trabalhadora a um baixo custo, bem como de reproduzir os padrões androcêntricos que
fundamentam a divisão sexual do trabalho.
Como um processo natural, atrelado a uma suposta vocação de ensinar crianças,
verificou-se a feminização da educação básica, sob o manto de um discurso reprodutor da
lógica androcêntrica de que a atividade docente era perfeitamente adequada ao seu gênero,
considerando o seu papel reprodutivo na sociedade.
Socialmente menos valorizadas, por se tratar de atividade tipicamente feminina, a
atividade docente também vivencia a precarização da profissão, caracterizada não apenas pela
baixa remuneração, mas, igualmente, o desestimulo à atualização, especialização, progressão
e permanência na carreira, inexistência de condições de trabalho concretas, a violência nas
escolas e a exigência da personificação da figura da mulher-mãe-professora.
Nesse sentido, a feminização e a precarização da atividade docente decorrem da
lógica das relações de poder que engendram os parâmetros sociais, econômicos e políticos de
acordo com uma racionalidade androcêntrica, constitutiva dos próprios sujeitos, representada
pela divisão sexual do trabalho no aspecto específico das ocupações. Pode-se afirmar que o
sexo da docência articula-se com a reprodução de determinados padrões androcêntricos
relacionados ao suposto papel social da mulher, ou seja, a atividade produtiva (de menor
hierarquia e prestígio social) e reprodutiva (não remunerada, ligada aos cuidados domésticos).
Nesse contexto, o adoecimento mental de docentes é consequência de uma estrutura
opressora e exploratória da atividade, na qual a possibilidade de realização da mulher pela
contribuição da sua atividade laboral é praticamente inexistente. O adoecimento mental da
categoria docente apresenta-se como uma tentativa de superação da impotência e da
frustração profissional e como maneira de expressar silenciosamente o sofrimento vivenciado.
O momento exige ressignificar as relações de gênero e suas articulações com o
processo educativo, buscando questionar os valores, os conhecimentos e os códigos
dominantes. É necessário ultrapassar esses padrões relacionados a dados naturalizantes e
buscar a diversidade caracterizadora da identidade docente considerando o cotidiano escolar e
as constrições que o real do trabalho impõe ao profissional dessa área.
A elevada prevalência de transtornos mentais em professoras destacada neste estudo
e sua associação aos fatores investigados apontam para a necessidade de ações que melhorem
as condições de trabalho no magistério da educação básica. Dentre elas, destaca-se a
promoção de espaços de discussão entre docentes e gestores com vistas a subsidiar políticas
que forneçam condições favoráveis ao exercício da docência, incluindo as questões
relacionadas à autonomia, à criatividade e à disponibilidade de recursos materiais.
A escola precisa ser um lugar de vida e de crescimento e construção, mesmo que
com suas diferenças e paradoxos, sem ser produtora de um adoecimento e ou do sofrimento
pela intensidade do que tem que ser suportável.
Referências
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SOUZA, Aparecida Neri de; LEITE, Marcia de Paula. Condições de trabalho e suas
repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. Educ. Soc., v. 32, n.
1
Universidade Estadual de Londrina; mestrando; junior.of.spades@gmail.com
1 - Introdução.
No final da década de 60, surgiram inúmeros estudos que tiveram como base as
práticas discursivas e, assim, a Análise do Discurso (AD) se firma como uma disciplina
autônoma e se coloca como uma alternativa aos aspectos da ideologia, das ciências sociais e
da linguagem no que tange à Linguística. O objetivo era o de fazer com que os enunciados
fossem estudados não apenas como uma sequência de frases soltas, e sim, como textos
capazes de produzir sentido aos interlocutores, levando-se em conta os contextos de produção.
De acordo com Charaudeau & Maingueneau (2012, p. 41), seria muito complicado
retraçar, com precisão, a história da AD, pois se trata de um campo de estudos resultante da
convergência entre os trabalhos recentes e a renovação de práticas antigas (com base em
filólogos, retóricos e hermenêuticos). Pode-se, entretanto, citar algumas evoluções da AD em
relação à Linguística tradicional. Dentre elas, está o fato de esse novo conteúdo explorar a
interdisciplinaridade com as Ciências Humanas (História, Filosofia, Sociologia, Literatura,
etc.), de modo a se considerar os contextos sócio-históricos dos discursos.
De acordo com Orlandi (2009, p. 50), “a Análise do Discurso é marcada pelo fato de
que a noção de leitura é posta em suspenso. Desse modo, a linguagem só produz sentido a
partir do ponto em que se situa em determinado contexto histórico. Além do mais, a AD de
linha francesa apresenta três regiões convergentes de conhecimento: teoria da sintaxe e da
enunciação; teoria da ideologia; teoria do discurso. As duas últimas serão exploradas, com
mais detalhes, ao longo deste artigo, de modo a serem instrumentalizadas na análise.
condições de existência”; b) “a ideologia tem uma existência porque existe num aparelho e na
sua prática ou suas práticas”; c) “a ideologia interpela indivíduos como sujeitos”.
Desse modo, é impossível falar sobre Análise do Discurso sem mencionar Louis
Althusser (1918 - 1990), que elaborou os conceitos de Aparelho Repressor de Estado (ARE) e
Aparelho Ideológico de Estado (AIE), sendo este último referente às instituições (Igreja,
Escola, mídias, culturas, família, partido político, sindicato, etc.) perpetuadoras de ideologias
várias. Resumindo, de acordo com a linha althusseriana, o fator ideológico é algo que está
presente no inconsciente coletivo das sociedades e, por meio disso, são elaboradas as
construções sociais cujo principal objetivo é o de mascarar a realidade.
Ampliando o conceito de ideologia, Ricoeur (apud BRANDÃO, 1997, p. 24 - 27)
define três instâncias para o fenômeno ideológico: a) Função geral da ideologia (serve para
que as pessoas se representem e está atrelada a uma motivação ou justificativa); b) Função de
dominação (pode se ligar ao desejo de dominar outros indivíduos, como fazem, por exemplo,
as autoridades ao criarem todo um sistema para justificar a hierarquia de determinada
civilização); c) Função de deformação (referente à distorção da realidade por meio de
símbolos religiosos, políticos, etc.). Por intermédio disso, a ideologia é concebida como algo
inerente ao signo e, dessa forma, todo falante a possui independentemente de sua vontade.
pois “é usado para relativizar a questão da passividade feminina, visto que, nos estudos que
têm como referência o sistema de justiça, não se aceita mais a mulher como vítima passiva da
dominação” (GOMES, 2015, p. 785). E, nessa perspectiva, os homicídios de mulheres
motivados pela condição genérica apresentam uma fundamentação de desprezo pelo corpo
feminino; por isso, é possível apontarmos a existência de uma cultura sexista em nossa
sociedade. Em suma, a mulher é punida por ter se projetado fora do construto da
subalternidade feminil – que, por sua vez, revela a faceta patriarcal da civilização.
É narrada, nesse conto, a história de um casal cuja mulher decide sair de casa após
inúmeras brigas com o marido. Após o abandono da esposa, ele não se conforma e passa a
aguardá-la, ansiosamente, debruçado na janela, olhando sempre para a curva por onde a rua
termina. Nesses momentos de espera, vale analisar o horizonte de expectativas criado pelo
homem em torno da antiga companheira:
[…] ela não viria dirigindo seu próprio carro nem tomaria um táxi. Viria a
pé, carregando com uma das mãos uma pequena valise e com a outra um
agasalho, além da bolsa a tiracolo. Estaria discretamente vestida, talvez uma
saia escura e blusa sem mangas, branca com bolinhas no tom da saia.
Calçaria sapatos de saltos baixos e meias de seda no tom da pele. Os cabelos
estariam presos por uma fivela de osso. Sabia também que ela viria
caminhando compassadamente, se aproximaria da casa e olharia para a
janela e encontraria o olhar dele observando-a (EFFENBERGER, 2008, p.
32).
Uma perspectiva que poderíamos levar em conta ao nos referirmos a esse excerto é a
de Pêcheux (1990) que, em sua teoria discursiva, diz que o enunciador, de modo instintivo,
adota imagens de si, do outro e da sociedade. É, justamente, o que faz o protagonista do conto
ao pressupor uma forma imagética para a consorte de uma maneira bastante definida. O
mesmo é feito em relação a si próprio, no momento em que pressupõe sua reação ao vê-la
andando para a casa, pois, de acordo com seus pensamentos, “não sorriria”, apesar de suas
mãos se crisparem “no parapeito da janela” e de suar “desagradavelmente”. Cria imagens, até
mesmo, sobre a dissimulação de seus sentimentos: “E, enquanto seu coração disparava, ele
tentaria aparentar uma serenidade que nem de longe sentia” (EFFENBERGER, 2008, p. 32).
Após o primeiro impacto, na sua concepção, “esboçaria um arremedo de sorriso e reabriria
para ela as portas de sua casa e de sua vida” (idem). No entanto, vemos que essas imagens
De imediato, percebemos o já apontado por Beauvoir (1980, vol. II, p. 395) no que diz
respeito à obrigatoriedade de as tarefas domésticas recaírem sobre o feminino e, levando em
conta essa perspectiva, é perceptível que as execuções dessas atividades pela mulher sejam
frutos de inúmeros atravessamentos ideológicos, vinculados ao patriarcado, e que não passam
de construções sociais. Outro ponto importante, também baseado nos estudos da filósofa,
refere-se ao conceito de imanência (BEAUVOIR, 1980, vol. II, p. 395), pois está claro que a
personagem de A curva era uma dona de casa que vivia em função do marido – sendo privada
e, ao mesmo tempo, privando-se de ter uma vida social.
A respeito desse reducionismo vinculado ao feminino, é possível notar a violência
simbólica (BOURDIEU, 1997, p. 204) exercida pelo personagem central, que, além de não
auxiliar a esposa nos serviços rotineiros da casa, discutia com a companheira “por motivos
banais”, como, por exemplo pelo simples fato de ela não ter passado determinada peça de
roupa, isso sem contar as humilhações constantes ao chamá-la de “desleixada, velha e feia”.
A partir do ponto em que a consorte se projeta fora das expectativas criadas pelo
marido, há uma reação violenta dele, que serve para pôr fim à história: “Ela o traíra e retirara
dele o único prazer de que dispunha: a janela. Não teve dúvidas: ao abrir a porta alvejou-a
com um tiro certeiro no coração” (EFFENBERGER, 2008, p. 35). O narrador, ainda, finaliza
com a afirmativa irônica: “Agora sim: ela nunca mais voltaria!” (idem). Ao analisar esse
desfecho, é impossível não notarmos uma evidente relação de dominação, afinal podemos
afirmar que a esposa foi assassinada por não ter correspondido à imagem mental elaborada
pelo marido. Em outras palavras, sofreu o castigo homicida por “ser mulher”.
De modo a corroborar o dito acima, Gomes (2015) já havia nos alertado sobre o
feminicídio ser o símbolo do corpo feminino como algo desprezado pela sociedade. Isso
posto, faz-se pertinente a inferência de que, no texto literário, o homem matou a mulher por
menosprezar o corpo dela, ou seja: não considerou, em momento algum, que ela poderia ter
vontades próprias, como, por exemplo, a decisão de se locomover, vestir-se e se portar da
forma que bem entendesse. Para ele, tudo teria que ser conforme suas aspirações – excluindo,
assim, o livre arbítrio do sexo feminino. Considerando que, de certa maneira, esse pensamento
esteja presente no imaginário popular, o apontamento para uma ordem social sexista é
inevitável. Além do mais, tal discurso é transmitido para a sociedade por meio de inúmeras
vozes que ecoam de um período muito anterior ao de nosso nascimento – mostrando, desse
modo, a fusão discursiva entre o passado e o presente. Pêcheux (1990) chama essas ideologias
vindas de tempos remotos de pré-construído (uma construção anterior e exterior que percorre
vários momentos históricos, de modo a fazer com que as pessoas da atualidade fiquem
condicionadas a um discurso pretérito). Por meio disso, vemos, na narrativa breve, o construto
de dois Sujeitos Universais: o sexista, visto na figura do homem; e a feminista, constatada
pelo aspecto da mulher que se recusa a jogar o jogo de cartas marcadas do machismo.
Tomando também como base o estudo sobre as Formações Discursivas (FD) e
Formações Ideológicas (FI) sobre o qual Pêcheux (1990) se debruçou, a construção de, no
mínimo, duas FDs é bem explícita em se tratando do conto analisado: por um lado, temos as
FDs que fazem reverberar uma ideologia patriarcal em nossa sociedade (esta é adotada pelo
homem que pune a mulher por ela ter ignorado as imagens construídas por ele); por outro
lado, notamos as FDs contrárias e constituídas por meio de posicionamentos ideológicos
feministas sobre a emancipação da mulher (isso pode ser visto nas estratégias subversivas da
personagem – que, além de abrir mão, temporariamente, da convivência com o esposo, cria
uma imagem de si opositiva ao querer dele). No entanto, vemos que a elaboração dessas
Formações Ideológicas (FIs) – tanto do feminismo, quanto do patriarcado –, como frutos de
várias outras FDs, acabam tendo resultados opostos, pois o masculino ainda impera sobre o
feminino, não apenas no texto escolhido para a análise, como também em todo o meio social.
Quanto às duas personagens da história, veremos agora como se manifestam nelas
algumas das hipóteses ideológicas de Althusser (1970) e de Ricoeur (1977). A respeito da
criação de formas simbólicas para a representação da realidade, analisamos que isso é feito
tanto pelo marido, quanto pela esposa. Afinal, logo de início, o homem idealiza o momento
do regresso da mulher, criando uma imagem de si – respaldada na construção da virilidade
masculina – e outra da consorte – marcada pelo recato que, no seio da sociedade, é construído
em torno do âmbito feminil. Em contrapartida, a personagem feminina, ao sair de casa,
também se mostra capaz de fazer tais projeções, porque vislumbra a imagem do próprio futuro
denotado pelo afastamento entre si e o cônjuge, o que permite o atravessamento de uma
ideologia vinculada a sua emancipação. A representação imaginária dela com suas condições
reais de existência também é constatada pelo processo de formular outras características
físicas e comportamentais para si mesma quando do retorno ao lar. Tais procedimentos podem
ser arrolados à função geral da ideologia, defendida por Ricoeur (1977), que, similar ao
posicionamento de Althusser (1970), está atrelada aos modelos representativos os quais
fazemos de si e do outro por meio de uma motivação ou justificativa: no caso do protagonista,
o seu motivo para limitar a mulher se vincula a uma ideologia androcêntrica; já em se tratando
dela, o fundamento de fugir do ambiente doméstico e de se projetar fora da perspectiva do
marido diz respeito ao processo ideológico da emancipação feminina na sociedade.
Mas o ápice de como determinada ideologia pode acarretar uma ação, nesse conto, é
retratado no instante em que ocorre o feminicídio, pois a violência de gênero se mostra como
uma forma de controle do homem sobre o corpo feminino (GOMES, 2015) e isso,
imediatamente, denota a função ideológica da dominação (que se liga ao desejo de dominar
outros indivíduos pelo construto de uma relação impositiva) sobre a qual falava Ricoeur.
Inclusive, vale ressaltar que o marido não passa do posicionamento de objeto a sujeito, afinal
sua imagem sempre teve as bases estabelecidas nesta última esfera.
A última função abordada pelo estudioso supradito é a da deformação cujo intuito é o
de desfigurar a realidade com base em dada ideologia. Acerca do conto, vemos que existe um
conteúdo ideológico que subjaz todo o comportamento do protagonista: isso se associa às
vozes responsáveis por legitimar os abusos realizados por homens contra as mulheres. Por
isso, o indivíduo do sexo masculino tem a sensação de naturalidade ao se recusar às tarefas
domésticas, ao humilhar a esposa e, consequentemente, ao matá-la pelo simples fato de ela,
finalmente, ser quem gostaria de ser – alguém livre das algemas do patriarcado.
4. Conclusão
Referências
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XAVIER, Elódia. Que corpo é esse?: o corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2007.
Resumo
As mulheres que militavam durante o período militar, tiveram inúmeras barreiras para se
desprender e irem as ruas lutar pelos seus direitos, seus interesses, além de ter que enfrentar
os obstáculos sociais, tinha a existência de tortura durante este mesmo período não a
intimidara, e por consequência deste fato, muitas delas passaram pela tortura, que se consistia
em violência física, psicológica e moral, após essas torturas que elas foram submetidas
ocasionando marcas que estão presentes até os dias atuais.
1
Graduanda em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; e-mail:
baabi009@hotmail.com.
2
Docente dos cursos de Licenciatura do Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP, Doutora em
Educação; e-mail: jamillynicacio@hotmail.com.
Introdução
Durante o período militar (1964-1985), de acordo com Fausto (2015), o controle do
poder Executivo do país esteve nas mãos do Exército Brasileiro. Nessa época, as mulheres
passaram por alguns martírios quando saíram às ruas em busca dos seus direitos juntando-se
aos movimentos de oposição ao governo. Alguns benefícios foram alcançados graças ás lutas,
como a criação do Conselho da Condição Feminina, em 1982, para denunciar a morte de
muitas delas. Grande parte dessas mulheres militantes foi torturada com choques por todo o
corpo, estupros, humilhações verbais e violência psicológica que chegou a levá-las a morte
durante o regime.
Partindo desta perspectiva, suscitou-nos o interesse em analisar a invisibilidade da
violência sofrida por essas mulheres durante o período militar. Dissertar sobre os métodos de
violência utilizados contra as militantes ou mulheres de militantes e evidenciar a trajetória
histórica dessas mulheres, pois, muito embora tenha sido um período de relevância histórica, é
nítida a restrição das documentações sobre o período. Por último, e não menos importante,
expor as consequências das torturas às quais essas mulheres foram submetidas, tendo sequelas
que marcaram a trajetória das sobreviventes.
A pesquisa foi realizada através de levantamento bibliográfico com autores como
Teles (2014), Tomazony (2015), Ridente (1990), filmes e documentários, incluindo a análise
de relatos disponíveis em jornais. O presente artigo é de caráter qualitativo, seguindo o
método analítico indutivo e, a partir dos autores referenciados, serão apresentados os
resultados da violência sofrida pelas mulheres.
Iniciando a conversa...
Antes de começar uma investigação mais aprofundada sobre a mulher durante este
período, é preciso compreendê-lo por meio de uma investigação histórica a respeito das
conjunturas sociais e políticas vividas na época.
O Golpe Militar de 1964 tem início quando os militares partem para o Rio de Janeiro
espalhando medo e caos por onde passava, repreendendo movimentos populacionais, sindicais
e serviços públicos, além de realizar perseguições, sequestros e até mesmo prisões políticas,
como apontado por Teles (2014).
Todavia, segundo Fausto (2015), os militares tinham o intuito de livrar o país da
corrupção e da ameaça comunista, restaurando, portanto, a democracia de modo não
convencional. Nesse processo de recomposição democrática foram instaurados Atos
Institucionais (AI) para ampliar a autoridade e poder de quem estivesse à frente do país.
Algumas das medidas foram adotadas durante esse processo, como a votação sendo
realizada pela maioria do Congresso e a extinção dos partidos políticos, porque, para os
militares, a crise era consequência da existência de partidos, e assim se cria uma constituição
que concretizava que o poder Executivo seria por exercido por sucessão.
Teles (2014) mostra que a imprensa escrita, televisiva e radialista passou a
desenvolver um papel fundamental com as propagandas que facilitavam a formação de uma
opinião pública conservadora, alem de criticar abertamente o governo de Jango 3 e as reformas
de base. A vinda do padre Patrick Peyton4, em 1963, pregando a ordem “família que reza
unida, permanece unida” tinha como intuito a tentativa de mobilizar mulheres para a Marcha
contra João Goulart e o comunismo.
Após o anúncio das reformas de base e agrária de João Goulart, a direita passou a
reagir:
Como resposta, a direita mostrou o seu lado mais enganoso e manipulador: com o
apoio da Igreja, empresários e latifundiários, devidamente instruídos por entidades
financiadas pelos Estados Unidos como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), mobilizou mulheres para
serem usadas como base social dos golpistas que passaram a se vangloriar de ter
uma sustentação política com “forte apoio popular”.
Estas manifestações de mulheres manipuladas pelas forças mais conservadoras e
retrógadas se realizaram em ações dominadas: [...] Ao todo, foram realizadas 49
manifestações deste tipo, em todo o país, constituídas majoritariamente de mulheres
(Teles, 2014, p. 10)
3
João Gourlat, governador eleito legitimamente.
4
Patrick Peyton (1909 - 1992). Era um padre católico irlandês, pároco de Hollywood e fundador da Cruzada
5
Campanha da Mulher pela Democracia, situada no Rio de Janeiro.
6
Situada em São Paulo.
7
Liga da Mulher pela Democracia, localizada em Belo Horizonte.
Mulheres de direita tenham tido orientações dos militares e autorização dos maridos
para participarem direta e indiretamente das manifestações, autorizações indispensáveis, pois
elas entendiam que seus respectivos lugares eram dentro casa, cuidando do lar e de seus
afazeres domésticos. Era evidente a não aceitação da participação política irrestrita das
mulheres, sendo possível observar durante a “Marcha com Deus pela Família, pela
Liberdade” que, ao mesmo tempo em que muitas levavam em suas mãos rosários, tantas
outras carregavam cartazes que diziam “Vermelho bom, só do batom”,
Ainda que as mulheres tenham apoiado a instauração do governo militar, não estariam
salvas de passarem por violências sexuais, psicológicas e morais quando perceberam que não
se tratava de uma retomada da democracia, mas sim da posse do poder governamental,
iniciando assim um regime ditatorial, com direito a perseguições e torturas a todos que
insistissem em defender a democracia e a liberdade.
O século XX seria o “Século das Mulheres”, pois elas decidiram enfrentar as barreiras
da família, religião, mercado de trabalho, escola e a sociedade em geral, até mesmo dentro de
grupos partidários que acreditavam que elas não possuíam capacidade para liderar
manifestações, lutar por um país e pela igualdade, além de pressupor que elas não
aguentariam as repressões e não teriam atitude suficiente para enfrentar os obstáculos e
ingressar no mercado de trabalho, nas universidades, na militância e serem forte a ponto de
resistir aos exílios que transformaram as mulheres no grupo social que mais sofreu alterações
durante a ditadura militar.
O século trouxe mudanças comportamentais, de valores e perspectiva, dando liberdade
para que elas deixassem de serem objetos sexuais dos homens e passassem a pensar no seu
próprio desejo, no próprio prazer, possibilitando até mesmo orgasmo, apartando-se da
gravidez com a chegada da pílula contraceptiva ou anticoncepcional e tendo, portanto, poder
de optar pela maternidade.
Apesar das transformações pelas quais o papel da mulher passou, Tomazoni aponta
que “para a repressão, a quebra dos papéis destinados à mulher e a consequente busca por
igualdade trouxe o conceito de “mulher subversiva”, que era dividida em duas categorias: a de
prostituta, objeto de desejo dos homens, e a de comunista, desviante política” (2015, p. 42).
As barreiras impediam diversas conquistas femininas foram muito mais do que a
família. Envolvia, principalmente, a moral dessas mulheres perante a sociedade e uma questão
de ego masculino que estava sendo desconstruído, pois o grito delas era quase inaudíveis
devido, na maioria das vezes, ao fato de se encontrarem atrás de seus maridos.
Seguindo a diante é possível chegar ao ponto principal desta pesquisa. Partindo do
objetivo de mostrar pelo o que essas mulheres militantes passaram, veremos que a tortura foi
muito mais do que um método para extrair informações, foi utilizada como ferramenta para
causar mortes lentas e dolorosas, como foi o caso de Eduardo Leite, o ‘Bacuri’, apresentado
pela Comissão Nacional da Verdade. A tortura também foi institucionalizada como um
método científico, o que causava constrangimento maior para as mulheres, devido ao fato de a
maioria dos torturadores serem homens e se aproveitavam da situação para humilhá-las:
A questão de ser mulher torna a tortura um processo muito particular, por conta dos
padrões de conduta, que sob o aspecto sexual colocava a mulher como objeto de
prazer do homem. [...] Os objetivos fundamentais do agressor eram fragilizar,
amedrontar e coibir a vítima, deixando claro a sua posição de inferioridade absoluta
em relação ao poder instituído. Cabe as mulheres uma cota suplementar de
sofrimento que resulta da violência sexual (estupros, às vezes seguidos de gravidez)
ou dos rituais de humilhação que foram submetidas em função de seu gênero.
(Tomazari, 2015, p. 46)
Quando essas mulheres eram presas, passavam por sessões de torturas que, através dos
relatos dessas vítimas, permite observar e até mesmo sentir muito mais do que uma violência
física. Tinha muita violência sexual usada para destruir a feminilidade e maternidade, além de
demonstrar o quanto elas eram vulneráveis diante deles:
horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio
desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma
injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mais um outro
segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava:
‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco,
porque aqui ninguém fica doente’. Esse foi o começo da pior parte. Passaram a
ameaçar de buscar meu filho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com
cigarro’, dizia outro.8
Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher
franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda
vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do
estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na
vagina e dizia: ‘ Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali mesmo.
Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão
amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das
mãos. Para aumentara carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de
canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único
trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu
ficava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na
minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que
eles punham muitos nos seios. E jogava água para o choque ficar mais forte, além de
muita porrada. O estupro foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu
tinha que lutar muito para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu
não perco a imagem do homem. É uma cena ainda muito pressente. Depois do
estupro, houve uma pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham
aplicado uma injeção de pentanol, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava
muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de
aguentar. Perguntavam quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava
aguentando muito a tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de
‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu
também os enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres
anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com
isso, me achava com a moral mais alta. 11
Os métodos de torturas que serão expostos a seguir foram reconhecidos pela Comissão
Nacional da Verdade, que tem como intuito explicitar e permitir acesso ao público sobre o
que foi a repressão militar como nos depoimentos citados. Entre os métodos de tortura estão:
8
Depoimento de Rose Nogueira, ex - militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi
presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora
dos direitos humanos.
9
Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e Destacamento de Operações de Informações (DOI), ficando
conhecido como DOI-CODI
10
Delegacias de Ordem Política e Social
11
Relato de Dulce Maia, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VRP), era produtora cultural
quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive em Cunha (SP), é
ambientalista, dirigi a ONG Ecosenso e é cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina.
12
É um composto químico construído por nitrogênio e hidrogênio, utilizavam durante o regime militar para
sufocar as pessoas.
13
Olhos.
14
Lugares inóspitos: inabitáveis, sem condições de manter a vida.
dos militares para tortura-las psicologicamente, muitas vezes ameaçando a vida dos filhos
delas, assim como relata. Essas posições e maneiras de torturas são extremamente bárbaras,
de extrema violência ao ser humano que causariam graves problemas futuros na vida das
sobreviventes.
O Filme “Que Bom Te Ver Viva” (1989) mostra os depoimentos chocantes de
mulheres que passaram por diversas dessas maneiras de torturas e sobreviveram. Algumas
dessas mulheres passaram muito tempo vendo os torturadores em todos os lugares que
frequentavam ou terem adquiridos problemas de saúde, como por exemplo, crise de soluços
quando pressionadas, ou depois das torturas as quais Regina Toscano15 foi submetida, crises
de epilepsia que se tornaram mais frequentes e severas.
Sobreviver é até um instinto animal, né? Você tem que sobreviver.
Agora, ter sobrevivido e sem ter enlouquecido é a grande vitória da
gente, é a grande verdade. (Que bom te ver viva, 1986).
Não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos. E isso
nós temos muito! – Maria Amélia de A. Teles (As Vítimas da
Ditadura, 2014).
Se tem uma coisa que os torturadores estavam certos é em dizer que
marca de tortura não passa, não passa mesmo. – Rose Almeida (As
Vítimas da Ditadura, 2014).
A vida na clandestinidade também não era fácil, além de toda a dificuldade que
passavam por ficar distantes de amigos e família e terem que se esconder, os filhos das
militantes precisavam viver longe do núcleo familiar principal, como pais, para que não
fossem pegos para serem usados como pressão psicológica nas presas, ou até mesmo.
Chegando a viver com os avós para evitar os mesmos problemas.
Após tudo isso, Magda Neves, no documentário “Memórias Femininas da Luta Contra
a Ditadura Militar” (2015), relata a criação do Comitê Feminino pela Anistia, fundado em São
Paulo por Teresinha Zerbini. E, em 1976, um ano após a ONU colocar em destaque a mulher,
o movimento se espalha e Magna Neves saiu à procura de pessoas que desejavam fazer parte
do movimento, por exemplo, companheiras(os) que tinham maridos (ou esposas) presas, mães
com filhos exilados, para assim começar o movimento e assim virar o Comitê Brasileiro pela
Anistia16.
Após toda esta análise, pode-se concluir que as torturas estavam ligadas muito mais à
questão de humilhá-las, mostrar que apesar de toda a sua militância, eles poderiam fazer com
elas o que eles bem entendessem.
15
Militante da organização guerrilheira MR-8, é torturada e fica um ano na cadeia em 1970. Tem três filhos e
trabalha como educadora
16
Formado em 1978 formados por advogados, amigos e parentes de presos políticos.
O objetivo de tamanha violência aplicada de várias formas contra essas mulheres era
distribuir horror, tinham um teor sexista de ver a mulher como um objeto pertencente a eles,
muitas vezes sexual, que se faz muito presente nos relatos das vítimas. A todo o momento se
fazia presente o ar de superioridade, de serem usadas para extrair informações sobre os grupos
militares, entretanto, não há justificativa para qualquer motivo que os levou a praticar
tamanha crueldade contra elas, contra os direitos humanos, contra os direitos de cidadã.
Referências
Resumo: O objetivo deste trabalho foi o de investigar o assédio no transporte público coletivo
(ônibus) como uma problemática presente no município de Ponta Grossa/PR.
Especificamente, através desta proposta objetivou-se constatar se o assédio é uma realidade
das mulheres que usam os ônibus como meios de transporte público no município referido;
trabalhar as relações de gênero vividas no cotidiano destas mulheres e fomentar dados
empíricos para futuras pesquisas, comunidade e demais pesquisadores. A metodologia
empregada nesta proposto centrou-se na pesquisa quanti-qualitativa, nas fontes bibliográficas
e documentais. Em meio ao campo de pesquisa utilizamos o questionário estruturado
(fechado) e a técnica de observação e como técnica de análise para o tratamento das
informações, nos apropriamos da análise de conteúdo. Os locais onde a pesquisa foi realizada
foram: o Centro de Especialidades da Mulher (CEM), o Terminal Central e a Rodoviária
Municipal, totalizando 27 mulheres participantes desta proposta. Concluímos nesta pesquisa é
que sim, mulheres são assediadas de deferentes formas ao utilizarem transporte público
urbano (ônibus); que os mesmos não fornecem seguranças para as mulheres e que mesmo
sofrendo diferente tipos de assédio as mulheres por medo, intimidação, desconhecimento e/ou
descrença em nosso sistema público de segurança não realizam denúncia sobre o assédio
ocorrido.
Palavras-chaves: Mobilidade urbana; Assédio; Mulher; Direito à cidade.
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais Aplicadas (PPGSCA/UEPG); kawanishi.juliana@gmail.com.
2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Mestre em Desenvolvimento Comunitário
(PPGDC/UNICENTRO); rafaelferrareze@hotmail.com.
Introdução.
A história se mostra complexa em relação às construções sociais. Essas, por sua vez,
se apresentam na sociedade ditando comportamentos, influenciadas pela cultura, política e
outros fatores que são determinantes nas relações de gênero, na construção da sociedade e
formação das cidades. Nesse contexto, surge o meio de transporte público e coletivo na
tentativa de facilitar a vida das pessoas que residem nos centros urbanos e nas bordas
periféricas. O transporte público coletivo é tão relevante, que se consolidou como um direito
social pela Constituição Federal de 1988. Dessa maneira, diariamente homens e mulheres
utilizam esse meio para fazer o seu deslocamento. Mas através da história verificamos que a
mulher esteve em uma condição de maior vulnerabilidade na sociedade.
Nesse cenário, as cidades demonstram que não estão preparadas para receber as
mulheres, as quais enfrentam diariamente dificuldades para ter acesso aos direitos e cidadania
e no uso do transporte público não se mostrou diferente. Assim, quando as mulheres passam a
usar o transporte público para a locomoção, elas acabam por esbarrar em outro obstáculo, o
assédio. Devido à importância do modo como as cidades se organizam, o direito à cidade, à
mobilidade urbana e ao transporte público, a pesquisa tem como tema central o assédio que as
mulheres sofrem no transporte público.
O objetivo deste trabalho foi o de investigar o assédio no transporte público coletivo
(ônibus) como uma problemática presente no município de Ponta Grossa/PR.
Especificamente, através desta proposta objetivou-se constatar se o assédio é uma realidade
das mulheres que usam os ônibus como meios de transporte público em Ponta Grossa/PR;
trabalhar as relações de gênero vividas no cotidiano destas mulheres e fomentar dados
empíricos para futuras pesquisas, comunidade e demais pesquisadores.
A metodologia empregada nesta proposto centra-se na pesquisa quanti-qualitativa,
onde primeiro processamos todas as informações coletadas para em seguida apresentarmos
tais informações em categorias analíticas. Essa técnica se expressa no pensamento de Minayo
quando a autor afirma que “o estudo quantitativo pode gerar questões para serem
aprofundadas qualitativamente e vice-versa” (MINAYO & SANCHES 1993). Recorremos
também as fontes bibliográficas e documentais, nos permitindo intender a cobertura de
fenômenos mais amplos do que os pesquisados diretamente (GIL, 2008); Utilizamos em meio
ao campo de pesquisa questionário estruturado (fechado) direcionado para as mulheres que
utilizam o transporte público. E como técnica de análise para o tratamento das informações,
nos apropriamos da análise de conteúdo. Junto a todas essas técnicas, a observação se fez
presente, complementando todo o processo para chegar até o resultado final da pesquisa, se
transformando em uma aliada na leitura dos dados coletados.
A observação constitui elemento fundamental para a pesquisa. Desde a formulação do
problema, passando pela construção de hipóteses, coleta, análise e interpretação dos dados, a
observação desempenha papel imprescindível no processo de pesquisa. É, todavia, na fase de
coleta de dados que o seu papel se torna mais evidente. A observação é sempre utilizada nessa
etapa, conjugada a outras técnicas ou utilizada de forma exclusiva. Por ser utilizada,
exclusivamente, para a obtenção de dados em muitas pesquisas, e por estar presente também
em outros momentos da pesquisa, a observação chega mesmo a ser considerada como método
de investigação (GIL, 2008). Por meio dessa técnica foi possível observar e fazer a leitura dos
movimentos corporais das mulheres ao responder as perguntas do questionário.
A fim de facilitar a visualização dos resultados da pesquisa, todos os dados coletados
foram tabulados, sistematizados e transformados em gráficos referente às perguntas do
questionário. Os locais onde realizamos a pesquisa foram: o Centro de Especialidades da
Mulher (CEM) onde neste, participaram 10 mulheres, o Terminal Central onde 11 mulheres
também participaram desta pesquisa e a Rodoviária Municipal contando com a participação
de 06 mulheres para a realização deste trabalho, totalizando assim 27 mulheres participantes
desta proposta.
A cidade, como fruto das relações e transformações que ocorrem ao longo da história,
também é responsável por gerar muitos problemas de ordem social, assim como a falta de
estrutura para a população urbana, o que repercutiu diretamente na mão-de-obra para as
grandes indústrias. Nas grandes fábricas o proletariado trabalhava em condições insalubres e
com jornada de trabalho excessiva, refletindo nas demandas sociais da classe trabalhadora.
A história dos tecelões manuais ingleses ou dos colonos do café do Brasil, por
exemplo, mostra que, juntamente com a classe operária, se formam um imenso
exército industrial de reserva de trabalhadores excedentes, que jamais encontraram
emprego regular, sendo obrigados a sobreviver através de trabalhos precários. A
presença desse exército industrial de reserva permite aos empregadores pagar
salários subnormais, impor aos operários jornadas excessivamente longas de
trabalho e empregar por salários ainda menores, mulheres e crianças. (SINGER,
1932, p.69 -70)
Estas cidades funcionam como um campo magnético que atrai grande parte da
população justamente por oferecer melhores condições de vida, emprego, educação, saúde
entre outros serviços. Porém, também surgem contradições nesse espaço, justamente pelo
inchaço urbano que é uma consequência da atração que as cidades geram. O espaço urbano
entra como parte fundamental para a acumulação do capital, focando em vários âmbitos do
mercado, cedendo espaço para o crescimento do sistema capitalista. Nesse sentido, as cidades
promovem um meio de organização através do capital. Consequentemente ocorre o
desenvolvimento, o que atrai mais pessoas em busca de uma qualidade de vida melhor. Mas
também nesse espaço urbano ocorrem os grandes embates e lutas de classes, ocorre, ainda, a
transformação do meio natural devido às atividades antrópicas. A cidade pode se apresentar
como um palco concreto para a produção e comercialização de bens e serviços justapostos
entre si. Tais ações desempenhadas pelos seres humanos transformam o meio natural e o meio
social, por consequência, modificando e remodelando o solo e as cidades nele fundamentadas.
(ROLNIK, 2004).
Segundo Rolnik (2004) o conceito de cidade vai além das edificações, casas,
comércios, entre outros. Assim, expõe outras questões que são fundamentais para a
construção da área urbana como a política, gestão, tecnologia e outras.
Cada cidade tem suas peculiaridades devido às relações sociais existentes, então elas
acabam adquirindo certas características trazendo em sua estética urbana uma própria história
a ser contada quando se observa a forma de como são as construções. Assim, “a aparência de
uma cidade e o modo como os seus espaços se organizam formam uma base material a partir
da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de possíveis sensações e práticas
sociais.” (HARVEY, 1989 p. 69)
O uso do transporte público é apenas uma parte das inúmeras possibilidades que são
legitimadas dentro da cidade. Desse modo o espaço urbano se revela como um ambiente para
agregar todos os cidadãos independentemente de raça, orientação sexual, gênero ou por falta
de mobilidade, assim também é nesse cenário que ocorrem as lutas sociais em prol de um
coletivo, mas é necessário reconhecer a diferença de gênero para que a mulher tenha as
mesmas condições de acessibilidade à vida urbana que o homem, objetivando a redução e
eliminação das diferenças socioterritoriais dentro do espaço urbano. Segundo GUASCH
(2005, p. 03) o,
3
Segregação Social: Castells (1), define como a “tendência à organização do espaço em zonas de forte
homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida
não só em termos de diferença, como também em hierarquia” (CASTELLS, 1983, p. 210).
hospitais e postos de saúde, o esgoto na porta de casa, acarretam mais entraves à sua
rotina doméstica – já que o espaço da reprodução social continua, “por excelência”,
sendo seu. Preferência na contratação de homens, salários mais baixos, assédio,
tornam a rotina profissional também mais dificultosa para elas. Violência doméstica
e violência urbana se somam a muitas das situações vivenciadas. (PINHEIRO, 2017,
p 44)
[...] o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos.
O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de
que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O
gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado (8). Com a proliferação dos
estudos do sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra particularmente
útil, porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos
às mulheres e aos homens. (SCOTT, 1989, p.7)
Scott (1994) descreve as relações de gênero que perpassam a história que deixam claro
o papel do homem e da mulher, atribuindo as questões do patriarcado e as grandes
desigualdades e opressões, sendo gerado a partir do modo de como a sociedade se organiza.
As diferenças são percebidas no modo como a sociedade se fundamenta, ressaltando o papel
da mulher de subordinação ao homem. Ainda a sua entrada no mercado de trabalho foi de
forma tardia, também a questão salarial desencadeava um valor inferior pelo mesmo trabalho
que o homem prestava. São vários os autores que conceituam gênero, porem o conceito que a
autora Scott (1994) desenvolveu é o mais apropriado para esse trabalho. Para ela gênero é,
... a organização social da diferença sexual percebida. O que não significa que
gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e
mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as
diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo […] determina univocamente como a
divisão social será estabelecida. (Scott, 1994, p. 13)
A violência de gênero pode ser exercida tanto pela mulher quanto pelo homem, porém
quando estudamos a história verificamos que é a mulher que está mais exposta a violência – o
assédio é uma destas violências. A construção cultural de mulher ideal e de respeito acabam
interiorizado, mesmo que inconscientemente a terem um determinado tipo de comportamento,
sobretudo erigido na ideia do RECATADA e do LAR. Isto por si só já é uma violência de
gênero. Assim, o entendimento sobre violência de gênero representa,
A violência incide com uma taxa alta sobre a mulher em muitos âmbitos e espaços,
sendo vários os tipos de violência como a: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Estas ações violentas sobre os corpos femininos são naturalizados pela cultura do patriarcado
sendo repassados através das gerações. O gênero está ligado à valores e a função de papéis
sociais, mas quando partimos para a violência de gênero existe a naturalização desse papel
social. No caso da mulher, o próprio sistema cultural faz com que se torne invisível algumas
ações justamente pela formação da base da sociedade ter sido construída no patriarcado. É
inerente a constituição da família estando explícita nos papéis designados à mulher em relação
à concepção “naturalista” e “essencialista” de sua condição de gênero, desconhecendo o
caráter de condição cultural que este reveste (DOROLA, 1989).
A violência e o assédio aumentam conforme a deficiência presente na mobilidade
urbana. A falta de um meio de transporte público e coletivo em que haja qualidade contribui
com a segregação das mulheres com o espaço urbano, pois a simples atividade diária de usar
um meio de transporte coletivo se torna difícil, impossibilitando-as de viver e usar tudo que a
cidade oferece.
São muitas as mulheres que sofrem assédio na rua ou no transporte público. Segundo a
pesquisa realizada pela jornalista Karin Hueck, para a campanha “Chega de FiuFiu 4”, 98%
das mulheres responderam que já foram assediadas na rua e 64% no transporte público. É
interessante ressaltar, ademais, que 81% das mulheres responderam que já deixaram de fazer
alguma coisa pelo medo do assédio. Para justificar e salientar a relevância do tema, a
4
Chega de FiuFiu: é uma campanha contra o assédio foi criada para lutar contra o assédio sexual em locais
públicos. Mas queremos aqui também lutar contra outros tipos de violência contra a mulher.
campanha “Chega de FiuFiu” criou um site através do qual as mulheres de todo o país podem
descrever o assédio e como se sentem, na busca por mais informações.
O assédio no transporte coletivo em sua maioria ocorre através de olhares e palavras,
podendo ou não ocorrer o contato físico. O assédio praticado pode ser uma reafirmação de
masculinidade. Para Hirigoyen (2005) o assédio moral no
Assim o assédio ocorre em qualquer ambiente por diversos motivos, o que resulta na
própria mulher deixando de ocupar algum espaço por medo da violência machista presente na
nossa sociedade. No transporte coletivo o assédio pode se intensificar devido à superlotação
ou horários de pico, visto que tantos homens quanto mulheres fazem o uso do transporte para
a locomoção não se pode ignorar a temática.
Para obtenção dos dados a serem analisados, 27 mulheres aceitaram responder
voluntariamente um questionário. Não houve um critério para abordar as mulheres, isso
ocorreu de forma aleatória conforme a disponibilidades delas. Nem toda mulher que
respondeu o questionário foi assediada, segundo suas percepções sobre o assédio. Algumas
aceitaram responder, porém quando era solicitado que assinalassem o termo de livre
consentimento se recusaram a assinar, descartando assim seus questionários.
Na função de facilitar a visualização das informações referente às amostras de
pesquisa, foi elaborada uma tabela onde os dados foram tabulados cuja função foi categorizar
e deixar claro as porcentagens de cada informação em meio a este trabalho.
Os dados foram coletados em alguns lugares estratégicos, focando nas mulheres que
fazem uso do transporte público coletivo no município de Ponta Grossa – PR, para isso foi
delimitado quatro lugares: Rodoviária, Terminal Central, Aeroporto e Centro de
Especialidades da Mulher. Para obter as informações foi aplicado um questionário fechado
que continha 20 perguntas ao total. Para o artigo foi elaborada a tabela contendo informações
principais para contemplar a pesquisa.
Ressalta-se a importância em compreender através destas informações que o assédio
dentro no transporte público coletivo ocorre em várias faixas etárias e independentemente do
estado civil. Outro dado importante, mais das metades das mulheres afirmam já terem sofrido
assédio por várias vezes, vivenciando essa violência diariamente quando exerce o seu direito à
cidade.
Um dado alarmante é referente ao número de mulheres que desconhecem um
local/lugar/órgão para denunciar quando sofre o assédio dentro do transporte público coletivo.
Considerações finais.
O que pudemos concluir nesta pesquisa é que sim, mulheres são assediadas de
deferentes formas ao utilizarem transporte público urbano (ônibus); que os mesmos não
fornecem seguranças para as mulheres e que mesmo sofrendo diferente tipos de assédio as
mulheres por medo, intimidação, desconhecimento e/ou descrença em nosso sistema público
de segurança não realizaram/realizam denúncia sobre o assédio ocorrido, incutindo assim,
muitas vezes, como vimos nos dados das 6 participantes que relataram nunca terem sido
assediadas pois ‘se dão ao respeito’, que a culpa por terem sido assediadas é das mulheres e
não de uma cultura machista que legitima veladamente tal violência ao homem.
Referências bibliográficas.
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PINHEIRO, Valéria. O peso da vida urbana sobre os ombros das mulheres e a dimensão dos
despejos forçados. In. Direito à Cidade: uma visão por gênero. São Paulo: IBDU, 2017.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. Coleção primeiros passos.
2003.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. New York, Columbia
University Press. 1989. Disponível em:
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-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em 30 de jul 2017.
SINGER, Paul. A formação da classe operária. 3 ed. – São Paulo: Atual; Campinas, SP:
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1986.
Resumo: O presente artigo possui como objetivo geral realizar uma crítica ao fenômeno da
violência obstétrica no parto da mulher, analisando falas de quatro parturientes na última
década na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Para alcançar o objetivo proposto, foi
realizada revisão da literatura a respeito do tema, utilizando não somente livros, pesquisas e
artigos da área, mas também casos relatados em redes sociais, notícias divulgadas na mídia
digital, impressa e televisiva. Ao apresentar o objetivo deste projeto, tem-se em mente que a
melhor maneira de se interpretar a narrativa e os sentidos atribuídos à prática de violência
obstétrica por mulheres, se dá através do método de pesquisa qualitativa. De acordo com
Minayo (2001), “a pesquisa qualitativa pode responder a questões muito particulares, se
preocupando com um nível de realidade que não pode ser quantificado” (Minayo, 2001. P.22).
Por isso, realizei entrevistas semi-estruturadas direcionadas para quatro mulheres que
experimentaram o parto de 2008 a 2018, buscando identificar relatos condizentes com a
definição da violência obstétrica. A violência obstétrica durante a gestação e parto podem ser
caracterizadas por: negação do atendimento à mulher, comentários humilhantes a mulher no
que diz respeito a sua cor, idade, religião, escolaridade, classe social, estado civil, orientação
sexual, número de filhos; palavras ofensivas até mesmo a sua família; humilha-la; agendar
cesárea sem recomendação baseadas em evidencias cientificas, atendendo as necessidades e
interesse do próprio médico. (Dossiê Rede de Parto do Princípio, 2012). Procurei diferenciar
as entrevistadas por classe social, raça/etnia, idade das parturientes no momento do parto. A
busca por essas mulheres envolveu contato com a minha rede social, indicação de conhecidos,
colegas e amigos. Resultados: Percebi nas falas das entrevistadas uma fragilidade entre o
vínculo do profissional de saúde e a mulher em situação de parto nos hospitais públicos aos
quais as entrevistadas passaram. Já a experiência relatada em acompanhamento particular foi
respeitosa e acolhedora com a entrevistada. As falas dessas mulheres exibem uma banalização
da dor e do sofrimento alheios, falta de atenção e cuidados, omissão de informação e
equívocos médicos pelos profissionais de saúde e as atenderam.
1
Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; let.vulcano@gmail.com
Introdução
As discussões que envolvem as violências contra a mulher há algumas décadas tem
ganhado força no cenário contemporâneo. Apesar do esforço de diversas entidades e do
movimento feminista para que sejam erradicados os casos de violência, ainda é possível
identificá-las em inúmeras esferas da vida da mulher. O caso da violência obstétrica não é
diferente. Falar de parto é falar não apenas das emoções ligadas àquela experiência, mas
abordar questões voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos, abrangendo realidades além do
íntimo, do privado. São questões que se perpetuam nas políticas de saúde pública, saúde da
mulher e também do feto. Além de se revelar como uma discussão relativamente recente, a
detecção de casos de violência obstétrica, dadas as definições disponíveis para construção
deste artigo, podem ser ocasionalmente identificadas por meios comuns, algumas vezes em
relatos de mulheres próximas a nós e que não possuem noção da situação de violência a qual
foram expostas.
Para refletir sobre o histórico de luta por superação das injustiças entre sexos e
gêneros, faz-se necessário compreender os processos de emancipação e afirmação dos direitos
das mulheres. Esses processos aconteceram e acontecem em contextos históricos, sociais e
culturais diversos, por isso, são encontradas tantas realidades desiguais em todo mundo.
Historicamente as mulheres são subjugadas em relação aos homens, com uma submissão
culturalmente construída, baseada na ideia de que existe diferença entre homens e mulheres,
sendo a mulher um ser inferior, o que sustenta o fenômeno da violência de gênero (Beauvoir,
2016).
O conceito de violência é considerado uma construção cultural uma vez que, para
alguns países, determinadas práticas são consideradas violência e até mesmo crime e em
outros não. De igual forma, em determinados momentos históricos uma ação pode ser
considerada violência e pode vir a não ser em momento posterior, fruto das mudanças sociais
que as sociedades enfrentam constantemente.
