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V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Universidade Estadual de Londrina


13 a 15 de junho de 2018
ISSN 2177-8248

Membros LGBT da Igreja da Comunidade Metropolitana em Maringá e da Igreja


Episcopal Anglicana em Curitiba: a constituição das significações de suas sexualidades

Adriana Gelinski1

Resumo: A presente reflexão norteia-se pelo seguinte objetivo: compreender como as


diferentes vivências espaciais dos membros LGBT da Igreja Episcopal Anglicana de Curitiba
(IEA) e da Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá (ICM) constituem as
significações sobre suas sexualidades. As imaginações geográficas proporcionadas pela
vivência cotidiana na ICM-Maringá e na IEA-Curitiba levaram-nos à construção do recorte do
grupo de pessoas LGBT membros destas igrejas. Essas constituem-se enquanto uma
possibilidade de vivências e práticas religiosas para pessoas LGBT. Foram realizadas 14
entrevistas seguindo roteiro semi-estruturado. As entrevistas foram transcritas e
sistematizadas a partir da análise de conteúdo do discurso, o que resultou em 987 evocações,
as quais foram classificadas em espacialidades discursivas e categorias discursivas.
Evidencia-se a presença do discurso religioso em todas as espacialidades cotidianas das
pessoas entrevistadas e o paradoxo espacial de inclusão / exclusão. As entrevistas elucidam
que as espacialidades são constituídas por complexas cadeias de relações, discursos e práticas.
Essas, por sua vez, contribuem para a constituição das significações e resignificações das
pessoas, consequentemente estão diretamente ligadas às categorias identitárias. Evidenciou-se
que o gênero, as sexualidades e a religiosidade têm grande relevância na vida dessas pessoas,
revelando que o discurso religioso permeia todas as espacialidades e instâncias da vida do
grupo pesquisado. Tal discurso reforça discursos como normatizadores em relação às
sexualidades, contribuindo assim para reiteração do processo sexualizador do pecado.

Palavras-chaves: espaço; sexualidades; significações.

Introdução.
O presente trabalho está norteado pela seguinte questão central: Compreender como as
diferentes vivências espaciais dos membros LGBT da Igreja Episcopal Anglicana de Curitiba
(IEA-Curitiba) e da Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá (ICM-Maringá)
constituem as significações de suas sexualidades. Assim, as imaginações geográficas que
foram proporcionadas pela vivência cotidiana na ICM-Maringá, levaram-nos à construção do
recorte do grupo de pessoas LGBT e frequentadoras da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba.
Desta forma, ambas diferenciam-se das igrejas fundamentalistas, pois suas práticas
teológicas e interpretações dos textos bíblicos não são fundamentalistas. A interpretação
fundamentalista dos textos bíblicos pressupõe que cada detalhe é divinamente inspirado, não
há erros ou incoerências, bem como tende a “absolutizar o sentido literal da bíblia” (WEGER,

1
Bolsita técnica Centro Tecnológico de Pesquisa em Ciências Humanas - CETEP e Pesquisadora do Grupo de
Estudos Territoriais - GETE da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR - UEPG; Mestra em Geografia,
Bacharel e graduanda em Licenciatura em Geografia pela UEPG; drycagelinski@gmail.com.

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1998, p. 12). Tais textos contém a palavra de ‘Deus’, “inspiradas de tal forma à mente
humana que não são historicamente condicionadas, mas provêm, infalivelmente e de certa
forma, extra-historicamente de Deus” (CASTRO, 2015, p.19). No entanto, ao compreender os
textos bíblicos como fundamento da teologia, faz-se necessário atentar-se que há uma reflexão
humanas sobre tais textos e sobre o divino. Isto se dando em uma perspectiva histórica “,endo
presente o fundamento cristológico que a identifica e como esse fundamento foi
compreendido nas diferentes fases de evolução do cristianismo” (CASTRO, 2015, p.20).
Por conseguinte, evidencia-se o fortalecimento do movimento fundamentalista cristão
de um lado, e de outro há o movimento contrário ao movimento fundamentalista que acolhe e
se aproxima das perspectivas teológicas inclusivas e contextuais. As igrejas ICM-Maringá e
IEA-Curitiba são exemplos dessas igrejas, as quais não utilizam os textos bíblicos como
fundamento único de fé e prática social. Para tanto, a ICM-Maringá e a IEA-Curitiba
questionam e contextualizam as afirmações de textos bíblicos como “Com homem não te
deitarás, como se fosse mulher; abominação é” Levítico 18:22; “Quando também um homem
se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente
morrerão; o seu sangue será sobre eles”Levítico 20:13.
Outro ponto em comum entre os membros LGBT da ICM-Maringá e dos membros
gays da IEA-Curitiba está na vivência religiosa ao decorrer das vidas do grupo pesquisado.
Pois, todas as pessoas foram batizadas e cresceram em ‘berço religioso’ (Adventista,
Assembleia, Batista, Brasil para Cristo, Católica, Presbiteriana, Universal do Reino de Deus).
Desta forma, é evidenciado pelas pessoas entrevistadas que as antigas comunidades
religiosas formalmente são tidas como uma espacialidade confortável, de alívio frente às
mazelas da vida. Todavia, simultaneamente, configuram-se enquanto espaços de opressão e
exclusão para pessoas/grupos que não se enquadram naquilo que é tido por cada denominação
enquanto correto e natural. Ademais, os discursos religiosos presentes nas antigas
comunidades religiosas compreendem o mundo a partir da noção binária e heterossexual
mulher/feminina e homem/masculino. Assim, as pessoas que não seguem esta linearidade são
lidas como desviantes, ‘doentes espiritualmente’.
Este artigo compreende as experiências, as práticas e os discursos religiosos como
agentes para o funcionamento do mecanismo de gênero, regulando as práticas das pessoas e
criando ficções de feminino e masculino (BUTLER, 2013). Neste sentido, evidencia-se o
discurso religioso relacionado às sexualidades, reiterando a heteronormatividade, sendo
justificada pelo discurso sexualizador do pecado, caso as pessoas não sigam a linearidade
sexo, gênero e desejo (Butler, 2002).

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Estes discursos estão relacionados com as espacialidades e, por sua vez, estão
conectados com as práticas espaciais. Assim, o discurso contribui para dar sentido e reiterar
práticas espaciais, como afirma Spin (1996). Sendo assim, adotou-se a análise de discurso
proposto por Bardin (1977) para a análise das falas dos membros LGBT da ICM-Maringá e
dos membros gays da IEA-Curitiba. Posteriormente, foram inseridas e sistematizadas no
banco de dados utilizado pelo Grupo de Estudos Territoriais (GETE) por meio do Software
LibreOffice. Através do banco de dados, é possível organizar os dados entre evocação
discursiva, elemento, categoria discursiva e espacialidades discursivas.Assim o elemento é um
resumo da Evocação, qual é retirado a Categoria Discursiva e a Espacialidade Discursiva. Isto
tudo possibilita à compreensão dos discursos, bem como a relação das evocações discursivas
e as espacialidades.
Portanto, esta pesquisa propõe compreender as diferentes vivências, os discursos e as
experiências espaciais dos membros LGBT da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba e como
influenciam na significação das suas sexualidades. Busca-se então, um diálogo entre conceitos
trabalhados na ciência geográfica como o espaço, por intermédio das reflexões de Massey
(2008); gênero e sexualidades pensado por Butler (2003) e Silva e Ornat (2011). Outros
conceitos utilizados neste trabalho como teologia por Musskopf (2008) e Natividade e
Oliveira (2009).

Relações entre espaço, gênero e sexualidades.

Ao problematizarmos as vivencias espaciais de determinado grupo dialogamos com


Massey (2008), que afirma que o espaço surge através de vivências, relações e práticas, este
movimento é temporal e espacial concomitantemente. Entendido pela autora como lugar, um
evento, este, por sua vez, é um conjunto de encontros “como a integração de espaço e tempo,
como eventualidades espaço-temporal” (p. 191). Assim, o espaço igreja ICM-Maringá e IEA-
Curitiba surgem através das vivências, das relações e das práticas, estando em constante
movimento sendo ao mesmo tempo material e imaterial. Contudo, cada vivência espacial dos
membros das ICM-Maringá e da IEA-Curitiba não são simples encontros espaço-temporais,
mas colocam-se como evento.
Ademais, são cheios de significado e efeito, podendo ser negociado e renegociado
constantemente. Tanto a IEA-Curitiba como a ICM-Maringá são locais institucionalizados de
encontros, de práticas, de sociabilidades, as quais contribuem para a significação e
resignificação de concepções dos membros. Logo, este evento é feito por um conjunto de

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encontros entre as pessoas, e das pessoas com a ideia de que a vivência espacial da/na ICM-
Maringá e IEA-Curitiba possibilita o contato com o divino/Deus.
No processo de investigação desta deste trabalho evidenciou que tanto a ICM-Maringá
quanto a IEA-Curitiba são simultaneamente singulares e plurais. São singulares no seu início
e na sua construção, sendo, portanto, espacialidades específicas e únicas para cada pessoa. Ao
mesmo tempo são plurais, devido às relações e práticas sociais vivenciadas coletivamente,
como nos momentos de celebração eucarística/culto e atividades em grupo vivenciadas pelas
pessoas frequentadoras da ICM-Maringá e IEA-Curitiba. Pensando assim, espaços religiosos
podem atuar como um articulador dos discursos, das fantasias e das corporeidades, bem como
contribui para “dar forma nas alianças, inscrições e conquistas”, o que Rose (1999 p. 248)
denomina de Performing Space ao problematizar a vida de mulheres lésbicas.
Nessa perspectiva, a partir de nossa investigação, a ICM-Maringá e a IEA-Curitiba
são, portanto, entendidas de maneira relacional, constituídas através da interação e das
práticas entre as pessoas, mesmo a ICM-Maringá e IEA-Curitiba tendo especificidades de
práticas e discursos como no momento eucarístico, em que a ICM-Maringá é mais ‘avivada’
nas orações e no louvor. A IEA-Curitiba é mais suave nos discursos e no louvor, de origem
anglicana também é caracterizada por sua flexibilidade teológica.
Ambas as igrejas interpretam os textos bíblicos a partir de um entendimento contextual
e histórico-crítico, buscando compreender o contexto de cada texto bíblico. Assim,
compreendem a sexualidade como parte integrante de cada pessoa, rompendo com a relação
de sexualidade entendida como pecado. Assim, realizam interpretações alternativas dos textos
bíblicos tentando romper com estigmas e discursos homofóbicos sobre a diversidade sexual.
Para tais articulações entre discursos, fantasias e corporeidades, Rose (1999) denomina
enquanto performances relacionais, as quais contribuem para a formação de 'um espaço
específico'. Como, por exemplo, a ICM-Maringá e IEA-Curitiba que possuem práticas e
discursos teológicos específicos, tais como o discurso teológico feminista, queer e histórico-
crítico. Por outro lado, igrejas com práticas e performances de outros tipos, com outra
“relacionalidade, produzem outros espaços” (ROSE, 1999, p. 250). O espaço, portanto, não é
algo fixo e sem aberturas, mas está em constante movimento de ser feito, é ativo, e, é
produzido de acordo com as “performances situacionais de relação entre eu e outro” (ROSE,
1999, p. 250).
Dito de outra maneira, o espaço ICM-Maringá e IEA-Curitiba atuam como um
articulador, dando forma às alianças, às práticas, discursos e às fantasias. E quanto as fantasias
dos membros LGBT das respectivas comunidades religiosas, estas estão relacionadas à

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compreensão do mundo espiritual, da crença da existência de almas e de seres sobrenaturais.


Esta compreensão vai além da materialidade, isto é, indo além da corporeidade considera-se,
assim, a possibilidade de uma continuidade pós-morte.
Com base nos estudos de Massey (2008) sobre espaço e identidade, essa relação é
compreendida através de práticas, pois, para a autora, a identidade não vem constituída na
essência da pessoa, mas sim é relacional e construída. Tal relação leva em consideração as
vivências, a subjetividade e os discursos. Desta forma, é um erro pretender reivindicar que a
identidade é imutável/fixa, pois depende do que Massey (2008) denomina de política de inter-
relação, onde há uma tríade entre identidade, relação e espacialidade, as quais estão
relacionadas e são co-constitutivas. Logo, as relações sociais são constituídas e constituem o
espaço. Os membros da ICM-Maringá e IEA-Curitiba vivenciam práticas religiosas e relações
sociais nos espaços religiosos, tais relações e vivências contribuem para constituir, significar e
ressignificar categorias identitárias como as sexualidades.
Ao refletirmos sobre a complexidade do espaço religioso inclusivo LGBT, podemos
considerar o espaço constituído pelas inter-relações e interações dos discursos, fantasias e
corporeidades, como afirma Rose (1999). Assim, compreendemos nosso fenômeno a partir
desta tríade, pois, os membros LGBT sentem a necessidade de estar no espaço religioso
expressando sua sexualidade, sem se sentirem rejeitados e ‘pecadores’, uma vez que a
sexualidade está inscrita na corporeidade deles.
Sendo assim, as performances contribuem para a existência de um espaço específico, e
ao passo que as interações e relações mudam há a produção de outros espaços (BUTLER,
2008). Assim, de acordo com Rose (1999, p. 3): “O espaço é praticado à matriz do jogo,
dinâmico e interativo, formas e configurações produzidas através das performances
situacionais de relação entre eu e outro”.
De acordo com Butler (2013), a noção da heteronormatividade se dá de forma
invisível até o momento que haja o rompimento das fronteiras, isto acontece quando há a
existência de pessoas fora da norma imposta. Desse modo, ser homem ou ser mulher está
relacionado à norma heterossexual, em que um conjunto de ideias, valores e normas são
construídos e reproduzidos através das vivências, crenças, linguagem e cultura. Logo, as
pessoas que não seguem uma ordem ou a norma heterossexual, sentem em seus corpos a
interdição em alguns grupos e espaços. Assim, cada espaço religioso pode ser compreendido
como um espaço envolto por discursos que constituem a noção de mundo organizado por dois
polos: normal (as pessoas que seguem os papéis e práticas de acordo com os textos bíblicos) e
não normal ou ‘desviados’: (as pessoas que não seguem os discursos e práticas, bem como a

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norma heterossexual). O espaço religioso Fundamentalista, por sua vez, é composto por
normas binárias e heterossexuais, sendo assim entendido como um espaço heterossexual
(VALENTINE, 1993).
Não obstante, cada espaço religioso está envolto por práticas e discursos sobre como
se comportar, se vestir e se expressar, esses elementos compõem a corporeidade das pessoas.
Para tanto, este corpo não é imóvel, é constituído pelas relações e negociações presentes em
um espaço e tempo, como propõem Silva e Ornat (2016).
A relação entre gênero, sexualidade e religião é um importante caminho para
compreender o desenvolvimento das igrejas e as relações de poder que se estabelecem nas
disputas espaciais em torno da conquista de fiéis (NATIVIDADE, 2006). A vivência religiosa é
permeada pela forma em que as pessoas são interpretadas socialmente, nas relações de poder,
nas práticas e nos discursos religiosos.
Silva (2009) ressalta que a Geografia Brasileira produziu um não dito geográfico sobre
as temáticas de gênero, sexualidades e religiosidade. A autora afirma isso ressaltando que a
ciência geográfica brasileira segue uma base eurocêntrica, tem um apego à forma material do
espaço e a permanência de um discurso generalizador, invisibilizando as especificidades e
subjetividades dos grupos sociais. Ao pensar a construção do dispositivo da sexualidade e do
mecanismo de gênero, Foucault (1988) ressalta que são processos que estão envoltos por
relações de poder, bem como estão em movimento e tensões.
Desta forma, Foucault (1979) define o dispositivo da sexualidade como um conjunto
de discursos (científicos, biológicos, morais, filosóficos e religiosos), passando por
instituições até decisões regulamentares como as leis. Resumindo, “o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo, é a rede que se pode tecer entre estes elementos, que inventam,
modificam, reajustam, segundo as circunstâncias do momento e do lugar, a ponto de se obter
uma estratégia global, coerente, racional” (Foucault, 2000, p. 244).
Dito de outra forma, Butler (2003), ao conceituar o mecanismo de gênero, ressalta que
este mecanismo também é um mecanismo de poder. Scott (1989) compreende o gênero como
uma forma de significar as relações de poder. O mecanismo de gênero, regula e normatiza os
corpos, esses corpos, por sua vez, que não seguem este modelo regulatório são passíveis de
punição e vigilância para se adequar às regras estabelecidas (BUTLER, 2003) nas mais
variadas instituições e espaços como a casa, escola, igreja. Neste sentido Butler (2003) afirma
que o mecanismo de gênero reforça e naturaliza as noções de masculino e feminino. Segundo
a autora, é a partir dos discursos e práticas constantemente repetidos que a noção de gênero é

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concebida. Reforça que o gênero não é o que somos em essência, mas é algo que foi
produzido, reproduzido e naturalizado.
O ser de cada pessoa é composto pelo corpo, gênero, sexualidade, religiosidade
constituindo assim a identidade de cada pessoa. E não há um destino único e fixo para os
corpos (BUTLER, 2003), mas sim são mutáveis para subverter e rearticular a lógica
normativa imposta pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo.
Para tanto, o espaço, as relações e os discursos estão conectados e compõem a
vivência das pessoas, ao passo que determinados espaços podem ser acolhedores e outros
excludentes. Além disso, os espaços, de acordo com Massey (2000), são constituídos pelas
relações, compreendendo que o espaço é o lugar de encontro. É possível compreender o
espaço como lugar, o qual se dá por uma constelação de histórias e relações que se encontram
e se refazem constantemente, como evidenciado no processo de levantamento de campo na
Igreja Episcopal Anglicana em Curitiba e na Igreja da Comunidade Metropolitana em
Maringá, Paraná. Evidenciou-se assim, que todas as pessoas entrevistadas foram socializadas
em igrejas evangélicas ou católica, as quais reiteram compreensões teológicas, discursos e
práticas religiosas que reiteram a sexualidade como pecado.
Desta forma, há uma defesa da heterossexualidade compulsória, ou seja, uma
desqualificação de sexualidades dissidentes da heterossexualidade como norma. Assim, ao se
afirmar a “heterossexualidade” como única e legítima forma de exercício do desejo
(BUTLER, 2003) legitima-se o pensamento linear de sexo, gênero, desejo e práticas como
algo natural, ‘correto’, esperado por Deus. No entanto, tal pensamento confere
inteligibilidade, importância e materialidade ao “sexo” biológico, tomando diferenças de
gênero e subordinações culturalmente constituídas como se fossem “naturais”, como afirma
Butler (2003).
Sendo assim, são várias as formas e intensidades de reiteração da heterossexualidade
compulsória, “variando desde o total silêncio acerca da diversidade sexual e de gênero até a
produção de estereótipos que operam por uma franca estigmatização de pessoas LGBT”
(NATIVIDADE e OLIVEIRA, 2009, p. 13). Ademais, as perspectivas teológicas hegemônicas
articulam-se com políticas que justificam seus posicionamentos homofóbicos na cosmologia,
passagens bíblicas e práticas cristãs preconceituosas. Indo além, tais discursos permeiam
todas as espacialidades cotidianas reiterando assim a norma heterossexual.

As experiências espaciais e religiosas dos membros da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba


e a compreensão sobre suas sexualidades.

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Os membros LGBT, mesmo tendo inúmeras experiências e vivências fora do espaço


religioso, ainda carregam princípios religiosos. Os espaços vivenciados pelos membros LGBT
da ICM-Maringá e IEA-Curitiba estão conectados com discursos, práticas e experiências, as
quais são entendidas e sentidas de maneiras distintas, contribuindo assim para as significações
e para a constituição das identidades individuais e do grupo.
Desta forma, ao analisar os paradoxos vivenciados pelos membros LGBT da ICM-
Maringá e da IEA-Curitiba, evidenciou-se que os mesmos mesclam suas experiências
espaciais, isto é, práticas religiosas interseccionadas com as categoriais identitárias. Através
dos discursos das lideranças e dos membros LGBT, tanto da ICM-Maringá quanto da IEA-
Curitiba, é possível compreender as significações em relação às sexualidades.
Faz-se necessário ressaltar que o grupo pesquisado da ICM-Maringá é composto por
quatro gays, um bissexual, duas travestis, uma mulher trans. Já o grupo pesquisado da IEA-
Curitiba é composto por cinco membros gays. Para tanto, evidencia-se que as categorias
discursivas da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba, conectam-se com as espacialidades, visto que
todas as categorias discursivas estão em relação e se copenetram.
Para tanto, este trabalho fruto da análise de conteúdo de 14 entrevistas, 9 delas
realizadas com os membros LGBT da ICM-Maringá e 5 entrevistas com membros da IEA-
Curitiba. Desta forma, o gráfico 1 é resultado das evocações evidenciadas pelos membros
LGBT da ICM-Maringá e dos homens gays da IEA-Curitiba, Paraná, as quais colaboraram
para a construção deste gráfico e consequentemente para a sua análise.

GRÁFICO 1 – Espacialidades dos membros LGBT da ICM-Maringá e da IEA-Curitiba


– PR.

FONTE: Entrevistas realizadas com membros LGBT da ICM-Maringá, Paraná e da IEA-Curitiba entre
os dias 4 de janeiro de 2016 a 28 de julho de 2016. Organizadora: GELINSKI, 2017

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Como pode ser observado, a intensidade de evocações remete a um determinado


espaço, bem como os diferentes espaços estão relacionados com as experiências espaciais e
religiosas. Assim evidencia-se não somente os espaços religiosos, mas os mais variados
espaços cotidianos dos membros entrevistados. Neste sentido, nosso objetivo foi analisar
como cada espacialidade contribui para as significações individuais e coletivas em relação às
sexualidades. Evidenciou-se assim oito espacialidades (ICM-Maringá, IEA-Curitiba, antiga
comunidade religiosa, casa da família, corpo, espaço educacional, espaço mítico conceitual e
espaço de sociabilidade). Para tanto, neste artigo será evidenciado as três espacialidades mais
evocadas, sendo elas: a atual comunidade religiosa (ICM-Maringá, IEA-Curitiba), antiga
comunidade religiosa e a casa da família.
Deste modo, as igrejas ICM-Maringá e IEA-Curitiba configuram-se com algumas
características diferentes, as quais se referem à localização e estrutura, o surgimento de cada
comunidade religiosa e a organização dos momentos religiosos. No entanto, as categorias
discursivas evidenciadas a partir de ambos os grupos são semelhantes. Para os membros
LGBT da ICM-Maringá, identificou-se as categorias discursivas ‘acolhimento’ com 20%,
‘vida religiosa’ 19%, ‘interpretação Bíblica’ 16%, ‘direcionamento’ 14% e ‘relações sociais’
12%. Por sua vez, os membros gays da IEA-Curitiba possuem as mesmas categorias
discursivas, mas com intensidades diferentes. Posto que ‘vida religiosa’ corresponde a 29%,
‘acolhimento’ 19%, ‘interpretação Bíblica’ 22%, ‘relações sociais’ 12%, ‘pecado’ 10% e
‘direcionamento’ 10%.
Constata-se assim, que as categorias discursivas ‘acolhimento’ e ‘vida religiosa’ são as
primeiras para ambos os grupos. No entanto, a categoria discursiva ‘acolhimento’ é indicada
com 20% pelos membros LGBT da ICM-Maringá e 19% pelos membros gays da IEA-
Curitiba. Já a categoria discursiva ‘vida religiosa’ é apontada com 26% pelos membros IEA-
Curitiba e 29% pelos membros LGBT da ICM-Maringá. Revela-se assim, ambas as
espacialidades religiosas (ICM-Maringá e IEA-Curitiba) como relevantes para a vida das
pessoas entrevistadas, pois é através delas que há o acolhimento, despertando o sentimento de
conforto e respeito. Como evidenciado na fala de Veja.

Lá fora a gente se sente como um pássaro preso na gaiola. Na ICM a gente sente que
não tem nada que tem que prender a gente, que a gente é livre, Deus ama a gente
como a gente é, Então a gente basta seguir o caminho Dele e o que os outros pensa,
e o que as outras igrejas pensa não vale a pena, vale a pena você acreditar assim e
seguir como é. Deus ama eu como eu sou então tá bom demais, tá ótimo. (Entrevista
realizada com Veja na ICM-Maringá, Maringá, em 27/01/2016)

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Revela-se assim, que as espacialidades religiosas atuais são locais que despertam o
sentimento de pertença ao grupo, aquela coletividade (ROCHER, 1971). Pois é no espaço
ICM-Maringá ou no espaço IEA-Curitiba que seus respectivos membros têm a liberdade de
vivenciarem as práticas e os discursos religiosos, conciliando com as suas sexualidades. Tais
espaços constituem-se como locais de “consagramento, pertença e solidariedade entre os
membros” (ROCHER, 1971, p. 169). Por outro lado, as categoriais discursivas evidenciadas
pelos membros LGBT da ICM-Maringá e dos homens gays da IEA-Curitiba relacionadas à
espacialidade ‘antiga comunidade religiosa’ são semelhantes em sua maioria. Visto que para
os membros LGBT da ICM-Maringá a categoria discursiva ‘vida religiosa’ constitui-se com
35%, precedida da categoria discursiva ‘preconceito’ com 13% e ‘homofobia’ com 10%.
Seguida ainda pelas categorias discursivas ‘interpretação da bíblia’ e ‘relações sociais’ com
8% e a categoria ‘acolhimento’ com 3%.
Por sua vez, para os membros gays da IEA-Curitiba, a categoria discursiva ‘vida
religiosa’ é evidenciada com 20%, já a categoria ‘preconceito’ constitui-se com 5%
juntamente com a categoria ‘relações sociais’. A categoria discursiva ‘interpretação da Bíblia’
é evidenciada com 23% e a categoria ‘acolhimento’ com 3%.
Desta forma a categoria discursiva ‘Vida religiosa’ foi evidenciada com 35% pelos
membros da ICM-Maringá e 20% pelos membros gays da IEA-Curitiba’, dados estes
relacionados à espacialidade 'Antiga Comunidade Religiosa'. Segundo o discurso de Procyon,
a antiga comunidade religiosa fazia parte de sua rotina, assim como os discursos e as práticas
religiosas, constituindo-se em espaço de sociabilidade e contato com algo divino.
Evidenciando-se, desse modo, a importância deste espaço nas experiências sociais e
religiosas, ademais, este espaço está conectado com o processo de descoberta e revelação da
sexualidade, como pode ser visto na fala a seguir: Nossa era muito legal, eu gostava bastante
porque antes assim tinha grupo de jovens à gente saía, a gente conversava muito, a gente
ensaiava e jogava também. Tipo era muito legal aquele convívio que tinha entre os jovens, né.
(Entrevista realizada com Procyon, Maringá, em 6/11/2015).
A espacialidade ‘antiga comunidade religiosa’ dos membros LGBT da ICM-Maringá e
a IEA-Curitiba aflorava o sentimento positivo pela vivência da fé. No entanto, os discursos
religiosos acabavam reiterando a heterossexualidade como norma, bem como o pecado
relacionado diretamente com as sexualidades.
Diante do exposto, comprova-se o preconceito presente na espacialidade ‘antiga
comunidade religiosa’. Logo, a categoria discursiva ‘preconceito’ é evocada pelos membros

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LGBT da ICM-Maringá totalizando 13% e pelos membros gays da IEA-Curitiba com 5%.
Evidencia-se que a espacialidade discursiva 'antiga comunidade religiosa' constitui-se como
um espaço de preconceito em relação às sexualidades. Pensamento fundamentado em
‘verdades divinas’, pois a sexualidade que não corresponde à heterossexualidade é vista como
uma doença demoníaca, a qual precisa passar pelo processo de ‘cura’ e ‘libertação’. Como
enuncia a fala que segue:

Assim porque quando assim você é menininho, você menininho sem os trejeitos
gays, eles até aceitam mais, mas naquela época eu era muito afeminado. Ai eu era
muito gay na verdade, era uma bichona, era uma bichona mesmo, passava lápis e
tudo. Então eles se assustavam sabe, eles falavam que eu tava com o demônio, orava
por mim, ponhava a mão na minha cabeça expulsando satanás “sai satanás” essa
coisa toda aí. Então, eles acham que isso é errado sabe, que não que Deus não aceita
a gente, que Deus odeia a gente e pronto. Eles querem curar a gente, faziam eu ler e
ler a bíblia para ser e essas coisa para curar, sendo que a gente não tem nada. Então,
era difícil eles aceitarem, mas assim eu ia mesmo assim, mas eu não podia participar
de nada, eu não podia cantar, eu não podia dançar, não podia nada nada nada. Só
tava lá só. (Entrevista realizada com Rigel, Maringá, em 21/01/2016).

Revela-se nestas situações o sentimento de aversão a não linearidade entre sexo,


prática sexual e desejo, isto é pessoas não heterossexuais. Natividade e Oliveira (2009)
ressaltam que várias são as motivações para as reações de repúdio e menosprezo para com
uma categoria identitária da pessoa. A fala citada anteriormente evidencia nos discursos
religiosos o repúdio à sexualidade, caracterizando assim as formas de vestir, os gestos,
corporalidade, práticas e desejos como algo pecaminoso.
A terceira espacialidade discursiva a ser analisada é a ‘casa da família’, a qual
apresenta 11% do total de evocações dos membros LGBT da ICM-Maringá e IEA-Curitiba,
Paraná. A ‘casa da família’ constitui-se como uma espacialidade de grande importância para
compreender as concepções religiosas e consequentemente as visões de mundo, a noção de
‘certo e errado’, ‘bom e mal’, bem como as concepções relacionadas às sexualidades. Assim
sendo, esta espacialidade relaciona-se diretamente com discursos religiosos, bem como com a
espacialidade ‘antiga comunidade religiosa’, visto que todas as pessoas entrevistadas provêm
de famílias religiosas.
Para tanto, as categoriais discursivas evidenciadas pelos membros LGBT da ICM-
Maringá e dos homens gays da IEA-Curitiba relacionadas à espacialidade ‘Casa da Família’
são semelhantes em sua maioria. As categorias discursivas ‘ausência de aceitação da família’,
‘aceitação da família’, ‘experiência’ e ‘preconceito’ são apontadas por ambos os grupos

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entrevistados. Assim, a categoria discursiva relacionada à ‘ausência de aceitação da família’,


da espacialidade discursiva ‘casa da família’, revela-nos a relação com a intenção de preservar
os princípios religiosos da família. Estes, por sua vez, fundamentados nos discursos e práticas
vivenciados pela família na ‘antiga comunidade religiosa’, as quais são os elementos que
constituem a espacialidade ‘casa da família’.
Destaca-se assim, a dificuldade de compreender a homossexualidade por parte da
família, pois a noção de sexualidade da família está exclusivamente fundamentada nos
discursos religiosos e nos textos bíblicos. Isto contribui para a resistência de compreensão e
aceitação da família em relação às sexualidades, bem como para a negação e para a tentativa
de aniquilar sua própria sexualidade. Como evidenciado na fala que segue:

E a minha família, meu pai meu pai foi um homem muito ruim sabe. Até hoje ele é
ruim sabe, ele é aquele muito rústico sistemático, na verdade ele nunca foi pai, foi
pai por ser assim na verdade. Porque quem criou a gente foi a minha vó e assim ele
foi ele é muito bruto, ele assim homem é homem, mulher é mulher e pronto. Não
tem esse negócio de homossexual, de gay isso é coisa do satanás e pronto pra ele.
Deus o livre travesti ou trans não tem isso pra ele. E eu tinha muito muito medo
dele, muito medo dele sabe, Deus me livre se ele soubesse de alguma coisa. E eu fui
crescendo, aí tive uma experiência com menino tal e foi incrível. E aí pronto, mas
demorou pra mim aceitar, pra mim entender o que é gay, o que é homossexual, o que
é uma drag. Até, no entanto, eu achava que isso era errado, que era a pior coisa do
mundo ser gay sabe, que eu não queria sabe, eu me perguntava muito por que Deus
permitiu ser assim que eu não queria. (Entrevista realizada com Rigel, Maringá, em
21/01/2016).

A fala de Rigel vai ao encontro do que Musskoph (2009) problematiza, quando aborda
sobre as formas normativas de vestimentas, demonstração de afeto e relacionamentos,
apreendidos e reiterados pelo discurso religioso. Para a pessoa ‘ser bem-vista’ pela
comunidade religiosa e pela sua família, é necessário seguir um rol de normas. No momento
em que as pessoas deixam de cumprir um dos requisitos ‘listados’, tornam-se assim
desviantes da palavra de Deus.
Noutros termos, a sexualidade é um dos ‘requisitos’, e as pessoas que fogem das
regras estabelecidas são entendidas como doentes, filhas/os das trevas, em pecado constante.
Assim, as pessoas vivenciam a negação e o conflito entre ‘sair do armário’ e o discurso
sexualizador do pecado, pois, como afirma Natividade e Oliveira (2009), qualquer prática
homossexual é interdita pelo discurso religioso fundamentalista.
Deste modo, evidenciamos que para ambos os grupos, tanto os membros da ICM-
Maringá como para os membros da IEA-Curitiba, Paraná, a 'casa da família' é evocada como
uma espacialidade majoritariamente desconfortável, pois a ausência de aceitação se fez ou se

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faz presente entre os familiares perante suas sexualidades. Isto por sua vez, se fez presente no
desenvolvimento da sexualidade dessas pessoas, contribuindo assim para a sua negação, para
a ausência de autoaceitação devido aos conflitos, aos medos e culpas internalizadas pelos
discursos e práticas preconceituosas da família, esses permeados de concepções normativas e
fundamentalistas.

Considerações Finais.

O presente artigo evidenciou como as diferentes vivências espaciais dos membros


LGBT da Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá e os membros da Igreja Episcopal
Anglicana de Curitiba constituem as significações e resignificações de suas sexualidades.
Neste sentido, o espaço igreja pode ser compreendido como uma espacialidade vivenciada no
cotidiano de pessoas que comungam uma determinada forma de compreender e significar o
mundo. Neste contexto, a relação entre sexualidades e religiosidade é um importante caminho
para compreender as concepções e formas de interpretar o mundo das mais variadas
categorias identitárias.
Para tanto, várias são as espacialidades presentes no cotidiano do grupo pesquisado, as
quais são constituídas por discursos, práticas, que estão diretamente ligados à constituição das
significações e ressignificações das pessoas. Indo além, estão relacionados com as categorias
identitárias do grupo pesquisado, evidenciando-se o gênero, as sexualidades e a religiosidade
com grande relevância na vida dessas pessoas.
As experiências espaciais dos membros LGBT da ICM-Maringá e dos membros gays
da IEA de Curitiba são significadas a partir das relações, das trocas e das vivências. Para
tanto, evidencia-se que mesmo diante de inúmeras vivências nas três espacialidades (Atual
Comunidade Religiosa, Antiga Comunidade Religiosa e Casa da Família) evidenciadas neste
trabalho, a religiosidade faz-se presente contribuindo assim para as visões de mundo. Dentre
as experiências mais marcantes apontadas pelos membros LGBT da ICM-Maringá e da IEA-
Curitiba está o momento de autoidentificação como LGBT e consequentemente a exclusão da
vivência religiosa em suas antigas comunidades religiosas. Por conseguinte, há o conflito e o
preconceito vivenciado na espacialidade casa da família, bem como a tentativa de aniquilar a
sexualidade para se enquadrar nos discursos normativos.
Portanto através da vivência religiosa na ICM-Maringá e na IEA-Curitiba, há um
rompimento das noções hegemônicas relacionadas à sexualidade. Indo além, através das
perspectivas teológicas, dos discursos e práticas religiosas de ambas as igrejas (ICM-Maringá

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e IEA-Curitiba), há uma ressignificação na compreensão religiosa, consequentemente em


relação às identidades, conciliando assim a vida religiosa e sexualidade de forma tranquila. ,
evidencia-se assim a potencialidade dos discursos como fundamentais na constituição de
identidades, no caso desta pesquisa, o discurso religioso foi imprescindível para as
experiências do grupo pesquisado, estes atuando de modo central em suas decisões e
concepções.

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Assistência Religiosa na penitenciária feminina Talavera Bruce – RJ

Glaucia Alves Vieira1

Resumo: O presente trabalho tem como campo de pesquisa Penitenciária Talavera Bruce
(SEAPTB), unidade prisional feminina de regime fechado, localizada no Complexo de
Gericinó, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Nesse cenário buscou-se analisar de que
forma à assistência religiosa na SEAPTB, torna-se uma forma de acesso às demais
assistências, listadas nos artigos 10º e 11º da Lei de Execução Penal, nº 7210 de 1984
(assistência material, à saúde, jurídica, educacional e social), frente à ineficiente prestação de
políticas públicas direcionadas a presa ou a egressa, nos atuais marcos de precariedade do
Estado.
De acordo com diversas legislações como a Lei de Execução Penal (1984), art.24; Decreto
8897/84, art. 42; Lei 9982/00, a assistência religiosa é posta legalmente como uma
possibilidade de amparo espiritual as (os) presas (os), com intuito de contribuir para o
processo de “ressocialização”, em conjunto com as demais assistências previstas na LEP
(1984). Porém, devido à baixa oferta ou ao fornecimento precário de políticas públicas
dirigidas à população carcerária, organizações privadas, como as instituições religiosas,
assumem funções, de cunho público, concedendo direitos na forma de benefício,
configurando o Estado como principal violador de direitos.
Visando compreender esse fenômeno, e como ele afeta as mulheres privadas de liberdade,
foram levantadas um conjunto de informações acerca dessa temática, tendo como
instrumentos metodológicos: entrevistas, pesquisas documentais; normativas legais existentes
sobre o assunto; relatórios institucionais publicados; além de pesquisa bibliográfica, para dar
suporte teórico à elaboração da discussão em questão. Concernente às entrevistas, a amostra
foi composta de 14 presas; 3 adptas ou simpatizantes de cada orientação religiosa presentes no
SEAP/TB, tais como: evangélica, católica, testemunha de Jeová, e espírita, 2 presas que
declaram não ter religião, além de 2 funcionárias da unidade prisional. A partir dos
procedimentos metodológicos citados, identificou-se que a omissão do Estado em suas
atribuições legais frente à população carcerária, em especial a feminina, permite que lacunas
sejam preenchidas por instituições religiosas, que auxiliam a presa com uma série de
benefícios, a saber: roupas, atendimento a família, utensílios de higiene, acessoria jurídica,
entre outros. Assim, as presas da Penitenciária Talavera Bruce veem seus direitos, de
responsabilidade do poder público, atendidos de forma particular, benevolente e condicionada
a oferta de instituições religiosas. Nesse sentido, para além da assistência religiosa, essas
instituições prestam assistência social, jurídica, e material, situação que ocorre com o
consentimento do Estado, que valoriza o privado em detrimento do público, e que mesmo de
forma não oficial, confere benefícios a todos os envolvidos: Estado, instituições religiosas e
presas.

Palavras-chaves: Penitenciária; Assistência Religiosa; Direitos.

1
Universidade Federal Fluminense; Mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social.
Email: gavvieira@oi.com.br.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1252 1252


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Introdução

A prática da assistência religiosa em unidades prisionais passou a ser debatida no


Brasil a partir do final dos anos 1970, com os estudos de Oliveira em 1978, que apresentou a
relevante contribuição do atendimento religioso para o processo de transformação do preso.
Em uma das passagens do estudo, a autora conclui que:
(...) a pesquisa efetuada comprovou a obtenção de resultados excelentes,
testemunhos em todas as áreas, inclusive pelos terapeutas, com índice de
aproveitamento, mudança de comportamento no trabalho, na disciplina, no
relacionamento social, com diminuição das infrações, do uso de tóxico, da
pederastia, e tantos outros... (p. 56)

Tais percepções se mostraram assíduas nas inúmeras produções teóricas divulgadas a


partir dos anos 2000, com destaque para Revista Religião e Prisão do Instituto de Estudos da
Religião (ISER), lançada em 2005, que divulgou estudos importantes de autoras como Lobo
(2005) e Quiroga (2005), a respeito da funcionalidade da religião no cárcere, dos números da
assistência religiosa no sistema prisional fluminense, bem como da trajetória histórica da
relação religião e prisão no contexto brasileiro.
Outras produções acadêmicas, como teses e dissertações e artigos, também buscaram
entender qual ou quais os papéis da assistência religiosa nas penitenciárias. Dentro dessa
lógica, o estudo de Gonçalves; Coimbra; Amorim (2011, p. 245) ressaltou que há um
distanciamento entre o que se positiva na Lei de Execução Penal (1984), referente às
garantias assistências ao preso e o que de fato se aplica no sistema prisional brasileiro.
Observou-se que por meio da assistência religiosa, todas as demais assistências são
contempladas, devido a ineficiente oferta desses serviços por parte do Estado, e assim, presos
e presas passam a receber direitos na forma de benefícios. De acordo com o estudo, o Poder
Público transfere suas obrigações para instituições religiosas que atuam no sistema prisional,
que além de contribuírem com a interação social dos presos por meio da reigião, auxiliam
com recursos materiais, como também se envolvem na fiscalização e garantia dos direitos
humanos dos presos.
Assim, atrelado ao que foi exposto, o presente trabalho evidencia como esta posta a
assistência religiosa na Penitenciária Talavera Bruce (SEAPTB), unidade prisional feminina
de regime fechado, localizada no Complexo de Gericinó, Zona Oeste da cidade do Rio de
Janeiro. No que tange a assistência religiosa, a SEAP/TB apresenta o maior numero de
voluntários e instituições cadastradas para oferta desse direito no Estado do Rio de Janeiro.
São 19 instituições religiosas com um total de 85 agentes religiosos desenvolvendo este

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trabalho. Com base na pesquisa realizada nesse cenário, constatou-se que a assistência
religiosa torna-se uma forma de acesso às demais assistências, listadas nos artigos 10º e 11º da
Lei de Execução Penal, nº 7210 de 1984 (assistência material, à saúde, jurídica, educacional e
social), frente à ineficiente prestação de políticas públicas direcionadas a presa ou a egressa,
nos atuais marcos de precariedade do Estado.

Assistência Religiosa e as legislações que a amparam

A assistência religiosa é posta legalmente como uma possibilidade de amparo


espiritual aos presos, durante o período de privação de liberdade, momento esse muito difícil
para aqueles que o vivenciam. Destarte, as prerrogativas legais que perpassam tal garantia,
preveem que sua adesão e participação deve ser de livre escolha do apenado, conforme o art.
24, § 2º da LEP (1984), e o inciso I, ratifica que: “No estabelecimento haverá local apropriado
para os cultos religiosos”. Ressalta-se que, para além da LEP (1984), existe uma gama de
legislações a qual ampara a prática da assistência religiosa no sistema prisional: como
decretos e portarias estaduais e municipais, com regulamentos específicos.
No que tange a legislação fluminense, foi instaurado no ano de 1986 o Regulamento
do Sistema Penal do Estado do Rio de Janeiro (RPERJ) - Decreto de lei n° 8897. Tal decreto
vigora como um complemento da LEP (1984), o qual, referente à assistência religiosa, ratifica
em seu artigo 42 que é “garantida à liberdade de culto, assegurando aos presos e internados o
acesso a todas as religiões que se façam representar no âmbito do sistema penal”. Já o artigo
44, do mesmo decreto, define que: “Nos estabelecimentos haverá, com caráter ecumênico,
local apropriado para os cultos religiosos”. Ainda referente as normas fluminenses, a Portaria
n,º 5 de 31 de janeiro de 2004 da Subsecretaria Adjunta de Unidades Prisionais (SSAUP) –
SEAP/RJ, regulamenta a disponibilidade da assistência religiosa, bem como o
credenciamento, direitos e deveres das instituições religiosas e seus agentes nas cadeias do
Estado.
A Carta Magna de 1988 define os direitos e deveres do cidadão comum, bem como os
daqueles que estão privados de liberdade. O seu artigo 5º, incisos VI, VII e VIII, asseguram a
todos os cidadãos o direito à livre expressão religiosa, conforme descrito a seguir:
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;

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VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de


convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Nessa trajetória da legislação acerca da assistência religiosa, a lei 9982/2000 sustenta:


Art. 1o Aos religiosos de todas as confissões assegura-se o acesso aos hospitais da
rede pública ou privada, bem como aos estabelecimentos prisionais civis ou
militares, para dar atendimento religioso aos internados, desde que em comum
acordo com estes, ou com seus familiares no caso de doentes que já não mais
estejam no gozo de suas faculdades mentais.
Art. 2o Os religiosos chamados a prestar assistência nas entidades definidas no art. 1 o
deverão, em suas atividades, acatar as determinações legais e normas internas de
cada instituição hospitalar ou penal, a fim de não pôr em risco as condições do
paciente ou a segurança do ambiente hospitalar ou prisional.

Já a Resolução nº 8 de 9 de novembro de 2011, do Conselho Nacional de Política


Criminal e Penitenciário (CNPCP) do Ministério da Justiça, traz em seu artigo 1º, inciso II a
seguinte informação: “será assegurada a atuação de diferentes confissões religiosas em
igualdades de condições, majoritárias ou minoritárias, vedado o proselitismo religioso e
qualquer forma de discriminação ou estigmatização.”
Apesar das normas apresentadas estabelecerem a assistência religiosa no sistema
prisional como um direito respaldado em lei, que visa contribuir com o processo de
“ressocialização” do preso, em conjunto com as demais assistências elencadas nos artigos 10º
e 11º da LEP (1984), o que se percebe, é que esta adota múltiplas configurações, sendo
funcional para o Estado, pois assume atividades de competência do Poder Público, devido à
baixa oferta ou ao fornecimento precário de políticas públicas dirigidas à população
carcerária.
E essa realidade foi observada nas falas das presas da Penitenciária Talavera Bruce,
conforme disposto no tópico abaixo, estando claro que organizações privadas, como as
instituições religiosas, assumem funções de cunho público, concedendo direitos na forma de
benefício, configurando o Estado como principal violador de direitos.

Assistência religiosa SEAP/TB: vantagens sociais

Oliveira (2012, p.45) sublinha que a religião no cárcere assegura as presas (os), algo
inatingível pela instituição em si, uma forma de proteção, acolhimento, que tende as auxiliar,
nesse período de cerceamento físico, tendo como previsão, ao menos, uma liberdade
espiritual, que lhes assegurem certo conforto frente a esta realidade lindada. Vargas (2005,
p.35) assegura que “... a presença dos grupos religiosos, bem como a adoção do seu discurso,
são como um mecanismo de ‘adaptação-resistência’”. Compreende-se que a religião, suas

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doutrinas e discursos, nesse contexto, se apresentam como uma estratégia de sobrevivência,


seja no campo emocional, trazendo calmaria, entendimento e aceitação; seja no campo das
relações sociais, proporcionando-as contato com as internas de diferentes pavilhões e galerias
e com pessoas extramuros, os agentes religiosos.
Dentro desse viés, as presas na pesquisa em questão, declararam que uma das vantagens
da assistência religiosa é a possibilidade de sair de suas celas. Assim, 60% delas disseram que
participam ou já participaram das reuniões de distintos segmentos religiosos, apenas com esse
intuito. Para entendermos melhor essa questão, é necessário pontuar, como se dá a rotina de
saída da cela na Penitenciária Talavera Bruce. De acordo com o Relatório de Visita, realizado
no ano de 2015 pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro na SEAP/TB, a direção
da unidade informou que o banho de sol ocorre diariamente por uma hora. Todavia, baseado
no mesmo relatório, as presas relataram, que permanecem fora das celas, para este fim, em
média durante 15 ou 20 minutos apenas.
Assim, o direito a assistência religiosa, que adquiri variadas funções no cárcere, na
visão destas detentas, tem como um dos atributos, possibilitar uma mobilidade maior dentro
da penitenciária, para além do que é pré-estabelecido pela instituição. De acordo com relatos,
o sair das celas para o atendimento religioso, configura-se como uma estratégia, não só por
ausentarem-se desse ambiente de clausura, mas também para se distanciarem, mesmo que por
pouco tempo, desse espaço deteriorado, as quais residem.
As presas em geral, relataram as condições insalubres de suas celas e galerias, como
também a falta de utensílios básicos para uma permanência digna. Entretanto, uma detenta,
frequentadora das ministrações das testemunhas de Jeová, descreveu com riqueza se detalhes,
as péssimas condições em que vivem. Informou que as celas são úmidas, com infiltrações e no
verão são muito quentes, proliferando assim várias doenças. Disse também que são duas
presas por cubículo – local onde dormem na cela – sendo uma na cama e outra no chão.
Relata que a unidade prisional não tem fornecido novos colchões há muito tempo – porém,
não soube precisar a quanto – nem mesmo para aquelas que ingressam na penitenciária. Sendo
assim estas dormem no chão com lençóis doados pelas colegas de cela, ou quando uma
detenta progride para o regime semiaberto ou obtém a liberdade, doa o seu colchão para
aquelas que não o possui.
Tais afirmações também foram confirmadas em entrevista por uma das 2 funcionárias
entrevistadas. Para distingui-las, e visando garantir o anonimato das declarações, estas serão
denominadas como Funcionária 1 (vinculada a segurança) e Funcionária 2 (vinculada a
administração/direção). Assim, a Funcionária 1, consubstanciando as declarações das presas,

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ao ser inquirida acerca do que, em sua opinião, levam as internas a se associarem a uma
orientação religiosa, apontou, dentre outras justificativas a possibilidade de sair da cela,
conforme o trecho abaixo:
Há sim aquelas que se aproximam a uma religião por ser a mesma que seguiam lá
fora e tem fé naquilo. Há aquelas que fazem disso um meio de sair da cela, poder
conversar com as demais, e quem se associa pelo que pode ganhar dessas
instituições.

Em outro momento, a respeito da assistência material concedida pelo Estado, tal como
colchões e outros itens, a Funcionária 1 reiterou a fala da interna testemunha de Jeová citada
acima:
São solicitados ao almoxarifado, mas atualmente o Estado não tem entregue o
material solicitado. Quando recebemos novas presas, não temos esses itens para
oferecer. Muitas vezes contam com a solidariedade ou permuta das demais presas.
Por vezes, ao recebermos novas presas, não temos colchão nem lençol para dar.
Quando não, ficam sem os utensílios, até que a família traga, ou que uma instituição
religiosa doe, ou recebem de alguma presa que esta de saída ou daquelas que por
terem novos, não querem mais os velhos itens. Se não conseguirem com as demais
presas, podem até dormir no chão.

As condições insalubres das celas, associada à falta de utensílios básicos, que


garantam minimamente uma moradia digna, durante o período de reclusão, fazem com que as
presas se agarrem a qualquer possibilidade de estarem fora desse espaço inóspito. Nesse
sentido, estar fora das celas, em especial, em atividades religiosas evangélicas, conferem as
presas outra vantagem, a socialização. Ou seja, frequentar essas ministrações religiosas, que
ocorrem de segunda a sexta em horários variados, permiti que presas de celas e setores
diferentes conversem e façam novas amizades, uma vez que, as entrevistadas relataram que
diariamente são liberados pavilhões e galerias inteiras para participarem desses encontros.
No que se refere aos outros os grupos religiosos presentes na SEAP/TB, a participação
ocorre da seguinte forma: a faxina (detenta que presta serviços administrativos na unidade
prisional) ou uma inspetora de segurança vão as celas, anotam o nome de quem deseja
participar e quando da chegada dos agentes religiosos respectivos, retiram apenas as detentas
que colocaram o nome na lista. Em média, para as ministrações dos grupos espírita,
testemunha de Jeová e católico, são liberadas de 6 a 15 presas.
Essa diferença de público faz do segmento evangélico dentro da Penitenciária Talavera
Bruce, o mais popular e requisitado, onde, por meio do acalento espiritual, disponibiliza
benefícios sociais como o contato familiar, seja realizado pela própria instituição religiosa ou
por meio da interação que ocorre entre as presas. Nesse sentido, uma presa, adepta ao
segmento testemunha de Jeová, relatou que mesmo pertencendo à outra religião, frequenta os
cultos evangélicos, pois, sempre encontra com uma interna de outra galeria, cujo as pessoas

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que a visitam, residem próximo aos seus familiares. Sendo assim, como não recebe visita
constante, consegue comunicar-se com os seus familiares, por meio dos visitantes dessa sua
amiga.
Os agentes religiosos evangélicos, também proporcionam informações dos familiares
das detentas. Em entrevista, uma das detentas evangélica, condenada a 13 anos de reclusão, o
qual esta a 5 anos presa, informou que aproximadamente a dois anos, agentes religiosos da
evangélicos foram em sua casa e trouxeram notícias da sua mãe e do seu filho.
Outra questão referente à família, relatada por uma interna são os parentes de prisão.
Segundo uma presa católica, a única a relatar esse fato, possui uma mãe de cadeia. Segunda a
mesma, trata-se de uma senhora evangélica, a qual confia muito, e por esta lhe tratar com
atenção e cuidado, a pediu para ser sua mãe, e essa abraçou a ideia. Ressalta que além da mãe
constitui outros parentes na prisão, como tias, primas, entre outras. Mesmo sendo essas
evangélicas e professarem uma fé diferente da sua, isso não a constrange de também
participar dos cultos.
Partindo de Freitas (2002), podemos caracterizar esses acontecimentos como uma rede
de solidariedade, em que, as
“(...) estruturas solidárias e de reciprocidade (...) levam a formação de uma agenda
de valores comuns que determinam um padrão de sociabilidade e de costumes na
qual as ideias e referencias acerca da solidariedade e dos direitos humanos
fomentam esse tipo de relação.”

Assim, a partir do que fora apresentado, identificamos a importância da família e do


relacionamento interpessoal, nos diferentes setores da sociedade. No contexto do sistema
prisional, família também pode ser entendida como uma rede de relacionamento, que abrange
parentes, amigos, vizinhos e etc, em que, a sociabilidade se traduz em ajuda e cuidado com o
próximo. Desta feita, os laços de intimidade e solidariedade, observados nos relatos acima, se
sustentam na composição do sistema prisional, que em sua maioria, tem como representantes
pessoas das camadas mais populares da sociedade, que pela ausência de um amparo público,
utilizam desses mecanismos para superarem o abandono e o descaso em que vivem.

Assistência religiosa SEAP/TB: vantagens materiais

É nesse estágio da pesquisa, que vêm à tona outra vertente da assistência religiosa no
cárcere, a distribuição de auxílios materias. Em minha opinião, os benefícios materias
concedidos por grupos religiosos, principalmente de origem protestante no cárcere, representa
hoje um dos carros chefes desse trabalho, escamoteando inclusive sua função primacial, que é

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levar o consolo espiritual aos reclusos. A pesquisa evidenciou que o segmento religioso que
mais outorga as presas algum tipo de doação ou ajuda, é o evangélico, com destaque para uma
instituição religiosa específica, conforme o gráfico abaixo:
Gráfico 1: Instituições religiosas que auxiliam materialmente na SEAP/TB

IURD
Demais evangéicas
Espírita

Fonte: Dados baseados nas entrevistas reaizadas SEAP/TB 2018

Nas entrevistas, as presas informaram os grupos religiosos que lhes auxiliam com
algum benefício material. Relataram que os segmentos católico e testemunha de Jeová, não
costumam fazer algum tipo de doação na penitenciaria, exceto em casos pontuais, quando
uma interna pede algo específico para esses agentes, que na medida do possível, procuram
atender suas solicitações. Apenas uma entrevistada, vinculada ao segmento espírita, disse ter
ganhado algo do grupo espírita que frequenta: recebeu um par de óculos.
É notório, de acordo com relatos das presas e inclusive das funcionárias
entrevistadas, que as instituições evangélicas, são as que mais preenchem as lacunas materias,
deixadas por parte do Estado. Tal fato torna-se evidente na fala de uma das presas: “Aqui no
presídio ter assistência religiosa é uma coisa muito boa para quem não tem visita e para
ganhar as coisas da igreja” - declaração de uma presa que informa não ter religião.
Esses grupos religiosos doam roupas, medicamentos, material de limpeza, chinelo de
dedos, ministram cursos e capacitações, entre outros, que a muito não tem sido fornecido pelo
Estado. A Funcionária 2, ligada à administração/direção da unidade prisional, disse que:
“Mensalmente solicitamos todos os materiais mencionados ao setor almoxarifado, entretanto,
devido à crise financeira do Estado, (...) recebemos de acordo com a disponibilidade”.
Até mesmo o uniforme da instituição não é mais fornecido pelo Estado, conforme
declarado pela Funcionária 1:
Quanto ao uniforme oficial da SEAP, fornecido pelo Estado de forma escassa
(camisa verde clara, escrito SEAP em letras brancas), só são utilizados pelas
“faxinas” ou quando as presas, por algum motivo, são levadas por escolta a locais
externos (hospital, fórum, audiência, etc). Por serem em pouca quantidade, essas
camisas são guardadas na sala da direção e são emprestadas as presas. No retorno da

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atividade externa, elas devem devolver para que sejam lavadas e guardadas para que
outras possam usar.

A Funcionária 1 ressalta que a camisa branca se padronizou como uniforme nas


prisões do Rio, pois são compradas pela família da presa (o), uma vez que o Estado não esta
custeando mais o uniforme. Em suas palavras, “na verdade o Estado não esta custeando nada,
inclusive o telefone da unidade esta cortado a um bom tempo, apenas recebemos as
ligações”2.
Observamos que o Estado tem se posicionado cada vez mais distante de suas
atribuições, não apenas no tocante as presas, tendo como justificativa a crise que assola o
Estado do Rio de Janeiro, se colocando omisso frente à manutenção das estruturas básicas de
suas instituições públicas. E é nessa conjuntura que a assistência religiosa atua no sistema
prisional, no vácuo do Estado, ou seja, quando este deixa de cumprir suas responsabilidades
para com esses cidadãos, negando-os as políticas públicas que lhes são de direito.
No desenvolver da pesquisa, mais casos de omissão por parte do Estado e de repasse
de responsabilidade, de forma oficiosa para as instituições religiosas se desvenda nas falas
obtidas. Para se ter uma noção, de acordo com as presas, o Estado não provê com frequência
itens básicos de higiene pessoal, principalmente, os de uso exclusivamente feminino. As
entrevistas foram realizadas no mês de janeiro de 2018, e na ocasião, as presas expuseram que
a última vez em que o Estado forneceu kit higiene, foi no mês de novembro de 2017, sendo
dado apenas um pacote de absorventes íntimo, com 8 unidades, conforme o relato a seguir de
uma presa declara candomblecista: “No kit da cadeia, quando dão, ganhamos apenas um
pacote de absorvente com 8”.
Essa realidade é amenizada com iniciativas privadas, por parte das igrejas evangélicas
atuantes na unidade prisional, com destaque para a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), que mensalmente, doam a todo efetivo carcerário kits higiene completos, conforme
narrado pela Funcionária 1:
(...) instituições religiosas como a IURD, contribuem com kits de higiene (sabonete,
creme dental, desodorante rolon, absorvente, shampoo, condicionador, escova de
dente) para todo efetivo, independe de evangélicas ou não. Ah! O sabonete é Dove
tá! (risos). Esses kits são dados com certa frequência. Às vezes, uma vez por mês, ou
em um período maior. Porem não é algo que podemos contar sempre por ser uma
doação. Teve um período (ago e set/2017), que o Estado não disponibilizou nada em
relação aos utensílios de higiene. Anterior a esse período, disponibilizou apenas um
pacote com 8 absorventes para cada presa. E nada mais.

2
Declaração dada pela Funcionária B em 19/01/2018.

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As presas também confirmaram essa informação em seus relatos. Uma evangélica


disse: “(...) a IURD, mensalmente da pra toda cadeia kit higiene. Os católicos, espíritas e
Testemunha de Jeová não dão nada”. Uma testemunha de Jeová reforça: “Todo mês a IURD
da um kit higiene, é raro vir de 15 em 15 dias. (...) Nem precisa ir aos cultos para ganhar o kit,
pois é dado para toda cadeia. (...) Tem 1 ano que não recebo nada do Estado, só das irmãs”.
Segundo relatos, o kit higiene fornecido por essa igreja é composto por itens de
marcas reconhecidas e de boa qualidade, desta feita em sua fala, a Testemunha de Jeová 3
explica o porque das inspetoras de segurança não mais serem as responsáveis pela entrega dos
mesmos:
“Senhora, eles dão: sabonete, pasta de dente, absorvente, papel higiênico, escova de
dente, shampoo ou condicionador. Os kits são entregues em mãos pelos agentes
religiosos, depois que começamos a falar para os agentes que o kit não estava vindo
completo, quando as guardas entregavam. O desodorante rolon é Dove, sabe com é
né?”

O que se percebe, é uma falta de confiança nos funcionários da instituição, o qual as


presas, para garantir seus benefícios, dados por instituições privadas, devido à ineficácia do
poder público em atender suas necessidades, tiveram que reclamar para que, pelo menos, o
Estado, representado na pessoa dos seus funcionários, não as destituísse do pouco que haviam
conquistado. Essas provisões básicas e necessárias, minimamente contribuem para a
dignidade destas, que são aviltadas a todo o momento.
Outras benesses, por parte das instituições religiosas foram relatadas pelas presas. No
que concerne à saúde, informaram ser reincidente a falta de medicamentos de uso contínuo na
farmácia da unidade prisional, além da falta de medicamentos para casos esporádicos, como
dor e febre. Porém agentes religiosas, em geral de cunho evangélico, segundo informado pelas
presas, a partir das receitas prescritas pelos médicos da unidade prisional, disponibilizam os
remédios para quem deles necessita.
O atendimento jurídico, por parte da Defensoria Pública, disponibilizado as 420
internas3 ocorre quinzenalmente e por ordem alfabética. Entretanto, a SEAP/TB conta apenas
com uma advogada para atender a todo seu o efetivo, ocasionando uma demora excessiva nas
informações acerca dos processos. Para obter um parecer a respeito do andamento e revisão
de suas condenações, as entrevistadas disseram que alguns agentes religiosos, buscando
amenizar tal espera por notícias, fazem a consulta de seus processos de forma espontânea,
trazendo informações atualizadas dos mesmos.

3
Efetivo Carcerário SEAP/RJ, emitido em 19/09/2017

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No que concerne à assistência educacional e profissional, as instituições religiosas


presentes na Penitenciária Talavera Bruce auxiliam o Estado com oferta de cursos
profissionalizantes. De acordo com as informações passadas pelas detentas e pelas
funcionárias, as igrejas evangélicas instituíram um projeto chamado Coração Solidário, em
que são disponibilizados cursos profissionais, além dos materiais para sua execução na
unidade prisional. Tal projeto concede as presas cursos de cabeleireiro, manicure, teologia,
entre ouros, com a entrega de certificados para aquelas que concluem as aulas.

Considerações finais

A partir das análises realizadas nesse estudo, apreende-se que a assistência religiosa se
configura como um mote rico em aprendizado e gerador de conhecimento dentro do sistema
prisional. E, no que compete a sua funcionalidade, suscita-se que sua incumbência não se
limita apenas ao refrigério espiritual ofertado aos presos. Nesse sentido, identificou-se que a
parte das presas se associam a determinado seguimento religioso em função dos múltiplos
benefícios que possam vir a adquirir, dada a ineficiência do Estado na prestação legal das
assistências material, educacional, social, saúde e jurídica, previstas nos artigos 10º e 11º na
LEP (1984).
Em vista do que fora evidenciado, o Estado se afasta de suas obrigações para com as
presas, deixando-as muitas vezes a cargo de instituições privadas de cunho religioso o
cuidado e o atendimento das Políticas Públicas, em que o que era direito, é concedido na
forma de benefício, condicionando a detenta a participar desses segmentos religiosos como
forma de estratégia, em função do desamparo vivido. Assim sendo, o Estado ao assumir uma
postura omissa, se desvincula de seu papel de representante de todos os cidadãos e entidades,
na garantia da igualdade de direitos e de deveres.
Enfim, a omissão do Estado em suas atribuições legais frente à população carcerária,
em especial a feminina, permite que lacunas sejam preenchidas por instituições religiosas, que
auxiliam a presa com uma série de benefícios. Assim, as presas da Penitenciária Talavera
Bruce veem seus direitos, de responsabilidade do poder público, atendidos de forma
particular, benevolente e condicionada a oferta de instituições religiosas. Nesse sentido, para
além da assistência religiosa, essas instituições prestam assistência social, jurídica, e material,
situação que ocorre com o consentimento do Estado.

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Criminal e Penitenciário (CNPCP)

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BRASIL. Decreto nº 8897, de 31 de março de 1986. Regulamento do Sistema Penal do
Estado do Rio de Janeiro.
BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984.
BRASIL. Lei nº 8072, de 25 de julho de 1990. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8072.htm>. Acessado em 06/04/2018.
BRASIL. Portaria SSAUP – SEAP Nº 005, de 31 de janeiro de 2004
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório de Visita à
Unidade Prisional – Penitenciária Talavera Bruce. Disponível em:
<http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/39207a2ac9c947a58abc753edec0b3b3.pdf
>. Acessado em: 23/03/2018

FREITAS, Rita de Cássia Santos. “Em nome dos filhos, a formação de redes sociais de
solidariedade – algumas reflexões a partir do caso Acari”, Revista Serviço Social e
Sociedade, nº 71, São Paulo: Cortez, 2002.

GONÇALVES, José Arthur Teixeira; COIMBRA, Márcio; AMORIM, Daniela de Lima.


Assistência religiosa e suas barreiras: uma leitura à luz da LEP e do Sistema Prisional.
Artigo das Faculdades Integradas “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente,
2011.
LOBO, Edileuza Santana. Católicos e Evangélicos em Prisões do Rio de Janeiro. In:
Religiões e Prisões. Comunicações do ISER. N. 61. Ano 24, 2005.

OLIVEIRA, Anáize Anália de. A experiência religiosa no cárcere: O caso do Centro de


Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão em João Pessoa – PB. Dissertação
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OLIVEIRA, Marina Marigo Cardoso de. A religião nos presídios. São Paulo: Cortez &
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Ser mulher, ir à igreja, cursar uma universidade: conciliando ideias, princípios e valores
distintos

Isabella de Oliveira Lambardi1


Claudia Neves da Silva2

Resumo
Cada instituição religiosa tem costumes e crenças diferentes, e muito desses costumes vêm
como uma característica da igreja e é refletida pelos fiéis, como o modo de se vestir, como
socialmente se portar. As igrejas cristãs, apesar de cada vez mais estarem se “renovando”, ainda
reforçam a ideia de como a mulher deve se portar na sociedade, pois não é difícil encontrar nos
discursos dos líderes religiosos falas que se referem ao papel da mulher na sociedade. Tendo
por objetivo investigar como as estudantes do curso de Serviço Social conciliam o que
aprendem em sala de aula com seus valores e princípios religiosos e entender as religiosidades
presentes no meio acadêmico, no ano de 2017 realizamos uma investigação junto aos discentes
do primeiro ano do curso de Serviço Social da UEL, por meio da aplicação de 2 (dois)
questionários com 15 perguntas: um questionário para ser aplicado junto às estudantes e outro
para os alunos do primeiro ano - matutino e noturno. Podemos inferir que há uma busca por
uma igreja em que a jovem possa vivenciar uma prática religiosa adequada ao seu estilo de
vida, de pensar, de ser e de agir. Porém, verificamos que os discursos religiosos por vezes vão
de encontro ao que pensam as estudantes no que se refere ao papel da mulher na sociedade, por
um lado há certa concordância em relação ao papel da mulher na família. Essas e outras questões
que estão surgindo pretendemos responder com a análise dos questionários aplicados.

Palavras – Chaves: Serviço Social. Mulher. Estudantes. Religião

1
Universidade Estadual de Londrina; Estudante do Curso de Serviço Social. Bolsista IC/Fundação Araucária.
2
Universidade Estadual de Londrina; Professora do Departamento de Serviço Social. Dra. em História Social

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INTRODUÇÃO

Cada instituição religiosa tem costumes e crenças diferentes, e muito desses costumes
vêm como uma característica da igreja e é refletida pelos fiéis, como o modo de se vestir, como
socialmente se portar. As igrejas cristãs, apesar de cada vez mais estarem se “renovando”, ainda
reforçam a ideia de como a mulher deve se portar na sociedade, pois não é difícil encontrar nos
discursos dos líderes religiosos falas que se referem ao papel da mulher na sociedade.
Citamos como exemplo a “escritora, apresentadora, colunista e palestrante sobre
relacionamentos” Cristiane Cardoso, filha do Pastor Edir Macedo, que em seu blog
encontramos orientação sobre várias situações, entre elas não falar palavrão até mascar chiclete
em lugares públicos, ou na frente de seus maridos.

(...) Não vai adiantar muito a busca pelo certo e errado da moda e da
maquiagem quando não sabe o certo e errado do comportamento e da vida.
Falar palavrões: se eles fossem bons, certamente não precisam ser censurados
na TV, o que também pouco adianta, já que estão em toda parte na boca de
quem não consegue uma forma melhor de se comunicar.
(https://blogs.universal.org/cristianecardoso/pt/o-que-uma-mulher-nunca-
deve-fazer)

Outra religiosa que fala como a mulher deve se portar é a pastora e cantora Ana Paula
Valadão, quem em palestra proferida no Culto Mulheres Diante do Trono no ano de 2012 (Ser
a Esposa que o Marido Sonha!) fala sobre a importância de a mulher obedecer ao seu marido,
respeitá-lo e não interferir em seu papel de chefe de família.
As orientações que destacam o papel da mulher na sociedade também estão presentes
em documentos da Igreja Católica:

(...) ligada, enfim, com o vínculo desta caridade à sociedade doméstica,


florescerá necessariamente aquilo que Santo Agostinho chama, a ordem do
amor. Essa ordem implica por um lado a superioridade do marido sobre a
mulher e os filhos, e por outro a pronta sujeição e obediência da mulher, não
pela violência, mas como recomenda o Apóstolo; (...) (Pio XI. Encíclica Casti
Connubbi,1930,Idem, 2003, p.886)

Esta Encíclica Papal foi publicada em 1930, porém ainda hoje há pessoas que a
consideram válida e atual, como pudemos constatar no blog “A mulher Católica”:

[...] Na família não é diferente: há um chefe (o homem) sua mulher e os filhos.


E isso é querido por Deus. Assim Ele deixou pra ser. A bíblia também é
claríssima na questão da submissão da mulher [...]

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(http://amulhercatolicaoficial.blogspot.com.br/2017/03/a-mulher-deve-ser-
submissa-ao-marido.html )

Já a pesquisadora Maria Isabel da Cruz (2013) destaca que este documento papal coloca
a mulher na condição de segunda classe:

[...] O papa pio XI dedica boa parte da encíclica Casti Connubii ao papel da
mulher na Igreja e na sociedade. Ao afirmar que ela deve se submeter ao
marido, reforça o estereótipo de que deve ocupar posição secundária, o
homem sendo o centro sua cabeça, regendo-a, comandando-a determinando o
que deve ou não fazer. (CRUZ, 2013, p. )

As igrejas, de diferentes matrizes, para justificarem a submissão da mulher ao marido,


utilizam-se de interpretações de trechos bíblicos como é o caso, por exemplo, da carta Paulo
aos Coríntios (1Cor14:34-35): “As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não
lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender
alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é vergonhoso que as
mulheres falem na igreja”.
Ao analisarmos estas falas, constatamos que os papéis das mulheres sempre estiveram
historicamente definidos; conforme Cecília Toledo (2003), esta opressão foi determinada por
diferentes fatores.

As descobertas antropológicas permitem afirmar que a mulher não nasceu


oprimida, mas passou a sê-lo devido a inúmeros fatores, dentre os quais os
decisivos foram as relações econômicas, que depois determinaram toda a
superestrutura ideológica de sustentação dessa opressão: as crenças, os
valores, os costumes, a cultura em geral. Em especial, a opressão da mulher
está vinculada à existência da propriedade privada dos meios de produção.
(TOLEDO, 2003, p.33.)

O líder da Igreja Católica atual, o Papa Francisco em fevereiro de 2017 apresentou um


discurso mais atualizado em relação ao escrito na Encíclica Casti Connubii:

Nós dizemos que esta é uma sociedade com uma forte atitude masculina e que
a mulher é para lavar a louça. Não. A mulher é para trazer harmonia. Sem a
mulher não há harmonia. Não são iguais, não são um superior ao outro. Só
que o homem não traz harmonia. É ela que traz a harmonia, que nos ensina a
acariciar, a amar com ternura e que faz do mundo uma coisa bela.
(https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/mulher-e-
harmonia-poesia-e-beleza-diz-papa-francisco/ )

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Por outro lado, encontramos movimentos sociais, particularmente o movimento


feminista, que luta para garantir, entre outros direitos, a igualdade de gêneros. A escritora Aline
Valek, em artigo de 2014, afirma:

O movimento, por mais diverso que seja, parte de uma ideia simples e,
convenhamos, mais do que justa: mulheres também são pessoas. Então é
possível resumir dizendo que as feministas defendem a humanidade das
mulheres. Não seria nada de mais, se não fosse em um mundo onde tanta gente
luta diariamente justamente para tirar isso de nós. (VALEK, Aline, Carta
Capital, .16/jul/2014)

De acordo Maria Isabel da Cruz (2013), a igreja tem condições objetivas e subjetivas
para empoderar as mulheres, mas o feminismo parece amedrontar a sua hierarquia e também a
vida religiosa, deixando de apontar e construir nos paradigmas.
Também destacamos que algumas correntes do movimento feminista se fazem presentes
nas Igrejas, como é o caso do grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), que se
posicionaram em luta, para serem ouvidas, em uma Igreja hierarquizada e dominada pelos
homens. Lucila Scavone (2008) descreve o CDD como uma forma de interligação entre a igreja
e o movimento feminista.
Deve-se destacar que os movimentos sociais têm a participação de todos os segmentos
sociais, fazendo-se presentes, portanto, entre os membros de igrejas e de universidades. E
algumas estudantes do curso de Serviço Social tem significativa participação em movimentos
voltados para a defesa dos direitos das mulheres.

Estudante universitária e a sua religiosidade

Quando nos voltamos para o curso de Serviço Social na contemporaneidade,


verificamos que este fundamenta-se na teoria social crítica para analisar a realidade social,
política, cultural e econômica e no Código de Ética, na Lei que Regulamenta a Profissão e nas
Diretrizes Curriculares para justificar e reforçar a luta pela garantia dos direitos sociais.
Não obstante a interlocução do Serviço Social com a teoria social crítica, fundamentada
no legado de Karl Marx e seus principais herdeiros, e a construção do projeto ético-político a
partir da ruptura com os pressupostos doutrinários e interventivos da Doutrina Social da Igreja
Católica, chamou-nos a atenção se a significativa presença de princípios e valores religiosos
entre os estudantes do curso de Serviço Social não influenciaria na leitura da realidade social,
cultural, política e econômica.

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Por meio de pesquisa que vem sendo realizada desde o ano de 2009 junto às estudantes
do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, verificou-se que muitas
discentes declaram participar ativamente de alguma igreja. Também foi verificado que, não
obstante os anos passados em uma universidade e o contato com conceitos e categorias sócio
histórica, os valores e princípios religiosos pouco se arrefeceram, conforme a ex-bolsista Júlia
Teruel, do projeto de pesquisa “Questão social e religião: possíveis implicações na prática
profissional do Assistente Social”, pode constatar (2016):

(...) 4°ano matutino de quinze, nove afirmaram que frequentam algum espaço
religioso, já no período da noite, de vinte e três, 13 afirmaram que têm alguma
religião. Mesmo questionando algumas posições que sua doutrina religiosa
defenda, os valores e princípios religiosos ainda se encontra presente.

A partir destas considerações da ex-bolsista novos questionamentos surgiram: como as


estudantes conciliam valores e princípios que aprendem desde criança com a teoria social crítica
que estudam na universidade? Nosso interesse está no fato de buscarmos entender como elas
lidam e conciliam a doutrina religiosa com sua formação acadêmica.
Tendo por objetivo investigar como as estudantes do curso de Serviço Social conciliam
o que aprendem em sala de aula com seus valores e princípios religiosos e entender as
religiosidades presentes no meio acadêmico, no ano de 2017 realizamos uma investigação junto
aos discentes do primeiro ano do curso de Serviço Social da UEL, por meio da aplicação de 2
(dois) questionários com 15 perguntas: um questionário para ser aplicado junto às estudantes e
outro para os alunos do primeiro ano - matutino e noturno.
O questionário para as alunas tinha por objetivo saber como conciliam os princípios
religiosos com o que aprendem em sala de aula; e para os alunos teve por intenção verificar
como entendem a relação gênero, religiosidades e religião. Também buscamos nos documentos
da Igreja Católica - Rerum novarum e Arcanum Divinae Sapientiae - e nas pregações de
pastores das igrejas evangélicas pentecostais postados na internet, posicionamentos destas
instituições acerca do papel da mulher na sociedade.
Ao analisarmos os dados coletado nos questionários, constatamos que a maioria das
alunas (65%) que entram no curso pertencem a alguma instituição religiosa (uma aluna
respondeu que o motivo de não frequentar é a falta de tempo. Também constatamos que as
estudantes seguem a religião que lhes foi apresentada por sua família, ou seja, o pouco trânsito
religioso entre estas.

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Gráfico1: Igreja que pertence

Fonte: questionário aplicado pela autora

A frequência das estudantes às celebrações religiosas foi significativa, porque das 15


alunas que responderam que frequentavam uma ou duas vezes por semana, revela significativo
engajamento religioso, fato já demonstrado por Mori e Silva (2016) em pesquisa realizada
anteriormente.
Também verificamos que a maioria das estudantes declaram que frequentam a igreja
em razão de seguir a família, fato também constatado na pesquisa da ex-bolsista Julia Teruel.
No entanto, as estudantes que falaram que não começaram a ir por causa da tradição familiar
afirmam que foi devido a convites de amigos ou que houve uma carência de algo espiritual por
isso procurou essas instituições.

Gráfico 2: Motivos para ir à Igreja

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Fonte: questionário aplicado pela autora

Indagamos se o que aprendem em sala de aula é contrário à doutrina religiosa, e as


alunas informaram que não, da mesma forma anotaram que a doutrina religiosa não interfere
em sua relação acadêmica.
Entretanto, informaram que sua concepção de ser mulher difere de sua denominação
religiosa, pois alegam que a instituição religiosa segue o padrão tradicional em relação a mulher,
isto é, de que ela tem que ser dócil, companheira e do lar, e devido a isto, os serviços
considerados de maior relevância na igreja e na sociedade são destinados aos homens.

Gráfico 3: Seu entendimento sobre, ser mulher é o mesmo que o da sua doutrina
religiosa

0
sim não não quis responder

Fonte: questionário aplicado pela autora

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As mulheres são orientadas como se vestir e portar dentro e fora do templo religioso.
Mas, há outro fato que chamou a atenção, o número cada vez maior de adolescentes, com idade
variando entre 15 e 23 anos de idade, usando véu nas celebrações da Igreja Católica e a presença
de grupos nas redes sociais que incentivam este uso.
O uso do véu dentro da instituição era comum e significava pureza. Nos dias atuais ele
significa, conforme descrito pelas adolescentes e nos grupos das redes sociais: respeito ao
divino, uma forma de não se sentir digna de estar a presença de algo maior; também há o uso
do véu por meio de consagração à Maria, significando proteção e intercessão.
Apesar de uma grande parte das estudantes terem declarado que a igreja que frequentam
terem perspectivas diferentes da sua afirmado, esta situação não as desmotivam. Podemos
inferir que há uma conciliação entre estas perspectivas diferentes, porque as dificuldades
cotidianas por vezes levam a buscar respostas para além do mundo profano. De acordo com
Silva e Lanza (2015, p.162-163):

O contato direto com a divindade é uma alternativa para encontrar consolo ou


respostas para as aflições, dificuldades e problemas do cotidiano, as quais não
são encontradas nas instituições públicas ou privadas que deveriam responder
às demandas dos cidadãos; além de ser uma possibilidade de atribuir sentido
à sua existência nesta sociedade excludente, e própria à divindade.

Isto ressalta que muitas vezes a igreja é um lugar de socorro para essas mulheres,
encontram voz que em muitos lugares não têm, tendo em vista que a igreja chega em uma
particularidade da mulher, que muitas vezes psicólogas, assistentes sociais e mesmo o
movimento feminista não alcança.
Também podemos destacar que a igreja torna-se um refúgio na contemporaneidade em
que há exaltação do individualismo e a competição, como observou Mori e Silva (2016, p.453)
em pesquisa realizada junto às estudantes do curso de Serviço Social:

Em tempos em que as formas mudam rapidamente, de modo que as pessoas


se tornam cada vez mais individualistas e estabelecem relações calcadas em
interesses tão somente individuais [...] é possível observar que o espaço
religioso tem sido uma forma de obter um sentimento de “segurança” e de
“solidez”, porque sua doutrina produz e reproduz princípios e valores cuja
mudança se opera de forma lenta e gradual, tão distante do que se observa na
sociedade atual.

A partir das primeiras análises, podemos fazer algumas ponderações iniciais, como o
fato de as estudantes seguirem a religião que lhes foi apresentada por sua família, o pouco

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trânsito religioso entre estas estudantes e a pouca diferença numérica entre as alunas que
participam de uma igreja e as que não frequentam uma denominação religiosa, demonstrando
que a doutrina e os princípios e valores religiosos estão presentes no interior da sala de aula.

Algumas considerações

O presente artigo apresenta as análises preliminares realizadas a partir de questionário


aplicado junto aos estudantes do primeiro ano do curso de Serviço Social. Podemos inferir que
há uma busca por uma igreja em que a jovem possa vivenciar uma prática religiosa adequada
ao seu estilo de vida, de pensar, de ser e de agir. Porém, verificamos que os discursos religiosos
por vezes vão de encontro ao que pensam as estudantes no que se refere ao papel da mulher na
sociedade, por um lado há certa concordância em relação ao papel da mulher na família; por
outro lado, em virtude da necessidade de trabalhar, colocam-se contrárias ao discurso dos
líderes religiosos.
Essas e outras questões que estão surgindo, pretendemos responder com a análise dos
questionários aplicados.

Referência

CARDOSO, Cristiane. O que uma mulher nunca deve fazer. 30 jul. 2014. Disponível em:
<https://blogs.universal.org/cristianecardoso/pt/o-que-uma-mulher-nunca-deve-fazer/>

CNBB. Síntese das contribuições da Igreja no Brasil à Conferência de Aparecida. Disponível


em: http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/26/67

CRUZ, Maria Isabel. A mulher na igreja e na política. Outras expressões: São Paulo, 2013.

MORI, Vanessa T.; SILVA, Claudia N. A religiosidade dos estudantes de uma universidade
pública: considerações a partir do curso de Serviço Social. PLURA, Revista de Estudos de
Religião, vol. 7, nº 1, 2016, p. 439-457. Disponível em:
file:///C:/Users/silva/Downloads/1131-4464-1-PB.pdf

MOTA. Elba. F. O feminino pentecostal: uma análise da revista “Círculo de Oração” da


Igreja Assembleia de Deus.P.8. Disponível em:< http://www.abhr.org.br/wp-
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NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político do Serviço Social. 1999.
Disponível em: < http://www.fnepas.org.br>.

SCAVONE, Lucila. Religião, Gênero e Feminismo. REVER/Revista de Estudos da Religião,


vol.4, 2008. p. 1 - 8. Disponível em: http://www.pucsp.br/rever/rv4_2008/t_scavone.pdf

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SILVA, C.N. Manifestações religiosas de jovens na contemporaneidade: experiências pentecostais


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Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1436177835_ARQUIVO_SNH-
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SILVA, C.N; LANZA, F. A experiência do sagrado: o êxtase religioso em igrejas da Cidade de


Londrina. Revista Eletrônica Correlatio. v. 14, n. 28. Dez/2015. p. 151-166. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/COR/article/view/6343/5111.
Acesso em 28/maio/2018

TERUEL, Julia Mirian. A religião e a religiosidade durante a formação acadêmica: elementos que
constituem essa religiosidade. 2017. 66 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço
Social) –Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.

TOLEDO, C. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. 2.ed. Série Marxismo e
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VALEK, Aline. O que as feministas defendem? Carta Capital.16,jul.2014. Disponível


em<https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/o-que-as-feministas-defendem-
3986.html>

VALADÃO, Ana Paula. Ser a esposa que o marido sonha! 22/mai/2017.Disponível


em<https://www.youtube.com/watch?v=E5sNgiLxTtI>

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As consequências do contato entre religiosidade e conhecimento científico na vida e


nas relações afetivas

João Paulo Rosa Lorenço/a1


Claudia Neves da Silva2

Resumo: O objetivo principal da pesquisa é estudar e apresentar uma parcela da realidade dos
estudantes de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, que se autodeclaram
homossexuais, e que mantém fortes vínculos religiosos: como convivem com as múltiplas
formas de pensamento e como interpretam o seu pertencimento junto a uma comunidade
religiosa enquanto homossexuais e estudantes de um curso, cujos fundamentos teóricos são
críticos.
Palavras-chaves: religiosidade, pertencimento religioso, homossexualidade

1
Bolsista de iniciação cientifica IC/CNPq; estudante de graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual
de Londrina; joaopaulorosalorenco@gmail.com
2
Profa. Departamento de Serviço Social/ Universidade Estadual de Londrina; Doutorado em História pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008); claudianess@uel.com

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Introdução

Analisamos as atuais demandas postas ao Serviço Social sob os pressupostos presentes


nos princípios fundamentais do Código de Ética do Serviço Social (1993), que nos permite
vislumbrar e assegurar o estudo e o respeito às novas formas de expressão da Questão Social:

I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das demandas políticas a


ela inerentes - autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais;
II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo;
III. Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa primordial de toda
sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes
trabalhadoras;
IV. Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da
participação política e da riqueza socialmente produzida;
V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade
de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como
sua gestão democrática;
VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o
respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à
discussão das diferenças;
[...]
VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma
nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero;
[...]
XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discriminar, por questões
de inserção de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, orientação sexual,
identidade de gênero, idade e condição física
(CEFSS, 1993, p.24)

Nesta perspectiva, analisamos os discursos religiosos conservadores e sua relação


intrínseca com o crescimento dos movimentos LGBT na sociedade brasileira, como nos explica
Regina Facchini introduzindo os debates acerca da temática

Enquanto boa parte dos movimentos sociais que foram mais visíveis nos anos 1980
experimenta um processo de “crise”, o movimento LGBT não apenas cresce em
quantidade de grupos e diversifica os formatos institucionais, como também amplia
sua visibilidade, sua rede de alianças e espaços de participação social. Assim, entre os
interlocutores do movimento LGBT, temos movimentos de direitos humanos, de luta
contra a Aids e movimentos de “minorias”, especialmente o feminista, em âmbito
nacional e internacional; temos também agências governamentais, parlamentares e
setores do mercado segmentado. Além disso, temos uma ampliação dos espaços de
participação: comissões que discutem leis ou políticas públicas, mas também há a
construção de espaços para o advocacy em âmbito internacional. A ampliação da
visibilidade social se dá basicamente pelo debate público em torno de candidaturas e
projetos de lei; pela adoção da estratégia da visibilidade massiva através da
organização das Paradas do Orgulho LGBT; e pela incorporação do tema de um modo
mais “positivo” pela grande mídia, seja pela inserção de personagens em novelas, seja
em matérias de jornais ou revistas que incorporam LGBT como sujeitos de direitos
(FACCHINI, 2005; FRANÇA, 2006a; 2007b) (Facchini, 2009, p.13)

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Resolvemos estudar a homossexualidade e o não binarismo de gênero à luz do estudo de


caso realizado com dois estudantes do curso de Serviço Social, buscando compreender os
fatores socioculturais e religiosos que permeiam os estudantes autodeclarados homossexuais,
que não se identificam com o binarismo de gênero no contexto da graduação em Serviço Social
e suas consequências nas relações afetivas e na construção do conhecimento destas pessoas.
O campo da religiosidade brasileira se modifica a partir do contexto da pósmodernidade,
considerando principalmente a complexidade das relações sociais neste dado espaço-tempo,
cabendo ao ser humano individualizar os aspectos religiosos ou sociais em detrimento das
condicionantes impostas pelos padrões sociais.

O homem pós-moderno vive a religião “à la carte”, de tipo “self-service”, numa


mistura de vários aspectos que mais interessam e satisfazem as exigências e
necessidades momentâneas. Na busca do sentido da vida, cria-se o deus e a religião
pessoal: “Jesus Cristo sim, Igreja não”. O “boom” religioso revela isto: seitas, cultos,
esoterismos, filosofias orientais, yoga, etc., num verdadeiro “misticismo difuso e
eclético”, onde se vive a preferência religiosa e o “suave consumismo religioso”. A
razão disso se encontra também no fato de o sagrado ter-se libertado do domínio da
religião, isso é, qualquer pessoa pode atribuir-se o título de “bispo”, missionário e
oferecer o serviço religioso como qualquer serviço de tele entrega rápida e soluções
milagrosas. (Melchior, 2009, p.5)

Neste sentido, identificamos alguns aspectos dos estudantes que fizeram parte do
universo da pesquisa, como nos expõe Melchior à luz de Bauman, e que são o ponto de partida
para analisarmos o tema proposto:

a) Pluralidade: Não existe um padrão, uma forma, uma uniformidade, uma


antropologia, mas projetos antropológicos, uma variedade de projetos, resultando em
contradições e fragmentos. “A tolerância, ao lado do pluralismo, é outro valor básico”.
b) Novidade: O homem pós-moderno é aberto, criativo, não preso a formas e
tradições, identificadas como “velhas” e “ultrapassadas”. A novidade não está somente
em dar forma nova ao tradicional, mas criar algo genuinamente autêntico e com tom
moderno.
c) Secularização: O homem moderno não procura acabar com Deus e as formas
religiosas. Simplesmente desloca para o universo amplo de realidades que o circunda.
Não é Deus, não é o universo, mas ele é o centro. Tudo passa a existir e ter valor
enquanto serve de resposta às necessidades e desejos.
d) Racionalidade: Uma racionalidade pragmática, onde vale a experiência e se
busca compreender sempre melhor a realidade das coisas, a partir dos ditames da
razão. Somente existe aquilo que foi decifrado e decodificado pelo microscópio. A
técnica aperfeiçoa a natureza e a molda para os fins e interesses humanos.
Consequentemente, não existem mitos e os esquemas lógicos e científicos são os que
dominam.
e) Imersão no universo: O homem moderno se descobre imerso num universo
maior que o circunda. Sente-se parte dele e tem a tendência a deixar-se levar pelos
ventos. Suas fraquezas encontram nas forças da natureza justificativa plausível e
desfruta os prazeres como partes do seu instinto. (Melchior,2009, p.2)

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As experiências individuais criam uma certa ânsia pela incerteza do futuro e medo pelas
situações presenciadas em nossa sociedade, Marcelo Melchior nos apresenta que na
pósmodernidade

Tudo é muito frágil e provisório, afinal, a experiência não se esgota. O amanhã poderá
ser diferente e, nesse caso, as determinações de hoje poderão não ser as mesmas de
amanhã. Neste contexto um Deus inerte e autoritário não faria mais sentido. (Melchior,
2009, p.5)

Analisamos que a sociedade pós-moderna, ansiosa e depressiva, é um sincretismo de


valores e credos, servidos conforme as particularidades, e principalmente, as necessidades
objetivas e subjetivas de cada indivíduo.
A pessoa “não binária” sofre as consequências da insatisfação com a padronização de
gênero imposta culturalmente. Segundo Jesus (2016, p.2), estas pessoas se classificariam dentro
de um grupo, ou seja, “um rótulo que busca abarcar um conjunto amplo e relativamente disperso
de reflexões sobre a heterossexualidade como um regime político-social que regula nossas
vidas” que se denominaria Queer. Sabendo disso, buscamos analisar realidades que fogem aos
padrões comportamentais impostos e reforçados culturalmente. Para uma análise mais profunda
sobre a temática recorremos aos escritos sobre a teoria Queer, que questiona essa normatização
do padrão heterossexual e binário sob o horizonte dos escritos de Cassiano Celestino de Jesus

A Teoria Queer dentro do mundo das sexualidades trabalha com as bichas, os “viados
poc poc”, as “sapatonas caminhoneiras”, as travestis, drag-queens, transexuais. A
Teoria Queer, portanto, não é uma defesa da homossexualidade, “é a recusa dos
valores morais violentos que instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira
rígida entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à humilhação e ao
desprezo coletivo” (Jesus, 2016, p.27)

É importante entender que a extrapolação da heteronormatividade não significa


necessariamente que ela coexista somente com a homossexualidade e entendemos isto
navegando na complexidade das questões de gênero humano, indo ao encontro dos dispositivos
discursivos que permeiam os padrões culturais socialmente aceitos, como nos alerta Cassiano,
a rotulação Queer

Questiona, provoca, gera desconforto, incômodo e, sobretudo, perturbação. Ela


modifica o nosso olhar para pensar os corpos, as sexualidades e o gênero. Ela
desestabiliza porque permite pensar “para além dos limites do pensável” (Jesus, 2016,
p.21)

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Neste ponto, compreendemos o papel normalizador que exigem as relações e instituições


religiosas e familiares na sociabilidade burguesa e que corroboram para a uniformização dos
corpos que desviam do que é socialmente aceitável, como nos explicam Silva e Barbosa (2016,
p.131):

É nesse momento que os domadores dos gêneros sentem que o seu trabalho de
“domesticação” das expressões e performatividades dos gêneros falhou, e assim como
um domador de cavalos selvagens, a sociedade busca com a negativa do normal do
sujeito desviante, puni-la para que assim ele possa voltar a caminhar nas trilhas da
naturalidade.

Afim de analisarmos a manutenção dos padrões binários nas relações e nos estudos de
gênero é importante compreendermos a confusão que se é criada para punir todo os
comportamentos e orientações que destoem dos padrões heteronormativos, como por exemplo
a homossexualidade, e que segundo a visão conservadora deve ser punida assim como nos
explica Ferraz

A homossexualidade, segundo a visão mais conservadora, é um estado passageiro.


Para os fundamentalistas ninguém é homossexual, apenas está homossexual e voltará
a sua condição normal de heterossexualidade assim que passar pelo processo de
libertação. Esse processo necessita de um passo a passo, que começa com a aceitação
do problema até, finalmente, o indivíduo encontrar um parceiro do sexo oposto, se
casar e constituir uma perfeita família cristã. (Ferraz, 2015, p. 490)

Discurso como esse, reafirmado socialmente, colabora para o avanço do preconceito


contra essa população. Essa é a lógica que permite até hoje a preservação da desigualdade que
renasce nos diferentes extratos e na qual segundo Silva e Barbosa (2016) favorecem a
manutenção de tal sistema político-econômico e sociocultural, tornando invisível a população
LGBT e a garantia de seus direitos enquanto seres humanos

(...) modelo dominante na qual vem se construindo a nossa sociedade, modelo esse
que é incentivado publicamente em quase todos os espaços sociais pelos quais
transitam as pessoas. Há inclusive diferentes maneiras de se contribuir para a sua
hegemonia e manutenção no simbólico social. Talvez a maneira mais eficaz depois da
homofobia expressa, no sentido de ser mais facilmente propagada pela sociedade, se
constitui no silêncio. (Silva e Barbosa, 2016 p. 139)

O interessante para esta análise é observamos os discursos, os papéis, as ações e os


movimentos dos líderes religiosos e das próprias igrejas na manutenção do padrão existente,
particularmente aos desenvolvimentos da religiosidade na sociedade. Nestes espaços em que se
congregam a busca por respostas às situações objetivas e subjetivas, é visível o controle injetável

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dos padrões morais e comportamentais de uma sociedade que caminha a passos lentos e
conservadores, trazendo para as relações sociais os valores religiosos que emanam de seus
templos, como nos expõe Silva e Barbosa

Essa prisão é determinada por parâmetros morais, sociais e religiosos presentes na


sociedade, que ao mesmo tempo legisla e julga os “seres desviantes” das regras dos
gêneros. Neste presídio existem concepções que buscam doutrinar os corpos sexuados
que devem apresentar características pré-moldadas. Devem possuir visibilidade de
normas do masculino, pois, estas devem ser facilmente identificadas pela sociedade
em todas as formas de expressão da masculinidade do homem, e caso essa premissa
não se concretize o julgamento severo é imposto pela sociedade que assume o papel
dos carrascos (Silva e Barbosa, 2016, p.131)

Sob a consciência dessas analises, começamos nosso caminho na pesquisa. Tomando


como percurso metodológico o estudo de caso, que possui, segundo Marli e André (1984),
elementos essenciais para um diálogo mais “informal” com nossas fontes orais, concluímos que
esta seria a melhor forma de nos aproximarmos dos atores principais do desenvolvimento deste
artigo e consideramos que algumas características primordiais para isto seria, entre outras:

1. A busca pela descoberta. […]


2. “A interpretação em contexto”. […]
3. Representar os conflitantes pontos de vista presentes numa situação social. […]
4. Utilização de várias de fontes de informação. […]
5. Revelação de experiência vicária e que permitem generalizações naturalísticas.
[…]
6. Elaborados numa linguagem e numa forma mais acessível do que outros tipos de
relatórios de pesquisa […]. (Marli e André, 1984, p. 52)

Compartilhando do método proposto por Marli e André (1984), realizamos o estudo de


caso com dois estudantes do curso de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina,
autodeclarados homossexuais, que possuem comportamentos considerados desviantes dos
papéis sociais de gênero determinados e aceitos culturalmente, e que mantém algum vínculo
religioso. Buscamos explorar neste estudo, aspectos econômicos, étnico-raciais e socioculturais
na forma de entrevistas e conversas com os dois estudantes, com o objetivo de coletar
informações pertinentes a uma análise mais completa desta dada realidade.
Identificamos com as conversas a forte presença da religiosidade nos dois casos. Um
estudante é autodeclarado católico e outro membro de uma comunidade evangélica.
Observamos também a grande influência dessas matrizes religiosas na formação de seus valores
e falas. A partir disso levantamos alguns discursos advindos de líderes religiosos das duas

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igrejas e que mostram a grande diversidade de opiniões dentro de uma mesma religião, e até
mesmo de uma mesma igreja.
O Papa Francisco preconizou em uma entrevista seu posicionamento quanto a forma que
trata as pessoas homossexuais, ele disse (Francisco, 2013) “Se uma pessoa é gay, busca Deus e
tem boa vontade quem sou eu para julgá-la? ”. Já o padre brasileiro Paulo Ricardo, expoente de
um site na internet, possui um artigo totalmente dedicado ao “homossexualismo” explicando
que:

O drama dos homossexuais é semelhante ao de todos os seres humanos marcados pelo


pecado original. Todos possuem um “canto de sereia”, uma tentação demoníaca que
diz: seja feliz, procure a felicidade aqui nesta terra. É buscando essa felicidade que o
alcoólatra se embriaga, que o drogado se entorpece, que a prostituta se destrói, que o
adultero acaba com sua família e que o homossexual mendiga afeto de relação em
relação. (Ricardo,2012)

A religiosidade é um fator muito presente em praticamente todos os aspectos da vida na


sociedade brasileira, compreendemos que ainda hoje, muitas pessoas baseiam as suas vidas a
partir das experiências religiosas ou no próprio calendário de festividades religiosas

Muitas pessoas estão totalmente mergulhadas na fé, organizam a vida a partir dela e
não abrem mão da participação ativa. São xiitas, ortodoxos, crentes e se reconhecem
pertencentes ao mundo dos já salvos e com a missão de salvar os “perdidos”, os
“infelizes”; outros são totalmente indiferentes a uma única instituição religiosa, dando
preferência às soluções rápidas e preenchimento de um vazio de sentido. […]
(Melchior, 2009, p.5)

Para melhor explicarmos a religiosidade no mundo moderno, recorremos a apropriação


e mescla que ocorre dos símbolos sagrados de diversas matrizes religiosas dando “cara” às
manifestações religiosas presentes no Brasil. Compreendemos a cidade de Londrina,
especialmente a Universidade Estadual de Londrina, como um espaço entre o “sagrado e
profano, entre o novo e velho”:

O retorno ao sagrado, ao esotérico, ao demoníaco e o culto ao mal são fenômenos da


pós modernidade. Formas religiosas e crendices consideradas ultrapassadas e infantis
retornaram com novas forças e novos ares. Pelas avenidas, bairros, nas cidades e
mesmo em pequenas cidades do interior, se veem símbolos, ritos, imagens, pessoas e
igrejas de credos diferentes. Há situações, algumas engraçadas e outras conflitivas, nas
quais numa mesma família se encontram vários credos e tendências religiosas. Em
pouco tempo é possível ver diversos templos e formas religiosas, tanto in loco quanto
via satélite (Melchior, 2009, p.5)

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O mesmo espaço que congrega a busca por respostas às situações objetivas e subjetivas
legisla os padrões morais e comportamentais da sociabilidade burguesa, conforme destacou
Silva e Barbosa (2016, p.131):

Essa prisão é determinada por parâmetros morais, sociais e religiosos presentes na


sociedade, que ao mesmo tempo legisla e julga os “seres desviantes” das regras dos
gêneros. Neste presídio existem concepções que buscam doutrinar os corpos sexuados
que devem apresentar características pré-moldadas. Devem possuir visibilidade de
normas do masculino, pois estas devem ser facilmente identificadas pela sociedade em
todas as formas de expressão da masculinidade do homem, e caso essa premissa não
se concretize, o julgamento severo é imposto pela sociedade que assume o papel dos
carrascos.

A relação intrínseca entre os papéis sociais de gênero, orientações sexuais e a


religiosidade enraizada nos discursos de nossa sociedade nos permitem vislumbrar o complexo
campo das relações patriarcais, religiosas e burguesas presentes em nossa sociabilidade e nos
permitem entender que

Esse controle busca então estabelecer fronteiras entre os “corretos” e os “incorretos”,


marginalizando o segundo e supervalorizando o primeiro. Dessa forma garantem a
criação divina de “macho” e “fêmea” e as relações sexuais e afetivas entre eles,
considerando aqueles estranhos à regra e incentivando-os a permanecerem no silêncio
profundo de suas sexualidades pensadas como desviantes. (Silva e Barbosa, 2016,
p.135)

É importante compreendermos a religião e os valores religiosos como uma das matrizes


para a imposição da moralidade hegemônica e entender, segundo as análises de Silva e Barbosa
(2016) o papel da influência judaico-cristã em nossa sociedade vem de muito longe, pois

Para as pessoas que convivem nessa sociedade heteronormativa, esse sistema é


perfeito, criado por Deus, e Este, por ser perfeito, só poderia criar um sistema também
perfeito e nunca imperfeito. Os que estão em desacordo não são falhas de Deus, mas
tratam-se na verdade de pecadores que foram corrompidos por um dos mais graves
pecados.
O “pecado nefando, isto é, aquele cujo nome não pode ser mencionado - e muito menos
praticado! - Foi considerado pela moral judaico-cristã como mais grave do que os mais
hediondos crimes anti-sociais, como por exemplo, o matricídio, a violência sexual
contra crianças, o canibalismo, o genocídio e até o deicídio - todos pecados/crimes
mencionáveis, enquanto só o abominável pecado de sodomia foi rotulado e tratado
como nefandum” (BOSWEL apud MOTT, 1994, s.p). (Silva e Barbosa, 2016, p.132)

Este é papel dos líderes religiosos na construção social e na reafirmação dos valores
comportamentais aceitos pelo ser humano que vive neste contexto.

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A partir das primeiras aproximações com os dados obtidos junto aos dois estudantes
estudados “uma pessoa identifica pelo sexo masculino e outra feminina”, de ambos os turnos
do curso de Serviço Social, verificamos que os dois mantêm fortes vínculos religiosos,
frequentando espaços religiosos cristãos. Verificar a presença desses corpos no espaço religioso
cristão é compreender que

As igrejas cristãs são então as principais instituições, em termos de influência, que


constroem parâmetros na busca por estabelecer “normalidades” para os seres
humanos. Ela atua com um papel bastante relevante na normalização da vida social,
utilizando diversas formas para garantir essa regulação, seja por meio de dogmas ou
de padrões de ordem moral, os quais formam a identidade do grupo de fiéis (JESUS,
2008).

A primeira pessoa identificada como masculina apresenta em suas roupas e formas de


expressão características de ambos os gêneros e não se identifica com nenhum deles, a partir
dessa informação refletimos sobre o papel do homem na sociedade sob a luz de Silva e Barbosa
(2016), que nos expõem quais são os padrões de masculinidade aceitos socialmente:

Ao homem foi estabelecido características “superiores” daquelas atribuídas às


mulheres –, existe aqui uma hierarquia de gêneros, e nesse ‘“jogo das dicotomias’
diferem e se opõem e, aparentemente, cada um é uno e idêntico a si mesmo. A
dicotomia marca, também, a superioridade do primeiro elemento” (Louro apud Silva
e Barbosa, 2016, p. 131)

Esta pessoa participa assiduamente das celebrações da Igreja Católica em seu bairro. Diz
conciliar muito bem os valores religiosos e sua sexualidade, visto que é autodeclarado
homossexual, mas não mantém um relacionamento no momento. Relatou que em seu espaço
religioso há debates sobre as questões LGBT e que atualmente não participa de forma direta dos
debates do movimento por nenhum meio social. Nos informou que mesmo no espaço da
Universidade Estadual de Londrina, supostamente espaço acolhedor, já sofreu preconceito
advindo por parte de docentes em relação à sua orientação sexual e tipo de vestimenta.
O segundo caso que buscamos aproximação é de uma pessoa identificada pelo sexo
feminino, que assim como no primeiro caso não apresenta padrões e comportamentos do sexo
a qual é identificada, e neste momento é importante frisar o que seriam os comportamentos
esperados para uma mulher em nossa sociedade segundo as análises dos discursos
conservadores feita por Silva e Barbosa:
A mulher foi direcionada, a partir da sua biologia e de concepções religiosas, para uma
ordem hierárquica inferior à do homem; a ela foi estabelecido o âmbito privado, como
a casa sendo a sua segunda prisão. Ela deve possuir atributos que a sociedade considera
“normais” para uma mulher (meiga, frágil, mãe). O homem igualmente possui suas

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prisões, pois ele também deve possuir naturezas do ser homem (forte, viril, não pode
expressar sentimentos) (BARBOSA; SILVA, 2016, p. 132)

A pessoa entrevistada sempre frequentou uma igreja evangélica, trabalha como


vendedora e é estudante universitária; encontra-se solteira no momento e participa ativamente
dos ministérios de sua comunidade religiosa: os ministérios de música e pregação, além de
participar dos debates com temática LGBT nas redes sociais. Informa que as pessoas respeitam
sua orientação sexual, visto que é autodeclarada homossexual, mas que no espaço não há debates
sobre o tema, não concilia seus princípios religiosos com a sexualidade como coloca em uma
frase: “Ou é ou não é”, identificando, portanto, um conflito com os valores postos e os que
pratica. Sente-se muito acolhida no espaço da UEL e diz que suas orientações “nunca
fecharam nenhuma porta”.
A partir dos relatos de nossos dois informantes, podemos fazer nossas primeiras
considerações, como o fato de ambos participarem de igrejas e procurarem conciliar seus
valores religiosos com sua orientação sexual, contrária ao que as doutrinas religiosas defendem.
Também chama a atenção o fato de nossas fontes orais informarem que alguns membros das
igrejas respeitarem sua orientação sexual.

Algumas considerações

A pós-modernidade resgata o valor da subjetividade, do emocional acima do racional e


do sujeito mergulhado na imensidão do universo. Contudo, como se dá este resgate no que se
refere à orientação sexual daqueles que participam ativamente de igrejas ou movimentos
religiosos? Questões que pretendemos responder com a análise das entrevistas realizadas.

Referência:

BREPHOL, M. Estado laico e pluralismo religioso. Estudos de Religião, v. 30, n. 1, jan.-abr.


2016, p. 127 – 144. Disponível
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conservadoras em debate. Anais dos Simpósios da ABHR. Vol. 14, 2015. Disponível em:
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“XX e XY, uma questão de genética. Família, projeto de Deus”: A religião e


as mudanças na família no município de Blumenau

Sayonara Sardo1
Luciana Butzke2

Resumo:

O objetivo desse artigo foi o de analisar a relação entre família e ativismo político-religioso
em Blumenau. Como objetivos específicos, destacam-se: (a) descrever o perfil das famílias e
da religião em Blumenau; (2) identificar polêmicas envolvendo família e religião em
Blumenau e sujeitos sociais envolvidos; (3) levantar estudos sobre o tema na Universidade
Regional de Blumenau (FURB); (4) sintetizar os principais pontos do debate. Para tanto, a
metodologia adotada envolveu uma abordagem qualitativa e quantitativa. A pesquisa
combinou descrição e explicação (MINAYO, 2011). Em relação aos procedimentos, se tratou
de uma pesquisa bibliográfica: foram coletados dados do IBGE sobre família e religião,
notícias na internet, consultas a sites e estudos na Biblioteca da FURB. Os resultados mostram
que a realidade das famílias de Blumenau é diversa, não se restringindo apenas ao modelo XX
e XY. A universalização de modelos em um mundo diverso é violenta e deve ser considerada
com a devida atenção. Por isso, a reflexão sobre o ativismo político-religioso em sua relação
com os movimentos feminista e LGBT é tão importante e urgente.

Palavras-chaves: família; religião; política.

1
Bolsista Furb; Acadêmica da sexta fase do curso de Ciências da Religião; sayonarasardo@gmail.com.
2
Cientista social; Professora na Furb; Doutora em Sociologia Política pela UFSC; butzkeluciana@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1285


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Introdução
O título do artigo remete a mensagem de um outdoor colocado pela Ordem dos
Ministros do Evangelho de Blumenau (OMEBLU) em dezembro de 2017 no município de
Blumenau em homenagem ao dia da família, comemorado no dia 8 de dezembro. A
mensagem XX e XY, uma questão de genética. Família, projeto de Deus, acompanhada de
11.000 balões vermelhos espalhados por toda a cidade marcaram a comemoração do dia da
família. As ações causaram muita polêmica e, em resposta, o movimento LGBT posicionou
em diversos pontos da cidade balões coloridos representando a diversidade além da ação em
frente a prefeitura. O município de Blumenau, com o avanço do ativismo político-religioso,
passou a contar com representantes religiosos no governo e; passou a conviver mais
intensamente com situações conflituosas envolvendo o tema das relações de gênero
(BERTOLI, 2017; BOLDA e SOUZA, 2016; JM NOTÍCIA, 2017; SOUZA, 2016).

Temos um tripé que ancora essa discussão: a família, a religião e a política. A família
mudou e os movimentos feministas e LGBT lutam pelo reconhecimento de seus direitos: de
expressar livremente sua afetividade, não serem discriminados, poderem constituir família,
etc. Parte dos ativistas político-religiosos, por sua vez, defendem um modelo de família e se
posicionam contra leis que assegurem direito aos homossexuais e as mulheres. O cenário dos
conflitos se dá, principalmente, na política, que na modernidade é marcada pela laicidade e
deveria prezar pelo respeito à diversidade (LIMA, 2011). É esse tripé que pautou nossa
análise.

O tema em questão coloca vários desafios. O primeiro é refletir sobre as mudanças


recentes na família, na política e na religião. A realidade é muito dinâmica e a cristalização de
determinados conceitos e padrões não acompanha a rapidez das mudanças. O segundo desafio
é a consideração da diversidade, do Outro, a alteridade, o acolhimento como princípio da
família, da política e da religião; e a contradição com formas de ativismo político-religioso
conservadoras.

“Não haverá democracia se houver misoginia, pois a misoginia carrega o princípio da


negação do outro que nos coloca agora no atual esvaziamento do estado de direito e do fim da
democracia que sempre será a única esperança que podemos ter na política” (TIBURI, 2018,
p. 116).

Quando observamos os dados, em 2016, foram realizados 8.500 casamentos


homoafetivos no Brasil. Destes, 15,4% aconteceram na região Sul (CNJ, 2016). Apesar das
uniões homoafetivas representarem 0,45% dos casamentos realizados no país, elas cresceram
51,7% desde 2013 (O GLOBO, 2017; CARTA CAPITAL, 2016). Em Blumenau, das 7155
famílias consultadas em 2010, 4810 eram composta de casal com filhos e sem filhos e 2345
de famílias compostas por mulher sem cônjuge com filhos (cerca de 32%). Para 108.615
pessoas casadas nesse mesmo ano, 155.300 viviam em união (IBGE, 2018). Ressaltamos que,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1286


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na compreensão das autoras, a família vai muito além dos dados apresentados. Famílias
existem de várias formas e elas não necessariamente precisam ser institucionalizadas. Os
dados disponíveis servem apenas para mostrar a diversidade dessa instituição social (família),
mas entendemos que ela é muito mais diversa e complexa do que mostram os dados.

A família blumenauense está longe de se encaixar no modelo “XX e XY, projeto de


Deus”. Os dados mostram que 32% das famílias é chefiada por mulheres sem cônjuge e tem
mais pessoas vivendo em união (57%) do que casadas (40%) (IBGE, 2018). O diálogo
fraterno envolvendo a família, a religião e a política é muito importante desde que, seja
pautado pelo respeito e pela consideração da diversidade.

Disparidade entre a Família XX e XY e a realidade em Blumenau


Os dados sobre família e religião em Blumenau aqui apresentados têm como fonte o
Censo do IBGE. Eles referem-se ao ano de 2010, quando foi realizado o último Censo, e os
dados referentes a anos mais recentes são projeções. Destacamos aqui o fato de não existirem
dados municipais sobre uniões homoafetivas e, tampouco sobre identidade de gênero e
orientação sexual. As instituições estatísticas oficiais coletam informações sobre muitos
aspectos importantes da população, economia, meio ambiente, dentre outros; mas o fazem
respeitando a “norma” e, em grande medida, reforçando determinadas características que
acabam por definir o aspecto analisado pelos dados coletados (SEGATO, 2013).
Em Blumenau houve um aumento populacional como sugere a tabela 1, e é nesse
contexto do município, que acontece o episódio referente ao dia da família, e subsequente a
isso, a cidade se torna o foco da análise dos dados. Essa população apresenta diferentes níveis
de rendimento por pessoa, que em suma, apresentamos em três diferentes circunstâncias:
pessoas sem rendimento, com rendimento de até dois salários mínimos e pessoas entre dois
salários mínimos ou até mais de 10 salários mínimos. Na sequência observa-se a diferença de
sexos da população blumenauense, apontadas no censo do IBGE de 2010. A maioria das
famílias blumenauenses não possuem a configuração tradicional ou a “mosaico”, ou seja, mãe
+ pai + filhos, conforme os dados apresentados na tabela, esse modelo não representa nem a
metade da realidade local. E paralelo a isso, em contexto nacional é apontado que 50,1% das
configurações familiares brasileiras não se encaixam ao modelo “mosaico”

O modelo de família singular perdeu espaço, tanto quanto, para as transformações


oriundas da família social, decorrentes da própria evolução do viver em sociedade.
Assim, o atual contexto tem exigido do Direito de Família a absorção das pautas
axiológicas determinantes da modelagem plural, para seguir regulando a família em

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1287


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sua diversidade, expressa por outras formas, tal qual as dos mosaicos 3. (FERREIRA,
pg 2).

Os dados sobre família em Blumenau podem ser conferidos na sequência:

Tabela 1 - Dados referentes a população, rendimento, sexo e configuração familiar em


Blumenau, 2010
POPULAÇÃO (Blumenau) Nº de habitantes
2010 309.011
2017 348.513

RENDIMENTO (POR PESSOA) Nº de pessoas


SEM RENDIMENTO 4453
ATÉ 2 SALÁRIOS MÍNIMOS 161.841
A PARTIR DE 2 SALÁRIOS MÍNIMOS
ATÉ MAIS DE 10 SALÁRIOS MÍNIMOS 102.593

SEXO Nº de pessoas
FEMININO 157.469
MASCULINO 151.542

CONFIGURAÇÃO FAMILIAR Nº de famílias


CASAL COM FILHOS 1887
CASAL SEM FILHOS 2923
MULHER SEM CÔNJUGE COM FILHOS 2345
Fonte: Elaboração própria, dados IBGE/2010.

O casamento, como um formato normativo de união, presente em nossa sociedade


sofreu transformações, consideração necessária quando se propõe analisar as famílias. E os
dados do IBGE salientam que as uniões estáveis obtiveram perda de adesão, enquanto o
número de divórcios cresceu, bem como desmistificar o medo de grupos fundamentalistas
conservadores que acusam a população LGBT de tomar os espaços das famílias e deles se
apropriarem, intencionados a destituir o modelo de família “projetada por deus” e que em
dados estatísticos comprovam que a adesão de casais homoafetivos, para consolidar suas

3
Mosaicos = (do grego mosaikós) – são embutidos de pequenas pedras ou outras peças de cores, que pela sua
disposição aparentam desenho. Trabalho intelectual ou manual composto de várias partes distintas ou separadas.
Relativo à legislação mosaica do profeta Maomé. (FERREIRA, pg 2).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1288


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uniões formalmente documentada, ainda é pequena se comparada às uniões heteroafetivas,


como a tabela 2 informa.

Tabela 2 - Dados referente ao casamento a nível nacional, 2016/2015

CASAMENTO ÁREA NACIONAL - 2016/2015

Configuração Casais Percentagem/Período

UNIÃO ESTÁVEL 1.095.535 3,7% menos que 2015

DIVÓRCIO 344.526 4,7% a mais que 2015

*0,45% do total de uniões entre 2013-2017 foram homoafetivas

HOMOAFETIVO 19.522 de 2013 à 2017

HETEROSEXUAL 4.372.278 de 2013 à 2017


Fonte: Elaboração própria, dados ANDRADE, 2016.

A decisão do Conselho Nacional de Justiça, na Resolução n. 175 que impede os


cartórios de se recusarem a realizar uniões estáveis homoafetivas em casamento civil, no
território nacional é algo ainda recente, a considerar que completa em 2018 cinco anos e até
2014 contabilizou um total de 8.555 uniões homoafetivas.
Andrade em sua notícia veiculada no site do CNJ, aponta para os direitos enquanto
equiparação das uniões entre homossexuais e heterossexuais, permitindo a ambos os direitos
estabelecidos pelo Código Civil, como inclusão em plano de saúde, divisão de bens, entre
outros (ANDRADE, 2016). Com base nos dados apresentados por Andrade que a figura 1
revela que do contexto nacional, o destaque para o maior número de uniões homoafetivas é
para as uniões entre cônjuges femininos, o que se repete também no Estado de São Paulo que
pertence a região sudeste e representa o Estado com maior número de casamentos
homoafetivos.

Figura 1 - Dados referente às uniões homoafetivas no Brasil de 2013 à 2016

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1289


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Fonte:Elaboração própria, dados ANDRADE, 2016.

Considerando a diversidade da família no Brasil e em Blumenau podemos afirmar que


não existe apenas um modelo de família, mas diferentes configurações familiares. Todavia, é
o modelo de família XX e XY, e sua normatização que é o ponto central desta reflexão.

Religião e ativismo político religioso


Na região do Vale do rio Itajaí Açu, predominantemente a população é cristã, de
alguma confissão cristianizada, todavia há um número que vem crescendo ao longo dos anos
que são os ateus, sem religião, além das demais tradições religiosas não cristãs que por vezes
são silenciadas, não mencionadas e assim maquiadas “disfarçadas” como indiferente.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1290


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Com o intuito de permanecer com o foco sob a análise do ativismo religioso-político


(predominantemente cristão), foi elaborada a tabela 2 que restringe o quadro religioso local
entre cristãos, não cristãos e outros. Podemos afirmar que 95% das pessoas compartilha de
religiões cristãs e os não cristãos e outros são minoria (Tabela 3).

Tabela 3 - Dados referente ao quadro religioso de Blumenau/2010


RELIGIÕES (PESSOAS) - 2010 Nº de pessoas
CRISTÃO 294.260
NÃO CRISTÃO 6613
OUTROS (ATEU, SÃO SABE, ETC) 8.510
Fonte: Elaboração própria, dados IBGE/2010.

O ativismo político religioso une ativismo religioso com ativismo político e se


apresenta de duas formas: na participação eleitoral e na participação política de forma mais
ampla, para além das urnas. Em Blumenau contamos com as duas formas de ativismo político
religioso.
O ativismo político religioso no Brasil é conhecido como conservador e contracultural
(MARIANO, 2016; WALTER; RIBEIRO, 2015). Uma das características do ativismo
político religioso é a defesa de valores morais e religiosos que consideram “corretos”,
identificando na sociedade possíveis obstáculos à suas ideias, pregações e doutrinas. “(...)
elegem adversários para combater à medida mesma que os consideram ímpios e lhes atribuem
ou neles reconhecem poderes ameaçadores e ofensivos ao evangelho, à moral cristã, à família
e à liberdade religiosa.” (MARIANO, 2016, p. 721).
Josué de Souza em seu livro “Religião política e poder - uma leitura a partir de um
movimento pentecostal” mostra a influência e participação ativa da instituição religiosa, a
saber, da IEAD (Igreja Evangélica Assembléia de Deus), no campo político, com
representantes nas diferentes esferas governamentais, atuando para garantir e consolidar
defesas ideológica, baseados na ética, moral e valores cristãos (SOUZA, 2016).
Representantes estes que como Souza explana, conquistam eleitores por meio do
carisma religioso obtido por meio não só de ações políticas favoráveis ao grupo religioso que
pertence, mas também por meio de barganhas4. Souza coleta e expõe em anexo ainda, cartas
de vereador e deputado da IEAD enviadas para os membros da instituição (SOUZA, pg 118 e

4
Barganha é a troca, permuta, negócio. Barganhar: Negociar efetuar transação pouco ética (BRASIL, 2011).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1291


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119; 2016), além de uma listagem com os agentes políticos da CIADESCP5 que totaliza 71
vereadores em SC entre as legislaturas de 2009-2012 (SOUZA, pg 117. 2016).
Em 2017, na ocasião do dia da família, a OMEBLU, Ordem dos Ministros do
Evangelho de Blumenau, dispôs de organização e articulação prévia, a considerar os outdoors
dispostos e pagos em pontos estratégicos da cidade com aproximadamente um mês de
antecedência ao feito de distribuir balões. Contou também com significativas contribuições a
considerar os custos e manutenções de outdoors que ainda estão sendo mantidos em alguns
lugares da cidade (Figura 1).

Figura 1 - Outdoor em Blumenau destaca família como homem e mulher, 2017

Fonte: Diário Catarinense, 2017.

Em sua página oficial, a OMEBLU fez poucas publicações com relação a sua
homenagem a família, conforme sugere a figura 2, a homenagem era restringente ao público
religioso cristão evangélico e simpatizantes da ideologia. Mas com a divulgação em outdoors
e o ato com balões, aquilo que seria “discursivamente” restrito, passou a ser público e
excludente, considerando a diversidades de famílias existentes em Blumenau (ver dados do
IBGE apresentados neste artigo). Abaixo a imagem utilizada na página oficial da OMEBLU
no facebook (Figura 2), que faz uma vez mais alusão ao modelo de família composto por
homem e mulher.

5
CIADESCP é a sigla de: Convenção das Assembléias de Deus de Santa Catarina e do Sudoeste do Paraná.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1292


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Figura 2 - Capa utilizada pela página oficial da OMEBLU na rede social facebook em
dezembro de 2017

Fonte: foto de capa da página oficial da OMEBLU na rede social facebook. Link:
https://www.facebook.com/Omeblu/photos/a.316597371760077.77585.315967098489771/15
98421640244304/?type=3&theater

A OMEBLU representa uma face do ativismo político religioso em Blumenau. No


decorrer da análise dos dados e construção do presente artigo, preocupou-se apresentar
possíveis vinculações, dos ministros evangélicos integrantes da OMEBLU, que paralelamente
também atuam no campo político, mais especificamente: na câmara de vereadores de
Blumenau. Não houve, contudo, acesso a nenhuma listagem de membresia ou coisa
semelhante, que pudesse aferir isso, e tudo que se tem acessível ao público são discursos
simpatizantes (de apoio) por parte do vereador e também presidente da câmara Marcos da
Rosa, via redes sociais, em que o mesmo felicita a ação de homenagem ao dia da família
promovido pela OMEBLU6.
Marcos da Rosa, presidente da câmara de vereadores possui um significativo número
de seguidores virtuais no facebook, sendo um total aproximado de 10 mil seguidores -
somando dois perfis com amigos e seguidores. Utilizando a mesma ferramenta, (facebook), os
vereadores eleitos prestam conta do que estão fazendo em prol da comunidade, população e
cidade blumenauense. Além do prestar contas, o facebook serve como um contato contínuo
com o eleitorado por onde os vereadores reafirmam seus ideais, valores e ideologias não só de
caráter político-secular, mas também político-religioso, que por alguns deles é bem
demarcado nas publicações da rede.
Com uma breve análise dos perfis dos vereadores é possível perceber por discursos,
ações junto à câmara e postagens de homenagem ou motivacionais que: entre os 15
vereadores eleitos - quatro são declaradamente evangélicos, um é católico praticante, sete não

6
Link para acessar a publicação: https://www.facebook.com/marcos.darosa.7739

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1293


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fazem declarações de cunho religioso, dois mencionam trechos bíblicos sem ser possível
aferir pertencimento a nenhuma denominação e apenas um não é encontrado virtualmente nas
redes sociais.

A importância de tornar visíveis as famílias que não se encaixam na norma


Após amanhecer, “no dia da família” - oito de dezembro de 2017, com a cidade de
Blumenau tomada por balões de coração vermelho, e de mensagem específica que se
restringia a um modelo familiar e excluía aos demais, a indignação tomou proporções
significativas virtualmente, veiculada por diferentes redes sociais a comunidade simpatizante
e pertencente a população LGBT, fomentaram promover uma ação em resposta ao feito
promovido pela OMEBLU.
Numa primeira discussão, o coletivo LGBT liberdade cogitou distribuir balões
coloridos nos espaços públicos, anteriormente cobertos de balões de mensagem
fundamentalista religiosa, todavia a incoerência de repetir o erro ético ambiental os provocou
a repensar em um ato único, em frente a prefeitura do município, para que se pronunciassem
as famílias não abraçadas por uma mensagem descrita como “homenagem e amor”.
O ato somos famílias contou com adesão de pessoas articuladas politicamente e em
movimentos sociais, profissionais da educação, saúde, assistência social, e a população em
geral. Na figura 3, a colagem de fotos proporciona notar que o ato contou com falas de
mulheres cis gestante, mulher trans ativista acompanhada da mãe, e com mensagens
provocativa e reflexiva aos religiosos, como: “Jesus teve dois pais”.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1294


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Figura 3 - Fotos do ato: SOMOS FAMÍLIA promovido pelo coletivo LGBT Liberdade
no dia oito de dezembro de 2017

Fonte: Elaboração própria com fotos feitas por Mikke Nienow no ato somos família
promovido pelo Coletivo LGBT Liberdade.

Interessante constatar que mesmo que o modelo XX e XY não seja correspondente à


realidade das famílias de Blumenau houve pouca adesão dos/das blumenauenses ao ato
Somos Família, o que sugere generalizar a boa parte do município um perfil conservador
fundamentalista religioso ou omissos.

Considerações parciais
O objetivo desse artigo foi o de analisar a relação entre família e ativismo político-
religioso em Blumenau. Para tanto, partimos de um fato: a manifestação da OMEBLU
relacionada ao dia da família e as reações do Coletivo LGBT Liberdade. Na descrição do
perfil das famílias e da religião em Blumenau, podemos com isso afirmar que o modelo XX e
XY não é majoritário e a realidade das famílias é outra: reforçamos que os dados mostram que

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1295


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em Blumenau 32% das famílias é chefiada por mulheres sem cônjuge e tem mais pessoas
vivendo em união (57%) do que casadas (40%) (IBGE, 2018).
Em relação a polêmicas envolvendo família e religião em Blumenau, elas se
relacionam com o ativismo político religioso tanto no espaço público quanto na Política
institucionalizada. O ponto central do artigo é a manifestação pública da OMEBLU no dia da
família, mas também contamos com exemplos de ativismo político religioso na Câmara de
Vereadores. Os mais recentes são a alteração no plano municipal de ensino retirando as
discussões sobre Gênero e Sexualidade (BOLDA; SOUZA, 2016) e uma moção de repúdio
direcionada a um festival de cinema de uma Escola Estadual que abordaria a diversidade, por
se tratar, segundo os vereadores de ativistas de gênero que disseminariam o que chamam de
“ideologia de gênero” (GLOBO, 2017).
A Universidade Regional de Blumenau tem se posicionado criticamente em relação ao
ativismo político religioso. Vários grupos de pesquisa envolvidos com a diversidade fizeram
pronunciamentos sobre os acontecimentos descritos aqui. Dos estudos levantados na
Universidade, destacamos Souza (2016) e Bolda e Souza (2016). Das buscas realizadas na
Biblioteca da Universidade poucos trabalhos envolvem a pesquisa sobre ativismo político
religioso. Considerando o tema deste artigo e os fatos que estão se repetindo na cidade e na
Câmara de Vereadores, caberia um debate público amplo sobre ativismo político religioso e a
realização de mais estudos sobre o tema.
O debate é atual, pertinente e urgente, desconsiderá-lo com “vistas grossas” não é
possível, haja vista que a omissão e o silêncio, também são maneiras de se posicionar. Os
avanços de políticas públicas, dos direitos humanos em equiparação e reparos históricos as
populações marginalizadas e oprimidas, como o exemplo da população LGBT e mulheres,
não pode perder conquistas por tanto tempo pleiteadas, em detrimento ao fascismo,
fundamentalismo e conservadorismo religioso.
A prevalência de ideais religiosos em questões públicas e aplicadas via políticas de
governo (governo esse de um Estado dito laico) a população, não deveria ser prioridade,
todavia Souza (2016) nos remete a questão democrática que elege esse representante que de
forma “legítima” defende bandeiras de seu eleitorado, promovendo e fortalecendo o ativismo-
religioso.
Seriam antagônicas as ideologias? Quais são as disposições ao diálogo? Porque criar
pontes que superem as barreiras e diferenças soam tão assustador? De maneira utópica
insistimos discursivamente que é por meio do conhecimento que se promove o diálogo e o
respeito à diversidade em seu caráter mais plural, mas até que momento que esse

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1296


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posicionamento é possível e abrangente e a partir de quando ele passa a ser seletivo e


excludente?
Os conhecimentos teóricos em sua formalidade ocidental e eurocêntrica, presente em
nossas universidades deixa a desejar em muitas questões, como por exemplo, por meio de
militância por direitos, o pesquisador se apropria da dor alheia tornando o marginalizado e
oprimido como seu objeto de estudo e a este, poucas ou nenhuma vez cedendo espaço e lugar
de fala, que diferente da ideia de que só a vivência pode representar algum tema, mas de que
sim, a vivência é um diferencial para a aplicabilidade de estudos, análises e pesquisas.

Referências
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CNJ. 2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82813-ibge-contabiliza-mais-
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resposta a ação de evangélicos. O Município Blumenau, 8/12/2017. Disponível em:
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blumenau-em-resposta-acao-de-evangelicos/. Acesso em: 11 abr. 2018.

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http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82813-ibge-contabiliza-mais-de-8-500-casamentos-
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FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. As Famílias Pluriparentais ou Mosaicos.


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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1297


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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1285 1298


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Frente Parlamentar Evangélica e homossexualidade: a presença do religioso no


Legislativo e a luta pela defesa de direitos da população homoafetiva na sociedade
brasileira

Pedro Arthur Passos da Silva1


Luana Pagano Peres Molina2

Resumo: Este artigo apresenta discussões a respeito da temática envolvendo a luta pelos
direitos humanos, o exercício da cidadania da população homossexual e como a presença da
Frente Parlamentar Evangélica no Congresso gera grande impacto na realidade social dessa
população. Como a base das argumentações da Frente Parlamentar Evangélica é a Bíblia
Sagrada e a fé de matriz cristã, a homossexualidade encontra reprovação perante a ótica cristã
e tem como resultado reproduções do preconceito, da intolerância e tentativas de retrocesso ao
avanço aos direitos à cidadania. Objetiva-se então, a análise da ação desse grupo, do seu
surgimento e expor as consequências ocasionadas por frentes religiosas no Parlamento
Nacional na incansável luta pela repressão de direitos de grupos considerados minoria, sempre
alheios aos ideais religiosos defendidos por seus participantes e pelos eleitores de tais
parlamentares. Utilizando-se da revisão bibliográfica e análise de marcos legais (leis e
decoros) como objeto metodológico, concluiu-se que a Bancada Evangélica produziu um
retrocesso na conquista de proteções aos homossexuais, assim como tal discurso
fundamentalista e opressor divulgado por eles contribuiu para instaurar um clima beligerante
na sociedade, muitas vezes favorecendo a prática de violência contra tal população e,
consequentemente, refletindo nos índices recordes de violência contra Lésbicas, Gays,
Transexuais, Travestis e Intersexuais no Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística e Organizações Não Governamentais de apoio aos LGBTIs.

Palavras-chaves: Homossexualidade; Religiosidade; Direitos Humanos.

1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; graduando em Direito; pedro.arthur@pucpr.edu.br .
2
Docente Universidade Norte do Paraná; doutora em Educação; luana.molina@educadores.net.com.br.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1299 1299


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Introdução
O Brasil, ao formular novas leis e o ordenamento jurídico para acompanhar o
desenvolvimento da República e se afastar do Estado colonizador português, buscou por meio
do Poder Legislativo, e consequentemente da modernização do Direito Brasileiro, garantir
proteções específicas, interpretadas como direitos natos ao indivíduo, como a liberdade
religiosa, garantida pelo Estado desde sua gênese democrática e constitucional:

É proibido à autoridade federal, assim como à dos Estados federados, expedir


leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou
vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços
sustentados à custa do orçamento, por motivos de crenças, ou opiniões
filosóficas, ou religiosas.

(BRASIL, DECRETO-LEI 119-A, 1890)

Com base no Decreto outorgado pelo Presidente Deodoro da Fonseca, o Estado


garantiu que seus cidadãos professassem livremente seus credos. Em contraponto, o artigo
também exorta que o Estado não deve privilegiar nenhuma religião, assim como financiá-la,
oferecer doações ou sustentá-la com qualquer verba procedente dos cofres públicos, não
exercendo qualquer tipo de privilégio para as instituições religiosas. Neste sentido, sabe-se
que historicamente a religiosidade influenciava diretamente as decisões seculares da
sociedade, majoritariamente o cristianismo, consolidando os Estados ao regime teocrático.
Dessa forma, ao garantir o princípio da liberdade religiosa, o artigo 72, § 7 da Constituição
Federal dos Estados Unidos do Brasil (1891) também delimita no contexto brasileiro que é
proibido qualquer atrelamento da União com as instituições religiosas, seja por meios cívicos,
políticos ou econômicos, estabelecendo que:

Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de


dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A
representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não implica violação
deste princípio.

(BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1891)

Estava declarado o fim da influência teocrática no Legislativo brasileiro e iniciava-se,


ao menos teoricamente, a busca pela liberdade religiosa e filosófica dos habitantes do país,
resultando na caracterização da laicidade do Estado, na qual o país retira o poder político e
administrativo das instituições religiosas e é responsável por tutelar a defesa de direitos para
os religiosos, assim como garantir a liberdade de seus cidadãos em não professar nenhuma fé,
atuando princípios de igualdade e de direitos fundamentais (BARALDI, 2008, p. 1).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1299 1300


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Com o advento da democracia brasileira em meados dos anos 1980, a população pôde
eleger livremente seus representantes para os poderes Legislativo e Executivo, além de que “a
crise do regime militar, o início do pluripartidarismo, a redemocratização do país e a
elaboração da nova Constituição Federal em 1988 marcam [...] um período no qual diversos
grupos sociais buscam as garantias de seus direitos civis” (TREVISAN, 2013, p. 33). Dentre
estes grupos, destacou-se a presença dos pentecostais, em crescente número de adeptos e que
possibilitaram o surgimento da Frente Parlamentar Evangélica, concordante com a moral
religiosa, que possuía por objetivo representar parte da população brasileira que defende,
devota e compactua com os ideais religiosos do cristianismo, tendo seu início na Constituinte
Nacional iniciada em 1987, demonstrando sua “crescente habilidade evangélica para
mobilizar e organizar parlamentares para a defesa de interesses supradenominacionais e
suprapartidários” (TREVISAN, 2013, p. 35), juntamente com outras frentes de representação
e apoio a projetos como a Frente Parlamentar dos Ruralistas, por exemplo.
Em 2003, ano de início da popularização da Frente Parlamentar Evangélica, a mesma
já somava aproximadamente 58 deputados signatários, representando 11,3% do total de
cadeiras do Congresso. Atualmente, a Bancada Evangélica tem 199 deputados, isto é 38,7%
do total, e expandiu-se também para o Senado Federal, agregando 15 senadores. Tendo em
vista a proximidade político-ideológica dos representantes da Frente Parlamentar Evangélica e
da Frente Parlamentar Mista Católica Romana, por estas partilharem do cristianismo como
objeto de fundamentação religiosa, os parlamentares signatários de ambas as bancadas
frequentemente unem-se para a votação de projetos, tendo como amparo em suas
fundamentações jurídicas e teóricas os dogmas e preceitos definidos na religião, somando,
nesse caso, cerca de 414 deputados federais signatários, representando 82,6% do total de
parlamentares da Câmara, a maciça maioria parlamentar (TREVISAN, 2013, p. 34).
O teórico Zedequias Alves (2009) nos expõe a importância de analisarmos a política
dos parlamentares protestantes no Congresso, tendo em vista o iminente conflito entre os
dogmas religiosos devotados por tais representantes religiosos e determinados grupos sociais
considerados minoritários ou defesa de causas que encontram certo tabu, a exemplo dos
LGBTIs e a legalização do aborto. Neste sentido, o autor explicita que:

[...] A visão religiosa tradicional não mudou, e de acordo com ela as pessoas
podem realizar a sexualidade de forma correta que é a heterossexualidade, ou
de forma incorreta que é qualquer forma que não seja a heterossexual. A
sexualidade está na área da ética e existe um certo consenso entre os
religiosos acerca dos desvios sexuais: necrofilia, zoofilia, estupro,
prostituição, pedofilia, fornicação, incesto, masturbação, aborto, sadismo,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1299 1301


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masoquismo, e o homossexualismo, todos estes encontram reprovação na


ética cristã.

(ALVES, 2009, p. 10)

Ao ser anexada em categorias de comportamentos reprovados socialmente, a


sociedade cristã brasileira iguala a população homossexual a sujeitos sem pudor, totalmente
entregues a desejos infames e com pouca e discutível dignidade. A situação se agrava ao
considerarmos que a população em sua maioria é professante de fés de matriz abraâmica,
86,8% especificamente no cristianismo, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (2010). Ou seja, esse é um discurso amplamente reproduzido,
produzindo nos fiéis o sentimento de repulsa e/ou desaprovação aos homossexuais,
reprimindo toda e qualquer diferença alheia aos ideais defendidos pelos religiosos tradicionais
e, consequentemente, pelos parlamentares religiosos brasileiros.
De acordo com o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados,
que rege as normas para os representantes legislativos do país, o ato de unir 513 cidadãos
eleitos democraticamente pelo povo para representá-los deve necessariamente implicar
parlamentares que “promovam a defesa do interesse público e da soberania nacional”
(BRASIL, Res. 25, 2001). É certo que os religiosos podem defender o direito à liberdade
religiosa e proteção aos locais de culto, como amplamente defendido na Constituição Federal.
Entretanto, eles não podem influir no Direito de outrem, conforme observado com o constante
barramento e repúdio a projetos progressistas para a população homossexual brasileira,
cabendo unicamente aos parlamentares “examinar todas as proposições submetidas à sua
apreciação e voto sob a ótica do interesse público” (BRASIL, Res. 25, 2001).
Baseando-se nestes princípios, o presente trabalho busca propor uma reflexão acerca
da consequência da crescente consolidação de representações religiosas no Congresso
Nacional brasileiro, muita das vezes eleitas com o propósito de defender ideais religiosos, de
forma que acabam por reprimir a concepção de direitos humanos, que deve assegurar a todos
os indivíduos liberdade e igualdade em dignidade e direitos, partindo do princípio de que
estes são dotados de razão e consciência, e em resposta a tais garantias “devem agir uns para
com os outros com espírito de fraternidade, possibilitando o direito à vida, à liberdade e à
segurança”, conforme os artigos 1º e 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em
contraponto, pretende-se retratar a identidade e a luta social promovida pelos/as
homossexuais, demonstrando a face demagoga do preconceito e intolerância enfrentados.
Em tese, a laicidade prevista na Constituição protege os indivíduos baseando-se
intimamente no direito à liberdade de expressão. Embasando-se nestes artigos de defesa,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1299 1302


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assim como no exponencial crescimento de devotos do cristianismo, a Bancada Evangélica


surge em um período no qual os líderes religiosos divulgam a ideia de que os cristãos devem
votar somente em professantes da mesma fé, de forma que influenciam nos índices eleitorais
de tais parlamentares, geralmente empossados com o comprometimento de defender os
preceitos religiosos, em maioria fundamentalistas e de cunho repressor aos direitos humanos.
Ao criar-se tais grupos fundamentalistas no Poder Legislativo brasileiro, influi-se
diretamente na conquista de direitos e garantias às minorias, instaurando-se uma atmosfera
hostil perante a sociedade, trazendo para os homossexuais prejuízos sociais e psicológicos,
propiciados por meio da retórica de cunho religioso, que os insere em um clima beligerante,
reproduzindo conceitos estereotipados e, na maioria dos casos, tornando patológicas as
orientações sexuais repudiadas pelo cristianismo ortodoxo e pelos protestantes de forma geral.
Espera-se com a presente pesquisa expor de forma contundente as consequências ocasionadas
por bancadas religiosas no parlamento brasileiro, em específico a Frente Parlamentar
Evangélica, na sua incansável luta pela repressão de direitos de grupos considerados de
minoria, sempre alheios aos dogmas religiosos defendidos pelos eleitores e embasados pelos
parlamentares signatários desta qualificação de junções parlamentares.

1. Homossexualidade: definições, estigmas e conquista de direitos no Congresso

Para adentrarmos à definição de homossexualidade, faz-se necessário trazer conceitos


acerca da diversidade sexual humana, campo este em que, de acordo com a psicóloga e
educadora sexual Mary Neide Figueiró (2007), se exercem a identidade de gênero e
orientação sexual, totalmente distintos e que “não podem confundir-se” (p. 3). A identidade
de gênero trata-se da forma como nós mesmos nos identificamos, assumimos e exercemos os
papéis sociais definidos ao gênero pelo qual nos adequamos. Dessa forma, utilizando-se da
definição de Mary Figueiró (2007) para a identidade de gênero masculina, podendo ser
igualmente entendida como a feminina, podemos definir que:

- existem homens que se sentem bem como homens e gostam de ser homens;
- há os que vivem como homens, não rejeitam o seu órgão sexual, mas em
alguns momentos sentem necessidade de se travestir de mulher;
- há os que sentem necessidade de estar sempre travestidos de mulher e
muitos que até mudam seu corpo, por exemplo, com silicone – são as
travestis;
- há os que não se sentem homens, de forma alguma, que até rejeitam o seu
órgão sexual e desejam fortemente alterar seu sexo biológico – são as
transexuais; (FIGUEIRÓ, 2006, p. 9)

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1299 1303


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Complementando tal definição, cabe mencionar que na diversidade humana há


também os transgêneros, como os queers, identidade esta que afirma que a orientação sexual,
assim como a identidade de gênero, são construtos sociais e que, portanto, não existem
relações preestabelecidas como essenciais, mas sim diversas formas sociais de desempenhar
únicos ou diversos papéis. Os fluidos, aqueles em que a identidade de gênero e apresentação,
isto é, identificação de si mesmo, não se limitam a apenas uma categoria binária, podendo
desempenhar muito bem os diversos papéis da rica diversidade humana. Por sua vez, os
agêneros, ou andróginos, são os indivíduos que não se identificam, tampouco aceitam o
conceito de gênero binário definido pelo sexo biológico ao qual se encontram, tampouco ao
oposto, declarando-se como pertencentes a nenhuma identificação de gênero.
A orientação sexual, por sua vez, é a qualidade de um ser vivo atrair-se física,
emocional, estética e espiritualmente por outros indivíduos, sendo esta uma condição inata ao
indivíduo, construída conforme nosso desenvolvimento sexual ao longo da vida. Dentre as
diversas orientações sexuais, há a heterossexualidade, que consiste na atração física e afetiva
por indivíduos do gênero oposto; a homossexualidade, que, como nos pontua a pesquisadora e
educadora sexual Luana Molina (2010, p. 59), trata-se de “amar alguém do mesmo sexo,
entregar-se à dor e à delícia de sentir-se apaixonado como em qualquer relacionamento no
qual criamos laços de ternura”; a bissexualidade, por sua vez, apresenta-se no indivíduo que
sente atração por ambos os gêneros impostos no conceito binário, ou seja, feminino ou
masculino. Além disso, existem indivíduos pansexuais, ou seja, que relacionam-se com outros
indivíduos independentemente de sua adequação de gênero; e os assexuais, que embora não
apresentem libido sexual, podem apaixonar-se livremente por indivíduos de qualquer gênero.
É certo afirmar que a sexualidade é uma condição do indivíduo, construída ao longo
da vida, e trata-se de um direito exercê-la livremente. Maria Berenice Dias (2009) nos expõe
que “ninguém pode realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o respeito ao
exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade sexual, albergando a liberdade
da livre orientação sexual”, além de que claramente “sem liberdade sexual o indivíduo não se
realiza” (DIAS, 2009, p. 3). Na sociedade brasileira, entretanto, dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), além de outras fontes de divulgação, expõem que ainda se
trata de um reconhecimento distante das orientações sexuais alheias à heterossexualidade.
O viés religioso, que transcendeu durante muitos séculos no desenvolvimento da
sociedade em geral e foi herdado de nossos colonizadores no processo de desenvolvimento do
Brasil Colônia, engessou os vínculos afetivos tratados como dignos e aprovados pela

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sociedade. Com predominância do cristianismo em nosso território, a disseminação do


“discurso higienista que, a partir do século XVIII, patologizou a sexualidade humana,
estabelecendo, enquanto ‘norma’, o modelo heterossexual, monogâmico, com o sexo voltado
para a reprodução” (TONIETTE, 2007, p. 97), contribuiu para o surgimento da homofobia,
que ainda persiste em nossos dias atuais, sendo praticado por considerável parcela da
população. De acordo com dados da organização não governamental Human Rights, no ano
de 2017 houve recorde em mortes por homofobia no Brasil, apresentando cerca de 445 casos.
Outras informações divulgadas pela Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério
das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos apontam para dados que indicam
que a violência que atinge os LGBTIs é em quase 14,8% dos casos praticados por membros
da família da vítima, denunciando a homofobia existente inclusive nos laços familiares
(BRASIL, Relatório de Violência Homofóbica no Brasil, 2013, p. 21).
Embora o cristianismo tradicional defenda a homossexualidade como desvio sexual, a
Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da Classificação Internacional de Doenças
(CID), retirou desde 1990 a homossexualidade da subcategoria patológica de desvio sexual,
abandonando a errônea expressão homossexualismo, que referenciava diretamente doenças e
distúrbios, como o tabagismo, por exemplo. No Brasil, desde 1999 o Conselho Federal de
Psicologia reitera que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem
perversão” (FIGUEIRÓ, 2007, p. 29). Pela ótica cristã, embora haja várias interpretações
dispersas a respeito do tema, a homossexualidade não se trata de uma patologia, mas sim de
influências espirituais malignas, como define o teórico Zedequias Alves (2009, p. 9):

Os desvios sexuais são vistos pela religião tradicional segundo o prisma da


possessão demoníaca e se a questão é possessão de espíritos malignos,
subentende-se que após o exorcismo a cura será imediata. Também são vistos
sob o prisma moral da imoralidade e do desvio de caráter, exigindo-se do
pecador arrependimento e busca de santidade.

Com a consolidação da atuação da Frente Parlamentar Evangélica, os parlamentares


eleitos para representar a sociedade brasileira em projetos que, em tese, deveriam englobar o
interesse público, definem durante reuniões de pauta, de acordo com a teórica Janine Trevisan
(2013, p. 36), “solicitação de requerimentos de informação, audiências, votações a
favor/contra projetos específicos, estratégias para interromper sessão no plenário e nas
comissões”. Vale salientar que, atuando estrategicamente para interromper sessões, os
deputados signatários da Frente estão em sua maioria inscritos no quadro de mais faltosos do
Congresso Nacional, como no caso do deputado Hidekazu Takayama, ausente em 59 das 125

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sessões plenárias ocorrentes no ano de 2015, ou seja, em 47,2% das sessões. O


posicionamento da teórica Janine Trevisan (2013, p. 36) possibilita avaliar o comportamento
anômico dos parlamentares, como sendo justificado pela “prioridade dos mesmos em
monitorar os projetos que ameaçam seus valores e interesses”.
A PLC 122/2006 trata-se de um importante projeto para definirmos a atuação
parlamentar da Bancada Evangélica no Congresso. O projeto de autoria da deputada federal
Iara Bernardi (PT) tinha por objetivo criminalizar a prática de crimes de discriminação ou
preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, conforme o escopo do
projeto. Tramitou no Congresso por cerca de oito anos, ao ser arquivado em 2015 sem
perspectiva de aprovação e nova redação em futura proposta de Lei Complementar. Com isso,
até os dias atuais a prática da homofobia no Brasil não possui sanções específicas e normas
jurídicas próprias, atuando exclusivamente a jurisprudência dos Tribunais Superiores, assim
como a legislação de diversos estados e municípios do Brasil (REIS, 2007, p. 102).
Com a constante consolidação da força parlamentar da Bancada Evangélica, os
deputados passaram a revestir seus discursos fundamentalistas utilizando também a
Constituição Federal. Isto demonstra mais força ao definirem a contrariedade ao PL 612/2011,
por exemplo, que alterava o Código Civil e legitimava o casamento entre pessoas do mesmo
sexo. Nesse sentido, Trevisan (2013, p. 36) nos complementa que os parlamentares
“justificam seu posicionamento contra o casamento homossexual, por exemplo, não porque a
Bíblia o condena, mas porque a Constituição reconhece a união estável entre o homem e a
mulher como entidade familiar”. Dessa forma, delimita-se como válida a união heterossexual
como constituição familiar, analogamente conhecida por família nuclear.
É certo que a constituição de família nuclear é uma construção recente da sociedade,
que vem para “garantir a ordem social e sobretudo possibilitar, através da função da
afetividade e educação, a formação do indivíduo adulto” (ARÁN, 2003, p. 401), e que ao
longo do tempo vem adquirindo naturalidade como origem da construção do indivíduo. Dessa
forma, partindo do princípio exposto pela teórica Márcia Arán (2003), de que a afetividade é
um importante pilar das formações de laços familiares, pode-se estender aos homossexuais,
conforme determinado pela lei que regulamenta o casamento homoafetivo, o reconhecimento
de seus direitos e da dignidade da família homoafetiva, sendo que partilham das mesmas
relações que se constituem nos diversos modelos familiares.

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2. A importância dos Direitos Humanos para a garantia de direitos aos homossexuais

Conforme definido anteriormente, no âmbito do Legislativo brasileiro, composto por


“homens, machistas, brancos e conservadores” (TREVISAN, 2013, p. 38), a população
homoafetiva encontra dificuldades em conquistar direitos e proteções específicos, sendo que
se trata de uma parcela da sociedade que se encontra exposta à violência e ao preconceito,
tendo em vista que, em uma sociedade heteronormativa, na qual quaisquer orientações sexuais
alheias à heterossexualidade são excluídas, ignoradas e inclusive perseguidas por meio de
discursos pautados na religiosidade fundamentalista, torna-se difícil a convivência cívica para
os homossexuais, visto que necessitam romper com uma sociedade que se preocupa em
“esconder as diversas faces do amor, levando a maioria dos mesmos à uma árdua luta por sua
identidade, autonomia e direitos” (MOLINA, 2010, p. 60).
Em pesquisa realizada pelo PEW Research Center, foi exposto que o nível de
confiança estabelecido com lideranças religiosas é 12% superior entre os pentecostais do que
a média geral dos brasileiros (TREVISAN apud MACHADO, 2012, p. 75). Analisando tais
dados, que definem a autonomia que é depositada nos parlamentares sob o viés da fé, deve-se
assegurar que é imprescindível a defesa dos Direitos Humanos em conflito com o Legislativo
conservador e opressor brasileiro, implementando estes princípios no ordenamento jurídico
brasileiro, possibilitando e consolidando garantias de igualdade e defesa dos indivíduos,
independentemente de sexo, cor, gênero e orientação sexual.
O Brasil, assim como outros 158 países, é signatário da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, documento que rege o princípio da paz e igualdade entre todos os
indivíduos e que foi formulado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta carta,
considera-se que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 2),
definindo o princípio essencial da liberdade entre os indivíduos, sendo que a ausência se torna
responsável por conduzir os indivíduos a “atos de barbárie que revoltam a consciência da
Humanidade”. Este documento instaurou-se em um período seguinte à desastrosa Segunda
Guerra Mundial, buscando ressignificar a dignidade e a importância humana, conduzindo os
indivíduos a agirem de forma cidadã.
A Declaração atua como uma importante ferramenta do Direito Internacional para
proteção dos grupos societários expostos à violência no Brasil. Isso pode ser demonstrado
com base no art. VII, em que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer

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distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito à igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal
discriminação” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 3).
No Brasil, o debate para o instauro de políticas públicas voltadas para os
homossexuais gira em torno do campo jurídico com certa polêmica. O jurista Roger Raupp
Rios (2011) expõe que, perante o Direito brasileiro, os direitos voltados para os LGBTIs
foram inicialmente suprimidos pelo conservadorismo envolto na comunidade do setor, ainda
presente nos dias atuais. Nesse sentido, “o Direito foi produzido como instrumento de reforço
e conservação dos padrões morais sexuais majoritários e dominantes” propiciando a
valorização “da família nuclear pequeno-burguesa, as atribuições de direitos e deveres sexuais
entre os cônjuges e a criminalização de atos homossexuais” (RIOS, 2011, p. 74).
Com a crescente representatividade política dos movimentos sociais, surgiram as
demandas em torno do reconhecimento dos novos arranjos familiares e, consequentemente,
levantaram a discussão acerca da defesa de proteções e direitos voltados para as/os
homossexuais, ainda em construção no Direito brasileiro. Roger Raupp Rios (2011)
acrescenta que “o surgimento destas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda
que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova modalidade na relação entre os
ordenamentos jurídicos e a sexualidade” de forma que “os direitos sexuais devem ser
compreendidos no contexto da afirmação dos Direitos Humanos” (RIOS, 2011, p. 74).
Por fim, adequando-se a uma perspectiva modernista do Direito, assim como um
enrijecimento com as normas que regem o Poder Legislativo e descaracterizando a união de
Frentes Parlamentares que utilizam da religião para embasamento do preconceito e da
discriminação, é necessário “visualizar os direitos sexuais a partir dos princípios fundamentais
que caracterizam os direitos humanos, criando as bases para uma abordagem jurídica que
supere as tradicionais tendências repressivas que marcam historicamente as atuações de
legisladores, promotores, juízes e advogados neste domínio” e neste sentido, “estabelecem-se
as bases para, superando-se os princípios básicos de liberdade, da igualdade, da não
discriminação e do respeito à dignidade humana na esfera da sexualidade”, de acordo com o
posicionamento do doutrinador e jurista Roger Rios (2011, p. 75).

Conclusões ou considerações finais.

Em síntese, foi possível dimensionar que a democracia brasileira reformulada após o


regime militar e reforçada pela Constituição Federal de 1988 possibilitou que políticos eleitos

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pudessem representar a população, sempre de forma a observar as leis perante o interesse


público, fundamentando o desenvolvimento do ordenamento jurídico brasileiro e
consequentemente possibilitou a junção de Frentes Parlamentares, que utilizavam do espaço
Legislativo para concatenar forças em prol de determinada filosofia ou crença. Nesse sentido,
a Frente Parlamentar Evangélica utilizou-se desse espaço democrático para consolidar-se
como um referencial de defesa de dogmas religiosos cristãos no Congresso Nacional. Dessa
forma, em um ambiente opressor, machista e extremamente conservador, os ideais da FPE
foram rapidamente aderidos por 413 deputados federais, somando os signatários da Frente
Parlamentar Evangélica e da Frente Parlamentar Apostólica Católica Romana, facilitando o
impedimento a todo e qualquer projeto progressista para a população homossexual no Brasil.
É certo que os homossexuais encontram reprovação perante a ótica cristã, que defende
as uniões que envolvam exclusivamente o viés reprodutivo, patologizando ou coibindo
qualquer união que esteja alheia a tais normas religiosas. Nesse sentido, com o propósito de
defender tais dogmas, os políticos impedem que projetos importantes sejam discutidos e
aprovados, de forma a obstar direitos e políticas protetivas para essa população, geralmente
exposta à violência, tendo em vista o posicionamento heteronormativo e machista que ainda
circunda nossa sociedade em pleno século XXI. Dessa forma, pudemos analisar que as
políticas de impedimento de projetos para os LGBTIs, assim como as estratégias
anticonstitucionais e antiéticas de forçar o encerramento da votação de projetos ausentando-se
tais parlamentares do espaço do Congresso, ao se oporem em projetos que, de acordo com
eles, ferem os princípios da família nuclear, machista e patriarcal da qual defendem implantar
e defender no Legislativo, prometendo coibir todo e qualquer alheio aos seus ideais.
O resultado de tal política ríspida reflete diretamente nos índices de violência do
Brasil, como nos dados divulgados anteriormente, em que o Brasil bate recorde no caso de
homicídios de homossexuais, somando mais de 400 casos apenas no último ano. Além disso,
a homofobia ainda é um tema recorrente, que acompanha os indivíduos homossexuais desde
seus anos iniciais, não encontrando elementos que neutralizem tal preconceito, tendo em vista
o discurso que é reproduzido pelos políticos protestantes do Congresso, criando um clima
beligerante de preconceito na sociedade brasileira.
Nesse sentido, é possível afirmar que a presença de políticos religiosos no Legislativo
brasileiro influi diretamente na conquista de direitos e quebra de preconceitos, dificultando a
modernização do discurso da sociedade, que deve reconhecer como legítima e digna a
homossexualidade enquanto uma das diversas orientações sexuais que os seres humanos
podem apresentar. A homossexualidade faz parte do indivíduo, é construída ao longo da vida

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e acompanha o desenvolvimento das fases sexuais e do desenvolvimento no meio social.


Dessa forma, também reforça o Conselho Federal de Psicologia que a homossexualidade não
constitui doença, nem distúrbio e nem perversão. Trata-se de uma realidade de diversos
indivíduos brasileiros, devendo-se respeitar e preocupar-se em conquistar políticas públicas
que se adequem para a legitimação desses indivíduos, coibindo o preconceito, a violência e a
discriminação, tão ainda presentes em nossa sociedade machista e patriarcal.

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Que voz é essa que fala por mim? A luta do Instituto Geledés por dignidade,
reconhecimento e representação da mulher negra no Brasil

Breenda Karolainy Penha Siqueira 1


Jamilly Nicácio Nicolete2

Resumo
Não se pode negar a existência do racismo, do machismo e da misógina enraizados na cultura
nacional, pois é certo que toda sociedade tem sua mentalidade moldada pelas influências e
fatos históricos aos quais foi submetida durante todo seu processo de formação e
desenvolvimento. Não se pode negar também que, devido a esses fatores de opressão social,
mulheres negras e, principalmente, pobres se encontram à margem da sociedade. Este artigo
foi elaborado por meio de levantamento bibliográfico e propõe uma breve análise de
acontecimentos históricos com o intuito de demonstrar o modo como mulheres negras foram
tratadas e representadas durante a história do Brasil e os reflexos dessas ocorrências nos dias
de hoje. A pesquisa tem como pauta principal as problematizações, reivindicações e
participações políticas e sociais do portal Geledés, Instituto da Mulher Negra, além de
apresentar dados e estatísticas de escala nacional que comprovam a disparidade social e
econômica das mulheres negras em comparação à média do país. Por fim, fica evidente que a
limitada representação política e social, além das ínfimas políticas públicas voltadas
especificamente para mulheres negras são os principais agentes causadores da situação social
que deixa essas mulheres em circunstâncias de marginalização e vulnerabilidade a quaisquer
tipos de violência por parte da população e do próprio Estado.

Palavras-chave: Geledés; Mulheres Negras; Representação.

¹ Graduanda em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; e-mail:
breenda.k.ps@gmail.com.
2
Docente dos cursos de licenciatura do Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; Doutora em
Educação; e-mail: jamillynicacio@hotmail.com.

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Introdução
A teoria da democracia racial desenvolvida por Gilberto Freyre na década de 1930
foi amplamente difundida ao longo dos anos e, atualmente, faz parte da mentalidade do
brasileiro. Os casos de racismo que repercutem na mídia são vistos como situações isoladas,
o que resulta na frequente negação da existência de um racismo institucional e, portanto,
dificultando a aceitação de elaboração e aplicação de medidas sociais ou políticas de ação
afirmativa para combater essa realidade.
Quando se fala a respeito de questões de gênero, a temática é ainda mais
negligenciada e contestada como digna de debate. Fora do contexto acadêmico acredita-se
que a discrepância de oportunidades sociais, econômicas e políticas entre homens e mulheres
seja condição dos séculos anteriores e sem reflexo algum nas relações sociais
contemporâneas. Segundo Adichie (2015), colocar questões de gênero em pauta é,
geralmente, desconfortável e pode até causar incômodo. Isso porque as possibilidades de
questionar e redefinir o status quo são sempre hostis.
Se os dois temas individualmente já são postos de lado, a discussão deles
concomitantemente é ainda mais precária. Assuntos étnico-raciais raramente são debatidos
como elementos integrados à história, mas como um segmento de análise específica. Davis
(1975 apud Scott 1989) já salientava a importância de se estudar a história das mulheres e
dos homens como um todo. Não partindo de uma perspectiva exclusiva de
oprimido/opressor, mas compreendendo a importância do gênero para a história.
Fraser (2001, p. 3) estabelece a relação entre as opressões. Segundo a autora,
“Gênero e “raça” são paradigmas de coletividades bivalentes. Embora cada qual tenha
peculiaridades não compartilhadas pela outra, ambas abarcam dimensões econômicas e
dimensões cultural-valorativas”. É em cima dessa bivalência que esta pesquisa se debruça
com o intuito de encontrar os fatores responsáveis pela marginalização da mulher negra, área
de interesse que também deu o pontapé inicial para a fundação do Geledés, o Instituto da
Mulher Negra.
A proposta de analisar as relações étnico-raciais contemporâneas exige a
apresentação de um epilogo sobre o tema para que seja possível compreender os fatores que
moldaram a sociedade, tornando-a o que é hoje.

Analisando a conjuntura dos fatos...


Partindo de uma perspectiva historiográfica, deve-se evocar, antes de tudo, a
contribuição de Karl Von Martius no concurso promovido pelo Instituto Histórico e

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Geográfico Brasileiro (IHGB) na década de 1840. Foi ele o responsável pela valorização da
chamada “fusão das raças”, teoria que consiste em definir o brasileiro como produto da
mistura entre portugueses, indígenas e africanos, embora não especifique o modo como essa
miscigenação ocorreu.
Na obra “O povo Brasileiro: Formação e Sentido do Brasil”, Ribeiro (1995) faz uma
crítica sociológica a respeito do fundamentado surgimento do nativo brasileiro:
Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de poucos brancos com multidões de
mulheres negras e índias. Essa situação não chega a configurar uma democracia
racial, como quis Gilberto Freyre e muita gente mais. Tamanha é a carga de
opressão, preconceito e discriminação antinegro que ela acaba por encerrar-se
(Ribeiro, 1995, p. 225).
É de conhecimento mútuo que o brasileiro foi constituído por meio do hibridismo
cultural e “racial”, contudo, não necessariamente consensual. A ideia de um caldeamento
natural e anuente é uma utopia que traz consolo a quem a admite. Pressupor que esse
“cruzamento de poucos brancos com multidões de negras e índias” aconteceu sem uso de
força, violência, coação e convicções racistas é ingenuidade.
Priore (1988) faz uma análise da obra Casa-Grande & Senzala que explica a relação
entre os senhores e as escravas, além de elucidar a participação da mulher negra escravizada
para o desenvolvimento do nativo brasileiro (segundo a concepção de miscigenação de
Martius) durante o período colonial.
Desnudando os corpos quentes e sensuais das escravas negras em constante
intercurso sexual com seus senhores, Freyre descobre os corpos marmóreos, porque
brancos e frios, das sinhás sem prazer. Sob o signo da dupla moral, corpos femininos
de cores e situações sociais diversas fariam, segundo ele, o prazer ou a prole dos
homens do Brasil colônia (PRIORE, 1988, p. 15).
Pode-se perceber pelo trecho supracitado que as relações de exploração sexual entre
senhores e escravas negras eram habituais, além de designar a elas uma imagem de objetos
de consumo. A expressão “corpos quentes e sensuais” é implicitamente carregada de um teor
racista e sexista que perdura até os dias de hoje, tendo em vista que denota à mulher negra
um símbolo de satisfação sexual, apesar de ser socialmente compreendido como elogio tanto
quando destinado às brancas, quanto se destinado a mulheres brancas, já que ambas são
sexualizadas em proporções diferentes, o que estimula uma competitividade entre essas
mulheres.
A título de exemplo, Pinsky (1993) traz em sua obra duas expressões populares
recolhidas por José Alípio Goulart que demonstram o caráter de objeto sexual dado às
escravas bonitas: “Preta bonita é veneno, mata tudo o que é vivente; Embriaga a criatura, tira
a vergonha da gente” e “Mulata é doce de coco, não se come sem canela; Camarada de bom
gosto não pode passar sem ela”, além dos vocábulos que se tornaram adjetivos nos dias de

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hoje, como “da cor do pecado” e “mulher de carnaval” que, se analisados a fundo em seu
contexto histórico, constata-se a mais sutil forma de relegar a essas mulheres um papel social
de deleite erótico. Mulheres para prazer de uma noite.
Saindo da perspectiva do Brasil colônia e escravista, o historiador Joaquim Nabuco
(1900) em seu livro “Minha formação”, já compreendia que, devido ao fato da inexistência
de medidas sociais, econômicas e políticas que beneficiassem os recém-libertados, a
escravidão marcaria a História do Brasil por um longo período. Esse pensamento pode ser
confirmado com as estatísticas que apresentam a disparidade entre brancos, negros e
mulheres.
Um ponto que pode ser facilmente observado é a exposição, sexualização e
comercialização dos corpos negros. As propagandas de cervejas como aquela “Vai, Verão”
da Itaipava, a escolha da sambista para representar a “Globeleza” ou os comentários
populares a respeito dos corpos dessas mulheres: “mulheres negras têm cintura fina, quadril
largo, bunda grande...”.
O fim da escravidão e a falta de políticas públicas voltadas para ex-escravos os
obrigou a manter vínculos empregatícios com aqueles que um dia foram seus senhores. As
condições de trabalho não eram (e ainda não são) muito diferentes. Carga horária extensa,
salários que garantem a sobrevivência, mas não a vida, falta de oportunidade e acesso à
educação, saúde, segurança ou saneamento básico de qualidade.
Um levantamento feito pelo portal de notícias G13 através de dados oficiais do
Ministério do Trabalho e Emprego de 2016 mostra que negros ocupam a maioria dos
trabalhos braçais ou que exigem pouca escolaridade, como cortadores de cana, operadores de
telemarketing, vigilantes ou empregadas domésticas, setor ocupado majoritariamente por
mulheres negras, que tende a estender a discussão para compreensão de serviço análogo à
escravidão, tendo em vista que só foi regulamentado e contemplado pelos direitos oferecidos
pela Consolidação das Leis Trabalhista (CLT) em 2015, antes disso, todas as trabalhadoras
da classe viviam à mercê de negociações informais quanto às condições de serviço, horário e
salário, como mostra o gráfico abaixo, a discrepância, fruto do abismo social que distancia
brancos de negros, desde o acesso à educação até às oportunidades de ascensão profissional,
reflexos da escravidão que teve fim há 130 anos com a assinatura da Lei Áurea no Brasil.

3
GOMES, Helton Simões. Brancos são maioria em empregos de elite e negros ocupam vagas sem qualificação.
Disponível em: &lt;https://g1.globo.com/economia/noticia/brancos-sao-maioria-em-empregos-de-elite-e-negros-
ocupam-vagas-sem-qualificacao.ghtml?utm_source=whatsapp&amp;utm_medium=share-bar-
smart&amp;utm_campaign=share-bar&gt; Acesso em: 16 de Maio de 2018.

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De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 26,3%


das mulheres negras brasileiras possuíam níveis de renda entre médios e altos no ano de
2011. As mulheres que representavam 73,6% dessa pesquisa residiam em regiões com
menos água encanada, esgotamento sanitário, coleta regular de lixo, acesso à alimentação, à
escola e, principalmente, aos serviços de saúde. A impossibilidade de acesso a esses serviços
essenciais para a dignidade da vida humana resulta em diversas formas de violência contra a
mulher negra.
Em entrevista ao G1 em Outubro de 2007, o então governador do Rio de Janeiro,
Sérgio Cabral Filho, posicionou-se a favor do aborto por motivos diferentes do que
movimentos sociais defendem. A frase apresenta teor racista e eugenista, além de deixar
implícita uma ideologia de interrupção de gravidezes para evitar o nascimento de “potenciais
marginais”. Para ele, a questão do aborto "tem tudo a ver com violência. Você pega o
número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é
padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de
produzir marginal"4.
Outra declaração polêmica vinda de parlamentar se tornou pública em 1982, após
uma denúncia feita na Assembleia Legislativa sobre a esterilização como política de controle
de natalidade de negros. Paulo Maluf elaborou para o Grupo de Assessoria e Participação do
Governo do Estado (GAP) um documento a respeito do senso demográfico de 1980. De
acordo com Carneiro (2011), o documento propõe a esterilização massiva de mulheres pretas
e pardas segundo o seguinte argumento:
De 1970 a 1980, a população branca reduziu-se de 61% para 55% e a população
parda aumentou de 29% para 38%. Enquanto a população branca praticamente já se
conscientizou da necessidade de se controlar a natalidade (…), a população negra e
parda eleva seus índices de expansão, em 10 anos, de 28% para 38%. Assim,
teremos 65 milhões de brancos, 45 milhões de pardos e 1 milhão de negros. A se
manter essa tendência, no ano 2000 a população parda e negra será da ordem de
60%, por conseguinte muito superior à branca; e, eleitoralmente, poderá mandar na
política brasileira e dominar todos os postos-chaves – a não ser que façamos como
em Washington, capital dos Estados Unidos, onde, devido ao fato de a população
negra ser da ordem de 63%, não há eleições (Carneiro, 2011, p. 132).
As reduzidas oportunidades de acesso aos serviços públicos de saúde e educação são
responsáveis pelos altos índices de gravidez na adolescência, mortes durante o parto e até
“aumento de reprodução” como citado por Maluf, além de criar uma estigma preconceituosa
sobre as mulheres negra, principalmente as periféricas, entretanto, ainda não foram
4
FREIRE, Aluizio. Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-
CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html> Acesso em: 23
de Maio de 2018

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1312 1317


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estabelecidos programas sociais ou planos que alcancem e tenham resultados efetivos para
essas mulheres que estão à margem da sociedade.
O instituto Geledés atua em diferentes esferas. Em relação à saúde, interfere na
elaboração e implementação de políticas públicas e dos direitos sexuais e reprodutivos que
atendam às necessidades e interesses das mulheres negras em particular e da população
negra em geral. Também desenvolve projetos de prevenção e promoção da saúde e atua pela
implementação do Plano Nacional de Saúde da População Negra, como forma de reduzir os
padrões superiores de morbidade e mortalidade encontrados na população negra quando
comparada à população branca.
No que diz respeito às questões raciais, o Geledés se une aos movimentos negros
pela criminalização efetiva do racismo e discriminação racial, além de defender a
implantação de políticas públicas de ações afirmativas com o intuito de reduzir as
desigualdades e promover a valorização da sociedade e cultura negra.
No tocante de gênero se une às agendas feministas e se posiciona contra as situações
de violências doméstica e sexual contra a mulher, a favor da igualdade de gênero no mercado
de trabalho, defende os direitos reprodutivos e sexuais femininos, a descriminalização do
aborto e o fim dos estereótipos e estigmas sobre as mulheres reproduzido pelos meios de
comunicação e, no tema da violência contra a mulher, desenvolveu o Aplicativo PLP 2.0,
para socorrer mulheres em situação de violência.
Para proteger, assegurar e expandir os direitos educativos de negras e negros a ONG
criou o Programa de Educação Geledés. Tendo a educação como um direito humano, cabe ao
Estado garantir e efetivar seu acesso para todos. Luta pela melhoria da qualidade de ensino e
maiores investimentos na área, além de desenvolver o projeto para a implementação da Lei
10639/03 que alterou a LDB no que diz respeito à formação de profissionais de educação e
de publicação de materiais didáticos voltados para o combate ao racismo e sexismo.
Quanto à comunicação, compreendida como questão vital para os movimentos
sociais e, especialmente, mulheres negras, o instituto trabalha para trazer visibilidade e
empoderamento, investe na capacitação de mulheres negras em comunicação, mídia e na
atuação em rede através das Comunicadoras Negras, uma estratégia para a formação em
educomunicação e empoderamento de ativistas e instituições dos movimentos sociais.
O termo “geledé” designa uma espécie de festival de uma “sociedade secreta”
formada exclusivamente por mulheres e tem como intuito expressar o poder feminino sobre
a fertilidade da terra, procriação, forças poderosas da fé e o bem-estar das comunidades
Yorubas do sudoeste da Nigéria e do Benin.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1312 1318


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O nome da organização foi escolhido devido ao foco e atuação principal da mesma:


“dar visibilidade às mulheres negras como um grupo social que merece prioridade no âmbito
do compromisso com a democracia e a equidade”, como aponta Maria Sylvia Oliveira, atual
presidente da instituição.
Fundado em Abril de 1988, o instituto, que comemora em 2018 seu 30º aniversário,
desenvolve projetos em diferentes áreas sociais, como educação, saúde, políticas públicas
comunicação, mercado de trabalho e direito, além de se manter como um veículo de mídia
jornalística e portal de notícias voltado aos assuntos da população negra.
Contando com o apoio de 206 civis voluntários, colaboradores e articulista desde o
início de sua trajetória, a ONG recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 1996 e
Francês em 1998, o “Selo Nota 10” oferecido pela Rede de Telemática Direitos Humanos &
Cultura - Dhnet a sites sobre direitos humanos e cultura, recebeu o título de melhor página
do mês pela Cidadania Sim, dois diploma de reconhecimento do Governo do Estado de São
Paulo em 1997, prêmio “Luta, gênero feminino” da PUC/SP, foi finalista do prêmio ECO –
Reconhecimento a Cidadania Empresarial por relevância comunitária e prêmio TOP
SOCIAL 99 da ADBV com o projeto “Geração XXI”, além do XVI prêmio Franz de Castro
Holzwarth oferecido pela OAB em 1999.
Participa de diversas iniciativas da sociedade civil de Monitoramento e Incidência
em Políticas Públicas nos âmbitos municipal, estadual e federal, além de atuar em várias
instâncias de controle social que visam à promoção da igualdade de gênero e raça. Na esfera
internacional, atua nas iniciativas da ONU e acompanha os trabalhos da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos; participa dos esforços de diversas organizações da
sociedade civil das Américas pela aprovação da Convenção Interamericana de Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Constituído como mecanismo para viabilizar a dimensão da problemática racial no
Brasil que, quando violada, resulta na exclusão social e atentado à dignidade humana que
afetam de maneira desproporcional a população negra, o Programa de Direitos Humanos
apresentado pelo instituto utiliza recursos jurídicos no atendimento às vítimas de racismo,
capacita lideranças comunitárias, sistematiza e incentiva a participação de mulheres negras
no meio político e enfatiza a interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, civis,
econômicos, sociais, culturais, ambientais e, principalmente, políticos.
No que diz respeito à representação política, mulheres negras ocupam um percentual
ínfimo de cargos, dificultando ainda mais o atendimento às suas próprias demandas.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1312 1319


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Há pouco mais de dois meses, a execução da quinta vereadora mais votada no Rio de
Janeiro, Marielle Franco (PSOL/RJ), desencadeou sucessivos debates sobre o descaso para
com a vida da mulher negra. Em homenagem a ela, cinco de seus projetos foram levados à
Câmara Municipal para votação. Quatro propostas foram aprovadas em primeiro turno (criar
creches públicas noturnas para mães que trabalham à noite; instituir o Dia da Mulher Negra a
ser comemorado em 25 de julho; desenvolver campanha permanente contra o assédio e a
violência sexual em ônibus e trens e produzir o Dossiê Mulher) e uma teve apreciação adiada
(projeto que inclui dia de luta contra a homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia).
O líder do PSOL, vereador Tarcísio Motta, assume em entrevista ao portal5 que os
projetos foram aprovados como prestação de homenagem e reconhecimento à parlamentar
que levantada bandeira em defesa de LGBTI+, pobres e, principalmente, mulheres negras.
Para ele, a votação foi histórica por defender os direitos e propor políticas públicas voltadas
para mulheres trabalhadoras e moradores de favelas.
Diante da proporção do caso, foram criadas “campanhas políticas” em redes sociais,
principalmente no Twitter, com o intuito de propagar a imagem e o ativismo de mulheres
negras pouco conhecidas no Brasil. A principal motivação para tal ato foi o fato de que o

5
Câmara aprova projetos de Marielle e dá seu nome à tribuna. Disponível em: <
https://www.geledes.org.br/camara-do-rio-aprova-projetos-de-marielle-e-da-seu-nome-tribuna/> Acesso em: 25
de Maio de 2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1312 1320


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mandato da parlamentar só se tornou de conhecimento público depois de sua morte e isso


não pode se repetir. As palavras de mulheres negras de qualquer que seja a esfera precisam
ser ouvidas enquanto são ditas e não ecoadas postumamente como aconteceu com as
brasileiras Marielle Franco e Dona Ivone Lara nos últimos meses.
Ser mulher negra em uma sociedade repleta racismo, machismo e misoginia
escancarados e/ou velados é existir por meio da resistência. Histórias nunca contadas e
demandas negligenciadas fazem parte do cotidiano.
O Instituto Geledés traz o posicionamento de diferentes contribuintes sobre o
assunto, contudo, existe um consenso sobre o tema. O artigo publicado por Conceição
(2018) aborda de maneira direta o modo como a falta de representatividade, tempo e espaço
para reflexão acerca da realidade da mulher negra afeta o coletivo.
Só teremos uma saída viável quando nos organizarmos de maneira coletiva, política
e sistemática: temos que pensar e refletir sobre o lugar histórico e cultural que nos
colocaram enquanto mulheres negras, e qual o impacto desse lugar para nossa
organização econômica e, portanto, nossas possibilidades de existência e também
de resistência. Temos que ter espaço, tempo e condições de refletirmos sobre nossa
existência e realidade, a partir de nossas vivências e experiências ao longo de
nossas vidas, dentro e fora dos círculos de poder como a política e a universidade
(CONCEIÇÃO, 2018).
A reivindicação primordial de Conceição pauta sobre a necessidade de se levantar um
debate sobre a realidade com mulheres “comuns”. Trabalhadoras, mães, jovens, idosas...
Mulheres que estão fora de ambientes politizados, como as universidades, e que são
substancialmente afetadas pelos efeitos do racismo e machismo cotidianos. Mulheres que
vivem e não falam sobre por falta tempo, espaço e pela inexistência de quem as ouça.

Considerações Finais
Existe um abismo entre as contestações feitas sobre as mulheres negras no âmbito
político e acadêmico e o que elas vivenciam. Esses debates elitistas não chegam às mulheres
que precisam dele, por consequência, são levadas a se conformar com a realidade sem sequer
saber da possibilidade de uma existência diferente.
Por fim, nota-se que o ativismo político de uma organização não governamental
reflete em diferentes setores sociais. O coletivismo é essencial para o alcance da qualidade
de vida da mulher negra e enquanto não se cria mecanismos eficazes para mudar a realidade
dessas mulheres os civis devem se unir para atender às demandas negligenciadas pelo
Estado.
O posicionamento de Cabral e Maluf a respeito da gestação das mulheres negras
mostra o descaso do funcionalismo público para com quem está à margem da sociedade. Em

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1312 1321


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suma, pode-se dizer que, se nem parlamentares, que deveriam propor estratégias para a
devida equidade de acesso a serviços públicos, elaboram políticas que efetivamente
transformem a realidade, quem não tem possibilidade de ser ouvido como civil é cada vez
mais preterido.
A falta de oportunidade para as mulheres negras debaterem a própria realidade
também é prejudicial ao seu desenvolvimento das mesmas. As mulheres que as representam
nos programas televisivos, como filmes e novelas, perpetuam estereótipos e muitas vezes as
levam a acreditar que apesar do machismo e racismo, não existe preconceitos institucionais
que limite suas expectativas.
O portal Geledés abre espaço para intermediar essa discussão entre mulheres comuns
e órgãos governamentais nacionais e internacionais. O fato de impulsionar a acessibilidade a
pesquisas e dar voz a quem não é ouvido pelo Estado já aumenta a representatividade de
quem precisa disso para melhores condições de vida. Trazer esses debates para quem não
tem acesso ao meio político e acadêmico é a melhor forma de reconhecer às demandas de
mulheres negras e assim tentar atendê-las.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro,
2011.

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https://www.geledes.org.br/empoderamento-serve-para-quem/> Acesso em: 22 de Maio de
2018.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime
da Economia Patriarcal. 2° tomo. Ed. 10. Brasília: Ed. Da UNB, 1961.

FRASER, Nancy. From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a ‘postsocialist’


age. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.) The new social theory reader. Londres: Routledge,
p. 285-293, 2001.

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<https://www.geledes.org.br/geledes-e-os-premios-diplomas-e-mencoes/> Acesso em: 16 de
Maio de 2018.

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GONÇALVES, Juliana. Instituto da Mulher Negra atua pela valorização das mulheres e
cultura afrobrasileiras, e luta por seus direitos. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/geledes-30-anos-de-amor-e-luta-pelos-direitos-das-mulheres-
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HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Ed. 4. Rev. Brasília: ED. Da UNB, 1963.
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PRIORE, Mary Del. A mulher na História do Brasil: Raízes Históricas do Machismo


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em: 16 de Maio de 2018.

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history. New York, Columbia University Press, 1989.

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O lugar da mulher negra no mercado de trabalho

Nathaly Cristina Fernandes1


Carolina dos Santos Jesuino da Natividade 2

Resumo: De modo geral objetivou-se articular sobre o lugar da mulher negra no


mercado de trabalho. E especificadamente: discutir de forma interseccional a situação de
mulheres negras no ambiente de trabalho e discutir sobre os cargos mais ocupados por
mulheres negras. Quanto a metodologia, tratou-se de uma pesquisa bibliográfica e qualitativa,
sobre a interseccionalidade gênero-raça e mercado de trabalho. Foram utilizadas indexados
nas bases de dados Scielo (Scientific Electronic Library Online), Pepsic (Periódicos
Eletrônicos de Psicologia), BVS (Biblioteca Virtual em Saúde) e livros sobre a temática.
Concluímos que o lugar da mulher negra no mercado de trabalho é em sua maioria cargos
com baixos salários, de pouco prestígio, dificuldades na ascensão a posições superiores, essas
dificuldades existem na entrada do mercado de trabalho e também na manutenção de seu
emprego. Essas desigualdades existentes no mercado de trabalho precisam ser refletidas de
forma interseccional, ou seja, levando em consideração a articulação entre gênero e raça. Pois
as mulheres negras fazem parte de um grupo historicamente vulnerável, cheio de
atravessamentos, demandas e necessidades específicas. É necessário avanços no
recrutamento, seleção, demissão, quanto às desigualdades de tratamento, para quebrar a
barreira da invisibilidade da mulher negra no mercado de trabalho. No âmbito acadêmico e
profissional esse trabalho possibilita aprofundar o conhecimento sobre a realidade de
mulheres negras no mercado de trabalho. Provoca discussão e articulação a um tema que é
muito relevante. Esse estudo demonstra relevância social, pois oportuniza reflexão e
visibilidade às necessidades dessa população sobre o tema, permitindo que percebamos quais
os cargos mais ocupados por mulheres negras no mercado de trabalho.
Palavras-chaves: gênero; raça; interseccionalidade.

1
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN, discente em Psicologia; nathalycrfernandes@gmail.com.
2
Faculdade de Jandaia do Sul – FAFIJAN, orientadora desse trabalho; doutoranda pela Universidade Estadual de
Maringá – UEM, Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, graduada em
Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; carolina.s.j.natividade@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1323 1323


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Introdução.
O interesse por esse estudo surgiu frente a questionamentos com relação ao lugar
ocupado pela mulher negra no mercado de trabalho. Problematizou-se o assunto levantando
algumas questões: a) Qual é a situação de mulheres negras no ambiente de trabalho? b) Quais
os cargos mais ocupados por mulheres negras?.

De modo geral objetivou-se articular sobre o lugar da mulher negra no mercado de


trabalho. E especificadamente: discutir de forma interseccional a situação de mulheres negras
no ambiente de trabalho e refletir sobre os cargos mais ocupados por mulheres negras.

No âmbito acadêmico e profissional esse trabalho possibilita aprofundar o


conhecimento sobre a realidade de mulheres negras no mercado de trabalho. Provoca
discussão e articulação a um tema que é muito relevante na sociedade.

Esse estudo demonstra relevância social, pois oportuniza reflexão e visibilidade às


necessidades dessa população sobre o tema, permitindo que percebamos quais os cargos mais
ocupados por mulheres negras no mercado de trabalho.

Desenvolvimento.
Mulheres sofrem inúmeras dificuldades na entrada no mercado de trabalho, tendo
conforme Santos et al. (2017 p. s/p ) maiores risco de desemprego, segregação ocupacional e
discriminação nos rendimentos. As taxas de desemprego de mulheres crescem mais e
permanecem mais elevadas do que as dos homens, além do tempo de procura de trabalho, ser
maior para as mulheres. A segregação ocupacional refere-se ao papel das mulheres estarem
relacionados a papéis tradicionais, responsáveis pelos cuidados domésticos.
Essa disparidade existente no mercado de trabalho é descrita:
Como uma divisão sexual do trabalho, que é uma das formas de exploração do
capital, hierarquizando assim homens e mulheres, dessa maneira, a mulher fica na
hierarquia do capital abaixo do homem, e isso é algo construído historicamente e
que tem origem em um patriarcalismo das sociedades, fazendo com as mulheres
trabalhem em locais precarizados e sejam desvalorizadas (CISNE 2015 apud
SANTOS et al. 2017 p. s/p )

De acordo com Santos et al. (2017 p. s/p) quando falamos da participação da


população negra no mercado de trabalho, podemos compreender o retrato das desigualdades
raciais existentes na sociedade brasileira, representadas pela pirâmide social, onde a maioria
dos negros encontra-se na base. E essa base é composta majoritariamente por mulheres
negras.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1323 1324


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Precisamos contextualizar a mulher na história do trabalho:


Na idade média o papel social da mulher era direcionado ao lar, direcionado na
constituição de uma família, a mulher estava sujeita aos mandos do seu marido que
se considerava seu dono. Percebe-se nessa relação que a mulher é tida como objeto,
tanto mulheres negras como as brancas a diferença é que as mulheres brancas eram
destinadas ao matrimônio e as mulheres negras eram utilizadas como amas de leite,
para satisfação sexual, e realizavam os trabalhos domésticos, revelando a exploração
e opressão do corpo e mente dessas mulheres. (SANTOS et al. 2017 p. s/p )

A posição da mulher negra em trabalhos de menor prestígio é evidente, essa


desigualdade foi construída historicamente, essa constituição as colocou em um ciclo de
marginalização e discriminação social:
A divisão racial do trabalho consiste em manter a exploração dessa força negra
dentro do mecanismo de uma massa marginal, fazendo desse recurso um critério
para uma seleção de padrão excludente sobre os negros que acabam por serem
marginalizados em um sistema de estratificação social. (SANTOS; CANUTO 2017
s/p)

Mulheres negras são alvos de duplo preconceito, que são reproduzidos e


consolidados por uma sociedade, patriarcal, machista e racista.
Para continuarmos falando sobre o lugar da mulher negra no mercado de trabalho,
precisamos compreender como se deu a construção histórica do papel da mulher negra na
sociedade. Para isso falaremos da escravidão:
A população negra sempre foi deixada a margem na sociedade brasileira.
Primeiramente no sistema escravista, onde foram tirados de suas terras para serem
escravizados, justificado muitas vezes pela classe dominante como um favor, pois
estavam “tirando-os da ignorância em que viviam” através principalmente da
conversão ao cristianismo. (SANTOS; CANUTO 2017 s/p)

A escravidão não era questionada pois tinha como sustento a religião, que
disseminava a ideia de conformismo, como se o lugar do negro fosse o de inferioridade,
umainferioridade imposta e legitimada através da escravidão. O fim da escravidão, não foi
sinônimo de liberdade, pois essa população continuou (e continua) a margem da sociedade, a
igualdade social ainda não aconteceu, continuamos excluíndo e inferiorizando.
“As mulheres negras, desde a escravidão, vivenciam o trabalho de modo peculiar.
Enquanto escravas trabalhavam desde a lavoura até a “Casa Grande” executando atividades
domésticas e/ou utilizadas como instrumento de prazer sexual.” (ASSIS 2009 p. 5) As
mulheres afro-brasileiras são estereotipadas como exóticas ou promíscuas e estão associadas,
em todo o mundo, como fortes, capazes de suportar tudo, sexualizadas, enfim, quando
falamos em mulher negra e mercado de trabalho as associamos com determinadas profissões.
Isso acontece devido à chegada da mulher negra no país enquanto escrava, consequentemente
sua imagem foi sendo construída com base nisso, sendo duplamente rejeitada.

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As mulheres negras são a parcela mais pobre da sociedade brasileira, vimos que isso
é resultado de todo um processo histórico de exploração e opressão, por serem a parcela mais
pobre da sociedade, se inserem no mercado de trabalho muito cedo, se submetendo muitas
vezes a humilhações, baixos salários, informalidade, posições menos qualificadas, dentre
outros.
O preconceito na sociedade brasileira assume diversas formas, uma das mais
evidentes é referente ao mercado de trabalho. O racismo dentro da esfera do trabalho
é constatado por meio de estudos comparativos, desde o rendimento mensal até
características como: tipos de trabalho; ter carteira assinada ou não; permanência no
mercado de trabalho. (SOARES, 2000 apud BOTHREL-ECEHEVERRIA, 2015 p.
75)

A maior parte das mulheres negras ocupa cargos inferiores e/ou desvalorizados, com
baixos salários, devido a pouca qualificação profissional, por falta de oportunidades, têm
maior dificuldade de completar a escolarização, além de possuir chances mínimas de chegar a
cargos de direção e chefia, que refletem a baixa qualidade de vida social. Quando uma mulher
negra consegue chegar a um cargo de prestígio levanta-se muitas vezes a ideia de
meritocracia, como se tudo dependesse de esforço e mérito, precisamos discutir também, o
fato que mulheres negras precisam provar com freqüência sua capacidade intelectual para
ocupar determinados cargos.
Esses marcadores sociais são representados no 3° modulo do livro Políticas Públicas
e Raça onde encontramos o perfil da mulher negra no mercado de trabalho: As
mulheres que começam a se movimentar para ocupação de nível superior são
predominantemente brancas, enquanto que há uma forte concentração de mulheres
pretas e pardas no serviço doméstico. As mulheres provenientes das classes mais
pobres (majoritariamente negra) se dirigem para a prestação de serviços e para
empregos ligados à produção na indústria, enquanto que as mulheres de classe
média se dirigem para o serviço de produção e de consumo coletivo (setor terciário)
devido aos seus melhores níveis educacionais. (PPR, p.165-166 apud SANTOS et
al. 2017 p. s/p)

A ideia de meritocracia encontra-se embutida na lógica social, quando fazemos esse


recorte hierárquico de raça, observamos a evidência nos definidos lugares e papéis sociais.
Tudo é questão de mérito? Todos são capazes, e tem as mesmas condições de “vencer na
vida”? Ou existem diferentes oportunidades entre os indivíduos?.
O preconceito racial no mercado de trabalho constitui um problema muito sério, pois
acaba fechando portas para grandes talentos, não dando muitas vezes oportunidades para a
população negra ocupar determinados espaços. Podemos perceber um perfil para
determinados cargos, mas por que essa segregação continua acontecendo? Pra um melhor
entendimento, precisamos lembrar que as mulheres negras no Brasil estiveram:
Desde o pós-abolição, ocupadas predominantemente em atividades ligadas à esfera
reprodutiva, como no trabalho doméstico, ou em ocupações informais. Embora
tenha existido entre os anos 1920 e 1940 um apelo do discurso dominante pela

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“volta ao lar”, numa tentativa de “construção da domesticidade feminina como parte


do processo de domesticação da classe trabalhadora”, esse retorno foi restrito a
frações de grupos familiares que tiveram condições mínimas de subsistência para
poder prescindir do trabalho assalariado da mulher. (ABRAMO 2010 apud VIEIRA,
2017 p. 3-4)

O preconceito, o estereótipo, o pensamento popular em que, mulheres negras só


servem para trabalhar como domésticas ou exibindo seus corpos, como objetos sexuais, isso
vem de uma anscestralidade que foi violentada sexualmente, é resquício/herança do período
escravocrata, que permanecem vivas no imaginário social.
Mulheres negras ainda se deparam com inúmeras barreiras sociais pelo reflexo das
desigualdades sociais e raciais. Onde podemos perceber que as:
Formas de marginalização social da população negra perpassam diversos caminhos.
Sua inserção prematura no mercado de trabalho, também, se constitui como uma
forma de determinar seu lugar social, como trabalhadores domésticos, ambulantes,
entre outras atividades sejam formal ou informal. É comum encontrar na população
trabalhadora negra, a falta de qualificação profissional influenciada pelas
dificuldades que esse grupo social enfrenta no processo de escolarização no Brasil.
Além desses aspectos que reflete a condição étnico-racial, tal situação é ainda mais
agravada pelas relações de gênero, nas quais os homens possuem vantagens sobre as
mulheres, sobretudo em se tratando da condição de renda. (BOTHREL-
ECEHEVERRIA et al. 2015 p. 77)

A marginalização social enfrentada pela população negra é decorrente de um


processo histórico onde as oportunidades entre os indivíduos, são desiguais. No caso da
mulher negra vemos que as questões de gênero e raça são muito significativas na vida dessas
mulheres, pois interferem em diversas situações de suas vidas, o que dificulta no
desenvolvimento dessa população, aumentando as desigualdades já existentes, através de
comportamentos machistas e racistas.
Segundo Carneiro (2003, p. 122 apud BOTHREL-ECEHEVERRIA, 2015 p. 78)
homens entram mais cedo do que as mulheres no mercado de trabalho, o que
consequentemente trás prejuízos para a sua permanência no sistema educacional, contudo,
estudos recentes sobre a mulher no mercado de trabalho revelam que elas precisam de uma
vantagem de cinco anos de escolaridade para alcançar a mesma probabilidade que os homens
têm de obter um emprego no setor formal.
O fato de 48% das mulheres pretas [...] estarem no serviço doméstico é sinal de que
a expansão do mercado de trabalho para essas mulheres não significou ganhos
significativos. E quando esta barreira social é rompida, ou seja, quando as mulheres
negras conseguem investir em educação numa tentativa de mobilidade social, elas se
dirigem para empregos com menores rendimentos e menos reconhecidos no
mercado de trabalho. (LIMA, 1995 p. 23 apud GUIMARÃES et al. 2016, p. 185)

Dificilmente mulheres negras conseguem ocupar cargos de grande prestígio dentro


das empresas, basta observarmos quantas mulheres negras são advogadas, médicas,

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engenheiras, dentistas, atrizes, modelos e quantas zeladoras, faxineiras, cozinheiras são negras
e assim por diante, no mercado de trabalho em geral existe uma diferença muito grande sobre
esses papéis ocupados.
Como citado anteriormente, a escolaridade é outro fator agravante da situação da
população negra no mercado de trabalho. Segundo Gonzalez (2008 apud SANTOS;
CANUTO 2017 s/p):
A falta de escolarização dos negros é um mecanismo de desigualdade, aponta que a
população negra esta condicionada a uma pequena chance de chegar às
universidades, resultando na conclusão que a situação das famílias negras no Brasil
não condiz com a realidade da família dos brancos pobres, que perante a pobreza
ainda podem contar com os privilégios que sua cor de pele oferece.

Macedo (2016 p. 8) fala da necessidade de falar da dupla invisibilização sofrida pela


mulher negra, por ser mulher e negra, carrega um histórico segregante, dessa forma não é
possível universalizar demandas de mulheres, generalizando e desconsiderando as
especificidades que cada marcador social trás, é preciso um olhar mais profundo e sensível
sobre o tema, um olhar interseccional. Ser mulher e negra são vivências inseparáveis, por isso
pautar apenas o debate de gênero não é abrangente, fazendo-se essencial os recortes de raça e
gênero.
Mulheres negras além de serem vítimas da dominação masculina, sofrem também
com o racismo, por isso se faz necessário uma discussão pautada nesse recorte social, nessa
articulação entre gênero e raça.
No Brasil, até pouco tempo, as empregadas domésticas eram herdeiras do regime
escravocrata,vivendo uma espécie de escravidão modernizada. As antigas amas de
leite e mucamas hoje são cozinheiras, governantas, lavadeiras, babás. E quando o
corpo é negro, os indicadores retratam a agressividade do racismo: as mulheres
negras são a maioria na categoria, têm os piores salários, as condições de trabalho
mais precárias e predominam como chefe de família. (GUIMARÃES et al, 2016 p.
181)

Existem variáveis que interagem produzindo a diferentes sujeitos, diferentes lugares


de ocupação, resultando em oportunidades desiguais para esses indivíduos, as variáveis aqui
estudadas foram gênero e raça, articulando com o mercado de trabalho. O mercado de
trabalho é considerado para Silva et al (2013 p. 55) um ambiente privilegiado de análise de
desigualdades, no que se refere ao acesso e condição de ingresso no mercado de trabalho,
destaca como fator fundamental os efeitos discriminatórios produzidos nesse espaço, como
desigualdades de acesso a determinadas atividades e cargos, mediados por fatores
relacionados à discriminação de gênero e raça.
Para acessar o mercado de trabalho formal de acordo com Santos; Diogo; Shucman
(2014 p. 25) é preciso passar por uma série de requisitos, o sujeito assumiria determinado

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cargo por sua capacidade, ou seja, qualificação, nos dias atuais, nas competências do sujeito
contratado. Competências essas de difícil definição, algo que surge para atender demandas do
próprio mercado de trabalho. Por exemplo, o quesito “boa aparência”, onde os atributos
estéticos, basicamente eurocêntricos, estão escondidos nesse discurso.
Percebemos que existem determinados atributos, que constituem um determinado
perfil, de quem pode e quem não pode ocupar determinado cargo, isso diminui as
possibilidades de inserção e de alocação das mulheres negras no mercado de trabalho, pois os
quesitos são discriminatórios, o racismo silencioso é muito comum dentro das empresas.
Estudos de Silva; Lima (1992, apud BENTO, 1995 p.482) revelam que em funções
para as quais são exigidos determinados atributos estéticos as mulheres brancas e amarelas
estão representadas mais do que as negras. Mulheres negras apresentam as menores taxas de
participação em ocupações cujos salários são mais elevados e que implicam atividades
consideradas nobres, esses cargos acabam sendo destinadas preferencialmente aos homens
brancos e mesmo quando preenchidas por mulheres, estão reservadas as mulheres brancas e
amarelas. É visível a presença da mulher negra em posições menos qualificadas e recebendo
os mais baixos salários.
Quando o perfil das trabalhadoras domésticas no Brasil é analisado em relação ao
percurso histórico apesar dos avanços, ainda mostram que o critério de sexo e raça são
existentes na composição dessa ocupação. Dados da ONU- Organização das Nações Unidas,
(2016 apud VIEIRA 2017 p. 07) revelaram que em 2014, 14% das mulheres eram
empregadas, mais de 6 em cada 10 eram mulheres negras (65%). Essa situação precária nas
relações de trabalho predomina: 68% sem registro, em sua maioria por trabalhadoras com
baixa escolaridade. Além dessa informalidade existe também o não acesso aos direitos
vinculados ao trabalho, pois recebiam 42% do rendimento médio das trabalhadoras.
A candidata negra excluída são oferecidas justificativas do tipo a vaga já foi
preenchida, encontramos uma candidata mais adequada as exigências deste trabalho
etc etc. Dessa forma ela fica impossibilitada de ter explicitado o critério que de fato
a excluiu, a cor. Ela terá ainda que procurar elaborar quase sempre o impacto
emocional que repetidas situações desse tipo podem provocar, não estar
suficientemente adequada para a vaga, reunir as mesmas condições objetivas que a
colega branca porem não conseguir emprego não ter como lutar contra o
desemprego prolongado porque raramente tem elementos concretos para denunciar o
que obstaculiza seu ingresso nas empresas. (BENTO, 1995 p.486)

Vale lembrar que pesquisas apontam que essas mulheres negras recebem menos que
os homens. Um homem negro ganha 40% a mais que uma mulher negra. Se comparando a
uma mulher branca, essa diferença aumenta: uma mulher branca ganha 70% a mais que uma
mulher negra.

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A representação de mulheres negras no cinema, TV, música, dentre outros espaços


de mídia, perpetuam e reforçam os estereótipos da mulher negra enquanto ocupante de cargos
inferiores, com baixa remuneração, de submissão, hipersexualizada e assim por diante.
Idealiza-se um padrão de beleza que é branco, sendo assim, o fator racial é um marcador das
diferenças de tratamento.
Soares (2000 p. 24) chega à conclusão da difícil realidade da população negra no
mercado de trabalho, particularmente das mulheres negras, onde as delimitações específicas
são existentes, quanto ao lugar ocupado por elas, em posições de pouco prestígio, com baixa
remuneração e possibilidades escassas de ascender a cargos superiores. Seu lugar é o
subalterno, o não lugar. Mulheres negras quando alcançam um espaço de poder, são casos
isolados, exceções, e isso precisa ser refletido, para que consigamos superar as desigualdades,
a inferioridade social sofrida por essa população, por meio de ações políticas, como políticas
públicas.

Considerações finais.
Concluímos que o lugar da mulher negra no mercado de trabalho é em sua maioria
cargos com baixos salários, de pouco prestígio, dificuldades na ascensão a posições
superiores, essas dificuldades existem na entrada do mercado de trabalho e também na
manutenção de seu emprego. Existe o acesso restrito a determinados cargos, uma divisão
racial do trabalho, resquício de uma sociedade patriarcal e escravocrata.
A inserção da mulher negra no mercado de trabalho começou muito cedo, enquanto
mulheres brancas lutavam para conquistar espaços no mercado de trabalho, mulheres negras
sempre estiveram ali, resistindo a diversas dificuldades. É importante entender quais são os
obstáculos enfrentados por mulheres negras na inserção no mercado de trabalho, para a
superação dessas desigualdades. Foi possível entender alguns problemas vividos por mulheres
com relação a mercado de trabalho, como a produção e reprodução de desigualdades sociais
no Brasil.
Essas desigualdades existentes no mercado de trabalho precisam ser refletidas de
forma interseccional, ou seja, levando em consideração a articulação entre gênero e raça. Pois
as mulheres negras fazem parte de um grupo historicamente vulnerável, cheio de
atravessamentos, demandas e necessidades específicas, tanto de gênero quanto de raça. É
necessário avanços no recrutamento, seleção e demissão, bem como às desigualdades de
tratamento, para quebrar a barreira da invisibilidade da mulher negra no mercado de trabalho,

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consequentemente melhorando à ascensão e as condições de vida das mulheres negras, bem


como aumentando a visibilidade social para essa população.

Referências.
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Racismo e machismo: os enfrentamentos da mulher negra frente a escassez de


políticas públicas na sociedade capitalista brasileira

Thais Caroline Rodrigues Penas1


Karla Ingrid Pinto Cuellar2

Resumo: O processo de abolição dos negros e negras em situação de escravidão no Brasil


durou cerca de 38 anos (DOMINGUES, 2007) e (RIBEIRO, 2008). Entretanto, após 138 anos
da data de “abolição”, o racismo ainda é muito presente no cotidiano da população negra, se
materializando através das relações sociais e do próprio Estado, caracterizando o racismo
institucional. Essa violência dirigida ao povo negro deu ensejo a origem do movimento negro
no país, que visa relatar situações onde a população negra sofre desagravos por preconceito. O
objetivo geral do presente trabalho é trazer reflexões em torno das dificuldades que as
mulheres negras sofrem diariamente, sobretudo devido ao racismo e a divisão sexual do
trabalho e de acesso ao ensino superior no Brasil. Para isso, discorre brevemente sobre a
política afirmativa de cotas raciais, realizando um recorte de gênero, a fim de debater a
desigualdade racial e de gênero, fazendo uma análise sobre a ausência de políticas públicas na
sociedade capitalista brasileira.. A metodologia utilizada foi de pesquisa bibliográfica e
documental sobre o processo de “abolição” da escravidão, movimento negro, divisão sexual
do trabalho, racismo e as iniciativas reivindicadas pela população negra e aderidas pelo
Estado. Os principais resultados obtidos evidenciam que através da redemocratização do
Estado houve garantias de direitos fundamentais, no entanto se faz necessário superação
efetiva do racismo, patriarcado e capitalismo, que se materializam de forma estrutural na
sociedade, construindo de forma coletiva uma nova ordem societária sem exploração de
gênero, raça e classe.
Palavras-chaves: invisibilidade da mulher negra; genocídio da população negra; racismo
institucional.

1
Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral; graduanda em Serviço Social;
thaiscaroline.rodriguesrd@gmail.com
2
Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral; docente doutora no curso de Serviço Social,
karlacuellaradv@hotmail.com.

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INTRODUÇÃO
O presente artigo, busca trazer reflexões em torno das dificuldades que as mulheres
negras sofrem diariamente, devido à desigualdade de gênero, com a presença muito forte do
machismo e do racismo institucional, no que tange ao mercado de trabalho e acesso a ensino
superior no Brasil, ainda faz breve análise sobre políticas afirmativas para inserção social das
mulheres negras a fim de superar a desigualdade de gênero e questões de preconceito racial,
destacando assim a escassez de políticas públicas na sociedade capitalista brasileira.
Em 1888, promulgou-se a Lei Geral de Libertação dos Escravos conhecida como a
Lei Áurea. Com um texto curto, simples e direto, a lei libertava cerca de 700 mil escravos,
num país com então 15 milhões de habitantes. Esse acontecimento não foi planejado,
tampouco foram criados dispositivos que amparassem a população negra, simplesmente
aboliram a escravidão, não viabilizando nenhum subsídio para autonomia dessas(es) mulheres
e homens, os deixando a mercê da própria sorte. Tendo em vista esses acontecimentos,
mulheres e homens negras(os) sem preparo ou condições de mínima subsistência passaram a
sofrer ainda mais opressões, na qual foi e ainda é sustentada pelo capitalismo patriarcal, que
adotou como estratégia para o desenvolvimento capitalista uma indústria seletiva, incentivando a
empregabilidade de trabalhadores(as) brancos(as), vindo da Europa, resultando no
“aprofundamento da divisão racial do território, num momento crucial para se construir um
projeto de Nação”. (HASENBALG, SILVA, 1992, p. 55), violando seus direitos de acesso à
educação, habitação e renda, fato este que obrigou tais pessoas a viverem em locais
insalubres, periféricos e marginalizados já que não possuíam saneamento básico, estando
apartados a viverem nas encostas dos morros e rios.
A constituição promulgada em 1988 foi o grande marco da redemocratização no
Brasil após um longo período de ditadura. O intuito principal do texto constitucional era
garantir, em linhas gerais, direitos sociais, econômicos, políticos e culturais que estavam
suspensos no período anterior, e que posteriormente seriam regulamentados por leis
específicas. Assim a partir de 1988, com a redemocratização do Estado e através da
articulação do movimento negro que antecede a promulgação da Carta Magna supracitada,
foram criados alguns dispositivos que promovem a valorização da história da cultura afro-
brasileira, dentre estes temos a Lei nº. 10.639 de 2003 que dispõe sobre a inserção no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira”, temos ainda a Lei nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, que reserva aos negros 20%
(vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos
efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das

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fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas
pela União, conhecida popularmente como a lei de cotas.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada denominado
Dossiê Mulheres Negras, retrata as condições de vida das mulheres negras no Brasil “embora
as mulheres apresentem um melhor desempenho educacional, elas ainda enfrentam desafios
no que diz respeito aos retornos esperados pelo investimento educacional” (MARCONDES,
M., PINHEIRO, L., QUEIRÓZ C., QUERINO A. C., VALVERDE D., Brasília, 2013). Foi
somente a partir do ano de 2001 como relata Domingues (2007), após a III Conferência
Mundial contra o Racismo e a Xenofobia, aprovou-se um plano de ação visando a equidade
de direitos dos negros, promovendo maior inserção das mulheres negras no ensino,
influenciado por movimentos sociais que incluíram na agenda pública a discussão de temas
como a discriminação e desigualdades enfrentadas pela população negra. Em conjunto com
esses progressos socais algumas políticas públicas sugiram posteriormente para inserção da
população negra e de baixa renda no ensino superior. Após as ações afirmativas supracitadas,
em conjunto a promulgação da Lei de Cotas para o Ensino Superior 12.711, observa-se no
Brasil um avanço no que diz respeito à inserção das mulheres negras no ensino superior,
ocupando cada vez mais as vagas que são destinadas como forma de direito a essa população,
que durante muito tempo foi escravizada e excluída social e economicamente. Entretanto, isso
não se demonstra suficiente no combate ao racismo e machismo que essas mulheres sofrem
em seu cotidiano nessa sociedade capitalista racista e patriarcal.
O racismo se manifesta das mais diversas formas no Brasil: está na falta de
representatividade de homens e mulheres negras nos espaços públicos, nos guetos de exclusão
e pobreza, mas também no imenso número de assassinatos que ocorrem todos os anos.
O Mapa da Violência mostra que enquanto o homicídio de mulheres negras
experimentou um crescimento de 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o homicídio
de mulheres brancas caiu 9,8%. Não bastasse a violência contra si, a mulher negra também
experimenta com maior intensidade a violência contra seus filhos, irmãos e companheiros. De
acordo com o Mapa da Violência de 2012, dos cerca de 30 mil jovens entre 15 e 29 anos
assassinados por ano no Brasil, 93% são homens e 77% são negros.
É necessário que a sociedade reconheça o problema que é o racismo, somente com
políticas de Estado; criando e gerindo as políticas públicas de modo eficiente é que podemos
reconhecer meios de enfrentar dito preconceito. Também precisamos reconhecer que sem as
mulheres negras e sua participação ativa não teremos o pleno exercício de nossos direitos. Ser
mulher negra é enfrentar a dor, o racismo, machismo e a violência de gênero como luta

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cotidiana, superar obstáculos de segregação e preconceito, resistir e continuar sua luta


seguindo adiante.
As mulheres negras e periféricas fazem parte de estatísticas alarmantes no Brasil: de
cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras, segundo o Atlas da Violência 2017. Os negros
possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras
raças. E, em um recorte de gênero, a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e
indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, enquanto entre as mulheres negras o índice subiu
22%.

O racismo é político, no sentido de que se tornou inerente às estruturas do nosso


aparato político, do Estado. É o racismo que facilita e justifica batermos o recorde de
encarceramento de 727 mil pessoas, sendo 60% negras e dessas, 40% presas de
forma preventiva, que ainda aguardam julgamento. É o racismo que naturaliza o fato
de 75% das pessoas mais pobres do país serem negras. É o racismo que dá ao negro
cinco vezes mais chance de ser analfabeto que a um branco. É o racismo que
negligencia no sistema público de saúde a vida de mulheres negras - elas são 66%
das vítimas de violência obstétrica e tem 2,5 mais chances de morrer em um aborto
em relação às brancas. É o racismo que leva pretos e pardos a receberem quase a
metade do rendimento médio de pessoas brancas, ainda que tenham a mesma
qualificação profissional.
O racismo ainda está muito arraigado e naturalizado. O Estado não dá a devida
importância em criar políticas públicas efetivas e consistentes que tirem a população
negra dessa situação de vulnerabilidade, herança da escravidão e sem fim à vista.
Um Estado altamente punitivo e que abusa do aparato da mídia, das leis e das
estruturas sociais erguidas sobre o racismo.
Se faz desde já necessário uma transformação fundamental de um sistema que preza
e se beneficia do sofrimento negro. Isso exige o fim do encarceramento em massa e
da criminalização da população negra. A garantia de necessidades humanas básicas,
como habitação e uma educação de qualidade. O direito de viver e caminhar
livremente, sem ser caçado pelo Estado. Isso não é discutível. Não há duas maneiras
de ver a situação. É uma verdade básica e fundamental. (MARTINS, Helaine.
Racismo Presente, 2018)

É preciso que a sociedade tenha consciência da necessidade de se cumprir com um


dos pilares da nossa Carta Magna, a dignidade de mulheres e homens, e para isso o combate
efetivo ao racismo se faz necessário. A metodologia utilizada para construção desse artigo foi
de pesquisa bibliográfica e documental sobre o processo de “abolição” da escravidão,
movimento negro, divisão sexual do trabalho, racismo e as iniciativas reivindicadas pela
população negra e aderidas pelo Estado.

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL OU A CONTÍNUA EXPLORAÇÃO


DOS CORPOS NEGROS
No Brasil segundo, Domingues (2007) e Ribeiro (2008), o processo de abolição dos
negros em situação de escravidão durou cerca de 38 anos. Em 1850, foi proibido o tráfico

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transatlântico de escravos africanos, posteriormente, em 1871, conferiu-se a liberdade aos


filhos nascidos de mães em condição de escravas, na Lei do ventre Livre, essa também
conhecida como “Lei Rio Branco” foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro
de 1871. Esta lei considerava livre todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir
da data da lei, como seus pais continuariam naquela situação de escravidão, a lei estabelecia
duas possibilidades para as crianças que nasciam livres: poderiam ficar aos cuidados dos
senhores até os 21 anos de idade ou poderiam ser entregues ao governo. O primeiro caso foi o
mais comum e beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão de obra destes “livres” até
os 21 anos de idade. A Lei do Ventre Livre tinha por objetivo principal possibilitar a
transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão de obra livre.
Em meados de 1885 os escravos idosos deixaram de ser escravos, com a
promulgação da Lei Saraiva Cotegipe também conhecida como a Lei dos Sexagenários, que
previa liberdade aos sujeitos escravizados que tivessem mais de sessenta anos de idade e
estabelecia também normas para libertação gradual dos cativos, mediante indenização. O
objetivo, contudo, era conter os abolicionistas mais radicais. Mesmo assim a lei não atinge sua
principal proposta e o movimento abolicionista ganha cada vez mais força no final do século
XIX.
Logo em 1888, promulgou-se a lei geral de “libertação dos escravos” conhecidos
como a Lei Áurea, com um texto curto, simples e direto, a lei libertava cerca de 700 mil
escravos, num país com então 15 milhões de habitantes.
No entanto, a lei não promoveu participação política dessa população e o Estado
através de leis reforçou a exclusão social dos negros e negras que “agora gozavam de sua
liberdade”.
Como esquecer que a República, logo após a abolição, cassou do ex-escravo seu
direito de votar, inscrevendo na Constituição que só aos alfabetizados se concedia a
prerrogativa desse direito cívico? Como esquecer que, após nosso banimento do
trabalho livre e assalariado, o Código Penal de 1890 veio definir o delito de
vadiagem para aqueles que não tinham trabalho, como mais uma forma de manter o
negro à mercê do arbítrio e da violência policial? Ainda mais, definiram como crime
a capoeira, a própria expressão cultural africana. Reprimiram com toda a violência
do Estado policial as religiões afro-brasileiras, [...]. Temos vivido num estado de
terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais ignorado desse país.
(NASCIMENTO, Abdias, 1988).

Desse modo fica evidente que a monarquia brasileira não planejou este
acontecimento, tampouco proveu/criou dispositivo que amparassem a população negra,
simplesmente aboliram a escravidão, não viabilizando nenhum subsídio para autonomia
dessas(es) mulheres e homens, as deixando a mercê da própria sorte. Sendo assim, o termo
mais correto a ser adotado seria liberação das(os) escravizadas(os).

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Aos negros e negras, mesmo com a proclamação da República e o início de um novo


modo de produção no país, passando de mão de obra escravizada para assalariada, não
assegurou direitos fundamentais e nem promoveu a inclusão dos mesmos no mercado de
trabalho, mas reforçou o racismo através da política de branqueamento.

Um ano após a abolição da escravatura, foi proclamada a República no Brasil, em


1889. O novo sistema político, entretanto, não assegurou profícuos ganhos materiais
ou simbólicos para a população negra. Ao contrário, esta, foi marginalizada, seja
politicamente em decorrência das limitações da República no que se refere ao
sufrágio e as outras formas de participação política; seja social e psicologicamente,
em face das doutrinas do racismo científico e da “teoria do branqueamento”; seja
ainda economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos
imigrantes europeus. (DOMINGUES, Petrônio,2007, p.102)

A TRIPLA SEGREGAÇÃO DA MULHER NEGRA


Tendo em vista esses acontecimentos, mulheres e homens negras(os) sem preparo
passou a sofrer ainda mais opressões, na qual foi e ainda é sustentada pelo capitalismo
patriarcal, que adotou como estratégia para o desenvolvimento capitalista uma indústria seletiva,
incentivando a empregabilidade de trabalhadores(as) brancos(as), vindo da Europa, resultando no
“aprofundamento da divisão racial do território, num momento crucial para se construir um
projeto de Nação”. (HASENBALG, SILVA, 1992, p. 55).
Potencializou-se assim a diferença entre duas agremiações: mulheres e homens
brancas(os), inseridos em sua maioria no mercado de trabalho e as mulheres e homens
negras(os), à margem da sociedade, tendo a violação de acesso à educação, habitação e renda,
fato este que obrigou tais pessoas a viverem em locais insalubres, periféricos e marginalizados
já que não possuíam saneamento básico, estando apartados a viverem nas encostas dos morros
e rios, espaços totalmente insalubres, como afirma Lélia Gonzales, fazendo uma correlação
com a conjuntura brasileira atual,

O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas,


situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas
por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato,
capangas, etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do
sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o
lugar natural no negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços,
porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos
dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério tem sito simetricamente o
mesmo: a divisão racial do espaço. (GONZALEZ, Lélia,1982, p. 15).

Mesmo após 138 anos, da liberação das escravizadas, poucos foram os espaços que
as mulheres negras conseguiram ocupar. Para compreensão e ampliação desse debate, faz-se

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necessário fazermos um recorte de gênero, raça e classe, considerando a divisão sexual do


trabalho, patriarcado e racismo, que através dessas diferenças, o capitalismo exerce sua
opressão contra essas mulheres.

(...) a ideologia do patriarcado se configurou, de forma a propiciar poderes aos


homens e atribuir-lhes as responsabilidades em todas as subestruturas sociais e
culturais. Desse processo resultaram as relações com base nas desigualdades a partir
das diferenças. (GODINHO, Tereza, 2006, p. 2)

Essas desigualdades, citada por Godinho, é fruto de uma construção histórica para
legitimação do patriarcado, que é discutida por Saffioti, com a naturalização da desigualdade
de gênero, através dos processos socioculturais, que legitimou o patriarcado, considerando o
trabalho desenvolvido pelas mulheres inferior, mesmo que elas viessem desempenhar a
mesma função de um homem e ao reconhecer como natural essa desigualdade de gênero e
divisão sexual do trabalho, torna-se comum que ‘’...a mulher se ocupe do espaço doméstico,
deixando livre para o homem espaço público’’(SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani, 1987, p.
11)
No entanto, enquanto a mulher branca de classe trabalhadora precisa lutar contra a
desigualdade de gênero e classe, para ter sua inserção social, a mulher negra é triplamente
segregada, pois,
Podemos dizer que a mulher enfrenta a barreira de classe e de gênero, e a mulher
negra enfrenta um problema a mais: a raça, como os dados estatísticos demonstram,
uma vez que a desigualdade por cor não pode ser reduzida à desigualdade de gênero
e classe. Ou seja, a mulher negra sofre discriminação tripla: como mulher, como
negra e como pobre, considerando-se que a pobreza é negra e atinge principalmente
a mulher negra. (GARCIA, Antonia dos Santos, 2012, p. 156)

Conforme mais marcadores sociais uma mulher negra carrega – como os relativos a
classe e/ou orientação sexual – esta estará mais vulnerável a sofrer opressão e violência, assim
como ser restrita ao acesso a seus direitos.

PROMOÇÃO DE ACESSO SEM SUBSÍDIO DE PERMANÊNCIA


Com a redemocratização do Estado em 1988 e através da articulação do movimento
negro, que antecede a promulgação da Carta Magna supracitada, foram criados alguns
dispositivos que promovem a valorização da história da cultura afro-brasileira, dentre estes
temos a Lei nº. 10.639 de 2003 que dispõe sobre a inserção no currículo oficial da Rede de
Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, temos ainda a Lei
nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, que reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no

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âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas
públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, conhecida popularmente
como a lei de cotas.
Com base nas leis e em consonância com a pesquisa realizada pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada em seu documento denominado Dossiê Mulheres Negras, nos
diz que.
Embora as mulheres apresentem um melhor desempenho educacional (média de
anos de estudos mais elevada, maiores taxas de escolarização em todos os níveis de
ensino e uma maior proporção de pessoas com nível superior concluído), elas ainda
enfrentam desafios no que diz respeito aos retornos esperados pelo investimento
educacional: seus rendimentos são inferiores aos dos homens, sua participação nos
postos de comando e na condição de proprietárias-empregadoras ainda é restrita.
Estas desigualdades também estão relacionadas à condição de gênero, como a média
de horas trabalhadas das mulheres ser inferior à dos homens, dada a necessidade de
dupla jornada, além de estarem concentradas nos setores de atividade com salários
mais baixos, como saúde e educação. (MARCONDES, Mariana, PINHEIRO,
Luana, QUEIRÓZ Cristina, QUERINO Ana Carolina, VALVERDE Danielle, 2013,
p. 54).

Foi somente a partir do ano de 2001 como relata Domingues (2007), após a III
Conferência Mundial contra o Racismo e a Xenofobia, aprovou-se um plano de ação visando
a equidade de direitos de negros(as), promovendo maior inserção das mulheres negras no
ensino, influenciado por movimentos sociais que incluíram na agenda pública a discussão de
temas como a discriminação e desigualdades enfrentadas pela população negra. Após as ações
afirmativas supracitadas, em conjunto a promulgação da Lei de Cotas para o Ensino Superior
12.711, que determina nas universidades federais

50% de suas matrículas para estudantes autodeclarados pretos, pardos, indígenas –


conforme definições usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE-, de baixa renda, com rendimentos igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per
capita, e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. O
número de cotas para pretos, pardos e indígenas é estipulado conforme a proporção
dessa população em cada estado, segundo último Censo do IBGE, em 2010”.
(CARVALHO, Igor, 2014, s/p)

Em conjunto com esses progressos socais algumas políticas públicas de ações


afirmativas sugiram posteriormente, tal como o Programa Universidade para Todos – ProUni,
que consiste na oferta de bolsas de estudos em instituições de ensino superior particular e
parte das vagas reservadas são destinadas a população negra e o Sistema de Seleção Unificada
– Sisu, que atua na oferta de vagas em instituições de ensino superior público, sendo uma
parcela das vagas destinadas a inserção de negras e negros na universidade.
Mas mesmo com todo o aparato legal de políticas públicas de inclusão da população
negra, as estatísticas fornecidas pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos

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Socioeconômicos (DIEESE,2016) em 2015, aponta que nas regiões metropolitanas e Brasília,


a taxa de desemprego de mulheres negras superava a de homens negros e do restante da
população branca. A taxa de desemprego das mulheres negras chegou a 20,7% em Salvador,
seguido de mulheres brancas que foi de 17,4%, homens negros de 17,3% e homens brancos
com a taxa de 13,7% (DIEESE,2016, p. 7, tabela 3).

As produções científicas acerca das mulheres negras, bem como as diferentes


publicações no seio da militância, na maior parte das vezes expõem a denúncia
acerca das posições ocupadas pelas mesmas na pirâmide social. Esta real situação,
socioeconômica, confirma sob o signo dos números a maneira como a educação
formal inexiste, teve passagem curta ou, então, veio acontecer de forma tardia nas
suas vidas; as demais instâncias prioritárias à vida humana (trabalho, moradia, saúde
corporal e mental) encontram-se indisponíveis, como consequência da cor de um
corpo que se revela, ainda, como “defeito” .(GONÇALVES, Ana Maria, 2006, p. 2)

Desse modo, mesmo havendo um avanço no que diz respeito à inserção das mulheres
negras no ensino superior, ocupando cada vez mais as vagas que são destinadas como forma
de direito a essa população, que durante muito tempo foi escravizada e excluída social e
economicamente, não demonstra suficiente na superação do racismo e machismo que essas
mulheres sofrem em seu cotidiano nessa sociedade capitalista racista e patriarcal.

Trata-se de um período histórico no qual se ampliam várias desigualdades,


principalmente as determinadas pelas retiradas de direitos e as que são produto da
ampliação da discriminação e da criminalização de jovens pobres e das mulheres,
sobretudo as negras e pobres. (FRANCO, Marielle, 2017, p. 89)

CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Ao período que antecede a redemocratização do Estado, concluímos que,

O país não ofereceu subsídios para a sobrevivência de negras e negros, tão pouco
buscou incluí-los nos diversos espaços institucionais e sociais. Ao absterem-se da
situação de marginalidade na qual o(a) negro(a) foi colocado(a) após 1888, os
representantes da elite brasileira deram margem a subalternização dessa população,
dando condição para a continuidade de práticas racistas sob o véu da “liberdade”.
(PENAS, Thais Caroline Rodrigues, 2017, p.2)

Podemos considerar que, a constituição de 1988 promoveu garantias de direitos


sociais, econômicos, políticos e culturais que estavam suspensos no período anterior, e que
posteriormente seriam regulamentados por leis específicas. Desta maneira conforme já citado
anteriormente por meio deste movimento de redemocratização e através da articulação do
movimento negro foram criados alguns dispositivos que promovem a valorização da história
da cultura afro-brasileira, dentre estes temos a Lei nº. 10.639 de 2003 que dispõe sobre a
inserção no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e

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Cultura Afro-Brasileira", temos ainda a Lei nº. 12.990 de 09 de junho de 2014, que reserva
aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para
provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública
federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de
economia mista controladas pela União, conhecida popularmente como a lei de cotas.
Mas mesmo com os dispositivos legais, é visível nas universidades e nos demais
espaços institucionais o modelo hegemônico burguês, que reforça através do racismo
institucional e o machismo que os espaços públicos não são para mulheres, tão pouco, para
mulheres negras. E no que se refere ao acesso das mulheres na universidade, Georgina diz
que,
A ausência ou pequena presença de mulheres negras como pesquisadoras e docentes
acadêmicas num momento em que a universidade brasileira está bastante
feminilizada, com exceção de algumas áreas e cursos, é apenas um dos aspectos de
uma trajetória que marca o corpo negro [...](NUNES, Georgina Helena Lima, 2009,
p. 224)

Segundo a Organização das Nações Unidas, sobre a população negra no Brasil


(2014), o racismo é estrutural e institucionalizado e permeando todas as áreas da vida, dessas
mulheres e homens negros, que historicamente sofre as opressões de um sistema que se
beneficia de sua marginalização e segregação, se aproveitando de uma diferença visível,
particularmente a cor de pele, para oprimi-los(as) no plano econômico. (VICENTE,
Sylvie,2012)
Para que se cumpra um dos pilares da Carta Magna, sobre a dignidade de mulheres e
homens, é necessário que a sociedade reconheça a necessidade da superação efetiva do
racismo, patriarcado e capitalismo, que se materializam de forma estrutural na sociedade,
construindo de forma coletiva uma nova ordem societária sem exploração de gênero, raça e
classe.

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> Acesso em 25 maio de 2018.

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dez-anos-nas-universidades-brasileiras/>. Acesso em: 19 de maio 2018.

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retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada.
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Empreendedorismos e empoderamento de mulheres negras: quais são às ações


necessárias para garantir expansão e manutenção da atividade econômica

Alessandra Benedito1

Resumo
O processo de inserção da mulher no mercado de trabalho sempre foi marcado por
muitos obstáculos no Brasil, em virtude de o país ter em sua origem uma cultura
patriarcal e escravagista, com uma visão machista que naturaliza a discriminação e a
interiorização feminina e favorecimento das estruturas organizacionais de produção
capitalista. A mulher negra está envolta em um binômio de discriminação
historicamente naturalizado na sociedade brasileira machista e sexista. De modo que, ao
observar-se a situação da trabalhadora negra no Brasil de hoje, percebe-se que se
apresenta como uma extensão da realidade vivida por elas no período da escravidão.
Não ocorreram muitas mudanças significativas, pois permanecem em último lugar na
escala social, sendo preteridas no mundo do trabalho. Dados estatísticos revelam que
elas continuam a ocupar a maioria dos postos de trabalho nos serviços domésticos,
recebem os piores salários, trabalham mais, entretanto com rendimento menor e
apresentam menor nível de escolaridade se observados todos os níveis de escolarização.
Logo possuem limitações para ingressar, permanecer e ascender no mercado de
trabalho, restringindo-se assim as possibilidades de terem uma vida digna com
oportunidades iguais. Na luta cotidiana, por dias melhores, foi no empreendedorismo
que elas se tornam menos invisíveis, no entanto, ainda estamos longe do ideal de
inserção, ampliação e amadurecimentos necessários para garantir vida longa ao negócio,
por elas empreendidos.
O arcabouço normativo nos âmbitos constitucional, infraconstitucional e internacional
vigente no Brasil criou uma estrutura de proteção ao trabalho da mulher e ao negro,
contudo pouco do que foi estabelecido na norma com a finalidade de garantir a
igualdade de tratamento entre homens e mulheres e entre brancos e negros concretizou-
se na prática diária do mundo do trabalho. Portanto, os direitos que visam à proteção

1
Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico, professora da graduação e pós em Direito e
Trabalho na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Aluna Especial na Economia- Unicamp.

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dentro do ambiente de trabalho não restaram suficientes para garantir trabalho digno às
trabalhadoras negras, posto que continuam colocadas à margem da sociedade e
impedidas de desenvolver-se, por manifestações discriminatórias muitas vezes
“invisíveis”, porém responsáveis por manter as estruturas desiguais encerradas em
componentes históricos e culturalmente naturalizados e economicamente nocivos.
Sendo assim, ao observamos que no Brasil, mulheres negras estiveram presentes
enquanto empreendedoras desde o período da escravidão até os dias atuais, e, que o
empreendedorismo é uma chave que liberta a mulher negra para conquistar o respeito
social no mercado de trabalho, nos propomos a analisar quais são ações necessárias para
garantir a ampliação, treinamento, investimento que garantam o empoderamento destas
mulheres, por meio, do empreendedorismo.
É premente a necessidade de superação da condição de desigualdade da mulher negra
no mercado de trabalho, tais alterações, afetarão a vida dessas mulheres e a estrutura
socioeconômica do país, significativamente, rumo ao sonhado desenvolvimento
sustentável e à efetivação da cidadania.

1) Da condição da Mulheres negras na Economia Brasileira- Mercado de


Trabalho
A tratarmos das condições das mulheres negras na economia e sociedade brasileira,
apesar a relevância de seu trabalho para construção e desenvolvimento deste pais
desde o período da escravidão, constata-se que O nome delas não estava escrito nas
páginas da história oficial, mulheres negras convivem com preconceito duplo: de
gênero, por serem mulheres, e o de racismo, por serem negras. A vida e os feitos das
mulheres negras no Brasil ficaram à sombra dos heróis brancos, um passado largado
nos fundos dos baús de acervos e bibliotecas, praticamente esquecido.
Em quase quatro séculos, em que a escravidão se constituiu e se
refez em conexão com as determinações diretas e indiretas dos
vários ‘ciclos econômicos’, não foi só a história que se alterou.
Com ela se alteraram as relações de produção, a estratificação da
sociedade e a articulação das raças contidas nos vários polos da
dominação escravagista.2

O trabalho da mulher negra na sociedade escravagista não tinha valor, uma vez que,
elas eram parte das coisas dos seus senhores e como tal, eram exploradas até a morte.
A mulher negra trabalhava nos afazeres domésticos, nas zonas rurais e nos centros

2
FERNANDES, Florestan. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional”. São Paulo:
Hucitec, 1979, p. 12.

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urbanos, sendo também responsável pelo comércio de doces, bolos, frutos, queijos,
hortaliças, além de levar a correspondência de lugar para outro, para lugares mais
afastados, enquanto realizavam sua atividade de mercancia, entre outros serviços. Em
algumas cidades como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo o comércio ambulante era
uma tarefa eminentemente feminina. “A presença feminina foi sempre destacada no
exercício do pequeno comércio em vilas e cidades do Brasil Colonial”.3
Mesmo que as autoridades presentes nas colônias conhecessem a importância dos
serviços que eram prestados pelas mulheres mascates à população que vivia em
regiões afastadas e muitas vezes isoladas em vilarejos, em locais de garimpo de ouro,
ao longo dos cursos dos rios e de montanhas, elas não eram valorizadas, o trabalho
delas era invisível e quando notado, apesar da contribuição dada por elas, as
autoridades as viam como fonte de problemas e não como uma solução para a difícil
distribuição dos elementos necessários à sobrevivência dos grupos populacionais
acima especificados.
E interessante observarmos que havia comércio, as mulheres responsáveis, por sua
realização eram habilidosas, no entanto, o ímpeto empreendedor (livre) não existia,
uma vez que, as responsáveis pelas atividades descritas, eram escravas, não tinham
escolha e nem colhiam os resultados dos empreendimentos, cujo destino era os seus
senhores. Assim, a condição se manteve até o final do período da escravidão.
O trabalho da mulher vai sofre algumas alterações a partir da Primeira República
(período 1890 a 1930), com abolição da escravatura, negros são libertados e a
população como brasileira como um todo começa a mudar o seu perfil, graças ao
processo de imigração europeia. O processo migratório foi incentivado pelas
autoridades brasileiras, que objetivavam embranquecer o país e contratar mão de obra
qualificada. Tal situação, transformou as condições de vida da elite branca composta
por senhores do café e dos escravos que passaram a ser livres, contudo sem emprego,
sem moradia, enfim, sem condições mínimas de sobrevivência e em condições
extremas de marginalidade. Deste modo, “logo se descobriu que a imigração punha à
disposição dos fazendeiros e do crescimento econômico urbano outro tipo de reserva
de mão-de-obra, a custos baixos”4, inclusive usando mão obra feminina e infantil que
fora explorada durante anos a fio, a exploração se deu na lavoura, nos serviços
domésticos e depois em uma indústria primitiva que fez usufruiu da mão-de-obra

3
DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 144.
4
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989, p. 21.

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feminina em serviços manuais, em peculiarmente nos setores de fiação, vestuário e
alimentação e, como compensação pelos serviços desenvolvidas, recebiam elas os
piores tratamentos e salários, apesar da jornada de trabalho excessiva e por vezes
desumana com jornadas de trabalho que chegavam a dezoito horas diárias e muitas
mulheres suportaram tais condições, pois o processo de industrialização estimulou
migração de famílias inteiras para capitais e seus centro e lá homens, mulheres e
crianças fora trabalhar.
As condições de vida e moradia das famílias pobres que se deslocaram para os grandes
centros à procura de emprego eram precárias, assim com destaca Evaristo de Moraes
Filho5 :
[...] morando em bairros anti-higiênicos, em cabeças-de-
porco; aglomeradas as famílias em cômodos imundos, sem ar
nem luz, entregues os seus chefes a trabalhos estafantes e mal
remunerados, executados em locais quase sempre insalubres,
escuros, mal ventilados, assim viviam os trabalhadores.
Mulheres ainda que grávidas e crianças de tenra idade eram
obrigadas a mourejar nos serviços mais pesados e penosos,
durante mais de 12 horas, com salários ínfimos, a fim de
poderem contribuir, de qualquer forma, com alguma coisa, para
o orçamento doméstico.

Assim de maneira bastante conveniente e interessante, o capitalismo se fortaleceu e


explorou e o trabalho feminino de mulheres brancas na fabricas e de negras nos
afazeres domésticos e serviços informais, com o passar dos tempos, o trabalho
feminino passou a desempenhar um papel importante no mercado de trabalho,
transformando a mulher em significativo contingente da classe trabalhadora assim
como estamos nos dias atuais, tal como podemos verificar nos dados da Relação Anual
de Informações Sociais (RAIS) 6, que comprovam que o nível de emprego da mão-de-
obra feminina cresceu 3,91%, diante um aumento de 2,57% para os homens. Tal
diferença de 1,34 pontos percentuais deu continuidade ao processo de elevação da
participação das mulheres no mercado trabalho formal, que passou de 42,47% em
2012 para 42,79% em 2013.

5
MORAES FILHO, Evaristo. Prefácio ao livro Apontamentos de direito Operário. São Paulo: LTr, 1971, p.
25
6
Características do Emprego Formal segundo a Relação Anual de Informações Sociais – 2013. Disponível
em:
http://portal.mte.gov.br/data/files/FF80808148855DD70148A92767C34D76/Principais%20Resultados%
20-%20Ano%20base%202013.pdf. Acesso em:14/08/2015.

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Embora tenhamos evoluído muito, ainda persistem às desigualdades de gênero e se o
recorte abranger raça, a situação se agrava, ainda mais. Logo, ainda que tenhamos
evoluído muito após a constituição Federal de 1988, momento em que no Brasil
declarada a igualdade entre homens e mulheres, através de arcabouço normativo
acompanhado de uma série de medidas sócio educacionais e econômicas,
implementadas com a finalidade de superar desigualdades de gênero e raça,
pincipalmente no mercado de trabalho
Aparentemente, é na sociedade capitalista que o trabalho feminino mais se projeta e
foi nas duas últimas duas décadas que o empreendedorismo começou a ser difundido
no Brasil e a cada vez mais ganhar espaço entre os pequenos, inclusive entre a
população feminina que durante muito tempo empreendeu e empreende na
informalidade, buscando garantir o sustento ou reforçar o orçamento de suas famílias.

2. Definição de ações afirmativas


Nos últimos anos a academia passou a estudar às ações afirmativas e seus efeitos e
contribuições para o desenvolvimento sócio econômico do Brasil, nas cadeiras de
ciências sociais e políticas. As políticas de ações afirmativas (Políticas Públicas) são
definidas como prioridade a partir da constituição de 1988, e foram implantadas de
forma mais contundente nas últimas duas décadas e ainda que os dados estatísticos
comprovem uma expressiva diminuição nos índices de miserabilidade brasileira, às
ações afirmativas, vendo sendo alvo de inúmeras críticas, em virtude da difusão pouco
clara à respeito de sua definição, finalidade e duração, uma vez que, grande parcela da
população só ouviu falar políticas públicas e ações afirmativas pela Mídia, que por
vezes, destorce e contorce às informações.

Sendo assim, vejamos a definição que Flávia Piovesan nos dá


As ações afirmativas, como políticas compensatórias
adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes
de um processo de discriminação, cumprem uma
finalidade pública decisiva para projetos democráticos:
assegurar a diversidade e a pluralidade social. Constituem
medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade,
com a crença de que a igualdade deve moldar-se no
respeito à diferença e à diversidade. Por meio delas

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transita-se da igualdade formal para a igualdade material e
substantiva.7

As ações afirmativas representam a possiblidade de o Estado aplicar o princípio


da igualdade de forma a garantir a discriminação positiva, ou seja, possibilitam que haja
tratamento desigual, enquanto permanecer a condição que não permite ao grupo humano
superar a condição de exclusão naturalmente. São instrumentos de caráter temporário,
que devem ser estabelecidos com objetivo de reduzir as desigualdades sociais.8
Joaquim Barbosa Gomes apresenta um conceito bastante abrangente, que define
as ações afirmativas como:

(...) as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto


de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como
para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no
passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva
igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o
emprego.9

Enfim as ações afirmativas possuem como objetivo reparar danos originários do


passado, de condutas imemoráveis ou de raízes históricas densas, cujo tempo e por
vezes, a própria legislação que prevê igualdade de direitos, não tenha dado conta. As
ações afirmativas, podem decorrer de imposição legal, judicial ou de ações voluntárias
de entidades privadas movidas ou não por leis amplas, de política de isenções fiscais.
3. Ações afirmativas no mercado de trabalho para inserção e inclusão de mulheres
negras.

Ao pensarmos em empoderamento feminino negro no mercado de trabalho se faz


necessária uma breve analise da função das ações afirmativas no mercado de trabalho,
quais sejam: de combater e retificar as práticas discriminatórias e o fazem mediante
procedimentos obrigatórios e/ou voluntários formulados e implementados por meio de

7
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. Revista USP n. 69, São Paulo, março/maio 2006, pp. 36-
43. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/69/04-flavia.pdf>. Acesso em 08.10.2014.
8
O debate público das ações afirmativas tem revelado, de um lado, aqueles que argumentam constituírem elas uma violação de
direitos, e, de outro lado, os que advogam serem elas uma possibilidade jurídica ou mesmo um direito. A respeito, note-se que o
anteprojeto de Convenção Interamericana contra o Racismo e toda forma de Discriminação e Intolerância, proposto pelo Brasil no
âmbito da OEA, estabelece o direito à discriminação positiva, bem como o dever dos Estados de adotar medidas ou políticas
públicas de ação afirmativa e de estimular a sua adoção no âmbito privado. Cf. PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas no Brasil:
desafios e perspectivas. Revista de Estudos Femininos [online] vol. 16, n. 3, 2008, pp. 887-896. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000300010, p. 894.
9 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de

transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 40.

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políticas que nivelem as desigualdades entre os grupos que tenham oportunidade de
acesso normal ao mercado de trabalho e os grupos discriminados.
A ação afirmativa é um caminho viável para efetivação do processo de igualdade
material ou substancial do trabalho da mulher negra, pois:
(...) [para] o combate eficaz à discriminação, sobretudo
essa modalidade de discriminação de cunho histórico e
cultural, profundamente entranhada no imaginário
coletivo, não bastam leis meramente proibitivas. É preciso
ir além e impor medidas de promoção afirmativas.10

Isso se faz necessário para que as mulheres sejam selecionadas com base em sua
capacidade de realizar o trabalho, não havendo distinção, exclusão ou preferência sob
outras alegações.
No caso de mulheres que desejem abrir seu próprio negócio, formalizar e organizar
negócios já existentes é imprescindível a criação de programas de incentivo econômico
e de formação para estas mulheres.
Mesmos com uma estrutura normativa que garante igualdade entre homens e mulheres,
entre brancos e negros, o arcabouço normativo sozinho não dá conta de expurgar o
preconceito e discriminação que afasta mulheres negras da invisibilidade na economia
brasileira, ou seja, as trabalhadoras que sofrem discriminação no trabalho, seja na busca
por uma ocupação, seja durante a vigência do contrato de trabalho, ou no memento em
procuram uma instituição financeira para fazer um empréstimo para abrir ou expandir
seus negócios “têm a oportunidade negada e seus direitos humanos básicos violados.
Isso afeta o indivíduo envolvido e influencia negativamente em uma contribuição maior
que poderiam oferecer à sociedade”.11
Sendo assim, o Estado e toda a sociedade são responsáveis pela sedimentação da prática
do Trabalho Decente12 (digno), com a desígnio de proporcionar e garantir justiça social
e desenvolvimento para toda a população de forma isonômica.

10
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e princípio da igualdade: o Direito como
instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 197.
11
Manual do Global Compact. Entendimento prático da visão dos princípios. Disponível em:
<www.pactoglobal.org/doc/manual%20 do%20global%20compact.doc>. Acesso em 30.08. 2014.
12
O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito
aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração Relativa aos
Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade
sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)eliminação de todas as formas
de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de
discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade,

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Nesse sentido, Joaquim Benedito Barbosa Gomes:
É indispensável uma ampla conscientização da própria
sociedade e das lideranças políticas de maior expressão
acerca da absoluta necessidade de se eliminar ou de se
reduzir as desigualdades sociais que operam em
detrimento das minorias...13
Sendo assim, far-se-á a seguir uma síntese do papel que vem sendo desempenhado por
alguns atores sociais na busca da superação da exclusão em virtude de raça e gênero no
mercado e seu papel para autonomia financeira de mulheres negras.

3. Uma análise do papel dos principais atores sociais responsáveis pela


implantação de políticas de ações afirmativas contra discriminação por gênero e
raça mercado – Ações afirmativas uma- oportunidade ao empoderamento
feminino.
Na atualidade vários atores sociais públicos e privados vêm desenvolvendo no
Brasil políticas de ações afirmativas contra discriminação por gênero e raça, no mercado
de trabalho, na educação, na saúde, nos meios midiáticos, entre outros. Tais ações se
dão em virtude de uma série de fatores, entre eles, a Constituição Federal de 1988 e o
acordo firmado pelo Brasil com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), para
implementação do Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente14 , bem com as
necessidades da economia, com um mercado em desenvolvimento e aparentemente
promissor, passou a vislumbrar um novo nicho de produção e consumo na população
negra.
O Estado tem um papel decisivo na implantação das políticas de igualdade de
oportunidades, de maneira especial no tocante ao aumento do nível de ocupação e
melhoria da qualidade dos empregos de mulheres e dos negros, assim como de outros
grupos discriminados, ter em vista criar um mercado mais inclusivo, produtivo, rentável
e justo.

a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social. Disponível em:


http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente. Acesso em: 18/08/2015.
13
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In: SANTOS,
Renato Emerson dos; LOBATO, Fátima (orgs.). Ações afirmativas: políticas públicas contra desigualdades
raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 23.
14
O Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente foi construído por meio do diálogo e cooperação
entre diferentes órgãos do governo federal e envolveu um amplo processo de consulta tripartite. Ele
representa uma referência fundamental para a continuidade do debate sobre os desafios de fazer
avançar as políticas públicas de emprego e proteção social. Disponível em: <
http://portal.mte.gov.br/antd/>. Acesso em 09.10.2014.

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Para tanto, o Estado criou uma secretaria própria, cuja o desígnio de prover igualdade
por meio do desenvolvimento de ações para combater a discriminação racial no Brasil,
foi criada pelo governo federal, no dia 21 de março de 2003, a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
A Seppir desenvolve um conjunto de metas enunciadas no Plano Plurianual Contra o
Racismo no Brasil, envolvendo a implementação de políticas públicas nas áreas do
trabalho, emprego e renda, cultura e comunicação, educação, saúde, terras de
quilombos, mulheres negras, juventude, segurança e relações internacionais. A (Seppir)
estabeleceu como meta para o triênio 2012-2015 projetos centrados no campo de ações
afirmativas, com as seguintes finalidades:

Implementar o Programa Nacional de Ações Afirmativas nos


Ministérios; b) Reduzir as mortes por homicídio na juventude
negra; c) Estabelecer acordos para a inclusão da população
negra no mercado de trabalho; d) Realizar e apoiar campanhas
de valorização da pessoa negra e de enfrentamento ao racismo,
divulgando as manifestações da cultura, a memória e as
tradições afro-brasileiras; e) Ampliar o número de organizações
públicas e privadas que adotam medidas de prevenção e
enfrentamento ao racismo institucional) Reduzir a
morbidade/mortalidade materna entre as mulheres negras; g)
Construir cadastro de programas de ações afirmativas no âmbito
das três esferas de Governo e da iniciativa privada.15

No caso da inciativa privada, o processo de superação da discriminação, recebe


incentivos, orientação e formação de duas frentes, das indicações da OIT e ainda existe
a possibilidade de as empresas seguirem as determinações do Pacto Global cuja
iniciativa é uma proposta da Organização das Nações Unidas (ONU) e visam estimular
as empresas na adoção de ações de políticas de responsabilidade social corporativa e de
sustentabilidade.
O Pacto visa promover o diálogo entre empresas, ONU, sindicatos, organizações não
governamentais e demais parceiros para o desenvolvimento de um mercado global mais
inclusivo e sustentável, incluindo no rol de desafios as questões de gênero e para tanto
foram elencados 7 (sete) príncipios, de vital importância para garantir a diversidade e
trabalho digno dentro do ambiente coorporativo, como podemos observar a seguir:

15
MARCONDES, Mariana Mazzini; PINHEIRO, Luana; QUEIROZ, Cristina; VALVERDE, Danielle (orgs.).
Dossiê Mulheres Negras - retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Disponível em:
<http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/39/livro_dossie_mulheres_negras.pdf>. Acesso
em 08.10.14.

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1. Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a
igualdade de gênero. 2. Tratar todas as mulheres e homens
de maneira justa no trabalho – respeitar e apoiar direitos
humanos e não-discriminação. 3. Assegurar saúde,
segurança e bem-estar a todas as trabalhadoras e
trabalhadores, mulheres e homens. 4. Promover educação,
treinamento e desenvolvimento profissional para as
mulheres. 5. Implementar desenvolvimento empresarial e
práticas de cadeia de suprimentos e marketing que
empoderem as mulheres. 6. Promover igualdade através de
iniciativas comunitárias e de defesa. 7. Medir e
publicamente relatar o progresso no alcance da igualdade
de gênero.16

No tocante ao Poder Judiciário, este se constitui em importantíssimo agente na luta pela


superação das desigualdades, já que tem por meta aplicar e concretizar a lei, garantindo
assim a efetivação da igualdade.
Vale ressaltar que o Poder Judiciário enfrenta muitos problemas em resolver as questões
relacionadas à discriminação por raça e gênero, em virtude da dificuldade que reside no
ato probatório, uma vez que as vítimas, frequentemente, encontram dificuldades em
provar os fatos. O segundo entrave encontra-se na falta de informação, muitas pessoas
nem chegam a procurar o Judiciário para solicitar a punição e reparação dos danos
materiais e/ou morais que tenham suportado.
A respeito de discriminação e dificuldade probatória, dispõe Joaquim Benedito Barbosa
Gomes:
[...] em razão do seu enraizamento sociocultural, os
comportamentos violadores do princípio jurídico da
igualdade tendem a se dissimular em práticas jurídicas,
sociais, empresariais e culturais de caráter muitas vezes
anódino na aparência, mas dotadas de formidável forma de
exclusão. Noutras palavras, o ato discriminatório não
assume aquela configuração clássica consistente em dar
tratamento desigual às pessoas que em princípio deveriam
ser tratadas de forma isonômica, ele não raro assume
formas e roupagens sutis, embutidas em procedimentos,
exigências e outras condições qualificadoras que se
revelem de particular impacto sobre grupos socialmente
vulneráveis...17

16
Princípios de Empoderamento das Mulheres. Disponível em:
<http://www.pactoglobal.org.br/Artigo/136/Premio-WEPS-internacional-abre-inscricoes-para-edicao-
2015>.
17
GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa e princípio da igualdade: o Direito como
instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 197.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1345 1354


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Quanto ao Ministério Público do Trabalho18 (MPT), instalou em 2002 a Coordenadoria
Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação
no Trabalho, visando articular as ações institucionais para o enfrentamento da
discriminação contra o trabalhador. Posteriormente, em 2005, a coordenadoria lançou o
Programa de Promoção da Igualdade de Oportunidades para todos, visando combater
discriminação de raça e gênero nas relações de trabalho.
O caminho a ser seguido pelo programa era a abertura de procedimentos específicos
para a conscientização junto a dirigentes de empresas que estivessem adotando práticas
discriminatórias, incentivando a adoção voluntária de medidas visando à eliminação
desse tipo de conduta, por meio da implantação de ações afirmativas a fim de reverter o
quadro de desigualdades. Caso a tentativa fosse frustrada, o MPT ajuizaria ações civis
públicas contra as empresas.19
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) vem desenvolvendo uma série de atividades
e cursos que fazem parte da agenda feminista pela superação da desigualdade entre os
sexos e que visam combater a precarização do trabalho feminino e as desigualdades de
rendimento, entre outras coisas. E o mais importante, valorizar o trabalho da mulher.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), é uma entidade possui núcleos permanentes
de estudo das questões da mulher e do negro, que vêm promovendo interferências
expressivas no processo de inclusão de mulheres e negros na sociedade brasileira, além
de prestarem serviço de assistência judiciária às vítimas de discriminação.
Os movimentos negros e feministas são responsáveis por grande parte das alterações
legislativas que garantiram a igualdade formal entre homens e mulheres e entre brancos
e negros. Na atualidade lutam pela concretização da igualdade material, pela igualdade
de oportunidade, com grupos organizados em todo o país e que fazem uso das mídias
sociais para difundir e conscientizar um número cada vez maior de pessoas. Eles
desempenham um papel relevante na implantação do Plano Nacional de Emprego e
Trabalho Decente, pois conscientizam, fiscalizam e zelam pelos grupos historicamente e
economicamente excluídos.

18
THEODORO, Mário (org.); JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. As
políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/Livro_desigualdadesraciais.pdf>. Acesso em 30.08.2014.
19
“O Ministério Público do trabalho (...) tem poder de investigação nas práticas de discriminação no
trabalho; quando instaura inquérito civil público com tal objeto, realiza uma análise do histórico da
empresa. Para tanto, normalmente, utiliza-se de questionário, em que observa o acesso, a promoção e a
despedida de grupos tidos por vulneráveis dentro da empresa investigada”. SILVA, Ana Emília Andrade
Albuquerque da. Discriminação racial no trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 53.

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No campo da educação formal, verifica-se dois movimentos importantes que visam a


inclusão da população negra, a eliminação de preconceitos e de qualquer forma de
disseminação da reprodução de valores racistas, por meio da instituição do sistema de
cotas no ensino superior, fundamental e médio e da instituição da Lei 10.639/2003, que
prevê o estudo da História e da Cultura Afro-Brasileiras no ensino fundamental e
médio.
O sistema de cotas caracteriza-se como um modelo de ação afirmativa que visa incluir
negros por meio do acesso à educação, além de “abrir o teto social que hoje impede uma
maior progressão social do jovem negro, visando alçá-lo a uma condição de ascensão
social”.20
No que se refere ao sistema de inclusão de negros por meio de cotas raciais tem sido
alvo de muitas discussões, quanto fato de estar ferindo ou não o princípio da igualdade.
No entanto, a lei permite que se trate desigualmente os desiguais na medida de suas
desigualdades, sendo permitida a discriminação positiva, sempre que necessária e
enquanto persistir a condição de desigualdade, ou seja, enquanto houver impedimento à
concretização da igualdade de oportunidade.
No tocante a empreendedorismo feminino especificamente, um programa resultado da
parceria entre a UNIFEM e do Pacto Global das Nações Unidas, nasce um projeto com
princípios de Empoderamento das mulheres a partir do estimulo do investimento em
negócios, cujo tema é “Princípios de Empoderamento das Mulheres Igualdade Significa
Negócios”. Os princípios estabelecidos visão estabelecer um padrão igualitário de
desenvolvimento humano entre homens e mulheres, criando assim, possiblidades para
que elas se desenvolvam, se empoderem e ocupem um maior e efetivo espaço no
desenvolvimento da econômica, tal como podemos observar nos princípios abaixo
descritos:
1. Estabelecer liderança corporativa de alto nível para a
igualdade de gênero.
2. Tratar todas as mulheres e homens de maneira justa no
trabalho – respeitar e apoiar direitos humanos e não-
discriminação;
3. Assegurar saúde, segurança e bem-estar a todos,
trabalhadoras e trabalhadores, mulheres e homens;

20
THEODORO, Mário (org.); JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael Guerreiro; SOARES, Sergei. As
políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Disponível em
<http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/Livro_desigualdadesraciais.pdf>. Acesso em 30.08.2014.

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4. Promover educação, treinamento e desenvolvimento
profissional para as mulheres;
5. Implementar desenvolvimento empresarial e práticas de
cadeia de suprimentos e marketing que empoderem as mulheres;
6. Promover igualdade através de iniciativas comunitárias e de
defesa e
7. Medir e publicamente relatar o progresso no alcance da
igualdade de gênero. 21

De os órgãos observados e identificados acima a Unifem e o Pacto global, são os


únicos órgãos que estabeleceram uma agenda própria para tratar da questão do
empreendedorismo feminino, e não faz a análise sob perspectiva de raça e gênero,
somado ao fato de serem pouco e não claros os dados sobre empreendedorismo no
Brasil, ainda são carentes do recorte o que dificulta sabermos qual é a verdadeira
condição das mulheres negras no empreendedorismo formal.
A Independência financeira é um dos grandes motivadores das mulheres que
empreendem ou que sonham empreender, e elas são muitas, conforme revela os dados
de uma pesquisa realizada pelo Serasa Experian “o Brasil possui 5.693.694 mulheres
empreendedoras, o que representa 8% da população feminina do país. Isso significa que
43% dos donos de negócios do país são do sexo feminino, e 57% são homens”22, em
contrapartida, segundo dados do segundo a Pnad 2012, 42% dos ocupados eram
mulheres (39 milhões) e destas, 45% estavam na informalidade (18 milhões). A taxa de
participação feminina no mercado de trabalho foi de 53%, enquanto a dos homens
chegou a 72% (DIEESE, 2012, p. 215-232) e fazendo uma análise dos demais
indicadores, gênero e raça no mercado de trabalho e na economia brasileira descobrimos
que a maioria delas eram negras. Logo, há motivos para implantação de ações
afirmativas de com recorte de gênero e raça empoderamento de mulheres por meio do
empreendedorismo.

Conclusão

Para garantir a inclusão e a permanência dos talentos, habilidades, experiências e


energia das mulheres, em um processo efetiva e justa para que uma economia estável e
em desenvolvimento, há a necessidade proeminente de ações intencionais e políticas
deliberadas que criem oportunidades reais de inserção e inclusão destas mulheres.

21
Disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00001126.pdf. Acesso em: 12/08/2015.
22
Disponível em: http://noticias.serasaexperian.com.br/brasil-tem-mais-de-5-milhoes-de-mulheres-
empreendedoras-revela-estudo-inedito-da-serasa-experian/. Acesso em: 14/08/2015.

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Sendo assim, quando o assunto são é inclusão de mulheres negras a solução não nos
parece diferente, há a necessidade de políticas públicas e ações intencionais que
estimulem e garantam o desenvolvimento destas mulheres é proeminente. O
empreendedorismo negro vem crescendo na última década, no entanto, quando o
assunto é empreendedorismo negro feminino, elas ainda são poucas e em geral, seus
negócios giram em torno da informalidade.
As ações afirmativas, as políticas de redistribuição23 e de reconhecimento para a
superação da exclusão em razão de gênero e raça são primordiais. Tais políticas devem
ser implementadas com participação popular, promovendo divulgação e informações
amplas em locais onde as mulheres transitem, além de capacitação permanente para as
mulheres, em especial para as trabalhadoras negras, em ofícios e ocupações não
tradicionais e em níveis de supervisão, chefia, e para aquelas que são ou querem ser
donas do próprio negócio, entre outros. Sendo assim objetivando que rendam alterações
significativas que gerem empoderamento e mudança de vida para elas. Se faz
necessário que tais políticas passem por sistemas permanentes de monitoramento e
avaliação das ações e programas implementados, visando garantir que a discriminação
positiva, cujo intuito é viabilizar igualdade de oportunidade, não tenha efeito reverso, ou
seja, proporcione benefícios a quem já não precisa deles e também para evitar
investimentos em um projeto que não sirva ao fim para o qual foi criado.
De os órgãos observados e identificados acima a Unifem e o Pacto global, são os
únicos órgãos que estabeleceram uma agenda própria para tratar da questão do
empreendedorismo feminino, e não faz a apreciação sob perspectiva de raça e gênero,
somado ao fato de serem pouco e não claros os dados sobre empreendedorismo
feminino, no Brasil, e os poucos dados pesquisáveis são carentes do recorte, fator que
dificulta sabermos qual é a verdadeira condição das mulheres negras no
empreendedorismo formal, no entanto, não impede de os movimento de continuarmos a
implementar e avaliar políticas públicas que garantam igualdade entre homens e
mulheres, entre brancos e negros que garantam trabalho justo; treinamento e
desenvolvimento profissional; que Implementem desenvolvimento empresarial e

23
E quanto ao reconhecimento e distribuição? Se vivemos em um modelo no qual dinheiro atribui status
e poder, o Direito terá que centrar seus esforços em redistribui-lo, pois sem ele o reconhecimento se
torna falso e verdadeira exclusão permanece. Cf. BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; GRAMPA, Victor
Henrique. As ações afirmativas no Direito do Trabalho: redistribuição e reconhecimento. In:
CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. CLT, 70 anos de consolidação: uma reflexão social,
econômica e jurídica. São Paulo: Atlas, 2013, p. 159.

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práticas de cadeia de suprimentos e marketing que empoderem as mulheres e tomem
livres economicamente e socialmente.
Tais alterações são positivas em todos os âmbitos da vida dessas mulheres e
consequentemente na estrutura socioeconômica e cultural do país, que estará dando um
passo significativo rumo ao tão sonhado desenvolvimento sustentável e à efetivação da
cidadania.
Bibliografia:

BENEDITO, Alessandra; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins. UNIVERSIDADE


PRESBITERIANA MACKENZIE Programa de Pós-Graduação em Direito Político e
Econômico (Orient.).Igualdade e diversidade no trabalho da mulher negra: superando
obstáculos por meio do trabalho decente. 2008. 149 f. Dissertação (Mestrado) -
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.
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no Direito do Trabalho: redistribuição e reconhecimento. In: CAVALCANTE, Jouberto
de Quadros Pessoa. CLT, 70 anos de consolidação: uma reflexão social, econômica e
jurídica. São Paulo: Atlas, 2013.
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institucional”. São Paulo: Hucitec, 1979.

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989.

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http://portal.mte.gov.br/data/files/FF80808148855DD70148A92767C34D76/Principais
%20Resultados%20-%20Ano%20base%202013.pdf
http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente.
http://portal.mte.gov.br/antd
http://www.oitbrasil.org.br/prgatv/prg_esp/genero/incl_gen_rac.php
http://noticias.serasaexperian.com.br/brasil-tem-mais-de-5-milhoes-de-mulheres-
empreendedoras-revela-estudo-inedito-da-serasa-experian/

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Raça e gênero no debate público sobre imigração na Itália

Fernanda Di Flora Garcia1


João Carlos Soares Zuin2

Resumo: O debate público sobre a imigração na Itália tem sido marcado, desde a
década de 1990, pela vinculação entre o racismo popular e o racismo institucional,
assim como por expressões de sexismo e racismo de classe. As vozes que destoam do
paradigma securitário em curso tem sido alvo constante de ataques tanto de movimentos
sociais, quanto de partidos e expoentes políticos, ao passo que o alvo preferencial destes
ataques tem sido as mulheres que ocupam cargos políticos proeminentes, como é o caso
da Presidente da Câmara dos Deputados, Laura Boldrini, e da ex-Ministra da
Integração, Cècile Kyenge. Também as mulheres migrantes, em especial as mulheres
árabes e africanas, tem sido alvo de discursos e práticas xenófobas e racistas, articulados
com a misoginia e o sexismo. O objetivo deste artigo é analisar, desde uma perspectiva
interseccional, o modo pelo qual a posição social da mulher-especialmente da mulher
migrante -é condicionada pela interação entre gênero, raça, classe e pertencimento
nacional, apontando para a construção dos estereótipos sobre os sujeitos migrantes, isto
é, dos corpos considerados perigosos no debate sobre imigração na Itália.

Palavras-chaves: mulheres migrantes; racismo; sexismo.

1
Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
e pesquisadora de Pós-Doutorado pela mesma Universidade. Doutora em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: ferdiflora@uol.com.br.
2
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual Júlio de Mesquita
Filho (UNESP-Araraquara). Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). E-mail: zuin@fclar.unesp.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1361 1361


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Introdução
Nem toda noite termina na aurora.
Stanislaw Jeryz Lec

O objetivo deste artigo é explicar o sentido e o significado das manifestações


políticas vexatórias, sexistas e racistas efetuadas por lideranças do partido político
italiano Liga3contra mulheres imigrantes de origem árabe e africana e mulheres italianas
envolvidas diretamente em ações políticas de acolhimento dos imigrantes e defesa da
universalização dos direitos sociais e econômicos e dos direitos humanos fundamentais,
especialmente Cécile Kyenge4 e Laura Boldrini5. As sucessivas manifestações racistas e
sexistas efetuadas por membros do partido que hoje representa a principal força da nova
direita e do populismo na Itália – tais como Roberto Calderoli (Senador da República) e
Matteo Salvini (Secretário Geral da Liga e Eurodeputado), expressas em postagens,
cartazes, panfletos e charges evidenciam a articulação entre o racismo popular e o
racismo institucional e possibilitam uma ampla percepção do avançado processo de
proliferação do populismo emotivo (HOCHSCHILD, 2016; ILLOUZ, 2017; DAL
LAGO, 2017), das palavras de ódio (DE MAURO, 2017; ANTONELLI, 2017;
SARACENO, 2017) e da política do medo (DAL LAGO, 2004, 2017; RIVERA, 2003,
2010; MASTROPAOLO, 2005; FERRAJOLI, 2009, 2011; BASSO, 2011).
A utilização da retórica sexista, racista, agressiva e vulgar nos discursos da
Liga está presente desde 1989, quando o fundador do partido, Umberto Bossi,
desenvolveu uma nova estratégia política baseada, por um lado, na ruptura do decoro e
dos ritos da política tradicional e, por outro, na utilização da linguagem clara e simples,
popular e dialetal, sarcástica e vulgar, hostil e agressiva contra os inimigos da Padânia6.
No que toca ao sexismo presente na linguagem política da Liga, em inúmeras ocasiões o
partido expressou – e expressa – um ideário machista baseado em uma pretensa
virilidade defendida sob o slogan “celodurismo”, que evoca o estilo político

3
Partido que até o ano de 2017 utilizava o nome e o símbolo Liga Norte, mas teve sua simbologia
alterada com o objetivo de modificar sua imagem vinculada a um partido eminentemente regionalista e
obter consenso eleitoral ao nível nacional.
4
Deputada e Ministra das pastas da Integração e da Política Juvenil no Governo Letta nos anos de 2013 e
2014, atualmente Eurodeputada.
5
Alta Comissária para os Refugiados da Organização das Nações Unidas nos anos de 1998 e 2012,
Deputada e Presidente da Câmara dos Deputados nos anos de 2013-2018, reeleita Deputada na eleição de
2018.
6
A Padânia nunca existiu histórica ou geograficamente, mas a Liga criou, desde sua fundação, uma
narrativa histórica e geográfica para justificar suas reivindicações políticas e territoriais, tratando-se
sobretudo de uma construção política voltada, inicialmente, para emancipar as regiões que compõem o
norte da Itália e formar um novo país.

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mussoliniano (RIVERA, 2009, p.247), a ênfase na ideia do líder potente e viril,
utilizada por Umberto Bossi no slogan político “La lega ce l’ha duro”, uma retórica de
dupla intencionalidade: 1) aquela que ressalta a suposta fraqueza de seus adversários
políticos, corrompidos pela ideologia e pelo comportamento sexual das elites
cosmopolitas e 2) a exposição da Liga como a única força e potência política que está à
altura dos problemas do tempo presente e é capaz de solucioná-los. De acordo com a
antropóloga Annamaria Rivera, a Liga transformou em linguagem política a “exibição
genital”, que “revela quais são as pulsões que se agitam no ventre masculinista, racista e
fascistóide” do país (idem). A Liga não manifesta apenas um racismo retórico, mas
produz expedições punitivas, iniciativas políticas e legislativas, práticas administrativas
locais e nacionais derivados dos modelos mais clássicos de discriminação e racismo
institucional.
Na Itália republicana, até o advento da Liga, havia certo pudor em admitir que
temáticas racistas, sexistas e homofóbicas típicas do período fascista fossem professadas
ao nível institucional (BURGIO, 2010; POIDIMANI, 2009). Contudo, desde a sua
aparição na cena política nacional, e especialmente diante do fato de que muitos de seus
expoentes são provenientes da extrema direita fascista, como é o caso de Mario
Borghezio, o cenário foi radicalmente alterado, promovendo paulatinamente a
legitimação institucional do racismo e pavimentando o caminho para a emergência de
partidos e movimentos que hoje defendem abertamente o legado de Mussolini, como é o
caso do partido Casa Pound7. Assim, de Umberto Bossi até Matteo Salvini, a Liga
manteve a linguagem política baseada no sexismo e no racismo, com a característica
linguística e política da composição de frases simples, da redação elementar, do uso de
palavras obscenas e vulgares, das ofensas pessoais sem limites aos políticos adversários
transformados em inimigos.
Contudo, há um evidente salto de qualidade na forma como o atual líder da
Liga aparece e efetua sua comunicação política: o permanente uso dos meios digitais, a
contínua instrumentalização da linguagem simultaneamente emotiva e agressiva, a
disseminada utilização de emojis pops e, sobretudo, a reafirmação diária da sua imagem
através da técnica comunicativa da storytelling (SALMON, 2008). As novas formas de
comunicação na era digital proporcionam ao líder da Liga a ampliação do espaço das

7
Cujo dirigente, Alberto Palladino, recentemente afirmou que “no coração de todo italiano há um
espacinho para o fascismo”. Cf. “Partido de extrema direita rompe tabu do discurso do fascismo na
Itália”, Folha de São Paulo, 02\03\2018.

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palavras de ódio que, uma vez postadas e, posteriormente, comentadas e repostadas
pelos cidadãos-seguidores, alcançam uma disseminação sempre mais ampla e capilar na
mentalidade e no comportamento das pessoas.
Nesse sentido, a escolha do estudo dos casos Kyenge e Boldrini se justifica
pelos seguintes elementos fundamentais: 1) a Itália é o principal laboratório político da
luta contra imigração, na qual foram introduzidas sucessivas reformas jurídicas que
resultaram na lei n.94 de 15 de Julho de 2009 que criminalizou o imigrante sem
documento e institucionalizou a figura do “imigrante ilegal” (FERRAJOLI, 2009,
2011), 2) a Itália, desde a década de 1990, é o principal laboratório do fenômeno do
populismo (TARCHI, 2017) construído por diversos atores e partidos políticos que
alcançaram expressivos sucessos eleitorais através da retórica agressiva e alarmista da
invasão de imigrantes e da islamização da cultura italiana e europeia, do discurso
xenofóbico e racista baseado na ideia da comunidade orgânica ameaçada em seus
valores morais, tradições multisseculares e na enfática defesa da identidade e soberania
nacional e 3) pelo fato de que a intersecção entre o racismo e o sexismo é ainda pouco
debatida na Itália, sobretudo no contexto do fenômeno migratório.

A intersecção entre raça e gênero no debate sobre o fenômeno migratório


O fenômeno migratório na Itália tem sido o espaço privilegiado no qual é
possível observar a intersecção entre raça, gênero e classe8, que se manifesta no debate
público e cujas implicações atingem as mais diversas esferas da vida social, desde a
estigmatização e produção de estereótipos até a discriminação jurídica, política,
econômica e social, apontando para o fato de que a análise de tais convergências
evidencia a impossibilidade de compreender e analisar as desigualdades presentes tanto
na Itália quanto nas sociedades contemporâneas de forma isolada (BIROLI & MIGUEL,
2015, p.28). Para além da condição comum, no caso aqui analisado, o fato de se tratar
de ataques e discriminações direcionadas às mulheres, é preciso considerar, como
aponta Bell Hooks (2014), que as distintas identidades de raça e classe produzem
diferenças qualitativas sobre a vivência comum que as mulheres partilham.

8
O termo “interseccionalidade” aparece pela primeira vez em um texto de K. Crenshaw, no final dos anos
1970, com o objetivo de elaborar uma crítica ao feminismo branco, de classe média, heteronormativo,
que, de acordo com o feminismo negro emergente no período, desconsiderava as determinações de raça,
gênero, classe e sexualidade na potencialização das múltiplas formas de opressão, apontando haver não
apenas diferenças entre as mulheres, mas relações de privilégio.

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No que toca a categoria “raça” e a pluralidade de definições analíticas para o
termo racismo (CAMPOS, 2018), assim como para o termo “sexo” e “sexismo”, estes
não serão considerados como dados naturais, mas serão compreendidos e utilizados
neste artigo à luz das condições sociais concretas, com o intuito de evidenciar que a
despeito do fato de a categoria raça ser “uma categoria imaginária aplicada a grupos
humanos reais” (RIVERA, 2010, p.3), não possuir valor científico e, assim, ser
paradoxal, por sua natureza ideológica, produz consenso e mobilização social,
possuindo, portanto, “uma performatividade social” (idem) que condiciona a percepção
sobre o outro. Tal crença incide sobre a realidade social, modificando-a, e, como
destaca Achille Mbembe, “a raça é ademais um complexo perverso, gerador de temores
e tormentos, de perturbações do pensamento e de terror, mas sobretudo de infinitos
sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes” (p.27, 2018).
O sexismo, por seu turno, compreendido como um dispositivo que mobiliza
uma imagem inferiorizada das mulheres com relação aos homens, legitimando práticas
discriminatórias, produziu no âmbito da cultura positivista “uma teoria orgânica da
inferioridade feminina, fundada sobre a invenção de nexos psíquico-físicos” (BURGIO,
2012, p.91) análogos àqueles “construídos pelo discurso racista na invenção da „raça
negra‟” (idem), aproximando as mulheres da natureza, do mundo instintivo, da
irracionalidade, no limite. Ainda que tal produção tenha sido desconstruída ao longo do
tempo, seus efeitos ainda se fazem sentir de forma mais ou menos explícita e incidem
diretamente sobre as representações contemporâneas acerca do papel das mulheres.
Nesse sentido, o sexismo tradicional opera com um caráter análogo ao do racismo na
medida em que cria o “gênero feminino” em função da “dominação masculina”
(BOURDIEU, 2002).
Na Itália, as populações racializadas variam ao longo do tempo, implicando
em tratamentos diferenciais, de modo que o racismo contemporâneo essencializa as
diferenças sociais, culturais, religiosas, concebidas como absolutas, a-históricas,
imutáveis, ao passo em que este neorracismo se vincula ainda ao sexismo,
estabelecendo um sistema de desigualdades jurídicas, econômicas e sociais e uma
pluralidade de estratégias de exclusão que recaem especialmente sobre as mulheres
(RIVERA, 2010, p.15-16). Mas se a população racializada, na Itália, varia ao longo do
tempo, podemos observar que a violência contra as mulheres também é
instrumentalizada com finalidade política: ainda que agressões contra as mulheres sejam

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transversais, que independam de status, classe e nacionalidade e ocorram em múltiplos
espaços, o tema da violência masculina sobre as mulheres recebe grande ênfase quando
os protagonistas são os homens estrangeiros, reforçando, assim, os discursos que
imputam a incivilidade, a barbárie ao sujeito estrangeiro, sobretudo de origem árabe e
africana, como se a violência sexista e misógina constituísse uma característica
ontológica destes sujeitos. As campanhas políticas e midiáticas ignoram
sistematicamente que a violência sexista na Itália é endêmica, ao passo em que o país
ocupa a 84º posição em uma lista de 128 países nos quais a violência contra a mulher
alcança níveis elevados, abaixo de países como Filipinas (6º), Sri Lanka (15º) e África
do Sul (20º). Contudo, a etnicização do estupro e da violência contra as mulheres de
modo geral são funcionais ao racismo e são assim representados na mídia, nos discursos
políticos e populares.
Raça e sexo remetem, neste contexto, à ideia de grupos naturais, reificados e
transformados em coisas (COROSSACZ, 2013), funcionando sobre o mesmo
mecanismo: a atribuição de um local social sobre a base de elementos que essencializam
o grupo, de modo que aquilo que torna comum o racismo e o sexismo não é o fato de
serem duas formas de opressão ou de violência, mas o fato de que estas formas de
opressão são vistas como o êxito inevitável de uma diferença natural entre os grupos
(IDEM; SARACENO, 2016, 2016a, 2017). Contudo, apesar de tal articulação,
prevalece no país uma dificuldade histórica em admitir tanto a existência do racismo,
que se fundamenta no mito do italiano “brava gente”, supostamente não maculado pela
experiência colonial, quanto a existência do sexismo e do machismo, profundamente
arraigado na sociedade italiana (RIVERA, 2010; COROSSACZ, 2013; SARACENO,
2017). Predomina o entendimento de que uma igualdade formal é suficiente para
garantir uma sociedade não sexista, imputando ao Outro estrangeiro o lugar do mundo
“incivilizado, pré-moderno”, marcado pela violência sistemática contra as mulheres,
racializando o sexismo.
Nesse sentido, os diversos casos cotidianos de ofensas verbais, agressões
físicas, discriminações e racismo, que crescem no ritmo das devastadoras crises
econômicas e políticas, expressam as conexões entre os fenômenos do populismo
político, da imigração em massa e do “retorno” do racismo e da misoginia na sociedade
italiana. A investigação de tais fenômenos sociais através das manifestações estéticas e
políticas produzidos pela Liga revela a presença de novos dispositivos de
desumanização das minorias e a paralela transformação política em não-pessoa e

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inimigo (DAL LAGO, 2004; BURGIO, 2001, 2012). Trata-se de um dilema que
acompanha o curso da modernidade, conforme apontou o jurista italiano Antonio
Cassese (2008) acerca do declínio dos direitos humanos e da difusão do nacionalismo
agressivo e violento que, novamente, produz a construção social do outro que, não
sendo reconhecido como humano em sua plenitude, é transformado em inimigo.
Contudo, é muito importante compreendermos como a utilização política da linguagem
do ódio (hate speech) foi capaz de promover, em um curto espaço de tempo, duas
profundas transformações na realidade social: 1) a neutralização nos indivíduos e
cidadãos do pudor e da vergonha que até pouco tempo coibia e impedia as
manifestações verbais da discriminação, da xenofobia e do racismo e 2) a destruição da
memória histórica e política construída na segunda metade do século XX que, após a
revelação da violência extrema do fascismo e do nazismo, forjou os pilares dos direitos
humanos fundamentais e dos direitos sociais e econômicos: o direito à identidade e à
liberdade, o respeito e a dignidade existente em toda vida humana (RODOTÀ, 2012).

As agressões racistas e sexistas contra as mulheres imigrantes


As mulheres imigrantes, sobretudo aquelas de origem africana, latina e árabe,
sofrem ataques constantes que evocam o repertório do passado colonial e as
representações acerca dos corpos das mulheres negras. Tornou-se comum no discurso
popular, por exemplo, a substituição da palavra “prostituta” pela palavra “nigeriana”,
ao mesmo tempo em que a mídia difunde imagens com o objetivo de reforçar uma
suposta “hipersexualidade” das mulheres de origem africana (ANGEL-AJANI, 2000)
difundindo ainda imagens relativas a uma espécie de “super fertilidade” das mulheres
estrangeiras para barrar o direito à reunificação familiar e criticar as políticas sociais
que supostamente privilegiariam os filhos de migrantes em detrimento dos nativos.
Outro aspecto importante que evidencia “um formidável exemplo de racismo e
sexismo institucional” (PETTENÒ, 2010, p.539) pode ser observado na ausência de
referência às violências sofridas pelas mulheres migrantes nos relatórios
governamentais, sobretudo aquelas que são levadas à prostituição, como demonstrado,
entre outros, no Rapporto sulla criminalità in Italia, de 2007, elaborado pelo Ministério
do Interior. O relatório desconsidera as violências sofridas pelas prostitutas de origem
estrangeira, considerando apenas as violências cometidas contra as mulheres italianas,
uma vez que “a grande maioria dos clientes é branca e italiana enquanto a grande

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maioria das mulheres prostituídas são „de cor‟ e imigradas, de modo que aquilo que se
consuma a cada noite nas ruas italianas é um verdadeiro estupro étnico de massa”.
Na cidade de Trento, norte da Itália e fronteira com a Áustria, no mês de Maio
ocorre a festa popular que celebra as ações dos Alpinos, um corpo militar montanhês de
defesa das fronteiras do norte da Itália, na qual são relembradas as batalhas na Primeira
Guerra Mundial. No curso das festividades ocorridas em maio de 2018, diversas
mulheres sofreram desrespeitos, abusos, violências físicas, agressões verbais, tentativas
de estupro. Em Trento, estes casos possuem um elemento extremamente importante,
relatado por mulheres que estavam trabalhando nas cantinas e hospedagens como
garçonetes e camareiras. Na página do Facebook "Nem uma a menos Trento", diversas
jovens relataram que sofreram violências físicas e verbais, dentre elas, uma jovem
garçonete morena que testemunhou e sofreu as seguintes agressões no bar em que
trabalhava: "estes negros de merda", "não sou racista, mas...", "que voltem todos para
suas casas", "mataria todos", "tire as tetas para fora", "bela gostosa venha aqui", "que
bela morena, faça-me uma chupeta", "não quero ser servido por uma marroquina" e
sintetizou as agressões dizendo: "Me senti injustamente violentada e impotente,
violentada pelos olhares, pelos comentários sexistas, pelas apalpadas, pela exotização
do meu corpo transformado em objeto sexual, que desperta odores de violência e
nostalgias coloniais" (MICROMEGA, 2018).
É importante observar, como sustenta Nicoletta Poidimani, que “os velhos e
experimentados dispositivos racistas e desumanizantes que se formaram justamente nos
cinquenta anos da experiência colonial na África são reativados hoje sobre a pele de
mulheres e homens migrantes, em nome da segurança” (2009, p.09). Enquanto no
período colonial a posse do corpo das mulheres negras coincidia com a conquista
colonial este fato servia também como um instrumento eficaz de recrutamento das
tropas. Mas se às mulheres negras cabia a exploração sexual, às mulheres brancas,
italianas, era reservado o papel de proteção do sangue, de modo que ao proclamar, em
1936, o Império Italiano da África Oriental, Mussolini consolida o racismo de Estado ao
sancionar dispositivos jurídicos que demarcavam claramente a distância entre os
cidadãos e os súditos, cabendo às mulheres italianas a defesa do patrimônio genético da
raça, sob o risco de serem rebaixadas a súditas no caso de envolvimento com os
colonos. Estes dispositivos jurídicos que pressupunham a não-mistura buscavam
também expropriar as mulheres do controle sobre sua própria fecundidade, sendo
consolidados na defesa do ius sanguinis (POIDIMANI, 2013). Da hipersexualização e

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das representações das mulheres negras como metáfora de um corpo-território a ser
dominado, se passa paulatinamente à criminalização das relações mistas e à
animalização das mulheres africanas.
Assim, a referência ao passado a partir de um olhar para o presente permite
compreender como o papel atribuído a mulheres nativas e estrangeiras durante o período
colonial e o império fascista ainda ecoa nas relações sociais no país, uma vez que a
mentalidade racista e patriarcal contribuiu para uma espécie de regime de segregação
racial que não se restringe ao passado, uma vez que “quando não possuem os
documentos em ordem, as mulheres imigrantes são corpos estranhos, invisíveis, fora das
normas, sobre as quais o macho italiano reivindica o poder de abusar e que, uma vez
explorada, devem ser expulsas ou confinadas” (SABELLI, 2012).

A racialização do sexismo
Na cidade alemã de Colônia, na passagem do ano de 2015, diversas mulheres
sofreram desrespeitos, abusos, violências físicas, agressões verbais, tentativas de
estupro, que, no dia seguinte, foram imputados aos imigrantes e refugiados presentes na
Alemanha de Angela Merkel. A imediata culpabilidade atribuída aos estrangeiros pelos
jornais alemães e europeus, que estampavam notícias alarmistas e apocalípticas, gerou
diversos protestos de repúdio ao ingresso de imigrantes oriundos de culturas que são
vistas como não respeitadoras das liberdades das mulheres e da igualdade de gênero. O
movimento social PEGIDA e o partido Alternative für Deutschland promoveram
diversas manifestações públicas nas quais reafirmavam os nexos entre a imigração e a
insegurança, um tema que levou o partido político ao Parlamento Alemão em 2018. O
ponto mais significativo ocorreu nos slogans das passeatas anti-imigração, nas quais
eram destacadas as seguintes palavras de ordem: "defendamos as nossas mulheres" e,
em alguns casos, evocavam o “estupro da Europa”, como é possível observar na capa da
revista polonesa abaixo, exibida logo após os eventos de Colônia.
O uso do pronome possessivo é extremamente
revelador da fortíssima mentalidade machista, patriarcal
e patrimonial, que se sente ameaçada pela presença de
outros homens. Como afirmou a socióloga italiana
Chiara Saraceno (2016), os movimentos anti-imigração
e anti-islamismo e os partidos da nova direita, "são
poucos ou nada sensíveis às moléstias e agressões que as mulheres europeias e

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ocidentais sofrem em seus próprios países (uma sobre três, segundo os últimos dados de
Eurostat)", mas levantam suas vozes quando tais agressões são cometidas por
estrangeiros.
Ainda que o caso alemão tenha gerado comoção ao nível mundial, imagens
similares tem sido publicizadas na Itália, evocando o passado fascista, como podemos
observar nas imagens abaixo:

http://www.liberoquotidiano.it/news/italia/13227508/forza-nuova-manifesto-stupri-fascismo-razzismo-repubblica-
sociale-italiana.html

A primeira imagem é uma adaptação de um cartaz produzido durante o


fascismo, baseado numa iconografia habitual dos colonos, hoje representados pela
figura do imigrante. Se a mulher estrangeira aparece como aquela disponível aos
nativos, os homens estrangeiros, por sua vez, representam os corpos ofensivos, que
trazem risco às mulheres da nação, reforçando a ideia de que as mulheres precisam ser
protegidas, uma vez que seriam mais frágeis. A permanente ameaça ao corpo da mulher
branca é utilizada tanto para legitimar o racismo contra os imigrantes quanto a própria
ideia do risco evoca elementos importantes do fascismo e de discursos racistas de matriz
colonial, como a necessidade de proteção da raça, estabelecida juridicamente durante o
governo Mussolini e a atribuição aos corpos negros de uma força instintiva que os
impediria de conter as pulsões sexuais, de modo que o problema da violência sexual
converte-se em um problema da segurança do território.

A Liga e os casos Cécile Kyenge e Laura Boldrini


Tullio de Mauro, o famoso linguista italiano do século XX, no relatório
intitulado Palavras para ferir, solicitado por Laura Boldrini na Comissão “Jo Cox”
sobre a intolerância, a xenofobia, o racismo e os fenômenos de ódio9, elencou a imensa
variedade de palavras de ódio (hate speech) disseminadas na cultura italiana
9
Trata-se da primeira comissão realizada na União Europeia após o brutal assassinato da Deputada
britânica Jo Cox em 16/06/2016 por um britânico devido às posturas a favor da imigração e dos direitos
humanos fundamentais.

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contemporânea e dirigidas para as pessoas, grupos e classes identificados como
ameaçadores, inferiores e perigosos. Muitas das palavras elencadas por De Mauro
compõem a linguagem política da Liga desde a sua fundação até o recente sucesso
eleitoral. Para o linguista Giuseppe Antonelli, a “vulgar eloquência” da linguagem
política contemporânea comporta estereótipos negativos, insultos e desprezos que “de
Bossi a Salvini, de Berlusconi a Grillo, é sempre mais presente e frequente o uso da
palavra obscena” que “não somente foi inflacionada, mas está quase institucionalizada”
(ANTONELLI, 2017, p.77). A força das palavras obscenas e vulgares do discurso
político populista atinge as emoções, os sentimentos, as pulsões profundas dos
indivíduos, ao mesmo tempo, que mobiliza a percepção e o intelecto dos cidadãos em
direção dos inimigos internos e externos apontados como culpados pelas crises que
assolam a sociedade italiana.
No curso das graves crises econômicas, políticas e culturais que a Itália
atravessava após 2008 e 2010, que resultaram na destituição de Berlusconi do cargo de
premiê, os governos ocupados por atores técnicos e políticos promoveram diversas
reformas, dentre elas, no governo de Enrico Letta (de abril de 2013 a fevereiro de 2014)
a nomeação de Cécile Kyenge para ocupar a pasta do Ministério do Integração. O
governo Letta buscava promover duas mensagens políticas em meio aos gravíssimos
acontecimentos diários de imigrantes afogados no Mar Mediterrâneo, desembarque
contínuo de novos imigrantes, acirramento da xenofobia, do racismo e do sexismo: a
nomeação de uma mulher e de uma mulher de cor de pele negra. A nomeação de
Kyenge foi alvo imediato de manifestações preconceituosas e racistas por membros da
Lega Norte, seja na forma de comentários nas postagens em seus sites, seja na forma de
charges e pôsteres usados imediatamente como propaganda política.
Um pôster em especial merece à atenção pela construção semântica e simbólica
que, utilizando a expressão “Se isto é um ministro...”, modifica o título de um dos livros
de testemunho dos horrores do nazismo escrito pelo sobrevivente de Auschwitz Primo
Levi Se questo è un’uomo. A utilização do título do livro que narrava os processos de
desumanização sofridos pelos judeus, comunistas, eslavos, ciganos, homossexuais,
dissidentes políticos expressa duas importantes manifestações políticas dos partidos da
nova direita que compõem a extensa família do populismo contemporâneo: a destruição
do passado e a neutralização do fascismo e do nazismo pelo revisionismo e pela
relativização. O título do cartaz também visava expor ao vexame a Ministra que
supostamente seria conivente com a clandestinidade, outra palavra que é neutralizada

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historicamente (os seres humanos que tiveram que viver na clandestinidade para
sobreviver às leis raciais e à solução final do nazismo) e transformada pela semântica
populista na figura do imigrante “ilegal”, que se esconde para poder agir de forma
delinquente, perigosa, ameaçadora no cotidiano das cidades italianas. A criminalização
da condição de imigrante sem documentos, sempre mais distante da possibilidade de
conseguir obter o direito de asilo e o acesso à cidadania pelas sucessivas leis italianas,
gerou a condição de clandestinidade que afeta a vida de milhares de pessoas na Europa
desde a década de 1990. O cartaz visa atingir “os instintos e as pulsões primárias”
(ANTONELLI, 2017, p.8) dos italianos e produzir uma mentalidade sempre mais
avessa às figuras dos imigrantes e dos políticos que defendem seus direitos.
A palavra de ordem “A clandestinidade é um
crime!” foi e é um dos slogans repetidos permanentemente
pelas lideranças políticas da Liga. Para Antonelli (2017), a
linguagem política do populismo é caracterizada pelos
seguintes elementos: a agressividade linguística que
impossibilita o diálogo entre os grupos sociais; o aumento
da distância entre as palavras e os fatos; a proliferação das
frases feitas e breves, os slogans de alto impacto emotivo;
o abuso do uso de palavras de uma ou duas sílabas, as promessas fabulosas de retorno à
vida e ao status perdidos, o desrespeito e desprezo das outras forças políticas e pela
agressividade e violência verbal, a discriminação e construção da figura do inimigo. A
substituição do argumento e da ideia pela emoção produz uma língua política grosseira,
simplista e agressiva que paralisa o debate político e promove o processo de-
democratização da sociedade (BROWN, 2015). Nesse contexto, o ponto extremo da
linguagem política xenofóbica, racista e misógina ocorreu em 13/07/2013 quando o
Senador Roberto Calderoli, um dos políticos mais expressivos da Liga, em uma festa
partidária, afirmou que “quando vejo Kyenge penso em um orangotango” (La
Repubblica, 2013). A imediata repercussão da frase e os inúmeros protestos das forças
sociais e políticas resultaram no pedido de desculpas à Ministra que, não obstante,
protocolou a queixa de falta de decoro do Senador, cujo processo resultou na não
cassação pelos senadores italianos pelo argumento de que a frase não fora pronunciada
no Senado e sua opinião não está vinculada com sua função de senador. A negligência e
conivência política em absolver Calderoli em 2015 não é pior do que a justificativa do
Senador em 2013: tratava-se de uma “piada”, como aquela que as pessoas dizem no bar,

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nos encontros de família. Lynda Dematteo (2007) em seu estudo acerca da Liga
intitulado L’idiote en politique. Subversion et néo-populisme en Italie demonstra que o
artifício dos atores políticos do partido em pronunciar ofensas, grosserias, vulgaridades,
frases racistas e, posteriormente, afirmar que se tratava de uma mera piada, foi
amplamente utilizado para subverter os códigos de conduta e moralidade da política
tradicional e para promover ofensas à determinados atores políticos que rendiam amplos
dividendos políticos nos eleitores conservadores. O uso da linguagem obscena e vulgar
das piadas serve para efetuar a identificação plena e imediata entre o líder político e os
indivíduos e cidadãos: falam e pensam da mesma forma, utilizando as mesmas palavras
que a pessoa comum diz no "bar, no armazém, na barbearia, no círculo esportivo, no
estádio, na praça, onde no domingo senta para conversar com os amigos" (TARCHI,
2017, p.251).
Cécile Kyenge foi e continua sendo utilizada pelos políticos da Liga como alvo
de agressões e vulgaridades, violências verbais e ameaças físicas. Simboliza o corpo que
ameaça o machismo em seus principais espaços tradicionalmente exclusivos de
prestígio e poder: a profissão e a política. A visibilidade que alcançou como Ministra de
duas pastas, deputada e eurodeputada, gerou a reação violenta da Liga e a reprodução
das palavras de Calderoli nas postagens de diversos simpatizantes que continuam
chamando-a de orangotango, prostituta e lançam bananas em suas manifestações
públicas (MENGISTE, 2013; URBINATI, 2013).
A atuação de Laura Boldrini como Alta Comissária para os Refugiados da
Organização das Nações Unidas entre 1998 e 2012, quando proferiu diversas críticas e
acusações à Itália governada por Berlusconi e pela Liga também fez com que fosse alvo
de densas manifestações agressivas promovidas sobretudo por atores políticos do
partido, especialmente por Matteo Salvini. Boldrini representa a luta que envolve o
domínio e a hegemonia masculina sobre o corpo e a vida das mulheres, e assim tem sido
o alvo preferencial das fake News produzidas e divulgadas pela Liga e seus apoiadores.
Uma das manifestações mais extremas de Salvini acerca da figura pública e do papel
profissional e político de Laura Boldrini ocorreu em um comício da Liga Norte em
julho de 2016 na cidade de Soncino quando, chamando a atenção do público, afirmou:
“há uma sósia de Boldrini aqui” (La Repubblica, 2016) e um correligionário levantou
uma boneca inflável utilizável para fins sexuais. A manifestação de Salvini contém uma
evidente conexão entre o machismo, o sexismo e a misoginia, bem como, e de um modo
mais profundo, do embate entre os homens e as mulheres. Trata-se do mesmo

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mecanismo político utilizado por Calderoli na identificação de Kyenge ao orangotango:
a utilização da piada, do escárnio e da palavra de ódio como forças semânticas que
negam a política baseada em argumentos e ideias, a construção de discursos eruditos e
afirma uma nova forma de manifestação estética da política: a linguagem simples e
direta que não tem receio e medo de chamar “pelo nome e sobrenome os inimigos” e
para eles “endereçar os humores polêmicos” (TARCHI, 2017, p.149). A boneca inflável
representa Laura Boldrini como uma prostituta, uma palavra recorrente nas respostas
dos seguidores do Twitter de Matteo Salvini, quando o líder faz profundas críticas às
suas ações, ideias e posicionamentos políticos vinculados à imigração, aos direitos
humanos fundamentais, aos direitos sociais e econômicos.
Para o líder da Liga, Laura Boldrini representa a defensora dos imigrantes e a
traidora dos italianos, aquela que pretende promover a negação das tradições culturais e
da identidade italiana e substituí-las por valores e tradições dos imigrantes africanos. As
afirmações dicotômicas e maniqueístas de Salvini são frequentemente repetidas pelos
seguidores do Twitter, como, por exemplo, na resposta à seguinte postagem de Salvini:

“Não é “imigração”: é INVASÃO, é ocupação militar, econômica,


cultural e demográfica. E os cúmplices desta tentativa de SUBSTITUIÇÃO
ÉTNICA, quando eu estarei no governo, serão processados e pagarão, com o
próprio bolso. Boldrini irá me denunciar? Que se dane! #stopinvasão.” (Twitter
Salvini, Julho de 2017)

Nos comentários dos seguidores podemos observar como a linguagem política


construídas através de estereótipos negativos, obscena e vulgar, agressiva e hostil, está
profundamente vinculada com a opinião manifesta pelos cidadãos-seguidores:

- Virginia @Virgini87207398 in risposta a @matteosalvinimi: Temos que nos libertar


dessa possuída pelo demônio;

- MbBgt6 luigi @MBgt65 in risposta a @matteosalvinimi: Ela será uma puta por
toda a vida;
- Cocci-nella @Cocci1309 in risposta a @matteosalvinimi: Matteo força contra esta
prostituta que representa 3% dos italianos!!!
- Virginia @Virgini87207398 in risposta a @matteosalvinimi: “DEVE SER
ELIMINADA”;
- Francesco Bartolomei @frances_bart) in risposta a @matteosalvinimi: “denuncia a
jornalista comunista Boldrini que em um país normal já teria acabado na prisão ou em um
instituto psiquiátrico;

- Alessandro Tamanini @AlessandroTama4 in risposta a @matteosalvinimi: “Boldrini


que se foda!”.

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O não reconhecimento de Matteo Salvini da ação profissional e política de
Boldrini abrange as mais diversas esferas. Para Salvini, Laura Boldrini representa “a
pior presidente da Câmara da história” e é “racista com os italianos”. As posições
políticas no combate à política do medo e do alarmismo, da xenofobia e do racismo
contido na Liga e em outros movimentos e partidos da nova direita e, sobretudo, a
defesa dos direitos humanos fundamentais dos imigrantes, da política de acolhimento
digna e respeitosa, da aplicação dos direitos sociais e econômicos aos imigrantes que
obtiveram à cidadania e a defesa do direito ao jus solis como Presidente da Câmara dos
Deputados foram alvos não apenas de duras críticas de Salvini em suas postagens no
Twitter e Facebook, como produziram muitas ameaças à sua vida e de seus familiares
que foram e são ainda hoje dirigidas por simpatizantes da Liga.

Conclusão
A força semântica e simbólica contida na linguagem e no discurso político
populista não apenas capta com crescente sucesso a atenção dos cidadãos expostos à
vulnerabilidade e à incerteza, ao medo pela queda do nível de vida e às transformações
do modo de vida (REYNIÉ, 2013), mas produz a construção social dos novos
mecanismos de desumanização e discriminação. No início do século XXI, os slogans e
as imagens políticas promovem novos processos sociais de negação da existência
humana nos grupos e classes subalternos e minoritários. A linguagem vulgar e agressiva
ativa energias pulsionais e estimula a ação verbal e física de desrespeito e vexame tanto
para pessoas que não são reconhecidas como plenamente humanas e identificadas como
ameaçadoras e perigosas à ordem da comunidade nacional orgânica e homogênea. A
presença do outro – a mulher livre, a imigrante, o imigrante, o homossexual, o
bissexual, o transexual – incomoda profundamente a figura do homem branco e dos
seus tradicionais privilégios e papeis em todos os espaços sociais.
Não estamos apenas presenciando uma radical passagem de época em direção
àquilo que não é ainda, como afirmava o sociólogo alemão Ulrich Beck em suas
análises da modernidade radicalizada, mas também estamos testemunhando a
articulação de forças sociais e políticas que promovem uma ampla negação das
conquistas sociais criadas com liberdade e justiça social da democracia moderna e do
Estado Social. Na avançada contrarrevolução em curso na Europa e no mundo, a Itália
representa um dos países no qual os fenômenos morbosos da época do interregno – o
termo usado por Gramsci para expor a dura passagem de época quando as forças velhas

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estão em processo de morte e as novas forças não conseguem atingir a hegemonia – são
sempre mais cotidianos: o aumento da violência contra a mulher na casa e nos espaços
públicos e profissionais, a disseminação do discurso e do crime de ódio contra as
mulheres e homens imigrantes, a proliferação da linguagem política obscena e cínica, a
difusão do racismo, da xenofobia e da misoginia nas redes sociais.
No curso da modernidade, os avanços e as conquistas alcançadas pelos grupos
e classe sociais subalternos tendem a sofrer um processo político de reação e de-
emancipação, promovido pelas forças sociais que desejam manter ou aumentar o
acúmulo de privilégios, direitos, bens e poder. De fato, “nem toda noite termina na
aurora”, como buscava apontar dialeticamente Stanislaw Jeryz Lec a força da noite em
promover a eliminação da existência de novas formas de identidade e relacionamentos,
valores e ideias, organizações e instituições na nova ordem mundial.

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Acessado em 10 de maio de 2018.

Sítios eletrônico acessados e analisados:

Twitter Matteo Salvini :twitter.com/matteosalvini


Site oficial da Liga :http://www.leganord.org/

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1361 1378


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Reivindicação dos direitos humanos e oposição ao racismo no


conto “Metamorfose”, de Geni Guimarães

Maria Aparecida de Barros1

Resumo: Tecido a partir das ocorrências da infância, o fio narrativo do conto “Metamorfose”,
de Geni Guimarães, verte-se da memória. A voz/escrita questiona a história oficial a respeito
da escravatura e da condição do sujeito negro, numa sociedade movida por manifestações
racistas que em muitas situações se apresentam de forma sutil e dissimulada, por isso,
desconsideradas como práticas preconceituosas. O racismo fere, sobremaneira, a população
negra, causa-lhe transtornos, dificulta-lhe a integração social. Centrando nessa proposição, o
presente artigo objetiva analisar, a partir das lembranças elaboradas pela protagonista - uma
menina na fase escolar do ensino fundamental que pelas pistas textuais parece cursar a
terceira série, possivelmente, conta com a idade de 10 anos - a reflexão autoral sobre a
valorização cultural, a ressifignificação identitária dos sujeitos descendentes dos povos
africanos. Atentar-se-á à construção da palavra, pelos mecanismos da memória/voz/escrita,
instrumento utilizado pela escritora afrodescendente para exteriorizar, artisticamente, o
entendimento do que é ser negro numa sociedade excludente e discriminatória. Assim, ao
examinar a narrativa, pretende-se compreender a reelaboração da identidade individual e
coletiva, visto que a reinvenção da diferença outorga-se na escrita literária de uma mulher
negra, definida pelo caráter revolucionário e político, portanto. Sob essas orientações, aspira-
se que as formulações discutidas alcancem professores, pesquisadores, alunos, comunidade, e
que o intercâmbio favoreça a discussão, o enfrentamento a qualquer forma de negação do
outro, no reconhecimento e valorização de diversas culturas constituintes da sociedade
brasileira.

Palavras-chaves: Geni Guimarães; Racismo; Identidade individual e coletiva.

1
UNESP-ASSIS; Pós-doutoranda em Letras; mapdebarros@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1379 1379


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Introdução
Professora, escritora, poeta e ficcionista ascendente dos povos de África, Geni
Mariano Guimarães, nasceu em uma das áreas rurais do interior paulista, fazenda Vilas Boas,
São Manuel, em 8 de setembro de 1947. Aos cinco anos, seus pais deslocaram-se para outra
fazenda, localizada no município Barra Bonita e, posteriormente, ela se transferiu a este
município, lugar em vive até hoje. Recantos promissores para que a menina exercitasse o
imaginário, na interação com a natureza e os animais que se avizinhavam ao seu reino
encantado, bem como tornar público as máscaras do racismo que persistem em preterir e
desqualificar os de origem africana; cenários e episódios recriados em seus textos e poesias
que, tempos depois, foram publicados nos jornais da região. “Bem antes de frequentar a
ensino oficial, eu “lia” poesias e histórias em tudo quanto eram livros, revistas, jornais que
encontrava. Quando entrei para a escola, o professor me contou que eu era poeta e, vendo que
era bom, assumi por inteiro o privilégio do dom” (GUIMARÃES, 1998, p. 94). Proeza
alargada na trajetória existencial, juntamente com a amplitude acerca do racismo e do
preconceito, mecanismos mantenedores da histórica injustiça social, que continua a vitimar as
comunidades afrodescendentes pelos tempos afora.
Denúncias que se fazem notórias em seus depoimentos e suas produções poéticas:
Terceiro filho, Editora Jalovi, 1979, Da flor o afeto, da pedra o protesto, Barra Bonita: Ed. da
Autora, 1981; Balé das emoções, Barra Bonita: Ed. da Autora, 1993; nas obras de contos:
Leite do peito, Fundação Nestlé de Cultura, 1988; Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001; A
cor da ternura, Editora FTD, 1989; e nas publicações dedicadas ao público infantil: A dona
das folhas, Editora Santuário, 1995; O rádio de Gabriel, Editora Santuário, 1995; Aquilo que a
mãe não quer, Barra Bonita: Ed. da Autora, 1998.
Técnica em que irriga a superfície textual, com os referenciais da cultura de origem
africana, veiculada pela oralidade, difundida pelos saberes da ancestralidade. Do trabalho
literário brota múltiplos significados, basilares para expressar o modo de ser, de se avaliar a
vida, de se organizar o pensamento, nas estratégias para forjar a própria identidade, em
espaços margeados pela violência e exclusão. Exterioriza que as pessoas, independente de
suas etnias e credos, devem respeitar as diferenças, pois cada indivíduo porta subjetividades
que não podem ser julgadas como superiores ou inferiores. São por estas manifestações que
Geni Guimarães desenha, por intermédio das produções literárias, alternativas outras para que
sociedade brasileira encare o problema do racismo, a fim de organizar formas de combatê-lo
e superá-lo.