O Código Penal Brasileiro, de 1940, define vários tipos de violência, em seu artigo
136, qualificando como o ato de expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua
autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer
privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo
ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.
Por isso, o que caracteriza uma situação como prática violenta contra a mulher
envolve uma discussão profunda de termos, contextos, desigualdades e relações de poder. São
tantos os possíveis cenários e formas de violência que podem ser caracterizados nos estudos
acadêmicos como violência contra a mulher que é preciso estabelecer um foco de estudo.
Nesse sentido, este artigo pretende abordar uma recente discussão e caracterização de prática
violenta contra a mulher: a violência sofrida nos processos e experiências que envolvem o
parto, conhecida também pelo termo violência institucional na atenção obstétrica ou somente
violência obstétrica (Aguiar, 2010; Miranda, 2015).
e puerpério, garantia do direito da mulher grávida a um Plano Individual de Parto, no qual ela
deverá decidir se utilizará ou não métodos farmacêuticos para aliviar a dor, a posição em que
o parto irá se realizar e o monitoramento dos batimentos cardiofetais.
Estudos recentes têm contribuído significativamente para o avanço neste campo de
conhecimento, como a pesquisadora Juliana Z. Miranda (2015), que apresentou seu trabalho
em 2015 na XXI semana da mulher, realizada em Marília no estado de São Paulo, o qual
define que:
A violência obstétrica durante a gestação e parto podem ser caracterizadas por:
negação do atendimento à mulher, quando a mesma procura unidades de saúde
como postos de saúde, ou quando lhe impõe qualquer tipo de dificuldade onde está
sendo realizado o pré-natal; comentários humilhantes a mulher no que diz respeito a
sua cor, idade, religião, escolaridade, classe social, estado civil, orientação sexual,
número de filhos; palavras ofensivas até mesmo a sua família humilha-la; agendar
cesárea sem recomendação baseadas em evidencias cientificas, atendendo as
necessidades e interesse do próprio médico (MIRANDA, 2015, p. 3).
neurológicos ou físicos. Entretanto, assim como qualquer cirurgia, a cesárea acarreta riscos
imediatos e em longo prazo. É crescente a preocupação de órgãos não governamentais e
também governamentais com o aumento no número de partos cesáreo e suas possíveis
consequências negativas para a saúde materna e infantil.
Metodologia
Ao apresentar os objetivos deste artigo, tem-se em mente que a melhor maneira de se
interpretar a narrativa e os sentidos atribuídos à prática de violência obstétrica em mulheres
vítimas seria através do método de pesquisa qualitativa, uma vez que “a pesquisa qualitativa
pode responder a questões muito particulares, se preocupando com um nível de realidade que
não pode ser quantificado” (Minayo, 2001. p.22). Por isso, este projeto pretende realizar
entrevistas semi-estruturadas com quatro mulheres que experimentaram o parto nos último
dez anos. Procurei diferenciar essas mulheres por classe social, etnia/raça, idade e
escolaridade, e assim realizar um comparativo desses perfis. Todas elas foram entrevistadas
com consentimento das mesmas, mantendo o compromisso de que nenhuma deles seria
identificada por seu nome verdadeiro. Todas moram em Belo Horizonte/MG e tiveram
experiências de partos nessa mesma cidade, sendo que uma entrevistada, com duas
experiências de parto, pariu seu filho caçula em Campo Grande/MS.
2
Todos os nomes das entrevistadas são fictícios para manter a confidencialidade das informações passadas.
Adriana
A entrevista de Adriana se deu na sua casa, entre os seus dois filhos, um nascido em
2014, outro em 2016. Ela tem 27 anos, mora com o pai dos meninos em uma casa alugada na
zona leste de Belo Horizonte. A sua primeira experiência de parto foi em um hospital público
da cidade. Segundo Adriana “é um hospital referência no país por respeitar as mulheres e
seus desejos no momento do parto”. O seu segundo parto ocorreu na cidade de Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, onde ela e o companheiro moravam na época.
Em seu primeiro parto, Adriana tinha o desejo de que ele fosse normal ou natural.
Quando teve a primeira contração, a sua bolsa estourou. Assim que isso ocorreu, ela se
encaminhou ao hospital, e após consulta com um profissional de saúde, constatou apenas 3
centímetros de dilatação. Foi um momento de aguardar. Foram 5 horas de espera na recepção
até ser encaminhada a sala de pré-parto. Depois de mais 4 horas na sala de pré-parto, sem se
alimentar, Adriana conta que “eu já não estava agüentando mais, sentindo muita dor, ai
comecei a pedir anestesia. Eu tinha contratação, acordava, ai quando a contração parava eu
desmaiava. (...) isso era duas horas da tarde, quando deu quatro e meia, eu já estava “agora
eu não agüento mesmo”. Em seu relato, ela conta que a equipe médica a atendeu muito bem,
levou em conta o seu desejo de ter um parto natural, entretanto, as 16h:30, a própria
parturiente pediu a anestesia e foi atendida. As 18h, Adriana foi encaminhada a sala de parto,
onde ela relatou a volta da dor, mas sem a contração. “Muita dor, eu já estava há mais de 12h
lá, muita dor. Com fome, eu só tinha comido uma gelatina aquele tempo todo. Depois daquilo
tudo, a equipe que eu tava gostando mudou o plantão e a outra [equipe] já era mais
secona.”. Depois de 40 minutos, o médico fez o toque e constatou que o bebê havia subido no
colo e por estar há mais de 20h em trabalho de parto, ela não tinha mais líquido amniótico e
precisaria realizar uma cesariana. “Ele não me perguntou se eu queria, ele falou que eu tinha
que fazer. Assim que ele falou eu vomitei na hora. Eu não quero fazer uma cesariana, mas ai
me veio um choque de realidade, eu não tô agüentando mais, eu não sei se eu tivesse a opção
de ir mais eu agüentava, sabe?”. Adriana concordou com o procedimento cirúrgico,
entretanto, relata que ninguém explicou o que iria acontecer, nem a ela nem ao seu
companheiro, que foi levado para a esterilização sem informação. Segundo ela, isso causou
um mal estar entre ele e a equipe médica, que só permitiram a sua entrada quase no
nascimento do filho. A operação ocorreu bem, ela relata apenas que no dia seguinte ao
nascimento do filho, a recuperação da cesárea foi bem dolorosa e difícil.
Por ter passado por uma cesárea no seu primeiro parto, Adriana optou por contratar
uma equipe de doulas para a preparação e realização do seu segundo parto. Na ocasião ela e
seu companheiro residiam em Campo Grande/MS. Adriana entrou em trabalho de parto 10
dias antes do nascimento em si, e todos os dias foram acompanhados pela doula. “No décimo
dia, certinho, a dilatação começou, então eu fui pro espaço onde elas [a doulas e a parteira]
ficam. Foi ótimo, eu recebi floral, massagem, fiz exercício com a bola, fiz tudo assim. Ai
quando eu tava com 7 centímetros, ela falou o seguinte: ou você vai para o hospital agora ou
você entra aqui na banheira, você da uma relaxada e a gente vê, você pode ter ele aqui
mesmo”. Falei: nó, demorou, quero ter ele aqui, vou ter ele aqui.” Entretanto, no momento
de preparação da banheira de parto, o registro estourou e impossibilitada de realizar seu parto
naquele local, Adriana foi encaminhada ao hospital público mais próximo de onde estava. A
acompanharam o seu companheiro e a doula. “Quando a gente chegou ao hospital, logo de
imediato eles não deixaram a doula entrar, sendo que tem uma lei que garante que você
tenha o seu acompanhante mais a sua doula, não deixaram ela entrar. Ai o marido da
parteira, que era advogado, ligou para o hospital para que deixassem ela entrar. Só que eu já
tinha entrado com meu companheiro porque eu não podia esperar, ele tava nascendo.(...)
tinha uma médica ótima, maravilhosa do SUS lá. Ela me botou naquela banqueta, ficou lá
esperando, na hora que vinha a contração ela ficava esperando, nem encostou. Vinha uma
enfermeira de meia em meia hora pra ouvir o batimento, tava tudo bem, tudo normal. Eu
estava com muita dor, estava dando umas uivadas, o meu companheiro me ajudando a
respirar e a contar comigo. Nisso as enfermeiras estavam ficando incomodadas porque
estava demorando mais tempo do que elas achavam que demoraria. Falavam que eu estava
incomodando outras mulheres e mandando eu gritar baixo”. (...) A minha doula conseguiu
entrar e a me ajudar, de repente entrou a médica chefe, já mandou a doula encostar na
parede, nisso ela veio, pegou tipo um tampão, minha bolsa ainda não tinha estourado, ele
poderia ter nascido com a minha bolsa íntegra, no que ela pegou no tampão, assim que ela
cheirou e falou: “nossa! Você está com uma infecção, esse menino vai ter que nascer agora e
vocês vão ficar no antibiótico sete dias.”. Ela me tirou da banqueta e me deitou.” Adriana foi
colocada para fazer força para que seu filho nascesse. Ela relata grande aflição e medo a partir
do momento em que a médica afirmou que ela estava com uma infecção, seu maior medo era
que isso prejudicasse seu filho. “Ela ainda falou: “você só não vai pra cesariana porque ele
já está lá em baixo se não você ia pra cesariana agora!”. Eu fiquei desesperada, fiz a força,
ele não saiu. Ai ela disse: “negócio é o seguinte, o batimento caiu, se eu não tirar ele agora,
ele vai morrer.”. A medica cortou o períneo de Adriana para que o bebê saísse com mais
facilidade. Depois da primeira contratação pós corte, Adriana fez força e o bebê apenas
coroou. “Ai o que ela fez? Pegou o fórceps e... puxou”. Nesse momento, Adriana pausou sua
fala. “Eu fiquei desesperada, por que ele nasceu apagado! Ela só deu anestesia pra cortar.
Ele nasceu apagado. Antes eu já tinha falado com a pediatra pra ela não fazer os
procedimentos que a gente não queria, a gente tinha entendido que não era necessário. Só ia
rolar a injeção de vitamina K. Só que a mulher me fala que ele tava com uma infecção e ele
nasce apagado? Ai veio um pediatra já fazendo tudo, todos os procedimentos, e ele não
chorava! Eu tava morrendo de medo.” Adriana foi retirada do quarto e ficou no corredor do
hospital enquanto seu bebê era examinado. Passaram 15 minutos sem que ela tivesse qualquer
informação. Foi necessário que o bebê fosse reanimado. Adriana pediu que o exame com a
suposta infecção fosse apresentado a ela. Nesse momento ela descobriu que não existia
infecção nem nela nem no bebê. Ela relata um ambiente sujo, sem porta e com profissionais
bem grosseiros. “A mulher [a médica] mentiu para que eu acelerasse e ela pudesse me tirar
da sala de parto. Eu comecei a chorar desesperada. Eu tinha planejado! Fiquei 10 dias em
trabalho de parto para ter ele do jeito que eu queria e a mulher me entra e em 20 minutos
e...daquele jeito ainda entendeu? Mentindo e me violentando profundamente.”
Bruna
A entrevista de Bruna foi em sua casa, onde ela mora com a mãe, o padrasto e seu
filho na zona oeste de Belo Horizonte. O pai do bebê esta encarcerado desde 2014, ela
engravidou em uma visita intima. Quando ganhou a criança, Bruna tinha 19 anos. Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a adolescência é o período entre 12 e 19 anos,
Carla
Conversei por Carla via telefone e depois pessoalmente. Atualmente ela reside em
uma cidade do centro-oeste mineiro, mas ganhou sua filha em um hospital privado de Belo
Horizonte. A opção de Carla pelo parto natural veio desde o inicio de sua gravidez, afirmando
que o parto normal é opção mais segura para a mãe e para o bebê. “A vontade de vivenciar a
experiência de ter o parto normal, de sentir verdadeiramente o nascimento da minha filha,
com todas as dores e emoções do momento e de não ser submetida a uma cirurgia da qual
não tinha qualquer indicação.” O trabalho de parto de Carla começou a noite e se estendeu
pela madrugada. Ela e o marido contrataram uma enfermeira obstetra e uma doula para
acompanhar o casal até o momento de ir ao hospital. “Minha experiência com o trabalho de
parto e nascimento da minha filha foi a melhor possível, exatamente como havia desejado e
planejado. Desde o início da gestação sempre quis muito que meu parto fosse normal.”. No
hospital, não houve nenhum impedimento de acompanhamento ao parto de Carla, segundo
ela, apesar das dores, ele ocorreu de maneira natural. “Claro que para que o parto seja um
momento de prazer é necessário que a mulher seja ouvida, bem orientada, bem preparada, e
que seus desejos, medos e inseguranças sejam respeitados. Tive possibilidade de ter acesso a
uma equipe multidisciplinar de médico, doula, enfermeira, que me auxiliaram antes e durante
o parto, para que fosse possível ter uma experiência positiva, além do fato de ter
possibilidade ainda de utilizar a analgesia assim que sentisse necessidade, entretanto, fiz uso
apenas de métodos não farmacológicos de alívio de dor, como massagem, mudança de
posições, imersão na banheira, assim, não foi preciso utilizar analgesia. Poder viver o
trabalho de parto humanizado, respeitoso, foi certamente a experiência mais intensa e
transformadora que pude viver, sentir cada etapa do parto até o nascimento e o primeiro
olhar da minha filha foi mágico.” A filha de Carla nasceu de parto natural, em uma banheira
de parto em um hospital particular de Belo Horizonte.
Denise
Entrevistei Denise em seu local de trabalho, ela mora na zona oeste de Belo Horizonte.
Ela é casada, mas seu marido mora em São Paulo. Possui três filhas, duas adolescentes e o seu
bebê. Foi uma gravidez não planejada, em um momento que a família não tinha plano de
saúde e todo o acompanhamento e pré-natal foi realizado pelo SUS. “O maior problema disso
tudo era a fila de espera para atendimento. As consultas eram marcadas tipo 13 horas e eu só
era atendida mais ou menos 16 horas. Ficava lá 4, 5 horas esperando. (...) era por chegada
né? Eles marcavam um monte de grávida no mesmo horário que eu e quem chegasse
primeiro era atendida.” Denise foi categorizada desde o início da gravidez como alto risco.
Foram quatro mulheres com quatro experiências distintas. Três delas com relatos
graves e explícito de violência exercida pelo(s) profissional(is) de saúde que as atendeu. As
falas dessas mulheres exibem uma banalização da dor e do sofrimento alheios, falta de
atenção e cuidados, omissão de informação e equívocos médicos. A variável que temos em
comum entre as três mulheres que tiveram partos violentos foi o hospital público. Essa
pesquisa se baseou em relatos de quatro mulheres, o que não representa um universo
estatístico para afirmar que a violência obstétrica ocorre com mais freqüência em hospitais
públicos. Entretanto, pesquisas como a de Aguiar (2010), concluíram que a grande parte dos
profissionais de saúde por ela entrevistados para falar de violência obstétrica, consideram as
práticas violentas mais freqüentes em hospitais públicos, já que existe um risco de punição
mais significativos no ambiente privado e os níveis de vigilância são maiores (Aguiar, 2010,
p.169). Além disso, quem possui acesso plano de saúde privado, como no caso de Carla, cria
um vínculo maior com o profissional que acompanha a gestação. Percebemos nos relatos de
Denise e Bruna, que por serem acompanhadas pelo SUS, nem sempre o profissional de saúde
que as atendia em uma consulta era o mesmo que as atenderia novamente em outra. Isso, não
impede que mulheres com planos particulares não possa ser também vítima de violência
obstétrica. Adriana possuía plano de saúde na ocasião do seu primeiro parto, optou por ter seu
filho em hospital público pela qualidade do serviço prestado naquele local especificamente.
No Dossiê Parirás com Dor (2012), as autoras encontraram falas dos profissionais de saúde
que induziam as mães ao parto cesárea e medicalização sem necessidade, e esse tipo de
violência era encontrado mais comumente em hospitais particulares. Nas falas colhidas,
percebemos uma fragilidade entre o vínculo do profissional de saúde e a mulher em situação
de parto nos hospitais públicos aos quais as entrevistadas passaram. Já a experiência relatada
em acompanhamento particular foi respeitosa e acolhedora com a entrevistada.
A experiência do parto tem princípio e fim. A fala de Bruna mostra que ela passou por
situações violentas durante seu parto, mas ao fim ela agradece a Deus e a equipe médica pelo
término do seu sofrimento. Essa violência se expressa em uma situação que engloba tantos
sentimentos, como confiança, medo e dor, e, assim que se dá o fim do processo do parto, vem
a sensação de alívio e alegria pela chegada do bebê, e muitas vezes as denúncias são
propositalmente esquecidas.
Nenhuma das entrevistadas disse ter denunciado os hospitais e/ou médicos que as
violentaram. Adriana pensou em processar a médica que lhe passou erroneamente a
informação sobre a infecção, mas não prosseguiu com nenhuma ação. Bruna não considerou
que o médico que subiu em sua barriga a tivesse violentado, segundo ela, ele “estava tentando
fazer o bebê nascer”. Denise também não denunciou a equipe médica que a atendeu, dizendo
que “agora que o trabalho de verdade começava.”.
Identifiquei as seguintes violações nas falas das minhas entrevistadas: dificuldade de
atendimento no momento do parto, comentários humilhantes, atendimento às necessidades do
médico e não da paciente, utilização de procedimentos invasivos e desnecessários, perda de
autonomia da mulher - que não podia decidir livremente sobre o seu corpo, falta de
informações ou informações equivocadas sobre o processo do parto e nascimento para a
parturiente, tratamento hostil e grosseiro de profissionais de saúde e banalização do
sofrimento da mulher.
Conclusão
Esse artigo buscou identificar, dentro das narrativas de quatro mulheres que
experimentaram o parto nos últimos 10 anos, moradoras de Belo Horizonte/MG, falas
condizentes com a definição de violência obstétrica. Não foi preciso buscar, especificamente,
mulheres que tivesse a experiência de sofrimento e violações no momento do parto, busquei
dentre as variáveis ligadas a classe social e gênero, relatos de mulheres que se encaixavam na
descrição proposta: experimentaram o parto entre 2008 e 2018 e moravam em Belo
Horizonte.
Existe uma banalização da violência como um fenômeno social em todo o país, e isso
é também levado para as instituições de atendimento público ligadas a fiscalização, ouvidoria
e sistema judiciário. A violência obstétrica é pautada por significados socioculturais,
fundamentados na desvalorização e submissão da mulher que é vista em situação de objeto
das ações dos profissionais de saúde. É percebido também que a naturalização do processo de
medicalização do corpo feminino constitui, como levantado anteriormente, um mecanismo de
controle social, que possui padrões de comportamento diferentes de classe social e raça/etnia.
Considero necessária uma exploração mais sofisticada da temática sobre a violência
obstétrica. Existem artigos, teses, dossiês sobre a pauta, que necessitam melhor entendimento,
mesmo para que sejam construídas políticas públicas de prevenção e tragam sustentabilidade
às falas das mulheres que sofreram esse tipo de violência, para que, as vítimas se sintam
capazes e confortáveis em formalizar denúncias contra seus agressores.
Referências
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hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero (Tese de doutorado,
Faculdade de medicina da USP, Departamento de Medicina Preventiva, São Paulo/SP).
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e v. 2.
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primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de
maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de
2012. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2016/lei/l13257.htm acessado dia 09/05/2018.
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http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1257785&filename
=PL+7633/2014Acessado dia 01/05/2018.
1
Bolsista recém-formada no Numape/UEM; pós-graduanda em Direito e Processo Penal pela Universidade
Estadual de Londrina; leticia_mlessa@hotmail.com.
2
Bolsista recém-formada no Numape/UEM; mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá;
lorenamaria.sanches@gmail.com.
Introdução
3
Escrita em 1791 a fim de igualar-se a “Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão” aprovada em
Assembléia Nacional, a Declaração dos Direitos da Mulher propõe que as mulheres tenham liberdade de
expressão, além de romper com os ideais de ser mulher da época, exigindo direitos.
4
Fundada em 09 de agosto de 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) foi uma
organização que se dedicou a luta por direitos as mulher, principalmente por iniciativa da líder feminista
brasileira Bertha Lutz, e sediada no Rio de Janeiro.
Sarti (2001, p. 33) aponta que apesar do golpe militar em 1964, o movimento ainda
mostrou-se expressivo, especialmente na década de 1970, em que estava fortemente vinculado
a movimentos contrários a regimes ditatoriais. A luta em prol dos direitos das mulheres no
Brasil neste momento histórico pautava-se em bases marxistas para sua fundamentação,
caracterizando o movimento pela sua luta democrática diante de um contexto que calava
vozes discordantes. A presença de mulheres na luta armada ao longo da ditadura apontava não
apenas para a garantia de direitos que se ansiava conquistar, mas para um confronto direto
com os padrões esperados para essa população, que deveria dedicar-se aos cuidados com o lar
e com seus maridos.
Sarti (2001, p. 34) debate que ao menos na retórica5 a confrontação de mulheres ao
regime militar apontou para as desigualdades de gênero ainda presentes na sociedade
brasileira e para os caminhos ainda a serem percorridos, especialmente em relação aos direitos
reprodutivos, a violência doméstica e as desigualdades nos postos de trabalho. Cabe discorrer
que a presença de mulheres na luta contra os regimes militares em toda a América Latina
propiciou um cenário para o estabelecimento do Ano Internacional da Mulher, pela
Organização das Nações Unidas em 1975, e o reconhecimento oficial das desigualdades
sofridas pelas mulheres em diversos âmbitos enquanto um problema social, favorecendo que o
movimento social feminista que ainda atuava na clandestinidade, se consolidasse por meio da
formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente.
Nos anos de 1980, ligado a outros movimentos sociais que exigiam a
redemocratização do país, as demandas feministas se difundiram por todo o território
nacional, não só pela representatividade das mulheres engajadas, mas também pelo abertura
vivida pelo Brasil, que buscava modernizar-se enquanto sociedade. Neste período, surgiram
ainda grupos feministas que buscavam uma atuação mais profissional, especializada e técnica,
por meio da criação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que pressionavam para o
desenvolvimento de políticas públicas para as mulheres. Adentraram nesta tendência à
especialização, pesquisas científicas que aperfeiçoaram teoricamente a temática, apontando
sobre a necessidade de modificações estruturais, principalmente por meio das instâncias
governamentais, da situação da opressão e desigualdades de gênero vividas pelas mulheres no
país. Ainda no final da década de 1980 o saldo dessas lutas se expressou por meio da criação
5
Sarti (2001) aponta que na retórica houveram avanços, contudo, depoimentos de mulheres que lutaram ao
longo do período ditatorial, apontam que as diferenças de gênero, mesmo entre os homens que também
buscavam pela redemocratização do país, eram expressivas.
equipamentos de saúde, assistência social, trabalho, educação, entre outros, pode ser um
instrumento fortalecedor e constructo da autonomia de mulheres fragilizadas por um contexto
de violência.
A Política Nacional está estruturada com base nos Planos Nacionais de Políticas para
as Mulheres6. Sua relevância consiste na elaboração de mecanismos para a concretização do
eixo do enfrentamento à violência contra a mulher apresentado pelos Planos Nacionais: são os
conceitos que dão sustentação para a própria formulação e execução das políticas voltadas a
prevenção e a responsabilização dos casos de violência contra a mulher.
Nesse momento, esses conceitos – os princípios e diretrizes da política – servirão
também para a avaliação do trabalho realizado pelo Numape/UEM. A fim de se reconhecer a
importância de determinado serviço e se o mesmo se presta a concretização do enfrentamento
à violência contra as mulheres, é indispensável, conforme o nosso escorço histórico
demonstrou, uma mudança nas “regras” do patriarcalismo e do machismo que estruturam
nossa sociedade. Uma iniciativa que não promova tal alteração, portanto, é questionável, a
partir da opção teórica feita pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres.
Sendo assim, se faz necessária a retomada dos mencionados princípios e diretrizes,
compreendendo cada um deles separadamente e a que eles se referem. Dessa forma saberemos
o que é considerado relevante para a instrumentalização de iniciativas - públicas ou privadas -
para o enfrentamento da violência contra as mulheres.
É preciso, assim, que se parta da igualdade e respeito à diversidade, o que significa
trazer à tona a igualdade material, entendendo, por isso, que há desigualdades em nossa
sociedade que precisam ser corrigidas também por meio de intervenções da lei e do Estado.
Mulheres e homens são iguais em direitos, ao menos formalmente, e suas individualidades, no
que concerne “à diversidade cultural, étnica, racial, inserção social, situação econômica e
6
Resultado das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, os Planos Nacionais de Políticas para as
Mulheres (2005, 2008 e 2013) são fruto do diálogo democrático entre o Estado e a sociedade civil. O último
Plano, com vigência de 2013-2015, foi elaborado com base na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres, em 2011 e visa o fortalecimento e a institucionalização da Política Nacional para as Mulheres,
aprovada em 2004 e referendada em 2007 e 2011 por suas respectivas conferências nacionais.
regional” (POLÍTICA, 2011, p. 31), devem ser ponderadas tanto pela sociedade civil quanto
pelas diferentes instâncias governamentais. Ainda, é preciso ressaltar as diferenças de geração
e acessibilidade, que também influem diretamente em como será o exercício desses direitos
que a Constituição proclama como de todos.
Por isso é que se fala em equidade na Política: assegurar que se dê o acesso aos
serviços para a concretização de direitos. A Política fala em garantia de ”igualdade de
oportunidades”, o que nada mais é que materialmente possibilitar o que se afirmou
anteriormente como o exercício de direitos, como o à vida, à moradia, ao lazer, dentre outros.
A Política trouxe, também, como princípio, a autonomia das mulheres e afirma
textualmente que deve existir para estas um “poder de decisão sobre suas vidas e corpos”,
além da possibilidade de decidirem acerca dos caminhos políticos nos locais onde viverem
(POLÍTICA, 2011, p. 31). O desenvolvimento da autonomia é um dos aspectos que as
políticas públicas buscam alcançar, já que a decisão sobre como lidar com a situação de
violência deve caber à mulher, funcionando os serviços como pontos de apoio. Assim, é
importante que os serviços e seus profissionais, institucionalmente, compreendam que
caminharão junto às mulheres os percursos traçados por elas, deixando que elas sejam
protagonistas no processo de superação da situação de violência.
Diretamente relacionado à autonomia é o princípio da laicidade do Estado. O texto da
política é bastante exato ao colocar que as políticas públicas “devem ser formuladas e
implementadas independentemente de princípios religiosos, de forma a assegurar os direitos
consagrados na Constituição Federal e nos instrumentos e acordos internacionais assinados
pelo Brasil” (POLÍTICA, 2011, p. 31). Assim, os serviços devem priorizar a autonomia das
mulheres, e não propósitos outros que, inclusive, reforcem ideias machistas e patriarcais.
Atingir o máximo possível de mulheres, seja qual for o seu contexto e suas
particularidades, é o objetivo dos serviços voltados ao enfrentamento à violência contra as
mulheres e assim que é percebida a universalidade das políticas públicas. Porém, talvez esse
seja, justamente, o grande desafio, pois a compreensão das interseccionalidades7 implica em
que sejam percebidas uma multiplicidade de realidades, o que pode ser encarado como uma
dificuldade em criar um protocolo de atendimento abrangente o suficiente, como aponta
7
É fundamental que se demarque a existência de mulheres negras, ribeirinhas, indígenas, quilombolas, mulheres
com deficiência e outros marcadores sociais e econômicos que vulnerabilizam historicamente diferentes grupos
populacionais.
Ribeiro (2017, p.41), “A insistência em falar em mulheres como universais, não marcando as
diferenças existentes, faz com que somente parte desse ser mulher seja visto.”
As questões de renda e trabalho são expressivas quando pensamos nas possibilidades
trazidas às mulheres para decidirem ou não por um fim nos seus relacionamentos abusivos,
isso porque muitas delas são também mães e, por este motivo, apresentam dificuldades para
se inserirem no mundo do trabalho, ou ainda, por serem alocadas em trabalhos precarizados,
dependendo financeiramente dos companheiros (ALMEIDA, 2015, s/p). Em outros trabalhos
exploramos a relação da dependência econômica com a desistência dos processos judiciais
(MACHADO; PERES; LESSA, 2017, s/p). Assim, podemos entender que o princípio da
justiça social, no contexto da Política Nacional, aponta para a não indiferença dos serviços
públicos a essa realidade, devendo os mesmo buscarem estratégias para a geração de renda
pelas mulheres.
Como a Política trata, não só, mas principalmente, dos serviços do âmbito público
estatal, é inevitável, e constitucionalmente previsto (artigo 37), que se considere a
transparência como algo a ser levado em consideração. Por isso, esses serviços estão sujeitos
ao controle social para a avaliação da efetividade dos serviços. Inclusive, a participação e o
controle social são outro princípio: eles ocorrem não só no momento de avaliar tais serviços,
mas também no planejamento e execução destes.
Além de princípios, a Política prevê diretrizes. As diretrizes, diferentemente dos
princípios - que visam orientar de forma genérica - apontam como deve ser feito o
enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, deve-se observar tratados, acordos e
convenções internacionais; deve-se reconhecer a violência contra as mulheres enquanto
violência estrutural e histórica; deve-se combater a exploração sexual e o tráfico de mulheres;
deve-se capacitar os profissionais, especialmente da e na área da assistência e, finalmente,
deve-se estruturar a Rede de Atendimento. Essas diretrizes indicam como os esforços serão
efetivamente direcionados, inclusive os orçamentários, mas, antes disso, como se dará a
execução contínua dos serviços.
Uma vez retomados os princípios e diretrizes, tentando apreender seu conteúdo,
passamos, no próximo item, à análise de como os mesmos balizam o trabalho feito pelo
Numape/UEM.
sua parte psicossocial, mantém-se em contato com os demais serviços da rede de atendimento
às mulheres e tem esta enquanto aliada no enfrentamento às violências.
Tão importantes quanto os atendimentos feitos individualmente, que dão origem a
demandas judiciais, em muitos dos casos, são outras ações que o Numape/UEM desenvolve e
integra. São campanhas locais de conscientização sobre violências contra as mulheres,
desenvolvimento de pesquisas no campo dos Estudos de Gênero e de políticas públicas, além
da participação em audiências públicas e conselhos municipais que tratem ou atravessem
questões relativas às mulheres. Outra ação é o trabalho realizado junto às adolescentes
selecionadas pelo Projeto de Iniciação Científica com Bolsa do Ensino Médio, em que essas
cooperam, por meio de oficinas, para multiplicação da Lei Maria da Penha no contexto
escolar. Essa linha de trabalho insere o Numape/UEM numa atuação enquanto advocacy
feminista, sendo que o atendimento individualizado a cada mulher está conexo a compreensão
de que é preciso alterar a estrutura posta para serem concretizados direitos das mulheres.
Ao nos referirmos a estrutura posta, reportamos às ideias que naturalizam as
diferenças entre mulheres e homens e que hierarquizam essas diferenças. Segundo Mendes, “o
sistema sexo-gênero se coloca como uma variável fundamental da organização da vida social
através da história e da cultura da modernidade” (MENDES, 2014, p. 86). Ainda segundo a
autora, o conceito de gênero tem a potência de questionar como foram construídas as relações
entre mulheres e homens (MENDES, 2014, p. 91).
Sendo o Direito um dos campos responsáveis por manter tal estrutura, pode parecer
incoerente lançar mão do mesmo para pretender mudanças significativas. De fato, se o
manejarmos da forma como o mesmo se apresenta, é possível a mera repetição das fórmulas
sexistas postas. Mas a posição que o Numape/UEM busca manter é a de interpelar o Direito e
de usá-lo como “estratégia de legitimação de novas pretensões e novos princípios, como
linguagem para a reconstrução da realidade, desde o ponto de vista das mulheres” (MENDES,
2014, p. 174).
Por isso, para a nossa atuação, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres é texto fundamental: seus princípios e diretrizes procuram ser o mais bem
observados na nossa atuação cotidiana, desde a elaboração dos protocolos de atendimento à
condução dos processos judiciais. Entendemos que há uma miríade de mulheres que podem
procurar nossos serviços, com os mais variados marcadores sociais perpassando suas vidas e,
por isso, o atendimento deve tentar ao máximo refletir tal realidade, de modo a atender à
diversidade mencionada pela Política.
Ainda, como trabalhamos com um critério socioeconômico, o Numape/UEM pode ser
um órgão que promove a equidade, uma vez que buscamos voltar nosso trabalho para pessoas
que não possam arcar com os custos processuais e honorários advocatícios. É importante
frisar que já no momento de agendar o atendimento buscamos demarcar o âmbito da nossa
atuação para que não aconteça a revitimização.
Ademais, nosso principal objetivo é assegurar que a mulher atendida receba as
orientações necessárias para que possa tomar a decisão que for, mas que seja de forma
assessorada, seja do ponto de vista jurídico, como também pela Psicologia e pelo Serviço
Social. Daí a importância de que essas três áreas trabalhem harmoniosamente, sem a
sobreposição do Direito, pois nem sempre uma saída jurídica será o suficiente para auxiliar a
mulher a romper com o ciclo de violência.
No entanto, há algumas situações que precisam ser revistas pelo nosso serviço, como,
por exemplo, a acessibilidade ao próprio local dos atendimentos. Tornar o serviço prestado
universal, para utilizarmos o termo que a Política trouxe, é um desafio que se apresenta para o
nosso projeto de extensão e que precisa ser afrontado.
Considerações Finais
A história nos mostra que longo foi o caminho para a garantia de direitos pelas
mulheres e, especialmente, a desnaturalização e o direito a não violência. A violência contra
as mulheres é um fenômeno complexo e necessita de um conjunto de variáveis para o seu
enfrentamento. Sem a articulação entre a rede de serviços públicos e o Poder Judiciário, a lei
se torna letra morta. Para o efetivo cumprimento das leis, é necessário que governo e
sociedade civil compreendam que um trabalho setorial e fragmentado é insuficiente ante as
demandas apresentadas por mulheres em situação de violação de direitos. É nesse sentido que
a Política Nacional trabalha, buscando tornar responsável a sociedade e o Estado pelo
enfrentamento às violências. Do mesmo modo, as ações do Numape/UEM visam o
atendimento multidisciplinar e intersetorial, sabendo que isoladamente, não é capaz de suprir
as necessidades que se apresentam em um contexto de violência doméstica.
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http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332001000100003.
Resumo: O presente trabalho teve como objetivo o estudo das relações e intersecções
existentes entre as violências domésticas de gênero praticadas contra mulheres e a realidade
socioeconômica destas, bem como a análise da relevância da temática para a elaboração e
execução de políticas públicas voltadas para o enfrentamento de tais violências. O trabalho foi
conduzido por consultas bibliográficas nas áreas de Direito, Ciências Sociais,
Ciências Políticas e Teorias de Gênero, especificamente nas temáticas de violência de gênero,
violência doméstica, Lei Maria da Penha e políticas públicas. Observou-se que o
enfrentamento à violência doméstica sofrida por mulheres está diretamente relacionada à
situação econômica na qual elas vivem, mormente no que diz respeito à dependência
financeira que possuem em relação a seus agressores. Nessa linha, foi possível
concluir que as políticas públicas elaboradas para o enfrentamento da violência
doméstica contra mulheres devem ser repensadas a partir de uma perspectiva
interseccional, que situe as mulheres em contextos específicos de violência, construídos a
partir do cruzamento entre o gênero e outras categorias sociais que marcam suas
existências, como raça e classe social. Chegou-se também à conclusão de que tais
políticas públicas podem ser pensadas sob o viés transformativo da economia feminista,
com vistas a garantir a autonomia econômica de mulheres a partir da reorganização justa
da produção do cuidado.
Palavras-chaves: violência doméstica; políticas públicas; autonomia econômica.
1
Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais.
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada inscrita na OAB/PR sob o n. 85.079. E-
mail: mariliaferruzzi@gmail.com.
Introdução.
É preciso que se tenha uma compreensão de como a violência de gênero pode ser
entrecruzada, no campo teórico, com a desigualdade socioeconômica enfrentada pelas
mulheres.
Cumpre retomar, para tanto, a discussão tecida por Fraser (2006) a respeito da
possibilidade de conciliação entre as pautas políticas voltadas para a justiça cultural e as
pautas políticas voltadas para a justiça econômica ou de classe, situando tal dilema no cenário
das necessidades políticas de mulheres.
A partir da teorização de Fraser (2006, p. 233), é possível reconhecer que as mulheres,
enquanto grupo identitário, buscam o reconhecimento das diferenças sociais existentes entre
os gêneros e, consequentemente, o reconhecimento das violências de gênero geradas por tais
diferenças. Buscam, então, evidenciar uma injustiça cultural ou simbólica, consubstanciada no
desrespeito e desqualificação de mulheres, nas representações culturais públicas
estereotipadas de comportamentos femininos e na imposição de padrões conforme uma
configuração social androcêntrica. Dessa forma, o remédio para tal injustiça – e,
consequentemente, para a violência de gênero praticada contra mulheres - seria uma mudança
cultural ou simbólica, que pode envolver a o reconhecimento e a revalorização do grupo
identitário ou uma “transformação abrangente dos padrões sociais de representação,
interpretação e comunicação”. (FRASER, 2006, p. 232)
Por outro lado, é preciso reconhecer que mulheres também estão inseridas, em grande
número, em outra coletividade: a classe explorada economicamente. Elas se constituem,
portanto, enquanto um grupo que combina características da classe explorada
economicamente e do grupo identitário discriminado por seu gênero. Nesse sentido, Fraser
(2006, p. 233) classifica as mulheres como uma coletividade bivalente, já que são
“diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômico-política quanto da
estrutura cultural-valorativa da sociedade” e que, portanto, “sofrem injustiças que remontam
simultaneamente à economia política e à cultura.” Dessa forma, segundo a autora, para além
do suposto dilema da redistribuição-reconhecimento, é preciso reconhecer que existem
coletividades específicas, localizadas na região intermediária do espectro conceitual que
divide as coletividades entre classe explorada e classe culturalmente discriminada. Tais
coletividades, híbridas ou bivalentes, estão sujeitas, simultaneamente à má distribuição
econômica e à desconsideração cultural. Em suma, as políticas de reconhecimento voltadas
para um grupo identitário devem também incluir políticas de redistribuição, sob o risco de
perderem seu caráter emancipatório. (FRASER, 2006, p. 233)
Mais do que injustiças independentes que estão presentes nas vidas e no cotidiano das
mulheres, a discriminação cultural de gênero e a exploração de classe estão interligadas. Isso
porque o “gênero”, enquanto um dos paradigmas de coletividades bivalentes, abarca em si
tanto redistribuição quanto reconhecimento. (FRASER, 2006, p. 233) É preciso ter em mente
2017, p. 154-155)
A partir de um estudo da atuação do núcleo, é possível notar que a violência de gênero
sofridas pelas mulheres no ambiente doméstico, principalmente por parte de seus
companheiros, está frequentemente ligada à situação de vulnerabilidade social enfrentada por
tais mulheres e à dependência econômica que elas mantém em relação a seus agressores. Tal
relação reside principalmente na dificuldade que as mulheres enfrentam para saírem da
situação de violência doméstica, já que, na prática, se desvencilhar do agressor compreende
uma série de gastos financeiros e emocionais. (MACHADO; LESSA; LIMA, 2017, p. 5-7)
Conforme mencionado, a atuação jurídico-processual do NUMAPE/UEM se dá
principalmente por ações que estão diretamente ligadas aos direitos e necessidades cíveis e
econômicas de mulheres que saem de uma relação de violência doméstica. Após a realização
do registro do boletim de ocorrência e do requerimento de medidas protetivas de urgência,
previstas na Lei Maria da Penha, as mulheres em situação de violência doméstica precisam,
entre outras providências, realizar a partilha dos bens que possuem com o agressor e realizar o
requerimento de pensão alimentícia, para si ou para os filhos que eventualmente possuírem
em comum com os agressores. Entretanto, entre o período de janeiro de 2016 e maio de 2017,
foi possível observar que 33,7% do total de mulheres atendidas pelo NUMAPE/UEM
desistiram do acompanhamento processual realizado pelo núcleo. (MACHADO; LESSA;
LIMA, 2017, p. 5) É importante compreender que a demora da prestação judicial das
demandas, bem como a organização estabelecida pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná, que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a peregrinarem por diferentes
juízos, são fatores cruciais para tais desistências, principalmente diante do recorte de classe
estabelecido como critério para o atendimento do núcleo. Diante da situação de
vulnerabilidade em que as mulheres atendidas se encontram, não se torna razoável, para elas,
a espera pela prestação jurisdicional.
Inseridas em uma posição de vulnerabilidade econômica e em uma estrutura familiar
onde o trabalho remunerado é exercido predominantemente pelos homens, tais mulheres
enfrentam, juntamente com a ruptura da relação violenta, uma “ruptura da condição
econômica em que se vivia” e, em muitos casos, a interrupção “do suporte financeiro feito
pelo homem”2. No intervalo entre o início do processo até a decisão liminar que obriga o
agressor, pelo menos, ao pagamento de pensão alimentícia, elas passam a ter que arcar
2
De acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada para investigar a situação da violência contra a
mulher no Brasil, entre abril de 2006 a dezembro de 2011, 40,49% das vítimas de violência doméstica que
recorreram à Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) dependiam financeiramente do agressor. (BRASIL,
2013, p. 24-26)
sozinhas com a criação dos filhos e com os gastos da casa, consistentes em pagamento de
aluguel e de outras despesas de rotina. (MACHADO; LESSA; LIMA, 2017, p. 5-6) Dessa
situação de necessidade econômica resulta, muitas vezes, a decisão, por parte das mulheres,
de reatarem o relacionamento com os agressores.
Nota-se que a situação de dependência econômica que as mulheres mantém com seus
agressores as colocam em uma situação de vulnerabilidade financeira que constitui a forma
específica de violência doméstica que elas sofrem.
A Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres reconhece a autonomia econômica
enquanto elemento essencial para que as mulheres possam “promover seu próprio sustento e
decidir por suas próprias vidas”, de forma que tal autonomia pressupõe, além da
independência financeira e geração de renda, uma autonomia para realizar escolhas. Segundo
a SPM, “além de garantir a própria renda, é preciso que as mulheres tenham liberdade e
condições favoráveis para escolher sua profissão, planejar seu futuro, ter tempo para o lazer e
para se qualificar”. (SPM, 2016)
3
Cita-se, a título de exemplo, a experiência do projeto Mulheres e Agroecologia, organizado pela ActionAid
Brasil, em 2006, a qual teve por objetivo o empoderamento de mulheres a partir do reconhecimento da
importância de seus trabalhos dentro da dinâmica da agroecologia. (LOPES; JOMALINIS, 2012, p. 10-11)
4
A economia solidária e a agroecologia são consideradas como formas de se opor ao modelo capitalista de
produção e desenvolvimento. No entanto, é importante que existam ações de enfrentamento das violências e
discriminações presentes nesses próprios espaços alternativos de economia e produção. (LOPES; JOMALINIS,
2012, p. 10-11; PESSOA; RAMOS; PEIXOTO, 2008)
Considerações finais.
Foi possível observar que a violência doméstica sofrida por mulheres está diretamente
relacionada à situação econômica na qual elas vivem, mormente no que diz respeito à
dependência financeira em relação a seus agressores. A partir da experiência de um núcleo
voltado para o atendimento jurídico e psicológico de mulheres em situação de violência
doméstica na cidade de Maringá, Paraná, Brasil, foi possível também perceber que, além das
injustiças econômicas causadas pela desigualdade de gênero, o nível de dependência
econômica que mulheres possuem em relação a seus agressores interfere diretamente na
constituição de sua situação de vulnerabilidade financeira e na possibilidade de se
desvencilharem da situação de violência.
Conclui-se que as políticas públicas elaboradas para o enfrentamento da violência
doméstica contra mulheres, assim como os estudos sobre a temática, devem ser repensadas a
partir de uma perspectiva interseccional, que situe as mulheres em contextos específicos de
violência, construídos a partir do cruzamento entre o gênero e outras categorias sociais que
marcam suas existências. Nesse sentido, tais políticas públicas devem também considerar as
situações específicas de vulnerabilidade socioeconômica nas quais diferentes mulheres estão
inseridas.
Ao se concluir que a busca pela justiça de gênero depende também do acesso de
mulheres a sua autonomia e seus direitos econômicos, percebe-se que as políticas públicas
devem ser pensadas não somente a partir de um caráter meramente afirmativo e assistencial,
mas também a partir de um viés transformativo, que busque modificar as estruturas mesmas
que causam as discriminações. Para tanto, sugere-se que tais políticas públicas sejam
pensadas a partir da perspectiva da economia feminista, a qual se propõe a promover uma
ruptura epistemológica, metodológica e empírica com o pensamento econômico hegemônico,
para dar espaço a um pensamento que considere e evidencie o trabalho despendido para o
cuidado e a sustentabilidade da vida. Dessa forma, para que a realidade social das mulheres
seja transformada e, consequentemente, para que a violência de gênero praticada contra
mulheres seja enfrentada, é também fundamental reconsiderar meios alternativas de
organização econ6omica, que busquem reorganizar de forma justa a produção do cuidado a
partir de pensamentos da teoria feminista e de experiências concretas vividas por mulheres.
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Resumo: O artigo que proponho aqui estrutura-se desde de uma discussão entre os estudos de gênero
e a noção clássica de alteridade na antropologia, a partir do conceito de diferença. Em um primeiro
momento, problematizo as masculinidades em consonância com noções mais amplas de identidade e
movimentos identitários. Depois, atento para a separação entre sexualidade e gênero numa perspectiva
pós-estruturalista. Por último, penso na possibilidade de observar a existência de uma masculinidade
criminosa entre os detentos do sistema penal brasileiro, mais precisamente no Instituto Penal de
Campo Grande-MS (IPCG). Dessa forma, o fio condutor teórico do artigo se encontra nos estudos de
gênero e no pós-estruturalismo, que propiciam a construção de explicações sobre o gênero não
restritas aos referenciais biológico e psicológico e radicam suas análises no campo cultural,
entendendo a cultura como um horizonte de tensões entre representações e significações.
Palavras-chaves: Masculinidades; Identidade; Crime; Gênero; Violência; Prisão.
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul; Bolsista da Fundação de apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato
Grosso do Sul (FUNDECT); danielattianesi@gmail.com.
2
Aqui entendidos como os detentos do crime de Homicídio, número 121 no Código Penal Brasileiro.
3
Para mais aprofundamento na utilização do conceito de identidade como política nas questões de diferenças ver
Brah (2006)
separação criada entre as categorias analíticas4 “cultura” e cultura. A cultura enquanto algo
criado pelas sociedades em si e a “cultura” sendo utilizada como um projeto político sobre o
conhecimento tradicional,
[...] Decorre daí que dois argumentos podem ser simultaneamente verdadeiros: i)
existem direitos intelectuais em muitas sociedades tradicionais: isso diz
respeito a cultura; ii) existe um projeto político que considera a
possibilidade de colocar o conhecimento tradicional em domínio público
(payant): isso diz respeito a "cultura". O que pode parecer um jogo de
palavras e uma contradição e na verdade uma consequência da reflexividade que
mencionei. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009. p.358, grifo meu).
4
A autoria consciente evita a utilização da palavra conceito por seu grande peso epistemológico dentro do saber
antropológico como nos diz Carneiro da Cunha (2009, p.312).
“movimentos identitários”, que possibilita pensar que nesses movimentos existem apenas as
“identidades” como uma construção social e que fora deles as identidades seriam pensadas
como naturalizadas e essenciais.
Em vias de exemplificação, podemos pensar duas questões: a primeira seria a ideia de
um homem, branco e heterossexual não participar de nenhum dos tradicionais movimentos
identitários, deixando a impressão da existência de uma não-identidade, quando o que
deveríamos pensar é sobre uma não “identidade” com aspas, no sentido de ferramenta política
pelo reconhecimento, tendo em vista o já reconhecimento dessas categorias (homem, branco,
heterossexual) em nossa sociedade.
Numa segunda questão, podemos pensar no que as lutas identitárias chamam hoje de
lugar de fala5. Na ideia desse conceito, os movimentos buscam que a identidade e a
“identidade” sejam correspondentes para que dessa forma se tenha legitimidade para se falar
politicamente sobre determinadas pautas identitárias. Teríamos também, quando em
dissonância, um encontro da identidade sem aspas com a “identidade”, pois dentro nesse
conceito está em questão o que agentes podem falar a respeito das questões de “identidade”,
sempre partindo de sua identidade em si.
Tendo isso em mente, esse artigo busca criar como categoria analítica uma separação
semelhante à de Carneiro da Cunha, só que no tocante às questões identitárias: pensaremos a
partir daqui, então, em uma identidade sem aspas e uma “identidade”6. Esse movimento é
importante devido à especificidade político-metodológica de se analisar masculinidades em
uma pesquisa de gênero, isso se encontra no sentido da problemática da alteridade dentro da
antropologia como um todo. Na próxima seção, faremos algumas considerações sobre os
estudos de gênero na antropologia, bem como sua separação da sexualidade e a ascensão dos
estudos sobre masculinidades.
Antropologia, sexualidade e gênero: onde estão as masculinidades?
Aqui, busca-se traçar três marcos nos estudos de gênero e sexualidade na antropologia
e ao final procuramos fazer uma pequena revisão dos estudos de masculinidade dentro desse
contexto. Dois destes marcos, nos estudos de gênero e sexualidade, se estabelecem a partir
dos trabalhos de duas autoras norte-americanas, Gayle Rubin e a Carol Vance, e uma autora
5
Para uma referência da história do conceito de “Lugar de Fala”. Disponível em:
<https://esquerdaonline.com.br/2017/01/08/sobre-o-lugar-de-fala/> Acesso em: 16 dez. 2017.