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Raízes africanas nas letras de Geni Guimarães


A africanidade, patenteada na composição de Geni Guimarães, reporta-se ao modo
peculiar dos descendentes africanos nas reivindicações pela individualidade, singularidade,
dignidade, pautado nas raízes culturais dos antepassados. Notadamente, Silva (2003)
considera relevante que as lutas, os saberes, dilatados dos grupos étnicos africanos, devam ser
valorizadas como distintivo da nacionalidade brasileira, pois, ao se “compreender e respeitar
diferentes modos de ser, viver, conviver e pensar; discutir as relações étnicas, no Brasil, e
analisar a perversidade da assim designada democracia racial; refazer concepções relativas à
população negra, forjadas com base em preconceitos” (SILVA, 2003, p. 26), há possibilidades
de se analisar atitudes e reprimir estereótipos, conservados pela ideologia do branqueamento e
pelo mito da democracia racial, estigmas reforçadores do preconceito, porque golpeiam a
dignidade dos afrodescendentes.
Dessa forma, para se conceber o sistema no qual se arquiteta o racismo, torna-se
primordial considerar e analisar outras realidades, principalmente as de culturas e vozes
escamoteadas pelo sistema capitalista, a fim de se contestar todas e quaisquer formas de
diminuição do sujeito individual e coletivo. E dentre as manifestações, constela a escrita
literária que ao aflorar-se do ato imaginativo, traz à tona questionamentos sobre o mundo e o
próprio indivíduo, já que

Ao sobrevalorizar o elemento cultural, a própria escrita, enquanto criação,


acaba, invariavelmente, por assumir uma função crítica. Isto é, o autor
africano dando-se conta da desagregação da civilização real de que faz parte,
investe na reivindicação de outra ordem cultural que comporta elementos e
valores de estabilidade e dignidade, numa atitude interventora e redentora
(NOA, 2015, p.18).

As palavras compostas no tear artístico da escritora afro-brasileira caracterizam-se


como instrumento de aprendizagens e possibilidades, porque a escrita imprime apreciações
sobre outras maneiras de se atribuir significado aos acontecimentos e a própria existência.
Adorna-se pela atitude de rebeldia e inconformismo, ao provocar reflexões e contestar
condutas homogeneizadas, nocivas à integridade física e psicológica dos indivíduos.
Insubmissão na qual a autora celebra uma parceria com os leitores, firmada na
confiança e apoio de que se declarará contrária e combaterá atitudes preconceituosas,
imputadas aos negros e a todas as pessoas afetadas pela intolerância. Imersa nessas
preocupações, transgredindo conceitos padronizados e requerendo os direitos sonegados, o
produto ficcional destaca-se, inclusive, pela dimensão política. “Daí que, metafórica ou

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metonimicamente, o texto literário vai sempre emergir como representação ou recriação de


dimensões determinadas da totalidade” (NOA, 2015, p. 54).
A narrativa de Geni Guimarães configura-se pelo traçado biográfico, a escrita
reconecta-se à memória coletiva, projeta a subjetividade da comunidade africana e, da matéria
literária, deflagra-se a trama protagonizada por esses grupos periféricos. As vivências,
desdobradas em significados, denotam sentidos de luta e resistência, convertidas em
estratagemas para afirmação identitária, ressignificação do sentimento de pertencimento e
direito à cidadania.
Ao falar de si própria, a narrativa de Geni Guimarães abraça a coletividade, no
frutífero trabalho de reconstituição das africanidades e restauração da memória ancestral. E,
para formatação das ideias poéticas, o conto foi o gênero eleito, “Por apresentar uma estrutura
breve, por ser uma fala suspensa, o conto vinca, de forma acentuada, a sua condição de
fragmento e sobretudo a sua relação com a totalidade. Isto é, é um retalho que se institui como
utopia do todo, do mundo e das linguagens que nos rodeiam” (NOA, 2015, p. 143).
Longe da escrita, geralmente ministrado por um ancião, que tinha por incumbência
de orientar, de transmitir os valores culturais, a nascente do conto encontra-se nas narrativas
orais. Uma das premissas desse gênero é a concentração no enredo sintético, focado em um
único conflito, com a finalidade de abalar as certezas do leitor. Este deve alargar a percepção
a todos os traços demarcativos que perfazem a narrativa, pois são elementares para
composição dos significados, já que

o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite físico,(…) o


fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma
imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham
por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no
leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e
a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou
literário contido na foto ou no conto (CORTÁZAR, 2006, p.151-2).

Criativamente, Geni Guimarães relata, no conto “Metamorfose”, cenas da infância


de uma menina, o tempo narrativo caracteriza-se pelo aspecto psicológico, uma vez que a
organização das ideias e a sensibilidade projetam-se pelas impressões da protagonista, em sua
experiência de escolarização, na primeira etapa do ensino fundamental, momento em que se
depara com o racismo. O fluxo da consciência se fixa nas memórias passadas tanto no âmbito
familiar como nos espaços do estabelecimento de ensino, ambos localizados na zona rural.

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Nas considerações de Duarte (2008), a literatura afro-brasileira particulariza-se pela


conjugação dos seguintes fatores: temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público,
mecanismos que se valem os escritores para reconstituir o passado e por em questão as
distorções históricas, que não conferem visibilidade e/ou inferiorizam as lutas dos povos
negros. E, a respeito do ponto de vista argumenta tratar-se

[d]a adoção de uma visão de mundo própria e distinta da do branco,


sobretudo do branco racista, como superação de modelos europeus e de toda
a assimilação cultural imposta como única via de expressão. Ao superar o
discurso do colonizador em seus matizes passados e presentes, tal
perspectiva configura-se enquanto discurso da diferença e atua como elo
importante dessa cadeia discursiva que irá configurar a afrodescendência na
literatura brasileira (DUARTE, 2008, p. 17).

Recursos apropriados por Geni Guimarães, materializados no produto literário, pois


à personagem principal de “Metamorfose” - conto integrante da obra Leite do Peito, que
abriga doze narrativas - a autora cede-lhe a voz. E é sob a perspectiva da criança negra, não
nomeada, que a narrativa se compõe, das páginas saltam os relatos das violências sofridas,
das dores sentidas, bem como a atitude da menina frente a essas experiências, pois, o “lugar
de onde se fala é o lugar dos oprimidos” (DUARTE, 2008, p. 15). Assim, a protagonista,
animada pelo artifício artístico, dá a conhecer ao leitor a conjuntura desfavorável em que
encontrava inserida, constituindo-se em empecilho à sua transposição, dessa margem social.
O tempo narrativo faz registro ao mês de maio, a história se inicia no ambiente
escolar, destacando o primeiro dia de aula e a apreensão da narradora mirim, porque portava
na bolsa um poema, por ela produzida, para homenagear a Princesa Isabel, com os seguintes
versos: “Foi boa para os escravos,/E parecia um mel,/Acho que é irmã de Deus,/Viva a
Princesa Isabel” (GUIMARÃES, 2001, p. 57) e o medo em mostrá-lo à professora, Dona
Cacilda.
Inibição vencida no dia posterior, no momento em que ela passou por sua carteira, a
menina lhe entregou a composição, porém, o pavor foi-lhe aumentando ao observar-lhe a
atitude “Pegou a caneta, riscou qualquer coisa por sobre os meus versos e mandou o Pedro
chamar o diretor” (GUIMARÃES, 2001, p. 57), concorrendo a aumentar o desconforto e a
tensão da menina: “Imediatamente me deu vontade de urinar e vomitar. Será que havia feito
alguma coisa errada? E se houvesse feito, iria para os grãos de milho nos joelhos?”
(GUIMARÃES, 2001, p. 57). No entanto, as autoridades escolares, diretor e professora,

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legitimaram lhe a habilidade poética, mas nada lhe disseram, somente ao término da aula, na
saída, foi que o diretor a parabenizou.
No entanto, a desenvoltura poética da personagem principal não foi levada em
consideração por dona Cacilda, para uma atividade de declamação no evento comemorativo a
Princesa Isabel. “Levantei a minha mão, que timidamente luzia negritude em meio a cinco ou
seis mãozinhas alvas, assanhadas” (GUIMARÃES, 2001, p. 59). Resoluta, a aluna dirigiu-se à
docente: “Dona Cacilda, eu tenho aquela que eu fiz outro dia, que eu mostrei pra senhora e a
senhora chamou o diretor e ele falou parabéns e eu deixo ela mais grande...” (GUIMARÃES,
2001, p. 59). No dia seguinte, 13 de maio, a aula se inicia com a seguinte explanação docente
e o consequente abalo à dignidade da estudante de ascendência africana:

— Hoje, comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que


vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar e, pelos serviços
prestados, nada recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados, às
vezes, até a morte. (...)
Vi que a narrativa da professora, não batia com a que nos fizera a Vó
Rosária. Aqueles escravos da Vó Rosária eram bons, simples, humanos,
religiosos. Esses apresentados então eram bobos, covardes, imbecis. Não
reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos. Quando dei por mim, a
classe inteira me olhando com pena ou sarcasmo. Eu era a única pessoa dali
representando uma raça digna de compaixão, desprezo. Quis sumir,
evaporar, não pude (GUIMARÃES, 2001, p. 62-63).

Então, os versos iniciais, por ela produzidos, inspirados nas informações da Vó


Rosária - fortemente influenciada pelo mito da democracia racial que propagava a relação
harmoniosa entre os negros e os brancos, apesar do processo escravagista - e o discurso
docente - exibindo o negro como subordinado, despossuído de humanidade, inerte à opressão
- ambas perspectivas, reprodutoras da visão da classe dominante, operam o conflito interno
na protagonista. Exposta a essa situação de humilhação, ela se depara com o preconceito
racial, a invisibilidade, a submissão dos povos africanos, referenciados na História e
reforçados, na conduta austera, exercida no ambiente escolar, pelas autoridades pedagógicas.
Tais episódios injetam na criança o drama da rejeição, atinge-lhe, sobremaneira, a
autoestima, e ao sentir-se preterida, abala-lhe a estrutura identitária. “A cultura informa
através de seus arranjos simbólicos, valores e crenças que orientam as percepções de mundo”
(LIMA, 2005, p. 101). Dessa maneira, os princípios de padronização desenvolvidos pela
escola afirmam à aluna negra que, pertencendo ao povo explorado e subalterno, estará
aprisionada ao derrotismo, fenômeno inibidor de promoção da igualdade.

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No recreio, a Sueli veio presentear-me com uma maçã e a Raquel, filha do


administrador da fazenda, ofereceu-se para trocar meu lanche de abobrinha
abafada pelo dela, de presunto e mussarela. Não os comi, é claro. A
compensação desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um
pano sobre e pronto. Era sangue. Quem poderia devolvê-lo... Vida? Que se
enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro,
onde a ferida aberta era silêncio todo meu, dor sem parceria?
(GUIMARÃES, 2001, p. 63)

A experiência vivida pela estudante, a certificação de duas proposições


incompatíveis: o conformismo dos subalternizados versus o privilégio dos subordinadores,
ocasionou-lhe sentimentos de desconforto e angústia e a consequente desordem em seu
quadro psicológico, porque as novas informações lhe corroíam os pensamentos, faziam ruir o
sistema de suas crenças, inclusive as de que os povos negros eram respeitados pelos os
brancos. A sensação de desenraizamento minou a confiança em si mesma:

A ideia me surgiu quando a minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a
tirar da panela o carvão grudado no fundo. Assim que ela terminou a
arrumação, voltou para casa. Eu juntei o pó restante e, com ele, esfreguei a
barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era
impossível tirar todo o negro da pele. (...) Dentro de uma semana, na perna
só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim
mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando (GUIMARÃES, 2001, p.
66).

A violência simbólica reafirmada pela autoridade pedagógica em relação à


estereotipação da população negra, levou a aluna a hostilizar-se, no desejo de negação de si
própria, na distorção de sua imagem, e a de seu grupo de pertencimento, por julgar-se,
igualmente, inferior. Este sentimento engendra-se na malha social, visto que à descendente
africana, bem como ao povo brasileiro, foi negado o conhecimento sobre a permanente história
de luta dos povos africanos, pela liberdade e o direito à cidadania. A interdição a esta
visibilidade foi e continua sendo o ponto central para manutenção da discriminação racial,
responsável por agudizar o estágio de degeneração da identidade da personagem principal, bem
como os de incontáveis meninos, meninas...
Mas, tanto a autora quanto a personagem central, com as articulações estabelecidas,
rompeu o silêncio, “Acredito que o ato de escrever é o veículo de exteriorização da situação
de um povo dentro da sociedade e pode, com isso, motivar mudanças” (GUIMARÃES, 1998,
p. 94). A elevação da consciência autoral aprofunda-se no evento literário em reprovação ao
extermínio psicológico do sujeito africano, atestável na destruição de seu legado ancestral e

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no apagamento de sua voz. Pela experiência social e pelas práticas de leitura e escrita, Geni
Guimarães compreende a sua própria vivência e a de seus antepassados e, deliberadamente, a
escrita assume contornos reivindicatórios para políticas de inclusão e de coesão social.

Agora, muito extraordinariamente, os povos menores - outrora colonizados,


escravizados, suprimidos - não precisam mais ficar calados ou se deixar
explicar apenas por europeus e americanos mais velhos do sexo masculino.
Houve uma revolução na consciência das mulheres, das minorias e dos
marginais, tão poderosa a ponto da afetar o pensamento dominante em todo
o mundo (SAID, 2007, p. 461- 462).

E, por intermédio do recurso literário, Geni Guimarães denuncia ideias e


comportamentos racistas, pois continuam a ferir, a mutilar e a ceifar os grupos sociais
descendentes dos povos de África. Contrastando-se com o saber eurocêntrico, o produto
artístico engenha outras formas de representação do negro, já que pelo arranjo na linguagem, o
significante e significado edificam o negro como sujeito, analisando as circunstâncias geradas
pelo preconceito e exclusão social, cria estratégias para subvertê-las.
Por essa razão, a disposição de Geni Guimarães em escrever e problematizar sobre a
opressão e depreciação da identidade africana formata lhe a resistência, pois a criança não foi
rendida pelos padrões impostos. Por isso, “a constituição de uma identidade social é um ato
de poder (...) pois se uma identidade consegue se afirmar é por meio da repressão daquilo que
a ameaça” (HALL, 2000, p. 110). Por esta tomada de consciência, a escritora aponta outras
vias para restauração da condição humana, porque

Entre outras funções, a memória funciona como ordenação, reconstituição e


restituição. Mas sobretudo ela garante a dotação de sentido para o que,
aparentemente, não tem ou perdeu sentido. (...) E a escrita literária é
seguramente um dos caminhos privilegiados se não na sua recuperação, mas
pelo menos na sua visualização e problematização (NOA, 2015, p. 85).

Nestes termos, a memória, na arte literária de Geni Guimarães, questiona a herança


do passado histórico, proveniente da sociedade colonial, no sentido de mobilizar e criar
alternativas para superação do racismo, pois o intercâmbio, o diálogo, que se efetua por meio
da escrita e leitura, proporciona ao sujeito que lê ampliar, ressignificar as experiências,
repensar , alterar (pre)conceitos, a fim de conferir outros significados às existências. Pois, “o
sujeito que escreve o faz não apenas com vistas a atingir um determinado segmento da
população, mas o faz também a partir da compreensão do papel do escritor como porta-voz de

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uma determinada coletividade” (DUARTE, 2008, p. 19). As imagens retratadas no


sociodrama, que ilustram esse conto, determinam-se por profundas tensões.
E, na condição de porta-voz, há, na escrita de Geni Guimarães, questionamento e
ruptura com os pressupostos históricos hegemônicos, no veemente desejo da realização da
“Metamorfose”, ou seja, de que os sujeitos das etnias africanas tenham o direito de
protagonizar e narrar suas próprias histórias, na luta incansável contra aos ideias
conservadores e reacionários, mantenedores da injustiça e da desigualdade social.
A memória/a literatura é subterfúgio para se resgatar a alteridade, comungar
vivências, instrumento que pode impulsionar a transformação do indivíduo, de sua própria
história e, de modo consequente, visar o bem estar coletivo, no processo de legitimação de sua
identidade cultural, “Só ficaram as chagas da alma esperando (GUIMARÃES, 2001, p. 66)”.
Logo, a mudança de paradigma restitui a humanidade do sujeito negro, porque no
espaço/tempo simbólico, a autora confere novos sentidos aos signos, visto que nas inter-
relações experimentadas pela discente negra há contestação aos procedimentos hegemônicos
que danificaram lhe a autoestima e, no quadro mais abrangente, atinge a coletividade dos
grupos sociais afrodescendentes. Ao particularizar os conflitos e as contradições, a escrita
constitui-se em um mecanismo para o enfrentamento ao racismo e para o fortalecimento da
afirmação identitária.

Considerações finais
No conto “Metamorfose” evidencia-se o engajamento político da escritora Geni
Guimarães na ostensiva manifestação contra as formas de intolerância cometidas contra as
comunidades negras, por indivíduos que depreciam a diversidade cultural, divergente da
eurocêntrica, com práticas cotidianas que infringem as leis e violam os direitos humanos.
Então, a arte literária dessa mulher negra representa a promoção da identidade africana, bem
como alternativas para a edificação de uma sociedade igualitária, na valorização das culturas
que a compõem.
Nesse sentido, existem diversas leis, dentre elas a de número 10.639/2003,
posteriormente alterada pela a de número 11.645/2008, dirigido ao sistema educacional, por
considerar os espaços pedagógicos, com o rol das ciências que os caracterizam, mecanismo
imprescindível à reflexão, ao debate acerca dos problemas emergentes da realidade atual,
pautando as questões étnico-raciais. Ao se contextualizar, em diversos ângulos culturais, a
composição e manutenção do racismo, do preconceito, da exploração, há possibilidade do
desenvolvimento do pensamento crítico, aflorado do processo investigativo que instiga o ser

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social a tomada de decisão para a resolução dos problemas cotidianos. E, desse modo, a
conjuntura pode ser profícua para a efetivação de mudanças comportamentais, sobretudo, ao
que se refere ao respeito à igualdade de direitos, ações promissoras ao processo de
humanização.

Referências

ASSIS, Eduardo de Assis. Literatura Afro-Brasileira: um conceito em construção. Revista


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 31, janeiro-julho de 2008, p.11-23.

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Tradução Davi Arriguci Jr. e João Alexandre
Barbosa; organização Haroldo de Campos e Davi Arriguci Jr.- São Paulo: Perspectiva, 2006.

GUIMARÃES, Geni. Leite do Peito:contos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2001.

______. A cor da ternura; ilustrações Saritah Barboza. 12ª ed. São Paulo: FTD, 1998.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. In. SILVA, Tomas Tadeu (Org.) Identidade e
Diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000, p.103-133.

LIMA, Heloisa Pires. Personagens negros: um breve perfil na literature infant-juvenil. In:
MUNANGA. Kabengele (Org.). Superando o racismo na escolar. 2ª ed. Revisada. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade,
2005.

NOA, Francisco. Perto do fragmento a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo. São
Paulo: Editora Kapulana, 2015.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosaura


Eichenberg. São Paulo. Companhia das letras, 2007.

SILVA , Petronilha Beatriz Gonçalves e. Africanidades brasileiras: Esclarecendo significados


e definições. Revista do professor, Porto Alegre, 19 (73): 26-30, jan./mar. 2003. Disponível
em: http://www.portal.educacao.salvador.ba.gov.br. Acesso em 02/05/2018.

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A Invisibilidade dos Conteúdos e das Políticas de Gênero e de Relações Étnico-


raciais no PEE/PR (2015-2025)

Angela Maria de Sousa Lima1


Angélica Lyra de Araújo2

RESUMO: O PEE/PR (Plano Estadual de Educação do Paraná), publicado em 24/06/15, foi


elaborado por um comitê gestor, instituído pelo Decreto Estadual nº 12.728, de 08/12/14, que
em sua elaboração contou com a participação direta de diferentes órgãos, movimentos sociais
e entidades. Porém, como o PNE (2014-2024) e muitos outros planos estaduais e municipais,
o PEE/PR sofreu a pressão dos movimentos conservadores que conseguiram impedir a
inserção das categorias de diversidade/identidade/desigualdade sexuais e de gênero, assim
como a denominação da população LGBTI na maioria de suas estratégias. Mesmo sofrendo a
pressão de coalizações políticas menos significativas nesse campo de recorte, os conteúdos
das relações étnico-raciais também ficaram significativamente invisibilizados nesta
importante materialização de currículo. A supressão desses conteúdos, essenciais na formação
educacional, contribuem na ampliação dos processos de invisibilização dos sujeitos e grupos
sociais historicamente excluídos no Brasil. Em contrapartida, temos neste mesmo período
histórico, a publicação da Resol. CNE/CP nº 02/2015 que, entre outros avanços, traz a
obrigatoriedade dos conteúdos de diversidades étnico-raciais, sexuais e de gênero nos
currículos de formação inicial e continuada de professores. São essas estratégias de
invisibilidade, recortadas na análise do PEE/PR, como elementos que acirram as
desigualdades sociais e desafiam as políticas públicas educacionais na contemporaneidade,
que problematizaremos sociologicamente nesse artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo. Gênero. Relações Étnico-raciais. PEE/PR

INTRODUÇÃO

Objetivamos problematizar, sociologicamente, as facetas da invisibilidade


político-pedagógica dos conteúdos e das políticas de gênero e de relações étnico-raciais no
Plano Estadual de Educação do Paraná (PEE/PR, 2015-2025), diante do contexto persistente
de desigualdades que desafiam os currículos e as práticas de formação inicial/continuada de
professores da Educação Básica e do Ensino Superior no Brasil atualmente. No que diz
respeito aos procedimentos metodológicos, tomaremos como base a análise documental,
comparando a versão do texto base do PEE/PR elaborado pelas entidades representativas e
encaminhado ao Legislativo do Paraná com o texto da Lei nº 18.492/2015. Do mesmo modo,

1
UEL; Doutora em Ciências Sociais; Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UEM; E-
mail: angellamaria@uel.br
2
UEL; Doutora em Ciências Sociais; Colaboradora do LENPES. E-mail: lyradearaujo@hotmail.com

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analisaremos a Resolução CNE/CP nº 02/2015, pelo fato de exigir a obrigatoriedade da


inserção das diversidades sexuais, de gênero e étnico-raciais, entendidas como os referenciais
político-pedagógicos mais recentes que orientam os cursos de Licenciatura e seus projetos de
ensino/pesquisa/extensão no país. Comporão também a presente discussão, os resultados de
duas dissertações defendidas recentemente no Mestrado em Ciências Sociais da UEL:
“Gênero nos currículos e nas percepções das/dos estudantes do Ensino Médio: uma
caracterização sociológica”, de Andréia Cristina da Cruz e “Nome Social como política
pública nas universidades estaduais do Paraná: coalizões, permanências e persistências”, de
Aline Oliveira Gomes da Silva.
No artigo, analisamos detalhadamente a exclusão desses conteúdos, a
representação desses sujeitos e grupos sociais em cada meta e estratégica da última versão do
PEE/PR, publicada como lei. Também destacaremos a inserção ideológica, propositalmente
descontextualizada, do trecho “respeito entre homens e mulheres” em muitas estratégias do
referido documento. De antemão, é importante dizer que uma diferença significativa se instala
no uso desses termos, pois, ao utilizar homens e mulheres no lugar de gênero, nega-se toda a
perspectiva histórica e cultural que envolve os indivíduos e passa-se a priorizar apenas o sexo
biológico, destacando o binarismo de gênero que persiste nas relações sociais desiguais, como
já destacaram Cruz (2017) e Silva (2017).

INVISIBILIDADE E INVISIBILIZAÇÃO DOS CONTEÚDOS E POLÍTICAS


ÉTINICO-RACIAIS E DE GÊNERO NO PEE/PR (2015-2025)

O Plano Estadual de Educação do Paraná (2015-2025), publicado em 24/06/15


como Lei nº 18.492, foi elaborado por um Comitê Gestor, instituído pelo Decreto Estadual nº
12.728 de 08/12/2014, que contou com a participação de diferentes órgãos e entidades, dentre
eles: Associação Paranaense das Instituições de Ensino Superior Público (APIESP); Conselho
Estadual de Educação do Paraná (CEE); Federação das Apaes do Estado do Paraná
(FEAPAES); Federação do Comércio do Paraná (FECOMÉRCIO); Fórum Estadual de
Educação do Paraná (FEE-PR); Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI);
Secretaria de Estado da Educação (SEED); Sindicato das Escolas Particulares do Paraná
(Sinepe); Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP – Sindicato);
União dos Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME); Universidade Federal do Paraná
(UFPR).

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Como já demonstraram Andréia Cristina da Cruz (2017) e Aline Oliveira Gomes


da Silva (2017), o PEE/PR sofreu a pressão dos movimentos conservadores, como a Escola
Sem Partido e o MBL (Movimento Brasil Livre), no que se refere à inclusão e/ou manutenção
de estratégias relacionadas ao combate das discriminações, dos preconceitos, das intolerâncias
e das diversas formas de desigualdades. Entendemos que ao excluir conteúdos,
imprescindíveis à formação ética, humana, crítica e cidadã dos estudantes, em todas as etapas
e modalidades de ensino, exclui-se indicações relevantes de políticas educacionais, uma vez
que nega-se num espaço curricular institucional estratégico como num plano estadual de
educação, a representação de sujeitos, de grupos, de realidades e de conhecimentos que
orientam planejamentos em diversos projetos/programas, instituições e demais espaços
sociais. Por isso, escolhemos analisar as mudanças que ocorreram na versão do texto final,
reorganizado sobretudo pela SEED/PR, após as conferências regionais/estadual e tornada Lei
nº 18.492 em junho de 2015 (PARANÁ, 2015b), que se diferencia significativamente da
versão do texto encaminhada ao Legislativo, após construção coletiva do Comitê Gestor.
Iniciamos pela Meta 01, que trata de “universalizar, até 2016, a educação infantil
na pré-escola [...]” (PARANÁ, 2015a, p. 58), no PEE/PR, encaminhado ao Legislativo3, onde
constava a seguinte redação na Estratégia 1.3:

Propiciar, em regime de colaboração entre União, estado e municípios, por


meio das IES, a formação continuada para os profissionais da educação
infantil, instrumentalizando-os para o desenvolvimento de ações
pedagógicas específicas, bem como o aprimoramento da formação para a
diversidade étnica, questões de gênero e socioculturais, dentre outras
expressas em legislações vigentes, respeitando as especificidades da faixa
etária. (PARANÁ, 2015a, p. 58) Grifo Nosso

A Lei nº 18.492/154, trouxe a redação da estratégia modificada, inserindo, no


lugar de “questões de gênero”, a frase: “educação que efetive o respeito entre homens e
mulheres”, como pode ser comprovado a seguir:

Propiciar, em regime de colaboração entre União, estados e municípios, [...]


bem como aprimoramento da formação para a diversidade étnica sobre
questões culturais, ambientais, combate à discriminação, ao preconceito e à
violência, bem como a educação que efetive o respeito entre homens e
mulheres, respeitando as especificidades da faixa etária. (PARANÁ, 2015b,
p.58) Grifo Nosso

3
A versão encaminhada ao Legislativo encontra-se no site:
http://www.educacao.pr.gov.br/arquivos/File/PEE/PEEPR_ANEXO_UNICO.pdf. Acesso em 02/02/2018.
4
O anexo da Lei nº 18.492/15 encontra-se no site:
http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=143075 Acesso em
02/02/2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1389 1391


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Percebe-se que além da inserção da frase grifada acima, há uma modificação


significativa no sentido da proposta da Estratégia 1.3. No lugar de “aprimorar a formação para
a diversidade étnica, questões de gênero e socioculturais, dentre outras expressas em
legislações vigentes”, trata-se agora do “aprimoramento da formação para a diversidade étnica
sobre questões culturais, ambientais, combate à discriminação, ao preconceito e à violência”.
Na Meta 2, “universalizar o Ensino Fundamental de nove anos para toda a população de seis a
14 anos [...]” (PARANÁ, 2015 a, p.61), existia a seguinte redação da Estratégia 2.21 na
primeira versão do PEE/PR:

Assegurar que a Educação das Relações Étnico-raciais, a Educação das


Relações de Gênero e Sexualidade, o Ensino de História e Cultura Afro-
brasileira, Africana e Indígena, os Planos Nacional e Estadual de Cidadania e
Direitos Humanos LGBT e o Plano Estadual de Políticas para Mulheres
sejam contemplados nos currículos, nos Projetos Político-pedagógicos, nos
Planos de Ações da Educação Básica, com fortalecimento de estruturas
institucionais de acompanhamento. (PARANÁ, 2015a, p.62) Grifo Nosso

Onde constava “relações de gênero” foi colocada a frase: “educação que efetive o
respeito entre homens e mulheres” e, no lugar de “sexualidade direitos humanos LGBT”,
aparece apenas “direitos humanos”, como pode ser visualizado a seguir;

Assegurar que a educação das relações étnico-raciais, a educação que efetive


o respeito entre homens e mulheres, o ensino de história e cultura afro-
brasileira, indígena, e dos ciganos, os planos nacional e estadual de
cidadania, direitos humanos, e o plano estadual de política para mulheres
sejam contemplados nos currículos [...]. (PARANÁ, 2015b, p.62) Grifo
Nosso

Ainda na Meta 3, temos uma reconfiguração representativa, tanto no que diz


respeito às questões de gênero quanto às questões étnico-raciais e religiosas. Assim, havia
sido elaborada a Estratégia 3.21.

Implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito de


gênero, orientação sexual, étnico-racial, religião ou quaisquer formas de
discriminação, criando e fortalecendo a rede de proteção contra formas
associadas de exclusão. (PARANÁ, 2015a, p.65) Grifo Nosso

O texto aprovado suprime todos esses marcadores sociais desrespeitados


atualmente, omitindo que o preconceito de gênero, de orientação sexual, étnico racial e
religioso incide diretamente no aumento dos índices de evasão escolar. Desta maneira, a
Estratégia 3.21 passou a vigorar: “Implementar políticas de prevenção à evasão motivada por
situações de discriminação, preconceito ou violência, criando e fortalecendo a rede de

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1389 1392


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proteção contra formas associadas de exclusão [...]. (PARANÁ, 2015b, p.65) Grifo Nosso
No que diz respeito à Meta 7: “fomentar a qualidade da educação básica em todas
as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir
as seguintes médias estaduais para o IDEB”, a Estratégia 7.22, na versão encaminhada ao
Legislativo, assim dizia:

fomentar políticas de combate à violência escolar, inclusive pelo


desenvolvimento de ações destinadas à capacitação de educadores para a
detecção dos sinais de suas causas, como a violência doméstica e sexual,
étnico-racial e todas as demais formas de violência, favorecendo a adoção
das providências adequadas a promover mecanismos de resolução pacífica
dos conflitos (PARANÁ, 2015a, p.75) Grifo Nosso

Percebe-se que essa Estratégia trazia o termo “violência doméstica e sexual”. Essa
foi uma das poucas expressões que se mantiveram na Lei nº 18.492, após muita luta de alguns
agentes das IES/PR (Instituições de Ensino Superior do Paraná) e dos sindicatos, sob pressão
dos movimentos sociais LGBTI (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas
intersex). Observamos que até a palavra mais genérica “conteúdos sobre diversidade” foi
suprimida do texto da lei. Ela aparecia na Estratégia 7.23, acompanhada da relevância de se
considerar “as especificidades previstas em legislação”.

Assegurar a continuidade da implementação das respectivas Diretrizes


Curriculares Orientadoras da Educação Básica para a Rede Estadual de
Ensino, observando, nos currículos escolares, os conteúdos sobre diversidade
e demais especificidades previstas em legislação. (PARANÁ, 2015a, p.76)
Grifo Nosso

Além de desconsiderar a importância do conteúdo sobre diversidades, a nova frase


muda totalmente o sentido da proposta ao dizer que nos currículos devemos observar
conteúdos que reprimam todas as formas de discriminação. A redação foi reconfigurada,
passando a ser publicada desse modo:

Assegurar a continuidade da implementação das respectivas Diretrizes


Curriculares Orientadoras da Educação Básica para a Rede Estadual de
Ensino, observando nos currículos escolares os conteúdos que reprimam
todas as formas de discriminação. (PARANÁ, 2015b, p.76) Grifo Nosso

A Estratégia 7.31 foi inteiramente suprimida;

promover o acesso, a permanência e as condições igualitárias de


aprendizagem aos sujeitos, respeitando a orientação sexual e a identidade de
gênero, bem como a articulação entre as temáticas e conteúdos no currículo
da Educação Básica. (PARANÁ, 2015a, p.77) Grifo Nosso

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No lugar da Estratégia 7.31, agora no texto da Lei nº 18.492, permaneceu apenas a


Estratégia 7.33: “promover o fortalecimento de ações da rede de proteção nas escolas para
atuar no enfrentamento das formas associadas de exclusão e violações de direitos de crianças
e adolescentes” (Paraná, 2015b, p.77). Grifo Nosso. A Estratégia 7.32, por tratar de
“reconhecimento e a afirmação de direitos dos sujeitos e suas diversidades”, também foi
totalmente retirada;

Fortalecer parcerias entre SEED, Secretaria da Saúde (Sesa) e Secretaria de


Estado do Trabalho e Desenvolvimento Social (Seds) para a promoção de
ações permanentes e articuladas nas escolas, visando o respeito, o
reconhecimento e a afirmação de direitos dos sujeitos e suas diversidades.
(PARANÁ, 2015a, p.77) Grifo Nosso

Modificou-se, nessa mesma meta, a Estratégia 7.35, que assim constava na


primeira versão do documento, enviada para o Legislativo:

Produzir e distribuir materiais pedagógicos que promovam igualdade de


direitos e afirmação da diversidade, contemplando a realidade das
populações negra, LGBT, do campo, cigana e em situação de itinerância,
dentre outros segmentos, conforme suas especificidades (PARANÁ, 2015a,
p. 77) Grifo Nosso

A representação da população LGBT que antes aparecia na estratégia 7.35 foi


excluída da Lei nº 18.492, passando a vigorar nova redação em uma nova numeração, agora
como Estratégia 7.33. O trecho “afirmação da diversidade” também foi retirado. Inseriu-se
apenas a população indígena que não aparecia na redação da primeira versão aqui analisada.

Produzir e distribuir materiais pedagógicos que promovam igualdade de


direitos, contemplando a realidade das populações negras, indígenas, do
campo, cigana e em situação de itinerância, conforme suas especificidades.
(PARANÁ, 2015b, p. 77).

O texto da Estratégia 7.37 assim dizia;

Estabelecer mecanismos de monitoramento dos casos de evasão, abandono,


reprovação e aprovação por conselho de classe nas situações de preconceito
e discriminação aos povos (ciganos), sujeitos do campo, povos indígenas,
população negra, LGBT, relações de gênero, dentre outros segmentos,
conforme suas especificidades (PARANÁ, 2015a, p. 77) Grifo Nosso

Tal Estratégia, agora com a numeração 7.35, excluiu a demarcação de todas as


populações antes singularizadas: povos (ciganos), sujeitos do campo, povos indígenas,

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população negra, LGBT e relações de gênero.


No que tange à Meta 11, ou seja, “duplicar as matrículas da educação profissional
técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e expansão no segmento público”,
podemos perceber essas mudanças na Estratégia 11.12. Na primeira versão do documento,
constava “reduzir as desigualdades étnico-raciais, de gênero e regionais no acesso e
permanência na educação profissional técnica de nível médio, inclusive mediante a adoção de
políticas afirmativas, na forma da Lei”. (Paraná, 2015a, p. 83) Grifo Nosso. Substituindo a
expressão: “desigualdades de gênero”, surge o termo “fomentar o respeito entre homens e
mulheres”, como apresentado a seguir:

Reduzir as desigualdades étnico-raciais, regionais, fomentar o respeito entre


homens e mulheres no acesso e permanência na educação profissional
técnica de nível médio, inclusive mediante a adoção de políticas afirmativas,
na forma da lei (PARANÁ, 2015b, p. 83) Grifo Nosso.

Na Meta 12, que trata da articulação com a União para a elevação da taxa bruta
de matrícula no ensino superior, a Estratégia 12.6 era assim descrita, contemplando a
representação da população LGBT:

ampliar as políticas de inclusão e de assistência estudantil, de modo a reduzir


as desigualdades, oportunizando o acesso e permanência, no ensino superior,
de estudantes egressos da escola pública, da população negra, LGBT,
quilombola, cigana, do campo, indígena e de estudantes com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação,
dentre outros segmentos, conforme suas especificidades, de forma a apoiar
seu sucesso acadêmico. (PARANÁ, 2015a, p. 84) Grifo Nosso.

No caso da Estratégia 12.6, a população LGBT é suprimida e acrescenta-se a


categoria “mulheres” no novo texto que se tornou lei. Já na Meta 15, que trata da garantia da
política estadual de formação dos profissionais da educação, a Estratégia 15.11 desse modo
aparecia na primeira versão do documento:

Fortalecer, em regime de colaboração entre União, estado, municípios e IES,


a formação inicial dos profissionais de instituições de Educação Básica, em
todas as etapas e modalidades de ensino, promovendo a educação sobre as
relações étnico-raciais, sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira,
africana, indígena e cigana, sobre a educação das relações de gênero e
diversidade sexual, sobre os direitos humanos e a Educação do Campo
(Paraná, 2015a, p. 89) Grifo Nosso.

A Lei nº 18.492 retirou as terminologias “relações de gênero e diversidade sexual”


da Estratégia 15.11 e colocou no lugar “educação que efetive o respeito entre homens e

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mulheres”.
Fortalecer, em regime de colaboração entre União, Estado, municípios e IES
(preferencialmente públicas), a formação inicial e continuada dos
profissionais de instituições de Educação Básica, em todas as etapas e
modalidades de ensino, promovendo a educação sobre as relações étnico-
raciais, sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira, indígena e cigana,
sobre a educação que efetive o respeito entre homens e mulheres, sobre os
direitos humanos, a Educação do Campo e Meio Ambiente (Paraná, 2015b,
p. 89) Grifo Nosso.

Uma diferença significativa se instala entre esses termos, pois, ao utilizar homens
e mulheres em vez de gênero, nega-se toda a perspectiva histórica e cultural que envolve os
indivíduos e passa-se a levar em conta apenas o sexo biológico. Se fosse utilizada a categoria
gênero, essa categoria representaria melhor toda a complexidade que envolve os indivíduos.
Substituir a palavra gênero pelas palavras homens e mulheres ocorre de maneira a fomentar a
heteronormatividade e o binarismo de gênero presente nas relações sociais, binarismo esse
que fomenta que um dado papel social compete ao indivíduo que é ser mulher, enquanto outro
papel cabe ao indivíduo que é homem.
Mais especificamente acerca das questões étnico-raciais, podemos afirmar que
mesmo desconsideras em metas onde deveriam ter sido demarcadas e mesmo sendo
suprimidas em algumas estratégias, estas foram menos prejudicadas do que as questões de
gênero na troca das versões dos textos do PEE/PR (2015-2025). A palavra “étnico-raciais”
aparece poucas vezes no texto da lei, tanto na primeira quanto na segunda versão, mas em
vários momentos diferentes populações étnico-raciais, historicamente excluídas no Brasil, são
identificadas nas estratégias do PEE/PR.
Demarcamos alguns exemplos da inserção dessas populações no PEE/PR. As
populações ciganas, em situação de itinerância, do campo, indígenas e quilombolas, são
lembradas na Estratégia 1.11 que trata do estabelecimento de programas para garantir o
direito de acesso às creches e pré-escolas. A Estratégia 2.21 suprime as questões de gênero,
mas fala da proposta de “assegurar que a educação das relações étnico-raciais [...], o ensino de
história e cultura afro-brasileira, indígena e dos ciganos [...] sejam contemplados nos
currículos [...]. (PARANÁ, 2015b, p.62).
A estratégia 3.1 especifica as populações cigana e em situação de itinerância,
indígenas e quilombolas, quando fala da ampliação da oferta e matrícula no Ensino Médio,
registrando inclusive que essa deve se dar “preferencialmente em suas comunidades”.
(PARANÁ, 2015b, p.63). As mesmas populações são demarcadas na Estratégia 3.5, que fala
da elaboração, organização e disponibilização de materiais teórico-metodológicos no Ensino

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Médio.
No que diz respeito à diversidade linguística, as populações indígena, cigana, em
situação de itinerância e quilombolas são singularizadas na Estratégia 5.2, assim como a
alfabetização bilíngue para as crianças indígenas é considerada na Estratégia 5.5;

Desenvolver instrumentos de acompanhamento do trabalho pedagógico que


considerem o uso da língua materna das comunidades do campo, cigana, em
situação de itinerância, quilombolas e a língua indígena, dentre outros
segmentos, conforme suas especificidades. (Estratégia 5.2); Consolidar a
oferta de formação continuada de profissionais do magistério que atuam na
alfabetização, inclusive com as especificidades da alfabetização bilíngue
para as crianças indígenas e comunidades surdas, em articulação com IES
[...] (PARANÁ, 2015b, p. 70 e 71).

Já a Estratégia 6.6 foi totalmente retirada do PEE/PR tornado lei estadual. Ela
falava das populações do campo, cigana e em situação de itinerância na elaboração,
organização e disponibilização de materiais teórico-metodológicos específicos para Educação
Integral em tempo integral;

Elaborar, organizar e disponibilizar materiais teórico-metodológicos


específicos para organização do trabalho pedagógico na Educação Integral
em tempo integral, inclusive para as populações do campo, cigana e em
situação de itinerância, dentre outros segmentos, conforme suas
especificidades. (PARANÁ, 2015a, p.72).

A trajetória história e a cultura dessas populações são consideradas na Estratégia


7.24, assim como as realidades das populações negras, indígenas, do campo, cigana e em
situação de itinerância são valorizadas na produção e distribuição de materiais pedagógicos na
Estratégia 33 e as necessidades reais de educandos jovens, adultos e idosos dos diferentes
grupos populacionais, tais como quilombola, indígena, cigana e em situação de itinerância na
Estratégia 9.1.
Consolidar propostas pedagógicas curriculares específicas à educação
escolar para escolas do campo e comunidades indígenas e quilombolas,
incluindo os conteúdos relativos aos conhecimentos e processos próprios de
aprendizagem, bem como a trajetória histórica, a cultura indígena e
quilombola nas propostas pedagógicas das escolas que recebem estudantes
oriundos dessas comunidades. (Estratégia 7.24). Produzir e distribuir
materiais pedagógicos que promovam igualdade de direitos, contemplando a
realidade das populações negras, indígenas, do campo, cigana e em situação
de itinerância, conforme suas especificidades. (Estratégia 7.33); Aperfeiçoar
a proposta pedagógica e as Diretrizes Curriculares Orientadoras da Educação
Básica para a Rede Estadual de Ensino da Educação de Jovens e Adultos
para que possibilitem organizações diferenciadas, adequando-as às reais
necessidades de educandos jovens, adultos e idosos dos diferentes grupos
populacionais, tais como do campo, quilombola, indígena, cigana, em
situação de itinerância, privadas de liberdade, dentre outros segmentos,

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conforme suas especificidades. (Estratégia 9.1). (PARANÁ, 2015b, p.76 a


79).

Em diversos outros momentos, contempla-se especificidades importantes para as


escolas do campo, quilombolas e indígenas. Porém, no que tange ao diagnóstico da Educação
Básica e do Ensino Superior, na primeira parte do documento, onde especifica-se dados
educacionais, panoramas, matrículas, indicadores educacionais, taxas de distorção idade-série
e idade-ano, entre outras variáveis que permitiriam o conhecimento das necessidades reais e
das realidades atuais dessas populações, elas são quase que ignoradas, especialmente nos
quadros e tabelas.

Um dado importante de registro diz respeito à singularização dos povos (ciganos)


nômades, seminômades e sedentários na Estratégia 7.34 que trata da articulação “de ações e
programas entre a Seed, o MEC e as Secretarias Municipais de Educação para o acesso à
escola”. (PARANÁ, 2015b, p.77). No que tange ao Ensino Superior, além da demarcação da
relevância da oferta de cursos de Licenciatura Intercultural, uma única vez as questões étnico-
raciais são especificadas. Isso ocorre na Estratégia 12.20.

Ampliar as políticas de inclusão e de assistência estudantil dirigidas a


estudantes de instituições públicas, bolsistas de instituições privadas de
Ensino Superior e beneficiários do Fies, de que trata a Lei Federal n.º
10.260, de 12 de julho de 2001, no Ensino Superior, de modo a reduzir as
desigualdades étnico-raciais e ampliar as taxas de acesso e permanência de
estudantes egressos da escola pública, negros e indígenas e de estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação, de forma a apoiar seu sucesso acadêmico.
(PARANÁ, 2015b, p.85).

Todas essas mudanças ocorridas na versão do texto tornado Lei nº 18.492 em


junho de 2015 registram situações que acirram a invisibilidade e a invisibilização de grupos
sociais ainda marginalizados nas políticas públicas, principalmente as educacionais e
justificam nossa preocupação em continuar lutando pela singularização curricular que
considere as realidades e os saberes de todos os sujeitos, algo que vai além do caráter
universal dos currículos. Trata-se da persistência em menosprezar determinados saberes, em
função da hierarquização de outros, que continuam guiando as políticas e as propostas
pedagógicas no país.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: RELEVÂNCIA DOS CONTEÚDOS DE GÊNERO E DE


RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURRÍCULOS EDUCACIONAIS

Todas essas questões são problematizadas no sentido de mostrar os retrocessos


que os movimentos conservadores, neo-conservadores e reacionários, a exemplo do “Escola
sem Partido” e do MBL (Movimento Brasil Livre), conseguiram provocar na publicação dos
planos educacionais (nacional, estaduais e municipais), com recorte aqui no Plano Estadual de
Educação do Paraná. Ao mesmo tempo em que pretende-se enfatizar a relevância da inserção
desses conteúdos nos currículos educacionais. E, aí, novos desafios, agora compreendidos
como “brechas” a serem valorizadas, são postos no mesmo ano em que o PEE/PR (2015-
2025) é publicado. Trata-se do Parecer CNE/CP nº 02/2015 e da Resol. CNE/CP nº 02/2015.
Essa última, em seu artigo 13, demarca, entre outras diversidades, a obrigatoriedade de
inserção dos conteúdos de diversidades sexuais, de gênero e étnico-raciais no processo de
formação inicial e continuidade de professores.

Os cursos de formação deverão garantir nos currículos conteúdos específicos


da respectiva área de conhecimento ou interdisciplinares, seus fundamentos
e metodologias, bem como conteúdos relacionados aos fundamentos da
educação, formação na área de políticas públicas e gestão da educação, seus
fundamentos e metodologias, direitos humanos, diversidades étnico-racial,
de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, Língua Brasileira de Sinais
(Libras), educação especial e direitos educacionais de adolescentes e jovens
em cumprimento de medidas socioeducativas. (BRASIL, Resol. CNE/CP nº
02/2015, Art.13, § 2º).

No caso da inserção desses dois conteúdos, ou seja, diversidade étnico-racial e de


gênero, documentos referenciais para as políticas curriculares, de âmbito nacional, tanto para
a Educação Básica, quanto para as Licenciaturas, já existiam antes da Resolução CNE/CP nº
02/2015, mesmo que muitas vezes passassem estrategicamente desapercebidos nas escolas e
nas universidades ou que ainda sejam desvalorizados em função da publicação recente de
outros documentos que materializaram retrocessos para a efetivação de uma educação mais
inclusiva e democrática, como a Lei nº 13.415/2017 e a BNCC (Base Nacional Curricular
Comum).
A Constituição Federal de 1988, em seu inciso IV, onde trata dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, destaca a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A
Lei nº 9.394/96, em seu Art. 3º, prevê o respeito à liberdade e apreço à tolerância. Seguindo
esses preceitos, temos as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Direitos Humanos (2013).

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Segundo o Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação


Básica (2013), fundamentadas na indissociabilidade dos conceitos referenciais de cuidar e
educar;
Exige-se, pois, problematizar o desenho organizacional da instituição
escolar, que não tem conseguido responder às singularidades dos sujeitos
que a compõem. Torna-se inadiável trazer para o debate os princípios e as
práticas de um processo de inclusão social, que garanta o acesso e considere
a diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos historicamente
excluídos. Trata-se das questões de classe, gênero, raça, etnia, geração,
constituídas por categorias que se entrelaçam na vida social – pobres,
mulheres, afrodescentendes, indígenas, pessoas com deficiência, as
populações do campo, os de diferentes orientações sexuais, os sujeitos
albergados, aqueles em situação de rua, em privação de liberdade – todos
que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a
ser contemplados pelas políticas públicas. (BRASIL, DCNs-Ed.Básica,
2013, p.16).

Como bem explicitam essas Diretrizes Curriculares Nacionais, que devem orientar
o trabalho não só de formação dos sujeitos da Educação Básica, mas também a formação
inicial e continuada de professores que atuarão nessa etapa da escolarização, o “currículo é
fruto de uma seleção e produção de saberes: campo conflituoso de produção de cultura, de
embate entre pessoas concretas, concepções de conhecimento e aprendizagem, formas de
imaginar e perceber o mundo”. (BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.24). Mesmo porque a
educação é direito de múltiplos sujeitos, devendo ser abordada sob múltiplas abordagens se se
pretender ser inclusiva.
A educação destina-se a múltiplos sujeitos e tem como objetivo a troca de
saberes, a socialização e o confronto do conhecimento, segundo diferentes
abordagens, exercidas por pessoas de diferentes condições físicas, sensoriais,
intelectuais e emocionais, classes sociais, crenças, etnias, gêneros, origens,
contextos socioculturais, e da cidade, do campo e de aldeias. Por isso, é
preciso fazer da escola a instituição acolhedora, inclusiva, pois essa é uma
opção “transgressora”, porque rompe com a ilusão da homogeneidade e
provoca, quase sempre, uma espécie de crise de identidade institucional.
(BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.25).

Afinal, “na Educação Básica, o respeito aos estudantes e a seus tempos mentais,
socioemocionais, culturais, identitários, é um princípio orientador de toda a ação educativa”.
(BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.35). Por isso, a importância nas atuais diretrizes
nacionais de formação inicial e continuada de professores destacarem o “currículo como o
conjunto de valores propício à produção e à socialização de significados no espaço social e
que contribui para a construção da identidade sociocultural do educando”. (BRASIL, Resol.
CNE/CP nº 02/2015). Esta concepção de currículo dá base para os debates acerca da
efetivação da educação inclusiva nos processos de formação de profissionais do magistério.

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A formação de profissionais do magistério deve assegurar a base comum


nacional, pautada pela concepção de educação como processo emancipatório
e permanente, bem como pelo reconhecimento da especificidade do trabalho
docente, que conduz à práxis como expressão da articulação entre teoria e
prática e à exigência de que se leve em conta a realidade dos ambientes das
instituições educativas da educação básica e da profissão, para que se possa
conduzir o(a) egresso(a): [...] VIII - à consolidação da educação inclusiva
através do respeito às diferenças, reconhecendo e valorizando a diversidade
étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, entre outras.
(BRASIL, Resol. CNE/CP nº 02/2015, Art. 5º).

E a base da educação inclusiva pressupõe singularizar a representação de


realidades, sujeitos e saberes nos currículos, de modo que as populações excluídas
historicamente sejam concretamente valorizadas e incluídas nas políticas educacionais. Na
Nota Pública encaminhada às Assembleias Legislativas, à Câmara Legislativa do Distrital
Federal, às Câmaras de Vereadores, aos Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais de
Educação e à Sociedade Brasileira, em 01/09/2015, após tantos ataques ao PNE,
especialmente com a veiculação estratégica da chamada “ideologia de gênero”, o Conselho
Nacional de Educação assim se manifestou, reforçando esta nossa premissa da singularização
curricular;

o CNE manifesta sua surpresa – pelas normas e orientações em vigor – e


preocupação com planos de educação que vem sendo elaborados por entes
federativos brasileiros e que têm omitido, deliberadamente, fundamentos,
metodologias e procedimentos em relação ao trato das questões relativas à
diversidade cultural e de gênero. O ato de universalizar direitos, mormente
na educação, implica identificar e nominar, em situações concretas do
cotidiano da existência humana, as singularidades, especialmente em
formações sociais que, tradicionalmente as desconheceram, seja por via da
omissão, seja por via da generalização que não lhe dá cobertura. (BRASIL,
Nota Pública CNE, 01/09/2015, p. 2).

Este é apenas um dentre tantos outros desafios para formação inicial e continuada
de professores, assim como para a organização de currículos da Educação Básica que
realmente considerem os direitos de aprendizagem de todos os sujeitos, indistintamente,
assumindo os direitos humanos como princípio social norteador nas políticas educacionais.
Entretanto, todas essas mudanças não se fazem por decreto. É necessário mobilização política
constante.

[...] a educação para todos não é viabilizada por decreto, resolução, portaria
ou similar, ou seja, não se efetiva tão somente por meio de prescrição de
atividades de ensino ou de estabelecimento de parâmetros ou diretrizes
curriculares: a educação de qualidade social é conquista e, como conquista
da sociedade brasileira, é manifestada pelos movimentos sociais, pois é
direito de todos. (BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.14).

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Aqui destacamos a responsabilidade do campo educacional em continuar


mobilizado politicamente, fortalecendo seus fóruns permanentes, as associações, os
sindicatos e as entidades representativas já existentes para reverter supressões como esta
ocorrida no PEE/PR durante as discussões de realimentação/avaliação das metas e
estratégias, nas atualizações dos currículos das escolas de Educação Básica, assim como nos
processos de criação, adequação e reformulação curriculares dos cursos de formação inicial e
continuada de professores nas universidades.

REFERÊNCIAS

BRASIL. BNCC (Base Nacional Curricular Comum). Ensino Médio. MEC. Brasília: DF,
2018. Inserido em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-
content/uploads/2018/04/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site.pdf Acesso em 26/05/2018.
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil: 1988. Casa Civil. Brasília: DF, 1988. Inserido
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em
11/05/2018.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação. In: Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
BRASIL. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. In: Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica MEC, SEB, DICEI, 2013.
BRASIL. Lei nº 13.005/2014. Plano Nacional de Educação 2014-2024. Brasília: Câmara dos
Deputados, Edições Câmara, 2014. Paraná. Documento-base do Plano Estadual de Educação
do Paraná 2015-2015. Curitiba: 2015.
BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília: DF, 1996. Inserido em:
http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf. Acesso em 11/05/2018.
BRASIL. Resol. CNE/CP nº 02/2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica
para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. MEC.
CNE. Brasília. 2015.
CRUZ, Andréia Cristina da. Gênero nos currículos e nas percepções das/dos estudantes do
ensino médio: uma caracterização sociológica. 2017. 129 f. Dissertação de Mestrado
(Mestrado em Ciências Sociais) – UEL- Londrina, 2017.
PARANÁ. Lei nº 18492, de 25/06/15. Aprovação do Plano
Estadual de Educação e adoção de outras providências. Curitiba: Casa Civil. 2015.
SILVA. Aline Oliveira Gomes. Nome social como política pública nas universidades
estaduais do Paraná: coalizões, permanências e persistências. 2017. 140 f. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais). UEL- Londrina, 2017.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1389 1402


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A escola e a educação de meninas na perspectiva de Mary Dascomb

Jamilly Nicácio Nicolete1

Resumo: A presença de professores e professoras de diferentes nacionalidades no Brasil


oitocentista contribuiu para a educação, no sentido de repensar o lugar da mulher da
sociedade. Mary Parker Dascomb era missionária, educadora e participou ativamente da vida
pública da Igreja Presbiteriana de Curitiba e da Escola Americana de Curitiba, instituições
que representava através de sua formação, uma mulher, Mestra em Artes, em 1878. O
recontar de sua trajetória, de mulher que permaneceu solteira, imigrante de destaque, pois era
norte-americana, nos mostrou um discurso não reivindicante, embora privilegiado. Do ponto
de vista da história cultural e dos estudos de gênero, através da análise de cartas que Miss
Dascomb trocava com o também educador e diretor do Mackenzie, em São Paulo, Horace
Lane, buscamos revelar aspectos de sua vida pública e pessoal, em especial no que diz
respeito a educação de meninas é o objetivo desse artigo.
Palavras-chaves: educação de meninas; Mary Dascomb; mulheres professoras.

1
Docente do Centro Universitário Toledo de Ensino/ Araçatuba; Doutora em Educação;
jamillynicacio@hotmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1144 1144


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Introdução

A presença feminina no magistério no Brasil, apesar de determinante nos rumos


tomados pela profissão ao longo das décadas em que esta se alicerçou no panorama
educacional nacional, ainda não tem sido prioridade nos estudos sobre gênero e educação.
Isso certamente reflete a sistemática de exclusão do sexo feminino nas várias instâncias do
mundo social e do trabalho.
A profissão professora que, a princípio, foi ideologicamente erigida como dever
sagrado e sacerdócio por conta da tradição religiosa do ato de ensinar, tornou-se, na segunda
metade do século XX, uma profissão definitivamente feminizada e as mulheres professoras
têm em suas mãos a responsabilidade de ensinar crianças nos seus primeiros anos escolares,
num país que acaba de promulgar a sua segunda Lei de Diretrizes e Bases e instituir a Década
Nacional da Educação.
Esse trabalho situa-se no âmbito de uma investigação histórica acerca do discurso,
nem sempre coerente, de uma educadora, missionária, gestora, norte-americana, acerca da
educação de meninos e em especial, de meninas. É um texto baseado na perspectiva
essencialmente feminina sobre o espaço escolar.
Mary Parker Dascomb, mulher, branca, solteira, sem filhos, norte-americana, foi
a primeira missionária educadora enviada ao Brasil pela Junta de Missões Estrangeiras
de Nova York pra trabalhar especificamente no projeto educacional, comprimindo a premissa
de abrir ao lado de cada igreja uma escola. Passou a sua infância e mocidade em Oberlin,
Ohio. Atuou na obra educacional presbiteriana no Brasil de 1869 a 1917, ano de sua morte,
período marcado por transformações políticas, sociais, econômicas e educacionais. Essas
mudanças passavam pelo fim da monarquia, o fim do trabalho escravo e o início do trabalho
livre e assalariado, participação do capital estrangeiro, tanto inglês como norte-americano, as
imigrações e a intensa circulação de novas tendências de pensamento: positivismo,
industrialismo, ruralismo (HILSDORF, 2003). Miss Dascomb foi a primeira diretora do
Mackenzie, então Escola Americana de São Paulo, em 1871.
Para Certeau (1982, p. 64), a história é um discurso que produz enunciados
“científicos”, definindo-se com esse termo a “possibilidade de estabelecer um conjunto de
regras que permitam ‘controlar’ operações proporcionadas à produção de objetos
determinados”. Segundo Chartier (2010), todas as palavras dessa citação são importantes:
“produção de objetos determinados” remete à construção do objeto histórico pelo historiador,
já que o passado nunca é um objeto que já está ali; “operações” designa as práticas próprias da

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tarefa do historiador (recorte e processamento das fontes, mobilização de técnicas de análise


específicas, construção de hipótese, procedimentos de verificação); “regras” e “controles”
inscrevem a história em um regime de saber compartilhado, definido por critérios de prova
dotados de uma validade universal.
Certeau (1994, p. 31) afirma que o “o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou
que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão
no presente”. [...] “O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior”. [...]
“É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada”.
Certeau (1994) nos mostra que “o homem ordinário” inventa o cotidiano com mil
maneiras de “caça não autorizada”, escapando silenciosamente a essa conformação. Essa
invenção do cotidiano se dá graças ao que o autor supracitado chama de “artes de fazer”,
“astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os objetos e os códigos, e
estabelecendo uma (re) apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Ele acredita nas
possibilidades de a multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos impostos
pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um, procura viver, do melhor modo
possível, a ordem social e a violência das coisas.
A partir do trabalho de Stolke (2006) e respeitando as especificidades do contexto
histórico, é possível pensar no caso brasileiro já que semelhante ao que aconteceu na América
Espanhola, no Brasil a mulher e as relações de gênero serão centrais na definição de um
ideário nacional e, consequentemente, do futuro do país.
Alvarez (2004) entende que as relações desiguais de poder entre homens e mulheres se
manifestam num sem-número de espaços e processos cotidianos ditos privados, sociais e
culturais, econômicos, sexuais, etc. E esses espaços precisam ser entendidos como políticos –
espaços e processos onde as relações desiguais de poder entre os gêneros, e também de
classes, raciais etc. se constroem, se mantêm, se (re) configuram, e também onde essas
relações de poder têm sido contestadas ou desafiadas historicamente. Para a autora, as
relações de gênero são hierárquicas e de poder dos homens sobre as mulheres, implicando
assim, numa nova correlação de forças construídas pela auto-organização das mulheres e mais
favoráveis a elas. No entanto, Mary Dascomb, uma mulher oitocentista, ocupou um lugar de
destaque e liderança e ao contrário do que se pensava para as mulheres de sua época,
manteve-se inupta.
Scott (1991) entende que os conceitos de gênero estruturam a percepção e a
organização concreta e simbólica de toda a vida social. Carvalho (1998) afirma que gênero
não é um conceito que descreva as relações entre homens e mulheres, mas uma categoria

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teórica referida a um conjunto de significados e símbolos construídos sobre a base da


percepção da diferença sexual, utilizado na compreensão de todo o universo observado,
incluindo as relações sociais e, mais particularmente, as relações entre homens e mulheres.
A escola para meninas gerida pelos norte-americanos oferecia uma nova organização
do espaço e do tempo escolares, com cursos seriados, distribuídos em oito anos letivos,
precedidos de matrícula e encerrado com exames públicos. As alunas eram agrupadas em
classes, segundo as idades e o estágio dos estudos, em contraste com as demais escolas que,
muitas vezes, reuniam em salas únicas, meninas de 4 a 16 anos. Ao invés de bancos, carteiras
duplas, de modelo e procedência estadunidense, bem como a aplicação do método intuitivo,
que propunha lições curtas e graduadas. À disposição os professores tinham uma completa
utensilagem que incluía campanhias elétricas, quadros negros, mapas, cartazes, microscópios
e toda a aparelhagem dos laboratórios de ciências exatas, físicas e naturais (HILSDORF,
2002, p. 97).
Mesquida (1994, p. 49) destaca que “era nesse novo espaço sócio-cultural atraente,
sedutor, que se materializavam, pela prática educativa, a história, o modo de vida (o american
way of life) e a concepção de mundo do país de origem dos missionários”. Hilsdorf (2002, p.
97) estudou tal modelo institucional, a autora afirma que a metodista Martha Watts era uma
mulher sem marido, que praticava uma educação e instrução voltadas à ideologia liberal
permitindo em suas alunas “a completa evolução de seus poderes pessoais”.
Numa carta escrita em 1906, Mary Dascomb demonstra a prevalência por um ideal de
beleza, por uma conduta feminina nos moldes cristãos e norte-americanos: “Eu esperava que
você e Fanny dessem um pulo aqui por uma semana ou duas e eu os mostraria o quão
diferente são os nossos jovens - o tipo que você espera que as meninas imitem. Somente uma,
alemã gorda tem algo do mesmo preconceito de todas as pessoas infelizes em casos de amor.
Ela é o máximo” (GOLDMAN, 1961, p. 313).
Louro (1997) argumenta que a partir do momento que se entende gênero como
constituinte da identidade do sujeito, é deixado para trás o mero desempenho de papéis, a
simples atuação daquilo que lhe é esperado.
A abordagem de gênero possibilitou a discussão das relações de poder entre homens e
mulheres e explicitou a construção da desigualdade entre eles na história das sociedades
ocidentais. Hoje, o rompimento da dicotomia que destinava os homens ao domínio público e
as mulheres ao domínio doméstico não esgotou a necessidade de se discutir as relações de
gênero, já que as relações de poder são inerentes a elas e todas as relações sociais sofrem
transformações constantes e contínuas ao longo da história.

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Trabalho e educação

A Escola Americana Presbiteriana de Curitiba iniciou suas atividades como filial da


Escola Americana Presbiteriana de São Paulo. No primeiro Relatório enviado à Missão em
1892, os trabalhos foram descritos da seguinte forma: “Escola Americana – sita à Rua
Comendador Araújo e fundada em 16 de janeiro de 1892, dirigida pelas professoras Mary
Dascomb e Elmira Kuhl”. Inicialmente, seguindo a organização da escola matriz de São
Paulo, o trabalho no Paraná foi dividido em três níveis: Primário, Intermediário e Secundário.
O primeiro semestre foi iniciado com a matrícula de 55 alunos, sendo 5 deles internos. No
segundo semestre, a matrícula subiu para 70 alunos (RELATORIO, 1892).
Nascimento (2005) salienta que os colégios protestantes atraíam os filhos dos
republicanos e liberais, que apresentavam anseios de modernização. Tais instituições
apresentaram cursos para todos os segmentos, desde o Jardim da Infância, até o Curso
Normal, onde professores eram preparados para exercerem o magistério. Quanto aos
professores, a presença, desde o início das atividades escolares, de pessoal especializado para
o magistério, credenciava os colégios protestantes americanos quanto à eficiência e seriedade
de seu trabalho. Em particular, a vinda de “schoolmarms”, professoras missionárias
diplomadas nos Estados Unidos e frequentemente com vários anos de experiência no
magistério público e particular, foi uma constante (HILSDORF, 1977).
A Escola Americana de Curitiba, de acordo com os relatórios analisados distinguia-se
desde o mobiliário, procedente de Nova York:

Nossa mobília escolar vinda de Nova York, não chegou antes de novembro e está
em uso há apenas três semanas. As salas agora ocupadas, acomodarão 100 alunos,
36 do Primário, 28 do Intermediário e 36 do secundário. O Internato acomodará três
professores e 12 alunos (RELATORIO, 1892).

O Relatório de Instrução Pública do Estado do Paraná de 1894 aponta alguns


problemas quanto à infraestrutura das instituições escolares da época: “Em todas as
localidades é sensivel a falta de predios apropriados ás escolas, construindo segundo os
preceitos da hygiene aliada á esthetica, de maneira que a escola seja para a infancia uma
especie de templo que lhe estimule o gosto para o estudo”. Sobre as Mobílias e os Livros
Escolares: “As escolas publicas em geral achão-se mal providas de moveis, que ou são
insufficientes, ou imprestáveis” (RELATÓRIO, 1894).

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Para Hahner (2011), na década de 1870 surgiu uma percepção da necessidade de


reformas essenciais na organização da economia e do sistema político. Para os brasileiros que
pregavam a modernização material do Brasil, a educação seria um elemento essencial para o
desenvolvimento do país, e eles apoiaram melhoramentos na educação feminina. No entanto,
a ênfase ficou na maternidade, a qual ligavam ao progresso e ao patriotismo.
No fim da década de 1870 a coeducação ganhou força, defendida com vários
argumentos, incluindo o argumento econômico. Segundo Hahner (2011), enquanto as taxas
nacionais de alfabetização masculina e feminina não estavam diminuindo, as taxas de
alfabetização nas cidades em crescimento não só aumentavam, como a disparidade entre as
taxas masculina e feminina diminuía progressivamente. “No Rio de Janeiro, por exemplo, a
taxa de alfabetização feminina comparada à masculina subiu de 29% feminina versus 41%
masculina em 1872 a 44% feminina versus 58% masculina em 1890. O crescimento do
número absoluto de mulheres alfabetizadas nos centros urbanos mais desenvolvidos forneceu
um grande potencial para a eleição de professoras que podiam ser contratadas por salários
inferiores” (HAHNER, 2011, p. 02).
A parcela feminina da população buscava maior nível de instrução e a Escola Normal
se tornou bastante procurada pelas jovens paulistas oriundas não apenas da classe média, mas
também das famílias mais abastadas do estado por oferecer a oportunidade de prosseguimento
de estudos. Para a admissão na escola era exigida a verificação da idade, da saúde, da
inteligência e personalidade, fato que demonstra a elitização do curso no período, nos rastros
de uma política educacional bastante autoritária. Para as moças era ainda necessário
apresentar autorização do pai ou do marido no ato da matrícula
Apesar das expectativas alvissareiras da ordem e do progresso do final do século XIX
e início do século XX, a higiene, a moralidade e religiosidade, a pureza, os ideais de
preservação da raça, da sobrevivência social, estamparam no sexo feminino seu emblema de
manutenção da sociedade tradicional e as mulheres continuaram sendo submetidas a padrões
comportamentais que serviram para impor barreiras à sua liberdade, autonomia e
principalmente sobre a sexualidade.
Mary, apesar da liberdade que tinha, por ser missionária, educadora, viajante, uma
imigrante norte-americana no Brasil, em muitas de suas missivas, repetidas vezes, discursava,
mesmo que inconscientemente, na direção da manutenção do status quo acerca do
comportamento feminino ideal.

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Na noite passada, estávamos tão desalmados que ficamos contentes com o anúncio
de Mr. Schneider para Ella Kuhl de seu noivado com a “doce Alice”. Ele começou
por pedir-lhe para mostrar a carta a todas as pessoas da missão, para que ninguém
pudesse pensar que ele fosse culpado do rompimento de seu noivado com Mr. Ker.
Então, aparentemente esquecendo o grande público que ele tinha atraído, agiu como
um menino de 20 ou uma menina de 16, ou como num romance do tipo mais
romântico! Eu não estou tão horrorizada com a diferença de idade entre eles, quanto
com o caso romântico que aconteceu no Rio, de Miss Leslie (professora), encontrar
um affair, que vai se casar com o sorridente Willie Hentz, dentista, 5 anos mais
jovem do que ela. A sensação hoje foi tremenda. Remigio declarou isto uma
imoralidade! Guilherme da Costa ficou corado, de maneira bela, com a surpresa. Ele
realmente tem um refinamento incomum – aquele garoto – ele só poderia mesmo
servir para o trabalho! (GOLDMAN, 1961, p. 262).

Miss Dascomb, assim como outras educadoras, como Maria Guilhermina, Carlota
Kemper e Elmira Kuhl, não se casou, o que, em grande medida, possibilitou maior dedicação
ao trabalho. Essas quatro mulheres foram também consideradas excelentes professoras,
detentoras de grande soma de conhecimentos, tanto em termos de uma cultura mais geral
como em termos de métodos e processos pedagógicos avançados, o que não pode ser
considerado comum para a época. Todas elas dirigiram escolas, escreveram e traduziram
livros pedagógicos e lecionaram diversas disciplinas.
Nas cartas escritas por Mary Dascomb também encontramos muitos relatos da
dificuldade que a escola tinha em conseguir bons professores e principalmente, professores
permanentes. Fosse pelo clima, condições sanitárias e de saúde, fosse pelos baixos salários e
compensações oferecidas. No trecho a seguir, Mary comemora a chegada de quatro novas
professoras e lamenta os casamentos prematuros que seriam outro problema para a
contratação de docentes: “Nossa casa não vai estar animada com quatro jovens professoras!
Mas as nossas professoras brasileiras estão se casando tão rápido que precisamos de
professores permanentes. Nenhum dos nossos americanos tendem a ser permanentes”
(GOLDMAN, 1961, p. 355-356).
Em 1902, duas ex-alunas, Isabel Bickels e Isabel Withers, passaram a lecionar na
escola. Segundo relatório, as jovens professoras vinham desenvolvendo um bom trabalho,
reafirmando a importância de se manter na instituição a classe normal:

Ambas tem provado ser excelentes jovens professoras e têm pego mais
responsabilidades do que se poderia esperar de moças de 16,17 anos: isto é uma
recompensa por se educar meninas para professoras. Elas conhecem completamente
o trabalho do 1º Primário até o 8º Secundário e em uma emergência, encaixam-se
em quase todos os lugares (cf ABREU, 2003, Relatório Manuscrito de 1902).

Na carta de 22 de agosto de 1904: “Mas Luiza escreveu algo sobre a possibilidade de a


Sra. Daniel Meriwether talvez ensinar na Escola. Ela era professora antes do casamento”.

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Com grandes dificuldades para compor o quadro docente, as missionárias solicitavam,


frequentemente, o envio de mais professores para a escola de Curitiba. E em uma carta não
datada, provavelmente escrita no início de 1906, Mary lamenta o casamento de uma de suas
docentes: “Nossa charmosa professora Isabel Withers se casa este mês, Ai!”. Em se tratando
da formação de professores, o relatório de 1902 diz que um dos empecilhos para a formação e
manutenção do quadro docente era o casamento precoce.

Educando Meninos e Meninas

A Lei Imperial de 15 de outubro de 1827 determinou: “Art. 1º Em todas as cidades,


vilas e lugares mais populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias”.2
Neste mesmo dia e lei, ficam determinados os programas específicos para meninos e meninas:

Art. 6º Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética,


prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria
prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina
da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos
meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil.
Art. 12. As Mestras, além do declarado no Art. 6º, com exclusão das noções de
geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão
também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos
Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida
honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames feitos na forma do
Art. 7º.3

De acordo com Barbanti (1977), a implementação dessas leis não garantiu o sucesso
das instituições escolares, pois muitas vezes as escolas eram criadas, mas não providas por
falta de professores, além de outros fatores, como falta de material. Ribeiro (2006) aponta que
essa lei, ao mesmo tempo em que garantia às mulheres o direito à educação, foi usada
sintomaticamente como instrumento de discriminação, uma vez que estabelecia estudos
distintos para cada sexo, sendo que as mulheres teriam o seu primário limitado às quatro
operações no ensino de matemática, excluindo a geometria.
Em 1885, Mary Dascomb e Miss Kuhl imploravam por ajuda na escola de São Paulo,
para que pudessem se preparar para entrar na grande província de Minas, onde viam
possibilidades para o trabalho escolar. Três anos depois, no Décimo oitavo relatório anual da
sociedade missionária estrangeira da Mulher da Igreja Presbiteriana – 1888, a Escola

2
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-15-10-1827.htm
3
Art. 7º Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados publicamente perante os Presidentes,
em Conselho; e estes proverão o que for julgado mais digno e darão parte ao Governo para sua legal nomeação.

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Americana de São Paulo continuava prosperando, sob os cuidados de Dascomb e Kuhl, que
relata: "Agora é uma das mais antigas e mais bem estabelecidas escolas naquela cidade. Das
trinta meninas que foram matriculadas durante o ano, vinte e uma foram mantidas ou ajudadas
por fundos da missão" (THE WOMAN’S, 1885).
Muitas meninas educadas na escola, eram encaminhadas para o trabalho,
posteriormente. Em 1888, seis delas já trabalhavam, ensinando nas escolas em Caldas,
Botucatu, Brotas, Sorocaba, e Rio de Janeiro, e no externato em São Paulo. Todas as alunas
aprendiam trabalho doméstico, o que era bem aceito pelos agricultores, que sabiam que o
processo de abolição da escravatura estava em curso e, consequentemente achavam bom que
suas filhas aprendessem a trabalhar. Corte e Costura foi adicionada à lista de afazeres, e as
meninas ficaram entusiasmadas com ele (THE WOMAN’S, 1888).
No Relatório de 1908, vemos que a conduta de algumas professoras, refletia os
preceitos de moral presbiteriana feminina oitocentista: “Algumas professoras abandonam o
romance Iracema – do programma official – por julga-lo pouco conveniente à educação moral
de meninas”.
O autor da obra, José de Alencar, ao ter como objeto de criação personagens femininas
como Iracema, trabalha com maestria para delineá-la numa visão dinâmica e diversa, e mostra
que o comportamento dessas personagens não se limita ao de uma mulher idealizada para os
padrões morais e intelectuais daquela época, muito menos com os valores presentes nas
famílias patriarcalistas.
Já para os meninos, as leituras e materiais didáticos teriam outro viés:

Em relação aos livros didacticos devemos preferir aquelles, cuja leitura amena,
attrahente e entremeada de citações e factos relativos á educação civica despertem os
sentimentos affectivos e forneçam uma cópia consideravel de uteis conhecimentos,
que concorram para formação do caracter do menino, de modo a tornal-o um futuro
cidadão, prestante á familia e á sociedade. Para satisfazer estas aspirações, é mister
que a escola tenha uma organisação compativel com os destinos do individuo e da
sociedade em que vive, é mister que, além das disciplinas inherentes aos cursos
primários, o menino conheça os principios fundamentaes da educação nacional, taes
como – os direitos e deveres de cidadãos na hierarchia social, o respeito ás leis do
paiz e á respectiva constituição, as regras da civilidade e os preceitos da moral, que
exalçam os altruisticos sentimentos de amor á patria, á justiça, á verdade e inspiram
os actos de philantropia, benevolencia e caridade.

A exigência para com a conduta dos garotos aparece em algumas cartas também, onde
Mary cita, por exemplo, a criação de uma Escola de Artes e Ofícios para os meninos de rua
em Curitiba:

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Nós temos uma coisa fundamental por aqui – organizado por um homem
moralmente sem valor. Uma Escola de Artes e Ofícios para os meninos de rua. A
presença deles é estritamente controlada - eles aprendem a fazer coisas muito bem-
feitas para eles mesmos e para vender - ao final de seus anos de atendimento eles
recebem US$ 600 para começar sua vida. Eles têm estudos, jogos e exercícios
militares para variar o trabalho manual. Existe uma certa ajuda, mas é bom que o
homem receba ajuda por um trabalho tão bom. Não nos falta, no entanto, de modo
algum, moleques, grandes e pequenos. Nossos jornais publicam semanalmente,
quase que diariamente, relatos de facadas e tiros, brigas e suicídios. Suponho que os
Cinemas são os grandes culpados por esse estado de coisas (GOLDMAN, 1961, p.
355).

Segundo Barbanti (1977, p. 168), afirmando que o método utilizado para a


alfabetização na Escola Americana paulista era o intuitivo e as meninas eram estimuladas a
desenvolverem habilidades manuais, de costura, desenho, como com a talagarça, um tecido
encorpado sobre o qual se borda:

De ‘modo inteiramente objetivo e oral’: De permeio com leves trabalhos manuais –


desenhos com talagarça para as meninas e material para composição para os
meninos – começava-se a ler quase imperceptivelmente aprendendo-se o valor das
letras e com elas compondo frases.

Mary defendia o trabalho manual como ferramenta para ocupar e dar ensinamentos
que poderiam servir como uma futura profissão a esses meninos: “Há também, um artigo de
Jacob Riis sobre o modo de educar meninos - dar-lhes trabalho manual, especialmente algo
como jardinagem, o que eu acho que devemos copiar do nosso bom Dr. Claudino dos Santos.
Um homem aqui tem se saído muito bem em sua Escola de Aprendizes, de meninos de rua e
isso poderia funcionar” (GOLDMAN, 1961, p. 338).
Segundo Abreu (2003), havia diferença também para as alunas internas, a quem as
missionárias procuravam ensinar alguns trabalhos domésticos:

Nós tentamos fazer sua educação a mais prática possível. Nós não podemos ensiná-
las todo tipo de trabalho doméstico, como tampouco elas tem tempo para isso, mas
todas fazem parte do trabalho doméstico. Nós dizemos: - “venha trabalhar” e não
“vá trabalhar”. O espanador é um elemento em sua educação, assim como mapas e
dicionários. Elas são ensinadas a fazer pão, a manter a casa em ordem, e algumas
das mais velhas a fazer vestidos simples (ABREU, 2003, p. 88).

Para as alunas externas, a proposta era outra:

Primário A – Trabalhos – do Kindergarten; se for meninos grandes, nas classes


occupam-se com outros exercícios. As meninas maiores bordam em talagarça.
Primário B – Trabalhos – As meninas bordam em talagarça; os meninos occupam-se
em calligraphia e Arithmética.
Intermediário A – Trabalhos – Crochet, principalmente sapatinho, touquinhas,
paletosinhos, capas e chalés de lã.

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Intermediário B – Trabalhos – Diversos pontos de costura; casas de botões e


bordados (ABREU, 2003, p. 88-89).

Apesar de dizer que chamava as meninas para o trabalho doméstico, Mary Dascomb
não falava de si como uma mulher capacitada para tais afazeres, não se reconhecia como uma
dama que atenderia aos anseios do patriarcado, mas por vezes relata os dotes e prendas de
outras mulheres de sua rede. “Eu sinto muito que Fanny não esteja bem. Ela está sentindo
dor? Ela consegue ler e tricotar?” (GOLDMAN, 1961, p. 277). E apesar de não ter filhos,
Mary, do alto de sua experiência com a educação de outras crianças, acredita poder opinar
sobre o comportamento de suas alunas e outras mulheres da missão:

Você já tem as meninas Kolb? Bonitas e agradáveis, em algumas coisas muito


capazes. Elas se saíram bem nos estudos aqui. Ida é tão boa quanto se pode ser.
Nannie cozinha deliciosamente, faz maravilhas em corte e serve a família -, mas
flerta pra valer (?) e seus pais piedosos não tem a menor ideia de tal coisa - a menina
brinca e ri na hora da oração e seus pais não acreditam nisso! Se alguém critica suas
crianças como a tão agradável como Brígida fez com João - pior para o crítico!
(GOLDMAN, 1961, p. 305).

Em 1906: “Eu esperava que você e Fanny dessem um pulo aqui por uma semana ou
duas e eu os mostraria o quão diferente são os nossos jovens - o tipo que você espera que as
meninas imitem. Somente uma, alemã gorda tem algo do mesmo preconceito de todas as
pessoas infelizes em casos de amor. Ela é o máximo” (GOLDMAN, 1961, P. 313).
Em Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola, Daniela Auad discute a
questão da escola mista relacionando-a com a ideia de coeducação com base na análise de
práticas escolares e no debate contemporâneo sobre o tema, dialogando com estudiosas
feministas que teorizam sobre a questão. Seu argumento central é o de que a escola mista
pressupõe a coeducação, mas não é suficiente para a efetivação da mesma.
Segundo Auad (2006) a escola, através das práticas escolares, pode se constituir como
um espaço privilegiado para o "aprendizado da separação" que discrimina meninos e meninas
de forma a justificar desigualdades ou pode, ao contrário, promover transformações no
sentido da igualdade a partir do respeito às diferenças. A autora chama a atenção para a
função privilegiada que a escola possui no que diz respeito à aprendizagem de papéis sociais e
sexuais por parte dos alunos.
Para além dos meninos e meninas, a reta conduta moral dos docentes das Escolas
Americanas também era importante para Mary Dascomb:

Você quer saber o que eu acho dos dois professores de Florianópolis?

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São brilhantes e talentosos, mas não são o tipo que eu gosto de ter na escola. Há uma
corrente social tremendamente forte aqui que muitas vezes envolve crianças dos 3
anos de idade para cima. Eu não desejo que nossas meninas altas que estão entrando
na adolescência tenham este estilo de professor. Alguns dos teus vão a bailes e
teatros, ocasionalmente, mas são em geral sérios e dignos (GOLDMAN, 1961, p.
308).

No trecho acima, fica subentendido que os professores frequentariam espaços públicos


e teriam uma vida social que inclui eventos não religiosos.

Conclusões ou considerações finais.

O acesso às Escolas Americanas era permitido independente de origem, credo, raça e


ideologia, para que se pudesse atingir o maior número possível de pessoas. A educação, neste
contexto, era vista como uma missão, uma vocação religiosa, como no caso da missionária e
educadora Mary Dascomb.
O ideal de mãe educadora permeava os debates em torno da emancipação feminina no
final do XIX e início do XX. A feminização do magistério trouxe uma nova configuração para
a emancipação da mulher, um espaço permitido, por ser semelhante: a mãe que educa seu
filho poderia também educar outras crianças. Apesar da possibilidade de emancipação
esbarrar na perspectiva tradicional de contração do matrimônio por parte da mulher, muitas,
como vimos, mantinham-se nesse propósito, dificultando, inclusive, a manutenção de
docentes nas Escolas Americanas. No entanto, se antes a possibilidade de futuro estava no
casamento, tendo o homem como provedor e protetor, nesta nova configuração, mulheres que
adotavam a profissão de professoras, tinham a possibilidade, muitas vezes, de optarem por
ficarem solteiras. Mary Dascomb fez uma escolha pela inuptividade e em suas cartas
percebemos o quanto a escola preencheu seu tempo, sua vida.
Miss Dascomb, uma mulher pública, que dedicou a maior parte da sua vida a educação
brasileira. Sua prática docente, sua formação e pedagogia renovadora, trazida de sua pátria,
difundida aqui nas Escolas Americanas onde trabalhou, capaz de intervir no debate
educacional de sua época, de divulgar, ensinar, por meio de seus materiais de estudo, sendo
reconhecida pelo Conselho da Missão nos Estados Unidos como nome fundamental, sem o
qual não se poderia escrever a história da educação protestante no Brasil.
Dascomb, assim como outras viajantes, tinha uma grande capacidade de observação,
que ultrapassa as diferentes circunstâncias singulares e as diferentes situações pessoais e
políticas que enfrentam. Suas cartas, relatórios e escritos em geral, eram ricos em detalhes e

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forneciam inúmeros relatos e informações sobre sua vida, seu trabalho, sobre sua rede de
pertencimentos.
Ela o fez como sujeito posicionado, participando de esquemas de percepções e de um
horizonte de expectativas que deram sentido às suas escolhas e às apropriações que realizou.
Mary experimentou, assim como outras missionárias norte-americanas que vieram para o
Brasil, maior liberdade de movimento, desfrutava de certo reconhecimento social e
legitimidade.
Nas “tramas” de sua história, separou-se de sua família para trabalhar no Brasil, em
diferentes cidades. Conheceu outros mundos, apropriou-se de um projeto de educação e
civilização e os fez circular. A missivista utilizava suas correspondências como instrumento
de aproximação, de sociabilidade, buscada numa relação estreita de intimidade e respeito com
seu interlocutor.
As cartas traduzidas para este trabalho, trocadas entre um homem e uma mulher,
ambos americanos, não são de amor. Uma mulher solteira que durante vinte e seis anos se
correspondeu com um homem, sem que ao longo de 193 cartas – escritas em inglês arcaico e
pessoalmente traduzidas – ficasse evidente nenhuma relação afetiva/ sexual, apenas de
trabalho.
No entanto, sua obra também relata o quanto reproduziu a respeito do modelo ideal de
mulher, da educação desejada para que, apesar do método inovador e da excelente estrutura
física, para a época, suas alunas seguissem com altivez o caminho, não se contaminando com
leituras inadequadas, por exemplo. Trabalhos manuais como o crochê e a talargaça eram
exaltados como essenciais para meninas. O currículo diferente para meninos e meninas
evendiciava o que ainda experienciamos nos espaços escolares, um modelo de
comportamentos e habilidades definidos não a partir do desempenho individual, mas das
perspectivas definidas socialmente para cada gênero.

Referências

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cultura escolar. 2003. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2003.

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[BARBANTI] HILSDORF, M. L. S. Escolas Americanas de confissão protestante na


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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1144 1157


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XVIII THE WOMAN’S Foreign Missionary Society of the Presbyterian Church, 1888.

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Atribuições de papéis, identidade de gênero e disciplina dos corpos infantis

Ravelli Henrique de Souza1


Karina de Toledo Araújo2

Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal investigar as análises sobre disciplina
e vigilância propostos por Michael Foucault nos espaços formativos escolares no contexto da
sociedade contemporânea. A disciplina e a vigilância atuam como mecanismos de controle
que por meio de técnicas minuciosas tem por objetivo moldar o comportamento dos seres
humanos para se tornarem suscetíveis a obediência e subservientes a norma. Desta maneira,
tais mecanismos acarretam na produção de corpos dóceis, ou seja, sujeitos submissos,
passivos, obedientes que se encaminham na contramão do objetivo pedagógico das mesmas
instituições, que é o de formar indivíduos autônomos, pensantes, críticos e reflexivos. A
questão norteadora é: quais são as implicações do trabalho pedagógico na escola referente à
atribuição de papéis de identidade de gênero e disciplina dos corpos infantis? Os corpos de
meninas e meninos são educados na escola a partir da educação infantil, portanto é preciso
discutir a reprodução dos papéis sociais padronizados atribuídos aos meninos e meninas como
integrantes da escola. Como resultado, concluímos que há a necessidade de que, os
profissionais educacionais compreenderem os mecanismos disciplinares frequentemente
utilizados nas instituições de ensino, a fim de que haja possibilidades emancipatórias de se
pensar a escola enquanto formadora e interceptora de espaço e tempo de liberdade e
autonomia.

Palavras-chaves: Controle Disciplinar; Educação Infantil; Punição; Violência Simbólica.

1
Universidade Estadual de Londrina; Mestrando em Educação; ravelli_28@hotmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1159 1159


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Introdução

As escolas possuem papéis importantes quando se trata de generalizar corpos, criando


artefatos culturais acima de discursos normativos para moldar o comportamento do ser
humano. As instituições escolares acatam as imposições da sociedade disciplinar em seu
“modelo” pedagógico. Tal sociedade, se utiliza de mecanismos disciplinares para controlar
corpos dos indivíduos que, por sua vez são moldados para serem dóceis a partir do controle
social. Por um lado, a escola pensa na formação dos estudantes como sujeitos autônomos,
críticos e reflexivos, mas acaba por estabelecer uma dicotomia pertinente, formando
indivíduos submissos.
A pesquisa é de cunho bibliográfico e traz como problematização, analisar quais são as
implicações do trabalho pedagógico na escola referente à atribuição de papéis de identidade
de gênero e disciplina dos corpos infantis? Tendo como objetivo entender como os corpos de
meninas e meninos são educados na escola a partir da educação infantil e também identificar a
reprodução dos papéis sociais padronizados atribuídos aos meninos e meninas como
integrantes da escola.

A disciplina no ambiente escolar

Para ter um controle individual sobre cada sujeito e acabar com a displicência
estudantil, as técnicas disciplinares transformaram as instituições escolares em verdadeiras
maquinas de ensinar, pois através delas, foi possível atender um número com maior
abrangência de alunos ao mesmo tempo. A organização do espaço serial foi uma das grandes
modificações técnicas do ensino elementar que “permitiu ultrapassar o sistema tradicional”
(um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância
o grupo confuso dos que estão esperando) (FOUCAULT, 1996, p. 173). Isso propiciou o
controle simultâneo dos alunos que se distribuíam em seus lugares individuais. Então o
mecanismo disciplinar “organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez
funcionar espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de
hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 1996, p. 173).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1159 1160


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A essência panóptica3 da escola ainda continua, mesmo com a produção do saber


passando por um processo de reformulação diversas vezes, as técnicas disciplinares ainda se
articulam pelo ambiente. Por conseguinte, os princípios como a clausura, o quadriculamento e
a localização individual, definidos por Foucault (1996) são mecanismos instaurados como
forma de poder sobre os corpos dos indivíduos, ainda permanecem inseridos em seu
cotidiano, fazendo necessária a ‘arte’ da distribuição dos sujeitos.
É fidedigno observar que a disciplina organiza um espaço analítico, de modo que,
nas escolas os alunos são divididos por salas de aula, possuintes de carteiras individuais que
formam um espaço organizado e útil, possibilitando identificar mais facilmente aqueles que
não cumpriam bem suas tarefas, que tem ausências, além de “poder a cada instante vigiar o
comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Tais
procedimentos servem, portanto, para conhecer, dominar e utilizar” (FOUCAULT, 1996
p.169). Os professores através do relatório de classe, registram tudo o que aconteceu naquele
dia, o que foi ensinado, se algum aluno agiu de forma inadequada, se foi necessário a presença
do diretor, se não quis cumprir alguma tarefa. Além da chamada em que controla as ausências
de cada um, se o aluno tem muitas faltas seguidas, os pais são comunicados, e, se necessário,
responsabilizados pelas ausências do filho, desta forma a vigilância se instaura dentro da casa
dos indivíduos. É importante ressaltar que essa vigilância se aplica também aos professores,
da mesma forma que os alunos estão sendo analisados e julgados todo o tempo, com os
mestres, isto também ocorre. O mesmo relatório de classe que serve para controlar as
atividades dos educandos, também controla os docentes, analisando seus conteúdos, se estão
de acordo com o que foi pré-estabelecido, se consegue dominar as aulas e atingir seus
objetivos, enfim, sua forma de ensinar também passa por um julgamento diariamente.
As atividades escolares são controladas por mecanismos disciplinares que
estabelecem horários para a realização destas. A utilização do tempo, na escola, é
cronometrada e intensificada, cada horário é ocupado por uma atividade determinada,
seguindo um ritmo que permita que o processo de aprendizagem seja acelerado (CRUZ, e
FREITAS, 2011 p.43). Esse tempo é controlado desde a educação infantil em que as crianças
tem horários determinados, para chegar, guardar os brinquedos, se socializar, comer, dormir,
3
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em
seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de
seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder
independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que
eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja
observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque
ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente (FOUCAULT, 1996, p. 224-225).

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acordar, brincar, ir ao banheiro, tomar banho, em suma, todas as atividades são determinadas
por uma rotina diária, que faz com que os sujeitos sejam disciplinados e obedientes a partir da
infância.
Outra forma de controle disciplinar, definida por Foucault (1996) é ainda hoje, na
segunda década do século XXI, utilizada pelas instituições de ensino, a saber: a decomposição
do tempo. Dessa forma não só o controle temporal é necessário, mas nas atividades escolares
o tempo deve ser decomposto por sequências. Para tanto, seria necessário “Organizar essas
sequências segundo um esquema analítico — sucessão de elementos tão simples quanto
possível, combinando-se segundo uma complexidade crescente” (FOUCAULT, 1996 p.183).
São propostas aos alunos uma série de atividades, e na medida em que vão concluindo essas
tarefas, o grau de complexidade vai aumentando, sendo possível assim, também, controlar o
ritmo da aprendizagem. Ao final desses ciclos de atividades os sujeitos passam por uma
avaliação, mecanismo este que, segundo Foucault (1996) tem uma tripla função: “indicar se o
indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que sua aprendizagem está em conformidade
com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo” (FOUCAULT, 1996 p.184),
além de vigiar e controlar os próprios professores, já que o fracasso dos alunos diante dos
exames, reflete também a forma de ensinar do professor.
Não satisfeita com essas técnicas, a escola ainda se utiliza do exame para possibilitar
uma espécie de produção de saber para ser documentado referente aquele determinado aluno.
O exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância situa-os igualmente numa rede de
anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e
os fixam (FOUCAULT, 1996, p. 213). Intensificando assim, um processo de individualização
em que são anotadas as dificuldades, desempenhos e avanços dos alunos. Os procedimentos
de exame são acompanhados imediatamente de um sistema de registro intenso e de
acumulação (Ibid, p. 213). Que por fim, através desse processo é possível também classificar
os alunos, separá-los por séries, com níveis de aprendizagem diferentes.

As séries diferenciadas possibilitam o controle de todas as atividades


desenvolvidas pelo aluno, bem como o castigo e correções necessários a
cada um. E garante também que todo o tempo do aluno se transforme em
tempo de produção. A organização combinatória, também denominada de
composição de forças trata-se de compor forças para obter um aparelho
eficiente. Consiste em ajustar o corpo ao tempo do outro e extrair dessa
junção a maior quantidade de força possível, obtendo assim, um ótimo
resultado. Desse modo, pode-se obter a força de um aluno tanto
isoladamente quanto coletividade, já que o sucesso de uma tarefa depende
tanto de um quanto de todos e o fracasso de um compromete o sucesso de
todos. (CRUZ, e FREITAS, 2011 p.43)

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Apesar de individualizar os sujeitos, separando-os por idade, desenvolvimento e


capacidades, para o sucesso da “máquina de ensinar” e ainda é necessário o conjunto, pois o
todo precisaria funcionar bem. Dessa forma, ao mesmo tempo em que imprime um rosto aos
sujeitos, separando-os da massa homogênea, combinava suas forças (capacidades), já que “A
disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de extrair e acumular o
tempo deles, mas de compor forças para obter um aparelho eficiente” (FOUCAULT, 1996
p.189).
Os indivíduos são moldados, segundo a norma a contar da infância, em um sistema
que os adestra ao invés de torná-los sujeitos pensantes, dado que, a todo momento são usados
de artimanhas para induzi-los ao bom comportamento e à obediência cega. Esses recursos
consistem em pequenas premiações, a nota é utilizada com maior frequência, pois serve, além
de premiar aquele aluno, também como uma forma de vigilância e controle. Com as crianças
o jogo de premiações e castigos é demonstrado com maior clareza. A educação infantil se
utiliza muito de micro penalidades. As crianças que não cumprem as normas da instituição
podem ficar na “cadeirinha do pensamento”, um lugar determinado para que ela fique
separada dos demais. Assim, “aquele aluno que não se enquadre na organização, no
comportamento ou até mesmo na forma de brincar ou de correr ‘adequado’ é colocado nesta
cadeira para ‘pensar nos seus atos”. (CASSIANO, e SILVA, 2012 p.103). Esses mecanismos
de poder, vigilância e disciplina fazem com que, ao saírem da escola, os corpos já estejam
suficientemente dóceis e treinados para servirem ao sistema capitalista.
Uma prática comum nas escolas que também reflete a vigilância hierarquizada são os
líderes de turma, uma espécie de aluno, “ajudante” do professor. Geralmente o aluno
escolhido é o “melhor” da turma, e que na verdade servirá como um fiscal, pois na ausência
do mestre, ele fica como responsável pelos demais, anota os nomes de quem não se
comportou ou deixou de cumprir alguma tarefa, quem não seguiu as normas. Esses indivíduos
têm pretensiosamente uma ideia de poder sobre os outros, porém ele é só mais um mecanismo
utilizado para controle, já que todos estão inseridos no mesmo contexto.
A vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações
de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede
“sustenta” o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros:
fiscais perpetuamente fiscalizados (FOUCAULT, 1996, p. 201). Outra forma de mostrar que
os mecanismos de poder e vigilância na escola não são utilizados apenas para alunos, é o livro
ponto, utilizado para controlar a ausência e presença dos professores.

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Atribuição de papéis e violência simbólica das identidades

A generificação do corpo, acontece no ambiente escolar, desde os anos iniciais da


infância. Neste sentido, os professores, por exemplo trivializam brinquedos e brincadeiras e
separam meninos de meninas em jogos e brincadeiras que consideram como masculinas e
femininas em um discurso normativo. Segundo Kishimoto (1997) pode-se observar que, o
brinquedo é um objeto que se torna íntimo da criança depois que o é apresentado a ela,
criando uma relação com o brinquedo, que na maioria das vezes é até difícil de se desapega-
lo, pois ele é uma representação da realidade para criança, tal como, quando uma menina pega
uma boneca para brincar, ela cuida da boneca como se fosse uma filha, logo a boneca seria a
representação de sua prole, na maioria das vezes a criança trata a boneca da mesma forma que
a mãe a tratou. A imagem da infância é construída por um processo de valores dos adultos que
geralmente oprimem e inferiorizam o gênero feminino.
Tais valores podem gerar comportamentos machistas as crianças, ficando evidente
que, ao brincar de boneca a criança do gênero feminino reproduz um cuidado voltado para a
maternidade, enquanto o menino brinca de carrinho, pois em uma sociedade opressora, o
homem deve dirigir e trabalhar, enquanto a mulher cuida da casa e dos filhos, criando assim
identidades moldadas em que ocorre um processo de naturalização da família ideal voltada
para heterossexualidade e segregação do gênero feminino. O foco na cultura como
componente das identidades e dos processos de subjetivação enfatiza a concepção de
fragmentação, não estabilidade e de posições ocupadas ao longo da trajetória identitária
(SANTOS, 2012, p.106). Causando a separação entre objetos por gênero feminino e
masculino.
Através de múltiplos mecanismos de poder a escola classifica, ordena e hierarquiza,
separando as pessoas por classe, raça, etnia, religiosidades, sexualidade e gênero. Essas
diferenças foram produzidas a partir de certa delimitação de espaço que, através de seus
símbolos, a instituição delimita o que cada um pode ou não fazer, o lugar que cada ser deve
ocupar e o que devem vestir. Tais marcas de escolarização se esculpiam nos corpos dos
sujeitos, que de determinadas formas, dava para se notar em que colégio cada indivíduo
estudou, sendo ele militar, religioso ou laico.
Quando um professor atribui aos seus alunos o que é brinquedo/brincadeira de
menino e de menina, ele está trabalhando com a construção de papéis de gênero (masculino e
feminino). Papéis são basicamente padrões, ou regras arbitrárias que uma sociedade
estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos

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de se relacionar ou de se portar (LOURO, 2003, p. 23). Gênero faz parte da identidade do


sujeito, mas o sujeito em sua identidade é plural em constante transformação, não se deve
limitar pela estereotípica do que é colocado com feminino e masculino.
Os processos formativos de identidade são compostos pelas relações sociais e
culturais, vivenciadas em diferentes grupos, entre os quais: são elas: família, escola, religião,
círculo de amigos, relações sociais no trabalho, etc. No ambiente escolar acontece a produção
de certa masculinidade dada pelo processo de escolarização do corpo, demonstrando como a
escola produz o disciplinamento de corpos. Segundo Louro apud Corrigan (2000) nas escolas,
os corpos "são ensinados, disciplinados, medidos, avaliados, examinados, aprovados (ou não),
categorizados, magoados, coagidos, consentidos...". Enquanto em uma escola com caráter
masculino a educação é voltada para formação de um ser forte, robusto, viril, guerreiro,
saudável, e etc. A escola que prioriza a educação feminina é direcionada ao ser dócil, gentil,
discreto, que deve pedir licença, desculpas e ser submissa.

Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentado por muitas horas e tem,


provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos
indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo
disciplinado pela escola é treinado no silêncio e num determinado modelo de
fala; concebe e usa o tempo e o espaço de uma forma particular. Mãos, olhos
e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente
desatentos ou desajeitados para outras tantas. (LOURO, 2000, p.14).

Para Vianna e Finco (2009), as formas de controle do corpo infantil é um processo


social e culturalmente determinado, permeado por formas sutis, muitas vezes não percebidas.
As características mantidas pela tradição (masculina e feminina) são utilizadas para distinguir
os corpos, comportamentos e habilidades de meninos e meninas. O corpo é utilizado como
alvo de práticas disciplinares para atingir comportamentos adequadamente estereotipados pela
escola, fundamentados pelas diferenças das características físicas e biológicas, ignorando
assim o fator cultural que é construído.
Nesta perspectiva a escola nega o pluralismo de identidades, e ignora as
interseccionalidades “trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.” (CRENSHAW,
2002, p. 177). Essa ideia torna-se necessária para entender e identificar as múltiplas
diferenças nos alunos, para atender as necessidades individuais e coletivas. E tambémenxergar
“como as ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,

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constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (CRENSHAW, 2002, p.


177). Então a escola como formadora de sujeitos críticos, autônomos e reflexivos deve
assegurar:

O direito a uma educação infantil de qualidade inclui a discussão das


questões de gênero. As relações das crianças na educação infantil
apresentam-se como uma das formas de introdução de meninos e meninas na
vida social, principalmente porque oferecem a oportunidade de estar em
contato com crianças oriundas de diversas classes sociais, religiões e etnias
com valores e comportamentos também diferenciados (VIANNA; FINCO,
2009, p. 271).

Ainda com base nas ideias de Vianna e Finco (2009) é na educação infantil que se
impõe a conduta nos alunos, pois além do cuidar, o corpo também é construído e educado. É
na educação infantil que as crianças passam a maior parte do tempo com outras crianças da
mesma idade, mas com manifestações corporais diferentes, frutos da cultura e construção
social de cada indivíduo. Meninos e meninas são educados de formas diferentes, seja em casa,
na igreja ou na escola. Diferenças essas que não são expressadas pelo fator biológico e sim
impressas no corpo das crianças para satisfazer as expectativas de uma determinada
sociedade, julga-se de passagem, opressora.
Não é por ingenuidade que os indivíduos obedecem a norma, pois desde há muito
tempo eles foram instigados por discursos autocratas, a acreditar que alguém exerce o povo e
que devem obedecer passivamente a esse mecanismo, sem reconhecer que o poder é
expansivo e que toda relação se trata de poder. Faz-se necessário que os indivíduos se
identifiquem dentro destas relações de soberania, para que assim possam atingir sua
autonomia, tendo a consciência que estão submersos em relações de poder e que não existe
uma exterioridade a elas.
Desde muito cedo as instituições disciplinares controlam os corpos dos sujeitos e os
moldam segundo convicções pré-estabelecidas agindo de acordo com os princípios da
sociedade capitalista que:

Investem sobre o corpo e o tempo do indivíduo princípios de utilidade e


docilidade ao mesmo tempo em que a dimensão epistemológica encontra-se
presente a todo o momento, extraindo saberes do sujeito que ali se encontra e
produzindo novos saberes que, após assumirem um caráter científico,
pedagógico ou político, retornarão sobre estes mesmos indivíduos sob a
forma de discursos oficiais, cientificamente validados, ou de biopolíticas de
controle da população (MOURA, 2010 p. 72).

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Para se constituir a produção de novos saberes que colaboraram para a construção do


saber pedagógico e se modificaram de acordo com o tempo, as instituições extorquem dos
indivíduos uma espécie de saber através das técnicas disciplinares que controlam e
normalizam os indivíduos através do discurso. Para Foucault (1996, p. 208). O normal se
estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração de uma educação
estandardizada e a criação de escolas normais. Assim se cria uma norma, um padrão geral a
ser seguido e acatado. A escola disciplinar se constitui em um instrumento privilegiado para a
fabricação de indivíduos que irão ocupar a posição de marginalidade (MOURA, 2010 p.75).
O que não significa que aqueles que não seguem essa norma estabelecida estarão excluídos,
pois a escola não tem por intenção excluir, pelo contrário ela deve acatar, abranger até os que
são tidos como “anormais” já que não existe um aspecto a esse processo de poder em que a
marginalização faz parte, sendo uma forma de aproveitar este indivíduo.
Semelhante a delinquência no sistema penal tem uma utilidade, e incontinente é
produzida por esse mesmo sistema, que nas instituições de ensino ocorre a marginalidade.
Decorrendo que no primeiro caso ela é acentuada por seus próprios mecanismos, tal como um
efeito, que possibilita inúmeras conveniências a esse sistema, já que é possível ter um maior
controle sobre os sujeitos, pois eles podem ser constantemente vigiados, sendo assim algo
inerente ao próprio mecanismo de poder. O que também acontece com a marginalidade, a
repetência, a evasão e a indisciplina não representariam seu insucesso, já que são criadas pela
própria instituição para servir a sociedade disciplinar, proporcionando indivíduos úteis a
manter a economia do poder.
As escolas por não acabarem com a indisciplina, sugere-se o levantamento de uma
hipótese em que ao invés de combater, essas instituições são produtoras tanto da
marginalidade quanto da delinquência, assim o aparente fracasso representaria na verdade um
sucesso. Os delinquentes, os marginais possuem uma função positiva. É necessário que uma
parcela da população seja excluída, colocada em situação de marginalidade, para que o poder
e a lei sejam socialmente aceitáveis (MOURA, 2010 p. 83). Assim sendo, fica claro que as
instituições de ensino, inseridas no contexto de uma sociedade disciplinar refletem o que é
ditado por ela, na formação de indivíduos para atender a demanda que se exige.
Nesse enquadramento podemos atribuir uma parcela da obliquidade escolar,
indisciplina e falta de interesse por parte dos alunos na escola, ao fato deles não se
identificarem nem com o contexto escolar e nem com os conteúdos, que apesar de serem
pensados para eles, em nada participam nessa escolha, sendo sempre receptores passivos. Em
determinadas instituições nem mesmo os professores tem autonomia para escolher o que

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ensinar, pois a matéria já vem toda pronta em apostilas em que o professor deve apenas
reproduzir o que foi estabelecido anteriormente, antes mesmo de conhecer as necessidades
dos educandos, perdendo assim sua subjetividade. Apesar da produção de saber, ser um dos
aspectos positivos do poder disciplinar, como Foucault ressalta, as técnicas disciplinadoras,
transforma os indivíduos em sujeitos obedientes e submissos, prontos a acatarem há todas as
ordens, deste modo ao invés de formar indivíduos críticos, as instituições de ensino formam
sujeitos que irão servir a mecânica do poder sendo condicionados a atenderem as exigências
do mercado de trabalho.

Conclusão

Para Foucault (1999), o poder disciplinar graças a vigilância hierarquizada torna-se


um sistema integralizado, ligado ao interior de uma economia e aos fins do dispositivo onde é
exercido (p. 201), organizando-se assim um poder múltiplo, automático e anônimo
funcionando como uma grande máquina, na qual sua organização dá o poder a quem “manda”
e distribui papéis a indivíduos benévolos a obediência.
A punição disciplinar de uma sanção organizadora tem como objetivo promover por
meio do corretivo, o arrependimento do sujeito para que não se repita mais o ato
“inapropriado” que o mesmo praticou. Dessa maneira, a arte de punir faz com que o professor
relacione os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto para que se
sigam uma determinada regra, formando sujeitos conformados com o que lhe é atribuído.
A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das
instituições disciplinares, compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma
palavra, ela normaliza (Foucault,1996, p. 208). E que ainda, diante de todas essas questões, se
enraíza certa violência simbólica que atinge erroneamente a identidade do sujeito, em
específico, nas instituições de ensino, os alunos. Violência essa que deve ser combatida,
comparada, problematizada e direcionada as questões de gênero, sendo a causa da atribuição
de papéis e produção de corpos dóceis e disciplinados no ambiente escolar.

Referências

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica


Editora; Curitiba: Champagnat, 2013.

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CASSIANO, Caroline; SILVA, A. Giuliana. Foucault e a Educação: as práticas de poder e a


escola atual. Revista Modelos- FACOS/CNEC Osório Ano 2- Vol.2 Nº 2, Agosto, 2012.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialista em aspectos da


discriminação racial relativos ao gênero. Revista de estudos Feministas, Florianópolis,
v.10, n.1, p. 171-188. 2002.

CRUZ, S. Priscila Aparecida; FREITAS, Silvana. Disciplina, Controle e Educação Escolar:


Um Breve Estudo à Luz do Pensamento de Michael Foucault. Revista do Laboratório de
Estudos da Violência da UNESP/Marília, 7º edição, Julho, 2011.

FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 20º edição. Tradução de


Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1996.

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogo, Brincadeira e Educação: O jogo e a Educação


Infantil. 2ª Edição. Editora Cortez. São Paulo. 1997.

LOURO. G. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.


Petrópolis; Vozes, 2010.

LOURO. G. O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 2ª Edição. Digital Source. Belo


Horizonte. 2000.

MOURA, Thelma Maria. Foucault e a Escola: Disciplina, Examinar, Fabricar. 2012. 95 p.


Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação,
Goiânia, 2010.

SANTOS, Alexandre dos. Gênero em Processos de Orientação Profissional. Tese


(Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 20122.

VIANNA, Claudia. FINCO, Daniela. Meninos e meninas na educação infantil: uma


questão de gênero e poder. São Paulo. 2009.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1159 1169


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Documentos curriculares oficiais assegurando a abordagem de gênero e sexualidade


para a educação básica: um olhar para o ensino de ciências

Nathany Ribeiro Lima dos Santos1


Sara Pereira2
Zilene Moreira Pereira Soares3

Resumo: Considerando que ações educativas podem desestabilizar saberes e práticas


naturalizados na sociedade, percebe-se a importância em conhecer o que os documentos
curriculares sugerem (ou não) a respeito das temáticas gênero e sexualidade, a fim de que a/o
docente tenha respaldo legal para amparar suas ações pedagógicas. Desse modo, essa pesquisa
de caráter qualitativo, buscou analisar os documentos curriculares de âmbito nacional
buscando identificar o que eles dizem sobre as temáticas gênero e sexualidade. Foram
analisados os seguintes documentos: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN); o Plano Nacional de Educação (PNE);
e a Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Vale destacar que devido a área de
atuação das pesquisadoras, houve uma ênfase mais detalhada no contexto do ensino de
ciências naturais. Diante da análise, foi possível identificar que os PCN colaboraram com
melhorias na inclusão de perspectivas de abordagem dos temas gênero e sexualidade. Da
mesma forma as DCN apresentaram um papel importante, fomentando a superação das
diversas formas de desigualdade e afirmando como papel da escola o respeito e a valorização
das diferenças sejam elas de classe social, gênero ou etnia. E ainda recomendando que esses
temas perpassem todos os níveis e modalidades de ensino assim como o Projeto Político
Pedagógico da escola. Entretanto percebeu-se um retrocesso com relação à última votação do
PNE, na qual a bancada evangélica teve grande participação para a retirada desses temas,
excluindo qualquer menção das palavras gênero e orientação sexual neste documento. O
mesmo ocorreu para a nova versão da BNCC, que dificulta a abordagem da sexualidade de
forma ampla em suas múltiplas dimensões. Ressalta-se a descontinuidade entre as abordagens
dos documentos anteriores (PCN e DCN) e a nova BNCC, cuja resistência conservadora aos
movimentos de minorias que vem impactando diretamente as políticas educacionais. Dessa
forma até o momento, percebe-se que os PCN, embora sejam os documentos menos recentes,
são os que mais adentram e exploram as temáticas gênero e sexualidade.

Palavras-chaves: Documentos curriculares; Gênero; Sexualidade.

1
Universidade Federal de Goiás; Licencianda em Ciências Biológicas; e-mail: nathany.ribeiro.315@gmail.com
2
Universidade Federal de Goiás; Licencianda em Ciências Biológicas; e-mail: psara2294@gmail.com
3
Universidade Federal de Goiás; Doutora em Ensino em Biociências e Saúde; e-mail: zilenemor@gmail.com

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Introdução
A gravidade das situações de discriminação por gênero e orientação sexual pode ser
atestada por estatísticas recentes de violência contra a mulher (SOARES, 2017) ou violência
homofóbica (GRUPO GAY DA BAHIA, 2017) que aparecem com frequência nos meios de
comunicação. As iniciativas voltadas para abordagem da diversidade sexual no contexto da
rede pública de ensino representam um desafio frente aos diferentes valores e às normas
morais, culturais, religiosas e familiares que permeiam os temas gênero e sexualidade, que
ainda se fazem presentes na segunda década do século XXI. Essa tensão é resultado
principalmente de forças reacionárias diante de conquistas no plano dos direitos humanos,
sexuais e reprodutivos. A pressão exercida por esses grupos tem impactado as políticas
públicas, especialmente na área da Saúde e da Educação voltadas para as ações de igualdade
independente da orientação sexual e ao combate à epidemia de AIDS. De acordo com o
relatório da UNAIDS (2017) a violência contra as mulheres e os estereótipos de gênero
colocam a saúde de homens e mulheres em risco e são um desafio no combate à epidemia.
Considerando que ações educativas podem desestabilizar saberes e práticas naturalizados na
sociedade, é importante conhecer o que os documentos curriculares sugerem (ou não) a
respeito da temática a fim de que a/o docente tenha respaldo legal que o ampare em suas
ações pedagógicas.
O trabalho possui uma abordagem qualitativa e foi dividido em etapas: busca dos
documentos curriculares no âmbito nacional; leitura na íntegra dos documentos procurando
identificar se e como aparecem os temas gênero e sexualidade, e a concepção apresentada
sobre esses temas. Considerando a área de interesse e atuação das pesquisadoras foi dado um
enfoque mais detalhado para orientações específicas para a área de ciências. Dentre os
principais documentos curriculares que norteiam a Educação Básica e que serão aqui
analisados estão: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Básica (DCN), o Plano Nacional de Educação (PNE), e a Nova
Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Desenvolvimento

1. Parâmetros Curriculares Nacionais (1997/1998)


No campo das diretrizes educacionais os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
trouxeram melhorias em relação à inclusão de novas perspectivas na abordagem do tema
sexualidade na Educação Básica. Na elaboração desses documentos, especialistas de várias

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partes do país se reuniram a convite do MEC e analisaram currículos de outros países


(Inglaterra, França, Espanha, Estados Unidos), além de indicadores da educação no Brasil,
teorias sobre currículo, ensino, aprendizagem e avaliação. Em 1997 os PCN foram publicados
como um guia de referência, incluindo uma proposta de conteúdo, visando orientar tanto a
formação do/a professor/a como a prática em sala de aula (VIANNA; UNBEHAUM, 2006).
Os parâmetros originaram-se da necessidade de construir um referencial curricular comum,
garantindo que estudantes de todas as regiões do país tivessem acesso aos conhecimentos
indispensáveis para a construção de sua cidadania (BRASIL, 1998).
Os PCN estão organizados por áreas do conhecimento (ex.: área de Língua Portuguesa,
área de Matemática, área de Ciências Naturais, etc), e cada uma dessas áreas conta com um
documento específico composto por uma proposta detalhada em objetivos, conteúdos,
avaliação e orientações didáticas. Frente à necessidade de tratar temas “urgentes” no âmbito
das diferentes áreas curriculares foram desenvolvidos os Temas Transversais, dentre eles, o
Caderno de Orientação Sexual (BRASIL, 1998). O caderno Orientação Sexual (BRASIL,
1998) aponta que a finalidade do trabalho de Orientação Sexual é contribuir para que os/as
aluno/as possam exercer sua sexualidade com prazer e responsabilidade. Ademais objetiva
que ao fim do Ensino Fundamental os/as alunos/as sejam capazes de: respeitar a diversidade
de valores, crenças e formas de expressão relativos à sexualidade; identificar e repensar tabus
referentes à sexualidade; reconhecer que características atribuídas ao masculino e feminino
são construídas socialmente e posicionar-se contra a discriminação associada a essas
construções; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; ser
solidários em relação aos portadores do HIV; adotar práticas de sexo protegido; prevenir-se de
uma gravidez “indesejada”; e usarem corretamente os métodos contraceptivos.
O documento referente à área de Ciências Naturais (BRASIL, 1998) é dividido em
eixos temáticos, a saber: Terra e Universo, Vida e Ambiente, Ser Humano e Saúde e
Tecnologia e Sociedade, trabalhados em todos os anos do Ensino Fundamental em nível
crescente de complexidade. É no eixo Ser Humano e Saúde que aparecem conteúdos
referentes à reprodução e sexualidade, norteados pelo caderno de Orientação Sexual, que
estabelece alcances para a discussão do corpo, sexualidade humana e das relações de gênero.
Este eixo temático destaca a importância das discussões sobre as emoções envolvidas na
sexualidade. Assinala ainda que o conteúdo não deve ter a forma de prescrições de normas de
conduta, mas sim a circulação de ideias e opiniões baseadas no respeito mútuo (BRASIL,
1998).

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De acordo com os PCN as informações objetivam combater preconceitos que atrapalham


o desenvolvimento da sexualidade, buscando tranquilizar os estudantes ao invés de
sobrecarregá-los com detalhes anatômicos e fisiológicos. Ao chamarem a atenção para
discussão de valores morais, tabus e preconceitos, os PCN sugerem que o/a professor/a deva
se preparar para a abordagem dessas questões. Esse preparo inclui ter acesso aos fundamentos
teóricos sobre a dimensão biológica e sociológica da sexualidade e da reprodução, discutir
com os pares (docentes de diferentes áreas), estar atualizado sobre os assuntos presentes nas
diversas mídias, com vistas a reconhecer como legítimos os diferentes valores e crenças
presentes na sociedade, bem como as dúvidas e curiosidades que os/as alunos/as trazem para
sala de aula. Ao ampliar o leque de conhecimento dos/as alunos, o/a professor/a oferece
possibilidade para que esses/as decidam qual o melhor caminho a seguir.
Com relação aos métodos contraceptivos, os PCN consideram que a discussão dos
aspectos subjacentes à contracepção, como por exemplo, a negociação do uso do método
contraceptivo, pode estimular a adoção de práticas preventivas. Ademais sinaliza para a
rigidez das regras nas relações de gênero, apontando para a diversidade de formas de ser
homem ou mulher e para variação das expressões do masculino e feminino ao longo da
história e entre as culturas.
No tema DST/AIDS é destacado que o enfoque precisa ser coerente com a associação
entre sexualidade, vida e prazer, conforme mencionada na apresentação dos documentos, e
não na ligação entre sexualidade e doença ou morte. As informações sobre DST/AIDS devem
ter como foco a promoção da saúde e de condutas preventivas, diferenciando as formas de
contato com e sem risco de contágio e permitir que os jovens se questionem sobre diferentes
mitos e obstáculos emocionais e culturais que impedem a adoção de práticas de sexo mais
seguro. A falta de informação é um dos fatores que pode gerar preconceito e discriminação de
soropositivos na escola.
O documento também trata detalhadamente sobre a gravidez na adolescência,
prevenção do abuso sexual, aborto e legislação sobre o tema. Além dos exemplos citados
acima, os PCN também mencionam outros conteúdos que devem ser debatidos em sala de
aula, porém sem detalhamentos: masturbação, início do relacionamento sexual,
homossexualidade, prostituição, erotismo e pornografia, desempenho sexual, disfunções
sexuais, parafilias, mães de aluguel, hermafroditismo, transexualismo e as novas tecnologias
reprodutivas.
Certamente os PCN apresentam um avanço ao legitimar a discussão de temas de
caráter “urgente” na escola, e principalmente de forma transversal, na qual as questões

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tratadas atravessam todas as áreas de conhecimento. Exemplo disso são as relações de gênero
articuladas às questões biológicas, a predisposição para a mudança de posturas frente à
discriminação e desigualdade na escola, o destaque para uma visão ampla, não reducionista de
temas que envolvem a sexualidade e a projeção da discussão sobre AIDS, reconhecendo a
mudança de enfoque na prevenção da epidemia nos últimos anos. Todos esses exemplos
assinalam progresso nas intervenções com vistas a diminuir a vulnerabilidade dos/as jovens.
Em relação ao tema da diversidade sexual, os PCN, de uma maneira geral, têm como
objetivo principal que ao final do Ensino Fundamental os/as alunos/as sejam capazes de:
“respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos relativos à sexualidade,
reconhecendo e respeitando as diferentes formas de atração sexual e o seu direito à expressão,
garantida a dignidade do ser humano” (BRASIL, 1998, p.311). Cabe observar que na época
em que esses documentos foram produzidos a visibilidade e as reivindicações do movimento
gay ainda eram incipientes no debate educacional. Os PCN tratam do assunto em poucas
linhas e de forma muito superficial ao afirmar que a discussão dessa questão deve ser sob uma
ótica democrática e pluralista.

2. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN)


As DCN (BRASIL, 2013) constituem um documento de caráter normativo,
homologadas pelo parecer do Conselho Nacional de Educação em 2010, com o objetivo de
estabelecer bases comuns nacionais para a Educação Básica. Elas trazem orientações
explícitas de como deve ser pensada e conduzida a educação. Esse documento está organizado
em vários textos, os quais encarregam-se de apresentar as Diretrizes Nacionais Gerais para:
Ensino Infantil; Ensinos Fundamental; Ensino Médio; bem como as diversas modalidades da
educação como, por exemplo, Educação Profissional Técnica; Educação Especial; Educação
para Jovens e Adultos; Educação Escolar Indígena; Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; dentre outros.
Estas Diretrizes têm por objetivo: sistematizar os princípios e diretrizes da educação
básica; estimular a reflexão crítica sobre o projeto político pedagógico da escola; orientar os
cursos de formação inicial e continuada de profissionais da educação básica. Em resumo o
documento, visa orientar as escolas no diversos níveis e modalidades para que se organizem,
articulem, desenvolvam e avaliem suas propostas pedagógicas ao construir seus currículos.
A seguir examinamos os pontos em que as DCN, em específico Ensino Fundamental e
Médio, articulam-se com questões relacionadas à sexualidade e ao gênero destacando alguns
excertos e passagens. Analisando a modalidade Ensino Fundamental de 9 (nove) anos, no

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tópico “As múltiplas infâncias e adolescências” (p. 110) os termos gênero e sexualidade são
apresentados juntamente com o reconhecimento das transformações biológicas, psicológicas,
sociais e emocionais que ocorrem durante essas fases, e reforçam que os conhecimentos sobre
sexualidade e as relações de gênero permitem a construção de valores durante essa faixa
etária. As DCN sustentam que em concordância à Base Nacional Comum (até então apenas
idealizada) e à parte diversificada do currículo as diversas áreas de conhecimento devem
articular-se a temas abrangentes e contemporâneos que afetam a vida humana nas diversas
escolas, tais como: sexualidade, gênero, saúde, direitos das crianças e adolescentes, meio
ambiente, etc. Da mesma forma estimula que os órgãos executivos dos sistemas de ensino
produzam e disseminem materiais que contribuam para a eliminação de discriminações e
preconceitos, aí incluídos o racismo, sexismo e a homofobia.
As DCN apresentam a exigência de problematizar questões organizacionais da
escola, fomentando o debate sobre a complexidade da diversidade humana e as práticas
sociais voltadas para grupos excluídos historicamente. Assim, refere-se, dentre outras
temáticas, às questões de gênero, às mulheres, às diferentes orientações sexuais, e a “todos
que compõem a diversidade que é a sociedade brasileira e que começam a ser contemplados
pelas políticas públicas” (BRASIL, 2013, p. 16).
Além disso, afirma que a escola, em sua missão de formar cidadãos e cidadãs na
cultura de direitos humanos, seja reconhecida como uma instituição acolhedora e
transgressora destinada a múltiplos sujeitos, tendo como objetivo “a troca de saberes, a
socialização e o confronto do conhecimento” sob diferentes abordagens (BRASIL, 2013, p.
25). Os pressupostos nos quais se fundamenta a escola devem apontar para o respeito e
valorização das diferenças de classe social, gênero, etnia, dentre outras, com o objetivo de
superar desigualdades de qualquer natureza.
Especificamente na Educação Básica há inúmeras referências às questões de gênero.
Logo no primeiro tópico, de apresentação do documento, explicita-se que a problematização,
o debate e as práticas relacionadas ao processo de inclusão social são imprescindíveis, de
modo que as discussões sobre gênero, orientação sexual, mulheres, entre outros temas,
precisam existir para abranger a diversidade da sociedade brasileira contempladas pelas
políticas públicas.
Ainda na perspectiva de currículo considerado como um “conjunto de valores e
práticas que proporcionam a produção e a socialização de significados no espaço social e que,
contribuem, intensamente, para a construção de identidade sociais e culturais do estudante”
(BRASIL, 2013, p. 27), atenta-se que a escola precisa dedicar-se à construção de um ambiente

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heterogêneo e plural, atendendo à diversidade e à busca por emancipação. Para isso, faz-se
necessário a valorização e respeito às diferenças de gênero, classe social. etnia, entre outros,
por meio de medidas proativas e preventivas adotadas pela instituição, pelos/as educadores/as.
Por conseguinte, analisando a organização da Educação Básica, há o reconhecimento
das singularidades dos sujeitos, dentro do seu momento de desenvolvimento e do seu contexto
sociocultural, no qual a escola deve ter como princípio norteador o respeito aos/às estudantes
e suas identidades.
As DCN também apontam que as escolas, na elaboração de seus Projetos Político-
Pedagógicos (PPP), devem incorporar temas que se relacionem com fatos relevantes da
realidade. Nesse aspecto as questões de gênero, etnia, classe, dentre outras, devem subsidiar
as partes integrantes do PPP e do Regimento Escolar.
De acordo com a Nota Técnica nº 32/20154 as DCN (BRASIL, 2013):
Indicam para tanto uma abordagem focada não na padronização de comportamentos
ou na reprodução de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão crítica, na
autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso à informação e ao conhecimento, no
reconhecimento das diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento a toda
forma de discriminação e violência (NOTA TÉCNICA Nº 32/2015, p. 3).

Portanto, por mais que não aprofundem nas questões de gênero, são documentos
importantes para esta temática, porque propõe a necessidade de discutir as diferenças. Assim,
as diretrizes podem ser vistas como uma forma de fazer com que a escola saia de sua zona de
conforto e cumpra seu papel na superação das desigualdades.
Diante da análise pode-se concluir que as DCN além de recomendar a abordagem das
questões de gênero e sexualidade, sugerem que estas sejam inseridas nos PPP das escolas nos
diversos níveis e modalidades de ensino. Além disso, indica que estas temáticas sejam
abordadas ao longo de todo o contexto escolar, para a construção de uma ambiente plural e de
respeito às singularidades dos indivíduos, à igualdade de gênero e à orientação sexual.

3. Plano nacional da Educação (2014-2024)


O Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014), representado pela Lei nº
13.005/2014, determina as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional por 10
anos (2014-2024). Este documento está dividido em quatorze artigos que apresentam as
providências da lei. Além disso, compõem-se de vinte metas (cada uma delas acompanhadas
das respectivas estratégias) que abrangem todos os níveis de ensino, desde Educação Infantil

4
Nota Técnica elaborada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
(SECADI) com o objetivo de trazer o escopo legal para subsidiar as redes de ensino quanto à pertinência da
abordagem de temas relacionados a gênero e sexualidade.

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ao Ensino Superior. Vale destacar que após a aprovação desse Plano, seus objetivos devem ser
executados nos dez anos seguintes, uma vez que antes dessa versão sua modificação era
plurianual. Essa alteração e muitas outras foram alvo de contestações envolvendo o
documento.
Uma grande polêmica relacionada às alterações diz respeito ao artigo 2º, inciso III, que
antes da modificação dispunha que uma das diretrizes do PNE era promover a “superação das
desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero
e de orientação sexual”. No entanto, o trecho foi substituído por “superação das desigualdades
educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação” (BRASIL, 2014 p. 43).
Estas alterações estão muito ligadas à atuação da bancada evangélica, constituída por
deputados e senadores muito influentes, cujas reivindicações na maioria das vezes possuem
grande repercussão midiática (GONÇALVES, 2016). Sabe-se que esse grupo sempre esteve
focado em exterminar as questões de gênero das pautas educacionais, e na verdade de
quaisquer outras áreas. Convém destacar que esse movimento reacionário na educação se
intensificou na contestação do Projeto Escola Sem Homofobia de 2011. De acordo com
Oliveira Junior e Maio (2017) o projeto suscitou uma explosão discursiva na mídia sob a
argumentação de que o governo estaria incitando práticas homoafetivas para crianças e
adolescentes.
Grupos religiosos conservadores causaram grande repercussão nacional ao deturpar o
conteúdo de gênero e sexualidade nos documentos escolares, alegando que toda essa
discussão acerca do tema colocaria em risco o conceito de homem e mulher e destruiria o
modelo de família tradicional, com o argumento que esse assunto é dever dos pais e não da
escola, com isso disseminaram um termo pejorativo chamado “ideologia de gênero”
(ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016). Essa resistência conservadora
constitui-se num obstáculo para a equidade de gênero e o livre exercício da sexualidade.
A opressão e exclusão que envolve as questões de gênero abre espaço para que os
indivíduos continuem a sofrer agressões e desrespeito. O próprio Estado participa como
reforçador da violência exercida por estudantes ao ocultar as questões de gênero e sexualidade
nos documentos, consequentemente exerce um efeito de privação de direitos sobre crianças e
jovens (ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE; GOMES, 2016).
De acordo com Dourado (2016) o plano aprovado possui uma concepção restrita de
inclusão e participação haja vista a repulsão na relação entre educação e a diversidade sexual
e de gênero. A ideia de diversidade visa uma convivência harmoniosa com as diferenças, de

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modo que a escola ainda desempenha um papel de reprodução da naturalização da


heterossexualidade, transmitindo a representação patriarcal e dominação masculina
(PANIZZI, 2015).
Desse modo, observa-se um retrocesso significativo por parte do Estado em relação a
retirada desses termos nos planos de educação, não reconhecendo os direitos que restringe as
minorias. Além de não reconhecer a autonomia do indivíduo no que tange questões
individuais e da vida privada, pois reprime esse direito na formação escolar das crianças e dos
jovens.

4. Base Nacional Comum Curricular (2017)


A BNCC é um documento de caráter normativo que define o conjunto de aprendizagens
essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo da Educação Básica. A Base está
prevista na Constituição de 1988, na LDB de 1996, nas DCN de 2013, e no PNE de 2014. Em
1996 a LDB determinava que a União firmasse um pacto interfederativo, ou seja, um acordo
entre os vários níveis de governo para estabelecer competências e diretrizes capazes de
orientar os currículos. O artigo 26 da LDB determina que:

os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio


devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e
em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos
educandos (BRASIL, 1996).

Em 2014 o PNE reafirmava a necessidade de estabelecer diretrizes pedagógicas para a


educação básica, e de criar uma Base nacional que orientasse os currículos de todas as
unidades da federação. Em abril de 2017, o Ministério da Educação (MEC) encaminhou a
última versão ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a fim de que este último fizesse a
apreciação da proposta da BNCC para produção de um parecer e de um projeto de resolução
que ao ser homologado pelo Ministro da Educação transformou-se em norma nacional. O
CNE realizou audiências públicas em diversas capitais brasileiras de caráter consultivo a fim
de coletar subsídios para a elaboração de uma norma instituidora da BNCC.
No dia 15 de dezembro, o parecer e o projeto de resolução apresentados pelos
conselheiros relatores do CNE foram votados em Sessão do Conselho Pleno e aprovados com
20 votos a favor e 3 contrários. Com esse resultado, seguiram para a homologação no MEC,
que aconteceu no dia 20 de dezembro. No dia 22 de dezembro de 2017 foi publicada a
Resolução CNE/CP nº 2, que institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum

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Curricular a passa a ser referência obrigatória para elaboração dos currículos e propostas
pedagógicas para Educação Infantil e o Ensino Fundamental. A base impacta diretamente a
formação de professores, os processos avaliativos, e o material didático das escolas públicas.
É importante destacar que o caráter democrático de construção da Base é questionável,
haja vista que a 3ª versão da base, apresentada à equipe dirigente do MEC, não foi discutida
com a sociedade tem como opositores as principais organizações científicas educacionais e
dos sindicatos dos educadores da educação básica (AGUIAR, 2018).
Neste documento, as redes de ensino pública e particulares passam a ter uma
referência obrigatória para a elaboração dos currículos. Dentre os principais objetivos da
BNCC além da adequação dos currículos, está o desenvolvimento dos estudantes no respeito
às diferenças, à discriminação e ao preconceito, visando também a redução das desigualdades
educacionais no Brasil. A BNCC está estruturada de modo a explicitar as dez competências
gerais. Nesse documento o ensino fundamental está organizado em: áreas do conhecimento,
competências específicas de área, componentes curriculares e competências específicas de
componente.
A BNCC reconhece a educação básica como essencial para a formação plena do
estudante, voltada para a singularidade e a diversidade. Ademais “a escola como um espaço
de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não
discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades” (BRASIL, 2017, p.
14). Nesse sentido o cotidiano escolar deve reconhecer as desigualdades entre os estudantes
definidos por raça, sexo e condição socioeconômica objetivando a igualdade, diversidade e
equidade.
De acordo com Oliveira et al. (2017) a possibilidade de inclusão da discussão sobre
identidade de gênero e sexualidade nos currículos é polêmica e vem provocando calorosos
debates entre grupos favoráveis e contrários a sua inserção. O exemplo mais recente desse
embate foi a retirada das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” da versão
final da BNCC devido às pressões exercidas por grupos religiosos conservadores. De acordo
com Adrião e Peroni (2018) essa ausência foi questionada pela Relatora Especial para o
Direito à Educação da ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, a partir de denúncia
apresentada pela Campanha Nacional pelo direito à Educação. De acordo com o documento a
exclusão do termo “orientação sexual” do currículo escolar vai de encontro às recomendações
do Comitê dos Direitos das Crianças ratificado pelo Brasil em 30 de outubro de 2015. O
Comitê recomenda que o Brasil fortaleça seus esforços no combate a discriminação de
crianças vivendo áreas marginalizadas; proíba a incitação da violência baseada na orientação

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sexual e de identidade de gênero, dê continuidade de projetos contra a homofobia na escola;


priorize a eliminação de atitudes patriarcais e estereótipos de gênero, por meio de programas
educativos e de conscientização.
Na versão inicial apareciam os termos sexualidade e gênero, já a versão aprovada
limitou-se à sexualidade, como ilustra o trecho a seguir da área de ciências naturais:
Nos anos iniciais, pretende-se que, em continuidade às abordagens na Educação
Infantil, as crianças ampliem os seus conhecimentos e apreço pelo seu corpo,
identifiquem os cuidados necessários para a manutenção da saúde e integridade do
organismo e desenvolvam atitudes de respeito e acolhimento pelas diferenças
individuais, tanto no que diz respeito à diversidade étnico-cultural quanto em relação
à inclusão de alunos da educação especial.
Nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à
sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa
etária, assim como são relevantes, também, o conhecimento das condições de saúde,
do saneamento básico, da qualidade do ar e das condições nutricionais da população
brasileira” (BRASIL, 2017, p. 325).

Mais adiante no documento, no 8º ano da área de ciências observa-se a sexualidade


como um dos objetos de conhecimento, e nas respectivas habilidades objetiva (BRASIL,
2017, p. 347):
Analisar e explicar as transformações que ocorrem na puberdade considerando a
atuação dos hormônios sexuais e do sistema nervoso;
Comparar o modo de ação e a eficácia dos diversos métodos contraceptivos e
justificar a necessidade de compartilhar a responsabilidade na escolha e na utilização
do método mais adequado à prevenção da gravidez precoce e indesejada e de
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST);
Identificar os principais sintomas, modos de transmissão e tratamento de algumas
DST (com ênfase na AIDS), e discutir estratégias e métodos de prevenção.
Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade
humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética).

Se por um lado legitima-se a abordagem da sexualidade nos currículos, como fazê-la


desatrelada das questões de gênero? Como abordar as múltiplas dimensões da sexualidade, as
IST, o uso de contraceptivos sem destacar as desigualdades, os obstáculos e as hierarquias de
gênero? Suprimir esses temas da BNCC reflete uma visão conservadora, como uma ameaça à
chamada “família tradicional”, mas acima de tudo desconsidera o acúmulo de debates,
pesquisas e conquistas dos movimentos sociais em busca da equidade de direitos.
Por outro lado, a sexualidade é apresentada em associação com doenças, violência e
gravidez, evidenciando um distanciamento entre a orientação proposta e a vivência dos
estudantes. Denise Carreira coordenadora da área de educação da Ação Educativa
complementa:
A escola é o espaço de inúmeras demandas sociais relativas a amplas parcelas da
população e cenário importante de convivência de crianças, adolescentes e jovens.
Neste sentido, a sexualidade não necessita ser inserida na educação, pois ela, sendo

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parte da vivência humana, já está dentro da escola, cabendo aos educadores


reconhecer a legitimidade desse tema no âmbito da educação (CARREIRA, 2011,
p.98).

Desse modo a BNCC ressalta a importância de atender às desigualdades entre os


estudantes, de modo que todas as singularidades devem ser consideradas (BRASIL, 2017).
Entretanto o documento apresenta uma contradição com a supressão dos termos gênero e com
a sexualidade articulada apenas à dimensão da saúde, diferentemente do proposto da
abordagem em suas múltiplas dimensões.
Ressalta-se a descontinuidade entre as abordagens dos documentos anteriores (PCN e
DCN) e a nova BNCC. De acordo com Girotto (2016) o que não está sendo dito na base
possui uma importância maior pois marca a concepção de educação presente na Base e a
difusão de um projeto de desenvolvimento econômico e social para o país. Vale destacar que
tal a resistência conservadora a movimentos de minorias que vem impactando diretamente as
políticas educacionais.
Entretanto segundo Ferreira e Mariz (2017) existe a possibilidade de que o CNE emita
posteriormente orientações sobre a abordagem de gênero e sexualidade considerando as
diretrizes atuais vigentes.

Considerações finais
De acordo com Girotto (2017) tanto os PCN (BRASIL, 1997) quanto a BNCC
(BRASIL, 2017) fazem parte de uma lógica de Estado que têm como base princípios
neoliberais que atendem a interesses de determinados grupos econômicos, em especial do
Banco Mundial. Esses grupos apontam para a necessidade da construção de um currículo
único que atenda aos requisitos das avaliações internacionais, e que também serviriam de base
para os cursos de formação de professores.
Soma-se a esse fator o crescimento de movimentos conservadores principalmente a
partir do ano de 2010. Esse conservadorismo vai desde questões como a redução da
maioridade penal, o apoio à pena de morte até a oposição ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo, e à legalização do aborto (TOLEDO, 2018).
Em se tratando de políticas educacionais, dentre os documentos analisados pode-se
afirmar que apesar das críticas, os PCN foram os documentos que possibilitaram o maior
avanço na abordagem do tema. Vale destacar que os PCN foram concebidos num contexto do
impacto da epidemia de HIV/Aids, e do grande número de casos de gravidez na adolescência

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que demandaram pesquisas e espaço para a abordagem da sexualidade e do gênero na escola


(PEREIRA, 2014).
Embora sem grandes aprofundamentos, as DCN corroboram pelo respeito e
valorização das diferenças seja de gênero, classe ou orientação sexual. Cabendo à escola a
abordagem dessas questões como forma de diminuir as desigualdades. Entretanto, em
conformidade com a análise feita por Barbosa e Guizzo (2014) as DCN não fundamentam
nem exemplificam como inserir essas temáticas nos currículos e no dia a dia em sala de aula.
No PNE e na BNCC os termos gênero e orientação sexual foram excluídos como
resultado da pressão de segmentos conservadores. Entretanto isso não significa dizer que
esses temas não podem ser abordados em sala de aula, tendo em conta que fazem parte das
demandas dos próprios estudantes. Além disso ainda constam nos PCN e nas DCN, e que
embora sejam menos recentes ainda continuam em vigor.
A Nota Técnica nº 32/2015 destaca ainda que embora os temos gênero e orientação
sexual estejam ausentes do PNE isso não exime as redes de ensino de seguirem as
recomendações e normativas descritas nas DCN, e que qualquer restrição a essa abordagem
estará em contradição com o que apontam as diretrizes.
Segundo Basílio (2017), falar de gênero e sexualidade na escola é fundamental para
romper com a violência e a maneira tradicional como são socializados homens e mulheres,
pois a escola é um espaço de exercer a cidadania em prol da equidade. Basílio (2017) cita a
coordenadora da Associação Civil Ação Educativa, Denise Carreira:
Discutir gênero é abordar um conjunto de problemas estruturais do país, como a
violência contra a mulher, a cultura do estupro, a desigualdade salarial entre homens
e mulheres, os assassinatos de travestis e transgêneros (o Brasil é o país que mais
mata essa população no mundo), o modelo predominante de estética que
desqualifica, por exemplo, as mulheres negras (BASÍLIO, 2017, s/p).

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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1170 1184


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Relato de experiência de lesbofobia vivenciada por uma professora na rede pública

Clara HankeErcoles1
Eliane Maio2

Resumo: Este relato tem por objetivo não apenas narrar sobre um caso de lesbofobia
vivenciado por uma professora de uma escola municipal pública, mas de problematizar acerca
dessa violência e da importância do não silenciamento. Para isso, será posta em discussão a
heteronormatividade presente na escola, no Currículo escolar e na imagem estereotipada de
professoras. Também entender qual é o espaço da lésbica no trabalho e o conceito de
violência simbólica, a partir do ocorrido, quando a professora foi chamada para uma reunião
na escola sem aviso prévio, porque expôs para suas alunas e alunos de duas turmas de quinto
ano do Ensino Fundamental I que tinha uma namorada ao discutir sobre o assunto famílias em
sua aula e ser questionada sobre sua dinâmica familiar. O fato gerou reação de uma suposta
mãe que reclamou na escola e que resultou nesta reunião, que foi solicidado a ela que fosse
sutil e que evitasse esse tipo de assunto para essa faixa etária e para essa comunidade
religiosa. Não concordando com tal postura, a professora procura a diretora do ensino
fundamental na Secretaria de educação, que tenta acalmar a situação, sendo verbalmente
naquele momento de reunião a favor da professora e substituindo o termo ―sutil‖ para ―ética‖.
É preciso que o espaço escolar não imprima sua matriz heterossexual no corpo docente e
discente, marginalizando de seus Currículos a pluralidade de relacionamentos, como o
lésbico. Sendo assim, não permitir que uma professora que está dentro de um relacionamento
lésbico ser impedida de responder aos alunos e alunas apenas para perpetuar as sexualidades
hegemônicas e produzir em seu corpo a heterossexualidade é uma violência simbólica que
precisa ser apontada e visibilizada, pois ela é sutil e imperceptível e resulta no fortalecimento
do Poder e silenciamento da vítima.

Palavras-chaves: educação pública; sexualidade; lesbofobia.

1
Universidade Estadual de Maringá; mestranda do programa de pós-graduação em Educação da UEM;
claraercoles@hotmail.com.
2
Doutora em Educação Escolar; Psicóloga; Professora da Universidade Estadual de Maringá; e-mail:
elianerosemaio@yahoo.com.br.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1185 1185


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Introdução

Este trabalho tem por objetivo duas funções: primeiro, relatar um caso de lesbofobia
vivenciado por mim, Clara, uma das autoras dele, detalhando o porquê se deu, como foi e
como eu reagi a tal violência. Também objetiva analisar como a escola é um espaço
heteronomativo, tanto na produção quanto na reprodução, através de discussões e reflexões
trazidas por Guacira Louro (2003). E que para isso é necessário garantir um Currículo que
exclua identidades que não seja de interesse político da burguesia, como Tomaz Tadeu da
Silva (2011) propõe. Para a formação dessas identidades, é necessário que professores e
professoras tenham uma imagem estereotipada para garantir a cis-heteronoratividade, com
respaldo em Louro (2003). E quando esses professores e professoras não se adequam a essa
imagem, são lançados dispositivos disciplinares que discorre Foucault (1987), como é o caso
dessa reunião escolar que será narrada. Por fim, entender como é para as lésbicas o ambiente
de trabalho e como acontece a violência simbólica, discutida por Pierre Boudieu (2003).
Este relato é sobre um fato que aconteceu comigo em uma escola pública municipal,
no sul do Brasil. Proponho esse grande recorte para que não exponham pessoas, nem se
determine o município, já que são poucos os que oferecem a língua inglesa no Ensino
Fundamental I, posto que não é obrigatória a oferta.
Inicialmente já esclareço que a violência pode não ser entendida por algumas leitoras
e leitores como algo impactante ou brutal, porém, faço este relato porque acredito que
qualquer forma de lesbofobia deve ser visibilizada e colocada em discussão para que seus
efeitos minimizem e que outras pessoas passam se reconhecer nesses casos e percebam que se
trata de uma violência que não podem ficar caladas.

Desenvolvimento

Sou professora de duas escolas municipais no período vespertino. As minhas aulas de


inglês acontecem semanalmente e duram de uma hora e meia a duas horas, dependendo da
organização escolar. O caso que será relatado aconteceu no período do primeiro bimestre de
2018. Os conteúdos para as turmas de quintos anos eram famílias e rotina diária, baseada na
primeira e segunda unidade do livro de língua inglesa adotado pela rede.
Era meu primeiro ano nessas escolas, antes trabalhava em outra escola municipal.
Gostei muito da equipe da escola que não será o foco desse relato, como também das turmas e
do ambiente de trabalho. Tenho três turmas nessa escola. Mas pretendo descrever melhor o

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1185 1186


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contexto sobre a escola na qual vivenciei as experiências deste relato. Nesta escola, tenho
quatro turmas, sendo duas delas quintos anos. Com essas duas turmas tenho um ótimo
relacionamento. Vagaroso, porém, possível desenvolver um trabalho de trocas e de ensino-
aprendizagem. É uma escola periférica e de contextos hostis. Por isso, tento fazer de minhas
aulas o ambiente mais amistoso possível, com materiais extras lúdicos e buscando ouvi-las/los
ao máximo, já que uma das maiores ansiedades deles e delas é não terem suas opiniões e
dúvidas tomadas como importantes às adultas e adultos.
As aulas de inglês são separadas em assuntos e, a partir deles, são explorados os
vocabulários e as estruturas de língua inglesa. Iniciamos com a problematização do assunto
exigido pela Secretaria de Educação (SEDUC), com perguntas que tomam o conhecimento
prévio das alunas e alunos e que façam refletir sobre. Na aula a ser relatada neste trabalho o
assunto era famílias. E o fato se deu na primeira aula quando iniciamos por meio da
problematização, que será relatado no próximo item.

Relato sobre as aulas

Introduzi o conteúdo família em quatro turmas de quinto anos, duas turmas para duas
escolas municipais diferentes. Na primeira aula houve o momento de problematização,
seguida de uma discussão oral de forma lúdica, usando cartazes que ilustravam famílias de
desenho animado, sendo: 1- Simpsons, representando a família hegemônica, 2- Meu Malvado
Favorito I, II e III, tratando sobre adoção e a reconstituição familiar (que se amplia ao longo
dos três filmes), 3- Frozen, explorando sobre a perda de familiares, 4- Procurando Nemo, que,
além de tratar da perda de familiares, ainda mostra a ajuda e apoio da comunidade. 5 – A
família do Jeff, de ―Clarêncio, o otimista‖, cuja família é formada pelo personagem e suas
duas mães, que são um casal lésbico.
Interagimos sobre nossos formatos de família e, nesse momento também
compartilhei sobre a minha, formada pelo meu filho e eu. De diversas formas as alunas e
alunos souberam sobre eu ter uma namorada. Em duas das turmas, perguntaram se eu tinha
marido, já que eu tinha um filho. Ao dizer não, logo perguntaram se eu tinha namorado.
Então, eu dizia que tinha e especificava que era uma namorada. Outros momentos, comentei
que me identificava com a família do Jeff, pois tinha também uma namorada. Tal assunto
desperta muito a curiosidade deles e delas e me procuram em momentos de refeitório e em
sala de aula para saber mais, conhecendo sobre esse modelo não hegemônico de
relacionamento.

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Com relação às reações das duas escolas, em uma delas não houve qualquer
problema ou questionamento sobre a concepção metodológica, nem mesmo pontuações de
familiares. Entretanto, na escola de análise, a equipe diretiva chamou duas representantes da
Secretaria de Educação do município para uma reunião sem que houvesse uma discussão
anterior ou qualquer aviso prévio.

Relato da reunião na escola

A primeira reunião que foi na escola aconteceu antes mesmo que minha aula
completasse uma semana. Fui tirada de sala de aula sem aviso prévio e fui para a sala da
diretora sem ao menos saber sobre o que se tratava esta reunião. Fiquei bem assustada ao
entrar, por haver lá tantas pessoas, sendo elas: a diretora, a supervisora e a orientadora da
escola, juntamente com a assessora do ensino fundamental e a assessora de língua inglesa.
As questões a serem discutidas eram: eu me recusar a fazer oração no momento de
entrada na escola, sendo que a escola pública é laica, mas neste momento não discorrerei
sobre isso, por não ser o foco central deste relato. E o segundo assunto era sobre as
reclamações de muitos pais e mães por eu estar falando sobre minha vida pessoal, que depois
foi pontuado que a razão era eu ter verbalizado às crianças sobre eu ter uma namorada. Segui
explicando que essa é minha concepção metodológica, baseada na sinceridade e no meu
direito de ensinar e de eles e elas aprenderem sobre tal diversidade familiar.
O fato é que, desses ―muitos pais‖, na verdade, era apenas uma mãe que apareceu na
escola dizendo que iria organizar um abaixo-assinado contra mim por falar de minha vida
pessoal em sala de aula. Que nada mais era sobre eu ter exposto sobre ter uma namorada. Eu
não tive acesso a essa mãe, não vi nem comentaram nada comigo anteriormente sobre isso na
escola. Tomei conhecimento no momento dessa reunião. Até questionei, ironicamente, se
haveria tamanha mobilização quando eu falasse que eu tinha dois gatos em uma aula que
tratasse sobre animais.
Argumentei sobre livro de língua inglesa adotado pela rede municipal de ensino que
sugere que seja trabalhada toda a diversidade familiar, inclusive as ―famílias que tem dois pais
e duas mães‖ (conforme citado no anexo do Livro do Professor, do livro didático adotado pela
SEDUC). Conforme conversávamos, ficava claro que o motivo daquela reunião era discutir o
porquê foi dito às crianças que eu tinha uma namorada, ficou explícito não se tratar de discutir
a minha prática pedagógica. Depois sugeriram que esse assunto não era adequado para essa
faixa etária, que para assessora de língua inglesa, a Base Nacional Comum de língua inglesa

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expõe que deve ser trabalhado no Ensino Fundamental II. Mas o que não foi dito é que esse
documento é organizado para Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Não há um para o
Fundamental I. E por não existir não quer dizer que esses assuntos não devam ser trabalhados
ou que sejam inadequados a tal faixa etária. Argumentei sobre o direito da criança em
conhecer essa pluralidade, para cultivar o respeito, pontuei que iria, sim, falar de minha vida
pessoal quando questionada.
Ficou decidido que eu devo ser ―sutil‖, como sugeriu a assessora de língua inglesa,
quanto a minha apresentação de vida pessoal, pois a comunidade desta escola ―não está
preparada‖ para essas discussões, conforme registrado em ata. Neste ponto indaguei duas
problemáticas: 1- se a comunidade não está pronta, assim é que se faz mais necessário falar
sobre, pois falta conhecimento científico cuja responsabilidade pertence à escola, preparando
e lidando com isso. 2 – o que significaria ―ser sutil‖ de forma prática? Que foi respondida
para que eu fosse discreta quanto ao que dizer, não ficasse falando quanto a minha vida
pessoal. De preferência nem falasse sobre eu me relacionar com uma mulher, já que era um
assunto ―polêmico‖. Fui ácida ao perguntar se eu deveria, então, mentir quando alguma
criança perguntasse quanto ao meu relacionamento, já que essa pergunta é bem comum e com
certeza seria feita novamente. Ela se contradisse ao responder que eu poderia, sim, falar a
verdade, mas sempre mudando de assunto em seguida, trazendo a atenção dos alunos e alunas
para a aula.
Problematizo e problematizei às duas assessoras, quando que uma delas da SEDUC
teve que sair de seu espaço para ir a uma escola por que uma professora heterossexual disse
aos alunos e alunas que é casada com um homem. A resposta, não muito direta e meio
confusa era: porque este assunto é mais polêmico.
Sobre o tão ―polêmico assunto‖, ou seja, uma mulher amar outra mulher, foi
comparado pela assessora do ensino fundamental a casos extraconjugais. Ela me questionou,
colocando em igualdade as ―polêmicas‖, se eu contaria às crianças se estivesse traindo em um
relacionamento apenas por ter sido questionada. Eu fiquei estarrecida com tal comparação e
respondi que não achava proporcional, porque amar uma mulher não deveria ser comparado à
falta de caráter de um relacionamento. Em outro momento a assessora de língua inglesa
comparou que falar de homossexualidade no Ensino Fundamental I é tão polêmico quanto um
professor querer falar sobre legalizações de drogas, mesmo que ele acredite ser positivo, ou
seja, não é porque eu ache válido e necessário falar de pluralidade de famílias que isso seja
―adequado‖. Foi pontuado que eu representava a escola e toda a equipe dela e que, assim,
deveria ter cuidado com o que falo. Eu não perdia minha energia de fala, porém, escutar

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colocações como estas, de pessoas que estão à frente de uma secretaria de educação, era como
ser golpeada com socos. É como se a minha existência atrapalhasse o mundo.
Em alguns momentos eu manifestava meu incômodo com essa situação de ter que
reunir tantas pessoas para tratar de um assunto que não era meu trabalho pedagógico, mas de
minha vida pessoal. Mas elas respondiam que não era uma sentença, mas um momento de
conversa ―tranqüila‖ e estava sendo registrado em ata porque se houvesse mais alguma
reclamação seria mais fácil para elas me defenderem, porque essa conversa aconteceu e já foi
esclarecido. Mas o que me pergunto hoje é: por que precisaria de cinco pessoas para tal
registro?
Antes que se encerrasse a reunião, ainda tive tempo de escutar da assessora de
Ensino Fundamental o termo ―ideologia de gênero‖. Então, eu pude testemunhar que há
pessoas que estão à frente da nossa secretaria de educação muitas vezes sem formação
suficiente para o cargo, sem conhecimentos básicos sobre o assunto de gênero e sexualidade.
E ainda toma como verdade discursos midiáticos que perpassam por nossa sociedade e
instituições religiosas que formam pensamentos manipuláveis e não-reflexivos. Apenas tentei
ter a paciência de explicar as discussões em gênero e sexualidade e ponderar que não se trata
de uma ideologia.
Assim, em ata ficou decidido, além de algumas ações sobre a oração no espaço
escolar, que eu deveria ser mais ―sutil‖ com que falo nessa comunidade escolar e que o que
aconteceu foi apenas uma resposta de alunos e alunas que me questionaram sobre meu
relacionamento.
Depois dessa reunião, fico-me questionando se as demais professoras e professores
da equipe sabem ou não, se apoiam essa atitude ou não. Ao entrar nas salas de quinto ano, fico
sempre em estado de alerta, pensando se algum aluno ou aluna está perseguindo-me por
ordem da família, fico com a sensação de estar sendo observada, mas tento não deixar afetar a
minha relação com eles e elas. Tento não deixar que aquela abordagem na reunião afete meu
trabalho e meu afeto com as turmas. A propósito, não quis saber quem era essa mãe, nem de
qual aluna/o. Não acho que seria bom para mim ter acesso a essa informação.
Eu sabia que reuniões como esta não deveriam ter acontecido. Entretanto, ainda
estava muito confusa. Graças a uma amiga dentro da SEDUC que me alertou que isso se
tratava de assédio moral e graças a meu grupo de pesquisa em gênero e sexualidade a
Universidade, consegui apoio para levar um pouco mais adiante essa situação, entendendo
como uma forma de violência, assédio e que não me deveria calar. Penso que muitas
professoras e professores, por não ter conhecimento ou apoio podem ter-se calado em

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situações como esta. Então, decidi levar mais adiante, levando para as diretoras de Ensino
Fundamental na SEDUC, que será relatado no próximo item.

Relato da reunião na Secretaria de Educação

Marquei na Secretaria Municipal de Educação uma reunião com a diretora no Ensino


Fundamental do ensino regular. No dia da reunião, a diretora do Ensino Fundamental do
ensino integral também participou junto.
Nessa reunião levei dois assuntos para discussão: 1 – a maneira como fui abordada
na reunião da escola e 2 – como ficaria para mim, enquanto funcionária do município, ser
―sutil‖ sobre minha própria identidade? Elas demonstraram estar bem contextualizadas sobre
o ocorrido, tanto que iniciaram falando sobre as orações no ambiente escolar, mesmo eu não
tendo levado como pauta discutir sobre isso aquele momento.
Elas foram muito receptivas em me ouvir e me tranqüilizar sobre a abordagem da
escola. Pareciam saber que era uma situação que eu poderia apontar como assédio, então,
precisavam agir de maneira que me acalmasse e me sentisse entendida e protegida naquela
instancia. Relatei tudo o que aconteceu e elas ouviram e me responderam que a escola não
agiu corretamente, mas imaginavam que a escola havia agido dessa forma porque estariam
cuidando para que não acontecesse novamente alguma denuncia de familiares. Questionei
sobre o ―ser sutil‖, termo a qual elas substituíram por ―ser ética‖. Que o que fiz não foi errado
e que não deveria me abalar com reunião da escola, pois eu havia sido ética respondendo aos
alunos e alunas, porque essa é a postura correta em um ambiente profissional. Foram muito
cuidadosas com relação às palavras comigo, demonstrando estarem de acordo com minha
postura e não achando adequada a postura da escola.
Se houve ou não uma conversa entre as diretoras de ensino com a escola, eu não
tenho ciência. Mas o ambiente melhorou e passou haver mais respeito e menos olhares
julgadores, além de não ficarem questionando minha postura em sala de aula.

Análise das situações deste relato

Primeiramente, Louro (2003) discorre sobre a importância de reconhecermos que


gênero passa pelas instâncias sociais, seja a justiça, a igreja, a política e a educacional. Não
apenas as questões de gênero, mas de classes, étnicas etc. Em nossa sociedade que entende

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gênero em uma lógica binária, ou seja, resumida apenas em feminino e masculino, ignorando
ou neganod todas as demais identidades de gênero. Romper com essa dicotomia é um afronta
à matriz heterossexual.
A escola, para Louro (2003), para além de entender sobre diferenças e desigualdades,
também produz. E essa diferença, é claro, abarca questões de gênero, pois separa meninos de
meninas. Ela delimita e institui o que pode e o que não pode.

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada
um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e
dos grandes, dos meninos e das meninas. Através de seus quadros, crucifixos, santas
ou esculturas, aponta aqueles/as que deverão ser modelos e permite, também, que os
sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos. O prédio escolar informa a
todos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos
"fazem sentido", instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.
(LOURO, 2003, p.58)

Quando a escola marca uma reunião sem aviso prévio com várias pessoas que
ocupam cargos acima do meu para pontuar o que devo ou não devo dizer aos meus alunos e
alunas é uma forma clara de exercer poder, delimitando meu espaço de fala e de produção da
sexualidade hegemônica heterossexual em meu corpo. Não poder dizer que tenho uma
namorada, não só invisibiliza minha identidade lésbica, mas produz, estampando a matriz
heterossexual.
A escola é (re)produtora das concepções heteronormativas e de gêneros binários,
assim como o padrão social. Sendo assim, todos e todas que fazem parte dela são sujeitos
femininos ou masculinos heterossexuais.
Transgredir tais normas, ensinando e visibilizando identidades não-hegemônicas, é ir
além de cumprir conteúdos curriculares, mas uma forma de atuação política, de confrontar as
relações de poder.
Longe de minha aula tratar-se diretamente sobre Educação Sexual, mas por suscitar
reflexões acerca da diversidade sexual que compõe os arranjos familiares, por que a escola,
enquanto formadora de cidadãos e cidadãs, nega-se a problematizar sobre sexualidades não
hegemônicas?
Para discutir sobre o Currículo, Tomaz Tadeu da Silva (2011) aponta que é uma
questão de identidade, não só de conteúdos. Há uma seleção de quais identidades serão e não
serão contempladas. ―Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de
conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma
identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder‖ (SILVA, 2011, p.
16). Desse modo, o Poder é que seleciona o que faz ou não parte desse currículo, que, por

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consequência, contempla as identidades matrizes, marginalizando as demais não-


hegemônicas.
A escola é o espaço para a ordem social, para isso precisa ditar o que é ―normal‖ e
segregar o que é ―anormal‖, por meio da ética e dos valores. Não é estranho quando uma
assessora sugira que seja ―sutil‖ ou uma diretora de educação sugira ser ―ética‖. São as
características que me permite enquanto sujeito marginal ser ―tolerado‖ dentro do espaço
escolar. Mesmo que o livro didático permita a representação familiar não-hegemônica, mesmo
que eu seja esse exemplo familiar, é melhor não mostrar as crianças que esses arranjos
acontecem realmente na sociedade, para garantir que a heteronormatividade perdure e domine
seus corpos, a fim de que atenda às expectativas políticas da burguesia, moldando esses
corpos para a vida privada e familiar.
Podemos pensar como Guacira Louro (2003) que não ―cabe‖ no Currículo escolar
qualquer identidade considerada a correta. ―As políticas curriculares são, então, alvo da sua
atenção, na tentativa de regular e orientar crianças e jovens dentro dos padrões que
consideram moralmente ‗sãos‘". (LOURO, 2003, p. 130). A sexualidade pichada nos muros
escolares, desenhadas nas carteiras em sala de aula, sussurradas nos cantos da escola existe e
resiste na Escola, contudo, está silenciada nos Currículos.
Tal Currículo formata não só estudantes, mas quem ensina. Professores e professoras
precisam estar disciplinados e disciplinadas para que disciplinem. Precisamos refletir na
imagem ideal deles e delas para entender que essa construção social de mestres e mestras
modelos atende as demandas cis-heteronormativas.
Louro (2003) aponta que a profissão é vista como um sacerdócio que exige
qualidades tais como ser bom ou boa, firme e piedoso ou piedosa, assemelhando a figura
docente à de ―mãe espiritual‖. Enquanto as professoras são as ―tias‖ solteiras devota da
educação, os professores são representados de ―orientadores espirituais‖ à ―severos
educadores‖. Assim, cabe a eles e elas corresponderem ou não a essa imagem da profissão
professor/a na sociedade. ―Diversos grupos e vozes desenharam esses sujeitos. Do outro lado,
eles e elas acataram, adaptaram ou subverteram esses desenhos. Relações de poder estavam
em jogo aqui — como em todas as instâncias sociais.‖ (Louro, 2003, p. 100). Então, as opções
que restam a esses e essas profissionais são: ser essa imagem, adaptar-se a ela ou romper com
tais estereótipos.
Quanto a mim, tenho que minha imagem rompe com os estereótipos que a escola
requer. Por isso passei por tais situações e repreensões, pois é preciso adequar minha imagem
a hegemonia ou ao menos me fazer adequar, vivendo minha vida particular fora da escola e

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dentro dela, garantindo a matriz heterossexual. Como eu rompo, tenho e terei que lidar sempre
com a imagem destoante da figura ideal de professora.
Louro (2003) lembra que até mesmo os trajes devem ser assexuados, de vida pessoal
―discreta‖ e ―reservada‖. Apesar de meus trajes não serem algo tão conflitante diretamente
com a matriz heterossexual, minha vida pessoal não é reservada, o que faz lembrar novamente
as sugestões em ser ―sutil‖ e ―ética‖.
Contudo, ainda não é possível uma única representação identitária de professores e
professoras. E muitas professoras feministas, dos estudos negros e dos estudos de gênero e
sexualidade buscam subverter as desigualdades nas escolas, ainda timidamente. Ser
professora que assume e responde com tranqüilidade suas alunas e alunos que se relaciona
com uma mulher é, também, uma atitude política e é entendida pelo Poder como subversiva
porque nossa sociedade é cis-heteronormativa, e traz a tona a problematização das
desigualdades.
Ser professora lésbica no contexto público de educação, em si, já é um desconforto
para o Poder. Quando essa professora assume publicamente sua identidade, então, é
subversão, é atitude política. Nosso corpo lesbo precisa ser dominado pelas instâncias de
poder, tornando-se submisso por meio do medo.
Assim, quando nós lésbicas ousamos transgredir, são entravas para controle. É
preciso coibir nossos corpos por meio do medo, é preciso corrigir o que é anormal, através de
dispositivos disciplinares, conforme Foucault (1987). Desse modo, a reunião escolar serviu
como forma de amedrontar, para calar o meu corpo, foi um dispositivo de controle e uma
forma de violência simbólica e sutil.
Descreveria que essa violência aconteceu de forma sutil, quase que imperceptível em
primeiro momento. Apenas meu sentimento apontava um desconforto que não conseguia
nomear como violência. Assim aponta Bourdieu (2003), conceituando a violência simbólica
como ―suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas
vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do
desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última estância, do sentimento‖. (Bourdieu,
2003, p. 7). Assim foi a sensação que tive ao sair da reunião: um sentimento de ter sido
violentada sem saber ao certo nomear essa violência, nem apontar o que me incomodava
diretamente.
As instituições como família, Igreja, Escola e Estado precisam garantir sua estrutura
de poder, seja através da violência física ou simbólica, a fim de dominar e de ter essa relação
de dominação naturalizada. Bourdieu (2003) aponta a incorporação de classificações

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naturalizadas, construídas historicamente, como por exemplo: masculino/feminino,


branco/negro etc, faz do ser social um produto, que evidencia o/a dominante e o/a
dominado/a. Assim, o/a dominante oprime por meio da invisibilização da existência legítima
dos/as dominados/as, requerendo deles e delas a ―discrição‖, sendo obrigados/as a impor. Por
isso, vários movimentos lutam por visibilidade. A invisibilidade é a recusa à existência
legítima e pública. É falar para uma professora que se relaciona com uma mulher que ela não
pode falar que tem esse tipo de relacionamento porque é inadequado para a idade de sua
turma, porque é inadequada a essa comunidade e porque é inadequada essa postura nada sutil.
Nesse contexto, as lésbicas podem optar por uma vida pública ―heterossexual‖ aliada
à vida íntima homossexual, ou subverter a heteronormatividade, vivenciando sua identidade
lésbica tanto na vida pública quanto íntima. Eu escolhi a segunda opção. E sei que a
sociedade, principalmente a escola, seria hostil, pois não se trata apenas de uma relação
amorosa. Em uma sociedade lesbofóbica, ter um relacionamento lésbico assumido é uma
atitude política, como já disse anteriormente. Mas penso que para mim seria muito mais
violento ter um relacionamento sem o conhecimento público. É violento quando uma criança
em sala de aula me pergunta ―Você tem namorado?‖. A violência não está na criança, não está
na pergunta dela, mas na sociedade que insiste em imprimir em nossos corpos a
heterossexualidade como norma.
O fato é que independente de ter declarado ou não minha lesbianidade, a violência
acontece. A heterossexualidade como norma hegemônica me lembra todo dia que estou fora
de seus padrões. Isso pode resultar em mim e nas demais lésbicas a invisibilidade ou a
estigmatização, desse modo manifestando a violência simbólica.
Por fim, por meio desse relato e análises, espero ter provocado a importância de
refletirmos sobre a lesbofobia e da luta em nossos ambientes de trabalho e escolares para que
possamos ao menos amenizar o poder da matriz heterossexual que nos imprimem diariamente
em nossos corpos lesbos sem nossas autorizações e consentimentos, marginalizando o que há
de mais nobre na nossa humanidade: amar, quer seja um homem ou uma mulher, ou qualquer
identidade de gênero nesse leque chamado diversidade.

Conclusões ou considerações finais.

Apesar de toda luta e reivindicações do grupo LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e


Transgêneros) a lesbofobia acontece no espaço escolar. Professoras lésbicas podem passar por
situações de violência (seja física, simbólica ou etc) dentro da instituição escolar, que é uma

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forma de Poder, um dispositivo de controle de corpos discentes e docentes que precisam


garantir a norma cisgênera e heterossexual para a sociedade.
Não ceder a esta instituição de Poder é visto como trangressão e seu corpo será
convidado à punição. Uma punição que pode variar entre a sutileza à punição explicita. No
caso do meu relato, foi uma reunião que serviu de dispositivo de controle do meu corpo, cuja
escola insiste em produzir nele marcas heterossexuais, para formação de indivíduos
heterossexuais. A partir do momento que dou voz ao meu corpo como lésbico, ele necessita
ser vigiado, punido e controlado.
Precisamos romper com esse controle, denunciando, levando essas discussões às
academias e militâncias, apoiando quem sofre ou sofreu tais violências e nos fortificando
enquanto indivíduos para que, quando essas instituições de Poder vierem nos vigiar e punir,
possamos estarmos prontas e prontos para subverter.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis: Vozes, 1987.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-


estruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: Uma introdução às teorias do


currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

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“History” ou “herstory”? – Repensando a escola através de práticas


pedagógicas feministas

Cristiane Pereira Cerdera1

Resumo: o presente trabalho traz um relato de experiência acerca de práticas pedagógicas


realizadas em uma escola federal no Rio de Janeiro ao longo dos anos de 2016 e 2017. Essas
práticas tiveram como objetivo principal identificar, analisar e valorizar a presença feminina
na sociedade ao longo da história, à luz de alguns princípios das pedagogias feministas. Foi
proposta aos estudantes uma reflexão acerca do tradicional apagamento das mulheres no
currículo escolar e nos materiais didáticos, e também sobre as representações da mulher em
linguagens que não costumam frequentar os espaços escolares. Foram elaboradas três
oficinas, as quais foram coconstruídas com as/os estudantes participantes e realizadas tanto no
espaço escolar quanto fora dele. No total, dezenove estudantes com idades entre 13 e 15 anos
participaram do projeto. Partindo da realidade e experiência dos sujeitos envolvidas/os,
buscou-se colocar em prática alguns pressupostos das pedagogias feministas, destacando,
principalmente, a análise das noções trazidas pelos participantes e as novas concepções
geradas no grupo, procurando construir entendimentos acerca das raízes dos preconceitos e
condições de subordinação das mulheres. Os relatos das/os estudantes envolvidas/os na
coconstrução das atividades sugerem uma maior sensibilização para questões identitárias,
assim como para os temas relacionados aos estereótipos e violências de gênero em uma
perspectiva interseccional, dentro e fora da escola, e aos processos de naturalização de
opressões que mantém as mulheres num lugar subalternizado.

Palavras-chaves: educação; gênero; currículo escolar, pedagogias feministas.

Introdução.
Este artigo tem por objetivo promover uma reflexão acerca das chamadas ‘pedagogias
feministas’, buscando descrever a identidade dessas práticas pedagógicas e suas possíveis
inserções institucionais, com alguns exemplos de ações desenvolvidas no Colégio Pedro II,
uma escola federal no Rio de Janeiro. Para tanto, serão evocadas as contribuições teóricas de
pensadoras e estudiosas do campo de estudos de gênero e dos estudos feministas, como
Guacira Louro (2014) e bell hooks (1989; 1994), entre outras.
Antes de mais nada, começaremos refletindo sobre o que as pedagogias feministas
efetivamente não são: um tipo de prática pedagógica com apelo apenas para mulheres,
fundada na experiência apenas de mulheres e meninas, ou que traz benefícios tão somente

1
Colégio Pedro II; Doutora em Letras; cristiane.cerdera@gmail.com.

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para as mulheres (WALLER, 2005, p. 1, 2). Como veremos adiante, as concepções sobre as
pedagogias feministas são muito mais abrangentes e complexas.
As chamadas ‘pedagogias feministas’ podem ser compreendidas, em sentido lato,
como um conjunto de “(...) princípios e práticas que objetivam conscientizar indivíduos, tanto
homens quanto mulheres, da ordem patriarcal vigente em nossa sociedade, dando-lhes
instrumentos para superá-la e, assim, atuarem de modo a construir a equidade entre os sexos”
(SARDENBERG, 2011, p. 20) 2. Guacira Louro (2014, p. 117) assim resume o caráter
transgressor dessa abordagem pedagógica:

Pensada como um novo modelo pedagógico construído para subverter a


posição desigual e subordinada das mulheres no espaço escolar, a pedagogia
feminista vai propor um conjunto de estratégias, procedimentos e
disposições que devem romper com as relações hierárquicas presentes nas
salas de aula tradicionais. A voz do/a professor/a, fonte de autoridade e
transmissora única do conhecimento legítimo, é substituída por múltiplas
vozes, ou melhor, é substituída pelo diálogo, no qual todos/as são igualmente
falantes e ouvintes, todos/as são capazes de expressar (distintos) saberes.

Convém destacar que, sob a ótica feminista, não existe uma epistemologia neutra;
portanto, dado que a escola reflete os arranjos sociais vigentes, o currículo escolar será a
expressão clara dessa “cosmovisão masculina” (SILVA, 2007, p. 94). Além do mais, segundo
Silva (idem), o currículo é um “artefato de gênero” (p. 97), o qual, ao mesmo tempo,
“corporifica e reproduz relações de gênero” (Idem, p. 97).
As pedagogias feministas integram o conjunto das “pedagogias críticas” ou
“alternativas”, as quais estão voltadas para uma educação libertadora e não-hierarquizada.
Não por acaso, encontram inspiração, em maior ou menor grau, nos escritos do educador
Paulo Freire, marcadamente pela crítica que fazem às questões relacionadas ao poder e ao
controle3.
A teórica, ativista e feminista negra bell hooks4 dedica um capítulo inteiro de seu livro
(Teaching to transgress) ao brasileiro, a ponto de relatar – acerca de seu encontro com Freire

2
Sobre isso, ver também: SANTOS; BOMFIM, 2010.
3
Sobre esse aspecto, Sardenberg ressalta que “De modo geral, as pedagogias críticas feministas compartilham
essas noções. No entanto, em linha com a avaliação feminista do marxismo, fazem uma importante análise da
“Pedagogia do Oprimido”, a começar pela ênfase de Freire na questão da exploração econômica em detrimento
de outras formas de dominação e opressão, tais como as de sexo, que não têm apenas bases econômicas”. (P. 20,
21).
4
bell hooks é o pseudônimo da escritora americana Gloria Watkins que o escolheu como um tributo à sua
bisavó, Bell Blair Hooks, em reconhecimento à sua ancestralidade. hooks prefere grafar seu nome em letras
minúsculas, segundo ela, para colocar em evidência o conteúdo de seus escritos e não o seu nome e também

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– que sua experiência com ele “(...) restaurou sua fé na educação libertária” (HOOKS, 1994,
p. 18).5 bell hooks também testemunha sua profunda identificação com Freire em um
momento de sua vida em que questionava o impacto do racismo, do sexismo e da dominação
de classe nos Estados Unidos. Ao tomar contato com os escritos do autor de Pedagogia do
Oprimido – longe de ter uma experiência “voyeurística”, segundo suas próprias palavras –
bell hooks sentiu uma profunda identificação com os sujeitos marginalizados que emergiam
das obras do educador brasileiro (HOOKS, 1994, p. 46).
Pelos motivos elencados acima e pelo caráter polissêmico do termo, não seria possível
definir a identidade do conceito das pedagogias feministas de forma unívoca, já que existem
diferentes abordagens a reivindicar abrigo nesse ‘guarda-chuva’; por isso mesmo, nos
alinhamos àquelas que acreditam não ser possível usar o termo “pedagogia feminista”, no
singular.

Pedagogias feministas: princípios e pressupostos


Henderson (2016) afirma que as pedagogias feministas, longe de se constituírem em
um método prescritivo, são um modo de se pensar os processos de ensino e aprendizagem.
Dessa forma, podem ser usadas inter e transdisciplinarmente, em variados ambientes.
Entretanto, de acordo com a autora, existem alguns conceitos-chave comuns a todas as
práticas incluídas no âmbito dessas pedagogias e que norteiam a tarefa de ensinar/aprender.
Em primeiro lugar, as pedagogias feministas investem na ideia da resistência à
hierarquia. Em um ambiente de aprendizagem, todos/as – docentes e discentes – trabalham
contra a ideia de um ensino hierarquizado e contra a figura da ‘autoridade’ detentora de todo o
saber. Pelo contrário, para as pedagogias feministas é importante que todos/as possam
aprender com todos/as, sem que haja a responsabilidade de apenas uma pessoa pela ‘entrega
do conteúdo’. Segundo Guacira Louro (2014, p. 118), ocorre uma “rejeição explícita da
autoridade” centrada na figura do/a docente.
Em segundo lugar, as pedagogias feministas compartilham o fato de que a experiência
vivida pode e deve ser usada como um recurso de aprendizagem, para além das fontes ditas
‘tradicionais’, tais como livros, jornais e outros. Henderson (2016) afirma que usar a
experiência pessoal dessa maneira tem duplo propósito: é possível trazer para a discussão

como forma de transgressão. (Ver também: http://www.bellhooksinstitute.com/;


https://writingcollaboration.wordpress.com/1-introduction/1a-bell-hooks/; HOOKS, bell, 1989.)
5
“When I first encountered Paulo Freire, I was eager to see if his style of teaching would embody the
pedagogical practices he described so eloquently in his work. During the short tirne I studied with him, I was
deeply moved by his presence, by the way in which his manner of teaching exemplified his pedagogical theory.
(…) My experience with him restored my faith in liberatory education.”

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experiências que nunca foram documentadas de forma acadêmica e, segundo, todos/as os/as
envolvidos/as podem experimentar um aprendizado transformador.
Guacira Louro (2014) acrescenta ainda que, ao posicionar os saberes acadêmicos e
pessoais no mesmo plano, conferindo-lhes igual legitimidade, as pedagogias feministas
acabam por “estimular a fala daquelas que tradicionalmente se veem condenadas ao silêncio,
por não acreditarem que seus saberes possam ter alguma importância ou sentido” (p. 117,
118).
Finalmente, um outro importante aspecto para a caracterização dessas pedagogias
reside no fato de que elas buscam uma aprendizagem que seja verdadeiramente
transformadora, de maneira que os/as participantes não apenas adquiram conhecimento, mas
permitam que seu pensamento tome novas direções. Portanto, ao recusar uma distinção
hierárquica, ao valorizar as experiências pessoais e estimular novas abordagens de
ensino/aprendizagem, as pedagogias feministas contrapõem-se a alguns “pilares” da educação
tradicional, ousando transformar o ensino formal em uma “relação onde todos os personagens
podem alternar, constantemente, suas posições, sem que nenhum sujeito (ou, mais
especialmente, sem que o/a professor/a) detenha um saber ou uma autoridade maior que os
demais” (LOURO, 2014, p. 118).
Em resumo, mais do que simplesmente reduzir as pedagogias feministas a um
conjunto fixo de características, devemos compreendê-las como fragmentadas, pertencentes a
diferentes pessoas e lugares e em permanente transformação; uma perspectiva pedagógica que
convida professores, estudantes e demais atores da arena educacional a “contribuir para sua
evolução” (HENDERSON, 2016).
Por último, é importante ressaltar que, para aquelas pessoas familiarizadas com a
Pedagogia Crítica, pode parecer que falta especificidade aos princípios das pedagogias
feministas, no sentido de que ambas as abordagens pedagógicas partem de pressupostos
semelhantes. No entanto, vale destacar que o vetor das pedagogias feministas são as opressões
de gênero – as quais não encontravam espaço no escopo da Pedagogia Crítica de viés
marxista. Além disso, as pedagogias feministas desenvolveram-se a partir dos exercícios de
partilhar experiências que eram comuns nos grupos comunitários de mulheres durante os
movimentos feministas dos anos 70 (HENDERSON, 2016).
No Brasil, de acordo com Burginski (2011, p. 574), as mulheres encamparam os
grupos em defesa dos direitos humanos no final dos anos 70, a partir da progressiva abertura
política, o que fez com que esses grupos tivessem um papel fundamental na posterior
elaboração e difusão das pedagogias feministas. É importante destacar o fato de que as

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atividades político-educativas desenvolvidas eram direcionadas, principalmente, às mulheres


pobres, não sendo elaboradas no âmbito acadêmico, mas “a partir da experiência da atuação
junto aos grupos de reflexões” (Idem, p. 578), ou seja, num processo “fazendo e aprendendo”
(Ibid., p. 578).

Pedagogias feministas na escola


No Brasil e em outras partes do mundo, a trajetória de luta e a produção intelectual das
mulheres têm sido objeto de um apagamento sistemático nas disciplinas que compõem a grade
escolar e nos materiais didáticos, alimentando o senso comum com a ideia (errônea) de que o
pensamento e a atuação feminina jamais produziram conteúdos relevantes, dignos de figurar
nas salas de aula nos diversos níveis.
De modo semelhante, muito pouco – ou nada – tem sido discutido com nossos
estudantes acerca da violência de gênero que está enraizada na cultura machista do nosso país
e que produz, todos os dias, vítimas em todos os grupos sociais 6. As mulheres negras,
indígenas, quilombolas e camponesas, principalmente, além de estarem sujeitas a todo tipo de
agressão física, sofrem com o apagamento de suas trajetórias da historiografia oficial. Tudo
isso é fruto de “(...) uma sociedade dominada por homens, identificada com e centrada no
gênero masculino, o que implica na predominância de relações assimétricas e hierárquicas
entre os sexos” (SARDENBERG, 2011, p. 17).
Sabendo que a escola tem papel preponderante na cristalização e disseminação das
desigualdades sociais (LOURO, 1997, p.114) e que as relações de poder que permeiam esse
espaço podem – e efetivamente o fazem – fomentar processos de exclusão de sujeitos de
gênero e sexualidades dissidentes do contexto escolar (BORTOLINI, 2008, p. 26), faz-se
necessário buscar “subverter os arranjos tradicionais de gênero na sala de aula” (LOURO,
2014, p. 128).
Uma observação atenta pode constatar que “(...) o processo educativo não é neutro:
pode-se educar tanto para a submissão quanto para a libertação” (SARDENBERG, 2011, p.
20); por isso, ainda que o modelo escolar hegemônico nada tenha de revolucionário, ou
transformador, é possível caminhar em direção oposta, na busca de modelos que valorizem
6
Segundo o instituto Patrícia Galvão, no ano de 2016, a cada hora, 503 mulheres sofreram violências diversas,
tais como ofensas verbais, perseguições, comentários desrespeitosos no trabalho e assédio físico em transportes
públicos. Como se isso não bastasse, estatísticas dão conta de que uma mulher foi assassinada a cada duas horas
no ano de 2017. Ver: http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/noticias-violencia/mais-de-500-mulheres-sao-
vitimas-de-agressao-fisica-cada-hora-no-brasil-aponta-datafolha/. Ver também:
https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2018/03/cada-duas-horas-uma-mulher-e-assassinada-no-
brasil.html

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uma perspectiva plurivocal, que se coloquem contra as opressões de gênero, raça e classe e
façam um investimento na formação da consciência crítica dos sujeitos envolvidos.
Acreditando que é dever da escola engajar-se em uma educação não-sexista, buscando
a equidade entre os gêneros, elaboramos um projeto no Colégio Pedro II a fim de oferecer não
certezas e respostas definitivas, mas com o intuito de fomentar “a dúvida e o
autoquestionamento” (LOURO, 2014, p. 125), com vistas a “exercitar a transformação a partir
das práticas cotidianas mais imediatas e banais, nas quais estamos todos/as irremediavelmente
envolvidos/as” (idem, p. 126).
Nas próximas seções descreveremos o contexto no qual as oficinas que compõem o
projeto foram geradas e falaremos acerca da metodologia aplicada.

O contexto: o Colégio Pedro II


Segundo a Carta de Serviços ao Cidadão (BRASIL, 2016), o Colégio Pedro II é “uma
Autarquia do Governo Federal, vinculada ao Ministério da Educação, com autonomia
administrativa, patrimonial, financeira, didático-pedagógica e disciplinar, de caráter
pluricurricular e multicampi, especializada na oferta da Educação Básica” (BRASIL, 2016, p.
12). Tem prerrogativas para a oferta de formação profissional de forma articulada com a
educação básica, cursos de graduação e pós-graduação lato ou stricto sensu na área de
Educação e Formação de Professores. É também uma instituição tradicional de ensino público
federal e a única escola brasileira a ser mencionada na Constituição Federal brasileira (Idem,
p. 14).
O presente relato de experiência diz respeito a um projeto construído no campus São
Cristóvão II do Colégio. Situado no Complexo de São Cristóvão, esse campus oferece os
Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) a, aproximadamente, 1226 estudantes
(BRASIL, 2016b), oriundos de diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro (90%).
De acordo com os dados oficiais da instituição, do total de estudantes do campus São
Cristóvão II (1226), 52.43% são meninas, ou seja, aproximadamente 642 estudantes, o que
nos tem levado, desde 2016, a pensar no desenvolvimento de ações voltadas para a
valorização da mulher e mitigação da violência de gênero dentro e fora do espaço escolar.
Acreditamos que oficinas, rodas de conversa e debates sobre feminismos e direitos das
mulheres são essenciais não apenas para promover o empoderamento7 das meninas nessa

7
Usamos o termo “empoderamento” neste artigo na acepção que o termo assume no verbete “empoderamento”
do Dicionário Feminino da Infâmia. No referido verbete, “empoderamento” é tomado, entre outras
possibilidades, como “um processo de afirmação que emerge da interação com outras mulheres” e que surge “da

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faixa etária, mas também para cumprir o compromisso da escola democrática de educar os
meninos para a não-violência.
Cabe a nós como educadores promover reflexões acerca da maneira como a violência
contra a mulher é produzida e reproduzida através de relações sociais hierarquizadas, bem
como através de mecanismos das relações de trabalho que continuam relegando às mulheres
posições de menor remuneração, sujeitas ao assédio sexual (BLAY, 2008, P. 218).
Sabe-se que o machismo e as violências engendradas por ele são causam danos para as
vidas das mulheres, mantendo-as debaixo de uma estrutura opressora, impondo a elas um jugo
desigual e atingindo-as nas suas subjetividades. Porém, isso não significa que os homens e
meninos também não sofram os efeitos perversos da estrutura patriarcal. Já existe certo
consenso entre especialistas da área dos estudos de gênero de que é preciso educar os meninos
para a não-violência, já que a virilidade é aprendida e imposta socialmente aos meninos pelo
grupo dos homens que convivem com eles, para que haja uma distinção hierárquica das
mulheres (HIRATA, 2009, p. 101, 102). Nesse sentido, a escola tem um papel fundamental no
enfrentamento dessa violência, educando meninas e meninos para uma sociedade com maior
equidade entre os gêneros.
As oficinas que compuseram o projeto foram elaboradas durante os anos de 2016 e
2017 no Campus São Cristóvão II e tiveram como foco as representações de mulheres em
videogames e a invisibilização das mulheres na historiografia, respectivamente. Foram
construídas no âmbito de projetos de Iniciação Científica Junior promovidos pelo colégio e
contaram com a participação de pesquisadores-bolsistas e voluntários/as do Laboratório de
Estudos em Educação e Diversidade (LEDi), em parceria com o Núcleo de Games, Atividades
e Metodologia de Ensino (NuGAME), dois coletivos de pesquisa do Colégio Pedro II.
Participaram da construção das atividades 21 integrantes, sendo 2 professores e
dezenove estudantes, com idades variadas entre 13 e 16 anos. Houve encontros semanais nos
quais foram feitas leituras e posterior discussão de artigos, debates acerca de notícias
veiculadas pela internet e de interesse do projeto, sessões de jogos e de elaboração de cartazes
e planejamento das atividades das oficinas.

consciência que deriva da troca de experiências e se contrapõe às limitações impostas por uma sociedade
patriarcal, como, por exemplo, em casos de violência, subserviência, isolamento e discriminação [...].
Empoderamento quer dizer tomar o poder sobre sua própria vida, valorizando suas potencialidades e
capacidades, em busca de uma vida melhor. [...] Quando as mulheres se empoderam, assumem o controle de seus
próprios corpos, de sua sexualidade, de seu aparelho reprodutivo, recusam a violência doméstica, [...] buscam
maior acesso à educação e compartilham a responsabilidade com a casa e com os filhos.” (FLEURY-
TEIXEIRA; MENEGHEL, 2015, p. 119, 120)

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Oficina 1: “Games e sexismo”


A primeira oficina – chamada “Games e sexismo: de Ms Pacman à Lara Croft” 8 -
problematizou a objetificação à qual estão sujeitas as mulheres representadas em jogos
comerciais tão diversos como “Super Mario Bros’ e ‘Tomb Raider’. Foram discutidos
conceitos-chave, tais como feminismo, sexismo, patriarcado e objetificação. As etapas da
oficina foram assim construídas:
a) Discussão acerca dos termos que compõem o debate: os participantes escreveram
em cartazes espalhados pela sala seus entendimentos acerca de alguns termos como
machismo, misoginia, feminismo, gênero, homofobia e outros. Então, todos/as circularam e
tomaram conhecimento das ideias que foram compartilhadas;
b) Fichas com títulos e imagens de alguns jogos retirados do portal UOL JOGOS
foram distribuídas entre os participantes. Foi pedido a eles que as separassem segundo um
critério que deveriam eleger. Ao final da atividade, compartilharam com o grupo os critérios
escolhidos para agrupar as fichas;
c) Apresentação teórica: retomando as atividades anteriores, a primeira parte da
apresentação busca elucidar o debate sobre gênero, explicitando conceitos como gênero,
patriarcado e feminismo, problematizando a divisão de jogos para meninos e meninas a partir
dos mecanismos que buscam naturalizar a construção social do papel desses sujeitos. A
segunda parte da apresentação destacou a importância dos games na produção de discursos
sobre espaços, grupos sociais e eventos históricos abordando a dimensão ideológica que
caracteriza a produção de narrativas através dessa mídia;
c) Sessão de jogos: foram montadas seis estações de jogos onde os participantes
puderam jogar, fazendo um rodízio e observando a forma como as personagens femininas são
representadas nos seguintes games e plataformas: Street Fighter IV (XBOX 360); Fat Princess
(PS4); Rise Of The Tomb Raider (PS4); Super Mario (PC), Ms. Pacman (PC) e Spelunky
(PC).

8
A oficina mencionada acima foi desenvolvida originalmente para o evento Rio Indie Games, um circuito que
tem como objetivo disseminar técnicas e experiências vividas pelos entusiastas de games, conjugadas ao
aprendizado e reflexão. É realizado pela ONG Cinema Nosso e tem diversos parceiros, como a Prefeitura do Rio
de Janeiro, entre outros. Desde então, vem sendo aperfeiçoada e apresentada em outros espaços, como a
Universidade Federal de Juiz de Fora e o Colégio Pedro II. A oficina foi organizada com o objetivo de
contribuir para o debate acerca das questões de gênero – o qual, na maioria das vezes, é apagado do currículo
escolar – bem como desconstruir a ideia de que os jogos digitais não são ‘educativos’, ou seja, não podem ser
considerados instrumentos de reflexão e aprendizagem.

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d) Debate final: para encerrar a oficina foi feito um debate, retomando a experiência
dos jogadores e jogadoras, compartilhando suas observações em relação aos jogos expostos e
suas vivências.
Na construção da oficina, partiu-se do pressuposto de que os jogos digitais comerciais,
tomados no âmbito da perspectiva das práticas de multiletramento (ORLANDO, 2013; ROJO,
2012) pela possibilidade de agência, interação e, ainda, pela enorme capilaridade com o
segmento etário do qual fazem parte os estudantes da escola básica (mas não apenas entre ele,
devemos frisar), são artefatos culturais apropriados para a desestabilização de sentidos
cristalizados acerca de identidades, sociais de gênero e sexualidade.
Também se considerou que, nas interações dos jogadores com a “retórica cultural” dos
jogos (SALEN; ZIMMERMAN, 2012, p.35), novos entendimentos puderam ser construídos e
novas questões emergiram, num movimento contínuo de desconstrução e reconstrução.

Oficina 2: “Herstory: mulheres incríveis que mudaram a história”


As duas outras oficinas tiveram como objetivo principal discutir as conquistas,
desafios e impasses do movimento feminista, ressaltando o protagonismo das mulheres negras
e destacando as histórias de luta, as produções e a militância de algumas mulheres marcantes.
Uma delas foi intitulada “Herstory: mulheres incríveis que mudaram a história” e foi
apresentada em dois eventos no campus São Cristóvão II, no ano de 2017, a Jornada da
Consciência Negra e a Festa Literária do campus.
A partir do termo em inglês ‘herstory’, o qual faz um trocadilho com o termo em
inglês “history”9, na primeira parte da oficina foi problematizado o apagamento das mulheres
nas disciplinas escolares, notadamente da história. Ao questionar essa ausência levantou-se o
fato do porquê as mulheres não terem destaque no currículo. Será que elas nunca produziram
nada de relevante? Além disso, considerando a produção das mulheres que frequentam os
currículos escolares, por que não temos conhecimento dos feitos de mulheres negras e
indígenas?
Foram mostrados alguns cartazes feitos pelas alunas integrantes do projeto e que
haviam sido espalhados pelo colégio, a fim de levantar o interesse dos estudantes pelo tema.
A seguir, as alunas apresentaram aos colegas algumas mulheres negras que não são estudadas
na escola, apesar de sua relevância: Sojourner Truth, Angela Davis, Lélia Gonzalez e Sueli

9
Esse trocadilho só faz sentido na língua inglesa, na qual, valendo-se dos pronomes possessivos ‘his’ (dele) e
‘her (dela), o termo ‘herstory’ pode ser lido como ‘história dela’ em oposição a ‘history’, entendido como
‘história dele’.

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Carneiro. Foi feito um debate com os estudantes, quando foram discutidos os conceitos de
“patriarcado”, “silenciamento” e “invisibilização” a partir das vivências dos estudantes
presentes na oficina.
Os cartazes confeccionados ao final da oficina mostraram alguns dos entendimentos
coconstruídos pelos participantes e foram colocados em lugares estratégicos do espaço escolar
a fim de compartilhar com outros estudantes as reflexões feitas durante a atividade.

Oficina 3: “Escritoras negras – de Maria Firmina a Chimamanda”


A última oficina, chamada “Escritoras negras: de Maria Firmina a Chimamanda”,
trouxe para o espaço escolar a vida e obra de quatro escritoras negras; três brasileiras e uma
nigeriana, geralmente apagadas dos estudos literários canônicos e/ou apartadas dos currículos
e materiais didáticos escolares, a despeito de sua importância e do valor literário de suas
produções. Os participantes da oficina foram encorajados a refletir sobre esses processos de
invisibilização e a compartilhá-los sob a forma de pequenos textos escritos em post-its.
Depois disso, todos/as circularam, leram os textos uns dos outros e conversam sobre eles.
A seguir, foram mostrados vídeos curtos sobre as escritoras – um deles sobre Maria
Firmina dos Reis, produzido por estudantes – a fim de situar os participantes sobre as vidas e
as obras delas. Além de Maria Firmina dos Reis, também foram trazidas Carolina Maria de
Jesus, Conceição Evaristo e Chimamanda Adichie.
Ao final da oficina, a partir da obra de Conceição Evaristo, todas/os são encorajados a
compartilhar suas ‘escrevivências’ sob forma de textos verbo-visuais, poemas ou desenhos.

Resultados
Os relatos de estudantes que participaram da construção do projeto sugerem que, para
além de ganhos acadêmicos, houve também um movimento de desconstrução e reconstrução
de crenças e valores, a consciência de privilégios e o reconhecimento das lutas das mulheres e
do quanto ainda é preciso avançar na quebra de paradigmas e estereótipos.
Sobre o primeiro aspecto, os estudantes destacaram a capacidade de fazer pesquisa na
escola básica e o reconhecimento dessa produção em espaços acadêmicos ‘adultos’:
“Nossas conquistas, de maneira geral, mostraram a mim a capacidade dos alunos do ensino
fundamental e médio na área da pesquisa.” (G. 17 anos)

“Eu descobri que amo pesquisar e sou boa nisso, nós tínhamos textos para ler e sugeríamos
artigos, além de termos encontros semanais onde discutíamos sobre o que tínhamos lido.
Tudo que eu aprendi lá mudou meu jeito de encarar o mundo e a sociedade, além de nos

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levar para lugares novos para falar sobre o que descobrimos: Curitiba (SBGames na PUC) e
Juiz de Fora (UFJF).” (A., 15 anos)
Também emergiram dos relatos questões identitárias, relacionadas à construção de
uma subjetividade e a um ‘estar no mundo’, perpassado por interrogações, aproximações e
fugas:
“A partir disso resolvi me aprofundar especificamente no feminismo negro; eu precisava de
referências que pudessem me compreender, ou seja, entender o que é ser mulher e negra na
nossa sociedade atual e o "fardo" que carregamos por conta disso. Graças ao projeto tive a
oportunidade de estudar grandes nomes da militância negra que fizeram história, a exemplo
de Lélia Gonzalez (fundadora do Grupo Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras do Rio de
Janeiro), Sueli Carneiro e Ângela Davis.” (E., 15 anos)

“Além de poder compreender mais sobre questões como o feminismo, racismo, LGBTfobia,
sexismo, machismos e outros “ismos” que circundam nossa sociedade, foi uma jornada de
autoconhecimento e autoaceitação como mulher e negra, pois não me enxergava dessa
forma, ou tentava me esconder de mim mesma. Parece óbvio demais mas, compreender as
diferenças do outro e respeitá-las é também um processo para aceitar suas próprias
diferenças, trabalhar sua autoestima, autosegurança e autoaceitação.” (B., 15 anos)

É importante destacar como certas representações sociais e estereótipos – reproduzidos


dentro e fora da escola – afetam a prática pedagógica, os materiais didáticos e os currículos de
maneira negativa e empobrecedora, já que dão destaque a certas identidades em detrimento de
outras, promovendo “a discriminação por sexo, gênero, raça, pertencimento étnico e cor de
pele, veiculando a inferiorização feminina e a hegemonia da branquitude” (FLEURY-
TEIXEIRA; MENEGHEL, 2015, p. 113).
Ressaltando a importância do projeto na desestabilização desses padrões, os estudantes
reafirmam em suas palavras a pertinência das questões levantadas:
“O tema da pesquisa chamou muito a minha atenção, porque eu sempre notei que tinha uma
grande diferença nas representações de gênero em videogames, na época, por exemplo, dos
mais ou menos 20 jogos que eu tinha, cerca de 3 ou 4 tinham protagonistas mulheres, e
apenas dois mostravam ela de uma forma não sexualizada ou esteriotipada.” (V., 16 anos)

“Em ações simples como assistir uma série ou novela, jogar um jogo ou ler um livro, as
mulheres são vistas como objetos e a população majoritariamente não consegue ver isso pois
as pessoas normalmente não problematizam ou param para pensar naquilo que estão
consumindo.” (A., 15 anos)

“Ao meu ver, reservar um momento pra discutir sobre a diversidade, pesquisar artigos e
referenciais teóricos que explicam a formação de esteriótipos, problematizam o padrão da
normalidade e mostram como nossos comportamentos estão muita das vezes limitados dentro
de um estrutura social é esclarecedor e enriquecedor para que possamos nos desconstruir e
nos reconstruir sobre outra perspectiva.” (B., 15 anos)

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Finalmente, os estudantes também destacaram o reconhecimento de privilégios de raça


e gênero como fruto da participação no projeto (“Além disso, ainda no âmbito pessoal,
reforçou a presença de privilégios dos quais é importante se ter ciência.” F., 16 anos) e a
importância das oficinas no processo de empoderamento das jovens negras:
“O projeto tinha uma capacidade absurda de esclarecer para jovens e mulheres negras que
tínhamos/temos referenciais nos quais podemos nos espelhar, e que não há um vácuo de
atuantes negras no movimento de direitos das mulheres, e sim a invisibilidade que ocorre
com elas neste meio. E que para compreender que as necessidades de nós mulheres negras
são muito peculiares, é preciso a execução uma análise do racismo brasileiro, caso contrário
é impossível atender às urgências do grupo.” (E., 15 anos)

Considerações finais
Partindo da realidade e experiência dos sujeitos envolvidos no projeto, buscamos mais
do que tematizar as mulheres e suas questões nessas oficinas. Na verdade, procurou-se colocar
em prática alguns pressupostos centrais das pedagogias feministas, notadamente estimular
“(...) a análise das noções trazidas pelos participantes e das novas concepções geradas no
grupo” (SARDENBERG, 2011, p. 27), além de buscar “(...) as raízes dos preconceitos, mitos
e condições de subordinação das mulheres” (Idem). Além disso, buscamos ter em mente que
“a ação político-educativa é um processo” (Idem, p. 26); portanto, as oficinas não se
constituem em um fim em si mesmas, mas encerram possibilidades de desdobramentos, ao
incentivarem a voz de todos/as, levantando, assim, novos questionamentos.
Consideramos importante e necessária a articulação de coletivos no sentido de buscar
a consolidação e construção de políticas públicas que possam fazer frente à situação de
exclusão e opressão vivida por mulheres e grupos em situação de vulnerabilidade social.
Entretanto, alinhando-nos ao pensamento de Guacira Louro (2014), acreditamos ser
igualmente importante subverter e desestabilizar as desigualdades que operam no tecido
escolar, prestando especial atenção às formas que produzem e reproduzem essas
desigualdades. Para isso, é necessário atuar com base em nossas experiências e nas
experiências pessoais dos/as estudantes, mas também operando “com apoio nas análises e
construções teóricas que estão sendo realizadas” (LOURO, 2014, p. 125), notadamente no
campo de estudos de gênero, a fim, principalmente, de superar as “fraquezas” conceituais
apresentadas pelas pedagogias feministas, sendo a mais marcante delas o possível reforço a
uma lógica dicotômica e binária.
Finalmente, é preciso que haja mudanças sutis nas ações desenvolvidas no cotidiano
escolar – dividindo grupos de estudantes de formas diversas, promovendo discussões sobre
representações de gênero em livros e na mídia em geral, investigando grupos e sujeitos

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ausentes da historiografia oficial, estimulando reflexões acerca de novos arranjos familiares.


Todas essas ações podem contribuir enormemente para “perturbar certezas, ensinar a crítica e
a autocrítica (um dos legados mais significativos do feminismo), para desalojar hierarquias”
(LOURO, 2014, p. 128).
Acima de tudo, acreditamos na potência dos sujeitos e dos aprendizados
coconstruídos: “A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de
possibilidades. Nesse campo de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pela
liberdade [...]” (HOOKS, 2017, p. 273).

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Do privado ao público:
identidades femininas católicas na contemporaneidade e seus sentidos

Joyce Aparecida Pires1

Resumo: Resumo: Esta comunicação envolve uma pesquisa de cunho etnográfico, em nível
de mestrado, sobre vida religiosa e cotidiana no cenóbio (ou instituto religioso, ou ainda,
convento) “Pobres Filhas de São Caetano”, localizado na cidade de Cândido Mota, estado de
São Paulo, Brasil. O objetivo desta comunicação é contribuir para uma melhor compreensão
de como as identidades de gênero são construídas e ressignificadas na vida cotidiana dessas
freiras e dinamizadas pelo discurso institucional cenobítico. Foram realizadas entrevistas com
o grupo de religiosas e etnografia, buscando compreendê-las através da administração do
tempo no cenóbio e da análise da rede de complexas relações sociais em que essas religiosas
estão situadas. O espaço privado conventual foi o lócus para a compreensão da vivencia
doméstica entre as freiras que lança luz às performatividades de gênero existentes.
Palavras-chaves: cenóbio; mulheres; vida religiosa

1
Graduada em Ciências Sociais, atualmente é professora e mestranda em Ciências Sociais/Capes pelo Programa
de Pós Graduação em Ciências Sociais da Unesp, campus de Marília. E-mail: cravinajoyce@gmail.com

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Introdução

O “IPFSC” (Instituto Pobres Filhas de São Caetano) é uma casa de religiosas de vida-
ativa, pertencentes a esta Congregação italiana, fundada em 1884, em Pancaliéri, na Itália,
onde possui sua sede localizada na cidade de Turim. Em Cândido Mota o convento está
localizado na Rua São Caetano, esquina com a Rua Sebastião Leite, no centro da cidade de
Cândido Mota, interior do estado de São Paulo.
Entendemos mulheres consagradas como atores sociais que estão presentes em grande
parte da história da Igreja (SALISBURY, 1994). Elas tiveram grande influência no próprio
processo de formação da Igreja Católica – suas bases teológicas e sacramentais/dogmáticas –
e também na formação da sociedade brasileira, por meio da prestação de serviços
asistencialistas e da ação católica missionaria (BIDEGAIN, 1993; ALGRANDI, 1993).
Existe no grupo estudado de mulheres religiosas católicas um ideal de vida a ser seguido e
desejado. Mas este ideal não permanece apenas no plano das ideias, as mulheres que participaram
desta pesquisa vivem na prática uma idealização de vida mais santificada aos moldes institucionais da
Igreja Católica Apostólica Romana. Esse ideal de vida está no sentido prático. No esmaecer do
cotidiano é produzida uma sensação de que seus ideias estão sendo realizados e praticados através de
uma rotinização cotidiana à concretização por meio dos rituais.

O tema da pesquisa tem relativo apelo no campo dos estudos históricos. Riolando Azzi
(1979), por exemplo, elaborou extensos trabalhos que permitiram contextualizar a história dos
conventos femininos no Brasil. A historiadora Leila Mezan Algrandi (1994) em sua obra
“Honradas e devotas: mulheres da colônia”, propôs lançar os olhos para a condição de
religiosas durante o período do Brasil colobial e na formação dos conventos e recolhimentos
do sudeste do país.
Porém, quando consideramos os aspectos sociológicos e antropológicos, observamos
que o referido tema de estudo – religiosas católicas consagradas –, ainda é frequentemente
desprezado como objeto de investigação, possivelmente porque as mesmas não compõem a
hierarquia da Igreja (Conf. FERNANDES, 2010, p. 24).

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Maria José Rosado Nunes (1985) é uma das pesquisadoras das Ciências da Religião
que inaugurou esse tipo de análise no Brasil ao investigar a modernização da vida religiosa
feminina catalisada por um determinado estilo de opção religiosa: as freiras inseridas nos
meios populares. A autora faz uma análise institucional, sob o ponto de vista das mulheres
freiras, revelando, de modo crítico, uma intrincada teia de relações. E, ainda, evidencia as
influências da Teologia da Libertação em seus discursos, revelando a emergencia de auto
crítica, institucional e religiosa que abarcavam os aspectos históricos e políticos nas mudanças
sociais durante os anos 60, 70 e 80 no Brasil. É neste período, partir dos anos 60 do século
XX que italianas consagradas foram enviadas ao Brasil para missões, inserindo-se em bairros
periféricos de regiões pobres, dedicando-se à evangelização e aos trabalhos de educação
informal e de pastoral popular.
A socióloga e freira Maria Valéria Rezende (1999), em sua obra “A Vida Rompendo
Muros: Carisma e Instituição”, analisou comunidades de religiosas inseridas nos meios
populares na região Nordeste. A autora trabalhou com a abordagem weberiana das conexões
de sentido como motivadora para o ingresso na vida religiosa, e defende a existência de uma
tensão entre carisma e instituição. Um trabalho antropológico relevante foi realizado por
Mirian Grossi (1990), que abordou as formas de construção da identidade das religiosas
residentes em conventos da região Sul do Brasil, provenientes de famílias camponesas.
No caso específico desta pesquisa, todas as referências bibliográficas citadas sobre
freiras somam-se à afirmativa de que as religiosas são rigorosamente treinadas para não terem
história pessoal ou comunitária (ALGRANDI, 1994). Esse fator, segundo a feminista e
historiadora da religião Ana Maria Bidegain (1996) tem sido objeto de pesquisa histórica e
sociológica, em que a incorporação da categoria de gênero, cruzada com as de classe social e
etnia, não são úteis apenas para a elaboração da história das religiões, mas também para a
compreensão da historiografia invisível das mulheres nas religiões e suas relações com todas
as formas de estruturação do poder.

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As primeiras religiosas enviadas ao Brasil, em 1963, instalaram-se na cidade de São


Paulo, atuaram em favelas; e na cidade de Assis – SP, atuaram no Hospital Sorocabana. Um
ano depois, em 1964, as respectivas freiras pioneiras, foram transferidas para Cândido Mota
afim de atender e cuidar de crianças órfãs. Atualmente, os espaços onde as freiras se inserem
são outros, mas a localização do estabelecimento cenobítico permanece a mesma, na Rua São
Caetano. No entanto, o serviço prestado pelas religiosas é direcionado à asistencia social,
saúde, administração e educação do asilo e da creche. São edifícios localizados ao lado do
instituto religioso, ambos criados por iniciativa de algumas famílias do município e custeados
com recursos públicos e recursos da própria Congregação italiana.
Nos primeiros anos da chegada das freiras italianas, foi construido um grande edificio
que funcionava como orfanato e asilo aos idosos e desamparados. Após dez anos, com o
crescimento da demanda na cidade de Cândido Mota, a obra passou a receber mais auxílio e
financiamento público, além de doações dos moradores da cidade. Atualemente, em Cândido
Mota, além das obras dirigidas pelas freiras, o instituto religioso é especialmente direcionado
à formação internacional de candidatas à vida religiosa consagrada no Brasil. As religiosas
recebem candidatas e outras moças que estão passando pelo período de formação, oriundas de
Togo, Equador, Minas Gerais e Paraná.
Nos dois estabelecimentos – creche e asilo – trabalham, juntamente com as freiras,
diversos funcionários e funcionárias assalariados, inclusive com outras pertenças religiosas.
Além do trabalho administrativo, as freiras também ministram aulas na creche, exercendo a
atividade de educadoras. Para iniciar a pesquisa de campo, primeiramente, solicitamos a
permissão das freiras, a qual nos foi concedida prontamente.
O fato da possibilidade de mobilidade geográfica e social, oferecidas pela instituição
religiosa, ao longo da vida de uma freira, torna clara as identidades religiosas direcionadas ao
feminino na Igreja que se pretende fixar a cada etapa de formação, elas não são permanentes
nem constantes, mas desestabiliza a coerência e a unidade que toda noção de identidade social
pressupõe, mas diferentes e múltiplas identidades femininas possíveis que marcam e
constroem as trajetórias sociais de mulheres, sujeitos de subjetividades nômades (DEBERT,
1999; BRAIDOTTI, 2004).

Metodologia

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A pesquisa ocorre por meio da observação participante, entrevistas individuais e


narrativas de histórias coletadas. É importante destacar que utilizamos nomes fictícios para
cada freira, afim de preservá-las.
O trabalho empírico e bibliográfico caminha com vistas a problematizar o papel das
mulheres católicas e suas implicações no trabalho doméstico cotidiano do cuidado para com
crianças e idosos.
Tanto os momentos críticos e difíceis que foram levantados, durante as entrevistas,
sobre as histórias de vida religiosa feminina católica, quanto o discurso das freiras que se
manifestaram, não resultaram apenas de situações conjunturais, mas também de
manifestações de uma tendência latente resultante de uma permanente ambiguidade da
posição das mulheres religiosas que querem consagrar-se ao serviço de Deus, na Igreja
Católica.
A ocorrência de distribuição por parte do clero de funções ou tarefas às mulheres nos
espaços eclesiais corrobora com a existência de um campo de forças muitas vezes velado e
outras tantas, reproduzido e reforçado por meio das dinâmicas relacionais estabelecidas no
cotidiano.
Por mais que as regras apresentam limites às ações de mulheres e homens, com o
fechamento e imposição de um mundo no contexto institucional católico, o esforço e rigor
dedicado na pesquisa levou-me a pensar além. Para as minhas contemporâneas, a vida
religiosa pode significar um sentido de vida, uma rotina que possibilita um sentido de vida
‘maior’, por meio de ações caritativas, o ‘Fazer’ e ‘Ser’ para Outros; para Deus, para os
Irmãos, para a Congregação, para a Igreja, para a creche, para o asilo e para que a instituição
viva. Essas temporalidades vividas no cotidiano dão sustentação a própria instituição. E o
peso das regras é experienciado em entonações diferentes.
Como aponta Sonia Maria de Freitas (2006, p. 46), quando lidamos com trajetórias e
biografias, a história oral “fornece documentação para reconstruir o passado recente”. Assim
como salienta Bourdieu (2002, p. 183-191), o investigado, no momento da entrevista, realiza
uma produção de si. Desse modo, é importante tentar compreender as biografias não como
uma série única de acontecimentos, pois o relato autobiográfico sempre buscará dar sentido e
coerência à própria narrativa, extraindo uma lógica retrospectiva e prospectiva entre estados
sucessivos.
Ambas as modalidades de vida religiosa, feminina ou masculina, possuem a finalidade
institucional de constituir o corpo sacramental da Igreja Católica. Mas, diferentemente do
caso de estudar o ministério de ordenação masculina na Igreja Católica, em que o centro da

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vocação é a dimensão pastoral no sentido mais amplo da presidência celebrativa dos


sacramentos, da animação de uma comunidade de fiéis, da condução de uma paróquia, como
fez Sílvio Benelli (2006), o percurso escolhido se faz outro: a trajetória de vida e as
possibilidades de ação das e para as mulheres vocacionadas, quando em um cenário sagrado e
feminino, religioso e católico, onde a vivencia cotidiana da castidade é norma para a vida em
uma instituição cenobítica (FOUCAULT, 1982; AGAMBEM, 2014).
Entendemos que na vida para regra, segundo Agambem (2014), existe uma forma-de-
vida que possui um saber, uma “epistemologia” da vida ordinária. Foi constatado em pesquisa
anterior (PIRES, 2015), que este saber do qual fala Agambem, é “esvaziado” e invisibilizado
devido às questões socialmente construídas relativas a gênero, sobre o “lugar” naturalizado e
normativo como sendo “de mulher” e “para a mulher”.
Apelamos para uma margem de não pertencimento ao falocentrismo. Braidotti, com a
noção de Diferença Sexual – que ela constrói –, se conecta com as discussões contemporâneas
do feminismo, por considerar tanto as diferenças dentro de cada sujeito (entre os processos
consciente e inconscientes) como as diferenças entre o sujeito e seus outros/as” (1999, p. 8).
O campo de pesquisa e suas religiosas revelam-se indícios que abrem espaços à posição do
sujeito, que não apaga o significante “mulher” mas negocia todas as formar de implementação
social de novas posições de sujeito (BRAIDOTTI, 2004).
Observamos a hierarquização de tarefas domésticas e religiosas, por vezes religiosas e
domésticas ao mesmo tempo e ainda, valorizações que às remetem ao capital do sagrado,
além da já esperada centralidade da dominação das freiras que possuem mais tempo de
vida/religiosa sobre as mais jovens. As novas significações quando se insiste no modo como a
oposição entre jovens e velhos é construída dentro do convento, advém da oposição do
público e privado segundo Debert, que associa a subordinação da mulher à esfera doméstica
(DEBERT, 1999). O convento e as ações através da s freiras realizadas, levam a esse
entendimento. Os dias de vida religiosa são intimamente amarrados às tarefas relacionadas à
vida doméstica, aos cuidados com os velhos e crianças e, à comunidade (CARRANZA,
2009).
Na reflexão sobre gênero e envelhecimento e a perspectiva de teorização e
metodologia seguiu um caminho rigoroso ao aprofundar o estudo sobre as questões das
categorias de análises como velhice, juventude e gerações (DEBERT, 1999; LINS DE
BARROS, 2009; VELHO, 1994). O campo de pesquisa mostra mulheres com idade entre 18 a
69 anos, neste sentido, vemos necessidades de construir recortes empíricos bem
contextualizados, que oferecerão ainda elementos imprescindíveis para a discussão sobre a

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criação das classes de idade, das etapas de vida e dos conflitos de geração apresentados com
mais amplitude.
As mais novas, que estão passando pelo período de formação, apresentaram maiores
dificuldades para abordar temas relacionados à Igreja, à formação religiosa e a algumas
deliberações do magistério eclesiástico. Essa dificuldade pode representar uma desigualdade
quanto ao acesso a informações na etapa de formação da mulher que deseja ser freira.

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Tais notas etnográficas iniciais ainda necessitam de mais análises para a produção
final das conclusões da pesquisa, mas é possível chegar a conclusões preliminares ou, pelo
menos, a hipóteses fundamentadas a respeito do lugar que a vida religiosa feminina ativa
ocupa na Igreja Católica, sua valorização e conservação pela mesma, mas, particularmente, na
Congregação Pobres Filhas de São Caetano no convento em Cândido Mota, num contexto
histórico e nacional onde proliferam vocações nas chamadas Novas Comunidades (conf.
CARRANZA e MARIZ, 2009).
Através da observação das relações estreitas entre as formas de existência dessas
mulheres, as tomadas de posições estabelecidas no processo de ingresso à instituição, suas
trajetórias de sentidos de vidas numa instituição religiosa tradicional, que possui marcas
institucionais e de conduta direcionadas ao feminino com longa permanência na história do
cristianismo, como reações dotadas de sentido. O chamado e a construção deste ultrapassa a
questão celibatária, é sentido de vida.

A pesquisa com mulheres consagradas

Na segunda metade do século XX, e particularmente a partir da década de 60, a teoria


social ocidental passou por uma série de questionamentos e revisões, que incluíam novos
debates sobre a relação entre as obras reconhecidas como o "cânone" das diversas áreas
disciplinares e as mudanças que dariam lugar a um mundo social em alguns aspectos muito
diferente daquele que formou o contexto histórico das obras canônicas.
Por outro lado, a emergência dos "novos movimentos sociais" que permitiram uma
nova voz a certos grupos sociais antes excluídos da produção do conhecimento acadêmico e
intelectual, também conduziu a novas interpretações da história e das relações sociais - no
Ocidente e no resto do mundo. Neste cenário, um dos movimentos sociais e culturais mais
importantes foi o movimento feminista, que produziu dentro e fora da academia novas
interpretações da história e da sociedade, a partir das experiências das mulheres e de sua
problematização do que vieram a se chamar "relações de gênero".

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Nesse sentido, cabe introduzir o campo teórico em questão e indicar as características


desta forma de produção de conhecimento, mostrando qual o olhar investigativo aplicado na
pesquisa (RAGO, 1999). Trabalhamos com a categoria social mulheres, numa perspectiva
feminista e utilizamos o conceito de gênero entendido como o estudo das relações, cultural e
socialmente produzidas entre homens e mulheres, e destes entre si. Um conceito que foi sendo
construído nos estudos relacionados a diversos campos do feminismo e, por isso, também de
ordem ideológica, política e de lutas (SAFFIOTI, 2004); e que coloca também enfrentamento
à uma forma de saber acadêmico.
Portanto homens e mulheres são ensinados a serem o que são na cultura que estão
inseridos. Neste sentido, somos ensinados/as desde a infância como devemos praticar a
heteronormatividade: meninas e meninos e nos portarmos, como homens ou mulheres, para
sermos socialmente aceitos. Gênero é sempre influenciado por fatores sociais como raça,
etnia, cultura, classe social e idade e religião. (BIDEGAIN, 1996; FIORENZA, 2009
GEBARA, 2010).
Compreendemos que o movimento feminista tanto na militância como na academia
conquistou muito, porém ainda temos um longo caminho a percorrer para a conquista de
direitos iguais entre os sexos (SAFFIOTI, 2004). E, por esse motivo, entendemos a
importância da pesquisa com mulheres numa perspectiva feminista em diálogo com o tema
religião para que os avanços permaneçam (ROSADO-NUNES, 2001, 2005, 2006, 2015;
GEBARA, 2010).
As mulheres que se consagram à vida religiosa não são mais vistas como simples fiéis
leigas, mas sim como especialistas do campo religioso e, certamente, o são. Porém, sua
posição é extremamente ambígua, e sulbaterna, como assinala Valéria Resende (1999). Notas
etnográficas recentes evidenciam a importância de se levar em conta o envelhecimento social
que ocorre no convento e a construção de trajetórias sociais, neste espaço religioso (PIRES,
2015). Diferentemente da formação dos homens, que necessariamente devem ter concluído o
ensino médio e cumprido, no mínimo, sete anos de estudo para se tornarem sacerdotes
(licenciados em Filosofia e Teologia), para as mulheres que desejam ser freiras não existe a
mesma exigencia, ou nenhuma que seja a formação universitária (conf. BENELLI, 2006;
GEBARA, 1992).

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O período formativo das mulheres nesta instituição é de, aproximadamente, quatro


anos. Neste período, os estudos não são de nível superior, mas concentrados na dimensão
humana e nos chamados “carismas fundacionais” relacionados à proposta pedagógica e
espiritual, elaborados pelo Padre João Maria Boccardo, fundador da Congregação Pobres
Filhas de São Caetano, e pela primeira Madre Superiora da Congregação, Madre Caetana. De
modo geral, as entrevistas, o processo de escuta das narrativas e a observação participante
estão sendo recursos eficientes, levando-nos a compreender, por exemplo, que os
equipamentos metodológicos que as fontes orais fornecem preenchem a lacuna deixada por
dados tidos como inexistentes (FERREIRA, 2002; MINTZ, 1979; KOFES, 2001).
As entrevistas ocorreram com dez freiras, entre dezessete a sessenta e oito anos de
idade e, em sua maioria, provenientes de camadas pobres, rurais e sem muitos recursos. Após
a realizarmos a transcrição das narrativas, observamos a ausência de discursos amparados na
crítica social ou institucional, como Nunes encontrou nas religiosas entrevistas em 1980.
Interpretamos este dado como um indício do contexto social e político atual brasileiro.
Críticas às condições de precariedade dos trabalhadores e trabalhadoras, ou mesmo a
problematização da vida cenobítica são inexistentes.
Mas, a narrativa de uma freira entrevistada, fora sensível ao problematizar sua
condição como mulher e religiosa. Deixou claro seu descontentamento com o fato das
mulheres não poderem compor o Presbitério na Igreja. Durante a entrevista, sentiu-se
embaraçada ao perceber que estava entrando em um assunto que outras freiras do convento
não compartilham e não gostam de comentar. Talvez pelo fato de não existir outra pessoa
presente junto a nós duas naquela pequena sala no interior do convento, composta por sofás,
mesa, e uma singela estante, na qual continha um pequeno retrato da atual Madre Superiora
que trazia em seus braços uma criança de Togo (país onde se localiza uma das comunidades
da Congregação) e, ainda, uma fotografia do papa atual, Francisco (primeiro papa jesuíta e
nascido no continente americano, eleito em 2013). Em entrevista, disse:
Eu gosto muito do que faço aqui pelas crianças através da vocação que Deus
me deu. Mas eu tenho vontade sim de atuar em outros lugares. De ir mesmo
ao encontro de problemas. Visitar famílias que estão passando por
dificuldades, entre outras coisas, trabalhar na pastoral da Igreja
evangelizando. Se outras Irmãs ouvirem o que eu vou falar elas não irão
gostar, mas como é para você, eu vou falar: nossa atuação na Igreja é de
certo modo muito limitada. Os presbíteros são machistas. Por que que nós
mulheres não podemos compor o ministério da Igreja também? Por que não
existem mulheres presbíteras? Por que só homens podem fazer decisões na
Igreja? Ainda há muita coisa para melhorar nesse sentido. Senão daqui um
tempo, as congregações ficarão vazias. (Joana, 54, freira de votos perpétuos).

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Percebemos que, tanto os momentos críticos que foram levantados ao longo da


história de vida religiosa feminina católica, quanto o discurso das freiras entrevistadas, não
resultaram apenas de situações conjunturais, mas também de manifestações de uma tendência
latente resultante de uma permanente ambiguidade da posição das mulheres religiosas que
querem consagrar-se ao serviço de Deus, na Igreja Católica. Em outros contextos históricos, a
entrada para o convento significava uma abertura, uma alternativa para a vida de mulheres.
Para aquelas que não queriam se submeter ao casamento, jovens orfas ou que tinham
cometido algum ato desprezivel para a época, como o adulterio, ou ainda casos, revelados na
obra de Algrandi (1994), em que algunas mulheres eram tidas como loucas, restavam a casos
como estes, o ingresso em instituições religiosas.
Mas, instituições religiosas direcionadas às mulheres católicas, ainda no contexto
histórico atual se revelam como espaços onde jovens podem exercer suas liberdades e ali
encontram sentidos para a vida. Em entrevista concedida a Nunes (2006), Gebara comenta o 2

sentimento ambivalente que sentia ao observar a experiência de vida das mulheres com as
quais convivia, demonstrando que sua escolha pela vida religiosa foi uma tentativa de valer
por si mesma e não pelos serviços ou funções femininas que pudesse desempenhar como
esposa em uma família. A teóloga diz ser bastante contraditório que uma mulher, como ela
própria, busque liberdade dentro de uma estrutura patriarcal, machista e conservadora como a
Igreja Católica.
Gebara entrou na vida religiosa em 1967, quando tinha 22 anos. Sua interpretação da
condição das mulheres dentro da Igreja é particularmente expressiva. Nos anos noventa,
Gebara lecionava no Instituto de Teologia do Recife e numa atitude de grande rebeldia, ousou
desafiar publicamente preceitos católicos considerados obsoletos em determinadas
circunstâncias sociais. Pronunciou-se em relação ao aborto, defendeu o direito das mulheres
ao próprio corpo, até sua dissolução decretada pelo Vaticano em 1999, impondo à Gebara um
longo período de silêncio.
Desde então, dedica-se principalmente a escritos, cursos e palestras sobre
hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e aos fundamentos

2
A autora referida é freira e teóloga feminista. Uma religiosa da Congregação “Irmãs de Nossa Senhora
Cônegas de Santo Agostinho” de origem francesa. Atualmente a Congregação está presente em vários países
como: França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Vietnã, Hong Kong e na América Latina, no Brasil e México. Gebara
é uma das expoentes da Teologia Feminista brasileira. Filha de pais libaneses e sírios. Vive há décadas em
Recife, numa vida de “inserção” no meio popular. Participou intensamente ao lado de Dom Hélder Câmara, da
organização das Comunidades Eclesiais de Base e da elaboração da Teologia da Libertação.

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filosóficos e teológicos do discurso religioso. Segundo Nunes (2006), a Teologia Feminista


produzida por Gebara é radical e crítica, sua perspectiva analítica que toma as relações de
gênero como vetor da análise permite compreender como essas relações cortam
transversalmente todas as classes e questões sociais; e ainda, que a igualdade entre mulheres e
homens está longe de ser uma realidade tanto na sociedade como na Igreja Católica, mas
permite também propor o estabelecimento de novas formas dessas relações, como condição
imprescindível para que a justiça se realize.
Sobre o seu ingresso à vida religiosa, Gebara recorda que era o momento das grandes
mudanças na Igreja Católica, referindo-se ao período posterior ao Concílio Vaticano II. E
neste contexto, as Congregações religiosas eram convidadas a atualizar-se (NUNES, 2006).
Gebara comenta que,
Foi o tempo em que deixamos as instituições para viver entre os pobres. E
essa tem sido uma característica da vida das mulheres: sair das instituições e
viver nas comunidades populares. Para mim era uma vida cheia de desafios.
Queria mudar o mundo desde quando era estudante. Sempre me pareceu uma
injustiça que houvesse gente tão rica e gente tão pobre. Pensava que algo
poderia ser feito. A vida das freiras me pareceu “um” caminho, não “o”
caminho, que se ajustava um pouco com a minha tradição familiar, onde era
muito protegida e resguardada. (NUNES, 2006).

Semelhante situação foi observada em entrevista que realizei com Irmã Rosa (66 anos)
na sede da Congregação em Turim, Itália. Sua entrada para o convento Pobres Filhas de São
Caetano deu-se, entre outras coisas, como uma forma de encontrar a liberdade que não
experimentaria se viesse a se casar com seu namorado à época:
Eu me submeter a um homem? Eu não. Eu não quis isso para mim. Aqui, eu
encontrei a minha liberdade. Aqui, eu sou livre. (Rosa, 66, freira brasileira
de votos perpétuos).

De modo parecido, outras freiras entrevistadas interpretaram o ingresso na instituição


religiosa como busca de liberdade. Essa liberdade pode representar uma possibilidade de
pensar relacionada à posição de gênero e, nesse sentido, de determinada condição histórica de
invisibilidade e desvalorização das mulheres.
Há uma marca imediata que o universo simbólico de uma realidade social deixa nos
espíritos e que deriva daquilo a que Paul Ricouer (apud. HENRIQUES, 2011) chamaria a
leitura de superfície, que vai determinando as representações sociais que são construtoras do
nosso habitar coletivo e que, por isso, vão construindo perfis de identidade de mulheres e de
homens. Segundo a teóloga Fernanda Henriques:

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[...] enquanto mulher, está-lhe vedado do sexo feminino, não poderá pensar
que é imagem daquele Deus que vê representado apenas no masculino.
Assim, quando reza a um Deus que interiorizou no masculino e do qual não
tem disponível quaisquer outras representação, tem, consciente ou
inconscientemente, de se ver, como disse Simone de Beouvoir, como a
‘alteridade’ e como ‘o segundo sexo’. (HENRIQUES, 2011, p. 30).

Em entrevista, Irmã Graça (64 anos) comentou sobre a sua própria experiência,
quando morou na comunidade religiosa do instituto localizada no norte de Minas Gerais,
ponderando o que, para ela, justifica o posicionamento do clero em relação à possibilidade de
ordenação de mulheres na Igreja:
É eles lá e nós aqui. Mas, quando eles precisam de ajuda nós ajudamos sim,
na paróquia e com participação em celebrações. Lá em Minas que faltam
mais padres, aí as Irmãs trabalham muito; mas sabe o que eu acho que é?
Dor de cotovelo eles não deixarem as Irmãs celebram a missa também.
(Graça, 64, brasileira, freira de votos perpétuos).

Quando se discute o fim do celibato obrigatório e a ordenação de homens casados na


Igreja Católica, o debate principal recai sobre as seguintes questões: a vocação e a ordenação
estão subordinadas ao celibato? A opção de aceitar o celibato é ou não é condição necessária
para a ordenação? Porém, quando se discute a ordenação ou não de mulheres, não se discute
se há exigência de ordem de decisão pessoal de aceitar ou não o celibato, mas sim se as
mulheres estão ou não aptas para receberem a ordenação, se as mulheres são passíveis ou não
de serem chamadas por Deus para o serviço de Presbíteras nas comunidades.
Segundo Fernandes,
A distribuição de funções para as mulheres nos espaços eclesiais corrobora
com a existência de um campo de forças muitas vezes velado, e outras tantas
reproduzido e reforçado por meio das dinâmicas relacionais estabelecidas no
cotidiano. Tais dinâmicas podem produzir naturalizações da ordem
estabelecida e, assim, legitimar e solidificar estruturas simbólicas de poder.
(FERNANDES 2010, p. 387).

Conforme demonstra Pierre Bourdieu (2007, p. 71), em sua análise sobre o poder
político e o poder religioso, o efeito da “absolutização do relativo e de legitimação do
arbitrário” ocorre,
[...], sobretudo, pela imposição de um modo de pensamento hierárquico que,
por reconhecer a existência de pontos privilegiados tanto no espaço cósmico
como no espaço político, “naturaliza” (Aristóteles costumava referir-se a
“lugares naturais”) as relações de ordem (BOURDIEU, 2007, p. 71).

Nesse contexto, Henriques (2011) sugere pensar naquilo que qualquer mulher tem à
sua disposição como modelo direto no horizonte religioso. Como primeiro modelo, ser santa,

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ter o horizonte partilhado com os homens e ter reservado para a sua situação, enquanto
mulher, duas hipóteses específicas: ser uma prostituta arrependida, como Madalena ou ser
uma mãe sofredora, como a Virgem Maria. Nessa mesma linha de reflexão, outra teóloga,
Esperanza Bautista (1993), chega a problematizar a condição feminina como eterna
infantilidade:
“[...] hace que la mujer se sienta em uma condición de eterna infantilidad,
impotente y em exceso dependient; y Le hace desconfiar de poder llegar
alguna vez a autorealizarse, de poder conseguir la autonomia, la liberdad y la
responsabilidad que son imprescindibles para alçanzar esse respecto de sí
misma que es tan necesario para lograr uma vida adulta y plenamente
Cristiana” (BAUTISTA, 1993, p. 111).

As teologias feministas apontam para uma dupla tarefa de denúncia e de anúncio.


Denúncia de que a teologia tradicional, majoritariamente masculina, transformou Deus em um
ídolo patriarcal; anúncio de que o modo de pensar Deus e sua relação com a humanidade é
que mulheres e homens possam rever-se como sua imagem.
Henriques (2011) concebe as duas tarefas citadas em relação direta com a
antropologia. Nesse entrosamento, situa a relevância da teologia feminista e os movimentos
de mulheres em geral, uma vez que, sendo a Igreja uma instituição inserida na sociedade, e
sendo as religiões uma dimensão determinante na vida humana, condicionando o viver
individual e coletivo, uma alteração profunda implicará efeitos transformacionais.
Contudo, a autora salienta a transformação da situação das mulheres na Igreja Católica
e a teorização teológica feminista sob a influência direta da luta das mulheres através de uma
mediação cruzada: a transformação da perspectiva antropológica, ou seja, a resposta à
pergunta o que é um ser humano? e por ela uma nova simbologia sobre o feminismo:
Esta mediação terá duplo efeito: 1. Ao nível coletivo, pela substituição, na
consciência (ou inconsciência) social, das velhas concepções antropológicas
que, sendo androcêntricas e falocêntricas, são assimétricas e reduzem o
humano ao masculino, por perspectivas igualitárias e respeitadoras do
feminino e do masculino; 2. Em relação às mulheres, fornecendo-lhe
elementos simbólicos que, ao aumentarem a sua autoestima, serão fator
decisivo de empowerment. (HENRIQUES, 2011, p.28).

O uso de referenciais teóricos produzidos por teólogas feministas corroboram, entre


outras coisas, para pensar os motivos políticos e sociais de tomada de posição das próprias
autoras, umas religiosas e outras não, mas que atuam neste campo intelectual que é a
Teologia, também marcada por concepções que valorizam um referencial histórico masculino
mais do que feminino (GEBARA, 2000). Suas explícitas ações de luta dentro do catolicismo
contemporâneo demonstram as relações sociais que permanecem centradas no masculino e

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expressadas no conjunto da lógica religiosa patriarcal reafirmando sua primazia ontológica e


histórica em relação ao feminino.
Entretanto, atribuir um lugar para as mulheres na Igreja não representaria igualdade de
condições na esfera hierárquica, como aponta Fernandes (2005) em artigo. Verifica que, ainda
assim, a distribuição da autoridade na Igreja Católica não tem se alterado de forma
significativa a partir dos questionamentos das mulheres, sejam elas leigas ou religiosas.
As mulheres que se consagram à vida religiosa não são mais vistas como simples fiéis
leigas, mas sim como especialistas do campo religioso e, certamente, o são. Porém, sua
posição é extremamente ambígua, como assinala Resende (1999). É evidente, como destaca a
autora (1999, p. 213), que se trata de especialistas religiosas, os quais ocupam o campo
religioso, um lugar certamente distinto daquele dos simples fiéis leigos.
Já que muitas mulheres, inclusive as que foram objeto principal desse estudo, são
publicamente reconhecidas pela Igreja como mulheres consagradas a Deus, convocadas ou
aceitas pela hierarquia clerical e submetidas à sua autoridade, dedicando-se a várias tarefas
religiosas que contribuem para a reprodução e a manutenção da doutrina, da instituição e da
ordem religiosa, elas poderiam muito bem serem situadas sociologicamente na categoria
sacerdotal, ainda que em posição subalterna.
O desejo de servir aparece com especial motivação na descrição do chamado para a
vida consagrada. Segundo Fernanades (2010) o papel de gênero, moldado em feminilidades
permitidas, nesse contexto religioso, condiciona a forma de falar e de descrever o chamado
como eleitas para servir. Percorrer as trajetórias sociais de vidas das freiras do convento de
Cândido Mota é uma opção metodológica que dirigiu este estudo, objetivando entender a
construção do sujeito na presença constante dos fatores e processos do social sobre o
indivíduo. E que pessoa não se divide em freira e ser humano. O que classificamos como
freira é alguém que transita dentro de um sistema cultural religioso que não está estanque, e
imóvel.
Entendemos que a pesquisa já mostra dados e indícios empíricos que contribuem para
uma melhor compreensão de como as identidades de gênero são construídas e ressignificadas
na vida religiosa cotidiana dessas freiras em relação ao discurso institucional católico.
Portanto, também já podemos afirmar que o espaço privado do convento é o lócus para a
compreensão da vida cenobítica entre as freiras que lança luz às performances de gênero
contemporâneas, dentro de um cenário religioso mais amplo.

Considerações finais

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Consideramos que as Pobres Filhas de São Caetano produzem adaptações de


determinados elementos da cultura secular, atribuindo um novo sentido à adesão religiosa e
respondendo a uma nova realidade do social. São agentes religiosos/seculares que atribuem
um novo sentido à adesão religiosa, respondem a uma nova realidade social concreta e merece
estudos e pesquisas para o melhor entendimento dos fenômenos sociais.
O desdobramento do estudo permitirá identificar as tendências gerais que
possibilitaram um melhor conhecimento da realidade desse grupo de mulheres religiosas,
optando metodologicamente pela análise de discurso por meio de entrevistas abertas e
profundas. O trabalho teórico e empírico atual tem como base o conhecimento feminista,
como já foi dito, e ainda, uma epistemologia feminista, visando trabalhar, sobretudo, com
base nos estudos que vêm sendo produzidos e problematizados por feministas no Brasil e na
América Latina. Neste sentido, trabalhar as categorias de religião, gênero e geração, conjunto
analítico que forma a estrutura da pesquisa de mestrado, é confiar que o estudo de formas
distintas de construção de diferenças sobre o chamado para a vida religiosa e sua posterior
concretização é um trabalho que resulta em um material destacado em alargar a compreensão
dos processos de classificação e hierarquização dos seres humanos.

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O espaço composto através da lógica do vigiar e punir divino nos discursos Cristãos
Fundamentalistas das Lideranças Religiosa das Igrejas Evangélicas de
Ponta Grossa, PR

Adriana Gelinski1

Resumo: A presente reflexão está norteado pela seguinte questão central: como o espaço
compõe a lógica do vigiar e punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das
lideranças religiosas das igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR? Os caminhos estabelecidos
de reflexão buscam identificar como as experiências espaciais são ditadas pelo discurso
religioso das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR.
Identificar as compreensões de uma lógica vigiar e punir divino das lideranças religiosas das
primeiras Igrejas Evangélicas de Ponta Grossa, PR. E compreender como se estruturam as
perspectivas teológicas das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta
Grossa, PR. Este trabalho é resultado da vivência em Igrejas Evangélicas nas cidades de
Carambeí, Curitiba e Maringá no estado do Paraná. Vivências e pesquisas desenvolvidas entre
os anos de 2012 a 2017. Além da realização de quatro entrevistas com lideranças de Igrejas
Evangélicas do município de Ponta Grossa, PR no ano de 2017. Evidenciou-se que nas
pregações, as lideranças religiosas tanto da igreja como as lideranças dos jovens pautavam
suas falas em 'ser exemplo' para as outras pessoas, para se vigiar constantemente, pois o
divino tudo vê e o pecado estava nas músicas, nas práticas e nos espaços do ‘mundo’. Assim
ao vivenciar práticas entendidas como desagradáveis aos olhos do divino estariam sujeitas a
punição, deixando assim de ser ‘abençoados’.

Palavras-chaves: espaço; discurso religioso; dispositivo do panóptico.

1
Bolsita técnica Centro Tecnológico de Pesquisa em Ciências Humanas - CETEP e Pesquisadora do Grupo de
Estudos Territoriais - GETE da Universidade Estadual de Ponta Grossa, PR - UEPG; Mestra em Geografia,
Bacharel e graduanda em Licenciatura em Geografia pela UEPG; drycagelinski@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1229 1229


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Introdução

A presente reflexão está norteado pela seguinte questão central: como o espaço
compõe a lógica do vigiar e punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das
lideranças religiosas das igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR? Os caminhos estabelecidos
de reflexão buscam identificar como as experiências espaciais são ditadas pelo discurso
religioso das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta Grossa, PR.
Identificar as compreensões de uma lógica vigiar e punir divino das lideranças religiosas das
primeiras Igrejas Evangélicas de Ponta Grossa, PR. E compreender como se estruturam as
perspectivas teológicas das lideranças religiosas das primeiras igrejas evangélicas de Ponta
Grossa, PR.
As questões foram estabelecidas após a vivência em igrejas evangélicas nas cidades de
Carambeí, Curitiba e Maringá, as quais resultaram em duas pesquisas: Trabalho de Conclusão
de Curso e Dissertação de mestrado. Durante os momentos religiosos, conversas e entrevistas
com as pessoas das comunidades religiosas, os discursos em relação às práticas, vivências e
os espaços frequentados eram fundamentados em textos bíblicos. Em suas pregações, as
lideranças religiosas tanto da igreja como as lideranças dos jovens pautavam suas falas em 'ser
exemplo' para as outras pessoas, para se vigiar constantemente, pois o divino tudo vê e o
pecado estava nas músicas, nas práticas e nos espaços do ‘mundo’. Assim ao vivenciar
práticas entendidas como desagradáveis aos olhos do divino estariam sujeitos a punição,
deixando assim de ser ‘abençoados’.
Semelhantemente evidenciou-se no campo exploratório que tais pensamentos estão
baseados em quatro pressupostos: (1) Deus existe, (2) È onipresente e onipotente, (3) Se
revela através da Bíblia, pois a Bíblia é sua revelação, e (4) este evangelho é divulgado aos 4
cantos da Terra por pessoas que são Ungidas do Senhor [nunca toque em um ungido do
senhor]. Tudo isto tem lastro no texto que é a revelação do ‘Todo Poderoso’. É nesse contexto
que nasce a inquietação em compreender as noções de espaços sagrados e profanos, de
práticas aceitáveis e não aceitáveis. Indo além compreender como o espaço pode compor uma
lógica e dentro da religiosidade fundamentalista é uma lógica que vigia e pune. Pois o divino
é onisciente, onipresente e onipotente. Além disso, esta compreensão tem relação com
algumas espacialidades especificas, as quais podem ser compreendidas como licitas e ilícitas,
segundo Paulo todas as coisas são licitas, porém nem todas convém.
Ademais através do o levantamento realizado no banco de dados de artigos do Grupo
de Estudos Territoriais (GETE) no dia 19/07/2016, onde foram investigados 15.568 artigos de

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90 revistas referentes à ciência geográfica brasileira no período de 1940 a 2014, evidenciou-se


assim os 62 artigos que foram publicados nos periódicos geográficos brasileiros, 26 deles
focaram no espaço e religiosidade. As reflexões destes artigos estavam focadas em espaços
específicos como igreja, comunidades ribeirinhas, cidades do Brasil, cemitérios, festas
religiosas e escolas, bem como a concepção de espaço sagrado e espaço profano. Já os demais
trabalhos tiveram como tema central o conceito de território , paisagem , discussões sobre
geografia da religião, cultura, política e poder , geografia da religião, método e teoria , outros
sobre turismo religioso , corporalidade e identidade .
Nota-se assim que não há número significativo de reflexões sobre a temática religião
mesmo que 86.8% das pessoas sejam cristãs, sendo que 64.6% são católicas e 22.2%
evangélicos de acordo com o Censo IBGE de 2010, e 100% das pessoas vivenciam práticas
espaciais.
Portanto esta discussão faz parte da construção reflexiva do presente trabalho, onde o
espaço através das relações, do discurso e da crença contribui para a noção de uma divindade
que vigia e pune. Indo além, contribui para compreender como a sacralidade da figura
pastoral, as compreensões teológicas e discurso religioso ‘ditam’ as experiências espaciais.

Espaço, discurso religioso e a noção de um ser divino capaz de vigiar, abençoar e\ou
punir.

Partimos da premissa que os discursos religiosos estão relacionados com as


compreensões teológicas e as visões de mundo, indo além, as lideranças religiosas são
entendidas como pessoas escolhidas/ungidas e o divino fala através delas. Portanto há uma
sacralização do discurso, a figura da liderança religiosa é vista como a autoridade espiritual , a
qual prega a palavra, zela pela doutrina, repreende , ou seja, tem o papel de vigiar e punir.
Deste modo, aquilo que convém e aquilo que não convém tem a haver com uma
compreensão teológica. Por exemplo, para um grupo de lideranças religiosas entregar
preservativos em alguns espaços é uma prática importante, e entendida como uma forma de
evangelização. Por outro lado alguns pastores são contra, e entendem que o demônio esta
naquele espaço e com as pessoas que frequentam aquele espaço.
Assim tanto as relações sociais como os discursos político, jurídico, biológico e
médico (BUTLER, 2003) e o discurso religioso atuam de maneira regulatória e binária
criando papéis e vivencias de acordo com a norma heterossexual, reiterando normas e

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concepções de correto e incorreto. Tais concepções ultrapassam o espaço religioso e fluem


pelos diferentes espaços.
Deste modo, cada espaço religioso esta envolto por discursos que são constituídos por
dois polos: normal que corresponde às pessoas que seguem os papéis e práticas de acordo com
os textos bíblicos. E não normal ou ‘desviados’, a qual diz respeito às pessoas que não
seguem os discursos e práticas instituídas pela comunidade religiosa. Tais espaços são
compostos por normas binárias e heterossexuais, entendidos assim como um espaço
heterossexual (VALENTINE, 1993).
Diante disso, é possível compreender a potencia dos discursos. Pensando assim
Foucault (1996) ressalta que o discurso tem forte ligação com as relações de poder, pois é
através do discurso que há a legitimação e reprodução de concepções e ‘verdades’. Como a
crença de uma divindade onipresente e onipotente, essa crença dita suas práticas e noções,
entre elas: a noção de espaços abençoados e espaços amaldiçoados, a noção de pecado, as
práticas e concepções do que é feminino e masculino (BUTLER, 2003).
Desta forma, o discurso religioso faz-se presente e potente, pois é entendido como o
ouvir a voz do divino representado pelas lideranças religiosas como (pastora, pastor, padre)
segundo Orlandi (1996). Assim, o discurso religioso é “aquele em que há uma relação
espontânea com o sagrado” (Orlandi, 1996, p.246). Já o discurso teológico é mais formal e faz
uma sistematização dogmática das verdades religiosas segundo Orlandi (1996).
As imaginações geográficas que foram proporcionadas pela vivência nas comunidades
religiosas (Igreja Evangélica Reformada de Carambeí, Igreja Episcopal Anglicana de Curitiba
e Igreja da Comunidade Metropolitana de Maringá) e pelo campo exploratório na Primeira
Igreja Presbiteriana, Primeira Igreja Batista e Primeira Igreja do Evangelho Quadrangular de
Ponta Grossa contribuiu para a construção do recorte de grupo, sendo as lideranças religiosas
das primeiras igrejas evangélicas do município de Ponta Grossa-PR.
As Igrejas podem ser compreendidas como uma espacialidade que é vivenciada no
cotidiano de pessoas que comungam uma determinada forma de ver, significar e entender o
mundo. Sendo constituída pelos membros, práticas e discursos. Noutros termos, a igreja pode
ser entendida de acordo com a subjetividade ou intersubjetividade.
Podendo ser compreendida como eventualidade, local de encontros entre os membros
e o Ser Divino. Assim, os membros e a liderança religiosa buscam se reunir em espaços como
igrejas para compartilharem práticas, concepções e experiências de fé. Tais espaços estes
proporcionam inúmeros sentimentos, experiências e vivencias, as quais podem contribuir para
o fortalecimento do discurso religioso, consequentemente das concepções do divino, em

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relação às sexualidades, de correto e incorreto, de pecado e de espaços sagrados e não


sagrados.
Neste sentido, as espacialidades religiosas constituem-se como espaços de grande
importância para a vida das pessoas religiosas, pois como assegura Armstrong (2007): as
pessoas necessitam de algo para significar e dar sentido as suas vidas, caso contrário caímos
facilmente em desespero. A religião assim tem o papel de produzir sensações e formas de
compreender a vida, mesmo diante de todos os tipos de problemas há esperança, significado e
valor para existência. Pois “as dificuldades, as dores, os conflitos nada mais são que uma
provação divina e se conseguires passar por elas serás abençoado. Deus tudo vê, tudo sabe,
nada acontece sem que ele queira”. (Entrevista realizada com a Liderança Religiosa da
Primeira Igreja Batista de Ponta Grossa, em Ponta Grossa no dia 22 de abril de 2017
Deste modo, as religiões são vivenciadas espacialmente pelas pessoas religiões, bem
como as religiões organizam-se espacialmente. O espaço assim pode ser compreendido como
“palco material e objetivo das relações sociais, fazendo parte no contexto da experiência de
sujeitos cognoscentes organizados em sociedade, é, em certa medida, "construído"
(inter)subjetivamente” (SOUZA, 1997, p. 23), em locais como espaços religiosos, igreja, casa
entre outros. Pois as pessoas religiosas vivenciam outras espacialidades e poderiam ter as
práticas religiosas em outras espacialidades não somente no espaço igreja.

No entanto, existe uma intersubjetividade, um significado para o espaço igreja. Este


significado é atribuído pelo reconhecimento das pessoas religiosas que aquele
espaço denominado igreja é um local especial, pois é a ‘casa do Divino/de Deus’, é
onde as pessoas se encontram e buscam momentos de descanso e redenção, bem
como é o espaço que proporciona o contato não somente com a comunidade
religiosa, mas com Deus. (GELINSKI, 2017, p.19)

O espaço assim pode ser entendido como a morada da humanidade, sendo


multidimensional. Além de ser reflexo e condição social, sendo “vivenciado de diversos
modos, rico em simbolismos e campos de lutas” (Corrêa 2005, p. 45). Tais campos de luta
estão relacionados com a condição simbólica, frequentemente produzida através da vivência
de diferentes representações e significações.
Para Massey (2004) o espaço é relacional, um conjunto de encontros, sendo produto
de “relações-entre-relações” (MASSEY, 2004, p. 2). Assim, “o espaço é mais do que
distância, é a esfera de configurações de resultados imprevisíveis, dentro de multiplicidades”
(MASSEY, 2008 p. 139). Surgindo assim, através das relações, das práticas e das vivências,

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estando constantemente em movimento e este movimento é temporal e espacial


concomitantemente.
Para a autora o espaço é percebido como lugar, um evento, isto é, um conjunto de
encontros. Assim, o espaço não é fixo, ao contrário esta em movimento de conectar-se e
desconectar-se constantemente. Pensando nisso, as igrejas são espaços, os quais são
constituídos pelas relações, por temporalidades e pela linguagem. Estando permeadas por
interligações, as quais atuam nas concepções e significações. Logo, “diferente do tempo,
pode-se ver o espaço estender-se ao nosso redor. Tempo é ou passado ou por vir, ou o tão
minimamente instantâneo agora, que é impossível aprender. O espaço, por outro lado, está aí”
(MASSEAY, 2008, p.174).
Dito isto, o espaço Igreja é constituído através das práticas e das vivências, assim cada
vivência das pessoas religiosas não são meramente encontros espaço-temporais, mas sim são
eventos. Tais espaços são locais institucionalizados de encontros, de práticas, de
sociabilidades, esses são cheios de significado, valor e efeito e são constantemente negociado
e renegociado. Logo, este evento é feito por um conjunto de encontros entre as pessoas e da
ideia de que a vivência espacial da/na Igreja possibilita o contato/ à comunicação com a
divindade/Deus. Além disso, é no espaço religioso em que está presente a comunicação da
liderança com os membros e dos membros com os membros.
Deste modo, é no espaço Igreja e através da vivencia, do discurso religioso e da
comunicação dos membros que há a reiteração da fé, das práticas religiosas, das concepções e
da noção de uma divindade que tudo vê e tudo sabe, por sua vez, abençoa ou puni. Neste
sentido, a uma divindade única, a qual é suprema e esta em constante vigilância mesmo que as
pessoas religiosas não a vejam.
Temos assim, um modelo que se assemelha ao modelo de vigilância denominado
panóptico por Foucault (1975), em que a partir de uma construção era possível visualizar tudo
o que acontecia, indo além, não era possível saber se havia uma vigilância de fato ou não.
Assim, o panóptico é um modelo de “ver-ser visto”, ou seja, sabe-se que é “totalmente visto
sem nunca ver” (FOUCAULT, 2014 [1975], p. 195).
E mesmo que este modelo o Panóptico tenha sido pensando a partir de uma construção
física, é através do seu objetivo, do seu efeito e do poder deste modelo que é possível
estabelecer semelhanças relacionadas à questão da vigília de uma divindade, reiterada pela
liderança religiosa na espacialidade Igreja. Pois, o modelo Panóptico é uma “máquina
maravilhosa, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder”
(FOUCAULT, 2014 [1975], p.196).

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O Panóptico assim “pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar
o comportamento, treinar ou reiterar” práticas e concepções (FOUCAULT, 2014 [1975],
p.199). Logo, este modelo nas mais variadas aplicações, contribui para o aprimoramento do
poder.
De acordo com o autor, não é necessário à utilização de força física para que as
pessoas cumpram as regras, as doutrinas e as funções estabelecidas por este modelo: nas
escolas o bom comportamento, nos hospitais psiquiátricos a calmaria e nas Igrejas o
cumprimento de um conjunto de regras, abdicações e vivências espaciais. Por sua vez, este
modelo não esta baseado somente em relações de soberania, mas sim nas relações de
disciplina (FOUCAULT,2014 [1975]).
Neste sentido, a figura pastoral esta encarregada de zelar pela disciplina e atitudes dos
membros da sua Igreja. O pastor desempenha a função de ter o conhecimento das ações e dos
pensamentos dos membros da sua Igreja, é ele quem tem o poder de ajuizar sobre os assuntos
cotidianos dos membros. Tem-se assim, a vigilância constante das práticas e das vivencias
espaciais por parte do pastor, isto tudo em nome da salvação. Como evidenciado na fala que
segue: Por que creio que nós pastores viemos para cuidar e orientar nossas ovelhas, é nossa
aqui missão buscar a nossa salvação e a delas. Passar a palavra, o que agrada os olhos de
Deus, os desígnios né. (Entrevista realizada com a Liderança Religiosa da Primeira Igreja
Presbiteriana de Ponta Grossa, em Ponta Grossa no dia 04 de abril de 2017).
Desta forma, a figura do pastor é a mais importante dentro da espacialidade Igreja, o
qual é visto como mestre, ser sagrado. Pois, acredita-se que é uma pessoa enviada por Deus,
isto é, Deus fala através dessa pessoa. Ela é quem passa a verdade das escrituras e dos
mandamentos, bem como é ela que contribui para direcionar as práticas e as vivencias
espaciais que ‘agradam’ a deus ou não.

Considerações Finais.

A presente reflexão evidenciou como o espaço contribui para uma lógica do vigiar e
punir divino nos discursos cristãos fundamentalistas das lideranças religiosas das Igrejas
Evangélicas de Ponta Grossa, PR. Ademais como a sensação de estar sendo observadx
diariamente potencializa a noção de práticas aceitáveis e não aceitáveis, podendo assim ser
abençoadx ou punidx.
Pensando assim, a relação entre pastor e comunidade religiosa é fortalecida pelo elo de
obediência e disciplina, dá-se primeiro pela crença que o pastor é um representante de Deus,

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ou seja, é uma pessoa abençoada e imune a erros. E segundo, a crença que ambos (membro e
pastor) partilham verdades e uma delas é a crença da salvação. “È nesse sentido que a
salvação mesmo que nas suas formas seculares é uma obrigação que está indexada á presença
de um outro”. (LEME, 2012, p. 31). Para tanto, a relação dos membros com o pastor é de
confiança, tendo como base a prática de confidenciar suas vivencias, questionamentos e
conflitos internos e externos.
Nesse sentido, o poder pastoral é exercido, tal poder provém da figura hierárquica e do
papel que o pastor desempenha. Porém ambos membros e pastor creem em uma divindade
suprema, onipresente e onipotente. Desta forma pastor e membros sentem-se observados
diariamente, 24 horas por dia por uma divindade que pode abençoar ou punir de acordo com
as ações e espacialidades vivenciadas.
Evidenciou-se também que o discurso religioso faz-se presente em todas as
espacialidades e instâncias da vida do grupo pesquisado (membros LGBT da ICM-Maringá e
para os membros gays da IEA-Curitiba) como evidenciado nas pesquisas anteriores. Tal
discurso revela-se como um ‘agente’ diretamente associado ao funcionamento do mecanismo
de gênero, justificando e reiterando assim as noções normativas e binárias de gênero.
Portanto, o discurso religioso conecta-se e reforça outros discursos formando assim uma rede
entre os discursos que se interligam para defender e reproduzir uma heterossexualidade
compulsória.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GELINSKI, Adriana. As vivências espaciais dos membros LGBT da Igreja da


Comunidade Metropolitana em Maringá e da Igreja Episcopal Anglicana em Curitiba e
a Constituição das significações de suas Sexualidades. Dissertação (mestrado em Gestão
em Território). Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa. 2017.

FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1979.

______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

______. A Ordem do Discurso: Aula Inaugural no Collége de France, pronunciada em


2/12/1970. São Paulo: Edições Loyola, 1971/1996.

______. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal.1998.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1229 1236


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SOUZA, Marcelo Lopes. Algumas notas sobre a Importância do Espaço para o


Desenvolvimento Social. Revista Território, n2, 1997.
MASSEY, Doreen; KEYNES, Milton. Filosofia e política da espacialidade: algumas
considerações. Geographia, nº 12, 2004.

______. Pelo Espaço: Uma nova Política da Espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2008.

ORLANDI, Eni. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis:


Vozes, 1996.

VALENTINE, Gill. (Hetero)sexing space: lesbian perceptions and experiences of everyday


space. Environment and Planning D: society and space, v. 11, n. 4, p.395-413, 1993.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1229 1237


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O estudo das relações de gênero na formação de professores de educação física

Samira El Adass1
Karina de Toledo Araújo2

Resumo: Precisamos falar de gênero na escola. E as perguntas que fazemos são: os


professores em sua formação inicial no curso de Educação Física – licenciatura – da UEL
‘aprendem’ a falar de gênero? Como o curso de formação de professores em trata da temática
gênero ao longo do curso? Para respondermos a estas questões, iniciamos nossa pesquisa com
o seguinte objetivo: apresentar o conceito de gênero enquanto marcador social atravessado
pelas representações de corpo e sexualidade e a sua importância para a formação inicial de
professores do curso de Educação Física. A metodologia que adotamos para alcançarmos esse
objetivo foi a pesquisa bibliográfica com análise teórica das referências que tratam sobre os
temas apresentados.

Palavras-chaves: Formação de Professores; Educação Física; Gênero.

Introdução

Ao percebermos a necessidade urgente da busca por equidade de direitos e respeito


as diferenças, ao outro e a dignidade humana, se faz urgente repensarmos a função social e
política da escola. É fato que a sociedade brasileira, nesta segunda década do século XXI,
ainda reproduz saberes, pensamentos e ações discriminatórias em se tratando das relações de
gênero. Acreditamos que os estereótipos de gênero, sexismos e violências de gênero são
aprendidas e compartilhadas pela sociedade em suas diferentes instituições sociais, entre as
quais a escola. Esta assume um papel fundamental na manutenção ou nas mudanças de
valores e relações sociais. Para Estramiana (2010), valores são estruturas do conhecimento
socialmente elaborada sobre como a sociedade deve ser organizada, assim os valores
expressam conflitos ideológicos orientando os comportamentos e estão ancorados nas
identidades dos grupos sociais.
A escola em seus diferentes níveis de ensino é responsável pela produção,
reprodução ou transformação do quadro supracitado. Louro (1999) sinaliza o papel

1
Universidade Estadual de Londrina - UEL; Estudante de graduação Educação Física - licenciatura;
sami.eladass@gmail.com
2
Orientadora.Universidade Estadual de Londrina - UEL; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br

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fundamental da escola na produção da identidade masculina e feminina. Entretanto, na escola


ainda não têm sido abordados efetivamente os tema relacionados às diversidades em geral,
tampouco são discutidas as relações de gênero em sala de aula. Cabe, portanto, discutirmos a
formação e a intervenção docente sobre o tema gênero.
Nesse sentido, para França (2016), a escola informa e produz significados que
podem vir a se transformar em estigmas que limitam as possibilidades de inclusão dos
indivíduos afetando a aprendizagem. Portanto, há necessidade desses assuntos serem tratados
na escola. A Educação Física está na escola. É uma área de conhecimento que tem o corpo - e
o corpo em movimento - como seu objeto de estudo e de ensino. O corpo é sexual, é social, é
generificado e é político. Assim como as práticas corporais – esportes, ginásticas, danças,
lutas e jogos - manifestas em nossa cultura. É ímpar o estudo do corpo na Educação Física. O
corpo implica em constituição de identidades e em manifestações da sexualidade.
Neste sentido indagamos se os professores em sua formação inicial no curso de
Educação Física – licenciatura – da UEL ‘aprendem’ a falar de gênero? Como o curso de
formação de professores em trata da temática gênero ao longo do curso? Para respondermos a
estas questões, iniciamos nossa pesquisa com o seguinte objetivo: apresentar o conceito de
gênero enquanto marcador social atravessado pelas representações de corpo e sexualidade e a
sua importância para a formação inicial de professores do curso de Educação Física.

A Educação Física, hoje, pode ser compreendida como área que


tematiza/aborda as atividades corporais em suas dimensões culturais, sociais
e biológicas. Assim, a Educação Física extrapola a questão da saúde,
relacionando-se com as produções culturais que envolvem aspectos lúdicos e
estéticos, deixando de ter como foco apenas o esporte ou os exercícios
físicos voltados para uma perspectiva restrita à promoção e ao desempenho
de atividade física (FIGUEIREDO, 2004, p.90)

A metodologia que adotamos para alcançarmos esse objetivo foi a pesquisa


bibliográfica com análise teórica das referências que tratam sobre os temas apresentados.

A escola e as relações de gênero como conteúdo de ensino

O cenário atual é marcado por algumas mudanças no que diz a respeito das
representações de sexualidade e identidades de gênero. Ocorrendo uma constante
transformação na maneira de pensar conceitos relacionados a comportamentos femininos e
masculinos, e buscando ter novos olhares sobre o que é considerado natural e construído.

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Ao falar de sexo refere-se a aspectos biológicos e reprodutores, sendo sexo apenas


dois, o masculino e o feminino; gênero relaciona ao papel social que determinado sexo irá
exercer em uma sociedade, e esse papel social é determinado culturalmente por meio de um
processo histórico, ou seja gênero é as diferentes formas de ser homem ou mulher. Segundo
Joan Scott (1999), reconhece que o uso do termo gênero coloca ênfase sobre todo um sistema
de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado por ele e nem
determina a sexualidade do indivíduo.
Pois ao tentar encontrar uma definição para essa categoria limitamos binariamente a
compreensão desse conceito, desta forma ignorando a complexidade pela qual se caracteriza.
A complexidade de conceituar gênero ocorre devido à busca da superação em encarar a
sociedade a partir de uma perspectiva binária. Propondo que seja considerado para a
conceituação desse termo os determinantes sociais, e de que maneira a sociedade vem
construindo historicamente o conceito de gênero.
As discussões sobre relações de gênero na escola decorrem de observações realizadas
durante as diferentes etapas em que se cumpre o estágio supervisionado. Durante a realização
dos estágios ficou evidente que existe uma imposição para que cada um assuma seu papel de
gênero pré-definido pelo sexo conforme valores sociais estabelecidos e naturalizados
historicamente. Ficou claro que os professores devem saber ensinar sobre gênero e mediar
conhecimentos sobre os temas e práticas corporais que são atravessados pelas relações de
gênero. Para tanto é preciso que os conhecimentos relacionados as questões de gênero, corpo,
sexualidade sejam contemplados durante a formação inicial.
A escola (de educação básica e superior) reproduz conceitos binários de homem e
mulher no que diz respeito a valores e comportamentos. Culturalmente é ensinado que
existem coisas de meninas e coisas de meninos. Estas são criadas, educadas para exercerem
uma função social dependendo do sexo biológico que nascem. Quando tais pressupostos e
normativas sociais não são cumpridos conforme o esperado as pessoas são rotuladas. Becker
(2008) explica a rotulação como um desvio relativo a uma norma social pré-estabelecida por
um grupo social dominante, ficando assim marcados, rotulados por desviar de certos
comportamentos hegemônicos; submetendo-se a fingir ser o que não são por medo de serem
julgados ou sofrerem violência.
Durante a realização do Seminário Educação em Sexualidade e Relações de Gênero
na Formação Inicial Docente no Ensino Superior (2013) foi defendida a ideia de que é preciso
destacar o lugar do gênero e da sexualidade nas políticas públicas de formação docente,

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apesar dos avanços da última década e dos marcos normativos, a formação inicial docente
segue incorporando poucas as discussões referentes ao gênero e à sexualidade.
A maneira com que a sociedade vem se organizando diante a questões relacionadas à
sexualidade e gênero, é coerente propor alguns questionamentos, reflexões e esclarecimentos
de alguns conceitos, para que seja evitado qualquer tipo de intolerância. Ao tratar destas
questões é preciso ter a clareza do que cada termo significa e qual a sua implicação na
sociedade, e de que maneira esses conceitos influenciam na organização política, social e
educacional de um determinado lugar. Com a clareza de que alguns conceitos
descontextualizados histórico e culturalmente perdem o sentido. A naturalização de condutas
sociais construídas por meio de um processo histórico-cultural da interrelação do sexo e com
a identidade de gênero influenciou e continua a influenciar a organização social.
Entretanto e conforme a Apostila de Gênero e Diversidade na Escola (2009), gênero
refere-se à construção social do sexo anatômico, significa que homens e mulheres são
produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos. Segundo Louro
(1997), a complexidade do conceito de gênero compreende que que paralelamente à
existência da opressão, a sociedade produz formas não hegemônicas de pensar, agir e ser.
As representações sociais de homens e mulheres são decorrentes de rótulos que a
sociedade constrói com o decorrer do processo histórico cultural. Sendo designados papéis
sociais que cada um deve conter em uma sociedade, e a partir do momento que uma criança
nasce já possui um papel pré-determinado a seguir, tendo que se engajar em uma função
social se for menina e em outra função social se for menino. Portanto, houve desta maneira a
naturalização desses processos construídos históricos, sociais e culturalmente.
Segundo o Caderno SECAD (HENRIQUES, 2007), no Brasil ocorre o
fortalecimento dos movimentos feministas por meio de repercussão do contexto internacional,
apoiando-se a legitimidade de direitos por meio dos direitos humanos. A formulação de
políticas educacionais inclusivas no âmbito educacional está amparada na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), que assegura o direito à escola a todas as
pessoas (brasileiras ou estrangeiras residentes no País), sem discriminar negativamente
singularidades ou características específicas de indivíduos ou grupos humanos.

Os cadernos de Temas Transversais, dos Parâmetros Curriculares Nacionais


(PCN) para o Ensino Fundamental, publicados pelo MEC em 1998, são,
ainda hoje, a única referência oficial de tratamento das temáticas relativas a
gênero no campo educacional (CADERNO SECAD, 2007, p.12).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1081 1084


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O Plano Nacional de Educação, de 2001 (Lei n° 10.172), embora surgido em um


contexto de mobilização social, foi conservador em seu tratamento dos temas relativos a
gênero (HENRIQUES, 2007). Ao mesmo tempo, o PNE manteve silêncio em torno da
identidade de gênero.
A Apostila de Gênero e Diversidade na Escola (2009), ressalta a ações
governamentais relativas à educação, conscientização e mobilização contidas no Programa
Nacional de Direitos Humanos II (de 2002), no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(2004), no Programa Brasil sem Homofobia (2004) e no Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos (2006) gestados a partir de lutas e transformações que receberam maior
impulso desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Além disso, Caderno SECAD (HENRIQUES, 2007) como fonte dos movimentos
sociais feministas destaca propostas de ações governamentais para a garantia dos direitos
humanos de determinados grupos específicos, entre esses, mulheres, gays, lésbicas, travestis,
transexuais e bissexuais. Em relação a questão de gênero propõe como medida
especificamente voltada à educação:
1) estimular a formulação, no âmbito federal, estadual e municipal, de programas
governamentais a fim de assegurar a igualdade de direitos.
2) incentivar a capacitação dxs professorxs do Ensino Fundamental e Médio para a
aplicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN no que se refere às questões de
promoção da igualdade de gênero e de combate à discriminação contra a mulher
(BRASIL/MRE, 2002:36-37).
O movimento feminista levou a adoção de novas formas de pensar os projetos
pedagógicos que norteiam a escola e a universidade. Pois no Caderno SECAD
(HENRIQUES, 2007) é possível encontrar que o Plano Nacional de Educação em Direitos
Humanos (2006), assinado pelo Ministério da Educação e pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos, parte da concepção de que a educação em direitos humanos se faz paralelamente à
educação para a valorização da diversidade, definindo como uma ação programática para a
Educação Básica:
[...] fomentar a inclusão, no currículo escolar, das temáticas relativas a
gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação sexual,
pessoas com defi ciências, entre outros, bem como todas as formas de
discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada
dos(as) trabalhadores(as) da educação para lidar criticamente com esses
temas (BRASIL/CNDH/MEC, 2006:24).

E para a Educação Superior:

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1081 1085


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[...] desenvolver políticas estratégicas de ação afirmativa que possibilitem a


inclusão, o acesso e a permanência de pessoas com deficiências, segmentos
geracionais e étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual e religiosa,
dentre outros, nas IES (BRASIL/CNDH/MEC, 2006:29).

A contribuição dos movimentos sociais feministas para o Brasil no âmbito


educacional foi a legitimação do direito à igualdade perante ao ensino, inserção da temática
gênero mesmo que em forma de diversidades, influência nos projetos políticos que norteiam a
escola e a universidade a fim de discutir gênero na escola.
Para que na formação inicial seja tratado os temas relacionados às diversidades e as
questões de gênero é preciso que os docentes se apropriem desses conhecimentos para o
ensino em suas aulas. No Seminário Educação em Sexualidade e Relações de Gênero na
Formação Inicial Docente no Ensino Superior (2013) foi reafirmada a tentativa de inserção
das discussões de gênero na formação inicial docente, mas tais ações têm sido realizadas de
forma isolada ou por iniciativas individuais de professores e pesquisadores das universidades
públicas e privadas.

O curso de educação física – licenciatura – UEL e as relações de gênero

As relações de gênero na sociedade brasileira têm fundamentos no patriarcalismo, no


higienismo e no eugenismo. Esses fundamentos estão arraigados no pensamento social e são
perpetuados pela nossa memória coletiva por meio da circulação das informações e da
naturalização das posições e papéis sociais atribuídos aos indivíduos, conforme a raça, a
classe social, o gênero, geração, entre outros (ARAÚJO, 2015).
A busca pela normalização populacional é supostamente igualitária e mediada por
práticas disciplinares, contudo, constituíram-se as diferenças essenciais no interior do ser
humano reguladas pelas regras de normalidade e registros de moralidade. “O espaço da escola
é organizado mediante uma interpretação de poder, também é, dialeticamente, nesse espaço,
que os desejos, as expectativas e necessidades dos sujeitos que o compartilham estão postos”
(RAMOS, [s.d.] apud ARAÚJO, 2015). Moreira (2007) citada por Araújo (2015) reafirma o
papel da escola enquanto uma das instâncias em que se produzem os processos de
diferenciação, classificação e exclusão social.
Araújo (2015), vale-se das idéias de Weeks (1986) citadas por Cavalero (2009), ao
destacar que a questão de gênero na escola reveste-se de insistências de que formas de
masculinidades e feminilidades devem ser estabelecidas como opostas e as identidades não

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1081 1086


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normativas – a sexualidade e práticas sexuais - aparecem como assuntos privados, de pouca


importância e que compõem a intimidade distante das políticas públicas e de formação inicial
e continuada de professores.
No Projeto Pedagógico do curso de Educação Física – licenciatura - da Universidade
Estadual de Londrina não aparecem, de maneira específica, saberes relacionados às relações
de gênero. Mas é possível encontrar algumas descrições no documento referente a prática
ressignificação dos saberes, a constante transformação social, podendo estar implícito as
relações de gênero. Assim o documento traz trechos tratam da adequação do professor
mediante as transformações sociais, e que sua ação enquanto professor é conseguir mediar
essas transformações.

O professor ao pensar sua disciplina terá de considerar as transformações de


natureza sociais e econômicas de grande transcendência que estão em
andamento nas sociedades, a existência de uma nova ordem mundial,
globalização, e que estas interferem de forma decisiva na construção das
práticas sociais cotidianas que se estabelecem no país, na Universidade, na
Escola, na Educação Física, no Esporte, no Lazer, nas Lutas, na Ginástica,
nos Jogos e na Dança. Nesta linha de compreensão, fica claro que as
concepções de mundo que tendem a justificar as transformações das
realidades sociais estão passando por profundas mudanças e que diante
destas condições a Educação, e fundamentalmente, os Cursos de
Licenciatura, deverão considerar os efeitos desta nova ordem no momento de
elaborar seus projetos pedagógicos (PROJETO PEDAGÓGICO CURSO DE
EDUCAÇÃO FÍSICA – LICENCIATURA – UEL, 2002, p.9).

Portanto acredito que temas e conteúdos de ensino relativos as relações de gênero,


diversidade sociocultural e minorias devam estar presentes de forma mais específica no curso
de Educação Física - licenciatura -da UEL, pois se tratam de formas de organização da
sociedade que se estabelecem na escola, e em outros âmbitos. A relevância de se tematizar
gênero se faz necessária com vistas à desconstrução das discriminações presentes na
sociedade e evidenciar a liberdade de escolha dos estudantes subsidiando-os com
conhecimentos necessários para compreenderem as múltiplas diferenças que existem entre as
pessoas e respeitá-las independente da origem dessas diferenças.
O discurso normativo de submissão da mulher e oposição entre homens e mulheres
provocou (e ainda provoca) ao longo de nossa história o reforço por meio de sua repetição e
circularidade nos grupos sociais, inclusive nas escolas. As relações de poder se mantêm
porque tanto os dominadores como os dominados “aceitam” as versões da realidade social que

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negam a existência de desigualdades, que afirmam ser estas desigualdades resultantes de


desgraça pessoal ou da injustiça social. Esta aceitação é construída através dos mecanismos de
socialização, da força da ideologia, das crenças religiosas, entre outros. Entretanto, o que
defendemos é que a noção e a prática da igualdade de gênero se estabeleçam – inclusive no
âmbito escolar – sobre as mais diferentes práticas e esferas sociais.
Segundo o Caderno SECAD (HENRIQUES, 2007), a escola torna-se uma referência
para o reconhecimento, respeito, acolhimento, diálogo e convívio com a diversidade, pois é
vista como espaço de construção de conhecimento e de desenvolvimento do espírito crítico,
onde se formam sujeitos, corpos e identidades. A escola é um local de questionamento das
relações de poder e de análise dos processos sociais de produção de diferenças e de sua
tradução em desigualdades, opressão e sofrimento.
Para tanto se faz necessário que os professores de Educação Física da UEL – e
professores das mais variadas áreas de saber - sejam formados inicialmente e
continuadamente sobre os temas relacionados as questões de gênero, diversidade sociocultural
e minorias sociais. Entretanto, para que na formação inicial sejam tratados os temas aqui
apresentados é preciso que os docentes dos cursos de formação de professores se apropriem
desses conhecimentos para o ensino em suas aulas.

Considerações Finais

O gênero, na educação formalizada, é uma das inúmeras maneiras de lutar para a


mudança no quadro de violência, preconceitos e estigmatização. Os estudos de gênero têm
entre os principais objetivos destacar a diversidade das pessoas. Busca-se “desnaturalizar” as
diferenças de gênero, indicando para o modo como elas são culturalmente construídas e
enfatizando o fato de que fazem parte dos interesses e processos sociais de dominação e
exclusão, isto é, dos mecanismos presentes nas relações de poder que permeiam o conjunto
das relações sociais.
Conforme Araújo (2015) é função da educação institucionalizada cumprir sua parte
na incorporação de novas representações ou na transformação daquelas existentes à
linguagem e à memória coletiva. Nossos estudantes nos mais diferentes níveis de ensino,
inclusive na formação inicial do curso de Educação Física – licenciatura, ainda reproduzem
papéis historicamente binarizados na sociedade em função do gênero masculino e feminino. É
preciso que a formação de professores para práticas pedagógicas relacionadas ao respeito a

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diversidade e a supressão de marcadores sociais que violentam as pessoas e lhe expropriam a


subjetividade negando aquilo que lhe caracteriza como sujeito.
Algumas das ações para inserção dos temas referentes às diversidades e ao gênero
nos cursos superiores de formação de professores tem sido a criação de grupos e núcleos de
pesquisas que discutem as temáticas de gênero, sexualidade, diversidade sexual, raça e etnia
por docentes das universidades. Ainda assim, as disciplinas que têm sido oferecidas, em sua
maioria não integram os currículos formais dos cursos de graduação voltados à formação
docente.
Portanto é notório que tratar dos temas referentes às diversidades e ao tema gênero,
em específico, ainda está distante das necessidades apresentadas socialmente. Ensinar a sobre
as relações de gênero na formação inicial de professores não se torna um processo simples,
pois implica em questões que permeiam vieses ideológicos, políticos e sociais.

Referências

ARAÚJO, K. de T. Representações sociais de estudantes do ensino médio sobre a prática


do futebol por mulheres: intersecções entre gênero, corpo e sexualidade. Tese (Doutorado
em Educação) - Universidade Estadual de Maringá – Maringá: UEM, 2015.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. – Rio de Janeiro, RJ,
2008.

ESTRAMIANA, José Luis ; Rodríguez, M. . El proceso social migratorio; un acercamiento


psicosocial desde la teoría de los valores culturales. Psicología, Conocimiento y Sociedad ,
v. 1, p. 1-24, 2010.

FIGUEIREDO, Z. C. C. Formação docente em Educação Física: experiências sociais e


relação com o saber. Movimento, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 89-111, janeiro/abril de 2004.

FRANÇA, Fabiane Freire. Os estudos de gênero na Educação Básica: intervenção


pedagógica na formação docente. – Curitiba, PR: CRV, 2016.

Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em Gênero, orientação Sexual e


Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. versão 2009. Rio de Janeiro: CEPESC;
Brasília: SPM, 2009. (Apostila)

HENRIQUES, Ricardo; et.al. Gênero e Diversidade Sexual na Escola: reconhecer


diferenças e superar preconceitos. Brasília, maio de 2007. Secad/MEC (Caderno)

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

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LOURO, Guacira Lopes. O currículo e as diferenças sexuais e de gênero. In: COSTA, M. V.


(Org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

PROJETO Pedagógico Curso de Educação Física Licenciatura – Universidade Estadual de


Londrina. UEL, 2002.

SCOTT J.W. Gender and the politics of history (Revised edition). New York: Columbia
University Press; 1999
SEMINÁRIO de Educação em Sexualidade e Relações de Gênero na Formação Inicial
Docente no Ensino Superior. Relatório final. Brasília, DF: 2014. Publicado em 2014 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1081 1090


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Estudar, refletir e re-construir: a trajetória de um grupo de estudos na educação básica

Cláudia Alves dos Santos1


Letícia Strossi de Oliveira2

Resumo:
Os projetos de ensino desenvolvidos no Instituto Federal Farroupilha são mais uma das
possibilidades de ampliar as vivências dos seus discentes, visto que trabalha temáticas que
vão além das questões já problematizas nos projetos pedagógicos dos cursos. Os projetos
desenvolvidos no campus Santo Augusto –RS foram resultantes de demandas estudantis a
partir das aulas de Geografia no ano de 2016 e 2017. Em seu primeiro ano de estudos o
projeto foi intitulado “A situação das mulheres na contemporaneidade: reflexões entre
discentes e docentes no IFFarroupilha”, cujo objetivo foi o de analisar e refletir a situação das
mulheres na sociedade atual. A partir dessas análises, houve a conclusão da pouca presença de
mulheres em cargos eletivos nos municípios de origem dos/das estudantes e no Brasil,
portanto esta constatação levou há uma preocupação relacionada ao desenvolvimento de
políticas públicas que combatam a violência e as desigualdades entre os gêneros. O grupo de
estudos, assim, no de 2017, buscou estudar a presença das mulheres na política brasileira com
um enfoque à região noroeste do Rio Grande do Sul, tendo como objetivo propor uma
conscientização-participação dos/das estudantes no processo político brasileiro. Os
referenciais teóricos dos projetos envolveram os estudos de FREIRE (1980,1987 e 1996),
(VELEDA (2013) COLLING (2015), SANTOS (1987), LEON (1997), BATLIWALA (1997)
e SARDENBERG (2006).
Para realizar esses estudos foram trabalhados os movimentos e as movimentações das
mulheres destacando os direitos universais, a violência contra a mulher, as desigualdades na
divisão do trabalho, os diversos empoderamentos femininos e a presença das mulheres em
cargos eletivos. Estes temas foram abordados em diversas escalas geográficas (global,
nacional, regional e local) através de filmes, documentários, notícias jornalísticas e artigos
acadêmicos. A partir das reflexões e aprendizados no decorrer do projeto, houve intervenções
internas no Campus Santo Augusto, apresentações artísticas e palestras com a comunidade
acadêmica do campus, e também comunidade externa, entre outras atividades. Por fim, vale
destacar o crescimento pessoal de todos os participantes do grupo enquanto seres humanos
empáticos à problemática das mulheres no mundo e, em especial, no Brasil.

Palavras-chaves: grupo de estudos, ensino, gênero.

1
Instituto Federal Farroupilha; Professora; claudia.santos@iffarroupilha.edu.br
2
Instituto Federal Farroupilha; Técnica em Agropecuária; strossileticia@gmail.com

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Introdução

O Instituto Federal Farroupilha em suas diversas ações e programas apresentam


como mais uma possibilidade de ampliar as vivências dos seus discentes os projetos de
ensino. Esses projetos, construídos por servidoras e servidores do instituto devem envolver
apenas os discentes da instituição e buscar trabalhar temáticas que vão além das questões já
problematizas nos projetos pedagógicos dos cursos técnicos integrados. No ano de 2016, a
partir de uma demanda estudantil, foi proposto um grupo de estudos, para estudantes do
ensino médio técnico integrado do campus Santo Augusto, cujo objetivo foi o de analisar e
refletir a situação das mulheres na contemporaneidade. Os estudos empreendidos no grupo
foram desenvolvidos nos anos de 2016 e 2017 e permitiram aprofundar discussões
relacionadas à questão da violência contra a mulher, o re-conhecimento dos movimentos e das
movimentações das mulheres na história da humanidade, a importância da ferramenta
metodológica-conceitual do empoderamento feminino e reflexões sobre a presença da mulher
em cargos eletivos. O conceito de empoderamento foi trabalhado e analisado a partir das discussões
propostas por (LEON (1997), BATLIWALA (1997) e SARDENBERG (2006). Nestes textos a
questão do empoderamento é apresentada como uma ferramenta metodológica contextual e pensada
sempre de forma coletiva e não individual como alguns agentes econômicos tendem a propor. Algo
considerado pelas autoras como cooptação de um elemento importante na luta das mulheres.
No primeiro ano do projeto os referenciais teóricos utilizados para a construção do
projeto envolveram os textos de Susana Maria Veleda de Susana Maria Veleda da Silva
(2013) e o da professora Ana Maria Colling (2015). Os dois textos demonstram a importância
das discussões de gênero se fazerem presentes no âmbito educacional, pois como afirma
COLLING (2015):
(...) A escola, a universidade, não pode virar às costas a estas lutas e movimentos
sociais que teimam em se fazer presente. Entendendo os lugares do saber, a escola
em particular, como um lugar de demarcação das relações de poder entre os sexos,
esta poderá se transformar também, em espaços de respeito à diversidade e de
construção de relações igualitárias (p.34)

Esses dois textos, mais as concepções freirianas sobre uma educação


problematizadora e emancipatória, durante um tempo, balizaram as escolhas de materiais para
o grupo. E, além desse arcabouço teórico um livro chamado “ O espaço do cidadão” escrito
por Milton Santos em 1987 foi importante para a construção das discussões no grupo. Nesse
livro, a discussão proposta sobre cidadania é bastante ampliada, pois o autor propõe uma
compreensão do conceito de cidadania no Brasil. Segundo o autor:
Em nenhum país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a
desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e

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concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico


delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das
escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos
elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que
superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se
despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei
superior, porque é o instrumento da buscada ascensão social. Em lugar de cidadão
formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário.

Essa discussão sobre cidadania no Brasil é importante, pois é preciso compreender a


dificuldade dos grupos considerados “minorias” no processo de garantia de seus direitos, ou
seja, de construções de cidadanias. Logo, um projeto proposto na educação básica, cujo tema
tem como elemento norteador reflexões sobre a situação das mulheres em diversas escalas
geográficas pode vir a contribuir para um processo de novas cidadanias no nosso país.

Metodologia
O projeto, em forma de grupo de estudos, foi desenvolvido a partir de encontros
presenciais e a distância entre a professora coordenadora, professores colaboradores e os
estudantes do ensino médio técnico integrado. Nesses momentos, foram trabalhados os
movimentos e as movimentações das mulheres destacando os direitos universais, a violência
contra a mulher, as desigualdades na divisão do trabalho, os diversos empoderamentos
femininos e a presença das mulheres em cargos eletivos. Estes temas foram abordados em
diversas escalas geográficas (global, nacional, regional e local) através de filmes,
documentários, notícias jornalísticas e artigos acadêmicos. Houve a criação de uma página no
facebook para a interação dos participantes e postagem de materiais para embasamento nos
encontros presenciais, bem como a presença de duas bolsistas (uma no ano de 2016 e a outra
no ano de 2017) responsáveis por catalogar dados, pesquisar artigos e descrever as atividades.
Importante destacar que no ano de 2017 houve a opção por trabalhar apenas com a temática
relacionada à presença da mulher na política, pois a partir dos resultados do ano anterior o
grupo percebeu que muitas demandas das mulheres só seriam resolvidas no âmbito da
política, como por exemplo, a questão da legalização do aborto no Brasil que ainda é um tabu
para a nossa sociedade.

Resultados
Partindo-se do pressuposto que se faz necessário reconhecer os movimentos e as
movimentações históricas das lutas das mulheres pelo reconhecimento de suas cidadanias o
grupo começou os seus estudos a partir da exibição de um filme intitulado “ As sufragistas”.

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Mesmo reconhecendo que o filme não abrange todas as nuances de uma discussão mais ampla
sobre o direito ao voto no mundo, julgou-se como um material interessante para iniciar as
discussões. Naquela sessão-debate foi importante perceber que a maioria dos e das estudantes
não sabia sobre aquela movimentação na história de luta das mulheres. E, após, a exibição do
filme, foi sugerido ao grupo a leitura do texto “ Feminismo, História e Poder” da professora
Celi Pinto3. O grupo reconheceu, inicialmente, uma certa dificuldade na leitura do texto,
porém, este propôs várias discussões e construções de várias intervenções na escola, ao ponto
de no ano de 2017 o grupo trabalhar apenas com a temática da presença da mulher na política.
Um dos exemplos de como esse texto apresentava discussões presentes no cotidiano
do grupo foi a proposta de uma das estudantes de apresentar dados e reflexões sobre “A
legalização do aborto”. Esse tema bastante polêmica para elas e eles se fez necessário repetir
no ano de 2017 quando se propôs discutir a presença da mulher na política. Percebíamos
durante a construção do grupo que essa discussão era quase um tabu e que existia muita
discordância, principalmente entre as meninas mais religiosas.
Além dessas discussões, foi trabalhado uma crônica do Duvuvier “ É menina” e a
exibição do documentário “It’s a Girl”. Este documentário sensibilizou bastante o grupo e a
ideia foi promover reflexões acerca da situação das mulheres em outros lugares no mundo. O
documentário em si propõe uma reflexão muito impactante sobre o direito à vida das
mulheres chinesas e indianas, mas a questão que a coordenadora pensou para dar continuidade
às discussões foi: e no Brasil como se desenrolou a questão da cidadania da mulher brasileira?
Assim, foi sugerido a leitura do texto de Tânia Maria dos Santos sobre “A mulher nas
constituições brasileiras” e a coordenadora construiu uma aula expositiva sobre o tema.
O grupo também discutiu os limites do contexto social dos/nos lugares sobre certas
discussões através do filme “O Sorriso de Monalisa”. Este filme apresentou que nem sempre
as nossas discussões trariam rebatimentos reflexivos, mas poderia existir, inclusive, algumas
proibições de nossas ações.
Após, a essa temática, foi ensinado ao grupo como pesquisar as leis do nosso país no
site do planalto.gov, e, assim, o grupo leu a Lei Maria da Penha, assistiu um mini
documentário sobre a vida dela e propôs que estava “na hora de aparecer na escola”. O grupo
que ficava apenas funcionando dentro de uma sala, a partir de agosto de 2016, começou a
aparecer através de intervenções provocativas e informativas na/para a escola.

3
O texto é dividido em duas partes: a primeira parte a autora propõe um histórico das lutas das mulheres no
mundo e no Brasil e a segunda parte demonstra a importância da mulher na política.

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A partir de uma reflexão em forma de comparação histórica dos machismos


cotidianos e situações que ocorreram no campus viu-se a necessidade de fazer algumas
intervenções no campus Santo Augusto. A escolha, inicial, se deu através de uma ação que foi
denominada “cantinhos dos machismos cotidianos”. Nestes “cantinhos” foi apresentado falas/
questões cotidianas presentes em dois cursos do campus. O primeiro teve relação com o
preconceito sofrido pelas estudantes do curso técnico em agropecuária, o qual foi relatado por
uma das participantes do projeto que cursava este curso. Segundo Letícia Strossi, o
questionamento do seu colega “ Se mulher não aguenta nem um saco de adubo por que quer
direitos? era indignante. O grupo pensou numa resposta e construiu a primeira reflexão para o
curso. A pergunta do estudante foi colocada e logo abaixo respondíamos com uma nova
pergunta: “Querido, para que serve a tecnologia?” com um carrinho de mão e um saco de
adubo dentro, como pode ser observado na figura 01. O segundo “cantinho” foi realizado com
base em um ditado sexista e presente no curso técnico em alimentos, pois neste há uma
presença de muitas meninas nas salas de aulas, logo há uma relação direta que diz: “o lugar da
mulher é na cozinha”4, porém respondemos que “Não! É onde ela quiser”, como pode ser
observado na figura 02. E a última intervenção “provocativa-reflexiva” na escola foi a
produção de um painel com fotos das participantes com seus namorados, famílias, amigos,
com o objetivo de romper com a ideia propagada, pelo senso comum, que feministas são
sozinhas e mal-amadas, como pode se observar na figura 3.
O projeto começou a ganhar destaque na escola e outras professoras envolvidas
indiretamente no projeto fizeram elos com outras escolas da região e, a partir disso, o grupo
foi convidado por duas escolas para apresentações de resultados parciais. A primeira foi em
uma escola de Campo Novo e os discentes fizeram uma encenação sobre alguns dados
catalogados durante os encontros, como: “Brasil tem 5,5 milhões de crianças sem pai no
registro” e “Um terço dos brasileiros culpa mulheres por estupros sofridos”, entre outros, além
disso, a professora fez uma apresentação teórica das pesquisas realizadas dentro do grupo, e
ao final cada estudante fazia o relato de como o grupo promovia reflexões em sua vida ( ver
figura 4). Já, a outra intervenção extraescolar foi realizada em Santo Augusto, com o público
da educação infantil, sobre a temática da consciência negra envolvendo as questões das
mulheres negras.

4
Esse foi cantinho foi interessante porque muitas trabalhadoras terceirizadas da limpeza vieram conversar com
a coordenadora e diziam o quão era importante era destacar que estamos em todos os lugares.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1095


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Figura 04. Apresentação em Campo Novo


Figura 03. Painel

Para finalizar o primeiro ano de estudos foi realizada uma apresentação para todos e
todas do campus, no dia 8 de março de 2017. Nessa apresentação, houve uma encenação
musical apresentada pelas estudantes ao som da música Triste, Louca ou Má –da banda
Francisco El Hombre (ver figura 5) e, logo, após a coordenadora ministrou uma palestra sobre
as lutas feministas, conceitos relacionados ao empoderamento feminino e as pesquisas
realizadas pelo grupo no decorrer do ano.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1096


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A partir dos conhecimentos adquiridos pelos membros do grupo no primeiro ano do


projeto, pôde-se concluir a falta de representatividade feminina nos espaços de poder,
especificamente em cargos eletivos e, dessa forma, surgiram questionamentos dos mesmos,
sobre: quem são as representantes na nossa região, mais especificamente, dos nossos
municípios? Quais são os posicionamentos dessas mulheres no poder frente às demandas dos
direitos relacionados às mulheres? Quais são os seus projetos? As leis 12.034, DE 29 DE
SETEMBRO DE 2009 e Nº 9.096, DE 19 DE SETEMBRO DE 1995 estão sendo respeitadas
pelos partidos políticos nestes municípios? A partir dessa problemática e dos
questionamentos, viu-se a necessidade de dar continuidade ao projeto, e, assim, no ano de
2017 o projeto continuou, mesmo com um número reduzido de participantes, estudando a
temática: "Pesquisando e refletindo sobre as mulheres na política brasileira: um enfoque à
região noroeste do RS".5
Os procedimentos de estudos e reflexões propostos pelo novo projeto envolveram a
realização de entrevistas por discentes com as vereadoras de suas respectivas cidades, escutas
coletivas dessas entrevistas e a catalogação de dados presentes no site do TSE. Além disso o
grupo continuou a ler notícias jornalísticas, artigos acadêmicos, cines debates, ou seja, a
continuidade dos mesmos procedimentos do projeto anterior.
Os estudantes obtiveram conscientização-participação no processo político brasileiro,
pois declararam ao final do projeto que antes dessas pesquisas não tinham conhecimento da
atuação das mulheres na política e nem como funcionava os processos eleitorais e as escalas
de poder, também houve uma reflexão sobre a posição e atuação da mulher na política

5
As saídas de algumas estudantes foram relacionadas às proibições familiares, pois duas famílias foram contra
os estudos realizados no grupo e as outras relacionadas à entrada de estudantes no 3ºano e terem direcionado
seus tempos para o estudo de vestibulares.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1097


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brasileira e o entendimento da importância de ocupar os espaços de poder. Um exemplo


prático dessas discussões, foi o depoimento de uma das participantes, a qual destacou a sua
mudança a partir do grupo, pois sua família sempre colocava a política como um lugar “feio,
sujo e corrupto”. Porém, não só ela, mas todxs aprenderam sobre a relação entre a política e a
nossa vida cotidiana e que é preciso ocupar os espaços possíveis políticos. Para tanto, essa
mesma participante que não sabia, segundo ela, “nada de política” entendeu a importância das
discussões e assumiu um dos espaços possíveis de representação: a liderança de sua turma.
No ano de 2017 o grupo recebeu um convite para participar do Seminário de
Educação, Diversidade e Inclusão no Instituto Federal Farroupilha no campus São Vicente do
Sul e apresentou a encenação musical novamente da música “Triste, Louca ou Má” com
algumas novas coreografias, bem como participou das palestras. Também, neste mesmo ano,
o grupo foi convidado para participar de duas sessões-debates de um projeto institucional
chamado “Cinema nacional no campus” e os filmes debatidos foram “A que horas ela volta” e
“Elis”. Por fim, o grupo assumiu uma demanda institucional relacionado a uma parceria
estabelecida pelo Instituto Federal Farroupilha e um projeto da ONU intitulado“He for She”.
Todos os campis deveriam propor um momento de debate e reflexão sobre a situação das
mulheres no mundo. O grupo optou por discutir a temática da masculinidade e, dessa vez, o
grupo ganhou novos participantes para a apresentação e o retorno de algumas (ver figura 06).
Nessa ocasião, houve uma encenação da música “Do outro lado” da banda “Los Hermanos” e,
após, a essa apresentação, a professora Cláudia ministrou uma palestra de como o machismo
afeta também os homens. Durante a palestra observou-se grande participação dos
participantes com os demais estudantes do campus, houve enfrentamentos bastante polêmicos,
porém, os argumentos- respostas dos participantes foram muito bem construídos.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1098


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Figura 06. Apresentação no He for She

Também é preciso destacar que durante os dois anos de realização dos estudos
ocorreram “atos de resistência” por parte dos participantes e de estudantes “simpatizantes” da
causa dentro do campus Santo Augusto, desse modo, podemos concluir que houve uma
expansão do objetivo do projeto, pois resistir e lutar por um mundo menos preconceituoso
para todas, todos e todes se deu de forma coletiva na escola.
Por fim, como forma de encerramento do projeto, houve a apresentação dos
resultados dos estudos no ano de 2018 sobre a temática da mulher na política. Para tanto, uma
estudante (não participante do projeto) se propôs a cantar “O bêbado e o equilibrista” para
abrir a palestra “Mulheres na política: um lugar polêmico”, proferida pela coordenadora do
grupo e a bolsista Letícia Strossi, e, ao fim, cada participante deu seu depoimento sobre sua
experiência no grupo.

Conclusão: Não é porque somos de cidades pequenas é que precisamos ter mentes
pequenas!
Durante os dois anos do projeto o grupo foi se constituído como uma referência e
resistência dentro campus Santo Augusto no Instituto Federal Farroupilha, pois é sabido que a
escola não é um espaço distante do contexto social. E, infelizmente, o nosso país apresenta
dados alarmantes de assassinatos relacionados às mulheres e outros grupos minoritários. Bem,
como vem vivenciado um período bastante conservador com alusões a um movimento
chamado “Escola sem partido”, que surge em 2004, mas que ganha destaque nos anos de

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1099


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2014-2015. Portanto, Santo Augusto, um município do Rio Grande do Sul, não estaria
descolado dessa realidade, logo os conflitos inerentes ao projeto de ensino construído, ao
mesmo tempo que ganhava força, também era visto com desconfiança por professores(as) e
alguns pais.
Durante os dois anos de desenvolvimento do projeto foi notável o amadurecimento
dos participantes, incluindo, também, a coordenadora professora e os ganhos que foram além
das discussões. Oxs estudantes envolvidos durante o processo aprenderam novas formas de
estudar e no princípio de seleção de dados as reflexões eram mais apuradas e cuidadosas. No
início do grupo elxs pouco se posicionavam, pouco faziam propostas, porém já no segundo
ano coordenavam e modificavam os encontros. Ao ponto de no ano de 2018, uma das
bolsistas organizar e coordenar a palestra juntamente com a professora para todes os
estudantes do campus. Também é preciso citar que durante o ano de 2017 duas estudantes
organizaram uma intervenção, em uma das turmas do curso técnico em informática, devido a
um caso de memes sexistas e machistas que ocorreu na sala. Como a questão foi vista como
uma brincadeira entre os estudantes o grupo fez uma proposta à coordenação do curso:
realizar uma atividade reflexiva sobre a discussão dos memes na nossa sociedade. Acredita-se
que a fase da adolescência é uma fase de construções, portanto ao invés de usarmos de
recursos tradicionais como advertências, suspensões, foi proposto uma intervenção
informativa-reflexiva.
No processo de finalização do projeto uma das falas mais marcantes foi a da
estudante Letícia Strossi quando ao explicar a importância do projeto e, principalmente, das
discussões relacionadas à presença das mulheres na política, ela deixa bem claro que podemos
viver em cidades pequenas, porém não precisamos ter “mentes pequenas”. Esclarece que não
necessariamente precisamos nos envolver com partidos políticos, mas que devemos,
principalmente aqueles que defendem mundos menos desiguais, ocupar os espaços de
representação como, por exemplo, as lideranças estudantis.
Ficou claro que ao final do projeto o conceito proposto por Leon (2001) sobre o
empoderamento foi construído no grupo “ empoderarse significa que las personas adquieren
el control de sus vidas, logran la habilidad de hacer cosas y de definir sus propias agendas”
(p.94 e 95). E que toda a construção não se deu no campo do individual, mas nos processos
coletivos de construções entre os participantes do grupo e a escola.
Muitos dos resultados jamais poderemos saber com nitidez e clareza, pois os
rebatimentos e reflexões não transpareceram no percurso do projeto. Mas, as necessidades de
discussões relacionadas às questões de gênero são latentes e importantes na educação básica.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1100


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É imprescindível que cada vez mais os trabalhadorxs da educação compreendam as diversas


nuances presentes na escola para que esta realmente deixe de ser reprodutora de “status quos”
e produzam uma educação emancipadora e problematizadora. Ou seja, podemos viver em
cidades minúsculas, podemos ter pouco dinheiro, mas jamais devemos viver a pobreza das
ideias e das reflexões.

Referências
BATLIWALA,Srilatha. El significado delempoderamiento de lasmujeres: nuevos conceptos
desde laacción. In: Poder y empoderamiento de lasmujeres. T/M Editores, Santa Fe de
Bogotá, 1997.p. 187-211.
COLLING, Ana Maria. Inquietações sobre educação e gênero. In: Revista Trilhas da
História. Três Lagoas, v.4, nº8 jan-jun, 2015.p.33-48.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Moraes, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
LEON, Magda.Poder y empoderamiento de lasmujeres. T/M Editores, Santa Fe de Bogotá,
1997.
SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Ed. Nobel, 1987.
SILVA, Susana Maria Veleda da. A contribuição dos estudos de gênero para a compreensão
da geografia do trabalho: uma pauta para discussão. Revista Latinoamericana de Geografia
e Gênero, v. 4, p. 106-117, 2013.
SARDERBENG, Cecília. Conceituando “Empoderamento” na Perspectiva Feminista. IN: I
Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres – Projeto TEMPO, 2009.
Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6848/1/Conceituando%20Empoderamento%
20na%20Perspectiva%20Feminista.pdf>. Acesso em: 15.06.2016.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1091 1101


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Perspectivas de futuro sob uma ótica de gênero entre beneficiários/as do Bolsa Família
no ensino médio
Luís Gabriel Ramiro Costa1
Silvana Mariano2

Resumo: O Programa Bolsa Família, criado em 2003, tem como propósito combater a pobreza
e reduzir a desigualdade social. Para tanto, opera com objetivos para o alívio imediato da
pobreza, a curto prazo, com transferência de renda às famílias, e, a longo prazo, com o estímulo
ao acesso a serviços públicos via condicionalidades, visando, com isto, a quebra do ciclo
intergeracional da pobreza. Os/as jovens de 16 a 17 anos foram incluídos como público
beneficiário do Programa em 2007, a fim de diminuir o abandono e evasão escolares,
oferecendo maiores oportunidades com acesso à educação. Muito se discute a relação entre
juventude e educação no Brasil, destacando problemas como distorção idade-série, desinteresse
e evasão. Por outro lado, estudos sobre gênero e educação, bem como sobre mulher e ciência,
exploram a questão sobre as interferências dos padrões sociais de gênero nas vivências e nos
percursos escolares de estudantes, de acordo com o sexo. O objetivo deste trabalho é
sistematizar as principais contribuições desses estudos, com vistas ao propósito, a posteriori,
de discutir as possíveis influências dos padrões sociais de gênero na configuração das
expectativas de futuro de jovens beneficiários do Programa Bolsa Família frequentando o
ensino médio regular.
Palavras chave: Programa Bolsa família; Educação; Gênero.

1
Universidade Estadual de Londrina; 7º semestre da graduação em Ciências Sociais; luis-gabriel47@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Sociologia; Professora do Departamento de Ciências Sociais e
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia; silvanamariano@yahoo.com.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1102 1102


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Introdução
A quantidade de matrículas no ensino médio nas escolas brasileiras se distribui com
vantagem numérica para as mulheres, sendo 4.117.158 de matrículas delas, diante de 3.813.226
de matrículas de pessoas do sexo masculino (INEP, 2018). Acrescenta-se, ainda, o fator de que
as mulheres com idade entre 15 e 17 anos têm menor taxa de distorção idade-série (série
conforme a idade), em comparação com os homens, sendo, respectivamente, 21% a 31,6%. Isso
se distribui também por cor, sendo que estudantes pretos e pardos (31,4%) têm uma maior
distorção do que brancos (18,9%) (IBGE, 2015). Verifica-se que o acesso à educação brasileira
aumentou significativamente em todos os níveis, porém, persistem problemas relativos às
desigualdades como as de raça, renda, gênero e região geográfica.
Nas últimas décadas, as políticas educacionais de acesso à educação reduziram
significativamente a evasão escolar e, neste caso, pode-se apontar também as contribuições do
Programa Bolsa família (PBF). Seu desenho, com focalização nas famílias em situação de
pobreza, supõe que as condicionalidades em educação, saúde e assistência social resultam na
promoção de condições necessárias para a chamada quebra do ciclo intergeracional da pobreza.
Deste modo, espera-se que as novas gerações terão melhores oportunidades que as anteriores,
principalmente pela via da educação (BRASIL, 2010).
Neste artigo, optamos por discutir a juventude3 como recurso conceitual para estudos
com jovens beneficiários/as do PBF em idade de ensino médio (15 a 17 anos). O propósito é
constituir um referencial teórico a partir do qual conduziremos, a posteriori, as análises dos
materiais empíricos já produzidos e em fase de organização.

Procedimentos metodológicos

Este trabalho, ao colocar como objetivo sistematizar os estudos sobre nosso tema, tem
como base a abordagem qualitativa. Em uma pesquisa qualitativa,
o pesquisador utiliza os insights e as informações provenientes da literatura enquanto
conhecimento sobre o contexto, utilizando-se dele para verificar afirmações e
observações a respeito de seu tema de pesquisa naqueles contextos. Ou o pesquisador
utiliza-o para compreender as diferenças em seu estudo antes e depois do processo
inicial de descoberta (FLICK, 2009, p.62).