6
Em forma de simplificar, se para o leitor ainda não ficou clara a separação, é pensarmos a categoria homicídio
e feminicídio, o primeiro ignora as questões de identidade, logo seria pensar a identidade sem aspas. Enquanto o
segundo, o feminicídio, coloca a categoria gênero em evidência, sendo então a “identidade” pensada com aspas,
quando ela não é ignorada, mas sim marcada e utilizada como ferramenta de sentido.
brasileira, Lia Zanotta Machado. Gayle Rubin promove uma reflexão sobre a questão da
sexualidade e do gênero, bem como das limitações do movimento feminista; Carol Vance
apresenta a trajetória da produção da antropologia sobre sexo e gênero, bem como as linhas
teóricas que estão em discussão; por último, temos a chegada, no Brasil, dos estudos de
gênero e sua inserção no cenário intelectual brasileiro.
O ensaio de Rubin foi apresentado em 19847, durante o que hoje chamamos de guerras
sexuais feministas8, elas foram uma série de debates dentro do movimento feminista sobre
pornografia, sadomasoquismo e prostituição, que foi considerado um dos momentos de
nascimento da terceira onda9 do feminismo e um momento de grande polarização ideológica
dentro do movimento. Um dos pontos principais do texto de Rubin (2003) será a crítica de
como a sexualidade tem se dado apenas, até aquele momento, por meio de debates entre as
áreas de psicologia e biologia deixando de lado a questão cultural, o que dessa forma acabou
por criar nas sociedades ocidentais uma hierarquia valorativa das práticas e dos sentidos de
expressão da sexualidade.
Nesse ensaio, a parte que nos será interessante é a que a autora focará sobre os limites
do feminismo. Ele - como será visto mais a frente - é de fundamental importância para o
início dos estudos de masculinidades dentro do que viria a ser chamado de estudos de gênero.
Ao final dessa parte, Rubin (2003) argumentará que o feminismo é uma teoria da opressão de
gênero, não podendo assim se assumir, como um lugar ideal para uma teoria da opressão
sexual, dessa maneira seria uma falha a junção entre gênero e desejo erótico como forma de
compreensão dos dois fenômenos.
7
Todos os anos de referência são os anos da primeira publicação do texto em língua inglesa, enquanto as versões
que utilizo e estão referenciadas são de anos depois das traduções em português.
8
Para mais informações sobre as guerras sexuais e os debates. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerras_sexuais_feministas>Acesso em: 16 dez. 2017.
9
As Ondas feministas são entendidas como as gerações dos projetos feministas, muitas vezes controversas em
nível teórico e prático. O termo ondas é elucidativo enquanto um projeto que ainda não se completou, em dois
sentidos. O primeiro corresponde a um parâmetro cronológico ou de gerações e o segundo liga-se às sucessivas
construções teórico-temáticas. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/entenda-o-feminismo-e-
suas-ondas/>Acesso em: 16 dez. 2017.
Com isso, a autora procura combater a visão de autoras como Catherine MacKinnon,
que buscavam tornar a sexualidade como fundamental para o movimento feminista em sua
estrutura, de maneira em que a sexualidade deveria ser vista a partir das relações generificadas
presentes na sociedade. Algo que Rubin (1993, p.43) demonstra em forma de analogia,
aproximando do que os pensadores marxistas estavam tentando fazer, ao utilizar o marxismo
como o único sistema capaz de explicar todas as desigualdades sociais.
No presente artigo, não acreditamos que se pode dar uma ênfase única a nenhum dos
diversos marcadores sociais da diferença10 como solução ou ferramenta de análise em nenhum
contexto social especifico. Enaltecer marcadores como classe (no estilo marxista) ou gênero
(em alguns feminismos) seria uma simplificação da complexidade cultural das realidades
sociais com um cunho político que estaria ignorando diversos outros marcadores importantes
como geração, escolaridade, gênero, raça, entre outros.
10
Para maior aprofundamento das questões de marcadores sociais da diferença ver (Zamboni, 2014) e para a
utilização deles com maestria ver o trabalho sobre prostituição internacional de (Piscitelli,2008; Piscitelli,2013)
Nessa citação, a autora se coloca no que ela chama em seu próprio texto de
construcionismo moderado, a mesma abordagem que utilizaremos aqui quando tratarmos dos
estudos de masculinidade. Apesar de existir um debate dentro do próprio construcionismo a
respeito de suas diferenciações, de um mais moderado a um mais radical. Sendo a primeira a
compreensão tradicional e essencialista que entende tanto o sexo como o gênero como dados
naturais, as vezes por meio de argumentos biológicos, outras por ideias vindas no início da
psicologia num sentido próximo ao freudiano11 e o terceiro modelo de influência cultural.
Estes debates chegam ao Brasil. Eles chegam aqui influenciados por algumas destas
visões que discutimos até agora. Na década de 1990, Lia Zanotta Machado, entre outras
pesquisadoras, busca pensar os estudos de gênero como um novo paradigma no campo
intelectual brasileiro. Seu artigo Gênero, um novo paradigma? publicado em 1998 nos
Cadernos Pagu, já questionava a utilização do conceito de gênero como sinônimo do campo
de estudos de mulheres, com isso a autora comenta
11
Apesar do avanço das teorias freudianas sobre a sexualidade e até o próprio gênero, hoje se tem mais em
mente as críticas a respeito de seu, ainda persistente no período da criação da psicanálise, naturalismo preso às
questões biológicas da sexualidade humana. Para uma maior compreensão ver Laqueur (2001).
A partir desses três olhares, percebemos uma falta de foco sobre a questão específica
dos estudos sobre masculinidades. Como Karen Giffin ira nos mostrar, “mesmo durante os
primeiros anos do ressurgimento do feminismo nos anos 60 e do início dos ‘estudos das
mulheres’, antes do desenvolvimento do conceito de gênero, havia homens interessados em
participar da reflexão sobre essas questões” (2005, p. 48).
Antes mesmo dos textos de Rubin e Vance vistos aqui, já havia grupos de discussões e
estudo das masculinidades, sendo eles influenciados por duas vertentes: uma diretamente
ligada aos questionamentos do movimento feminista sobre a construção do gênero feminino e
outra de estudos autônomos que não reconheciam no feminismo uma teoria fundadora
(Matos,2001).
A partir das décadas de 70 e 80, paralelo ao avanço das guerras sexuais nos debates
feministas, houve uma expansão na academia norte-americana dos “men’s studies”13. Nesse
momento, surgiram autores considerados fundadores do campo nos Estados Unidos, como
Michael Kaufman e sua argumentação sobre a “tríade de violência” – dos homens contra as
mulheres, contra outros homens e contra si mesmo; a obra de Michel Kimmel com uma
análise histórica das imagens da masculinidade nos Estados Unidos; e também Raewyn
12
Nessa citação podemos observar como a categoria analítica apresentada anteriormente seria pensada como uma
identidade sem aspas com o que a autora quis dizer sobre os homens serem “neutros” em relação ao sexo.
13
A autora francesa, Elisabeth Badinter, teoriza sobre o porquê de o surgimento do campo de estudos sobre
masculinidades ter surgido nos estados unidos, ver em (Bandinter,1993, p.7)
Connel (na época Robert Connel), um dos teóricos mais conhecidos dessa geração, com sua
argumentação em Gênero e Poder (1987), uma primeira teorização do conceito de
masculinidade hegemônica, ainda utilizado atualmente apesar de críticas quanto à sua
capacidade analítica (Matos,2001).
A expansão dos estudos sobre masculinidades se inicia nos anos 90 e 2000 com
muitos autores de diversas áreas pensando a questão do gênero masculino. Influenciando o
trabalho no Brasil, a filósofa e historiadora francesa Elisabeth Badinter, escreve o livro “Sobre
a identidade masculina”, publicado em no Brasil em 1993. Pensando a partir de diversas áreas
do conhecimento sobre a questão da masculinidade, também temos o sociólogo Pierre
Bourdieu, que publica seu livro “A dominação Masculina”. Este texto que chega ao Brasil em
1999. Apesar de uma perspectiva mais estruturalista, ele possui grande influência nos estudos
de masculinidade no país.
Nesse breve resumo, buscamos apontar as principais obras a partir dos anos 70 que
vêm influenciando uma parcela dos estudos sobre masculinidades no exterior e no Brasil.
Existe, pois uma falta, em língua portuguesa, de estudos mais amplo sobre essa história dos
estudos sobre masculinidades como um todo.
gênero e sexualidade, busca-se agora, a partir das primeiras idas no Instituto penal de Campo
Grande, pensar em forma de hipótese a existência de uma possível masculinidade criminosa,
bem como crimes que mais poderiam visibilizar a violência masculina.
Para propósito de análise, os crimes aqui só serão pensados em seu caso de acordo
com Código Penal Brasileiro. De acordo com o artigo. 14, o crime deve ser consumado com
artigo. 18 apenas levaremos em consideração o crime doloso (quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo) e que não estejam nas categorias dos artigos 24 e
25, que constituem respectivamente estado de necessidade da pessoa que cometeu o crime e
quando o crime for cometido em legítima defesa.
Algo que ficava evidente nas visitas no IPCG era essa demonstração dos corpos, pois
os homens no geral sempre andam sem camisas dentro de seus respectivos solários,
praticando algum exercício físico ou apenas conversando em rodas. Parece-me relevante a
questão do corpo dos detentos para pensar uma masculinidade criminosa. Em outros espaços,
como na universidade, em cursos de uma frequência majoritariamente masculina não se
costuma ver tanta exposição da força e músculos como se existe no presídio. Essa questão
também se repete entre os jovens infratores que, como nos diz Machado “apontam a
articulação entre masculinidade e a encenação ritualizada do poder e do controle, para se
inscrever continuamente como aparição espetacular...” (2001, p.2). O poder e o controle
estariam, nesse caso, muito perto das questões do corpo e da violência por meio da coação dos
demais sujeitos.
14
Solários no contexto do IPCG são os lugares, rodeados pelas celas dos detentos, onde existe uma abertura no
teto para que se realize os banhos de sol, sendo permitido aos detentos, dependendo das circunstâncias a
permaneceram lá até as 16hrs
Outro fator que despertou minha curiosidade sobre a possível existência de uma
masculinidade especificamente criminosa está no caráter de uma moralidade, que poderíamos
chamar de uma “moralidade viril”. Apesar da ideia, preconceituosa, que existe na sociedade
de que os criminosos não possuem regras e apenas as desobedecem, não foi isso o observado
durante o trabalho de campo. Destaco aqui o caráter viril de uma moralidade dos criminosos,
exatamente porque ela parece estar atrelada ao fator essencial de ser apenas entre os “homens
de verdade”. Ela seria um código moral generificado, que vale apenas entre os próprios
homens do grupo.
15
Refiro-me à noção de “pacificação” presente no “processo civilizador” da cultura ocidental, segundo
Norbert Elias (1990).
16
IBGE 2017, Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação.
Adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil, 2015), e 82,3% Óbitos no trânsito segundo sexo das
vítimas (Mapa da Violência Acidentes de Trânsito e Motocicletas no Brasil, 2013).
O primeiro ato a ser pensando é a questão da vingança, entendida aqui como um agir
diretamente contra uma pessoa, grupo ou entes a eles relacionados com a finalidade de
retribuir, geralmente em grau mais elevado, algo que foi percebido como sendo prejudicial a
si mesmo. Poderíamos pensar como uma forma pré-civilizatória de resolução de conflitos, se
relacionando com o gênero masculino na medida em que o ideal de “homem” não poderia
admitir, sem resposta imediata e na forma de uma lição como maneira de se impor sua
autoridade, qualquer ação que compreenda como prejuízo. Nesse sentido deixar uma ofensa,
mesmo que banal, passar seria algo visto como desmasculinizante em sua condição de
homem.
entende que ele deve exercer um certo regime de autoridade entre os homens considerados
subalternos e os demais sujeitos.
Nesse quarto e último ato, que diz respeito à coragem, temos uma diferenciação, pois muito
do que se atribui a atos de coragem tendem a causar mais danos ao próprio homem, que o
pratica, do que a outros homens. Dessa maneira, esse ato seria uma atitude baseada na
expectativa generificada do que faz um “homem de verdade”, dessa forma a coragem nesse
sentido se manifesta como uma imprudência e arrogância, fazendo com que os homens, como
nos diz Silva “se exponham deliberadamente a situações de risco, renunciando a qualquer
prudência e propósito em suas ações” (2014, p.2813). Nos quatro atos observados acima se
pensa na existência de uma questão de uma masculinidade construída a partir de atos
violentos, que busca dessa forma corresponder esses determinados atos com a construção da
masculinidade dos indivíduos praticantes
Conclusões finais
Referências
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Resumo:A violência contra mulher em nossa sociedade ocorre de diversas maneiras, destaca-
se a violência doméstica por gerar o maio número de vítimas. A violência doméstica é aquela
que acontece dentro do âmbito da família, entre quaisquer membros, sendo possíveis
agressores os maridos, companheiros, namorados, ou pessoas com as quais a mulher teve
alguma relação afetiva íntima como ex-maridos e ex-namorados. Os tipos de violência que
podem acontecer nesse âmbito são as violências físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais e
morais. A violência psicológica consiste em um tipo de violência silencioso e de difícil
detecção, pois suas marcas não são aparentes. Dentre as formas de violência psicológica estão
o gaslighting e mansplaining, pouco discutidos, porém bastante comuns nas relações afetivas.
Desta forma, o presente artigo busca explanar e discutir o gaslighting e o mansplaining,
ressaltando a prejudicialidade destas práticas contra as mulheres. Consiste em uma pesquisa
bibliográfica empreendida nas bases de dados online SciELO, PePSIC, Lilacs, Teses USP e
Google Acadêmico. Os resultados apontaram que o gaslighting consiste em uma forma de
violência na qual o agressor tenta fazer, através da distorção de fatos e omissão de situações,
com que a vítima duvide de sua memória e sanidade, passando a duvidar de seu senso de
realidade e percepções. O mansplaining refere-se a uma fala didática direcionada à mulher,
como se ela não tivesse a capacidade de compreender ou executar determinada tarefa,
justamente pelo fato de ser mulher. As duas formas de violência, assim como todo tipo de
violência psicológica diminuem a autoestima da mulher, fazem com que ela perca a confiança
em si mesma, trazem grandes prejuízos à saúde mental das mesmas bem como prejudicam sua
vida social e laboral. Foi constato também que existe pouca produção científica sobre o tema.
1
Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras Português/ Espanhol da UEPG, Psicóloga especialista em
Gerontologia e Saúde do idoso e MBA em Liderança e Coaching para Gestão de Pessoas,
mirian_patd@hotmail.com.
2
Assistente Social do Patronato Municipal de Pitanga, academicoucp@hotmail.com
3
Assistente Social, doutoranda em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -
adrieleinacio@yahoo.com.br
Introdução
Metodologia
Este trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica, segundo Lima e Mioto (2007),
este é um procedimento metodológico muito importante na produção do conhecimento
científico, pois pode gerar hipóteses e interpretações com potencial de basear outras
pesquisas, principalmente com relação a temas de pouca exploração no campo científico.
Para Gil (1994) a pesquisa bibliográfica é uma possibilidade de acessar amplamente
as informações, também permite reunir e utilizar dados que estão dispersos em diversas
publicações, possibilitando, desta maneira, a construção ou definição do quadro conceitual
que envolve todo o objeto de estudo.
Os dados que são consultados por meio da pesquisa bibliográfica consistem em todas
as produções publicadas que possuem relação com o tema em estudo. A partir dessas
Resultados e discussão
A Lei 11.340/06, dispõe sobre as formas de violência que podem ocorrer no âmbito
doméstico, entre elas estão a violência física, moral, psicológica, sexual, patrimonial. A
violência física consiste em qualquer ato que ofenda a integridade física da mulher ou sua
saúde corporal (BRASIL, 2006), como por exemplo, a utilização da força física ou armas e
instrumentos que possam ocasionar cortes, hematomas, fraturas.
A violência sexual é entendida como qualquer ação na qual uma pessoa em situação
de poder obriga a outra a presenciar, manter ou participar de relação sexual contra sua
vontade por meio de coação, intimidação, ameaça ou uso de força física. Também consiste em
uma violência de ordem sexual limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais ou
reprodutivos da mulher (BRASIL, 2006).
A violência patrimonial consiste em condutas que configure retenção, subtração ou
destruição de bens, instrumentos de trabalho, documentos, entre outros pertences da mulher,
também inclui o controle dos recursos econômicos da mesma, inclusive os destinados a
satisfazer suas necessidades. De acordo com a Lei Maria da Penha a violência moral consiste
em qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).
Segunda a Lei Maria da Penha, é considerada violência psicológica, qualquer
conduta que seja emocionalmente danosa, que diminua a autoestima ou que prejudique a
mulher de se desenvolver de forma plena. Também consiste em violência psicológica o
controle das ações das mulheres, seus comportamentos, crenças e decisões através de
ameaças, constrangimento, humilhações, dentre outras condutas nocivas. A limitação do
direito de ir e vir também é uma forma de violência bem como qualquer outro meio que traga
prejuízos à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
Dados apontam que a violência física é a mais prevalente, ou a mais denunciada,
dentro do ambiente doméstico, consistindo no total de 58% das denuncias realizadas por
mulheres, sendo que em 32% dos casos há lesão corporal. Seguidamente, aparece a violência
psicológica, 36% das denúncias e a sexual 6% (ARAÚJO, 2008).
Violência Psicológica
Como salientam Silva, Coelho e Caponi (2007, p.98) “a principal diferença entre
violência doméstica física e psicológica é que a primeira envolve atos de agressão corporal à
vítima, enquanto a segunda forma de agressão decorre de palavras, gestos, olhares a ela
dirigidos, sem necessariamente ocorrer o contato físico”.
Para Sá (2011) a violência psicológica consiste em qualquer conduta moral ou verbal
que intimide a vítima, a desvalorize, produza sentimentos de culpa ou sofrimento. Esse é o
tipo de violência mais difícil de identificar do ponto de vista social, pois as marcas que essas
condutas deixam não são aparentes.
Além de consistir em uma violação de direitos, a violência psicológica causa danos
muito graves às vitimas trazendo consequências para a saúde e o bem-estar biopsicossocial
das mulheres. A violência prejudica a vida social das mesmas, as reprime e abala
psicologicamente (SILVA et al., 2015). Os danos causados pela violência psicológica não
concentram-se só na vítima, mas estendem-se para todos os que presenciam ou convivem com
a situação de violência (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Dentre as consequências mais graves da violência psicológica, estão os problemas de
saúde originados pelo intenso sofrimento psicológico, como dores crônicas, síndrome do
pânico, depressão, tentativa de suicídio e distúrbios alimentares. Desta forma, é
imprescindível que a violência seja enfrentada como um problema de saúde pública (SILVA;
COELHO; CAPONI, 2007).
Muitas mulheres que sofreram algum tipo de violência relatam transtornos e
consequências psicológicas, bem como redução da qualidade de vida e menor satisfação em
relação à vida, o corpo, vida sexual e relacionamentos interpessoais. Também é comum a
atribuição à violência sofrida a ocorrência de cefaléia, problemas na coluna cervical, náuseas,
tonturas, picos hipertensivos (SILVA et al., 2015).
Em um estudo desenvolvido por Marinheiro (2003) foi encontrada associação entre
ocorrência de violência psicológica e sentimentos de tristeza e depressão. Segundo o estudo,
66% das mulheres que se encontravam tristes ou deprimidas sofreram algum tipo de violência
psicológica durante a vida, enquanto que um percentual de 28,7% das mulheres que não
relataram sentimentos de tristeza e depressão sofreu algum tipo de violência na vida. Foi
encontrada relação também entre sentimentos de morte e violência psicológica. Um total de
75,8% das mulheres que relataram preferir estar mortas ou distantes do local onde vivem
sofreram violência psicológica, e 30,8% das que não relataram estes sentimentos sofreram
algum tipo de violência psicológica na vida.
A violência causa muitos danos às vitimas, e esses danos podem ser mais destrutivos
quando a violência é recorrente e não identificada. Como afirmam Silva, Coelho e Caponi
(2007) as formas de violência psicológica que ocorrem no âmbito doméstico nem sempre são
de fácil identificação pela vítima. A violência pode ocorrer de forma diluída, e não ser
reconhecida por se associar a fenômenos emocionais com frequência agravados por fatores
como álcool, perda de emprego, problemas familiares, luto e demais situações de crise.
É importante atentar-se para o fato de que a violência doméstica psicológica é
negligenciada em nossa sociedade, pois as denúncias que são feitas através dos meios de
comunicação, da mídia, dão destaque a violência doméstica somente quando a mesma se
manifesta de forma aguda, em outras palavras, quando a vítima sobre danos físicos graves ou
quando vai a óbito. A mídia também apresenta o mito de que a violência urbana é superior do
que a violência doméstica em quantidade e gravidade (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
A violência doméstica na maioria dos casos inicia-se de forma silenciosa, tanto que
às vezes não é nem percebida. Os primeiros sinais de violência do agressor são mais sutis, e
mesmo que isso não ocorra em todos os casos, muitas vezes progride gerando violência aguda
grave. O autor de violência no início não lança mão de agressões físicas, mas começa com o
cerceamento da liberdade da vítima, avançando para o constrangimento e humilhação. As
estratégias dos autores de violência podem ser inúmeras, como por exemplo, começando com
chantagens e insinuações em relação à troca de roupa, de maquiagem, proibições de
frequentar lugares, fazer as mulheres desistir de ir a programas com amigas ou parentes,
desistir de traçar metas e buscar seus objetivos (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Com o passar do tempo, as insinuações e chantagens vão progredindo e tornando-se
mais evidentes, mesmo que sutis. A violência psicológica então passa a manifestar-se
verbalmente, através de humilhações privadas ou públicas, exposição da mulher a situações
que causem embaraço como ridicularizar o corpo da vítima, apelidar ou chamar por
características que causam sofrimento. Essas ações podem fazer com que a mulher comece a
se justificar e se desculpar perante o agressor como perante outras pessoas pelo
comportamento do agressor. Este movimento de violência é muitas vezes imperceptível tanto
para agressor quanto para a vítima, muitas vezes a vítima acaba por tentar justificar os
comportamentos do agressor, utilizando-se de desculpas como estresse, uso de substâncias ou
culpabilizando-se pelo comportamento dele. E assim a violência aos poucos instala-se e
avança mais (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Em uma pesquisa realizada por Carneiro e Freire (2015) com mulheres que
frequentam locais que prestam assistência às mulheres que sofrem violência doméstica, foi
constatado que 100% das participantes haviam sofrido algum tipo de insulto ou se sentiram
mal consigo mesmas por causa de maridos ou companheiros. Em relação à frequência dessas
ocorrências, cerca de 23% das participantes afirmaram que isso acontece muitas vezes. O
percentual de 92% das participantes afirmaram que o marido/companheiro depreciou ou a
humilhou na frente de outras pessoas, e 92% das mulheres disseram que o
marido/companheiro já teve comportamentos para assustá-las ou intimidá-las, como por
exemplo, forma de olhar e gritos. E ainda, 100% das participantes afirmaram que os
maridos/companheiros já ameaçaram machucar elas ou pessoas de quem elas gostam. Na
pesquisa também foi avaliada a autoestima das participantes, e todas elas apresentaram
autoestima insatisfatória. Este estudo apontou a relação existente entre violência psicológica e
baixa autoestima.
As mulheres vítimas de violência desenvolvem diferentes estratégias para lidar com a
violência vivenciada. Algumas delas reagem à agressão sofrida denunciando os agressores e
buscando ajuda para sair de relacionamento abusivos. Entretanto, outras acabam por
permanecer na relação e viver anos sob situação de violência na expectativa de que um dia as
agressões cessem. O grande problema é que com o passar do tempo, a violência acaba por ser
banalizada e a vítima passa a naturalizar a situação, pois a continuada exposição à situação de
violência anula a autoestima e a capacidade de pensar e reagir, e desta forma, a esperança de
mudança de comportamento do companheiro/marido/namorado acaba dando lugar ao
conformismo (ARAÚJO, 2008).
A natureza da relação entre vítima e agressor pode implicar na tomada de decisões
em relação ao último. A intimidade existente entre vítima e agressor interfere nesse processo e
muitas vezes resulta no silêncio da mulher e dos familiares ou na retirada de queixas policiais
quando essas acontecem. As grandes conseqüências da violência contra as mulheres, além de
impactar na saúde reprodutiva e sexual das mulheres, atinge o bem estar dos filhos e a
economia local/nacional (MARINHEIRO, 2003).
A ideologia de gênero é uma das principais responsáveis pela permanência das
mulheres em relações abusivas. "Muitas delas internalizam a dominação masculina como algo
natural e não conseguem romper com a situação de violência e opressão em que vivem"
(ARAÚJO, 2008, p.5).
No filme, o agressor também utiliza-se de outros ardis como fazer com que ela não
encontre objetos e pense ouvir passos no sótão vazio. Diante de todas essas percepções que o
agressor faz a vítima ter, ela começa a acreditar que está “perdendo a sanidade” e que tem
alucinações, o marido por sua vez encoraja o isolamento da mulher alegando que seu “estado
alterado” não a permite conviver com outras pessoas (KRUGER, 2016).
Segundo o Conselho Federal de Psicologia o “gaslighting”, consiste em uma forma
de abuso mental em que o agressor distorce os fatos e omite situações para deixar a vítima em
dúvida em relação a sua memória e sanidade (CFP, 2016). Nesta forma de violência a mulher
se vê como incapaz, passa a duvidar do seu senso de realidade e de suas percepções
(STOCKER; DALMASO, 2016).
Kuster (2017, p.96) define gaslighting como “uma manipulação psicológica que faz a
vítima acreditar que está com a mente embaralhada, ou que determinado evento não ocorreu,
ou aconteceu de forma diferente da que ela se recorda”.
O gaslighting é uma prática comum em relacionamentos abusivos, nos quais ocorrem
comportamentos rotineiros que fazem com que a vítima duvide de sua própria sanidade
mental e percepção dos fatos. Frases comuns nesta prática são: “você está louca”, utilizada
muitas vezes para justificar um comportamento errado do agressor, “você está exagerando”,
“você é muito sensível”, “mas eu só estava brincando”, “você está delirando” (MENDES,
2016).
A recorrência desses comportamentos e frases, muitas vezes convence a mulher de
que é mesmo irracional louca ou extremamente sensível. Assim, vão sendo criados bloqueios
e inseguranças que fazem com que muitas mulheres tenham medo de participar da vida social
da mesma forma que os homens participam e que acabem por aceitar as diversas formas de
desvalorização e rebaixamentos, sejam estes de ordem intelectual, emocional ou profissional,
por exemplo. Esse tipo de violência ocorre em diversos meios como os educacionais,
corporativos e familiares, neste último são recorrentes os casos de mulheres que não
conseguem livrar-se de relacionamentos abusivos. Esta prática serve ao propósito de as
manter em situação de subserviência e sob controle, desmotivando a realização de denúncias e
reforçando a lógica de culpabilização de vítimas (KRUGER, 2016).
Dessa forma, as mulheres que contestam essa forma de manipulação psicológica e
tentam contrapô-la são transformadas em figuras desnecessariamente agressivas,
ameaçadoras, descontroladas e histéricas (KRUGER, 2016).
O termo “mansplaining” é derivado de uma junção de man (homem) e explaining
(explicar). Segundo Stocker e Dalmaso (2016), o mansplaining refere-se a uma fala didática
Considerações finais.
que é inferior ou que não é capaz de sobreviver sozinha. Essas formas de manipulação trazem
grandes prejuízos à saúde mental das mesmas bem como prejudicam sua vida social e laboral.
Diante disso, faz-se importante a realização de ações que desconstruam essa
ideologia de gênero ainda tão arraigada na sociedade. É necessária a luta não só pelos direitos
da mulher, mas também ações que visem o empoderamento e autonomia das mulheres. São
importantes trabalhos que envolvam a sociedade e contribuam para a identificação e
eliminação de violências que muitas vezes passam despercebidas, mas que trazem inúmeras
consequências para todas as mulheres que as vivenciam.
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Beatriz Molari1
Resumo: o objetivo deste trabalho é apontar, por meio de uma discussão bibliográfica, os
aspectos da relação entre poder simbólico e o mito da beleza na publicidade que faz uso de
representações da mulher. A teoria sobre o poder simbólico de Pierre Boudieu possibilita a
compreensão da sociedade como um sistema estruturado. Dentro deste sistema, as instituições
assumem as posições de agentes sociais e, como tais, interferem na estrutura do espaço
simbólico. Fazendo uso do poder concedido pela sua posição, as instituições modificam o
espaço simbólico a seu favor. Contudo, compreende-se que tais ações provocam mudanças
graves na sociedade e, devido a isto, torna-se necessário cobrar a responsabilidade do que
envolve o público. Com base na fundamentação proposta por Pierre Bourdieu, notou-se que a
representação da mulher na mídia é condicionada pelo olhar da dominação masculina. Neste
contexto, o mito da beleza, conceito elaborado pela autora Naomi Wolf, é aplicado com o
objetivo de reduzir a mulher a sua aparência, promovendo uma violência física, psicológica e
social. As representações da mulher na mídia do mito da beleza seguem estereótipos e
conceitos que desrespeitam os direitos da mulher e regulam a sua atuação como agente de
transformação do espaço simbólico, o que, consequentemente, fortalece a dominação
masculina e as coerções sociais impostas à mulher. Tais resultados fazem do mito da beleza
uma violência simbólica de gênero.
Palavras-chaves: violência simbólica de gênero; mito da beleza; mídia.
1
Universidade Estadual de Londrina. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Imagem,
e bacharela em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas, ambos pela Universidade Estadual
de Londrina. E-mail: beatriz.molari@gmail.com.
Introdução
Como o autor coloca, o poder simbólico contempla a realidade social e é por meio
dele que os agentes mantêm as relações dentro de um espaço. Para Bourdieu, o poder
simbólico tem a capacidade “[...] de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste
modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (BOURDIEU, 2007a, p.
14). A aplicação do poder simbólico é feita pela mobilização, ou seja, tem êxito quando um
agente institui um movimento entre as estruturas do espaço simbólico. O autor ressalta que a
força do poder simbólico reside na relação entre os agentes. Somente será aplicado se for
reconhecido pelos envolvidos, o que ocorre quando o seu caráter arbitrário é ignorado
(BOURDIEU, 2007a, p. 14). Para Martino, “esconder o arbitrário da decisão na forma da
ilusão do natural: é a definição de poder simbólico” (MARTINO, 2009, p. 151). Esta
característica determina que o poder simbólico atue como uma estratégia aplicada nas
relações entre os agentes, estas sendo baseadas em disputas simbólicas. Bourdieu salienta que
o poder simbólico não surge nas estruturas dos sistemas simbólicos, mas está presente nas
relações entre aqueles que desejam exercer algum controle sobre os demais. Para o autor, a
autoridade do poder simbólico está na crença das ordens do agente que o exerce, sendo muitas
vezes sobre o pretexto de manter a ordem do espaço (BOURDIEU, 2007a, p. 14-15).
Para compreender a aplicação do poder simbólico é necessário entender o princípio
do espaço simbólico. Para Martino, “o espaço simbólico é o lugar construído a partir das
relações sociais. No entanto, esse espaço é desigual: pessoas ocupam posições diferentes, e
esses desníveis levam à noção de campo” (MARTINO, 2009, p. 147; grifo do autor). O
campo, por sua vez, “é um espaço estruturado de relações onde agentes em disputa buscam a
hegemonia simbólica das práticas, ações e representações. Essa definição é uma expansão da
ideia de espaço social, incluindo uma perspectiva de luta simbólica” (MARTINO, 2009, p.
147). O autor explica que o espaço simbólico é dividido em níveis e possui uma hierarquia.
Há lugares fixos a serem ocupados, mas os ocupantes serão determinados pelo seu
desempenho nas disputas simbólicas. Aqueles que ocuparão os lugares de prestigio serão
aqueles que obtiverem vitórias sobre os demais. “As posições são fixas, portanto,
estruturadas, mas os ocupantes podem mudar de lugar. Estar nos primeiros lugares não
garante o domínio do campo, a não ser pela redefinição contínua das condições que geraram
essa situação” (MARTINO, 2009, p. 147-148; grifo do autor). O espaço simbólico está em
constante movimento, o que promove disputas frequentes entre os agentes que almejam
melhores posições ou manter o poder já conquistado.
Compreende-se agente como uma categoria de indivíduos que pode agir dentro de
um campo (MARTINO, 2009, p. 148). Segundo Martino,
O habitus incorpora elementos que estruturam as ações dos agentes. É algo inerente
ao agente devido a sua característica de repetição. Para Bourdieu, o habitus é “um
conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na
tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural -, mas
sim o de um agente em ação” (BOURDIEU, 2007b, p. 61; grifos do autor). Esta característica
permite relacionar o habitus com determinadas práticas e situações, produzindo categorias de
percepção comuns (BOURDIEU, 2013, p. 96). O habitus torna-se a gênese das ações dos
agentes e o que produz as movimentações dentro do espaço simbólico. As ações
desempenhadas neste espaço visam alcançar autonomia, esta entendida como o “[...] poder de
definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus próprios
interesses” (BOURDIEU, 2007c, p. 125). A execução do poder simbólico é uma das formas
de adquirir autonomia dentro do espaço. Ocupando uma posição elevada, o agente intervém
na definição do mundo, moldando-o com o princípio de beneficiar-se. Os dominantes
conquistam o controle da produção simbólica em um campo, utilizando os instrumentos para
exprimir o seu ponto de vista próprio sobre o social (BOURDIEU, 2007c, p. 152).
Segundo Martino, o poder simbólico é uma forma de dominação invisível e se define
nas ações desenvolvidas em um campo. Seguindo a norma que concebe a eficácia da
influência como inversamente proporcional à visibilidade do poder executado, ou seja, quanto
menos visível, mais eficaz, um valor simbólico é atribuído às ações dos agentes (MARTINO,
2009, p. 151). Essa invisibilidade é resultado da ideia de ilusio, o que, segundo Martino, se
trata da recusa de identificar e reconhecer os interesses dos agentes de um campo. Torna-se
uma negação, implícita ou explícita, da característica arbitrária das ações decorrentes do
poder simbólico (MARTINO, 2009, p. 151). O autor explica que a ilusio é uma expressão do
poder simbólico. Para Martino,
A ilusio é uma forma de passividade adotada pelos agentes mediante uma força
simbólica aplicada sobre eles. Esta prática garante a aplicabilidade do poder simbólico e
propaga a ideologia vigente. Dessa forma, pode-se conceber que o poder simbólico e as suas
aplicações, ilusio, são opressores e servem para a manutenção de uma ideologia. Bourdieu
compreende a lógica da dominação como algo exercido “[...] em nome de um princípio
simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado”
(BOURDIEU, 2012, p. 8). A dominação é exercida mediante uma propriedade distintiva,
podendo ser um idioma ou estilo de vida (modo próprio de pensar, falar ou agir)
(BOURDIEU, 2012, p. 8), como é o caso da dominação masculina. Logo no primeiro contato
entre um indivíduo e o mundo, as instituições baseiam-se nas diferenças dos órgãos
reprodutores para aplicar a primeira divisão social entre os indivíduos. A categorização
baseada nos órgãos reprodutores é conhecida por sexo biológico. Além desta divisão
biológica, outra categorização é imposta: a divisão por gênero. Divididos entre os gêneros
masculino e feminino, os indivíduos estão sujeitos às definições sociais sobre cada gênero.
Para Beauvoir, a biologia dos corpos não conduz a vida dos indivíduos, pois “não é um corpo,
é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se
realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a
fisiologia que pode criar valores” (BEAUVOIR, 2016, p. 64). Perrot complementa esse
raciocínio dizendo que o gênero é oposto ao sexo biológico e designa as relações dos
indivíduos pela cultura e pela história (PERROT, 2009, p. 111). A divisão por gênero impõe
regras à vida dos indivíduos, com afirma Bourdieu ao dizer que as diferenças dos órgãos
sexuais “[...] são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios de divisão
da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos
ao homem e à mulher” (BOURDIEU, 2012, p. 24). Dessa forma, a divisão por gêneros torna-
se base para a dominação masculina.
A dominação masculina não se encontra na gênese social. Para Bourdieu, a “força
particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas
operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica
que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (BOURDIEU, 2012, p.
33; grifos do autor). Dessa forma, compreende-se que a dominação masculina busca
naturalizar uma opressão que foi construída no espaço social. Usando estratégias como a
ilusio, os agentes que se beneficiam da lógica de dominação masculina atuam com o objetivo
de mascarar as opressões e assim torná-las menos visíveis. Seja pelo aprendizado ou pela
omissão, as opressões não são combatidas e se infiltram nas relações sociais. São exemplos os
casos do machismo e a misoginia, conceitos que têm o seu significado relacionado com o ódio
ou aversão às mulheres.
Para Bourdieu, o poder simbólico pode promover uma violência simbólica. O autor
define violência simbólica como “[...] uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita
dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e
outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997, p. 22). É nítida a
relação que o autor faz entre a dominação masculina com a violência simbólica. Nas palavras
do autor:
Inserida na lógica de dominação masculina, a beleza passou a ser vista pelo seu valor
simbólico. Para Wolf, “a ‘beleza’ é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como
qualquer, sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no mundo ocidental,
consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino”
(WOLF, 1992, p. 15). Com o objetivo de manter o controle masculino sobre as mulheres, foi
desenvolvido o mito da beleza. Segundo Wolf, este mito é a ideologia que exerce controle
sobre a aparência das mulheres. Para a autora, o mito da beleza surgiu como resposta às
conquistas da segunda onda do movimento feminista, que ocorreu entre os anos 1960 e 1980
(WOLF, 1992, p. 13). Segundo a autora, o mito da beleza se fortaleceu para assumir o lugar
de coerção social daquelas mulheres que conquistaram um pouco de liberdade com a abertura
para o processo de desnaturalização dos mitos da maternidade, domesticidade, castidade e
passividade impostos à mulher (WOLF, 1992, p. 13). Para ter êxito coercitivo, o mito da
beleza não atua na aparência da mulher, mas determina o seu comportamento (WOLF, 1992,
p. 17).
A mídia está relacionada diretamente com o mito da beleza. Com o avanço dos meios
de comunicação, as práticas comunicacionais passaram a fazer uso frequente de imagens
femininas, estas principalmente relacionadas com a propagação do consumo. A mídia
favoreceu a transmissão de imagens produzidas com base em padrões estéticos contrários a
realidade de grande parte das mulheres. São expostos exemplos do que são considerados
socialmente como bonito, e, consequentemente, aqueles que não se enquadram no padrão são
pressionados a buscar a falsa perfeição. Wolf salienta que o mito da beleza impõe um limite à
aparência da mulher. Para ela, “a ideologia da beleza ensina às mulheres que elas têm pouco
controle e poucas opções. As imagens da mulher segundo o mito da beleza são simplistas e
estereotipadas. A qualquer momento existe um número limitado de rostos ‘lindos’
reconhecíveis” (WOLF, 1992, p. 64). O resultado disto é a diminuição de percepções
femininas nas quais as mulheres poderiam se reconhecer, pois, “através de percepções tão
limitadas do universo feminino, as mulheres concluem serem suas opções igualmente
limitadas” (WOLF, 1992, p. 64). Por este fator, por ter sua eficácia acentuada quando a vítima
não reconhece a violência que lhe é imposta, e por ser construído nas estruturas simbólicas, o
mito da beleza torna-se uma violência simbólica de gênero.
A mídia utiliza o mito da beleza na medida em que este lhe serve para incitar o
consumo. A indústria do consumo soube apropriar-se da imagem feminina e empregá-la como
atrativo em anúncios ou para ilustrar promessas de cosméticos e tratamentos de beleza. Wolf
salienta esta questão dizendo que as mulheres são constantemente alvos de mensagens
produzidas na lógica do mito da beleza, e, dessa forma, tornam-se sensíveis às investidas das
instituições sociais dizendo o que elas devem fazer com a sua aparência (WOLF, 1992, p.
343-344). Através disto, a autora ressalta que “[...] as instituições estão nos passando uma
mensagem muito clara de que endossam qualquer grau de violência” (WOLF, 1992, p. 343-
344). Uma forma de propagar a violência simbólica de gênero na mídia é fazer uso de
representações equivocadas da mulher. Teixeira afirma que as representações são formuladas
com base nas características específicas de um grupo e constituem um processo social pelo
qual as diferenças entre os mesmos são constituídas ou modificadas. Segundo a autora, as
representações “[...] têm um papel ativo na produção de categorias sociais, tais como gênero,
raça/etnia, classe, sexualidade, geração (TEIXEIRA, 2009, p. 45). São elas que transformam
esses diferentes eixos em marcadores culturais construindo desigualdades” (TEIXEIRA,
2009, p. 45). Portanto, usar uma imagem que reforça alguma coerção social imposta à mulher
é contribuir para que a violência continue. Dessa forma, pode-se conceber que mídia é uma
das instituições responsáveis pela manutenção da dominação masculina. Teixeira ressalta a
responsabilidade da mídia afirmando que os discursos e argumentos transmitidos pelos meios
de comunicação contribuem para a reformulação de uma identidade feminina por parte da
sociedade (TEIXEIRA, 2009, p. 46). Quando usa imagens que não representam a realidade da
mulher, a mídia fornece material para a criação de uma identidade feminina equivocada. Esta
prática prejudica a mulher de duas formas: 1) a sociedade adota uma concepção feminina
errada e discrimina quem não se enquadra no padrão estipulado; e 2) as mulheres perdem
referências de atuação e passam a questionar o que até então constituía a sua identidade.
Percebe-se que os danos atingem a mulher nos níveis externo (1) e interno (2), o que
demonstra o grau desta violência simbólica de gênero.
As representações na mídia aproximam-se de simulacros. De acordo com Oliveira,
Fernandes e Silva, as imagens na mídia são produzidas com o objetivo de reduzir a “condição
de reflexo de uma realidade referencial” (OLIVEIRA; FERNANDES; SILVA, 2009, p. 14).
Sem representar a realidade, as imagens midiáticas tornam-se meio de transmissão de
estereótipos. Sobre esta questão, Oliveira, Fernandes e Silva afirmam que a presença de
imagens femininas na mídia “[...] classifica ou elege determinadas configurações corpóreas e
identitárias, ela regula um modo de presença, gerando representações sociais que,
compartilhadas no coletivo, apontam para a consolidação de estereótipos” (OLIVEIRA;
FERNANDES; SILVA, 2009, p. 23). Os estereótipos referem-se a conceitos compartilhados
socialmente que são associados a um grupo, promovendo a noção de similaridade entre os
indivíduos que o compõem. Por partir de uma concepção externa, os estereótipos transmitem
a ideia de que a similaridade constatada por terceiros é elemento norteador dos
comportamentos de um grupo. Para Oliveira, Fernandes e Silva, os estereótipos são capazes
de “[...] promover a cristalização de percepções e valores, mesmo diante da evidência de
informações contrárias, o que faz com que se associe a determinado estereótipo a
característica de verdade absoluta” (OLIVEIRA; FERNANDES; SILVA, 2009, p. 23).
A partir dos pontos abordados, questionam-se as representações da mulher que a
mídia usa. Uma pesquisa realizada no ano de 2013 analisou um universo de 1.501 respostas
de entrevistados de 100 municípios de todas as regiões do Brasil. Os resultados mostraram
que 62% acham que a propagandas de televisão não mostram a mulher que, além de ser
esposa e mãe, trabalha e estuda (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Do universo,
65% concordam que o padrão de beleza nas propagandas na televisão é muito distante da
realidade da mulher brasileira, e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas quando
não têm o padrão de beleza das propagandas de televisão (INSTITUTO PATRÍCIA
GALVÃO, 2013). Questionados sobre a função da representação da mulher na mídia, 84%
dos entrevistados concordam que o corpo da mulher é usado para promover a venda de
produtos nas propagandas de televisão (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Diante
disto, 70% dos entrevistados defendem uma punição aos responsáveis por propagandas que
mostram a mulher de modo ofensivo (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Os dados
da pesquisa mostram que a representação da mulher na mídia não reflete a realidade; pelo
contrário, produz uma violência simbólica de gênero. A redução da mulher a sua aparência é
uma clara aplicação do mito da beleza. Fortalecendo a ideia de que as mulheres devem seguir
um padrão de aparência, o mito da beleza regula a atuação da mulher, retirando da mesma as
disposições para questionar a lógica de dominação masculina.
Outra pesquisa, esta realizada no ano de 2016, abordou a forma como o gênero e a
raça são representados na mídia. O universo pesquisado foi de 8.051 peças publicitárias,
sendo produções de 207 marcas veiculadas na televisão e 889 publicações de 127 marcas
distintas propagadas na rede social Facebook. Do total, 26% das peças analisadas na televisão
mostravam a mulher como protagonista, destas, 84% eram brancas e 62% possuíam cabelos
lisos. No Facebook, a mulher era protagonista em 22% das publicações, sendo que 82% eram
brancas e 69% tinham cabelos lisos (HEADS PROPAGANDA, 2016). Outro dado importante
mostra que são investidos anualmente aproximadamente 21 milhões de reais em mídias que
reforçam estereótipos de gêneros na televisão; enquanto, neste mesmo período, o investimento
aproximado em mídias que empoderam2 ao quebrar estereótipos é de aproximadamente 12
milhões de reais (HEADS PROPAGANDA, 2016).
Os dados das duas pesquisas mostram que a mídia ainda precisa mudar a forma que
representa a mulher. Prova disto são as reclamações enviadas ao Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Dentre tantas denúncias, um caso julgado pelo
órgão em 2017 foi comentado por todo o país. Motivada por centenas de denúncias, foi aberta
uma apuração sobre a publicidade feita por uma fabricante de móveis. As denúncias
afirmavam que a empresa utilizava a imagem de uma mulher nua ou seminua em poses
sensuais como atrativo para os anúncios dos produtos. O CONAR reconheceu a denúncia e o
júri considerou que “há clara objetificação do corpo da mulher e exposição de nudez de
maneira totalmente descontextualizada” (CONAR, 2017). A decisão foi pela sustação das
peças publicitárias. Este caso demonstra na prática como a violência simbólica de gênero
promovida pela mídia é agressiva para com as mulheres. Neste caso a violência era explícita,
uma clara objetificação da mulher. Contudo, são propagadas pela mídia formas de violência
de gênero em níveis distintos, sendo muitas vezes imperceptíveis para outros, mas que são
agressivos para o grupo representado. Diante deste cenário, torna-se imprescindível cobrar
que os produtores de materiais veiculados na mídia atuem com responsabilidade simbólica.
Isto se torna necessário devida a maior atenção do público para com este tipo de
2
O termo empoderar compreende a ação de promover debates visando alcançar a conscientização coletiva sobre
os direitos sociais e civis de um grupo.
comunicação, o qual agora compreende que a mídia não serve apenas ao entretenimento, mas
que almeja manter o controle sobre a sociedade.
Considerações finais
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
________________. Sobre o poder simbólico. In: O poder simbólico. 11 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2007a.
_________________. Espaço social e gênese de classes. In: O poder simbólico. 11 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2007c.
MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da comunicação: ideias, conceitos e métodos. Petrópolis:
Vozes, 2009.
OLIVEIRA, Ana Cláudia de; FERNANDES, Cíntia Sanmartin; SILVA, Simone Bueno da. A
construção do corpo feminino na mídia semanal. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo,
v. 6, n. 17, p.11-36, nov. 2009. Quadrimestral.
PERROT, Michele. História (sexuação da). In: HIRATA, Helena. et al. (orgs.) Dicionário
crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 111-116.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
São Paulo: Rocco, 1992.
Resumo
A presente pesquisa, fundamentada pela perspectiva de teóricas feministas e por obras de
Direito Penal, Criminologia, Antropologia e Sociologia Jurídica, analisa a estreita relação
entre violência doméstica e os feminicídios perpetrados na esfera conjugal e/ou de intimidade.
Objetiva demonstrar a existência de uma intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de
quem morre, ao expor como as relações de poder são capazes de impulsionar e legitimar a
posse e o controle sobre o corpo feminino, situando o feminicídio para além de sua carga
simbólica, como passo inaugural para o reconhecimento da problemática, conferindo-lhe o
status de referência para a criação de políticas públicas de enfrentamento à violência de
gênero, sem deixar de fazer considerações sobre desejos punitivistas e a consequente demanda
por judicialização das pautas feministas no cenário nacional, ressaltando como a Lei do
Feminicídio tem contribuído para reascensão deste debate.
Palavras-Chave: Feminicídio; Gênero; Violência.
1
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Graduanda em Direito; E-mail: gabrielacatarina11@gmail.com
2
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestranda em Ciências Sociais; E-mail:
nayara_sandy@hotmail.com
3
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestre em Direito, Estado e Sociedade (UFSC); Doutora em
Ciências Humanas (UFSC); E-mail: isadoravier@yahoo.com.br
1.Introdução
A lei nº 13.104/2015, a chamada Lei do Feminicídio, alterou o art. 121 do Código
Penal, com a adição do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio,
prevendo situações em que a pena é aumentada de um terço até a metade e incluiu o delito no
rol de crimes hediondos. Na letra da lei, feminicídio é a morte de mulheres por razões da
condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou
menosprezo ou discriminação à condição de mulher, cujas margens penais são de 12 a 30
anos de reclusão. Muito embora se reconheça que o fenômeno perpassa o ambiente doméstico
e familiar, a análise aborda a estreita relação entre violência doméstica e feminicídios
perpetrados na esfera conjugal e/ou de intimidade, especialmente entre casais cisgênero e
heteroafetivos, pois é no entrecruzamento destas categorias que ocorrem, estatisticamente, a
maioria dos feminicídios, recaindo, portanto, no que concebemos como a existência de uma
intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de quem morre.
A proposta é, através de uma revisão da literatura sobre o tema e por meio de análise
bibliográfica do que fora produzido (como artigos e dossiês) após a publicação da Lei
13.104/15, situar o feminicídio para além da sua carga simbólica, que tem sido utilizada para
embasar as mais severas críticas à nova qualificadora. Sem deixar de fazer considerações
dogmáticas e político-criminais, bem como no que refere à contradição existente dentro dos
próprios movimentos feministas quanto à judicialização de suas pautas, pretende-se ressaltar o
inegável viés político da adoção da nova qualificadora, que pode ser concebida como
referência, em conjunto com a Lei Maria da Penha, para a concepção de políticas públicas de
enfrentamento à violência de gênero. A pesquisa está organizada da seguinte forma: conceitos
e considerações iniciais sobre o tema; os aspectos dogmáticos da Lei do Feminicídio; a
conexão entre violência de gênero, feminismo e o direito penal, bem como entre o marcador
de raça e o feminicídio; acerca da aplicabilidade da qualificadora do feminicídio para
mulheres transgêneros e travestis e ainda, sobre os embates entre a criminologia crítica e a
feminista.
Ao final, no último capítulo, ainda incipiente, os resultados e discussões deverão
indicar a importância da inclusão do feminicídio no direito brasileiro, demonstrando de que
forma a lei contribuiu ou vem contribuindo para o processo contínuo de enfrentamento à
violência de gênero. Deverá, ainda, comprovar a tese de que há uma relação peculiar entre o
gênero de quem mata e de quem morre através de dados estatísticos que comprovam que as
mulheres morrem mais “nas mãos” de seus parceiros íntimos e dentro de seus lares.
4
Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
feminino”. Desta forma, surge a questão: no Direito Penal, e mais especificamente, nos
dispositivos de enfrentamento à violência de gênero, quem pode ser reputada como mulher, e
consequentemente, sujeita de direito para fins de tutela do bem jurídico da vida na forma
qualificada? No trâmite da PLS 292/2013, quando chegou à Câmara, por pressão da bancada
religiosa, suprimiu-se a expressão “razões de gênero” e posteriormente, a substituiu por
“razões da condição de sexo feminino”, o que, segundo Machado e Elias (2016), não decorreu
de falta de conhecimento técnico dos/as legisladores/as, mas que se configura como uma
manobra política com o fim de excluir as mulheres transexuais e travestis da esfera de
abrangência da lei.
Segundo Scott (1989), a categoria gênero é mais útil do que o conceito de “sexo” para
se compreender identidades, expressões e papéis de homens de mulheres em sociedade, razão
pela qual, a partir da década de 70, passou a ser utilizada pelos movimentos feministas para
pontuar distinções sociais entre homens e mulheres. A utilização da categoria de gênero nos
estudos feministas proporcionou a desconstrução do modelo universal e essencialista de
mulher, abrindo a possibilidade para a construção das identidades de gênero 5 (BENTO, 2006).
Segundo dados da Organização Internacional Transgender Europe (2017), nos últimos
nove anos (01 de janeiro de 2008 à 31 de dezembro de 2016), foram reportados 2.343
assassinatos de pessoas trans em 69 países do mundo, sendo que destes, 1.834 ocorreram na
América Central e na América do Sul. O Brasil possui o maior número absoluto de mortes de
pessoas trans, seguido pelo México. Pontua Berenice Bento (2014), que no Brasil, a
população trans (travestis, transexuais e trangêneros) é dizimada diariamente, razão pela qual
sugere a nomeação do assassinato de pessoas trans como “Transfeminicídio” Desta forma,
pode-se afirmar que os transfeminicídios são motivados pelo gênero e não pela sexualidade da
vítima, pois esta é, muitas vezes, restrita ao foro íntimo, já o gênero, não existe sem
reconhecimento social, por isso, tais crimes constituem a expressão mais potente e trágica do
caráter político das identidades de gênero (BENTO, 2014: 2).
A adoção do termo gênero, na Lei do Feminicídio, tal como na Lei Maria da Penha,
teria o condão, portanto, de estender à possibilidade de aplicação da qualificadora para
mulheres trans e travestis vítimas, mortas em razão de sua condição de pertencimento e
identificação ao gênero feminino. A contrario sensu, a adoção da expressão “sexo feminino”
impediria a aplicação da lei para as mesmas. Essa interpretação decorre do dualismo existente
5
Diz respeito à identificação pessoal de gênero de alguém, que pode concordar ou não com o gênero que lhe foi
atribuído no nascimento. Por conseguinte, quem nasceu biologicamente homem e se identifica como tal, é
cisgênero. Por sua vez, aquele que nasceu biologicamente homem, mas identifica-se com o gênero feminino, é
trangênero, e vice-versa (JESUS, 2012)
espaços, afinal, os índices de violência demonstram que as mulheres negras, com destaque
para mulheres trans e travestis, continuam sendo violentadas e mortas indistintamente.
6. O gênero de quem mata e de quem morre
Inicialmente, cumpre ressaltar que o presente capítulo configura-se apenas como
apontamentos iniciais para a discussão proposta que pretende, como dito anteriormente,
confirmar a existência de uma intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de quem
morre. Pois bem. A grande maioria dos feminicídios, tentados e consumados, são perpetrados
por companheiros no âmbito doméstico, mesmo quando as mulheres denunciam as
ocorrências, o que denota a grande falha da rede de atendimento à violência doméstica e
familiar em evitar as chamadas “mortes anunciadas”. O feminicídio, nestes casos, geralmente
ocorre após o ciclo vicioso próprio de relacionamentos abusivos, que incluem agressões
variadas, rompimentos, perdões, novas agressões, chantagens, e assim sucessivamente, em um
cenário de negligência estatal e pouca ou nenhuma punição aos agressores.
Assim, de acordo com dados estatísticos, pode-se dizer que há uma intrínseca relação
entre o gênero de quem mata e de quem morre: em 2013, foram registrados 4.762 homicídios
de mulheres, e 50.3% foram cometidos por pessoas que tinham ou tiveram relações íntimas de
afeto com a mulher - de acordo com o que estabeleceu a Lei Maria da Penha -, sendo que em
33,2% destes casos, o autor do crime foi o parceiro ou ex-parceiro. Os índices quanto ao meio
empregado nos homicídios deixam claro o requinte de crueldade próprio dos crimes
motivados por razões de gênero: 73,2% dos homicídios masculinos foram realizados mediante
o uso de arma de fogo, ao passo que 51,2% dos homicídios de mulheres ocorreram por meio
de estrangulamento, sufocação, ou com instrumentos cortantes, contundentes ou penetrantes
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015).
Em 2013, o Brasil passou a ocupar a 5ª posição na lista de países com maiores taxas de
homicídios de mulheres, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Em 3 anos, houve um aumento de 9% no número de assassinatos registrados. Não há,
entretanto, uma regra que permite identificar, clara e de inequivocamente, se o delito foi ou
não motivado pelo desprezo à condição feminina. O que se têm são parâmetros, os quais só
são percebidos e compreendidos quando se analisa os crimes sob uma perspectiva de gênero.
Contudo, de forma geral, é possível observar um padrão em que o corpo da mulher apresenta
marcas de violência sexual ou lesões em partes do corpo que remetam à feminilidade, como o
rosto, os seios e os genitais, os quais indicam o uso de extrema violência e tortura.
As desigualdades de gênero, sejam elas sociais, políticas, econômicas, ou culturais,
além de limitarem o acesso das mulheres às mesmas oportunidades dos homens nos campos
acadêmicos, profissionais e políticos, também são responsáveis pela idealização, por parte de
muitos destes, de um sentimento de posse capaz de torná-las meros objetos sexuais, sob os
quais acreditam ter poder e domínio. Deste modo, infere-se que o feminicídio tem origem na
infração das normas de superioridade masculina que determinam a posse e o controle sobre o
corpo feminino. Tratam-se de crimes de poder, que visam a manutenção e reprodução deste
(SEGATO, 2006: 4).
O feminicídio foi uma categoria criada para englobar o que há em comum na agressão
e morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, evidenciando o impacto político da
desigualdade de gênero, haja vista que o fenômeno ocorre tanto em espaços públicos quanto
em privados, podendo ainda, ser executado e tolerado por agentes do Estado. Trata-se da
violação de uma série de direitos das mulheres, consagrados nos principais instrumentos
internacionais, principalmente o direito à vida, o direito à integridade física e sexual e o
direito à liberdade pessoal. A tipificação da qualificadora, por conseguinte, consiste
justamente em uma estratégia para demonstrar as especificidades dos assassinatos contra
mulheres, isto é, para retirá-los do âmbito genérico de “homicídios”, e destacá-los como
crimes oriundos do patriarcado.
7. Conclusões
Inicialmente, fora feita a diferenciação entre os termos “femicídio” e “feminicídio”,
ressaltando que embora suas concepções sejam diferentes, atualmente são tidos como
sinônimos, permitindo assim, uma unificação dos conceitos. Em seguida, é feita uma breve
retomada histórica acerca da condição da mulher no Brasil desde a colonização até a
contemporaneidade, pontuando como o Direito, de uma forma geral, influenciou no processo
de assentamento da mulher enquanto sujeita desprovida de tutela condizente com o princípio
da dignidade humana e como o movimento feminista reagiu a esse condicionamento, tornando
público o que antes era restrito ao ambiente privado. Neste diapasão, são feitas considerações
sobre a importância da categoria analítica gênero para se compreender o fenômeno do
feminicídio, demonstrando porque o Direito Penal, historicamente, tem perpetuado
discriminações negativas em face das mulheres atribuindo às mesmas a culpa por suas
próprias mortes. Desta forma, situa o feminismo como percursor de uma série de mudanças
sociais, legislativas e institucionais que culminaram com a promulgação da Lei Maria da
Penha e, mais recentemente, com a Lei do Feminicídio, que reacenderam o debate acerca dos
desejos punitivistas e a demanda por inserção das pautas feministas na agenda do Poder
Judiciário. Por fim, foram feitos apontamentos iniciais para o capítulo final da pesquisa, na
qual pretende-se comprovar, através do relacionamento de dados estatísticos, a existência de
uma relação entre o gênero de quem mata e de quem morre, bem como sobre a influência do
marcador de raça na análise destes delitos, justificando-se a opção político-criminal de
acolhimento da qualificadora do feminicídio no Direito Penal Brasileiro.
Bibliografia
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março de 2017. Disponível em: <http://transrespect.org/en/tdov-2017-tmm-update/> Acesso
em 27 de fev. 2018.
1
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN, discente em Psicologia; nathalycrfernandes@gmail.com.
2
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN; doutoranda pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, Mestra
em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, graduada em Psicologia pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; carolina.s.j.natividade@gmail.com.
Introdução.
Este trabalho foi pensado a partir da questão norteadora sobre a violência contra a
mulher, investigando o que naturaliza essa violência. O interesse por esse estudo surgiu frente
a questionamentos com relação à violência contra a mulher. Problematizou-se o assunto
levantando algumas questões: a) com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade,
quais fatores promovem essa violência?; b) quais aspectos da cultura que perpetuam e/ou
validam a violência contra a mulher?. A justificava maior para o desenvolvimento deste
estudo foi o de contribuir com a pesquisa sobre a naturalização da violência contra a mulher.
Objetiva-se de modo geral refletir sobre os processos que naturalizam e promovem a
violência contra a mulher, do qual se desdobram os seguintes objetivos: destacar quais fatores
promovem essa violência com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade;
analisar aspectos da cultura que perpetuam e/ou validam a violência contra a mulher.
No âmbito acadêmico e profissional esse trabalho possibilita aprofundar o
conhecimento sobre questões de gênero e sexualidade e aspectos da cultura que naturalizam a
violência contra a mulher. Provoca reflexão sobre um tema que é muito presente em nossa
sociedade, sendo assim de total relevância. Proporciona visibilidade às necessidades dessa
população, frente ao entendimento de como se constrói e se mantêm a naturalização da
violência contra a mulher.
Esse estudo demonstra relevância social, pois oportuniza reflexão sobre o tema,
permitindo a identificação de aspectos da realidade das mulheres que são muito significantes
para o enfrentamento da violência contra essa população, violência essa que está presente em
diversos espaços, em casa, na rua e até no ambiente virtual, essa pesquisa contribui também
para a produção científica sobre a temática.
Desenvolvimento.
A violência contra a mulher refere-se a um padrão de comportamento abusivo,
conforme Dias; Cotrim (2015, p. 281) é uma grave violação de direitos humanos, em suas
múltiplas faces: simbólica, moral, sexual ou física, dentre outras. A violência simbólica se
constrói sob forma de dominação que “(...) se ampara em mecanismos simbólicos de poder a
fim de fazer com que as pessoas em situação de violência não compreendam tal conjuntura
como violência, aceitando-a (...)” (ABRAMOVAY; CUNHA; CALAF, 2009 apud VIANA;
SOUSA, 2014 p. 160), realiza-se através de símbolos e signos culturais. Sobre a violência
moral Osterne (2011 apud VIANA; SOUSA, 2014 p. 160) diz que afeta direta ou
indiretamente a dignidade, a moral da vítima, compreende-se como qualquer conduta
discriminatória. Já a violência sexual refere-se a “(...) toda ação em que, numa relação de
poder – por meio de força física, coerção, sedução ou intimidação psicológica –, se obriga
uma pessoa a praticar ou a se submeter à relação sexual”. (LABRONICI; FEGADOLI;
CORREA, 2010 apud VIANA; SOUSA, 2014 p. 160). A violência física pode ser
compreeendida como qualquer agravo produzido através de força física ou algum tipo de
arma ou instrumento com a finalidade de causar danos à integridade corporal de outro sujeito,
esses danos vão desde leve dor até homicício.
A violência é um fenômeno histórico, cultural, sustentado socialmente, utilizado para
estabelecer poder e controle. A violência contra a mulher é:
Resultado de uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida
tanto por homens como por mulheres. A autora define violência como uma ação que
transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar,
explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como
“sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. (CHAUÍ 1985 apud
SANTOS; IZUMINO 2005 p. 149)
homens e mulheres. É preciso levarmos em conta que gênero e poder são suscetíveis a
questionamentos e mudanças, pois são relações historicamente criadas.
Ao pensar em naturalização da violência contra a mulher, faz-se necessário refletir
sobre as construções sociais de gênero e sexualidade pois:
Desde cedo a sociedade passa a tratar meninas e meninos de forma diferente,
atribuindo valores e desafios diferentes para cada um, diferenciações sustentadas em
razão do sexo, o que é feito de uma forma bastante naturalizada, a fim de criar na
sociedade a cultura de que homens e mulheres, em razão de suas diferenças
biológicas, possuem comportamentos e características sociais diferentes. Constrói-
se, então, a ideia de que os meninos – e, consequentemente, os homens – são mais
fortes, mais práticos, menos emocionais, menos cuidados, mais violentos e
impulsivos (e tudo isso é retirado arbitrariamente das características femininas).
(SANTOS; BUSSINGUER, 2017 p. 3)
sobre seu próprio corpo e vontades, fazendo com que seja vista apenas como um objeto de
satisfação do homem.
Beijos roubados, assobios, olhares e comentários são comportamentos que, mesmo
sem denotar ato sexual, configuram uma forma de exercer o poder e a virilidade
moral dos homens sobre os corpos femininos. E, ao silêncio da mulher, a
manutenção do status quo é perpetuada. (SANTOS, 2015 p. 29)
que houve uma provocação da vítima, que o abuso foi merecido. Dessa forma o patriarcado, o
machismo, a misoginia e a cultura do estupro, uma vez que legitima a superioridade
masculina nas relações, são fatores que promovem e/ou perpetuam a naturalização e
invisibilização da violência contra as mulheres.
De acordo com dados do relógio da violência – Institudo Maria da Penha, no Brasil a
cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal; a cada 6.3 segundos; uma
mulher é vítima de ameaça de violência; a cada 6.9 segundos, uma mulher é vítima de
perseguição; a cada 7.2 segundos uma mulher é vítima de violência física; a cada 2 minutos
uma mulher é vítima de arma de fogo; a cada 16.6 segundos uma mulher é vítima de ameaça
com faca ou arma de fogo; a cada 22.5 segundos uma mulher é vítima de espancamento ou
tentativa de estrangulamento; a cada 1.4 segundo, uma mulher é vítima de assédio; a cada 1.5
segundo uma mulher é vítima de assédio na rua; a cada 4.6 segundos, uma mulher é vítima de
assédio no trabalho; a cada 6.1 segundos uma mulher é vítima de assédio físico em transporte
público.
Conhecer e refletir sobre esses dados se faz necessário para o enfrentamento da
violência contra a mulher, violência essa que muitas vezes ocorre dentro da família da vítima,
vale lembrar que muitos casos não são notificados às autoridades, agravando ainda mais a
situação de mulheres vítimas de violência, o que torna os indicadores sobre essa temática,
ainda mais assustadores. A violência física e/ou assédio sexual está relacionado à manutenção
de uma relação desigual de poder, que autoriza aos homens a violação do corpo e dos direitos
das mulheres, em virtude da reafirmação de uma masculinidade que se coloca superior às
mulheres. É o que acontece com o estupro ou com os assobios e provocações dirigidas às
mulheres nas ruas, o que reproduz a ideia de que, na sua posição masculina, tem o direito de
julgar, avaliar ou mesmo de controlar a sexualidade e o corpo de outra pessoa. É necessário,
portanto, desconstruir essa masculinidade, questionar esse “modo de ser homem” que
reproduz e legitima uma opressão sexista, é preciso pensar sobre possíveis formas de
enfrentamento dos mecanismos que produzem homens ofensores, agressores ou estupradores.
Os dados encontrados na pesquisa acima citada levam a questionar sobre em que
local a mulher pode estar segura. Vale lembrar que o ambiente doméstico se constitui, muitas
vezes um local de vulnerabilidade para as mulheres:
Além da maior vulnerabilidade da mulher no lar, dada a sua maior exposição ao
agressor e a distância das vistas do público (invisibilidade do problema), é comum
que o agressor prevaleça-se desse contexto de convivência para manter coagida a
mulher, desencorajando-a a noticiar a violência sofrida aos familiares, amigos ou às
autoridades. Essa situação fataliza o quadro de violência e a mulher, sentindo-se sem
meios para interromper a relação, toma-o por inevitável. Submetida a um limite
sempre cruel e não raro fatal, a mulher acaba aceitando o papel de vítima de
violência doméstica. O agressor conhece a condição privilegiada decorrente de uma
relação de convívio, intimidade e privacidade que mantém ou tenha mantido com a
vítima, prevalecendo-se dela para perpetrar suas atitudes violentas. De fato, seguro
do controle do “seu” território, dificilmente exposto a testemunhas o indivíduo
violento aumenta seu potencial ofensivo, adquirindo a conformação de um assassino
em potencial. (BIANCHINI, 2012, s/p)
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JACÓ-VILELA, AM., and SATO, L., orgs. Diálogos em psicologia social [online]. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2012. p. 147-167.
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Mestranda em Psicologia Social e Institucional (UEL/PR);
mariagiuliacarlessi@gmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Doutor em Filosofia (UNICAMP) e Pós-Doutor em
Epistemologia (EHESS/Paris – França); marcosnalli@yahoo.com
Introdução
Como um crime é feito? Não, a pergunta não é pela melhor forma de executar um
crime, a busca pelo crime perfeito. A questão é outra, a questão é entender como se dá a
tipificação jurídica de um crime. Há um paradoxo como ponto de partida na racionalidade
taxonômica e tipológica do Direito de que ele sempre parte do fato, da empiricidade do fato,
para daí poder regulamentá-lo. Mas para regulamentar algo que ainda não se deu no âmbito
jurídico, que não tem, não dispõe de estatuto jurídico, como reconhecê-lo como tal?
A razão de apresentar tal comunicação tem como finalidade tentar captar como a
produção discursiva de um dossiê – o recém-publicado Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: De
2014 até 2017 de autoria de Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe Soares e Maria
Clara Dias – contribui para pensar como um terreno de objetividade pode ser constituído
discursivamente e desse modo impactar, forçar, o reconhecimento de um ato, um ato
criminoso duplamente qualificado: a do assassínio de pessoas por sua condição mulher e por
sua condição lésbica. É como se o lesbocídio fosse uma especificação, não apenas
terminológico-conceitual, mas também objetiva, diante do crime do feminicídio. É buscar
forçar um reconhecimento, o de criar um campo de visibilidade discursiva que permite
constituir um ato com uma determinada tipificação criminológica, mas que ainda não é da
ordem do direito. É criar, por discursos, uma objetividade específica, um ato alçado à
condição de fenômeno social e de crime; portanto fazer um estatuto, tanto social quanto
jurídico, constituído pelo discurso, ou melhor pelos discursos acionados e estruturados no
corpo da malha discursiva do dossiê.
Inevitavelmente há de se fazer um tratamento que contraponha o dossiê, o texto, com
a produção discursiva, mais próprias ao Direito, com a formação discursiva do objeto do
feminicídio. Ela poderá explicitar em certa medida como o dossiê se coloca como uma fenda
permitindo desdobramentos outros e outras atenções e especificações, e assim forçar desde
fora do Direito a necessidade de pensar este outro ato. Quer dizer, uma objetividade não é
constituída apenas pelo universo fechado do Direito como instituído, mas permeado,
atravessado por movimentos outros advindos de outras origens e fontes. Antes, aqui se trata
de intentar forçar ao Direito pelo reconhecimento e tipificação do ato de lesbocídio.
Este trabalho busca apresentar brevemente os resultados obtidos pelo Dossiê e analisar
os discursos construídos sobre estes utilizando como metodologia a leitura e análise do dossiê,
utilizando de ferramentas conceituais de Michel Foucault. Dado que a arqueologia não é um
método mas sim um procedimento, uma forma de pensar a posição do pesquisador frente a
determinado objeto, adotamos tal postura para pensar a construção de um dossiê sobre o
lesbocídio – como acontecimento – e traçar seu esforço de ser reconhecido pelo direito quanto
fato, o que possibilitaria seu esquadrinhamento, definição, possível legislação e punição frente
a esse tipo de violência contra uma população sistematicamente excluída e não-dita que, ao
compilar e publicar o dossiê, coloca em circulação tal discurso que inquieta, abrindo
condições de possibilidade de fala e proliferação deste, tornando-o assim fato.
Desenvolvimento
A noção de discurso em Foucault é tema recorrente em sua obra e marca uma ruptura
radical do autor com as noções estruturalistas vigentes da época, tanto da linguística, quanto
da filosofia e história por confrontar conceitos estabelecidos nas ciências e, inclusive,
questionar o estatuto de verdade dos mesmos. Em sua obra Arqueologia do Saber, publicada
originalmente em 1969, Foucault apresenta o procedimento arqueológico, uma forma de
manusear o documento e conceber a história, se afastando das ideias da história clássica
pautada na linearidade do tempo e do discurso e sua busca pela gênese e verdade dos fatos
históricos. Foucault (2008) afasta-se da noção clássica da história e busca compreendê-la a
partir da descontinuidade, questionando a história dos grandes fatos históricos, seus
documentos e monumentos tidos como verdadeiros e, ao invés de descrevê-los, passa a
questionar como um conceito produz coisas, concebendo o discurso em sua materialidade
produtora. Para isso, coloca o discurso como série de acontecimentos, cuja análise pretende
estabelecer e descrever as relações entre eles e com os acontecimentos de outras ordens –
política, econômica, institucional. E o acontecimento coloca o discurso na ordem prática, da
ação e produção, na fronteira tênue do material/imaterial:
“Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem
qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se
efetiva, que é efeito; (...) este tênue deslocamento, temo reconhecer nele como
que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz
mesma do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade.”
(FOUCAULT, 1996, p. 57-59)
das ciências humanas, compreende a verdade não como um fato objetivo, mas como uma
produção e nesse sentido, como um efeito, oriundo de regimes de verdades imanentes aos
discursos (isto é, as formações discursivas) dos quais são um de seus produtos.
“no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um
dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se
pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu
chamo de acontecimento.” (FOUCAULT, 2010, p. 255)
Quem fala?
De onde fala?
Porque fala?
“Em 2017, foram registradas 54 mortes de lésbicas no Brasil (...) Houve um aumento
de mais de 237% no número de casos de 2014 para 2017 e de 80% em relação ao
mesmo período do ano anterior. Foi o maior número de casos registrados em toda a
história das pesquisas lesbocídios no Brasil. Foi também o maior número de casos de
suicídios registrados em toda a história das pesquisas lesbocídios no Brasil, 19 casos
só neste ano, representando 32% dos suicídios de toda a comunidade LGBT+ no
Brasil, no ano.” (PERES; SOARES; DIAS, 2018, p.62)
Considerações finais
caso, um crime – de tal modo que, para além dos poderes constituídos -governos, magistrados
e legislativo - mas a sociedade como um todo, se veem obrigados a reconhecer o fenômeno,
outrora invisível e ignorado, agora evidente e problemático.
Referências
FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos IV Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.
PERES, Milena Cristina Carneiro Peres; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara.
Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018.
Introdução
1
Formada pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP/USP), bacharela; atualmente, aluna especial em
duas disciplinas do Programa de Pós-gradução em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara (FCLAR/Unesp) e aluna da especialização em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo
Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO). bruna.franchini@usp.br
vítima; inclusive, muitas vezes, tal compartilhamento vinha acompanhado de críticas à sua
idoneidade. Já não bastasse o trauma sofrido, a sobrevivente ainda tinha de lidar com milhares
de pessoas culpando-a pelo acontecido – automaticamente desresponsabilizando os próprios
estupradores.
Por que isso acontece? Por que a vítima de uma violência sexual é quase sempre
culpabilizada, seja ela jovem, idosa, branca, negra, rica ou pobre? Qual é a lógica por trás
desse raciocínio de que a violência sexual cometida por homens não é tão errada assim? E
qual é o papel desempenhado pela mídia e pela publicidade dentro desse fenômeno que
convencionamos chamar “cultura do estupro”?
A filósofa existencialista com isso quer dizer que a mulher se constitui enquanto
negação do que o homem é – ou melhor, o homem se constitui enquanto ser humano; a
mulher, enquanto fêmea. Ao homem são atribuídas as características de um ser humano, ao
ponto de a palavra “homem” ser seu sinônimo; enquanto que à mulher resta o sexo, a
animalidade (não à toa ao longo da história mulheres foram por vezes consideradas homens
defeituosos).
Eventualmente surgiria o embate: aquele que consideramos “Outro”, por sua vez,
também se considera “Um” e nos considera “Outros”, e disso surge a reciprocidade, a
conscientização de que, em dada relação, é-se Um e Outro ao mesmo tempo. Porém, não foi o
que aconteceu na relação entre os sexos: a mulher não se reconheceu, nunca, enquanto Um:
ela se sujeitou a esse ponto de vista alheio a ela mesma (BEAUVOIR, 1949, a). Essa sujeição
é fruto da própria construção social do que significa ser mulher, como a autora depois
exploraria no volume II, iniciado pela célebre frase:
NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
A mulher não opera esse retorno justamente por conta de forças alheias a sua
vontade que se beneficiam dessa manutenção da mulher em sua imanência – o próprio
patriarcado. E a limitação existencial da mulher à condição de “Outro” – ou, em outros
termos, a queda da transcendência na imanência – ocorre a “a degradação da existência em
si”, a impossibilidade de realização da mulher em todas as suas possibilidades. Ela
permanece, então, no status (ainda filosófico) de coisa. No entanto, Beauvoir não se
aprofunda – nem intencionava fazê-lo – nas origens materiais do patriarcado e em como esse
sistema se apresentou ao longo da história, buscando especular a origem da dominação
masculina apenas como guia para compreensão da condição feminina atual (e o que se pode
fazer para revertê-la).
Uma análise profunda desse sistema chamado patriarcado viria depois. Gerda
Lerner, em 1986, publica um extenso trabalho de antropologia – The creation of patriarchy –
fruto de anos de pesquisa a respeito justamente das origens e da criação do patriarcado.
Analisando como se davam as relações sociais por meio de documentos históricos, Lerner
reafirma o que a antropologia feminista já vinha falando havia tempo: a dominação masculina
não poderia ser natural, uma vez que, se o fosse, seria universal (LERNER, 1986, p. 7); e a
antropologia foi feliz em encontrar exemplos de sociedade em que a divisão dos sexos não
colocava um em superioridade ao outro – e que, ainda que houvesse uma divisão sexual do
trabalho, ambos os sexos atuavam reciprocamente com a busca mútua de manutenção daquela
sociedade.
Ela vai além ao refutar a hipótese de Engels de que a dominação da mulher havia
se iniciado com o surgimento da propriedade privada. Lerner demonstra, nos capítulos um e
dois, que a exploração das capacidades sexual e reprodutiva das mulheres pelos homens
ocorreu antes do surgimento da propriedade privada e da divisão da sociedade em classes. Nas
formas mais arcaicas de sociedade, a mulher era utilizada pelo patriarca da família como
moeda de troca (tanto para fazer alianças quanto para evitar conflitos), mas também porque
mais mulheres em uma sociedade significava mais crianças (consequentemente, mais força de
trabalho). Assim, mulheres eram trocadas e tinham valor da mesma forma que terra e outros
bens materiais. Se um grupo ou civilização, por outro lado, atacava e destruía outro, as
mulheres não eram mortas, como homens, mas mantidas e escravizadas – e sua prole com o
patriarca era de propriedade deste, (LERNER, 1986, pp. 45-46, 212-214). Lerner diz que a
classe não é uma construção social separada do gênero; a classe é expressa em termos de
gênero (LERNER, 1986, p. 213).
Ela vai adiante e mostra como ao longo da história a mulher foi feita de objeto
(dotada de valor econômico) devido a suas capacidades sexuais e reprodutivas. Primeiro
enquanto escrava, depois por meio de casamentos arranjados, depois enquanto esposa; sempre
houve um papel a ser desempenhado pela mulher.
Se o patriarcado, da forma como descrito por Lerner, é o sistema caracterizado
pela supremacia masculina (e pela correspondente subordinação feminina), as relações sociais
de sexo são a esfera onde a ideologia patriarcal se manifesta:
A constância dos sexos e a constância da escravidão provêm da mesma
crença, e, como não há escravos sem mestres, não há mulheres sem homens.
A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura
quando mascara, com base na natureza, a oposição social entre homens e
mulheres. Masculino/feminino, homem/mulher são categorias que servem
para esconder o fato de que diferenças sociais sempre pertencem a uma
ordem econômica, política e ideológica. [...] Porque não há sexo. Não há
nada além de um sexo que é oprimido e um sexo que oprime. É a opressão
que cria o sexo, e não o contrário. O contrário seria dizer que o sexo cria a
opressão, ou dizer que a causa (origem) da opressão pode ser encontrada no
próprio sexo, em uma divisão natural de sexos que pré-existe à (ou que
existe fora da) sociedade. (tradução livre) (WITTIG, 1996, p. 25)
Kathleen Gough, no ensaio The Origin of the Family, também analisa o poder
masculino, desta vez, enquanto materializado no patriarcado por meio da família e do
casamento. São apontadas oito características fundamentais deste poder manifestadas tanto
A forma como a mulher foi socializada ao longo da história e como somos ainda
hoje criadas contribui para a formatação de um contexto propício à redução de nossa
resistência frente ao estupro (para usar as palavras da autora). Mais adiante, ela continua:
Mulheres são treinadas para serem vítimas de estupro. O simples
aprendizado da palavra “estupro” já é uma tomada de instruções sobre a
relação de poder entre homens e mulheres. [...] (tradução livre)
(BROWNMILLER, 1988, p. 309)
Ana Veloso afirma que a mídia constitui “sustentáculos para o exercício do poder
pelas elites”, uma vez que influencia a “produção mental” e é responsável pela “massificação
das ideias de uma época” (VELOSO, 2014). É nesse sentido – sobre a questão da mídia e
reprodução de discursos ligados à manutenção do poder – que Brittos e Gastaldo afirmam:
[...] o ato de enunciação possui uma dimensão sociológica, na medida em
que toda ação social é um ato de comunicação. Assim, quando alguém fala,
o faz de algum lugar, com certa autoridade e dirigindo-se a alguém. Todas
estas instâncias do ato de enunciação possuem uma dimensão social, que
tornam o discurso um instrumento de poder. Este poder se manifesta nas
Thompson explora mais a fundo essa relação entre discurso e poder, que ele
define como
a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a capacidade
de intervir no curso dos acontecimentos e em suas consequências. No
exercício do poder, os indivíduos empregam os recursos que lhe são
disponíveis; recursos são os meios que lhes possibilitam alcançar
efetivamente seus objetivos e interesses. [...] Há recursos controlados
pessoalmente, e há também recursos acumulados dentro de organizações
institucionais, que são bases importantes para o exercício do poder.
Indivíduos que ocupam posições dominantes dentro de grandes instituições
podem dispor de vastos recursos que os tornam capazes de tomar decisões e
perseguir objetivos que têm consequências de longo alcance. (THOMPSON,
1998)
O autor adota a distinção proposta por Michael Mann das quatro formas de poder:
econômico, político, coercitivo e simbólico. Essas distinções, de caráter analítico, relacionam
cada poder a uma atividade humana específica e a seus recursos específicos. De acordo com a
natureza de cada poder, ele é exercido, majoritariamente, por determinadas instituições ou
grupos sociais.
O poder simbólico ou cultural nasce da atividade de produção, transmissão e
recepção do significado das formas simbólicas, estando intimamente ligado, portanto, à
produção de conhecimento, à comunicação e à interpretação. Os seres humanos estão
constantemente em processo de comunicação e em atividades de expressão de si e de
interpretação dos símbolos utilizados pelos outros. É nesse processo que as instituições que
detêm o poder simbólico vão atuar: elas têm a capacidade de valorar acontecimentos, ações,
fenômenos e outras instituições.
As relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de
poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou
simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas
relações e que, com o dom ou o potlatch, podem acumular poder simbólico.
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem
para assegurar a dominação de uma classe sobre outra. (BOURDIEU, 2000)
classe sobre a outra – no conceito marxista de classe – do discurso midiático. Mas, mais do
que reproduzir (e produzir) conteúdos específicos de uma classe social, a mídia hegemônica
também enxerga etnia, religião, idade e, consequentemente, sexo. Mesmo que essas categorias
não estejam inseridas na teoria original de Bourdieu, a realidade material acerca das pessoas
por trás da produção de mensagens na mídia já predetermina o tipo de conteúdo que vai ser
produzido – se só constam homens brancos e heterossexuais na produção de conteúdo X, esse
conteúdo vai ser marcado pelo olhar de homens brancos e heterossexuais, por exemplo.
A mídia, portanto, é um centro de poder simbólico, uma vez que não só produz e
veicula mensagens e informações, como também faz a mediação da informação – que, por si,
é uma violência simbólica, uma vez que age como “filtro”, impedindo que se reconheça o
conteúdo total da informação e lhe impondo sentidos predeterminados (OLIVEIRA, 2009).
Os meios de comunicação, assim, seguem uma agenda política e ideológica:
[os meios de comunicação] possuem um mecanismo ideológico próprio. Ao
selecionar, ordenar e enunciar os acontecimentos da história, os meios de
comunicação apresentam-se como um lugar de tensão em que operam forças
que levam tanto ao enfraquecimento da memória e ao esquecimento, quanto
à sua estabilização. [...] À proporção que associam comportamentos, valores,
atitudes a um ou a outro gênero, as representações midiáticas ajudam a
formular o que reconhecemos feminilidade e masculinidade, estando
imbuídas, portanto, as relações de poder entre os gêneros, reiterando e
construindo desigualdades. A mídia forma opinião, uma opinião deformada
sobre a imagem da mulher, criando uma falsa realidade sobre ela.
(CHAVES, 2015)
Conclusão
Referências
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question: French materialist feminism. Taylor & Francis Ltd, 1996.
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL); Mestranda em enfermagem; E-mail:
b eatrizsanti ago 1994@h otmail.com
Introdução.
A população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) são vítimas diárias de
homofobia, exemplo disso são as ofensas verbais como: bichas, veados, sapatonas entre
outras (Venturi, 2008). A diversidade sexual é categorizada em: heterossexuais, bissexuais,
homossexuais (gays e lésbicas) e, também, transgêneros, ou seja, travestis e transexuais e
Drag Queen (DE JESUS, 2012). Pelo contexto social e cultural ocorre a atribuição do gênero
presente no corpo desde o nascimento. Ora, cada ser humano têm identidades de gênero,
distintas entre si, sejam quais forem os seus atributos corporais (COLLING, 2013).
Gênero e sexualidade são poucos discutidos em ambiente escolar, logo há necessidade
de um mediador de informações para esclarecer dúvidas acerca da sexualidade para os
adolescentes e a importância social da identidade de gênero (PELLOSO, CARVALHO,
HIGARASHI, 2008). Os valores culturais e sociais são construídos por círculo de vivências e
interações sociais, nos quais descrevem os gêneros masculinos e femininos, logo há
necessidade dos profissionais que exercem função na educação e na saúde trabalharem com
esse tema, que muitas vezes passam despercebidos pelos mesmos, utilizando uma abordagem
do conhecimento e reconhecimento das diferenças.
Embora sendo vista como um tabu social, as questões de gênero devem ser trabalhadas
com enfoque na promoção de saúde e assim a prevenção de doenças, conceituando a
igualdade e estabilização de valores e as técnicas de diferenciação e preconceitos que afeta
tanto a democracia quanto autonomia do ser humano em si. Falar em sexualidade é um
desafio para os profissionais da educação e da saúde, mas que são fundamentais (PELLOSO,
CARVALHO, HIGARASHI,2008).
Vale lembrar, que a escolha do tema surgiu após o estágio de enfermagem no Caps
AD, no qual havia vários pacientes com histórico de tentativa de suicídio, depressão, dentre
outras doenças, decorrente do preconceito vivenciado em sua vida, o que despertou o interesse
de elaborar um estudo para obter uma visão mais ampla, sobre os preconceitos vivenciados no
dia a dia da comunidade LGBT. Enquanto Enfermeira, atuando em uma equipe de Urgência e
Emergência no Pronto Socorro de médio porte, foi possível identificar a necessidade de
informações à população e o planejamento de ações em relação à aceitação das pessoas
LGBTs como um todo. Acredita-se que muitas violências tanto físicas quanto verbais podem
ser evitadas por meio de orientações de Enfermagem a comunidade. Neste contexto podemos
destacar que os profissionais da Estratégia Saúde da família podem ser capacitados para levar
Sexualidade
A sexualidade pode ser definida como uma marca única do ser humano, que
transcende a consideração meramente biológica, centrada na reprodução das capacidades
instintivas, ela é a própria vivência e significação do sexo (Nunes e Silva, 2006). Já segundo
Bonfim (2010), a sexualidade aponta uma característica íntima em nosso ser, não relacionado
ao sexo que é definido por uma marca biológica, mas sexualidade como marca humana.
A sexualidade se configura como um dos núcleos estruturantes que formam a
totalidade humana, sendo uma das dimensões humanas mais complexas. Atualmente é
interpretada e transmitida pela sociedade, na maioria das vezes, ainda de maneira reducionista
e repressiva, expressa na forma de relação sexual entre um homem e uma mulher (ato sexual),
a procriação da espécie entre os mesmos e os órgãos reprodutivos (pênis e vagina), tornando
se difícil aceitação da LGBT, visto que a sociedade está inserida algumas vezes no modelo
tradicional homem e mulher. Nessa perspectiva, a sexualidade diz respeito aos nossos
sentimentos, e não apenas a biologia centrada na reprodução das capacidades instintivas do
ser humano.
Vale destacar que a identidade sexual é a forma de identificar-se psicologicamente
como homem ou mulher, pode ser denominado de uma expressão simples de sexo psicológico
(FIGUEIRÓ, 2007). Já a identidade de gênero é uma construção social, no qual o indivíduo se
identifica para si próprio e aos que o rodeiam, sobre à percepção a si como ser “masculino” ou
“feminino”, ou ambos (Bonfim, 2010).
Diversidade sexual
Discriminações
a) Livros:
VENTURI, Gustavo. Intolerância à diversidade sexual. Teoria e Debate, v. 21, n. 78, 2008
b) Artigos em coletâneas:
BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2013. Brasília: Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, 2016.
COLLING, Leandro. A igualdade não faz o meu gênero–Em defesa das políticas das
diferenças para o respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. Revista Semestral do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, v. 3, n. 2, p. 405,
2013.
JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2012.
MOTT, L., & CERQUEIRA, M. Causa mortis: homofobia. Violação de direitos humanos e
assassinato de homossexuais no Brasil. Salvador, BA: Editora Grupo Gay da Bahia,2000.
Este artigo trata de um relato de experiência acerca do atendimento prestado a homens autores
de violência de gênero contra as mulheres, realizado durante os anos de 2016 e 2018, em um
serviço que atua no enfrentamento de todas as formas de violências comuns às relações de
intimidade em um município do interior do Estado do Rio Grande do Sul e objetiva apresentar
a discussão reflexiva sobre a realização de grupos com esses homens. O atendimento se
sustenta na identificação de distorções cognitivas; dos estereótipos de gênero e fatores
externos que possam estressar e vulnerabilizar os indivíduos, para então buscar o
desenvolvimento emocional e empático e a corresponsabilidade doméstica e familiar. O que
se deixa vislumbrar, após a realização de 10 grupos é que inicialmente os participantes
revoltam-se por estarem inseridos no trabalho mas posteriormente associam a participação a
ganhos para as suas vidas, observamos melhorias nas questões de empatia, de melhor
comunicação e de evolução no que tange a auto conhecimento e ao convívio familiar. Foi
realizada testagem psicológica nos grupos e nas devoluções se observou dificuldades em
manejar raiva, descrever emoções e resolver conflitos de forma mais acertiva. Além destes
destaca-se a importância do trabalho multiprofissional e da busca constante em atualizações.
Palavras Chaves: Violência de Gênero, Masculinidades, Reeducação.
1
Psicológa pela Universidade Católica de Pelotas (2011 Aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós
Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas. (Bolsista CAPES) E—mail:
duilia.carvalho@gmail.com
2
Coordenadora do Núcleo de Atenção a Criança e ao Adolescente; Doutora em Psicologia (2018) pelo Programa
de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
E-mail: gscober@terra.com.br.
³Professora adjunta do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal de Pelotas; Doutorado em Enfermagem em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (2008); E-mail: mandagara@hotmail.com
Introdução:
Diante de uma produção teórica que exaustivamente tem sido realizada articulando
gênero e violência; sexualidade e violência, enfocando primordialmente as vítimas, propõe-se
trilhar esse caminho com o foco direcionado para a reflexão acerca da constituição das
masculinidades, em específico aquelas que se utilizam da violência nas relações de
intimidade.
Uma tendência recorrente na produção científica e, bandeira de algumas das
perspectivas feministas, é examinar a temática da Violência contra as mulheres a partir de
uma polarização dos lugares de homens e mulheres, em que a violência sofrida pela mulher é
entendida como uma violência estruturada por um padrão de relações hierárquico
(MENEGUEL et al., 2000), legitimado por aspectos culturais decorrentes da socialização de
gênero, no qual as mulheres sofreriam violência por serem mulheres (SCHRAIBER &
D’OLIVEIRA, 1999), e os homens, em contrapartida, como aqueles que exercem
modalidades de vitimização física, psicológica e/ou sexual de forma exclusiva ou combinada
e intencional sobre a pessoa com quem mantém um vínculo de intimidade: sua esposa ou
companheira (CORSI, 2004; HEISE, PITANGUY E GERMAIN, 1994)
De modo a pensar a violência de gênero contra mulheres, a partir do trabalho com
homens autores de violência, trazemos para compartilhar o relato da experiência acerca do
atendimento prestado a homens autores de violência de gênero contra as mulheres e, objetiva
promover a discussão reflexiva sobre o desenvolvimento de atividades grupais para esses
homens, tomando como analisador o modo como as masculinidades são forjadas socialmente,
afastando-se das explicações positivistas dos papéis sociais e/ou aquelas fundamentadas nas
explicações biológicas. Os atendimentos acontecem no Núcleo de Atenção à Criança e ao
Adolescentes – NACA que há 18 anos atua no enfrentamento de todas as formas de violências
comuns às relações de intimidade no município de Pelotas/RS.
Todos os participantes dos grupos foram encaminhados pelo Juizado Especial da
Violência Doméstica, Centro de Atendimento a Mulheres em situação de Violência e, Vara de
Execuções Criminais.
Os primeiros programas de atenção a homens autores de violência surgiram nos
Estados Unidos e Canadá na década de 80, seguidos pela Austrália, França, Reino Unido e
países escandinavos, na década de 90. Na América Latina, o pioneiro foi a Argentina a criar
intervenções junto a essa população, depois México, Nicarágua e Costa Rica (NATIVIDADE,
et al, 2007)
Deste modo, olhar para a realidade brasileira e a maneira como foi se constituindo a
agenda pública de combate a violência contra as mulheres, parece um bom meio para que
possamos compreender os caminhos e os descaminhos percorridos ao longo dessas últimas
três, quase quatro décadas de forte protagonismo dos movimentos que lutam pelo fim dessa
forma de violência.
O município de Pelotas conta com uma rede de proteção à mulher vítima bem
estruturada e que vem se consolidando graças a articulação de inúmeros serviços e
dispositivos permanentemente engajados e que resistem aos reveses das mudanças de
governo, que inevitavelmente podem afetar a agenda pública.
E é dessa de articulação e mobilização permanente, a partir das discussões na Rede
de Atenção a Mulher Vítima de Violência que nasceu a ideia de construir uma estratégia que
pudesse acolher e trabalhar com os homens autores de violência com o intuito de atender
inicialmente as expectativas das mulheres que, em atendimento, manifestavam o desejo pela
mudança de comportamento por parte dos parceiros.
Assim, em julho de 2015 passou a ser executado no município o projeto “violência
por parceiros íntimos: histórias que a gente precisa saber” e os primeiros grupos formaram-se
então por homens encaminhados pelo Centro de Referência em Atendimento a Mulher Vítima
de violência e pelo Juízado Especializado em Violência Doméstica, posteriormente a Vara de
Execuções Criminais passou de igual forma a encaminhar homens para atendimento.
Metodologia
Segundo SANTOS (2011) o relato de experiência trata-se de uma história
informativa e como a mesma é refletida no contexto que está inserida. Precisa conter os
resultados obtidos e lições aprendidas com exemplos da prática.
Neste relato de experiência traremos dados e informações acerca dos grupos
reflexivos por entender que a construção do grupo e as características do trabaho realizado
contribui de forma concreta aos estudos deste modelo de trabalho.
A experiência em si
Entre o ano de 2016 até março de 2018, foram atendidos cerca de 100 homens,
divididos em dez grupos distintos. Os primeiros encontros tinham como objetivo
contextualizar o objetivo do grupo no qual o usuário estava inserido, métodos de trabalho que
seriam utilizados, formação de vínculos entre os participantes e com a equipe técnica.
Ainda nos primeiros encontros trabalhamos através de dinâmicas de grupo o papel de
homem e mulher na sociedade e o quanto esses pais estão impregnados em nosso
funcionamento mesmo que não percebamos.
Ainda nos encontros iniciais realizamos um encontro destinado a discussões sobre a
Lei Maria da Penha(LMP) e os impactos dessa legislazação, trabalhando com os homens
como funcionam as leis e as razões pelas quais o Estado precisa intervir em questões tão
íntimas. Foram realizadas explicações sobre os tipos de violência e discussão de casos que o
mesmo presenciram, vivenciaram ou tomaram conhecimento através de mídias.
Dedicamos um encontro às concepções de gênero e papéis sociais construídos, esse
trabalho foi realizado através de dinâmica que tinha como objetivo que os participantes
escolhessem brinquedos que “lembrassem” sua infância. Dispusemos na sala uma série de
brinquedos: bonecas, panelinhas, robos, carrinhos, bolas de futebol, ferramentas, maquiagens,
lápis e papel. Após a escolha do brinquedo os homens deveriam expor ao grupo as razões da
escolha e o que esse brinquedo tem de relação com a sua história. Nesse momento foi possível
observar o peso que escolher “brinquedos de menina” impactava e amedronatava os homens.
E após a divisão das escolhas realizávamos roda de conversa sobre como nasceu a
importância dos papéis e o quanto os homens acabam também embuidos pelos ditos de que
homem para ser homem precisa atender a alguns pontos que nem sempre são a escolha de
todos.
Resultados e Discussão
Para MISTURA (2015) as medidas de reeducação dos homens autores de violência
ainda são escassas no cenário brasileiro. Mesmo assim, consideramos que o enfrentamento a
violência através de atitudes de educação pode ser um dispositivo importante ao combate de
um problema que atinge não apenas as mulheres, mas os espaços de crescimento de crianças e
adolescentes.
A experiência de trabalhar com os homens autores de violência reforça inicialmente
como BILLAND E PAIVA (2016) destaca que a maioria dos homens autores de violência
contra mulheres não se responsabiliza por seus atos espontaneamente, resiste aos esforços dos
facilitadores para levá-los a expressar empatia e fragilidades e não adere a intervenções que
exigem que assumam outros discursos. Ao longo do processo dos atendimentos pode-se
observar a crescente evolução no sentido de refletir sobre as atitudes e pensamentos violentos
e como esse processo de trabalho em grupo e de espaço de escuta por si já se mostra
terapêutico e uma experiência positiva tanto para os participantes quanto para os profissionais
envolvidos.
Consideramos ainda positivo o fato de o trabalho atuar como enfrentamento por duas
vias: inicialmente como auxílio na reflexão das atitudes já vivenciadas e mais ainda
corroborando com o pensamento de MINAYO E SOUZA (1999) tornando público algo que
anteriormente era tratado como privado na ideia de que socializar trabalhos de prevenção
como parte do enfrentamento da violência.