3
Juventude é entendida por seu recorte etário composto por jovens de 15 a 29 anos, conforme estabelece o Estatuto
de Juventude (BRASIL, 2013). Esta faixa etária inclui a juventude presente no ensino médio, notadamente em
idade de 15 a 17 anos.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1102 1103


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Este trabalho envolve pensar a condição de beneficiários/as do Programa Bolsa


Família na educação e analisar as consequências das políticas públicas no cotidiano escolar
(BRANDÃO; DALT, 2013. Por outro lado, ao pensar na posição social, pretendemos analisar
como são os comportamentos de meninas e meninos nesse espaço (CARVALHO, 2004),
captando as desigualdades que aí se manifestam. Temos aqui a sistematização de estudos que
se utilizam do cotidiano escolar para pensar as relações nesse espaço.
Para entendermos a perspectiva de beneficiários/as do PBF na educação, recorremos
ao estudo microssociológico, a fim de evidenciar no cotidiano escolar a heterogeneidade de
práticas e interações dos sujeitos.
Um ponto importante neste processo é a passagem do macro para o micro (LAHIRE,
1997), passando de dados sobre a condição de beneficiários/as, orientados por informações
quantitativas na educação e entrevistando estudantes no cotidiano escolar. Temos, portanto,
uma combinação de métodos. Em conformidade com Flick (2009, p. 39),
A pesquisa qualitativa pode apoiar a pesquisa quantitativa e vice-versa,
sendo ambas combinadas visando a fornecer um quadro mais geral da questão em
estudo. Os aspectos estruturais são analisados com métodos quantitativos, e os
aspectos processuais analisados com o uso de abordagens qualitativas.

Termos sociológicos como origem social, meio social e grupo social estão
relacionados a causas gerais que a estatística utiliza para explicar o sucesso e o fracasso escolar
(LAHIRE, 1997). Essa concepção é salientada na pesquisa por Brandão (2000) quanto ao
cruzamento de dados e informações estatísticas.
Uma outra preocupação constante diz respeito aos instrumentos utilizados em
conformidade com o objeto de pesquisa. No caso do questionário, a função é “coletar gosto,
estilo de vida, costumes culturais e outros” (BRANDÃO, 2000). Os dados assim construídos
auxiliaram na elaboração do roteiro da entrevista qualitativa.
São nestes moldes que tomamos como caminho a realização da pesquisa com jovens
beneficiários/as do PBF na educação, selecionando instrumentos para entender suas estratégias
para o prolongamento da escolarização. Para a construção dos dados, a serem analisados em
outra oportunidade, fizemos uso de informações sobre as condicionalidades em educação,
produzidas por órgãos oficiais, bem como realizamos a aplicação de questionário e entrevistas
narrativas com estudantes no cotidiano escolar.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1102 1104


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Futuro, juventude e pobreza

Os jovens em idade de ensino médio, frequentando estabelecimentos de ensino da rede


pública, vivenciam contextos heterogêneos em termos sociais, culturais e econômicos, contexto
esse marcado pelas desigualdades de sexo, raça e renda, entre outras, e pelas incertezas
produzidas por essas mesmas desigualdades. Tal cenário produz situações de desemprego e de
pobreza e cria desmotivação escolar. Inúmeros fatores levam a esse processo como, por
exemplo, a desvalorização dos diplomas, a massificação da educação e a mundialização do
capitalismo. Tais condições atingem de forma especial os jovens, diante das incertezas de se
alcançar alguma estabilidade e, com isso, configurando, assim, um contexto de precariedade
(DUBET, 2001).
Motivos assim são discutidos por Dayrell (2007, p.1113-1114) acerca da juventude e
sua relação com a escola no Brasil, em vista das trajetórias individualizantes:
O princípio da incerteza domina o cotidiano dos jovens, que se deparam com
verdadeiras encruzilhadas de vida, nas quais as transições tendem a ser
ziguezagueantes, sem rumo fixo ou predeterminado. Se essa é uma realidade comum
à juventude, no caso dos jovens pobres os desafios são ainda maiores, uma vez que
contam com menos recursos e margens de escolhas, imersos que estão em
constrangimentos estruturais.

Ao apontar para jovens pobres, entramos no tema da relação com a pobreza e damos
atenção à existência de políticas públicas dirigidas a esse público. As políticas públicas para
juventude no Brasil estão fortemente focalizadas em jovens em situação de exclusão social ou
condições de vulnerabilidade. Tais políticas geralmente enfocam a juventude a partir de
concepções que a toma como problema, perigosa e violenta. Nota-se a criação de políticas com
objetivos de retirar os/as jovens da situação de risco e induzi-los a frequentar a escola ou cursos
de capacitação como um meio de para “ocupar” os jovens (SPOSITO; CORROCHANO, 2005).
A proposta de escolarizar a população em situação de pobreza por meio da instituição
de contrapartidas dos benefícios assistenciais, com a exigência de frequência escolar mínima,
está no desenho desses programas utilizados no Brasil desde a década de 1990. Esses programas
seguem ordenamento como o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) e a Constituição de 1988(BRASIL, 2010).
O PBF, criado em 2003, atua para reforçar o acesso de jovens beneficiários/as a esses
direitos, incluindo-os ou mantendo-os na escola, por pressupor que a maior escolaridade
propicia mais acesso a oportunidades (BRASIL, 2004). Nesse caso, as famílias, ao receberem
o benefício e cumprirem as condicionalidades, atuariam no sentido de promover a quebra do
ciclo intergeracional da pobreza. No entanto, existem muitos questionamentos sobre as

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possibilidades para essa quebra4. Pensando em programas e contrapartidas para Juventude em


situação de pobreza, que podem ser relacionados ao PBF, há uma valorização da ação
socioeducativa com a presença de deficiências no ensino no caso da escola que não estaria
formando futuros cidadãos (SPOSITO E CORROCANO, 2005).
Comparando estudantes do ensino fundamental beneficiários do PBF com aqueles que
não são beneficiários, Soares Neto (2015) chegou à conclusão de que 78,20% dos beneficiários
concluem o ensino fundamental aos 16 anos, frente a 88,30% dos não beneficiários/as. A
condição da educação brasileira afeta todos/as no sistema escolar a ponto de as metas do Plano
Nacional de Educação (PNE) não serem cumpridas.

Tabela 1 – Taxa líquida de frequência no ensino médio entre a faixa etária de 15 a 17 anos
em 2013 a partir do censo escolar - Brasil
Situação Frequência
Beneficiários 62,60%
Não beneficiários 78,70%
Meta 85%
Fonte: Elaborado pelo próprio autor adaptado de Soares Neto et. al (2015).

Alguns teóricos se debruçaram sobre essa temática da frequência escolar no ensino


médio, destacando a heterogeneidade produzida com o aumento das matrículas a partir da
década de 1990, o que gerou mudanças no perfil do alunado que chega ao ensino médio. Para
Dayrell (2013, p. 65)
As escolas públicas de ensino médio no Brasil até então eram restritas a jovens das
camadas altas e médias da sociedade, os “herdeiros” segundo Bourdieu (2003), com
uma certa homogeneidade de habilidades, conhecimentos e de projetos de futuro.
Passam então a receber um contingente de alunos cada vez mais heterogêneo,
marcados pelo contexto de uma sociedade desigual, com altos índices de pobreza e
violência, que delimitam os horizontes possíveis de ação dos jovens na sua relação
com a escola (DAYRELL, 2013, p.65).

O projeto de vida, como destaca Leccardi (2005), vincula-se à noção de estratégias de


uso do tempo, envolvendo a avaliação do adiantamento das recompensas, uma vez que o tempo
presente é destinado à preparação para o futuro. Convém lembrar que, ao pensar em projeto, as
escolhas não são resultado de um cálculo matemático (DAYRELL, 2013); e nem podem ser
explicadas pela teoria da escolha racional, em que os atores analisam objetivamente as escolhas
para ensino superior por conta das restrições, imperfeição na qualidade e no uso das

4
Para mais informações sobre a condicionalidade em educação e a quebra do ciclo intergeracional da pobreza, ver
Pires (2013).

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informações, etc. Essa teoria é questionada por Bourdieu com o conceito de habitus5 que está
relacionado à origem. Para estudantes pertencentes às camadas populares sua origem representa
deficiência de capitais, o que produz obstáculos nas trajetórias escolares (NOGUEIRA, 2013).
Para quem anseia o ingresso no ensino superior, as trajetórias escolares ao final do
ensino médio são marcadas por entraves decorrentes das desigualdades e obstáculos na
preparação com vistas a este objetivo. O ato de escolha do ensino superior é resultado de
caraterísticas sociais, perfil acadêmico, etnia, sexo e idade do estudante. Por seu caráter seletivo
e excludente, indivíduos de camadas médias e superiores da sociedade ingressam em cursos
mais prestigiados, enquanto os originários das camadas populares acessam cursos de menor
prestígio, conforme Bourdieu destacava no sistema francês (NOGUEIRA, 2013).
A discussão sobre a juventude na realidade brasileira é feita por Schwartzman (2016)
a respeito das capacidades de planejamento, organização, formulação de estratégias e controle
emocional. As influências das desigualdades escolares em relação à condição no sistema de
ensino fazem muitos alunos, provenientes das camadas populares, se sentirem sem escolhas. A
escolha pelo ensino superior muitas vezes pode ser algo distante, em função da condição do
sistema de ensino. Para esse autor, o ensino técnico6 seria uma alternativa viável, considerando
que nem todos alunos pobres de escola pública consegue uma vaga no ensino superior.
Esses aspectos, vistos por Bourdieu (2007) na França, ocorrem diante das
transformações na estrutura e aumento da escolaridade, o que afeta as competições por diplomas
e cargos e intensifica os processos que garantem a reprodução. A reprodução está relacionada
à origem social, isto é, o lugar de onde o agente vem exerce influência, ou determina, o acesso
a cargos de influência e, com a mudança na distribuição de cargos, os não “herdeiros” acabam
sendo vítimas da desvalorização dos diplomas, recorrendo, assim, às estratégias de curto e longo
prazo na escolarização.
Todavia, em meio a um futuro aberto dos/as sujeitos/as, podemos destacar as
estratégias para enfrentar a mudança, com jovens empenhados, diante das novas relações no
processo de produção e criação pessoal do futuro (LECCARDI, 2005). A despeito dos
obstáculos existentes, a expectativa de que maior escolarização representará melhor inserção

5
Segundo Bourdieu (2007, p.97) é um princípio gerador de práticas, ou seja, ao habitus de classe, como forma
incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe;”
6
Cabe apontar aqui a presença de um debate a respeito do ensino técnico apontado por Bourdieu (2007), diante da
exclusão em massa de crianças das classes populares e médias. No Brasil, ocorre tal opção é vista pela sociedade
como de segunda qualidade, para pobres e operários, e, por isso mesmo, desvalorizada pelos que buscam a
educação como via de ascensão e mobilidade social. Dayrell (2013) aponta que o ensino técnico ou profissional é
pouco citado por jovens em suas pesquisas em virtude de poucas opções existente, além da dificuldade de acesso
a escolas técnicas federais que tem processo seletivo.

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no mundo trabalho é o que motiva as famílias dos segmentos mais pobres a incentivar crianças
e jovens a continuar os estudos.
De acordo com Lahire (1997), os/as sujeitos/as dependem da mobilização familiar em
torno do projeto escolar. Cabe lembrar aqui o que Carvalho, Senkevics e Loges (2016) destacam
sobre a influência da família que acaba diferenciando os papéis sociais de meninos e meninas,
papéis esses reforçados pela escola e pela estrutura social, ilustrando com isso a lógica da
desigualdade multiplicada.
Ao tratarmos das desigualdades que envolvem os/as jovens na sociedade, destacam-se
as desigualdades de gênero e de raça, com forte influência no cotidiano escolar, fenômeno esse
também induzido pela heterogeneidade gerada pela expansão das matrículas no ensino médio.
A teoria de habitus produzida por Bourdieu (2007), apesar de ser importante para parte das
explicações sobre o processo de escolha escolar e a posição do indivíduo no espaço social,
acaba desconsiderando as ações múltiplas individuais em contato com muitas instituições
sociais (NOGUEIRA, 2013).
Lahire (2002;1997) discute os prolongamentos dos estudos entre estudantes das
camadas populares e aponta que Bourdieu desconsidera os atores do jogo, frente ao conceito de
habitus. Por outro lado, não podemos deixar de apontar que as dificuldades estruturais estão
presentes no caso da juventude brasileira.

Gênero, Educação e desigualdades

Ao pensar nas desigualdades, chegamos a um outro ponto que concerne aos estudos
na sociologia da educação, com fortes influências da perspectiva bourdiesiana. Desde quando
Bourdieu e Passeron (1992), na década de 1960, constataram que a escola reproduz
desigualdades sociais, constituíram um paradigma pautado na violência simbólica. Essa
situação refere-se à imposição de um poder cultural das classes dominantes no espaço social
que concentram maior quantidade de capital cultural, adquirido principalmente pela família,
com transmissão desigual. É desigual pelo fato de haver um resultado de que filhos oriundos
das classes populares teriam maiores condições ao fracasso escolar e o sistema escolar
constituiria uma legitimação dessa lógica.
Este debate acerca da escola é muito dissipado para explicar a desigualdade social e
passou a ter um papel importante nas pesquisas realizadas nesse campo. Para entender um
pouco da trajetória da sociologia da educação Carvalho, Senkevics e Loges (2016) apresentam

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que raramente penetraram nas diferenças entre os sexos. Os/as autores/as apontam, com isso,
que a teoria de Bourdieu, ao examinar o processo de escolarização, deixou em aberto as
desigualdades de gênero.
Dubet (2001), por seu turno, pretende ampliar as análises de influência bourdesiana
tratando do fenômeno das desigualdades multiplicadas. Ao refletir sobre a justiça escolar, no
contexto francês, Dubet concede importância às transformações da sociedade, através da
ampliação da igualdade e da homogeneização, o que tem gerado, contraditoriamente,
desigualdades multiplicadas. O paradigma de classe não daria conta de explicar as
desigualdades multiplicadas. Para o autor (2001, p. 10):
A dominação já não se insere nas relações de classes concretas e estáveis. Os
problemas da estratificação e da mobilidade se destacam dos conflitos estruturais e a
análise das desigualdades não conduz a uma visão organizada e estruturada das
relações sociais. Do mesmo modo que as desigualdades são múltiplas, os registros da
dominação não são homogêneos, como deixa claro a teoria dos “capitais” de
Bourdieu.

A educação é um fator sobre o qual Bourdieu (2007) se debruçou e identificou, como


resultado da massificação escolar, a inflação dos diplomas nas décadas de 1960 e 1970, na
França, constatando que os jovens de classes populares são os principais prejudicados, pois são
os recém-chegados. Isto é visto detalhadamente por pensadores contemporâneos como Dubet
(2001), de forma que o sistema escolar, com a massificação, é a representação dessa construção
que beneficia as meninas, com melhores resultados, por outro lado, os rapazes desfrutam de
carreiras mais rentáveis. Além disso, existem também desigualdades étnicas que passam pelo
mesmo processo, identificando a presença da segregação (DUBET, 2001) e que estão
permeadas pela lógica do poder, o que envolve posição social e carreiras, que o sistema escolar
representa.
A temática das desigualdades múltiplas com perspectiva em gênero está na história da
sociedade e são apresentadas em diversas formas. Elas estão articuladas ao mercado de trabalho,
à divisão do trabalho doméstico, à ocupação de cargos e à educação, entre outros, constituídos
pela tradição. A denúncia de tais situações e os esforços para explica-las motivaram os
empreendimentos de teorias que se debruçaram em construir gênero como conceito baseado
nas relações e diferenças entre os sexos, apontando para o significado do poder (SCOTT, 1990).
O poder social visto por Scott (1990), partindo das contribuições de Michael Foucault,
é manifestado por diversas expressões desiguais no interior dos campos de forças, indo além de
uma condição unificada e visando o interior das estruturas. Essa realidade foi analisada
historicamente por Foucault (1988) revelando a função controladora da produção de discursos
científicos acerca da sexualidade. O que Foucault constatou foi uma ciência que passou a

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produzir discursos para o controle da sexualidade, desenvolvendo um saber que exercia o poder
da sociedade sobre o sexo.
Como a ciência tem ligação com o saber, percebe-se a relação com a produção da
verdade, e a educação exerce esse papel através da pedagogia, apontada por Foucault (1988) na
presença de discursos que destacam a produção dessa verdade articulada ao controle. Percebe-
se, ainda, um poder relacionado à questão de gênero na educação quando pensada a realidade
de meninos e meninas na educação. Para Zago e Paixão (2013, p. 451),
o primeiro patamar é a diferença de escolarização entre as pessoas de sexo feminino
e as pessoas de sexo masculino, qual é o acesso das mulheres e dos homens aos
diferentes níveis de escolarização, qual o desempenho a que vêm tendo, em termos de
permanência na escola, de conclusão desses níveis de ensino, aquilo que eu já
coloquei, que as mulheres vêm demonstrando ter uma escolarização mais linear,
menos problemática, menos interrompida, e os rapazes, são os maiores vítimas dos
problemas escolares.

Tendo em vista os aspectos observados, olhamos para a sociedade brasileira. Ao apontar


para a sociologia da educação, poder e gênero, é notória a presença de desigualdades
multiplicadas manifestas no sistema de ensino, principalmente após a década de 1990, com
maior oferta e universalização.
Em estudo qualitativo no cotidiano escolar, Carvalho (2004) identificou que, além de
um repertório de valores que são socialmente construídos da feminilidade e da masculinidade,
existe a questão da negritude e da branquitude que se associa à hierarquia socioeconômica.
Estudo de Zago e Paixão (2013, p. 452) constatou que meninos de camadas populares
percebem a escola como um espaço de restrição e um espaço muito associado à
feminilidade, não só porque você tem uma professora mulher, mas me parece que,
principalmente, porque é uma atividade que exige introspecção, silêncio, obediência
a regras, que são características muito associadas com as feminilidades e não com as
masculinidades, nessas culturas que predominam nos nossos meios populares
urbanos.

Muitos desses meninos, negros, enfrentam dificuldades educacionais, culminando no


fracasso escolar. Tais considerações servem de base para conduzir estudos sobre o cotidiano
escolar e pobreza e que se debruce em discutir os efeitos do Bolsa Família. A esse respeito,
pesquisa realizada por Brandão e Dalt (2013) com entrevistas em alguns estados brasileiros
demonstrou baixo impacto desse programa no desempenho escolar dos beneficiários.
A mobilização dos conhecimentos já produzidos sobre esses temas, por essa literatura,
nos propiciará, em etapa posterior, referenciais e parâmetros para a análise de dados da parte
empírica da nossa pesquisa.

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Relato de experiência: questões de gênero em um estágio de educação física com o


conteúdo futsal

Samira El Adass1
Karina Toledo de Araújo2

Resumo: Este relato de experiência tem como objetivo descrever algumas intervenções sobre
o ensino do conteúdo futsal e as relações de gênero nas aulas de Educação Física em uma
escola no município de Londrina- PR. O trabalho foi realizado durante o estágio
supervisionado no curso de Educação Física - licenciatura, com uma turma de com 30 alunos
entre 8 e 9 anos de idade que estudam no 3º ano do Ensino Fundamental I da Educação
Básica. Foram desenvolvidos quatro planos de aula e as intervenções pedagógicas sobre o
conteúdo Futsal. Todas as aulas tiveram como ponto de partida a discussão sobre a equidade
de direitos e o respeito à diversidade de gênero. Na primeira aula foi proposto que os
estudantes se separassem os times (aletoriamente e de forma livre) e jogassem o futsal; na
segunda intervenção separamos os times e misturamos meninos e meninas, os meninos
resistiram em jogar com as meninas, dizendo que elas eram “ruins” ou “elas não sabem jogar
porque futsal é coisa de menino”. Percebemos nesta experiência manifestações entre os alunos
que permeiam as relações desiguais de gênero baseadas em estereótipos e preconceitos nas
aulas de Educação Física.

Palavras-chave: Futsal. Gênero. Educação Física.

Introdução

A educação no Brasil passou a ser direito efetivo de todos e todas a partir do início
do século XX, no entanto, isto não garante que as pessoas sejam tratadas da mesma forma e
que os direitos à educação seja pautada na equidade e no respeito às diferenças incluindo as
de gênero. Uma maneira de romper com essas desigualdades é inserir na escola a discussão da
temática gênero enquanto conteúdo de ensino e esteja presente nas práticas pedagógicas das
variadas áreas de conhecimento para que assim, seja possível possibilitarmos o entendimento
de todas as nuances que cercam as relações de gênero, abrindo caminho para reduzir as
violências identificadas no cotidiano escolar e na sociedade de maneira geral.
Entre as áreas de saber presente na escola, encontra-se a Educação Física responsável
pelo ensino das práticas corporais. Cabe ressaltar que e estas são geradoras de desigualdades
de gênero. A relevância da discussão da equidade de gênero nas aulas de Educação Física é
fundamental. Segundo Dornelles et al (2013), a equidade de gênero está na condição de

1
Universidade Estadual de Londrina - UEL; Estudante de graduação Educação Física - licenciatura;
sami.eladass@gmail.com
2
Orientadora - Universidade Estadual de Londrina - UEL; Doutora em Educação; karina.araujo@uel.br

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igualdade de direito para os sujeitos, independentemente de sua identidade ser do gênero


feminino ou masculino. Ainda para Dornelles et al (2013), o gênero é como uma categoria
social fundamental para uma análise das práticas corporais na escola.
Outro fator que destaca a importância dos estudos de gênero na Educação Física é
percebermos que “os corpos carregam discursos como parte de seu próprio sangue”
(BUTLER apud PRINS e MEIJER, 2002, p. 163). Os discursos generificam os corpos, ou
seja, “os corpos fazem-se femininos e masculinos na cultura, e essas representações, apesar de
serem sempre transitórias, marcam nossa pele, nossos gestos, nossos músculos, nossa
sensibilidade e nossa movimentação” (GOELLNER, 2005, p. 25). Portanto, cabe à Educação
Física com o seu objeto de estudo e de ensino: o corpo em movimento, descontruir os
estereótipos de gênero e as violências produzidas nas práticas corporais desenvolvidas na
escola.
A partir o exposto acima, este trabalho tem como objetivo descrever quatro aulas de
Educação Física na, realizada no município de Londrina- PR, em que ensinamos o conteúdo
futsal e as relações de gênero.

Metodologia

Este trabalho relato é parte de experiências de intervenção de ensino em uma


pesquisa de ação no campo de estágio supervisionado do curso de Educação Física –
licenciatura da UEL. A pesquisa foi realizada em uma escola municipal de Londrina- PR, em
uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental. A turma tinha 30 alunos, com idades entre 8 e 9
anos. Os conteúdos ensinados foram futsal e relações de gênero, eleitos a partir de uma
conversa com o professor regente, considerando a continuidade do planejamento do ano letivo
já proposto entre o professor e a turma.
Antes de iniciarmos os procedimentos pedagógicos de intervenção, elaboramos
quatro planos de aulas, sobre futsal e gênero, sendo que a cada término de aula foi realizado
um replanejamento para repensarmos as estratégias que utilizaríamos para chegarmos aos
objetivos pretendidos nas próximas aulas.

O futebol e sua prática por mulheres

Araújo (2015) destaca que o futebol é um dos símbolos identitários do Brasil pelo
símbolo cutural que a ele foi atribuído paulatinamente ao longo da nossa história do esporte

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na brasileira. O significado simbólico do futebol influencia a ideia de nação brasileira e é


influenciado por ela; além disso, retrata, em cada período da história do Brasil republicano, as
relações sociais, políticas, econômicas estabelecidas, assim como as finalidades de sua
prática, conforme o momento histórico da sociedade brasileira.

Os esportes, de uma maneira geral, difundiram-se pelo mundo de maneira


extraordinária no último século, configurando novos espaços de
sociabilidade, novas corporalidades e, principalmente, novos territórios de
criação de sentido e significação. Por uma série de razões, que não cabe aqui
recuperar, o futebol é considerado hoje o mais difundido deles. No caso
brasileiro, transformou-se no esporte nacional, inclusive porque – e é sob
este ângulo que me interessa aqui – foi o que reteve a capacidade de
representar o Brasil e os brasileiros em todas as circunstâncias. Do ponto de
vista simbólico, seria uma das nossas principais “zonas livres”, compondo
com uma série de outros aspectos também eleitos como peculiares, um
elenco através dos quais [sic] veiculamos nossas representações coletivas
sobre nós mesmos. [...] Na verdade, uma característica específica dos
esportes na modernidade, assumida com mais freqüência pelo futebol, é o
fato de sua existência como fenômeno social não se esgotar, absolutamente,
na sua prática. [...] O campo de futebol é, assim, também um campo de
debates. [...] Há, portanto, um outro futebol no qual se desenrola um jogo de
palavras: aquele no qual são debatidas as idéias e os valores centrais que
norteiam o que poderíamos chamar a cultura brasileira. É este espaço que se
transforma num campo de debates sobre a nação. [...] As representações
sociais veiculadas através do futebol, até pela aparente inocuidade deste
domínio social – o dos jogos, do lazer, do esporte – difundem-se e divulgam-
se carregadas nos pés dos jogadores e nas avaliações que a partir daí são
produzidas. (GUEDES, 2009, p.2-3 apud ARAÚJO, 2015, p.27).

Assim como Da Matta (1982) e Araújo (2015) compreendemos que analisar o


futebol abre uma possibilidade fecunda para a análise de algumas relações sociais. Essa
possibilidade é interessante, pois as relações sociais são estabelecidas conforme o modo de
ser, de pensar, de estar e de conviver em e na sociedade, e o futebol ocupa um espaço
importante de convívio bastante significativo em nosso cotidiano.
O futebol é uma prática social, portanto, política e esportiva. No Brasil, devido à
herança do patriarcalismo, do higienismo e do eugenismo, apresenta-se como um campo fértil
para compreendermos relações de poder, de raça e gênero presentes em nossa sociedade.
Desde a chegada do futebol no Brasil, no final do século XIX, é considerado como
‘pertencente ao mundo masculino’ (até mesmo por força de decretos). Esse ‘pertencimento’,
histórico e socialmente constituído, passa a ser um pensamento naturalizado e um universo de
consenso social.

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A importância que o futebol tem na cultura brasileira o torna um retrato interessante


– não só, mas de maneira significativa – das relações de poder e de gênero estabelecidas em
nosso cotidiano. Pisani citado por Araújo (2015) destaca, em seus estudos, que analisar as
modalidades esportivas e a sua prática por diferentes pessoas possibilita retratar como eles –
os esportes – se constituem, se estabelecem, se perpetuam (ou não) nos grupos e culturas com
os quais estabelecemos relações de convívio cotidiano e, assim, reflete as estruturas de poder
que alicerçam estes grupos ou sociedade, assim como outros aspectos sociais, políticos,
culturais, econômicos e as questões de gênero. Sobre este último aspecto, as relações
cotidianas são orientadas pelo pensamento social e pelo consenso sobre papéis sociais
definidos e o binarismo de gênero, arraigados em nossa sociedade e que refletem os
preconceitos, os estereótipos, as desigualdades de direitos, entre outras formas de violência
social.

As intervenções nas aulas de Educação Física no estágio supervisionado: o futsal e as


relações de gênero

Conforme D’Elaqua, Souza e Araújo (2011), a escola é dinamizada por sujeitos


históricos que viabializam sua existência e suas finalidades formativas. No conjunto dessas
finalidades assinala-se a instrução que consiste em ensinar um dado conteúdo a serviço de
uma finalidade educativa formalizada. Os conteúdos de ensino são voltados a determinadas
finalidades pautadas por produções e reproduções de saberes em massa conforme as
finalidades previamente sinalizadas por leis, diretrizes, normativas e pela cultura na qual se
inscreve a educação. Sendo assim, as concepções e finalidades da educação formal e da escola
replicam determinadas ideologias políticas e sociais.
A seleção e organização de saberes conforme os interesses sociais e ideológicos de
uma classe dominante é uma ‘meia liberdade’, uma ‘meia autonomia’, por isso “(...) a
liberdade pedagógica da instituição não é, ao nível dos indivíduos, mais que uma meia-
liberdade.” (CHERVEL, 1988 apud D’Elaqua, Souza e Araújo, 2011, p. ). Apesar da ‘meia-
liberdade’ é certo que, nos espaços de ensino – por exemplo, a sala de aula - o professor tem a
possibilidade de expressar-se e de conduzir o processo de ensino e aprendizagem
independentemente da forma e estabelecida pelos currículos orientadores dos saberes
formalizados. Ou seja, a prática docente e a orientação do processo de ensino e de
aprendizagem transpõem o ‘engessamento’ dos saberes curriculares. Essa é uma posição que

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toma como orientação uma educação crítica que valorize as diferenças e possibilite a
autonomia de pensamento dos estudantes.
Neste sentido, para D’Elaqua, Souza e Araújo (2011), o estágio supervisionado
cumpre um papel importante na conciliação e transição para a escola, da qual os alunos
entram em contato direto com a realidade escolar, não fugindo essa do que são discutidos no
cotidiano nos demais componentes curriculares do curso de formação em Educação Física –
licenciatura.

A vivência dos alunos estagiários nas escolas traz elementos da realidade


para análise e reflexão. Os problemas são sempre atuais, reais, muitas vezes
repetidos até que o olhar curioso do pesquisador lance sobre eles suas
indagações científicas, suas reflexões e estudos, e se comece a produzir
conhecimento sobre os elementos da realidade. Este movimento que a
pesquisa suscita e que o estágio permite, que é ao mesmo tempo teórico e
prático (Schaffrath, 2007, p. 54).

Como anunciado anteriormente, durante o período de nosso estágio supervisionado,


dedicamos quatro aulas para o ensino dos conteúdos futsal e relações de gênero. Na primeira
aula explicamos para todos as regras do futsal e depois pedimos que jogassem e que
separassem os times. Se separaram em meninos e meninas, o resultado do jogo foi que os
meninos ganharam com muita vantagem das meninas, sendo que no meio do jogo elas se
desinteressaram e param de jogar. No final da aula discutimos como tinha sido jogar, as
meninas disseram que não gostaram e os meninos gostaram muito.
Na segunda aula entregamos um questionário que perguntava como se sentiam
jogando futsal, pedimos para cada estudante colocar nome e as alternativas eram: excluído(a)
ou incluído(a) ou jogando com os mesmos direitos. Após isto separamos as equipes de
maneira mista e pedimos para iniciarem o jogo. No decorrer do jogo as meninas saiam e
sentavam chateadas, porque haviam brigado com elas ou não jogavam para elas. No final da
aula discutimos sobre o ocorrido, os meninos justificaram a atitude dizendo que elas eram
“ruins” ou “elas não sabem jogar porque futsal é coisa de menino”. Então perguntamos para a
turma quem já tinha jogado futsal e quem treinava ou jogava na rua, na primeira a resposta foi
maioria os meninos e na segunda nenhuma menina levantou a mão, explicamos para a turma
que as meninas não são ruins, mas que desde criança não foram ensinadas ou convidadas e
incentivadas para jogar da mesma forma que meninos, complementamos dizendo que não
existe coisas de meninos e meninas, que futsal é coisa de menina sim, citamos exemplos de

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jogadoras profissionais e de como elas podem ser “melhores” que os meninos, tudo depende
da prática do esporte no decorrer de sua vida.
Na terceira aula levamos os dados do questionário, sendo que mais da metade das
meninas responderam que se sentiam excluídas e o restante assinalou sentiam incluídas e
nenhuma colocou que jogavam com os mesmos direitos. Já os meninos, mais da metade
assinalou que sentiam jogando com os mesmos direitos, apenas um assinalou que se sentia
excluído e o restante incluído. Após dado o resultado para a turma, pedi que se dividissem em
equipes e novamente dividiram meninas e meninos. Propus a mudança de duas regras e que
no decorrer do jogo iriamos as inserindo. A primeira foi que os meninos só poderiam fazer gol
de cabeça e a segunda foi que toda vez que encostassem nas meninas seria pênalti. Com isso
as meninas que estavam perdendo viraram o jogo e ganharam com muita vantagem, os
meninos ficaram muito bravos, alguns até choraram.
No final da aula as meninas disseram ter gostado do jogo enquanto os meninos
inconformados dizendo que não valeu, pois elas foram favorecidas e que não tinham jogado
com os mesmos direitos. Explicamos que da mesma forma que os meninos se sentiram as
meninas se sentem na vida delas, pois são impossibilitadas de fazer determinadas atividades
por simplesmente ser menina e que se todos têm os mesmos direitos porque não escolhemos
as meninas para nosso time, porque as xingamos. Perguntamos também se era justo os
meninos que treinam futsal se juntar em um time e jogar contra as meninas que não treinam
em outro, se realmente teriam os mesmos direitos no jogo.
Na quarta aula retomamos as discussões anteriores, chegando a um acordo de que os
meninos que treinavam futsal em um time só e as regras favorecendo só as meninas eram
atitudes injustas, pedimos então para que escolhessem os times de forma que todos teriam os
mesmos direitos. O resultado foi que as equipes saíram todas mistas e no decorrer do jogo
parávamos e perguntávamos se todos já tinham cobrado a saída lateral, ou apenas um da
equipe que estava cobrando. Chegou a um ponto que não precisávamos mais atentar os
estudantes as atitudes tomadas, pois estavam jogando coletivamente, com os mesmos direitos.
No final da aula perguntamos qual foi a sensação, todos os estudantes gostaram e
sentiram estar jogando com os mesmos direitos, inclusive os atentei ao fato de que não
marcaram quantos gols fizeram, pois, a preocupação foi em jogar juntos e não apenas com o
resultado.

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Discussões

A partir dessa experiência percebemos, principalmente com as falas dos meninos a


presença das práticas excludente marcadas por gênero, seja ela nos espaços físicos ou nas
práticas corporais. A exclusão das meninas no futsal foi tida como “natural”, pois subtende
que futsal não é prática de menina, ficando a elas destinadas ás praticas que exigem menos
esforços, pois são consideradas mais fracas e frágeis.
Isso representa a “naturalização” da atuação dos homens no campo público e das
mulheres a restrição ao âmbito privado. Calsa (2002), explica esse processo de
“naturalização” de condutas como construções sociais e produto do jogo de poder presentes
nas interações humanas, considerando isto, Fernández (1994) citado por Calsa (2002)
acrescenta que ser homem e ser mulher são prescrições culturais as suas identidades,
prescrições estas que tendem a reafirmar os padrões de comportamentos de cada grupo
sociocultural. Construções estas marcadas pelas normatizações de condutas.

As concepções e representações de gênero na sociedade – assim como as da


sexualidade – ainda têm sido naturalizadas enquanto dependentes, sobretudo
de fatores biológicos e anatômicos que definem os sexos como machos e
fêmeas e, de maneira equivocada, a identidade masculina e feminina. Na
perspectiva biologicista, as identidades de gênero são assim orientadas por
discursos hegemônicos que ditam normas e proibições. Em outras palavras,
são as coerções sociais que determinam gestos e atitudes que impõem a
sujeição/disciplina corporal como parte das relações de poder entre os
indivíduos e grupos (FOUCAULT 1987; 2004 apud ARAÚJO, 2015, p. 33).

As normativas sociais que determinam os comportamentos esperados para homens e


para mulheres, são conjuntos de crenças e valores permeados por uma construção
sociocultural. Diante disso Louro (2001) citada por Araújo (2015) destaca que o que se pensa
sobre masculinidades e feminilidades define o que faz de um homem um homem e o que faz
de uma mulher uma mulher. Para além dos atributos biológicos, a identidade do masculino e
feminino, ou seja, o que se pensa, o que se espera e o agir de um e de outro depende de uma
construção social numa perspectiva cultural.
Souza Jr. e Darido (2002) apud Araújo (2015) explicam que o discurso
preconceituoso e estereotipado, justificado e baseado em argumentos de caráter biológico,
cultural e psicológico, foi predominante no século XX. Tal discurso atrapalha, ainda, a
expansão da prática do futebol e futsal feminino no Brasil. Na escola, o futebol e o futsal

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sempre foram reconhecidos como conteúdos – muitas vezes exclusivo – das aulas de
Educação Física para os meninos; às meninas, jogos e brincadeiras infantis e entre as
modalidades esportivas podia-se encontrar o voleibol, o basquetebol e o handebol.
Encontramos essa mesma situação em nossa pesquisa quando os estudantes questionaram
durante as aulas sobre a participação das meninas na prática do futsal.

Considerações Finais

Assim como Araújo (2015) apresenta há avanços percebidos no que diz respeito à
transformação de pensamentos e comportamentos no que diz respeito à superação de ideias
preconceituosas e a procura de um distanciamento da naturalização arbitrária das práticas
sociais destinadas aos gêneros masculino e feminino. Há indícios de uma conscientização da
geração de jovens nesta segunda década do século XXI, sobre a diversidade social, do
respeito às diferenças e da luta pela equidade de direitos. Entretanto, o preconceito – herança
social – ainda é latente preponderantemente por conta dos estereótipos que as mulheres
adquirem ao praticar uma modalidade esportiva que é historicamente de hegemonia
masculina.
Cabe à escola, enquanto instituição social, educacional, política e cultural, uma
reestruturação de seu aparato curricular, pedagógico e da formação dos educadores; gestar,
com vistas a essas necessidades, a elaboração de conhecimentos, de reflexões, discussões e
transformações referentes às questões de gênero nos processos formativos dos estudantes,
para que possamos superar as desigualdades e os processos de violência social sofridos pelas
mulheres em suas práticas corporais na escola e fora dela (ARAÚJO, 2015).

Referências

ARAÚJO, K. de T. Representações sociais de estudantes do ensino médio sobre a prática do


futebol por mulheres: intersecções entre gênero, corpo e sexualidade. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Estadual de Maringá – Maringá: UEM, 2015.

CALSA, G. C. Intervenção psicopedagógica e problemas aritméticos no ensino fundamental.


Tese de doutorado em Educação – Universidade Estadual de Campinas - Campinas, 2002.

CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. IN:
Teoria e Educação. Porto Alegre, nº 2, p. 177-229, 1990.

D’ELAQUA M. A.; SOUZA, R. H. de; ARAÚJO, K. de T. O estágio obrigatório:

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1113 1120


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em questão a formação do professor em educação física. In ANAIS: 5º CONPEF – Congresso


Paranaense de Educação Física. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2011.

GOELLNER, S. V. (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na


Educação. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 25.

SCHAFFRATH, M. dos A. S. Estágio e pesquisa. ou sobre como olhar a prática e transformá-


la em mote de pesquisa. Revista Científica/FAP, Curitiba, v.2, p. 51-58, jan./dez. 2007.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1113 1121


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Educação Sexual: promovendo respeito em sala de aula através de


dinâmicas

Nathália Hernandes Turke1


Felipe Tsuzuki²
Virgínia Iara de Andrade Maistro³

Resumo: A humanidade é fruto de uma sociedade repressora, sexista e discriminatória,


pautada em preconceitos e falsos moralismos, onde sexualidade deve ser ensinada em casa,
através de crenças religiosas; sexo é “tachado” como pecaminoso e imoral; homossexuais,
bissexuais, transexuais, pansexuais e assim por diante, são vistos como promíscuos; bullying é
dito “frescura”, levando muitos alunos e professores a possuírem medo e receito de falar
abertamente sobre o assunto. Diante do contexto, foram pensadas atividades com o potencial
de compreender as diferenças e a diversidade presente não somente na sociedade, como no eu.
Assim, por meio da discussão, na qual se dá voz aos/as estudantes, foram organizadas aulas
práticas com o intuito de promover o respeito, desenvolvidas durante as aulas de ciências, em
turmas do Ensino Fundamental II (sexo ao nono ano), em escolas da rede pública na cidade de
Londrina/PR. Para tal, foram utilizadas seis dinâmicas com os seguintes temas: educação
sexual, gênero, preconceitos, bullying/exclusão, estereótipos e respeito. O trabalho foi
analisado mediante a seguinte questão: aulas lúdicas sobre respeito, bullying, gênero e
orientação sexual faz-se estratégia eficaz a fim de romper e desmitificar estigmas, tabus e
preconceitos em sala de aula? Constatou-se que a falta de espaços para discussões sobre esses
assuntos ainda provoca, pela falta de informação, conceitos errôneos, levando a preconceitos.
Entretanto, ao tratar as discriminações e as maneiras de minimizá-las, de maneira lúdica,
através de atividades práticas, com os discentes, é possível contribuir para a diminuição da
intolerância existente dentro das escolas, bem como fora delas, demonstrando ser importante e
necessário levantar essas questões com os jovens, instigando-os a repensar sobre seus atos e,
principalmente, a modificá-los, a fim de diminuir agressões físicas e verbais.

Palavras-chaves: Sexualidade; Escola; Preconceito.

1
Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina. Graduanda em Pedagogia pela
Faculdade Campos Elíseos – Campus Londrina. nathalia.turke@hotmail.com.
² Graduando em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Londrina. Educador da disciplina de
Ciências da Natureza do Ciclo Intercultural de Iniciação Acadêmica para Estudantes Indígenas.
felipe.tsuzuki@outlook.com.
³ Doutora em Ensino de Ciências e Educação Matemática pela Universidade Estadual de Londrina. Professora da
Universidade Estadual de Londrina. virginiamaistro@yahoo.com.br.

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Introdução

Mosé (2013) questiona as atuais perspectivas das propostas de ensino que envolvem
uma preparação para a vida e o exercício da cidadania, um ensino como um meio,
desconsiderando, indiretamente, o seu presente e o seu contexto. Logo, se a escola por meio
da educação lhe ensinará como viver e como praticar sua cidadania, o indivíduo ainda em
aprendizado não vive e nem pratica a sua cidadania. A falha no sistema educacional é
caracterizada pela não democratização desses espaços de ensino-aprendizagem, bem como a
ausência do diálogo, onde ainda rege o autoritarismo nas relações professores-estudantes,
apresentando-se inviável uma abordagem que estimule a criação, permanecendo apenas na
reprodução dos conceitos.
Os espaços de educação formal que se pautam nesses princípios, se assemelham aos
presídios ao constituírem metodologias e fins parecidos. Neste local, os estudantes são
silenciados e seus conhecimentos prévios desconsiderados, pois se valorizam os conteúdos
impostos e fragmentados. A partir desta análise, Mosé (2013) responsabiliza esse
distanciamento da escola com sociedade como uma barreira para as relações humanas, como
pode ser observado no trecho abaixo:

Essa falta de conexão da escola, tanto com a sociedade quanto consigo mesma, não é
apenas prejudicial para o desenvolvimento cognitivo dos alunos, que se dá pela
capacidade de fazer relações cada vez mais amplas e complexas, mas prejudica
também as relações humanas, a prática da justiça social, o exercício da cidadania,
implica diretamente o aumento do grau de angústia e solidão e impulsiona cada vez
mais ao consumo de produtos, de pessoas, de drogas lícitas e ilícitas. Participar da
sociedade, interferir em suas instâncias, construí-la, nos dá uma sensação de
pertencimento que nos fortalece e fortalece os acordos. Mas a escola foi se afastando
dessa continuidade e se baseando em um conhecimento dividido e abstrato. (MOSÉ,
2013, p. 51).

A respeito dessa fragmentação e descontextualização dos conteúdos escolares, Freire


(2014) identifica e detalha este fenômeno, propondo uma metodologia voltada e baseada nos
conhecimentos prévios. A partir da consideração dos conhecimentos que já se tem, o
indivíduo aprende a “dizer a sua palavra” e, portanto, não se vê obrigado a reproduzir as
palavras de terceiros que, em seu contexto, não possui significado ou relevância. O autor
postula a máxima à direita:

A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos
parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem
de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante

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de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e das suas


causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento
necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.
(FREIRE, 2005, p. 34).

Na interlocução e análise de Carvalho e Ibiapina (2009), a obra A construção do


pensamento e da linguagem de Vigotski (2001), discute o papel dos signos no processo de
aprendizagem, transformando suas funções psíquicas em superiores, agindo como mediador
do desenvolvimento psicológico. Nesta mesma obra, Vigostski se refere à Zona de
Desenvolvimento Imediato (ZDI) como o desenvolvimento potencial, as características
emergentes dos estudantes, contudo explicita que o desenvolvimento dessas habilidades se
tornará potenciais apenas se houver a mediação de outros, uma vez que estes irão estimular
este desenvolvimento. Assim, esses estudos se complementam, uma vez que esta mediação e
não imposição está presente no discurso de Freire (2005), quando este afirma que a pedagogia
do oprimido deveria ser produzida com e não para esses que buscam recuperar sua
humanidade. Saviani (1987) descreve a necessidade de uma prática educativa que dirija do
senso comum à consciência filosófica, ou seja, “passar de uma concepção fragmentária,
incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva e simplista a uma
concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada”.
No que tange a sexualidade, Gomes e colaboradores (2002) identificam um déficit no
conhecimento acerca do corpo, do sexo e das sexualidades de 6.419 estudantes de 10 a 14
anos. Os autores apontam a necessidade de mais programas e iniciativas que proporcionem as
discussões que compreendem estas temáticas. Madureira (2009) ressalta a lacuna existente
entre Parâmetros Curriculares Nacionais - Temas Transversais, no qual se encontram
propostas para a educação sexual no âmbito escolar, e a realidade da forma com que a
sexualidade é trabalhada na escola, quando isto ocorre. A autora mostra que as sexualidades e
os gêneros são discutidos, principalmente, pelos/as professores/as de ciências. Além de
apresentar as problemáticas encontradas na formação inicial e continuada dos mesmos,
propõe a construção de espaços de discussão e problematização sobre as bases afetivas, bem
como a origem histórica e cultural dos preconceitos contra a diversidade, seja ela sexual, de
gênero, étnica ou relacionada a portadores de necessidades especiais. Louro (1997) ressalta a
importância da abordagem de assuntos que permeiam os gêneros e as sexualidades:

É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas reproduz ou reflete as


concepções de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas que ela própria
as produz. Podemos estender as análises de Foucault, que demonstraram o quanto as
escolas ocidentais se ocuparam de tais questões desde seus primeiros tempos, aos

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cotidianos escolares atuais, nos quais podemos perceber o quanto e como se está
tratando (e constituindo) as sexualidades dos sujeitos (LOURO, 1997, p. 81).

Embora Britzman (2000) afirme que o termo “educação sexual” esteja relacionada a
uma proposta de higienismo social, no qual compreende apenas uma visão biológica e
instrumental da sexualidade, neste trabalho esta terminologia apresenta um viés mais
abrangente que engloba uma perspectiva também social e histórica. Portanto, assemelha-se do
significado de “orientação sexual”, pois este termo diz respeito ao trabalho pedagógico
escolar de discussão da sexualidade (FURLANI, 2009).
Segundo Furlani (2003), a manutenção dessa educação fragmentada e que
desconsidera os/as estudantes no âmbito da educação sexual, resultará e perpetuará nos mitos,
tabus e preconceitos trazidos e reproduzidos pelos/as estudantes. Assim, Furlani (2003)
caracteriza os mitos sobre as sexualidades:

Mitos sexuais existem e podem ser compreendidos como concepções errôneas e/ou
inadequadas que podem surgir a partir de rumores, ou mesmo, através de uma
educação sexual pouco elaborada e crendices populares. Os tabus sexuais são
aspectos da sexualidade que a sociedade, de certa forma, não aceita, como a
homossexualidade, a masturbação, a iniciação sexual da mulher antes do casamento,
etc. Ainda hoje, quando se fala sobre sexo e sexualidade, muitos remetem a valores
e crenças revestidas de preconceitos, tabus, mitos e estereótipos. (FURLANI, 2003).

Como rompimento destes paradigmas e possível ferramenta para resolução de


problemas não apenas relacionados a sexualidade e gênero, mas de aspecto social, como a
violência e o assédio moral (bullying) presente dentro e fora das escolas, Louro (2001) elabora
uma pedagogia e um currículo queer. Nesta intervenção, a autora pretende questionar a
binariedade e a polarização, além de problematizar a heteronormatividade imposta e as
diversas identidades. A metodologia dialética utilizada considerara o indivíduo como
participante ativo na construção do seu conhecimento, desta forma, impedindo que os mitos e
tabus (baseados em construções históricas, culturais e religiosas) continuem a ser
reproduzidos. Contudo, estes mitos e tabus atuarão como mediadores para o entendimento dos
conceitos, uma vez que estes diante da problematização mostrarão a sua falta de fundamento e
nesta lacuna serão propostos novos conhecimentos, agora, muito bem fundamentos (LOURO,
1997). Abaixo, Louro (2001) diferencia a pedagogia e o currículo queer dos trabalhos já
realizados ou propostos, explicitando a necessidade de compreender o outro, para além de
distanciar as diferenças, mas identificar as diferenças em si:

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Uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de programas multiculturais


bem-intencionados, onde as diferenças (de gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas
ou são apreciadas como curiosidades exóticas. Uma pedagogia e um currículo queer
estariam voltados para o processo de produção das diferenças e trabalhariam,
centralmente, coma instabilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao
colocar em discussão as formas como o ‘outro’ é constituído, levariam a questionar
as estreitas relações do eu como outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do outro
lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável para a existência
do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença
deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido, assombrando e
desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os processos que produzem as
diferenças, o currículo passaria a exigir que se prestasse atenção ao jogo político aí
implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural, seria
imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das negociações
constitutivos das posições que os sujeitos ocupam. (LOURO, 2001)

Diante do contexto, foram pensadas atividades que tinham o potencial de


compreender as diferenças e a diversidade presente não somente na sociedade, como no eu.
Assim, por meio da discussão, na qual se dá voz aos/as estudantes, foram organizadas aulas
dinâmicas com o intuito de promover o respeito, desenvolvidas durante as aulas de ciências.
O trabalho foi analisado mediante a seguinte questão: aulas lúdicas sobre respeito, bullying,
gênero e orientação sexual faz-se estratégia eficaz a fim de romper e desmitificar estigmas,
tabus e preconceitos em sala de aula?

Metodologia
As aulas práticas foram desenvolvidas nas aulas de Ciências de turmas do Ensino
Fundamental II (sexto ao novo ano), em escolas da rede pública na cidade de Londrina/PR.
Para tal, foram utilizadas dinâmicas com os seguintes temas: educação sexual, gênero,
preconceitos, bullying/exclusão, estereótipos e respeito.
Dinâmica 01: Educação Sexual
Após ser explicado o significado de Educação Sexual, foram abordados temas como
higiene pessoal, menstruação, gravidez precoce e prevenção. Foram levados para a sala de
aula diferentes tipos de absorventes femininos (externo, interno e coletor menstrual), bem
como os métodos contraceptivos (diafragma, camisinha masculina e feminina, DIU, anel
vaginal, adesivo, pílula e anticoncepcional injetável) e de emergência (pílula do dia seguinte),
sendo explicada a maneira de utilizá-los e eficácia.
Faz-se importante salientar que ao falar sobre sexualidade, além de abordar os
assuntos citados inicialmente, devem-se incluir temas como gênero, orientação sexual,
masturbação, pedofilia, estupro, virgindade, pornografia, feminismo e machismo, orgasmo,
ejaculação, desempenho sexual, bem como auto-estima e sentimentos.

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Posteriormente, foi desenvolvida uma dinâmica denominada “Dança da Transmissão”,


a fim de introduzir a temática “Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)”.
 Dança da Transmissão
Os materiais necessários são: copos descartáveis transparentes, água da torneira,
água tônica, luz negra e música da atualidade, conhecida pela maioria dos alunos.
A pessoa responsável pelo desenvolvimento da prática preencheu até a metade a
maioria dos copos com água de torneira, contudo a um (ou dois, dependendo da quantidade de
alunos presentes) é adicionado água tônica sem gás, deixando-o similar aos outros. Logo em
seguida, os copos descartáveis foram entregues aos alunos – alguns estando duplicados, ou
seja, dois copos, um dentro do outro.
Brevemente, fez-se uma explicação sobre como a dinâmica seria conduzida, onde os
discentes deveriam andar por todo o ambiente disponível, como se estivessem em uma festa
(uma “balada”), dançando e trocando o conteúdo de seu copo com o dos colegas enquanto a
música tocava. Ao final da melodia, os mesmos formaram uma fila e analisaram e
compararam com os colegas o líquido presente em seu copo. Os alunos se dividiram em dois
grupos – o primeiro possui um líquido com coloração azul (característica da luz negra),
enquanto o segundo possui coloração roxa, brilhando em contato com a luz negra.
Ao final, explicou-se que apenas um (ou dois) copo continha água tônica no começo
da oficina, a qual contém “quinino”, substância que em contato com a luz negra reflete a
coloração “roxa brilhante”, enquanto todos os outros participantes receberam copos com água
pura. Entretanto, ao final, mais da metade da turma se “contaminou” com a água tônica.
Houve, então, uma discussão sobre a importância de se prevenir ao manter relações
sexuais com outras pessoas, principalmente desconhecidas. Isso de deve ao fato de ninguém
possuir uma indicação de que possui certa infecção, como HPV, AIDS e assim por diante –
fez-se uma analogia ao mostrar aos discentes que nenhum tinha consciência de que estava
trocando líquidos com pessoas “infectadas”. Mostrou-se que alguns jovens possuíam dois
copos, atestando que mesmo tendo adquirido alguma infecção, a mesma permaneceu na
camisinha, simbolizada pelo primeiro copo, deixando a pessoa intacta (representada pelo
segundo copo).
Foram citadas as diferentes infecções sexualmente transmissíveis, enfatizando a
importância de não haver preconceito com pessoas soropositivas, as quais possuem uma vida
normal, como qualquer outro ser humano

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A oficina foi dada como finalizada ao esclarecer as dúvidas dos participantes, sobre
qualquer tema voltado à sexualidade, onde as indagações puderam ser feitas em voz alta ou
através de papéis em branco, em anônimo.
Dinâmica 02: Gênero
Inicialmente fez-se um diálogo sobre as diferenças existentes entre conceitos como
sexo, gênero e orientação sexual. Logo em seguida, esquematizou-se uma tabela no quadro,
com a separação “Menino X Menina”.
Os discentes foram convidados a categorizar coisas que imaginavam ser específicas
para meninas e coisas específicas para meninos, como características físicas, biológicas,
atitudes, objetos que os mesmos usariam no dia-a-dia, como cores, brinquedos, jogos, roupas
e assim por diante.
Após isto, todos tiveram a oportunidade de concordar ou discordar da separação feita,
no quadro, pelos colegas, argumentando sobre sua posição. Através desta atividade foi
possível desmistificar algumas ideias do que “é ser homem” e do que “é ser mulher”.
Dinâmica 03: Bullying/Exclusão
Foram confeccionados papéis com algumas características utilizadas ao julgar uma
pessoa sem conhecê-la, bem como modos de tratá-la por conta disso, como: “Sou confiável:
ouça-me”, “Sou arrogante: conteste o que eu digo”, “Sou chato, afaste-se de mim”, “Sou feio,
tire sarro de mim”, “Sou extrovertido, me dê um sorriso”, “Sou popular, faça-me um elogio” e
assim sucessivamente.
Os papéis foram fixados com fita crepe na testa de cada participante, os quais não
sabiam as características que estavam recebendo e, apenas através do que se podia ler nas
fichas dos colegas, seguiram o que a frase mandava fazer durante determinado tempo.
Ao final, foi feita uma discussão sobre como cada discente se sentiu ao ser tratado de
certa maneira e sobre os modos capazes de melhorar a forma de comportamento perante as
pessoas a sua volta.
Dinâmica 04: Respeito
Cada estudante encheu uma bexiga e a amarrou em seu tornozelo. Após o sinal da
professora, todos deveriam manter sua bexiga cheia, a fim de ganhar um prêmio ao final.
Rapidamente, um tentou estou estourar a bexiga do outro, terminando a dinâmica quando
apenas um possuía sua bexiga intacta. Foi conversado sobre como todos poderiam ter sido
presenteados, caso não houvessem tentado levar os colegas ao fracasso, visando a importância
de haver diálogo e respeito entre as pessoas.
Dinâmica 05: Concordo e Discordo

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Em um lado da sala foi colado um papel escrito “Concordo” e no outro lado um


escrito “Discordo”. Foram lançadas afirmativas para os alunos, a fim de identificar suas
percepções sobre as questões de gênero, principalmente no que diz respeito à opressão da
mulher na sociedade.
As afirmativas lançadas foram as seguintes: “Os pais são mais controladoras com as
filhas do que com os filhos”, “Homens não podem chorar”, “As garotas querem encontrar um
homem pra casar e têm medo de ficarem sozinhas”, “Limpar a casa e cuidar dos filhos é dever
da mulher”, “Os homens são, naturalmente, mais agressivos do que as mulheres”, “Os
homens possuem instinto controlador, não deixando suas namoradas/esposas usarem roupas
curtas e saírem sozinhas”, “É natural falar mal de garotas que saem pra beber com os
amigos”, “É normal o homem trair”, “O que o homem mais valoriza em uma mulher é o fato
dela ser gostosa”, “Se homens beijarem várias mulheres são garanhões; mulheres são putas”,
“Mulher não pode usar roupa curta ou sair na rua a noite sozinha, se não está pedindo para ser
estuprada”.
A cada afirmação lançada, os jovens escolhiam para qual lado da sala iriam se
posicionar, sendo organizada uma discussão para cada assunto, onde foi possível cada um
defender o seu lado.
Dinâmica 06: Estereótipos
Separados em grupo de quatro ou cinco pessoas, foram entregue revistas e uma folha
sulfite aos grupos. Deu-se a seguinte tarefa: “Vocês devem escolher a figura de uma pessoa
nessa revista e, através unicamente da visualização da imagem selecionada, escolher nome,
idade, profissão, bem como outras características”.
Ao final, os discentes puderam apresentar para a turma os motivos pelos quais
selecionaram aquela gravura e deram aquelas características para a pessoa. O intuito desta
atividade foi desmitificar estereótipos, já que diversas vezes julgamos, erroneamente, “o livro
pela capa”, mostrando a importância de conhecer as pessoas antes de pressupor algo.

Ao final de todas as oficinas, foi evidenciada a importância de tratar todas as pessoas


da mesma maneira porque, apesar das diferenças encontradas, todos merecem o devido
respeito.

Considerações finais
Durante as discussões, abordaram-se temas sobre a forma de tratar as pessoas, no dia-
a-dia tanto dentro da escola como fora dela, onde às vezes, um cidadão acaba sendo excluído

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dos círculos de amizade ou trabalho simplesmente por ser “diferente” do esperado, como ser
negro, estar acima do peso ideal imposto pela sociedade, possuir alguma deficiência, usar
óculos, ser tímido, utilizar roupas ou cabelos diferentes dos colegas e assim sucessivamente.
Também foi discutido sobre preconceitos contra negros, índios, deficientes, homossexuais,
bissexuais, pansexuais, assexuais, transexuais, diferentes religiões, distintos padrões de moda
e beleza. Destacou-se a necessidade de desmitificar tabus sobre as relações de gênero na
sociedade, advindos de uma reparação de “coisas corretas para homens e mulheres”. Assim,
visou-se a igualdade e o direito de “poder ser você mesmo”, sem ser julgado por padrões pré-
estabelecidos por uma sociedade arcaica e preconceituosa.
Foi possível perceber que, no início das oficinas, muitos jovens demonstraram
preconceitos e falta de respeito, muitas vezes escondidos em piadas e ironia. Contudo, notou-
se que muitos participantes se quer sabiam a diferença entre sexo, gênero e orientação sexual,
bem como desconheciam algumas religiões, ou as compreendiam de maneira equivocada –
fato que pôde ser percebido quando equipararam a Umbanda com macumba.
Durante as discussões foi enfatizado o preconceito pré-estabelecido em cada um,
mesmo quando a pessoa acha que está livre do mesmo, utilizando exemplos do dia-a-dia,
como: o modo de olhar para uma pessoa com deficiência; julgar alguém pelo seu modo de se
vestir ou se portar, por possuir tatuagens ou piercings; não ajudar um idoso ou um deficiente a
atravessar a rua quando necessário ou não ceder seu lugar no banco do ônibus para uma
mulher grávida; se sentir perseguido apenas por haver um indivíduo negro andando próximo
na rua; não respeitando as diferentes religiões e assim por diante.
Parte do preconceito que os jovens possuem vem de uma influência existente em casa,
na escola, na igreja, entre outros lugares, mas outra boa parte apenas está presente por conta
da falta de informação sobre a diversidade de indivíduos e a necessidade de respeitar uns aos
outros, sem julgar o caráter de alguém através de sua aparência.
Constatou-se que a falta de espaços para discussões sobre esses assuntos ainda
provoca, pela falta de informação, conceitos errôneos, levando a preconceitos. Entretanto, ao
tratar as discriminações e as maneiras de minimizá-las, de maneira lúdica, através de
atividades práticas, com os discentes, é possível contribuir para a diminuição da intolerância
existente dentro das escolas, bem como fora delas, demonstrando ser importante e necessário
levantar essas questões com os jovens, instigando-os a repensar sobre seus atos e,
principalmente, a modificá-los, a fim de diminuir agressões físicas e verbais.

Referências

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A metodologia das oficinas pedagógicas: um relato sobre transgressão,


engajamento político e educação feminista em escolas públicas
Natália Kleinsorgen Bernardo Borges 1
Thais Domingos dos Santos Rodrigues2

Resumo:

Este trabalho tem por objetivo relatar as observações, atividades, incômodos, inquietações e
sugestões que surgiram ao longo das oficinas sobre gênero e a realidade da mulher na sociedade
brasileira, realizadas em colégios públicos de Niterói, Magé e Rio Bonito, no estado do Rio de
Janeiro, durante o mês de março de 2018. Além da introdução, no qual é reportado o caminho
percorrido até as oficinas, durante a construção da Greve Internacional de Mulheres no 8 de
Março de 2018, dividimos o artigo em dois momentos: o primeiro no qual apresentamos as
oficinas criadas por nós, pontuando o objetivo de cada uma, o material necessário e a
metodologia que utilizamos nas escolas. Todas as oficinas pedagógicas são de caráter
experimental e continuam em análise e aperfeiçoamento. O segundo em que relatamos nossas
experiências nas diversas salas de aulas que tivemos, contando algumas situações que vivemos
junto aos mais de 400 jovens que entramos em contato ao longo mês. Por fim, conclui-se que,
apesar das dificuldades criadas com fim de proibir o debate sobre gênero nas escolas, é possível,
através da ação de alguns professores, subverter as políticas institucionais e construir uma
educação engajada. Por Marielle Franco, por Dandara, por Angela Davis, por Audre Lorde, por
bell hooks, e por Andrea Dworjin e por Gloria Anzaldúa: não vão nos calar!

Palavras-chave: Educação; Gênero; Educação Feminista.

1
Mestra em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (PPGMC/ UFF); natkbb@gmail.com

2
Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos campus Sorocaba (PPGed/UFSCar);
thisdsr@gmail.com

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1. Introdução

“E é possível ser outra coisa?” – nos perguntou uma aluna de escola pública de Niterói,
sobre a falsa dicotomia criada entre mulheres putas e mulheres que são esposas e mães. O
debate era acerca da frase da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea,
2013) – “Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama”, projetada em uma das
dinâmicas que realizamos no mês de março de 2018. As observações, atividades, incômodos,
inquietações, sugestões, que surgiram ao longo desse tempo, nesses espaços, realizados em
colégios públicos de Niterói, Magé e Rio Bonito, no estado do Rio de Janeiro, são o objeto de
análise do relato que se segue.
A ideia da realização das oficinas surgiu durante a construção da Greve Internacional
de Mulheres, no 8 de Março de 2018, tanto em nível estadual quanto local, na cidade de Niterói,
quando pudemos perceber, enquanto feministas independentes, uma articulação que não nos
representava. Por um lado, a presença de mulheres organizadas em partidos e correntes de
esquerda nos frustrou, já que não conseguíamos trazer demandas historicamente feministas,
muito devido ao pouco tempo das escassas reuniões, mas também pelas demandas trazidas pelas
militantes, que se organizavam antes com seus núcleos para tirarem o que seria levado aos
nossos encontros de construção.
Éramos mulheres que discordavam politicamente em diversos assuntos, juntas, ali para
a organização de uma intervenção específica: o 8 de Março feminista. Porém, a nossa impressão
era que, mesmo ausentes, as vozes masculinistas das organizações importavam mais do que as
demandas das mulheres. O acúmulo de participação em partidos e movimentos sociais nos
colocou nesse ponto de inquietação, e à margem. Qual foi o espaço em que nos sentimos
seguras? Com nossas pautas tratadas com prioridade? Onde o ego – principalmente o masculino
– não afundava todo nosso desejo de trabalho coletivo? É um assunto até batido, os partidos
não dão conta da experiência das mulheres – muito menos das mulheres lésbicas/negras. O
movimento LGBT também não – e ainda tende a se esquecer com mais facilidade das questões
de classe, algo muito difícil para uma mulher periférica. Não conseguíamos entrar nesses
debates, mas também não conseguíamos tratar da nossa insegurança dentro do próprio
movimento feminista.
Temas como, por exemplo, o direito ao aborto seguro e gratuito; a violência doméstica;
a pauta da segurança em universidades públicas para jovens – debates como estes perdiam
espaço para outros assuntos, ao nosso ver, menos importantes nas lutas por autonomia feminina,

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especialmente em se tratando da principal data para reivindicação do feminismo enquanto


política de libertação de meninas e mulheres. É o dia que nossas pautas se tornam prioritárias,
pelo menos é o que esperamos. Porém, infelizmente o que vimos foi uma frente ampla de
mulheres enquanto representantes de outras organizações, não unidas enquanto classe, nem
enquanto movimento feminista, mas como estrangeiras de outras pautas terceirizadas.
Por outro lado, no 8 de março estadual, a desarticulação de militantes também nos
deixava angustiadas, no sentido de gastarem muitas oportunidades para se alinhar e promover
um encontro unificado, com temas que pediam debates acirrados, chegando a haver agressões
por parte de algumas pessoas, envolvendo ameaças de violência física em grupos de trabalho
nas redes sociais. Acreditamos que a proposta para esse mês é uma trégua, um momento de
união para pensar o que temos em comum enquanto mulheres. Mas, acabando esse mês, cada
uma volta a sua vida de apatia para com a outra, e sua rotina de organização de outras mil coisas.
Feministas independentes são figurinhas invisíveis da organização do 8 de Março. Todo esse
cenário nos cansava, enquanto nos trouxe forças para partirmos em direção a uma auto-
organização de um 8M feminista, o nosso Março feminista.
Foi do desgaste que nasceu a necessidade de nos comunicarmos com amigas e colegas
professoras de escolas públicas, a fim de, usando a justificativa do Mês Internacional das
Mulheres, conseguirmos entrada nas escolas – a despeito das leis contra educação de gênero,
para falar das violências sofridas por mulheres. Nós duas tínhamos experiências no campo das
oficinas com jovens, tendo, inclusive, trabalhado juntas em uma delas, no final de 2017. Embora
nossa experiência juntas nesses espaços fosse breve, havia muito acúmulo e consenso sobre a
utilização da metodologia das oficinas pedagógicas.
Segundo Candau (1995) a oficina pedagógica é um espaço no qual o conhecimento, a
análise da realidade, os confrontos e as trocas de experiência se dão via construção coletiva.
Escolhemos trabalhar com essa metodologia porque a entendemos como uma maneira mais
dinâmica e participativa de interagir com as alunas e alunos. Diferente do modelo de palestras,
no qual apenas uma pessoa fala e o resto fica calado escutando, as oficinas propiciam um
ambiente mais confortável para que todos se expressem. Não existe a figura da pessoa detentora
do saber (palestrante ou professora) que, em algumas ocasiões, pode acarretar num sentimento
de desconforto, alheamento e discordância muda. A presença das oficineiras, ou facilitadoras,
é para auxílio do debate, garantindo a participação coletiva, e não deixando o assunto
permanecer na superficialidade dos sensos comuns.

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Dessa vez, os relacionamentos abusivos foram o tema central escolhido para


trabalharmos. A escolha se deu a partir de uma pesquisa feita pela ONG feminista carioca
Camtra – Casa da Mulher Trabalhadora, a partir de um curso de formação feminista para jovens.
Este foi o tema escolhido para a campanha que lançaram em em 2018, “Virada de Jogo”, que,
além de relatos sobre o que seriam atitudes violentas, por parte de parceiros e parceiras, também
enumerava algumas violências abordadas pela Lei Maria da Penha. Além disso, pedimos que
as professoras envolvidas perguntassem para algumas alunas o que gostariam de debater no
Mês Internacional da Mulher, colocando os relacionamentos abusivos como uma das opções, a
mais votada.
Outro assunto abordado foi a representatividade feminina, pauta escolhida por estarmos
realizando as oficinas no mês de celebração de lutas feministas, havendo assim, a necessidade
de visibilizar a mulheres e suas conquistas ao longo da história. Processo que foi atravessado
pela execução da vereadora Marielle Franco. Falar da luta das mulheres nesse mês era falar da
luta de Marielle e o que representou a sua morte para todas as feministas.
Recebemos aval de todas as pessoas que conversamos propondo as oficinas, e, de um
mês com pouca movimentação, ou apenas concentrada em um único dia - o 8 de Março,
passamos para uma agenda lotada, contemplando quatro escolas em três cidades diferentes,
havendo até mesmo necessidade de reorganizar algumas escolas para o mês seguinte. Pela
variedade de municípios visitados, precisamos de uma organização que envolveu carona;
divisão de custeio de passagem entre os próprios professores; e de investimento do nosso
próprio bolso para o nosso transporte, assim como para a compra e produção do nosso material.
Algumas vezes, precisamos cancelar ou remarcar as visitas.
Com um material elaborado por nós mesmas, baseado em pesquisas e experiência
política, enxergamos nas oficinas uma possibilidade de desafiar a educação bancária e seu status
quo, seguindo a proposta de bell hook (2013) de uma pedagogia engajada, por uma educação
como expressão de ativismo político. Levando isso em consideração, podemos afirmar que, nas
quatro instituições em que estivemos presentes, conseguimos levantar debates e propor
confrontos ideológicos com jovens e adolescentes que foram desafiados, mas também nos
desafiaram, com questões que, até então, pareciam secundárias para eles. Esse é o principal
desafio de uma educação que se pretende ativista e emancipatória. E foi seguindo esses
estímulos que optamos pelo diálogo com estudantes do Ensino Médio, com uma faixa etária
entre 15 e 20 anos – idade em que, após ter recebido influência de uma sociedade patriarcal, de

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uma educação sexista, religiosa e misógina, ainda é possível ser crítica e desconfiada;
debochada e participativa; receptiva e esperançosa.

2. As oficinas

Inicialmente acreditávamos que iríamos trabalhar com dois dias de oficina num período
total de 8h. Por isso dividimos as dinâmicas em dois momentos, o primeiro dia denominamos
de “O despertar”, no qual o objetivo era demonstrar situações que, por mais corriqueiras que
fossem, são parte de uma estrutura social que hierarquiza as diferença entre os sexos. Queríamos
tirar da “normalidade” situações como relacionamentos abusivos, frases e acontecimentos de
senso comum que oprimem as mulheres – como as presentes na publicidade e letras de música.
Neste dia, as dinâmicas utilizadas seriam: Dinâmica Cartazes da revelação; Dinâmica Linha
da violência; Dinâmica ‘É violência ou não é?’; Quiz do relacionamento abusivo;
Arrumando letras.
Desta forma, o objetivo dessas oficinas era trabalhar com questões sobre a violência
contra a mulher. Para isso, também passamos o vídeo da Camtra sobre relacionamentos
abusivos que, em determinado momento, apresenta e diferencia os tipos de violência: física,
psicológica, sexual, patrimonial, moral.
O segundo dia chamamos de “O agir”. Se no dia anterior trouxemos um debate pesado,
que muitas vezes desestrutura as alunas, podendo gerar um sentimento de impotência, neste
queríamos passar uma mensagem mais otimista, ressaltando a resistência e a luta das mulheres
ao longo da história. Começaríamos com uma atividade de gancho com o dia seguinte através
da: Dinâmica Publicidade para quem?, e logo mostrando outras possibilidades através da
Dinâmica Representatividade importa. Depois teríamos a Dinâmica Mulheres na História
(esquetes); Dinâmica Conhecendo mulheres incríveis e, por fim, a atividade de encerramento
que seria a elaboração de um zine.
A seguir apresentamos um pouco a proposta de cada oficina.

2.1. Dinâmica Cartazes da revelação


Objetivo: incitar debate sobre papéis historicamente designados aos sexos feminino e
masculino.
Material: duas cartolinas (ou papel pardo); fita adesiva e canetinhas.

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Atividade: fixa-se na parede duas cartolinas, uma com o nome MENINAS escrito e
outra MENINOS, lado a lado. As/os participantes devem ficar em fila indiana mista, e um de
cada vez deve correr na cartolina a sua frente e escrever uma característica relacionada a ele,
na sociedade. Ex: MENINOS: corajosos; MENINAS: fofas. Após todas participarem, deve-se
explorar os adjetivos citados nas cartolinas e trabalhar os comportamentos de gênero.

2.2. Dinâmica linha da violência


Objetivo: fazer com que as jovens, apesar de suas diferenças, possam perceber que
situações de violência são comuns na vida de todas as mulheres.
Material: fita colorida para demarcar o chão.
Atividade: Só participam as meninas. Traça-se uma linha no chão, divide-se as meninas
em dois grupos e elas se posicionarão uma de frente para a outra. Conta-se dez situações (de
violência). A cada caso lido, as meninas deverão dar um passo à frente se conhecem alguma
mulher que passou por isso, ou permanecerão no lugar, caso não. Ex: Em um almoço de
domingo, alguém pergunta “Ainda não sabe cozinhar? Desse jeito, não vai casar nunca!”.

2.3. Dinâmica é violência ou não é?


Objetivo: discutir se situações comuns, frases feitas e clichês populares são ou não uma
situações de violência contra a mulher.
Material: cartões com frases.
Atividade: Homens e mulheres participam. Divide-se a turma em grupo e distribui-se
os cartões com frases de senso comum que costumamos ouvir na sociedade, para que o grupo
debata e apresente suas impressões sobre as frases. Depois, propomos um debate a partir do que
eles deliberarem.Ex: Mulher que anda de roupa curta quer aparecer - é violência ou não?

2.4. Arrumando letras


Objetivo: consertar letras de música, a partir da perspectiva delas, que falem de
relacionamentos abusivos.
Material: letras de músicas impressas; canetinhas.

Elas lerão, em grupo, as letras que entregarmos, farão anotações e rabiscos sobre as
letras, e fazer uma nova versão das letras, fazendo com que elas deixem de ser abusivas. (Nesta
oficina é importante tomar cuidado para diversificar o estilo musical).

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2.5. Dinâmica Publicidade para quem?


Objetivo: trabalhar como a representação das mulheres feitas pelas publicidades se
utiliza de estereótipos de opressão feminina.
Material: cartazes impressos ou datashow.
Atividade: Pede-se para que as/os alunas/os digam o que está errado nas peças
publicitárias. Inicia-se com cartazes mais antigos até chegar nos mais recentes.

2.6. Dinâmica Representatividade importa


Objetivo: apresentar alternativas publicitárias que conseguiram ultrapassar o senso
comum no que se refere a representação dos papéis de gênero.
Material: datashow/som
Atividade: após a discussão anterior, iremos apresentar as alunas como algumas
empresas conseguiram encontrar modelos positivos para representação das mulheres.
Posteriormente as dividiremos em grupos no qual cada uma terá um tema-produto para propor
publicidades favoráveis a emancipação feminina.

2.7. Dinâmica Mulheres na História (esquetes)


Objetivo: mostrar a força revolucionária que são as mulheres, através de eventos
históricos marcados pela participação feminina.
Material: celulares para pesquisar/ material impresso
Divide-se as alunas em grupos no qual cada um terá um momento histórico para
pesquisar e ensaiar e apresentar uma pequena esquete.

2.8. Dinâmica Conhecendo mulheres incríveis


Objetivo: Apresentar mulheres que se destacaram em suas áreas e são referências
históricas.
Material: datashow
Atividade: Após a apresentação é reforçado que a participação das mulheres poderia ser
infinitamente maior se não fossem os meios de repressão de seu desenvolvido pessoal, presente
na sociedade patriarcal. Mesmo as mulheres que não têm seus nomes lembrados são
sobreviventes. Nisto, pedir para que escrevam uma pequena biografia de alguma mulher que
elas admiram (mãe, tia, avó, professora, celebridades, etc).

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2.9. Atividade de encerramento: Elaboração de zine


Objetivo: criar um material visual que ilustre o que foi debatido nos últimos dois dias.
O material produzido será transformado em uma “revista” e disponibilizado por e-mail para
todas as participantes. Recolher e-mail da turma.
Material: revistas, folha sulfite, tesoura, cola, canetas, canetinhas, etc.

3. As oficinas nas escolas

O material que tínhamos preparado para dois dias de dinâmicas, em oito horas seguidas,
era para aplicação em uma escola de Niterói, no bairro do Barreto. Porém, não foi possível
realizar conforme o planejado. A professora tentou pedir liberação das turmas, mas muitos
professores se opuseram. Nesta escola, ao longo de dois dias, tivemos um pouco mais de duas
horas com diversas turmas, cerca de 30 alunos em cada. Tivemos que escolher quais dinâmicas
priorizar no último momento – porque não havíamos sido informadas das alterações.
Fragmentar as oficinas foi extremamente desgastante e como algumas eram continuações de
outras a sensação era que o processo de aprendizagem não era completo.
É importante ressaltar que essas oficinas foram exatamente no dia seguinte ao
assassinato da vereadora Marielle Franco, com a qual nós tínhamos grande proximidade política
e, portanto, estávamos emocionalmente frágeis.
As turmas eram compostas majoritariamente por alunas/os negras/os ou pardos.
Estavámos a convite da professora de História, embora outros professores tenham liberado suas
turmas e, portanto, estivemos com eles em sala. Em alguns momentos, tivemos que lidar com
o senso comum também dos professores - situação que aconteceu em outras escolas - que
concordavam com frases opressivas, por exemplo. Nesta escola também ficou marcado o fato
de que, durante o período do intervalo, alguns estudantes organizavam um pequeno “culto”
onde de dentro de uma sala liam a bíblia ou cantavam músicas da igreja.
Ainda nessa escola, recebemos denúncias de alunas sobre o comportamento dos
funcionários com cargo de coordenação, que pudemos comprovar durante os intervalos, e na
manhã seguinte. Acontece que, em pleno mês de março, com poucos ventiladores funcionando,
prédios antigos e pouquíssima ventilação, as jovens eram constrangidas por esses funcionários,
que alegavam que elas “não sabiam se vestir” para assistir aula. Muitas vezes, sendo
responsabilizadas pelo assédio sofrido dentro das salas, pelos seus colegas do sexo masculino.

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Essas meninas, quando iam de camiseta de alça, eram forçadas a voltar para suas casas, e
impedidas de assistirem às aulas, por “causarem distração” nos meninos.
Tendo que trabalhar com as dinâmicas separadas, focamos nas que abordavam
relacionamentos abusivos. Foi possível observar que a grande maioria das garotas concordavam
que os relacionamentos que tiveram – ou tinham, no presente – eram abusivos. Já os garotos
eram resistentes com algumas situações, pontuando que não eram abusivos, mas só
“cuidadosos” ou “ciumentos”. Em outros momentos, alegavam que “se não insistissem, nunca
ficariam com ninguém”. Todos concordaram que nenhum deles ficaria com uma menina que já
tivesse saído com muitos caras. Em contrapartida, as meninas afirmaram que, se utilizassem o
mesmo critério, não ficariam com ninguém. Em duas turmas tivemos alunas que saíram
chorando, e houve um caso de uma estudante dizer que o namorado, sabendo do que estava
acontecendo na escola, a proibiu de “assistir a aula que iria colocar coisas na cabeça dela”. Na
hora da saída, um aluno chegou a nos abordar questionando se queríamos destruir o
relacionamento dele.
Dentro desta programação, fomos convidadas a fazer as dinâmicas numa ONG, no
centro de Niterói, com pouco alunos – aproximadamente 20, e mais tempo para debater – cerca
de 4h. Neste dia, a conversa foi mais aprofundada e acolhedora. Foi possível realizar quase
todas as dinâmicas do primeiro dia e mais algumas do segundo, inclusive a proposta de que
falassem de uma mulher inspiradora para eles (a maioria falou de suas mães ou avós).
Foi perceptível que a presença dos homens tende a monopolizar as falas e o tempo para
debater questões pertinentes a eles. Por exemplo, foi o longo o período dedicado a debater se
existiam ou não mulheres que gostam de apanhar na cama; ou sobre a liberdade das mulheres
em venderem seus corpos – principalmente através das propagandas. Segundo a opinião dos
meninos, as mulheres se submetem a esse tipo de trabalho porque querem.
As outras duas escolas que fomos, uma em Magé e a outra em Rio Bonito, no interior
do Rio de Janeiro, foram marcadas por grandes públicos. As professoras que nos convidaram
acharam que iríamos ministrar uma palestra no lugar das oficinas, e ampliaram o convite para
toda a escola. Nesses dois dias conversamos com mais de 200 alunos e optamos para um modelo
mais palestra-interativa. Nosso desafio foi garantir a participação dos estudantes para que não
ficasse apenas um monólogo de nossa parte. A matriz que usamos foram gráficos selecionados
da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2014 - Tolerância Social à
violência contra as mulheres, numa adaptação da Dinâmica ‘É violência ou não é?’. Pedíamos
para que as alunas e alunos levantassem a mão se concordassem ou discordassem da frase

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apresentada e, a partir da defesa de alguns deles, é que fazíamos nossas ponderações, guiando
o debate para além do senso comum, sempre deixando eles mesmos se contradizerem.
Na frase “Os homens devem ser cabeça do lar” muitas das alunas/os entraram na
contradição de concordar com frase e perceber que sua própria realidade não condizia com esse
modelo. Ambas as escolas eram localizadas em bairros periféricos de suas cidades, com maioria
de estudantes negros e pardos, muitos deles tinham seu cuidado garantido apenas pela mãe ou
alguma outra mulher da família, como a tia ou a avó. A figura paterna é algo ausente em
diversos casos e, em outros, é a figura do agressor.
Por isso, é comum que jovens e adolescentes defendam a tese de que “homem que bate
em mulher é porque está bêbado”. Esta é a desculpa que mães e avós costumam utilizar para
justificar a agressão sofrida pelos “patriarcas” da família – e é desta forma que seus filhos e
netos entendem: quando estão sóbrios, eles se tornam menos violentos. Mas, e quando suas
mães bebem? Elas também ficam agressivas? E bebida pode justificar agressão? E, desta forma,
vamos desconstruindo os padrões discursivos que foram cristalizados durante os anos.
Outra frase que gera bastante controvérsia, presente na pesquisa, é “Em briga de marido
e mulher, ninguém mete a colher”. Neste caso, os próprios alunos e alunas completam a frase,
e nós aproveitamos a deixa: por que é tão fácil para todas nós reproduzir certas “verdades”,
certos “ditos comuns”? Como a esta altura já debatemos relacionamentos abusivos, através dos
vídeos e quiz, eles já sabem que isso é violência contra mulher. Então, “até que ponto devemos
esperar para interferir numa briga de casal”? O que tememos, ao nos meter numa briga de
casal? É melhor perder a amiga, e ela ficar sabendo que pode contar com você; ou é melhor
ficar quieta e vê-la sofrer por um relacionamento que não a faz bem? Ao fim do debate,
esperamos encorajá-las a conversar com as vítimas que conhecem, inclusive disponibilizamos
nossos contatos, caso precisem de ajuda. Algumas vezes fomos acionadas.
Uma consequência deste debate é a afirmação de que “tem mulher que gosta de
apanhar”. De forma descontraída, a gente devolve a pergunta: “quem aqui gosta de apanhar?
Quem aqui apanha e sai correndo para contar para os amigos; posta foto nas redes sociais
apanhando?”. Elas riem. E continuamos. Elencamos juntos quais os motivos que fazem uma
mulher permanecer morando com seu agressor. Elas sabem. Elas conhecem histórias. Elas
compartilham histórias. Suas mães, primas, irmãs, amigas, avós. Muitas mulheres que tentaram
resistir, outras fugiram com os filhos, outras permaneceram junto pelos filhos, outras não sabem
o que fazer quando o marido sair da prisão. No final do debate, eles entenderam que esta é só

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mais uma frase usada para diminuir a dor das mulheres agredidas, e também de responsabilizá-
las pela própria agressão sofrida.
“Tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra cama” é outra das frases. Nessa,
sempre começamos apontando a incongruência. Enquanto uma das alunas no pergunta: e tem
outra possibilidade, professora, dá pra ser outra coisa? Nós dizemos: na verdade, esta frase não
oferece possibilidades à mulher. Em ambos os casos, supõe-se que a mulher vive para o homem:
seja no casamento, seja como prostituída; seja como fiel, seja como amante: quando afirmamos
essa frase, estamos dizendo que a vida e os corpos das mulheres servem somente para satisfazer
os homens. Elas ficam sempre impactadas. E dá para ser outra coisa? Sim, dá para ser
professora, irmã, filha, advogada, amiga, jornalista, pescadora, feminista.

4. Considerações finais
Enquanto militantes feministas e pessoas que acreditam no trabalho de base, na
pedagogia engajada, na emancipação política através da educação, nós defendemos que as
oficinas pedagógicas são ferramentas primordiais no caminho para o despertar crítico de
estudantes que, imersos na materialidade da sociedade patriarcal, muitas vezes são sufocados
por uma ideologia que direciona seus olhares para a manutenção de um sistema opressor.
Cada vez que entramos em uma sala de aula, ao mesmo tempo que estamos abertas para
encarar uma realidade que se mostra para todas nós, o tempo todo, de forma violenta e
intimidadora, estamos também abrindo portas para um diálogo que nos ensina e nos fortalece.
É, portanto, uma via de mão dupla. Enquanto proporcionamos um espaço em que está em debate
a autonomia dessas jovens, através de seu próprio protagonismo, através de suas próprias
narrativas, conseguimos construir pontes para a transformação social – tudo isso dentro de um
espaço institucional e regrado, como a escola.
A problematização dos papéis de gênero e suas hierarquias, quando realizada dentro das
escolas, faz com que os professores também percebam que podem e devem desenvolver tais
debates; que podem e devem se informar sobre as violências contra as mulheres; e que
desnaturalizá-las e colocá-las em cheque é essencial para que as alunas e alunos se tornem
adultos emancipados, conscientes dos lugares que ocupam na sociedade, mas que estejam
dispostos a transvê-los: que meninos desocupem o lugar de agressores, que meninas não
aceitem agressões. Que saibam que estão sendo violentadas; que possam dizer não; que
consigam ver nas outras meninas um espelho delas mesmas, e não rivais. Que possam ajudar
outras mulheres de suas famílias. Acreditamos, pelo resultado do que vimos e vemos em

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escolas, que as oficinas pedagógicas podem auxiliar no caminho para a libertação de meninas
e mulheres.

Referências Bibliográficas
BRASIL. IPEA. SIPS. Tolerância Social à violência contra a mulher. Disponível
em:<https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulhe
res.pdf>. Acesso em 28 maio 2018.
CANDAU, Vera. et al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos
humanos. Petrópolis: Vozes, 1995.p.126.
HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
SAMPAIO, Paula Faustino. Oficinas de gênero e cidadania na escola. Mneme – revista
de humanidades, v. 16, n. 36, p. 54-76, Caicó, jan./jul. 2015. Dossiê Ensino de História.

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Panorama da expansão e da efetividade dos Organismos e Conselhos Gestores


de políticas para mulheres nos municípios brasileiros

Milena Cristina Belançon1


Karen Laís Barbero Chaves2
Carla Almeida3

Resumo: Considerando os Organismos de Políticas para Mulheres (OPMs) e os Conselhos


Gestores de Políticas para Mulheres (CPMs) como instâncias que representam marcos na con-
quista das políticas de gênero no Brasil, analisá-las torna-se um passo estratégico para avalia-
ção mais adequada dos ganhos e limites legados por tais políticas. Desse modo, o presente tra-
balho busca apresentar uma análise da radiografia da criação e expansão de tais órgãos nos
municípios brasileiros. Os objetivos são: i) apresentar uma radiografia da criação e expansão
destes órgãos pelos municípios brasileiros, buscando conhecer também o perfil destes municí-
pios, ii) compreender em que medida a expansão de OPMs e CPMs esteve associada; iii)
identificar se a presença de OPMs e CPMs nos municípios está associada à quantidade e à
qualidade de serviços especializados oferecidos para as mulheres em cada realidade. Para tan-
to, o trabalho foi baseado principalmente em dados da Pesquisa de Informações Básicas Mu-
nicipais, o MUNIC/IBGE, da edição de 2013. Os dados apontaram associação entre OPMs e
CPMs, sugerindo ainda que a presença desses órgãos beneficia o oferecimento das políticas
públicas para mulheres. Sobre a distribuição de CPMs e OPMs nos municípios, pode se iden-
tificar que estão presentes em uma pequena parcela do total brasileiro, e as maiores concentra-
ções de ambas instâncias em metrópoles e municípios com IDHM muito alto.
Palavras-chave: Organismos de políticas para mulheres; Institucionalização; Efetividade.

1 Universidade Estadual de Maringá/NUPPOL-UEM; Mestranda em Ciências Sociais;


milenabelancon@gmail.com.
2 Universidade Estadual de Maringá/NUPPOL-UEM; Graduanda em Ciências Sociais;
karen_lais2006@hotmail.com
3 Universidade Estadual de Maringá/NUPPOL-UEM; Doutora em Ciências Sociais;
carlaalm@uol.com.br.

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Introdução

Levando-se em conta o contexto de reestabelecimento da democracia no Brasil, muito


já foi discutido pela bibliografia sobre a aproximação entre movimentos sociais e Estado.
Nesse trabalho particularmente nos propomos a analisar os efeitos de tal aproximação do
movimento feminista com o Estado, que nesse período conquistou, a duras penas, a
possibilidade de institucionalização das demandas pelos direitos das mulheres. Nossa
proposta abarca particularmente o campo que se refere à difusão de Organismos de Políticas
para Mulheres (OPMs) e Conselhos Gestores de Políticas para Mulheres (CPMs) pelos
municípios brasileiros.
Consideramos aqui OPMs aquelas instituições responsáveis pela elaboração, coorde-
nação, articulação e execução de políticas de gênero nos municípios brasileiros. Já CPMs são
instâncias participativas que incluem representantes do Estado, da sociedade civil e dos servi-
ços públicos com o objetivo de formular, executar e fiscalizar políticas públicas que compe-
tem à especificidade das mulheres, de maneira que permite a tomada de decisões mais justas,
além de um importante mecanismo de controle social e participação política das mulheres.
Assim, com esse trabalho buscamos conhecer melhor a difusão de CPMs e OPMs pe-
los municípios brasileiros, baseando-se principalmente em dados da Pesquisa de Informações
Básicas Municipais, o MUNIC/IBGE, da edição de 20134, que contempla, para o conjunto
dos municípios brasileiros, informações sobre as políticas especializadas para mulheres.
Para tanto dividimos este trabalho em três partes, além desta introdução. Como
desenvolvimento, na próxima sessão tratamos brevemente do histórico de institucionalização
das pautas feministas, a partir de revisão bibliográfica sobre o tema. Posteriormente,
apresentamos os dados obtidos, e, por fim, apontamos alguns achados e perspectivas nas
considerações finais.

4
Segundo o IBGE, a última edição do MUNIC foi feita em 2015, porém, esta não traz dados sobre a gestão da
política de gênero, portanto, o último MUNIC que contém essas variáveis no banco de dados é o de 2013.
Ressaltamos ainda que mesmo tendo se passado 5 anos, o volume de dados analisados (todos os municípios
brasileiros) se faz relevante para tal análise. Além disso, gostaríamos de pontuar a necessidade de atualização
dos dados por parte dos órgãos competentes.

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Redemocratização e institucionalização de demandas do movimento feminista

O movimento feminista no Brasil possui um histórico muito rico, e sempre foi guiado
pelas particularidades de nosso contexto histórico5. Para fins do objeto que nos propusemos
cumprir e por falta de espaço neste trabalho, tratamos aqui de dois momentos históricos fun-
damentais que nos ajudarão a entender a perspectiva proposta, ainda que reconheçamos que
toda a história do movimento é importante e nenhum aspecto deve ser descartado. Esses mo-
mentos são o período de ditadura militar e a redemocratização vivida com o fim da ditadura.
A importância de se rever o clima político do regime militar, no início dos anos 1970,
se dá pelo destaque da presença das mulheres na luta anti-ditadura, que foi o berço de novas
formas de atuação política, onde Pinto (2003, p. 43) enfatiza “as condições específicas em que
nasce o feminismo brasileiro e os efeitos que estas terão no seu desenvolvimento”.
O período ditatorial é sempre elencado como marco para o movimento feminista. Se-
gundo Márcia Tavares et al. (2011), nesse contexto a ação direta foi a primeira estratégia do
movimento feminista, na medida em que diferentes grupos de ativistas procuraram atender
mulheres atingidas pelas mais variadas formas de violência, criando coletivos com essa finali-
dade. Além de defender suas pautas próprias, muitas mulheres participavam em organizações
clandestinas de esquerda e em grupos guerrilheiros de combate à ditadura militar.
Essas atuações serviram como instrumento de emancipação, segundo Lúcia Avelar
(2015), e foram delas que decorreram eventos como, fóruns, convenções, conferências, movi-
mentos populares e, posteriormente, também a criação de departamentos femininos dentro dos
partidos e dos movimentos sociais.
Portanto, essa foi uma “escola” para o que Céli Pinto (2003) chama de terceira onda
do movimento feminista brasileiro, sendo um momento marcado pela forte participação das
mulheres brasileiras em todo o processo de redemocratização e na construção daquilo que a
autora identifica como uma espécie de “feminismo difuso” e com maior ênfase sobre proces-
sos de institucionalização e discussão das diferenças entre os gêneros.
Essa nova relação entre Estado e sociedade, que foi se desdobrando dos processos de
abertura política, contou com diversos novos repertórios de atuação dos movimentos, havendo
até mesmo a ocupação de cargos comissionados nos governos por ativistas. Essa estratégia foi

5 Conferir em Céli Pinto, 2003.

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usada também por feministas, que ocuparam estes espaços buscando operar as políticas “por
dentro”, sendo chamadas de feministas institucionais (BELANÇON, 2018).
Além das estratégias dos movimentos, houve também a investida por parte do Estado
– ainda que em atendimento às demandas dos movimentos – a partir da criação de canais
abertos no sistema político com intuito de aproximar a sociedade da elaboração das políticas
públicas, o que foi pauta dos movimentos na luta pela redemocratização. Essas instâncias são
representadas pelos Orçamentos Participativos, Conselhos Gestores, conferências temáticas,
comissões, secretarias, etc.
Estes avanços na participação ajudaram ainda a trilhar o caminho para a fundação da
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM). A SPM foi instituída em 2003, no
primeiro mandato do Presidente Lula (PT), e adquiriu caráter de ministério em 2009, o que
demonstra a importância das oportunidades políticas por parte do Estado para o sucesso da
institucionalização dos movimentos. A bibliografia já tratou exaustivamente da diferença que
um governo mais alinhado com a esquerda faz na absorção das demandas dos movimentos
sociais pelo Estado (BELANÇON, 2018; BOHN, 2010; RANGEL, 2013).
A criação da SPM acarretou em grandes avanços para as políticas públicas de mulhe-
res, principalmente por abrir canais nas demais instâncias governamentais, e também por re-
presentar a vontade política em consolidar a institucionalização das políticas de gênero, signi-
ficando, portanto, um marco no que diz respeito às políticas públicas para mulheres. Essas
tendências de institucionalização são caracterizadas por Marlise Matos (2010) como uma
“quarta onda” do feminismo no país.
Influenciada pela criação da SPM, ocorre a I Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres (CNPM), em 2004, que traz em seu relatório, segundo Céli Pinto (2007), demandas
não só por políticas públicas em favor das mulheres, mas como tais políticas devem ser
criadas, discutidas e implementadas. O relatório da CNPM é marcado pela reivindicação das
mulheres como agentes políticos tanto de suas próprias demandas, quanto pela participação
política em todos os conselhos e esferas da política nacional. Nos anos seguintes, as con-
ferências continuaram constituindo-se como importante polo mobilizador de discussões e pro-
positor de políticas para as mulheres.
No que diz respeito ao enfrentamento à violência contra as mulheres, a institucionali-
zação da SPM representou uma ação importante no processo de fortalecimento das ações e es-
tratégias de gestão e monitoramento das políticas públicas (MARTINS, CERQUEIRA e MA-

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TOS, 2015, p. 9). Foi também a partir de sua criação que as demandas passaram a ser vistas
em rede, buscando operar em parceria com as instâncias de atendimento às mulheres em situa-
ção de violência, CPMs, CNPM e Planos Nacionais de Políticas para Mulheres (PNPM).
A preocupação com a capilaridade das políticas para mulheres já estava presente desde
o I PNPM, onde foi enfatizada a necessidade de estados e municípios criarem instituições de
defesa dos direitos das mulheres, através de seu princípio de transversalidade vertical 6 (BRA-
SIL, 2004). Tal difusão vertical dos OPMs é fundamental, uma vez que é nos municípios que
as cidadãs e os cidadãos veem a política acontecer de fato e são por ela atendidas. Nesse senti-
do, os Organismos de Política para as Mulheres

têm a função de fomentar e coordenar a elaboração de políticas públicas e


acompanhar a sua implantação nos respectivos locais onde funcionam e, ainda ser um
polo responsável pela efetividade e defesa dos interesses das mulheres nos níveis
estadual/local (FÓRUM NACIONAL DE ORGANISMOS GOVERNAMENTAIS
DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2014, p. 16).

Portanto, os OPMs e CPMs atuam como mecanismos de manutenção, elaboração, im-


plementação e execução dos direitos e das políticas públicas voltadas para as mulheres. Se-
gundo Grunevald (2009), a SPM seria não só um órgão de representação, como também de
implementação de políticas para as mulheres, em que tem o CNDM como instância vinculada
e ligada as decisões públicas, tendo grande poder representativo e de intervenção em políticas
públicas brasileiras.

Radiografia da criação e expansão de OPMs e CPMs

Um dos objetivos deste trabalho foi verificar a associação entre a presença de OPMs e
CPMs, acreditando que essa “rede” logra benefícios para a elaboração de políticas públicas
para mulheres. Para tanto, realizamos um teste estatístico que mede, além da associação entre
duas variáveis, a força e direção em que ela ocorre7. Nesse teste, os resultados variam de -1 a
1, e os valores (negativo ou positivo) indicam a direção da associação. Portanto, quanto mais
próximo de 1, mais forte é a associação entre as duas variáveis. Constatamos que no caso

6 A transversalidade vertical visa a ampliação da rede de parcerias nos âmbitos estadual e municipal.
Visando a construção da capilaridade necessária para o atendimento às referidas demandas.

7 Trata-se do teste de independência de Yule, que tem por objetivo testar a independência de associação
entre duas variáveis dicotômicas, verificando também a intensidade em que esta relação acontece .

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desta pesquisa, a existência de órgão gestor é acompanhada pela existência do conselho, com
um valor bastante alto (0,74).
Entretanto, aferimos também que a difusão dessas instâncias é bastante restrita, tendo-
se em vista o total de municípios brasileiros, os CPMs estão presentes em apenas 18% e os
OPMs em 28%.
Afim de verificar a influência do contexto histórico e político para a criação destes
órgãos, iniciamos a análise com o gráfico 1, que contém a distribuição dos CPMs por ano de
criação.
Gráfico 1 – Distribuição dos CPMs de acordo com ano de criação

Elaboração Própria
Fonte: Munic/IBGE 2013

Entre as variáveis do MUNIC não consta o ano de criação dos OPMs, por isso neste
momento nos bastamos à análise dos CPMs.
A partir da observação do gráfico 1, podemos identificar alguns picos da expansão
dessas instâncias. Iniciando-se por 2007, ano que marca a criação de 75 CPMs, outro pico se
dá em 2009, com 112 CPMs e ainda, 2011, com 102 CPMs.
Afim de apontas algumas hipóteses para os picos de criação dos CPMs demarcamos
alguns momentos no processo de redemocratização e no período posterior que são im-
portantes da luta por políticas de gênero. Como forma de esquematizar e facilitar a visualiza-
ção, elaboramos o quadro 1, abaixo descrito.

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Quadro 1 – Série histórica da institucionalização das políticas para mulheres


Ano Ação
1983 Criação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo
1985 Criação do Conselho Nacional de Defesa da Mulher
2003 Criação da SPM
2004 1ª Conferência de Políticas para Mulheres (CNPM)
2005 a 2007 Vigência do I PNPM
2006 Criação da Lei nº 11340 (Lei Maria da Penha)
2007 2ª CNPM
2008 a 2011 Vigência do II PNPM
2009 SPM passa a ser Ministério
2011 3ª CNPM
2013 a 2015 Vigência do III PNPM
2016 4ª CNPM
Fonte: Elaboração Própria

Pensando a princípio no pico mais alto, localizado em 2009 levantamos algumas


hipóteses. Primeiramente, esse foi o ano em que a SPM adquiriu caráter ministerial, ou seja,
vinculou-se diretamente ao gabinete da presidência, passando a operar em alto nível
hierárquico (Gonzalez, 2018) e desse modo tendo mais autonomia e recursos para gerir suas
políticas.
Ainda, tendo em vista que esse pico se encontra na vigência do II PNPM, de acordo
com o relatório final de implementação do I PNPM (BRASIL, 2009), este foi pactuado junto
a 21 governos estaduais e cerca de 300 prefeituras, por meio da assinatura de termos de
adesão. Portanto, podemos considerar que este primeiro plano, como toda política pública, foi
absorvido gradativamente, em efeito cascata, iniciando-se principalmente nos estados, e
compreendendo poucas prefeituras, já que essas 300 que assinaram o termo durante o período
representam uma mínima parcela se levarmos em consideração o total de prefeituras em nosso
país.
Outra hipótese testada por Costa (2015) diz respeito a influência da SPM na
capilaridade de instâncias de políticas para mulheres, onde uma das explicações possíveis para

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essa influência se dá pelos convênios firmados com os entes federativos, que beneficiaram os
municípios que aderiram à política.
É preciso enfatizar ainda, que as políticas demoram a ser implementadas, e por isso, é
possível que o boom dessas instâncias tenha se dado apenas durante o II PNPM, onde pôde
ser melhor capilarizado e assimilado pelas prefeituras para torna-se realmente uma política.
Ainda segundo o relatório final de implementação do I PNPM (BRASIL, 2009), foi
ressaltado que a II CNPM – realizada em agosto de 2007 – trouxe alguns dados novos para a
questão da verticalização do PNPM. A primeira e mais importante foi o detalhamento das de-
mandas em prioridades e ações que ampliaram o número de eixos estratégicos do I para o II
Plano. Ademais, foi possível avaliar que a simples assinatura de termos de adesão ao Plano
Nacional por parte de prefeitos/as e governadores/as não foi capaz de transformar o PNPM
em uma realidade para as mulheres. Em vários casos, a adesão ao Plano resumiu-se à assina-
tura do termo, não havendo quaisquer outros desdobramentos de relevância. Assim, para o II
Plano Nacional a estratégia adotada pelo governo federal para regionalizar o Plano foi o estí-
mulo à construção dos planos estaduais e municipais, de forma a adequar as grandes linhas e
objetivos do PNPM às realidades locais.
Uma dessas estratégias, foi a criação do Fórum Nacional de Organismos Governamen-
tais de Políticas para Mulheres, que buscou discutir importantes pautas de ação política, den-
tre as quais as dificuldades de implementação do Plano na realidade local. Promovendo inicia-
tivas como, os Encontros Nacionais e Regionais do Fórum; as web conferências com a partici-
pação das gestoras de OPM estaduais e municipais; a criação de um banco de dados com in-
formações sobre os OPM; a troca de informações e experiências, e também a criação de docu-
mentos oficiais que orientavam sobre a criação de um OPM.
Mas além disso, como afirmado no relatório,

Sabe-se que as pactuações e articulações com estados e municípios são decisivamente


influenciadas por fatores políticos. Assim, cada rearranjo político-institucional nas
esferas subnacionais demanda uma nova investida, um novo processo de
convencimento e sensibilização dos atores locais para a implementação das ações do
Plano em suas cidades ou estados. (BRASIL, 2009, p. 97)

Ou seja, os fatores políticos, sociais, e espaciais de cada município contam muito para
a explicação da difusão. E por esse motivo buscamos conhecer com um pouco mais de deta-
lhes os municípios que absorveram os OPMs e CPMs.

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Uma das variáveis utilizadas para analisar esses municípios que concentram CPMs e
OPMs foi o porte. Do qual obtivemos a tabela 1, abaixo.
Tabela 1 – Distribuição de CPMs e OPMs por municípios de acordo com seu
porte8
Porte CPM (%) OPM (%) Total de Municípios
Metrópole 82 100 17
Grande 79 74 282
Médio 50 52 339
Pequeno 2 26 36 1080
Pequeno 1 7 19 3847
Total 18 28 5565
Elaboração Própria.
Fonte: MUNIC/IBGE 2013.

De acordo com a tabela 1, podemos notar que tanto CPMs quanto OPMs se concen-
tram majoritariamente nas metrópoles, e diminuem a cada grau do porte que descemos, saindo
de uma marca de 100% de OPMs nas metrópoles, por exemplo, e chegando a 19% nos muni-
cípios classificados como “Pequeno 1”.
Outra medida que levamos em conta na análise foi o Índice de Desenvolvimento Hu-
mano Municipal (IDHM), onde obtivemos a tabela 2.

Tabela 2 – Distribuição de CPMs e OPMs por municípios de acordo com IDHM9


Total de
IDHM CPM (%) OPM (%)
Municípios
Muito Alto 66 77 44
Alto 24 28 1889
Médio 16 26 2233
Baixo 10 28 1367
Muito Baixo 9 38 32
Total 18 28 5565
Elaboração Própria.
Fonte: MUNIC/IBGE 2013.

8 Classificação de porte de município segundo o IBGE, onde: Municípios de Pequeno Porte 1: até 20.000
habitantes. / Pequeno Porte 2: de 20.001 até 50.000 habitantes. / Médio Porte: de 50.001 até 100.000 habitantes. /
Grande Porte: de 100.001 até 900.000 habitantes. / Metrópole: mais de 900.000 habitantes.

9
Classificação de IDHM segundo o IBGE, onde: IDHM Muito Baixo: 0 a 0,499: / Baixo: 0,5 a 0,599 / Médio:
0,6 a 0,699. / Alto: 0,7 a 0,799. / Muito Alto: 0,8 a 1.

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Sobre a distribuição dos municípios pelo IDHM, podemos notar, de acordo com a ta-
bela 2, que a presença significativa de CPMs e OPMs se concentra naqueles municípios com
IDH muito alto, onde 77% desses têm OPM e 66% têm CPM.
Porém, há um diferencial se tratando da distribuição de OPMs, que ao contrário do
porte não diminui a cada estágio de classificação, pois podemos observar que em segundo lu-
gar na distribuição percentual de OPMs estão os municípios de IDH muito baixo. A nossa hi-
pótese para esse dado é que os municípios de IDH muito baixo viram na adesão ao OPM uma
janela de oportunidades para angariar recursos orçamentários.
Segundo Costa (2015, p. 19) a SPM auxiliaria financeiramente o município na capaci-
tação dos funcionários do órgão e na compra de equipamentos, por exemplo. Além dos de-
mais convênios possíveis entre a secretaria e o município.
O mesmo não ocorre com os CPMs, que seguem o padrão do porte de município,
como demonstra a tabela 2, quanto menor o IDHM, menos conselhos. Isso porquê, em geral,
carecem de verbas, recursos humanos e infraestrutura para seu funcionamento e instalação.
Além disso, a mobilização de organizações e movimentos de mulheres compreende papel ex-
tremamente importante para a instalação de CPMs, já que para participar como representante
da sociedade civil é necessário participar de alguma organização civil.
Como último objetivo, buscamos ainda identificar se a presença de CPMs e OPMs nos
municípios esteve associada à quantidade e qualidade dos serviços oferecidos para as mulhe-
res. Para isso criamos um índice composto por variáveis que fazem parte do MUNIC.
O índice de serviços é composto por três medidas. A primeira mensura os serviços es-
pecializados para mulher em situação de violência ofertados pelo município em cumprimento
à Lei Maria da Penha. Para a construção dessa medida foram agrupados nove categorias que
descrevem os tipos de serviços, conforme quadro 2, abaixo.

Quadro 2 - Serviços Especializados de gestão municipal para mulheres em situação de


violência no município de acordo com a Lei Maria da Penha
Atendimento psicológico individual
Atendimento psicológico em grupo
Atividades culturais e educativas profissionalizantes
Atendimento jurídico
Atendimento social acompanhado por assistente social que insira a mulher em programas sociais
do governo, como Bolsa-Família e/ou Benefícios de Prestação Continuada
Encaminhamento para programas de emprego e geração de renda

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Atividades de conscientização sobe os direitos da mulher junto à comunidade


Acompanhamento nos casos da Lei Maria da Penha
Outras Atividades
Fonte: MUNIC/IBGE (2013).

Já segunda medida que compõe o índice de serviços é formada pela existência de Casa
Abrigos para o atendimento à mulheres em situação de violência ou risco de morte e os servi-
ços ofertados por estas instituições, reunindo 12 itens, conforme quadro abaixo.

Quadro 3 - Casas-Abrigo para atendimento a mulheres em situação de violência e risco


de morte de acordo com a Lei Maria da Penha
Endereço é sigiloso
Atendimento psicológico individual
Atendimento psicológico em grupo
Atividades culturais e educativas
Atividades profissionalizantes
Atendimento social acompanhado por assistente social que insira a mulher em programas sociais
do governo, como Bolsa-Família e/ou Benefícios de Prestação Continuada
Atendimento jurídico, no caso de advogado próprio ou de Defensoria Pública
Atendimento médico, hospitalar ou de outra especialidade da área de saúde, ou encaminhamento
para serviço de saúde da rede pública
Acompanhamento pedagógico das crianças
Encaminhamento para programas de emprego e geração de renda
Garantia de inserção/permanência das crianças na escola
Creche
Atendimento nos casos da Lei Maria da Penha
Outras atividades
Fonte: MUNIC/IBGE (2013)

Por fim, o último componente do índice de serviços é a existência de serviços de saúde


especializados para o atendimento dos casos de violência contra a mulher.
Estas três medidas foram somadas e depois padronizadas em uma escala que varia de
0 a 1. Portanto, o índice de serviços varia de 0 a 1, onde 1 indica o cumprimento total dos ser-
viços acima elencados.
Cruzamos as informações do índice distribuindo entre municípios “sem CPM e sem
OPM”, “apenas com OPM”, “apenas com CPM”, e “com CPM e OPM”, resultando nas des-
crições da tabela 3.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p994 1004


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Tabela 3 - Média índice de Serviços e Presença de OPM e CPM


Presença de OPM e Conselho Média
Sem conselho ou órgão gestor 0,03
Órgão Gestor 0,10
Conselho 0,09
Conselho e Órgão Gestor 0,25
Elaboração Própria
Fonte: MUNIC (IBGE, 2013)

A tabela 3 aponta, portanto, a diferença que a presença dessas instâncias faz na vida da
cidadã propriamente. É importante pontuar que, conforme descrito acima, nosso índice foi
bastante exigente, e por isso as médias se mostraram baixas. Ainda assim, notamos uma gran-
de diferença dos municípios que possuem CPM e OPM, que chegam a uma média de 0,25 no
índice. Estes resultados apontam também a importância dessa “rede”, uma vez que a existên-
cia de CPM e OPM no município já faz bastante diferença, mas quando juntos a diferença é
ainda mais notável.

Considerações finais

De acordo com os dados apresentados, podemos notar a importância dessa “rede” de


instâncias governamentais, onde atestamos que a presença de CPMs e OPMs esteve associa-
da. E ainda, sugere-se que essa associação é benéfica no que diz respeito a um maior
oferecimento de serviços para as mulheres nos municípios que possuem ambas instâncias.
Ainda concluímos que o número de municípios que possuem CPMs e OPMs é bastan-
te restrito, sendo apenas 28% e 18% respectivamente, e ainda, que a presença ou não desses
organismos estão, dentre outros fatores, vinculados ao tamanho e ao desenvolvimento dos
municípios.
Outra observação importante é de como a busca por benefícios orçamentários parece
fazer diferença na adesão de municípios com IDH muito abaixo aos OPMs, indicando a im-
portância de que o órgão federal possua orçamento próprio para capilarizar estes órgãos.
Esse trabalho é mais um dos tantos que atesta a importância da SPM para a criação e
execução de políticas de gênero, não só institucionalmente mas também simbolicamente. Se-

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p994 1005


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cretaria esta que foi dissolvida de seu caráter ministerial em 2016, operando atualmente como
um pasta vinculada ao Ministério de Direitos Humanos.
Gonzalez (2018, p. 4), levando em conta a influência do contexto político, disputas
internas e demais fatores no funcionamento dessas instâncias, sugere analisá-las a partir de
uma “perspectiva relacional e conjuntural, não como parte de uma maquinaria burocrático-
estatal homogênea e fixa, mas antes em seu caráter dinâmico e complexo, como arenas de/em
disputas”. Desse modo, a autora analisa os diferentes níveis hierárquicos que essas instâncias
de políticas para mulheres podem ocupar, atestando que no Brasil já passamos pelo mais alto
nível e atualmente nos encontramos no mais baixo. Portanto, em nossa realidade o futuro
dessas instâncias se mostra bastante incerto, assim como as políticas de gênero de modo geral.

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tório Final de Implementação: I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – 2005 – 2007.
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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p994 1006


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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p994 1007


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Perfil socioeconômico das mulheres atendidas no Patronato Penitenciário de Londrina

Thaís Aimê Alves da Silva1


Bruna Lais Duarte2
Eliana Cristina Santos3
Resumo:
O presente artigo busca discutir e trazer problematizações a respeito das
particularidades de gênero e como são reconhecidas ou invisibilizadas no atendimento às
mulheres em cumprimento de pena em regime aberto, partindo da experiência profissional do
setor de Serviço Social, vinculado ao projeto de extensão Patronato Penitenciário de Londrina
da Universidade Estadual de Londrina, apresentado e subsidiado pelo Subprograma
Incubadora dos Direitos Sociais – PATRONATO – do Programa Universidade Sem
Fronteiras. Para iniciar a discussão foi traçado um perfil socioeconômico destas mulheres, a
fim de verificar como essas estão representadas no contexto das penas em meio aberto.
Desta forma buscamos compreender as relações entre os sexos como relações de
poder, propondo a trazer uma síntese dos dados e análises do perfil socioeconômico a partir
dos seguintes eixos: faixa etária, escolaridade, filhos, renda familiar e região de moradia.
A metodologia utilizada seguiu abordagem qualitativa e quantitativa, por meio da
sistematização e análise dos dados para desenvolver o perfil socioeconômico das mulheres
assistidas no cumprimento de pena em regime aberto na instituição. Tais dados encontram-se
no sistema SISPAT (Sistema Informatizado de Beneficiários do Patronato Penitenciário de
Londrina)4. Porém algumas informações a respeito das condições que as assistidas cumprem,
não foram sistematizadas, pois às informações contidas no sistema de dados está
desatualizada, sendo que este sistema está em fase de aperfeiçoamento e não foi possível uma
pesquisa diretamente no arquivo físico da instituição. Entretanto esse dado será levantado,
porém não foi possível apresentá-lo neste trabalho.
Para auxiliar na compreensão do fenômeno estudado verificou-se a necessidade de
sistematizar as ações realizadas pelas áreas profissionais que atuam nesta instituição, sendo
estas a administração, o jurídico, a pedagogia, a psicologia e o serviço social. Observamos
que as ações desempenhadas não estão voltadas a evidenciar estas particularidades de gênero,

1
Universidade Estadual de Londrina; Graduanda; e-mail:thaisaime@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; Pós-Graduanda; e-mail: brunalais.duarte@gmail.com.
3
Universidade Estadual de Londrina; Docente;e-mail:elianacristinasantos@outlook.com.
4
Foi possível o acesso aos dados, decorrentes à autoras manterem um vínculo institucional com o Patronato
Penitenciário de Londrina.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1008


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visto que no banco de dados não encontramos tais recortes que possam auxiliar nos estudos
socioeconômicos das mulheres já atendidas pelo Patronato Penitenciário de Londrina-PR.
Palavras-chaves: penas alternativas; mulheres; perfil socioeconômico

1. O encarceramento feminino e as alternativas penais no Brasil


O encarceramento foi historicamente tratado como demanda secundária tanto pelas
políticas de segurança pública e justiça, quanto nos estudos sobre o cárcere. Por assumir
proporcionalidade menor em relação aos homens no mundo do crime, as demandas femininas
sempre estiveram a reboque das masculinas, ou seja, sem ter uma política e atendimento que
supram suas peculiaridades. Atualmente assistimos o aumento da participação feminina no
mundo do crime, o que faz que com algumas considerações e problematizações a respeito
sejam tecidas, e que se busque atender as demandas que surgem a partir deste contexto.
A respeito do encarceramento feminino, buscamos verificar a proporcionalidade entre
os diferentes tipos de regime submetidos às mulheres em um contexto nacional, estadual e
posteriormente analisarmos a situação das assistidas atendidas pelo Patronato Penitenciário de
Londrina.
Segundo dados levantados pelo Ministério de Justiça, a quantidade de mulheres
encarceradas sofreu um aumento de 656% em um período de 16 anos, sendo que no mesmo
período, a população encarcerada masculina aumentou 293% (FERNANDES, 2018). Estes
dados evidenciam que o envolvimento das mulheres com a criminalidade tem aumentando até
três vezes mais em relação aos homens, e traz a tona a necessidade de se pensar o cárcere a
partir das demandas femininas.
Os dados apresentados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias –
INFOPEN Mulheres apontam que aproximadamente 45% destas mulheres encarceradas ainda
aguardam julgamento na justiça, o que significa que quase metade das mulheres presas nem se
quer foram condenadas, evidenciando a sua invisibilização e falta de compromisso das
políticas voltadas a esta população.
O Estado do Paraná apresenta índice de detidas sem condenação com 27% de
incidências. O gráfico a seguir, mostra a população carcerária feminina e qual a
proporcionalidade entre os diferentes tipos de regime em nível nacional.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1009


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Os dados apresentados demonstram que apenas 7% da população carcerária


feminina, cumprem as sanções penais em regime aberto, mesmo índice encontrado na cidade
de Londrina. Entretanto é importante pontuar, que as alternativas penais, como demonstradas
no gráfico acima, ainda ocupam uma pequena parcela da execução penal, o que pode sugerir
que mesmo as mulheres que cometem crimes de menor potencial ofensivo, o recurso penal
mais utilizado são as penas privativas de liberdade.
O Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPEN) emitiu neste ano de
2018 uma solicitação para realizar um levantamento de dados a respeito das mulheres
atendidas na instituição. Foi percebido que com perguntas estavam circunscritas mais às
questões relacionadas ao meio familiar das mulheres, e requisitavam informações
aprofundadas a respeito da composição familiar, situação dos filhos, como “a data de
nascimento e com quem residem”. Notou-se então certa distinção entre o que se solicita a
respeito das informações colhidas junto aos atendidos homens e para as atendidas mulheres,
despertando o interesse em estudar como as particularidades de gênero se configuram a partir
do atendimento destinado às mulheres em cumprimento de penas e medidas em regime aberto
no Patronato Penitenciário de Londrina.
Ponderando que a instituição, até dia 06 de abril de 2018, atendeu o total de 1991
assistidos/assistidas em cumprimento de penas alternativas ou medidas alternativas, sendo
deste total 1.833 homens (92%) e 156 mulheres (8%), a questão que se levanta gira no sentido
de compreender esta discrepância entre homens e mulheres. Uma forma de identificar fatores
possíveis a esta acentuada diferença é identificando qual o perfil das mulheres que são
encaminhadas para o cumprimento da pena em meio aberto, para assim notar se existem
variações ou recorrências no que diz respeito à idade, composição familiar, natureza da
infração cometida, local de moradia, maternidade, etc.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1010


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Buscamos realizar uma análise referente à realidade da cidade de Londrina, com um


recorte no regime aberto, porém é importante destacarmos as alternativas penais em âmbito
nacional, sendo que os dados evidenciam que grande parte da população carcerária, ainda está
sem condenação e de acordo com o INFOPEN Mulheres (2018, p. 19-20),
De acordo com o gráfico, 45% das mulheres presas no Brasil em Junho de
2016 não haviam sido ainda julgadas e condenadas. A primeira edição do
INFOPEN Mulheres, que trazia dados referentes à Junho de 2014, apontava
que 30,1% das mulheres encarceradas não tinham condenação. A expansão
do contingente de mulheres presas sem condenação deve ser ainda mitigada
em relação à ausência de dados sobre mulheres em carceragens de
delegacias. A lacuna de dados com recorte de gênero sobre os espaços de
custódia administrados pelas forças de segurança pública pode atenuar um
quadro de dificuldade de acesso à justiça que, ainda que observado em
relação ao conjunto da população prisional, apresenta especificidades
significativas em relação às mulheres.

Este é um dado importante a ser discutido, pois possibilita destacarmos como a


invisibilidade da mulher acaba agravando a sua pena, justamente pela falta de informação em
banco de dados, grande parte delas não foram julgadas e condenadas, dificultando assim seu
acesso à justiça e a continuidade de seu processo judicial. Muitas dessas mulheres
encarceradas sem condenação poderiam estar em liberdade ou cumprindo a pena em regime
de meio aberto.
Entretanto, o Estado do Paraná, supera a taxa nacional, pois a quantidade de
assistidas que cumprem a sentença em regime aberto é superior a média nacional e também
concentra o maior contingente de sentenciadas, considerando os outros tipos de regimes. No
entanto Londrina está de acordo com a média nacional e abaixo da estadual.

Tipo de regime das assistidas Presas sem


condenação (890)
0% 1%
Regime Fechado (666)

27% Regime Semi Aberto


(168)
46%
Regime Aberto (1502)

21% Medida de Segurança -


Internação (7)
5%
Medida de Segurança -
Tratamento
ambulatorial (18)

Fonte: INFOPEN, JUNHO, 2018

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1011


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Exemplificado pelo documento elaborado pelo INFOPEN a respeito da ausência de


dados com recorte de gênero é também uma característica que evidenciamos ao longo do
processo de construção desse artigo, pois algumas informações que consideramos essenciais
para a construção de um perfil socioeconômico, que é a respeito da renda familiar que quando
não encontradas, é exposta em dados mais gerais, que dificultam uma análise mais
aprofundada, sobretudo a respeito da participação da mulher na composição e
responsabilidade no orçamento doméstico, que pode ser partilhado ou exclusivo de
responsabilidade das mesmas. A posse desta informação contribui para identificar que quando
ela assume parte ou exclusivamente a responsabilidade financeira da família, se impõe logo a
dificuldade de se ausentar das atividades laborais, sejam elas formais ou informais, para o
cumprimento da pena em meio aberto. O que não significa que as mulheres não possam
usufruir desta pena, mas que no planejamento de como será executada é imprescindível ser
considerada sua condição familiar para que haja condições favoráveis de cumpri-la, e não
deve a se tornar uma sobrepena. Considerar as particularidades de gênero é reconhecer que
ainda temos uma divisão desigual entre homens e mulheres no que diz respeito à
responsabilidade pelas atividades domésticas e de cuidados com os filhos.

Tipo de regime dos assistidos


0%1% Presos sem condenação (4296)

11%
Regime Fechado (11705)

Regime Semi Aberto (2593)

30%
51% Regime Aberto (19847)

Medida de Segurança -
7% Internação (294)
Medida de Segurança -
Tratamento ambulatorial (201)

Fonte: INFOPEN, JUNHO, 2016

Os dados a respeito da população carcerária no estado do Paraná nos mostram que os


homens (51%) ainda acessam mais o regime aberto, que as mulheres (46%), porém o que
aparece é que a taxa de presas sem condenação (27%), permanece mais baixa se comparada à
taxa nacional, porém mais se comparada com a população masculina (11%) em nível estadual.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1012


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2. A contextualização das penas e medidas alternativas


2.1 O surgimento das alternativas penais e o contexto brasileiro
Tendo em vista os altos níveis de violação dos direitos humanos da população
carcerária com o desenvolvimento de medidas com viés punitivo, evidenciam-se na iniciativa
das Organizações das Nações Unidas desde os anos 1950, recomendações oficiais voltadas a
atender essas necessidades englobando as mínimas condições de respeito aos direitos
humanos desta população num tratado mundial. De tal forma inicia-se pela ONU a
recomendação oficial de penas que não incidam na restrição de liberdade. Com o
amadurecimento desta iniciativa em 1990 é aprovada em Assembléia Geral da ONU a
Resolução n° 45/110 estabelecendo as Regras Mínimas das Nações Unidas, conhecidas como
Regras de Tóquio, para que se desenvolvam as medidas não privativas de liberdade.
(ALAPANIAN; DUARTE, 2001)

Exemplificando, o sentido norteador das medidas não privativas de liberdade ou


também chamadas de penas e medidas alternativas voltam-se a substituir ou restringir a pena
de prisão e busca por não afastar o apenado do convívio em sociedade.

Trazendo essa discussão para o contexto brasileiro, contextualizamos as alternativas


penais a partir da reformulação do Código Penal em 1984 e prevê que a aplicação das penas
restritivas de direito, obedecem às seguintes condições:
a) Que a pena privativa de liberdade aplicada ao réu não seja superior a 04
(quatro) anos e o delito não tenha sido cometido com violência ou grave
ameaça à pessoa. Se o delito for culposo (cometido sem a intenção) cabe
pena restritiva de direitos qualquer que seja a pena aplicada;

b) Que o réu não seja reincidente em crime doloso (cometido com intenção);

c) Que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade


da pessoa sentenciada, bem como os motivos e as circunstâncias em que
ocorreu o delito indiquem que a substituição por pena alternativa seja
suficiente para prevenir a reincidência. (PARANÁ, 2000, p. 4 - 5)

A partir das condições citadas acima, o artigo 43 Código Penal brasileiro, prevê que
as penas restritivas de direito são “... I- prestação pecuniária; II-perda de bens e valores; III
– (vetado); IV - prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; V- interdição
temporária de direitos;VI- limitação de final de semana.”(Lei nº 9714/1998).
O cálculo utilizado para sentença, geralmente é o de 1 hora de trabalho para cada dia
de pena que a pessoa cumpriria no regime fechado. Desta forma, ocorre que o cumprimento se
dá em um período maior.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1013


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É importante ressaltarmos e discutirmos também a respeito das medidas alternativas,


que foram inseridas no direito penal brasileiro a partir da Lei dos Juizados Especiais
Criminais (Lei 9099/95), que possibilitaram a introdução da Transação Penal e da Suspensão
Condicional do Processo. (PARANÁ, 2000, p. 5)
Nesta condição, se dá nos casos em que as pessoas que ainda estão sendo
processadas, e que
Por serem réus primários e não oferecerem risco à sociedade, o Ministério
Público apresenta-lhes uma proposta que, se aceita, tornará suspenso o
processo por 02 anos. Nesta proposta estarão presentes determinadas
condições que deverão ser cumpridas, entre elas a prestação de serviços à
comunidade. Neste caso, as pessoas não foram julgadas nem condenadas e,
por isso, seu período de cumprimento da prestação de serviços à comunidade
tem sido fixado em dois meses. No caso da suspensão condicional do
processo pode haver uma certa flexibilidade nas condições de cumprimento
da medida, desde que tais alterações tenham justificativas comprovadas e
sejam autorizadas pelo Juiz e pela Promotoria de Justiça.(PARANÁ, 2000,
p. 5)

Nesses apontamentos, observamos que as alternativas penais, contemplam crimes de


menor potencial ofensivo e que possibilita ao sentenciado o convívio familiar e comunitário
durante o cumprimento de sua pena, onde este não se afasta do cotidiano, podendo exercer
suas atividades laborais e/ou de estudos.
Algumas das condições imposta para cumprir as penas em meio aberto são:
recolhimento na residência das 21 horas às 6 horas; obter ocupação lícita e comprovar
bimestralmente no Patronato, junto com a comprovação de endereço; não consumir bebidas
alcoólicas e nem substâncias entorpecentes, bem como frequentar locais que comercializam
tais substâncias e também não se ausentar da cidade de Londrina por um período maior de
oito dias, sem prévia autorização judicial, dentre outras que de acordo com a decisão judicial.

É importante ressaltar, que segundo o Art. 14 da Lei de Execução Penal n 7.210/1984


o atendimento destinado à mulher aparece quando relacionado às situações de saúde,
principalmente ligadas ao parto: “...§ 3o Será assegurado acompanhamento médico à mulher,
principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido.”, bem como o
ensino profissional e o estabelecimento de unidades prisionais femininas, com corpo técnico
também feminino, porém essas especificidades são a respeito do regime fechado.
Referente aos Patronatos, a Lei de Execução Penal nº 7210/1984, também aponta as
atribuições suas atribuições:

Art. 78. O Patronato público ou particular destina-se a prestar assistência aos


albergados e aos egressos (artigo 26).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1014


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Art. 79. Incumbe também ao Patronato:


I - orientar os condenados à pena restritiva de direitos;
II - fiscalizar o cumprimento das penas de prestação de serviço à
comunidade e de limitação de fim de semana;
III - colaborar na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e
do livramento condicional.

Observamos então, certa invisibilidade a respeito das particularidades femininas no


texto da Lei de Execução Penal nos trechos que se refere ao cumprimento da pena em meio
aberto. Assim, também foi identificada esta situação nos atendimentos realizados pelo
Patronato Penitenciário de Londrina.
O Patronato Penitenciário de Londrina se configura como uma instituição de ordem
pública da Secretaria de Segurança Pública do Paraná, subordinado ao Departamento
Penitenciário do estado do Paraná – DEPEN, sendo que suas atribuições consistem no
monitoramento, fiscalização e acompanhamento do cumprimento das alternativas penais, no
que consiste toda e qualquer forma de cumprimento de pena ou medida alternativa em meio
aberto. (Arts. 78 e 79, Lei nº. 7.210/84).

Assim, a Secretaria de Justiça do Estado do Paraná firma um convênio com a UEL


oficializando o projeto e estabelecendo financiamento. Ao decorrer dos anos o projeto passou
pelos nomes „„Programa Themis‟‟ e „„Programa Pró-Egresso‟‟ e diversas estruturações,
encerrando em 2001 o convênio com a universidade. Após o término do Projeto de Extensão,
o serviço passou a figurar enquanto política pública do Estado, ficando sua execução sob-
responsabilidade do DEPEN, sendo um órgão vinculado a SEJU5. Somente em 2014, após o
recuo do Estado do Paraná em manter o serviço, o convênio com as Universidades Estaduais
se reestabelecem por meio do projeto de extensão Subprograma Incubador dos Direitos
Sociais – PATRONATO – do Programa UniversidadeSem Fronteiras, sendo as áreas
profissionais que atuam no projeto a administração, o jurídico, a pedagogia, a psicologia e o
serviço social6.

3. As particularidades das mulheres atendidas no Patronato Penitenciário de Londrina


Referente à análise dos dados para construção de um perfil socioeconômico, foram
definidos os seguintes eixos de análise: faixa etária, escolaridade, filhos, renda familiar e
região de moradia.

5
Secretaria de Justiça Trabalho e Direitos Humanos.
6
Ressaltamos que o curso de Serviço Social se vinculou ao projeto somente no ano de 2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1015


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No que se refere à faixa etária das mulheres que cumprem medida em meio aberto
atendidas pelo Patronato Penitenciário de Londrina, podemos observar que grande parte das
assistidas atendidas pela instituição possui de 20 a 30 anos (37%), seguidas pelo grupo de 31
a 40 anos (29%), sendo um público mais jovem, que ocupa mais da metade das assistidas pela
equipe da instituição.

Faixa Etária
de 20 anos à 30
1% anos (58)
9% de 31 anos à 40
anos (45)
37% de 41 anos à 50
24% anos (37)
acima de 51 anos
(15)
Não possue registro
29%
(1)

Referência: SISPAT (2018)


Sobre a escolarização, nota-se que sendo um grupo jovem de mulheres, verificamos
um baixo nível educacional, que grande parte das assistidas possui Ensino Fundamental
Incompleto (38%).

Situação Educacional das assistidas


Não alfabetizado (3)
2%
Alfabetizado (4)
2% 3%
2% Ensino Fundamental Incompleto (60)
8% Ensino Fundamental Completo(17)
Ensino Médio Incompleto (23)
19% 38%
Ensino Médio Completo (30)

15% Ensino Superior Incompleto (3)


11% Ensino Superior Completo (13)
Não possui registro (3)

Referência: SISPAT (2018)


Ao analisarmos os dados observamos a materialização das demandas expressas pelas
assistidas quando se apresentam ao setor de Serviço Social do Patronato Penitenciário de
Londrina durante os atendimentos e acompanhamento de suas sanções penais, quando
demonstram a preocupação em resolver situações além das que envolvem a sua pena, mas
demandas envolvendo os filhos e/ou os outros componentes da família, como também a

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1016


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dificuldade de conciliar as atividades. Assim, evidenciamos a sobrecarga que é imposta as


mulheres no que se refere à obrigação com as atividades domésticas e a proteção de seu corpo
familiar, reforçando a desigualdade de gênero e a centralidade da mulher no âmbito familiar,
pois observamos essas situações por meio de relatos das próprias assistidas, colocando em
questão todas essas atividades que as mesmas desenvolvem em seu cotidiano.

Sobre a composição familiar das assistidas, fato que merece destaque e sendo que
uma das dificuldades apresentadas pelas assistidas é a impossibilidade de cumprimento da
pena, principalmente quando esta é por forma de Prestação de Serviços à Comunidade, devido
à insuficiência de vagas para a educação infantil disponível na cidade ou no território da
mesma que possa atender seus filhos neste período, demanda esta que dificilmente aparece
nos casos masculinos. O que sugere que o serviço não reconhece que a responsabilidade
materna é um fator que interfere na forma como a medida em meio aberto será cumprida.
Conciliar o cumprimento da medida em meio aberto, com a rotina pessoal, e mais a rotina e
cuidados com filhos/filhas é fator determinante, que deve ser considerado inclusive na hora de
definir como esta pena será cumprida. Quando o serviço ignora esta informação logo verifica
que este não debruça preocupação em reconhecer e enfrentar as particularidades que a
maternidade impõe para o cumprimento da pena.

Número de filhos

Possuem filhos (56)

35% Gestantes (3)

Não possuem filhos


57%
(10)
Não possuem registro
6% (90)
2%

Referência: SISPAT (2018)


Observamos também a dificuldade referente ao acesso das assistidas às demais
políticas sociais, sendo que essas reforçam os estereótipos de gênero e que segundo Castilho e
Carloto (2010, p 14),
[...] política social com centralidade na família, exige dos formuladores,
gestores e operacionalizadores, a apreensão destas e de outras
“complexidades”, as quais devem ser consideradas, para que a família possa

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1017


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ser devidamente amparada pelo Estado. Ao qual cabe garantir programas,


projetos, serviços e benefícios de proteção aos indivíduos e famílias. Para
que a família, especialmente a mulher enquanto “principal responsável”
pelos cuidados do grupo familiar, não seja responsabilizada pelas mazelas
sofridas, tendo que buscar estratégias de superação por meio da sua rede de
sociabilidade e de solidariedade, reforçando a desigualdade de gênero, à
medida que aumenta a sobrecarga feminina e reforça os papéis
“historicamente” construídos de “cuidadora”.

As observações realizadas pelas autoras expressam justamente o cotidiano dos


relatos das assistidas durante os atendimentos, que as mesmas possuem dificuldades no acesso
às outras políticas sociais.
A respeito da renda familiar, como já expressado acima acerca da dificuldade em
relação ao registro de dados, aqui nos deparamos com a falta de registro, pois o uso do
SISPAT, que é o sistema de informações da instituição, é de uso comum, porém cada setor é
responsável por informações específicas que auxiliam em seu cotidiano profissional. A
informação sobre a renda familiar está disponível em cadastro vinculado ao setor de Serviço
Social, e que devido ao processo de aposentadoria da profissional de referência da instituição
e posteriormente a não substituição da mesma, a informação a respeito da renda familiar não
está disponível nos cadastros analisados. Quando possui a informação, se apresenta de modo
genérico e pouco consistente, como se observa em 67% dos registros não constam esta
informação, o que se impõem como um possível obstáculo para se formular ações concretas,
que possam subsidiar o desenvolvimento das ações profissionais no sentido de viabilizar
maior possibilidade das assistidas cumprirem a medida.

Renda Familiar

de 1 à 5 sálarios
mínimos (51)
33%
de 5 à 10 salários
mínimos (1)
67% Não possui registro
0% (104)

Fonte: SISPAT (2018)


Assim, observamos que os dados disponíveis, nos apresentam um recorte mais
resumido, que 33% (51) das assistidas possuem renda familiar de um a cinco salários
mínimos e somente uma assistida possui renda familiar acima de cinco salários mínimos.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1018


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Esses apontamentos também colocam em questão, o impulso das mulheres no


envolvimento com o crime, sendo “... uma das motivações para a inserção das mulheres no
mundo do crime pode ser a situação econômica vivenciada, o que as levaria a buscar,
através do ato ilícito, suprir necessidades demandadas pelo grupo familiar, em particular
pelos filhos.” (TADIOTO; PIRES, 2009, p. 74).
Observamos que os dados demonstram que as regiões com maior residência das
assistidas estão localizadas na área urbana e que somente um pequeno número é residente da
área rural e apenas uma em situação de rua.

Muitas destas apresentam também algumas dificuldades no cumprimento da


sentença, quando estas são Prestação de Serviço à Comunidade ou Medida Educativa, pois em
muitos casos não há instituições no território de origem, em que as mesmas podem realizar o
cumprimento da sentença, seja pelos horários disponíveis ou pelo número de vagas. Dessa
forma, há um deslocamento do território de origem para se cumprir a medida imposta. A
necessidade de deslocamento pode ser um fator que gere o descumprimento da sanção penal,
devido à falta de condições econômicas para custeio do deslocamento, visto que uma das
grandes dificuldades enfrentadas hoje pelo Patronato Penitenciário de Londrina se refere à
concessão de vale transporte, sendo que o serviço não conta com uma política que garanta
meios para as/os assistidos se deslocarem para o cumprimento, fator que gera índice elevado
de descumprimento da pena. Este fato demonstra que o sucesso da medida em meio aberto
esta intrinsecamente ligada nas condições reais de poder cumpri-la.

Regiões de Moradia
2% 0% 1%
Oeste (40)
10% Norte (34)
21%
Centro (33)
Leste (56)
30% Sul (18)
18%
Aréa Rural (3)
Situação de rua (1)
18%
Não possui registro (1)

Referência: SISPAT (2018)

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1019


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Notamos que quanto às condições que as assistidas cumprem, o sistema classifica em


Regime Aberto, Prestação de Serviços à Comunidade – PSC, Transação Penal, Livramento
Condicional, Liberdade Vigiada, dentre outros. Entretanto, devido às alterações ao longo do
processo de aperfeiçoamento do sistema de dados, que ainda está ocorrendo, essas
informações não estão atualizadas, sendo necessária a verificação no arquivo físico de cada
assistida para se obter informações das atuais condições de cumprimento, entretanto ainda não
foi possível essa verificação.

Considerações finais.
Após o levantamento e análise destes dados sobre a perspectiva de gênero podemos
preliminarmente dizer que não aparecem apontamentos específicos nos documentos oficiais
referentes ao regime aberto ou nos documentos que orientam à atividade profissional no
Patronato Penitenciário de Londrina, o reconhecimento das particularidades de gênero, a
respeito da maternidade e quanto ao acesso às demais políticas sociais. Tal indicação pode ser
visto como a invisibilidade feminina se faz presente também no sistema penitenciário.
O que ficou também evidente é que mesmo tendo um aumento três vezes maior de
mulheres no encarceramento feminino nos últimos dezesseis anos em relação ao aumento do
encarceramento masculino, os homens acessam mais o regime aberto que as mulheres.
Quando se dá visibilidade as mulheres, requisitando levantamento de dados referentes à suas
condições particulares, demonstram que o fato de ser mulher dificulta o cumprimento da
sanção penal.
O que observamos no cotidiano de trabalho é que as assistidas, via de regra devem
quase que sozinhas superar as possíveis dificuldades para cumprir a pena imposta, conciliando
que o exercício de suas atividades domésticas, compromisso com os filhos, além de garantir o
sustento familiar.
Assim, com a sistematização de dados, verificamos que a condição da mulher na
sociedade na qual é reservado a ela quase que exclusivamente às funções domésticas recai
como um obstáculo a ser superado também para conseguirem cumprir a pena.
Além disso, informações importantes que poderiam explicitar a condição dessas
mulheres, são ocultadas ou não identificada sua importância, principalmente a respeito da
composição e renda familiar, das condições que exercem a maternidade, sobre as
peculiaridades de sua participação no crime, e como elas se sentem frente a um sistema penal
pensado sob a lógica masculina, pois são informações fundamentais para se pensar ações que
auxiliariam no cumprimento da sanção penal imposta as mulheres.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1020


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Disponível em <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-
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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1008 1021


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Gênero: Usos e Deturpações do Conceito pelo Movimento Escola sem Partido

Amanda Camargo Rocha1

Resumo:
A proposta deste trabalho é analisar o surgimento do Movimento Escola Sem
Partido, compreendendo sua trajetória e finalidades ao defender a implementação de
legislação específica que visa regular temas e determinar a conduta dos profissionais da
educação em sala de aula. Apesar da agenda defendida pela Escola Sem Partido abarcar
inúmeros temas, damos especial atenção ao conceito de gênero e como o mesmo é tratado
pelos membros do mencionado grupo. Lança-se mão de entrevistas e textos divulgados pelos
membros do movimento, especialmente por seu fundador, o procurador do estado de SP,
Miguel Nagib. Além disso, analisa-se os conteúdos disponibilizados em site de divulgação
criado por seus seguidores. Para realização das referidas análises, parte-se do
desenvolvimento teórico-metodológico proposto pelo historiador alemão Reinhart Koselleck
em favor de uma história dos conceitos. Consideramos, a partir dessa perspectiva, a
ressignificação do conceito de gênero pelo programa Escola Sem Partido, que cunha o termo
“ideologia de gênero”.
Por fim, conclui-se que o Movimento Escola Sem Partido pode ser encarado como
uma reação à discussão de temas progressistas realizadas nas salas de aula de ensino básico e
superior. Pautado na defesa dos diversos temas e interesses que compõem a agenda
conservadora, esse grupo tem ocasionado discussões e difundido seus ideais em todo o Brasil
com a finalidade de interferir nas políticas públicas para a educação. O principal objetivo do
programa Escola Sem Partido é atender a demanda reacionária ao censurar e proibir a
presença de determinadas temáticas no ensino, bem como determinar o que e de qual forma os
profissionais da educação devem ensinar em suas aulas, tolhendo a autonomia docente e
tornando a educação um mecanismo da manutenção da ordem patriarcal, racista e capitalista
vigente, e não instrumento de libertação e transformação social.

Palavras-chave: Movimento Escola sem Partido, Gênero, Políticas Educacionais

1
Graduada em História e especialista em Patrimônio e História pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail:
rochamandacamargo@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1022 1022


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Introdução
Repercutindo no cenário político brasileiro a partir de 2010, o Movimento Escola
Sem Partido (MESP) foi fundado no ano de 2004 pelo advogado e procurador público do
estado de São Paulo, Miguel Nagib. Segundo o criador, sua motivação surgiu ainda em 2003
após ser informado por sua filha que em uma aula de História, cujo intuito era abordar
personalidades que lutaram por seus ideários, seu professor havia comparado o santo da Igreja
Católica São Francisco de Assis ao revolucionário cubano Ernesto Che Guevara. Motivado
por tal acontecimento, Nagib teria escrito uma carta aberta ao professor em questão, tendo
distribuído o texto entre os pais dos alunos do colégio. A reação desses sujeitos, teria sido
contrária ao seu objetivo, motivando-o a organizar um movimento para lutar contra aquilo que
chama de “doutrinação ideológica”, que estaria abusando dos estudantes nas escolas do país.
(NAGIB, 2016, Entrevista concedida a Thalita Benedinelli)
De acordo com Nagib, ao serem obrigados a frequentar a sala de aula e não poderem
desviar-se das falas e ideias emitidas por seus professores, os alunos se tornariam público
cativo, ou seja, não teriam a liberdade para se retirar e deixar de ouvir o que seus professores
têm a dizer, estariam presos às salas de aula. Dessa forma, o professor que tem objetivos
políticos e ideológicos específicos, acabaria utilizando da obrigatoriedade da presença de seus
alunos para incutir-lhes opiniões e ideários; a isso o MESP conceitua como doutrinação.
Nesse sentido, ao determinar os objetivos do movimento, Nagib afirma que:
Nosso movimento tem, basicamente, dois objetivos: combater o uso do
sistema educacional para fins políticos, ideológicos e partidários; e defender
o direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos. O que
pretendemos é assegurar que a Constituição Federal seja respeitada dentro
dessas pequenas frações do território nacional que são as salas de aula. (2015
- Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros)

Portanto, segundo o movimento, os professores utilizam-se de um dever, que é o de estar


presente em sala de aula, para cooptar política e ideologicamente seus alunos. Ao utilizar o
termo “audiência cativa” remete à ideia de escravidão. Sendo assim, os alunos tornariam-se
“escravos” político-ideológicos de seus professores, cujo objetivo seria perverter-lhes as
ideias e garantir a disseminação de suas próprias concepções políticas e ideológicas. De
acordo com tal concepção, estes profissionais se valem de seu público vulnerável ainda em
formação para atender as demandas de partidos políticos e ideologias específicas.
Na fundamentação de suas proposições, de maneira falaciosa, o criador do referido
movimento afirma tratar-se de um discurso puramente legalista, que segue ostensivamente a
letra da lei com o intuito de denunciar as ilegalidades cometidas nas escolas brasileiras.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1022 1023


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Afirma também que se trata de movimento sem filiação política, independente e sem fins
lucrativos. No entanto, suas próprias convicções políticas, ideológicas e religiosas são
facilmente identificáveis quando nos deparamos com as principais bandeiras que têm sido
levantadas pelo MESP, a saber: a luta contra aquilo que chamam de “doutrinação marxista”
efetivada por professores de esquerda e a extirpação de discussões cujo tema se relacione ao
que chamam de “ideologia de gênero”. Em entrevista concedida ao site católico zenit.org,
Miguel Nagib afirma que:
[...] o Estado não pode usar o sistema de ensino para promover concepções e
valores que sejam hostis à moralidade de uma determinada religião. Se ele
fizer isso, deixará de ser neutro em relação a essa religião (é o que está
acontecendo, por exemplo, com a chamada “ideologia de gênero”: ao adotar
e promover os postulados dessa ideologia — que são claramente hostis à
moral sexual da religião cristã –, as escolas e os professores estão
hostilizando a própria religião cristã, e violando, portanto, o princípio
constitucional da laicidade). [...]
Os danos causados pela doutrinação em sala de aula não se limitam ao plano
do conhecimento e das escolhas políticas e ideológicas que serão feitas pelo
indivíduo ao longo desta vida (o que não é pouca coisa, diga-se).
Infinitamente mais graves são os efeitos que se projetam sobre a vida eterna.
Refiro-me, por exemplo, ao jovem cristão que vem a perder a fé por
influência de algum professor marxista. E não é segredo para ninguém que
as instituições de ensino estão infestadas de ateus militantes. (2015,
Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros).

Não é necessário que seja feita uma análise aprofundada do trecho acima citado para que se
compreenda as convicções, princípios e valores que as guiam. O discurso é, em seu todo,
permeado pelo conservadorismo; a moral cristã aparece de forma latente, bem como
encontramos o repúdio a pensadores marxistas e, consequentemente, teóricos políticos ligados
aos pensamentos da esquerda. Não é por acaso que as demandas defendidas pelo Escola Sem
Partido foram não apenas aceitas, como abraçadas por partidos políticos conservadores de
direita e membros da chamada “bancada evangélica” que têm ou tiveram seus mandatos
vigentes nos últimos anos. Sinal disso são os dados informados pelo blog “Pesquisando o
Escola sem Partido”, surgido a partir da dissertação de mestrado intitulada “Escola sem
Partido”: Relações entre Estado, Educação e Religião e os impactos no Ensino de História, de
autoria de Fernanda Pereira de Moura, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino
de História (ProfHistória), da UFRJ, também divulgados na página da web do coletivo
“Professores Contra o Escola sem Partido”, que indicam que no Brasil, contabilizando as
esferas Estadual e Municipal, já foram apresentados aproximadamente 146 projetos de lei até
08 de janeiro de 2018. No mesmo período encontramos também 12 projetos que tramitam na
esfera federal.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1022 1024


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Ainda segundo entrevista sobre o que caracteriza “doutrinação ideológica” e como o


Movimento Escola sem Partido tem agido, Miguel Nagib afirma que:
Para combater esses abusos e ilegalidades, o movimento Escola sem Partido
vem atuando em três frentes: legislativa, judicial e extrajudicial.
Na frente legislativa, estamos promovendo o “Programa Escola sem
Partido”. [...]
Na frente judicial, estamos orientando os estudantes e os pais que se
sentirem lesados pela prática da doutrinação política, ideológica e moral em
sala de aula, a buscar na Justiça a reparação dos danos materiais ou morais
porventura sofridos. [...]
Por fim, na frente extrajudicial, estamos realizando palestras e seminários,
com o objetivo de esclarecer as partes envolvidas na relação de aprendizado
— escolas, professores, estudantes e pais — sobre os aspectos éticos e
jurídicos da doutrinação política, ideológica e moral em sala de aula [...].
(NAGIB, 2015 - Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros)

Ao se referir ao Programa Escola sem Partido na frente legislativa, Nagib remete aos
princípios que têm orientado a apresentação dos Projetos de Lei nas diversas esferas de
governo. A principal proposta é que seja obrigatório que em todas as instituições de ensino
básico, ou seja, escolas públicas e particulares, as quais atendam alunos de Educação Infantil,

Ensino Fundamental e/ou Ensino Médio, sejam afixados cartazes nas salas de aula e na sala

de professores (no caso da Educação Infantil) com os “6 deveres” do professor, impondo aos
profissionais aquilo que consideram as obrigações deles em relação aos alunos, cujos também
são informados do que consideram ser os seus direitos. No site de divulgação do Programa
Escola sem Partido encontramos um modelo de Projeto de Lei para proposição em cada esfera
legislativa. Segundo Eveline Algebaile,
Nesses modelos, são estabelecidos mecanismos de monitoramento de
atividades escolares e de materiais educativos – especialmente as atividades
docentes e os materiais que não estejam em conformidade com as
“convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis (...) nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa”, considerando que, no que
diz respeito a esses aspectos, os “valores de ordem familiar” teriam
“precedência sobre a educação escolar” –, bem como de recepção e
encaminhamento de denúncias das supostas “práticas de doutrinação” ao
Ministério Público. (2017, p.64)

Nesse sentido, fica claro o caráter de “vigilância, controle e criminalização”, que pretende ser
institucionalizado pelo MESP através da legislação brasileira em todos os seus níveis no que
se refere ao papel social das escolas, dos professores e da relação entre docente e aluno.
Esse aspecto fica mais evidente ao analisarmos o que se defende nas duas frentes
restantes do movimento, anteriormente explicitadas: a frente judicial e a extrajudicial. A
primeira, demonstra o incentivo do movimento para que pais e responsáveis judicializem

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1022 1025


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casos em que considerarem que os direitos de seus filhos foram lesados pelo professor em sala
de aula ao ser promovido o debate de assuntos para “doutrinação ideológica ou partidária” dos
estudantes. Para isso, orientam os alunos e pais a serem vigilantes dos professores, anotando
informações importantes que constituiriam provas do que consideram inapropriado. Em uma
breve busca realizada na plataforma online de compartilhamento de vídeos YouTube,
encontra-se inúmeras gravações feitas por alunos que lançam mão de seus Smartphones
durante a aula e registram momentos das falas de seus professores, considerados como
tentativa de “doutrinação”. A frente extrajudicial, por sua vez, trata de uma espécie de
“formação” dos docentes, pais e alunos para divulgação da agenda do Movimento Escola Sem
Partido e apresentação das implicações jurídicas do mesmo. Nagib afirma que:
Nessa frente, temos encontrado grande resistência por parte dos professores.
A maioria, infelizmente, não parece muito inclinada a refrear o ímpeto de
“fazer a cabeça” dos alunos. Diante dessa atitude, elaboramos um modelo de
notificação extrajudicial para ser utilizado pelos pais dos alunos. Por meio
dessa notificação, o professor é cientificado de que poderá vir a responder
civilmente pelos danos que causar, caso não respeite a liberdade de
consciência e de crença do estudante e o direito dos seus pais de dar a ele a
educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
(NAGIB, 2015 - Entrevista concedida a Fabiano Farias de Medeiros)

O movimento, ao disponibilizar o modelo de notificação extrajudicial, atribuí-lhe um “caráter


premonitório”, em outras palavras, trata-se de uma ameaça de que o professor pode vir a ser
processado caso não obedeça à conduta idealizada pelo movimento, colocando em xeque a
autonomia do professor enquanto possuidor da liberdade de cátedra. Além disso, existem as
sessões “Flagrando o Doutrinador” e “Planeje sua Denúncia”, em que são apresentados
conselhos a serem seguidos para identificação do professor “doutrinador” e estimula e instrui
sobre a melhor maneira de planejamento da denúncia. Nesse sentido, temos observado pela
mídia o aparecimento de inúmeros casos de professores dos mais diversos níveis de ensino
que têm respondido a processos e sindicâncias por serem acusados como doutrinadores.