Conclusões
Ao analisar as avaliações feitas pelos participantes, podemos observar o quanto a
experiência coletiva de tornar-se parte de um grupo, foi avaliado de forma positiva. Alguns
deles manifestaram expectativas de que novos integrantes persistam no atendimento,
vencendo a fase inicial de Revolta3. Dar espaço para poder vencer, a resistência inicial, já
descrita em alguns estudos é, para os membros do grupo fundamental para que se possa
efetivamente ter ganhos com a experiência grupal. A maioria dos homens disse ter obtido
melhor conhecimento sobre a LMP e sobre suas questões emocionais.Aprendemos todos os
dias que entramos em contato com outras pessoas, especialmente em um “terreno” de tantas
incertezas e novidades observamos a necessidade de flexibilidade por parte do profissional
que realiza estas tarefas.
Consideramos ainda a importância do trabalho com profissionais de diferentes áreas
que agregam visões múltiplas que colaboram para o desenvolvimento dos grupos. A cada
novo grupo foi possível buscar melhorias a partir dos discursos dos próprios participantes.
Realizamos adaptações a cada novo encontro visando a construção efetiva de mudanças.
Ainda existe muito o que estudar, efetivamente questionar junto aos coordenadores
dos grupos quais os instrumentos de avaliação que auxiliam na melhoria do trabalho; qual a
experiência que os homens que participaram levam para as suas vidas; quais outros assuntos e
temáticas precisam ser explorados e ainda, a importância de manter um bom vínculo com os
trabalhadores da rede psicossocial que atendem as mulheres vítimas, de forma a construir um
trabalho coletivo com o objetivo de evoluir na proteção das vítimas e na propagação de uma
vivência masculina mais “saudável”.
3
É assim que os participantes do grupo definem o momento de chegada ao NACA.
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Jaqueline Volpato1
Poliana Savala2
Resumo
1
Bacharel em Serviço Social formada em 2016 pela UNESPAR/Campus de Apucarana.
E-mail: jaqueline-_-volpato@hotmail.com
2
Especialista em Gestão de Projetos Sociais pela UNOPAR – Universidade Norte do Paraná – 2017. Bacharel
em Serviço Social formada em 2016 pela UNESPAR/Campus de Apucarana. E-mail:
poliana_savala@hotmail.com
Introdução
interação, um sistema semi-aberto, com uma história natural composta por vários estágios,
sendo que a cada um deles correspondem tarefas específicas por parte da família.”
A família pode se caracterizar pelo ajuntamento de crenças que serão os princípios
norteadores na formulação das regras, das quais os integrantes do sistema irão seguir. Diante
disso, pode ser definida como o ambiente onde os indivíduos se desenvolvem biológico e
psicologicamente e se preparam para enfrentar a vida fora de seu sistema familiar de origem,
a fim de se adaptarem aos novos sistemas que farão parte.
Percebemos que na literatura inúmeros são os conceitos sobre família, no entanto, o
que se mostra em comum é o fato da união de seus membros, não considerando apenas a
presença de laços consanguíneos, mas a intimidade, amizade, respeito mútuo, troca e
enriquecimento conjunto. Assim, é válido ressaltar que a família pode, também, ser formada
por somente um indivíduo e independente de qual seja o tipo de arranjo familiar todos
possuem o mesmo intuito, o de obter meios de sobrevivência. Em outras palavras, a
ampliação do conceito de família permite o reconhecimento de outras entidades familiares,
como a uniões de pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da filiação socioafetiva, entre
outras.
A questão da monoparentalidade
descendentes.” Assim, seja o pai ou a mãe que conviva e seja responsável pelos filhos, eles
serão considerados uma família.
Várias são as origens da família monoparental, podendo estas ser voluntárias ou
involuntárias. A viuvez foi responsável pelo surgimento da monoparentalidade, mas o
aumento no número de divórcios na década de setenta, fez com que ele se intensificasse.
Segundo Zamberlam (2001, p.100):
[...] enquanto o fenômeno anterior era vivido pela imposição de uma situação
(viuvez), atualmente a monoparentalidade tende a ser decorrência direta de uma
opção (celibato ou separação), logo, efeito de uma vontade deliberadamente,
manifestada por esta nova forma familiar.
4
Família composta por um casal, pai e mãe, e seus filhos. Disponível em:
http://www.dicionarioinformal.com.br/biparental/ Acesso em 21 de fev. 2016
Através dos relatos das mulheres que entrevistamos, foi possível percebermos parte
das responsabilidades no período em que estiveram casadas:
E.: […] antes quando ele tava doente e tudo, eu já fui tendo a responsabilidade né
[…] então eu já fui pegando, que nem, o meu dinheiro né […] Aí fazer crochê pra
vender, que eu faço crochê pra vender, e já compro outras coisas. Então antes de
morrer eu já fui, como se diz, sendo já o chefe, sem saber. […] Então, já não ligava
se ele tinha dinheiro ou não, eu já gostava mais do meu né. Já ia lá e pagava uma
água, uma luz, já comprava umas coisas pros filhos ou pagava uma conta também.
apenas pela agressão física. A Lei Maria da Penha 5, define cinco formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher: a violência física entendida como qualquer conduta que
ofenda a integridade física da mulher; a psicológica caracterizada por atitudes como ameaças,
constrangimento, humilhação, isolamento, insulto, ridicularização, etc.; a sexual entendida
como qualquer conduta que a constranja a presenciar, manter ou a participar de relação sexual
não desejada; a violência patrimonial que se consiste em reter ou destruir parcial ou
totalmente seus objetos, documentos pessoais, bens, valores, etc. e a moral caracterizada pelas
condutas de calúnia, difamação ou injúria.
Segundo os relatos,
E.: […] Que antes não tinha palavra quando ele era vivo, era isso só acabou, eu
não tinha palavra, as crianças também não [...] parece que antes, eu ficava mais
doente, hoje eu não fico tanto, passava mais nervoso, sabe. Ele falava uma coisa,
tinha que ouvir, tacava na cara que ah a casa tá num sei o que, eu ficava arrasada,
ficava quieta. Então eu me sentia minúscula, não tinha voz pra nada né.
C.: Foi verbal, foi física. aí ele me deu um soco eu dei um soco nele também e assim
foi indo... aí dessa vez que deu essa briga que nós saímos no soco eu e ele, foi a
última vez que nós tivemos briga feia... aí nós sentamos e conversamos [...] se
continua do jeito que nós tá indo aqui é melhor nós separarmos agora mesmo,
porque assim não dá... aí nós colocamos um ponto final... aí acabou... assim, nós
brigava assim de boca, não de agressão um com o outro ai encerrou.
5
A Lei nº 11.340. de 17 de agosto de 2006, denominada de Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir e
prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em 21 fev. 2016
C.: Assim, ele trocou eu por outra mulher, ele se interessou por outra mulher né e
acabou me abandonando eu com as criança e fico... e eu fiquei sozinha com as
crianças.
Tendo em vista que a família é formada por um grupo de pessoas que trocam
experiências, criam laços de afetividade e assumem o compromisso do cuidado mútuo, fica
nítido que os integrantes acabam se apegando àquelas pessoas e se acostumando com aquele
ambiente, sendo assim, quando uma família deixa de ser nuclear e passa a ser monoparental,
os primeiros sentimentos são de tristeza, de medo, dúvidas e incertezas, pois tudo é muito
novo e exige uma adaptação para viver sob as novas condições de vida. Deste modo, as
entrevistadas relataram sobre como se viram no primeiro momento quando se tornaram chefes
de família:
E.: Eu sempre me superei né, quando ele morreu eu me senti sozinha [...] De como
ia ser sem ele, como eles (os filhos) iam entender nós três sozinhos. Se eu ia
continuar naquela batalha, se ia ser igual, se ia ser difícil pra mim sem ele né […].
C.: Eu não queria sair de casa e depois da separação que minha mãe faleceu, eu
fiquei sabe que é três meses sem comer nada, não comia nada, nada, nada, nada era
café e cigarro porque eu fumo né. Eu tava com sessenta e oito quilos fui pra
cinquenta quilos, emagreci um monte […] então é onde que eu fiquei assim sabe,
num ponto da minha vida que eu fiquei sem estrutura nenhuma, sem ter aquela
pessoa pra estender a mão, pra conversar, desabafar, pra mim desabafar... aí onde
que foi que eu me apeguei em Deus... (ficou emocionada, chorou). Falei Deus se for
pra eu continuar desse jeito aí tira essa magoa que eu tenho do coração de tudo...
porque eu não aguentava, eu falava com as criança eles não obedecia, eu não tava
tendo nem cabeça pra cuidar das criança direito […].
E.: [...] Mais fácil, mais tranquilo. Então, tipo daí que ele morreu eu falei pra D. e o
D. agora eu vou ser a mãe e o pai de vocês, vocês me obedece e tudo que der certo
né, com Deus na frente vai dar certo. Um tempão que a gente não tinha plano, não
tinha sonho, a gente não sonhava mais.
C.: [...] Hoje em dia depois que eu passei, agora foi a melhor coisa […] era mais
difícil, agora eu acho mais fácil, então tipo assim, o que eu pego aqui eu sei onde
que vai onde não vai, eu já somo as coisa tudo certinho.
Nota-se que apesar dos obstáculos que enfrentaram diariamente para conduzir sua
família monoparental, as mulheres se sentem melhor com o rompimento da família nuclear,
pois é como se demonstrassem um sentimento de libertação de um relacionamento infeliz
marcado pela violência e insatisfações. É relevante destacar aqui que os sentimentos, os
desejos e as opiniões das mulheres devem ser respeitados, e por isso mesmo que a sociedade
associe a família monoparental chefiada por mulher, com pobreza e dificuldade, é preciso
levar em conta que muitas vezes, como é o caso das entrevistadas, essas mulheres preferem
viver somente com seus filhos, mesmo que isso não seja tão fácil, a ter que conviver com um
homem violento e que não fazia questão de compartilhar as responsabilidades familiares com
a esposa 6.
A família monoparental com chefia feminina possui problemas como qualquer outra
configuração familiar, ou às vezes, enfrenta dificuldades piores, no entanto em alguns casos, a
situação em que viviam no matrimônio era tão desconfortável que não conseguem encontrar
obstáculos em conduzir sua família monoparental, como é o exemplo das entrevistadas
quando são questionadas a respeito das dificuldades em ser chefe de família.
E.: Não. Nada. Porque, por exemplo, assim eu combino e converso com a D.
converso com o D.
C.: Ai no meu ponto eu não vejo dificuldade. Não, não vejo, não vejo sabe por que
no começo do meu casamento ele não trabalhava registrado, trabalhava por dia, na
roça assim, depois de uns tempos que ele começou a trabalhar registrado, então
sempre faltava o que comer, ai sempre como não tinha onde ele ir buscar, ai sempre
quem corria atrás era eu.
Muito mais do que ressaltar as qualidades da família, as mulheres admitiram ter que
desenvolver vários papéis e mesmo assim se sentirem feliz.
E.: Agora eu me sinto uma chefona, agora eu mando em tudo, agora né (risos).
Faço uma coisa aqui, outra ali.
6
Aqui não queremos generalizar que todas as mulheres chefe de famílias monoparentais o são em decorrência da
violência de gênero, pois como já citado, há mulheres que optam por esse agrupamento familiar antes mesmo de
assumirem uma relação conjugal, no entanto, ressalta-se que em muitos casos, a mulher passou por alguma
situação vexatória, de violência ou de negligência, e isto justifica o fato delas optarem e se sentirem melhor sem
ter a presença masculina dentro de casa.
Através de toda trajetória exposta até aqui sobre a vida das entrevistadas e diante
deste último relato é possível verificar que toda dor e sofrimento vivido por elas, serviram de
motivação para superarem os inúmeros obstáculos e hoje, perceberem seus verdadeiros
valores.
Considerações finais
Referências
SANTOS, Jonabio Barbosa dos, SANTOS Morgana Sales da Costa. Família monoparental
brasileira. Rev. Jur., Brasília, v. 10, n. 92, p.01-30, out./2000. Disponível em: Acesso em: 18
out. 2015.
Resumo: Este trabalho tem como objetivo discorrer acerca das desigualdades enfrentadas
pelas mulheres em âmbito global, com foco na educação, para em seguida abordar as
especificidades das estudantes com altas habilidades/superdotação. A proposta se baseia numa
perspectiva de gênero por meio da abordagem das capacidades desenvolvida por Martha
Nussbaum. Segundo esta autora, a perspectiva das capacidades permite englobar questões que
outras perspectivas, como a dos direitos humanos e das preferências, não abordam,
permitindo, assim, uma reflexão acerca das possíveis barreiras e enfrentamentos que estas
estudantes por ventura vivenciam durante o processo de desenvolvimento de suas habilidades
na educação básica.
1
Universidade Estadual de Londrina; discente do Curso de Mestrado em Ciências Sociais, bolsista da CAPES.
E-mail: lais_kruczeveski@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia.
E-mail: silvanamariano@yahoo.com.br
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p84 84
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Estes dados demonstram que a situação das mulheres no mundo vem melhorando
gradativamente ao longo dos anos. Entretanto, Martha Nussbaum (2010) lança a reflexão de
que em muitos lugares do globo as mulheres ainda não têm apoio para desenvolver suas
funções mais básicas da vida e de que as barreiras e os riscos enfrentados por elas são muito
maiores que dos homens.
A autora também aponta que as mulheres são geralmente menos nutridas que os
homens, menos saudáveis, são as mais vulneráveis a todos os tipos de abuso e violência,
sobretudo sexual. A história também mostra que são as mulheres que enfrentam mais
dificuldades e preconceitos para serem alfabetizadas e quanto mais se avança nos níveis de
3
“Women have proved to be productive economic actors, prudent decisionmakers, visionary leaders,
compassionate volunteers and constructive peacekeepers. And many women are expanding their horizons”
(UNPD, 2016, p. 41)
4
“Norms, values and legal frameworks are evolving. Côte d’Ivoire is tackling legal discrimination against
women. While in the 1990s very few countries legally protected women from violence, today 127 do. This is
partly the result of successful awareness- raising on the human and economic cost of such violence. Lebanon
now penalizes domestic violence. Peru prohibits sexual harassment in public spaces. Hungary criminalized
economic violence as a form of domestic violence. Cabo Verde adopted a new law in 2011 to fight gender-
based violence. The State of Palestine recently elaborated the Arab region’s first national strategy to fight
violence against women, with the participation of survivors of violence” (UNPD, 2016, p. 41).
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p84 85
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lançado pelas Nações Unidas em 2013. O Índice de Desigualdade de Gênero apontou o Brasil
na posição 85 em um ranking de 149 países analisados (JUSBRASIL, 2014).
A necessidade de se quantificar estas desigualdades entre homens e mulheres são
de extrema necessidade tendo em vista que estes dados servem como parâmetro e base para
a criação e implantação de políticas públicas. O Global Gender Gap Index (GGI) é um
destes medidores que coletam dados em nível mundial para a mensuração dos hiatos dentre
homens e mulheres em quatro áreas básicas para o desenvolvimento: participação
econômica e oportunidades; escolarização; saúde e expectativa de vida; e empoderamento
político. Este índice foi introduzido pela primeira vez no Fórum Econômico Mundial, em
2006, com a proposta de desenhar a amplitude das disparidades de gênero e fazer um
acompanhamento do seu progresso no decorrer do tempo (WEF, 2017).
Souza (2012) afirma que o GGI é um índice internacional inovador pelo fato de
combinar dados quantitativos com dados qualitativos, além de que este índice abrange as
disparidades entre homens e mulheres a partir de quatro fatores que são a economia, a
educação, a política e a saúde, ou seja, o GGI busca abranger as principais esferas da vida e
estas dimensões são compostas por subíndices que permitem de fato equivaler as proporções
entre os números relativos a homens e as mulheres.
Este trabalho se foca no âmbito da educação que, de acordo com Nussbaum (2009),
encontra-se em estado de crise. A autora aponta que a forma como a educação vem sendo
tratada, até mesmo pela abordagem do desenvolvimento humano, tem sido pautada numa
linguagem de mercado, focando somente o enriquecimento do país e, desse modo, formando
sujeitos dóceis e de olhos fechados para as desigualdades de raça, gênero e religião e que
estas desigualdades espelham diferentes oportunidades de vida. Neste sentido, o foco desta
pesquisa é voltado a observação de algumas perspectivas metodológicas com o objetivo de
apresentar o porque a perspectiva das capacidades permitirá abranger de modo mais
completo o estudo das mulheres com altas habilidades.
Angela Virgolim (2007) apresenta uma definição que será utilizada neste trabalho
sobre o que são as altas habilidades. Segundo a autora, uma criança ou adolescente
considerado/a superdotado/a é a que apresenta uma habilidade em uma ou algumas áreas do
conhecimento considerada acima da média das outras pessoas, ou seja, um:
Notável desempenho e/ou elevada potencialidade em qualquer dos seguintes
aspectos, isolados ou combinados: capacidade intelectual geral; aptidão
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sentido somente poderá incluir estas minorias por meio de um profundo impacto no cerne do
pensamento social.
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criança, que precisa de mais nutrientes que um adulto. E no caso das variações sociais,
algumas delas podem estar associadas a hierarquias tradicionais (NUSSBAUM, 2010).
Uma abordagem dos recursos que se atente a estas especificidades deve, por exemplo,
oferecer uma educação em que todos os cidadãos são tratados de forma igualitária e os
recursos são distribuídos de modo justo, e, deste modo, para se alcançar esta equidade, deve-
se dedicar mais recursos aos indivíduos que possuem mais barreiras e obstáculo durante o
processo. Portanto, a educação das mulheres, em alguns lugares do mundo, se tornaria mais
cara que a educação dos homens.
Uma outra abordagem apontada por Nussbaum (2010), é a abordagem das
preferências. Esta abordagem também possui algumas limitações, mas em relação à
abordagem dos PNB possui um diferencial, pois “elas olham para as pessoas e avaliam o
papel dos recursos para a melhoria das suas vidas” (NUSSBAUM, 2010, p. 25). Entretanto, as
pessoas que usam tais abordagens costumam pensar que a forma de avaliar o papel destes
recursos é simplesmente perguntar sobre a satisfação de suas preferências.
Neste sentido, a autora coloca que as preferências não são exógenas, ao menos estas
preferências são construídas com base em condições econômicas e sociais. As mulheres não
escolhem ter ou não independência econômica enquanto não se veem como sujeitos de direito
e escolha. As preferências dos homens também são socialmente construídas. De acordo com
Nussbaum (2010), tais preferências são construídas tradicionalmente por privilégios e
subordinação e, neste sentido, uma abordagem com esta base somente reforçaria estas
desigualdades, ao invés de eliminá-las.
Assim como Saffioth já comentou que as mulheres no Brasil foram por muitos anos
privadas de educação, Nussbaum comenta que esta privação já demonstra que uma
abordagem das preferências não seria um indicador confiável. Do mesmo modo, uma
abordagem baseada nos direitos humanos também não seria uma abordagem mais adequada
para análise.
Apesar da abordagem dos direitos humanos visar a abordagem destas desigualdades, e
ter se esforçado na busca dos direitos de justiça para as mulheres, este tipo de abordagem,
segundo Nussbaum (2010), é precária alguns aspectos, que são:
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Neste sentido, uma abordagem pautada nos direitos humanos não é suficiente para
responder estas questões. Além de que, esta linguagem dos direitos, segundo a autora, está
muito associada às questões de liberdades políticas e civis, e somente na atualidade vem
sendo mais tratada no campo econômico. Em relação às mulheres, Nussbaum (2010, p. 26)
cita um exemplo, “Uma mulher que não tem oportunidades de trabalhar fora de casa não
possui a mesma liberdade de associação que uma mulher que pode trabalhar fora de casa”. Do
mesmo modo que uma mulher que não teve oportunidade de estudar terá dificuldades de
efetivar sua participação nas decisões políticas.
Outra limitação da abordagem dos direitos humanos se refere às demandas mais
urgentes das mulheres que foram ignoradas, como a violência doméstica e os abusos à
integridade física. Questões de justiça na família e do não reconhecimento do trabalho
doméstico também não foram solucionadas ou amenizadas com esta abordagem. Portanto,
qual tipo de abordagem permitiria adentrar o campo das estudantes com altas
habilidades/superdotação e que fosse capaz de analisar de forma justa todas as suas
especificidades e barreiras para uma educação emancipadora e inclusiva?
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eficácia as estudantes com superdotação, mas sim o que de fato se pode ou não fazer com
estes recursos e como estes recursos podem ser melhor utilizados, caso as estudantes
atendidas no Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação5 (NAAH/S) sofram
algum tipo de desmotivação ou preconceito relacionado a gênero.
Neste sentido, Nussbaum aponta que
Se operarmos apenas com um índice de recursos, repetidamente
reforçaremos desigualdades relevantes para o bem-estar. Como sugerem
muitos exemplos, as vidas das mulheres são especialmente passíveis de
levantar esses problemas; portanto, qualquer abordagem que tente lidar
adequadamente com questões das mulheres deve ser capaz de operar bem
com essas variações (NUSSBAUM, 2010, p. 24-25).
5
NAAH/S (Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação) em 2005 pelo MEC-SECADI foi uma
iniciativa que propõe esta integração, inclusão e valorização dessas crianças e adolescentes portadores/as de
talentos. Ele funciona como um serviço de apoio pedagógico especializado, oferecendo suporte aos sistemas de
ensino no atendimento às necessidades educacionais especiais dos/as alunos e alunas com altas
habilidades/superdotação (AH/SD).
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Embora Virgolim (2007) acredita que a partir dos anos 2000 e com a implementação
no Núcleo de Atendimento para Altas Habilidades/Superdotação em 2005, houve muitas
melhorias no atendimento aos/as estudantes superdotados/as, a autora aponta alguns desafios
que ainda precisam ser alcançados, como a abrangência dos meios de comunicação que falam
sobre a superdotação. Segundo a autora, a falta de conhecimento sobre o que é a superdotação
pode aumentar os estigmas e preconceitos em relação a estas especificidades, assim como os
mitos que permanecem, sobretudo em relação a mulher superdotada.
A necessidade de materiais adequados e o desenvolvimento de técnicas diferenciadas
são essenciais para o desenvolvimento destes/as jovens e, portanto, a adaptação de diferentes
currículos e a aproximação deles/as à pesquisa e extensão, são meios capazes desenvolver
ainda mais o potencial de superdotação. No caso das mulheres, a oferta de apoio especializado
e inclusivo pode auxiliar no aperfeiçoamento e incentivo do desenvolvimento das
capacidades.
Conclusão
Para as mulheres, a aceitação da superdotação pode ser mais doloroso. Suzana Pérez e
Karina Paludo já afirmaram isto. Os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres
podem ser fatores complicadores para a aceitação destas mulheres e suas habilidades. Uma
educação emancipadora deve permitir a formação destas jovens sem o juízo de suas
habilidades. Neste sentido, não somente os/as professores/as das salas que atendam estas
especificidades devem estar preparados/as para recebe-las como também professores e
professoras das salas regulares. A escola deve estar atenta a sinais de preconceito e
estereótipos.
Um exemplo citado por uma professora da rede pública de Londrina, é uma jovem,
sem diagnóstico de superdotação, mas que vem recebendo comentário vexatórios e
preconceituosos dos colegas homens porque venceu um prêmio de robótica, que para os
meninos é uma atividade considerada masculina. Um ambiente em que mulheres são
desmotivadas a desenvolverem suas capacidades não deve ser um ambiente que auxilie no
real desenvolvimento destas capacidades. Deste modo, a quebra de paradigmas e o apoio
especializado pode permitir que visões tradicionais e do senso comum sejam esclarecidas e
que estas jovens possam desenvolver suas habilidades a partir de seus gostos e capacidades.
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Referências
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símbolo de novas lutas políticas no Rio. Rio de Janeiro: BBC Brasil, 15 de março de 2018.
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De 2018.
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políticas educacionais para a inclusão. In: A Construção de práticas educacionais para alunos
com altas habilidades/superdotação, Orientação a professores. Vol. 1. Fleith, Denise de Souza
(org). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação especial, 2007.
GROSSI, Miriam Pillar; GRAUPE, Mareli Eliana; WELTER, Tânia (org.). Antropologia,
gênero e educação em Santa Catarina. Tubarão-SC: Coedição: Editora Mulheres, 2017.
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PUGLIESE, Gabriel. Sobre o “caso Marie Curie”. São Paulo: Alameda, 2012.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade.
Petrópolis: Vozes, 1976.
UNPD, United Nations Development Programe. Human Development Report 2016: Human
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Resumo: O movimento social de mulheres perpassa a história com suas demandas e lutas em
busca de conquista de direitos. Neste trabalho, apresentaremos os resultados parciais de nossa
pesquisa que enfocará a história do movimento de Londrina-PR, com o objetivo principal de
analisar o processo de produções de sentidos entre as mulheres militantes do movimento
feminista de Londrina-PR, a partir de 2012, no tocante às questões dos direitos das mulheres,
além de ter como foco de análise neste movimento as construções do mesmo como novas
narrativas sobre gênero feminino e a garantia de direitos. Nossas ferramentas de análise são as
propostas trazidas pela psicologia social discursiva e a produção de sentidos no cotidiano. O
movimento feminista pode ser considerado um mecanismo de resistência ao sistema
hegemônico que se configurou no ocidente. Neste sentido, a psicologia social é um
dispositivo que disponibiliza ferramentas comprometidas politicamente e eticamente, com
posicionamentos que busca desvelar verdades essenciais e generalizáveis, fazendo com que
esta psicologia seja trazida neste estudo como instrumento que problematize as relações
sociais de opressão e de desigualdade, desconstruindo posições ideológicas que sustentam tais
relações e questionando a naturalização do pensamento opressor. Assim, um dos objetivos
também é apresentar a metodologia escolhida para a construção desta narrativa que perpassa
pelos conceitos de cotidiano, lugar, produção de sentido, práticas discursivas e campo-tema.
Além de trazer a discussão para o campo das teorias feministas e estudos gêneros.
Consideramos que a Psicologia Social é um campo rico em ferramentas conceituais e
metodológicas e a inclusão da perspectiva de gênero e feminista deverá proporcionar avanços
nos debates sobre as relações entre os movimentos sociais e a construção de subjetividades.
Palavras-chaves: Processos de Subjetivação. Militância Feminista. Psicologia Social.
Introdução
1
Universidade Estadual de Londrina; Mestranda pelo PPGPSI-UEL; amandagaion@gmail.com.
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PITANGUY, 1981). O sufrágio traçou duras lutas políticas, porém garantiu a conquista do
voto feminino e a extensão das leis trabalhistas para as mulheres, gerando caráter de cidadania
a grande parte da população feminina. Conforme cita Alves e Pitanguy (1981), as décadas de
30 e 40 representaram um período de concretização de algumas conquistas deste movimento,
como a aquisição do voto para as mulheres, o ingresso às instituições escolares e a
participação no mercado de trabalho.
Em meados dos anos 60, segundo Frazer (2007), o movimento feminista passa a
questionar as formas de dominação masculina, sustentando a inclusão do “pessoal” na visão
política. O cotidiano privado das mulheres passa a ganhar destaque no questionamento das
estruturas de dominação do homem sobre a mulher. Os problemas que antes eram entendidos
como da vida privada, na medida em que envolvem questões de justiça, se tornaram questões
de ordem pública. Nesse sentido, Pinto (2012) aponta que, neste contexto, o feminismo surge
como um movimento libertário, com o objetivo de libertar as mulheres das opressões que
vivenciam em todos os aspectos da vida. Os espaços a serem conquistados não seriam apenas
no trabalho, nos estudos ou na vida pública, mas também na questão da liberdade e autonomia
de decisão sobre si. Neste momento, acontece a consolidação da chamada segunda onda do
feminismo.
A terceira onda do movimento se concretiza mundialmente na década de 1990,
trazendo uma discussão dos modelos estabelecidos nas outras ondas, focando nas discussões
de micropolítica (RIBEIRO, 2014). As reflexões trazidas, entre outras, por Judith Butler
mudam no sentido de expor que o discurso universal é excludente, pois as opressões atingem
as mulheres de diferentes formas.
Como resultado desta terceira parte da história do feminismo concluiu-se que não
existe apenas um enfoque feminista, há diversos, principalmente, quanto “às posições
ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos diversos, com
posturas e ações diferentes”. (RIBEIRO, 2014).
Atualmente, fala-se em uma quarta onda do movimento feminista. Segundo Matos
(2010, pp. 68-69), a “quarta onda” valoriza “arenas paralelas de atuação, seja no âmbito da
sociedade civil ou no das fronteiras existentes entre esta e o Estado”, assegurando a seriedade
do debate em torno das interseccionalidades entre gênero, raça, sexualidade, classe e geração.
Consideramos que essas transformações do movimento feminista foram sendo realizadas de
acordo com os acontecimentos sociais e culturais pelo mundo. Podemos, então, dizer que a
cada onda se propagou novos objetivos, novas pautas, novos olhares, criados e intensificados,
fazendo com que esse movimento crescesse e ganhasse a participação efetiva das mulheres.
Existem ainda, muitas contradições, impasses e desafios a serem ouvidos e trabalhados para
se alcançar maiores e melhores ações. Ações essas que possam modificar a vida de grande
parte das mulheres, principalmente aquelas que são mais atingidas pelos machismos
cotidianos e a negação de direitos, ou seja, as mulheres negras, que buscam todos os dias
formas de sobrevivência em uma cultura patriarcal e racista.
toda a bagagem história da indiferença e da desigualdade. Até o presente momento temos que
lidar com esse tipo de pensamento arcaico, de que a lei do mais forte (fisicamente) deva
prevalecer em todas as bases de uma sociedade.
Pensando na realidade brasileira, a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em março de 2017, sobre a disparidade entre os
gêneros analisando a renda da população, nos mostra que a média nacional do cidadão
brasileiro é de R$ 2.043,00, porém o homem continua recebendo mais. Enquanto ganham, em
média, R$ 2.251,00, as mulheres recebem acerca de 1.762,00, ou seja, a diferença gira em
torno de R$ 489,00 (KOMETANI, 2017). Ainda se tem sobre a mulher a expectativa que por
ter outras obrigações – entendidas de sua inteira exclusividade – como o cuidado da casa e
dos filhos, ela não poderá se dedicar por completo ao seu trabalho, justificando assim, o
rendimento salarial menor. Delineia-se então, até o atual momento, que o cuidado doméstico é
apenas da ordem feminina.
A violência é um marco severo que atinge milhões de mulheres no mundo, segundo
informações da Organização Mundial da Saúde, o Brasil segue sendo o 5º país no ranking de
homicídios femininos, com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres
(WAILSELFISZ, 2015).
É relevante firmar que a violência contra a mulher é um problema social estrutural que
tem como base o machismo cotidiano e o patriarcado imbricados nas relações sociais,
elemento ímpar na discussão deste tema. A preocupação mais recente é “a superação dessa
violência como condição necessária para a construção da nossa humanidade”
(WAILSELFISZ, 2015, p. 7). De toda essa discussão, o que se confere de mais novo nesses
desdobramentos de superação da violência contra a vida das mulheres é a judicialização, que
podemos entender como a criminalização dessa violência, movida pelos aparelhos estatais,
tais como a polícia e o sistema jurídico, na mobilização em proteger as vítimas ou na punição
dos agressores (WAILSELFISZ, 2015).
Neste sentido, podemos citar duas leis brasileiras que tiveram suma importância nesse
processo jurídico de criminalização da violência contra a mulher que foram a Lei 11.340,
conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada em agosto de 2006, e a Lei 13.104/2015,
conhecida como Lei do Feminicídio, sancionada em março de 2015.
Em 2013 foram registrados 4.762 mortes de mulheres no país, o que representam 13
homicídios femininos diários. Em 2015 foram 4.621 mulheres assassinadas no Brasil segundo
dados do IPEA, porém, neste mesmo ano, foi constatada certa diminuição no número de
mortes de mulheres brancas no país (queda de 9,8%), enquanto que o índice de mortes das
mulheres negras aumentou (aumento de 54,2%).
É significativo grifar nessas linhas que as mulheres negras são as principais vítimas da
violência contra as mulheres neste país. Segundo Sanematsu e Prado (2017), as mulheres
negras são as maiores vítimas de violência doméstica, de mortalidade materna, de violência
obstétrica. A maioria das mulheres mortas por agressão é negra. Os homicídios de mulheres
brancas caíram, enquanto os homicídios de negras aumentaram, conforme vimos acima.
Os dados também revelaram que as mulheres morrem mais por
estrangulamento/sufocação, objeto cortante/penetrante e objeto contundente, indicando maior
presença de crimes de ódio ou por motivos fúteis/banais. O local das mortes geralmente são
os domicílios e atualmente, no Brasil, foram registradas aproximadamente 8.000 pessoas
presas por violência doméstica (WAILSELFISZ, 2015).
Essa base histórica e de informação em relação à concretização dos fatos de violência
e opressão sobre as mulheres, faz com que o movimento feminista seja um movimento social
de suma importância ainda nos dias de hoje. Pois, é partir da organização política e social das
mulheres, em conjunto com a produção de novas formas de subjetivação feminina, partindo
do conhecimento histórico dessas lutas e a proposição de transformar as bases machistas e
patriarcais da sociedade, que mudanças podem vir a ser geradas.
No cenário político brasileiro, alguns retrocessos no que tange aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres começaram a aparecer. Um exemplo dessa afirmação é a proposta
de Ementa Constitucional 181/2015, que pretende extinguir as permissões legais de
interrupção da gravidez, a saber, em casos de estupro, anencefalia do feto e risco para a vida
da gestante. Alguns grupos conservadores propõem inserir no texto constitucional a
“dignidade da pessoa humana desde a concepção”, desconsiderando a dignidade da mulher e
seu direito de decidir sobre seu próprio corpo. Recentemente, em Londrina-PR, houve um
avanço das pautas conservadores na Câmara Municipal, como a aprovação da Lei Municipal
n. 12.509, de 12 de junho de 2017, que acrescenta às Comemorações Oficiais do Município o
Dia do Nascituro. Mesmo com posicionamentos de diversos coletivos que lutam pelos direitos
das mulheres, do Ministério Público, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, da
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, da Comissão dos Direitos Humanos da
OAB, contrários à proposta, a Lei foi aprovada e sancionada pelo atual prefeito Marcelo
Belinati do Partido Progressista (PP), ferindo gravemente o princípio da laicidade do Estado,
já que o fundamento da referida lei tem bases teológicas. Além de não ter respaldo jurídico,
afronta o direito das mulheres sobre seus corpos, sobre sua dignidade e as culpabiliza,
enquanto sujeito ativo no mundo, refletindo sobre si e seus pares. Porém sabia que não era
apenas isso, queria fazer mais, por elas e por mim.
Em meados de março de 2012, após o dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher),
fui convidada por um amigo a participar de uma formação feminista. Uma profissional da
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Londrina, juntamente com uma
organização feminista estariam oferecendo essa formação. Aceitei, e ali eu passei a dar nomes
aos meus incômodos. Descobri, de fato, o que eram os estudos de gênero; fui observando que
era esse tipo de grupo que me faltava, era esse tipo de informação que eu procurava e se
encaixava perfeitamente aos meus questionamentos como psicóloga social. Passei, então, a ter
um novo olhar sobre o mundo, principalmente sobre meu trabalho. Iniciei os estudos de
gênero e das teorias feministas. A força de encontro dessas mulheres foi tão forte e intensa,
que após essa formação, outros grupos de mulheres começaram a se reunir, e disso, saiu à
primeira Marcha das Vadias de Londrina.
Era 2012 ainda, a cidade de Londrina se encontrava imersa em uma atmosfera de
transformação social vinda das mulheres, o que culminou com a Marcha. As discussões
propostas nas reuniões, onde participavam, principalmente, mulheres jovens e universitárias,
eram, principalmente, em torno da cultura de estupro devido às várias denúncias que as
mulheres faziam diariamente e aos números de abusos sexuais alarmantes em todo o país. As
preocupações em torno da Marcha por aqui eram semelhantes as das mulheres canadenses que
deram início a primeira Marcha das Vadias no mundo. A culpa internalizada por nós mulheres
pela violência sofrida era uma questão crucial, pois até hoje existe o pensamento que a
responsabilidade do abuso sexual é da vítima e não do agressor. No processo de
culpabilização da vítima de abusos sexuais, os motivos seriam as roupas curtas demais, o
comportamento “exagerado” para uma mulher, o fato de se estar as altas horas sozinha na rua,
enfim, entre outras situações que, independente do fazer da vítima, a culpa recai sobre ela.
A Marcha das Vadias nasce desses questionamentos, devido uma onda de estupros
acontecidos na Universidade de Toronto, em 2010. Um grupo de estudantes canadenses
decidiu por realizar um ciclo de palestras sobre como combater essa violência. Em uma dessas
palestras, um policial foi convidado a palestrar. Uma de suas falas foi: “Se não quiserem ser
estupradas, não se vistam como vadias!”. Parecia que faltava apenas essa declaração para
explodir uma intensa movimentação das mulheres pelo mundo, que convocava as mulheres as
ruas contra a cultura do estupro.
Ao chegar ao Brasil, a Marcha das Vadias se espalhou pelos Estados de forma rápida e
eficaz, principalmente, por causa das redes sociais, assim como afirma Gomes e Sorj (2014, p.
437):
Desde então, por meio da rápida troca de informações proporcionada pela
internet, a marcha foi organizada em diversas cidades pelo mundo. Em países
de língua espanhola, o protesto ganhou o nome de Marcha de las putas ou
Marcha de las vagabundas. No Brasil, São Paulo foi a primeira cidade a
organizar uma marcha, em 2011, adotando o termo “vadias”. A rapidez com que
a marcha se disseminou pelo país e mobilizou a juventude é indissociável das
possibilidades que as novas tecnologias de comunicação oferecem ao ativismo
político. Já em 2012, no segundo ano do advento da Marcha das vadias, 23
cidades, de todas as regiões do Brasil organizaram protestos usando ferramentas
como Facebook, Twitter, Youtube, blogues e e-mails.
Considerações finais
formas não ortodoxas de narrar à pesquisa, que estes possam ser adequados ao tipo de
trabalho pesquisado.
A pesquisa será realizada buscando integrar tais pontos mencionados acima, levando
em consideração que este estudo ainda está em construção e será construído com o contato
com o campo-tema, sendo esse uma complexa rede de sentidos que se constroem no diálogo
com o tema de pesquisa e com o contexto ao qual este está inserido (SPINK, 2014). Este
conceito, campo-tema, é entendido aqui como um emaranhado de redes de sentidos que se
interconectam, é um espaço criado, transmitido ou acionado pelo (a) pesquisador (a) e
negociado mediante a busca deste de se inserir nas suas teias de ação (SPINK, 2003). “É o
argumento no qual estamos inseridos; argumento este que tem múltiplas faces e
materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes” (SPINK, 2003, p. 28).
Levando em consideração que a Psicologia Social é um campo que possui muitas
ferramentas conceituais e metodológicas e a inclusão da perspectiva de gênero e feminista,
esta pesquisa deverá proporcionar avanços nos debates sobre as relações entre os movimentos
sociais e a construção de subjetividades.
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Resumo: Este trabalho tem como objetivo destacar as aproximações e contradições existentes
entre o discurso da modernidade e do feminismo. Reconhecemos a dificuldade de falar de
grandes discursos como esses, por isso, tratamos de três temas caros a ambos: (1) divisão
público e privado, (2) relações de poder e (3) construção do sujeito. Entendemos que, ao mesmo
que o feminismo é fruto do discurso moderno, fortemente liberal, ele também o constituiu e o
reformulou. Reconhecemos que, dificilmente o feminismo teria surgido em um outro contexto,
que não o que levantasse as bandeiras da igualdade, da liberdade e da individualidade. O
feminismo emerge como uma crítica a narrativa moderna, uma crítica que é possibilitada pelos
princípios do próprio discurso criticado. Nesse sentido, o trabalho passará pelas temáticas,
destacando as principais críticas feministas às concepções caras à modernidade.
1
Universidade estadual de Londrina, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEL,
linapenati@gmail.com
Introdução
família e ao cuidado, à subjetividade, esse era o mundo da natureza, e ele era todo feminizado
(PATEMAN, 2013; CIRIZA, 1993; MIGUEL, BIROLI, 2013).
No outro lado da moeda, a modernidade e o próprio liberalismo, estiaram a bandeira da
igualdade de direitos. Esse discurso de igualdade e liberdade foram suficientes para que os
“sujeitos subalternos” reivindicassem também seu espaço na história (CIRIZA, 1993). O que
ficou conhecido como “primeira onda do feminismo”, busca a igualdade ao acesso à educação
e aos direitos políticos. O que pressupunha um reconhecimento na igualdade de capacidades
entre homens e mulheres (MIGUEL, BIROLI, 2013). Esse reconhecimento questionava a
separação dada entre público e privado, e principalmente, a naturalização da mulher no mundo
do privado.
De toda forma, essa primeira investida não foi suficiente para abalar essa firmada
divisão. Surge assim um debate extenso e diversificado sobre as críticas feministas direcionadas
à dicotomia público/privado. Para essas críticas o nó do problema está no fato de que a partir
dessa dualidade criou-se uma série de fronteiras sobre o que deve ou não fazer parte dos debates
públicos, afastando, na maior parte das vezes, questões familiares, domésticas e até mesmo
trabalhistas da arena política. Garantiu-se justiça, igualdade e liberdade para um lado da divisão,
o público e masculino. As relações condenadas ao mundo do privado, em que sua maioria
envolviam as mulheres, estavam postas em outros termos: não se falava de justiça dentro da
família, porque as relações de cuidado e de reprodução da vida cotidiana foram colocadas
dentro do mundo da natureza, onde “naturalmente” a mulher é a responsável (KRITSCH, 2012).
Seguindo Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli (2013), se por um lado algumas críticas
feministas argumentam que a não intervenção do Estado na esfera privada acoberta muitas
desigualdades no âmbito doméstico, por outro, há de se reconhecer que, parcelas do feminismo
defendem os limites do privado, enquanto uma arena própria do desenvolvimento de afetos e
relações de intimidades. Sem desconsiderar a segunda posição, entendendo a relevância e ponto
fundamental que tocam, como autonomia, liberdade, intimidade e reconhecimento das
identidades, nos focaremos a partir de agora na primeira crítica.
Isso porque, não tematizar alguns assuntos na esfera pública gerou e reproduziu uma
série de situações de desigualdades para as mulheres, como, por exemplo, a associação dessas
somente aos espaços e relações de cunho privado, ao baixo número de mulheres em arenas de
poder e de cargos políticos, a invisibilidade do trabalho doméstico e, por último, mas não
mesmo importante, a violência doméstica (KRITSCH, 2012). É nesse sentindo que o feminismo
toma como urgência o debate entre público e privado, pois “é a permanência dessa dicotomia
que torna possível que os teóricos ignorem a natureza política da família, a relevância da justiça
na vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das desigualdades de gênero” (OKIN,
2008, p. 307 apud KRITSCH, 2012, p. 28).
Uma ideia difundida dentro e pelo o próprio feminismo e que muito interessa à discussão
entre púbico e privado é o slogan de que “o pessoal é político”. Trataremos dessa questão por
duas faces. Assim, se por um lado, a intenção inicial era chamar a atenção de como a vida
pessoal das mulheres é constantemente influenciada por questões políticas, como é o caso dos
padrões de casamentos, quantidade de filhos a se ter, dedicação imposta à casa e à família, etc.
Por outro lado, podemos dizer também que tal chamamento revelou outra face, isto é, se
tomarmos a ideia de que poder é política e as relações entre homens e mulheres envolve poder,
então, podemos falar em uma “política sexual” e aí, mais do que nunca o pessoal se torna
político (PATEMAN, 2013; MILLET, 1969). Trataremos mais adiante desse deslocamento da
ideia de poder.
De toda forma, precisamos destacar que falar de forma crítica da divisão entre público
e privado e as desigualdades resultantes dessa dicotomia, que prejudicaram especialmente as
mulheres, não é o mesmo que falar que as mulheres nunca adentraram a esfera do público
(PATEMAN, 2013). O mercado de trabalho, inicialmente reduto das mulheres pobres e negras,
foi um importante trampolim para o mundo público. No entanto, ao olharmos a situação das
mulheres no mercado de trabalho, em especial aos cargos que ocupam e a remuneração
recebida, podemos dizer que a passagem foi incompleta. Além dos empregos estarem na
maioria das vezes relacionados as esferas domésticas e do cuidado, eles não desvincularam as
mulheres dessas arenas originais, resultando em um aumento extensivo do trabalho.
Borrar as fronteiras do público e do privado significa também atingir as bases de uma
das instituições que fundamentaram a modernidade: a família nuclear. As mudanças ocorridas
na sociedade moderna, seja pela crítica feminista, pela reflexividade da sociedade ou por tanto
outros fatores, enfraqueceram a concepção de família nuclear e estão, desse modo, relacionadas
as chamadas crises da modernidade. Aqui fica evidente a relação próxima e conflituosa entre
feminismo e modernidade: enquanto a divisão moderna público/privado fez com emergisse a
crítica feminista, especialmente sobre a condição da mulher nessa lógica, a crítica feminista fez
com que instituições bases da modernidade se alterasse e se recriassem.
Assim, a partir dessa perspectiva, uma proposta feminista radical não passa nem pela
oposição ou pela tentativa de harmonia entre as noções tradicionalmente difundidas de público
e privado. Para Pateman (2013, p. 76), a solução feminista passa pela a construção de nova
ordem social, “dentro da qual as dimensões sejam distintas, mas não separadas e nem opostas,
e que se baseie em uma concepção social da individualidade que inclua mulheres e homens
como criaturas biologicamente diferenciadas, mas não desiguais”.
A teoria feminista destacou que nem todas as diferenças são injustas ou desiguais (por
exemplo: auxílio maternidade, diferença na aposentadoria, etc.) e que é possível tratar delas em
uma outra abordagem. É nesse sentido que Elshtain (2013) fundamenta seus posicionamentos
radicais afirmando que é necessário operacionalizar com outras lógicas, e não inserir as
mulheres nas atividades tipicamente masculinas. Essa ideia é uma das bases do que ficou
conhecido por “pensamento maternal” ou “política do desvelo”, em que a diferença é destacada
pela valorização do que tradicionalmente se relaciona ao feminino, como o cuidado, a
maternidade, o zelo pelos mais indefesos, etc. (MIGUEL, 2014). Os estudos de Gilligan (apud
BENHABIB, 1987), apontaram como as mulheres compartilham de um senso de justiça
diferente dos homens, e que, ao invés de ser transformado, ele deveria ser reconhecido e
valorizado, podendo até mesmo alterar as lógicas da vida pública e política.
Outra proposta que tratou de destacar positivamente as diferenças foi de Iris Young
(2000). Sua concepção de “política da diferença” possui uma crítica demarcada ao
universalismo (masculino) do liberalismo, pois, “esse discurso, que apela a valores universais
e à humanidade comum de todas as pessoas, serve, com frequência, para neutralizar a
compreensão do impacto que as desigualdades concretas têm sobre a possibilidade de agência
autônoma dos diferentes indivíduos” (MIGUEL, 2014, p. 64). Sendo assim, Young (2000) trata
da diferença em um aspecto relacional e não essencialista, o que à permite propor uma política
da diferença emancipatória, que passa por um ideal de igualdade ao garantir participação e
inclusão de todos os grupos sociais, o que por vezes, justificaria tratamentos especiais e
diferenciados a determinados grupos.
Nesse sentido, a política da diferença se opõe ao “ideal da assimilação”, isto é, à
concepção de que ao minimizar as diferenças se produziria uma sociedade mais justa e
igualitária. Para Young, a única vantagem que esse tipo de raciocínio ofereceu foi a inspiração
para grupos oprimidos se organizarem enquanto movimento social em busca de igualdade. Mas
o que a autora quer chamar atenção é para o fato de que a partir das décadas de 1960 e 1970
esses grupos passaram não só a reivindicar igualdade, mas também afirma positivamente suas
diferenças, passaram então a afirmar que são grupos sociais com experiências e visões
específicas, o que justificaria um tratamento específico para essas pessoas. Podemos verificar
esse processo no movimento negro, gay e de mulheres emergentes na segunda metade do século
XX (YOUNG, 2000).
O deslocamento do sujeito
Considerações Finais
Esse pequeno ensaio objetivou levantar alguns pontos de aproximação e, ao mesmo
tempo, de contradição entre o discurso da modernidade e do feminismo. Esse esforço se torna
importante para pesarmos nas possibilidades de construção de novas teorias que expliquem o
social. A partir do desenvolvimento da tendência reflexiva da modernidade, pudemos observar
as mudanças em seu projeto inicial, muitas das quais, frutos da contribuição do feminismo.
Como argumenta Domingues, é a partir da reflexividade que se transforma a utopia da
modernidade em realidade desnuda, então “tornou-se possível, e necessário, criticar suas
fundações, demonstrando seu caráter contingente e suas vulnerabilidades. Além disso,
processos sociais intrínsecos ao desenvolvimento da modernidade têm vindo a por em xeque
alguns de seus pressupostos internos” (DOMINGUES, 1998, p. 212).
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Kelly Cipriano1
Mayara Santiago2
Rafaela Cyrino3
Resumo:
O presente trabalho parte das leituras e análises realizadas coletivamente pelo Grupo de
Pesquisa Feminismo Materialista, na Universidade Federal de Uberlândia, que busca
compreender as raízes dos processos de dominação social, a partir dos nexos causais
estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo. Propomos aqui responder ao seguinte
questionamento: um feminismo radical é necessariamente materialista? Para tanto,
recorremos à análise de Christine Delphy a medida que esta apresenta os seguintes
fundamentos: uma teoria crítica da história e o postulado de que a produção e reprodução da
vida material são a base da organização social. Após discutir a proposta de feminismo
materialista da autora, abordamos, a partir o pensamento de feministas radicais como
Shulamith Firestone em A dialética do sexo: um estudo da revolução feminista, Gayle Rubin,
em Tráfico de Mulheres: Notas sobre a economia política do sexo e Kate Millet, em Política
Sexual as possibilidades de intersecções possíveis do feminismo radical com o feminismo
materialista, formulado por Delphy. Os resultados dessas análises nos indicam que o
feminismo radical não necessariamente será um feminismo materialista, devido ao fato de que
algumas autoras se afastam da perspectiva materialista e da abordagem da opressão de forma
estrutural, ainda que busquem pele gênese da opressão das mulheres e trabalhem com a ideia
de revolução.
Palavras-chaves:feminismo; radical; materialista.
1
Universidade Federal de Uberlândia; graduanda em Ciências Sociais; kellycsbrandao@gmail.com.
2
Universidade Federal de Uberlândia; graduanda em Ciências Sociais; santiago.mayara@yahoo.com.
3
Universidade Federal de Uberlândia; doutora em Sociologia (UFMG) e professora adjunta no Instituto de
Ciências Sociais (UFU); rafaelacyrino@ufu.br
Introdução.
O presente trabalho parte das leituras e análises realizadas coletivamente pelo Grupo
de Pesquisa Feminismo Materialista, na Universidade Federal de Uberlândia, que busca
compreender as raízes dos processos de dominação social, a partir dos nexos causais
estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo. Dessa forma, propomos aqui discutir, a
partir do pensamento da socióloga francesa Christine Delphy, em que medida o feminismo
radical se insere na proposta do feminismo materialista no sentido de responder à questão
proposta neste paper: um feminismo radical é necessariamente materialista?
Para investigar esta questão, partiremos das formulações de Delphy a propósito do
chamado feminismo materialista, tendo por base o seu artigo original escrito em 1974, a partir
do qual o termo foi cunhado, assim como outros artigos da autora que esclarecem melhor a
sua abordagem. Após discutir a proposta de feminismo materialista da autora, iremos abordar,
a partir o pensamento de feministas radicais como Shulamith Firestone, em A dialética do
sexo: um estudo da revolução feminista, Gayle Rubin, em Tráfico de Mulheres: Notas sobre a
economia política do sexo e Kate Millet, em Política Sexual, as possibilidades de intersecções
possíveis do feminismo radical com o feminismo materialista, formulado por Delphy.
O feminismo materialista de Delphy utiliza de duas fundações principais para a
análise. São essas: uma teoria da história, pela qual busca compreender a dominação de
grupos sociais por outros; e o postulado de que a produção e reprodução da vida material são
a base da organização social. Logo, para o entendimento do feminismo materialista de Delphy
deve haver a compreensão histórica da opressão sofrida pelas mulheres e como as relações
materiais a definem. É de grande relevância para a teoria da autora a utilização da categoria da
totalidade, uma vez que essa possibilita compreender como as diversas dimensões da opressão
sofrida pelas mulheres se inter-relacionam: política, econômica, social, entre outras.
Em O inimigo principal (DELPHY, 2015), temos um claro exemplo de como a sua
abordagem materialista pretende explicar os processos de dominação de um sexo sobre o
outro. Partindo da compreensão de que a base material da opressão das mulheres deve ser
procurada na participação específica destas na produção, Delphy se propõe a pensar a família
como uma unidade de produção baseada na exploração econômica do trabalho gratuito das
mulheres. Desta forma, para a autora, a realização do trabalho doméstico e a criação dos
filhos constituem tarefas de produção e fazem parte de uma exploração econômica cuja
origem se encontra nas relações de servidão perpetuadas pela família.
É explicitado este argumento no seguinte trecho:
define uma feminista radical, as divergências entre as autoras acerca da “raiz” da opressão
sexual, culmina, necessariamente, em diferentes propostas de revolução.
Como foi abordado anteriormente, Christine Delphy, feminista que se auto-define
como materialista e que pode ser enquadrada na perspectiva “radical”, localiza o processo de
opressão das mulheres no modo de produção dito patriarcal, baseado em relações de servidão
e exploração de sexo. A sua proposta revolucionária parte, portanto, dessa análise estrutural.
Para uma melhor compreensão entre as possibilidades de entrecruzamento entre o feminismo
materialista e radical iremos explorar o pensamento de algumas autoras feministas radicais, no
sentido de se compreender se a raiz do processo de opressão implica, necessariamente, uma
abordagem material.
Desenvolvimento:
Em A Dialética do Sexo: um estudo da revolução feminista, de 1970, a autora
estadunidense Shulamith Firestone, coloca-se como feminista radical na medida em que
abarca a ideia de revolução como alternativa de superação da opressão às mulheres (1970:11).
Opressão essa que penetra os âmbitos da cultura, política, economia e que, diante disso,
reivindica, segundo a autora, pressupostos materialistas de superação.
Para a autora, recorrer ao materialismo é importante para analisar a guerra do sexos e,
portanto, alcançar a Revolução Feminista, assim como o antagonismo de classe é fundamental
para a revolução econômica. Firestone pontua, contudo, que é preciso localizar o substrato
sexual da dialética histórica que, segundo a autora, não foi ainda explicado, ocasionando uma
certa incapacidade de se pensar a opressão às mulheres: “Pois um diagnóstico econômico que
remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos meios de reprodução, não explica
tudo. Existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia.” (FIRESTONE,
1970:16)
Assim como Delphy, Firestone preocupa-se em localizar na história a raiz da opressão
às mulheres. No entanto, ela argumenta que a leitura do materialismo histórico é uma análise
estritamente econômica. Segundo FIRESTONE (1970, p.22):
“(...) o feminismo radical amplia suas análises, dando a elas uma base ainda
mais profunda em condições objetivas, explicando com isso muitas das suas
questões insolúveis. Como fundamento de nossa própria análise, devemos
expandir a definição do materialismo histórico de Engels.”
Ainda que a abordagem de Firestone aponte para uma base material diferente da
proposta por Delphy, entende-se que o desempenho em realizar uma análise histórica que
permita compreender a gênese do processo de opressão a aproxima do parâmetro análitico
proposto por Dephy. Sua argumentação indica que a origem da subordinação e exploração
encontra-se no própria distinção sexual e na dinâmica da família biológica.
Firestone caracteriza essa família biológica a partir de quatro aspectos fundamentais.
O primeiro deles diz respeito o fato de que as mulheres estiveram, durante toda a história, à
mercê de suas condições biológicas, como a menstruação, menopausa, amamentação e partos
dolorosos e, em função disso, tornaram-se dependentes em relação aos homens. O segundo
aspecto indica que os filhos exigem maior desempenho das pessoas adultas que os demais
animais e, portanto, seu vínculo de dependência é bastante significativo. Em terceiro lugar a
autora aponta para a interdependência entre mãe e filho, responsável por moldar a psicologia
das mulheres e, por fim, Firestone argumenta o fato de que a primeira forma de divisão sexual
do trabalho veio da condição natural de reprodução da vida humana.
A respeito do sistema de classes sexuais a autora aponta que:
De acordo com Rubin, a Psicanálise ajuda a entender o processo pelo qual as crianças
são, desde cedo, impregnadas com as convenções de sexo e gênero. Ou seja, a autora irá
buscar na Psicanálise uma teoria sobre a reprodução do parentesco, visto que a mesma
descreve “os mecanismos pelos quais os bebês são divididos e deformados, de como bebês
bissexuais, andróginos, são transformados em meninos e meninas”.
A partir de uma leitura crítica da antropologia de Lévi- Strauss e da psicanálise
freudiana, Rubin propõe que a revolução feminista deveria operar a partir de uma revolução
nos sistemas de parentesco. A proposta envolve resolver a crise edipiana da cultura
reorganizando o campo do gênero e do sexo, para que cada experiência individual seja menos
destrutiva e mais livre.E para isto, afirma Rubin (1975, p. 11) “nós necessitamos de uma
economia política dos sistemas sexuais”.
A complexidade do pensamento de Gayle Rubin tornou um pouco mais difícil a
empreitada aqui proposta de analisar os pontos de aproximação e distanciamento entre a sua
perspectiva feminista radical e o feminismo materialista de Delphy. Embora Rubin dê uma
grande atenção às modelagens sociais e culturais que acompanham uma socialização de
gênero de matriz heterossexual, privilegiando, portanto, a dimensão cultural dos processos de
opressão, sua concepção de cultura está intrinsicamente relacionada com a organização das
relações sociais concretas, com a divisão sexual do trabalho, com a economia política, não se
constituindo, portanto, em uma esfera autônoma e descolada das dimensões materiais da
realidade social.
Finalmente, a leitura de Kate Millet no livro Política Sexual, nos sugere pensar que a
raiz da opressão, para esta autora, é localizada sobretudo no âmbito cultural. A autora
apresenta a tese de que a transformação da situação das mulheres se daria em vias de uma
revolução sexual que promoveria o fim das inibições e dos tabus sexuais. Seu objetivo,
portanto, seria o de minar a instituição patriarcal, acabando com a chamada ideologia da
supremacia do macho e a tradição cultural que se mantém através dos papéis de gênero.
Segundo Millett (1974, p. 10):
para a mudança da realidade nos permite concluir que Millet, é a autora, dentre as analisadas,
que mais de afasta da proposta do feminismo materialista de Delphy.
Considerações finais:
A partir dessas considerações, cabe resgatarmos o questionamento que deu início a
discussão realizada ao longo deste trabalho: um feminismo radical é necessariamente
materialista? Os estudos feitos a partir das obras das autoras apresentadas aqui, nos permite
evidenciar pontos de aproximação e de distanciamento em relação às categorias propostas
pelos parâmetros analíticos de Christine Delphy.
No que se refere à Shulamith Firestone, a utilização do materialismo como recurso
para análise da guerra dos sexos, é ressaltada diversas vezes pela autora. Isto se deve ao fato
de que a opressão é compreendida nas dimensões econômica, cultural, política. Nessa
perspectiva, a capacidade reprodutiva das mulheres é o aspecto responsável por fundar a
primeira forma de divisão do trabalho. Dessa forma, Firestone se aproxima do feminismo
materialista, na medida que identifica a base material da opressão às mulheres própria
distinção sexual e a família biológica, propondo sua superação por meio da eliminação das
distinções que culminam na subordinação das mulheres e, para, além disso, na superação de
todos os sistemas de classe.
Em relação a análise de Gayle Rubin, há uma aproximação de uma leitura materialista
na medida em que ela compreende que as estruturas de parentesco constituem uma base
material relacionada a um elemento histórico e cultural que formam relações e identidades
sociais. Isso ocorre por uma interdependência da esfera produtiva e reprodutiva, no âmbito da
família. Assim, há uma produção, por meio da atividade humana, especificamente pelas
relações de parentesco que estruturam essas relações de gênero.
Diferentemente de Firestone e Rubin, a proposta de Kate Millett apresenta mais pontos
de distanciamento em relação ao feminismo materialista do que de aproximação. Ainda que a
autora trabalhe com a ideia de revolução, sua análise é restrita a nível cultural, haja vista sua
compreensão de que a estrutura do patriarcado se refere muito mais a um hábito de espírito e a
um tipo de vida do que a um sistema político determinado. Além disto, afirmação de Millett
(1974) de que as distinções sociais não estão baseadas na riqueza ou na posição social, mas no
sexo, pode ser vista como um outro fator que a afasta de uma perspectiva materialista, pela
pouca atenção concedida pela autora à maneira como a vida é materialmente produzida e
reproduzida. A transformação da situação das mulheres ocorreria, portanto, por um viés
ideológico e não no campo das instituições sociais. Além disso, a autora não recorre à
categoria da totalidade para compreender os processos de opressão.
Concluímos, portanto, que o feminismo radical não necessariamente será um
feminismo materialista conforme proposto por Delphy (1974), isto significa que, ainda que
algumas autoras aproximem-se da perspectiva materialista e da abordagem da opressão de
forma estrutural, outras autoras podem se afastar. O fato de o feminismo radical propor a
busca pela gênese da opressão e implicar em uma proposta de revolução sexual, por si só, não
confere a ele o conteúdo estrutural necessário para ser compreendido enquanto uma
abordagem notadamente materialista.
Referências:
DELPHY, Christine. A materialist feminism is possible. Feminist Review, no 4. Reino Unido,
março de 1980, pp. 79-105. Disponível em:
<https://link.springer.com/article/10.1057%2Ffr.1980.8>. Acesso em 28 maio 2018.
RUBIN, Gayle. Tráfico de Mulheres: Notas sobre a economia política do sexo. Recife: SOS
Corpo, 1993.
Lara Facioli1
1
Pós-Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UEL, doutora em Sociologia pela
Universidade Federal de São Carlos, email: larafacioli@yahoo.com.br
terá como objetivo sistematizar um conjunto de teorias feministas que nos auxiliam a refletir
sobre as relações que estabelecemos com as tecnologias e sobre como a teoria social se
debruçou sobre estas ferramentas tecnológicas.
Se as Tecnologias da Informação e da Comunicação se mostram espaços
privilegiados para sujeitos que, historicamente, se inseriram em relações de poder específicas,
no caso, relações de gênero que alocam as mulheres, via de regra, no polo fragilizado do
poder; notei, ao longo de meus levantamentos bibliográficos, que as teóricas feministas têm
apontado para os problemas e limites de nossa compreensão social acerca da tecnologia. Em
outras palavras, a tecnologia foi e é espaço de disputa social e também na teoria social e, as
teóricas com sensibilidade aguçada para relações de gênero, tem se colocado criticamente
neste campo de estudos com vistas a marcar posição e estabelecer um ponto de vista crítico,
contextual e que leva em conta as relações de poder que atravessam a temática da Tecnologia.
Isto posto, o trabalho apresentado aqui consiste em uma tentativa de apresentação de
parte da crítica feminista, especificamente aquela que contribui com o campo de intersecção
entre Ciências Sociais e Tecnologias. Partimos do pressuposto de que a teoria social feminista
foi uma das grandes vertentes teórico-conceituais que nos auxiliou a pensar este fenômeno
tanto de um ponto de vista crítico, quanto contextual e histórico, atentando para as relações de
poder e conflitos de interesses que compõem o debate em torno da temática da Tecnologia.
Tecnologia, para este texto, vale ressaltar, não se restringe somente àquelas
comunicacionais, mas em termos mais amplos, diz respeito às ferramentas técnicas de
utilização/transformação da realidade cotidiana. A leitura sobre o desenvolvimento
tecnológico, estabelecido pelas teóricas feministas mencionadas neste texto não se restringe às
mídias digitais e comunicacionais, apesar de fazermos, todo o tempo, o exercício de
pensarmos como este conhecimento é útil para a compreensão das relações mediadas pelas
Tecnologias da Informação e Comunicação da atualidade.
Para alcançarmos nosso objetivo, portanto, retomaremos a discussão de ciborgue de
Donna Haraway (1985) como possibilidade de ruptura dos padrões corpóreos de gênero, no
sentido de apontar como esta tese teve força no contexto de surgimento das tecnologias
comunicacionais, influenciado o movimento do ciberfeminismo; abordaremos a discussão
levantada por Teresa de Lauretis (1994), acerca da Tecnologia do Cinema que se constitui
enquanto o que a autora chama de Tecnologia de Gênero, discussão que, quando expandida
para a reflexão acerca das mídias digitais, nos possibilita colher bons frutos na compreensão
sobre a forma como as mídias digitais também instigam roteiros de inteligibilidade de gênero;
e, por fim, incorporaremos o debate da crítica ao mito do homem inventor que continua a
Estes elementos são demandados em pautas políticas dos novos movimentos sociais
atentos ao desenvolvimento da sociedade capitalista do século XX, cujas mudanças deixam
evidente a insuficiência do debate de classe, mobilizado pela teoria social marxista, no
tratamento das relações de poder daquele contexto. Em outros termos, a revolução socialista
não daria conta de proporcionar uma sociedade mais igualitária para mulheres, negros,
homossexuais e outros grupos também subalternizados. O poder, para grande parte desses
movimentos e teorias, se instaurava não somente nas relações econômicas, mas adentrava a
esfera da vida cotidiana, do lar, das relações afetivas e se instalava também no nível mais
molecular de nossa existência, o corpo.
Vale ressaltar que os Movimentos Feministas, efervescentes neste contexto, se
constituam enquanto grupos centrais capazes de propor tanto uma nova concepção de política,
com objetivo de politizar a esfera privada2 e dos afetos, como também pressionar as análises
sociais da época que apelavam, ainda, para a ortodoxia marxista e a centralidade das relações
econômicas no mundo social. Os chamados Novos Movimentos Sociais, principalmente os
feminismos, contribuíram para uma virada epistemológica e paradigmática na compreensão
da sociedade, na medida em que evidenciaram a centralidade da Cultura (HALL, 1997) na
vida contemporânea e nas relações que a sustentam. De forma mais simples, as relações de
poder são reproduzidas por discursos culturais, midiáticos, tecnológicos, educacionais e as
transformações precisam ocorrer também no nível dos valores, costumes, dos aspectos
simbólicos de existência.
O corpo como espaço afetado pelo poder e também como possibilidade de resistência
se evidencia, no caso dos movimentos feministas e de mulheres, com o advento, nos anos 60,
da Pílula Anticoncepcional, Tecnologia científica fundamental no processo de desvinculação
da sexualidade e das práticas sexuais da gestação e da maternidade. Para as mulheres
engajadas da época, seria possível, enfim, romper com o destino biológico da maternidade e
colocar em pauta o prazer, a autonomia de escolha ou não da vivência da maternidade e a
liberdade do próprio corpo, não mais vinculado ao roteiro final do “ser mãe”.
O ciborgue de Donna Haraway é fruto desse contexto e se constituía enquanto uma
criatura metafórica formada por uma fusão fundamental entre máquina e humano, mistura de
realidade social com a realidade ficcional, não constituindo um corpo sólido com
componentes definidos como este corpo de carne e osso que nos sustenta. Tratava-se da
2
Uma das bandeiras dos movimentos feministas dos anos 60 e 70 era sintetizada pela frase “O Privado
também é político”
o acesso delas às novas tecnologias e sobre as supostas transformações dos papéis de gênero
que as mídias poderiam proporcionar.
Um exemplo ilustrativo a respeito do cyberfeminismo é o coletivo australiano
VNSMatrix, formado basicamente por mulheres que enxergavam na internet um espaço de
experimentação. Isso envolvia estratégias, mediadas por blogs, salas de bate papo, elaboração
de instalações de vídeos, dentre outros tipos de atividades realizadas pelo grupo. Segundo
Virginia Barratt, uma das integrantes do grupo na época “a paisagem tecnológica era muito
seca, cartesiana, respeitosa. Era acrítica e esmagadoramente dominada por homens. Era um
espaço masculinista, nomeado assim, e os guardiões dos códigos (culturais e logos)
mantinham controle da produção de tecnologia.”3.
Esses grupos, portanto, tinham como objetivo fazer uso da rede para apresentar
outras possibilidades de vivência corporal, da sexualidade, com propostas que questionavam
as fronteiras entre corpo e máquina. Não à toa o ponto de partida do grupo foi a pornografia e
a elaboração de material audiovisual sobre o corpo da mulher e seu prazer. O Cyberfeminist
Manifest for the 21st Century, lançado pelo grupo na segunda metade da década de noventa
diz:
3
Para acessar entrevista completa: https://motherboard.vice.com/pt_br/article/um-historia-oral-das-
primeiras-ciberfeministas
4
Tradução livre
Youtube, que se baseiam na criação de conteúdo pelos usuários, mas apresentam todo um
suporte mercadológico de propagandas e investidores.
Dessa forma, a promessa de um futuro robótico, ciborgue e mais democrático
figurava na postura otimista dos movimentos ativistas desenvolvidos em rede e mesmo nas
teorias elaboradas nos anos 90, de advento das tecnologias comunicacionais e informacionais.
Com o passar do tempo e com o aprofundamento das reflexões em torno dessas
novas tecnologias comunicacionais, percebeu-se que a velha promessa de promoção de um
híbrido corpo-máquina, proposto por Haraway, bem como da criação de um espaço “virtual”
capaz de permitir ao sujeito um trânsito por fronteiras de gênero, não vingou. Pelo contrário,
em rede, os roteiros e identidades não somente estão colocados, da mesma forma que na
esfera desconectada, como também são reforçados pelo próprio mercado tecnológico e de
informações.
Voltaremos nesse debate mais adiante, mas é importante reter, até o momento, a
maneira como as reflexões de Donna Haraway auxiliaram a pensar sobre os limites e,
principalmente, sobre as possibilidades de potencias das Tecnologias. No interior das próprias
teorias feministas, quando debruçadas sobre este aparato técnico, vai surgir um repertório
teórico-conceitual que aponta para como tais ferramentas tecnológicas podem ser espaço de
manutenção de relações de gênero, mais do que da possibilidade ciborgue.
antes vista sem a mediação desses novos aparatos técnicos; segundo, mostra que tais
tecnologias não possuem, necessariamente, um potencial transformador, como esperava a
metáfora do ciborgue desenvolvida por Donna Haraway, elas não são neutras nem se
apresentam isentas de consolidar relações de poder atuantes nas diversas esferas sociais.
Podemos, neste momento de nossas reflexões, estender a análise de Lauretis àquelas
dinâmicas atravessadas não só pelas tecnologias de Broadcasting, ou seja, aquelas
caracterizadas pela produção de conteúdo de forma verticalizada cujo polo emissor é
concentrado em centrais televisivas e cinematográficas, mas também para as mídias digitais
com acesso a internet, cujo conteúdo é apresentado no formato em rede e também pode ser
produzido e compartilhado pelos sujeitos.
As mídias digitais e as diversas plataformas em rede como blogues, sites de notícias,
redes sociais como Facebook, Twitter também se apresentam enquanto tecnologias de gênero,
disseminadoras de repertórios de gênero específicos, mas não só, são estimulados recortes de
gênero, classe social, relações raciais, para mencionar alguns exemplos sobre como estes
aparatos tecnológicos atuam em nossas vidas e relações sociais.
A autora Danah Boyd (2001) em um texto recente onde analisou o papel das
identificações em comunidades online abordou como as plataformas em rede se utilizam de
três aspectos demográficos para definir o público que as integra, são elas: idade, sexo e
localização. Não havendo a possibilidade de recusar se expor por meio dessas categorias, uma
vez que, a própria dinâmica online persuade o sujeito a autoclassificação por meio de
mensagens como ―sexo é um valor necessário para realizar sua conta em nosso site‖; ―saber
sua localização melhora os serviços que podemos oferecer para você‖, dentre outras.
Para a autora, tais características fazem das plataformas, espaços que, ao contrário de
permitir o reforço da diferença e a diversidade de perfis de sujeitos, nos conduz a uma
generificação através do sexo biológico, dando possibilidade de só existirem homens ou
mulheres no preenchimento dos perfis e também prevê, por meio da localidade e do código
postal, o CEP, recortes de classe social e de raça. Este aspecto facilita a seleção de imagens,
propagandas e códigos de consumo que irão aparecer para os frequentadores daquele site ou
rede social.
Esta recolhida de informações a respeito dos sujeitos, cobrada pelos anunciantes das
plataformas, não seria possível com tamanha eficiência nos espaços off-line, como é na
internet onde a possibilidade de preenchimento de perfis em larga escala, permite um fluxo de
informações rápido e intenso. Dessa forma, a dinâmica em rede permitiu, como nunca antes,
técnica, Estado, mercado, pessoas entre outros fatores. Muito embora a autora se debruce com
bastante afinco nas tecnologias comunicacionais, este debate pode se expandir para análise de
qualquer aparato tecnológico e também de discursos, práticas e “descobertas” científicas.
Em outros termos, esta tese se opõe tanto àquela que aponta para o determinismo
tecnológico, ou seja, que tenta mostrar a tecnologia como aquilo que constrói relações sociais
e que manipula os sujeitos a determinado tipo de ação, quanto àquelas teorias consideradas
otimistas acerca da tecnologia e também da ciência como promotoras de uma concepção
confiante na possibilidade de superação dos dilemas sociais. Dentre os teóricos e teóricas que
apresentam uma análise otimista acerca da função das tecnologias na sociedade, podemos
mencionar também as teorias utópicas, das quais faz parte, por exemplo, Pierre Levy (1999),
que se dedicou com maior foco às promessas das tecnologias como superadoras de fronteiras
e de diferenças, como espaço de desenvolvimento de outras realidade, no Cyberespaço, que se
distinguiriam das formas convencionais de vida. Em termos mais amplos, a crença no
progresso e no desenvolvimento científico e tecnológico é aquilo que marca as sociedades
modernas e que faz com que se alimente a crença na ideia de que estes saberes,
conhecimentos e técnicas são isentos e neutros de interesses e conflitos.
A tese da modelagem, desenvolvida por Wajcman, se contrapõe a essa concepção de
que tanto a ciência, quanto a tecnologia possuem um desenvolvimento autônomo em relação
às forças sociais de uma sociedade. De acordo com a autora:
Referências
______. Conectadas: uma análise de práticas de ajuda-mútua feminina na era das Mídias
Digitais. UFSCar, 2013. São Carlos: Dissertação de Mestrado (Sociologia – UFSCar), São
Carlos.
HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Revista Educação e Realidade, v.2, número 2, 1997.
HARAWAY, D. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
século XX. In. Tadeu, T.(Org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções científicas. 11ª Edição, São Paulo: Editora.
Perspectiva, 2011.
LAURETIS, Teresa. Tecnologia de Gênero. In: Tendências e Impasses, o feminismo como
crítica da Cultura. Editora Rocco, Rio de janeiro, 1994.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
WAJCMAN, Judy. The social shaping of technology. 2nd ed., Open University Press,
Buckingham, UK, 1999.
WILLIAMS, R. Televisão: tecnologia e forma cultural. Trad. Márcio Serelle; Mário F. I.
Viggiano. 1a ed. São Paulo: Boitempo; Belo Horizonte, PUCMinas, 2016.
Silvana Mariano1
Márcio Ferreira de Souza2
Lina Penati Ferreira3
Resumo: Nos estudos sobre as vivências das mulheres, por vezes enxergamos puramente
subordinação; outras vezes vislumbramos demasiado voluntarismo. É possível uma agenda de
pesquisa feminista que realize investigações com mulheres escapando de concepções
ontológicas que as tomam universalmente como vítimas, sem capacidade de agir e escolher, ou,
outras vezes, atomizadas e com elevada capacidade de transformação? A presente proposta trata
da problematização sociológica a respeito das teorias da agência em busca de formulações
capazes de orientar estudos que abordam a autonomia de mulheres em situação de pobreza.
Partimos das perspectivas críticas feministas, embasando-nos em discussões travadas por
intelectuais de diferentes nacionalidades e matizes teóricos que buscaram apresentar um novo
ponto de vista acerca dos olhares que emergiram sobre o indivíduo e a individualidade na
modernidade. Temos como objetivo informar investigações sobre a autonomia das mulheres
em situação de pobreza, em grandes centros urbanos, adotando-se a perspectiva interseccional
que leva em consideração, em especial, os cruzamentos de gênero, raça e classe. Nesse
empreendimento articulamos contribuições do campo do feminismo negro com a abordagem
das capacidades e a sociologia da reflexividade. Com este esforço, estamos compondo uma
moldura explicativa que nos permita acessar as percepções que nossas entrevistadas apresentam
sobre suas trajetórias e aspirações de vida, observando um repertório de narrativas que
interconectam as relações de gênero, de classe, de trabalho e da família.
1
Universidade Estadual de Londrina, doutora em Sociologia pela UNICAMP e professora adjunta do
Departamento de Ciências Sociais da UEL, silvanamariano@gmail.com
2
Universidade Federal de Uberlândia, doutor em Sociologia pela UFMG e professor associado do Instituto de
Ciências Sociais da UFU, marcfs@uol.com.br
3
Universidade Estadual de Londrina, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEL,
linapenati@gmail.com
Introdução
4
Parte das críticas à agenda do desenvolvimento pode ser encontrada em: CORNWALL, Andréa; HARRISON,
Elizabeth; WHITEHEAD, Ann. Introdução: reposicionando feminismos em gênero e desenvolvimento. Revista
Feminismos, v. 1, n. 1, 2012.
Sobre um diálogo entre as críticas ao colonialismo e a defesa de uma concepção feminista de desenvolvimento
universalista, ver: NUSSBAUM, Martha Craven. Las mujeres y el desarrollo humano. Herder Editorial, 2012.
denúncia, adota, muitas vezes sem se dar conta, concepções políticas que vitimizam ou
infantilizam todas as mulheres. As agendas feministas que dão destaque a temas como violência
contra a mulher, assédio e estupro incorreriam frequentemente em abordagens vitimistas.
Podemos interpretar o questionamento levantado por Badinter como a reinvindicação por uma
abordagem que reconheça o agenciamento feminino, isto é, que reconheça as mulheres como
seres dotados da capacidade de agir e de realizar escolhas. Encontramos o mesmo tipo de
reivindicação também em autoras como Angela Davis (2016) e hooks (2015). As abordagens
que vitimizam ou infantilizam as mulheres são igualmente aquelas que adotam o mito da
fragilidade feminina, e tal mito é informado por referências de classe e de raça (DAVIS, 2016
e hooks, 2015). De comum entre essas posições vemos a defesa de um feminismo que opere
com noções e categorias que deem conta da diversidade das mulheres e que as reconheça como
agentes. Se há algum acordo em torno dessas reivindicações, concordaremos que a autonomia
feminina passa pela agência e que não existe agência sem individualização.
Neste ponto nos encontramos com a abordagem das capacidades como suporte de uma
teoria da justiça universalista que oriente as políticas de desenvolvimento.
"a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas
as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo" (GIDDENS, 2003, p. 2). A tentativa do
autor é por desenvolver uma teoria que não sufoque ou acabe com a autonomia do indivíduo,
sem que, para isso, tenha que se abrir mão de pontuações específicas sobre certas condições
sociais previamente determinadas no âmbito social.
Assim, a noção de agente proposta pela teoria da estruturação de Giddens envolve
“aspecto inerente do que [esses agentes] fazem, a capacidade para entender o que fazem
enquanto o fazem” (GIDDENS, 2003, p. XXV). Nessa concepção estão incluídas as
capacidades reflexivas do cotidiano, que estão diretamente relacionadas à consciência prática,
à capacidade de agir e à consciência discursiva, à capacidade de refletir e explicar o próprio
agir. Assim, o monitoramento reflexivo é uma característica da ação cotidiana do próprio
indivíduo, bem como a racionalização da ação, que se faz presente por meio de um
"entendimento teórico" que o agente tem das bases de suas atividades – o que não significa
poder explicar as bases de sua racionalidade discursivamente, como esperam alguns autores
(GIDDENS, 2003).
Mais específica é a noção de agência proposta pelo mesmo autor. Ela “não se refere às
intenções que as pessoas têm ao fazer as coisas, mas a capacidade delas para realizar essas
coisas em primeiro lugar” (GIDDENS, 2003, p. 10). Envolve a ideia de escolha para agir de
modo diferente, ou até mesmo não agir – caso seja uma escolha. Mas aqui vale atentar para o
fato de que motivações e ações não são as mesmas coisas. Como afirma Giddens (2003, p. 11),
posso ser “autor de muitas coisas que não tenho a intenção de fazer e que posso não querer
realizar, mas que, não obstante, faço. Inversamente, pode haver circunstâncias em que pretendo
realizar alguma coisa, e a realizo, embora não diretamente através de minha "agência""
(GIDDENS, 2003, p. 11).
Margaret Archer (2011), por sua vez, também se dedica a esse clássico desafio
sociológico e, travando controvérsias com Bourdieu e Giddens, se dedica à produção de um
arranjo teórico que dê conta de explicar relação entre habitus e reflexividade. Autores que se
dedicam a essa empreitada compartilham da avaliação de que, a despeito das promessas, a
sociologia de Bourdieu se revela ainda predominantemente determinista, enquanto a sociologia
de Giddens, em contraposição, exageraria a capacidade de agência do indivíduo. Archer
pretende avançar nesse terreno com a análise morfogenética, operando com o entrelaçamento
da estrutura, da cultura e da agência. Estas são coisas que se entrelaçam, mas não são
inseparáveis. Uma concepção deste tipo oferece-nos contribuições para explicações sobre a
relação entre mudança e conservação social, além de entrelaçar também diferentes níveis de
análise, o micro, o meso e o macrossocial.
O arcabouço de Archer nos oferece uma moldura explicativa para as formas de ação
das mulheres, tendo em vista a questão central em torno da relação entre habitus e reflexividade.
Como essas mulheres agem em seus respectivos contextos? Como suas trajetórias são marcadas
por constrições sociais como também por escolhas? Como tratar do peso dos sistemas de classe,
de gênero e de raça? Para Archer (2011, p. 159), “as influências da ordem social sobre a agência
não devem ser localizadas nem inteiramente no interior dos agentes nem inteiramente fora
deles”.
Quando nos dedicamos às investigações sobre autonomia feminina em contextos de
pobreza urbana, há um pano de fundo do interesse de nossa agenda de pesquisa que envolve o
tema da mudança social. Para o tratamento desta questão, nos apoiamos novamente em Archer.
Para a autora, “todas as propriedades estruturais encontradas em qualquer sociedade são
continuamente dependentes da atividade. Não obstante, é possível separar estrutura e agência
por meio do dualismo analítico e examinar suas relações de forma a dar conta da estruturação
e reestruturação da ordem social” (ARCHER, 2011, p. 161-2). Neste processo ocorre uma
dupla morfogênese, a transformação da estrutura e da agência, o que deve ser explicado tanto
em termos diacrônicos como sincrônicos.
Ainda para Archer (2011, p. 179),
A única maneira de explicar com alguma precisão o que as pessoas
fazem, em vez de recorrer a correlações entre pertencimento grupal e
padrões de ação, cujo poder de explicação, via de regra, deixa a desejar,
será atingir o equilíbrio certo entre poderes emergentes pessoais, culturais
e estruturais. Para dar conta tanto da variabilidade como da regularidade
nos cursos de ação tomados por aqueles situados em posições similares,
é preciso reconhecer nossa singularidade como pessoas, sem negar que
nossa socialidade seja essencial para que sejamos reconhecíveis como
pessoas humanas.
Para nossos propósitos do momento, devemos destacar que os estudos feministas, com
as críticas às noções como objetividade, subjetividade, sujeito, classe social, entre outras
contribui significativamente para esses empreendimentos de reformulações teóricas
(MARIANO, 2008).
A noção de agência, mesmo em suas variações entre Giddens e Archer, está próxima
do conceito de capacidades desenvolvido por Amartya Sen (2012) e Nussbaum (2002). Na
lógica de Sen, a vida é entendida como um conjunto de modos de ser e exercer atividades. Dessa
forma, a avaliação da vida é a avaliação das capacidades de se efetivar essas atividades e
funcionamentos. Se, por um lado, os funcionamentos são elementos constitutivos da vida, por
outro, as capacidades são as combinações de funcionamentos que uma pessoa pode atingir,
sendo que as capacidades são centrais, pois refletem a liberdade de escolher o modo de viver.
Assim chegamos a três conceitos-chaves para o enfoque das capacidades: funcionamento,
capacidade e liberdade (SEN, 2012). Por funcionamento Sen entende os estados e ações inter-
relacionados das pessoas, que abrangem desde questões nutricionais até a participação na vida
comunitária. Seriam exemplos de funcionamento desde o fato de ter uma nutrição adequada, de
não estar doente ou a perspectiva de se evitar a morte prematura, até questões mais abrangentes,
como ser feliz, ter respeito próprio, participar da vida em comunidade, entre outros (SEN,
2012).
A ideia de capacidade está diretamente ligada e próxima à de funcionamentos. A
capacidade é um conjunto de variáveis (funcionamentos) relevantes para o bem-estar de uma
pessoa (AZEVEDO; BURLANDY, 2010). Sen (2012) toma a comparação entre orçamento e
capacidades como exemplo, isto é, “da mesma forma que um ‘conjunto orçamentário’ no
espaço de mercadorias representa a liberdade de uma pessoa para comprar pacotes de
mercadorias, um ‘conjunto capacitário’ reflete, no espaço de funcionamentos, a liberdade da
pessoa para escolher dentre vidas possíveis” (SEN, 2012, p. 80).
É dessa forma que a ideia de liberdade já aparece como central na teoria de Sen.
Significa as oportunidades reais para realizar os funcionamentos, isto é, a liberdade para
escolher a vida que deseja ser vivida. Liberdade deixa de ser então um meio, um “pacote de
bens primários”, e passa a ser vista como fim, como o conjunto capacitário que permite ou não
que a pessoa converta funcionamentos em bem-estar. Assim, para Sen, há um abismo entre “o
fazer” e “o escolher fazer e se assim desejado, fazê-lo”. Por exemplo, o jejum é a escolha sobre
não comer. Assim, o indivíduo utilizou-se de sua liberdade, de seu “conjunto capacitário”, para
tomar tal decisão; situação muito diferente daquele que “passa fome”, em que o não comer não
é uma escolha, mas a única realidade possível (SEN, 1993, 2012).
A aproximação da ideia de agência de Giddens (2003) e de capacidade de Sen (2012)
nos parece viável uma vez que ambos estão tratando do indivíduo enquanto um ser que possui
a possibilidade de agir, e não o entende enquanto um “drogado sistêmico” como algumas teorias
chegaram a afirmar, isto é, um indivíduo sem capacidade para atuar frente a estruturas, sistemas,
coerções, etc. Outra aproximação possível se dá pelo refinamento de ambas as perspectivas em
distinguir a ação da vontade de agir ou da capacidade de agir.
A teoria da estruturação, porém, vai além do reconhecimento da agência. Giddens
(2003) adiciona em sua proposta o conceito de agência relacionado à concepção de poder.
Assim como em Bauman, agência, capacidade, liberdade e poder estão estritamente
relacionados, pois “quanto maior minha margem de manobra, maior o meu poder. Quanto
menos liberdade de escolha tenho, mais fracas são minhas chances de luta pelo poder”
(BAUMAN, 2008, p. 47). Enquanto as teorias estruturalistas e objetivistas partem do
pressuposto de que, quando há coerção ou quando o indivíduo “não tem escolha”, não há uma
ação, como se suas atitudes fossem sempre reações, a noção de agência oferece um caminho
para compreender a ação do indivíduo. Então, “a ação depende da capacidade do indivíduo de
‘criar uma diferença’ em relação ao estado de coisas ou curso de eventos preexistente. Um
agente deixa de o ser se perde a capacidade para ‘criar uma diferença’, isto é, para exercer
alguma espécie de poder” (GIDDENS, 2003, p. 17). Nesse sentido é que as concepções de
agência e poder até agora apresentadas podem se alinhar ao que parte da teoria feminista vem
ressaltando.
A abordagem das capacidades, muito frequentemente atribuída a Sen, conta também
com importantes contribuições de Martha Nussbaum (2002) colocando as mulheres no centro
dos debates sobre desenvolvimento5. Um dos aspectos que Nussbaum destaca de sua obra é a
vinculação que ela faz entre a abordagem das capacidades e o liberalismo político. Com isto,
queremos chamar atenção para o fato de que esta abordagem, a exemplo das teorias da agência,
concede valorização especial às escolhas, ou preferências, para empegar o conceito adotado por
Nussbaum. Portanto, o indivíduo é um tópico especial de reflexão nessas concepções. Ao tratar
das capacidades humanas e seu vínculo com os desafios para o desenvolvimento humano,
Nussbaum defende uma análise que considere os aspectos econômicos, institucionais e
emocionais. Tal abordagem é compatível com aquela defendida por Archer que opere com o
entrelaçamento entre estrutura, cultura e agência.
Como aponta Nussbaum (2002, p. 28),
con demasiada frecuencia se trata a las mujeres no como fines em sí
mesmos, como personas con una dignidade que merece respeto por
parte de la leyes e de las instituiciones. Por el contrario, se las trata
como meros instrumentos para los fines de otros: reproductoras,
encargadas de cuidados, puntos de descarga sexual, agentes de
prosperidade general de uma família. A veces, este valor instrumental
es fuertemente positivo; outras veces, puede ser realmente negativo.
Seu enfoque das capacidades pressupõe a consideração das mulheres como indivíduos
e exige, como centro normativo de sua teoria, que se tome as mulheres como um fim em si
mesmas. Considerando a constatação de que as desigualdades entre os sexos é um fenômeno
5
Embora Sen tenha alcançado grande notoriedade com a abordagem das capacidades, interessa-nos igualmente os
aportes de Nussbaum para essa abordagem. Aqui não teremos espaço e oportunidade para discorrer sobre as
aproximações e distanciamentos entre as duas propostas.
global, bem como as indicações das fortes correlações entre desigualdades de gênero e pobreza,
Nussbaum (2002, p. 31-2 – tradução nossa) incita que
o pensamento político e econômico internacional deve ser feminista,
atento, entre outras coisas, aos problemas especiais que as mulheres
enfrentam por causa de seu sexo em quase todas as nações do mundo,
problemas sem cuja compreensão não se pode enfrentar corretamente
os temas da pobreza e do desenvolvimento.
Tal crítica, conduzida por hooks a Betty Friedan, é também direcionada de modo mais
generalizado às mulheres brancas que dirigem o movimento feminista contemporâneo no
sentido de que estas “raramente questionam se sua perspectiva sobre a realidade da mulher se
aplica às experiências de vida das mulheres como coletivo” (hooks, 2015: 195), ainda que venha
a registrar a emergência de uma consciência mais elevada sobre os preconceitos de raça e classe
nos últimos anos, no âmbito do movimento feminista. O resultado da “recusa feminista” em
atentar para as hierarquias sociais, contribuiu para a negligência da articulação entre raça e
classe. Neste sentido, hooks defende a argumentação de que “apenas se analisando o racismo e
sua função na sociedade capitalista é que pode surgir uma compreensão profunda das relações
de classe. A luta de classes está indissoluvelmente ligada à luta para acabar com o racismo”
(hooks, 2015: 215-216).
Tomando hooks como referência, podemos observar que um ponto de partida para a
reflexão sobre a dimensão da autonomia pode ser identificado em um campo de oposição que
nos conduz ao questionamento sobre a que a autonomia se contrapõe. Interessa-nos refletir
sobre a dimensão sociológica e política da autonomia, fundamentando-nos nas perspectivas
feministas, em particular o próprio feminismo negro, que tem levado a cabo a abordagem crítica
e desconstrucionista do termo.
Do ponto de vista teórico, hooks contribui para a possibilidade de reflexão sobre a
própria condição das mulheres em situação de pobreza no Brasil. Para tratarmos da questão da
autonomia dessas mulheres, é fundamental considerarmos a perspectiva interseccional, que
garantirá, do ponto de vista empírico, compreendermos com mais clareza a realidade específica
de tais mulheres.
Se hooks reconhece a conexão raça e classe como condição sine qua non para a questão
feminista, Patricia Hill-Collins lança um olhar sobre a problemática seguindo em direção
similar, ao enfatizar, por sua vez, que
problemática aventada por esse autor martinicano com o propósito de abordar a identificação
do dominado com o dominador a fim de estabelecer fontes explicativas para uma melhor
compreensão acerca da questão racial e do sexismo na cultura brasileira, contribuindo, desse
modo, com o processo de desconstrução da propagada e cristalizada ideia de “democracia
racial” no Brasil ou com o “esquecimento” das categorias raça e sexo na compreensão de nossa
formação cultural, conforme identificada nas leituras que faz de intérpretes do Brasil como,
respectivamente, Gilberto Freyre e Caio prado Júnior. A categoria de interseccionalidade, que
é apontada como uma problemática relevante em Kimberlé Crenshaw, na década de 1990, para
a reflexão sobre as condições das mulheres negras, já se fazia presente em Lélia Gonzáles, senão
pelo uso do termo específico, mas pelo significado por ele carregado.
Pensar as teorias sociais sobre a agência a partir das contribuições do feminismo negro
e das perspectivas sobre a interseccionalidade, tão propagadas por essa corrente de pensamento,
nos possibilita compreender com mais clareza os dispositivos de desigualdades como estruturas
hierárquicas calcadas em relações de poder. A proposta teórica de Crenshaw em sua abordagem
sobre a interseccionalidade, bem como das outras autoras negras aqui citadas, que se dedicaram
às reflexões sobre as condições de opressão das mulheres, aponta para o forte vínculo entre
ideologia e poder que se estabelece em favorecimento do controle de grupos de dominantes
sobre os seus subordinados alimentando, dessa maneira, justificativas, nem sempre muito
claras, para os dispositivos de opressão.
Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi elucidar algumas abordagens sobre autonomia e
agenciamento na teoria social e feminista, por entendermos que estas podem contribuir nas
pesquisas com foco na situação de mulheres pobres. Diferente do que tradicionalmente se
afirmou, pessoas em situação de pobreza possuem, ainda que com certos constrangimentos,
possibilidades de agir. As noções debatidas neste texto, como indivíduo, agência, autonomia,
capacidades e interseccionalidade, compõem um arcabouço teórico para lidar com esse tipo de
temática.
A combinação de teorias que dão centralidade à capacidade de agir do indivíduo, mesmo
frente a barreiras e estruturas, nos parece uma saída para lidarmos analiticamente com a
problemática relativa às mulheres em situação de privação. Além disso, ao evocar as
contribuições do feminismo negro, nos deparamos com uma realidade multifacetada, isto é, na
qual as categorias como gênero, raça e classe devem estar disponibilizadas de modo a se
articularem para, desse modo, melhor contribuir para a possibilidade de efetivação de análises
que garantam abarcar com mais precisão a complexidade que caracteriza a problemática em
questão.
De todo modo, ainda resta saber qual de fato é a realidade das mulheres em situação
de pobreza nos grandes centros urbanos brasileiros. Como essas mulheres tem lidado com as
situações de privação a que estão expostas? Quais as possibilidades de agenciamento nessas
condições? Quais estratégias têm sido mobilizadas nas tentativas de melhoria de vida? Essas
são questões que devem ser verificadas empiricamente, para que sejam melhor respondidas,
sem que se perca o horizonte teórico aqui abordado.
Referências
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Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.
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pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr.
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______. Feminism is for everybody: Passionate politics. Cambridge, MA: South End Press,
2000.
______. Feminist theory from margin to center. Boston, MA: South End Press, 1984.
Resumo: Posto que a violência é um fenômeno estrutural e cultural, ela ainda ocorre de maneira
diferente entre mulheres e homens adultos. Pois, enquanto eles são as principais vítimas da
violência urbana, as mulheres são da doméstica e familiar, aquela que faz parte do que
conhecemos como violência de gênero, que é um tipo de violência orientada pelo gênero da
vítima. Dentre os cinco tipos de violência contra a mulher definidos pela Lei Maria da Penha,
a violência sexual é o objeto de estudo da presente pesquisa. Essa violência possui forte caráter
de dominação e poder, na maioria das vezes do homem sobre a mulher; mantendo as mulheres
em constante estado de medo (FRENCH, 1990). Destarte, apesar da importância de estudos que
envolvam a atenção prestada às vítimas de violência sexual, constatou-se – a partir de revisão
bibliográfica prévia – que as pesquisas na área são escassas. Nesse sentindo, a presente pesquisa
busca entender quais são as representações dos profissionais da saúde sobre a violência sexual
contra a mulher. Para a realização da pesquisa foram escolhidas duas cidades do interior
paulista, onde foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os profissionais e posterior
análise destas utilizando a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2016). Também buscou-
se elaborar um perfil socioeconômico das vítimas e do agravo a partir de dados colhidos nos
boletins de ocorrência (BOs) feitos entre os anos de 2011 e 2016. Visto que a pesquisa se
encontra em andamento, os resultados obtidos giram entorno de algumas informações dos BOs
já colhidos e uma breve e prévia análise a partir das entrevistas já realizadas. A partir destes
dados, pode-se citar como apontamento preliminar o fato dos profissionais possuírem o mesmo
entendimento sobre o que é a violência sexual e, apesar disto, representarem as causas da
mesma de forma ambígua. Pois, ao tempo que a reconhecem como uma violência realizada
contra a vontade da vítima, alguns buscam justificar, mencionar como possíveis causas, a
ausência de educação para as vítimas – formas de se portar etc.
1
UNESP/FCLAr. Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCS/UNESP/FCLAr e Bacharela em Ciências Sociais
pela UECE. julietaparente@yahoo.com.br.
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p3 3
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ISSN 2177-8248
Introdução
Violência é um termo utilizado para nomear das mais cruéis às sutis formas de agressão
e está presente nas mais diversas formas de sociedade do mundo, ceifando todo ano a vida de
milhares de pessoas. É uma forma de legitimar o poder usada desde os primórdios da
humanidade.
Pode ser conceituada como o uso da força, seja ela física, psicológica ou intelectual
etc., para coagir outrem a fazer algo contra sua vontade; “constranger, incomodar, tolher a
liberdade de alguém; impedir outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de ser
gravemente ameaçada, espancada ou até mesmo morta” (BASTOS, 2011. p. 52).
No Brasil, ela atinge majoritariamente os pobres e não-brancos e ocorre, também, de
forma distinta a depender do gênero da vítima. As mulheres são as principais vítimas da
violência doméstica, bem como de violências que de alguma forma envolvam divisões
desiguais de força e poder. Este também é o caso de crianças e adolescentes, indivíduos que
historicamente (FALEIROS; FALEIROS, 2008) – assim como as mulheres – possuem menos
poder.
Apesar de na sociedade capitalista o principal fator de desigualdade e violência ser a
classe social, isto não desautoriza estudos que façam o recorte de gênero ou racial, visto que
estes fatores em conjunto aumentam as chances de sofrer alguma violência ao longo da vida,
e.g. mulher negra e pobre. Este é um estudo que tem recorte de gênero, e que tem a pretensão
de alguma forma auxiliar na construção de políticas públicas, pois compreende-se que é a partir
delas que algum processo de mudança social se torna possível.