O Papel Social da Escola e o Movimento Escola Sem Partido

Para pensarmos os impactos já causados na educação brasileira pelo Movimento


Escola sem Partido e conjecturarmos aqueles que ainda podem assolá-la, é imprescindível que
se estabeleça uma perspectiva que defina a função social da escola aqui defendida. Isso é
justificado quando consideramos que todas as políticas educacionais, metodologias
pedagógicas e práticas docentes são constituídas a partir da visão de mundo daqueles que a

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pensam e exercem, bem como o projeto de sociedade que se almeja. Neste sentido, a
educação torna-se campo de disputa, uma vez que estão em jogo interesses de diferentes
classes e setores sociais ao se determinar o que e como deve ser ensinado aos alunos em todos
os níveis. Dessa forma, para que se pense sobre a educação e o que se tem feito dela é
imprescindível que o contexto social, econômico e político o qual temos vivenciado seja
analisado de uma perspectiva histórica. De forma sucinta, não podemos nos esquecer que,
O Brasil, no contexto do capitalismo mundial, estruturou-se sob o signo
colonizador e escravocrata e, como tal, produziu uma das sociedades mais
desiguais e violentas do mundo. Das burguesias clássicas que lutaram para
constituir nações autônomas e independentes e que, mesmo cindidas em
classes, estruturaram sociedades com acesso aos direitos sociais básicos,
diferentemente dessas, a burguesia brasileira sempre foi antinação, antipovo,
antidireito universal à escola pública. Uma burguesia sempre associada de
forma subordinada aos centros hegemônicos do capital. A desigualdade
econômica, social, educacional e cultural que se explicita em pleno século
XXI resulta de um processo de ditaduras e golpes da classe dominante com
objetivo de manter seus privilégios. Ao longo do século XX convivemos, por
mais de um terço do mesmo, com ditaduras e submetidos a seguidos golpes
institucionais como mecanismos de impedir avanços das lutas populares e da
classe trabalhadora na busca dos direitos elementares do acesso à terra,
comida, habitação, saúde, educação e cultura. (FRIGOTTO, 2017, p.20)

Esses fatos e as desigualdades econômicas e sociais que marcaram e ainda marcam a


população, impactam diretamente no tipo e qualidade de educação proporcionada pelo Estado
aos brasileiros ao longo do tempo.
Considerando a conjuntura acima explanada, e tendo por objetivo a promoção de
uma sociedade mais justa e igualitária em todos seus aspectos, a educação escolar necessita
ser pensada e desenvolvida a partir daquele que deve constituir seu objetivo principal:
proporcionar acesso ao saber elaborado e sistematizado, historicamente construído pela
humanidade. Portanto, as instituições escolares devem ter por objetivo “propiciar aos alunos o
ingresso na cultura letrada assegurando-lhes a aquisição dos instrumentos de acesso ao saber
elaborado” (SAVIANI, 2016, P.57). Em outras palavras, podemos afirmar que é na escola que
o indivíduo tem acesso aos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, os quais
constituem o que chamamos de saber elaborado e que caracterizam a aquisição de educação
formal. No entanto,
A apropriação das formas culturais superiores de expressão humana não
elimina as outras formas, mas produz um processo de superação por
incorporação. [...] O ensino dos conteúdos escolares em nada se assemelha,
[...] a um deslocamento mecânico de conhecimento dos livros ou da mente
do professor para a mente do aluno, como se esta fosse um recipiente com
espaços vazios a serem preenchidos por conteúdos inertes. O ensino é a
transmissão de conhecimento, mas tal transmissão está longe de ser uma
transferência mecânica, um mero deslocamento de uma posição (o livro, a

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mente do professor) para outra (a mente do aluno). O ensino é o encontro de


várias formas de atividade humana: a atividade de conhecimento do mundo
sintetizada nos conteúdos escolares, a atividade de organização das
condições necessárias ao trabalho educativo, a atividade de ensino pelo
professor e a atividade de estudo pelos alunos. (DUARTE, 2016, p.59)

Dessa forma, o aluno não deve ser encarado como mero repositório, no qual o professor pode
arbitrariamente depositar informações e dados como bem desejar, conforme aponta o Escola
Sem Partido ao expor o que chamam de “doutrinação ideológica”. O aluno deve ser visto
como ser atuante em sua própria educação, capaz de reflexão e justaposição de suas vivências
e concepção de mundo em relação ao que é abordado em sala de aula como saber elaborado.
A realidade encarada pelo estudante e os conhecimentos obtidos de maneira informal através
de suas relações sociais devem ser considerados como parte importante do processo de ensino
e aprendizagem ao promover a possibilidade de debate dentro da sala de aula.
Diversos teóricos têm se preocupado em trabalhar os temas brevemente expostos até
aqui no que se refere à função social da escola, suas relações com a realidade social, política e
econômica vivenciada no país e a própria história da educação brasileira. Ignorando tais
produções feitas ao longo das últimas décadas, o Movimento Escola Sem Partido tem
defendido uma concepção completamente arbitrária da escolarização no Brasil. Segundo
Fernando de Araújo Penna,
Nós temos uma primeira característica dessa concepção que é a afirmação de
que o professor não é educador. Eu vou usar muito aqui o site do Escola sem
Partido e sua página de Facebook. O site tem uma “biblioteca politicamente
incorreta”, na qual eles indicam apenas quatro livros: os dois últimos são os
guias politicamente incorretos da história do Brasil e da América Latina, mas
o primeiro da lista é o livro Professor não é educador (de autoria de Armindo
Moreira). Qual é a tese desse livro? Uma dissociação entre o ato de educar e
o ato de instruir. O ato de educar seria responsabilidade da família e da
religião; então o professor teria que se limitar a instruir, o que no discurso do
Escola sem Partido equivale a transmitir conhecimento neutro, sem
mobilizar valores e sem discutir a realidade do aluno. (2017, p.36)

Nesse sentido, ocorre uma deturpação da função social da escola, que é encarada como local
de obtenção de instrução, o que remete a uma ideia puramente técnica de escolarização. O
professor seria responsável por transmitir conhecimentos, lembrando que tais saberes
deveriam obedecer ao que é preconizado pelo próprio MESP. Todo processo de escolarização
ocorrido em sala de aula seria asséptico, ou seja, ao docente caberia apenas repassar
informações aos alunos, sem relacioná-las aos seus cotidianos e deixando de promover
reflexões mais aprofundadas. Sendo assim, os professores considerados doutrinadores são
também vistos pelo Escola sem Partido como perversores da função social da escola na

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medida em que não se atêm a administrar uma instrução neutra, usurpando o direito das
famílias de proporcionarem a seus filhos a verdadeira educação baseada em seus princípios
morais, religiosos e políticos. Nesse sentido, devemos considerar que essa visão de
escolarização defendida pelo MESP é que caracteriza uma verdadeira perversão à função
social da escola, uma vez que,
O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente,
no que a define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em
manuais ou apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função
docente no ato de ensinar tem implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo
confronto de visões de mundo, de concepções científicas e de métodos
pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler criticamente a realidade e
constituírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia da confiança e do diálogo
crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função: estimular os
alunos e seus pais a se tornarem delatores. (FRIGOTTO, 2017, p.31)

Ainda de acordo com Penna, outra característica presente no discurso do representante do


Movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, é a desqualificação do professor enquanto
profissional formado para a atuação pedagógica, afirmando categoricamente que nenhum pai
é obrigado a confiar em um professor, ele fecha a porta da sala de aula e faz o que bem
entender” (NAGIB apud PENNA, 2017, p.39). Segundo o autor, essa lógica defendida pelo
MESP, pode ser relacionada à lógica de mercado, em que o professor é visto como prestador
de serviço e o aluno como consumidor deste serviço. Em audiência pública realizado no
Senado Federal no dia primeiro de setembro de 2016, o próprio Miguel Nagib afirmou que o
Projeto de Lei defendido pelo MESP foi inspirado no Código de Defesa do Consumidor.
Nesse sentido, compreende a educação enquanto bem de consumo fornecido pela prestação de
serviço do professor, assim, defende que a proposta “intervém na relação de ensino-
aprendizagem para proteger a parte mais fraca dessa relação que é o estudante, aquele
indivíduo vulnerável, que está se desenvolvendo” (NAGIB apud PENNA, 2017, p.39). Essa
informação e redução da educação enquanto bem de consumo busca reafirmar a ideia de que,
caso o professor não respeite os padrões e condutas determinados pelo Escola Sem Partido,
estará sujeito a responder na justiça, assim como aqueles comerciantes que descumprem
medidas do CDC são processados pelos consumidores.
Até aqui o presente trabalho pretendeu contextualizar os objetivos e alcances
políticos do Movimento Escola Sem Partido de maneira geral, demonstrando suas concepções
e caráter antidemocrático. A seguir, enfocaremos em como o MESP tem se posicionado em
relação ao ensino de conteúdos ligados às discussões de gênero nas escolas brasileiras, como

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este conceito é apresentado e desqualificado a partir da visão conservadora e moralista de seus


principais expoentes.

Gênero: Usos e Deturpações do Conceito pelo Movimento Escola Sem Partido

O historiador alemão Reinhart Koselleck é um dos principais expoentes da chamada


História dos Conceitos. O referido autor, defende que, para a História Social, as contribuições
e metodologias desenvolvidas pela História dos Conceitos são imprescindíveis na medida em
que a exegese textual também o é. Nesse sentido, o historiador ao efetuar a leitura de fontes
escritas deve buscar compreender as origens e motivações que levaram o interlocutor à
utilização de determinados vocábulos, entendendo o significado alcançado de acordo com a
época em que foi produzido. Isso ocorre pois ao longo do tempo, de acordo com questões
políticas, sociais e econômicas, os conceitos enfrentam ressignificações, fazendo com que
devam ser interpretados de forma historicizada, sempre respeitando o contexto do momento
em que foi utilizado no texto analisado. É isso que diferencia as palavras dos conceitos, pois
não são todas as palavras de nosso léxico que ao serem utilizadas permitem diferentes
interpretações e “exigem um certo nível de teorização e cujo entendimento é também
reflexivo”, ou seja, palavras que exigem maior grau de reflexão e teorização para sua
compreensão acabam por se constituírem enquanto conceitos. Portanto, a História Social se
beneficia da História dos Conceitos a partir do momento que esta oferece uma metodologia e
perspectiva teórica que, a partir da visão historicizada dos conceitos contribui para a
compreensão dos fatos e a dinâmica social ao longo do tempo. (KOSELLECK, 1992,
p.134,135)
Nesse sentido, devemos compreender o vocábulo gênero enquanto um conceito
historicamente constituído e que tem alcançado diferentes significados ao longo do tempo.
Esses significados, por sua vez, surgem a partir da característica dialética do desenvolvimento
científico e também de seus usos na sociedade como um todo. Além disso, devemos
considerar que, para interpretação correta do sentido atribuído pelo interlocutor a esse
conceito, é necessário que se compreenda as concepções por ele defendidas e seu
posicionamento em relação ao mundo.
A partir da década de 1960 assistimos nas Ciências Humanas o aumento progressivo
de pesquisas e produções bibliográficas que têm como tema principal a discussão de gênero
sob diversos olhares e perspectivas. Dessa forma, o conceito de gênero foi alcançando
diferentes significações e observado de diferentes maneiras de acordo com as inúmeras

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correntes teóricas e metodológicas desenvolvidas pela academia. Sendo assim, o


desenvolvimento e consolidação do conceito de gênero ocorreu em um contexto político,
social e econômico caracterizado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, a partir da articulação
e expansão do movimento feminista. Donna Haraway, em seu artigo intitulado “‘Gênero’ para
um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra”, afirma que:
Apesar de importantes diferenças, todos os significados modernos de gênero
se enraízam na observação de Simone de Beauvoir de que “não se nasce
mulher” e nas condições sociais do pós-guerra que possibilitaram a
construção das mulheres como um coletivo histórico, sujeito-em-processo.
Gênero é um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da
diferença sexual em múltiplas arenas de luta. A teoria e a prática feminista
em torno de gênero buscam explicar e transformar sistemas históricos de
diferença sexual nos quais “homens” e “mulheres” são socialmente
constituídos e posicionados em relações de hierarquia e antagonismo.
(HARAWAY, 2004, p.212)

É necessário que se considere também o impacto causado por formulações originadas


na Biologia, Psicologia, Medicina, e demais ciências no entendimento e desenvolvimento do
conceito de gênero e nas políticas advindas de tais discussões. Sobre o assunto, Haraway
pondera que,
Os conceitos e tecnologias da “identidade de gênero” foram produzidos a
partir de vários componentes: uma leitura instintualista de Freud; o foco na
psicopatologia e somatologia sexual dos grandes sexologistas do século
dezenove (Krafft-Ebing, Havelock Ellis) e seus seguidores; o contínuo
desenvolvimento da endocrinologia bioquímica e fisiológica desde os anos
vinte; a psicobiologia de diferenças sexuais nascida da psicologia
comparada; as inúmeras hipóteses de dimorfismo sexual hormonal, de
cromossomos e neural, que convergiram nos anos cinqüenta; e as primeiras
cirurgias de redefinição de gênero por volta de 1960. (HARAWAY, 2004,
p.2016)

Não objetivamos traçar aqui de maneira aprofundada as diferentes concepções do


conceito de gênero constituídas a partir das inúmeras teorizações sobre o tema, mas sim
demonstrar que se trata de um conceito historicamente constituído a partir da dialética
científica. Em outras palavras, afirmamos gênero enquanto um conceito polissêmico, pois
diferentemente das demais vocábulos, empregá-lo envolve a necessidade de teorização e
reflexão para devida compreensão do conteúdo expresso, uma vez que o conceito de gênero
traz consigo inúmeras questões historicamente construídas. Nesse sentido, aspectos políticos,
sociais e culturais são fundamentais e determinantes para construção daquilo que
compreendemos como gênero, bem como ocasionam sua ressignificação de acordo com a
contemporaneidade e concepções defendidas por quem o utiliza. Em outras palavras, o

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desenvolvimento do conceito de gênero e suas implicações sociais derivam de pesquisas


desenvolvidas a partir do rigor científico, que constituiu um campo de saber e conhecimento
sistematizado acumulado ao longo de muitos anos de pesquisa desenvolvida por inúmeros
pensadores de todo o mundo.
Sendo assim, retomamos agora a ideia de que o papel social da escola reside em
socializar os conhecimentos historicamente produzidos, proporcionando aos indivíduos
acesso aos saberes científicos que ultrapassam os conhecimentos obtidos pela educação
informal nas relações sociais ao longo da vida. Esse processo de formação escolar
proporcionará novas possibilidades de compreensão da sociedade em que vivemos e a
liberdade de pensamento necessária que contribua para sua transformação. Portanto, é a partir
dessa perspectiva que se defende a necessidade de discussão do conceito de gênero nas
instituições de ensino, considerando o desenvolvimento científico sobre o tema e inúmeros
autores que têm se dedicado a pensá-lo a partir de uma perspectiva inclusiva de minorias
historicamente excluídas de nossa sociedade.
É em reação à essa perspectiva que o Movimento Escola Sem Partido tem agido,
buscando invalidar toda a construção científica que se deu sobre o conceito de gênero na
tentativa de proibir sua discussão em sala de aula. Para compreensão desse fato mais uma vez
recorreremos ao discurso de seu fundador, Miguel Nagib, dessa vez proferido em debate
realizado na Câmara dos Deputados, em Brasília, no dia 08 de junho de 2017. Na ocasião
Nagib afirmou que:
[...] o princípio da laicidade do Estado, deve levar em consideração não
apenas o fato de que as religiões possuem as suas narrativas, os seus ritos e
os seus dogmas. As religiões, pelo menos algumas delas, as mais
tradicionais, ou algumas das mais tradicionais, possuem também a sua
moralidade, não é? A moralidade cristã, que se baseia nos dez mandamentos
é inseparável da religião cristã, não pode haver separação entre moralidade
cristã e religião cristã. Muito bem, se o Estado deve ser neutro em relação a
todas as religiões e esse é um princípio que está na Constituição Federal, é o
princípio da laicidade do Estado, então o Estado e muito menos os seus
servidores, os seus agentes, não pode usar a sua máquina, e o sistema
educacional faz parte da máquina do Estado para promover uma moralidade
que seja hostil a moralidade de uma determinada religião. Se ele fizer isso,
no momento em que ele faz isso, ele viola o princípio da laicidade do
Estado. Isto é, é uma consequência do princípio da laicidade do Estado como
está na constituição, então quando por exemplo, um currículo ou o professor
por sua própria iniciativa, utiliza o seu cargo e o espaço da sala de aula para
defender que ninguém nasce homem e que as pessoas se tornam nem homem
nem mulher e isso é uma construção cultural ele está promovendo, e dessa
premissa decorre muitas consequências de natureza moral, de natureza
moral, e consequências, conclusões que se chocam, com alguns princípios
fundamentais da moralidade cristã, então ao promover esta visão dentro do
sistema educacional o Estado está deixando de ser neutro em relação a

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moralidade cristã e portanto está ferindo a laicidade do Estado que é um


princípio constitucional [...] (NAGIB, 2017, grifos nossos)

Esse discurso apresenta características extremamente conservadoras; a dimensão religiosa está


presente de maneira latente e a interpretação da legislação é feita pelo sujeito com o objetivo
de proporcionar uma característica legalista à fala, o que é uma constante em seus dizeres.
Nesse sentido, Nagib combate a presença de assuntos que não deseja que estejam presentes
em sala de aula por considerar como ofensivos à moralidade cristã, afirmando que dessa
maneira o princípio de neutralidade e laicidade do Estado seria descumprido. O trecho do
discurso citado que se encontra grifado demonstra a falta de rigor científico ao tratar das
questões relacionadas ao conceito de gênero. Não se busca apresentar argumentos elaborados
para promoção do debate sobre o assunto, pelo contrário, de maneira superficial, busca
invalidar e refutar o tema partindo apenas de princípios dogmáticos, contrariando os interesses
sociais de uma escola que tenha por objetivo a disseminação de saberes historicamente
construídos e sistematizados pela humanidade. Ao participar do programa Entre Aspas
produzido pela GloboNews, e ser questionado sobre se gênero é uma ideologia, Nagib
afirmou:
Eu acho que é sim, é uma ideologia, uma visão reducionista da realidade,
uma visão que reduz o fenômeno do gênero ao aspecto cultural e social, ou
seja, o aspecto biológico, a identidade biológica, de sexo, de gênero, ela é
negada por muitas correntes dentro desse debate. Então como é ainda um
assunto muito mal debatido porque cada um tem a sua opinião a respeito,
cada um usa, inclusive a sala de aula tem uma visão pessoal que transmite
aos alunos dentro da sala de aula, isso é muito perigoso, este conceito de que
[...] o problema é que isso tem um impacto muito profundo no
comportamento dos indivíduos e, portanto, toca na questão da moralidade, e
a moralidade, a transmissão de valores morais ao estudante é uma
prerrogativa da família, dos pais. [...] (NAGIB, 2015, grifos nossos)

Mais uma vez verificamos o pronunciamento de um discurso superficial, no sentido de que


não propõe reflexão teórica. Apenas baseado no senso comum o autor busca negar todo o
desenvolvimento científico sobre o conceito de gênero e suas implicações. Ao afirmar que se
trata de um “assunto mal debatido porque cada um tem sua opinião a respeito”, procura
invalidar todo o processo de desenvolvimento de conhecimento científico, que se dá
essencialmente a partir de debate, especialmente quando falamos das Ciências Humanas. Para
além disso, afirma que o problema do ensino daquilo que considera como “ideologia de
gênero” reside no fato de que esse tema gera impacto no comportamento dos estudantes.
Observamos na mídia que essa tem sido uma perspectiva amplamente utilizada pelos

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defensores do Escola Sem Partido, que ao manipularem o conceito e considerarem-no como


ideologia, afirmam que o assunto expõe os alunos a conteúdos impróprios para suas idades, o
que estimularia a prática sexual, a homossexualidade e outros tabus, revelando o caráter
extremamente preconceituoso do movimento.
De maneira geral, podemos afirmar que ao se constituir como conceito desenvolvido
cientificamente o vocábulo gênero tem gerado inúmeros debates acadêmicos. Essas produções
têm contribuído para pensarmos a humanidade e sua história, bem como nos tem fornecido
instrumentos para repensarmos práticas e políticas tendo como objetivo a construção de uma
sociedade mais igualitária, menos sexista. As políticas e currículos educacionais são partes
essenciais para que isso ocorra, especialmente ao considerarmos que é na escola que os
indivíduos se depararão com esses assuntos e poderão refletir a respeito. No caso específico
dos estudos sobre gênero, o Movimento Escola Sem Partido tem precedido gênero pelo
conceito de ideologia na tentativa de negá-lo, invalidá-lo, sem para isso partir para uma
discussão teórica e metodológica, baseando-se no senso comum e em princípios dogmáticos.
Tudo isso é mascarado por um discurso que pretende demonstrar ostensiva legalidade, em que
as leis são interpretadas de maneira a endossar este posicionamento conservador
superficialmente alicerçado no senso comum. É exatamente com esse discurso simplista,
facilmente reproduzível que o Movimento Escola Sem Partido tem cooptado parte da opinião
pública. Como resultado assistimos a algumas vitórias como no caso das cidades e estado que
tiveram Projetos de Lei baseados no Programa Escola Sem Partido aprovados, bem como na
recente conquista que tiveram com a retirada das temáticas relacionadas a gênero e orientação
sexual na Base Nacional Comum Curricular referente ao componente curricular de Ensino
Religioso.

Considerações Finais

Permeado por inúmeras mudanças políticas e culturais, e a partir de múltiplos usos,


forjou-se o conceito de gênero, que tem sido empregado de maneira dialética, característica
própria dos conhecimentos científicos. Com o surgimento do Movimento Escola Sem Partido
e sua luta para retirada deste tema dos currículos escolares podemos observar que os
argumentos empregados na justificação destes atos são de origem puramente dogmática. Fruto
disso é a ressignificação do conceito pelo Programa Escola Sem Partido ao cunharem o termo
“ideologia de gênero”. Colando os conceitos de ideologia e gênero, cria-se uma nova
categoria com diferentes significados dos originais. Isso nos permite concluir a existência da

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intenção política de desacreditar e desmerecer o que as Ciências Humanas têm caracterizado e


definido como gênero nas últimas décadas, tendo como principal objetivo a eliminação do
tema como assunto a ser transformado em saber escolar.
Dessa maneira, conclui-se que o Movimento Escola Sem Partido pode ser encarado
como uma reação à discussão de temas progressistas realizadas nas salas de aula de ensino
básico e superior. Pautado na defesa dos diversos temas e interesses que compõem a agenda
conservadora, esse grupo tem ocasionado discussões e difundido seus ideais em todo o Brasil
com a finalidade de interferir nas políticas públicas para a educação, uma vez que tais
concepções já frutificaram em inúmeras propostas de lei em municípios e estados brasileiros.
O principal objetivo do programa Escola Sem Partido é atender a demanda reacionária ao
censurar e proibir a presença de determinadas temáticas no ensino, bem como determinar o
que e de qual forma os profissionais da educação devem ensinar em suas aulas, tolhendo a
autonomia docente e tornando a educação um mecanismo da manutenção da ordem patriarcal,
racista e capitalista vigente, e não instrumento de libertação e transformação social.

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A importância da discussão de gênero do ambiente escolar

Lorena Ingred Moreira Pio1

Resumo: Tendo em vista as desigualdades sociais presentes em nossa sociedade, neste artigo
iremos tratar das desigualdades de gênero, a partir de referenciais teóricos de Nancy Fraser e
Will Kymlicka, e demonstrar que essas desigualdades acabam acarretando em práticas
discriminatórias, que afetam principalmente mulheres e homossexuais, não obstante, iremos
também demonstrar de qual forma estas práticas discriminatórias estão presentes no ambiente
escolar, apresentando dados da UNESCO e casos relatados pela mídia. E com base nesta
constatação apresentar a importância da discussão de gênero nas escolas, como uma forma de
tornar esses espaços mais inclusivos, sem anular as diferenças entre os indivíduos, e sim
compreende-las em sua diferença, em vista disso, nossos/as alunos/as poderão adquirir respeito
e reconhecimento da diversidade de gênero.

Palavras-chave: Gênero, Desigualdade, Práticas discriminatórias, Ambiente Escolar.

1
Universidade Estadual de Londrina – Especialização em Ensino Sociologia; Licenciada em Ciências Sociais;
lorenamoreira1403@gmail.com

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INTRODUÇÃO
Sabendo que as desigualdades sociais são várias em nossa sociedade, portanto, são
necessários estudos que deem importância aos grupos de maior exclusão – mulheres,
homossexuais e negros/as, que sofrem com sobreposições de injustiças em nossa sociedade.
Neste artigo, trataremos especificamente das desigualdades de gênero e seus vários estigmas
construídos pela sociedade, e nesse caso, principalmente, analisarei de qual forma estas
questões estão presentes no ambiente escolar.
No Paraná de acordo com a pesquisa feita pela Secretaria dos Direitos Humanos
(SDH), em 2012, foram registradas 182 denúncias referentes a 370 violações relacionadas à
população LGBT e 61,16% das vítimas estão entre a faixa etária de 15 a 29 anos. Comparado
com a relação de 2011 houve um aumento de 167%. Já no caso de desigualdade de gênero que
afetam as mulheres, através de várias formas de subordinação, na qual uma delas é o estupro,
no Brasil a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e 70% das vítimas são crianças e
adolescentes, no entanto esse número pode ser até 10 vezes maior, já que esses dados foram
coletados apenas de denúncias feitas pelas vítimas (NUNES, 2016).
Dessa forma, dentro do ambiente escolar existem oprimidos e opressores, já que na
mesma é um lugar de diversas realidades, nas quais em muitos casos esses jovens sofrem
diversos tipos abusos (físicos ou/e psicológicos) ou são incentivados ao preconceito pelos
próprios familiares e amigos, dessa maneira, a escola deveria ser um lugar onde esses estigmas
construídos pela sociedade deveriam ser descontruídos, é um lugar onde nossos jovens
poderiam obter o entendimento, de que a violência seja ela sexual ou psicológica que sofrem
em casa, na escola ou em qualquer outro lugar, não é culpa deles, mas que eles são as maiores
vítimas destas ocorrências.
Sendo assim, o objetivo desse artigo é demonstrar que esses casos de discriminação,
preconceitos e abusos sexuais e psicológicos estão presentes dentro de muitas instituições
sociais, mas principalmente nas escolas, como podemos ver a partir desses dados apresentados
é possível identificar que a maioria das vítimas são crianças e adolescentes, portanto, grande
parte dessas vítimas frequentam escolas diariamente, e consequentemente é dentro do ambiente
escolar que essas práticas discriminatórias também ocorrem.
Dessa maneira a construção do objeto é feita a partir de dois tópicos, o primeiro tópico
(A construção social de gênero e seus grupos vulneráveis) será feita uma abordagem teórica
dos/as seguintes autores/as, Nancy Fraser que é sem sombra de dúvida uma importante
referência para o feminismo, seus textos são centrais para entender o debate sobre as

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concepções de justiça social, contamos também, com a abordagem teórica de Will Kymlicka
que redigiu um sintético, mas extremamente relevante, manual sobre os grandes temas da
filosofia política contemporânea, e um dos temas por ele abordados é o feminismo. Neste
tópico, tratamos da construção social de gênero, que consequentemente acarretam em várias
formas de estigmas, subordinações e discriminações que afetam principalmente as mulheres e
os homossexuais e explicamos de forma sintetizada os conceitos de orientação sexual e
identidade de gênero.
No segundo tópico (Gênero e escola), evidenciamos a partir de uma um
panorama diversificado, uma coleta de dados diversos que expõe os casos de violência no
ambiente escolar, enfatizando também o despreparo dos/as professores/as com a abordagem,
com relação a isso apresento as discussões que acontecem em tornos do PNE2 e as DCN’S3
para tornar a educação mais igualitária e democrática, no entanto a temática em torno da questão
de gênero, é alvo de muita polêmica, desse modo acaba resultando trazendo vários percalços
para que esses assuntos sejam abordados em sala de aula.
Após a apresentação destes dois tópicos, propomos nas considerações finais,
juntamente com a abordagem teórica de Juarez Tarcísio Dayrell, que desenvolve pesquisas em
torno da temática juventude, educação e cultura, que nos aproximemos mais da nossa juventude,
e tentemos perceber o que é ser jovem, quais são as maneiras de ser jovem, e também que
tenhamos um olhar mais sensível em relação a realidade de cada um dos nossos jovens , uma
vez que a escola é um dos principais espaços de formação de cidadania e socialização, por essa
razão, é importante que investiguemos as desigualdades de gênero, podendo assim explorar os
problemas que são causados e ao entende-los e estarmos cientes, poderemos falar em meios
parar introduzir as discussões de gênero nas escolas.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DE GÊNERO E SEUS GRUPOS VULNERÁVEIS


A definição de gênero apresentada nos PCN’s4, que foram formulados pelo Ministério
da Educação (MEC), que descreve gênero como:
conjunto das representações sociais e culturais construídas a partir da diferença
biológica dos sexos. Enquanto o sexo diz respeito ao atributo anatômico, no conceito
de gênero toma-se o desenvolvimento das noções de “masculino” e “feminino” como
construção social. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1998, p. 321).

2 Plano Nacional de Educação


3 Diretrizes Curriculares Nacionais
4
Parâmetros Curriculares Nacionais

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Com base nesta definição podemos iniciar a nossa problematização, em busca da


importância de se discutir gênero nas escolas. À vista disso, sabemos que somos fabricados
socialmente assim que se sabe o sexo do/a bebê - para meninas coisas rosas e para meninos
coisas azuis. E parte da nossa construção social vem da convivência com outras pessoas em
nossa própria casa, na escola e dentre outras instituições sociais. No entanto, grande parte dessas
construções sociais são carregadas de injustiças de gênero como preconceitos, estigmas,
humilhações, desvalorizações e várias outras formas de subordinações que afetam
principalmente mulheres e homossexuais, e que privilegiam os homens. A principal injustiça
de gênero que as mulheres sofrem, portanto, é o androcentrismo, a qual é
construção autoritária de normas que privilegiam características associadas com a
masculinades, e ao lado disto está o sexismo cultural: a desvalorização e depreciação
aguda de coisas vistas como "femininas" (não apenas mulher). Essa depreciação é
expressada em um rol de punições sofridas pelas mulheres, incluindo agressão sexual
[...], violência doméstica, trivialização, coisificação [...], depreciação em todas as
esferas da vida quotidianas [...]; exclusão ou marginalização em esferas públicas e
corpos deliberativos, negação de plenos direitos legais e proteções iguais. (Fraser,
Nancy, 2001, p.260).

Kymlicka (2006) relembra que a lei contra a discriminação sexual foi baseada na lei
contra a discriminação racial e que ambas preveem uma sociedade “cega” para cor e sexo.
Porém, ainda que seja concebível, com muito esforço, imaginar uma sociedade “cega para a
cor” é muito difícil afirmar isso em relação ao sexo.
No entanto, esse tipo de raciocínio resultou em processos positivos para as mulheres,
garantindo o acesso ou a competição neutra em diversos espaços da sociedade, como, por
exemplo, na educação, nas diversas carreiras, nas modalidades esportivas, etc. Porém, o que
essa abordagem não fez foi trabalhar com a hipótese de que acesso e competição poderiam não
ser suficientes para uma sociedade livre de desigualdades sexuais. Isso porque, na maior parte
das vezes, as instituições sociais são construídas baseadas nos interesses dos homens e mesmo
em uma competição neutra os cargos são feitos por e para homens, ou seja, quanto mais uma
sociedade demarca as posições de neutralidade de gênero, mais difícil é enxergar as
desigualdades sexuais.
Os homossexuais também são alvo das desigualdades de gênero, assim como Fraser,
podemos chamar essa desigualdade de “sexualidade menosprezada”. Os homossexuais, sofrem,
construção autoritativa de normas que privilegiam heterossexuais. Ao lado disso está
a homofobia, desvalorização cultural da homossexualidade. Ao terem sua sexualidade
desacreditada, os homossexuais estão sujeitos à vergonha, molestação discriminação,
enquanto lhe são negados direitos legais e proteção igual (...); gays e lésbicas podem
ser despedidos de trabalho assalariados e têm benefícios de previdência social
baseados na família negados. (Fraser, 2001, p. 257-258).

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Muitos ainda pensam que a homossexualidade é uma escolha, no entanto, se fosse uma
escolha, muitas pessoas escolheriam ser hétero, para não terem que sofrer com todas essas
opressões e estigmas construídos pela nossa sociedade. É necessário que saibamos diferenciar
identidade de gênero e orientação sexual; Identidade de gênero é o modo de ser feminino ou
masculino independente do seu sexo biológico, é maneira do como a pessoa se vê, seja ela
feminina, masculina, ambas ou até mesmo nenhuma, porém, aquilo que foge do parâmetro da
normalidade - quem tem vagina é considerado mulher (feminino) e quem tem pênis é
considerado homem (masculino), tende a ser visto como anormal. Consequentemente, dessa
forma, lésbica gays, travestis, transexuais, transgêneros são vistos como "anormais”.
E a orientação sexual seria o desejo, o sentimento e a atração. Atualmente são
reconhecidos 3 (três) tipos de orientações sexuais: a heterossexualidade, homossexualidade e a
bissexualidade, ao contrário do que muitas pessoas ainda pensam, pessoas transgêneros
(travestis ou transexuais) não são necessariamente homossexuais, assim como homens
homossexuais não são forçosamente femininos ou afemininados e tampouco mulheres lésbicas
são necessariamente masculinas ou masculinizadas (JESUS et al., 2006), no entanto, a
heterossexualidade e a heteronormatividade ainda é a esperada como a forma correta na ordem
social.
Dada a multiplicidade e variação da sexualidade humana, não se pode afirmar que
haja alguma escolha mais natural ou normal do que outra, pior, melhor, superior ou
inferior (SOUSA FILHO, 2003). Como nos lembra Jurandir Freire Costa: “Não existe,
na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou
adequada a todos os sujeitos. (COSTA, 1992: 145). (HENRIQUES, Ricardo, et al,
2007, p.18)

Dessa forma, assim como o gênero é construído socialmente, as práticas


discriminatórias e os preconceitos também são, os machistas, os homofóbicos, os racistas são
opressores criados pela nossa própria sociedade. Estas desigualdades de gênero apresentadas
acontecem diariamente em nossa sociedade, e acontecem principalmente dentro do ambiente
escolar, muitos/as alunos/as já vão para escola com esses estigmas e preconceitos construídos
pela sociedade e acabam, consequentemente, reforçando-os no ambiente escolar, bem como é
confirmado no próximo tópico: Gênero e Escola.

GÊNERO E ESCOLA
No site da secretaria da educação do Paraná, é encontrado um espaço que disponibiliza
diversos materiais (cadernos temáticos, recursos didáticos, etc.) para contribuir com a prática
pedagógica, com temáticas que reconhecem as diversidades e propõem uma igualdade de

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gênero e respeito a diversidade sexual. Entre esses materiais disponibilizados, temos um


caderno temático produzido pela SECAD 5 , nomeado de Gênero e Diversidade Sexual na
Escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos, nos mostram que,
No Brasil, as pesquisas que enfocam com profundidade o impacto da discriminação
de gênero e por orientação sexual na educação, embora não sejam numerosas, têm
alcançado um alto grau de qualidade e respeitabilidade internacional e fornecem
diagnósticos que apontam a escola brasileira como um importante espaço de
reprodução de modelos particularmente autoritários, preconceituosos e
discriminatórios em relação a mulheres e homossexuais, entre outros grupos. A escola
brasileira foi historicamente concebida e organizada segundo os padrões da
heteronormatividade, valorizando e edificando como padrão um único componente: o
adulto, masculino, branco, heterossexual (HENRIQUES, 2007, p. 26).

Não obstante, uma pesquisa realizada pela UNESCO67, revelou que para 59,7% dos
professores/as é inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que 21,2%
deles/as não gostariam de ter vizinhos homossexuais, outra pesquisa, também realizada pela
UNESCO em 13 capitais brasileiras, forneceu certa compreensão do alcance da homofobia no
espaço escolar (nos níveis fundamental e médio) (HENRIQUES, 2007), como podem ser
observados nas figuras 1, 2, 3, 4 e 5.

5
Os cadernos SECAD (Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e diversidade), são produzidos para
de documentar as políticas públicas da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do
Ministério da Educação (HENRIQUES 2007)
6
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura
7
A pesquisa foi realizada entre maio e abril de 2002, para descrever o perfil dos/as professores/as em todas as
unidades da federação brasileira, incluindo 5 mil professores da rede pública e privada

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1037 1042


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47,90%

30,5%
Vitória
Belém

Figura 1 - Percentual de professores/as que declara não saber como aborda relativos à homossexualidade em
sala de aula
Fonte: HENRIQUES (2007, p. 27)

18%

São Paulo
10%
Manaus
9%
Recife
7% Porto Alegre

Figura 2 – O percentual dos/as professores/as que percebem a homossexualidade como doença


Fonte: HENRIQUES (2007, p. 27)

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20%

18%

Distrito Federal
São Paulo

10% Manaus
9% Recife
Porto Alegre
7% 7%
6% Florianópolis
Campo Grande

Figura 3 – Percentual dos estudantes do sexo masculino que não gostariam de ter colegas de classe
homossexuais.
Fonte: HENRIQUES (2007, p. 28)

Distrito Federal
20% São Paulo
18% Manaus
Recife
Porto Alegre
Florianópolis
10% Campo Grande
9%
7% 7% Goiânia
6% 6%
5% 5% 5% Vitória
4%
3% 3% Fortaleza
Belém
Salvador
1

Figura 48 - Alunos, por capitais das Unidades da Federação, segundo relatos de violência sexual e/ou estupros
no ambiente da escola, 2000 (%)
Fonte: ABRAMOVAY e RUA (2002, Pg. 250)

8
“solicitou-se aos informantes: "Marque com um X se você sabe que já aconteceu nesta escola:
estupro ou violência sexual dentro ou perto da escola. Os percentuais referem-se apenas as
respostas afirmativas. (ABROVAY, Miriam, RUA, Maria das Graças, 2002, pg. 250).”

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Distrito Federal

20% São Paulo


18% Manaus
Recife
Porto Alegre
Florianópolis
10%
9% Campo Grande

7% 7% Goiânia
6% 6%
5% 5% 5% Vitória
4%
3% 3% Fortaleza
Belém
Salvador
-

Figura 59 - Membros do Corpo Técnico-pedagógico, por capitais das Unidades da Federação, segundo relatos
de violência sexual e/ou estupros no ambiente da escola, 2000 (%)
Fonte: ABRAMOVAY e RUA (2002, Pg. 250)

Alguns casos também foram relatados pela mídia, neste artigo apresentamos 4 dados
coletados que exemplificam as afirmações por sites de jornalismo e entretenimento, sendo eles,
o Pragmatismo Político, UOL Educação, G1 e Catraca Livre.

CASO 1 – VEICULADO NO SITE PRAGMATISMO POLÍTICO, 01 DE MARÇO DE


2016
O jovem estudante Lucas Salattore de 18 anos, que reside na cidade de São José dos
Campos, foi espancado por cinco jovens na porta de sua escola, ele expôs o caso, como forma
de denúncia em sua rede social, no texto, Lucas conta que já tinha avisado à diretoria da escola
que vinha sofrendo agressões verbais de um dos alunos. Ao ser informada do problema, a
direção teria trocado Lucas de turma. Mesmo com a transferência de turma, porém, o bullying
continuou. Lucas afirma que o antigo colega de classe e mais 4 colegas o atacaram saindo da
escola, com o primeiro dizendo que ia matá-lo. De acordo com a Secretaria de Educação de São
Paulo, a escola suspendeu os cinco alunos acusados de espancar Lucas. (Pragmatismo Político,
2016).

CASO 2 – VEICULADO NO SITE UOL EDUCAÇÃO, 20 DE MARÇO DE 2012

9
“solicitou-se aos informantes: "Marque com um X se você sabe que já aconteceu nesta escola:
estupro ou violência sexual dentro ou perto da escola. Os percentuais referem-se apenas as
respostas afirmativas. (ABROVAY, Miriam, RUA, Maria das Graças, 2002, pg.252).”

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“Às vezes eu sinto que ninguém gosta de mim e que a única solução é me matar”. Essa
frase é de um garoto de 15 anos que teria sido vítima de bullying homofóbicos na Escola
Estadual Onofre Pires, na cidade de Santo Ângelo, Rio Grande. De acordo com o relato do
jovem, um colega de sala o atingiu com socos e pontapés na saída do colégio (...) estudando há
apenas um mês na escola, ele afirmou que desde o início das aulas vinha sofrendo ofensas
verbais da maioria da turma. No dia em que apanhou do colega, o menino disse ter pedido para
ficar até mais tarde na escola uma vez que o agressor já teria feito ameaças durante o período
de aula. No entanto, ainda segundo ele, seu pedido não foi atendido. Na saída da aula, ele foi
agredido. (MARTINS, 2012).

CASO 3 – VEICULADO COM O SITE G1, 20 DE JULHO DE 2017


“Eu estava com meu namorado, aí ele me chamou pra ir na quadra, aí eu topei, pensei que
fosse só com ele. Aí, sei lá, eu acho que ele bolou um plano e tinha um monte de menino. Eu falei:
‘Pra quê um monte de menino?’. Aí, ele não quis responder. Aí os meninos me ameaçaram, falaram
que eu tinha que fazer com eles”. O relato é de uma menina de 13 anos. A polícia investiga a denúncia
de abuso sexual dentro de uma escola pública no Estado do Rio: ela teria sido estuprada repetidas
vezes por 14 alunos. (g1, 2017).
CASO 4 – VEICULADO COM O SITE CATRACA LIVRE, 12 DE ABRIL DE 2016
Em carta aberta divulgada na semana passada, alunas afirmam viver situações de assédio
"dentro do ambiente escolar". No texto, elas alegam ter sofrido assédio de alunos e também de
professores (...) na carta também havia o relato de alunas que já não aguentavam mais a convivência
com um aluno que as assediava e agredia desde o 7º ano, aluno esse maior de idade. A carta diz que
o aluno tinha como prática “trancá-las em sala e encoxá-las nos intervalos. enviar mensagens de
cunho sexual e ser agressivo fisicamente com uma aluna específica. As estudantes afirmam que a
solução encontrada pela instituição foi transferir o aluno para outro campus, mudando apenas o local
do problema (Catraca Livre, 2016).
Após o levantamento dos dados foram encontrados e comprovados que no ambiente
escolar há ocorrências não só por parte dos/as alunos/as, mas também pelos/as professores/as,
de violência/assédio sexual (Figura 4, 5 - caso 4 e 2), homofobia (Figuras 2 e 3 - caso 2 e 1) e
também o fato de que professores/as não sabem como abordar conteúdos relativos à
homossexualidade em sala de aula (Figura 1).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1037 1046


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Toda via, vale ressaltar que violência/assédio sexual no debate feminista e de direitos
humanos, de acordo com Abramovay, Castro e Silva (2004, pg. 259-258) tais práticas são
impostas por meio
de jogo emocional, violência física, ameaças ou indução de sua vontade, podendo variar
na prática sem ou com contato sexual (...) olhares, gestos, piadas, comentários obscenos,
exibições – de abusos como propostas, insinuações e contatos físicos aparentemente não
intencionais.

Em vista disso, já houveram discussões o âmbito do governo federal, para produção


de ações e materiais didáticos que promovessem a igualdade, tendo foco nas questões de gênero
e diversidade sexual. No entanto, essa iniciativa do governo federal, de tratar esses conteúdos
no ambiente escolar, acabou sendo alvo de grandes polêmicas, trazendo preposições de que
esses novos matérias estariam fundamentados em uma ideologia de gênero, na qual
supostamente incentivaria os/as alunos/as a serem a favor de uma determinada orientação
sexual - como a homossexualidade. Em virtude destas reações adversas, a entrega dos materiais
didáticos produzidos em torno da temática da diversidade sexual, foram suspensas em 2011
pelo MEC10.
Nos anos seguintes, uma das metas propostas para o PNE, que tem como função,

Determinar diretrizes, metas e estratégias para a política educacional dos próximos


dez anos. O primeiro grupo são metas estruturantes para a garantia do direito a
educação básica com qualidade, e que assim promovam a garantia do acesso, à
universalização do ensino obrigatório, e à ampliação das oportunidades educacionais.
Um segundo grupo de metas diz respeito especificamente à redução das desigualdades
e à valorização da diversidade, caminhos imprescindíveis para a equidade. O terceiro
bloco de metas trata da valorização dos profissionais da educação, considerada
estratégica para que as metas anteriores sejam atingidas, e o quarto grupo de metas
refere-se ao ensino superior. (Ministério da Educação, s/d)

Desta forma, uma das metas propostas para garantir a equidade e a qualidade da
educação em um país tão desigual como o Brasil, dessa maneira, o objetivo da meta proposta
era de promover a igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual entre suas
diretrizes (INSTITUDO UNIBANCO 2016). Mas, durante a tramitação do projeto, as metas do
PNE foram alteradas, e a versão final, preconiza a promoção da cidadania e a erradicação de
todas as formas de discriminação de maneira genérica (INSTITUTO UNIBANCO, 2016),
sendo assim, foi eliminada a meta voltada à promoção de igualdade de gênero e orientação
sexual nas escolas.

Dessa maneira, a partir das DCNs’ as quais são normas obrigatórias para a
Educação Básica que orientam o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino,

10
Ministério da Educação

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é encontrado um tema direcionado para a “Educação em Direitos Humanos”, que tem como
principal objetivo, promover uma educação universalizada, que valorize e desenvolva
condições para a garantia da dignidade humana, a partir dos seguintes princípios: Dignidade
humana; igualdade de direitos; reconhecimento e valorização das diversidades; laicidade do
Estado; democracia na educação; transversalidade, vivência e globalidade e por último
fundamenta-se na sustentabilidade socioambiental.
A partir da nossa temática - gênero, destacamos dois princípios:
• Igualdade de direitos: O respeito à dignidade humana, devendo existir em
qualquer tempo e lugar, diz respeito à necessária condição de igualdade na orientação
das relações entre os seres humanos. O princípio da igualdade de direitos está ligado,
portanto, à ampliação de direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
ambientais a todos os cidadãos e cidadãs, com vistas a sua universalidade, sem
distinção de cor, credo, nacionalidade, orientação sexual, biopsicossocial e local de
moradia.
• Reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades: Esse princípio
se refere ao enfrentamento dos preconceitos e das discriminações, garantindo que
diferenças não sejam transformadas em desigualdades. O princípio jurídico-liberal de
igualdade de direitos do indivíduo deve ser complementado, então, com os princípios
dos direitos humanos da garantia da alteridade entre as pessoas, grupos e coletivos.
Dessa forma, igualdade e diferença são valores indissociáveis que podem impulsionar
a equidade social. (DIRETRIZES CURRICULARES, 2013, p. 502).

No entanto mesmo que exista esta categoria de Educação em direitos humanos nas
Diretrizes, com tais fundamentos, é importante resaltar que na prática é necessário que
enfrentemos alguns desafios para ser colocado em prática todos estes fudamentos nas escolas,
é necessário que exista uma formação por parte dos/a profissionais da educação - de diversas
areas, pautadas nas questões pertinentes aos direitos humanos, mas não só isso, é necessário
também que haja respeito e valorização desses/as profissionais, garantindo condições dignas de
trabalho (DIRETRIZES 2010) e principalmente é indispensavel que haja o reconhecimento do
quão grande é importante a Educação em Direitos Humanos nas escolas,
posto que direitos humanos e educação em direitos humanos são
indissociáveis, o oitavo desafio se refere à efetivação dos marcos teórico-
práticos do diálogo intercultural ao nível local e global, de modo a garantir o
reconhecimento e valorização das diversidades socioculturais, o combate às
múltiplas opressões, o exercício da tolerância e da solidariedade, tendoem vista
a construção de uma cultura em direitos humanos capaz de constituir
cidadãos/ãs comprometidos/as com a democracia, a justiça e a paz.
(DIRETRIZES CURRICULARES, 2013, pg.510)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola ainda é vista como uma instituição universal e única, que compreende uma
homogeneização dos/as alunos/as e consequentemente dos conteúdos, sem dar importância a
diversidade dos/as alunos/as, mas assim como confirma Dayrell:

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os alunos chegam à escola marcados pela diversidade, reflexo dos desenvolvimentos


cognitivo, afetivo e social, evidentemente desiguais, em virtude da quantidade e
qualidade de suas experiências e relações sociais, prévias e paralelas à escola. O
tratamento uniforme dado pela escola só vem consagrar a desigualdade e as injustiças
das origens sociais dos alunos. (DAYRELL,1990, p. 5)

A juventude também é uma categoria socialmente produzida, dessa maneira, o que


existe são diferentes modos de ser jovens, por tanto, é de extrema importância que a gente
considere cada representação do que é ser jovem, e principalmente de que forma isto é
representado para cada um, pois, cada um desses jovens ganham contornos singulares em
contextos históricos sociais e culturais distintos (DAYRELL, 2005), assim como afirma Dayrell
2005, esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela
qualidade das trocas que este proporciona, fazendo com que os jovens construam determinados
modos de ser jovem, portanto,
A juventude se constitui como um momento delicado de escolhas, de definições, no
qual o jovem tende a se defrontar com perguntas como: “Para onde vou?”, “Qual rumo
devo dar à minha vida?”, questões estas cruciais para o jovem e diante das quais a
escola teria de contribuir de alguma forma, no mínimo na sua problematização.(
LEÃO et al, 2011, pg.58).

A relação que os jovens têm com a escola é baseada em diversos significados tanto
positivos quanto negativos. Ela é um espaço de enorme relação de sociabilidade entre os jovens,
os valores e comportamentos apreendidos no âmbito da família, por exemplo, são confrontados
com outros valores e modos de vida (DAYRELL 2007). Dessa maneira é necessário que
também haja uma sociabilidade entre dos/as alunos/as e os/as professores/as, onde possa haver
um diálogo entre o professor/a e aluno/a, mas não apenas para a transmissão de conteúdo, mas
para que também possa criar uma relação na qual tenha uma confiança mutua, e o resultado
seria de um impacto positivo na relação dos jovens com a escola (LEÃO, DAYRELL e REIS
2011), já que a mesma possui dificuldades para a compreender estas diversidades existente
entre os jovens, seja ela étnica, de gênero, classe, orientação sexual entre outras expressões
(DAYRELL 2007).
Sendo assim, é fundamental olhar para esses jovens como sujeitos socioculturais e
compreendê-los na sua diferença, já que os mesmos chegam na escola com um acúmulo de
experiências vivenciadas em diversas instituições sociais, que possuindo uma historicidade,
com visões de mundo, mesclas de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos com lógicas
de comportamento e hábitos que lhe são próprios (DAYRELL, 1990) à sua situação, ou seja,
o modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais
– classe, gênero, etnia (DAYRELL, 2007), e entre outros aspectos, são dimensões que vão

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interferir na produção de cada um deles como sujeito social, independentemente da ação de


cada um (Dayrell 1990), dessa forma assim como afirma Dayrell,
Acreditamos que a escola pode e deve ser um espaço de formação ampla do aluno,
que aprofunde o seu processo de humanização, aprimorando as dimensões e
habilidades que fazem de cada um de nós seres humanos. O acesso ao conhecimento,
às relações sociais, às experiências culturais diversas pode contribuir assim como
suporte no desenvolvimento singular do aluno como sujeito sociocultural, e no
aprimoramento de sua vida social. (DAYRELL, 1990, pg. 26)

Portanto, proporcionar a discussão de gênero na educação básica é demonstrar para


esse/as alunos/as que sexo é muito mais que o que eles estudam em biologia, falar de gênero é
garantir a empatia e respeito pelo próximo independente da sua identidade gênero ou orientação
sexual, é promover a igualdade entre homens e mulheres, e dessa maneira desfazer toda aquela
construção de estigma e formas de subordinações construídos pela sociedade. E dessa forma
tentar alcançar uma sociedade livre do ódio, violência ou perseguição, pois assim como afirma
Dayrell (2005), não se pode esquecer de que a educação diz respeito aos processos de
construção do ser humano como tal, nos quais educar é humanizar.

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de-um-estudante-vitima-de-violencia-homofobica.html> Acesso em: 30 dez. 2017

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A mediação da informação para mulheres nas bibliotecas comunitárias de Londrina

Barbara Angelica Colono1


Luciane de Fátima Beckman Cavalcante2

Resumo: O processo histórico e os avanços tecnológicos nos fizeram desaguar em um


universo sustentado pela informação, vivemos no que muitos definem como Sociedade da
Informação, na qual as estruturas econômicas, políticas, tecnológicas e sociais se configuram
em função da informação e do conhecimento, propalados intensamente no século XX. A
quantidade e a velocidade com que somos atingidos por mensagens, atualmente, é
incalculável; a tecnologia possibilitou maior autonomia e acesso aos mais diversos conteúdos,
porém precisamos nos questionar: todos os sujeitos estão inseridos nessa sociedade da
informação? Ela existe de fato ou é apenas uma utopia? Pensando nas desigualdades
informacionais existentes na cidade de Londrina/PR e na opressão em relação às mulheres,
este projeto se propõe a conhecer as bibliotecas comunitárias presentes na cidade, com
objetivo de perceber como se dá a mediação da informação nesses espaços no que diz respeito
às questões em torno das mulheres dessas comunidades e como essas bibliotecas podem
colaboram para a emancipação das mulheres. O estudo faz parte do grupo de pesquisa
Informação, Conhecimento e Cultura (INFOCCULT) do departamento de Ciência da
Informação da UEL e se encontra em andamento até o momento, por essa razão será exposta
aqui apenas a pesquisa bibliográfica e as discussões em torno da relação entre a biblioteca
comunitária e emancipação feminina. Percebeu-se que a falta de acesso à informação é
produto das desigualdades sociais e ao mesmo tempo produtora/mantenedora das condições
de subordinação e desigualdade. Acredita-se que a mediação da informação possibilita as
mulheres tornarem-se protagonistas sociais e melhorarem suas condições de vida a partir da
conquista de sua autonomia e que as bibliotecas comunitárias são espaços promotores da
emancipação.
Palavras-chaves: Mediação da Informação. Bibliotecas Comunitárias. Mulheres. Autonomia.

1
Universidade Estadual de Londrina; Graduação em História (2013), Graduanda de Biblioteconomia;
barbara.colono@hotmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina; Doutora em Ciência da Informação; lucifbc@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1052 1052


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Introdução.
O processo histórico e os avanços tecnológicos nos fizeram desaguar em um
universo sustentado pela informação, vivemos no que muitos definem como Sociedade da
Informação, na qual as estruturas econômicas, políticas, tecnológicas e sociais se configuram
em função da informação e do conhecimento, propalados intensamente no século XX. A
quantidade e a velocidade com que somos atingidos por mensagens, atualmente, é
incalculável; a tecnologia possibilitou maior autonomia e acesso aos mais diversos conteúdos,
porém precisamos nos questionar: todos os sujeitos estão inseridos nessa sociedade da
informação? Ela existe de fato ou é apenas uma utopia?
O capitalismo fez da informação um elemento de poder, ao mesmo tempo que a
informação possibilita a emancipação dos indivíduos, ela controla e segrega quando se torna
um produto da indústria capitalista. As desigualdades no Brasil, fruto desse sistema, criam
duas realidades opostas, uma marcada pelo desenvolvimento tecnológico e informacional e
outra onde a pobreza limita o acesso às tecnologias e à informação. As unidades de
informação deveriam combater essas disparidades, possibilitando o acesso e apropriação 3 da
informação, porém muitas unidades públicas agem como mantenedoras da ordem social
vigente.
Como reação a esse cenário, as comunidade menos privilegiadas desenvolvem ações
para promover a democratização da informação, entre essas ações percebe-se o surgimento de
bibliotecas comunitárias, que são unidades informacionais criadas e gerenciadas pelo próprio
grupo de maneira não estatal. As bibliotecas comunitárias surgem em espaços marginais e sua
população tem necessidades informacionais específicas.
Pensando nas desigualdades informacionais existentes na cidade de Londrina/PR e
na opressão em relação às mulheres, este projeto se propõe a conhecer as bibliotecas
comunitárias presentes na cidade, com objetivo de perceber como se dá a mediação da
informação nesses espaços no que diz respeito às questões em torno das mulheres dessas
comunidades e como essas bibliotecas podem colaboram para a emancipação das mulheres.
Para tanto, optou-se pela pesquisa de natureza bibliográfica, qualitativa, exploratória e
descritiva, tendo como ferramenta para coleta de dados a entrevista semiestruturada.

3
Apropriação (informacional e cultural) na Ciência da Informação é compreendida como construção de sentido
na relação entre sujeito e objeto, “resultado de reflexões críticas sobre experiências passadas”. (BATISTA, 2018,
p. 17).

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O contato com o bibliotecário Marcos Moraes da Biblioteca Municipal de Londrina


Biblioteca tornou possível identificar quatro bibliotecas comunitárias em Londrina, sendo elas
a Vila Cultura Associação de Democratização da Comunicação (Adecom) localizada no
Conjunto Saltinho, a Biblioteca Comunitária Abdias do Nascimento - também conhecida
como Vila Cultural Flapt - no Conjunto Habitacional Luiz de Sá, a Biblioteca Comunitária do
Jardim Vista Bela e a Biblioteca da Vila Cultural Vitória, no Jardim Cristal.
Entretanto, o estudo faz parte do grupo de pesquisa Informação, Conhecimento e
Cultura (INFOCCULT) do departamento de Ciência da Informação da UEL e se encontra em
andamento até o momento, por essa razão será exposta aqui apenas a pesquisa bibliográfica e
as discussões em torno da relação entre a biblioteca comunitária e emancipação feminina.
Tem como fundamentação a teoria crítica da informação que a compreende como um insumo
essencial à criticidade dos sujeitos, porém disponibilizada de forma desigual e usada como
dispositivo de dominação (ARAUJO, 2009); os estudos sobre a mediação da informação
(GOMES, 2014) como meio para o protagonismo social (PERROTTI, 2017), a ideia freireana
de autonomia por meio da educação crítica (FREIRE, 1983, 1996, 2011) e a teoria feminista
interseccional (CHENSHAW, 2012; RODRIGUES, 2013).
Para compreendermos a organização das biblioteca comunitárias e seu papel no
combate à discriminação e na conquista de direitos sociais, precisamos observar os
paradigmas que marcaram a história das bibliotecas e a necessidade que surgiu com a
Documentação e a Ciência da Informação em repensar essas unidades informacionais; definir
o conceito de biblioteca comunitária e mediação da informação e entender a responsabilidade
social dos bibliotecários frente a necessidade de combater a desigualdade informacional e
social.

História das bibliotecas e a Ciência da Informação


O conhecimento, enquanto saber apreendido pelos sujeitos através das experiências,
só possui significado quando compartilhado. É a partir do compartilhamento e registro do
conhecimento que conseguimos preservá-lo, disseminá-lo e, quando necessário, superá-lo. O
desenvolvimento de uma sociedade depende do conhecimento que ela produz e
consequentemente de sua organização, que torna possível a recuperação e uso da informação.
Francisco das Chagas de Souza (1998) afirma que a organização do conhecimento é
uma das metas mais importantes da humanidade, pois possibilita potencializar a apropriação e
o uso dos saberes que produzimos. Os saberes que as sociedades produzem se manifestam nos
documentos, sejam eles bibliográficos ou não bibliográficos e, para organizar todos esses

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documentos são necessários métodos e instrumentos capazes de contemplar a diversidade


desses materiais e dessas sociedades. Dessa necessidade surgiram as primeiras bibliotecas;
existentes desde a Antiguidade, essa instituição sofreu diversas mudanças de paradigmas e de
funções, como veremos agora.
Espaços destinados a guardar documentos produzidos pelo homem existem desde as
primeiras civilizações mesopotâmicas, informações registradas em papiros, pergaminhos ou
tabletes de argila eram guardados junto com outros objetos nesses tempos, porém a palavra
Biblioteca, de origem grega (bibliothéke) que significa depósito de livros, passou a ser usada
para designar esses locais somente na Antiguidade Clássica. Como o significado sugere, nesse
período a biblioteca não tinha caráter público e servia apenas para armazenar os documentos
ao invés de disseminá-los.
Até o fim do período medieval esse paradigma não se alterou, a diferença é que na
Idade Média o conhecimento estava concentrado nas mãos do clero, por isso as bibliotecas se
localizavam nos espaços pertencentes à Igreja Católica; os responsáveis pela guarda dos
documentos eram os religiosos, sendo o acesso negado à população leiga (OLIVEIRA, 2005).
No século XIII vemos o nascimento das primeiras universidades e a ampliação no número de
bibliotecas (ORTEGA, 2004), porém somente no século XV e XVI que esse paradigma
começa a mudar por influência de alguns fatos históricos que veremos a seguir.
A invenção da imprensa por Gutemberg possibilitou a reprodução dos livros e tirou
das mãos da igreja o monopólio sobre o conhecimento, a partir daí as bibliotecas se
expandiram e se separaram dos arquivos e museus, que normalmente se configuravam em um
único espaço (ORTEGA, 2004). Outro fato importante para a mudança de paradigma diz
respeito a Revolução Francesa (1789) na qual lutava-se para tornar o conhecimento algo
público, tirando da elite o controle sobre o mesmo.
Esses acontecimentos resultaram na criação das primeiras bibliotecas públicas,
inicialmente na Europa e Estados Unidos da América, mas no Brasil os aspectos não diferem
muito, visto que as bibliotecas começaram com a vinda dos jesuítas, posteriormente se
restringiram aos acervos reais e com a instauração da República vemos surgir as bibliotecas
públicas (OLIVEIRA, 2005).
Com a invenção da imprensa no século XV houve uma multiplicação da produção de
livros, com o intuito de inventariar toda essa produção começou a se desenvolver
bibliografias, foi a partir delas que Paul Otlet, em fins do século XVIII, iniciou um
movimento colaborativo para inventariar toda produção humana, refletindo posteriormente na
criação da disciplina de Documentação que propunha o trabalho integrado entre as

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instituições informacionais com o objetivo de listar os objetos documentais, visando assim a


disseminação da informação (ARAUJO, 2014).
Segundo Jorge Werhein (2000) a sociedade pós-industrial sofreu fortes mudanças
técnicas, organizacionais e administrativas, dando origem à Sociedade da Informação. Para o
autor, a economia nessa sociedade não gira mais em torno dos insumos baratos de energia,
mas sim dos insumos baratos de informação (WERHEIN, 2000). Além disso, é preciso
considerar o contexto pós Segunda Guerra Mundial, que provocou uma expansão e
supervalorização da informação, além do avanço científico e tecnológico, esses eventos
resultaram no desenvolvimento da Ciência da Informação.
Embora a Ciência da Informação tenha se constituído recentemente e mantenha
relações com a Biblioteconomia, ela não é a evolução desta última, pois a Ciência da
Informação e a Biblioteconomia possuem especificidades (OLIVEIRA, 2005). Entretanto é
possível perceber a influência da Ciência da Informação para a mudança de paradigmas na
Biblioteconomia.
Até aqui podemos perceber dois paradigmas, o da conservação cultural e o da
difusão cultural que se expressam na forma de bibliotecas templum e emporium, como define
Perrotti (2017). Segundo o autor, as bibliotecas templum são as instituições da antiguidade e
medievo nas quais o objetivo era a conservação e o controle da memória social, enquanto as
bibliotecas emporium são aquelas que surgiram da efervescência dos movimentos
reformadores e ideais iluministas que instauraram a biblioteca pública, visando a
democratização da informação.
No entanto, com os estudos desenvolvidos pela Ciência da Informação sobre os
fluxos de informação e comportamento de usuários, podemos perceber a forte influência na
Biblioteconomia que mudou o foco de suas ações, do acervo para os usuários. Com isso
temos novos estudos e práticas que propõem uma biblioteca mais humanizada e que assume
um papel social dentro da comunidade em que se encontra. Nessa nova visão de biblioteca sua
função não é apenas a conservação e a assimilação da informação pelo usuário, mas sim a
apropriação.
Perrotti (2017) se refere a esse perfil de bibliotecas como bibliotecas forum, na qual
os sujeitos participam do processo de construção do conhecimento e da cultura, ao contrário
das bibliotecas templum e emporium nas quais o indivíduo apenas assimila um conhecimento
pré-fabricado de forma acrítica. Em uma biblioteca fórum as pessoas se tornam protagonistas
sociais, elas fazem parte das ações e por isso, são sujeitos de sua história e não sujeitados.

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Todo esse caminho que percorremos até aqui foi para visualizarmos o quanto a
biblioteca se transformou e no quão importante pode vir a ser, enquanto ferramenta para
emancipação dos sujeitos, especialmente no que diz respeito às mulheres de comunidades
periféricas. Entretanto, o protagonismo social só é possível por meio da mediação e da relação
cultural entre os sujeitos, por esse motivo propomos pensar sobre os fatores que estabelecem a
opressão sobre a mulher e como as mediações e o papel social do bibliotecário podem
colaborar para alcançarmos o ideal de biblioteca forum, tornamos a biblioteca algo para além
de um “deposito de livros”, um local para reflexão, debate e desconstrução das estruturas
opressoras.

A opressão sobre a mulher e as bibliotecas comunitárias como forma de resistência


A origem da opressão sobre a mulher é tema recorrente nas teorias feministas e, ao
longo do tempo, desenvolveram-se diferentes tentativas de explicar o surgimento do
patriarcado, uma das teorias se refere às significações dadas às diferenças fisiológicas entre
homens e mulheres – como a força muscular inferior da mulher e a reprodução que foram
utilizadas como justificativas (infundadas) para a subordinação da mulher (BEAUVOIR,
1970). A sexualidade e o falocentrismo são outra explicação para a subjugação da mulher,
visto que criou-se um simbolismo sobre o homem e seu falo que foi compreendido como
símbolo de soberania, sendo esse discurso fortalecido pelas teorias psicanalíticas
(BEAUVOIR, 1970).
Ainda de acordo com Beauvoir (1970), o materialismo histórico de Engels entende a
opressão sobre a mulher como uma consequência do estabelecimento da propriedade privada
e da família, pois ao dominar propriedades e outros grupos por meio da escravidão, o homem
tornou-se também proprietária da mulher, sendo assim a origem do patriarcado está ligado a
aspectos econômicos e à divisão do trabalho. Entretanto, a autora ressalta que o materialismo
histórico não dá conta de compreender todos os aspectos que envolvem o que é ser mulher,
por isso faz-se necessário uma abordagem que contemple tanto questões biológicas,
psicanalíticas e econômicas.
Mais importante do que descobrir a origem da opressão sobre a mulher é assumir que
ela existe e compreender como ela opera, para que que assim seja possível descontruir as
bases que a sustentam. Para tanto, é essencial desnaturalizar a condição feminina, ou seja,
reconhecer que ser mulher não é uma condição natural determinada pelo sexo, mas sim uma
condição social e culturalmente construída, por meio do gênero. Para Beauvoir (1967) e Scott
(1990) a mulher é definida pelos papeis sociais à ela atribuídos, por isso a afirmação:

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Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,


psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
(BEAUVOIR, 1967, p. 9).

Compreende-se que o gênero é um dos fatores para a desigualdade entre os seres,


entretanto acredita-se que há uma intersecção entre gênero, raça e classe social que são
determinantes nas formas de opressão vividas pelas mulheres, visto que ser mulher é uma
condição que varia de acordo com a cor e a classe social a qual se pertence e que, em muitos
casos são desconsiderados pelas teorias feministas.
De acordo com Rodrigues (2013) a interseccionalidade foi um termo cunhado pelas
ativistas do movimento negro e feminista dos anos 1980 pela necessidade de romper o
silencio do feminismo branco em relação as opressões que associavam racismo e sexismo e
conquistar direitos sociais e políticas públicas que englobassem as condições de gênero e raça.
Kimberle Crenshaw é uma das mais importantes feministas que abordam a
interseccionalidade, segunda ela:
O desafio é incorporar a questão de gênero à prática dos direitos
humanos e a questão racial ao gênero. Isso significa que precisamos
compreender que homens e mulheres podem experimentar situações
de racismo de maneiras especificamente relacionadas ao seu gênero.
As mulheres devem ser protegidas quando são vítimas de
discriminação racial, da mesma maneira que os homens, e devem ser
protegidas quando sofrem discriminação de gênero/racial de maneiras
diferentes. Da mesma forma, quando mulheres negras sofrem
discriminação de gênero, iguais às sofridas pelas mulheres
dominantes, devem ser protegidas, assim quando experimentam
discriminações raciais que as brancas freqüentemente não
experimentam. Esse é o desafio da intersecionalidade. (CRENSHAW,
[2012?], p. 9).

Segundo Chenshaw [2012?] a interseccionalidade possibilita aproximar as


instituições no que diz respeito aos direitos humanos uma vez que permite reflexões
multidimensionais sobre as discriminações e desigualdades sociais. A biblioteca, enquanto
instituição, tem a capacidade de promover o debate e ações de combate à desigualdade de
forma mais completa se levar em consideração os aspectos de gênero, raça e classe social que
envolvem as mulheres. As bibliotecas comunitárias foram escolhidas para a pesquisa devido à
natureza desses espaços, que por se formarem em regiões periféricas, se configuram como
forma de resistência das minorias e delas se aproximam mais do que as unidades públicas.
Os estudos sobre Biblioteca Comunitária ainda são escassos no meio acadêmico,
porém dois trabalhos se destacam, “Bibliotecas Públicas e Bibliotecas Alternativas” de

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Almeida Junior (1997) que discorre sobre o modelo tradicional e as propostas alternativas que
surgiram na tentativa de transformar a concepção e a atuação da biblioteca pública tradicional;
e a tese de Elisa Machado (2008) “Bibliotecas comunitárias como prática social no Brasil”
que busca conceituar a biblioteca comunitária e tenta compreender a relação entre os sujeitos
e o objeto da pesquisa, possibilitando responder questões referentes a construção desses
espaços, o perfil do profissional que neles atuam, como se relacionam com a comunidade,
qual o papel da Biblioteconomia e da Ciência da Informação e quais as políticas públicas são
realizadas para esses projetos.
Segundo Machado (2008), as bibliotecas e as práticas sociais estão vinculadas ao
contexto no qual ocorrem, a biblioteca comunitária surge como uma resposta aos impactos
causados pela pós-modernidade, como a sensação de desequilíbrio, a aceleração do tempo e
das relações provocada pelo avanço tecnológico, assim como o individualismo e a
desigualdade no acesso à informação.
A informação e o conhecimento tornaram-se um problema social ao serem
convertidos em produtos aos quais somente quem tem poder de compra tem acesso, situação
agravada ainda mais pela falta de políticas pública. Como forma de combater a exclusão
social e solucionar a falta de acesso à informação e à leitura, surgem as bibliotecas
comunitárias a partir de ações comunitárias coletivas (MACHADO, 2008).
A definição do termo é complexo, muitas bibliotecas com as mesmas características
e objetivos usam o termo biblioteca popular, porém a autora ressalta que a criação da
biblioteca popular esta imersa no movimento populista do governo brasileiro entre as décadas
de 1930 e 1960. Muitas vezes a mudança ocorre apenas na esfera semântica, conservando os
mesmos serviços da biblioteca pública, como observado por Almeida Junior (1997).
Entretanto, Machado (2008) elenca algumas particularidades da biblioteca
comunitária:
1. a forma de constituição: são bibliotecas criadas efetivamente pela e não
para a comunidade, como resultado de uma ação cultural.
2. a perspectiva comum do grupo em torno do combate à exclusão
informacional como forma de luta pela igualdade e justiça social.
3. o processo de articulação local e o forte vínculo com a comunidade.
4. a referência espacial: estão, em geral, localizadas em regiões periféricas.
5. o fato de não serem instituições governamentais, ou com vinculação direta
aos Municípios, Estados ou Federação (MACHADO, 2008, p. 60-61).

Dessa forma, a biblioteca comunitária pode ser considerada um outro tipo de espaço,
diferente da biblioteca pública, pois se pauta na autonomia, flexibilidade e articulação local,
além de valorizar a ação cultural acima da organização e tratamento da informação

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(MACHADO, 2008), contrariando Almeida Junior (1997) que a define apenas como um
simulacro da biblioteca pública.
Paulo Freire (1983, 1996, 2011) defende que a revolução acontece por meio da
educação crítica, que ao contrário da educação bancária promove a conscientização política
dos sujeitos, que percebem-se como oprimidos e buscam mudança através da práxis. O
diálogo e a comunicação são promotores da libertada, pois por meio destes os indivíduos se
colocam como sujeitos do processo histórico, capazes de transformar o mundo.
Freire vê a educação como uma ação política e cidadã, que deve acontecer não
apenas na sala de aula, mas em todos os espaços de interação social – e por que não nas
bibliotecas comunitárias? Flusser (1983), define a biblioteca como um instrumento de ação
cultural, sendo a ação cultural a ideologia política de uma profissão, que possui uma
motivação manipuladora (normativa) ou visa promover a emergência cultural
(transformadora). Para que a ação cultural seja transformadora é preciso promover o encontro
entre os sujeitos fora desse sistema normativo, possibilitando a criatividade e criação, por
meio da qual o indivíduo se torna cidadão(ã).
Segundo Flusser (1983, p. 162), “para que uma biblioteca possa vir a ser uma
biblioteca-ação cultural é necessário que ela se volte para o não público” – são aqueles a
quem a sociedade limita ou recusa os meios para optar livremente. Na prática, podemos tornar
as biblioteca comunitárias em espaços de transformação social por meio do diálogo crítico
que objetive a autonomia e da aproximação entre as instituições/movimentos que lutem por
direitos humanos e sociais.
No caso das mulheres, as biblioteca comunitárias podem estabelecer relações entre as
políticas pública de acesso à informação e de fomento à leitura com as políticas públicas de
gênero, raça e classe social. É possível promover campanhas de combate ao racismo e à
violência contra a mulher, disponibilizar informações sobre as centrais de atendimento à
mulher, esclarecimento sobre os direitos sexuais, reprodutivos e no campo da saúde em geral,
não apenas para as mulheres brancas, mas as negras, indígenas, com deficiências, LGBT’s
jovens e idosas. Além de proporcionar orientação sobre a os direitos trabalhistas, promover
cursos de capacitação e educação financeira para que as mulheres conquistem a autonomia
financeira.
No âmbito cultural, a biblioteca pode realizar ações de valorização da mulher e da
diversidade; viabilizar a apresentação de teatros, danças, palestras e rodas de leitura em torno
das questões femininas, que deem visibilidade as figuras femininas do mundo das artes e às
próprias moradoras da comunidade, criando condições para o empoderamento dessas

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mulheres. Entretanto, para que essas ações se efetivem é preciso que haja recursos
financeiros, tecnológicos, humanos e intelectuais – o que permanece sendo o maior desafio
das bibliotecas brasileiras se levado em conta o descaso do Governo frente a essas unidades –
além da ação mediadora e da responsabilidade social das pessoas que atuam nesses espaços.

A responsabilidade social do(a) bibliotecário(a) e a mediação da informação


Falar sobre a responsabilidade social das bibliotecas torna-se um desafio, visto que
poucas pesquisas se dedicam ao tema e grande parte dos cursos de Biblioteconomia e dos
profissionais da área ainda se preocupam mais com questões técnicas e tradicionais. Embora
não se queira criar estereótipos, é impossível não perceber o perfil pouco social e de
desengajamento político que os cursos de Biblioteconomia carregam.
Almeida Junior (1997) chama a atenção para o desinteresse que a sociedade
capitalista provocou em relação às bibliotecas públicas, tanto por parte dos profissionais,
quanto dos usuários, pois essa instituição se apresenta muitas vezes inerte, passiva e neutra
frente à realidade, apenas reproduzindo o discurso das camadas dominantes da sociedade, não
assumindo seu papel social.
Nota-se que grande parte dos bibliotecários que ocupam cargos públicos estão mais
preocupados com a estabilidade e os benefícios que a carreira possibilita do que com o papel
que a instituição deveria desempenhar e que depende, em parte, da atuação dos mesmos; essa
realidade perpetua a ideia de biblioteca templum, conservadora, inacessível e leva muitas
pessoas a escolherem o curso apenas por interesse nos concursos públicos.
Como dito anteriormente, a configuração da sociedade capitalista leva à
desvalorização das biblioteca públicas por falta de profissionais comprometidos socialmente,
no caso das bibliotecas comunitárias não há nem mesmo bibliotecários atuando nesses
espaços. Por essa razão, pretende-se abordar a questão da responsabilidade social e da
mediação com o objetivo de contribuir para a conscientização sobre o papel social da
biblioteca, por parte dos bibliotecários.
Apesar desse cenário ser uma realidade preocupante, é possível perceber algumas
transformações. As Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2001) do curso de
Biblioteconomia aprovadas em 2001 passaram a contemplar aspectos sociais da profissão e
prezam pelo tratamento e disseminação da informação de maneira crítica para que
bibliotecários atendam às necessidade informacionais das diferentes comunidades. No que diz
respeito aos conteúdos propostos pelas diretrizes a maioria ainda é de caráter técnico, porém a
visível mudança nas diretrizes influencia a evolução dos currículos das Instituições de Ensino

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Superior de Biblioteconomia e traz reflexões a respeitos das responsabilidades que a profissão


carrega.
Embora no exercício da profissão ainda seja difícil perceber a conscientização dos
bibliotecários em relação a seu papel social e seu envolvimento com práticas humanitárias, as
transformações no meio acadêmico possibilitam falar de conceitos antes não abordados pela
Biblioteconomia e refletem na formação de um novo perfil de bibliotecário.
As transformações econômicas, tecnológicas e políticas são acompanhadas pelo
aparecimento de novos questionamentos e conceitos, visto que provocam alterações nas
estruturas sociais e, por vezes, a desigual distribuição dos recursos, como ocorreu com o
avanço do capitalismo e da globalização. Na tentativa de corrigir os efeitos negativos do
neoliberalismo reinante no início do século XX, o conceito de Responsabilidade Social
passou a ser utilizado no meio empresarial como sinônimo de comprometimento com a
comunidade, uma maneira de compensar a sociedade pelas consequências negativas das
atividades empresariais (MORAES; LUCAS, 2012).
Se pensarmos a Informação como um recurso – que por sua vez também é
distribuído desigualmente na sociedade atual, excluindo uma parcela da população da dita
sociedade do conhecimento – e que o bibliotecário, enquanto cientista da informação é
responsável pela disseminação da informação, então compreende-se que o mesmo tem a
responsabilidade social de combater o acesso desigual ao conhecimento, a partir do
comprometimento com a comunidade. Portanto, falar em responsabilidade social na
biblioteconomia é assumir a obrigação de atenuar as consequências negativas da atual
configuração social.
Sobre a emancipação dos sujeitos e a importância do bibliotecário nesse processo,
Dudziak (2007), com base nas discussões do High-Level Colloquium in Information Literacy
and Lifelong Learning realizado em 2005, ressalta que:
[...] a existência de cidadãos emancipados e socialmente incluídos depende
da capacidade de todos (coletividade), e de cada um, de desenvolver
continuamente a competência em informação, o aprender a aprender e o
aprendizado ao longo da vida. Estes três elementos são pré-requisitos para a
efetiva participação em uma Sociedade de Conhecimento e formam a base
sobre a qual torna-se possível transformar a realidade (HLC, 2006).
(DUDZIAK, 2007, p. 89).

A mediação da informação se apresenta como tema recente, porém em grande


destaque na Ciência da Informação, principalmente no que diz respeito às atividades de
mediação e ao papel do mediador. Segundo Henriette Gomes (2014) o objetivo da mediação é
o protagonismo social, ou seja, a interação entre polos que se dá pela comunicação e que é

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alcançado por meio do processo dialógico e da consciência do mediador enquanto sujeito que
age, constrói e interfere no meio, sendo responsável pela produção humanizadora do mundo.
A base da ação mediadora é a dialogia; é através da comunicação e do
compartilhamento que os sujeitos constroem significações, promovem o encontro e a
manifestação das subjetividades, colaborando para a reflexão crítica sobre os conhecimentos
que nos faltam e torna possível o desenvolvimento intelectual, como sugere Vygotsky (apud
GOMES, 2014), é pela ação mediadora que desenvolvemos nossa potencialidade. A
mediação, segundo Freire (1996), nos transforma em sujeitos da nossa própria história, pois
nos faz capazes de pensar sobre as coisas do mundo e nosso papel na sociedade, com essa
consciência podemos interferir na realidade e modificá-la, agindo como protagonistas.
O mediador da informação é movido pelas necessidades informacionais e, por meio
de sua ação todos os envolvidos na mediação podem descobrir novas possibilidades e
potencialidades. O mediador, como um protagonista social, tem a responsabilidade de cuidar,
organizar, preservar, disseminar e recuperar a informação para acesso, uso e apropriação pela
sociedade, sua ação reflete em autoconhecimento e auto realização, configurando assim, a
dimensão estética da mediação, na qual os sujeitos encontram a poética e o belo no ato de
criar e conforto no ambiente informacional, conforto esse garantido pela dialogia, pela
comunicação colaborativa entre mediador e mediado (GOMES, 2014).
Henriette Gomes (2014) chama nossa atenção para a dimensão ética da mediação,
que estabelece uma linha tênue entre interação e manipulação. A ação mediadora é uma
interferência na realidade, porém é preciso agir com cautela para amenizar os riscos de
manipulação, com ética, consciência e competência é possível interferir sem manipular,
estabelecendo uma relação de confiança, diálogo e cooperação:
A consciência e a competência para interferir evitando a manipulação são
dependentes da conduta ética associada à busca de identificação de sinais
que indiquem o grau de conforto, confiança, cumplicidade e cooperação que
se pode gerar na ação mediadora. Isso implica no desenvolvimento de
competências para acolher, ouvir e dialogar com o outro, implica na
capacidade de escuta e observação sensíveis dos comportamentos que se
desdobram da ação mediadora, além da adoção de princípios que inibam a
censura e o direcionamento do acesso à informação que desconsidere a
igualdade de direitos e a liberdade de pensamento. (GOMES, 2014, p. 53).

Assim, a dimensão ética revela a mediação como um ato de cuidar, pois se preocupa
com o coletivo, em garantir o direito à informação, em estabelecer um sentimento de pertença
e com a humanização do mundo. A mediação também implica na formação de usuários,
partindo da perspectiva de Pareyson na qual os seres humanos estão em constante formação,
Gomes (2014) demonstrar que a mediação tem papel determinante na formação, pois é através

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das experiências e da interação – entre sujeitos, sujeitos e objeto e sujeitos e o meio – que a
formação acontece, alterando o estado cognitivo e afetivo do indivíduo.

Considerações finais.
A falta de acesso à informação é produto das desigualdades sociais e ao mesmo
tempo produtora/mantenedora das condições de subordinação e desigualdade. Acredita-se que
a mediação da informação possibilita as mulheres tornarem-se protagonistas sociais e
melhorarem suas condições de vida a partir da conquista de sua autonomia e que as
bibliotecas comunitárias são espaços promotores da emancipação.
O projeto se inspira na luta do movimento feminista por direitos sociais que
compreende a existência feminina sob vários aspectos – de gênero, étnicos, financeiros,
regionais, etc. – e julga que tais conquistas só serão possíveis por meio da educação das
mulheres, mas uma educação voltada para a autonomia e protagonismo social, sendo as
bibliotecas espaços capazes de promover a apropriação cultural e informacional por parte
delas, desde que a ação mediadora seja pautada nas usuárias e em suas necessidades
informacionais, para isso torna-se essencial conhecer a realidade dessas mulheres, colocando-
as como sujeitos da ação.
Este foi o primeiro passo de uma pesquisa que pretende se estender ao campo prático
ao fazer um mapeamento das ações de mediação da informação direcionadas às mulheres das
bibliotecas comunitárias de Londrina, conhecendo a realidade desses espaços e das mulheres
que as frequentam, na intenção de contribuir com fortalecimento dessas unidades
informacionais e com a emancipação da mulher. A pesquisa não pretende apresentar ideias
conclusivas, mas sim continuar promovendo o debate em torno do acesso à informação e a
opressão sobre a mulher.

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Gênero e Ciência: o que é ser cientista segundo estudantes do Ensino Fundamental


de uma escola pública do interior de Rondônia

Eronilda de Souza Limeira1


Adrielen Amâncio da Silva2

Resumo: Esse trabalho teve como objetivo geral analisar as relações de gênero no ambiente
escolar, com foco na participação feminina no campo da ciência, a fim de despertar a
consciência coletiva para o reconhecimento e valorização de práticas sociais justas e
igualitárias nos anos finais do ensino fundamental. Inicialmente foi feito um estudo de revisão
de literatura de autores que dialogam sobre o tema gênero e ciência para subsidiar a discussão,
dentre eles se destacam Schiebinger (2001); Louro (2008), Silva (2008) e Del Priore (1994).
Para a leitura e interpretação das produções imagéticas dos estudantes foi feito uso da Análise
de Conteúdo de Laurence Bardin (2011) e representações de Roger Chartier (1990). Partimos
de uma abordagem qualitativa, a fim de refletir sobre as relações de gênero, focalizando a
participação feminina no campo da ciência. Utilizamos como principal instrumento para a
coleta de dados a produção imagética de estudantes dos anos finais do ensino fundamental
com a finalidade de identificar quais as representações que esse grupo possui acerca da
participação feminina na ciência. Pedimos que desenhassem uma pessoa cientista, sem se
identificarem, apenas colocando se o autor do desenho era “homem” ou “mulher”. A
caracterização de cientista retratada por esses estudantes revela uma pessoa que tem uma
inteligência acima dos padrões e está longe de ter uma vida com atividades rotineiras como,
por exemplo, comer, dormir, se divertir, ter um convívio social. A discrepância em relação às
quantidades expressas, de mulheres e homens, e as características dos desenhos é reflexo de
uma sociedade machista que ainda não legitima a mulher como protagonista no meio
científico.

Palavras-chaves: Educação; Gênero; Ciência.

1
E. E. E. F. M. Cel Jorge Teixeira de Oliveira; Graduada em Matemática pela Universidade Federal de
Rondônia - UNIR; eronildalimeira@gmail.com.
2
E. E. I. E. F. Mundo do Balão Mágico; Graduada em Pedagogia pela Fundação Universidade Federal de
Rondônia- UNIR; adrielen.amancio@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1067 1067


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Introdução

Ao pensar em um trabalho que envolvesse discussões sobre relações de gênero,


focalizando a mulher no meio científico e a educação escolar, decidimos desenvolver essa
pesquisa, cujo o objetivo geral foi analisar as relações de gênero no ambiente escolar, com
foco na participação feminina no campo da ciência, a fim de despertar a consciência coletiva
para o reconhecimento e valorização de práticas sociais justas e igualitárias nos anos finais do
ensino fundamental. Com relação aos objetivos específicos, chegamos a esses: estudar e
compreender as conjunturas culturais e sociais que permeiam as relações de gênero,
especialmente no que tange à participação da mulher na ciência e qual o papel da escola no
fomento desse debate; discutir e analisar a percepção dos estudantes sobre o papel da mulher
no campo científico e identificar como a escola tem contribuído na construção da
representação de ciência na vida desses estudantes.
A metodologia que utilizamos parte de uma abordagem qualitativa, com a finalidade
de refletir sobre as relações de gênero, focalizando a participação feminina no campo da
ciência. Utilizamos como principal instrumento para a coleta de dados a produção imagética
de estudantes dos anos finais do ensino fundamental para identificar quais as representações
que esse grupo possui acerca da participação feminina na ciência. Assim, pedimos que
desenhassem uma pessoa cientista, sem se identificarem, apenas colocando se o autor do
desenho era “homem” ou “mulher”. Para a discussão e análise de dados utilizamos a Análise
de Conteúdo de Laurence Bardin (2011) e de Representações Sociais de Roger Chartier
(1990).
A concepção de cientista refere-se ao profissional ligado diretamente às ciências
naturais, sobretudo química, biologia e física, mas há inferências à matemática e astronomia.
E a discrepância em relação às quantidades expressas e as características dos desenhos é
reflexo de uma sociedade machista que ainda não legitima a mulher como protagonista no
meio científico.
Porém, também não podemos deixar de revelar as exceções, que muito nos
surpreenderam. Assim acreditamos, mais do que nunca, que precisamos levar essas
discussões, sobre a igualdade de gênero, para as escolas. Precisamos incentivar as nossas
meninas para que também sejam protagonistas na construção da ciência, da política, da
tecnologia e das exatas (não apenas nessas áreas, destacamos essas por serem as que menos
tem mulheres presentes).

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Desenvolvimento: As mulheres na História e na Ciência

Escrever sobre a história das mulheres não é uma tarefa fácil, pois durante muitos
séculos elas foram invisibilizadas nos registros dos historiadores. Apenas em 1980 que esse
tema começa a ganhar força. Mas, afinal, o que significa escrever uma história das mulheres?
E quais as implicações de citá-las ou invisibilizá-las na história da ciência?
Na verdade, “não apenas a ciência é masculina, mas a maioria das produções humanas
(ainda) é predominantemente masculina” (CHASSOT, 2013). Como primeiro ponto, Silva
(2008) coloca que a história é um local onde as mulheres vêm questionar o papel central que
os homens, tradicionalmente, têm ocupado nas narrativas. Em países como Estados Unidos e
França, a busca pelos direitos das mulheres e o reconhecimento da condição feminina se deu
mais cedo que entre nós.
Então, quando as mulheres passaram a fazer parte das preocupações dos/das
historiadores/as? Em que momento suas vozes passaram a ser ouvidas? Para alguns isso se
deu por influência das transformações trazidas pela Escola de Annales3; há ainda argumentos
que seja pela própria mudança na noção de ciência e também as contribuições do movimento
feminista. O fator importante foi as mudanças surgidas de novos paradigmas científicos. A
crítica ao racionalismo e o fim da exigência de conceitos teóricos muito rígidos relativizou o
conhecimento histórico. Os historiadores provocaram uma reviravolta na perspectiva de
análise, por passarem a interpretar os dados históricos de forma dialética. Assim, passaram a
dar mais valor a questões antes não tidas como importantes. A das mulheres é um exemplo
(SILVA, 2008).
De acordo com Bruschini e Unbahaum (2002 apud SILVA, 2008), com a entrada das
mulheres nas universidades, as pesquisas começaram a envolver mulheres, pois todo
pesquisador se sente motivado a estudar sua própria realidade. E ao começarem a questionar
sobre “n” fatores que envolviam as mulheres na história da humanidade, começaram a
questionar a si mesmo sobre seus papéis dentro da sociedade.
Começaram, então, a questionar sobre a conquista de seu espaço social, criando
movimentos feministas. Esses movimentos nasceram intimamente ligados aos movimentos
políticos dos anos de 1960 e estreitamente vinculados à efervescência cultural e política que

3
De acordo com Michelle Perrot (2005 apud SILVA, 2008), o foco da escola de Analles centrava-se na ruptura
significativa no campo historiográfico, não reservando atenção à figura feminina, mas apenas aos planos
econômicos e sociais. Contudo, é preciso destacar que quando se falou de social, a Escola de Analles possibilitou
estudos sobre a vida privada, as práticas cotidianas, o casamento, a sexualidade, ou seja, temas que acabaram
permitindo a inclusão das mulheres na história.

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varria todo o mundo ocidental. Esses movimentos foram extremamente importantes, pois
vinham questionando e desmontando valores de famílias que consideravam a mulher numa
posição subalterna.
Por isso, para começarmos esse diálogo, é preciso que conheçamos um pouco da
história das mulheres, principalmente no Brasil, frente aos avanços científicos e tecnológicos.
Não dá para falar, pesquisar ou até mesmo defender a igualdade entre os gêneros sem antes
conhecer a história que envolve grandes movimentos de luta. Dentre esses movimentos, um
dos que impulsionaram e revolucionaram, tanto as discussões sobre o assunto, quanto a
posição das mulheres dentro da sociedade em relação à igualdade de gênero, foram os
movimentos feministas. Esses movimentos se caracterizam em três grandes momentos, ou,
como estudiosos os chamam, em três grandes Ondas do Feminismo.
A primeira onda se refere ao movimento que ocorreu na América do Norte, que
visava a promoção de igualdade de direitos e direitos contratuais e de propriedade para
homens e mulheres e o fim dos casamentos arranjados. No final do século XIX elas incluem a
conquista do poder político e começam a fazer campanha por direitos sexuais, reprodutivos e
econômicos das mulheres (MIRANDA; SCHIMANSKI, 2014).
A segunda onda se preocupou mais com as desigualdades sociais, culturais e
políticas. Com isso houve críticas ao movimento de liberação feminina, principalmente com
relação às mulheres intelectuais afro-americanas, “[...] argumentando que o movimento teria
desconsiderado as diferenças de raça e classe e não daria conta de atingir as questões que
dividiam as mulheres” (IBIDEM, p. 85).
A terceira onda vem de início para tentar suprir as “falhas” da segunda onda. Visava
desafiar os significados essencialistas de feminilidade. O foco começa a ser sobre
considerações de subjetividades relacionadas com a raça. Demonstrando que a questão de
gênero não se resume em apenas uma situação, mas está vinculada a uma diversidade ampla,
como o próprio universo humano (IBIDEM).
Com esse breve esboço, podemos notar quão importante os movimentos sociais são
para provocar mudanças na sociedade, principalmente quando falamos em mudanças que
tiram as chamadas “minorias” da marginalidade. Com isso, ao longo dos anos, as mulheres
estão conseguindo ocupar um pouco mais de espaço dentro dos ambientes antes considerados
exclusivamente masculinos. Mas ainda falta muito a se conquistar, muito a subverter.
As pesquisas científicas que focalizam a participação das mulheres na ciência são
muito importantes para compreendermos como foi (e ainda está sendo, principalmente nos
últimos anos, quando olhamos para o nosso atual cenário político brasileiro) difícil, a luta por

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direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres. Esse cenário ainda muito
preconceituoso e machista é um reflexo da própria colonização (ou invasão) do Brasil.
Uma importante obra que nos ajuda a compreender o “papel” da mulher branca,
negra e indígena, nesse processo colonizatório do Brasil, é a de Del Priore (1994) intitulada A
mulher na História do Brasil. Podemos perceber que esse papel atribuído à mulher branca,
assim como à escrava ou à indígena, obedecia a estereótipos herdados do mundo europeu e de
seu processo civilizatório. A criação de normas e punições severas exclusivas às mulheres
criou uma atmosfera de vida austera e de subordinação. Essa realidade durou séculos.
Foi apenas a partir do sistema de produção colonial no Brasil que a história das
mulheres começa a ser registrada e contada formalmente. Esse momento foi fortemente
influenciado pelas reformas tanto católica como protestante que pretendiam garantir a
subordinação da mulher, seja a seu marido ou a qualquer estrutura coercitiva do Estado.
Vemos a influências que as entidades religiosas tiveram na construção do conceito de mulher
no início de nossa história (IBIDEM).
Mergulhada numa cultura na qual padrões e normas eram ditados por homens com fins
de garantir a supremacia masculina, o único feito reconhecido das mulheres que as tornavam
um ser admirado e num patamar superior até mesmo ao dos homens era o da gestação. Ou
seja, “[...] numa relação de hierarquia e dependência do homem, a gravidez, inundando a
gestante de privilégios e poderes, mistérios e fascinação, esvazia o conteúdo da subordinação
feminina, tornando os homens inúteis e excluídos do processo de gestação (IBIDEM, p. 51).
Porém, é importante destacar que, segundo a autora mesmo em meio a essa história de
percalços, existiu uma linha tênue de resistência feminina, manifestada pelo seu apoio em
“pregações religiosas” para superarem esse movimento de exploração e sofrimento. Essa
realidade perdurou por um bom tempo. O emponderamento das mulheres na história do Brasil
foi um processo gradativo. A luta dos movimentos de esquerda, a Semana de 22, o direito do
voto feminino foram só o começo das conquistas que os grupos minoritários iniciariam.
Louro (2008) recorda que somente a partir da década de 1960 os movimentos
feministas, bem como os demais movimentos de luta pela defesa do direito das minorias,
começaram a aparecer no cenário mundial. Na verdade, foi o movimento feminista que abriu
caminho para toda ação expressiva de luta das minorias. É importante entender que o conceito
de minoria não está ligado à minoria quantitativa, mas ao conceito que inferiorizou e silenciou
determinadas categorias ao longo da história da humanidade que se constituem, na verdade,
em maiorias. Quando grupos feministas passaram a debater a situação posta, outros foram

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despontando, questionando a verticalização das relações na sociedade e buscando a subversão


destas.
Por isso em pleno século XXI, ao discutirmos sobre gênero e ciência dentro da nossa
sociedade, percebemos como ainda estamos tão marcados por essas heranças vindas da
colonização. E pesquisas como a nossa que buscam entender, refletir e intervir na realidade é
uma maneira de subverter o machismo e a misoginia que ainda tenta nos excluir.
Essas questões vão sendo repassadas para o imaginário da sociedade, atingindo
também as bases das nossas escolas, de onde, futuramente, sairão grandes pesquisadores. Por
isso cabe refletirmos que tipo de profissionais e seres humanos estamos criando. Precisamos
pensar, enquanto educadoras e educadores, sobre o tipo de incentivo que damos às meninas e
aos meninos, porque isso trará resultados. Resta-nos saber se serão positivos para ambos, ou
apenas para um grupo específico.
Ao estudarmos sobre a história das mulheres, percebemos, como já dito acima, que
elas sempre estavam à margem da História. Foram raras as vezes que algumas se destacaram
frente a uma sociedade machista. Isso não quer dizer que eram menos inteligentes, ou que
eram menos capazes do que os homens de produzirem conhecimentos relevantes para a
evolução da sociedade. O que ocorreu foi que as mulheres não tinham permissão de se
envolverem com a ciência e a política, isto é, com todos os assuntos que faziam parte da
esfera pública da sociedade.
Quando a mulher, ainda que pouco, conseguia chegar à ciência, ela deveria se
desprender de sua feminilidade, deixando de lado tudo que pertence a sua mulher interior.
“Algumas mulheres não apenas negaram sua feminilidade para trabalharem como cientista,
como obscureceram completamente seu sexo” (SCHIEBINGER, 2001, p. 156). Ou seja, havia
um grande preço a ser pago, caso insistissem em fazer parte desse meio. Outras, ainda,
usavam nomes falsos ou o nome do marido para poderem transitar no meio científico e se
corresponderem com outros cientistas.
Ao falar sobre imagens, Schiebinger (2001, p. 146) retrata que essas projetam
mensagens, e questiona: “as mulheres veem seus futuros refletidos na face presente da
ciência”? “Até mesmo o público em geral, assim como um bom número dos próprios
cientistas veem a ciência povoada por homens e identificada com a masculinidade (IBIDEM,
p. 147).
Com isso, a nossa pesquisa vem justamente entender como os alunos do ensino
fundamental II consideram que são pessoas cientistas de hoje. Eles expressaram suas ideias
por meio de desenhos, o que nos trouxe extraordinários resultados.

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Metodologia

Partimos de uma abordagem qualitativa, a fim de refletir sobre as relações de gênero,


focalizando a participação feminina no campo da ciência. Utilizamos como principal
instrumento para a coleta de dados a produção imagética de estudantes dos anos finais do
ensino fundamental com a finalidade de identificar quais as representações que esse grupo
possui acerca da participação feminina na ciência. Pedimos que desenhassem uma pessoa
cientista, sem se identificarem, apenas colocando se o autor do desenho é “homem” ou
“mulher”.
Inicialmente foi feito um estudo de revisão de literatura de autores que dialogam
sobre o tema gênero e ciência para subsidiar a discussão, dentre eles se destacam Schiebinger
(2001); Louro (2008), Silva (2008) e Del Priore (1994). Para a leitura e interpretação das
produções imagéticas dos estudantes foi feito uso da Análise de Conteúdo de Laurence Bardin
(1977) e representações de Roger Chartier (1990).
A análise de conteúdo é uma metodologia surgida na segunda metade do século XX
com a finalidade de ajudar na reflexão dos dados de uma maneira diferente da antes usada, o
modelo positivista de análise (MORAES, 1999). Assim, em uma definição mais geral,
segundo Bardin (1977, p.31), pode-se dizer que “análise de conteúdo é um conjunto de
técnicas de análises das comunicações”, ou seja, ela dá a possibilidade de trabalhar com não
apenas um instrumento de análise, mas com várias formas, dando um leque de possibilidades,
encaixando-se e bem na área das comunicações.
Para a concretização desse processo metodológico de análise, segundo a autora, é
preciso desenvolver três etapas: 1) a pré-análise (fase de organização do material); 2) a
exploração do material (início da análise propriamente dita) e 3) tratamento dos resultados
obtidos e interpretação (reflexão dos dados coletados, ou seja, os resultados brutos são
tratados de maneira a serem significativos e válidos).
Para a pesquisa em educação e outras do campo da historiografia ou etnografia, que
dependem de uma leitura de mundo para além de elementos quantitativos, como é o caso da
nossa pesquisa, a metodologia de representação social de Roger Chartier é conveniente.
Essas questões nos ajudarão a perceber que os desenhos feitos pelos alunos nos
revelam não apenas uma determinada característica que uma pessoa cientista possa ter, mas
também os seus modos de pensar e agir diante dessa simples questão. É refletir sobre as
representações que criam diante desse tema, pois “[...] as representações podem incluir os

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modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos, mas não se restringem a eles” (BARROS,
2005, p. 135).

Resultados e Discussões

A escola na qual a pesquisa foi realizada situa-se em um distrito do município de Ji-


Paraná, estado de Rondônia e 70% de sua clientela provém da área rural. A escolha por esse
lócus se deu pelo fato de uma pesquisa semelhante ter sido realizada nessa mesma escola,
porém com estudantes do ensino médio. Não objetivamos, no entanto, fazer neste trabalho
uma comparação das duas pesquisas, mas somente apresentar os resultados desta, fazendo
uma análise restrita ao público participante: as turmas dos anos finais do ensino fundamental.
Essa pesquisa foi desenvolvida com seis turmas: uma de 6° e 7° anos e duas de 8° e
9° anos. A média de idade desses estudantes está em torno dos 12 anos (6° ano), 13 anos (7°
ano), 14 anos (8° ano) e 15 anos (9° ano). Dessas turmas, 75 estudantes concordaram
participar da pesquisa.
A coleta dos desenhos foi realizada da seguinte maneira: foi solicitado que os
estudantes desenhassem uma pessoa cientista em uma folha de papel sulfite, detalhando o
máximo possível as características dessa pessoa, bem como como trabalha, onde vive, os
instrumentos que utiliza, como se veste, entre outros. Enfatizamos que deviam desenhar “uma
pessoa cientista”, sem dar destaque para o gênero. Por fim, pedimos que se identificassem
somente colocando se o autor do desenho era homem/menino ou mulher/menina.
Analisando os desenhos, conseguimos elencar três categorias que consideramos
essenciais para podermos refletir sobre as representações indicadas. Assim, a primeira
categoria é referente à quantidade de desenhos que aparecem mulheres e homens como
cientistas; a segunda categoria destaca as características físicas desses personagens e a terceira
é referente ao ambiente que esses personagens estão presentes.

Categoria 1: quantidade de desenhos que aparecem homens e mulheres como cientistas

Fazendo uma análise quantitativa dos dados (desenhos), notamos que dos 75, 61
deles trazem a figura de um homem cientista; em 11, a cientista é mulher; em 3 aparecem
mulher e homem trabalhando juntos.

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TABELA: quantidade de personagens desenhados por turma.

Anos Média das Personagens desenhados Total de


escolares idades (anos) alunos
Homens Mulheres Ambos

6° 12 16 6 0 22

7° 13 14 1 2 17

8° 14 11 3 0 14

9° 15 20 1 1 22

Total de desenhos 61 11 3 75

Fonte: as autoras, 2018.

Ao observarmos a tabela acima, o primeiro dado que pretendemos destacar é em


relação à diferença entre a quantidade de desenhos que se referem aos homens cientistas
(81,33%) e às mulheres cientistas (14,66%), ambos solitários em seus ambientes. De início
podemos citar que essa quantidade estava prevista em nossas hipóteses, pois isso vai ao
encontro com o que Londa Schiebinger (2001) nos apresenta, quando diz que ao realizar uma
pesquisa imagética com crianças, na grande maioria dos desenhos apareceram homens.
Essa questão também nos faz refletir sobre o que isso representa para esses
estudantes, pois nestes desenhos são passados não apenas uma simples ideia que eles têm de
um personagem cientista, mas como eles enxergam essa realidade na prática. Quando vemos
que 81,33% dos desenhos se referem a homens enquanto cientistas, percebemos que os meios
de comunicação, os livros didáticos, as próprias escolas e universidades (pois são elas que
formam os professores) ainda não tem feito o seu papel de repensar, discutir e de divulgar que
a mulher também faz parte do ambiente científico.
Porém, também não podemos desconsiderar a realidade a qual essas crianças fazem
parte. Por isso
Essa visão de cientista homem pode ser decorrente justamente desses
espaços de convivência dos estudantes. É possível que sua representação de
profissional seja associada à imagem da figura masculina que, no campo,
ainda tem uma expressividade privilegiada. E a de cientista como profissão,
pois no seu imaginário o trabalho realizado por um pesquisador só é feito
tendo como premissa uma relação na qual aquele tem de produzir algo,

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desenvolver um produto como resultado de sua relação trabalhista com um


patrão (LIMEIRA, 2016, p.9)4.

Outra questão muito interessante, é que o 6º ano foi a única turma que mais desenhou
mulheres como cientistas. Este dado nos é de grande valor, pois essas crianças são egressas
dos anos iniciais do ensino fundamental, ou seja, a referência que elas têm de alguém que
estuda e ensina, sendo essa uma possível relação com uma pessoa cientista, é sua própria
professora (pedagoga), que como sabemos bem, na educação infantil e anos iniciais, a grande
maioria são mulheres.
Podemos perceber outro ponto que fugiu da regra, sendo também algo não previsto
por nós pesquisadoras. Nos 7º e nos 9º anos apareceram desenhos que indicavam um homem
e uma mulher trabalhando juntos. Isso nos deixou intrigadas e, ao mesmo tempo, com um ar
de satisfação, pois nesses desenhos percebemos que homens e mulheres podem ser cientistas
juntos. Esse dado nos dá um pontinho de esperança quando pensamos em igualdade de
gênero, pois a luta não é tirar os homens de cargos importantes, mas é promover
oportunidades justas para que mulheres chegarem a esses cargos e terem seus trabalhos
reconhecidos.
Assim, também podemos acrescentar que os nossos estudos e pesquisas só terão
impacto quando a sociedade, universidades, escolas começarem a discutir e refletir sobre
essas questões. Não basta que façamos pesquisas para ficarem “engavetadas”, precisamos de
mais.
Os estudos de gênero só têm real valor à medida que, desnaturalizando as
desigualdades, contribuam para uma efetiva transformação nas relações entre
homens e mulheres, equalizando as relações. Neste caso, não se trata apenas
de estudos que possibilitem a emergência de uma nova mulher, mas, de
maneira simultânea, é preciso que os homens aceitem participar da
construção de uma nova masculinidade (SILVA, 2008, p. 229).

Sabemos bem que essa não é uma tarefa fácil, principalmente quando pensamos na
resistência das famílias tradicionais em reconhecer a participação feminina na esfera pública
da sociedade. Outro ponto também que cabe refletirmos é sobre a atual conjuntura política
que vivemos, onde a grande maioria dos atuais governantes são homens brancos e velhos. Ou
seja, não há um interesse, por parte desses poderes, em dividir o espaço com as mulheres.

4
Eronilda de S. Limeira realizou essa mesma pesquisa com estudantes dessa mesma escola, porém com alunos
do Ensino Médio, em 2016. Assim, o ambiente social desses dois grupos é o mesmo. Por isso, ao pensarmos na
relação dos dois dados verificamos grandes semelhanças.

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Assim como nossos e nossas estudantes poderão reconhecer que uma mulher possa fazer parte
desses poderes?

Categoria 2: características físicas

Quando observamos as características físicas desses cientistas e as roupas que


utilizam, chegamos aos seguintes resultados: dos 61 personagens homens desenhados, 40
destacaram uma aparência mais velha, usando óculos, jaleco, ternos ou uniformes. Os demais
(21) utilizam roupas do cotidiano, como camisetas e calças, tendo uma aparência mais jovem.
Com relação às mulheres, apenas 2 utilizam jaleco, as demais aparecem de vestidos,
calças e blusas. Todas elas estão de cabelos soltos e aparentam ser jovens. Mesmo não sendo
exatamente uma característica física, é interessante mostrar que houve a aparição de dois
personagens diferentes dos demais: duas professoras de matemática. Dessa maneira, vemos
que eles consideram essa professora como cientista, apresentando-a como referência para a
profissão.
Além daqueles, também apareceu uma caracterização de cientista como uma
estudante (garota sentada numa carteira escolar, com cadernos, canetas, lápis, régua) que por
sua vez também fora desenhado por uma menina. Neste caso, podemos pensar que essa
estudante veja em si própria a imagem de cientista. Essa representação é muito interessante,
pois pode expressar o sentimento dessa aluna em também ser reconhecida como cientista além
dos demais que ela já é acostumada a ver nos livros didáticos, na mídia e na própria
representação que os colegas de sala fizeram.
Essas características destacadas, por mais que algumas fogem da regra, ainda têm
fortemente marcada aquela ideia do cientista como uma pessoa idosa, do gênero masculino,
de barba, que usa óculos e jaleco. Essa visão é exatamente a trazida pelos livros didáticos e na
mídia, ou seja, eles estão reproduzindo aquilo que veem a sua volta. Aqueles que fugiram dos
padrões dominantes, mesmo sendo a minoria, nos fizeram pensar sobre o porquê eles
colocaram essas características diferentes. Umas das respostas é que eles podem estar se
colocando no lugar de futuros cientistas, possam estar relacionando seus professores com
cientistas e podem também estar refletindo sobre uma sociedade diferente, onde ser cientista é
uma profissão acessível.
Com relação às mulheres cientistas, os dados foram completamente diferentes, pois
apenas 2 utilizam jaleco e por mais que elas apareçam em ambientes laboratoriais, a maioria
delas estão de vestidos e cabelos soltos, destacando certo tipo de vaidade. Assim, podemos

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perceber que os estudantes pesquisados não desconsideram a feminilidade dessas mulheres,


ou seja, isso vai ao contrário da realidade tratada por Schiebinger (2001), onde para se
conseguir credibilidade no ambiente científico muitas mulheres tiveram que assumir um perfil
masculinizado.

Categoria 3: ambientes que os personagens estão presentes

Ao analisarmos os ambientes que os cientistas estão presentes, percebemos que 63


desenhos colocam características de um ambiente de laboratório, com instrumentos de
experimentos, animais, robôs e computadores. Essas características destacam ambientes de
trabalho, deixando a entender que esses personagens ficam a maior parte do tempo de suas
vidas trabalhando, não tendo vida social ou momentos de lazer.
Schiebinger (2001) destaca justamente essa situação, onde para se tornar uma pessoa
cientista bem-sucedida é preciso se abdicar de toda sua vida, não podendo ter uma família,
amigos, horas de lazer, dentre outras coisas que fariam parte da vida de uma pessoa com
hábitos rotineiros. Para o homem, essa questão não foi difícil de se adquirir, pois ele sempre
tinha uma esposa disposta a apoiá-lo e servi-lo. Já para a mulher, a situação foi praticamente
oposta. Por muito tempo a sociedade acreditou que o lugar da mulher era o ambiente
doméstico. E ainda hoje essa realidade ainda perdura. Por isso podemos refletir como foi
difícil para a própria mulher (e ainda o é) acreditar em um modo de ser e viver diferente do
daquele que aprendera de uma cultura secular de opressão.
Logo, precisamos subverter essa ideia de que as mulheres devem ser “recatadas e do
lar”, como tanto a mídia tem propagado nos últimos anos. Precisamos incentivar as nossas
meninas a estudarem, a quererem seguir uma profissão, a se valorizarem enquanto mulheres.
Precisamos mudar essa história de preconceito e repressão. E precisamos ensinar aos meninos
que eles podem ser sensíveis, chorar, gostar de qualquer cor, abraçar um outro menino, entre
outras atitudes tidas como incabíveis para eles. É preciso criar outra forma de masculinidade,
menos penosa e mais humana.
Outros desenhos ainda mostraram espaços fora do laboratório, destacando ambientes
sociais, de natureza e lazer. Isso nos mostra que esses 12 desenhos foram além, demonstrando
que uma pessoa cientista não precisa ser exatamente alguém que nunca se desprende do seu
ambiente laboratorial. Esses personagens podem ter uma vida social. Em outras palavras,
quem trabalha fora de laboratório também é cientista!

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Apesar de poucos desenhos, 12 foi uma quantidade considerável para nós enquanto
pesquisadoras, pois em uma pesquisa anterior feito por Limeira (2016), como já citado
anteriormente, não haviam tantos que fugiam da regra. Isso nos fez refletir sobre a questão da
idade e a escolaridade desses estudantes. Nesses anos finais do fundamental, conseguimos
perceber ainda uma certa “inocência” no sentido de não estarem tão “poluídos” pelas
desigualdades presentes em nossa sociedade. Assim, sabemos que ninguém nasce
preconceituoso, nós vamos nos tornando. E se aprendemos o preconceito, podemos também
aprender o reconhecimento do outro e a igualdade de direitos.

Considerações Finais

A caracterização de cientista retratada por esses estudantes revela uma pessoa que
estuda bastante e está longe de ter as atividades rotineiras de um ser humano comum, como,
por exemplo, comer, dormir, se divertir, ter uma família ou um convívio social. A concepção
de cientista refere-se ao profissional ligado diretamente às ciências naturais, sobretudo
química, biologia e física, mas há inferências à matemática e à astronomia.
Foram poucas as situações que fugiram dessas características, mas elas nos fizeram
refletir que mesmo não tendo sido desenvolvido um trabalho que retratasse essas questões na
escola, como por exemplo uma intervenção, que discutisse questões de gênero, percebemos
que muitas crianças revelaram pensamentos críticos sobre essas situações.
Quando vemos 11 desenhos que destacaram a mulher como cientista, sem
descaracterizá-la como “mulher”, e 3 desenhos que apresentaram os dois, homens e mulheres,
trabalhando juntos, nos fizeram pensar que essas crianças tem uma “semente” plantada sobre
a igualdade de gênero. O que cabe agora é seus educadores regá-la por meio de projetos,
palestras e estudos.
Porém, ainda há uma discrepância em relação às quantidades expressas dos desenhos
e as características destes. Infelizmente é reflexo de uma sociedade preconceituosa que ainda
não legitima a mulher como protagonista no meio científico. Ao refletirmos sobre o ambiente
social no qual essas crianças e adolescentes pertencem, ao analisar o Projeto Político
Pedagógico da instituição, bem como os meios de comunicação que eles e elas têm acesso,
percebemos que o espaço escolar ainda é um dos poucos lugares de socialização para esses
estudantes dialogarem sobre uma sociedade que determina papéis distintos para homens e
mulheres.

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A escola é fundamental na construção de uma sociedade mais plena e horizontal de


direitos. Desta maneira, é urgente que se faça uma intervenção didática nos anos finais do
ensino fundamental, no sentido de promover uma educação que subverta a ideia de uma
ciência masculinizada pela a de um movimento que inclui todas as categorias de pessoas e
classes sociais. É preciso pensar uma escola que ensine que a ciência não seja um bem
inatingível da humanidade, mas que cada movimento da própria escola já torna esses meninos
e meninas parte da história da ciência que eles estão começando a aprender.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.

BARROS, José D’Assunção. A história cultural e a contribuição de Roger Chartier. Diálogos,


DHI/PPH/UEM, v.9, n.1, p.125-411. 2005.

CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

CHASSOT, Attico Inacio. A ciência é masculina? É, sim senhora! Coleção Aldus, n. 16, 6 ed,
São Leopodo/RS: Unisinos, 2013.

DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. 4 ed. São Paulo: Contexto, 1994.

LIMEIRA, Eronilda de Souza. GÊNERO E CIÊNCIA: Concepção de cientista por estudantes


do ensino médio da Escola Estadual Coronel Jorge Teixeira de Oliveira, no município de Ji-
Paraná, RO. (Especialização) Pós-Graduação em Educação de Jovens e Adultos na
Diversidade e Inclusão Social - EaD, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Rondônia (IFRO). Ji-Paraná, RO, 2016.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições,


v. 19, n. 2(56), maio/ago. 2008.

MIRANDA, Tereza Lopes; SCHIMANSKI, Edina. Relações de gênero: algumas


considerações conceituais. In: FERREIRA, A. J., (org). Relações étnico-raciais, de gênero e
sexualidade: perspectivas contemporâneas [online], Ponta Grossa: Editora UEPG, 2014, p.
66-91. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/btydh/pdf/ferreira-9788577982103-05.pdf>.
Acesso em: 03 Jul. 2017.

MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-
32. 1999.

SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Tradução de Raul Fiker. Bauru/SP:


EDUSC, 2001.

SILVA, Tânia. M. G. da. Trajetória da historiografia das mulheres no brasil. POLITEIA:


Hist. E Soc, Vitória da Conquista - BA, v.8, n.1, p. 223-231. 2008.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p1067 1080


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Conformação de agenda e formulação de políticas públicas: formação de redes e


articulações de mulheres

Erica da Cruz Novaes Gonçalves Dias1


Maria Conceição da Costa2

Resumo: O objetivo deste artigo é identificar as redes e articulações responsáveis pelas etapas
iniciais do Programa Pró-Equidade e Gênero enquanto política pública. Tais etapas
representam os primeiros estágios das políticas públicas, de acordo com o modelo utilizado
comumente para análise de política. Assim, elencamos as coalizões responsáveis pela
determinação da equidade de gênero e raça no mercado de trabalho como um problema a ser
discutido, incluído na agenda política e posteriormente tido na pauta para a formulação e
implementação de política pública. Para tanto, realizamos uma pesquisa qualitativa, de
documentos referentes ao Programa. Os resultados apontam para a atuação de coalizões de
diversas frentes, coordenadas pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM)
em parceria com organizações de atuação em âmbito nacional e internacional. No mais, a
pesquisa destacou a importância de se considerar aspectos históricos, culturais, políticos e
econômicos para o processo de análise do Programa enquanto política, tendo em vista as lutas
feministas, as desigualdades de gênero e raça no país, bem como as transformações no jogo
político nacional ocorrida nos últimos anos: fatores estes que influenciam no processo de
elaboração de políticas públicas que impactem a favor da equidade de gênero e raça no
mercado de trabalho.
Palavras-chaves: políticas públicas; mulheres; Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça.

1
UNESPAR; Mestre; ericacngdias@gmail.com.
2
UNICAMP; Doutora; dacosta@ige.unicamp.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 899


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1. Introdução
Consolidar a participação das mulheres no mercado de trabalho, de forma equitativa,
inclusiva e capaz de eliminar diferentes formas de discriminação é um desafio para as
políticas públicas que têm como foco o público feminino, de diferentes raças. Um desafio
amplo e, ainda que tenha ganhado espaço nos últimos anos na agenda governamental,
demonstra um incipiente avanço quando determinados índices são analisados, como a
participação das mulheres em cargos de alta gerência nas empresas ou o salário das mulheres
negras diante de outras parcelas da população.
Todavia, as políticas existentes representam conquistas louváveis por promoverem a
inclusão na pauta e orçamento governamentais de temas historicamente tidos como não
prioritários por diferentes esferas do poder. Um daqueles exemplos é o Programa Pró-
Equidade de Gênero e Raça, cujas características se diferem de outras ações no sentido de
incentivar empresas e instituições, públicas ou privadas, a inserirem em suas culturas novas
formas de gestão, voltadas à equidade de gênero e raça em seus âmbitos internos. O que
representa, dessa forma, uma política pública com vistas também à atuação de entes de
entidades privadas na tentativa de redução das desigualdades de gênero e raça.
A participação das organizações no Programa é voluntária e restrita a instituições de
médio e grande porte. Ainda assim, é possuidora de grande potencial, tendo em vista que no
Brasil as médias empresas compõem a parcela das organizações que mais contratam no país e
as grandes corporações, como as que mais estão incentivando a diversidade e inclusão em
suas estruturas (PWC, 2017;SEBRAE, 2014).
Faz-se também importante salientar, no que tange à relevância da pesquisa, que
comumente é perceptível a reprodução de cenários da sociedade que são desfavoráveis às
mulheres nas relações de trabalho dentro das organizações. Aspectos que se traduzem em
discriminação racial, divisão sexual horizontal e vertical e a consequente diferença salarial em
relação aos homens, segmentação de mercado baseada em gênero, formas de recrutamento
seletivas, permanência no mercado de trabalho, flexibilização das relações trabalhistas, dentre
outras, e que representam algumas das dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mundo
globalizado de trabalho (BRUSCHINI, 2007). O conjunto daquelas discriminações contrasta
com a grande representatividade das mulheres no mercado de trabalho. Como afirma Abramo
(2004), discriminação e desigualdades de raça e gênero atinge a camada que compõe a
maioria da população brasileira e não grupos específicos.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 900


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Portanto, a implementação de políticas públicas de trabalho e renda voltadas às


mulheres representa uma relevante tentativa tanto de incorporação na agenda pública dos
problemas que afetam as mulheres no mercado de trabalho, especialmente as mulheres negras,
quanto de sensibilização de diferentes atores no processo de fomento às relações igualitárias.
E foi justamente o primeiro aspecto que serviu como base para o andamento desta pesquisa: a
inserção daqueles problemas nas pautas governamentais, tendo como foco a identificação das
articulações e redes para a inclusão na Agenda governamental de políticas públicas para as
mulheres, especialmente no que concerne à criação de alternativas para inserção, permanência
e ascensão no mercado de trabalho. Para tanto, nosso estudo teve como objeto de investigação
o Programa Pró-equidade de Gênero e Raça nas empresas em suas etapas iniciais de
formulação.
A pesquisa, de cunho qualitativo, se deu por meio da análise de documentos primários
publicados pela da Secretaria Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM) e a
Subsecretaria de Planejamento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, entidades
responsáveis, respectivamente, pela coordenação e operacionalização do Programa, além de
consultas aos sites de entidades representativas de atuação global, como a OIT e a ONU. O
período selecionado foi o de 2005 a 2015, tendo em vista a implantação do PEGR e as edições
organizadas.

2. Desenvolvimento
Para discorrermos sobre o Programa, suas características e desenvolvermos uma
análise sobre formação de redes e articulações, faz-se necessário antes tratarmos de alguns
conceitos tidos como chave para a análise de políticas públicas, como segue.

2.1 A análise de políticas públicas para as mulheres


De acordo com Souza (2006), existem diversas definições de políticas públicas, as
quais englobam a análise de determinado governo diante de questões públicas, o quê
determinado governo decide ou não realizar, ou ainda como um conjunto de ações
governamentais que impactam na vida dos cidadãos. Seja qual for a definição conceitual
utilizada em determinada análise, a autora enfatiza o fato de a maior parte das discussões
sobre o tema ‘políticas públicas’ considerarem a importância de um todo, no qual são
relevantes os diferentes interesses dos indivíduos, instituições e ideologias. Perspectiva esta,
semelhante ao que Lasswell (1958) aponta, sobre a necessidade de compreender quem ganha

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 901


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o quê, o porquê e que diferença faz determinada política, quando de sua formulação e
posterior implementação.
Realizar análise de política requer, portanto, considerar interesses de indivíduos ou de
grupos, de fatores culturais, políticos, de comportamento e atitudes dos atores envolvidos.
Logo, os estudos das políticas públicas não se limitam apenas aos seus conteúdos, mas outras
dimensões, como a institucional e a processual (FREY, 2000).
Comumente, a análise considera um modelo de ciclo da política, o qual é dividido em
cinco partes:
a) Identificação de problemas;
b) Conformação de agenda;
c) Formulação de política;
d) Implementação de política;
e) Avaliação de política.
Este trabalho baseia-se nas primeiras fases deste ciclo: Identificação de problemas,
conformação de agenda e formulação de política. Sendo assim, nos limitaremos a discorrer
sobre eles.
O momento inicial deste ciclo se dá pelo reconhecimento da necessidade e demandas
sociais que se dão de maneira explícita ou não, e é influenciado por interesses daqueles que
identificam o que é considerado como problema. É nele que, através de mecanismos, um tema
se torna problema, fazendo com que as autoridades públicas intervenham e o incluam na
agenda. Agenda, por sua vez, constitui como um conjunto de problemas percebidos e
passíveis de debates públicos (ROTH DEUBEL, 2009).
Todavia, não são todos os problemas que são inseridos na agenda pública. Há a
questão da representação social e política destes problemas, resultante de lutas de atores
distintos que, de acordo com o poder que detêm, estabelecem uma leitura do problema, dentro
de um contexto de disputas no jogo político. Processo este que enfatiza, novamente, que as
políticas públicas constituem um processo de construção social (e de disputas) derivadas da
interação entre o Estado e a sociedade (ROTH DEUBEL, 2009).
Neste contexto, a conformação da agenda representa um momento de negociação entre
os atores, na qual os que detêm maior poder a moldam de acordo com seus interesses e cujas
disputas tendem a ocorrer com mais frequência em ambientes politicamente plurais e
democráticos. Ou ainda, um espaço no qual há atores visivelmente detentores de maior poder
que tentam bloquear o avanço de agendas tidas como concorrentes, impedindo negociações e
debates. Este tipo de negociação é refletido numa postura de não tomada de decisão, nas quais

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 902


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questões simplesmente não são discutidas pelos atores de maior poder. Por fim, a
conformação da agenda pode refletir a existência de conflitos latentes, não passíveis de serem
identificados, tendo em vista as características contra-hegemônicas dos temas em questão.
Neste, os atores dominantes nem ao menos permitem a introdução destes temas na agenda
(DIAS, 2012).
Quanto à formulação, comumente afirma-se que corresponde ao momento das
tomadas de decisão: diante das diversas soluções possíveis para resolver determinado
problema, há de se estabelecer o que é prioritário, quais são as metas e os objetivos para a
revolução. Neste processo, o Estado possui uma limitada influência de dominação, tendo em
vista a participação de atores com interesses materiais e ideológicos diversos, cujo confronto é
que resultará nas decisões tomadas, e as pautas das agendas serão traduzidas em ações a
serem implementadas (ROTH DEUBEL, 2009; DIAS, 2012).
A distinção e ênfase nestes momentos iniciais do ciclo de políticas públicas se faz
importante pois são neles em que se determinam as características das políticas, bem como os
atores nelas envolvidos, seus interesses e poderes. Portanto, para se entender o quê os
governos escolhem fazer ou não, por que fazem e que diferença isso faz, há de se considerar
aquelas fases como essenciais nas observações dos valores e interesses na identificação do
problema e conformação da agenda pública.
Assim, o processo de construção da política pública requer uma análise também da
interação dos atores e da maneira como articulam seus interesses e decisões, que afetam as
posteriores características gerais da política. Processo este que pode também representar um
exercício capaz de “levar ao aprimoramento da política pública” (DIAS, 2012, p.58). A
articulação entre estes atores, bem como a maneira como se organizam e interagem é
chamado do advocacy coalitions. A atuação destes grupos tende a influenciar mudanças nas
políticas públicas e, consequentemente, no âmbito Estatal, tendo em vista que as políticas
seriam resultado do prevalecimento de seus pontos de vista (SABATIER, 1993). No mais,
estes grupos seriam também caracterizados como sendo composto por elementos que
compartilham de crenças semelhantes, detentores de coordenação de suas atividades e que
ocupam diferentes posições na sociedade (DIAS, 2012).
Quando consideramos as políticas pública voltadas às mulheres, percebemos avanços
na inclusão da agenda governamental de temas fundamentais como ações contra a violência,
de promoção da saúde e de inclusão e inserção no desenvolvimento econômico do país.
Avanços estes que foram sendo conquistados após décadas de lutas organizadas por diferentes
entidades, em distintas esferas do poder e com claros conjuntos de atores contrários a esse

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 903


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fenômeno contra-hegemônico. Portanto, há um processo histórico de lutas de muitas mulheres


que atuaram como elementos fundamentais para que os avanços ocorridos nos últimos tempos
tenham ganhado fôlego, ainda que, desde 2016, anos alguns retrocessos tenham ocorrido no
âmbito da política nacional.
No processo histórico de lutas e avanços se faz perceptível a importância de grupos e
movimentos sociais de mulheres com articulações e ações nos âmbitos regional, nacional e
mobilização internacional e com destacadas atuações no país principalmente a partir dos anos
2000 (CISNE, 2014). Essa capacidade de alguns grupos de estabelecerem representatividade
em diferentes âmbitos, associada à ascensão ao poder de grupos políticos tidos como mais
progressistas contribuiu positivamente para que temas relacionados aos direitos das mulheres
fossem reconhecidos como problemas e que, posteriormente, fossem incluídos na agenda
governamental a partir dos anos 2000 em âmbito federal.
Um exemplo deste processo foi a criação da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres (SPM) no ano de 2003, com um viés de cooperação para com “Ministérios, com a
sociedade civil e a comunidade internacional” (SPM, 2003). A Secretaria chegou a ganhar
status de ministério em 2010, o que lhe garantiu maior liberdade na elaboração de políticas e
em sua gestão orçamentária. Todavia, antes mesmo desta mudança de status, a Secretaria
lançou importantes programas voltados às mulheres, como o Pró-Equidade de Gênero e Raça.

2.2 O Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça


A criação do Programa se deu em 2005 e representou o início da execução de
compromissos assumidos pelo Brasil diante de convenções internacionais no que se refere à
implementação de políticas públicas voltadas à cidadania, empoderamento das
mulheres e igualdade no mundo do trabalho (DIAS; MARQUES, 2015).
O Programa ocorre bianualmente, está em sua 6ª edição, é voltado às médias e grandes
organizações, públicas ou privadas, e elenca como objetivos principais:

Contribuir para a eliminação de todas as formas de discriminação no acesso,


remuneração, ascensão e permanência no emprego; Conscientizar e
sensibilizar empregadoras/es e estimular as práticas de gestão que promovam
a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres dentro das empresas;
Reconhecer publicamente o compromisso das empresas com a eqüidade de
gênero no mundo do trabalho; Criar a rede Pró-Eqüidade de Gênero;

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 904


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Construir um banco de “boas práticas” de gestão que promovam a eqüidade


de gênero no mundo do trabalho (BRASIL, 2005, p.335).

A participação das empresas ocorre de forma voluntária, não gera obrigações e as que
se candidatam o desenvolvem ao longo de 18 meses, nos quais é realizado um Plano de Ação
para cada participante, liderado por um Comitê Gestor interno. O Programa oferece suporte
para a execução daquele Plano, visando o desenvolvimento de “novas concepções na gestão
de pessoas e na cultura organizacional, visando à igualdade de gênero e raça no mundo do
trabalho, eliminando todas as formas de discriminação no acesso, remuneração, ascensão e
permanência no emprego” (SPM, 2014, p.12).
Ao realizar o Plano de Ação no período estipulado e os compromissos assumidos, a
empresa que cumpra no mínimo 70% das ações recebe o “Selo Pró-Equidade de Gênero e
Raça”, que representa o reconhecimento de ações incorporadas pelas organizações nos seus
respectivos âmbitos institucionais.
Nas descrições que a SPM faz sobre o Programa em seus materiais de divulgação, se
faz clara a ênfase dada às redes de colaboração para o desenvolvimento do Programa. Dentre
as instituições citadas: a OIT (Organização Internacional do Trabalho), a ONU Mulheres
(Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres),
a SEPIIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), além de Ministérios,
Conselho Nacional da Mulher e diversos grupos de estudos e pesquisas de diferentes
universidades brasileiras.
Adicionalmente à questão das colaborações institucionais, é importante salientar que o
Programa é resultado de compromissos assumidos pelo Brasil internacionalmente, com vistas
à promoção de igualdade entre homens e mulheres (inclusive no mundo do trabalho), assim
como das ações estabelecidas no Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres, a partir da I
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja demanda se fez presente no capítulo
referente à “Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania”.
A partir da identificação das entidades e suas participações no surgimento do
Programa, conseguimos dar alguns passos rumo ao objetivo deste trabalho, de compreender a
formação de redes e articulações para a conformação da agenda e formulação de políticas
voltadas às mulheres. Fatos estes que discutiremos no tópico seguinte.

2.3 O reconhecimento da Equidade de Gênero e Raça como um problema e sua inserção


na agenda pública

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O Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça surgiu a partir de uma demanda


estabelecida pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e de seus objetivos, tais como:
“I. Promover a autonomia econômica e financeira das mulheres; II. Promover a eqüidade de
gênero, raça e etnia nas relações de trabalho; III. Promover políticas de ações afirmativas que
reafirmem a condição das mulheres como sujeitos sociais e políticos” (SPM, 2004, p.44). O
Plano Nacional serviu como base para as ações realizadas por todo o país e por diferentes
entidades, com apoio da SPM, no período entre os anos de 2005 e 2007.
O Plano Nacional emergiu das diretrizes aprovadas na I Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres (CNPM), a qual reuniu no ano de 2004 cerca de 2700 mulheres
(entre delegadas, observadoras e convidadas) que propuseram políticas e linhas de ações para
a promoção da equidade de gênero e raça. Estas mulheres, por sua vez, levaram para a
Conferência ações discutidas em outros âmbitos (municipal e estadual), em um processo que
envolveu mais de 120 mil mulheres (SPM, 2004). Os números grandiosos demonstram, assim,
uma significativa representatividade nacional nas pautas das discussões que resultaram no
estabelecimento do Plano Nacional.
A partir deste contexto, é possível enfatizar que o reconhecimento dos temas de gênero
e raça como elementos passíveis de serem tidos como problema a serem discutidos e,
posteriormente, inseridos no contexto das políticas públicas federais se deu de forma
amplamente articulada em diferentes frentes. E a SPM agiu como articuladora dos diversos
atores e os concentrou a partir do estabelecimento de pautas democraticamente construídas, o
que caracteriza um exemplo de advocacy coalitions, adicionalmente pelo fato de serem
formadas por mulheres das mais diversas posições representativas das discussões sobre
equidade de gênero e raça no país.
O fato de englobar uma rede significativa de atores, democrática e articulada por um
órgão que por alguns anos teve status de Ministério – e os benefícios que esta posição
propicia - primeiramente pode representar elementos facilitadores para a inclusão dos temas
que estes atores consideram como problemas e essenciais de serem adicionados à agenda
pública. Isto, num cenário no qual, inclusive, a convocação para a I CNPM adveio da
Presidência da República (SPM, 2004), o que evidencia a importância de se considerar a
conjuntura política nas análises destes processos.
Com isto, o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça estabelece-se como resultado
de uma pauta ampla de lutas de atores distribuídos por todo o país, que foram capazes de criar
uma coalizão que pudesse exercer significativa pressão sobre os policy makers, a ponto de
levarem a questão da equidade de gênero e raça no mercado de trabalho primeiramente como

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p899 906


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problema a ser discutido, posteriormente como item a ser incluído na agenda pública e nesta,
como política a ser formulada e em seguida implementada. Características que o torna um dos
programas mais importantes implementados nos últimos anos pela SPM, alinhado e
impulsionado pelas lutas de diferentes entidades e atores e essencial, segundo as palavras da
ex-ministra Eleonora Menicucci, à consolidação da “autonomia econômica das mulheres (...)
pelo reconhecimento de seu papel ativo no desenvolvimento econômico do país” (SPM, 2014,
p.12).
Sobre o processo de formulação do Programa, como citado anteriormente, além da
Secretaria, membras da OIT e da UNIFEM (United Nations Development Fund for Women,
ou Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, em português), colaboraram
para a realização daquele processo. Entretanto, é preciso compreender o papel que cada
entidade desempenhou nesta etapa, como se deu as tomadas de decisão e a perspectiva
utilizada pelos atores neste momento. Esta fase necessita de análises documentais que ainda
estão em andamento pelas pesquisadoras. Porém, a partir dos objetivos estabelecidos pelo
Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça é possível perceber que as intenções da agenda
política estabelecidas no Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres foram traduzidas e
conduziram as ações a serem implementadas pelo Programa.

3. Considerações finais.
Os resultados iniciais desta pesquisa demonstraram que a formação de redes e
articulação de mulheres nos processos iniciais de políticas públicas se deram a partir de
diferentes frentes, quando consideramos o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça como
objeto de análise. A partir da articulação central realizada especialmente pela Secretaria de
Políticas Públicas para as Mulheres (SPM), a formulação e posterior implantação do
Programa se deu através de parcerias com entidades representativas regionais, municipais,
estaduais e de atuação internacional.
A grande quantidade de atores envolvidos nas etapas de identificação de problemas, de
conformação da agenda e de formulação de política pública demonstrou a existência de uma
forte e democrática coalizão de pautas e interesses que, ainda que pudessem ter sido
conflitantes durante as etapas, convergiram em resultados positivos para o campo de políticas
públicas para as mulheres. O Programa analisado nesta pesquisa demonstrou ser resultado de
uma coalizão inicial que envolveu cerca de 120 mil mulheres que participaram de discussões
em instâncias regionais, por todo o país, de diferentes entidades e níveis de representação
política.

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Em seguida, as decisões advindas daquelas conferências foram discutidas na I


Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, a qual envolveu a participação de outras
2700 mulheres que definiram as diretrizes que, finalmente compuseram o Plano Nacional de
Políticas Para as Mulheres, no ano de 2005. E com base nestas diretrizes que foi criado o
Programa em questão.
A longa rede de articulação engloba ainda entidades de atuação internacional, como a
OIT e a ONU Mulheres, o que aponta para uma tendência do Governo Federal do período em
questão (do presidente Lula) em seguir os compromissos assinados pelo Brasil em acordos
internacionais no que diz respeito a pautas que visavam uma maior equidade de gênero e raça
nas formulações e implementações de políticas públicas.
Tendo em vista, portanto, a extensa rede de articulação de mulheres, é imprescindível
considerar aspectos históricos, culturas, econômicos e políticos no processo de
estabelecimento de políticas que atendam aos direitos das mulheres e que considerem a
questão da raça entre suas prioridades. Ainda que não tenha sido objeto desta pesquisa
discorrer sobre os aspectos históricos referentes às lutas feministas no Brasil nas décadas
anteriores a dos anos 2000, não desconsideramos o fato do poder de articulação entre as
mulheres das diversas entidades na determinação de problemas a serem discutidos e incluídos
nas pautas governamentais consiste em um ato de grande representação simbólica. E esta,
como uma base para um novo modelo de ação do Estado, o qual tem responsabilidade na
inclusão de novas práticas nas sociedades, a fim de reduzir as desigualdades de gênero e de
raça no mercado de trabalho. Ou seja, um Estado mais próximo da realidade de suas
populações, tendo em vista que no Brasil, as mulheres constituem a maioria da população
(cerca de 51,5% da população – IBGE, 2012) e que as mulheres negras são as que têm as
piores remunerações (IPEA, 2017).
E, justamente pela necessidade de se considerar as políticas de forma ampla é que o
enfrentamento das desigualdades de gênero não deve se esgotar através da formação e
implantação de políticas, mas de ser incorporada pelo Estado como um compromisso, capaz
de ir além de propostas de governo. Neste sentido o Programa Pró-Equidade de Gênero e
Raça, a própria SPM, representam um resquício de democracia ainda restante no país pós-
golpe de 2016, tendo em vista que continuam a vigorar, ainda que com mudanças. Mudanças
estas que, vale salientar, impactaram negativamente no levantamento de dados para esta
pesquisa, tendo em vista as alterações estruturais da SPM, as consequentes modificações em
sua estrutura institucional e em seu quadro de funcionárias.

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Políticas públicas, gênero e maternidade: considerações sobre avanços e desafios


Fernanda Sena Fernandes1
Janaína Xavier Nascimento2

RESUMO:
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar as políticas públicas dirigidas à
maternidade e à infância no Brasil, ao longo dos séculos XX e XXI, ressaltando avanços, recuos
e desafios. Ademais, examina-se como essas políticas oscilaram entre propósitos conservadores
e emancipatórios. Por fim, são discutidas as mudanças propostas na nova CLT concernentes
aos direitos da mulher/mãe/trabalhadora. O método adotado compreende a pesquisa
bibliográfica e documental. Por fim, considerando a reforma na CLT, discorre-se sobre recuos
– notadamente a questão do trabalho de grávidas e lactantes em situação de insalubridade –
implicando em atrasos na luta por novas e velhas demandas comprometidas com o processo de
emancipação das mulheres.

PALAVRAS-CHAVE: GÊNERO; POLÍTICAS PÚBLICAS; MATERNIDADE

Introdução
As mulheres constituem o contingente majoritário na população brasileira (51,8%,
conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2014) e embora componham cerca
de 44% da força de trabalho formal, continuam experimentando formas variadas de desrespeito,
não reconhecimento e privação de direitos no mercado de trabalho (são maioria no mercado de
trabalho informal e ocupações mais vulneráveis, como o trabalho doméstico, apresentam taxas
mais altas de desemprego, possuem remuneração média inferior a recebida pelo segmento
masculino, além de assédio e discriminação sexual) e outras dimensões da vida cotidiana. A
despeito de seu papel de agente ativo na economia do país, ainda ocupam posições de cidadãs

1
Universidade Federal de Santa Maria; Acadêmica de Licenciatura em Ciências Sociais;
nandasefernandes@gmail.com

2
Professora Adjunta no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria; Dra. em
Sociologia Política pela UFSC/Freie Universität Berlin; janainaxn@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p911 911


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de segunda classe, seja no que se refere aos direitos de igualdade (não discriminação salarial,
por exemplo), seja no que se refere aos direitos à especificidade (como aqueles relativos à
maternidade e ao cuidado). Ainda que realizem jornadas duplas, triplas e até quádruplas, tendo
de conciliar trabalho remunerado, trabalho doméstico, cuidado dos filhos e estudos,
permanecem tendo que enfrentar o não reconhecimento de seus direitos. Considere-se, por
exemplo, a discriminação no mercado de trabalho em razão de sua função reprodutiva, o que
caracteriza uma espécie de paradoxo social: se por um lado são constantemente levadas a crer
que a maternidade é seu papel natural, chegando a serem coagidas cultural e psicologicamente
a viverem de acordo com as necessidades de seus filhos, vendo-se obrigadas a abrirem mão de
outras esferas de suas vidas, como a profissional e a acadêmica; por outro são discriminadas
justamente por tê-los, o que é agravado pelos altos índices de abandono paterno, resultando em
mulheres divididas entre o sustento do lar e a criação dos filhos, o que as torna mais vulneráveis
no âmbito socioeconômico, configurando o fenômeno da feminização da pobreza.
O presente trabalho tem como principal objetivo analisar as políticas públicas dirigidas
à maternidade e à infância no Brasil, ao longo dos séculos XX e XXI, ressaltando avanços,
recuos e desafios, além de examinar como essas políticas oscilaram entre propósitos
conservadores e emancipatórios. Por último, são discutidas algumas mudanças na nova CLT
concernentes aos direitos da mulher/mãe/trabalhadora. Esta discussão se faz ainda mais
necessária em um momento em que o país sofre retrocessos em políticas públicas há muito
estabelecidas e consolidadas, pautadas por uma agenda conservadora que tem cerceado direitos
adquiridos por anos de luta dos movimentos sociais. O método adotado compreende a pesquisa
bibliográfica e documental. Para tanto, o artigo está estruturado em quatro tópicos. No primeiro,
realiza-se uma breve discussão conceitual em torno dos conceitos de políticas públicas e gênero.
No segundo, discorre-se sobre o papel desempenhado pelas Convenções da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). No terceiro, são sistematizadas e analisadas as principais
políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no Brasil ao longo dos séculos XX e XXI.
No quarto tópico, discute-se a flexibilização da CLT e as políticas para as mães trabalhadoras.
Por fim, nas considerações finais, sistematiza-se e analisa-se alguns avanços e desafios no que
concerne as políticas sociais dirigidas à maternidade e à infância.

1. Considerações conceituais sobre políticas públicas e gênero


Com o triunfo do projeto de sociedade burguesa, nasciam novas concepções do papel do Estado,
que mesmo se limitando a assegurar o direito à vida, precisava ao menos manter a mão-de-obra

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com condições mínimas de trabalho. Deste modo, em meados de 1830, iniciam os estudos sobre
a vida dos trabalhadores, de maneira mais concentrada na Inglaterra, onde se buscava entender
os efeitos de jornadas de trabalho exaustivas e baixos salários. Junte-se à isto o fato de que as
crianças adquiriam nesse período um papel diferente do que lhes havia sido atribuído até então,
passando a serem não apenas indivíduos sociais, mas também um grupo vulnerável que
necessitava de cuidados, visto que sob uma ótica nacionalista emergente, representavam o
futuro das nações.
Assim, instituições filantrópicas e Igreja passaram a cobrar do Estado medidas que
combatessem as altas taxas de mortalidade infantil e materna, admitindo que a intervenção do
Estado se fazia crucial dada a dimensão da crise que se alastrava por toda a Europa. Em resposta,
o Estado assume uma conduta assistencial com programas remediadores para tratar dos
problemas associados à pobreza. Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado passa a usar seu
aparato para planejar e implementar programas e ações visando os interesses sociais coletivos
de seus membros. Assim, nasce o estado de bem-estar que, conforme defendia Marshall,
ampliou o ideal de cidadania. Ao longo do tempo, as políticas sociais acabaram adquirindo
importante papel no funcionamento do Estado, compondo importante ferramenta de equilíbrio
social e econômico, incorporando um conjunto de ações diversas voltadas para emprego, saúde,
educação, moradia, serviços sociais, sendo considerado como mecanismo imprescindível para
um desenvolvimento pleno das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, as políticas sociais
como uma modalidade de políticas públicas compreendem políticas voltadas para o bem-estar
dos cidadãos e reconhecimento de direitos sociais. Contudo, conforme observou Walby (2004),
a noção de cidadania de Marshall sofre de uma cegueira de gênero, sendo necessário incluir aos
direitos civis, políticos e sociais, direitos específicos das mulheres como direitos reprodutivos,
direitos à contracepção e ao aborto, à preferência sexual e o direito de não sofrer violência
sexual ou física. Abordar as políticas públicas pelo viés da discussão de gênero3 é entender que,
ao priorizar os estudos sob a ótica feminista, colocando a mulher em evidência, não estamos

3
Enquanto o conceito de sexo remete às diferenças biológicas entre mulheres e homens, o conceito de gênero surge expressando
os aspectos socioculturais das diferenças entre os sentidos atribuídos ao feminino e ao masculino. Nesse sentido, estudos
pioneiros como o de Margareth Mead sobre sociedades polinésias, revelam que o que moldava as diferenças - ou semelhanças
- comportamentais entre os sexos eram os códigos comportamentais adotados por cada sociedade. Na filosofia, Simone de
Beauvoir afirma: “a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro?”
(2016, p.65). E mesmo no cuidadoso trabalho historiográfico de Thomas Laqueur sobre a história do estudo da anatomia dos
órgãos sexuais encontramos seu questionamento a respeito deste determinismo: “quanto mais examino os registros históricos,
menos clara se torna a divisão sexual; quanto mais o corpo existia como o fundamento do sexo, menos sólidas se tornavam as
fronteiras” (2001, p.8). Neste sentido, adotar outra palavra que não “sexo” tornava-se urgente; não se podia continuar a adotar
um termo que atrela diferenças construídas socialmente ao sexo biológico. Desta forma, “o gênero se torna [..]uma maneira de
indicar as ‘construções sociais’ - a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres”
(SCOTT, 2012 p. 7).

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supondo apenas uma história das mulheres, mas sim a relação entre os gêneros e de que maneira
isso se reflete nas estruturas sociais e de poder existentes, compreendendo contextos e pensando
soluções. Esta perspectiva nos permite, por exemplo, compreender que gênero tem dimensões
político-econômicas, estruturando a dimensão fundamental entre trabalho produtivo assalariado
e trabalho reprodutivo doméstico e, dentro do trabalho assalariado estruturando a divisão entre
ocupações mais prestigiadas e bem pagas, exercidas por homens, e ocupações menos
prestigiadas e mal pagas exercidas majoritariamente por mulheres (FRASER, 2001, p. 259).
E em que consistem as políticas públicas de gênero? Trata-se de políticas implementadas pelo
Estado de modo a incorporar direitos civis, políticos e sociais, em suma, os direitos humanos
das mulheres, mas também incluem políticas de inclusão e reconhecimento de direitos LGBTs.
Sua definição pode ser feita considerando três fatores, conforme destacado por Nascimento
(2016, p.319), quais sejam: foco, modelo de formulação e orientação/propósito. Podem ter um
foco exclusivo nas mulheres ou incluí-las como beneficiárias de políticas mais gerais. Podem
ser formuladas por mulheres ou apenas tê-las como beneficiárias. Por último, podem estar
orientadas pelo princípio de igualdade de gênero e propósitos emancipatórios ou apenas
reproduzir a assimetria de poder. Inicialmente, as políticas públicas dirigidas às mulheres
voltavam-se para a condição de mãe-trabalhadora. Nas últimas décadas do século XX,
observou-se uma ampliação das áreas contempladas pelas políticas de gênero, incluindo saúde,
violência, direitos reprodutivos, educação, sexualidade, emprego, entre outros. No presente
trabalho, trata-se de analisar como as políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no
Brasil têm se configurado. Neste sentido, é importante compreender o que já foi alcançado e o
que ainda precisamos atingir, mas isso não basta. É também necessário analisar se dentro das
políticas implementadas há de fato um intuito emancipatório, ou se apenas estamos sendo
submetidas a padronizações de comportamento e regulação que perpetuam a desigualdade de
gênero. Antes, porém devemos analisar o papel das convenções internacionais na formulação
dessas políticas.

2. As convenções e o primeiro passo nas políticas públicas para a maternidade


Fundada em 1919, através da assinatura do Tratado de Versalhes, logo após o fim da
Primeira Guerra, a Organização Internacional do Trabalho nasceu com o objetivo de atender
novas demandas que surgiam frente aos problemas trazidos pela crescente industrialização ao
redor do mundo, além de garantir condições melhores no que concerne aos direitos humanos

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da classe trabalhadora. A OIT tornou-se, dessa forma, importante órgão para a conquista de
direitos dos trabalhadores, aí incluídas as mães inseridas no mercado de trabalho.
No mesmo ano de sua criação o trabalho feminino nas indústrias foi pauta da Convenção
nº 3, que estabeleceu o período de seis semanas anteriores e seis posteriores ao parto, assim
como o pagamento de uma "indenização" durante o período de afastamento, a fim de garantir
o sustento das mulheres e de seus filhos, e também a proibição da demissão das mesmas em
razão do puerpério ou doença decorrente do parto, trazendo importantes avanços no que toca a
garantia de direitos das mulheres, especialmente das mães. Infelizmente as decisões tomadas
durante as convenções não são obrigatoriamente adotadas pelos países participantes, nem
mesmo pelos que assinam a favor das resoluções, caso do Brasil, que só implementou o que foi
acordado na Convenção de 1919 em 1943, com a Consolidação das Leis Trabalhistas.
Ao longo dos anos a OIT realizou novas Convenções que pautavam os direitos das mães
trabalhadoras. A própria Convenção nº 3 foi reformulada para se modernizar e acompanhar as
demandas, tendo sido ampliada para qualquer mãe trabalhadora, e não somente as empregadas
de indústrias e setores agrícolas, como constava anteriormente no texto. Também nessa revisão,
a licença de 12 semanas obrigatórias tem a possibilidade de ser estendida de acordo com a
necessidade da parturiente, e garante-se horas de intervalo que devem ser dedicadas a
amamentação (REA, 2002).
Mas há também retrocessos ao longo das Convenções da OIT. Em 1997, durante sua
183ª realização, a proibição de demissão após o parto foi flexibilizada, sendo permitida a mesma
desde que não se dê em razão da maternidade. Além disso, a responsabilidade do abono durante
o estágio final da gravidez e o puerpério foi estabelecido como sendo correspondente a ⅔ do
salário recebido anteriormente pela mãe, o que obviamente configura em um ganho
extremamente abaixo dos gastos referentes a um recém-nascido.
O Brasil se comprometeu com as resoluções encaminhadas durante as Convenções,
tendo mesmo adotado algumas das recomendações, num esforço para adaptar suas leis
trabalhistas de acordo com a necessidade dessas mulheres. Porém é importante entendermos
que este processo de garantia de direitos foi sempre resultante de lutas políticas. As políticas
públicas para as mães trabalhadoras só foram praticáveis a partir do século XX, diante de todo
um contexto político local e mundial que necessitava de novas abordagens neste campo.