Destarte, a violência sexual – como todas as formas de violência – atinge mais pessoas
em situação de vulnerabilidade. Seja pelo seu caráter de dominação e poder, por construções
desiguais de gênero, junto a condições de existência degradantes que coloquem os indivíduos
em situação de fragilidade perante outrem. É perpetrada, na maioria das vezes, pelo homem
sobre a mulher (BOURDIEU, 2015) – seja qual for a sua idade –, mas não apenas.
Ela é definida pelo Ministério da Saúde como toda ação “na qual uma pessoa em relação
de poder e por meio de força física, coerção ou intimidação psicológica, obriga uma outra ao
ato sexual contra a sua vontade, ou que a exponha em interações sexuais que propiciem sua
vitimização, da qual o agressor tenta obter gratificação” (Ministério da Saúde, 2001, p. 17),
podendo ocorrer tanto de forma forçada dentro de relações afetivas, bem como por meio de
estupro por desconhecido, abuso sexual infantil por parte de parentes ou conhecidos, assédio
sexual etc.
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Para além do seu caráter de dominação, a violência sexual também envolve outros
fatores sociais que, de maneiras diferentes, facilitam a sua ocorrência. Por exemplo: uma
socialização não desigual entre os sexos; uma socialização que, não necessariamente, seja
sexualizada e que envolva outros meio de interagir com outrem; condições de existência não
degradantes (SOUZA, 2016); ruas bem iluminadas; moradias adequadas; venda mais regulada
de álcool; baixo crescimento da economia; alto desemprego alto; uma socialização precária que
refletem em interações precária; normalização de comportamentos violentos e machistas por
parte da mídia (SILVA, 2016) etc. O ponto é: a criminologia crítica demonstra que o crime é
um fato social e que vários vetores contribuem para a ocorrência ou não dele. O enfretamento
dessa violência, portanto, depende da mudança de fatores sociais, seja no campo da prevenção,
tratamento ou punição.
Destarte, os dados entorno da violência sexual dão conta de aproximadamente 50 mil
estupros consumados e quase 7 mil tentativas registrados pela polícia no ano de 2017, de acordo
com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017. No entanto, Cerqueira e Coelho (2014)
apontam que esse número representa cerca de 10% do total de casos que ocorre anualmente.
Um estudo feito pelo Ipea em 2014, estima que ocorrem anualmente no país cerca de
527 mil tentativas ou estupros consumados (CERQUEIRA; COELHO, 2014). As razões da não
denúncia são diversas, seja por vergonha, por sentir-se culpada ou ainda por sofrer a violência
dentro de uma relação afetiva e não reconhecê-la enquanto um estupro. Isto acaba por
subnotificar este tipo de violência, gerando dados que possivelmente não dão conta da realidade
do problema.
Mesmo quando denunciados à polícia, muitos desses casos não chegam ao sistema de
saúde, trazendo à tona duas questões centrais: a) os profissionais não estão sabendo identificar
vítimas dessas violências, logo não há notificação da sua existência; ou b) as vítimas,
efetivamente, não procuram os serviços se saúde na pós-violência (BARROS, 2014).
Pesquisas também indicam para diferentes fluxos de continuação da denúncia pós-
violência (VARGAS, 2008), para o não uso adequado ou completo do protocolo de atendimento
do Ministério da Saúde para casos de violência sexual (ANDALAFT NETO et al, 2012), bem
como a falta de articulação entre os sistemas de segurança e saúde (COSTA, 2015), ou dentro
do próprio sistema – no caso, saúde – para a continuação do tratamento (BARROS et al, 2015).
Para além das questões sociais e psicológicas envolvidas, reconhecendo-se o estado de
fragilidade da vítima, problemas como não uso de protocolos adequados e falta de articulação
entre ou dentro dos próprios sistema de apoio podem dificultar o tratamento na pós-violência
ou, ainda, afastar este indivíduo que não mais procura os serviços.
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Nesse sentido, estas informações nos levam a questionar o que ocorre para a não adesão
das vítimas nos processos de tratamento do agravo, no que se refere ao atendimento prestado
pelos profissionais de saúde. Há algo nesse atendimento que afasta a vítima, provocando a sua
não adesão no tratamento?
Destarte, o papel dos profissionais de saúde que realizam o primeiro atendimento é
importante na medida em que as impressões da vítima – muitas vezes já fragilizada pela
violência – sobre o atendimento recebido vão influenciar na sua adesão, ou não, ao tratamento,
seja ele profilático ou psicológico, que são importantes na medida em que previnem de
possíveis DSTs, uma gravidez indesejada etc., e auxiliam no processo de ressocialização deste
indivíduo após o episódio de violência.
Do ponto de vista psicológico, traumas não tratados podem não ser evidentes num
primeiro, mas virem à tona anos depois ou causarem problemas relacionados a síndromes do
pânico. Este tipo de problema causa um processo de adoecimento no próprio indivíduo e na sua
família, além de atrapalhar na sua inserção social e econômica na sociedade.
De modo que os profissionais que de alguma forma não realizam um bom acolhimento,
de maneira mais humanizada – percebendo o indivíduo enquanto sujeito e não só como um
corpo de necessita de tratamento –, podem afastar essas vítimas ou, ainda, revitimizá-las.
Isto posto, o questionamento entorno do atendimento prestado a vítima, mas,
principalmente, sobre como os profissionais da saúde representavam a violência e a vítima,
surgiu. Pois, estudos dão conta que mesmo em locais de referência para o atendimento, muitos
profissionais deixam suas preconcepções sobre o agravo se fazerem presentes no momento do
atendimento (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; LIMA,
2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al, 2015; COSTA, 2015).
A questão se torna mais significativa por não haver muitos estudos que envolvessem a
temática da violência sexual, juntamente ao atendimento na saúde e a forma como os
profissionais a representavam. A maioria das pesquisas já realizadas dizem respeito ao
acolhimento da vítima no sistema de saúde, na segurança, perfis sociodemográficos sobre quem
sofre mais com este tipo de agravo – de acordo com notificações na saúde ou segurança
(OLIVEIRA et al, 2005; MATTAR et al, 2007; SOUZA, 2012; FACURI et al, 2013; BARROS,
2014; LIMA, 2014; DELZIOVO et al, 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017).
No entanto, poucas foram as pesquisas encontradas quando o questionamento principal
girava entorno de “como os profissionais de saúde representavam a violência sexual contra
mulheres”.
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Nesse sentido, optou-se por estudar duas cidades de médio porte do interior paulista:
São Carlos e Araraquara. Essa escolha foi feita pela possibilidade de realização da pesquisa nos
dois municípios, seja pela sua proximidade e pela facilidade de locomoção da autora em ambas,
além da ausência de pesquisas sobre o tema2.
Ambas as cidades são similares tanto demográfica e economicamente, como em
qualidade de vida. Araraquara é um município que possui aproximadamente 220 mil habitantes
(IBGE, 2010) e ocupa atualmente o 14º no Ranking do Índice de Desenvolvimento Humano
dos Municípios Brasileiros (IDHM). É um pólo universitário, abrigando universidades públicas,
particulares e institutos de formação técnica. Possui uma ampla rede de saúde, contado com
dois hospitais públicos, além de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas
de Saúde (UBSs). Porém, atualmente não possui um protocolo de atendimento a vítimas de
violência sexual, um fluxograma para melhor visualização de como deve ser realizado o
atendimento ou um centro especializado para o tratamento deste agravo, apesar de possuir um
Centro de Referência da Mulher (CRM).
São Carlos, por sua vez, é também um importante centro regional industrial, além de
pólo acadêmico – com duas grandes universidades públicas, além de institutos de formação
técnica e faculdades particulares. Conta com uma população de 242 mil habitantes (IBGE,
2010) e com uma rede de saúde um pouco menor, possuindo dois hospitais públicos, uma
quantidade inferior de UPAs (cinco, ao total), bem como uma rede de UBSs. No município,
porém, diferentemente de Araraquara, há um protocolo de atendimento a vítimas de violência
sexual e um local específico para o atendimento destes indivíduos, que é realizado no Centro
de Especialidades do Município (CEME), dentro do Ambulatório de Sexualidade Humana em
conjunto com o Programa de Atendimento a Vítimas de Abuso e Violência Sexual (PAVAS).
Com relação ao crime de estupro, a partir de dados da Secretaria de Segurança Pública
do Estado de São Paulo (SSP-SP), em Araraquara nos três primeiros meses desse ano foram
registrados 16 consumados, em 2017, 66 e, em 2016, 43. Em São Carlos: 4, 27 e 31,
respectivamente. Nas duas cidades, analisando dados dos últimos cinco anos, cerca de 80% dos
casos são de mulheres/meninas. Também em 80% dos casos, o crime ocorreu em residências.
Quase 70%, são de vulneráveis3.
2
A partir da realização de revisão de literatura, nenhum estudo já publicado sobre a temática foi encontrado em
ambas as cidades.
3
Lei nº 12.015, 7 de agosto de 2009. Artigo 217 do Código Penal (CP).
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Metodologia
A partir do que foi posto, optou-se por realizar uma pesquisa de abordagem mista –
metodologia qualiquantitativa (CRESWELL, 2007). Tem-se como objetivo geral compreender
como os profissionais da saúde representam a violência sexual contra a mulher, e objetivos
específicos: a) entender como se estrutura o atendimento prestado as vítimas de violência
sexual; b) conhecer as representações sociais dos profissionais da saúde, que atendem essas
vítimas, sobre o crime; c) construir o perfil das vítimas e dos crimes; d) confrontar o perfil das
vítimas e dos crimes com as representações colhidas; e) analisar de que formas as
representações podem influenciar na prática do atendimento prestado às vítimas; e f)
compreender se essas representações podem contribuir para a naturalização da violência.
No entanto, neste artigo serão apresentados apenas resultados prévios desta pesquisa, de
modo que todos os objetivos não estarão presentes pois, para tanto, necessitam de um melhor
desenvolvimento e a realização de mais entrevistas com os profissionais.
A escolha dos profissionais de saúde como participantes da pesquisa deve-se pela a
importância destes profissionais no primeiro atendimento prestado as vítimas de estupro –
sendo eles os principais responsáveis por orientar a vítima na realização da profilaxia das
infecções sexualmente transmissíveis, tais como HIV, a contracepção de emergência e
realização de exames, além de um acolhimento psicológico – bem como na promoção de meios
para a sua prevenção. De modo que se deu prioridade a profissionais como enfermeiros,
médicos, psicólogos e quaisquer outros profissionais que participassem desse primeiro
atendimento.
Este estudo se justifica pela necessidade de um melhor entendimento de como os
profissionais que atendem as vítimas de violência sexual representam o agravo e como isso
reverbera no atendimento prestado, visto que a forma como eles prestam o atendimento diz
muito sobre como representam a violência. Afinal, tais práticas podem não só revitimizar o
indivíduo que está em busca de assistência, como agravar os traumas e consequências da
violência caso o atendimento não seja feito de forma adequada.
Parte-se da hipótese que os profissionais possuem representações que vão ao encontro
do senso comum, mesmo com toda a capacitação que eles em princípio recebem. A partir do
resultado de pesquisas anteriores (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES;
MINAYO, 2006; LIMA, 2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al,
2015; COSTA, 2015), supõe-se que apesar de suas formações, as representações socialmente
aprendidas e reforçadas são mais fortes, acabando por repercutir de forma implícita no
atendimento para com as vítimas e na naturalização da violência.
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É recorrente na fala dos entrevistados que estas vítimas são não só maioria de
mulheres, mas de mulheres jovens ou crianças. Este dado converge com as informações
encontradas junto a SSP-SP, referentes, por exemplo, ao município de Araraquara, onde mais
da metade das vítimas de violência sexual eram crianças ou adolescentes, maioria do sexo
feminino, vitimadas em local doméstico.
Como pode ser visto (ver figura 1), na cidade de Araraquara entre os anos de 2011 e
2016, o estupro de vulnerável representou 60,4% do total de casos registrados na cidade.
Nestes casos, onde a vítima era menor de 14 anos, em 84,5% das situações foram violências
perpetradas em ambiente doméstico, na residência das vítimas.
Este dado vai ao encontro as informações obtidas nas entrevistas, onde os
profissionais reconhecem que estas crianças sofrem a violência em casa, sendo vitimadas por
parentes, familiares ou conhecidos da família.
Esta informação também aparece em pesquisa de Vargas (2008), onde é possível
constatar que estes também são os casos onde a retirada da denúncia é realizada em maior
número, diferente das denúncias realizadas contra agressores que não pertencem ao círculo
social ou familiar da vítima.
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Figura 1.
residência
84,5%
via pública
6,9%
estabelecimento de
outros ensino
1,7% transporte 5,2%
coletivo hospital
0,9% 0,9%
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autoestima da vítima, dependência financeira, problemas com drogas por parte do agressor,
falta de uma “boa educação”, onde a pessoa saiba se portar – neste caso, se referia a pessoas
do sexo feminino.
Quadro 1.
Possíveis causas da violência sexual
“Eu acho que a baixa autoestima da mulher, o medo de perder esse companheiro, a
dificuldade de falar “não”, a submissão, a dependência financeira... Tudo isso faz com que
ela se submeta a essa violência, a essa aceitação.” (Entrevista 1)
“Não existe nenhum trabalho que diga assim: é um problema hormonal, é um problema
psíquico. A gente não sabe muito bem a causa que leva uma pessoa a realizar um ato de
violência sexual contra o outro. No caso de pedofilia, que é o adulto que pratica atos
libidinosos ou até conjunção carnal com menores, tem que ter uma cronicidade. Então, ele
tem que se relacionar só com crianças por um tempo hábil, por um tempo prolongado. [...]
Então, você que vê que não existe só isso, não são só as crianças. Embora, agora, no nosso
município, aqui [...], eu tenha atendido muito mais crianças.” (Entrevista 2)
“Então, na verdade a gente não tá entendendo esse mundo, né filha. Dá a impressão que
mais por causa das drogas, porque não tá certo primo tentar violentar parente... pai... Então,
eu acredito que seja muita droga. E mal orientado, né, sem orientação, porque...”
(Entrevista 3)
“Deixar bem claro, o que eu acho assim nada justifica o agressor, a violência do agressor.
Mas ambas as partes as vezes a gente vê ou ouve falar, a gente observa que as pessoas
também se... principalmente as meninas em fase escolar, na faculdade, elas não são tão
assim... Eu não sei, acho que vai muito da criação de casa e da família... dessas meninas
como se comportar. O comportamento delas, então eu acho que tudo isso ajuda a... tem
probabilidade de ter mais, entendeu? O homem... Eu quero dizer assim, uma menina mais
levada, mais assim... a roupa dela, o traje de roupa que ela usa. Não que justifique, não é
isso.” (Entrevista 4)
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decorrentes da violência, afirmando junto a isto que quando o tratamento proposto é realizado
de forma correta, parte destas consequências – no caso, as físicas – são remediadas.
Quando questionados sobre como prevenir esta violência, as repostas sempre giram
entorno de “uma melhor educação”. No entanto, na maioria das entrevistas essa melhor
educação é citada de modo genérico, sem ligação as questões de gênero envolvidas, ou a
fatores sociais que deixam essas crianças, adolescentes e mulheres em situação de maior
vulnerabilidade.
Por um lado o apontamento é positivo, pois a educação tomada em sentido latu é a
solução. Em uma das entrevistas foi citada a participação da escola na prevenção de abuso
sexual infantil, o que é um bom apontamento porque passa necessariamente pela discussão de
sexualidade. Por outro, é possível perceber que o entendimento do que é educação não passa
pela discussão de gênero.
Apontamentos preliminares
A partir dessa análise prévia, foi possível afirmar que, de modo geral, esses
profissionais entendem que a violência sexual é qualquer ato feito sem o consentimento da
vítima, sendo as crianças e adolescentes – principalmente do sexo feminino – as principais
vítimas, mas também reconhecem que mulheres jovens também são vitimadas por essa
violência. São casos que ocorrem, em sua maioria, em local doméstico, perpetrado por
familiares, parentes ou conhecidos.
Esses profissionais representam a violência de forma ambígua, pois ao tempo que
reconhecem como uma violência realizada contra a vontade da vítima, alguns buscam
justificar, mencionar como possíveis causas, a ausência de educação para as vítimas – no
sentido de como se portar, coisas que não devem ser feitas por meninas. Este tipo de
representação vai ao encontro do que está arraigado no senso comum, quanto a culpabilização
das vítimas pela violência sofrida – talvez, isso se explique pela pouca formação dos
profissionais que demonstraram estas representações. No entanto, estes profissionais também
entendem que a violência possui sérias consequências tanto físicas como psicológicas para
suas vítimas. Consequências estas que podem continuar por todo o resto da vida da vítima.
Nesse sentindo, é preciso que políticas públicas que proponham formações mais
adequadas para os indivíduos, em que eles possam compreender que para além de um corpo
que necessita de tratamento pós violência, as causas e consequências da violência são,
sobretudo, sociais. As vítimas não precisam de piedade, muito menos de julgamento, mas de
meios pelos quais possam se reintegrar – caso não consiga sozinha – na sociedade.
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Referências
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Resumo: Este trabalho tem como objetivo principal investigar as concepções de gênero
das/os profissionais da saúde a partir da compreensão destes sobre a violência sexual sofrida
pelas mulheres que procuraram um serviço universitário de referência de Cuiabá - MT. Nesse
sentido destacamos dados sobre as características das mulheres agredidas e dos agressores,
bem como das circunstâncias nas quais as agressões ocorreram, a partir de uma análise
documental dos Livros de Registros do Programa de Atendimento a Vítimas de Violência
Sexual referentes aos atendimentos de mulheres realizados nesse serviço no período de 2010 a
2017. Ainda que nas últimas décadas alguns avanços tenham sido conquistados em termos de
legislações e políticas e a subordinação das mulheres tenha sido sensivelmente reduzida, as
violências de gênero inscritas na cultura machista ainda persistem como fato social e político
e demandam a intervenção do Estado para minimizar seus efeitos. A análise é realizada a
partir dos estudos feministas e de gênero, esses que atuam questionando os valores pautados
em categorias universais, como, por exemplo, ‘homem’ e ‘mulher’, possibilitando vislumbrar
suas limitações e prejuízos para as relações de gênero. Os resultados parciais indicam que a
violência sexual é um fenômeno democrático, pois atinge mulheres de distintas classes, cor,
escolaridades. Entretanto, é significativo o percentual de mulheres jovens, no auge da idade
reprodutiva (46%) e de mulheres universitárias (26%) atendidas no programa. Os dados
sugerem que as agressões estão mais relacionadas ao comportamento de agressor do que das
vítimas.
1
Assistente Social; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato
Grosso; e-mail: dmaiby.ss@gmail.com.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso; Doutora
em Sociologia Política pela UFSC; e-mail: silvanasocipufmt@gmail.com.
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p16 16
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Introdução
Este trabalho é constituinte de uma pesquisa de Mestrado em Sociologia que tem
como objetivo principal investigar as concepções de gênero dos/as profissionais da saúde que
trabalham em um serviço universitário de referência em Cuiabá – MT e atuam na assistência
às mulheres que sofreram violência sexual. Nessa ocasião, nosso enfoque é apresentar uma
breve análise dos dados quantitativos extraídos dos Livros de Registros de Atendimentos às
Vítimas de Violência Sexual visando refletir sobre as caraterísticas das mulheres sexualmente
violentadas e das circunstâncias em que foram agredidas3.
3 Dois motivos contribuíram para a realização dessa pesquisa, ora em virtude de uma das autoras ter
trabalhado em um hospital que é referência na assistência a vítimas de violência sexual, ora em decorrência do
ingresso da mesma no Mestrado em Sociologia a fim de se aprimorar nos estudos feministas e de gênero.
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Longe de ser uma exceção, esse caso explicita o tratamento moralizante que as
vítimas de violência sexual estão sujeitas. Historicamente, nossa sociedade tem adotado
uma atitude ambígua em relação à mulheres sexualmente violentadas, pois, se por um lado o
estupro é reconhecido pelo sistema de justiça brasileiro como um crime sério, de outro, esse
tipo de delito está carregado de teor moral, cabendo às mulheres provar sua honra mediante
sua conduta no meio social (COSTA, 2016).
4
Notícia disponível no site do G1: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/jovem-que-teria-sido-
vitima-de-estupro-coletivo-faz-exames-no-
rio.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1. Acesso em 30/05/2018.
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p16 18
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Por isso é importante que as/os profissionais da saúde recebam formação continuada
para o manejo clínico, social, cultural e psicológico para lidar com mulheres violentadas
sexualmente.
Para os estudos feministas e de gênero as questões do corpo são centrais, pois este
tem sido um construto social permeado de poder e inúmeras formas de dominação masculina.
Assim, ampliar a noção do corpo para além da sua fisiologia e anatomia, é situá-lo em um
debate político evidenciando os valores históricos e transitórios que demarcam espaços
sexuados onde transitam ação e poder.
Trazer à luz esses questionamentos tem possibilitado novas reflexões acerca das
relações de gênero e desnaturalizado discursos “universais”, portanto, excludentes, que
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discriminam as mulheres em razão de seu sexo ao subtrair seu papel de sujeito e a posse de
seu corpo. De acordo com Minayo e Souza (1999) a questão da violência era tradicionalmente
vinculada ao domínio do direito criminal e da segurança pública. A partir das décadas de 1960
e 1970 quando a saúde começou a ser compreendida como uma questão complexa relacionada
a determinações sociais e condicionantes culturais, essa temática passou a integrar os debates
e os serviços de saúde.
É provável que o fato de a saúde ter se constituído em torno do “[...] modelo médico e
biomédico cuja racionalidade tende a incorporar o social apenas como variável “ambiental”
da produção das enfermidades” (MINAYO e SOUZA, 1999, p. 8) tenha contribuído para a
incorporação tardia da questão da violência nos serviços de saúde e para a persistência da
desarticulação entre o conhecimento científico produzido sobre a violência e as práticas em
saúde.
Mas somente nos anos de 1980 a violência passou a ser tema recorrente na agenda dos
debates e das ações em saúde e se consolidou nos anos 1990, na ocasião da criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que de forma fragmentada e progressiva.
Nas últimas quatro décadas, pesquisadoras como: Safiotti, 2004; 2015; Grossi, 1994;
Gregori, 1993, entre outras realizaram pesquisas com ênfase nas violências de gênero,
explicitando seu caráter discriminatório e afirmando que este é um fenômeno social
persistente, multiforme que perpassa as dimensões físicas, psicológicas, morais e econômicas,
tanto no nível micro quanto no nível macrossociológico.
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Desde os anos de 1980, quando a questão da violência foi reconhecida como questão
de saúde pública, os serviços de saúde passaram a oferecer atendimento às vítimas de
violência sexual. O Ministério da Saúde vem atualizando constantemente suas diretrizes ao
longo das últimas décadas, criando normativas para o atendimento, a partir de parcerias com
as Secretarias de Saúde estaduais, sociedades científicas e os movimentos sociais. Como
consequência desse esforço coletivo, foram criadas normas técnicas e protocolos clínicos para
acolhimento, atendimento e notificação de violências.
A Portaria 485/2014 estabelece que as equipes devem ser compostas por 1 Médica/o (em
especialidade clínica) ou 1 Médica/o em especialidades cirúrgicas; 1 Enfermeira/o; 1 Técnica/o em
enfermagem; 1 Psicóloga/o; 1 Assistente social; e 1 Farmacêutica/o.
Na unidade de saúde onde está sendo feita a pesquisa funciona desde 2003 uma
política voltada para o atendimento de vítimas de violência sexual. Essa política visa oferecer,
sobretudo, medidas de emergência aos casos de violência sexual recente, isto é, que ocorrem
nas últimas 72 horas e, também, a interrupção da gestação decorrente de estupro5.
5
De acordo com o Código Penal Brasileiro que é de 1940, em seu artigo 128 estipula duas situações em que o
aborto é permitido: 1. Quando não há outra forma de salvar a vida da gestante e 2. Quando a gravidez é
decorrente de estupro e se este for o desejo da mulher ou de seu representante legal (no caso de menores de
idade ou quando existe algum tipo de comprometimento intelectual da mulher/adolescente).
6
Sistema Informações em Saúde, criado em 1999, visando informar gestores (Ministério da Saúde, Secretarias
de Estado de Saúde, Secretarias Municipais de Saúde, etc.) sobre a capacidade física instalada, os serviços
disponíveis e profissionais vinculados aos estabelecimentos de saúde, equipes de saúde da família,
constituindo um quadro amplo acerca dos dados de abrangência nacional para efeito de planejamento de
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O primeiro contato da mulher com o serviço é realizado por assistentes sociais, que
efetuam uma entrevista utilizando um instrumental padronizado; providenciam o prontuário;
preenchem parcialmente a ficha de notificação compulsória; orientam sobre o registro do
Boletim de Ocorrência e a realização do exame de corpo de delito, assim como acerca do
funcionamento do programa, enfatizando a importância de ambos.
Se for caso de violência sexual recente, após fazer os exames, são ministradas as
primeiras doses das medicações para evitar contaminação por HIV, e a contracepção de
emergência, pois essas medicações tem maior eficácia se forem aplicadas nas primeiras 72
horas após o estupro.
Por fim, a mulher retorna ao Serviço Social que finaliza o primeiro atendimento,
certificando-se de que todas as informações relativas ao tratamento foram oportunizadas
bem como as orientações pertinentes ao funcionamento da rede de proteção social.
A assistente social que iniciou o atendimento faz as anotações gerais sobre a vítima,
agressor e as circunstâncias em que ocorreu o estupro no Livro de Registros do P.A.V.V.S.,
elaborando ao final um breve relato da agressão, conforme a narrativa da vítima.
ações em saúde e dar transparência à sociedade de toda a infraestrutura de serviços de saúde bem como a
capacidade instalada existente e disponível no país. (Texto informado no site do CNES).
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Nas fichas nas quais constava informação sobre a renda familiar, 28% disseram ser de
aproximadamente um salário mínimo, 13% até dois salários mínimos, 14% informaram
valor superior a três salários mínimos, enquanto 10% tinham renda inferior a um salário e
2% não tinham renda. Em 33% dos atendimentos a informação não foi registrada.
7 O acesso aos Livros foi solicitado a Chefia da Unidade de Atenção Psicossocial que autorizou a coleta dos
dados em fevereiro de 2018.
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Acerca da situação marital 63% disseram ser solteiras, 15% casadas, 11% conviviam
maritalmente com parceiros/as, 5% divorciadas e 2% viúvas. Em 4% dos atendimentos a
informação não foi registrada.
Quanto ao local, 36% foram violentadas em via pública (comumente descritas como
matagal ou terreno baldio); 29% em suas casas; 9% na casa do/s agressor/es; 19% em
lugares diversos (motéis, ou lugares que as vítimas não souberem ou não puderam
identificar). Em 7% dos atendimentos a informação não foi registrada.
Das 417 vítimas, 70% (293) foram violentadas por desconhecidos e 26% (107) por
conhecidos. Por 17 vezes (4%) essa informação não foi registrada. Entre os agressores
conhecidos podemos subdividi-los em três grupos: sendo 1) parceiros ou ex-parceiros que
correspondem a 27%. 2) familiares das vítimas (pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos,
cunhados, enteados e genros) que correspondem a 17% e, 3) vizinhos, amigos, paqueras, ou
conhecidos de amigos ou de familiares, que equivalem a 55%.
Considerações finais
Este trabalho apresentou os dados referentes as características das mulheres
agredidas e dos agressores, bem como das circunstancias em que as agressões ocorreram
que foram atendidas em um serviço universitário de referência em Cuiabá – MT. e fazem
parte de uma pesquisa que está em andamento que investiga as concepções de gênero das/os
profissionais da saúde que atuam nesse tipo de assistência.
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Observa-se que a maioria (46%) das mulheres atendidas no referido serviço tinham
entre 18 e 30 anos de idade, isto é, são mulheres jovens, no auge da idade reprodutiva.
Entretanto, outras mulheres que não correspondem à representação social da mulher vítima
de violência sexual foram atendidas no P.A.V.V.S., a exemplo da idosa de oitenta e cinco
anos.
Referências
8
Links para as notícias: http://www.mtagora.com.br/estado/ele-disse-que-eu-iria-gostar-de-ser-estuprada-diz-
jovem-violentada/143262288, acesso em 30/05/2018.
https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/universitaria-e-estuprada-enquanto-dormia-apos-festa-e-
suspeito-e-preso-em-cuiaba.ghtml, acesso em 30/05/2018.
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Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
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13 a 15 de junho de 2018
ISSN 2177-8248
OLIVEIRA, Eleonora Menicucci de. Fórum: Violência sexual e saúde. Introdução. Cadernos
de Saúde Pública, v. 23, p. 455-458, 2007.
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p16 27
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Eduardo da Silva1
Marlene Tamanini2
1
Graduado em Ciências Sociais pela UFPR. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
referida universidade. Bolsista CAPES. dudu1991eduardo@gmail.com.
2
Doutora em Ciências Humanas pela UFSC. Pós-Doutora pela Universidade de Barcelona. Professora no
Departamento de Sociologia da UFPR e professora e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da mesma
universidade. tamaniniufpr@gmail.com.
DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p28 28
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1. Introdução.
Este trabalho3, que constitui um recorte do andamento de minha pesquisa de
mestrado, tem o propósito de compreender como as acompanhantes/cuidadoras 4 dos doentes
de câncer percebem e vivem a prática do cuidado, bem como se enxergam no interior dela e
àqueles que são cuidados. Importa, também, constatar se nos relatos das
acompanhantes/cuidadoras em contextos de câncer podem ser identificados desafios
específicos para o cuidado, estes relativos à habilidades, políticas, técnicas, valores, entre
outros. Por fim, interessa problematizar a gendrificação da prática do cuidado, uma vez que o
encargo de acompanhante/cuidador é encabeçado sobretudo por mulheres.
Creio que o contato mais imediato com minha família materna, que reside em uma
cidade de médio porte na região noroeste do Paraná, foi uma das razões para que eu me
interessasse em estudar experiência de doença e, neste momento, relações de cuidado. Em um
período aproximado de dez anos, tivemos cinco casos de câncer na família, os quais
resultaram nas mortes de três dos cinco elementos que adoeceram. Além disso, a dedicação
exaustiva de uma família composta majoritariamente por mulheres ao cuidado das crianças,
de enfermos (jovens ou idosos) e do espaço de suas casas e suas consequentes reclamações
sobre a desvalorização de suas tarefas contribuíram com problematizações acerca de um
cuidado gendrificado e de alternativas para a valorização social de suas práticas.
No campo teórico, as obras de Susan Sontag (1984), “A Doença Como Metáfora”, e
de Elizabeth Kubler-Ross (1996), “Sobre a Morte e o Morrer”, foram motores importantes
para que eu me interessasse pelos referidos temas. Na primeira, a estudiosa discorre sobre os
significados do câncer e da tuberculose em sociedades ocidentais no desenrolar do tempo.
Enquanto a segunda contou com significados contraditórios e volúveis, o primeiro parece ter
tido desde sempre um significado maléfico e implacável. Os estudos de Kubler-Ross, por sua
vez, ajudaram-me a perceber o câncer como uma doença de processos (seqüenciais,
entrecruzados ou não exatos), que faz adoecer também a teia de relações do doente.
Para o desdobramento desta pesquisa, tenho tomado como espaço de análise uma
parte específica do pátio do Hospital Erasto Gaertner, também conhecido como “hospital do
3
Saliento que este escrito se trata de uma versão revisada e reorganizada de trabalho que fora apresentado no IX
Seminário Nacional Sociologia & Política, evento promovido por docentes e discentes do Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná .
4
Embora o acompanhamento seja uma modalidade de cuidado executada por indivíduos diversos, opto por
identificar aquelas que constituem meu objeto de investigação como “acompanhantes/cuidadoras”, de forma a
diferenciá-las daqueles que acompanham esporadicamente e daqueles que têm no cuidado uma profissão e,
quiça, não experienciam o ambiente hospitalar.
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câncer”, em Curitiba. A parte específica à qual me refiro é constituída por uma ampla área
verde, com árvores, bancos e gramado. Através dela, tem sido possível acessar todo tipo de
pessoa.
Entretanto, minha experimentação em tal espaço não é uma novidade, visto que, para
minha monografia de graduação defendida em 2015, desenvolvi no mesmo, entre o fim de
2012 e meados de 2014, um trabalho baseado em entrevistas e observação. Por aquele tempo,
importava-me apreender as experiências e os significados que doentes e acompanhantes
atribuíam ao câncer.
Ainda por aquele tempo, percebi o pátio como um espaço de espera, de instrospecção
e de sociabilidades, dedutivamente o oposto do espaço concreto do hospital. O último seria
um espaço mais nobre, um espaço de luta, em que as moléstias seriam exorcizadas. Com o
desenrolar do trabalho de campo (principalmente agora), percebi o quão equivocado seria
classificar deste modo tais espaços. Com efeito, a luta e a espera mostravam-se presentes nos
dois contextos e marcavam as vivências de todos aqueles que experienciavam o câncer como
uma “doença coletiva”.
O termo “doença coletiva” foi usado em minha monografia para assinalar um
adoecimento conjunto (ou seja, encarado por enfermos e a comunidade mais imediata)
construído por uma doença percebida com sinônimo de morte. Que o leitor perceba a “doença
coletiva” não como uma patologia compartilhada, mas como uma circunstância que faz
adoecerem espiritual e fisicamente aqueles que possuem posição imediata em relação ao
indivíduo enfermo. A manifestação do câncer fazia irromper em outrem distúrbios
alimentares, doenças mentais e privações de sono, a título de exemplo.
Colocado isto, enfatizo que este escrito está dividido em três momentos importantes.
Na atual seção, apresento ao leitor o contexto da pesquisa e um vislumbre geral do texto. Por
conseguinte, em um primeiro momento da seção “desenvolvimento”, discorro um pouco
acerca da experiência da pesquisa. Depois, trago à baila uma ligeira discussão com os estudos
do cuidado, principalmente com teóricos como Ângelo Soares (2012), Arlie Hochschild
(2012), Carol Gilligan (1982), Joan Tronto (1997, 2007), Pascale Molinier (2012) e Rachel
Salazar Parreñas (2012). Ainda nesta seção, tomo as falas de cinco acompanhantes/cuidadoras
– Bárbara, Beatriz, Glauce, Nicole e Pâmela -, com o intuito de, ulteriormente, preencher um
pouco das lacunas deixadas pelas questões que abriram este texto. Finalmente, em breve seção
de fechamento, retomo alguns dos principais apontamentos concernentes à pesquisa.
2. Desenvolvimento.
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Neste texto os nomes de minhas interlocutoras são fictícios.
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O contexto em questão concernia a teorias binarizantes, ainda se as mesmas estivessem sendo produzidas para
desnaturalizar os determinimos biológicos, psicológicos, morais, éticos e/ou históricos no seu amplo sentido.
Gilligan não deixa de cair na armadilha dos binários, por mais que toda a sua produção seja crítica para o
contexto.
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A partir destes apontamentos, pode-se reconhecer que o cuidado é uma peça basilar
em nossas relações. Tanto “indivíduos independentes” quanto “indivíduos em situação de
vulnerabilidade” estão circunscritos em uma rede complexa de cuidados. Não existe
autossuficiência. Entretanto, o cuidado pode garantir bem estar, mas também pode
desencadear a degradação, tanto para beneficiários quanto para prestadores. Além do mais, as
relações de cuidado revelam também desigualdades de gênero, étnico-raciais, de classe, entre
outros.
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precisar de mim ou eu precisar de você. De repente a gente se topa por aí, né? Então
a gente tem que ajudar o próximo. Eu tenho os meus defeito: eu fumo. Tô indo na
igreja, tô pedindo, tô orando. Eu sei que uma hora Deus vai me libertar. Mas eu não
vou deixar de ajudar o próximo. Pode ser quem for, com qualquer coisa que
precisar, eu ajudo, assim, tando no meu nível, né. Então eu acho uma coisa bonita,
né? Eu sempre gostei de cuidar de... Olha: cuidei da minha avó, que morreu. Cuidei
do finado meu sogro, que morreu. Cuidei do meu padrinho. Cuidei do outro meu...
padrasto. E também cuidei de um senhor que a filha tava com nojo de dar banho e eu
dei banho nele (Glauce, 43 anos, diarista e empregada doméstica).
Beatriz discordava do argumento utilizado pelos irmãos de que seria sua obrigação
cuidar do pai, já que estaria desempregada, portanto ociosa. Segundo ela, o cuidado da casa e
dos filhos, principalmente da filhinha pequena, também seriam responsabilidades onerosas.
Incomodava-lhe experienciar o acompanhamento/cuidado e não conseguir chegar em casa a
tempo de ver a filhinha acordada. Todas as tentativas que empreendera para cobrar um maior
comprometimento dos irmãos haviam sido frustradas. Como não conseguia resolver nada
pacificamente, recorria às brigas e aos xingamentos, métodos que também não resolviam sua
situação. Beatriz cria que as muitas desculpas dadas por seus afins para não
acompanharem/cuidarem de seu pai deviam deixá-lo triste, pois assim ele se sentiria
preterido.
Tanto Beatriz quanto Pâmela chamaram a atenção para a falta de descanso, mesmo
tendo que enfrentar dias desafiadores. Apesar do cansaço, o que mais incomodava Nicole, por
exemplo, era a situação do irmão, que implicava na ausência deste do lar.
Não durmo. Que nem essa noite mesmo eu dormi pouco. Dormi acho que umas três
horas só. Eu não durmo, eu tenho insônia, eu tenho insônia, eu não durmo. [...] Eu tô
exausta aqui, mas eu vou chegar em casa, tomar um banho e não vou dormir, porque
eu sei que ele tá aqui. Fica um buraco naquele quarto. Não tem como, a casa tá
vazia. Isso é amor demais, né? (Pâmela, 44 anos, cuidadora do irmão).
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Além de Pâmela, Nicole também parecia nutrir uma grande consideração pela irmã.
Disse-me que, depois dos filhos, a pessoa cuidada era a mais importante de sua vida. Para
essas duas mulheres, cuidar não era a parte mais difícil. As dificuldades e o sofrimento que
sentiam estavam atrelados às dificuldades e ao sofrimento dos entes cuidados.
As atividades de cuidado, para além do acompanhamento, faziam-se evidentes no dar
um medicamento, no fazer comida, no ir a um lugar que a pessoa doente gostava, no
higienizar o beneficiário do cuidado, entre outros. Nicole afirmou que, entre suas medidas de
cuidado, concedia à irmã “pequenos prazeres” e, principalmente, dedicava-se à ouvi-la.
A principal é ter tempo para ouvi-la. Essa é a principal, que a gente mais faz. [...] É
que, assim, ela já tem também histórico de depressão, entendeu? Aqui tem um
atendimento muito bom também que ela também faz. Então a principal é essa. Em
segundo lugar, proporcionar os pequenos prazeres que ela não tinha acesso, que pra
ela é importante. [...] Fomos ao Jardim Zoológico, fomos ao Jardim Botânico,
Parque Barigui, coisas assim... Viajamos pra rever parentes que não se via desde a
infância. Essas coisas assim. Mas o mais básico mesmo é esse. (Nicole, 50 anos,
agente educacional I).
Dentre as minhas informantes, Beatriz foi a única que percebeu como constrangedora
uma situação que vivera na experiência de cuidar do pai. Conforme ela, dar-lhe banho foi uma
tarefa embaraçosa, pois teve que vê-lo nu. Além disso, ele era muito pesado, portanto deveria
ser higienizado por um homem, não por ela. Perguntei-lhe se gostaria de ser ajudada por
agentes de outras esferas e ela respondeu negativamente, afirmando que uma melhor
organização da família seria a solução ideal.
De fato, Beatriz concedeu-me uma entrevista baseada nas dificuldades que enfrenta
no processo de acompanhamento/cuidado, mas ainda assim percebeu-se como a pessoa mais
indicada para executá-lo. Nas palavras dela, sua irmã mais velha é muito ranzinza, enquanto
que sua irmã mais nova deixa o pai fazer tudo o que quer. Ela, diferentemente, seria a junção
dos dois mundos. No processo de amparo ao pai, o marido de Beatriz a tem incentivado
bastante. “Você faz de coração”, “Deus vai te recompensar”, “você está fazendo a sua parte” e
“estamos ajudando e não sendo ajudados” têm sido algumas das expressões lenitivas usadas
por ele para confortá-la.
Beatriz encarava a visitação ao hospital como uma experiência triste.
Acompanhantes/cuidadoras como Glauce e Nicole também, mas ainda assim assinalavam o
caráter despertador desta em uma realidade de preocupações supostamente triviais.
Se eu pudesse botar a mão na pessoa e curar ela, com a força de Deus, eu faria isso,
sabe? Porque é muito triste cê ver a pessoa ali, sabe? Por mais que você ajude, cê dê
alegria, mas não é aquilo que você quer. Você queria tar no lugar da pessoa. Então é
meio complicado. [...] Ah, eu te digo: essa experiência é bom pra gente passar pras
outras pessoas, né? Como às vezes tem muita pessoa que reclama de pouca coisa. E
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você sabe que o mundo aqui fora, você vendo as pessoas passando se reclamam
demais pelo pouco que se passa. Então isso aí é um exemplo pra você superar muita
coisa. Às vezes a pessoa tá com um pé machucado ali e reclama e não sabe onde tá
as outras pessoas que tão aí... O que a gente passa é mínimo do mínimo que eles
passam aí. (Glauce, 43 anos, diarista e empregada doméstica).
3. Considerações finais.
As relações de cuidado são responsáveis por cristalizar nossos vínculos. Em nosso
contexto, os resultados do cuidado são valorizados. Sua prática, porém, é considerada
desprezível e invisibilizada, sendo assim relegada a grupos sócio-historicamente fragilizados.
De toda forma, a tarefa de cuidar implica em desafios para aqueles que dela se apropriam.
No contexto desta pesquisa, as acompanhantes/cuidadoras denunciam dificuldades na
prática do cuidado. Fazê-lo resulta no acúmulo de responsabilidades, em reorganização do
cotidiano e na aprendizagem de fazeres específicos para tratar de alguém doente. Em algumas
situações, no entanto, a experiência do acompanhamento e do cuidado possibilita-lhes uma
nova percepção a respeito de si próprias, daqueles considerados vulneráveis e dos outros (ou
seja, aqueles que não vivenciam intimamente o mundo da doença nem experimentam a
realidade do hospital).
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Referências.
DESLAURIES, Jean-Pierre; KÉRISIT, Michele. O delineamento da pesquisa qualitativa. In:
VVAA. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis:
Vozes, 2008.
GILLIGAN, Carol. Uma Voz Diferente: Psicologia da Diferença entre Homens e Mulheres
da Infância à Idade Adulta. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1982.
HOCHSCHILD, Arlie. Nos bastidores do livre mercado local: babás e mães de aluguel. In:
HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya Araújo (Orgas). Cuidado e cuidadoras: As várias
faces do trabalho do care, 2012. p. 185-200.
KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MOLINIER, Pascale. Ética e trabalho do care. In: HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya
Araujo (Orgas). Cuidado e cuidadores: As várias faces do trabalho do care, 2012, pp. 29-43.
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Este texto advém de uma dissertação ainda em andamento, que tem por objetivo
compreender a experiência de homens e mulheres que prestam cuidado voluntário a pessoas
com ideação suicida através do Centro de Valorização da Vida (CVV) em Curitiba. As
categorias empregadas na pesquisa têm o intuito de entender como essa maneira de cuidar
produz significados próprios e como esses significados, por sua vez, compõem as vidas dos
sujeitos que formam o CVV. Assim, essa investigação se volta para as narrativas dos agentes
através de metodologias de ordem qualitativa. Acredito que o esforço de conhecer o lugar
subjetivo das biografias individuais e das vivências inevitavelmente gendrificadas,
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Contudo, antes se faz necessário refletir sobre a apreensão subjetiva das categorias e
conceitos utilizados aqui. A adoção de uma perspectiva epistêmica que reconheça a crítica
feminista da localização e da situacionalidade dos modos de conhecimento requer uma
reflexão sobre a utilização e percepção das ferramentas de pesquisa e da delimitação do
objeto. Tento evitar a formulação clássica do conhecimento objetivo que parte da
autoevidência das categorias como forma primeira de delimitação de uma fronteira mais ou
menos hermética entre o sujeito do conhecer e o objeto do conhecimento. Para isso, pretendo
apresentar o objeto e o locus que escolhi para minha pesquisa enunciando a minha própria
posição subjetiva enquanto autor e indicando como compreendo algumas das categorias
utilizadas nessa investigação.
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Entendendo as narrativas trazidas pelas mulheres e homens a respeito de como e por que
cuidam através do Centro de Valorização da Vida como meu objeto, palavra experiência
assume um papel importante para o processo de construção da pesquisa. Concebida aqui
como lugar construído e não como evidência dada, a noção de experiência deve levar em
conta não só a fluidez do deslocamento entre círculos e papéis sociais mas a própria posição
dos indivíduos em relação aos discursos e práticas de seu tempo.
Quando decidi que o CVV seria o locus de minha investigação, fui atrás de todos os
livros que pude encontrar sobre o grupo. Tive acesso a alguns volumes, que em sua maioria se
tratavam de memórias escritas em comemorações de aniversário da entidade e suas filiais.
Através deles, tive meu primeiro contato as narrativas de pessoas que escolheram contar
algumas histórias sobre os Centros de Valorização da Vida.
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todos os processos que existem entre a palavra pensada e a palavra escrita – o que esses
sujeitos têm interesse (e provavelmente orgulho) de lembrar. Olhando para trás, essas
narrativas constroem o esforço de “ligar os pontos” na construção de uma figura maior. Do
presente para o passado, elege-se o que se considera contínuo e relevante na experiência de
cuidar através do CVV.
Cito os principais nódulos discursivos comuns às narrativas as quais tive acesso até o
momento. Primeiramente, os voluntários e voluntárias consideram que o CVV existe em
relação a uma apreensão do estado das coisas. Em uma perspectiva retrospectiva, esses livros
constroem a imagem de uma sociedade que justifica a necessidade da existência do Centro de
Valorização da Vida. Nesse discurso, a entidade representa a resposta para uma carência, o
preenchimento de um espaço vazio. A oferta de calor humano, escuta, compreensão e amizade
– pilares na atitude voluntária como vista pelo CVV – só tem sentido frente a um diagnóstico
que constrói um quadro onde a falta desses elementos representa um problema.
Se a relação de cuidado contém no mínimo duas partes, acredito que seja válido
entender de que maneira os livros que contém os relatos de voluntários e voluntárias sobre o
Centro de Valorização da Vida reconhecem a figura da pessoa que necessita de cuidado. Ainda
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que seja uma organização voluntária, o CVV difere da maioria delas por não estar interessado
na promoção de direitos. Sua causa principal não se vê no mundo das leis, desigualdades
sociais ou da justiça. Nesse sentido, coloca-se na contramão do discurso sobre o voluntariado,
solidarismo e cidadania que surge no Brasil dos anos 19903, como retrata Araujo (2008). Não
se trata do cidadão, mas da pessoa.
Há ainda uma questão importante que notei lendo as memórias publicadas por
voluntários e voluntárias sobre suas experiências dentro do Centro de Valorização da Vida: a
ambígua presença da religião. O início do CVV é sempre reencenado dessa maneira: alguns
3 É importante lembrar que o envolvimento voluntário com as causas filantrópicas no Brasil existe desde o
século XIX (quando era organizado principalmente em torno da Igreja Católica). Da década de 1940 até
1990 o Estado brasileiro incentivou a causa do voluntariado institucionalizando a Legião Brasileira de
Assistência (LBA). Como mostra Barbosa (2017), tratava-se de uma atividade marcada fortemente pelo
envolvimento feminino, colocando figuras como primeiras-damas da Nação, estados e municípios como
figuras de frente da associação.
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Constrói-se assim um discurso laico operado por religiosos. Mesmo as narrativas mais
recentes sobre a trajetória do CVV citam orações que marcam o início dos plantões de
atendimento ou aparições de espíritos durante as madrugadas, ainda que afirmando para si
uma posição de separação frente a religião. A própria figura do bom samaritano, ferramenta
cristã que serve a função de direcionamento moral, persiste até hoje como guia para as ações
dos voluntários e voluntárias. O samaritanismo aqui evidencia não só a orientação religiosa
em vestes laicizadas, mas um tipo específico de disposição espiritual: o norteamento espírita
para a caridade para o altruísmo. A caridade é a condição fundamental para a salvação na
doutrina presente no Livro dos Espírito e n’O Evangelho Segundo o Espiritismo. Acredito,
com isso, que não seria absurdo assumir que a orientação veladamente religiosa do Centro de
Valorização da Vida tem um papel importante no recrutamento de seus contribuidores ou
mesmo na construção coletiva dos conceitos de sua missão e de sua história.
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boletins internos da entidade. Por fim, deve-se mencionar o trabalho etnográfico de Martins
(2015) que compara o Centro de Valorização da Vida ao programa SOS Voz Amiga em
Portugal, entendendo como a laicização das ferramentas de confissão e testemunho contribui
para a construção da validação e gestão do sofrimento, mas também dignificação e cultivo de
si através das modalidades de fala e escuta.
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ocuparem-se de atividades benemerentes uma saída discursiva aproveitada por essas figuras
para se inserirem de maneira moralmente válida no âmbito do público – até então negado
discursivamente à mulher. Num sentido contrário da análise através da noção de reprodução,
aqui a agência feminina está em foco. A feminilidade torna-se uma ferramenta estratégica na
ocupação real de um espaço social localizado apenas na província do masculino.
Ainda que o termo não apareça com frequência nas publicações ou propagandas do
Centro da Valorização da Vida, haverá problema em delimitarmos as relações de ajuda
oferecidas pelos voluntários e voluntárias que compõem a entidade como formas de cuidar?
Tendo em vista as especificidades das práticas próprias do CVV no atendimento de pessoas
com ideação suicida apresentadas anteriormente, não será difícil pensar o cuidado analisando
as atividades do grupo através da definição conceitual oferecida por Joan Tronto: o cuidado é
um tipo de atividade que tem por objetivo manter, dar continuidade ou reparar o mundo em
que vivemos para que vivamos da melhor forma (TRONTO, 2013). Contudo, é necessário
entender como o conceito e as discussões em torno dele se formaram.
É possível datar relevantes menções às práticas do cuidado nos estudos feministas dos
anos 1970 e 1980. Ali, autoras como Kergoat, Chodorow e Nicholson começavam a incluir
esse conjunto amplo de atividades nas discussões sobre o lugar da mulher nos espaços da
sociedade – fosse na dicotomia das esferas do público e doméstico, ou no ramo da divisão
sexual do trabalho dentro dos âmbitos da produção e reprodução. Nesse contexto, começava a
se formar uma crítica ao marxismo e ao estruturalismo que levava em conta um conjunto de
atividades problematicamente naturalizadas no papel social e biológico da mulher. A
vinculação discursiva do corpo feminino à maternidade lhe garantia (ou condenava) um lugar
moral e sócio-econômico de atenção ao outro, abnegação e carinho essencializados. Assim, a
atenção ao tema do cuidado se inicia como forma de pensar a emancipação feminina.
Contudo, o cuidado ganha pela primeira vez uma robustez conceitual com a análise de
Carol Giligan em In a Different Voice. Psychological Theory and Women’s Development
(publicado originalmente em 1982). O trabalho da área de psicologia do desenvolvimento
moral constrói, com objetivo de alargamento da epistemologia sobre o comportamento
humano, um modelo binário que propõe padrões de conduta para as socializações masculina e
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feminina. A primeira delas seria o que a autora chamou de ética da justiça – baseada em uma
sociabilidade marcada pela autonomia baseada na individuação, impessoalidade de princípios
hierárquicos como forma de resolução de conflitos e dinâmica social que tem o outro como
figura imaginada ou genérica. Por outro lado, a socialização feminina, seria marcada pelo que
a autora chamou de ética do cuidado – conduta baseada principalmente numa lógica da
interconexão e interdependência, na sociabilidade que visa o outro como entidade concreta e
portadora de necessidades específicas que afetam toda a configuração da rede de inter-
relações. Trata-se de uma pesquisa que, numa crítica ao modelo tradicional de
desenvolvimento humano (Freud e Kohlberg, principalmente), garante ao cuidado uma grande
importância para o entendimento das relações humanas tentando compreender o lugar das
mulheres como mais do que a exceção de um conjunto de regras estabelecidas por padrões
masculinos.
Esse mapeamento é então aproveitado por Nel Noddings (1986) em sua investigação
filosófica sobre os arquétipos do cuidado em termos de relações interpessoais –
principalmente interações face-a-face. Partindo da figura feminina que cuida e da figura
masculina que recebe cuidado4, a autora tentou entender como a reciprocidade e o
envolvimento mútuo são necessários para o estabelecimento de uma relação de cuidado. A
consideração de questões como o reconhecimento, a disposição e a aceitação das duas partes
constituintes se torna uma questão importante para pensar uma relação como essa. Assim, a
apreensão da realidade do outro como possibilidade para si, o partilhamento e a imersão –
difícil tradução do termo original engrossment – se tornam fundamentais para uma filosofia
ética que tenha o cuidado como mote de cada relação interpessoal.
A partir das contribuições de Joan Tronto para o debate, sob uma perspectiva da
ciência política, uma nova questão entra em cena. A construção de seu projeto teórico se dá
em resposta direta à reflexões e pressupostos de Noddings para o debate sobre o cuidado
como forma ética de pensar o social e o político. Advogando por cuidado feminista para além
do feminino e aplicando o conceito a uma realidade mais ampla, Tronto propõe visão
democrática do cuidado (1997; 2013). Dessa forma, é possível adereçar as assimetrias sócio-
econômicas e gendrificadas nos discursos sobre o cuidado.
4 É necessário lembrar que, segundo Noddings, os arquétipos masculinos e femininos não são imediatamente
identificados a homens ou mulheres. Trata-se de uma distinção utilizada como ferramenta de análise.
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Uma definição mais ampla como a que foi apresentada no começo desta sessão parte
da ideia de que a vulnerabilidade que leva todos nós a necessitarmos de cuidado em algum
momento de nossas vidas deveria ser um princípio fundamental pelo qual pensamos a
igualdade em nossas sociedades. Uma das constatações principais da análise de Tronto (2013)
é representada dessa forma: a prosperidade sócio-econômica de determinados indivíduos que
reforça um discurso da autonomia e responsabilidade individual pela prosperidade em um
regime neoliberal só é possível pela invisibilidade e rebaixamento dos serviços de cuidado
que possibilitam a vida e os privilégios dessas pessoas (TRONTO, 2013). Assim homens
brancos e pessoas de classes mais abastadas em geral recebem um “passe livre” da
necessidade de cuidar enquanto grupos majoritariamente vulneráveis (mulheres, indivíduos
não-brancos e imigrantes, por exemplo) exercem o cuidado desvalorizado que possibilita o
sucesso do sujeito neoliberal ideologicamente independente. Ao mesmo tempo, uma visão
feminista da prática do cuidar desnaturaliza o binário mulher (cuidadora)/ homem (receptor
do cuidado) e questiona a oposição diametral entre masculinidade e cuidado em nossa
sociedade.
Nesse sentido, Tove Petersen (2012) produz uma crítica muito semelhante a proposta
de Tronto a respeito da politização do cuidado frente a noção de altruísmo envolvida em
algumas de suas práticas. Para as duas autoras, a abnegação – Tronto (2013) utiliza o termo
samaritanismo que, devemos lembrar, é o mote do CVV – torna-se um problema na discussão
politizada e feminista do cuidado, dados os movimentos históricos de essencialização e
construção discursiva do sujeito feminino em torno desse ideal caridoso tão profundamente
ligado à maternidade que naturaliza o local do feminino. Ao mesmo tempo, a ideia da
renúncia representa uma dificuldade para pensar a interação sujeitos políticos com interesses
próprios. Tão importante quanto pensar na possibilidade da ação desinteressada é nos
questionarmos se há espaço validado no discurso comum para o interesse de pessoas
comumente silenciadas.
Se a conexão entre masculinidade e cuidado tem sido, mesmo sob pontos de vista não-
binários, uma questão importante na formulação dos estudos do cuidado, existe ainda um
último autor ao qual farei referência nesta sessão. Niall Hanlon produziu em 2012 um estudo
investigando a relação entre homens, masculinidades e cuidado. Fazendo uso das noções de
masculinidade hegemônica de Connell e da teoria dos campos de Bourdieu, o autor promove
uma explicação sobre como a conexão com o cuidado representa uma queda na posição
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Nesse sentido, afirmo, de maneira breve por conta do espaço reduzido, que minha
pesquisa faz uso de um conjunto de técnicas estabelecidas no âmbito qualitativo da pesquisa
social. Para além, considero-a qualitativa não por se basear em uma maneira interpretativa e
subjetiva de conhecer – isso seria reforçar a descorporificação do sujeito do conhecimento
quantitativo “duro” – mas por escolher enunciar e tomar proveito desses fatores como fonte
válida de entendimento de meu objeto e locus de pesquisa. Evitando a armadilha da ciência
clássica apontada por Harding (1993) em tentar produzir um único modelo coerente e
generalizável para dar conta de realidades instáveis ou se basear em formas como as das
ciências físicas e biológicas que pretendem um problemático modo de conhecer falsamente
separado dos valores políticos (Idem, 1996), reconheço a importância de enunciar a forma de
apreensão das noções utilizadas de uma maneira humana – transpassada por posicionamentos
políticos, sentimentos e emoções – com o intuito de construir um conhecimento que não
imponha um sistema teórico abstrato a uma realidade complexa.
O percurso pelo qual buscamos conhecer nosso objeto – definição literal da etimologia
da palavra méthodos – é profundamente informado pela noção de discurso como desenvolvida
por Michel Foucault. Sendo mais do que apenas um conjunto de estruturas verbais ou temas
textuais, a noção de discurso representa o conjunto de enunciados de verdade que informam
as práticas da vida, definindo sujeitos e modos moralmente válidos de ser e ver o mundo.
Embora o discurso defina, conecte a palavra à coisa no mundo, seria um equívoco garantir-lhe
a qualidade de falsa consciência enquanto invenção para o beneficiamento imediato de um
determinado grupo ou camada social específica. Trata-se de um princípio constitutivo das
relações e subjetividades, não de uma ferramenta repressiva. Nas práticas, os discursos se
proliferam indefinidamente (FOUCAULT, 1999, p. 8). Emprestam realidade ao que se
conhece e, por conseguinte, estão ligados à ação cotidiana. Dentro dele as práticas têm
significado e em sua repetição elas o realizam e o transformam. O que é construído no
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Sendo as narrativas dos sujeitos que cuidam voluntariamente através do CVV meu
objeto de pesquisa, neste momento a entrevista narrativa está estabelecida como principal
técnica de acesso a essas pessoas. Muito além do fato de que a metodologia e meu objeto
partilham um termo específico em sua descrição imediata, a escolha dessa forma de captar
informações tem razões mais profundas. Sua principal característica é a não estruturação do
andamento da entrevista a fim de evitar impor direcionamentos à fala dos entrevistados e
entrevistadas – aqui estão incluídos componentes como uso de linguagem específica,
ordenação dos fatos ou mesmo pré-seleção dos tópicos e eventos interessantes. Como
afirmam Bauer e Jovchelovitch (2010), esta é uma técnica indicada para apreender narrativas
– histórias contadas pelas pessoas – que, em retrospectiva, dão sentido ao determinado
conjunto de acontecimentos e sentimentos em cruzamento com contextos sócio-históricos.
A análise de discurso – que vem sendo aplicada aos livros que contém as narrativas de
voluntários e voluntárias citados anteriormente e será também aplicada às transcrições das
entrevistas – representa aqui uma relação com o dado de pesquisa. Meu interesse principal
não será verificar a veracidade dos fatos com quais irei me deparar, mas entender como esses
acontecimentos são retratados. Gil (2010) parte do discurso como prática social, como
estrutura linguística construída pelas relações intersubjetivas das quais emana e que, por estar
inserida nesse conjunto de ações, é sempre retórico – se justifica na sua forma de constituir os
fatos. Num mesmo sentido, Orlandi (2009) oferece uma máxima fundamental para nossa
análise: a de o discurso deve operar entre o dito e o dizível (ORLANDI, 2009, p.32). Assim,
mais importante do que o que é dito, é a maneira como se diz. É nesse exercício coletivo e
subjetivo de “ligar os pontos” na construção de experiências vividas que acredito ser possível
entender a experiência das pessoas que cuidam através do Centro Valorização da Vida.
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Resumo: O objetivo desse artigo visa compreender por meio de um resgate histórico do
movimento feminista a adentrada de uma nova ciência no espaço acadêmico e a construção de
um conhecimento científico a partir da perspectiva feminista. Considerando as epistemologias
feministas como uma necessidade advinda dos próprios movimentos feministas. A
metodologia utilizada é por meio de revisão bibliográfica dos trabalhos feitos nas últimas
décadas acerca da trajetória dos movimentos feministas e o processo de ruptura com a ciência
tradicional. Foi através da denúncia da ciência tradicional com o perfil objetivista, sexista e
excludente que as mulheres constroem um novo fazer ciência. Rompendo paradigmas e
trazendo uma nova forma de fazer ciência que (re) constrói a história das mulheres na
sociedade.
Palavras-chaves: Gênero; Epistemologia feminista; Movimentos feministas.
1
Mestranda no curso de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Instituto Federal do Paraná-
campus- Paranaguá. Anacoutinhosociais@gmail.com.
1
Professora Doutora no curso de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Instituto Federal do
Paraná – Campus Paranaguá. Cintia.tortato@ifpr.edu.br.
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Introdução.
Pensar a construção histórica do movimento feminista é trazer à luz as tantas lutas de
mulheres que desde há muito tempo vem travando verdadeiras batalhas dentro e fora de seus
lares para serem ouvidas, respeitadas e consideradas como pessoas de direitos. No que diz
respeito à construção da ciência, além da consideração de sua participação e protagonismo,
muitas mulheres denunciaram a exclusão e ofereceram os elementos que o movimento
feminista, a partir das suas primeiras articulações foi questionando cada vez mais o caráter
sexista da ciência.
O feminismo começa denunciando a ciência objetivista, dicotômica e androcentrica
que estava consolidada. As reflexões feministas questionam, de forma contundente, o modo
dominante de fazer ciência, praticada no masculino e centrada no universo do homem.
Margareth Rago (2003, p.25), ressalta que essa ciência “remete ao branco, heterossexual,
civilizado do primeiro mundo”. Excluindo e colocando a margem todos aqueles que escapam
este modelo de referência.
A construção da critica feminista à ciência, surge no momento de profundas
mudanças e reformulação nos sistemas de pensamento que operavam aquele contexto. A
partir da Segunda Guerra Mundial, o mundo começa a se questionar que tipo de conhecimento
e ciência esta sendo produzido. Ciência para quem e para que?
Conforme aponta Sardenberg (2002), depois desse primeiro momento que foi o
apontar os erros e consequência de uma ciência excludente nasce à necessidade de propor um
novo olhar para a ciência. Nesse sentindo, como Margareth Rago (2000) diz que o aporte
teórico produzido pelos feminismos dentro e fora da academia, foi de extrema importância
para pensar as relações entre epistemologia feminista e a historia das mulheres.
Ainda, segundo a ótica da Francine Descarriés (2000, p.11) a construção das
reflexões e problematizações feitas dentro dos movimentos feministas e das mulheres
apontaram a critica da forma de fazer ciência, que até então eram hegemônica, e direcionaram
para uma produção de epistemologia própria, construída pelas e para as mulheres. “Proposto
para pensar e dizer as mulheres; como interrogação sobre a condição e suas posições na
historia”.
Dessa maneira, é possível construir de forma dialética a importância dos movimentos
feministas para a conquista do espaço dentro da academia, que possibilitou recontar a história
das mulheres, abrindo caminho para o debate acerca das demandas e conquistas dos
feminismos. O conceito de feminismo aqui utilizado, como define Vera Soares (1995), parte
do princípio de que o feminismo é uma ação política das mulheres, que interliga teoria, prática
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e ética para tornar as mulheres, sujeitos históricos da transformação de sua própria condição
social e do mundo em que vivem.
Assim, a proposta deste trabalho está em compreender por meio de um resgate
histórico do movimento feminista a adentrada dessa nova ciência no espaço acadêmico e a
construção de um conhecimento científico a partir da perspectiva feminista. Considerando as
epistemologias feministas como uma necessidade advinda dos próprios movimentos
feministas.
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ligado ao esforço pessoal de alguma mulher que, por sua excepcionalidade, na maioria das
vezes intelectual, rompia com os papéis estabelecidos pela sociedade e se colocava no mundo
público, na defesa de novos direitos para as mulheres.
Em busca da cidadania, surgiram então, diversas manifestações do movimento
feminista, no início do século XX. Duas tendências, que tiveram grande significado na época
foram identificadas. A primeira tendência teve como foco o movimento sufragista liderado
por Bertha Lutz. Celi Pinto (2003, p.26) chama este momento de feminismo “bem
comportado”, pois existia um caráter conservador, que não questionava a opressão da mulher.
A luta pela conquista das mulheres à cidadania, não se caracterizava pelo desejo de
alteração das relações de gênero, mas como um complemento para o bom funcionamento da
sociedade, ou seja, “sem mexer com a posição do homem, as mulheres lutavam para ser
incluídas como cidadãs. Esta parece ser a face bem-comportada do feminismo brasileiro do
período” (CELI PINTO, 2003, p. 15).
A segunda tendência do feminismo no Brasil, Celi Pinto (2003, p.38) caracteriza de
feminismo “mal comportado”. Essa vertente reuniu uma gama heterogênea de mulheres, na
grande maioria mulheres intelectuais, professoras, jornalistas, escritoras, que, buscavam além
da participação política, defendiam também o direito à educação e falavam em dominação
masculina. Elas começavam a abordar temas, que para a época eram delicados e considerados
tabus, como por exemplo, a sexualidade e o divórcio.
A terceira vertente que a autora Celi Pinto (2003), chama de o menos comportado dos
feminismos, se manifesta especificamente no movimento anarquista e no Partido Comunista,
tendo como precursora Maria Lacerda de Moura.
Nesse contexto do início do século XX em que essas três grandes vertentes estavam
sendo vivenciadas por múltiplas mulheres e movimentos distintos, foi fundado o Partido
Republicano Feminino, em 1910, diante da conformação com a não aprovação do voto
feminino pela Constituinte. Merece atenção esse fato, porque como aponta Eva Blay (2003),
se trata de uma ruptura, pela razão de ser um partido político composto por pessoas que não
tinham direitos políticos, cuja atuação teria que ocorrer fora da ordem estabelecida.
Entre o fim da década de 1930 e meados da década de 1940 também existiram, outras
manifestações de mulheres. Como o movimento libertário anarquista, que era constituído por
mulheres operárias e intelectuais de esquerda. As manifestações mais radicalmente feministas
parecem surgir aqui, no sentido de uma clara identificação da condição explorada da mulher
como decorrência das relações de gênero (CONSTÂNCIA DUARTE 2003).
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Essa primeira fase do feminismo brasileiro, segundo Celi Pinto (2003, p. 38), era a luta
pela cidadania em seu nível mais básico, porém acaba se dividido entre o “feminismo
comportado e mal comportado”. O primeiro não afronta os poderes, mas busca apoio neles. O
segundo era de enfrentamentos, expressando em passeatas, no confronto com a justiça e nas
atividades de mulheres livres pensadoras que criavam jornais e escreviam livros e peças de
teatro. Trazia para a discussão o mundo do trabalho, que era bem distante das preocupações
das feministas de elite.
A segunda onda do feminismo, que desabrochou nas décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos e na Europa, está entrelaçada com toda a efervescência política e cultural que
estava ocorrendo. Na Europa, o mito que caiu por terra, era o sonho da revolução socialista
liderada por uma vanguarda representada pelos partidos comunistas. Conforme Margareth
Rago (1996) o movimento hippie, nos Estados Unidos, e o maio de 1968, em Paris, foram às
expressões mais fortes de uma nova era, nascida após a Segunda Guerra Mundial.
Esse novo movimento que surgiu não trazia somente inovação, mas também tinha
caráter revolucionário, pois colocavam em xeque os valores tradicionais e conservadores da
organização social. Eram as relações de poder e hierarquia nos âmbitos público e privado que
estavam sendo desafiadas. Foi nesse contexto que nasceu o novo feminismo no mundo
ocidental, chamado de segunda onda (LIA ZANOTTA, 2016).
A luta então era em torno de que o “pessoal é político", de acordo com Carole
Pateman (1996, p.46), não somente como uma bandeira de luta mobilizadora, mas também
como um questionamento profundo dos parâmetros conceituais do político. Ao afirmar que o
“pessoal é político”, o feminismo trazia para o espaço da discussão política, as questões até
então vistas e tratadas como específicas do privado (violência domésticas, relações familiares,
aborto, cuidados com os filhos, divisão das tarefas domésticas) quebrando a dicotomia
existente entre o público e o privado, base de todo o pensamento liberal sobre as
especificidades da política e do poder político.
Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e as suas
instituições, a economia e a tudo mais identificado com o político. Já o privado se relaciona
com a vida doméstica, familiar e sexual, identificando-se como o pessoal, alheio à política.
Como aponta Carole Pateman:
[...] chamou a atenção das mulheres sobre a maneira como somos levadas a
contemplar a vida social em termos pessoais, como se tratasse de uma
questão de capacidade ou de sorte individual [...] as feministas fizeram finca-
pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas por fatores
públicos, por leis sobre a violação e o aborto, pelo status de esposa, por
políticas relativas ao cuidado das crianças, pela definição de subsídios
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Porém, o cenário no Brasil era outro. O golpe Militar de 1964 inaugurou os longos
anos de um regime marcado por cassação de direitos políticos, censura prisões arbitrárias,
tortura e exílio. O segundo momento do feminismo no Brasil, teria nascido durante esse clima
político do regime militar, no início dos anos 1970. Conforme aponta Cynthia Sarti:
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fortalecer a sociedade brasileira em vários aspectos, uma vez que muitos grupos criaram
organizações em vários espaços da sociedade brasileira, tanto dentro do espaço acadêmico
como e Organizações Não Governamentais (ONGs) e buscaram influenciar as políticas
públicas em áreas especificas, como em relação à questão da violência doméstica e da saúde,
utilizando os canais institucionais. (CELI PINTO, 2003).
4
Graduou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
(USP) em 1960. Suas primeiras pesquisas sobre a condição feminina datam desta década. Defende sua tese em
1967, na faculdade de Filosofia, ciências e Letras de Araquara (UNESP). Sendo orientada pelo professor
Florestan Fernandes. Esta tese foi publicada pela Editora Vozes, em 1976 com o título de “A Mulher na
Sociedade de Classes: Mito e Realidade”. Sendo uma das contribuições mais importantes para os estudos
acadêmicos acerca da mulher no Brasil.
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Ter um passado e uma história é uma necessidade dos vivos e, como diria
Pierre Nora, traduz o profundo mal-estar do homem contemporâneo diante
dos fenômenos de desenraizamento, de desterritorialização, de perda das
referências tradicionais que organizavam sua vida. Nesse contexto, o
passado é necessário para garantir a construção de nossa identidade,
fundando nossas tradições, enraizando-as no tempo e no espaço, definindo
nossas raízes. Uma referência histórica, uma garantia psicológica e um porto
seguro emocional, a partir da construção de uma linha de continuidade, que
nos localizaram no tempo (RAGO, 1996, p. 14).
Dessa forma, a autora ressalta que não só é possível escrever uma história com o olhar
feminista como é necessário fazer. O feminismo acaba por colocar o dedo nessa ferida,
pressionando o passado para ser visto e revisto, exigindo novas explicações, buscando os
arquivos para passar a história a limpo, pois as mulheres foram e ainda são esquecidas não só
em suas reivindicações, em suas lutas, em seus direitos, mas em suas ações.
As mulheres durante muito tempo foram suprimidas da história, foram alocadas na
figura da passividade, sendo caladas, e sendo desvalorizadas, ficando nas sombras da esfera
do privado. O feminismo, então, aponta para a crítica da grande narrativa da história,
mostrando o poder que sustenta as redes discursivas universalizastes. Nas palavras de
Maragareth Rago (1996):
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No início este novo olhar teórico, ou seja, os esforços da teoria feminista segundo a
análise de Sandra Harding (1993) eram de “reinterpretar as categorias de diversos discursos
teóricos de modo a tornar as atividades e relações das mulheres analiticamente visíveis no
âmbito das diferentes tradições intelectuais” (HARDING, 1993, p. 07). Pois, se a natureza e
as atividades das mulheres são tão sociais quanto às dos homens, o discurso teórico deveria
revelar com clareza e detalhar essas construções.
Como afirma Lia Machado (1997, p.107), a perspectiva feminista gera uma nova
forma de pensar e fazer ciência, “trata-se da introdução de um olhar situado na produção do
saber”. O que seria esse novo fazer ciência? A epistemologia, significa o discurso sobre a
ciência.
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(1998), em seu trabalho intitulado O tráfico de gênero, ressalta que o feminismo é construído
em um amplo discurso diverso sobre as relações de poder.
Portanto, ao levantar questionamentos a partir de diferentes sujeitos, a epistemologia
feminista questiona as relações de poder estabelecidas entorno das questões sociais e isso
inclui o próprio “fazer ciência”. Segundo Diana Maffia (2007, p 113), a construção da
epistemologia feminista mais consistente encontra-se na ligação entre “conhecimento” e
“poder”. Isso ocorre, pois a um reconhecimento da legitimação do conhecimento interligado
as redes de dominação e exclusão.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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acadêmico, se torna um projeto político. É trazer à luz, aquilo que é oculto e subjetivo, ou
recluso no privado. Tornando questões individuais para uma perspectiva coletiva.
Por tanto, quando se define feminismo como uma ação política que interliga teoria,
pratica e ética como meio para tornar as mulheres sujeitos históricos do mundo em que vivem,
reafirma-se a ideia que a pesquisa feminista tem como norte a construção de uma
epistemologia. Pois os estudos feministas têm como fundamento questionar os paradigmas
das ciências, discutir quem pode conhecer que tipo de perguntas deve ser feitas. .As ciências
construídas pelas mulheres feministas buscam uma nova linguagem e a produção de um
contradiscurso da hegemonia dominante da produção cientifica.
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Jocieli Decol1
Introdução
Nos últimos anos os debates sobre gênero e violência contra as mulheres têm se
expandido e alcançado espaço na mídia, nas rodas de conversa, nas redes sociais. No entanto,
os números das violências e mortes de mulheres no Brasil também vêm crescendo, e mais do
que nunca precisamos encontrar alternativas para superar essa realidade. O movimento
feminista ocidental dominante, que incorpora a luta pela igualdade de gênero e o fim da
opressão patriarcal, muitas vezes deixou de lado em suas análises muitos fatores que
envolvem as realidades das mulheres no Terceiro Mundo2, na periferia do sistema
1
Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO); Graduada em Relações Internacionais (UFSM) e
cursando especialização em Epistemologias do Sul pela CLACSO; E-mail: jocidecol08@gmail.com
2
Atualmente, a configuração dos Não-Alinhados de Bandung, que possibilitou a criação do conceito de Terceiro
Mundo não existe mais, porém “a cartografia imaginária que justificou o Terceiro Mundo ainda existe”
(GROVOGUI, 2011, p. 178). E, por isso, o conceito de Sul Global, que passa a ser mais utilizado, “capta o
espírito engajado do Terceiro Mundo e continua nos convidando para um reexame dos fundamentos intelectuais,
políticos e morais do sistema internacional”(GROVOGUI, 2011, p. 175). Este convite é feito também pelo
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internacional. Observando esse déficit e criticando o caráter universalista e eurocêntrico da
abordagem ocidental, surgem os feminismos do Terceiro Mundo, os quais procuram a
inclusão das diferenças e a ampliação do conceito de “mulher” homogêneo para “mulheres”
diverso. Por meio das reflexões construídas pelas feministas periféricas apresentamos neste
estudo a realidade das mulheres camponesas do Oeste de SC e sua agência frente às múltiplas
opressões que sofrem diariamente. Para tanto, o artigo será dividido em duas sessões. Na
primeira serão apresentadas as principais contribuições dos feminismos periféricos/terceiro
mundistas para compreendermos a realidade das mulheres que se encontram nesse espaço
geopolítico. Na segunda sessão serão apresentados os dados referentes à violência contra as
mulheres no Brasil, e mais especificamente, no estado de Santa Catarina. Nessa parte também
trazemos à tona trechos de depoimentos de mulheres vítimas de violência de gênero na
região, os principais fatores que constroem essa realidade, e as formas de agência encontradas
por essas mulheres para superar a opressão no campo.
O movimento feminista se constrói a partir da luta das mulheres desde o século XIX
pela igualdade entre os gêneros. Para alcançar esse objetivo o movimento almeja a dissolução
da estrutura machista, sexista e patriarcal sobre a qual se mantém nossa sociedade. Porém, o
feminismo que pretende falar pelas “mulheres”, na maioria das vezes contemplou apenas a
fala de mulheres brancas, ocidentais e socialmente abastadas. O surgimento do movimento
feminista não ocorre a partir das maiores vítimas da sua opressão: as mulheres negras,
pobres, periféricas. Essas vozes têm conseguido pouco ou nenhum espaço dentro desse
discurso, elaborado majoritariamente por mulheres brancas, ocidentais e acadêmicas (bell
hooks, 2010). Para responder a esse movimento surgem os feminismos do terceiro mundo, os
quais objetivam chamar a atenção para as diferenças dentro do unidade analítica “mulheres”.
A ideia de Terceiro Mundo apresentada aqui refere-se aos países que sofreram e
sofrem com os impactos da colonização, que tiveram suas estruturas sociais, econômicas e
conceito de periferia, que, elaborado por autores da Teoria do Sistema Mundo e da Teoria da Dependência,
chama atenção para o caráter hierárquico e desigual do Sistema Internacional. Para os fins deste estudo os
termos Sul Global, Terceiro Mundo, e Periferia serão utilizados como sinônimos. Considerou-se necessária a
utilização destes, uma vez que, são os conceitos que possuem maior alcance no âmbito acadêmico e foram os
que trouxeram visibilidade à discussão sobre a parte menos privilegiada do globo.
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políticas deformadas por esse processo. Em termos geográficos, portanto, estão inclusos
América Latina, Caribe, África, sul e sudeste da Ásia, China e Oceania. Mas, também são
consideradas parte do Terceiro Mundo latinxs 3, indígenas, negrxs, asiáticxs que estão na
Europa, EUA e Austrália (MOHANTY, 1991). As interconexões entre a localidade periférica
e as estruturas de opressão têm impactado profundamente a realidade do Terceiro Mundo.
Machismo, eurocentrismo, racismo e muitas outras formas de opressão marcam o dia-a-dia
dessas pessoas, especialmente as mulheres. Nesse sentido, o conceito de Terceiro Mundo “é
também uma forma de auto-empoderamento” (MOHANTY, 1991, p-.) uma vez que
reconhece as ligações entre localidade, identidade e opressão e busca formas de superá-las. O
feminismo ocidental dominante, no entanto, não incorporou inúmeras variáveis que compõem
a realidade e a subjetividade das mulheres periféricas, compreendendo-as de forma
homogênea e colonial. É com o surgimento dos feminismos do terceiro mundo/periféricos
que a visão universalista do feminismo ocidental passou a ser questionada devido ao “seu
universalismo, etnocentrismo, anglo-eurocentrismo, branqueamento e pela negligência de
questões coloniais e raciais que atravessam etnias, nacionalidades e geografias”
(BALLESTRIN, 2017, p. 1040). O grito dos feminismos do terceiro mundo é pelo
reconhecimento das diferenças e da complexidade que o termo “mulheres” envolve. Uma vez
que estas se constroem como sujeitos “através de uma complicada interação entre classe,
cultura, religião e outras instituições” (MOHANTY, 1984, p.-) ou seja, “ não são “mulheres -
um grupo coerente -” (MOHANTY, 1984, p.-). Compreender a interação e, na maioria das
vezes, a sobreposição de opressões é questão chave aos feminismos periféricos. Isso porque,
uma mulher negra e pobre, por exemplo, não sofre apenas o machismo devido ao seu gênero,
mas também racismo pela sua cor, e preconceito devido a sua classe social. Desse modo, a
4
interseccionalidade (hooks; CRENSHAW), negligenciada pelo feminismo ocidental, é
essencial para entendermos as realidades do terceiro mundo.
3
Compreendendo que a linguagem e a escrita também são reflexos das estruturas de poder que envolvem a
sociedade, a escrita utilizando o masculino como expressão de plural e neutralidade carrega o machismo que
impera socialmente. Por isso, a autora optou pelo uso do x como forma de chamar atenção para este fato e
provocar reflexões acerca do poder opressor da linguagem.
4
“A intersecionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com
grupos sobrepostos. Assim, ao sobrepormos o grupo das mulheres com o das pessoas negras, o das pessoas
pobres e também o das mulheres que sofrem discriminação por conta da sua idade ou por serem portadoras de
alguma deficiência, vemos que as que se encontram no centro – e acredito que isso não ocorre por acaso – são as
mulheres de pele mais escura e também as que tendem a ser as mais excluídas das práticas tradicionais de
direitos civis e humanos” (CRENSHAW, 2004, p. 10).
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No arcabouço amplo de Feminismos do Terceiro Mundo ou Periféricos incluímos aqui
diversos movimentos feministas: feminismo negro, feminismo lésbico, ecofeminismo,
feminismo pós-colonial e decolonial, feminismo indígena, feminismo chicano, entre outros 5.
Mesmo apresentando enfoques teóricos e metodológicos distintos, esses movimentos são
localizados em um espaço geopolítico comum (Terceiro Mundo/periferia). Além disso,
denunciam o etnocentrismo do feminismo ocidental elucidando “experiências de mulheres
excluídas e impulsionando por várias frentes para que o projeto intelectual e político do
feminismo seja descolonializado, democratizado e consiga criar as alianças necessárias para
apoiar processos transformadores " (SUAREZ;HERNANDEZ, 2008, p. -). Segundo Chandra
Mohanty (1991), uma das principais autoras desse movimento, os escritos feministas
periféricos enfatizam 1) o entendimento da simultaneidade de opressões como essencial para
compreender as experiências das mulheres no Terceiro Mundo; 2) o crucial papel do Estado
na vida cotidiana dos povos periféricos; 3) a importância da escrita e da memória na
construção de uma agência opositiva; 4) as distintas organizações, entendimentos,
contradições e subjetividades que compõem a complexidade das mulheres no Terceiro
Mundo (MOHANTY, 1991). Sendo assim, os feminismos do terceiro mundo argumentam
que o núcleo do movimento colonialista do feminismo ocidental com relação às mulheres do
terceiro mundo está na suposição de que essas mulheres formam um grupo homogêneo. Essa
categoria analítica trata a todas as mulheres como iguais, sem levar em consideração
diferenças de classe, raça, sexualidade, entre outras. Analisam “a mulher” do terceiro mundo,
e não “as mulheres”, em suas múltiplas diferenciações. Essa mulher vista pelo ocidente “leva
uma vida essencialmente limitada devido ao seu gênero feminino (leia-se sexualmente
constrangida) e seu pertencimento ao terceiro mundo (leia-se ignorante, pobre, sem educação,
5
“Entre otras muchas posibles adscripciones, de manera más concreta, pertenecerían a esta genealogía feminista
propuestas como el Feminismo del Tercer Mundo o “The Third World Feminism” (Mohanty, 2008 [1984]12 y
2008 [2003]) y su denuncia de la mujer del “tercer mundo” entendida como víctima esencial, así como su
propuesta de feminismo antiimperialista y anticapitalista; el eco-feminismo y sus diversas corrientes (Puleo,
2011); el feminismo lesbiano en su desvelamiento de la heterosexualidad como régimen político y no como
opción sexual (Wittig, 1977 y 2006 [1992]; Rich 2001 [1980]; Clarke (1988); el feminismo negro y su
interseccionalidad entre género, raza y clase (Hull, Bell y Smith, 1982; bell hooks, 2004 [1984]; Angela Davis,
2005 [1981]; Patricia Hill Collins, 2000 [2004]; Audre Lorde, 2003 [1984]); el feminismo chicano y el
feminismo de las “mujeres de color”, así como su concepto de frontera como metáfora epistémica (Moraga y
Castillo, 1988; Gloria Anzaldúa, 2004 [1987]); y más en la actualidad, los incipientes feminismos indígenas
(Hernández, 2003 y 2008; Marcos, 2010, Rivera, 2008) y los feminismos islámicos (AA.VV, 2008; Mahmood,
2008; Bradan, 2012); así como el denominado feminismo decolonial (Lugones, 2005, 2008 y 2010)” (MEDINA
MARTÍN, 2013, p. 63-4).
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limitada pelas tradições, doméstica, restringida a família, vítima, etc.)” (MOHANTY, 1984,
p.-).
Como ressaltado pelas teorias pós-coloniais e decoloniais, a construção do
conhecimento não é uma ação apolítica, mas pelo contrário, envolve relações de poder e é
moldada pelas condições sociais e ideológicas na qual o sujeito se encontra. Do mesmo
modo, “as práticas do feminismo acadêmico (seja de leitura, escrita, crítica ou textual) estão
inscritas nas relações de poder, relações que elas enfrentam, resistem ou, até possam
respaldar implicitamente. Não existe, portanto, a academia apolítica” (MOHANTY, 1984,
p.-). Precisamos, portanto, entender essas relações e procurar formas de pensar e agir que
envolvam a decolonização6 do conhecimento. O estabelecimento de uma ética da
singularidade, proposta por Spivak e compartilhada também por Teresa da Cunha e
Terezinha da Silva, aparece como um instrumento na busca pela decolonização. A ética da
singularidade é descrita como “uma pesquisa pela compatibilidade entre pessoas
culturalmente situadas; isto é, uma questão de alteridade face a face, e abrindo espaço para a
existente polifonia, dispensando abstrações e avaliações categóricos” (CUNHA;SILVA,
2016, p.2) Deste modo, “fornece nos a possibilidade de novos conceitos, Metodologias
Narrativas Epistemologias, performances sociais que pressupõem a decolonização do
pensamento” (CUNHA;SILVA, 2016, p.2). Em busca dessa decolonização devemos,
portanto, apresentar um pensamento subversivo à ordem dominante e alternativo para novas
realidades e assim acabar com o monstro de três cabeças 7
que nos oprime: capitalismo,
colonialismo e patriarcado.
patriarcado porque o corpo das mulheres só faz sentido quando é propriedade dos homens;
capitalismo do Estado mínimo e porque quanto menor o Estado, menor treinamento de
professoras/es, e melhor para os interesses de poucos; e o colonialismo no comportamento
dx outrx, aqui a relação outro-com-outro como um incontrolável selvagem que não foi
salvo de sua degeneração” (CUNHA;SILVA, 2016, p.6).
6
Optou-se na pesquisa pela utilização do termo ‘decolonização” em detrimento de “descolonização”. Isso
porque, diferentemente do último que em termos históricos diz respeito à superação do colonialismo, utilizar o
termo “decolonização” implica, como nos mostra Catherine Walsh “colocar em evidência que não existe um
estado nulo da colonialidade, mas sim posturas, posicionamentos, horizontes e projetos de resistir, transgredir,
intervir, in-surgir, criar e influenciar. O decolonial expressa, então, um caminho de luta contínua na qual se pode
identificar, visualizar e estimular “lugares” de exterioridade e construções de alter - (n)ativas.” (WALSH, 2013,
p. 25).
7
Termo utilizado pela poeta angolana Rachel Lima.
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Deste modo, para conseguir destruir essas bases opressoras da sociedade precisamos
ser mais que feministas, precisamos decolonizar o próprio feminismo. E para isso é
imprescindível considerar a diversidade de experiências e realidades sociais das mulheres. Ou
seja, pensar a complexidade e a diversidade do ser mulher nos distintos pontos do mundo e,
portanto, reconhecer a fala subalterna e a riqueza epistemológica de cada discurso
(CUNHA;SILVA, 2016). Evidenciar a luta de mulheres periféricas e reconhecer a
importância das suas vozes e agências é o que pretendemos fazer nesse estudo, que enfoca na
realidade das mulheres agricultoras do Oeste de Santa Catarina.
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mulheres que vivem no interior, em cidades longes dos grandes centros, distantes de
delegacias especializadas, de oportunidades econômicas, de assistência pública, de ajuda. O
medo do agressor, do julgamento social e também a preocupação com os filhos faz com que
muitas mulheres não denunciem, e vizinhxs ou pessoas que muitas vezes presenciam a
agressão se calam pelo medo ou pela cultura do “em briga de marido e mulher não se mete a
colher”. A banalização da violência no ambiente doméstico, fruto da cultura machista que nos
encontramos é um empecilho na luta contra a violência e faz com que muitas mulheres
enxerguem a violência sofrida até como algo “do cotidiano”. É urgente debatermos esse tema
com as mulheres do campo e pensarmos em alternativas para superar essa realidade
opressora.
O estado de Santa Catarina, foco deste Estudo, apresentou cerca de 47 casos de
feminicídios em 2017 (Diário Catarinense, 2017). Desde a criação da Lei Maria da Penha, as
mortes por feminicídios no Estado somam 285 processos penais da Justiça (G1, 2017).
Chapecó foi a cidade que mais registrou ações ajuizadas dentro da Lei do Feminicídio com
20 casos. A cidade, localizada no Oeste de Santa Catarina, ocupa o 3ª lugar no ranking de
violência contra mulheres no Estado (Rádio AL, 2017). A região oeste de Santa Catarina
abrange cidades de médio e pequeno porte, as quais possuem, em sua grande maioria, a
agricultura como principal atividade produtiva. A agricultura familiar é protagonista dessa
produção e envolve toda a reunião. Apesar das vantagens da vida no campo, do contato com a
natureza e da vida em comunidade, a realidade rural de muitas famílias é marcada por
inúmeras horas de trabalho, muitas vezes em condições precárias, sujeição ao contato com
agrotóxicos, a necessidade de plantar cada vez mais e perceber o pouco valor dados aos
alimentos advindos dali, enquanto o agronegócio recebe os mais altos subsídios estatais, a
agricultura familiar luta para manter-se viva. Além desse contexto de exploração que vivem
xs pequenxs agricultorxs, as mulheres, nesse cenário, sofrem novamente, uma sucessão de
violências: (1) em relação a sua posição como agricultora em um país voltado para o
agronegócio; (2) violência relacionada a sua segurança alimentar e saúde física e mental
devido à intensas exposições a agrotóxicos extremamente prejudiciais ao ambiente; e (3)
violências de gênero dentro do ambiente familiar, que de tão frequente acaba se tornando
parte da rotina de tantas mulheres camponesas. A visão patriarcal e machista na qual se
sustenta a sociedade brasileira, que pensa a mulher como submissa ao homem, espera que as
mulheres cuidem da casa, dxs filhxs, do marido, ajudem no trabalho e ainda, que sofram
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caladas violências diárias. A maioria dessas mulheres depende economicamente de seus
maridos, uma vez que são eles que administram o dinheiro dentro de casa. Essa situação,
aliada a preocupação com xs filhxs e o julgamento social, acaba impedindo denúncias e
provoca a perpetuação das violências de gênero no campo.
No último mês (junho/2017) ocorreu uma importante iniciativa do jornal Diário
Catarinense (DC) sobre a violência contra as mulheres do campo em SC. A reportagem
especial “Sozinhas: Histórias de mulheres que sofrem violência no campo”, desenvolvida
pelo jornal, traz à tona diversos relatos de violências sofridas por mulheres no estado. Esses
relatos estão disponíveis na plataforma digital8 do Jornal, juntamente com fotos e áudios que
retratam essa triste realidade do ambiente rural. Essa pesquisa é resultado dos esforços da
repórter Ângela Bastos e o repórter fotográfico Felipe Carneiro, que percorreram milhares de
quilômetros pelo estado coletando informações sobre a realidade das mulheres agricultoras,
buscando entender porque SC é o quarto estado mais violento com relação às mulheres no
país. A exposição desses fatos através da voz e imagem daquelas que são oprimidas instiga a
reflexão sobre o tema, muitas vezes deixado de lado, ocultado pela população local. A
violência contra a mulher se tornou algo tão presente que virou rotina em muitos lares no
interior. Segundo o DC, a cada 12 minutos uma mulher é agredida em SC, e a dificuldade de
acesso à delegacias especializadas, de locomoção no campo, além do julgamento dos
vizinhos e vizinhas faz com que muitas mulheres sofram caladas as dores do machismo. Dar
voz a essas mulheres é o primeiro passo para evidenciarmos esse problema tratado como
banal, mas que é um dos principais algozes da nossa sociedade. Por isso, seguem abaixo
alguns trechos das entrevistas feitas pelo DC.
— “Eu fui muito violentada. Perguntava por que estava fazendo aquilo, mas ele não
respondia, ficava quieto, saía até de perto para não responder”. As marcas desse tormento
8
http://www.clicrbs.com.br/sites/swf/violencia_contra_mulheres_do_campo/sozinhas.html
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estão nas costas, pernas, joelhos, braços, mãos. Até no dedo quebrado. Mesmo na condição
de vítima, Tânia era tomada por sentimentos comuns a outras mulheres: tinha medo e
vergonha. Se saísse de casa, usava roupa de manga comprida para tapar hematomas e
arranhões. Se fosse receber visita, escondia louças e móveis quebrados.— “Eu colava
papel, botava adesivo, para que não vissem as coisas destruídas”. — “Eu corria com as
crianças e me escondia no mato para não morrer”. Um dia, recorda, ela precisou ir à
cidade. A carona atrasou e, ao retornar para casa, foi recebida com chutes e pontapés que
atingiram as partes íntimas. Foi proibida de procurar socorro médico. Por causa dos golpes,
urinou sangue durante um mês. A maior parte das agressões acontecia durante a noite. —
“Tinha vezes que eu pedia pelo amor de Deus que o dia não anoitecesse e que continuasse
claro para eu não passar tudo de novo”.
— “O mais forte, o que mais me doeu em meus 35 anos de casamento foi ele, o meu
marido, ter brigado, me ameaçado de morte e não ter permitido eu dar adeus. Quando
cheguei, meu pai já estava morto e enterrado”. Dias depois, a mãe dela reuniu os filhos e
fez uma proposta. Daria a parte das terras a que tinha direito como viúva para Eraci, desde
que fossem morar perto, em Arroio do Tigre, no Rio Grande do Sul. A reação do marido
foi um desastre. Se ela quisesse, poderia ir, mas a filha ficaria com ele. — “Até a menina
ele tentou me tirar na vida”.
Na busca por alternativas para uma vida melhor no campo, surgem no Brasil na
década de 80 diversos movimentos de luta social liderados por mulheres. Em Santa Catarina
(SC) surge o Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) mais tarde chamado de
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) um dos principais movimentos de mulheres
agricultoras do país. Uma tentativa de superar a dependência econômica, a violência e
melhorar a realidade do campo para as mulheres. Um agrupamento de vozes, que juntas são
mais fortes. Segundo Valdete Boni, o movimento teve três principais fases. Em um primeiro
momento o discurso é voltado para as questões trabalhistas, sendo o foco maior a classe. Na
segunda fase, o discurso incorpora questão de gênero e não apenas classe como
anteriormente. O momento atual, abarcando os anteriores, volta-se principalmente, para
questões que envolvem a segurança alimentar, lutando pela defesa do meio ambiente e a
produção de sementes crioulas (BONI, p.15). Como destaca o próprio movimento:
Toda esta bagagem trazida pelos movimentos autônomos de mulheres, associada aos demais
movimentos, reafirmou a luta das mulheres em dois eixos: Gênero e Classe. Somos mulheres
que lutamos pela igualdade nas relações e pertencemos à classe das trabalhadoras e
trabalhadores. Nessa trajetória de luta e organização das mulheres camponesas foi sendo
construída uma mística feminina, feminista e libertadora, cujo conteúdo se expressa no
Projeto Popular que o Movimento está comprometido que articula a transformação das
relações sociais de classe com a mudança nas relações com a natureza e a construção de
novas relações sociais de gênero. (MMC, 2017).
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Os dois eixos pelo qual o movimento se guia são, portanto, Classe e Gênero. A
conexão entre ambos é que forma a identidade do grupo, pois são mulheres, mas mulheres
camponesas. A vida rural é parte fundamental do autorreconhecimento dessas mulheres, por
isso, ao analisarmos sua atuação devemos ser conscientes dessa interseccionalidade, como
nos mostraram as feministas do terceiro mundo. Deste modo, estas mulheres se
autodenominam como camponesas, ou seja, produzem os alimentos que dão sustento à
família, “é a pequena agricultora, a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, as
extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras,
sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas” (MMC, 2017). O
Movimento das Mulheres Camponesas atua na “luta das mulheres pela igualdade de direitos e
pelo fim de qualquer forma de violência, opressão e exploração praticada contra a mulher e a
classe trabalhadora”. O caminho que pretendem traçar para conquistar uma realidade melhor
é através da “produção de alimentos saudáveis, pela construção de um projeto de agricultura
ecológico e pela luta pela libertação da mulher” (MMC,2017).
Considerações Finais
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violência contra as mulheres no campo recebesse maior atenção social. Acreditamos que
investimentos no empreendedorismo das mulheres do campo pode ser um grande aliado para
a conquista da independência financeira dessas mulheres e assim, seu empoderamento. Nesse
sentido, o cooperativismo, surge como um importante instrumento para esse fim. As
cooperativas podem ser definidas como “empresas de propriedade conjunta e de gestão
democrática guiadas por valores de ajuda mútua, responsabilidade compartilhada,
democracia, igualdade, equidade e solidariedade” (UNISOL, 2010). Nesse ambiente, as
mulheres obtêm a possibilidade de decidir em conjunto, socializar, ascender
economicamente, compartilhar experiências, e fortalecerem-se umas às outras. Deste modo,
Para as mulheres, as cooperativas têm um papel chave a desempenhar, pois são capazes de
responder às suas necessidades práticas e estratégicas. Cooperativas formadas
exclusivamente por mulheres ou constituídas por homens e mulheres oferecem meios
organizativos eficazes para as sócias e empregadas melhorarem seu nível de vida, por meio
das oportunidades de exercer trabalho decente e facilidades de poupança, crédito, saúde,
habitação e serviços sociais como educação e capacitação. As cooperativas também
oferecem às mulheres meios para participarem de atividades econômicas e exercerem
influência, conquistando autonomia e auto-estima graças a esta participação. Elas
contribuem, ainda, para melhorar a situação econômica, social e cultural das mulheres,
promovendo a igualdade e mudando os preconceitos institucionais (UNISOL, 2010).
Outra ação essencial que deve partir do poder público é a promoção de campanhas de
conscientização sobre violência no campo e de como agir frente a casos de violência,
juntamente com o fornecimento de acompanhamento psicológico e jurídico. Por fim, a
localidade e o gênero que compõem as delegacias da mulher interferem na luta pelo
empoderamento e fim da violência. O desenvolvimento de delegacias da mulher/ou alguma
representação dessas no interior e sua composição feita por agentes do gênero feminino
facilitaria o processo de denúncias e também o atendimento às vítimas.
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V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Universidade Estadual de Londrina
13 a 15 de junho de 2018
ISSN 2177-8248
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Apresentação
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V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Universidade Estadual de Londrina
13 a 15 de junho de 2018
ISSN 2177-8248
para o debate sobre as diferentes questões e dimensões relevantes para a construção de
uma sociedade livre do sexismo, do racismo e das diversas formas de opressão.
Comissão Organizadora