3. As políticas públicas para as mães trabalhadoras no Brasil

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A questão da cidadania sempre foi assunto delicado no Brasil. Historicamente


constituído por regimes que visavam a manutenção dos privilégios da elite, o país nasceu e se
desenvolveu baseado em relações hierárquicas de poder e naturalização das desigualdades
sociais. Ainda que durante alguns períodos tenham ocorrido algumas tentativas de inserção
destes grupos, políticas de inclusão só começaram a ser implementadas após o fim da República
Velha, em 1930 (CARVALHO, 2008).
Mesmo durante estes primeiros passos, o propósito não estava voltado para a
implementação de ações de reconhecimento de direitos de cidadania, uma vez que a mesma
“implica, acima de tudo, direitos políticos, civis e sociais, o que, por sua vez, pressupõe a noção
de justiça social” (NASCIMENTO, 2016), mas sim promover o projeto higienista que previa
um contínuo “melhoramento” do povo brasileiro, através, principalmente, dos cuidados com
mães e recém nascidos perante os assustadores números de mortalidade infantil, óbito de
parturientes e o crescente índice de marginalização nas camadas mais pobres, que de acordo
com os ideais da época, se davam em razão da falta de cuidado das mães trabalhadoras. Em
1947, Eurico Carneiro, eminente médico da Legião Brasileira de Assistência, chegou a afirmar
às mães que

É necessário que também você concorra com sua parte ao entregar à


Pátria uma criança de que a Pátria se ufane, jamais um monstrozinho
raquítico, macilento ou tarado. [...] Você é responsável, mais que
ninguém, pela futura apresentação de um estudante com boas notas, e
de um soldado com alguns galões. (1947 apud MARTINS, 2010)

Mas o projeto higienista não era unanimidade entre a elite e sofria grande resistência
especialmente por parte dos liberais, que acreditavam que o Estado não deveria regulamentar
comportamentos familiares, o que feria as liberdades individuais, conceito tão caro aos mesmos.
Mas as discussões permaneceram, e embora o papel do Estado fosse meramente garantir a
soberania do país e fazer valer as leis de maneira universal, passou-se a defender – como o
médico acima mencionado - que "o homem brasileiro ainda não tinha instrução e noção de
responsabilidade que lhe permitisse andar sozinho, precisando das muletas do estado"
(MARTINS, 2010) o que justificava a implementação gradual das políticas públicas dirigidas
às mulheres no país.
Dessa forma as mulheres e crianças passaram a estar no centro das discussões
assistencialistas e higienistas. As políticas públicas instauradas principalmente a partir de 1934,

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com a promulgação da Constituição que colocava abaixo a República das Oligarquias, passam
a se construir em torno da regulamentação do trabalho feminino e da proteção dos direitos das
mães, culminando na Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943.
Com a CLT direitos importantes foram adquiridos, como as 12 semanas de afastamento
na somatória do pré e pós parto, previstas na Convenção nº 3; o abono salarial no período de
licença; o teto máximo de oito horas diárias trabalhadas, assim como a proibição da redução do
salário estipulado para as trabalhadoras. Mas também houve restrições baseadas num modelo
conservador que via a mulher como indivíduo frágil, como o veto a trabalhos femininos
noturnos e em funções braçais, como construção civil e mineração. Olhando com cuidado para
o contexto histórico e político do advento das leis trabalhistas no Brasil, é possível vislumbrar
o que de fato acontecia. Os avanços não vinham de forma emancipatória para as mulheres, antes
disso, visavam a

institucionalização de uma forma mais legítima da dominação masculina. [...]As mulheres


conquistaram todos os ‘direitos’ de cidadania plena; porém, dadas as tradições políticas
autoritárias, poucos cidadãos podiam, na prática, exercer quaisquer ‘direitos’ e as mulheres
eram exortadas a não permitir que o exercício de seus ‘direitos’ interferisse no desempenho
de seus ‘deveres’ familiares mais essenciais (BESSE, 1999, p.11).

Assim, a “concessão” dos direitos, tanto políticos quanto sociais, exigia seu preço,
mostrando um dos traços marcantes do populismo varguista que usava do paternalismo como
forma sutil de poder e controle sobre as condutas sociais. Em relação às mulheres, era
necessário que essa forma de controle se desse de forma mais maleável, já que o franco
desenvolvimento industrial do país exigia não apenas mão de obra, mas mão de obra
qualificada, o que acabou por fazer nascer uma geração de moças de classe média letradas, que
empenhavam sua força de trabalho como secretárias, professoras e enfermeiras, numa clara
transposição dos trabalhos domésticos de cuidado para o espaço público.
Durante o período posterior a implementação da CLT poucas coisas mudaram em seu
texto referente aos direitos das mulheres mães. Somente após a abertura democrática, com a
elaboração da constituição de 1988 teríamos avanços significativos novamente. Definida como
“Constituição Cidadã”, foi elaborada por uma Assembleia Constituinte que trabalhou “fazendo
amplas consultas a especialistas e setores organizados da sociedade” (CARVALHO, 2008),
num esforço inédito de compreender as demandas de grupos sociais e de forma moderada,
atendê-los através das garantias de direitos. No que toca especialmente ao movimento feminista,

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em 1985 é criado o Conselho Nacional da Condição da Mulher, que além de debater a criação
e a eficácia das políticas públicas para as mulheres, contribuiu de forma ativa na Assembleia
Constituinte (PINTO, 2001).
A partir disto, temos na Constituição de 1988 a implementação de importantes direitos
para as mulheres. Estipulando como objetivos fundamentais a erradicação das desigualdades
bem como a promoção do bem comum combatendo preconceitos diversos, inclusive o de
gênero, ela inaugura a possibilidade de pleitear novas (e antigas) demandas de maneira mais
eficiente e participativa. A partir desta garantia, novos artigos são introduzidos na CLT, assim
como alguns dos artigos existentes são modificados a fim de se remodelarem às reivindicações
postas. As políticas públicas para as mães trabalhadoras pós Constituição de 1988 trazem uma
nova gama de direitos: a licença maternidade passa a ser estabelecida em 120 dias, com
salvaguarda do vínculo empregatício desde o momento da confirmação da gravidez até
decorridos 5 meses após o parto; a licença passa a ser estendida também às mães adotantes,
bem como o direito ao abono durante o tempo de adaptação da criança; além da proibição de
práticas discriminatórias em entrevistas de emprego, como a exigência de exames de gravidez.
Além das leis trabalhistas, há avanços nas políticas públicas que contemplam as mães
também na inclusão da obrigatoriedade da oferta de vagas em creches para crianças de 0 a 6
anos, baseada no Artigo 6º da Constituição que garante a educação como direito social básico.
Ainda no que diz respeito às creches, elas passam a ter, segundo a Lei de Diretrizes e bases,
“como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.”
(MEC, 2017), o que, além de oferecer estrutura para as mães trabalhadoras que não contam
com uma rede de apoio, também contempla o comprometimento com a garantia do
desenvolvimento pleno das crianças, atendendo tanto às necessidades sociais de um grupo
quanto de outro. No entanto, embora contemplado em nosso ordenamento jurídico, a oferta de
vagas em creches segue sendo um desafio sem possibilidade de estimativa futura de
atendimento pleno ou mesmo majoritário. Segundo dados recentes do IBGE, na faixa etária de
0 a 4 anos, apenas 25% das crianças em todo o país estão matriculadas na pré-escola, cerca de
oito milhões de crianças estão privadas desse direito.
Embora a Constituição de 1988 tenha trazido muitos avanços em relação a garantia de
direitos de minorias sociais, é importante lembrar que a divisão social do trabalho permanece
atrelada a uma estrutura patriarcal que coloca as mulheres mesmo no mercado de trabalho como
peças fundamentais para a criação dos filhos e manutenção do lar. Ainda que existam avanços

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e que estatisticamente se comprove uma melhora na situação da mulher trabalhadora, ainda


temos de lutar pela manutenção destes direitos adquiridos, especialmente no contexto atual
onde pautas conservadoras encontram caminho para instituírem recuos em direitos já
estabelecidos pela classe trabalhadora.

4. A Flexibilização da CLT e as políticas para as mães trabalhadoras


As políticas públicas para as mães trabalhadoras trouxeram importantes avanços na
garantia de direitos e na regulamentação do trabalho feminino, respeitando as particularidades
da maternidade e assegurando a proteção à integridade de mães e crianças. Porém, essa e tantas
outras conquistas de grupos sociais minoritários, adquiridas com a Constituição de 1988, tem
sofrido intensas tentativas de desmantelamento. Enfrenta-se, atualmente, uma acentuada onda
conservadora, que alia pensamentos regidos por uma moral religiosa a ideários neoliberais, o
que resulta em constantes ataques não apenas aos grupos minoritários mas aos direitos já
adquiridos pelos mesmos. Com o congresso mais conservador dos últimos anos, as pautas
políticas têm se direcionado para imposições morais e econômicas que têm tentado cercear
direitos adquiridos de grupos minoritários. Desde a criminalização do uso da pílula do dia
seguinte até a chamada “flexibilização” das leis trabalhistas, estas ações buscam proteger os
interesses de grupos da elite brasileira, bem como regulamentar os comportamentos de
indivíduos considerados desviantes por uma moral cristã conservadora. Neste cenário realizar
um levantamento de avanços e recuos das políticas sociais voltadas para as mães trabalhadoras
não se mostra tarefa fácil, uma vez que há em torno dos textos jurídicos uma série de
complexidades e subjetividades que podem tanto servir para amparar a luta pela manutenção
de direitos e para a conquista de novas demandas, como para restringir e suprimir os mesmos
direitos.
A partir da Constituição de 1988, com o artigo 7º e as normas atribuídas, a proteção aos
direitos do trabalhador passou a ser norma constitucional, não podendo, desta maneira, serem
desrespeitadas sob pena de sanções jurídicas. Esta garantia foi importante passo para os
trabalhadores, que tendo o respaldo da constituição, puderam fortalecer a luta por direitos ainda
não alcançadas. Nesse sentido a recente proposta de flexibilização da CLT acarreta a abertura
de brechas que podem se tornar perigosas para a manutenção destes direitos, mas há também,
de outro lado, possibilidade para interpretações que auxiliam na luta por demandas ainda não
conquistadas.

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A nova CLT aponta, no que tange ao direito das mães, para o grande retrocesso causado
pela retirada do artigo 394-A, que previa o afastamento de gestantes e lactantes de serviços
insalubres, tendo como objetivo preservá-las de possíveis doenças causadas por tal trabalho.
Esta retirada surge de maneira contraditória no momento onde campanhas da OMS juntamente
com órgãos de saúde pública conseguiram alavancar o número de crianças amamentadas
exclusivamente com leite materno até os 6 meses de vida, melhorando índices de mortalidade
infantil e doenças na primeira infância. Além disso, políticas que visem o incentivo da
amamentação por mães trabalhadoras faz-se imprescindível, já que “o trabalho das mulheres
fora de casa tem sido apontado como uma das razões para a não amamentação e o desmame
precoce” (OSIS, DUARTE, et. al. 2004). Nesta mesma pesquisa, em entrevistas com diversas
trabalhadoras, as mulheres apontaram que as informações massivas sobre a importância do
aleitamento materno foram determinantes para a decisão de fazê-lo. Portanto, expor lactantes a
ambientes insalubres configura não apenas riscos para a saúde das mesmas e dos bebês, mas
também desencorajamento do próprio ato de amamentar.
Não obstante, o formato que incentiva o trabalho autônomo, se reflete de maneira
negativa especialmente nas mães trabalhadoras. Segundo pesquisa do PNAD, “31,3% das
mulheres negras ocupadas com 16 anos ou mais de idade em 2014 estão inseridas no mundo do
trabalho através do emprego com carteira assinada” (2014, p. 32), o que torna este um grupo
vulnerável, já que dificulta a regulamentação das condições de trabalho. Desta forma, incentivar
o mercado informal é segregar ainda mais as mães, que por não possuírem uma rede de apoio
familiar e/ou não serem beneficiadas com ofertas de vagas em creches, especialmente em
berçários, acabam por optando por esta modalidade de trabalho por conta de horários flexíveis
que permitam a conciliação com os cuidados dos filhos. Ademais, nessa condição estão
privadas de um importante direito, a licença maternidade.
Ainda que os retrocessos causados pela “flexibilização” tenham impactos preocupantes,
há também inclusões feitas na nova CLT que podem beneficiar as mães trabalhadoras. O artigo
392-A declara que “À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de
criança ou adolescente será concedida licença-maternidade nos termos do art.392 desta Lei.”.
É importante repararmos que somente após a reforma o termo “adolescente” foi incluído, o que
categoriza importante avanço, levando em consideração que de acordo com dados fornecidos
pelo site do cadastro nacional de adoção, das 8729 crianças e adolescentes à espera de um lar,
3874 estão na faixa etária de 12 a 17 anos, sendo que dos 43.550 pretendentes a adotantes,
somente 708, no somatório, aceitam adolescentes acima de 12 anos. O período de licença,

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portanto, é imprescindível para a construção de laços afetivos que facilitem e auxiliem na fase
de adaptação, especialmente de um grupo que notoriamente é rejeitado.
Importante notar que a licença paternidade também é dada para pais adotantes, e em
alguns casos pode mesmo ter período igual de 120 dias. Além disso, apesar de constar no texto
da CLT o direito a somente um dia de folga em decorrência de nascimento do filho, em uma
decisão histórica do Supremo Tribunal Federal de 2016, foram concedidos cinco dias de licença
paternidade para o empregado, o que acaba por abrir precedentes que favorecem tanto homens
quanto mulheres. A importância de tal medida se dá pelo incentivo a paternidade responsável e
participativa, que atinge diretamente as mães, indo de encontro à ideia do pai provedor e
detentor máximo da autoridade da casa (BADINTER, 1985). Dessa forma, a licença
paternidade de cinco dias, ainda que se configure curto período de tempo, considerando-se as
várias questões a respeito da divisão de tarefas bem como a própria criação de laços do pai com
o bebê, pode ser considerada um pequeno avanço na empreitada de igualizar as
responsabilidades concernentes à criação e cuidado dos filhos.
Ainda que apresente recuos em relação aos direitos adquiridos dos trabalhadores, a
reforma da CLT não o faz de maneira direta, deixando margem para interpretações múltiplas,
que no caso dos direitos das mães trabalhadoras, pode significar um retrocesso grave, já que
envolve questões complexas que vão além da simples problemática da relação de trabalho em
si, perpassando o reforço de estruturas patriarcais que impõe às mulheres jornadas de trabalho
intensas, violências psicológicas e coloca até mesmo seus filhos em risco. Mas há também
pequenas vitórias que podem abrir importantes precedentes para novas conquistas.

5. Conclusão
Ao atentarmos para a História, é fácil encontrar registros que apontam que a maternidade
tal qual conhecemos é resultado de processos históricos complexos, que foram modificando as
mentalidades, os costumes e a moral. Mais ainda, percebe-se que mesmo modificando seu
padrão comportamental, ou mesmo o papel da mãe na vida da sociedade, em um aspecto não
há qualquer transformação: somos constantemente associadas e impelidas à maternidade, como
se nossa função, de um modo ou outro, sempre culminasse nisso. Na sociedade capitalista, a
maternidade adquire outras nuances. Juntamente com a conquista de maior participação política
bem como de um certo grau de emancipação, as mulheres também adquiriram uma posição
ambígua: com a possibilidade de trabalhar fora, bem como a garantia do direito ao divórcio,
passaram a ser provedoras do lar, muitas vezes arcando com o sustento do mesmo e a criação

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dos filhos. Nesse cenário, especialmente as mulheres de classes mais baixas, acabaram por
tornar-se vulneráveis, tendo de escolher entre criar os filhos, ou terceirizar este cuidado em prol
de seu sustento e do sustento de sua criança, entrando em novas categorias de julgamento moral:
a mãe “ruim’ que não assegura o sustento do filho, ou a mãe “ruim” que não o cria.
Dessa forma, a garantia de direitos trabalhistas, inicialmente, se instaurou como solução
não para assegurar a emancipação financeira das mulheres de forma que pudessem conciliar
sua maternidade, mas unicamente visando o bem-estar das crianças, “futuro” da nação e do
desenvolvimento moral do país. A CLT acabou por tornar-se mais um mecanismo de
padronização do comportamento feminino, instituindo trabalhos adequados ou não para as
mulheres, bem como abrindo prerrogativas para que as mesmas terminassem por serem
discriminadas no mercado de trabalho. Somente com a Constituição cidadã de 1988 demos um
passo de fato emancipador, instituindo licença maternidade mais ampla em nome da saúde da
mãe e do bebê, bem como a proteção ao vínculo empregatício durante o período de gestação e
lactação. Importantes avanços que finalmente tinham características emancipatórias, não
apenas na lei em si, mas também na sua redação, que contou com a participação ativa do
movimento feminista na Assembleia Constituinte, mostrando que para tornarmos as mulheres
agentes ativos na sociedade não precisamos somente assegurar seus direitos, mas também abrir
caminho para que as mesmas debatam e construam políticas voltadas para suas demandas.
Com a reforma da CLT apresentada pelo governo Temer devemos então nos perguntar:
qual seu impacto para as mães trabalhadoras? Ela configura retrocessos que tratam as mães
novamente de maneira instrumentalista? Ou traz avanços que garantem maior autonomia para
as mulheres?
Analisando as modificações feitas, bem como decisões em outras esferas que atingem
direta ou indiretamente as políticas públicas para a maternidade, podemos concluir que os
pontos principais que fizeram a Constituição de 1988 tão progressista, bem como a adaptação
que esta impôs à CLT, permanecem na nova CLT. Os pontos cruciais conquistados não nos
foram retirados, não configurando, portanto, num retrocesso a ponto de voltarmos às políticas
instrumentalistas. Mas também não há, de fato, avanços que contribuam para a emancipação
feminina no que toca não somente ao quesito econômico, mas também político e social.
Podemos dizer, na verdade, que o recuo se mostra mais sutil. Mesmo não voltando a
uma natureza instrumentalista, retrocedemos no que tange a luta por novas demandas. Ao
validar o trabalho em locais insalubres por gestantes e lactantes, retornamos a uma discussão
que já havia sido superada, tendo novamente que lutar pelo restabelecimento de uma política

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que vise o bem estar das mães lactantes, bem como a própria saúde do bebê. Isto estabelece
obstáculos que acabam por obstruir novos debates e consequentemente a luta por direitos
derivados desta conquista retirada, dificultando, desta forma, o avanço nas pautas maternas.
Neste sentido discutir as políticas públicas para mães trabalhadoras faz-se necessário
em um contexto em que pautas conservadoras avançam de maneira preocupante. Alimentar os
debates acerca de perdas e conquistas de um grupo tão vulnerável configura símbolo de luta e
resistência em meio ao aumento da força política de grupos que visam, justamente, recolocar a
mulher ao espaço que lhe era destinado no início do século, um espaço de subserviência,
instrumentalização, e por que não, objetificação.
Em suma, ao analisarmos as políticas públicas dirigidas à maternidade e à infância no
Brasil, constatamos conquistas importantes (direitos de proteção à mãe trabalhadora, licença
maternidade e licença paternidade, intervalo para amamentação, direitos para a mãe adotante),
entretanto, grandes desafios permanecem, entre os quais: licença parental em lugar de licença
maternidade, efetivação do direito à creche, retorno do direito de grávidas e lactantes não
trabalharem em lugares insalubres, direitos reprodutivos. Para tanto, é essencial que políticas
públicas de gênero sejam formuladas, implementadas e avaliadas fundamentadas no princípio
de igualdade de gênero, evidenciando políticas supostamente defensoras dos direitos das
mulheres, mas de fato, reprodutoras de desigualdades que perpetuam o encarceramento das
mulheres no âmbito do trabalho reprodutivo ou a ele relacionado (ocupações pink collar). Nesse
sentido, o movimento feminista continua sendo crucial para o reconhecimento dos direitos das
mulheres e para sua efetivação por meio de políticas públicas comprometidas com um projeto
emancipatório e democrático, que possibilite a auto-realização em suas várias dimensões
(maternidade/paternidade, trabalho, lazer, participação política, entre outros). Assim, marcado
por recuos e grandes desafios, o caminho ainda é muito longo. Sigamos nele.

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Desafios para a implementação da política de creche assegurando a perspectiva


de gênero

Ana Carla Harmatiuk Matos1


Camille Vieira da Costa2

Resumo: O presente artigo tem como objetivo refletir sobre os desafios para a implementação
da política de creche assegurando a perspectiva de gênero por meio de uma digressão sobre
como ela foi construída ao longo do tempo, especialmente como se deu a sua transição da
assistência social para a educação infantil. Ainda visa refletir sobre o engradamento da creche
como política restrita à educação infantil, sem que seja considerada a transversalidade de
gênero, eis que desta forma pode haver impacto negativo na vida das mulheres, as quais
também são destinatárias deste serviço, ainda que indiretamente. Utilizou-se o método
dedutivo, a partir de fontes documentais e bibliográficas de conteúdo sociológico, histórico e
legislativo sobre gênero, feminismo e cuidado, analisando-se aspectos da sua construção
histórica e a interdependência entre o educar e o cuidar, bem como os desafios para a
implementação efetiva desta política na perspectiva do direito das mulheres. Conclui-se que,
apesar da grande contribuição do movimento feminista e de mulheres para a consolidação da
política de creche, há grande dificuldade em implementá-la, numa perspectiva que considere a
sua importância para a concretização da igualdade de gênero, uma vez que tanto seu déficit
quanto a implementação desarticulada deste viés têm impactos nas experiências das mulheres
no ambiente do trabalho.
Palavras-chaves: gênero; política de creche; educação, cuidado.

1
Mestre e Doutora em Direito pela UFPR e mestre em Derecho Humano pela Universidad Internacional
de Andalucía. Tutora Diritto na Universidade di Pisa - Italia. Professora na graduação, mestrado e doutorado em
Direito da UFPR. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. Professora de Direito
Civil e de Direitos Humanos. Advogada. Diretora da Região Sul do IBDFAM. Vice-Presidente do IBDCivil;
a.c.matos@uol.com.br.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR; camillevc@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p925 925


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Introdução.
A política de creche constitui uma política pública que se revela como uma forma de
corresponsabilizar o Estado pela provisão social do cuidado com crianças pequenas de 0 a 3
anos de idade e como meio de transformação das práticas sociais do cuidado que giram em
torno das construções dos papéis sociais das mulheres. Isto porque historicamente o cuidado
vem sendo atribuído às mulheres, sejam elas mães, ou aquelas que formam uma rede de apoio
ou solidariedade para este fim, podendo ser outras mulheres da família nuclear ou da família
extensa, como irmãs e avós.
A oferta de creches pelo poder público é um serviço de apoio sobretudo para mulheres
pobres que precisam trabalhar e não podem contar com apoio mercantilizado para o cuidado
de seus filhos. Assim, esta política pode servir de instrumento capaz de abalar as raízes nas
quais se fixaram as concepções que sustentam até os dias de hoje a divisão sexual do trabalho,
uma das bases estruturantes das desigualdades de gênero na sociedade.
Se analisado um perfil histórico no debate sobre as creches, política ainda deficitária
no Brasil, notam-se os diferentes fundamentos que justificaram a sua implementação, ao
longo do tempo, tendo maior destaque a dicotomia entre a perspectiva da assistência social e
da educação infantil, ou na necessidade de cuidar e educar as crianças. Atualmente, isto se
mostra ainda mais presente considerando o deslocamento desta política da assistência social
para a educação infantil.
O déficit de vaga em creche é um problema que atinge grande número de mulheres
Brasil. Uma pesquisa realizada no ano de 2012, nas regiões metropolitanas de Pernambuco,
Pará, Ceará, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e no
Distrito Federal, com apoio da Secretaria de Políticas para Mulher e da ONU Mulheres,
apontou que a falta de vagas em creches é um grave problema vivido em todas as 9 regiões
metropolitanas pesquisadas, mais o Distrito Federal, sendo que 88% das mulheres
entrevistadas apontam a creche como uma das principais demandas ao poder público, 45%
das mulheres que trabalham não têm ajuda para cuidar dos filhos e 34% das entrevistadas
apontam que encontrar vaga em creche é a principal dificuldade para as mulheres que
trabalham (Data Popular; SOS Corpo, 2012).
Dessa forma, é importante pensar tal temática como instrumento para a concretização
da igualdade de gênero. Do mesmo modo, pode igualmente ser considerada como política
para mulheres, uma vez que viabiliza sua autonomia e maior participação na esfera pública.

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A construção da política de creche

No início do século XX, antes da instituição formal das creches, havia preocupação
com crianças órfãs ou abandonadas e filhos concebidos fora do casamento, os quais eram
considerados ilegítimos, assim como os filhos decorrentes da exploração sexual da mulher
negra e índia pelo senhor branco. Essas crianças eram adotadas por famílias de fazendeiros ou
recolhidas nas “rodas de expostos” por entidades religiosas as quais tentavam lhes ensinar um
ofício para que quando adultas, essas crianças servissem de mão de obra barata na sociedade.
Naquela época creches, asilos e internatos eram considerados lugares para tratar dos
problemas dos pobres (OLIVEIRA, 1998, 44/45).
A sua associação à pobreza legitimou a atuação desses espaços como moralizadores
das vidas das famílias atendidas, por meio do estabelecimento de uma relação de favor em
que era salientada a incompetência destas famílias cuidarem de seus próprios filhos. Assim, a
existência de creches se justificava não no fato de a mãe precisar ingressar no mercado de
trabalho, devendo evitar e prevenir a desorganização familiar (HADDAD, 1993, p.25).
Posteriormente, a creche pode ser identificada como uma instituição criada para
responder às novas necessidades decorrentes da intensificação da atividade industrial, que
separou o local do trabalho do local da moradia, transformando cada indivíduo da família em
um assalariado independente. Também decorreu do aumento da migração do campo para a
cidade; do processo de urbanização; e da entrada da mulher no mercado de trabalho e a sua
maior participação na comunidade.
As discussões acerca das creches passam a girar em torno das reflexões sobre
maternidade, cuidado, família, educação infantil, o trabalho feminino, obrigações do Estado e
sobretudo a transformação do papel social da mulher.
Com efeito, a necessidade de auxílio para a promoção do cuidado com os filhos foi
criada em razão de mudanças promovidas pelo sistema econômico, pela urbanização e a pela
industrialização, sentida principalmente por mulheres mais pobres que tiveram de acumular o
trabalho doméstico com o trabalho na indústria para garantir a subsistência da família. No
entanto, este auxílio não era visto como um dever social capaz de impulsionar a criação de
uma política pública que não tivesse viés assistencialista.
Inicialmente, a creche é vista como uma instituição provisória, de emergência e de
substituição de certas mães, aquelas que trabalhavam fora dos limites domésticos. Não por
outra razão muitos setores da sociedade não apoiavam o fortalecimento e expansão desta
política, reconhecida inclusive como ilegítima, eis que tida como usurpadora ou como

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adversária da figura materna, a mãe provedora dos cuidados das crianças (ROSEMBERG,
1984, 74).
A política de creche em alguns lugares do mundo chegou a servir de objeto para fins
diversos daqueles associados à proteção da criança ou à efetivação dos direitos das mulheres.
Nos Estados Unidos da América houve grande expansão do número de creches durante a II
Guerra Mundial. No ano de 1940, por meio do LANHAM ACT, autorizou-se a destinação de
verba do governo federal para o funcionamento de creches de mães trabalhadoras nas
indústrias da guerra, momento em que havia cerca de 1,6 milhões de vagas disponíveis em
creches e pré-escolas, sendo que finda a guerra, este número foi reduzido, em 1965, para
300.000 vagas apenas (ROSEMBERG, 1984, 74).
No mundo a nova expansão desta política e sua ressignificação ocorreram, no final da
década de 1960 e no início da década de 1970, por pressão de movimentos urbanos, dentre
eles, o feminista. Na França, após o movimento de 1968, as creches deixaram de ser
orientadas por uma perspectiva higienista e medicalizada e passou-se a buscar uma interação
desta com a família. Na Itália, a política de creches passa a ser reivindicada como local
alternativo para a socialização de crianças pequenas (ROSEMBERG, 1984, 75).
As creches no Brasil, em especial na cidade de São Paulo, desenvolveram-se com
associação a uma corrente assistencialista, cujo intuito era proteger os filhos de mulheres da
classe trabalhadora. Na década de 20, setores industriais criaram as primeiras creches, o que
significou o ponto de partida para a sua regulamentação na legislação trabalhista de 1943
(ROSEMBERG, 1984, 75).
Na década de 1930, em virtude do processo desordenado de urbanização e a ausência
de infraestrutura urbana quanto ao saneamento básico e moradia, as creches sofriam com
epidemias, motivo pelo qual sanitaristas se mostram preocupados com as condições insalubres
da vida da população operária da época. Posteriormente, no período compreendido entre as
décadas de 1940 e 1960, ao discurso médico soma-se o discurso da segurança pública. A
preocupação também passa a ser com formas de evitar a marginalidade e a criminalidade de
crianças oriundas de famílias pobres.
A partir da década de 1960 outras questões surgem para reforçar a necessidade da
implementação de creches, entre elas: o crescimento de mulheres de classe média no mercado
de trabalho; a redução dos espaços urbanos dedicados às crianças, como quintais, ruas e
praças por conta da especulação imobiliária; e o agravamento do trânsito e de problemas de
segurança (OLIVEIRA, 1998, 47/48).

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A Consolidação das Leis do Trabalho foi a primeira legislação no Brasil que previu a
obrigatoriedade das creches imposta às empresas privadas no antigo parágrafo único do artigo
389, o qual tinha como objetivo garantir a amamentação dos bebês. Não havia, contudo,
fiscalização e a punição ao seu descumprimento era muito branda. Além disso, poucas
trabalhadoras conheciam esta previsão legal que sequer fazia parte de reivindicações
sindicais, o que tornou a obrigatoriedade sem efetividade.
Apesar de o golpe militar implantado no Brasil em 1964, o qual desmobilizou partidos
políticos, sindicatos e associações de classe, a expansão da política de creches se deu na
segunda metade da década de 1970. E ocorreu principalmente em São Paulo, pela organização
de movimentos de base criados em torno de relações de vizinhança, parentesco, compadrio ou
amizade, nos quais muitas mulheres participaram intensamente por clubes de mães com
vinculação ou não à Igreja Católica e associações de bairros. É a partir da declaração do dia
internacional da mulher pela ONU, em 1975, que surgem núcleos de organizações feministas
que também reivindicam creches (ROSEMBERG, 1984, 76).
Surge posteriormente, em 1979, como consenso do Primeiro Congresso da Mulher
Paulista, a criação do Movimento de Luta por Creche, o qual teve êxito em integrar feministas
de diversas tendências, grupos associados ou não à Igreja Católica, diversos partidos políticos
legais e clandestinos, grupos independentes e grupos dispersos de moradores que
reivindicavam por creches isoladamente em seus bairros.
Em que pese a congregação de tantos grupos diferentes em torno da luta pela
implementação da política de creches, havia dissidências e divergência políticas, sobretudo
dentre as feministas, as quais eram encobertas em nome de uma estratégia comum, qual seja,
a mobilização das mulheres.
Posicionavam-se de um lado as feministas consideradas como radicais que lutavam
contra a discriminação de gênero, e que viam na luta por creche uma reivindicação popular
vinculada às necessidades das mulheres de baixa renda e que autorizava a crítica ao papel
tradicional materno. Do outro lado estavam grupos recém-convertidos ao feminismo, ligados
a movimentos políticos que priorizavam a luta de classes, que enxergavam nesta pauta uma
forma de se aliar ao grupo de feministas radicais, mobilizando mulheres sem, contudo,
enfrentar questões como a sexualidade, o planejamento familiar, a descriminalização do
aborto, e o controle da mulher sobre o próprio corpo (ROSEMBERG, 1984, 77).
A participação de grupos feministas no Movimento de Luta por Creches foi breve,
embora a discussão acerca deste tema tenha se mantido presente em vários de seus encontros
como no Tribunal Bertha Lutz, realizado em 1982. O distanciamento dos grupos feministas

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do Movimento de Luta por Creche pode ter se dado também em razão do desdobramento das
reivindicações em torno disso que além de pleitearem a sua criação, sustentavam a
necessidade do acompanhamento da implantação das novas creches, por meio da avaliação de
sua construção, equipamento, alimentação, seleção e acompanhamento do pessoal, o que para
muitas feministas eram atividades similares às desenvolvidas pela figura da mulher
tradicional, cujo estereótipo parte do movimento feminista tinha a intenção de romper. Sendo
assim, os grupos feministas da época vão se organizar em torno de outras questões como
violência, saúde, aborto e planejamento familiar (ROSEMBERG, 1984, 77/78).
A discussão teve lugar também durante o debate da constituinte por meio de grande
mobilização dos movimentos sociais, destacando-se a campanha do Conselho Nacional de
Direitos da Mulher – CNDM: “Filho não é só da mãe” (MARCONDES, 2013, 61). Este
conselho foi o resultado do reconhecimento da importância política da luta feminista e sua
criação em 1985 tinha importante papel junto ao movimento de mulheres, Poder Legislativo,
Poder Judiciário, governos estaduais e mídia (BASTERD, 1994, p.43/44).

A transição da política de creche da assistência social para a política de educação


infantil
A política de creche foi inicialmente implementada com enfoque na área da assistência
social, visto que era direcionada a famílias empobrecidas, e com alguns reflexos na seara
trabalhista, sem que houvesse algum tipo de preocupação pedagógica ou educacional com as
crianças de 0 a 3 anos de idade.
Daí se dizer que esses espaços constituíam uma rede educacional paralela e segregada
para atender crianças pobres. Os lugares destinados às creches e suas práticas foram
submetidos a avaliações que demonstraram que eles estavam se revelando como uma ameaça
ao desenvolvimento integral das crianças atendidas, em razão da deficiência da prestação do
serviço público e da ausência de métodos que levassem em conta as peculiaridades e
necessidades dessas crianças (CAMPOS, 1999, p.122/123).
A criança como sujeito de direitos passa, então, a ganhar centralidade nas discussões
tanto daqueles que faziam o debate sobre os espaços de creche na perspectiva educacional,
quanto das discussões do movimento feminista quando se discutia esta temática, a fim de que
lhe fosse assegurado o direito à educação.
Em 1986 o CNDM produziu o documento intitulado “Carta de Princípios Criança:
Compromisso Social” em que foi defendido que a creche era um direito da criança e não
apenas da mãe trabalhadora, de modo a apontar que a socialização das crianças deveria ser

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assumida pela sociedade e não apenas pela mulher-mãe. Enfatizou-se também que as creches
deveriam ser consideradas espaços educativos e não apenas de natureza custodial, em
benefício de todas as crianças e não somente daquelas de mães trabalhadoras (CNDM apud
CAMPOS, 1999, p.123).
Instaura-se uma disputa pela identidade da creche, acirrada pelos profissionais da
educação e da assistência social. Contudo, havia resistência na área educacional de
compreender a creche como educação pré-escolar que incorpora necessariamente atividades
de cuidado, por considerarem tais práticas de caráter assistencialista; ao passo que na área de
serviço social sustentava-se a atribuição para a realização da gestão de equipamentos
comunitários e atendimento de populações marginalizadas (CAMPOS, 1999, p.124).
O cenário nacional era influenciado também pelo movimento internacional de defesa
dos direitos da criança e do adolescente que resultou na aprovação da Convenção
Internacional sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1989.
No Brasil, em momento próximo à aprovação da Constituição Federa, grupos de defesa de
direitos humanos integrados por profissionais e militantes que trabalhavam com crianças e
jovens passaram a denunciar as violações de direitos praticadas contra esse grupo vulnerável.
À época a creche era comparada aos espaços institucionais dedicados a programas de
atendimento a crianças e adolescentes que trabalhavam e mendigavam nas ruas das grandes
cidades, embora a grande preocupação deste grupo de defesa de direitos humanos centrava a
sua discussão sobre crianças maiores de sete anos de idade (CAMPOS, 1999, p.124).
Assim, o tensionamento produzido pelo movimento feminista e de mulheres, somado à
pressão de profissionais da área da educação e do grupo de defesa dos direitos humanos de
crianças e adolescente, desempenhou papel importante para a aprovação da Constituição
Federal que enquadra a creche e a pré-escola na política de educação; prevê esta mesma
política como direito da mãe-trabalhadora a ser garantido pelo empregador.
Embora desde 1988 a creche esteja vinculada formalmente à política de educação,
deve-se observar que ela esteve relacionada à assistência social por muito tempo, ainda que
fosse estimulada a sua inscrição no sistema educacional. O seu financiamento era feito pelo
Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, ao passo que a sua caracterização como
política educacional teve início somente em 2004 por meio da reorganização da assistência
social em razão da instituição da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, que
instituiu o Sistema Único de Assistência Social – SUAS.
A Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS (Resolução nº
130/2005/CNAS), responsável por estabelecer as bases do SUAS, fixou o piso básico de

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transição que incorporou alguns serviços classificados como proteção básica no âmbito do
SUAS e autorizou a continuidade do cofinanciamento provisório nos casos das creches e pré-
escolas até que o sistema educacional as incorporasse definitivamente no ano de 2008, a partir
de quando passou a ser financiado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica – FUNDEB, criado pela Emenda Constitucional nº 53/2006 e
regulamentado pela Lei nº 11.494/2007 e pelo Decreto nº 6.253/2007 (MARCONDES, 2013,
p.71).
Assim, embora a política de creche não seja e tampouco tenha sido um tema central do
movimento feminista e dos debates acerca da igualdade de gênero, sua importância revela-se
como um dos instrumentos disponíveis para a redução das desigualdades entre homens e
mulheres. Especialmente porque a garantia deste direito viabiliza que mulheres, mesmo com
filhos, possam ingressar e se manter no mercado de trabalho bem como igualmente contar
com tempo disponível para si e para participar da vida em sociedade.

A política de creche na perspectiva de gênero


O enquadramento da política de creche como política de educação representa o
reconhecimento das peculiaridades das condições de crianças de 0 a 3 anos de idade. Além
disso, significa um importante avanço para a superação do caráter assistencialista dos
programas destinados a filhos das mães trabalhadoras de baixa renda, fator que reforçava a
negligência dispensada a estes programas.
O grande desafio que se apresenta após o reconhecimento da criança como sujeito de
direito, merecedor da garantia do acesso à educação infantil, é o atendimento de demandas
específicas das mulheres para a garantia da sua autonomia a fim de que possa obter condições
para qualificar-se, ingressar ou se manter no mercado de trabalho após o nascimento de um
filho. Isto porque, como já colocado, é recorrente a resistência da área da educação assumir
algumas práticas de cuidado em relação a crianças pequenas, por entenderem que estas teriam
caráter assistencialista.
A presença da mulher no mercado de trabalho hoje não está relacionada
exclusivamente à necessidade econômica da família que demandava o auxílio dela para a sua
subsistência. Há outros fatores que levam a mulher ao mercado de trabalho, como o aumento
da escolaridade, muitas vezes superior ao dos homens, e a mudança de padrões culturais que
alteraram o papel de gênero atribuído a elas (SORJ, 2013, p.480).

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O ingresso das mulheres no mercado de trabalho se dá em condições de desvantagem


em relação aos homens. Embora tenham ocorrido avanços no que diz respeito à diferença
salarial entre homens e mulheres, elas continuam ocupando posições mais precárias.
A condição da mulher no mercado é ainda mais precarizada se esta ostentar a condição
de mãe seja ela cônjuge ou chefe da família monoparental (SORJ; FONTES; MACHADO,
2007, p.581), uma vez que indicadores apontam que estas ocupam cargos de menor prestígio
quando comparados àqueles ocupados por homens e ainda por mulheres sem filhos. Muitas
dessas mulheres trabalham informalmente e com jornadas mais curtas como forma de
conjugar o trabalho doméstico e de cuidado com o trabalho remunerado, o que torna a sua
condição mais vulnerável.
A disponibilização de creches pelo Estado é um importante indicador da autonomia
econômica das mulheres e a ausência deste serviço é um dos principais problemas a serem
enfrentados para o alcance de melhores índices de igualdade de gênero no mercado de
trabalho, uma vez que o cuidado com os filhos pode ser um obstáculo concreto à participação
feminina no mundo do trabalho por meio do exercício de atividades remuneradas
(ANDRADE, 2016, p.29).
A taxa de ocupação de mulheres no mercado de trabalho aumenta à medida em que
elas têm acesso à creche para seus filhos. Conforme os dados do PNAD - Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios, coletados em 2012, verificou-se o aumento da taxa de ocupação
das mulheres, próxima a 73%, índice similar às taxas gerais de ocupação masculina, nas cerca
de 20% das mulheres com filhos de 0 a 3 anos que tinham acesso à creche. Contudo, mais de
57% das mulheres dentre as quase 78% que não tinham acesso à creche para os seus filhos
permaneciam sem ocupação (ANDRADE, 2016, p.29).
Ainda com base neste estudo, verifica-se que o perfil de homens e mulheres não
economicamente ativos guarda estreita relação com o fato de terem ou não terem filhos e a
idade destes. Consoante a pesquisa feita pelo IPEA, em 2016, utilizando os dados do PNAD
(ANDRADE, 2016, p.30).
Vê-se, desta forma, que o Estado, fundamentado na Constituição Federal e demais
legislações, deve se responsabilizar também pelo cuidado, haja vista que a deficiência da rede
de apoio pública implica a responsabilização da mulher pela realização dos cuidados,
comprometendo sua inserção adequada ao mercado de trabalho e o tempo que elas poderão
dispor para a realização de outras atividades, especialmente quando essas mulheres não
tiverem recursos para acessar arranjos mercantilizados, como creches particulares ou babás.

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Marcondes (2013, p. 118) chama a atenção para o que se denominou a “criminalização


do cuidado”, quando pais, mães e responsáveis são processados criminalmente por abandono
e maus tratos ao deixarem crianças pequenas em casa sozinhas ou sob os cuidados de outras
crianças. Principalmente as mães assumem tais práticas e muitas vezes para poderem trabalhar
e sustentar as famílias. Criam-se riscos para a vida de crianças, os quais, geralmente,
decorrem da situação socioeconômica e da provisão insuficiente de serviços de cuidado, que
deveriam ser combatidos por políticas públicas do Estado.
Tanto o percurso histórico quanto os indicativos que devem nortear a implementação
de políticas públicas apontam para a necessidade de que, ao se planejar e implementar a
política pública de creche, deve-se focalizar também os impactos que esta tem para a vida das
mulheres e para a superação da desigualdade de gênero, um dos principais problemas
estruturais brasileiros ao lado de dois grandes desafios: a superação do racismo e da má
distribuição de renda. Por isso pugna-se que as políticas públicas sejam pautadas na
interseccionalidade gênero, raça e classe.
A política de creche em especial deve se ater à perspectiva de gênero, não só em razão
de seu percurso histórico, mas igualmente em razão dos dados acima apontados. Os estudos
sobre gênero consolidaram-se no Brasil na década de 1970, mas a incorporação desta
perspectiva em políticas públicas ainda é pouco explorada (FARAH, 2004, 47).
A transversalidade de gênero, estratégia para a melhoria da condição das mulheres em
todas as dimensões da sociedade, definida durante a IV Conferência Mundial das Mulheres
em Beijing (1995) como “gender mainstreaming”, constitui instrumento e fundamento para
que o planejamento e a implementação de políticas públicas possam ser feitos de modo a
dimensionar o seu impacto na construção da igualdade, o que deve ser ponderado na política
de creche.
Verifica-se a dificuldade de assimilação das necessidades das famílias e da aplicação
da transversalidade de gênero na implementação da política de creche ao analisar o parecer da
Conselho Nacional de Educação n.º 08/2011 que trata da proposta de oferecimento de
educação infantil sem interrupção, ou seja, sem férias, e faz referências a solicitações de
oferecimento do serviço em período noturno e integral.
Além do enorme déficit da política pública de creche, os pontos enfrentados
diretamente e indiretamente no parecer constituem pontos nevrálgicos dos pleitos de mulheres
em relação implementação do serviço em questão. Os dados trazidos sobre a realidade das
mulheres no mercado de trabalho apontam para o fato de que embora essas demandas tenham

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sido classificadas como necessidade da família, elas representam demandas das mães das
crianças que necessitam compartilhar o cuidado dos filhos com o Estado.
O parecer enfatiza que a solicitação apresentada deve ser analisada considerando que
creches e pré-escolas são estabelecimentos educacionais, e que devem ser refutadas funções
de caráter meramente assistencialista. Diz-se que não se ignoram as necessidades das famílias,
mas aponta-se que o financiamento, a orientação e a supervisão dos serviços solicitados
devem ser feitos por outras áreas, como a assistência social, saúde, cultura, esportes e
proteção social.
Os principais fundamentos para que sejam desconsideradas as necessidades das
mulheres são os objetivos distintos das políticas educacionais e de assistência social; assim,
alega-se que o funcionamento ininterrupto das unidades de educação infantil pode acarretar
problemas para a execução do planejamento curricular e avaliação das atividades
educacionais por parte dos professores; e que isto poderia comprometer as oportunidades das
crianças de conviverem mais intensamente com sua família.
Verifica-se, portanto, que o enquadramento da política de creche como política de
educação infantil, sem considerar a transversalidade de gênero, impõe óbice ao atendimento
de demandas das mulheres, especialmente as mais pobres, que não podem contar com apoio
mercantilizado de cuidado, assim como impõe obstáculo à concretização da igualdade de
gênero.

Considerações finais
A luta pela implementação da política de creche, historicamente, foi marcada pela
atuação do movimento feminista e de mulheres, tendo contado com o apoio de profissionais
de diversas áreas, como a assistência social e educação, assim como com grupos que lutavam
pelo direito das crianças e adolescentes.
A consolidação da política de creche como educação infantil representa uma inegável
conquista para crianças. Contudo, necessário avançar e revelar sua importância como política
de gênero capaz de impulsionar a autonomia das mulheres para que estas possam participar da
esfera pública em melhores condições.
Evidencia-se que a questão referente ao cuidado com os filhos, diante da deficiência
da política de creche no Brasil, ainda é percebida pelo Poder Público e pela sociedade em
geral como algo que deve ser gerido pelas famílias, especialmente pelas mulheres. Contudo,
para maior proteção das crianças aliada a isonomia de gênero, deve-se incorporar à noção
pedagógica da creche, o compartilhamento do cuidado com o Estado, especialmente quando

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estas mulheres se encontram em situações em que não podem arcar com serviços privados,
por meio da contratação de empregadas domésticas ou redes mercantis de educação.
O déficit de vaga em creche até os dias atuais representa a desvalorização do cuidado
que deve ser dedicado à sobrevivência e socialização de crianças de 0 a 3 anos de idade, cujas
mulheres são as maiores responsáveis tanto quando prestado no ambiente familiar, por mães
ou outras mulheres integrantes de família extensa, quanto quando disponibilizado no ambiente
mercantilizado, por meio de empregadas domésticas ou de mulheres trabalhadoras de creches
privadas; representa uma perpetuação da concepção da divisão sexual do trabalho, além de
reforçar a ideia de que o Estado não é corresponsável pela sua prestação.
Assim, urge que a transversalidade de gênero tenha incidência na política de creche, a
fim de que as especificidades do sujeito de direito mulher seja contemplado na sua
implementação e efetivação.

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A agenda internacional feminista e as políticas públicas brasileiras: a consonância


entre as ações internacionais com as políticas trabalhistas para as mulheres

Agnes Félix Gonçalves1

Resumo: As desigualdades entre homens e mulheres advêm de tempos remotos e perpassam


todos os níveis da sociedade, desde o nível micro, doméstico-familiar, até o nível macro, nas
políticas de governo. Para combater essas desigualdades as mulheres passam a se organizar e
assim nasce o movimento feminista. Neste contexto, a Organização das Nações Unidas
apresenta-se como um ator importante, quando adota a pauta feminista em sua agenda oficial,
e passa a promover a igualdade de gênero em nível internacional – através de Conferências,
Declarações e Resoluções Internacionais. Destarte a presente pesquisa tem dois objetivos:
primeiramente apresentar a trajetória da ONU na busca pela igualdade de gênero. Já o
segundo objetivo é analisar se houve consonância entre as políticas públicas brasileiras
específicas e a atuação da Organização das Nações Unidas na questão da igualdade de gênero,
entre o período de 1995 – quando ocorreu a IV Conferência Mundial das Mulheres – até a
2010 quando foi criado o órgão ONU Mulheres. O método utilizado é através de uma revisão
de bibliografia, assim como um levantamento de dados utilizando fontes primárias e
secundárias, utilizando-se de fontes documentais – como livros, textos, vídeos, revistas e
documentos oficiais (resoluções da ONU, Constituição Brasileira, etc.), por fim é feito uma
análise de documento – de leis e decretos brasileiros. Como resultado, foram visualizados ao
todo seis leis e dois decretos que abordam a legislação econômica e trabalhista, assim foi
possível verificar um pequeno avanço nas políticas públicas específicas, contudo há de se
ressaltar que ainda há um longo caminho para se alcançar a equidade entre os sexos. Desta
maneira, com esse avanço o Brasil estaria em conformidade com o acordado durante a IV
Conferência Mundial sobre a Mulher expresso na Declaração de Pequim, de garantir a
inclusão de uma perspectiva de gênero em todos os programas e políticas.

Palavras-chaves: ONU; Feminismo; Brasil.

1
Universidade Estadual de Londrina (UEL); mestranda em ciências sociais; agnesfgoncalves@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p938 938


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INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira, atualmente, é uma das que apresentam os maiores índices de


desigualdades de gênero em nível mundial, ocupando a setuagésima nona posição do total de
cento e trinta e cinco países avaliados (WORLD ECONOMIC FORUM, 2016). Diversos
estudos já foram elaborados evidenciando que as mulheres brasileiras não possuem os
mesmos direitos que os homens, desde o nível micro, no âmbito doméstico familiar, até o
nível macro, nos órgãos do governo. As mulheres brasileiras são subjugadas em todos os
níveis da sociedade, independente das classes sociais e/ou raças – destacando-se aqui que as
mulheres negras e das classes sociais mais baixas são as que mais sofrem com essas
desigualdades.
Ou seja, são diversas as informações que evidenciam que, apesar de a Constituição
Federal assegurar em seu artigo quinto, que todos os cidadãos brasileiros são iguais em
direitos e deveres; esta igualdade não ocorre de fato, portanto, nossa realidade é permeada
pelas desigualdades. Destarte, o governo brasileiro vem tentando suprir essa carência criando
e promovendo diversas políticas públicas, para combater as desigualdades de gênero e gerar
oportunidades para as mulheres brasileiras alcançarem o empoderamento.
Prosseguindo, pelas desigualdades entre homens e mulheres ser um problema global,
uma vez que estas “persistem em todas as sociedades” (AZEVÊDO; HOYER, 2011, p 106), e
a ONU ser um organismo internacional, a mesma se coloca como um importante ator na
busca do combate a estas desigualdades. Assim a organização juntamente com a Declaração
Universal de Direitos Humanos, constituem os primeiros instrumentos jurídicos de caráter
internacional que contemplam a igualdade entre os sexos. A ONU, desde então, tem se
mostrado ativa na busca pela igualdade de gênero.
Destarte, o problema de pesquisa, busca compreender quais os impactos da atuação da
Organização das Nações Unidas desde o ano de 1995, quando acontece a Conferência de
Pequim, até 2010 quando é criada a ONU Mulheres, nas políticas públicas brasileiras,
trabalhistas e econômicas, de gênero durante este período?2

A INTERNACIONALIZAÇÃO DA AGENDA FEMINISTA

2
A presente pesquisa é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “A trajetória da Organização
das Nações Unidas (ONU) na busca pela igualdade de gênero e sua consonância com as políticas públicas
brasileiras: da Conferência de Pequim (1995) à criação da ONU Mulheres (2010)”, apresentado no curso de
Relações Internacionais, na Universidade Federal do Pampa em 2015.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p938 939


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A Organização das Nações Unidas vem desde sua carta de constituição, trabalhando
para promover a igualdade de gênero, já em seu preâmbulo expressa que, perante a ONU,
promove-se a: “igualdade de direito dos homens e das mulheres” (ONU, 1945). Continuando,
em 1946 o ECOSOC, órgão responsável pela promoção dos direitos sociais, econômicos e
humanos, atesta que, “ciente da necessidade de um órgão especificamente responsável pelas
questões atinentes aos direitos das mulheres, o Conselho estabelece a Comissão sobre o Status
das Mulheres (CSW).” (GUARNIEI, 2009, p. 68).
Deste modo, após votação é criada a primeira comissão internacional responsável por
“estudar, analisar e criar recomendações que oferecessem subsídios à formulação de políticas
aos diversos Estados signatários do referido tratado, vislumbrando o desenvolvimento das
mulheres enquanto seres humanos” (SOUZA, 2009, p. 348). A ONU, desta maneira, começa
então a atuar na questão de busca pela igualdade de gênero em nível mundial, permanecendo
como marco institucional internacional desta defesa até os dias atuais.
Desta maneira a Organização das Nações Unidas elabora os primeiros documentos
internacionais a tratarem especificamente sobre a situação das mulheres. O grande exemplo
disto é a Comissão Sobre o Status da Mulher (CSW) que, foi e ainda é, a responsável pela
organização da agenda internacional sobre a igualdade de gênero. Visto a importância desta,
em seguida, serão apresentados brevemente os cinco períodos pelos quais a comissão passou.
Assim sendo na primeira fase, durante os anos de 1946 a 1962, a Comissão sobre o status da
Mulher apresentou, vários estudos sobre a situação das mulheres, os quais deram a origem a
diversos documentos oficiais.
Já durante a segunda fase da CSW que ocorre entre os anos de 1963 e 1975, percebe-
se uma maior mudança no cenário internacional. Ao decorrer desse segundo momento, está
acontecendo à segunda fase do movimento feminista nas potências ocidentais. Percebe-se,
então, que as feministas destes países pressionam a organização, assim como seus respectivos
países, a tratarem sobre a situação da mulher, uma vez que: “as mudanças nas condições
sociais em todo o mundo levaram os órgãos da ONU a uma definição mais ampla dos direitos
das mulheres e a tentativa de traduzir os princípios em políticas” (BARROSO, 1989, p. 01).
Assim, durante a década de 1970, as reivindicações das feministas, “sensibilizaram a ONU,
[...] para promoção de um debate amplo sobre a elaboração de estratégias para avançar na
igualdade entre os gêneros no planeta” (MIRANDA; PARENTE, 2014, p.418).
Nesta fase ainda, há a elaboração, em 1963, da Declaração sobre a Eliminação da
Discriminação contra a Mulher, aprovada pela Assembleia Geral em 1967 (UN, 2000). A

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declaração é tida como “um instrumento legal de padrões internacionais que articulava
direitos iguais de homens e mulheres” (SOUZA; FARIAS, 2009, p.03). Tal declaração
representa um importante avanço internacional para o direito das mulheres. No entanto, por
ser um documento de caráter recomendatório não houve a adesão de muitos países, e o nível
de respostas dos governos foram baixos.
Em 1975 foi designado o Ano Internacional da Mulher, com o intuito de “lembrar a
comunidade internacional de que a discriminação contra as mulheres estava profundamente
enraizada nas leis, sobretudo nas crenças culturais, e que este era um problema persistente em
muitas partes do mundo” (UN, 2000a, tradução nossa). A determinação de um ano
internacional para discutir-se a situação das mulheres ao redor do mundo foi de extrema
importância para diversos movimentos feministas, uma vez que: “consolidava o entendimento
do feminino em sua forma coletiva, pela conscientização do compartilhamento dos problemas
e dificuldades por diferentes mulheres de diferentes partes do globo” (GUARNIEI, 2009, p.
72). Ainda neste ano é realizada a Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, na Cidade
do México.
Já o terceiro momento da Comissão sobre o Status da Mulher estende-se dos anos de
1976 a 1985. E um dos principais feitos, nesta fase, é a recomendação feita para a Assembleia
Geral da ONU, com o intuito de estabelecer-se uma Década da ONU para as mulheres – que
estende-se desde 1975 até 1985. Não obstante, além da Década das Mulheres ocasionar essa
legitimidade aos movimentos feministas, ainda nesta terceira fase da CSW, ocorreu a adoção
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW), que em 1979 foi votada e aprovada pela ONU. A CEDAW é considerada o
primeiro tratado internacional que trata especificamente sobre os direitos humanos das
mulheres (SILVA, 2013; PIMENTEL, 2006).
A CEDAW entra em vigor em 1981, contendo o preâmbulo e mais 30 artigos que
tratam sobre a eliminação das discriminações contra a mulher. O Estado brasileiro assina a
convenção em 1981, e em fevereiro de 1984 ratifica o documento – com reservas ao artigo
cinco, que somente foram retiradas no ano de 1994. A Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres estabelece obrigações aos Estados-
partes, no:

[...] sentido de que atuem no seu âmbito interno de modo a eliminar


progressivamente a discriminação contra as mulheres, abstendo-se de práticas
discriminatórias no âmbito público e promovendo a igualdade substancial entre os

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gêneros também na esfera privada. Prevê ainda a modificação da legislação e


introdução de mecanismo de ações afirmativas como defesa do status da mulher nos
países signatários. (SOUZA; FARIAS, 2009, p.03).

Assim, o CEDAW possui um caráter obrigatório, diferentemente da Declaração sobre a


Eliminação da Discriminação contra a Mulher, de 1963. Sobretudo, pois, os Estados-partes “têm o
dever de eliminar a discriminação contra a mulher através da adoção de medidas legais, políticas e
programáticas” (PIMENTEL, 2006, p.15). Para monitorar a efetividade da Convenção é criado o
Comitê CEDAW – através de um Protocolo Facultativo – em 1999 (SILVA, 2013).
Deste modo, a ONU vem atuando na promoção da igualdade de gênero com uma maior
intensidade e efetividade. Uma vez que, os Estados que assinaram o Protocolo Facultativo do
Comitê possuem obrigações perante a organização. O que demonstra, por sua vez, que a ONU
gerou responsabilidades concretas que passaram a exigir dos Estados um posicionamento acerca
desta questão.
A quarta fase da Comissão sobre o Status da Mulher inicia-se em 1986 e dura até 1995.
Nesta etapa os esforços da CSW voltaram-se para inserir as mulheres na agenda global. Por fim, a
última fase da Comissão sobre o Status da Mulher é datada de 1996 a 2006, onde a Comissão
busca consolidar o avanço dos direitos das mulheres em nível internacional. Após a elaboração da
Plataforma de Ação de Pequim (1995) – um material para orientar os governos para a promoção
da igualdade de gênero. O papel da CSW, passa então, a ser o de auxiliar, acompanhar e “fazer
recomendações sobre medidas concretas para acelerar a implementação da Plataforma de Ação”
(UN, 2000ª, tradução nossa), para assim, consolidar os direitos das mulheres nos países
signatários da ONU, expresso nesta plataforma.
Apresentada brevemente as fases da Comissão sobre o Status da Mulher, evidenciou-se
que desde que a Organização das Nações Unidas foi constituída, é de sua preocupação trabalhar
ativamente para que as desigualdades entre homens e mulheres sejam superadas. A ONU ao criar
uma Comissão própria que fosse responsável por buscar erradicar as diferenças econômicas,
sociais, políticas e culturais existentes no tratamento entre homens e mulheres, evidencia que a
instituição está ciente de que estas diferenças não são naturais, e que nem devem ser ignoradas. E
a Comissão sobre o Status da Mulher tem sido de grande importância para promover o movimento
feminista internacionalmente, uma vez que a mesma tem:

[...] sido fundamental na espação do reconhecimento dos direitos das mulheres, na


documentação realizada das mulheres vividas pelo mundo, na definição de políticas
globais sobre igualdade de gênero e empoderamento das mulheres e na garantia de

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que todas as áreas trabalhadas pela ONU incorporem uma perspectiva de gênero
(UN, 2000a, tradução nossa).

Desta maneira, a história da CSW é importante para os movimentos feministas


mundiais, pois muitos foram os movimentos legitimados pela atuação e influência da ONU
em seus respectivos países, um desses casos é do movimento feminista brasileiro. Assim, já
verifica-se que a organização possui influência ímpar na pauta feminista brasileira tanto como
em diversos outros países.
Ainda a ONU é responsável pela realização de quatro conferências internacionais para
debater as questões de igualdade entre homens e mulheres a primeira em 1975 na cidade do
México. Já em 1980, na cidade de Copenhague é realizada à II Conferência Mundial sobre a
Mulher. Em 1985 é realizada a III Conferência Mundial em Nairóbi. Contudo, o maior marco
da organização na área ocorreu durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada
em Pequim em 1995. Tal conferência teve um grande impacto internacional, pois contou com
um grande número de participantes, sendo esses chefes de Estados e membros da sociedade
civil; começando-se a abordar o conceito gênero num âmbito internacional o Gender
Mainstreaming; e elaborando-se uma Plataforma de Ação, com objetivos estratégicos e ações
pontuais.
Durante a realização, destas quatros conferências, houve duas, principais, formas de
ação onde ora a Organização das Nações Unidas influenciou os movimentos de busca pela
igualdade de gênero, ora ela foi influenciada por estes, como demonstra os fluxogramas a
seguir:

Figura 01 – Fluxo de pressão política 1 Figura 02 – Fluxo de pressão política 2

FONTE: Autora FONTE: Autora

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A figura 01 demonstra a influência exercida pelas mulheres perante o Estado, para que
o mesmo leve suas pautas para a Organização das Nações Unidas, o que é demonstrado em
dois momentos. O primeiro momento acontece na Conferência de São Francisco, quando a
brasileira Bertha Lutz propõe que se institua uma comissão para tratar a questão da igualdade
entre homens e mulheres dentro da ONU. E o segundo momento acontece na década de 1970,
quando a segunda onda do movimento feminista está eclodindo nas potências ocidentais, e
feministas principalmente dos EUA, da França e da Inglaterra pressionam seus países e a
ONU para a adoção de medidas não discriminatórias contra as mulheres. Neste momento a
ONU se sensibiliza com a pauta feminista e a adota com mais afinco, buscando promover a
igualdade de gênero para todos os países.
Além disso, um dos momentos em que se destaca essa legitimidade que a ONU
estabelece para os movimentos feministas nacionais é quando a organização denomina o Ano
Internacional da Mulher e, logo em seguida, define o período entre 1975 e 1985 como a
Década da Mulher. A Organização das Nações Unidas indica assim, que a pauta de direitos
das mulheres é importante e está presente no debate internacional. Deste modo, ela contribuí
para o entendimento de que as desigualdades e discriminações contra metade da população
não é algo natural e sim uma construção social, que, para além de ferirem metade da
população mundial, essa discriminação se coloca como um empecilho ao pleno
desenvolvimento humano.
Já na figura 02 é demonstrado como as mulheres pressionam a ONU e, a partir desta
influência, como a organização impacta as decisões do Estado que, por sua vez, formula
políticas públicas para a igualdade de gênero e os direitos das mulheres. Este fluxo de pressão
é evidenciado durante as Conferências sobre a Mulher, principalmente durante a Conferência
de Copenhague de 1980, onde as mulheres criticam a promoção de um feminismo para
aquelas que não possuem nem os direitos básicos, como saúde e educação, o que faz com que
se alterem os debates internacionais sobre os direitos femininos, comprovando a influência
das mulheres na organização. Na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim de
1995, em que houve muitas dificuldades durante a realização da mesma, e apesar das
mulheres terem que se deparado com discursos conservadores e contra seus direitos
proferidos pelo Vaticano e seus aliados, a Conferência foi considerada um sucesso, sendo a
maior realizada pela ONU.
Quando a Comissão sobre o Status da Mulher promove a primeira Conferência sobre a
Mulher, em 1975 no México, é dado início a tentativa internacional e global para se
conquistar a igualdade entre os sexos. Mais além, fica evidenciado, pela primeira vez, que

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todas as mulheres sofrem discriminações, independente do nível de desenvolvimento do país.


Após esta Conferência, elabora-se um plano de ação para perpassar as desigualdades,
acontecimento que irá repetir-se nas demais Conferências.
Com a promoção de mais três Conferências sobre a Mulher, após a do México, a
Organização das Nações Unidas foi aprofundando o debate acerca das desigualdades e
discriminações contra as mulheres, o que repercute na última Conferência, para a discussão
sobre gênero e empoderamento, como categoriais mais adequadas. Para, além disso, as
Conferências foram contando com um maior número de participantes, tanto das delegações
representando os Estados, quanto dos representantes de ONGs e sociedade civil. Fato esse
observado na Conferência realizada no México, onde estiveram presentes cerca de seis mil
participantes, bem como Conferência de Pequim, com cinquenta mil.
Visto isso, com a realização das Conferências, o debate feminista ganha visibilidade
global. Percebe-se que durante quatro momentos distintos todos os olhos estiveram voltados
para um único debate: as desigualdades existentes entre homens e mulheres. Apesar da
organização nem sempre traduzir as demandas das mulheres de maneira completa a
visibilidade que a instituição trouxe para o movimento feminista foi ímpar e deveras
importante para os direitos das mulheres, tanto internacionalmente como nacionalmente.
Assim evidencia que a trajetória da ONU na busca pela igualdade de gênero foi ativa e
efetiva. Em que pese que as desigualdades não foram totalmente superadas, a organização
vem trabalhando para promover um mundo sem discriminações baseadas em sexos, dentro de
suas possibilidades.
A partir daqui, então, a pesquisa se destina a testar se esse papel da ONU, a níveis
internacionais, se traduziu em medidas efetivas de promoção da igualdade de gênero no
Brasil, apontando assim se a organização possui uma influência no país. Portanto, a próxima
etapa é voltada a interpretação das principais políticas públicas trabalhistas e econômicas, do
assunto, como forma de evidenciar como ocorreu esse processo de consonância entre a
trajetória da ONU e as políticas brasileiras.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A IGUALDADE DE GÊNERO

Até o momento, a pesquisa apresentou a evolução histórica da defesa dos direitos das
mulheres, como forma de superar as também históricas desigualdades. Pode-se dizer que há
um acumulado político internacional no sentido de que o movimento de organização das
mulheres repercutiu, também, em organizações internacionais, como visto anteriormente.

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Deste modo o trabalho volta-se a investigar como esse acumulado histórico se traduziu em
ações Estatais de proteção e promoção desses direitos, com um olhar específico para o
período entre os anos de 1995 e 2010.
Neste momento a pesquisa se focará em responder a pergunta que conduziu o trabalho.
Destarte, neste momento a metodologia usada para responder a este questionamento será
diferente das até então apresentadas, se utilizando de tabelas com as legislações referentes aos
direitos das mulheres para expor como o governo brasileiro traduziu as demandas feministas
com medidas práticas, neste caso por meio das leis. A pesquisa por estas leis se deu através do
Portal da Legislação, se utilizando das palavras chaves: mulher; mulheres; trabalhistas;
econômicas; gênero; e direitos das mulheres. Para a analise será utilizada o texto integral das
leis e decretos apresentados.
Por conseguinte, para apresentar a tabela com a legislação, inicialmente precisam-se
entender conceitos utilizados. O primeiro conceito é o de política pública, a qual é entendida
como “uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público” (SECCHI, 2013, p.2),
neste caso o problema de discriminação contra as mulheres. Ou seja, quando há uma área de
dificuldades enfrentada por alguma parcela da sociedade, ficaria a encargo do Estado elaborar
políticas públicas para superara-las.
Política pública é um conceito amplo na qual possui diversos significados. Na presente
pesquisa se usará da abordagem estadista, onde se considerará como política pública
“analiticamente, monopólio de atores estatais” (SECCHI, 2013, p.2). Ou seja, na pesquisa se
utilizará da política pública feita pelo Estado para a sociedade. Estas na prática “podem
assumir múltiplas formas: legislação, recomendações oficiais em relatórios de organismos e
departamentos governamentais e resultados apurados por comissões apontadas pelos
governos” (STROMQUIST, 1995, p.27).
Então, a forma que a política pública pode adotar para superar os problemas da
sociedade, escolhida para analisar o trabalho será na forma legislativa. Portanto, o trabalho
levantará a legislação para analisar se ocorreu consonância entre a postura adotada pelo Brasil
e pela ONU na questão de equidade entre sexos. Destarte precisa-se entender o conceito
legislação, que se entende como: “[...] acordos de uma sociedade consigo mesma, regulando
as relações, as instituições e os processos sociais” (RODRIGUES, CORTÊS, 2006, p.11).
Assim, a legislação sobre as mulheres, resguardaria os direitos destas perante o Estado e a
sociedade, além de expressar o “desejo e a intenção de pautar novas realidades sociais”
(RODRIGUES; CORTÊS, 2006, p.01). Com estas mudanças na legislação, o Brasil estaria
em conformidade com o acordado durante a IV Conferência Mundial sobre a Mulher expresso

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p938 946


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na Declaração de Pequim, de garantir a inclusão de uma perspectiva de gênero em todos os


programas e políticas. (BRASIL, 2006, p. 153).
Visto isso, o trabalho parte para a investigação das legislações que foram aprovadas
entre os anos de 1995 e 2010, na área trabalhista e econômica, dada a dimensão do presente
trabalho. Cabe aqui destacar, que a presente pesquisa será feita a partir das propostas
legislativas, não adentrando na avaliação da efetividade destas.
A seguir a Tabela 01 irá retratar as leis e decretos sobre as áreas econômicas e
trabalhistas:

Tabela 01 – Legislações Econômicas e Trabalhistas


ECONÔMICAS E TRABALHISTAS

TIPO DATA INFORMAÇÕES

Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e


outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou
LEI Nº 9.029 13/04/1995
de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras
providências.

Insere na Consolidação das Leis do Trabalho regras sobre o


LEI Nº 9.799 26/05/1999 acesso da mulher ao mercado de trabalho e dá outras
providências.

Revoga o art. 376 da Consolidação das Leis do Trabalho –


LEI Nº 10.244 27/06/2001
CLT para permitir a realização de horas-extras por mulheres.

Altera a Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, para


LEI N° 10.710 05/08/2003 restabelecer o pagamento, pela empresa, do salário-
maternidade devido à segurada empregada gestante.

Institui, no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, a


Comissão Tripartite com o objetivo de promover políticas
DECRETO 20/08/2004 públicas de igualdade de oportunidades e de tratamento, e de
combate a todas as formas de discriminação de gênero e de
raça, no emprego e na ocupação.

Cria o Programa Empresa Cidadã, destinado à prorrogação da


LEI Nº 11.770 09/09/2008 licença-maternidade mediante concessão de incentivo fiscal, e
altera a Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991.

Regulamenta a Lei no 11.770, de 09 de setembro de 2008, que


DECRETO Nº cria o Programa Empresa Cidadã, destinado à prorrogação da
23/12/2009
7.052 licença-maternidade, no tocante a empregadas de pessoas
jurídicas.

LEI Nº 12.227 12/04/2010 Cria o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher.


FONTE: Autora. Dados Legislação Federal do Brasil.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p938 947


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Apresentada a Tabela 01 sobre a formulação de legislações que promovam os direitos


das mulheres e a igualdade de gênero nas áreas econômicas e trabalhistas, foram visualizados
ao todo seis leis e dois decretos que abordam o assunto. Ao analisar a tabela depara-se com
alguns direitos fundamentais que, em uma primeira avaliação, pela clareza e pelo óbvio,
poder-se-ia dispensá-los de constar na legislação, como o referente na lei N°9.029 de abril de
1995. Nesta lei fica proibido exigir atestado de gravidez e de esterilização para a contratação
ou permanência de uma pessoa em uma relação jurídica de trabalho. No segundo artigo desta
lei, fica declarado que se constitui crime práticas discriminatórias como:

I - a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro


procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez; II - a adoção de
quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem; a) indução ou
instigamento à esterilização genética; b) promoção do controle de natalidade, assim
não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento
familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas às
normas do Sistema Único de Saúde (SUS). (BRASIL, 1995).

Observada estas práticas discriminatórias na relação de trabalho, há uma pena de um a


dois anos de detenção mais uma multa – não informado o valor. Outra lei importante sobre
direitos trabalhistas apresentados na Tabela 03 é a de n° 9.799 de maio de 1999. Esta vem
para corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher no mercado de trabalho, sendo
vedadas as seguintes discriminações: proibido publicar anúncios discriminatórios; recusar
empregar ou dispensa “do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado
de gravidez” (BRASIL, 1999); proibição de diferença salarial motivada por discriminações;
proibição da exigência de atestados para comprovar gravidez ou esterilidade; impedimento ao
acesso para inscrição ou aprovação em concursos “em razão de sexo, idade, cor, situação
familiar ou estado de gravidez” (BRASIL, 1999) e proibir o empregador “a revistas íntimas
nas empregadas ou funcionárias.” (BRASIL, 1999). Assim, com estas disposições o Estado
brasileiro procura assegurar às mulheres direitos trabalhistas antes negados para as mesmas.
Em relação aos direitos econômicos, é aprovada em abril de 2010 a lei Nº 12.227, que
se refere à criação de um Relatório Anual Socioeconômico da Mulher – Raseam, depois de
onze anos de tramitação no Congresso Nacional (SPM, 2013). O Rasem vem para “oferecer
uma visão global da temática mulher no país, permitindo que as políticas públicas sejam

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p938 948


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avaliadas e que a sociedade conheça as informações produzidas pelos diferentes órgãos da


administração públicas” (SPM, 2013, p.13). O relatório ainda observa a efetivação dos
compromissos brasileiros, perante a sociedade internacional, na promoção da igualdade de
gênero no Brasil, sendo uma ferramenta importante para se mensurar o avança das mulheres
em diversos eixos temáticos.
Visto isso, pode-se avaliar que é evidente o avanço na matéria de legislação
econômica e trabalhista, contudo há de se ressaltar que ainda há um longo caminho para se
alcançar a equidade entre os sexos, uma vez que as mulheres continuam com uma dupla
jornada, sendo estas, na maioria dos casos, responsáveis pelos trabalhos domésticos – como
atividades de casa e cuidado dos filhos, tarefas que tradicionalmente têm sido delegadas as
mulheres.
Assim, neste primeiro momento, podemos apontar que houve uma consonância entre a
atuação da ONU na busca pela igualdade de gênero a legislação brasileira, entre o período de
1995 a 2010. Porém, temos que considerar que os avanços legislativos, possuem grande
influência dos movimentos feministas brasileiros que, nesses quinze anos, possuíram uma
grande expressividade. Assim, indicamos que não foi somente a ONU responsável por essa
promoção da igualdade de gênero no Brasil, as brasileiras e os movimentos feministas
brasileiros foram deveras importantes para essa promoção.

CONCLUSÃO

Quais os impactos da atuação da Organização das Nações Unidas desde a Conferência de


Pequim (1995) até a criação da ONU Mulheres (2010) nas políticas públicas brasileiras,
trabalhistas e econômicas, de gênero durante este período? Partindo-se de uma hipótese
afirmativa, na qual se considera que o Brasil, seguindo as iniciativas da ONU, promoveu a
igualdade de gênero no país, a pesquisa neste momento inicial apontou que o país buscou agir em
consonância com a pauta adotada pela organização. Assim, esse foi o fio condutor do trabalho.
Destarte, na pesquisa, o objetivo que o norteou foi o de investigar a trajetória da ONU na
questão de igualdade de gênero. Neste momento foram apontados brevemente os esforços da
Organização das Nações Unidas em internacionalizar a pauta feminista desde 1946 quando a
instituição é criada. Assim são apresentadas, rapidamente, as fases da Comissão sobre o Status da
Mulher, como também a elaboração de documentos oficiais que dispusessem sobre as
discriminações contra as mulheres e as conferências promovidas pela organização para debater a
questão.

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Por fim, a última parte da pesquisa se destinou a responder, momentaneamente, o


problema que a norteou, de investigar como o acumulado histórico de promoção dos direitos das
mulheres, feito pela Organização das Nações Unidas, se traduziu em ações estatais de
proteção e promoção dos direitos das mulheres, na questão trabalhista e econômicas, entre os
anos de 1995 a 2010. Para responder este questionamento foi feita uma pesquisa acerca das
políticas públicas – representadas em formas legislativas – que foram aprovadas entre o marco
temporal escolhido e que dispusessem sobre os direitos das mulheres em seu texto.
Deste modo chegou-se ao total de seis leis e dois decretos que representam a busca
pela igualdade de gênero a nível federal, apresentadas como legislações trabalhista e
econômica. Assim sendo, com a aprovação destas legislações entre os anos de 1995 a 2010 se
exibiu que o Brasil, durante estes quinze anos, procurou promover os direitos das mulheres
em consonância com a pauta feminista adotada pela Organização das Nações Unidas.
Destarte, com a adoção do movimento feminista pela ONU, a organização contribuí
para a compreensão de que as desigualdades enfrentadas pelas mulheres não são naturais, e
sim uma construção social, e do mesmo modo que este entendimento foi construído, ele pode
ser substituído por uma compreensão de igualdade plena entre homens e mulheres. Assim
sendo, foi demonstrada a importância de uma organização internacional de prestígio tratar
sobre os direitos das mulheres e a promoção da igualdade entre os sexos.
Deste modo, evidencia-se a hipótese levantada no trabalho, e aponta-se para a busca
de um aprofundamento da pesquisa sobre os direitos das mulheres e a promoção da igualdade
de gênero, em momentos futuros. E por se tratar de um processo histórico e enraizado na
sociedade brasileira – a qual é patriarcal desde os tempos de colônia – o caminho para a
igualdade de gênero ainda é longo e difícil de ser atingido, porém é percebido que a ONU tem
procurado, apesar das dificuldades, promover direitos básicos para as mulheres brasileiras,
assim como para as mulheres dos cento e noventa e três países signatários que fazem parte da
organização.

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Avanço do conservadorismo e o Programa Escola sem Partido: desafios atuais para as


políticas educacionais com perspectiva de gênero no Brasil

Meire Ellen Moreno1

RESUMO: Embora o Estado venha incorporando paulatinamente a perspectiva de gênero nas


políticas públicas no Brasil, o crescimento da influência de vozes reacionárias, especialmente
nas câmaras legislativas tem sido um desafio para as ações dos movimentos feministas. Desde
a campanha eleitoral de 2010, o cenário político brasileiro tem sido marcado pelo avanço do
conservadorismo e por uma onda de resistência à difusão e à inclusão dos discursos feministas
e da agenda de gênero na formulação de políticas públicas, em especial, as políticas
educacionais. Entre os discursos conservadores, destaca-se o fortalecimento do Movimento
Escola sem Partido que afirma haver nas escolas uma suposta “doutrinação ideológica” e que
passou a ter voz frequente nas discussões sobre as políticas educacionais brasileiras desde
2014, o mesmo ano foi aprovado o Plano Nacional de Educação 2014, sem nenhuma
referência aos termos gênero e sexualidade. Neste sentido, o objetivo deste trabalho é
apresentar parte dos resultados da nossa pesquisa através da qual investigamos o processo
político de formulação do PNE 2014, ou seja, apresentar o “lugar” estratégico das políticas
educacionais como campo de disputas no qual os interesses entre feminismos e antifeminismos se
colocam, assim como descrever quais foram os principais pontos de avanços e retrocessos na
inclusão da agenda de gênero no Plano. Adotamos a perspectiva dos estudos feministas na
qual o gênero é entendido como um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas
diferenças de sexo e que estabelece relações de poder, por estar de acordo com as formas de
organização sociocultural nos diferentes contextos históricos e entendemos que nossa
discussão pode colaborar para a melhor compreensão dos desafios atuais para as políticas
públicas com perspectiva de gênero, especialmente no que diz respeito à participação das
mulheres e a inclusão de suas demandas nas políticas públicas educacionais.
Palavras-Chave: movimentos sociais; gênero; políticas públicas; educação

INTRODUÇÃO

Pelo menos desde o processo de redemocratização do país, o Estado passou a ser


entendido, por parte significativa das feministas brasileiras, como um lugar estratégico para as
lutas e reivindicações por eliminação das diversas formas de desigualdades de gênero, apesar
dos limites que as instituições tradicionais de poder político colocam para a participação e
representação de mulheres. Reivindicam, entre outros, o reconhecimento e a inclusão de suas
demandas nas agendas de governos municipais, estaduais e nacional.

1
Professora de Sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná (SEED/PR); Mestra em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); moreno.meire@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p953 953


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Com o processo de abertura política, mas principalmente, a partir da promulgação da


Constituição de 1988, de beneficiárias dos serviços públicos, as mulheres conquistaram algum
espaço para atuação na arena política e as feministas avançaram em termos de inclusão da
perspectiva de gênero nas agendas de governos municipais, estaduais e nacional (ALVAREZ,
1988; ALVAREZ, 2000; PINTO, 2010; FARAH, 2004).
Ocorre que, ao menos desde o processo eleitoral de 2010, assistimos, no Brasil, o
crescimento da influência de vozes conservadoras no cenário politico (MIGUEL, 2016),
sobretudo o tradicionalismo de gênero (MATOS e PINHEIRO, 2012) que se apresenta na
crescente resistência à difusão e a inclusão da agenda feminista na formulação de políticas
públicas. Tais grupos são contrários às pautas dos movimentos feministas e de outros
movimentos que atuam para promover mudanças significativas na sociedade em termos de
justiça e direitos humanos, tais como os movimentos negro, indígena e os movimentos de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). Entre outros temas, engendram
forças contrárias à incorporação da perspectiva de gênero nas políticas públicas educacionais
sob o rótulo do combate ao que se denominou “ideologia de gênero” (MIGUEL, 2016), o que
têm provocado efeitos na formulação dos documentos orientadores das políticas educacionais.
É o que nos revela o fato da aprovação do Plano Nacional de Educação de 2014 sem
nenhuma referência aos termos gênero e sexualidade/orientação sexual no documento, após
quatro anos de tramitação que envolveu intensos debates e polêmicas. Cabe salientar que
através do Plano Nacional da Educação (PNE), são estabelecidas as metas e estratégias para
todos os níveis de ensino do país - ou seja, da educação infantil à pós-graduação – com o
objetivo de alcançar melhorias educacionais em termos de qualidade e de superação de
desigualdades, para um período de dez anos. Trata-se, portanto, de um documento estratégico.
Desde o processo de formulação do PNE 2014, mas principalmente a partir de 2014 -
ano da sua aprovação, sem vetos, pela presidenta Dilma Rousself – o movimento que afirma
haver nas escolas uma suposta “doutrinação ideológica” tem se fortalecido. Inúmeras
propostas tramitam nas câmaras legislativas dos municípios, estados e união com o objetivo
de impor medidas para impedir educadoras e educadores de expressar opiniões supostamente
impróprias e tratar certos conteúdos nas instituições de ensino públicas e privadas brasileiras.
Essa é a principal reinvindicação do Movimento Escola Sem Partido, que se apresenta como
uma iniciativa de estudantes e pais organizados preocupados com o que se chamou de
“doutrinação marxista” e “ideologia de gênero”, e que passou a ter voz frequente nas
discussões sobre as políticas educacionais (MIGUEL, 2016).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p953 954


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Quase metade do prazo do PNE 2014 já se passou, porém, consideramos que nossa
investigação em torno do processo político de sua formulação nos permitiu realizar uma
caracterização do cenário atual de resistências e oposições à inclusão da agenda feminista na
política brasileira e que têm criado novos obstáculos para a formulação de políticas públicas
com perspectiva de gênero, especialmente as políticas educacionais.
Neste sentido, o objetivo deste trabalho é apresentar parte dos resultados da nossa
pesquisa2, especificamente nossa análise bibliográfica através da qual identificamos e
discutimos as possíveis convergências e diferenças entre feminismo e antifeminismo para,
então, revelar o “lugar” estratégico das políticas educacionais como campo de disputas no
qual esses interesses se colocam, e nossa análise documental que permitiu identificar quais os
principais pontos de avanços e retrocessos na inclusão da agenda de gênero no PNE 2014.
Para tanto, cabe ressaltar que adotamos certa perspectiva dos estudos feministas na qual o
gênero é entendido como um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas
diferenças de sexo e que estabelece relações de poder, por estar de acordo com as formas de
organização sociocultural nos diferentes contextos históricos e entendemos que nossa
discussão pode colaborar para a melhor compreensão dos desafios atuais para as políticas
públicas com perspectiva de gênero, especialmente no que diz respeito à participação das
mulheres e a inclusão de suas demandas nas políticas educacionais.

A educação como campo de interesses entre feminismos e antifeminimos

As contribuições e conquistas dos movimentos feministas, sejam elas para o campo


acadêmico, político, econômico e/ou sociocultural, são inegáveis. Colaboraram, e ainda
colaboram, para a compreensão das desigualdades entre homens e mulheres e para a luta
contra a exclusão social de gênero, incluindo as mulheres como sujeitos políticos e agentes de
transformações sociais. Resultam de intensas lutas travadas contra discursos e práticas
conservadoras que sempre impuseram diferentes formas de discriminação que dificultam a
promoção da equidade de gênero (CRUZ; DIAS, 2015).
Se no século XIX o discurso antifeminista se construía a partir da inferiorização da
feminilidade, baseado em fundamentos fisiológicos e biológicos, atribuindo às mulheres uma
constituição doentia, maligna e assustadora. No século XX, ganha nova roupagem. O objetivo
não era mais inferiorizar a feminilidade, mas defini-la em termos de funções ou papéis

2
A pesquisa foi realizada para a elaboração da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina como requisito para obtenção do título de mestra.

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sociais, no caso, a missão natural à maternidade atribuída as mulheres. Isso nos revela que as
formas através das quais se manifestam as oposições ao feminismo nem sempre são diretas.
Em nosso país, Estado e Igreja sempre serviram como sustentáculos para os discursos e
práticas antifeministas que, sob o apelo à retórica da família, fazem oposição às
reinvindicações das mulheres e aos feminismos (CRUZ; DIAS, 2015).
Desta forma, as expressões mais recentes dos antifeminismos no Brasil são aquelas
que procuram restringir os direitos das mulheres, principalmente o direito ao aborto e outros
temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos, como ocorre nas práticas dos movimentos
Pró-Vida. Há também os grupos que defendem o direito das mulheres de votarem, mas não de
serem votadas ao considerar que a vida pública não é coerente com o que defendem ser o
“papel natural” na sociedade, relativas ao matrimonio e a maternidade e sua participação na
vida pública representaria a negação da sua feminilidade (CRUZ; DIAS, 2015). Esse é o caso
dos movimentos Pró-família.
Os elementos de ambos os discursos de intercruzam e se manifestam nas práticas de
militantes fundamentalistas religiosos que advogam, com bases teológicas – apesar da
laicidade do Estado -, que o “papel” da mulher na família e na sociedade é o lar. Nessa
perspectiva, impõem-se às mulheres a adequação a certos comportamentos, como o cuidado
com a casa, a dedicação aos filhos e/ou filhas, a sujeição aos maridos, a discrição, etc.
Consideração interessante a se destacar é que o antifeminismo pode ser definido
como uma reação organizada ao movimento feminista e à luta por equidade entre homens e
mulheres, entendida como uma ameaça à dominação masculina (FLORES, 2004), cujas ideias
e concepções políticas são instrumentalizadas, predominantemente, por setores da direita. E
ainda mais interessante, o fato que as mulheres que militam nessas frentes se definem como
feministas, sob o argumento de que tratam de direitos das mulheres, ou neofeministas/pós-
feministas, defendendo que pregam um “feminismo”. Para as últimas, as principais
reivindicações das mulheres por igualdade em relação aos homens já foram contempladas.
Defendem o retorno das mulheres ao papel tradicional de gênero e afirmam que as vozes
hegemônicas dos movimentos feministas não podem representar adequadamente as atuais
demandas e anseios das mulheres (MACEDO, 2006).
Atualmente, a disseminação das ideias dos detratores do feminismo e da agenda de
gênero nas políticas públicas pode ser explicada, em partes, pelo advento da Internet e a
popularização do uso de tecnologias de comunicação, ainda que esses recursos tenham
fortalecido também os movimentos feministas. Destacam-se entre as estratégias utilizadas, o

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uso dos meios de comunicação, especialmente sites, blogs e redes sociais (CRUZ; DIAS,
2015).
Em nosso país, no que diz respeito às políticas educacionais, podemos afirmar que a
trajetória dos movimentos feministas é marcada pelas lutas contra os discursos e práticas
conservadoras de fundamentalistas religiosos que justificam suas ideias com argumentos
baseados nas diferenças biológicas entre homens e mulheres.
No século XIX, advogavam a favor da suposta inferioridade intelectual das mulheres.
Tal argumento sustentava a tese de que elas não seriam educáveis. Com o passar do tempo, o
argumento da inferioridade intelectual das mulheres mostrou-se insustentável. No entanto
debatia-se se seria desejável que elas fossem educadas. Afirmavam que o esforço para os
estudos poderia surtir efeitos para a capacidade reprodutiva das mulheres. Argumentavam que
as mulheres com acesso a educação casam mais tarde e tinham menos filhas/os, o que afetaria
negativamente as famílias (CRUZ; DIAS, 2015).
No século XX, embora houvesse muitas concepções sobre a educação para as
mulheres entre os grupos conservadores, defendia-se que elas podiam ser educadas, mas não
deveriam receber instrução. O principal argumento era o moral: na medida em que o
conhecimento abria o mundo para as mulheres, fechava-lhes as portas do céu. A educação
para as mulheres tinha como objetivo, portanto, a formação de caráter. Argumentavam que
não havia a necessidade de instruir as mulheres já que a elas caberia a posição de mãe e de
pilar de sustentação da família (CRUZ; DIAS, 2015; LOURO, 2008)
Independente dos argumentos utilizados, o objetivo era sempre o de desencorajar as
mulheres a cultivarem qualquer atividade que lhes possibilitasse alguma autonomia e
realização pessoal, enclausurando-as na esfera privada da família e nos papeis exclusivos de
esposa e mãe (CRUZ; DIAS, 2015). Para tanto, alguns defendiam que a educação feminina
deveria ser fundamentada em uma sólida formação cristã e na moral religiosa. Quando
defendiam ensino para as mulheres ancorado em bases científicas, esse se limitava as áreas
tradicionalmente ocupadas por elas, como por exemplo. a economia doméstica, a puericultura
e a psicologia (LOURO, 2008).
No entanto, a partir dos anos de 1990, no campo educacional, reformas foram
realizadas no sentido de ampliar a oferta, obter ganhos em qualidade, reduzir o uso de
recursos públicos etc. Desde a década de 1990, questiona-se a ideia de que os sistemas de
ensino devem ser organizados, financiados e controlados pelo Estado nacional. A educação
tem se estabelecido, portanto, como uma área de intensa atividade dos organismos
internacionais, exercendo influências nos orçamentos locais, nos currículos, nas propostas

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pedagógicas, etc. Entre as novidades, a educação passa a ser entendida como uma medida
estratégica para a superação das desigualdades entre mulheres e homens. (RESEMBERG,
2001; VIANNA; UNBEHAUM, 2004).
Diversas conferências mundiais foram realizadas ao longo da década de 1990,
promovidas por organismos como a ONU e suas organizações filiadas. Vale salientar que o
Brasil é signatário de todos os compromissos internacionais cujos objetivos relacionam-se à
promoção da igualdade entre mulheres e homens, firmados nesses eventos (VIANNA;
UNBEHAUM, 2004). Por isso, em nossa pesquisa, para entender a construção da agenda de
gênero em educação no Brasil e no Mundo, os seguintes documentos foram analisados:
Prioridades y Estratégias para la Educación, publicado em 1996, pelo Banco Mundial (BM);
Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, publicado em
1995; a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, publicado em 2001 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO e pelo
Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; e as Orientações técnicas de educação
em sexualidade para o cenário brasileiro : tópicos e objetivos de aprendizagem, publicado em
2014, também pela UNESCO; Programa Federal Brasil sem Homofobia, de 2004, o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos, de 2007, o Plano Nacional de Políticas para as
Mulheres 2013-2015, publicado em 2013 pela Secretaria de Políticas para Mulheres, e as
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, publicada em 2013.
Nossa análise permitiu estabelecer algumas conexões entre as propostas dos
organismos internacionais e as propostas do Estado brasileiro em termos de políticas
educacionais. Do ponto de vista formal, os documentos apresentam certa convergência
quando o assunto é uma educação igualitária para homens e mulheres. Do conjunto das
problemáticas e propostas levantadas, ao menos cinco eixos básicos definem a agenda de
gênero em educação: i) o acesso e permanência; ii) currículos; iii) material didático; iv)
formação docente; v) incentivo a pesquisas.
Além do acesso igualitário de homens e mulheres às instituições de ensino, os
documentos revelam a preocupação dos organismos internacionais e do Estado brasileiro
quanto à necessidade de reformas currículares, de adequação das práticas de
ensino/aprendizagem, dos materiais didáticos, na formação inicial e continuada de professoras
e professores de modo que contemplem as experiências das mulheres.
Na contramão das propostas dos organismos internacionais e do próprio Estado
brasileiro, os discursos antifeministas voltam, no século XXI, a assombrar as possibilidades
de avanços em termos de políticas educacionais com perspectiva de gênero em nosso país.

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Ao menos desde o processo eleitoral de 2010, é possível identificar, no cenário


político brasileiro, o avanço de vozes conservadoras e reacionárias (MIGUEL, 2016), em
especial o tradicionalismo de gênero (MATOS e PINHEIRO, 2012) e uma onda de resistência
à difusão e a inclusão da agenda feminista na formulação de políticas públicas.
Engendrada principalmente por fundamentalistas religiosos, esses discursos têm
ganhado força nas casas legislativas brasileiras. As políticas educacionais, para esses grupos,
tem sido um campo de disputas estratégico para disseminação de suas noções de direito e
justiça que legitimam desigualdades sociais, especialmente entre mulheres e homens.
Segundo Luis Felipe Miguel (2016, p. 595),

O fortalecimento público deste discurso abertamente conservador permitiu


que ganhasse visibilidade – e expressão parlamentar – um movimento que
acusa as escolas de “doutrinação ideológica” e propõe medidas para impedir
que professoras e professores expressem, em sala de aula, opiniões
consideradas impróprias.

A título de exemplo, na Câmara dos Deputados, dos muitos projetos em tramitação,


destacam-se o Projeto de Lei nº 7180/2015, que visa alterar a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) em diversos aspectos, entre eles, pretende proibir qualquer
referência e/ou método de ensino que aluda às questões de gênero, identidade de gênero,
orientação sexual e seus desdobramentos nas instituições de ensino do território nacional, e o
Projeto de Lei nº 2731/2015 que tem por objetivo modificar o PNE 2014, e em seu texto
prevê prisão as/aos profissionais da educação que, de alguma forma, tratarem das questões de
gênero, identidade de gênero, orientação sexual e seus desdobramentos nas instituições de
ensino no Brasil.
É necessário esclarecer que o combate contra o que se denominou “ideologia de
gênero” é somente uma faceta do discurso conservador que se apresenta, atualmente, no
debate público nesse país. Tal como afirma Miguel (2016, p. 593), os discursos conservadores
também são marcados, na América Latina e no Brasil, por um certo anticomunismo,
construído como reação ao “bolivarianismo” e o “Foro de São Paulo, conferência de partidos
latino-americanos e caribenhos de centro-esquerda e de esquerda, que na narrativa
anticomunista assumiu a feição de uma conspiração para dominar o subcontinente”. No caso
específico de nosso país, o autor argumenta que há, ainda uma sobreposição entre
anticomunismo e antipetismo, que associa ao Partido dos Trabalhadores (PT), que durante
todo seu governo adotou discursos e práticas políticas moderadas, a encarnação do projeto
comunista.

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Outra característica dos discursos conservadores é a presença da influência da


perspectiva herdada da “escola econômica austríaca”, marcado pela defesa de um
neoliberalismo fundamentado nas liberdades econômicas e individuais, pela defesa do Estado
mínimo e da meritocracia. As ideias libertarianas são promovidas pelas think tanks,
instituições de alcance internacional que têm entre seus objetivos a promoção de ideias,
formação de divulgadores, opiniões e consensos além do financiamento de grupos de
intervenção nos campos da cultura, religião, economia, entre outros. (BARBOSA, 2017;
MIGUEL, 2016)
Entre elas, existe o Instituto Millenium, a think thank ultraliberal, que colaborou para
que o Movimento Escola sem Partido ganhasse espaço no debate político sobre educação.
Embora as questões de gênero, a moral sexual e os valores da família não sejam as bandeiras
prioritárias do Instituto Millenium, é quando o Movimento Escola sem Partido passa a adotar
a perspectiva antifeminista do combate contra a suposta “ideologia de gênero”, que a
organização alcançou visibilidade e importância no debate público nacional. Vale lembrar que
inicialmente, o Movimento Escola sem Partido orientava suas articulações na defesa da
eliminação do que é chamado de “doutrinação marxista”, da neutralidade do ensino.
O Movimento Escola Sem Partido, coordenado pelo advogado Miguel Nagib,
conforme informação da página oficial da organização, se apresenta como uma iniciativa de
estudantes e pais organizados e preocupados com “a instrumentalização do ensino para fins
políticos, ideológicos e partidários” nas escolas públicas e privadas do Brasil. Atualmente,
diversos projetos idealizados pelo Movimento Escola sem Partido tramitam nas casas
legislativas brasileiras e juntos integram o denominado “Programa Escola sem Partido”.
Segundo Frigotto (2017, p. 31), o projeto educacional encabeçado pelo Movimento Escola
Sem Partido

não liquida somente a função docente, no que a define substantivamente e


que não se reduz a ensinar o que está em manuais ou apostilas, cujo
propósito é de formar consumidores. A função docente no ato de ensinar tem
implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo confronto de visões de mundo, de
concepções científicas e de métodos pedagógicos, desenvolver a capacidade
de ler criticamente a realidade e constituírem-se sujeitos autônomos. A
pedagogia da confiança e do diálogo crítico é substituída pelo
estabelecimento de uma nova função: estimular os alunos e seus pais a se
tornarem delatores.

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Antes mesmo da aprovação dos projetos, estimulam a prática da imposição medo e


da violência. Incentivam estudantes e/ou seus responsáveis a denunciarem práticas
pedagógicas que incoerentes com os valores da família.
Fato interessante a ser notado é que embora o antifeminismo, como resposta à
incorporação da perspectiva de gênero nas políticas educacionais tenha retomado corpo e
expressão nas instituições formais de poder político no Brasil nos últimos anos, as
articulações dos grupos conservadores e reacionários não são recentes. É possível afirmar que
uma reação antifeminista aos avanços alcançados em termos de direitos pelo movimento
feminista, tem sido esboçado pelo menos desde o processo de Beijing. A IV Conferência
Mundial sobre as Mulheres realizada, realizada em Pequim em 1995, é considerada um marco
histórico em termos de avanços conceituais e programáticos, sobretudo em relação à inserção
da perspectiva de gênero nas agendas de governo.
Esse é um fato que se revela quando analisamos criticamente os documentos
divulgados por grupos conservadores, inclusive o Movimento Escola sem Partido, contra o
que se denominou “ideologia de gênero”, no processo político de formulação do Plano
Nacional de Educação 2014. Argumentavam que a inclusão da agenda de gênero no Plano
promoveria o fim da família tradicional, formada por homem, mulher e suas/eus filhas/os.
Entre eles, destacamos o texto Agenda de gênero: redefinindo a igualdade, de autoria de Dale
O’Leary publicado em 1997 e o livro Ideologia de Gênero: neototalitarismo e a morte da
família, de autoria do advogado pró-vida Jorge Scala e publicado em 2011. Ambos os textos
foram produzidos após a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres e foram distribuídos no
Brasil, principalmente através da internet, como estratégia para disseminar a posição dos
grupos contrários à inserção das questões de gênero e sexualidade/orientação sexual no Plano
Nacional de Educação 2014.

O processo político de aprovação do PNE 2014

Muitos debates e polêmicas envolveram o processo de formulação do PNE. Entre


elas, destacamos os esforços de grupos conservadores fundamentalistas religiosos que
advogaram contra a inclusão da perspectiva de gênero do Plano e fundamentavam seus
argumentos na afirmação de que o uso dos termos gênero e sexualidade introduziriam, nas
políticas educacionais a suposta “ideologia de gênero”. Com a proximidade do prazo final do
Plano Nacional de Educação 2001, iniciaram-se as movimentações para a elaboração do novo
PNE. A iniciativa partiu do Poder Executivo, ainda sob a presidência de Luiz Inácio Lula da

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Silva (PT). Uma das primeiras ações do governo foi a realização da Conferência Nacional da
Educação. De forma tardia, a Conae 2010 foi precedida de conferências estaduais, municipais
e intermunicipais de educação. As Conferencias Estaduais tinham como ponto de partida para
as deliberações um Documento-Referência sobre o qual era possível realizar exclusões de
partes do texto e/ou inclusões de temáticas complementares. Cabia a cada estado expressar as
suas posições políticas e pedagógicas em documento próprio e encaminhá-lo à União. Os
documentos elaborados nas Conferências Estaduais seriam considerados na elaboração de um
novo relatório dirigido aos/as participantes, delegados/as e convidados/as da Conae 2010.
Esse relatório norteou os trabalhos das conferências e colóquios da Conae 2010 que resultou
no Documento-Final.
No Documento-Referência da Conae 2010, estão presentes várias menções às
questões de gênero e diversidade sexual, sinalizando uma preocupação, por parte do governo
federal da época, de que essas temáticas fossem consideradas nas discussões e deliberações
que ocorreriam nas conferências municipais, estaduais e intermunicipais. Dos cinco eixos
prioritários da agenda de gênero para a educação, somente o eixo “acesso e permanência” não
foi contemplado. Os encaminhamentos resultantes das conferências municipais e estaduais
foram sistematizadas em um Documento-Base. O Documento-Base da Conae 2010
apresentou avanços em relação ao seu Documento-Referência. O eixo “acesso e permanência”
foi contemplado e foram acrescentadas propostas cujo foco era o reconhecimento das
identidades, uma novidade em relação a agenda internacional de gênero.
Das conferências, debates e deliberações, das quais participaram representantes do
poder público e da sociedade civil, consolidou-se o Documento-Final da Conae 2010 que
trouxe novas pautas para discussões não somente em relação ao processo de formulação do
PNE 2014, mas também quanto à agenda internacional de gênero em educação. Além dos
cinco eixos básicos, o documento apresenta outros três: “política de
reconhecimento/identidade”, “formação para o trabalho” e “sistema de ensino”. Tais avanços
são resultantes, em grande medida, das articulações dos movimentos feministas e LGBT
durante a Conae 2010.
Encerrado o processo de conferências sobre o PNE, o Executivo, sob a chefia de
Dilma Rousseff (PT), enviou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei sob o nº 8.035. Na
proposta, havia somente uma referência direta às questões de gênero e sexualidade,
desconsiderando as proposições contidas no Documento-Final e o seu próprio discurso3

3
Entendemos que, para o caso específico do processo de elaboração do PNE 2014, as ações do governo de
Dilma Rousseff são continuidades das ações do governo de Luís Inácio Lula da Silva.

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apresentado no Documento-Referência da Conae 2010, indicando o primeiro momento de


inflexão no processo de formulação do PNE 2014, quanto às questões de gênero e
sexualidade/orientação sexual.
Fato interessante que precisa ser citado é que durante a campanha eleitoral em 2010,
Dilma Rousseff, na época candidata à Presidência da República, publicou oficialmente ao
menos duas mensagens dirigidas aos grupos religiosos cristãos na tentativa de conquistar essa
parcela do eleitorado. Na “Carta Aberta ao Povo de Deus”, Dilma assumiu o compromisso
com os cristãos, sobretudo evangélicos, de deixar para o Congresso Nacional a
responsabilidade sobre as decisões de políticas que envolviam temas como o aborto, os
arranjos familiares, as uniões estáveis, a liberdade religiosa, etc. Na “A mensagem de Dilma”,
a posição da candidata foi reiterada. Nesse sentido, compreendemos que a não inclusão dos
termos gênero e orientação sexual no texto do PL nº 8.035/2010, pelo Poder Executivo, pode
ser explicada, em parte, pelo compromisso assumido por Dilma durante a campanha eleitoral
de 2010.
Na Câmara, concomitantemente à realização de audiências públicas e reuniões com
autoridades e ministros de Estado, seminários nacionais e estaduais sobre o PNE, emendas ao
projeto foram apresentadas. Delas, 154 apresentavam os termos gênero e/ou orientação
sexual/sexualidade em seus textos. Em seu conjunto, elas contemplavam os cinco eixos
básicos da agenda internacional de gênero em educação. Além dos cincos eixos básicos,
existiam propostas sobre as temáticas dos sistemas de ensino e de políticas de reconhecimento
e de enfrentamento às formas associadas de violência e discriminação.
No entanto, mesmo diante da atuação dos movimentos feministas e LGBT e da
articulação de alguns/mas legisladores/as em torno da questão do gênero e da sexualidade na
educação, a grande maioria das emendas foram rejeitadas pela Comissão Especial Plano
Nacional de Educação, resultando no projeto com somente duas referências às questões de
gênero e sexualidade. A primeira buscava estabelecer, como diretriz do Plano, a “superação
das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de
gênero e de orientação sexual”, e a segunda, “implementar políticas de prevenção à evasão
motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de
gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão” (NOTA
TAQUIGRÁFICA DA COMISSÃO ESPECIAL PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO,
2012) .
O texto Substitutivo da Câmara ao PL nº 8.035/2010 não contemplou as exigências
expressas nos compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário, tampouco os

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próprios discursos presentes no Documento-Referência da Conae 2010. Essa etapa, portanto,


representa um segundo momento de inflexão no processo de formulação do PNE 2014, no
que diz respeito às questões de gênero e sexualidade, se tomarmos como referência as
formulações da Conae 2010.
O Substitutivo ao PL nº 8.035/11 da Câmara dos Deputados foi encaminhado ao
Senado para apreciação. A proposta do relator Senador Vital do Rêgo que rejeitava, entre
outros, as duas únicas referências às questões de gênero e sexualidade do texto substitutivo da
Câmara recebeu amplo apoio de grupos religiosos e recebeu fortes críticas dos grupos que
atuam em defesa dos direitos humanos, principalmente por dos movimentos feministas e
LGBT.
De volta à Câmara dos Deputados, foram realizadas novas audiências públicas da
qual participaram diversos atores envolvidos na matéria e debates sobre o Plano Nacional de
Educação. Mesmo diante a pressão dos movimentos sociais, de representantes de Instituições
de Ensino Superior (IES) e Deputados Federais, aprovou-se a Lei nº 13.005, que aprovava o
Plano Nacional de Educação (PNE), que foi encaminhada à presidenta Dilma Roussef e
sancionada, sem vetos, sem nenhuma referência aos termos gênero e sexualidade/orientação
sexual.

Considerações finais

Vinhos que a campanha realizada pelos conservadores fundamentalistas religiosos no


processo de formulação do PNE 2014, contra a inclusão das questões de gênero e
sexualidade/orientação sexual, pautou-se na luta contra a suposta “ideologia de gênero”, sob o
argumento de que tal perspectiva seria uma ameaça à família tradicional e que, para os
movimentos sociais, especialmente para o movimento feminista, um projeto educacional
antidiscriminatório em relação ao gênero deve se preocupar com demandas que ultrapassam a
questão do acesso, contemplando questões como a necessidade de revisão e renovação de
currículos, práticas pedagógicas, materiais didáticos, gestão escolar, entre outros de forma a
incluir as experiências e demandas específicas das mulheres.
A análise do processo de formulação do PNE 2014 nos revelou também que as
questões de gênero e sexualidade ainda são temas espinhosos para a educação nacional,
mesmo frente a extensa produção acadêmica sobre o assunto e das mobilizações dos
movimentos sociais que lutam por uma escola mais justa em termos de direitos humanos.
Consideramos que a não inclusão dos termos gênero e orientação sexual/sexualidade no Plano

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oculta as desigualdades que operam na e pelas políticas educacionais e que elas terão
implicações negativas para a educação e vidas das meninas e mulheres de nosso país.
Além disso, ao localizarmos os principais momentos de avanços significativos e
inflexões para a tentativa de introduzir a perspectiva de gênero do Plano Nacional de
Educação 2014 e as tensões entre os discursos da sociedade civil e poder público no que diz
respeito à inclusão da temática de gênero e sexualidade no Plano, algumas reflexões foram
suscitadas. Entre elas que, apesar das movimentações recentes, tanto por parte dos
movimentos feministas quanto pelo governo – antes do golpe parlamentar – para ampliar a
participação e a representação das mulheres nos espaços tradicionais de decisões políticas, o
cenário atual é pouco favorável para as mulheres quando o que está em jogo é a definição de
políticas mais inclusivas quanto às suas demandas, o que tem consequências para a
manutenção de direitos e inclusão da agenda de gênero nas políticas públicas em nosso país.
Foram nesses espaços, que na verdade sempre ofereceram obstáculos para a participação e
representação de mulheres, que ocorreram os principais pontos de inflexão apresentadas em
nossa análise.
O fato das mulheres ocuparem uma pequena minoria das cadeiras legislativas e nos
cargos de chefia do poder executivo no Brasil, por si só, não explica tais fenômenos. A
presença cada vez maior de vozes conservadoras na política brasileira e suas respectivas
ideias e noções de justiça e direitos amparadas nos discursos antifeministas se apresenta como
um fator relevante para os retrocessos atuais em termos de políticas públicas com perspectiva
de gênero no Brasil.

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A condicionalidade da educação: os paradoxos do Estado no cotidiano das titulares do


programa Bolsa Família

Isabela Vianna Pinho1

Resumo:

No presente texto serão apresentadas algumas questões fundamentais da minha pesquisa de


mestrado, cujo objeto principal se centra na condicionalidade da educação do Programa Bolsa
Família (PBF) a partir, sobretudo, do cotidiano de titulares moradoras do bairro Eduardo
Abdelnur no município de São Carlos, interior do estado de São Paulo. Como objetivo geral,
o estudo busca compreender as relações entre o cotidiano dessas mulheres e o mundo comum,
tomando como objeto central articulador dessas relações a condicionalidade da educação de
tal política. Interessa observar se as condicionalidades inibem ou, por outro lado, estimulam
as representações das titulares no mundo público; se aumentam, de fato, quem tem ou não
acesso aos direitos sociais; se segregam ou conectam essas mulheres ao mundo comum; se as
tornam ou não mais sujeitos políticos. Tendo em vista o objetivo proposto, a pesquisa é de
natureza qualitativa e propõe uma pesquisa empírica de caráter etnográfico. Espera-se
alcançar os objetivos desta pesquisa a partir do conjunto de procedimentos já consagrados nas
etnografias urbanas e institucionais, isto é, aqueles que privilegiam três frentes associadas de
investigação: as visitas e encontros de observação reflexiva de atividades cotidianas e
rotineiras, a realização de entrevistas em profundidade e a coleta de documentação de
interesse. No que se refere aos resultados obtidos até o momento da escrita deste texto, a
pesquisa encontra-se em fase de intenso trabalho de campo. Tenho frequentado o bairro três
vezes por semana para observar o cotidiano de diferentes titulares e suas famílias. Além do
residencial, também frequento o Cadastro Único, onde tenho entrevistado a chefe da divisão e
a pessoa responsável por gerir as condicionalidades de todas as famílias beneficiárias do
município. A pesquisa de campo tem, portanto, trazido resultados satisfatórios. A fase de
análise dos dados obtidos ainda é bastante preliminar, o que dificulta chegar a conclusões
propriamente ditas.

Palavras-chaves: Bolsa Família; Estado; Gênero.

As condicionalidades do Programa Bolsa Família

Com mais de uma década de existência, hoje - mais precisamente em março de 2017 -
o Programa Bolsa Família beneficia cerca de 13,6 milhões de famílias, sendo considerado o
maior programa de transferência condicionada de renda do mundo. Se multiplicarmos
rapidamente esse número de famílias beneficiadas pelo número de integrantes que elas

1
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGS/UFSCar);
mestranda; isaviannapinho@hotmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p968 968


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contêm seriam cerca de 40 milhões de beneficiários diretos e indiretos pelo programa


(estimando rapidamente uma média de três pessoas por família). O repasse somente nesse
mesmo mês de referência foi de 2,4 bilhões de reais. É importante mencionar o potencial do
programa como efeito multiplicador sobre a economia, para cada 1 real em repasse, o PIB
(Produto Interno Bruno) brasileiro cresce 1,78 reais. Ademais, vale lembrar que o orçamento
do Bolsa Família representa entre 0,3% e 0,5% do PIB.2
Na perspectiva do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), as condicionalidades
do programa consistem em alguns compromissos das famílias beneficiárias, bem como do
poder público em garantir a oferta e qualidade de serviços na saúde, educação e assistência
social. Além disso, faz parte do discurso estatal que, através do monitoramento e gestão das
condicionalidades feito pelos três níveis de governo federal, estadual e municipal, torna-se
possível identificar quadros de vulnerabilidades entre as famílias que estão com dificuldades
para acessar esses serviços públicos. Após essa identificação, deve-se encaminhá-las para a
rede de assistência social, com o propósito de que essas possam superar tal situação de
vulnerabilidade e voltar a cumprir seus compromissos. Ademais, nessa perspectiva as
condicionalidades podem contribuir para o desenvolvimento saudável das crianças e para que
os estudantes concluam a educação básica, tendo, dessa forma, melhores condições de vencer
o ciclo de pobreza (MDS, 2017).
Na prática, os responsáveis devem matricular todas as crianças e adolescentes de 6 a
17 anos na escola e a frequência escolar deve ser de, no mínimo, 85% para quem possui de 6 a
15 anos e de 75% para jovens de 16 a 17 anos. Já na área da saúde, as crianças menores de 7
anos devem ser vacinadas e fazer o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento.
As mulheres gestantes devem fazer o pré-natal e ir às consultas médicas. O acompanhamento
da frequência escolar é bimestral, já na área da saúde é semestral.
São aplicados efeitos gradativos nas famílias que se encontram “em
descumprimento” das condicionalidades. Primeiro a pessoa recebe uma advertência que não
afeta seu benefício. Se, no período de até seis meses, o descumprimento se repete, há o
bloqueio do benefício (a família fica sem receber por um mês e esse pode ser sacado no
próximo). Se depois de bloqueado, ocorrer novo descumprimento no período de seis meses, o
benefício é suspenso por dois meses sem possibilidade de reaver as parcelas. O último e mais
grave efeito é o cancelamento que só deve ocorrer após a família ter passado por
acompanhamento da assistência social. Escolhi apenas focar na condicionalidade da educação

2
Informações disponíveis em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,bolsa-familia-evita-o-colapso-de-
cidades,70001653194. Último acesso em: 30/06/2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p968 969


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por existirem mais famílias em situação de “descumprimento” dessa condicionalidade quando


comparadas às da saúde, as primeiras causam menos efeitos que as últimas, conforme
observado na rotina do cadastro único3.

A pesquisa

Este texto se propõe a apresentar algumas questões centrais da minha pesquisa de


mestrado4 ainda em andamento, cujo objeto principal se centra na condicionalidade da
educação do Programa Bolsa Família (PBF) a partir, sobretudo, do cotidiano de mulheres
titulares5 moradoras do bairro Eduardo Abdelnur6 no município de São Carlos. Já
completados quinze anos de implementação, muitos estudos se dedicaram a estudar o
programa, sobretudo pelo seu desenho institucional; aqui o olhar parte por outro caminho que
não o estatal e institucional, de espaços formais, sim das trajetórias de mulheres beneficiárias
dos programas Bolsa Família (PBF) e Minha Casa Minha Vida (PMCMV) que moram nesse
bairro. Defendo que as condicionalidades do programa foram pouco trabalhadas a partir do
cotidiano das titulares, não levando em consideração, por exemplo, a coexistência de outros
regimes normativos em suas vidas (FELTRAN, 2014).
Como objetivo, a pesquisa busca compreender, de um modo específico, as relações
entre o cotidiano de mulheres titulares do programa Bolsa Família e o mundo comum (ou
cena pública), tomando como objeto central articulador dessas relações a condicionalidade da
educação de tal política social. Específico e contextual porque a análise parte de uma única

3
Quando faço referência ao Cadastro Único, existem duas diferenças: o espaço físico de atendimento dentro da
Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social ou o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal que, segundo o site do Ministério de Desenvolvimento Social (2018), “é um instrumento que identifica e
caracteriza as famílias de baixa renda, permitindo que o governo conheça melhor a realidade socioeconômica
dessa população” e pode ser considerado a porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas
públicas. Entre os anos de 2014 e 2016 fiz estágio como entrevistadora do Cadastro Único dentro da sede da
Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social do município de São Carlos.
4
Projeto aprovado no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de São Carlos. A autora é integrante do Na Margem – Núcleo de Pesquisas Urbanas UFSCar/CEM e bolsista
CAPES.
5
As mulheres (quase sempre mães) “usuárias”, “sujeitos receptores”, “públicos-alvo”, “bolsistas”,
“beneficiárias”, “responsáveis familiares” ou “titulares” são alvo e cumprem papel chave na implementação dos
programas sociais brasileiros. Isto pode ser visto no próprio Decreto Nº 6.135, 26 de junho de 2007, artigo 6º que
se refere ao programa, “o cadastramento de cada família será vinculado a seu domicílio e a um responsável pela
unidade familiar, maior de dezesseis anos, preferencialmente mulher”. A denominação “beneficiário” é a
utilizada pelo MDS para pessoas que usufruem do programa, direta (enquanto menor dependente) ou
indiretamente (enquanto membro adulto do domicílio) e é diferente do termo “responsável familiar”. Opto aqui,
como fez GEORGES e SANTOS (2016) pelo termo “titulares” para evidenciar o fato de que elas não apenas
recebem o benefício como devem cumprir às condicionalidades, além de que elas próprias não se identificam
frequentemente com o termo do MDS. Por esses motivos expostos acima, utilizarei a desinência feminina.
6
No dia 26 de abril de 2016, as chaves do mais recente residencial em São Carlos foram entregues às 986
famílias contempladas pelo programa federal “Minha Casa Minha Vida” faixa 1.

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articulação - entre tantas outras possíveis - das titulares e o mundo comum, ou seja, a da
condicionalidade da educação. Além disso, nesse jogo de relações, me interessa mais
propriamente aquelas que conformam o que é chamado de Estado7 e, ademais, a pesquisa está
situada somente nos territórios do residencial Eduardo Abdelnur e no Cadastro Único (apenas
com a chefe da divisão e com a coordenadora municipal do PBF na condicionalidade da
educação).
Importa - através da pesquisa com caráter etnográfico que privilegia a trajetória das
titulares - mostrar os entrecruzamentos, as dinâmicas e movimentos, as relações e
articulações, os fluxos e nexos, bem como as divisões, demarcações, tensões, disputas e
conflitos entre Estado e margem, cena pública e universo cotidiano de beneficiárias, esfera
pública e privada. O próprio cotidiano e a existência dessas mulheres deflagra a centralidade
do caráter relacional, isto porque elas negociam a todo o momento, elaboram suas táticas a
partir da relação com o outro e, no limite, passam a existir relacionalmente enquanto
beneficiárias. Sustento, portanto, que a própria condicionalidade por si só é relacional. Ela
pode exercer a mediação, a interface, a articulação entre o universo das titulares e a cena
pública, entre a esfera pública e privada. Ela pode conectar, mas também pode segregar,
regular e controlar.
No que se refere aos objetivos específicos, me interessa: (a) apreender a articulação
dos marcadores de diferença (gênero, renda, origem social, geração, raça/cor, trabalho e nível
educacional) a fim de compreender os perfis das mulheres titulares; (b) analisar as interações
que se dão entre a pessoa responsável pelas condicionalidades e as titulares do programa,
observando as possíveis negociações e conflitos; (c) etnografar o cotidiano das titulares que
vivenciam ou vivenciaram situações de “descumprimento” da condicionalidade da educação,
a fim de analisar os espaços institucionais que elas circulam e agentes que mobilizam; (d)
mapear a literatura de interesse à pesquisa, ou seja, os cruzamentos entre as bibliografias de
implementação, gênero e políticas sociais.
A hipótese subjacente a pesquisa sustenta que, a partir das relações entre mulheres
titulares e o mundo público, articuladas pela condicionalidade, parecem emergir paradoxos
constitutivos ao próprio programa e, mais precisamente, ao próprio Estado. Os paradoxos

7
Essas mulheres interagem com diversos agentes (não) estatais e percorrem uma série de espaços (não)
institucionais como, por exemplo, escolas, creches, postos de saúde, secretarias municipais, CRAS, CAPS,
cadastro único, conselho tutelar, bancos, lotéricas, igrejas, delegacias, grupos criminais, polícia, etc. Dentro
desse universo do mundo comum, me interessa, sobretudo, pensar naqueles que conformam o que é denominado
comumente como Estado.

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seriam, por exemplo, a coexistência do controle e do cuidado, do empoderamento ou da


reificação das divisões de gênero, da feminilização da pobreza e da autonomia.
Tendo em vista os objetivos propostos, a pesquisa é de natureza qualitativa e propõe
uma pesquisa empírica de caráter etnográfico que dará continuidade às pesquisas
empreendidas durante minha monografia de conclusão de curso. Utilizo como universo
empírico de análise o bairro Eduardo Abdelnur e o Cadastro Único de São Carlos. A escolha
desses espaços se deve a alguns fatores: (a) pelo contato prévio - proporcionado tanto pela
experiência profissional anterior, quanto pela monografia que facilitam a entrada no campo -
com mulheres moradoras do bairro e com a coordenadora responsável pelas
condicionalidades; (b) muitas moradoras recebem o benefício do PBF; (c) o bairro ainda não
possui equipamentos públicos e, portanto, existem dificuldades de acesso a alguns serviços,
como escolas e creches; (d) o Cadastro Único pode servir como espaço mediador que permite
analisar as interações e conflitos que se dão nesse território quando é necessário resolver (ou
não) questões referentes às condicionalidades.
Espera-se alcançar os objetivos desta pesquisa a partir do conjunto de procedimentos
já consagrados nas etnografias urbanas e institucionais, isto é, aqueles que privilegiam três
frentes associadas de investigação: as visitas e encontros de observação reflexiva de
atividades cotidianas e rotineiras, a realização de entrevistas em profundidade e a coleta de
documentação de interesse. As entrevistas em profundidade têm como foco a busca por
trajetórias de vida pessoais em relação, sobretudo, com contextos familiares, espaços
institucionais e de sociabilidade, o que permitirá mapear a rede de conexões e espaços pelos
quais se circula. As entrevistas são gravadas sempre que possível e transcritas integralmente.
As incursões etnográficas são registradas em diários e notas em cadernos de campo ou ditados
ao gravador após os momentos de observação, entrevista ou coleta de documentos.
Certas técnicas de pesquisa utilizadas principalmente por/com mulheres me trazem
inspiração e servem como técnicas complementares. Como exemplo, tem-se a adesão de
fotografias como muletas de memória (SIMSON, 1992), o uso de desenhos e as oficinas de
fuxico (BANDINI,C.A.; SILVA,M.A.M, 2011). Tais técnicas podem trazer resultados
inesperados como revelar o indizível, o silêncio e resgatar as memórias mais profundas.
Esta pesquisa se insere no cruzamento das análises entre (a) implementação das
políticas sociais contemporâneas, (b) relações de gênero e (c) condicionalidades, a partir das
trajetórias de titulares. Não caberia tratar neste texto de toda a bibliografia de interesse,
portanto a próxima sessão abordará somente alguns dos conceitos-chave.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p968 972


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Estado, cotidiano, mundo comum, regimes normativos, política

Como ponto de partida, a pesquisa visa fugir tanto da imagem consolidada de Estado
como forma administrativa de organização política racionalizada, como da ideia de
esvaziamento, menor articulação e enfraquecimento das formas de regulação e pertencimento
que o constituem e que se crê não estar nas margens. Em contrapartida, a perspectiva adotada
aqui é enxergar as margens como espaços em que o Estado é formado continuamente na vida
diária, ou seja, como as práticas políticas de vida nesses espaços moldam as práticas de
regulação e disciplina do que denominamos como aparelho estatal e vice-versa. As margens
são tomadas nesta pesquisa como pressupostos necessários à existência do primeiro e não
como um espaço fora desse, não são simplesmente lugares periféricos, mas atravessam o
interior do corpo político estatal como rios que fluem através do território (DAS e POOLE,
2008; DAS, 2004; SCOTT, 2011).
Nessa perspectiva, o Estado é reformulado e reconstruído sob novas formas a todo o
momento, nas interações e negociações da vida social. Devido ao fato de ser sempre um
projeto inacabado, ele é melhor observado em suas margens. Interessa observar, portanto, o
Estado pelas práticas, lugares e linguagens que são considerados as margens territoriais,
conceituais, espaciais e/ou sociais do estado-nação (DAS e POOLE, 2008; DAS, 2004;
SCOTT, 2011).
Ao analisar os camponeses da Malásia, James Scott (2011) desenvolve o conceito de
“resistência cotidiana” como expressão da luta diária entre sujeitos das classes dominadas e
aqueles que lhe extraem trabalho, comida, impostos, rendas e juros. Essa resistência “se
expressa na forma de corpo mole, dissimulação, falsa aquiescência, furto, ignorância fingida,
calúnia, incêndio ou sabotagem” (SCOTT, id.: p.243). Essas lutas, na maioria das vezes, não
necessariamente consistem no caráter de confrontação coletiva e, da mesma forma, não são
sempre dirigidas à fonte imediata de apropriação. Elas não têm objetivos simbólicos de
confrontação com a autoridade ou as normas da elite, de contestar as hierarquias e o poder.
Estão mais preocupadas, de outro modo, com ganhos imediatos de satisfação e de
necessidades básicas. Isto não significa dizer, na visão do autor, que os dominados se
submetem passivamente a ordem estabelecida, nem que exista uma “hegemonia” ideológica.
Pelo contrário, nota-se em sua argumentação a existência de agencia nos processos da vida
diária, nos atos de resistência.8

8
Essa referência foi fundamental para pensar nas lutas diárias de mulheres beneficiárias do PBF, elas que
circulam pelos labirintos (não) estatais e que são mobilizadas e mobilizam diversos agentes (não) institucionais.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p968 973


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Pensar por essas perspectivas permite que se quebre e que se abra a solidez
geralmente atribuída ao Estado. Além disso, elas são importantes para compreender como o
Estado gerencia as populações nas margens, mas também como aqueles que vivem nelas
navegam pelas lacunas existentes entre as leis e sua implementação, como negociam em torno
das linhas tênues entre o legal e o ilegal. É precisamente nas brechas que parecem incoerentes
que as pessoas encontram recursos para enxergar o Estado simultaneamente como “ameaça e
garantia”. No reino da ilegibilidade é possível ler como o Estado se reencarna sob novas
formas (DAS, 2004).9
Dessa forma, a escolha do termo “cotidiano” ajuda a pensar nas lutas diárias de
mulheres titulares que vivenciam problemas relacionados à condicionalidade da educação no
PBF. Elas podem utilizar-se de diversos instrumentos ou recursos a depender das negociações
cotidianas, ora podem significar consentimento, ora resistência, entre outras possibilidades, de
forma que se reconstroem social e subjetivamente nesse processo dinâmico da vida social.
Convém, ainda, discutir brevemente sobre as noções de mundo comum, regimes
normativos, política e direitos sociais. Esses que são categorias significativas para a pesquisa,
pois me interessa observar no cotidiano das mulheres titulares se as condicionalidades inibem
ou, por outro lado, estimulam suas representações no mundo público; se restringem, de fato,
quem tem ou não acesso aos direitos sociais; se segregam ou conectam essas mulheres ao
mundo comum; se as tornam ou não mais sujeitos políticos.
Primeiramente, as noções de mundo comum, mundo público ou cena pública
sustentadas na pesquisa levam em consideração principalmente as formulações de Arendt
(1987). A autora os designa como um espaço de visibilidade, da aparência dos indivíduos no
espaço público que ao menos tempo que os separa, estabelece uma relação entre eles,
conectando-os e separando-os simultaneamente. Existe uma sensação de pertencimento a um

Scott (2011) coloca em evidência a agência e a resistência nos sujeitos ditos “dominados” em situações como,
por exemplo, o silenciamento ou quietude. Esses últimos que geralmente são vistos como formas de submissão,
consentimento ou cumplicidade. A utilização do termo “resistências cotidianas” na minha pesquisa, entretanto,
pode soar com certa unilateralidade, como se essas mulheres estivessem sempre em confronto e resistindo ao
Estado, o que não necessariamente acontece. Por esse motivo, optei por não utilizar “resistências cotidianas”, e
sim o termo “cotidiano” para pensar o universo privado, suas trajetórias, seus cotidianos. Devo reconhecer
alguns problemas, sobretudo o risco de preservar as divisões estanques, clivagens ou bipolaridades que busco
fugir e que estou sempre em alerta nesta pesquisa.
9
Para Das (2004), o Estado possui um aspecto paradoxal, uma dupla existência que oscila entre um modo
racional de ser e um modo mágico de ser. Enquanto entidade racional, o Estado está presente na estrutura de
regras e regulações incorporadas na lei e instituições necessárias à sua implementação. Nas margens da vida
cotidiana, o Estado adquire uma presença através de práticas locais que a autora chama de “mágicas”. O Estado
institui formas de governança através das tecnologias da escrita e institui, simultaneamente, a possibilidade da
fraude, imitação e encenação mimética de seu poder. Na ilegibilidade da lei e na iterabilidade da escrita – na
situacionalidade de enunciações – se faz um modo por meio do qual o poder estatal é produzido e,
simultaneamente, no reino da ilegibilidade que é possível ler como o Estado reencarna sob novas formas. Este é
o paradoxo que a autora alerta.

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mesmo espaço comum, mas nesse existem lugares ou intervalos diferentes a serem ocupados.
Ademais, é o espaço da palavra e da ação, da liberdade, da política.
Para Feltran (2014), há um “repertório de regimes normativos” – estatal, do “crime”
e religioso - que coexistem nas periferias urbanas e que ordenam a vida social. Embora os três
sejam distintos e vivam em tensão entre si, eles encontram coesão no fato de regularem
mercados monetarizados, o dinheiro que passa a mediar centralmente à relação entre os
grupos recortados. Dentro dessa cena pública explicada acima, interessa analisar
principalmente a relação das mulheres com o regime normativo estatal, porém suas relações
com outros regimes também devem ser observadas e descritas quando for necessário.
Utilizo aqui a categoria política baseada principalmente no Rancière (1995, 1996a,
1996b, 2005) que, em sua visão, se institui por um dissenso ou desentendimento. Nesses
termos, a política não se restringe às disputas de poder entre atores em espaços apenas
institucionais. Ela pressupõe, na realidade, um conflito anterior, subjacente à própria
instituição desses espaços e atores, ou seja, na própria conformação dos critérios, dos modos
de ser, das partes e divisões, na constituição mesma do mundo público. Como afirma Feltran
(2011), a política se constrói justamente no jogo de trânsitos e bloqueios, entre os espaços
locais e privados e, ao mesmo tempo, em dimensões para muito além deles.

Os “novos” programas sociais e as relações de gênero

Os “novos” programas sociais latino-americanos implementados a partir dos anos


noventa podem ser considerados, na visão de Santos (2016), como pontos de convergência
entre dois campos distintos: o da proteção social em âmbito nacional e o do desenvolvimento
social em âmbito internacional. A autora defende que existe uma base comum entre esses,
essencial na efetivação de tais programas: a existência de uma gestão sexuada, fundamentada
principalmente na “divisão sexual do trabalho” e na disposição feminina para o cuidado. O
aspecto que aproxima esses dois campos, portanto, é a emergência de políticas “sensíveis” às
relações de gênero.
Com referência às novas iniciativas brasileiras e latino-americanas que visam o
combate à reprodução da pobreza e, mais especificamente, das políticas de assistência social e
saúde, a família se constitui como porta de entrada e referência de gestão (MIOTO, 2010;
SARTI, 2010; SANTOS, 2016). A família é a unidade de intervenção e a mulher, na condição
de mãe, a responsável familiar. Dessa forma, os “novos” programas sociais foram desenhados
com base na mediação feminina, as mulheres cumprem um papel “pivô” (SANTOS, 2016).

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Georges e Santos (2013), através da análise de uma política específica de assistência


social no município de São Paulo, demonstram a existência de uma gestão social fortemente
caracterizada pela presença feminina, com trabalhos voltados aos “cuidados”, além de serem
elas as responsabilizadas pela interface entre as esferas pública e privadas. Essas mulheres
assistidas são, ao mesmo tempo, alvo da atividade de moralização e transformação social.
Sempre na condição de mães ou esposas, nunca como indivíduos independentes, elas seguem
as orientações dadas pelos programas e serviços para o fortalecimento de vínculos familiares e
cumprimento do dever parental de garantir a educação e saúde das crianças. Ainda segundo as
autoras, existe certa forma de operacionalização de uma gestão sexuada do social e da pobreza
nas políticas assistências contemporâneas voltadas às famílias, essa que produz novas formas
de desigualdade, especialmente entre as mulheres. Isso faz com que se ofusque, na visão das
autoras, a escassez de medidas reais como, por exemplo, o acesso à qualificação, trabalho e
creches.
Seguindo a discussão de gênero e políticas sociais, através de pesquisa com um
survey aplicado na cidade do Recife, Lavinas et al. (2012) buscou analisar os efeitos do PBF
na autonomia de mulheres, essas que vivem nos estratos mais pobres da população, com graus
de escolaridades incompletos e prevalência de famílias monoparentais. Para a autora, embora
haja um real e indiscutível ganho de bem-estar às famílias beneficiárias, no que se refere às
melhoras nas relações intrafamiliares e na qualidade de vida, o PBF não tem efeito direto
sobre o empoderamento de gênero.
Já a autora Molyneaux (2006) analisa o Programa mexicano de Transferência
Condicionada de Renda criado em 1997, nomeado como “Oportunidades”. Em sua visão, ele
exemplifica o princípio da “maternagem”, questão central dos novos programas de combate à
pobreza na América Latina. As crianças são o foco central e as mulheres estão incorporadas
dentro de seu desenho, porém, de uma forma que o sucesso desses depende em grande medida
à divisão de gênero. Embora exista um empoderamento referente ao subsídio financeiro, a
autora argumenta que o programa reforça a divisão social que reproduz as assimetrias de
gênero.
Finalizando essa breve discussão, na visão de Sorj (2014) não é novidade no Brasil a
focalização das políticas sociais nas mulheres, elas frequentemente foram o alvo de programas
sociais de alívio à pobreza. Esses que, em sua visão, são baseados em premissas sobre a
posição assimétrica de gênero (mães como dependentes e homens como provedores da
família). Porém, a partir dos anos 2000, o lugar das mulheres em tais programas se amplia e
se modifica. Segundo ela, esse novo modelo dá ênfase a mecanismos participatórios de

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provisão do bem-estar, noções de empoderamento dos pobres e de corresponsabilidade das


comunidades no desenvolvimento social local. Tal modelo é contrário ao anterior de
cidadania, onde os pobres eram vistos em situação de passividade e dependência do Estado.
Ainda segundo Sorj (2014), esses novos programas baseiam-se na mobilização de
mulheres e de normas culturais de feminilidade e maternidade, seja como operadoras ou
beneficiárias. Há um paradoxo nessas políticas: ao mesmo tempo em que promovem uma
reforma da subjetividade ancorada no desenvolvimento de self ativo e individualizado das
mulheres, essas se chocam com as normas tradicionais de gênero que colocam as mulheres
como “cuidadoras dos outros”.

Considerações Finais

O presente texto buscou apresentar, de forma sintética, algumas das questões centrais
da minha pesquisa de mestrado, como o objetivo, metodologias, conceitos-chave e discussão
teórica. No momento da escrita deste texto, a pesquisa encontra-se em fase de intenso trabalho
de campo que tem trazido reflexões e resultados surpreendentes, porém as análises ainda não
são tão consistentes, o que me fez optar por não as publicar no momento. Frequento o bairro
pelo menos três vezes por semana, acompanho o cotidiano de quatro mulheres e suas
respectivas famílias, fiz entrevistas gravadas e diversas anotações em diários de campo,
coletei desenhos das titulares e de seus filhos e acompanhei algumas vezes o trajeto de ônibus
para leva-los e busca-los nas creches e escolas.
No Cadastro Único também entrevistei a coordenadora do PBF na condicionalidade da
educação e com a chefe da divisão em três encontros distintos. A pesquisa tem trazido
resultados muito satisfatórios quando ao avanço etnográfico; as análises, entretanto, ainda
carecem de maturidade, por isso a escolha de não as apresentar aqui.

Referências
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Representação Feminina – Entraves ao desempenho eleitoral de mulheres

Carolinne Landeira Torres1

Resumo: O objetivo do artigo foi verificar a escassez de recursos financeiros de campanha e de


tempo de televisão no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) como entraves à
performance feminina no pleito eleitoral de 2014. Tomando como premissa a importância do acesso
de mulheres a cargos de decisão, foram analisados os entraves encontrados para o desempenho
eleitoral das mesmas. A pesquisa apresenta dados desses recursos de campanha para os deputados
estaduais e federais do Rio de Janeiro, disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Doxa-
IESP, como fatores institucionais que explicam porque a política de cotas no Brasil não tem resultado,
efetivamente, em uma maior participação feminina em cargos eletivos. Essa investigação se vale de
ferramentas estatísticas para realizar análises comparativas entre a disponibilidade de recursos dos
candidatos vitoriosos e das candidatas. Uma vez que se verifica o impacto positivo da disponibilidade
de recursos de campanha nas chances eleitorais na candidatura para deputado federal e estadual do
Rio de Janeiro em 2014, fica evidente que é preciso ir além do percentual mínimo de candidatura por
sexo estabelecido pela Lei de Cotas, promovendo mecanismos que assegurem a competitividade das
candidatas. A relevância do trabalho residiu na conclusão de que é preciso garantir insumos e apoio
dos partidos para as mulheres e suas candidaturas, que atualmente compõe um contingente forjado
e meramente formal.

Palavras-chaves: sub-representação feminina; desempenho eleitoral; gênero e política.

1
Mestranda em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense; carolinnetorres@msn.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p979 979


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Introdução
Em um processo de naturalização das diferenças entre gêneros, construídas
socialmente, deu-se a dicotomia entre a esfera pública e a privada.. Nancy Fraser (2007)
critica a ideia de essência dos gêneros como responsável por essa divisão, apontando a criação
e manutenção da mesma como fenômeno social.
Ao problematizar essa visão hegemônica, Fraser (2007) acaba questionando a própria
noção do que é político. Ao demandar a democratização das relações de poder, pleiteia-se
condições nas quais a igualdade seja efetiva e as diferenças sejam admitidas, ao invés de
hierarquizadas (MIGUEL; BIROLI, 2013). Parte-se do reconhecimento da necessidade de
reversão das injustiças históricas que definiram o presente panorama de exclusão (PHILIPS,
1995; 1998).
A teoria política feminista destaca que a inclusão de mulheres nas esferas da vida
pública não foi garantida pela ampliação do conceito de cidadania ou pelo processo de
universalização dos direitos políticos. Apesar dos reconhecidos avanços, ainda existe
desigualdade no acesso das mulheres aos espaços decisórios.
Essas desigualdades de acesso à participação política são um “defeito da democracia”
(JONES, 2008). Conforme aponta Clara Araújo (2009), a esfera política permanece como um
reduto masculino, no qual mulheres são sub-representadas. Estatísticas mundiais2, como
demonstradas por Kenworth e Malami (1999), apontam os baixos índices da presença de
mulheres em cargos eletivos.
Reconhecendo o acesso aos cargos de representação política, como decisivo para a
participação, negociação e tomada de decisões nas democracias contemporâneas, foi
idealizada a política de cotas de gênero, com finalidade de incorporar as mulheres na política
institucional, que antes eram grupo marginalizado (PHILIPS, 1998). O objetivo seria,
portanto, reparar o ingresso tardio das mulheres na arena política-institucional, estabelecendo
um percentual mínimo de candidaturas que garantisse sua participação nas disputas eleitorais.
Com essa percepção, foi elaborada a Lei n° 9.100, de 29 de setembro de 1995, que
definia um mínimo de 20% de candidaturas femininas nas eleições municipais. Dois anos
depois, a Lei n° 9.504, de 30 de setembro de 1997, fixava a cota para as eleições
proporcionais no Brasil, para um mínimo de 25% e máximo de 75%. Em seguida, a Lei n°
12.034, de 19 de setembro de 2009, conhecida como a Lei de Cotas, surge com alterações na
redação da lei anterior, alterando os percentuais para 30% e 70%: “Artigo 3º (...) § 3º - Do

2 A proporção de mulheres em assentos parlamentares em 1998 era de 6,6% no Brasil, 2,5% no Paraguai e 10,9% na França.

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número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação
preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo”. (BRASIL, Lei n° 12.034/2009)
A Lei n° 12.034/09 visa promover uma minirreforma, instituindo novas disposições
para as disputas eleitorais, defendendo e garantindo participação feminina. Para isso, além de
aumentar a cota mínima de candidaturas de mulheres, a lei fixa uma cota mínima de repasse
de 5% dos recursos recebidos do Fundo Partidário. Esses recursos devem ser mobilizados em
prol da divulgação e promoção da participação feminina na política. Ademais, fixa um
percentual mínimo de 10% do tempo do HGPE destinado à disseminação e incentivo da
participação política feminina.
Apesar de estarem em vigor, os percentuais mínimos de candidatura por sexo são
interpretados como meramente sugestivos, não sendo respeitados pelos partidos. Além disso,
a Lei regulamenta as candidaturas de uma perspectiva formal, não assegurando recursos que
potencializem a campanha eleitoral feminina ou instrumentos que garantam posições
competitivas. Dessa maneira, mesmo quando cumprida, a adoção uma cota mínima não
assegura mais do que um contingente forjado de candidaturas femininas.
Ao analisar o efeito das cotas adotadas em onze países da América Latina, Mala Htun
(2000) aponta que a presença feminina nos Parlamentos só atingiu o nível definido pela cota
em dois casos: o Senado do Paraguai e a Câmara dos Deputados da Argentina: “(...) [na]
maioria dos países, a perversa combinação do sistema de lista aberta, a inexistência de
obrigatoriedade de posicionamento competitivo e o pequeno tamanho da circunscrição
eleitoral reduz significativamente a eficácia de uma política de cotas”. (HTUN, 2001)
Conforme a autora aponta, o endosso às candidaturas femininas – ou a falta dele – se
soma às características de um sistema partidário que mantém o status quo. Em um sistema de
lista fechada, o partido ordena a lista e pode priorizar mulheres ou garantir que a campanhas
de ambos os gêneros sejam equilibradas. Em um sistema com alta magnitude eleitoral, as
chances de eleição de mulheres aumentam pelo aumento de vagas disponíveis. Além disso,
um sistema como o argentino, com a obrigatoriedade de posição competitiva na lista para as
mulheres, garante-se que as candidaturas femininas não sejam meramente para preenchimento
de cotas.
Sendo de lista aberta, o sistema brasileiro se caracteriza pela intensa competição no
interior do partido, já que quem ordena os candidatos é o próprio eleitorado. Na ausência de
mecanismos que garantam um posicionamento competitivo das mulheres, os partidos não
podem ordenar a lista de maneira equilibrada, fazendo com que o desempenho eleitoral de

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mulheres dependa somente do eleitorado. Esse conjunto de elementos do sistema de lista


aberta acaba minando a eficácia da Lei.
Para além da ineficácia da Lei de Cotas, o presente trabalho concentrar-se-á no efeito
dos aspectos políticos no desempenho eleitoral feminino. Esses fatores focam na atuação das
instituições partidárias e eleitorais, assim como na influência do sistema de representação
(BOLOGNESI, 2012). Assim como as características do sistema eleitoral, as dificuldades
encontradas pelas mulheres na arrecadação de financiamento e na garantia de apoio dos
partidos políticos influenciam nos resultados obtidos.
Admitindo que nas democracias modernas, a representação política é viabilizada
através das eleições, disputadas na estrutura de partidos, a dimensão de interesse da presente
pesquisa será a institucional. Partindo da concepção de que os partidos importam e são os
canais legítimos de acesso ao poder (KATZ; MAIR, 1995). Clara Araújo (2005) atribui a
essas instituições a incorporação ou veto de indivíduos e proposições.
Sendo assim, os partidos possuem influência na eleição de mulheres desde o momento
de suas candidaturas. Dessa forma, garantir apoio e recursos das organizações partidárias se
caracteriza como elemento decisivo para a disputa e para o êxito nas eleições. Cabe, portanto,
verificar se o apoio à candidatura de mulheres constitui-se como parte da estratégia dos
partidos brasileiros, ou se essas organizações reproduzem a lógica de dominação masculina
em sua engenharia eleitoral.
Nesse sentido, a próxima seção vai ser dedicada à descrição da metodologia
empregada na pesquisa realizada. No segmento seguinte, discute-se a literatura acerca do
desempenho eleitoral, visando compreender as variáveis que potencializam as chances de
vitória. Em seguida, caberá a análise dos dados de cumprimento da Lei de Cotas e de
disponibilidade de recursos de campanha nas eleições de 2014 para os cargos de Deputado
Federal e Estadual do Rio de Janeiro.
Verificar-se-á a hipótese da relação entre a variável dependente de desempenho
eleitoral e as variáveis independentes de disponibilidade de receita de campanha e de tempo
de televisão no HGPE. À conclusão competirá utilizar os dados como evidência de que, sem
um sumo apoio dos partidos políticos, as candidaturas femininas permanecerão sendo pouco
competitivas, atrasando o processo de inserção das mulheres na esfera política.

Metodologia
Na intenção de contribuir para a literatura sobre sub-representação feminina, a
delimitação escopo da pesquisa foi orientada pela percepção de uma lacuna sobre a realidade

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brasileira do impacto dos partidos nas candidaturas femininas, por conta dos recursos de
campanha disponibilizados pelos mesmos. Aqui, cabe verificar de que maneira os partidos
brasileiros contribuem para a manutenção do quadro de sub-representação feminina.
No que tange à delimitação do tempo, as análises centrar-se-ão nas eleições de 2014,
na tentativa de conciliar a intenção de produzir uma análise atualizada à indispensabilidade de
um suporte de dados. Por conta da disponibilidade de dados e de tempo, o foco do presente
trabalho é nas candidaturas a deputados federais e estaduais do Rio de Janeiro.
Na análise de dados, caberá aplicar testes estatísticos, verificando a existência de
associação3 entre a variável dependente e as variáveis independentes do presente estudo,
sendo a primeira o desempenho eleitoral feminino, e as últimas os recursos de campanha.
Uma vez que os métodos estatísticos forem utilizados, pretende-se negar a hipótese nula de
independência entre as variáveis, apontando o tempo de televisão no Horário Gratuito de
Propaganda Eleitoral e a receita de campanha como variáveis que influenciam o desempenho
eleitoral. Além disso, a pretensão é calcular uma taxa de sucesso eleitoral, mensurando se o
sexo é condição determinante para o desempenho.
Os dados a que se refere, foram coletados em diferentes fontes. Os dados sobre as
candidaturas, receita de campanha e votação foram extraídos dos sistemas de bases de dados
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), DivulgaCand4, Sistema de Prestação de Contas
Eleitorais (SPCE)5 e Repositório de dados eleitorais6. Filtrando a base do sistema pelos
candidatos e candidatas aptos à disputa das quarenta e seis vagas a deputado federal e das
setenta vagas a deputado estadual do estado do Rio de Janeiro, obteve-se um universo de 8637
candidaturas federais e de 17138 candidaturas estaduais.
As informações a respeito do tempo de televisão no Horário Gratuito de Propaganda
Eleitoral são dados processados das gravações cedidas pelo Laboratório de Estudos Eleitorais,
em Comunicação Política e Opinião Pública – Doxa. Para isso, foram cronometrados os
tempos de televisão de cada candidato nos Programas exibidos. Compilando as informações
supracitadas, foi possível construir uma base de dados. Aqui cabe ressaltar, que na variável de

3 Conceito estatístico em que a ocorrência de uma variável influencia na ocorrência de outra.


4 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Divulgação de candidaturas - DivulgaCand 2014. Disponível em:
<http://www.tse.jus.br/ eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2014/divulgacao-de-candidaturas-divulgacand-2014>. Acesso
em: 21 mar 2016.
5 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Sistema de Prestação de Contas Eleitorais. Disponível em
<http://www.tse.jus.br/eleicoes/ eleicoes-anteriores/eleicoes-2014/prestacao-de-contas-eleicoes-2014/sistema-de-prestacao-
de-contas-eleitorais-spce>. Acesso em: 21 mar 2016.
6 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Repositório de dados eleitorais. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/ eleicoes/

estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais>. Acesso em: 21 mar 2016.


7
Dentre esses, 81 candidatos não prestaram contas e 73 prestaram sem lançamento de receita.
8
Dentre esses, 213 não prestaram conta e 123 prestaram sem lançamento de receita.

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situação pós-pleito, visando os interesses da pesquisa, as categorias de ‘eleito por média’ e


‘eleito por quociente partidário’ foram unificadas como ‘eleito’. Na mesma variável, as
categorias ‘não eleito’ e ‘suplente’, foram unificadas como ‘não eleito’.
O teste utilizado foi o de Wilcoxon, aplicado para comparar populações. Pontes (2000)
e Oliveira (2007) definem esse teste como não-paramétrico - ou de distribuição livre -,
frequentemente utilizado para testar a diferença entre duas populações. O mesmo baseia-se
nas diferenças de dados ordenados conforme o seu valor onde cada posto – diferença - recebe
o sinal da diferença original. O resultado é um “p-valor”, que quando inferior a 0,05
representa o descarte da hipótese nula de independência entre as variáveis.

O desempenho eleitoral feminino


Apesar da ausência de consenso sobre as causas da permanência da sub-representação
feminina, a ineficácia da Lei de Cotas – mesmo depois de vinte anos de adoção da mesma - é
um denominador comum (MIGUEL, 2000; ALVES, 2005; ARAÚJO, 2001). A percepção
comum é de que a ausência de punição ou restrição às coligações ou partidos que não atingem
as cotas definidas, em adição ao aumento do número de candidaturas permitidas (de 100%
para 150% das vagas), reduzem o efeito da mesma.
Ao afirmar que “é preciso muito mais do que um formalismo como as cotas de gênero
para que as mulheres tenham seu espaço garantido nos partidos políticos de forma ativa e não
com números insignificantes”, Bruno Bolognesi (2012) levanta a fragilidade da Lei de Cotas,
mediante a conservação do comportamento dos dirigentes partidários.
Além do controle das candidaturas, os dirigentes partidários e os partidos influenciam
também no sucesso eleitoral. Partilhando do reconhecimento do impacto do financiamento de
campanha (PEREIRA; RENNÓ, 2001) e do tempo de televisão no Horário Gratuito de
Propaganda Eleitoral (CERVI; MASSUCHIN, 2011) nas condições de desempenho eleitoral,
torna-se notória sua interferência no resultado das eleições. Incumbidas da divisão dos
recursos partidários de campanha, as lideranças partidárias podem impactar diretamente nas
chances de sucesso dos candidatos ao pleito eleitoral.
A investigação da relação entre os gastos de campanha e o desempenho eleitoral tem
despertado a atenção da Ciência Política (GLANTZ; ABROMOWITZ; BURKHART, 1976).
Na medida em que viabilizam a produção de material de campanha, a contratação de equipe
qualificada, o aluguel de estruturas físicas para os eventos de campanha, entre outras
vantagens, os recursos financeiros de campanha claramente interferem no desempenho
eleitoral. Visto que as campanhas eleitorais podem atingir um custo elevado, na tentativa de

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divulgação do candidato e de suas plataformas, a disponibilidade de receita se configura


enquanto aspecto indispensável para o desempenho eleitoral.
Quanto à visibilidade, Emerson Cervi e Michele Massuchin (2011) apontam o HGPE
como o marco inicial do momento em que as eleições – e a política, no geral - começam a
fazer parte do cotidiano do eleitor comum. Ao possibilitar um diálogo direto com o
telespectador, em sua casa, o Programa Político Partidário propicia uma aproximação entre os
eleitores e os candidatos que ali aparecem, permitindo que esses últimos divulguem seu
partido e informem suas propostas.
Sendo assim, para o eleitor racional (DOWNS, 1957) a televisão assume papel
fundamental na transmissão de informações sem altos custos de transação, impactando na sua
tomada de decisão. Por essa razão, o HGPE é utilizado para exposição da ideologia e dos
valores do partido, assim como de apresentação das propostas dos candidatos (ALDÉ, 2004).
Sendo assim, os candidatos que dispõem de mais tempo de televisão acabam conquistando
mais alcance e impacto sobreo eleitorado. Os Programas contribuem para a composição do
ambiente informacional utilizado pelo eleitor para conceber suas preferências políticas.
Dessa forma, fica claro que candidatos que não possuem endosso financeiro ou tempo
de televisão no HGPE, sejam estes homens ou mulheres, acabam reduzindo suas chances de
desempenho eleitoral. Sobre a discrepância entre homens e mulheres dos recursos de
campanha, Clara Araújo (2009) aponta as dificuldades encontradas pelas mulheres na garantia
de redes de apoio e de financiamento como obstáculos às suas candidaturas e às suas chances
de vitória. Quanto ao tempo no HGPE, Emerson Cervi (2006) mostra a sub-participação das
mulheres nos programas políticos, nos quais essas estão presentes em poucos segmentos e
durante pouco tempo.
Sendo assim, a literatura ilustra a indispensabilidade do financiamento e visibilidade
para o desempenho eleitoral. Nesse sentido, aponta uma falha no posicionamento dos partidos
no que tange à distribuição de recursos que tornem competitivas as candidaturas femininas.
Uma vez que os recursos divididos funcionam como um jogo de soma zero, ao disponibilizar
a maior parte desses recursos para os candidatos, os partidos vêm fazendo com que as
mulheres se vejam obrigadas a competir em um cenário discrepante e desproporcional.

A eleição de 2014
Para o cargo de deputado federal do Rio de Janeiro, o Tribunal Superior Eleitoral
aprovou, em 2014, 863 candidaturas como aptas. Dessas, somente 228 eram de mulheres,

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correspondendo a 26,4%, ficando, portanto, aquém do definido pela Lei de Cotas. Na


dimensão dos trinta e dois partidos que disputaram vagas, somente onze atingiram o
percentual mínimo de 30%. Para o cargo de deputado estadual do Rio de Janeiro em 2014,
foram aprovadas 1713 candidaturas, dentre as quais somente 491 eram de mulheres,
correspondendo a 28,6%, se mantendo abaixo do estipulado pela Lei 12.034/2009. Entre os
31 partidos que apresentaram candidaturas, só quatorze alcançaram o percentual mínimo
definido pela Lei de Cota.
Nesse pleito, dezoito partidos alcançaram o quociente partidário necessário, elegendo
ao menos um de seus candidatos a deputado estadual. Dos setenta eleitos, somente oito eram
mulheres: Cidinha Campos (PDT), Tia Ju (PRB), Zeidan (PT), Delegada Martha Rocha
(PSD), Daniele Guerreiro (PMDB) e Lucinha (PSDB), Marcia Jeovani (PR) e Enfermeira
Rejane (PC do B).
Dentre essas candidatas, Marcia Jeovani e Daniele Guerreira foram eleitas com a
herança política de seus maridos - Miguel Jeovani, prefeito de Araruama e Gelsinho
Guerreiro, prefeito de Mesquita. Cidinha Campos, Enfermeira Rejane e Lucinha são políticas
de carreira que já contavam com mandatos externos, buscando em 2014 a reeleição. Tia Ju,
por sua vez, contou com o apoio massivo da Igreja Universal, angariado por Marcelo Crivella.
Além disso, contavam com um endosso significativo dos seus partidos, no que tange ao tempo
de televisão no HGPE e também no que concerne às suas receitas de campanha.
Já na disputa federal, dez coalizões ou partidos atingiram o quociente partidário9,
elegendo pelo menos um de seus candidatos. Dentre quarenta e seis eleitos, somente seis eram
mulheres: Jandira Feghali (PC do B), Benedita (PT), Cristiane Brasil (PTB), Soraya Santos
(PMDB), Rosângela Gomes (PRB) e Clarissa Garotinho (PR). Aqui, cabe salientar que dentre
as eleitas a deputadas federais, temos cinco políticas de carreira, já que Soraya Santos é a
única que nunca possuiu mandatos externos. Além disso, duas delas construíram sua carreira
com herança política de seus pais – Cristiane Brasil, filha de Roberto Jeferson e Clarissa
Garotinho, filha de Anthony Garotinho. Assim como no cenário estadual, as deputadas eleitas
dispunham de visibilidade no HGPE e recursos financeiros de campanha.
Cabe, em seguida, mensurar a distribuição das candidaturas exitosas ou não por sexo,
para que em seguida seja calculada uma taxa de sucesso das candidaturas, baseada no cálculo
do percentual de eleitos sobre os candidatos. Nas eleições de 2014 para deputado federal do
Rio de Janeiro, a taxa de sucesso dos homens foi de 6,3%, enquanto a das mulheres foi de

9 É calculado pela divisão do total de votos válidos em cada partido pelo quociente eleitoral.

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2,6%. Na dimensão estadual, a taxa de sucesso das candidatas foi de 1,6%, comparada à taxa
de 5% dos homens.
Considerando a situação pós-pleito como variável dependente e o sexo do candidato
como variável independente, foi realizado um teste estatístico de associação, que no caso
federal teve o p-valor de 0,03, enquanto no caso estadual teve o p-valor de 0,004. Sendo
assim, a hipótese nula de independência entre as variáveis está negada, confirmando que nas
eleições de 2014 a variável de sexo do candidato possuía impacto em seu desempenho
eleitoral.
Uma vez evidenciada a influência do sexo do candidato sobre suas chances eleitorais,
cabe verificar o impacto das duas ordens de recursos para compreender tanto a contínua sub-
representação feminina, quanto o desempenho bem-sucedido de algumas mulheres no pleito
eleitoral de 2014. Para isso, além de executar um teste de estatístico de associação,
comparando a disponibilidade de recursos entre os candidatos eleitos e não eleitos, cabe
ilustrar a disparidade de recursos entre os candidatos e as candidatas.
Nesse sentido, o Gráfico 1 evidencia a disparidade de tempo de televisão no HGPE
entre os candidatos e candidatas a deputado federal. O gráfico possibilita, através das médias,
a visualização da desproporção da disponibilidade de tempo de televisão no Horário Gratuito
de Propaganda Eleitoral entre homens e mulheres, ilustrando o posicionamento dos partidos
na distribuição de tempo de televisão. No que tange à disputa estadual, o Gráfico 2 reproduz a
mesma realidade: diferença significativa entre homens e mulheres na distribuição de tempo de
televisão pelos partidos políticos e coligações.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p979 987


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Gráfico 1- Gráfico de médias do Tempo de TV em segundos no HGPE para deputado federal por sexo
nas eleições de 2014

Gráfico 2 – Gráfico de médias do Tempo de TV em segundos no HGPE para deputado estadual por
sexo nas eleições de 2014

Gráfico de médias
Gráfico de médias
40

14
35

12
30
Média em Tempo de TV

Média de Tempo de TV

10
25
20

8
15

6
10

Feminino Masculino Feminino Masculino

Sexo Sexo

Fonte: Processamento da autora de dados do Tribunal Superior Eleitoral e do DOXA- IESP/Uerj.

Na intenção de testar essa relação, a situação pós pleito eleitoral foi analisada
enquanto variável dependente e o tempo de televisão no HGPE – em segundos-, enquanto
variável independente. Por conta da natureza da distribuição dos dados, que não segue uma
distribuição normal, contando com a presença de diversos outliers10, coube utilizar a
abordagem não paramétrica. Com a presença de apenas duas categorias (Eleito/Não Eleito) e
uma variável quantitativa (tempo de televisão no HGPE em segundos), o teste de Wilcoxon
foi realizado.
Ao submetê-las ao teste de Wilcoxon, no caso dos deputados federais foi encontrado o
p-valor de 0,00000000000000022, negando a hipótese nula de independência. No caso dos
deputados estaduais, o p-valor encontrado também foi de 0,00000000000000022,
evidenciando uma relação significativa entre as variáveis. Em suma, em ambas as disputas, a
disponibilidade de tempo de televisão influenciou o desempenho eleitoral do candidato ou
candidata.

10 Observação com grande afastamento das demais informações da série, valor atípico.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p979 988


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Sobre a influência da receita de campanha no desempenho eleitoral dos candidatos, o


Gráfico 3 demonstra a discrepância do gozo de recurso financeiro de campanha entre as
mulheres e os homens. Aqui, o gráfico ilustra a diferença significativa entre as médias dos
homens e das mulheres, apontando o esperado: os candidatos a deputado federal possuíam
grande contingente de recursos, enquanto as mulheres não obtiveram êxito na captação de
receita.

Gráfico 3 - Gráfico de médias de receita de campanha em reais para deputado federal por sexo nas
eleições de 2014

Gráfico 4 – Gráfico de médias de receita de campanha em reais para deputado estadual por sexo nas
eleições de 2014

Gráfico de médias
5e+05

Gráfico de médias
200000

4e+05
Média de Recursos

3e+05
150000
Média em recurso

2e+05
100000

1e+05
50000

Feminino Masculino Feminino Masculino

Sexo Sexo

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.

No cenário estadual, o Gráfico 4 aponta para um quadro invertido dessa disparidade,


isso, por conta da presença de outliers11 nas receitas de campanhas estaduais femininas, que
acabam por distorcer os números encontrados. Para ir além da nítida disparidade visual, foi
realizado teste estatístico no qual foi encontrado p-valor de 0,00000000000000022, rejeitando
a hipótese nula de independência. No cenário estadual, o p-valor foi de
0,00000000000000022, significando, também, que as variáveis possuem relação significativa.

11
Observação com grande afastamento das demais informações da série, valor atípico. Um exemplo é o da candidatura da
Deputada Clarissa Garotinho, que é mulher, mas possui significativa quantidade de recursos de campanha.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p979 989


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Considerações Finais
Reconhecendo a importância da representatividade garantida pelo acesso de mulheres
à esfera política, foi preciso compreender quais são os obstáculos ao êxito no pleito eleitoral
encontrado pelas candidatas a deputadas estaduais e federais. Além, é claro, dos entraves
encontrados em seu sistema eleitoral de lista aberta, sem obrigatoriedade de posição
competitiva para mulheres ou punição para os partidos e coligações que descumprirem os
percentuais estabelecidos pela Lei de Cotas.
Logo no momento das candidaturas, a histórica exclusão das mulheres dos cargos de
decisão política já se delineava, uma vez que dos 2576 candidatos, somente 719 eram
mulheres – número que atinge o percentual de aproximadamente 27,9%. Um segundo ponto a
ser observado, é o da perspectiva partidária. Dentre os 32 partidos que pleiteavam uma vaga
de deputado federal, apenas 10 atingiram a cota mínima de 30% de candidaturas femininas.
Na dimensão estadual, dentre os 31 partidos, somente 14 o fizeram. Diante da ausência de
punição aos partidos e coligações no caso de descumprimento das cotas fixadas pela Lei, o
percentual mínimo adquire caráter sugestivo.
Quando a análise se voltou para o resultado das eleições o quadro se manteve, na
medida em que do universo de 116 vagas, somente 14 foram destinadas a mulheres. Na
tentativa de compreender esse cenário, optou-se por analisar a disponibilidade de recursos de
campanha – financeiros e de tempo de televisão no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral -
, enquanto entrave ao desempenho eleitoral feminino.
Uma vez levantados os dados de receita de campanha, foi possível perceber uma
significativa disparidade das médias de disponibilidade entre as candidatas e os candidatos.
Submetidos ao teste estatístico de associação, o p-valor alcançado confirmou o esperado: o
gozo de receita de campanha possui relação significativa com o desempenho eleitoral dos
candidatos a deputado federal e estadual.
No que tange à visibilidade, a discrepância entre homens e mulheres se mantém
quando os dados são a respeito do tempo de televisão no HGPE. Quando realizado o teste de
associação, o p-valor encontrado indicou que essa também é uma variável com relação
significativa no êxito do pleito eleitoral de 2014. Dessa maneira, fica evidente a importância
da visibilidade na Propaganda Político Partidária para obtenção de uma vaga para deputado
federal ou estadual do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a exiguidade de recurso financeiro de campanhas de mulheres e a
escassez de tempo de televisão se configuram enquanto entraves ao seu desempenho eleitoral.
Diante das dificuldades na captação de recursos financeiros e de tempo de televisão no HGPE,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p979 990


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por conta de sua inserção tardia na política e da perspectiva dessa esfera enquanto universo
masculino, a esfera política-institucional permanece como reduto masculino.
Mesmo dentre as mulheres que se elegem, foi preciso salientar o fato de que são, em
sua maioria, mulheres com mandatos externos, profissionais da política, possuindo
experiências de uma carreira previamente estruturada. Além disso, em alguns casos, as
candidatas têm suas candidaturas veiculadas à herança política de homens, sejam eles seus
maridos, pais ou irmão. Dentre as eleitas, conforme salientado, a todas possuíam um
contingente significativo de tempo de televisão e de recurso de campanha, além de deterem
carreiras políticas estruturadas.
Dessa forma, fica evidente que a Lei não é suficiente para promover a participação
política feminina. Além da necessidade de alteração no que tange à permissibilidade da
Justiça Eleitoral, que deve punir os partidos ou coligações que não cumprirem a cota
estabelecida pela Lei 12.034/09, é preciso implementar mecanismos que atuem além de um
percentual formal de candidaturas, promovendo incentivos à participação das mulheres.
Sendo assim, é preciso instituir mecanismos que auxiliem na consolidação da
participação feminina através do incentivo à formação de carreiras políticas por parte das
mesmas. Em combinação aos efeitos da Lei de cotas, esses incentivos à profissionalização da
trajetória política de mulheres devem incentivar o engajamento das mesmas. A elaboração e
implementação desses mecanismos se constituem enquanto uma possível agenda futura de
pesquisa.
Nessa direção se encaixa a Proposta de Emenda Constitucional N°134 de 2015, que
visa garantir a reserva de percentuais mínimos de cadeiras de representação para cada gênero
nas Câmaras Municipais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, nas Assembleias
Legislativas e na Câmara dos Deputados.
Para isso, existiria uma lista eleitoral composta por cada gênero, realizando a
distribuição das vagas de acordo com a votação alcançada pelos partidos. Adotado em alguns
países como o Afeganistão, a Jordânia e a Quênia, o mecanismo tem a vantagem de garantir
um número mínimo de assentos por gênero, garantindo o acesso feminino aos espaços
decisórios.

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Feminismo e ciência: os desafios para o reconhecimento da mulher na ciência


moderna

Lais Regina Kruczeveski1

Resumo: As dicotomias (natureza-cultura, natureza-sociedade), ou como diz Anne Fausto-


Sterling (2002), os dualismos, sempre estiveram presentes nos debates antropológicos e
continuam sendo alvo de muitos estudos na sociedade atual, sobretudo quando são tratadas
questões de gênero e feminismo. E assim como Heleieth Saffioti (1994) comenta que, embora
a humanidade já tenha superado que em nível de sociedade não existem mais fenômenos
naturais, desde a década de 1980, observa-se um assustador retorno às posições essencialistas
que vinculam a mulher a natureza enquanto que o homem permanece vinculado a esfera da
cultura. Neste sentido, este trabalho propõe uma análise acerca destas dicotomias com base na
perspectiva de gênero para se pensar a situação da mulher ao longo do desenvolvimento da
ciência e as consequências para o reconhecimento de seu papel ativo como construtoras de
conhecimento. Para isto foi necessário o aprofundamento das concepções de dualismos e
dicotomias como proposta de análise das possíveis barreiras enfrentadas pelas mulheres na
ciência como produtoras de conhecimento. O caso de Marie Curie não foi o único na história
em que a mulher enfrentou grandes desafios para adentrar o campo científico e ser
reconhecida pelos seus grandes feitos. Deste modo, será possível abordar questões acerca do
desenvolvimento das mulheres dentro da ciência, assim como os enfrentamentos para o
reconhecimento delas como sujeito e agente de história.

Palavras-chave: Gênero; mulher; ciência; feminismo.

Introdução
De acordo com Fausto-Sterling (2002) os europeus e os norte-americanos possuem
um modo de compreender o funcionamento do mundo a partir do uso de dualismos, ou seja,
pares de conceitos, sistemas ou objetos e seus opostos. Neste sentido, a autora trabalha com
três dualismos que são em grande medida fundamentais para analisar as questões de gênero na
nossa sociedade que são, sexo/gênero, natureza/criação e real/construído.
Fausto-Sterling (2002) inicia seu trabalho narrando um fato ocorrido com a atleta
Maria Patinõ, nas Olimpíadas de 1988. Patinõ, uma das principais corredoras com barreira da
Espanha, se esqueceu se levar seu atestado médico declarando um fato aparentemente óbvio:
de que era uma mulher. O Comitê Olímpico Internacional (COI) tendo previsto que algumas
mulheres poderiam se esquecer deste certificado de feminilidade2 tinham equipamentos para
realizar este teste ali mesmo, antes da prova. Patinõ então precisou raspar algumas células da

1
Universidade Estadual de Londrina.; discente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais.
E-mail: lais_kruczeveski@hotmail.com.
2
Até 1968, as mulheres deveriam ficar nuas diante de um conjunto de examinadores para atestar que elas eram,
de fato, “mulheres” (SENKEVICS, 2012).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p762 762


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bochecha para realizar o teste. Algum tempo depois, recebeu um chamado. A atleta teve que
passar por um novo exame. E neste novo exame houve a confirmação de que Patiño havia
sido reprovada no teste de sexo.
Apesar de parecer uma mulher, ter força de uma mulher, as células de Patiño
continham o cromossomo Y e seu corpo ocultava testículos, além de que ela não possuía útero
nem ovários. Com este resultado, a atleta foi impedida de participar das Olimpíadas. A
imprensa descobriu o ocorrido e sua vida virou de ponta cabeça quando seus títulos
conquistados foram retirados e Patinõ foi impedida de voltar a competir, foi expulsa da
moradia atlética nacional e a atleta precisou lutar para sobreviver.
Fausto-Sterling (2002) com base neste acontecimento, traz a vista a questão de como
estes dualismos interferem na vida de pessoas que não se encaixam neles. Há pessoas que
estão fora destes dualismos, e a ciência moderna não é capaz de incluí-las pois não há espaço
para elas nestes conceitos. A autora reflete então: o que é ser feminina e o que é ser
masculino? Existe uma linha divisória entre masculino e feminino? Qual é esta linha
divisória? Os médicos declararam que Patinõ nasceu com uma síndrome de insensibilidade ao
andrógeno. Portanto, mesmo tendo o cromossomo Y e seus testículos produzissem
testosterona, suas células eram incapazes de detectar os hormônios masculinos e seu corpo foi
moldado com características femininas.
O caso de Patiño não é o único3 no mundo4, na verdade é mais comum do que se pensa
este e outros casos que põe em prova as definições e as linhas divisórias criadas pela ciência
moderna que separam uma e outra coisa. O seguinte trabalho busca pincelar estas questões
com o objetivo de causar a inquietação acerca destas dicotomias que trazem o questionamento
da ciência moderna, e que a partir dos estudos feministas e de gênero nos permitiu uma
ampliação de olhar crítico para estes modos de fazer ciência.

Natureza e cultura – Sexo e gênero


Fausto-Sterling (2002) comenta que, nas últimas décadas, a relação entre a expressão
social da masculinidade e da feminilidade e seus aspectos físicos subjacentes foram bastante
debatidos na ciência. A autora aponta John Money e Anke Ehrhardt que em 1972,
3
De acordo com o Journal Sentinel, num artigo chamado The American Journal of Bioethics, os cientistas estão
questionando os testes de sexo, pois eles podem deturpar a evidência ao relacionar níveis de testosterona com o
sexo e o desempenho dos atletas. Além de que estes testes podem ocasionar a discriminação de mulheres que não
atendem os ideais tradicionais de feminilidade.
4
“Na verdade, o único caso documentado de um homem se passando por “mulher” ocorreu em 1936, quando
Heinrich Ratjen, um membro da Juventude Nazista, competiu com as mulheres no salto em altura sob o apelido
de “Dora”. Sua “masculinidade”, porém, não se traduziu em vitória, ficando o jovem nazista em quarto lugar”
(FAUSTO-STERLING, 2002).

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disseminaram a ideia de que sexo e gênero são, na verdade, categorias separadas. De acordo
com estes autores, sexo deve se referir aos atributos físicos e é anatômica e fisiologicamente
determinado, enquanto que gênero se refere a uma transformação psicológica do eu, ou seja,
uma convicção interior de que se é homem ou mulher (identidade de gênero).
Outras feministas da década de 1970 também afirmam o sexo diferente de gênero e
que as instituições sociais são moldadas para perpetuar as diferenças e desigualdades de
gênero. Segundo Fausto-Sterling (2002), estas autoras argumentavam que os corpos feminino
e masculino apesar de terem funções reprodutivas diferentes, poucas diferenças de sexo não
poderiam ser mudadas pelas vicissitudes da vida. Ora, se as meninas não aprendem
matemática com a mesma facilidade que os meninos, o problema não está em seus cérebros.
Segundo a autora, estas dificuldades se dão pelas normas de gênero e das expectativas e
oportunidades pensadas para meninos e meninas.
Se entender o gênero como construção social, é possível também entender que este
trabalho não se trata de buscar uma igualdade entre os sexos num campo social, ou de negar
as diferenças entre homens e mulheres, mas sim de compreender essas diferenças como o
fruto de uma convivência que é mediada pela cultura.
Uma pesquisa realizada por Lindamir Salete Casagrande (2011) em uma escola da
rede pública de Curitiba analisa as relações de gênero das turmas de 5º à 8º série nas
disciplinas de matemática, e demonstrou o silenciamento e a invisibilidade que as meninas
apresentam a partir de certo momento da sua vida escolar. A autora acredita que uma pesquisa
acerca de gênero desenvolvida com estudantes desta faixa etária é de fundamental
importância, tendo em vista que os/as estudantes estão em pleno desenvolvimento do
processo de produção das identidades.
O curioso deste trabalho, foi que ao desenvolver a pesquisa de campo na escola,
Casagrande (2011) contatou que houve diferenças no posicionamento de meninos e meninas
em relação aos/as colegas, aos/as professores/as e também em relação ao conteúdo
matemático. Nos anos iniciais, não foram observadas diferenças de rendimento e
compreensão no conteúdo da disciplina, diferentemente dos anos mais avançados em que se
contatou um melhor rendimento dos meninos em relação as meninas.
Casagrande (2011) verificou que as meninas eram silenciadas e se silenciavam diante
da classe e do/a professor/a. A autora também averiguou que são esperadas expectativas
diferentes em relação a meninos e meninas, desde a organização do caderno, o
comportamento em sala e o desempenho escolar. Estas expectativas podem alterar, direta ou

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indiretamente, o modo de pensar destas meninas, assim como pode alterar a percepção si
própria como sujeito e agente se conhecimento.
Neste sentido, como afirma Fausto-Sterling (2002), ter um pênis ou uma vagina é uma
diferença de sexo. Agora o desempenho inferior das meninas em relação a matemática, a
física, biologia, é uma diferença de gênero. Estas feministas, segundo a autora não estavam
questionando o domínio do sexo físico, mas sim os significados psicológicos e sociais dessas
diferenças, no caso, o gênero.
Judith Butler (2010) afirma que a teoria feminista tem, em sua essência presumido que
exista uma identidade definida, entendida pela categoria de mulheres, que além de atender aos
objetivos feministas, também constitui o sujeito mesmo em nome de que a representação
política é almejada.
A autora acrescenta que para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem
capaz de representá-las completa com o intuito de promover a visibilidade política das
mulheres. Recentemente essa percepção dominante da relação entre teoria feminista e política
passou a ser questionada. O próprio sujeito das mulheres não é mais entendido em termos
estáveis e permanentes. Os domínios da “representação” política e linguística estabelecem em
critério segundo o qual os próprios sujeitos são criados, com o resultado da representação só
se entende o que pode ser reconhecido como sujeito.
Butler (2010), contudo cita que além das ficções “fundacionistas” que sustentam a
noção do sujeito, há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o
termo mulheres denote uma identidade comum. Mulher passou a ser um termo problemático.
Se você é mulher, certamente isso não é tudo que uma pessoa pode ser. Essa presunção
política de que deve haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada numa
identidade supostamente existente em diferentes culturas é frequentemente acompanhada da
ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na estrutura
universal hegemônica da dominação patriarcal ou masculina. Apesar de que o patriarcado
universal vem sendo amplamente criticado.
Em relação a esta ordem compulsória sexo (corpo) e gênero, a autora acrescenta mais
um fator, o desejo. Butler (2010) afirma que embora a unidade indiscutida da noção de
“mulheres” seja frequentemente invocada para construir uma solidariedade da identidade,
uma divisão se introduz no sujeito feminista por meio da distinção entre sexo e gênero. Ela
acredita que se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se
pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira.

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A distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e


gêneros culturalmente constituídos. Butler (2010) faz então a suposição da estabilidade do
sexo binário, não decorre daí que a construção de “homens” se aplique exclusivamente a
corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. E
mesmo que os sexos permaneçam na problemática de binário, porque o gênero também deve
permanecer? Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente
independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante.
Se o sexo é ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o
gênero como a interpretação cultural do sexo. Deste modo, Butler (2010) acredita que o
gênero não deve ser meramente visto como a inscrição cultural de significado num sexo
previamente dado, ou seja, o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza.
Quando as teóricas feministas afirmam que o gênero é uma interpretação cultural do
sexo, qual é o modo ou mecanismo dessa construção? Butler (2010) aponta que quando a
“cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto
de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação
de que a biologia é o destino. Beauvoir (1960) sugere, porém, que não nascemos mulher, mas
nos tornamos, ou seja, o gênero é construído. Não há nada nessa formulação que o ser que nos
tornamos é fêmea, como para Beauvoir (1960) o “corpo é uma situação” então não há como
recorrer a um corpo que já tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais.
Essa controvérsia sobre o significado da construção parece basear-se na polaridade
filosófica convencional entre livre arbítrio e determinismo. Se o gênero e o sexo são fixos ou
livres, é função desse discurso que, como se irá sugerir, busca estabelecer certos limites à
pesquisa ou salvaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qualquer
análise de gênero.
Butler (2010) cita que embora os/as cientistas sociais se refiram ao “gênero’ como
uma dimensão de análise, ele é também aplicado a pessoas reais como uma “marca” de
diferença biológica. Algumas teóricas feministas acreditam que o gênero é um conjunto de
relações e não atributo individual, já outras, argumentam que somente o gênero feminino é
marcado, que a pessoa universal e o gênero masculino se fundem em um só gênero, definindo
com isso, as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de
uma pessoalidade universal que transcende o corpo.
Butler (2010) cita Luce Irigaray, que acredita que as mulheres constituem um
paradoxo. As mulheres são o sexo que não é uno, mas múltiplo. Numa linguagem que repousa
na significação unívoca, o sexo feminino constitui aquilo que não se pode restringir nem

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designar. Indo na contramão de Beauvoir, Irigaray argumenta que tanto o sujeito como o
Outro são esteios de uma economia significante falocêntrica e fechada, que atinge seu
objetivo totalizante por via da completa exclusão do feminino.
Já Butler (2010) aponta que as possibilidades interpretativas do conceito de gênero não
se exaurem absolutamente nas alternativas sugeridas por Beauvoir e Irigaray. A circulacidade
problemática da investigação feminista sobre o gênero é sublinhada pela presença de posições
que pressupõe ser o gênero uma característica secundária das pessoas, e também de posições
que argumentam ser a própria noção de pessoa como sujeito, uma construção masculina e
uma prerrogativa que exclui efetivamente a possibilidade semântica e estrutural de um gênero
feminino.
A autora volta a Beauvoir para falar que o “sujeito”, na analítica existencial da
misoginia, é sempre já masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um “Outro”
feminino que está fora das normas universalizantes que constituem a condição de pessoa
corporificada. Esse pensamento posto por Beauvoir levanta a questão: mediante que o ato de
negação e renegação posa o masculino como uma universalidade descorporificada, é o
feminino construído como uma corporalidade renegada?
Beauvoir (1960) propõe então que o corpo feminino deve ser a situação e o
instrumento da liberdade da mulher, e não uma essência definidora e limitadora. Essa teoria
de corporificação de Beauvoir é limitada pela reprodução acrítica da distinção cartesiana da
liberdade e corpo. A construção discursiva do corpo, e sua separação do estado de
“liberdade”, não consegue marcar no eixo do gênero a própria distinção corpo/mente que
deveria esclarecer a persistência da assimetria dos gêneros.
Beauvoir acredita que o corpo feminino é marcado no interior do discurso
masculinista, enquanto que Irigaray sugere que tanto o marcador como o marcado são
mantidos no interior de um modo masculinista de significação, no qual o corpo feminino é
como que “separado” do domínio de significável.

Feminismo e ciência: a falta de reconhecimento e a desvalorização da mulher


Pensando nos termos de Fausto-Sterling (2002) que diz que as feministas não
questionavam o domínio do sexo físico; mas os significados psicológicos e culturais dessas
diferenças, ou seja, o gênero, Londa Schiebinger (2001) ilustra esta realidade quando elabora
um trabalho crítico de mapeamento da mulher na academia e constata que a incorporação da
mulher na ciência, não foi um processo fácil, assim como o seu reconhecimento como sujeito
de conhecimento ainda é um processo em desenvolvimento. Neste sentido, a autora afirma

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que não é possível fazer a incorporação da mulher na ciência sem balançar os alicerces da
ordem vigente.
Schiebinger acrescenta que a ciência nunca foi neutra em relação as questões de
gênero, e que as desigualdades entre homens e mulheres foram incorporadas à produção e à
estrutura do conhecimento. Estas incorporações de estereótipos e discriminação de gênero
estão presentes desde o modo como a ciência foi escrita como também em relação a exclusão,
abafamento e desvalorização de trabalhos elaborados por mulheres. Também é visto nas
barreiras culturais e sociais para o ingresso da mulher nas instituições de ensino, como
estudantes e como profissionais.
Schiebinger (2001) cita que no início dos anos de 1990, as características femininas
passaram a ser vistas como fenômenos culturais específicos e generalizava-se o pensamento
feminista de que as mulheres tinham “maneiras de saber” distintas. Ou seja, que as mulheres
tinham um modo de pensar diferente dos homens, nesta época também se acreditava numa
romantização dos valores considerados femininos.
Georgia Faust (2015) comenta que as mulheres geralmente são associadas a “virtudes”
e “qualidades” vinculadas à intuição e sensibilidade, compreensão e afeto, enquanto que os
homens são vinculados à autonomia, força, responsabilidade e coragem. E é sabido por todos
nós que a educação das mulheres sempre for diferente que a dos homens. Saffioth (1994)
comenta que no Brasil, a educação das mulheres nunca foi decidida e coordenada por elas,
mas sim por homens brancos, donos de terras. Segundo a autora, sua educação no período
colonial as preparava para serem passivas, submissas, sedentárias. Sua casa era seu mundo.
Segundo relatos de navegantes do período colonial, duas características marcantes das
mulheres brancas no Brasil eram “timidez” e “ignorância”. Muitas mulheres de posses eram
inclusive lesadas em suas fortunas por não saberem o português. Quando houve a necessidade
de educação das mulheres brancas, ela acontecia dentro das suas casas, com aulas de bordado,
etiqueta, música, francês e português. Com o advento da indústria, a preparação das mulheres
foi para funções “femininas” como a datilografia, professoras de primário, enfermeiras
(SAFFIOTH, 1994).
Além destes papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, Schiebinger (2001)
questiona o desenvolvimento da ciência ocidental, e mostra como a sua estrutura e
fundamentação está mergulhada em estereótipos de gênero. A autora cita que a identidade de
gênero do indivíduo que faz a ciência influencia no conteúdo desta ciência e não apenas isto,
mas também é importante observar o cânone desta ciência, uma mulher pode muito bem fazer

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uma ciência masculina, o que em alguns casos aconteceu, porque somente deste modo o
estudo teria reconhecimento.
De acordo com Schiebinger (2001), muitos cientistas homens ainda defendem que o
conhecimento científico é neutro, mas a questão que a autora coloca é que a ciência moderna
é, na verdade, o resultado de centenas de anos de exclusão das mulheres, e é justamente por
este motivo que a inclusão da mulher na ciência deve causar impactos profundos na ciência a
partir de agora.
Um exemplo que mostra claramente este enviesamento da ciência masculina é dado
por Emily Martin (1996). A autora cita que quando se ensina biologia na escola, se ensina, na
verdade, muito mais do que o mundo natural, ensina-se também crenças e práticas culturais
como se também fizessem parte do mundo natural. Ou seja, a autora, analisando materiais
didáticos utilizados em sala de aula, no contexto americano, percebeu juízos de valor
diferentes para homens e mulheres.
Segundo a autora, nas aulas de biologia, quando se ensina sobre o sistema reprodutivo
masculino e feminino, os estereótipos implicam em seu discurso, não apenas que os processos
biológicos femininos valem menos que os correspondentes masculinos, mas também ensina
que as mulheres valem menos que os homens. Martin (1996) aponta que quando os materiais
didáticos se referem ao sistema reprodutor feminino, algumas palavras que apareceram foram:
“interrupção”, “morte”, “perda”, “privação”, “expulsão”, “desperdício”. Em relação ao
sistema reprodutor masculino, as palavras vistas foram: “extraordinária”, “fantástica”,
“enorme magnitude”.
Uma frase recolhida de um desses materiais, que compara o sistema reprodutor de
ambos os sexos diz sobre o sistema masculino:
Os mecanismos que guiam a extraordinária transformação celular do
‘spermatid’ em esperma maduro permanece incerta... Talvez a mais
fantástica característica da espermatogênese é sua enorme magnitude: o
homem normal pode produzir várias centenas de milhões de espermas por
dia (MARTIN, 1996, p. 1).

Em relação ao sistema reprodutor feminino, as definições foram as seguintes:


“Enquanto a fêmea verte apenas um único gameta a cada mês os túbulos seminíferos
produzem centenas e milhões de espermas a cada dia”. Porque nestes textos a imensa
produção de esperma por dia não é vista como uma espécie de desperdício enquanto que um
único gameta feminino não fertilizado no período é visto como tal?
Não há entusiasmo quando os autores falam sobre o sistema reprodutor feminino,
quanto ao sistema reprodutor masculino, há uma enorme exaltação. Além de que nestes textos

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o óvulo é visto como grande e passivo, enquanto que o esperma é definido como ágil e
dinâmico.
Segundo Martin (1996), graças as novas pesquisas, foi comprovado que o óvulo
também possui papel muito ativo durante a reprodução, e que o esperma não é tão ativo e
independente do óvulo assim, na verdade ele precisa do auxílio do óvulo para chegar até ele.
Entretanto, mesmo sendo reconhecido esta nova versão da reprodução, o óvulo continua
sendo colocado nos textos como um gameta passivo. Este é um exemplo claro de como a
ciência de fato enviesa questões de gênero e não é neutra em relação a diversas outras
questões.
O que o estudo de Martin demonstra é que a falta de reconhecimento da mulher na
ciência não se refere apenas no silenciamento e ocultação dos trabalhos desenvolvido por
mulheres na academia, mas também no modo como a ciência é escrita e no modo como a
mulher e seus corpos são descritos pela ciência.
Schiebinger (2001) aponta que as pessoas costumam misturar as palavras “mulher”,
“gênero”, “fêmea” e “feminismo”, mas a verdade é que cada palavra possui uma definição
distinta, e “feminismo” não é um “palavrão”. Além de que cada definição não pode ser vista
como um conceito universal. Butler já nos mostrou que, por exemplo, a definição de mulher,
vista como sujeito universal limita a compreensão do campo, uma mulher pode ser muitas
coisas além de mulher. Ela poderia ser proprietária de escravos, enquanto outras mulheres
poderiam eram escravas. Uma mulher branca, rica, sente estigmas diferentes de uma mulher
pobre, negra. Neste sentido, a autora afirma que a forma como conhecemos é influenciado
pelos nossos valores.

A crítica do sujeito e da ciência moderna para a construção de uma nova ciência que
inclua as mulheres e outras minorias
Bruno Latour (1994) conta que os críticos desenvolveram três repertórios distintos
para falar sobre nosso mundo. O primeiro é o repertório da naturalização, neste sentido,
quando se fala em fatos naturalizados, não há mais sociedade, nem sujeito, nem forma de
discurso. O segundo repertório é a socialização, ou seja, o poder sociologizado em que não há
mais ciência, técnica, texto nem conteúdo. O terceiro e último é o da desconstrução. Este fala
sobre os efeitos da verdade no mundo. Estes três repertórios, segundo o autor são importantes
para a análise em si, porém não podem ser usados combinados entre si.
Latour (1994) aponta que os fatos científicos são construções de pessoas, ou seja, são
dotados de valores e vivencias, porém, não podem ser reduzidos ao social porque ele está

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povoado por objetos mobilizados para construí-los. Neste sentido, o autor também faz uma
crítica os dualismos e as dicotomias que a ciência “moderna” utiliza para definir as coisas.
Segundo Latour, nunca seremos modernos enquanto a ciência se pautar nestas definições. O
autor acredita que uma ciência moderna que ainda mantenha os olhos nesses dois polos
(natureza-cultura) não é uma ciência moderna, e sim, não-moderna.
Neste mesmo sentido, a crítica lançada por Walter Mignolo (2008) também é em
relação ao desenvolvimento da ciência ocidental. Mignolo fala acerca da proposta de Quijano,
de 1990 sobre a desobediência epistêmica. Esta obra diz que se não iniciar este movimento de
desobediência, não será possível o desencadeamento epistêmico, e assim permaneceremos no
domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados. Ou seja, aqueles que
são enraizados nos conceitos gregos e latinos e nas experiências e subjetividades formadas
dessas bases, tanto teológicas quanto seculares.
Sem esta mudança, não seremos capazes de ultrapassar os limites do Marxismo, os
limites do Freudismo e Lacanismo, os limites do Foucauldianismo; ou até os limites da Escola
de Frankfurt. A proposta do autor não é “deslegitimar” as ideias críticas europeias, porém, o
autor aponta que o eurocentrismo, colocando-se como centro do pensamento humano, criam
periferias. Por exemplo, o selvagem só é selvagem porque existe uma definição do que é
civilizado, o que não se encaixa nesta definição de civilizado é considerado selvagem.
Mignolo (2008) usa o termo descolonial no sentido de descolonizar o pensamento
eurocentrado, este termo é importante pelo o autor porque além da identidade permear todo o
aspecto das identidades sociais, também exerce controle da política de identidade, construindo
uma identidade que não se parece como tal, mas como a aparência “natural” do mundo. Sendo
assim, a imagem de um ser branco, com posses, heterossexual, cristão e do sexo masculino
são as principais características de uma política de identidade que denota identidades tanto
similares quanto opostas como essencialistas e fundamentalistas. Neste sentido, os/as
negros/as, as mulheres, os indígenas não aparecem representados como sujeitos de
reconhecimento.
Gayatri Spivak (2010), faz uma crítica aos esforços atuais do ocidente em
problematizar o sujeito em relação ao “sujeito do terceiro mundo” representado no discurso
ocidental. A autora aponta que uma das críticas mais radicais produzidas pelo ocidente são
aquelas que procuram manter o sujeito do ocidente. A teoria dos “sujeitos efeitos”
pluralizados dão a ilusão de um abalo na soberania subjetiva. Mesmo que a história da Europa
seja narrada pela lei, pela economia, pela política, esse sujeito parece não ter nenhuma
conotação geopolítica. Deste modo, a autora faz uma argumentação que a difundida crítica ao

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sujeito, realmente cria um Sujeito e para isto ela se utiliza de Foucault e Deleuze para
explicar.
Tanto Foucault quando Deleuze compartilham das contribuições da teoria pós-
estruturalista francesa, porém ambos ignoram a questão da ideologia e seu próprio
envolvimento da história intelectual e econômica. Spivak afirma que a conversa entre
Foucault e Deleuze esta demarcada por dois “sujeitos em revolução” monolíticos e anônimos
(um maoísta e a luta dos trabalhadores).
De acordo com Spivak (2010), Foucault e Deleuze ao deixarem de considerar as
relações entre desejo, poder e subjetividade, ficam incapacitados de articular uma teoria dos
interesses. O interesse de Foucault pela especulação “genealógica” o impede de localizar em
Marx e Freud os divisores de água de um fluxo contínuo da história intelectual. Quando
Foucault considera a heterogeneidade difusa do poder, ele não ignora e heterogeneidade
institucional que Althusser tenta esquematizar. Foucault, entretanto, não pode admitir que
uma elaborada teoria da ideologia reconheça sua própria produção material na
institucionalidade.
Spivak aponta que esses filósofos se veem compelidos a rejeitar todos os argumentos
que nomeiam o conceito de ideologia como sendo apenas esquemático ao invés de contextual.
Assim eles alinham-se a sociólogos burgueses que ocupam o lugar da ideologia com um
inconsciente continuísta ou com uma cultura parasubjetiva. Essa matriz parasubjetiva
entremeada com a heterogeneidade conduz o sujeito inonimado pelo menos para aqueles
trabalhadores intelectuais influenciados pela nova heterogeneidade do desejo.
Esta questão da identidade, segundo Stuart Hall (2006), vem sendo muito discutida na
teoria social, isto porque, segundo o autor, as velhas identidades que durante muito tempo
manteve estabilizado o mundo social estão entrando em declínio. Neste sentido, novas
identidades vão surgindo enquanto que o sujeito moderno vai se fragmentando. Há na
atualidade, portanto, uma crise de identidade, e as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça, nacionalidade, que no passado tinham sólidas localizações como
indivíduos sociais estão se fragmentando, ocasionando uma mudança nas identidades
pessoais, abalando as ideias e conceitos antigos. Esta fragmentação do sujeito tem como
consequência principal o questionamento da ciência moderna e a valorização de novas formas
de se fazer ciência.
Donna Haraway (2000), Londa Schiebinger (2001) e Sandra Harding (1996) são
algumas das autoras que constataram que o feminismo de fato balançou a teoria social,
causando uma série de questionamentos que devem ser debatidos e reformulado. Segundo

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Haraway (2000), foi quase que exclusivamente pelo feminismo que se começou a pensar no
modo como a ciência se escreve. Segundo a autora, há um controle do corpo para se manter
uma ordem hegemônica, esta ordem, porém, está entrando em colapso.
Ao desenvolver o manifesto do ciborgue, Haraway (2000) propõe uma reflexão e uma
crítica a esta sociedade que cria um centro e deste modo, cria também as margens. Ciborgue é
uma palavra que não faz sentido no nosso vocabulário, e é por este motivo que a autora lança
esta proposta. Assim como ciborgue não se encaixa na nossa linguagem, há também outras
“coisas” e sujeitos que não se encaixam nesta sociedade de conceitos dicotômicos. Muitas
existências não são reconhecidas, até sofrem risco de vida quando não fazem parte de um
enquadramento, pois, na medida que se cria o centro, para alguns indivíduos que não se
encaixam neste centro, restando-lhes somente, a margem.
Um ciborgue não é inocente, ele tem intensão, ele busca abalar esta ordem vigente.
Ciborgue “é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de
realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2000, p. 36). Somos
híbridos de máquinas quando usamos óculos, aparelho odontológico, próteses. Neste sentido,
somos reais e ao mesmo tempo ficção.
Para a autora, realidades sociais significam relações vividas, ou seja, significa
construção política. Estas construções têm o poder de mudar o mundo. Haraway cita o
exemplo dos movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode
chamar de “experiência das mulheres”. Esta experiência pode ser vista como uma ficção e
também como fato. Neste sentido, a libertação das mulheres dependerá em princípio, da
construção da consciência desta opressão.
Ciborgue, para Haraway (2000) é, portanto, ficção e experiência vivida, uma junção de
corpo biológico e máquina. É por meio do ciborgue que o sujeito moderno, nomeado com
sujeito de direito, hétero, branco e com posses sofre alguns deslocamentos. A autora acredita
que o feminismo é o movimento fundamental para esta crítica da teoria social vigente, que
desmascara este homem abstrato universal. Se todos são iguais, porque durante muito tempo
as mulheres foram “cuidadas” pelos homens no sentido de não poderem ter propriedades,
votar, trabalhar fora e aprender e produzir ciência? Os movimentos feministas trouxeram estes
questionamentos e auxiliou nessas mudanças teóricas e práticas na vida das mulheres.
Haraway critica algumas teorias feministas que também contestam a prevalência deste
sujeito universal e abstrato, porém não as transcenderam. Butler é uma cientista que propôs
mudanças, Haraway, entretanto foi mais radical, ela propôs o fim da dualidade, das
dicotomias, pois como no caso de Maria Patinõ, há questões que não podem ser explicadas

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por elas. Por exemplo, a anatomia se torna inútil ao tentar definir o tamanho que um clitóris
ou um pênis deve ter. Patiño é uma intersexo, ou seja, não se encaixa (segundo as definições
tradicionais da ciência) numa definição de masculino nem de feminino, ela se encontra entre
estas definições e fora delas.
Nestes casos, a ciência não encontra no corpo a definição do sexo, busca-se então os
cromossomos, como no caso de Patiño, mas então se percebe que a procura nos cromossomos
não é suficiente, então a ciência moderna vai em busca de outras definições. E este discurso
acaba se tornando um ordenamento do mundo.
Quando Butler (2010) faz a desvinculação de sexo, gênero e desejo, começa-se a
permitir pensar outras formas de desejo, outras formas de corpos, como Patinõ, outras formas
de gênero. Por isso a crítica de Haraway (2000) a Foucault, que segundo ela, o conceito de
biopolítica dele não passa de uma débil premonição da política do ciborgue, que abrange um
campo muito maior de análise. Hawaray aponta que:
Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo
racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da
apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição
da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre
organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras (HARAWAY, 2000,
p. 37).

Neste sentido, a autora acredita que as coisas que estão em jogo nesta guerra de
fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação, ou seja, esta
proposta argumenta em favor da confusão dessas fronteiras e da responsabilidade em sua
construção. Portanto, no que se refere a teoria feminista, o ciborgue é uma criatura de um
mundo pós-gênero, sendo assim, não tem compromisso nenhum com a bissexualidade, com a
simbiose pré-edípica, ou com o trabalho não alienado. O ciborgue é “oposicionista, utópico e
nada inocente” (HARAWAY, 2000, p. 38).

Considerações finais
Quando Donna Haraway foi convidada para escrever sobre o conceito sexo/gênero em
um dicionário marxista encontrou algumas dificuldades no trabalho de traduzir os mesmos
termos para o alemão, espanhol, francês e chinês e de encaixar o conceito de sexo e gênero
nesses idiomas que em muitos casos uma mesma palavra significavam a mesma coisa. A
autora comenta: “meu inglês era marcado por raça, geração, gênero (!), região, classe,
educação e história política” (HARAWAY, 2004, p. 205). Ela então se perguntou como

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poderia ser este seu inglês a matriz definidora para sexo/gênero em geral? Ela constata que
obviamente ele não é. Este trabalho seria muito mais complexo do que apenas definir.
A partir do momento que o feminismo começou a ser uma fonte de questionamento da
ciência, Sandra Harding (1996), comenta que a questão de gênero deixou de ser um campo de
interesse limitado às mulheres. Neste sentido a autora acredita que “la ciencia no es sólo un
conjunto determinado de enunciados ni un método único, sino un conjunto global de prácticas
significativas” (HARDING, 1996, p. 81), ela é na verdade um campo de batalha, em que
ideias são rebatidas, contestadas e reformuladas. O feminismo pode ser considerado então, um
agente impulsionador de mudanças na ciência moderna.
Quando Fausto-Sterling (2002) analisou as dicotomias sexo/gênero, natureza/criação e
real/construído e quando foram apresentadas as ideias dos/as autores/as no decorrer deste
trabalho, como Butler, Hawaray, Schiebinger, a desvinculação e a desconstrução destes
dualismos possibilitou pensar em novas formas de se fazer ciência. O modo como a ciência
moderna foi construída ao longo dos séculos, sobretudo a partir dos princípios cartesianos e
da exclusão não apenas das mulheres, mas de muitas outras vozes, limitou muito o campo de
análise e conhecimento. Tudo o que não fosse possível encaixar nesses conceitos, seria
considerado margem, periferia, quando não expelidos e excluídos da sociedade.
Pensar em uma ciência sem as dicotomias e sem as vinculações
sexo/gênero/desejo/natureza/cultura permite-se ampliar o olhar. Entendendo que o
conhecimento científico moderno, defendido por tantos anos como uno e absoluto é algo
construído através de valores, percepções, vivências, olhares, lugares, é possível perceber que
ele pode ser desconstruído e reelaborado trazendo a vista uma grande parte desde mundo que
durante a vivência desta ciência moderna, permaneceu apagada e excluída.
Todas as mulheres, independente de classe, raça/etnia, orientação sexual, foram e são
sujeito e agente de história e conhecimento. Os movimentos feministas permitiram que muito
deste reconhecimento científico, político e social fosse permitido. Um caminho ainda longo
nos espera, sobretudo no âmbito cultural. Este é bem mais complexo de ser mudado.

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Relações de trabalho doméstico remunerado no Brasil a luz da teoria de Amartya Sen:


uma análise de gênero, raça e justiça.

Nathália Lipovetsky1
Aurélia Neves2
Letícia Vulcano de Andrada3

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as alterações implementadas pela
Emenda Constitucional 72/2013 e pela Lei Complementar nº 150/2015 nas relações de
trabalho doméstico remunerado à luz da ideia de justiça concebida na obra de Amartya Sen
(2011), com ênfase na sobreposição dos elementos gênero, raça e classe para delimitação da
amostragem de trabalhadoras domésticas. A metodologia empregada se fundamenta na análise
de dados secundários disponibilizados em sítios eletrônicos do Governo Federal e a discussão
desses dados à luz de obras nodais para a delimitação dos conceitos de gênero, trabalho e
justiça. Amartya Sen (2011) critica a tradição que teoriza um conceito de justiça perfeita, que
ele denomina de transcendental, e busca conceber uma ideia de justiça comparativa, com foco
na vida que as pessoas são efetivamente capazes de levar. Tem-se, então, uma teoria da justiça
que caminha junto ao conceito de injusto e que toma por base o conceito de que, embora não
seja possível alcançar uma justiça perfeita, existem no mundo injustiças perfeitamente
remediáveis que podem e devem ser eliminadas. Nesse artigo, o conceito de trabalho
doméstico será considerado aquele realizado dentro da esfera domiciliar, podendo ser
remunerado ou não. Enquanto trabalho não remunerado, a atividade doméstica é invisibilizada
e entendida como serviço não produtivo (IPEA, 2014). Em se tratando de trabalho doméstico
remunerado, a taxa de atividade de pessoas economicamente (PEA) ativas da população
acima de 16 anos mostra que 14% das trabalhadoras brasileiras ocupadas eram trabalhadoras
domésticas. Vale ressaltar a questão racial, uma vez que “17,7% das mulheres negras eram
trabalhadoras domésticas, ainda a principal ocupação entre elas –, ao passo que, entre as
brancas, 10% estavam no emprego doméstico” (IPEA, 2014). A redação anterior do parágrafo
único do art. 7º da CRFB/1988 assegurava aos trabalhadores domésticos apenas uma parte
dos direitos garantidos aos demais trabalhadores, o que foi alterado com a EC 72/2013. Com a
promulgação da EC 72/2013, entraram imediatamente em vigor direitos como salário mínimo,
irredutibilidade salarial, 13º salário, limitação da jornada de trabalho, repouso semanal
remunerado, licença gestante e paternidade, aviso prévio, aposentadoria, dentre outros. As
mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional 72/2013 e pela Lei Complementar nº
150/2015 nas relações de trabalho doméstico remunerado, à luz da ideia de justiça concebida
na obra de Amartya Sen (2011) representam, portanto, a correção de uma injustiça
remediável, para essa parcela da PEA, constituída principalmente por mulheres, em sua
maioria negras.
Palavras-chaves: Trabalho doméstico; Gênero; Raça; Teoria da Justiça.

1
Professora Adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia; Mestre e Doutora em Direito pela UFMG;
nathalialipovetsky@gmail.com.
2
Bacharel em Direito pela UFMG; Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; aurelianeves@gmail.com.
3
Mestre e Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais;
let.vulcano@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p777 777


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1. Introdução
As relações de trabalho doméstico remunerado no Brasil carregam consigo uma
herança histórica de servitude e elitização, além de terem sido recorrentemente alimentadas
por práticas conhecidas como uma espécie de “adoção” de moças, ainda muito jovens, em
cidades do interior, supostamente para que pudessem estudar, em troca de moradia e um
salário que muitas vezes era apenas simbólico, criando uma ligação social praticamente
inescapável e um vínculo trabalhista sem nenhuma limitação de horários ou proteção jurídica.
Esses contornos nitidamente escravocratas tiveram o amparo da legislação, uma vez
que os avanços nas conquistas dos direitos trabalhistas ocorridos, sobretudo, a partir da
década de 1930, deixaram de fora a categoria de empregados e empregadas domésticas.
Embora outras mudanças também significativas tenham ocorrido anteriormente, apenas com o
advento da Emenda Constitucional 72/2013 foram suficientemente eliminadas as diferenças
de tratamento jurídico entre esta e as demais categorias profissionais.
O presente trabalho analisa as alterações implementadas pela Emenda Constitucional
72/2013 e regulamentadas pela Lei Complementar nº 150/2015 nas relações de trabalho
doméstico remunerado à luz da ideia de justiça concebida na obra de Amartya Sen, uma teoria
da justiça que caminha junto ao conceito de injusto e que toma por base a ideia de que,
embora não seja possível alcançar uma justiça perfeita, existem no mundo injustiças
perfeitamente remediáveis que podem e devem ser eliminadas.
Essa análise será feita com ênfase na sobreposição dos elementos gênero, raça e
classe para delimitação da amostragem de trabalhadoras domésticas, uma vez que é
multifacetada a forma como as camadas da população são afetadas pelas injustiças causadas
pela seletividade da legislação para a categoria. O recorte feito para apresentação de dados
será exatamente no grupo que tem piores condições socioeconômicas dentro das coletas de
dados secundários: o grupo em que está a mulher negra.
A metodologia empregada se fundamenta na análise de dados secundários
disponibilizados em sítios eletrônicos do Governo Federal, especialmente IPEA e Ministério
do Trabalho e na discussão desses dados à luz de obras nodais para a delimitação dos
conceitos de gênero, trabalho e justiça.

2. A ideia de justiça em Amartya Sen


A concepção de justiça de Amartya Sen (2011) dialoga com a obra de John Rawls
(1971), que, segundo o autor, se alinha com uma tradição transcendental que tem por objetivo

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caracterizar o que seria uma ideia ou modelo de justiça perfeita e que, na prática, não tem a
possibilidade de ser alcançada. Sen (2011) critica essa tradição e busca conceber uma ideia de
justiça comparativa ou alternativa, com foco na vida que as pessoas são efetivamente capazes
de levar. Assim, seu “objetivo é esclarecer como podemos proceder para enfrentar questões
sobre a melhoria da justiça e a remoção da injustiça, em vez de oferecer soluções para
questões sobre a natureza da justiça perfeita” (SEN, 2011, p. 11).
Sen rejeita as conclusões de Rawls (1971) na medida em que pretende estabelecer uma
teoria da justiça que seja base da argumentação racional no domínio prático; precisa, para
isso, incluir modos de julgar como reduzir a injustiça e, portanto, promover a justiça, em vez
de objetivar apenas a caracterização das sociedades perfeitamente justas. Há, em sua teoria,
uma identificação entre justiça e desenvolvimento, de forma que a justiça de um ato deve ser
medida quanto a sua capacidade de promover as liberdades e a expansão da liberdade. Essa
última se apresenta duplamente como fim primordial e principal meio do desenvolvimento
(seus papéis constitutivo e instrumental, respectivamente). (SEN, 2010, p. 55).
A ideia de injustiça e o diagnóstico do injusto são centrais para a teoria da justiça
segundo Sen, que averigua se uma teoria da justiça precisa ir além do senso de justiça e
injustiça. (SEN, 2011, p. 10) A partir disso, desenvolve o argumento de que o diagnóstico da
injustiça pode se dar por diferentes razões a partir do nosso senso de justo e injusto, mas sem
que uma delas seja apontada como dominante nesse diagnóstico e que chegar a conclusões
robustas acerca do que deve ser feito em cada situação não depende diretamente de reduzir os
critérios avaliativos a um único: “isso se aplica tanto à teoria da justiça quanto a qualquer
outra parte da disciplina da razão prática”. (SEN, 2011, p. 33-34)
Esse questionamento acerca da necessidade de uma teoria da justiça é sintomático da
própria teoria concebida na obra, que se mostra como uma teoria da justiça em sentido amplo:

O objetivo é esclarecer como podemos proceder para enfrentar questões


sobre a melhoria da justiça e a remoção da injustiça, em vez de oferecer
soluções para questões sobre a natureza da justiça perfeita. Isso se diferencia
claramente das teorias da justiça predominantes na filosofia moral e política
contemporânea. (SEN, 2011, p. 11)

A ideia de desenvolvimento como liberdade gira em torno dessa noção de que a


liberdade é o principal fim do desenvolvimento e o desenvolvimento requer que se eliminem
as principais formas de privação da liberdade (SEN, 2010, p. 16), que são injustiças
remediáveis, e que podem ser distribuídas em três grupos: pobreza econômica; carência de
serviços públicos e assistência social; negação de liberdades civis e políticas por regimes

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autoritários. Por isso, a grande contradição dessa afirmação existe no fato de que a opulência
global cresceu historicamente e, ao mesmo tempo, vivemos hoje num mundo em que a
maioria das pessoas não possui ou pouco possui acesso a essas liberdades elementares ou
substantivas. (SEN, 2010, p. 17)
Por fim, Sen (2010) diz que essas liberdades substantivas devem ser promovidas por
meio de liberdades instrumentais, que são liberdades políticas, facilidades econômicas,
oportunidades sociais, transparência, e segurança (proteção), entendendo que, na prática as
liberdades de diferentes tipos fortalecem umas às outras e a privação das liberdades
econômica, social e política estão intimamente interconectadas e se implicam mutuamente.
(SEN, 2010, p. 25)
A seguir, é introduzida a discussão acerca da sobreposição de gênero e classe e,
posteriormente, essas noções são amalgamadas com a apresentação da situação do trabalho
doméstico remunerado e não remunerado no Brasil, com base em dados do IPEA (Instituto de
Pesquisa e Econômica Aplicada) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).

3. Gênero e a sobreposição de raça e classe


A questão do trabalho feminino ultrapassa a esfera de discussões voltadas para a ótica
da produção e levam estudos sobre o tema também para a análise dos lugares em que a mulher
ocupa na sociedade e também na família. A vinculação que ocorre entre o trabalho feminino e
a família gera debates em torno da posição das mulheres no mercado de trabalho, uma vez que
essa vivência implica na combinação dessas duas esferas, seja pela articulação ou
sobreposição, tanto em trabalhos de áreas urbanas ou rurais.
Ao longo de vários períodos históricos, a função da mulher na sociedade era, quase
totalmente, voltada à esfera doméstica, ligada a sua natureza supostamente delicada e
obediente. As mudanças sociais, culturais e econômicas do mundo trouxeram a mulher ao
mercado de trabalho, mas sem desvinculá-la daquele trabalho realizado dentro de casa. A
amplitude dos papéis sexuais e do simbolismo sexual na esfera laboral causou discussões
profundas de termos, experiências e categorias, o que acabou sinalizando novas críticas dentro
dos estudos da temática.
Segundo Scott (1995), o interesse pelas categorias classe social, gênero e raça,
“assinalavam o primeiro compromisso dos pesquisadores com a história que incluía a fala dos
oprimidos e com a análise do sentido e da natureza da opressão.” (SCOTT, 1995, p.4). O
gênero, ainda segundo Scott, não é o único campo, mas parece ter constituído um meio

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p777 780


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persistente e recorrente de tornar eficaz a significação do poder no ocidente, por exemplo, nas
tradições judaico-cristãs e islâmicas.
No final dos anos 70, o movimento denominado Black Feminism (DAVIS, 2017, p.40-
54), critica a forma como as análises de gênero apenas interpretavam uma figura feminina de
origem branca e heteronormativa, sem levar em consideração as diversas variáveis de
interpretação fora desse eixo. Os estudos voltados para a comparação entre sexos não
contemplam pesquisas relacionada à divisão de gênero, é necessário que essas análises e
comparações sejam também realizadas levando em consideração a diferenciação entre
homens brancos e homens não-brancos e mulheres brancas e mulheres não-brancas.
(HIRATA, 2014, p.64).
Dito isso, a discussão das relações de trabalho, principalmente em países com
realidades desiguais como o Brasil, se deve, necessariamente, ao se falar em gênero, também
envolver as variáveis ligadas à etnia/raça e classes sociais. Quando discutimos o lugar da
mulher dentro do universo mercantil, devemos nos perguntar de qual mulher estamos falando.
O início da luta histórica dos movimentos feministas pela ampliação dos direitos das mulheres
trouxe poucos elementos de discussão de igualdade em esferas sociais e raciais. A
importância da mulher não-branca não foi igualmente reconhecida na construção dos
primeiros direitos da mulher como foram os das mulher branca. (DAVIS, 2017, p.57-59 )
A verdade é que, antes de ter acesso a direitos básicos, aos quais as mulheres brancas
clamavam a si, as mulheres não-brancas sequer tinham acesso a níveis educacionais, judiciais
ou políticos, portanto, qual o tipo de posição no mercado laboral essas mulheres teriam?
Durante as argumentações que justificam a entrada da mulher e o seus direitos dentro de
esferas tipicamente ocupadas por homens, a questão de raça e classe social foi pouco
aprofundada, e as consequências são sentidas até hoje.
Ao se referir às teorias de trabalho care4, Hirata (2014), explica o quanto esse tipo de
trabalho, que envolve o cuidado, é provido pelas dimensões de gênero, classe e raça. O
pertencimento a determinada classe social faz com que possamos identificar de que maneira o
care é praticado e por quem, e essa identificação possui uma forte distinção de níveis de
poder. (HIRATA & KERGOAT, 2008, p.267). Não é incomum que mulheres de classes
sociais altas saírem para os seus trabalhos enquanto outras mulheres cuidam se seus filhos ou
de seus parentes inválidos.

4
As formas de trabalho ligadas ao care são funções tipicamente dirigidas ao outro, visando melhoria e bem
estar. São funções como: cuidar de criança, cuidar de indivíduos inválidos e/ou acamados, afazeres domésticos e
cuidados na área de saúde. Exemplos: empregados domésticos, faxineira(o)s, babás, cuidadores e enfermeira(o)s.

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A pesquisa de Hirata e Kergoat (2008) mostra como a profissional de care é pouco


valorizada, com salários relativamente baixos e com pouco reconhecimento social.
Majoritariamente, as mulheres que ocupam esses cargos são de origem social simples, se
sujeitam, muitas vezes, a informalidade, a vulnerabilidade e instabilidade trabalhistas. A
desvalorização do care relaciona-se facilmente com o fato de ser um trabalho considerado, em
nível macro, para mulheres, e em sua maioria não-brancas.
A próxima seção dedica-se a discussão do conceito de trabalho e trabalho doméstico
tanto nas pesquisas dos institutos de estatística brasileiros quanto nas leis que regulamentam
os direitos trabalhistas no país. Além disso, se analisa também os dados, propriamente ditos,
acerca do trabalho feminino, doméstico ou não, assim como a questão do trabalho da mulher
negra, especificamente.

4. Trabalho doméstico
Sobre o conceito de trabalho, é interessante notar que o IBGE define esse termo como
“contabilização da população ocupada” (IPEA, p. 4, 2016), nesse sentido, se considera apenas
as atividades econômicas relacionadas a:
Ocupação remunerada em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios
(moradia, alimentação, roupas, etc.) na produção de bens e serviços; b)
Ocupação remunerada em dinheiro ou benefícios (moradia, alimentação, roupas,
etc.) no serviço doméstico; c) Ocupação sem remuneração na produção de bens
e serviços, desenvolvida durante pelo menos uma hora na semana: - em ajuda a
membro da unidade domiciliar que tem trabalho como empregado na produção
de bens primários (as atividades da agricultura, silvicultura, pecuária, extração
vegetal ou mineral, caça, pesca e piscicultura), conta própria ou empregador; -
em ajuda a instituição religiosa, beneficente ou de cooperativismo; ou - como
aprendiz ou estagiário; ou d) Ocupação desenvolvida, durante pelo menos uma
hora na semana: - na produção de bens, do ramo que compreende as atividades
da agricultura, silvicultura, pecuária, extração vegetal, pesca e piscicultura,
destinados à própria alimentação de pelo menos um membro da unidade
domiciliar; ou - na construção de edificações, estradas privativas, poços e outras
benfeitorias exceto as obras destinadas unicamente à reforma) para o próprio
uso de pelo menos um membro da unidade domiciliar. (IBGE, 2015, p.128).

Fica evidente que este conceito de trabalho, utilizado pelo principal órgão produtor de
estatísticas do país, trabalha com uma noção de trabalho mercantilizado, o que implica a
invisibilidade de uma série de atividades produtivas não remuneradas.
Para o IBGE, as pessoas que possuem atividades não remuneradas são consideradas
inativas. No presente trabalho, esse aspecto se torna muito importante uma vez que diversas
funções não remuneradas são desempenhadas por mulheres, tanto na zona rural quanto na
urbana. Desse modo, as pesquisas e estatísticas do principal órgão dessa área no país auxilia
pouco, ou quase nada, na análise e no estudo a respeito das atividades de muitas brasileiras.

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A discussão e renovação do conceito de trabalho são fundamentais para a diminuição


ou fim da invisibilidade de várias tarefas não remuneradas que são desempenhadas
principalmente por mulheres, e que tornam possível a realização de todos os outros trabalhos
mercantilizados.
O trabalho doméstico não remunerado é chamado pela Pesquisa Nacional por
Amostragem de Domicílios (PNAD) de “afazeres domésticos” , que conceitua esse termo
como:
(...) exercício, no domicílio de residência, de tarefas que não se enquadram no
conceito de trabalho, tais como: arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; cozinhar
ou preparar alimentos, passar roupa, lavar roupa ou louça, utilizando, ou não,
aparelhos eletrodomésticos para executar estas tarefas para si ou para outro(s)
morador(es); orientar ou dirigir trabalhadores domésticos na execução das tarefas
domésticas; d) cuidar de filhos ou menores moradores; cuidar de filhos ou menores
moradores; ou limpar o quintal ou terreno que circunda a residência” (IBGE, 2015,
p.118).

O que se verifica a partir de dados de 2014, de acordo com a definição acima, é a


confirmação de que as mulheres fazem muito mais serviços domésticos que os homens. Mais
mulheres afirmam realizarem trabalhos domésticos não remunerado, e suas jornadas são mais
extensas do que as jornadas dos homens que afirmam fazer algum serviço em sua residência
(IPEA, 2016, p.22). Mais do que isso, apesar do aumento da escolaridade feminina, da entrada
maciça das mulheres no mercado de trabalho, inclusive, com o aumento da jornada de
trabalho feminina, não existe comprovadamente uma tendência de aumento da participação
dos homens no trabalho doméstico (IPEA, 2016, p.22).
Além disso, os dados descrevem uma situação em que não há marcador racial e nem
de classe: as mulheres de todas as raças e de todas as classes se ocupam mais e em jornadas
mais extensas do trabalho doméstico que os homens (IPEA, 2016, p.22).
Outro conceito importante para a discussão acerca do trabalho é a medida pela taxa de
atividade, isto é, pela proporção de pessoas em certa faixa etária que está no mercado de
trabalho, empregada ou procurando emprego. O nome dado a essa proporção é população
economicamente ativa (PEA).
Sobre o trabalho feminino, é inquestionável que desde a década de 1970 as mulheres
aumentaram sua participação significativamente entre a população economicamente ativa. As
mulheres negras não estiveram fora do mercado de trabalho como as brancas. O padrão
burguês de masculinidade que determinava que o sustento da família deveria ser provido pelo
homem não era possível para a realidade do homem negro e pobre. Nesse sentido, a mulher
negra e de classe social baixa, se lançou ao mercado de trabalho buscando a sobrevivência

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antes que a mulher branca. (IPEA, 2016, p.5). Essa inserção se deu de forma precária, em
trabalhos pouco remunerados, de baixo status social e de pouca possibilidade de ascensão
laboral.
De acordo com esse padrão mencionado, o trabalho não remunerado que as mulheres
deveriam desempenhar dentro de suas casas, isto é, o trabalho doméstico dedicado a cuidar da
casa, dos filhos e de outras pessoas vulneráveis não é considerado pelas estatísticas como
atividade produtiva ou de valor. Em 2010, 48,9% das mulheres compunham a PEA (ALVES,
2013, p. 2), assim, se tem que mais da metade das mulheres do país possui sua atividade
laboral invisibilizada.
O trabalho doméstico remunerado é muito importante quando se trata da ocupação das
mulheres no Brasil, principalmente em se tratando das mulheres negras. O legado pernicioso
da escravidão faz com que as classes superiores brasileiras se utilizem do trabalho de
mulheres das classes inferiores, geralmente negras, para cuidar da casa e dos filhos, as
remunerando de maneira precária e as mantendo em baixa condição social e economicamente
vulneráveis (IPEA, 2016, p. 14).
Até 2013, eram negados às trabalhadoras domésticas direitos atribuídos aos
trabalhadores em geral desde a Constituição Federal de 1988. Entre 2013 e 2015, quando
finalmente foi aprovada a lei complementar que regulamentou a emenda constitucional que
garantia esses direitos, houve debate na sociedade acerca dessa medida que apenas reparava
um erro crasso no ordenamento jurídico nacional (IPEA, 2016, p. 14).
A Lei Complementar 150/2015 revogou a Lei 5.859/1972, a primeira a tratar
especificamente da categoria do empregado doméstico. Essa lei de 1972 definiu em seu art. 1º
o empregado doméstico como “aquele que presta serviços de natureza contínua e de
finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas”. A Lei
Complementar 150/2015 atualizou essa definição introduzindo as noções de recorte temporal
e subordinação na prestação desse serviço: “aquele que presta serviços de forma contínua,
subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito
residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”.
Em função de fatores como o aumento da escolaridade das mulheres e as condições
precárias em termos de direito e remuneração, a proporção de mulheres no serviço doméstico
vem caindo ao longo do tempo. O que chama atenção é que há décadas o trabalho doméstico
remunerado não é a principal atividade entre as mulheres brancas, porém, de acordo com
dados de 2014, essa continua sendo a principal atividade das mulheres negras, 17,7% (IPEA,
2016, p. 15).

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A categoria das empregadas domésticas é marcada pela baixa escolaridade, o que


reforça o argumento de que, ao aumentarem os anos de estudo, as mulheres buscam outras
ocupações. Mesmo assim é perceptível um leve aumento da escolaridade da categoria: de 5,5
anos em 2004 para 6,6 em 2014 (IPEA, 2016, p. 16). A precarização do trabalho doméstico é
evidente pelo alto número de trabalhadoras sem carteira assinada. Isso significa que 70% da
categoria não têm direitos básicos de qualquer trabalhador como 13º salário, aposentadoria,
licença médica, de acordo com dados de 2014 (IPEA, 2016, p. 16).
Verifica-se a tendência da informalidade entre as trabalhadoras domésticas e o
aumento de mulheres que prestam serviços em mais de um domicílio, as chamadas
“diaristas”. Essa situação faz com que poucas trabalhadoras tenham acesso à seguridade
social, já que o número de diaristas com carteira assinada é menor do que o número de
mensalistas. As diaristas apresentam elevação da renda em comparação com as trabalhadoras
que trabalham em uma única casa, mas a consequência de possuírem menos carteira assinada
faz com que tenham também menos direitos resguardados e proteção social (IPEA, 2016, p.
18).
A evidência da exploração e da precariedade do trabalho doméstico é dada pelo fato de
que, em 2014, a remuneração média não alcança o salário mínimo. Em termos de renda, as
mulheres negras ganham menos que as mulheres brancas, ganhando entre 83 e 88% do que as
últimas ganham (IPEA, 2016, p. 20).

5. Alterações legislativas recentes


A redação anterior do parágrafo único do art. 7º da Constituição da República
Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 assegurou aos trabalhadores domésticos apenas uma
parte dos direitos garantidos aos demais trabalhadores, o que foi alterado com a Emenda
Constitucional 72/2013. Até a Emenda Constitucional (EC) 72, eram assegurados aos
trabalhadores domésticos, dentre todo o rol de direitos garantidos aos demais trabalhadores,
apenas: IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde,
lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; VI -
irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; VIII - décimo
terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; XV - repouso
semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVII - gozo de férias anuais
remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; XVIII - licença à

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gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX -
licença-paternidade, nos termos fixados em lei; XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de
serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; XXIV - aposentadoria;bem como
a integração à previdência social. Vale dizer, então, que dos 34 incisos, os empregados e
empregadas domésticas eram contemplados apenas com 9.
A redação introduzida pela EC 72 ao parágrafo único do art. 7º da Constituição
passou a contemplar mais incisos e garantir, portanto, novos direitos à categoria:

São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos


incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV,
XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e
observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e
acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos
incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência
social. (BRASIL, 2013)

Com isso foram adicionados, teoricamente de imediato, aos direitos anteriormente


assegurados, a VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem
remuneração variável; X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua
retenção dolosa; XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta
e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante
acordo ou convenção coletiva de trabalho; XVI - remuneração do serviço extraordinário
superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; XXII - redução dos riscos inerentes
ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXVI - reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho; XXX - proibição de diferença de salários, de
exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;
XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência; XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na
condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.
Ficaram na pendência de regulamentação posterior a garantia de I - relação de
emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei
complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; II - seguro-
desemprego, em caso de desemprego involuntário; III - fundo de garantia do tempo de
serviço; IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; XII - salário-família pago
em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; XXV - assistência

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gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e
pré-escolas; XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem
excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
Essa regulamentação ocorreu por meio da Lei Complementar 150/2015, que trouxe
uma nova definição do conceito de empregado/a doméstico/a e de contrato de trabalho no
âmbito doméstico, institui um regime unificado de pagamento de tributos para as relações
trabalhistas de cunho doméstico, altera a legislação previdenciária para incluir a categoria,
bem como revoga a legislação antiga que já não mais traduzia as relações sociais vigentes.

6. Considerações finais
As mudanças introduzidas pela EC 72/2013 regulamentada pela Lei Complementar
nº 150/2015 nas relações de trabalho doméstico remunerado, à luz da ideia de justiça
concebida na obra de Amartya Sen, representam uma tentativa de corrigir uma injustiça para
essa parcela da população economicamente ativa, constituída principalmente por mulheres,
em sua maioria negras. A superação de problemas relacionados à pobreza, desigualdade social
e desigualdade de gênero passa pela garantia de direitos trabalhistas e seguridade social aos
trabalhos precarizados, que são ocupados em sua maioria por mulheres não-brancas.
Os dados estatísticos entre gênero e raça apresentados nesse artigo, mostram como
em termos históricos o Brasil evoluiu e vem evoluindo na garantia de direitos às
trabalhadoras, mas ainda existe um considerável gap econômico, jurídico e social a ser
preenchido. Atualizar o conceito de trabalho com o qual os órgãos e autoridades do governo
trabalham e alterar as leis vigentes no sentido de expandir o guarda-chuva dos direitos
trabalhistas é uma maneira de remediar algumas das injustiças existentes no país, de acordo
com a visão de Amartya Sen (2011).
Articular a ideia de justiça de Sen (2010; 2011), com a empiria disponível nos dados
fornecidos pelos órgãos de produção de estatística brasileiros e com as recentes mudanças no
ordenamento jurídico nacional acerca do trabalho doméstico, permite analisar sob uma nova
ótica, a situação econômica e social de uma parcela significativa de mulheres, especialmente
as não-brancas, que além de serem invisibilizadas como população economicamente ativa nos
dados disponíveis, eram excluídas de uma série de direitos fundamentais atribuídos pela
CRFB às demais categorias de trabalhadores e trabalhadoras. As conquistas do período
recente (últimos 40 anos) precisam ser analisadas com rigoroso olhar crítico. Em regra, as
mulheres permanecem em trabalhos inferiorizados, precários e vulneráveis, em setores
tradicionalmente já ocupados por elas.

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A melhoria das condições de inserção no mundo do trabalho nos últimos anos não
alterou, portanto, a estrutura da divisão racial e sexual do trabalho, motivo pelo qual uma
conjuntura econômica desfavorável tende a ser ainda mais regressiva, sobretudo para as
mulheres negras e pardas, inseridas majoritariamente em relações instáveis e desprotegidas de
trabalho. Como é possível perceber nos dados estatísticos aqui apresentados, há um longo
caminho a se percorrer para efetivamente superar as desigualdades, injustiças sociais e
econômicas que afetam as mulheres e principalmente as mulheres não-brancas no Brasil. Esse
processo precisa ser enfrentado com atuação firme e planejada de políticas públicas e sociais
que influenciam o mercado de trabalho e a sociedade de maneira objetiva.

Referências
ALVES, José Eustáquio Diniz. “O crescimento da PEA e a redução do hiato de gênero nas
taxas de atividade no mercado de trabalho”. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. Disponível em:
http://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/artigo_112_a_reducao_do_hiato_de_genero_nas_taxas_de_a
tividade_no_mercado_de_trabalho.pdf. Acesso em 25/05/2018.

BRASIL. IPEA. Nota técnica n. 24. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
Brasília, 2016.

BRASIL, Emenda Constitucional Nº 72, de 2 de abril de 2013, que altera a redação do


parágrafo único do art 7º da Constituição Federal para estabelecer igualdade de direitos
trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc72.htm.
Acessado dia 26/05/2018.

DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Bom Tempo, 2017.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.


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HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico:


Brasil, França, Japão. In: COSTA, Albertina de Oliveira, SORJ Bila, BRUSCHINI, Cristina e
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Janeiro: Editora FGV, 2008. pp. 263-278.

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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

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1971.

SEN, Amartya Kumar. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Paulo: Companhia de Bolso, 2010.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p777 788


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Atenção ao homem autor de violência doméstica: intersetorialidade na construção da


política pública em Sergipe

Letícia Rocha Santos 1


Verônica Teixeira Marques 2

Resumo: Os avanços na legislação e nas políticas públicas de proteção às mulheres que são
vítimas de violência suscitam discussões sobre a eficácia das medidas estabelecidas em lei,
especialmente diante do desafio constitucionalmente posto de se promover uma sociedade
mais igualitária. Assim, considerando que o combate à violência contra a mulher não é
possível olhando para apenas um dos lados da questão, faz-se necessário compreender a
importância da atenção ao autor de violência e realizar o mapeamento da construção de
política pública voltada a este sujeito, a fim de entender como a intersetorialidade pode
contribuir para que os objetivos das políticas públicas sejam alcançados, notadamente no
Estado de Sergipe. A partir da análise da literatura especializada, em especial com
experiências de alguns estados que instituíram política pública voltada ao autor de violência,
percebe-se que a atuação intersetorial permite o encontro de várias percepções da
problemática, viabilizando a construção de uma política pública mais ampla. A experiência de
diversos atores sociais e, consequentemente, a maior participação da sociedade são fatores
que se destacam para que as discussões sejam mais plurais. Percebe-se que em Sergipe há
esforços conjuntos para a consecução de uma política pública para o autor de violência que já
sinaliza o papel da intersetorialidade.

Palavras-chaves: políticas públicas; intersetorialidade; violência doméstica.

1
Universidade Tiradentes; Mestranda em Direitos Humanos – UNIT; leticia.rocha.aju@gmail.com
2
Professora do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes e do Mestrado em Sociedade,
Tecnologias e Políticas Públicas do Centro Universitário Tiradentes; Pesquisadora do Instituto de Tecnologia e
Pesquisa; Doutora em Ciências Sociais – UFBA; veronica_marques@set.edu.br

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1 Introdução

Os avanços na legislação e nas políticas públicas de proteção às mulheres que são


vítimas de violência suscitam discussões sobre a eficácia das medidas estabelecidas em lei,
especialmente diante do desafio constitucionalmente posto de se promover uma sociedade
mais igualitária. Não é suficiente para compreender a realidade a antiga concepção de
igualdade, que envolvia apenas a parte formal; para a concretização da igualdade material, é
imprescindível entender as diferenças entre as pessoas e tentar atenuá-las (SCOTT et al.,
2005). Na busca pela igualdade, especialmente entre homens e mulheres, não se pode
esquecer as construções sociais que existem em torno de ambos e como elas contribuem para
uma situação de dominação masculina, consolidada ao longo da história (BOURDIEU, 2017).
A vulnerabilização das mulheres como construção social muitas vezes acarreta aos
homens a sensação de superioridade como concepção do senso comum, o que muitas vezes se
expressa por meio da violência. A violência contra as mulheres é, portanto, um problema
estrutural (SAFFIOTTI, 2015), ou seja, que não diz respeito apenas a um indivíduo, mas sim
a como todas as pessoas são criadas e ensinadas a ser e estar no mundo. Isto traz a
compreensão de que o fenômeno da violência é ainda mais complexo e exige medidas para
prevenção, responsabilização e reeducação dos homens autores de violência doméstica e
familiar.
Assim, considerando que o combate à violência contra as mulheres não é possível
olhando para apenas um dos lados da questão (FONTOURA, 2016), faz-se necessário
compreender sobre a atenção ao autor de violência e realizar o mapeamento da construção de
política pública voltada a este sujeito, a fim de entender como a intersetorialidade pode
contribuir para que os objetivos da política pública sejam alcançados, notadamente no Estado
de Sergipe. Para isto, foram verificadas iniciativas em outros estados relativas à atenção ao
homem autor de violência doméstica e familiar, em especial a criação de grupos reflexivos3;
também foi realizado o levantamento das entidades governamentais e não-governamentais
que estão participando da construção da política pública para este público em Sergipe,
verificando a quantidade e características dessas organizações. A partir de uma perspectiva
crítica dos Direitos Humanos4, foi possível compreender a importância de repensar estratégias

3
Segundo estudo feito em 2014 (BEIRAS, 2014), essas iniciativas estavam presentes em Blumenau (SC), Belo
Horizonte (MG), Ponta Grossa (PR), Vitória (ES), Santo André (SP), Diadema (SP), São Bernardo do Campo
(SP), Brasília (DF), Pouso Alegre (MG), Rio de Janeiro (RJ), Cuiabá (MT), Nova Iguaçu (RJ), São Paulo (SP),
Londrina (PR), São Gonçalo (RJ), Rio Branco (AC).
4
FLORES, 2009. SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena, 2016.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p790 791


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de combate à violência contra a mulher e da atuação intersetorial, que permite o encontro de


várias percepções da problemática, viabilizando a construção de uma política pública
eficiente.
Assim, através da análise da literatura especializada, a partir das experiências de
alguns estados que instituíram política pública voltada ao autor de violência, o texto discute
inicialmente algumas construções sobre o feminino e o masculino, sinaliza sobre como a
relação entre autor e vítima se constitui em violência, culminando no debate sobre como a
experiência de diversos atores sociais e a participação da sociedade são fatores que se
destacam para compreender que, em Sergipe, há esforços intersetoriais para a consecução de
uma política pública voltada ao autor de violência.

2. Inerente e permanente? Autor e vítima: partes de uma relação violenta

Ao analisar a literatura especializada acerca da violência contra as mulheres, nota-se


que a constituição dos lugares de homens e mulheres na sociedade é permeada por relações de
poder5. A partir do debate trazido por Leticia Casique e Antonia Furegato, é possível pensar
as violências contra a mulher como situações que ocorrem para manter o controle e o domínio
sobre as mulheres (CASIQUE e FUREGATO, 2006). Tal perspectiva da violência entende
que essa relação de dominação entre os gêneros não é natural, mas sim cultural – afinal, os
“dados biológicos revestem os que o existente lhes confere. [...] É, portanto, à luz de um
contexto ontológico, econômico, social e psicológico que teremos de esclarecer os dados da
biologia.” (BEAUVOIR, 2016, p. 64-65).
A persistência das condições de desigualdade e da dominação masculina acaba
gerando vários tipos de violência, desde a violência moral ao feminicídio. Esses números não
têm sofrido significativas reduções ao longo dos últimos anos, mesmo com o avanço nas
discussões e na implementação de políticas públicas de combate à violência doméstica e
familiar (WAISELFISZ, 2015).
Um estudo do Núcleo Estratégico da Secretaria de Saúde do Estado de Sergipe revelou
que a Central de Atendimento à Mulher – Disque 180, equipamento da Secretaria de Políticas
para as Mulheres da Presidência da República que tem por finalidade realizar orientação,

5
A violência contra a mulher é uma questão de poder legitimada pela cultura, um comportamento apreendido e
incorporado por várias gerações. A definição de gênero é considerada como construção cultural, entendendo-se a
violência como um fenômeno histórico, produzido e reproduzido pelas estruturas sociais de dominação e
reforçado pela ideologia patriarcal (OLIVEIRA et al., 2015).

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receber denúncias e fazer encaminhamentos via telefonia, realizou 364.627 atendimentos em


2015, dos quais 328 foram realizados em Sergipe. Equivale, assim, a 33,56 assistências para
cada 100 mil mulheres, colocando o estado em 6º lugar no país e 2º na região Nordeste no
ranking dos Estados brasileiros (SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DE SERGIPE,
2016).
De acordo com dados do Atlas da Violência de 2018 (CERQUEIRA et al., 2018),
4.645 mulheres foram assassinadas no país no ano de 2016, o que representa uma taxa de 4,5
homicídios para cada 100 mil brasileiras. Isto é ainda mais agravado ao fazer o recorte social,
já que as mulheres negras também são as que mais sofrem com os feminicídios. Já o “Mapa
da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil” aponta que entre 2003 e 2013 houve o
aumento de 54,2% no índice de feminicídios contra mulheres negras, passando de 1.864 para
2.875 vítimas. Já o número de homicídios de mulheres brancas caiu de 1.747 vítimas, em
2003, para 1.576, em 2013, representando uma queda de 9,8% no total de homicídios do
período (WAISELFISZ, 2015).
Observando esses dados, evidencia-se que a violência não é única, assim como as
mulheres não o são. A partir do feminismo negro é possível pensar sobre as peculiaridades
dessas mulheres e perceber como as desigualdades em outros âmbitos da vida pessoal podem
ter impacto na vida doméstica, inclusive na incidência de violências:
Tem-se reiterado que, para além da problemática da violência doméstica e
sexual que atingem as mulheres de todos os grupos raciais e classes sociais,
há uma forma específica de violência que constrange o direito à imagem ou a
uma representação positiva, limita as possibilidades de encontro no mercado
afetivo, inibe ou compromete o pleno exercício da sexualidade pelo peso dos
estigmas seculares, cerceia o acesso ao trabalho, arrefece as aspirações e
rebaixa a auto-estima. (CARNEIRO, 2003, p.122)

Os índices de violência contra a mulher no Brasil suscitam questionamentos sobre a


eficácia das medidas legais estabelecidas, afinal, a Lei Maria da Penha foi promulgada em
2006 e a Lei do Feminicídio, em 2015. Ainda assim, não é verificada diminuição no número
de ocorrências ou de denúncias. A esquecida previsão de atenção ao homem autor é vista
como uma possível saída: se fortalecem os dois lados com o ganho de consciência dos
homens sobre o registro de violência através do qual eles aprendem a se relacionar. Isto
auxilia a compreender, sobretudo, que as características de homens e mulheres não são
inerentes, mas sim construídas; e que o processo de desconstrução é possível e gera resultados
positivos, individual e coletivamente.
Conforme esclarece Judith Butler, o “esforço de identificar o inimigo como singular
em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em

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vez de oferecer um conjunto diferente de termos” (BUTLER, 2017, p. 37). Ou seja, é


necessário pensar o homem autor de violência para além de uma imagem homogeneizada de
algoz e construir outras narrativas sobre ele, compreendendo-o como parte de um sistema
patriarcal, que estimula e legitima a violência contra a mulher. Este novo olhar permite uma
melhor análise sobre os comportamentos do homem tido como “opressor”, abrindo um leque
de possibilidades futuras.
Ao se tratar da relação entre homens e mulheres, permeada por distinções
culturalmente impostas desde antes do nascimento, retratando uma disputa pelo poder, tendo
como resultado o fato de que “[...] os homens convertem sua agressividade em agressão mais
frequentemente que as mulheres.” (SAFFIOTTI, 2015, p. 129).
Está previsto na Lei Maria da Penha que cabe “à equipe de atendimento
multidisciplinar [...] desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e
outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares [...]” (art. 30, Lei nº
11.340), além de, a partir do art. 35 da referida lei, prever a criação de centros de educação e
de reabilitação para os agressores.
O que se verifica na prática é a repetição de ciclos de violência - e não só em relação à
mulher. A mulher, mesmo que já tenha sido violentada e tenha consciência da situação, ainda
está suscetível a compor outro relacionamento abusivo, com outras pessoas. Entretanto, há um
cuidado maior para que ela, enquanto vítima, tenha assistência psicossocial. Da mesma forma,
ainda que seja denunciado e condenado, o homem que não repensa sua forma de agir, muitas
vezes continua sendo violento em outros relacionamentos, vitimizando outras mulheres.
Assim, a condenação e a pena esvaziam-se de significado se não há a preocupação com a
reabilitação dos homens autores.
Para viabilizar a atenção ao homem autor de violência, tem-se o caminho da criação de
política pública. Nesse campo, a intersetorialidade é tida como ferramenta e mecanismo de
gestão, considerando a “relevância da interação e integração dos diversos órgãos e instituições
no compromisso comum de efetivação de direitos, garantindo-se, também, a participação
social como requisito essencial de legitimidade das políticas sociais.” (CUSTÓDIO e SILVA,
2013, p. 2).
Trazer essas discussões para o campo das políticas públicas por muito tempo não era
possível, pois
o status subordinado das mulheres durante muito tempo não foi considerado
um problema público, assim como a violência contra a mulher também não
era considerada um problema público, mas um problema que deveria ser
resolvido na esfera privada e no qual o Estado não deveria intervir. O que

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atualmente é considerado problema público, provavelmente antes não era e


possivelmente depois não será, pois a formação da agenda pública é mutante.
(VÁZQUEZ e DELAPLACE, 2011, p. 37)

Hoje, ao menos formalmente, contraria-se o ditado de que “em briga de marido e


mulher não se mete a colher”, especialmente após a criação da Lei Maria da Penha, que
subverte os limites anteriormente impostos sobre o público e o privado. Entretanto, os debates
acerca do homem autor de violência ainda são insipientes.
Dentro dos trabalhos que já são realizados com esses homens, prioriza-se a
desconstrução dos papéis de gênero, já que as masculinidades são atreladas à independência, à
autoridade, à superioridade, à infidelidade (RAMOS, 2013). Isto é viabilizado nos trabalhos
com os homens autores de violência na medida em que são convidados a refletir sobre as
motivações e consequências de suas ações em relação aos envolvidos nos atos de violência.
Autoras como Maria Eveline Cascardo Ramos (2013) e Fernanda Fontoura (2016) relatam a
importância e o resultado das ações voltadas ao homem autor de violência, ressaltando suas
experiências práticas e o aporte teórico que embasa esse trabalho, de forma interdisciplinar.
A partir do trabalho de Vieira de Carvalho (2018) em que aponta mapeamento por
região6, de programas voltados para o autor de violência, é possível verificar que no Brasil as
experiências são dispersas e envolvem diferentes órgãos federativos. Na Região Nordeste, por
exemplo no estado do Rio Grande do Norte, o projeto é vinculado a uma Vara/Juizado de
Violência Doméstica, com a participação do Ministério Público. Já no Distrito Federal, na
Região Centro-Oeste, está uma das principais referências nacionais desse tipo de programa.
Lá o programa de atenção ao agressor é desenvolvido pela Secretaria Estadual de Políticas
para Mulheres, o Ministério Público e Poder Judiciário. Em São Paulo, representando a região
sudestes, os programas possuem parcerias com o Ministério Público e Poder Judiciário, tendo
como referência de trabalho, o Coletivo Feminista. Destaca-se no estado do Rio de Janeiro, o
Instituto Noos com trabalho consolidado. Na Região Sul, os três estados possuem parcerias
com o Ministério Público e Poder Judiciário, mas no Paraná, o “Projeto Caminhos” foi
estruturado por uma parceria do Ministério da Justiça com a Secretaria Estadual de Justiça e a
Vara Criminal. (VIEIRA DE CARVALHO, 2018). Percebe-se assim, que os estados foram
encontrando composições de programas e ações para envolver os agressores e atendendo às
legislações de proteção à mulher vítima de violência.

6
VIEIRA DE CARVALHO, Grasielle Borges. Grupos Reflexivos para os Autores da Violência Doméstica:
Responsabilização e Restauração. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

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Em Sergipe, conforme informações do sítio eletrônico da Assembleia Legislativa do


Estado de Sergipe (2017), até março de 2017 havia apenas um grupo, chamado “Viver
Melhor”, criado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe, em parceria com a Faculdade Estácio
Fase, que realiza esse trabalho.
Ainda em âmbito estadual, as discussões sobre esse tema ganharam fôlego após a
realização do “I Seminário Tecendo a Rede: Atenção a Autores de violência de Gênero”,
realizado nos dias 30 e 31/03/2017, na articulação da Frente Parlamentar em Defesa da
Mulher da Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe, instituições do Poder Judiciário, de
outras instâncias do Poder Legislativo e do Poder Executivo, além de representantes da
sociedade civil, como o Coletivo de Mulheres de Aracaju, ABRAPSO/Núcleo Sergipe e
GESEC/CNPq/UFS.
A Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe (ALESE) lançou, em 8 de março de
2016, a Frente Parlamentar em Defesa da Mulher, que tem como objetivos unificar as
discussões naquela casa legislativa, acompanhar a política governamental, os projetos e
programas direcionados ao tema, principalmente em sua aplicabilidade e execução. Dentro
dessa atuação, em agosto do mesmo ano a presidente da Frente Parlamentar começou a
discutir com as demais entidades sobre a implantação e institucionalização do sistema de
atenção ao homem autor de violência doméstica e familiar7.
A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Ordem dos Advogados do Brasil –
Seccional Sergipe (CDDM-OAB/SE), constituída por advogadas e advogados, atua em
diversas frentes em prol dos direitos das mulheres. O Coletivo de Mulheres de Aracaju,
entidade civil auto organizada, tem como objetivo lutar pela superação das opressões vividas
por todas as mulheres. A Associação Brasileira de Psicologia Social – Núcleo Sergipe
(ABRAPSO/SE), é formada por profissionais que, por meio do ensino, investigação,
aplicação ou difusão, contribuem para o desenvolvimento da Psicologia Social no Brasil. O
Grupo de Estudos de Gênero, Sexualidade e Estudos Culturais, vinculado à CNPq e à
Universidade Federal de Sergipe, está mais voltado à produção acadêmica, mas também
contribui em outras áreas de atuação.
Como resultado de tal evento, seus integrantes também participaram da formulação do
projeto de lei voltado aos homens autores de violência doméstica e familiar no estado de
Sergipe.

7
As informações detalhadas sobre essas tratativas estão disponíveis na página da ALESE na internet. Ver
também: <https://www.al.se.gov.br/frente-parlamentar-em-defesa-da-mulher-apoia-implantacao-de-servico-de-
atendimento-ao-agressor/> e <http://www.al.se.gov.br/frente-palamentar-em-defesa-das-mulheres-e-lancada-na-
alese/>.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p790 796


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Pela própria construção do evento e de suas posteriores tratativas, nota-se o interesse


de diversas entidades no assunto, inclusive de um coletivo feminista da cidade de Aracaju,
contrariando, nesse caso, a ideia de que essa parcela da população ofereceria resistência à
criação de centros de educação e reabilitação de agressores (BIANCHINI, 2016).
A própria composição e as características dessas entidades demonstram a diversidade
e o interesse das mais variadas pessoas e órgãos em participar da construção desse projeto de
lei e das etapas seguintes para a concretização de uma política pública voltada aos homens
autores de violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Em março de 2018, uma deputada da Frente Parlamentar dos Direitos das Mulheres
apresentou “Indicação Nº 46/2018”, sugerindo ao Governo do Estado a criação de política
pública de atenção a autores de violência contra a mulher, a ser realizada em articulação com
os municípios sergipanos.
Neste sentido, e levando em consideração que a violência contra a mulher é um
fenômeno histórico, com fontes culturais de naturalização do homem como “superior”, é
urgente repensar as ações de enfrentamento para que se ampliem além do foco dado quase que
exclusivamente às mulheres. Os homens enquanto agressores precisam se tornar destinatários
das políticas públicas de enfrentamento da violência contra as mulheres. Só assim, com a
inclusão deste público nas ações de enfrentamento será possível tratar o fenômeno da
violência contra a mulher de modo integral (REMON et al., 2015).

3. Caminhos possíveis: construções coletivas para desconstruções individuais

Levando-se em consideração que o Brasil ocupa a 5ª posição com uma taxa de 4,8
homicídios, em 100 mil mulheres, atrás apenas El Salvador, Colômbia, Guatemala, e da
Rússia (Mapa da Violência; 2015), é preciso admitir a complexidade do fenômeno,
reproduzido há séculos, com influência nas vidas de homens e mulheres em todos os âmbitos,
desde a vida doméstica até a vida pública.
Essa complexidade requer também soluções complexas que partam de outros vieses
com vistas a sua prevenção e combate: é preciso reconhecer como a violência contra a mulher
é um reflexo dos papéis sociais de homens e mulheres, papéis organizados e reproduzidos,
mesmo que simbólica e inconscientemente, perpetuando a dominação masculina, nos espaços
de poder e na vida privada.
As violências contra as mulheres são a expressão da vulnerabilização histórica e social
de todas as mulheres, independentemente de raça, classe, orientação sexual e outros

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marcadores. Entretanto, para uma análise mais completa, deve-se atentar às múltiplas
características e realidades.
A partir da análise da literatura especializada, notadamente com experiências de
alguns estados que instituíram política pública voltada ao autor de violência, percebe-se que a
atuação intersetorial permite o encontro de várias percepções da problemática, viabilizando a
construção de uma política pública mais ampla. A experiência de diversos atores sociais e,
consequentemente, a maior participação da sociedade são fatores que se destacam para que as
discussões sejam mais plurais.
Desse modo, verifica-se que, em atendimento às prescrições da legislação, faz-se
necessária a criação de uma política pública que possibilite maior suporte a essas pessoas.
Percebe-se que em Sergipe há esforços conjuntos para a consecução de uma política pública
para o autor de violência que já sinaliza o papel da intersetorialidade.

Referências

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Desafios para a implementação da rede de proteção à mulher no município de


Fazenda Rio Grande-PR

Martiane Ferreira de Melo 1

Resumo: O presente trabalho foi parte dos resultados obtidos em uma pesquisa realizada no
município de Fazenda Rio Grande-PR em 2017, no curso de especialização em Gestão
Estratégica e Integrada de Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social, que teve
como objetivo geral investigar quais são os fatores impeditivos para a construção e
implementação da rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e de gênero no
município, bem como verificar e analisar o entendimento dos atores e gestores públicos sobre
o conceito de Rede de Proteção e os conhecimentos das Políticas Públicas à mulher, no
sentido de verificar as potencialidades e fragilidades no que diz respeito à construção da rede
de proteção e a existência de protocolos de atendimento, ações intersetoriais e articuladas. A
metodologia adotada partiu do levantamento documental e bibliográfico, de dados e órgãos
municipais e federais, através de pesquisa em normativas e legislação; de pesquisa das
políticas públicas existentes para a proteção da mulher vítimas de violência no âmbito
nacional, estadual e municipal para análise comparativa; A pesquisa teve caráter exploratório
no sentido de buscar compreender quais os desafios para a construção e implementação da
rede, sendo possibilitado através da aplicação de questionário aos gestores e profissionais
pertencentes aos serviços de atendimento, levantando também o perfil dos entrevistados e
identificando as potencialidades e fragilidades da rede apresentadas pelos mesmos; Para a
análise de dados quantitativos e qualitativos utilizou-se a de análise de conteúdo.
Palavras-chaves: Rede de Proteção à Mulher; Políticas Públicas; Violência Doméstica e de
Gênero.
Introdução
O presente trabalho é parte dos resultados de pesquisa realizada no ano de 2017 para
a conclusão do curso de especialização em Gestão Estratégica e Integrada de Políticas
Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social, tendo a Rede de Proteção à Mulher como
tema. O interesse pelo estudo surgiu da observação do trabalho desenvolvido no Centro de
Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), órgão pertencente à política de
assistência e que até o momento supre a demanda de atendimento de violência doméstica e de
gênero no município de Fazenda Rio Grande-PR (FRG-PR) e da sua relação com os demais
serviços de atendimento e proteção que a mulher recorre quando se encontra em situação de
violação de direitos.

1
Centro de Referência Especializado em Assistência Social- CREAS (Educadora Social Concursada). Bacharel
em Direito (FARESC 2011). Especialista em Gestão de Projetos Sociais (Centro Universitário Barão de Mauá-
2017). Especialista em Gestão Estratégica e Integrada de Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento
Social (Faculdades Futuro-2017) < martyane@hotmail.com>.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p828 828


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A pesquisa teve como objetivo geral a investigação dos fatores impeditivos para a
construção e implementação da rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e de
gênero, conceituando a Rede de Proteção em paralelo com o que se preconiza na Lei Marida
Penha, como forma de ampliar a análise sobre a Rede, assim tendo a possibilidade de
identificar as potencialidades e fragilidades da mesma, no sentido da construção da rede de
proteção. A primeira parte da pesquisa que não se apresentará aqui contextualizaou a
violência doméstica no tempo e espaço, com a observação de seus reflexos na sociedade,
tendo como fundamentação teórica Safiotti, Minayo, Fraser, Murilo de Carvalho e Hirata.
Desta maneira, a presente pesquisa apresentará os resultados que se concentraram
nos dois últimos tópicos (pesquisa documental, de normativas e entrevistas), que propiciaram
um levantamento das políticas públicas existentes, a observação da importância da temática,
bem como sua visibilidade e verificação se tais políticas fazem parte da agenda pública do
município e do interesse dos gestores e se há protocolos de atendimento, ações intersetoriais e
articuladas, também a análise da rede de proteção (órgãos e agentes) em consonância ao
disposto nas leis e normativas nacionais.
A metodologia que foi adotada partiu do levantamento documental e bibliográfico,
sobre políticas públicas e Rede de Proteção com objetivo no entendimento de sua ação no
município; Bem como o levantamento de dados dos órgãos municipais, e federais e demais
fontes de pesquisa para análise comparativa; Contou também com pesquisa exploratória no
intuito de verificar a construção e os desafios de implementação da rede de proteção à mulher;
pesquisa quantitativa e qualitativa por meio de questionários para coletas de dados sobre o
entendimento dos gestores e profissionais pertencentes aos serviços de atendimento, para
identificar as potencialidades e fragilidades da rede. Para as análises de dados quantitativos e
qualitativos se utilizou a metodologia de análise de conteúdo.

Desenvolvimento

1 Apresentação dos dados da pesquisa


1.1 Panoramas nacional, estadual e municipal de leis e políticas públicas.

Realizou-se uma catalogação das Leis, Políticas Públicas e informações sobre o


trabalho de proteção à mulher, nos âmbitos de seus direitos, cidadania e das discussões feitas
sobre a questão de violência, saúde, trabalho, gênero, raça, entre outros. Além disso,
procurou-se fazer um levantamento de forma comparativa, em todas as esferas de
competência. Os dados foram extraídos do Site da Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres (SPM), e do Site da Prefeitura de FRG-PR. Uma vez que, o legislador da Lei Maria

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da Penha procurou determinar e assegurar a forma de assistência que o poder público deve
oferecer a mulher vítima de violência. Além de trazer a definição de violência, preconizou
mecanismos para a implementação integral de políticas públicas “a serem adotadas pelos
poderes públicos nas esferas federal, estadual e municipal.” (DIAS, p. 201).
No site da SPM, Curitiba conta com uma Secretaria Municipal Extraordinária,
conforme decreto: 1635 de cinco de dezembro de 2013 e o Munícipio de FRG-PR constam
possuir uma Diretoria de Políticas Públicas para as mulheres, mas em decreto 4262, de 24 de
junho de 2016 o cargo de diretoria foi extinto, por consequência a diretoria. Desta maneira, os
dados apresentados pelo site não estão atualizados e FRG-PR aparece juntamente com mais
12 municípios do Paraná como tendo assinado o termo de adesão ao Pacto Nacional pelo
enfrentamento a violência e ao programa Mulher Viver sem Violência; No âmbito legislativo
de FRG-PR, realizou-se pesquisa com os verbetes: (Mulher 55 resultados; Violência 33
resultados; Violência Doméstica 4 resultados; Doméstica 7 resultados; Rede 338 resultados e
Intersetorial 4 resultados.) Afim, de verificar leis e ou atos normativos existentes no
município, tendo se destacado:
Lei n° 1122, de 14 de outubro de 2016, que cria a Patrulha Maria da Penha,
Lei n 927 de 27 de dezembro que altera a Lei n° 173/2003 de 8 de julho de
2003 que cria o conselho municipal dos direitos da mulher e o fundo
municipal dos direitos da mulher, Lei n°875 de 21 de dezembro de 2011 que
autoriza a criação da secretaria da mulher, Lei n°851/2011 de 7 de outubro de
2011 que autoriza a criação do centro de referência da Mulher e o Decreto n°
3662 de 12 de maio de 2014 que institui a comissão da rede de proteção
integral a família.

Verificou-se que em todas as esferas há um número significativo de leis e políticas


públicas a serem implantadas. A Lei Maria da Penha, dá início a um conjunto de ações, tendo
então o poder público que se adequar, criando seus mecanismos de prevenção e combate. Em
nível nacional, o site da SPM apresenta uma série de elementos que instrumentalizam os
estados e municípios e, como verificado na pesquisa, FRG-PR figura no site como possuindo
ainda uma Diretoria de Políticas Públicas para mulheres, e possui um número significativo de
leis e atos normativos de políticas que ainda não foram implementadas, valendo destacar a
criação da Secretaria da Mulher, a criação de um Centro Especializado de atendimento a
mulher, e uma Patrulha Maria da Penha, dentre outros.

1.2 Entrevistas- Análise de conteúdo


1.2.1 Metodologia

Os procedimentos metodológicos utilizados para a análise dos dados quantitativos e


qualitativos da pesquisa foi o de “análise de conteúdo”, uma vez que, segundo BARDIN

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(1977) apud BERELSON tal técnica faz a descrição de maneira objetiva, sistemática e
quantitativa do conteúdo. (p.19) O método afasta a subjetividade e a interpretação leviana,
pois permite a análise das comunicações, através das descrições dos conteúdos das
mensagens, com a intencionalidade de “inferência” dos conhecimentos: “inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção),
inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não). ” (p28-30)
A pesquisa qualitativa pode trazer respostas de uma maneira mais particular, assim
satisfazendo, a pesquisa de âmbito social, que por muitas vezes não consegue ser
quantificada, pois o campo de trabalho está repleto de significados (aspirações, crenças,
valores, culturas, atitudes, classes e etc.), sendo então esse conjunto de fenômenos de natureza
humana, parte da realidade social, assim “o universo da produção humana que pode ser
resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da
pesquisa qualitativa dificilmente pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos.”
(MINAYO, 2009, p.21). Sendo então realizados na presente pesquisa a abordagem
quantitativa e qualitativa, uma vez que possuem apenas diferenças de natureza e podem
coexistir juntas sem ordem hierárquicas determinantes para o seu uso, pois na pesquisa
quantitativa o pesquisador trabalha com estatística no intento de “criar modelos abstratos ou a
de descrever e explicar fenômenos que produzem regularidades, são recorrentes e exteriores
aos sujeitos”, por sua vez a pesquisa qualitativa, se atêm ao “mundo dos significados”,
precisando então ser interpretado pelo pesquisador, por se tratar de uma realidade não visível,
e que precisa ser exposta. (MINAYO 2009 APUD MINAYO, 2006).
Deste modo tais procedimentos se adequam para a finalidade proposta da pesquisa,
que se utilizou da coleta de dados por meio de entrevista social, instrumento de investigação
de um problema específico. (MANZINI, 1991, p.150). Uma vez, que o objetivo geral da
pesquisa foi verificar quais são os desafios para a implementação da rede de proteção à
mulher no município FRG-PR. Assim, para o desenvolvimento da pesquisa foram listados os
órgãos que devem compor a rede de proteção à mulher em comparativo com a cidade de
Curitiba que já possui uma rede formalizada, com mais de 60 órgãos (fonte do site Bem
Paraná). Desta listagem foram extraídos 23 órgãos presentes no município de FRG-PR, os
quais se tornaram o objeto da pesquisa, tendo seus gestores, coordenadores e membros
entrevistados.
Deste modo, foi realizada a aplicação de um questionário semi-estruturado,
composto por 5 perguntas fechadas (quantitativas) e 7 perguntas abertas (qualitativas), sendo
as primeiras assinaladas pelo próprio participante, e as demais respostas obtidas através de

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respostas gravadas. O questionário foi aplicado no período de maio a junho de 2017, aos 13
participantes, sendo estes gestores de políticas públicas, coordenadores e representantes de
órgãos, e profissionais e técnicos de referência, todos pertencentes a órgãos que deveriam
fazer parte da rede de proteção, e que atendem a mulher vítima de violência doméstica e seus
dependentes. Foram entrevistados 2 homens e 11 mulheres, com faixa etária entre 30 e 60
anos de idade. Dos entrevistados 11 possuem formação de nível superior e 2 de nível técnico-
médio, lotados nas secretarias de Saúde, Educação, Assistência, Conselho de Direitos,
Conselho Tutelar, Ministério Público e OAB. Os entrevistados não foram identificados por
suas funções e ou órgãos que representam e nas análises por razões diversas e na apresentação
dos dados serão identificados por letras de a até n. A análise dos resultados foi realizada
mediante apresentação das falas dos participantes.

1.2.2 Apresentação dos dados coletados e categorias

Os entrevistados responderam as questões quantitativas, assinalando-as numa escala


de 0 (para nenhum conhecimento) a 10 (para total conhecimento).A partir destas, avaliou-se o
grau de conhecimento, consistindo em perguntas fechadas e perguntas abertas, onde foram
feitos questionamentos para que os entrevistados respondessem de forma livre, sobre seu grau
de conhecimento e entendimento. As 11 primeiras perguntas do questionário foram divididas
em 5 categorias.

1.2.3 Primeira Categoria: Conhecimento da legislação- Normativa e políticas públicas


à mulher vítima de violência.

Questão I: Conhece a Lei Maria da Penha? SIM ( ) NÃO ( ) Para a questão I, com foram
obtidos resultados entre grau 4 e 10 de conhecimento. Destes, 4 dos entrevistados se
consideram com grau máximo de conhecimento enquanto o menor grau apresentado foi de 4
e diz respeito a somente a 1 entrevistado, entre os demais graus foram apresentados entre 5 e
9. Observou-se então que dos entrevistados, 10 se apresentam acima da média quanto ao
grau de conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, sendo apenas 3 com grau de
conhecimento abaixo da média.
Questão II: Já ouviu falar sobre o Pacto Nacional de Enfrentamento a violência contra a
mulher? Conhece as políticas públicas destinadas para as mulheres? Acredita que sejam
necessárias? (Pergunta aberta e gravada) Nesta questão a maioria dos entrevistados
relatou ter algum conhecimento, e apenas 2 entrevistados relataram não ter conhecimento
algum ou terem ouvido falar sobre.

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O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, consiste em um


acordo entre governo federal, estaduais e municipais, para o planejamento ações articuladas e
integralizadas de implementação de políticas públicas à mulher. (PACTO NACIONAL, p.11).
Tendo o município de FRG-PR no ano de 2013, assinado o termo de adesão ao Pacto
juntamente com 12 municípios paranaenses.
Quanto ao conhecimento das Políticas Públicas destinadas à mulher, os entrevistados
ficaram livres para falarem sobre o nível de conhecimento, não estando limitados somente ao
município, desta forma os resultados se deram: 7 entrevistados conhecem as políticas
públicas em nível nacional, estadual ou municipal; 5 entrevistados conhecem as políticas
públicas, mas não especificaram; E 1 entrevistado relatou não conhecer nenhuma. Porém
100% dos entrevistados relataram acreditar na necessidade e importância das políticas
públicas destinadas para as mulheres.
A primeira categoria demonstrou que a maior parcela dos entrevistados relatou
conhecer a Lei Maria da Penha, mas ao serem questionados sobre o conhecimento de Políticas
Públicas, alegaram ter conhecimento das políticas apenas em algumas esferas, outras não
conseguiram demonstrar, e ou não conheciam. Tal resultado é significante, uma vez que, a
definição de Política Pública é “o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de
acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo),
atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário), que visa, à realização dos fins
primordiais do Estado” (SMANIO, 2013, p.7), ou seja, a Lei Maria da Penha de 2006 e o
Pacto Nacional de 2007, como políticas públicas, vieram dar norte para o que se realiza diante
as ações referentes à mulher.

1.2.4 Segunda Categoria: Conhecimentos dos programas/órgãos e equipamentos


específicos

Questão III: Tem conhecimento de programas específicos e/ou especializados na


proteção a mulher vítima de violência no município? Para a questão III, com relação ao
conhecimento de programas específicos e ou especializados de atendimento a mulher, apenas
2 entrevistados relataram ter total conhecimento, e 5 entrevistados relataram não ter nenhum
conhecimento, tendo 6 entrevistados apresentado grau entre 5 e 9 de conhecimento de
programas específicos.
Questão IV: Conhece todos os equipamentos que devem compor a rede de proteção a
mulher? Para a questão IV, com relação ao conhecimento sobre os equipamentos que devam
compor a Rede de Proteção, apenas 1 entrevistado demonstrou não ter conhecimento sobre,

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4 entrevistados demonstraram ter total conhecimento sobre os equipamentos, 6 entrevistados


acreditam ter um alto conhecimento com grau entre 8 e 9, enquanto outros 2 com menos de 6
graus de conhecimento.
Questão V: Existe alguma rede de proteção voltada para mulheres no município? () Sim
() Não. Caso sim, quais equipamentos que são pertencentes à rede de proteção?
(Pergunta aberta e gravada) Para questão V, ao ser perguntado aos entrevistados sobre a
existência de alguma Rede de Proteção voltada às mulheres no município, 46% responderam
não ter nenhuma rede de proteção voltada as mulheres, e 54% demonstraram não ter certeza
sobre a existência de fato de uma Rede, desta maneira não se obteve nenhuma resposta sim.
E dentre os que relataram não existir uma rede de proteção específica à mulher, 2
apresentaram ter conhecimento de uma rede geral de atendimento à família, 4 relataram
apenas não ter. Dentre os que demonstraram não ter certeza em relação à existência de uma
rede, 3 relataram total desconhecimento, 1 relatou haver discussões sobre a rede, mas não
demonstrou certeza se existe ou não, 1 relatou haver uma rede, mas não soube informar se
era especifica e 2 mencionaram a rede geral, mas não foram específicos.
Na questão V, na segunda parte do questionamento, os entrevistados ficaram livres
para listarem o conhecimento dos órgãos que compõem a rede de proteção, seja a geral, como
mencionado por eles, ou até mesmo órgãos que acreditam fazer o atendimento à mulher
vítima de violência no município.
A segunda categoria demonstrou que maior parcela dos entrevistados relatou ter
conhecimento de algum programa específico ou especializado de atendimento, e que também
possui conhecimento dos equipamentos e órgãos que devem compor uma rede de proteção à
mulher vítima de violência. Os entrevistados na segunda parte do questionamento foram
indagados sobre os órgãos que em tese comporiam uma rede de proteção à mulher caso ela
existisse de maneira formalizada, alguns entrevistados apresentaram órgãos já existentes no
município, porém maioria listou órgãos não especializados: 1 entrevistado relatou a
importância do Conselho da mulher, no sentido de articulação da rede, 1 entrevistado
mencionou a Diretoria de Políticas Públicas para as mulheres, no entanto inexistente desde
junho do ano de 2016, conforme Decreto n°4262 de 24 de junho de 2016. Assim tendo 6
entrevistados mencionado o CREAS como um órgão de atendimento especializado a mulher,
e 1 entrevistado mencionado a importância da criação de uma Secretaria Municipal da
Mulher e a importância da parceria com as Comissões de Direitos Humanos da OAB-PR.
Verificou-se então, que apesar de grande maioria relatar conhecer os órgãos
específicos e que deveriam compor a rede de proteção, que uma parcela mínima possuía o

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entendimento dos órgãos especializados e específicos, confundindo com os não


especializados, assim não havendo a menção a órgãos e ou setores especializados de
atendimento como: Delegacia da Mulher, Centro de Referência de Atendimento a Mulher,
Casas de Acolhimento, Juizado Especial de Violência Doméstica, Núcleos de Defensoria
Pública, centro de educação e reabilitação para agressores e demais órgãos necessários,
como preconiza a Lei Marida da Penha em seu artigo 34 e diante e o Pacto Nacional de
Enfrentamento através de seus eixos estruturantes.

1.2.5 Terceira Categoria: Conhecimento do conceito de Rede de Proteção.

Questão VI: O que você entende por Rede de Proteção? (Pergunta aberta e gravada)
Para a questão VI, os entrevistados foram indagados sobre o entendimento sobre rede de
proteção, assim será apresentado uma lista dos principais verbetes, substantivos e ou frases
extraídas das respostas, e o conceito de rede de proteção apresentado por Carvalho (2010).
Rede de proteção segundo os entrevistados é: “Solução; Grande estratégia;
Funcionamento; Construção; Formalização; Efetividade; Trabalho de
proteção, que abrange outras áreas, trabalho de defesa de direitos, proteção
que abrange todas as secretarias; Personalidade; Praticidade; Junção; Rede de
pessoas; Conjunto de Pessoas; Serviços, trabalhos, ações articuladas;
Atendimento, ações e órgãos integrados; Mecanismos; Mitigação de direitos
violados; Teia; Cobertura; Ação de prevenção, reparação e acompanhamento;
Rede interdisciplinar e intersetorial; Quando o todo se envolve pra
desenvolver ações, ou atendimentos específicos necessários; união entre os
vários departamentos; própria família, com a conscientização; Suporte;
Amplo.”

Rede de proteção segundo Carvalho (2010) é, um conceito contemporâneo e atual,


que sugere transformação na gestão pública social, pois “introduz novos valores, habilidades e
processos, necessários à condução do trabalho social numa realidade complexa”. É a
representação das variadas relações e conexões de um ambiente complexo, que representam o
comportamento da sociedade, podendo ser denominada de uma “sociedade-rede”. (p8) E
como visto nas respostas dos entrevistados, verificou-se que os mesmos acreditam na
importância do trabalho em rede, apresentando-as como meio de solucionar situações
complexas, através do funcionamento, da construção, formalização e efetivação do trabalho
de proteção, de forma abrangente e que agrega outras áreas, setores e ou pessoas.
O trabalho e ou a ação em rede proporciona uma totalidade, a união do que se está
fragmentado, pois “exige apreender a realidade social e nela agir como um complexo, um
todo que é tecido junto. Impõem uma perspectiva que integre, organize e totalize. ”
(CARVALHO, 2010, p8 apud NOGUEIRA, 2001, p35). Portanto, nas respostas dos
entrevistados, a união, junção, a integralidade, o conjunto ou rede de pessoas, a rede

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interdisciplinar e intersetorial foram mencionadas por mais de um entrevistado


repetidamente, trazendo de fato o entendimento do conceito de rede.
Assim a comunicação e a articulação são elementos indispensáveis para a ação em
rede de proteção, pois “costuram a oferta de oportunidades e de acesso a serviços e relações
no território; conjugam e integram a população-alvo a uma cadeia de programas e serviços
ligados entre si”, desta forma as ações impedem o isolamento e possibilita as ações de
intervenção inclusivas e agregadoras de todas as áreas. (CARVALHO, 2010, p.8-9) Desta
maneira verificou-se que 100% dos entrevistados compreendem o conceito de Rede de
Proteção e verificam a sua importância.
Questão VII: Existe uma rede de atendimento e rede de enfrentamento município?
(Pergunta aberta e gravada) Para questão VII, onde o questionamento tratou sobre a
existência de uma Rede de atendimento e de Rede de enfrentamento, nenhum dos
entrevistados soube afirmar ter conhecimento sobre, tendo 54% respondido que não existe
rede de atendimento e ou rede de enfrentamento no município e 46% não ter certeza da
existência de ambas as redes, ou do que elas se tratavam.
Entende-se por rede de enfrentamento todas as ações articuladas dos serviços
existentes que promovem um plano de prevenção por meio das políticas públicas,
diferentemente de rede de atendimento que é por sua vez a relação dos conjuntos de serviços
intersetoriais (assistência, saúde, justiça, segurança, educação) (p.18) Assim, a rede de
enfrentamento objetiva os quatro eixos presentes na Política Nacional de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres, no que diz respeito ao combate, prevenção, assistência e
garantia de direitos, sendo a rede de atendimento parte da rede de enfrentamento, no que
concerne a assistência. (Cartilha da União Brasileira de Mulheres-UBM)
Por sua vez 8 entrevistados apresentaram respostas confusas a respeito da Rede de
enfrentamento e rede de atendimento e 5 relataram desconhecer.
Respostas dos entrevistados: a): “Dentro do município a gente tem a rede de
atendimento, que eu acredito que sejam todos os equipamentos públicos,
principalmente da assistência e da saúde (...). E a rede de enfrentamento eu
acho que deveria ser alguma coisa relacionada à rede de proteção, mas eu
acho que a rede de enfrentamento está bem precária, a gente realmente não
tem, pelo menos eu não vejo. ” b) “De atendimento nós conhecemos, de
enfrentamento o único que eu conheço mesmo que faz que trabalha com
políticas públicas de prevenção é o CREAS e o CRAS dentro do serviço de
convivência. ” c) “No município? “Não, a não ser, e sim quando o CREAS
desenvolve em parceria algum atendimento e atividades relacionadas a esse
público” d)“Rede de atendimento, como te falei. Tem a rede de atendimento
só que rede de enfrentamento seria mais em relação a serviços eu entendo,
mas não é muito divulgado isso, por mais que a gente esteja na rede, e a rede
ela composta por diversas políticas públicas, a gente não sabe quais são os
serviços. ” e) “Enquanto Rede é o que eu estava dizendo na resposta anterior,

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ela não existe instituída, este é um desafio para que a gente possa realmente
instituir uma rede de atendimento e uma rede de enfrentamento a violência
contra a mulher, existem serviços, você participa de um dos equipamentos
que é o CREAS, mas a gente sabe que na saúde têm que desenvolver, na
educação tem que se desenvolverem, provavelmente eles o desenvolvem,
mas não se tem a concepção de rede e de integralidade, ou seja, todo mundo
está fazendo e de repente a gente não está fazendo justamente por não ter
uma rede, então institucionalmente não existe rede de atendimento e nem de
enfrentamento.” f) “Desta perspectiva que eu te expliquei da rede de
proteção, que a gente está falando agora, nós temos equipamentos que
acabam isoladamente nesta questão de enfrentamento e atendimento a mulher
vítima de violência, então nos falta, e eu acho que é até a pergunta 10, nos
falta um protocolo de atendimento, então o que, que acontece nós temos
pontos de atendimento, que infelizmente e não necessariamente vem se
configurando como uma rede, porque eles não estão com aquele fluxo, com
aquele protocolo de trabalho que nos tranquiliza.” g) “Rede de atendimento
existe, mas não específica, mas existe rede de atendimento e enfrentamento
no meu entendimento, daí seriam as especificas ligada a saúde, as segurança
pública, questão de juizado especifico para esse atendimento, então eu
acredito que esses específicos no município não têm e dificultam bastante o
trabalho.” h) “Com esse nome rede não, nem tanto um como o outro. Mas
que eu acredito que aconteça o atendimento e o enfrentamento sim. ”

Nesta categoria todos os entrevistados demonstraram ter entendimento sobre o


conceito de rede de proteção, sua importância e sobre o seu trabalho, por sua vez, ao serem
indagados quanto a existência de uma rede de atendimento e uma rede de enfrentamento, uma
grande parcela apresentou respostas confusas, não sabendo diferencia-las, ou dizer qual
acreditavam ter no município, ou confundindo a rede com órgãos e ou setores com trabalhos
isolados, 5 entrevistados apenas disseram não ter conhecimento da existência das redes, assim
não demonstrando ter conhecimento ou não sobre a diferenciação de ambas as redes, estas que
se constituem importantíssimas, onde a rede de enfrentamento é aquela contemplada pelo
Pacto Nacional que apresenta o plano norteador para a criação, implementação e efetivação
das políticas públicas, tendo então a rede de atendimento como parte no que consiste ao
tocante à assistência. (Pacto Nacional, 2011)

1.2.6 Quarta Categoria Importância do trabalho em Rede

Questão VIII e IX: Acredita ser importante o trabalho articulado? Acredita ser
importante a Intersetorialidade e a Multidisciplinaridade nas ações desenvolvidas pela
rede de proteção?
Em políticas públicas a interdisciplinaridade é denominada como intersetorialidade, que
consiste na articulação entre os diversos saberes e experiências de maneira interdisciplinar, na
finalidade de planejar, avaliar e realizar programas e projetos. (GUARAJU p.3 apud
INOJOSA, 2011, p.105). Assim mantém-se a natureza de cada setor, objetivando a troca de
experiências e conhecimentos para os trabalhos em comum, articulados de alta complexidade

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e de ordem social, na busca de resultados integrados. Tal trabalho aponta para a rede, para a
conexão entre os órgãos, equipamentos e setores envolvidos, de forma interdependente e
complementar, assim faz-se importante conhecer o trabalho em rede para desenvolver um
planejamento das ações entre os diversos setores, e compreender a dinâmica do processo. (p3-
6) Por sua vez, a interdisciplinaridade é confundida com a multidisciplinariedade, que
“significa a justaposição de diferentes campos de saber para a realização de determinado
trabalho sem que as disciplinas envolvidas se transformem ou sejam enriquecidas por outra e
sem que haja coordenação do trabalho em equipe”. (FERRO, et al, 2014, p130)
Nesta categoria 100 % dos entrevistados relataram a importância da interação entre
os órgãos, através do trabalho intersetorial, interdisciplinar e multidisciplinar. No entanto, em
outras categorias demonstraram não ter conhecimento dos órgãos específicos e especializados
de composição da rede de proteção, confundindo também os conceitos e entendimentos de
rede de atendimento e rede de enfrentamento, que estão presentes no Pacto Nacional pelo
enfrentamento a violência que por sua vez, relataram ter um bom conhecimento.

1.2.7 Quinta Categoria: Efetivação das Políticas Públicas e da Rede de Proteção à


Mulher vítima de violência doméstica

Questão X: Existe algum tipo de protocolo de atendimento a mulher vítima de violência


no município? (Pergunta aberta e gravada) Para questão X, 6 entrevistados relataram que
o município não possui um protocolo definido de atendimento,6 entrevistados demonstraram
não ter certeza quanto ao que consiste o protocolo, bem como de sua existência,
apresentando respostas confusas, ou apresentando o CREAS como um órgão que possui um
protocolo.

a)“Eu acredito que existe, mas se eu falar pra você que existe um setor
específico que é pra isso, para atendimento a mulher vítima de violência não
existe que eu saiba não existe (...) o CREAS ele tem o seu protocolo de
atendimento, na saúde eles também tem um procedimento, esse protocolo,
mas assim um setor específico pra isso não. Eu acho que não. ” b):
“Protocolo se existe eu nunca tive acesso, porem eu sei que existe a demanda
e um fluxo de atendimento, porem eu não sei, se protocolizado. ”c) “(...) no
CREAS tem protocolo pra atender a mulher, mas isso ainda está muito solto,
a gente tem que construir isso um protocolo de forma a institucionalizar uma
rede de atendimento ou de enfrentamento da proteção à mulher. ” d) “Não.
Eu acredito que não, embora chega na delegacia, vai direto pro CREAS, não
há um atendimento assim, eu entendo por protocolo quando você humaniza
também o atendimento” e):“Acredito que através do CREAS.”f)“Então o
protocolo é mais relacionado ao CRAS e ao CREAS, dai eles fazem um
trabalho lá voltado a essas especificidades.”

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Apenas 1 entrevistado relatou conhecer um protocolo, dentro de seu setor de


atuação e específico de sua área, 1 relatou ter ouvido discussões sobre a construção de um
protocolo.

a) “eu participei do comitê de saúde mental, e ali foram passadas algumas


orientações, não só em relação a mulher, a violência contra a mulher, mas eu
acho que pode ser um ponta pé inicial para que a gente consiga implantar este
protocolo, mas eu vejo que não tem. b) “Sim, temos. Dentro da saúde a gente
tem todas as etapas que a gente tem que seguir, se chegou uma mulher vítima
de violência a gente sabe, eu tenho que encaminhar pro hospital de
referência, tem o centro de orientação e aconselhamento, dependendo se foi
uma violência sexual, se foi uma violência física, a gente tem o passo a
passo. Acredito que talvez a gente precise mais educação permanente, das
pessoas que estão lá na ponta saberem melhor o que fazer quando a gente
recebe uma mulher vítima de violência, mas o protocolo existe.”

O Pacto Nacional em seus eixos reforça o disposto na Lei Maria da Penha, sobre a
importância da criação de protocolos, e fluxos de atendimento a mulher, a fim de humanizar
os atendimentos, bem como o programa “Mulher Viver sem Violência” que apresenta as
diretrizes para os protocolos de atendimento da “Casa da Mulher Brasileira. ”. Desta
maneira, verificou-se que entre a maioria dos entrevistados houve uma confusão quanto ao
conhecimento de protocolos, bem como de sua existência e natureza.
Questão XI: Quais seriam os principais desafios para construção da rede de proteção a
mulher vítima de violência? Dentre as respostas, algumas palavras foram recorrentes:
sensibilização dos agentes, a falta de articulação, a questão ou problema social,
conscientização da sociedade e do poder público e a necessidade da existência de empatia dos
gestores públicos com o tema.
Dos entrevistados 1 mencionou o machismo e o patriarcado, citou a criação de uma
“Secretaria Municipal” específica, que segundo o entrevistado, seria “importante para fazer
esse trabalho social de conscientização”. Em relação ainda a conscientização, foi relatado à
necessidade de entendimento e importância do trabalho em rede.
Como desafio também foi mencionada a inexistência de um protocolo e de um fluxo
de atendimento, “o maior desafio é formalizar, é protocolizar”. Também houve menção a
palavra debate, como instrumento para a conscientização dos órgãos intersetoriais e da
sociedade. Dos entrevistados 1 mencionou como desafio a própria questão de emancipação da
mulher. Outro que o maior desafio além da “conscientização é a questão social que é profunda


http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/publicacoes/2015/diretrizes-gerais-e-protocolo-de-
atendimento-cmb.pdf

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e que tem que haver a união de várias entidades da sociedade civil e mesmo do Estado para
tentar mudar essa realidade”.
Dos entrevistados 2 mencionaram a questão de conhecimento das politicas e questão
de investimento “envolve documentos, a questão de recursos financeiros (...) seriam os
recursos mesmo que o município oferece”. Ainda foi mencionada a falta de conexão da rede,
o não entendimento das ações integrais e da importância de cada órgão ou setor e de que seu
trabalho não deve ser isolado, a quebra de paradigma, “o principal desafio é a sensibilização
dos próprios atores que constituem essa rede, dos técnicos, a conscientização da importância
deste trabalho intersetorial e multidisciplinar”; A falta de comunicação entre os gestores, os
profissionais e equipamentos “os nossos gestores públicos ainda enxergam as políticas
públicas individualizadas”, “os equipamentos públicos não se comunicam”.
Ainda quanto à gestão, foi mencionada a questão de interesse público “querer fazer”,
“ter uma gestão que queira ter isso no município”. Por fim, alguns abordaram questões que
fugiam do questionamento principal que era o desafio para a construção da rede, como a
questão da divulgação dos trabalhos existentes “ser mais divulgado”, o “ciclo de violência”,
que por sua vez só poderá ser quebrado quando houver existência de uma rede, sendo então
este um desafio no que diz respeito ao enfrentamento a violência e não a construção de uma
rede de proteção, a questão do tratamento dado à mulher vítima de violência dentro do
equipamento público que também consiste num desafio que tem possibilidades de superação
quando houver uma rede instituída e com um protocolo e fluxo de atendimento formalizado, e
também como desafio, mas que também constitui uma ação após rede construída, a criação de
um centro de atendimento e acolhida para a mulher vítima de violência.
Na quinta categoria verificou-se que os entrevistados não possuem um entendimento
claro quanto ao protocolo de atendimento de rede à mulher, relatando desconhecimento e ou
incerteza de sua existência em FRG-PR, uma vez que o protocolo é um instrumento
importante da rede, para definição de um fluxo de atendimento. No segundo questionamento
feito na categoria, verificou-se que os desafios apresentados foram muitos, e teve como
unanimidade a questão da falta de articulação, a dificuldade do trabalho intersetorial e
integrado, a própria visão da importância do trabalho de rede e do sentimento de
pertencimento da rede. Verificou-se nessa categoria, que os entrevistados acreditam ser
importante a formação e o trabalho em rede, no entanto, não possuem entendimento do
protocolo, dos fluxos, confundindo os papéis dos órgãos, vendo os protocolos de maneira
individualizada.

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Desta maneira, verifica-se que a sensibilização se faz necessário, pois a Lei Maria da
Penha por si só, não dá conta da problemática que se constitui a violência doméstica, sendo
necessária a adoção de políticas públicas, que abarquem a questão social e rompam o ciclo de
violência perpetuado pelo patriarcado e machismo. É necessário a constituição de órgãos e
instrumentos de proteção a mulher, que materializem o que a lei propõem, “Assim,
indispensável à implementação de uma Ação de Políticas Públicas voltada a alcançar os
direitos sociais e fundamentais de todos os cidadãos, incluindo, em especial, as mulheres
vítimas de violência doméstica. ” (DIAS, 2012, p.200) Deste modo, a Lei Maria da Penha,
impõem mecanismos de repressão a violência, através da condicionalidade de
“implementação integral” de seus mecanismos, enumerando as providências que os poderes
públicos (federal, estadual e municipal) devem adotar, sendo uma delas prevista no art. 8, VI,
que é a “celebração de convênios, protocolos, termos e outros instrumentos” (p.201) (grifo
nosso)

Considerações finais.

A rede de proteção possui papel fundamental no que diz respeito ao atendimento


oferecido à mulher, pois é através dela e de sua articulação, que a mulher pode se empoderar e
romper com o ciclo de violência vivido, tendo a Lei Maria da Penha instrumentalizado o
poder público em suas competências, e condicionando à criação, implantação e
implementação de políticas públicas de rede e intersetoriais, fundamentais para o
enfrentamento da violência.
No entanto, observou-se que no município de FRG-PR há muito para se avançar,
pois os desafios para a construção da Rede de Proteção são muitos, perpassando a: falta de
comunicação e articulação entre os gestores e equipamentos públicos, a própria percepção
da noção do trabalho em rede, a questão de pertencimento, as ações isoladas, a falta de
interesse, observado no desconhecimento de alguns conceitos e ou das próprias políticas
públicas já existentes, em todas as esferas, mas, sobretudo no que se destacou, nas políticas
que o próprio município já possui.
A pesquisa foi realizada no intuito de identificar as potencialidades e fragilidades do
munícipio, e nessa seara, observou-se que a maior potencialidade encontra-se no profissional
atuante da rede, sobretudo daqueles que possuem certo grau de conhecimento e entendimento
de rede e o socializa, no entanto as fragilidades demonstraram-se significativas, uma
unanimidade de entrevistados declarou ser importante o trabalho em rede e articulado e
acreditam na força do trabalho intersetorial, observam a violência como uma questão social a

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ser resolvida, no entanto, entre os entrevistados, poucos apresentaram “soluções” plausíveis e


condizentes com a realidade do município, verificou-se o “querer fazer”, mas sempre
aguardando que “o outro faça”.
A proposta inicial da pesquisa era entrevistar 24 órgãos que em tese comporiam uma
rede de proteção, todos não especializados, pois se verificou que FRG-PR não possuía órgãos
especializados. No entanto dos 24 órgãos convidados à entrevista, apenas 13 foram
entrevistados, considerando a questão de incompatibilidades de agendas, a falta de retorno, ou
até mesmo a falta de interesse para a contribuição com a pesquisa, sendo isto considerado um
dos problemas da pesquisa, outro ponto relevante, foi a questão do tempo limitado, não
podendo ser todos os dados coletados explorados. Por sua vez, a proposta inicial do trabalho
foi alcançada, pois os entrevistados contribuíram para com o questionamento, que consistia
nos desafios para a construção da rede de proteção, tendo então a pesquisa possibilitado o
debate sobre o tema, além de apresentar através da pesquisa, políticas públicas já existentes
no município de FRG-PR e que precisam apenas ser implementadas, através da articulação
dos gestores, e equipamentos públicos.
Ressalta-se que no inicio do ano de 2018, a Diretoria de Politicas Públicas para as
mulheres foi reativada, houve a criação da Secretaria da Mulher e está havendo articulações
para a criação da Patrulha Maria da Penha. A Secretaria até o momento vem no intuito de ser
articuladora e não executora, pois está em fase de construção, uma vez que ainda não se tem
delimitado e formalizado um fluxo de atendimento e não se possuem órgãos específicos.
E por fim, como grande desafio, além da articulação e da intersetorialidade tão
mencionada, é importante ressaltar o “querer fazer”, pois as políticas públicas já são
existentes, precisam apenas serem implantadas, implementadas e efetivadas.

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Rede de atendimento à mulher em situação de violência: uma aproximação ao


município de Toledo/PR

Pamela Ellen de O. Pecegueiro1


Camila K. Alves2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma análise da atual estruturação
da rede de atendimentos às mulheres em situação de violência no município de Toledo,
partindo de dados coletados e informações obtidas a partir do recente início dos trabalhos do
Núcleo Maria da Penha – NUMAPE Toledo. A proposta é pensarmos a organização das
políticas voltadas ao combate às desigualdades de gênero a partir das identificadas
fragilidades da representatividade democrática das mulheres nos espaços de deliberação de
políticas sociais. Em seguida refletir como essas dificuldades se traduzem no cotidiano de
concretização das políticas públicas para mulheres em Toledo. A partir dos dados coletados
até o momento, se propõe analisar como o gênero é articulado às noções de violência e
conflito pelos atendimentos às mulheres em situação de violência; e de que forma os serviços
alimentam as lógicas de dominação masculina ao concentrar suas práticas somente no âmbito
do atendimento e acompanhamento destas mulheres, tencionando para a judicialização das
relações de conflito. Por fim, aponta-se o caminho da intersetorialidade como estratégia
fundamental para o desenvolvimento das políticas públicas. Os recursos metodológicos
consistiram em reuniões e visitas técnicas aos serviços de atendimento à mulher e instâncias
jurídicas – Secretaria de Política Para Mulheres (SPM), Patrulha Maria da Penha (PMP), 1ª
Vara Criminal da Comarca de Toledo; pesquisa bibliográfica pelas teorias de gênero que
abordam o tema da violência contra a mulher e pesquisa documental. Os resultados apontam
para importantes fragilidades no trabalho desenvolvido pela Secretaria de Políticas para
Mulheres que acabam por comprometer o atendimento ofertado pelo município.

Palavras-chaves: Políticas públicas; violência de gênero; intersetorialidade.

1
Numape-Núcleo Maria da Penha / Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Assistente Social e
aluna especial no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Mestrado da Unioeste;
pamelapecegueiro@hotmail.com.
2
Numape-Núcleo Maria da Penha / Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Licenciada em
Ciências Sociais; graduanda do Bacharel em Ciências Sociais; kalvescamila@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p844 844


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Introdução

As políticas de gênero conquistaram espaços na agenda pública como resultado da


luta política travada durante anos pelo movimento de mulheres. O reconhecimento das
demandas sociais levantadas por este segmento da população como política pública, ainda que
com diversos limites, representou grandes avanços e conquistas que permitiram avançar na
garantia de direitos humanos fundamentais que sempre estiveram subalternizados na ordem da
sociedade patriarcal e capitalista.
A usurpação dessas conquistas pelo governo ilegítimo de Michel Temer, busca
lançar novamente à invisibilidade e subalternidade os direitos que o movimento de mulheres
ansiava elevar ao patamar de políticas de Estado, o que é evidente, por exemplo, na extinção
do recente Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos
Humanos em menos de 24 horas de governo Temer. No município de Toledo-PR, a exemplo
da realidade nacional, as já escassas e precarizadas políticas para mulheres, sentem novos
ataques com a mudança da gestão municipal e atualmente sofreram com a ameaça de extinção
da Secretaria de Políticas para Mulheres, barrada pela pressão popular e movimentos
organizados.
Nesse contexto, deu-se início em 2018 as atividades do Núcleo Maria da Penha -
Numape Toledo, um programa de extensão da Universidade Estadual do Oeste do Paraná -
Unioeste, vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - SETI. Composto
entre outras profissões, por uma cientista social e por uma assistente social, um dos papéis do
Numape é a construção de conhecimentos que contribuam para a articulação e qualificação da
rede de proteção social de Toledo. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo
apresentar uma análise da atual estruturação da rede de atendimentos às mulheres em situação
de violência no município de Toledo, partindo de dados coletados e informações obtidas a
partir do recente início dos trabalhos do Núcleo Maria da Penha.
A proposta é pensarmos a organização das políticas voltadas ao combate às
desigualdades de gênero a partir das identificadas fragilidades da representatividade
democrática das mulheres nos espaços de deliberação de políticas sociais. Em seguida refletir
como essas dificuldades se traduzem no cotidiano de concretização das políticas públicas para
mulheres em Toledo: demonstrar como estão sujeitas às vontades políticas que oscilam
conforme os arranjos de relações governamentais que se estabelecem desde as esferas
representativas até às equipes de técnicos que aplicam as políticas públicas.

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A partir dos dados coletados até o momento, se propõe analisar como o gênero é
articulado às noções de violência e conflito pelos atendimentos às mulheres em situação de
violência; e de que forma os serviços alimentam as lógicas de dominação masculina ao
concentrar suas práticas somente no âmbito do atendimento e acompanhamento destas
mulheres, tencionando para a judicialização das relações de conflito. Por fim, apontar como a
transversalidade do uso da categoria gênero como marcador de diferenças sociais em todos os
espaços da rede de atendimentos pode fornecer ferramentas importantes para a consolidação
de práticas de intersetorialidade.
Os recursos metodológicos consistiram em reuniões e visitas técnicas aos serviços de
atendimento à mulher e instâncias jurídicas – Secretaria de Política Para Mulheres (SPM),
Delegacia da Mulher (DDM), Patrulha Maria da Penha (PMP), juíza da 1ª Vara Criminal da
Comarca de Toledo; pesquisa bibliográfica pelas teorias de gênero que abordam o tema da
violência contra a mulher e pesquisa documental. Os resultados apontam para importantes
fragilidades no trabalho desenvolvido pela Secretaria de Políticas para Mulheres que acabam
por comprometer o atendimento ofertado pelo município.

1 Políticas para mulheres

É incontestável que o desenvolvimento de políticas públicas que assegurem direitos e


a disponibilidade de instituições, possibilitam condições objetivas3 para a superação da
violência contra a mulher. Somado a isso, tais garantias contribuem para o desenvolvimento
de culturas que rejeitem a violência de gênero. Importa ressaltar ainda que, a adoção de
políticas implica necessariamente medidas concretas como: planos, serviços, orçamento,
regulamentações, etc.
No Brasil, em meados da década de 1980, as Delegacias de Polícia de Defesa da
Mulher se constituíram nos primeiros serviços de atendimento à mulher em situação de
violência. No entanto, é a partir dos anos 2000 que se nota de forma mais qualificada a
organização de políticas para mulheres com a criação, em 2003, da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres que, por meio dos Planos Nacionais promove a adoção de políticas
relacionadas a este segmento (MIRALES, 2013). De acordo com Mirales (2003),

3
Não se pode negar o fato de que, muito embora a ausência de condições objetivas torna-se o maior empecilho
para o abandono de uma situação de violência, processos subjetivos interferem nas respostas projetadas por essas
mulheres.

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Até a realização da I Conferência de Políticas para Mulheres (BRASIL,


2004) e a criação do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, os serviços
eram escassos, constituídos pontualmente como conquistas do movimento
feminista e das mulheres, no contexto das administrações públicas ou, às
vezes, também executadas por organizações não governamentais, geralmente
situadas nos grandes centros urbanos (MIRALES, 2013, p. 19)

Para uma melhor compreensão das políticas para mulheres no país é importante
destacar que embora a elaboração de Planos Nacionais representa avanços significativos para
a oferta e garantia de direitos, não há no país uma Política de Igualdade de Gênero ou um
Sistema Nacional de Políticas para Mulheres, que exigem um arcabouço legal. Isso significa
que as políticas para as mulheres se desenvolvem no interior de outras políticas sociais
existentes, como a Assistência Social, Saúde e Segurança Pública.
Se por um lado isso estimula ou contribui para práticas intersetoriais, dimensão
importante para um atendimento integral das demandas sociais como veremos mais adiante,
por outro, as políticas para mulheres encontram-se sempre na periferia das discussões e
decisões, sendo também vulnerável a oscilações dos programas de governo e interesses
políticos.
Registra-se4, desde a criação da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres
(março, 2013), quatro Conferências Nacionais (2004, 2007, 2011 e 2016) e três Planos
Nacionais, elaborados a partir das três primeiras Conferências. A 4º Conferência realizada
entre os dias 10 a 13 de maio de 2016, que tinha como um dos objetivos discutir e definir
subsídios e recomendações para a construção do Sistema Nacional de Políticas para as
Mulheres, aconteceu simultaneamente à posse de Michel Temer (11/05/2016) e desde então,
as políticas para mulheres sofrem enormes retrocessos. Nesse sentido, importa propor uma
reflexão sobre a presença das mulheres na política e a luta pela representatividade,
participação e poder de decisão na construção das políticas sociais.

1.1 A representatividade das mulheres e as políticas sociais:

Acreditamos que para oferecer um panorama consistente das políticas sociais que
dizem respeito a gênero faz-se necessário, ainda que de maneira breve, considerar aspectos
estruturais do sistema político no Brasil. Para tanto, buscamos referências de uma abordagem
teórico-feminista das Ciências Sociais, propondo análises que desnaturalizam as relações de

4
Cabe ressaltar ainda, a existência e avanços com as Políticas Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres e de Atenção Integral à Saúde da Mulher, bem como com a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006,
conhecida como Lei Maria da Penha.

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gênero e buscam interpretá-las evidenciando assim as relações de poder que organizam estas
dinâmicas sociais de desigualdade baseadas nas diferenças entre os sexos.
No Brasil, as lutas e mobilizações das mulheres, garantiram-lhes o direito ao voto,
maior acesso à educação e ao mercado de trabalho e romperam com muitas das relações de
submissão e dependência em relação aos homens. Ainda assim, a tradicional separação das
esferas público e privado, condiciona a grande maioria das mulheres a desempenhar relações
de reprodução das atividades domésticas, para além de cumprir sua função social produtiva,
sobrando pouco espaço e tempo para a participação na esfera das relações públicas e políticas.
Se observarmos o perfil dos representantes brasileiros, fica evidente a
predominância de homens, sobretudo da classe social dominante e em sua grande maioria,
brancos. Nas eleições municipais de 2016, segundo as estatísticas do Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), 87% dos eleitos são homens e somente 13% são mulheres. Os dados indicam
também que, entre os 57.862 vereadores(as) eleitos no Brasil, somente 329 são mulheres
negras e 22 mulheres indígenas. Esses números tornam-se ainda mais alarmantes diante do
fato de que as mulheres correspondem a 51,6% da população brasileira, segundo o CENSO de
2010.
Em uma tentativa de garantir às mulheres espaço para a representação política, a
Justiça Eleitoral, por meio da Lei 9.504/1997, prevê, no artigo 10, parágrafo 3º, no mínimo
30% de candidaturas de mulheres nas legendas que disputam as eleições. No entanto,
assegurar juridicamente a presença de mulheres na política não dá conta de superar a
assimetria das relações de poder entre homens e mulheres. Como primeiro passo para
estimular a presença das mulheres nas arenas de representatividade, as instituições necessitam
de um acúmulo de reflexões sobre os contextos de inserção da mulher na política e as
dinâmicas das relações sociais. Neste aspecto, a teoria política, por meio dos feminismos
presentes nestes contextos de produção de conhecimento, passa a acionar gênero e outros
marcadores de diferença e desigualdade (raça e classe, por exemplo) para explicar porque é
tão difícil para as mulheres conseguir um lugar na democracia representativa.
Como observa Flávia Biroli (2016), gênero por si só não é o único marcador que
produz desigualdades para o acesso das mulheres à política; raça e classe combinados com
gênero vão alargando a distância entre a grande maioria das mulheres e os cargos
representativos. A autora afirma: “[...] são ativados filtros que incidem sobre as mulheres no
acesso a ocupações e no acesso ao âmbito da política institucional, constituindo padrões
sistemáticos de exclusão e de marginalização.” (BIROLI, 2016, p. 721). O argumento desta
autora consiste em apontar como as desigualdades geradas a partir divisão sexual do trabalho

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refletem na presença das mulheres nos espaços representativos pois “[...] implica menor
acesso das mulheres a tempo livre e a renda, o que tem impacto nas suas possibilidades de
participação política e nos padrões que essa participação assume” (BIROLI, 2016, p.721).
A pequena participação das mulheres na política representativa, nos termos que aqui
foram expostos, demonstra uma forma de violência de gênero que se expressa na esfera
pública das relações sociais e compromete a consolidação de políticas sociais de gênero. As
dinâmicas das desigualdades de gênero estão enraizadas na cultura das sociedades ocidentais
contemporâneas, como é o caso do Brasil; superá-las requer o entendimento de como se
estabelecem, para que seja possível interferir na reprodução de práticas de exclusão por meio
da elaboração de políticas sociais de gênero que sejam eficientes.

2 Violência e gênero nas práticas da rede de atendimento às mulheres de Toledo

Como indicado no início deste trabalho, no Brasil, desde o início do século 21, uma
série de avanços nas políticas sociais de gênero se consolidaram. A Lei Maria da Penha, a
Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, o acompanhamento
estatístico oficial dos casos de violência contra a mulher, previsto pela Lei 11.340 a Maria da
Penha, os Conselhos Municipais. Foram medidas institucionais que se somaram às políticas
de gênero que vinham se desenvolvendo desde a redemocratização política do Brasil.
Entre as demandas das mulheres por equidade de gênero na sociedade, a pauta da
violação dos direitos humanos causados pela violência doméstica ganhou grande visibilidade
e resultou na institucionalização de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
No município de Toledo, o combate à violência contra a mulher é o principal foco das
políticas públicas de gênero. A rede é composta pela Secretaria de Políticas para Mulheres
(SPM), a Delegacia da Mulher (DDM) e a Patrulha Maria da Penha (PMP). A aproximação
com a rede se deu por meio do trabalho que as autoras desenvolvem no programa de extensão
Núcleo Maria da Penha - Numape Toledo.
Iniciado em março de 2018, o Numape oferece atendimento sociojurídico à mulher
em situação de violência e desenvolve atividades socioeducativas e de prevenção à violência.
Cumpre também a função de contribuir para a articulação da rede de atendimento à mulher
em situação de violência no município de Toledo a partir da sistematização de conhecimentos,

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informações e participação ativa na Rede Intersetorial de Proteção Social de Toledo - RIPS


que atualmente se debruça na temática da violência sexual5.
A consolidação desse espaço exigiu um levantamento inicial e aproximativo da rede
de atendimento às mulheres e uma aproximação aos serviços ofertados pelo município que
oferecessem informações iniciais para se projetar uma ação articulada entre os atores desta
rede. Dessa forma, realizou-se um levantamento documental, reuniões e visitas institucionais
aos diversos espaços e serviços que permitiram as considerações a seguir.
Criada em 2005 pela Lei Municipal nº 1.886 (TOLEDO, 2005), a Secretaria de
Atendimento à Mulher do município de Toledo passa por reestruturação no ano de 2013,
passando a denominar-se Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM). De acordo com o
disposto no art. 6º, inciso VIII da Lei Municipal nº 2.120/2013, que alterou a Lei
nº1.886/2005 são atribuições da SPM, no que tange a violência: “e) assistir e garantir os
direitos das mulheres em situação de violência, atuando na prevenção e combate à violência,
em articulação com os demais órgãos públicos;” (TOLEDO, 2013)
Uma das ações da SPM foi o planejamento em 2015 e a implantação em 2016 da
Patrulha Maria da Penha, instituída por meio da Lei “R” n. 140 de 29 de novembro de 2016.
A implantação da Patrulha Maria da Penha é fruto de um Termo de Cooperação entre o
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e as Secretarias Municipais de Políticas para
Mulheres e Segurança e Trânsito. Sendo a 4º cidade no estado do Paraná a aderir ao
programa, o município avança ao qualificar a composição da equipe que compõe a Patrulha
estabelecendo na Lei Municipal a composição de no mínimo dois profissionais da Guarda
municipal (um do sexo masculino e um feminino), um(a) psicólogo(a) e um(a) assistente
social.
A Patrulha Maria da Penha cumpre a função de monitorar e acompanhar as mulheres
vítimas de violência que possuem Medidas Protetivas de Urgência, buscando garantir seu
cumprimento. Desde o início da nova gestão municipal, é evidente o sucateamento da SPM. A
redução dos recursos humanos implicou que a composição da SPM, formada por apenas uma
assistente social e uma psicóloga, fosse compartilhada/dividida com a Patrulha Maria da
Penha. Assim, envolvidas com a grande demanda da Patrulha Maria da Penha, à equipe
técnica resta pouco tempo para as tarefas que envolvem a SPM. Esse quadro abriu espaço

5
A Rede Intersetorial de Proteção Social de Toledo/PR – RIPS surgiu em 2015 a partir da iniciativa de diversos
atores da rede de atendimentos de Toledo e foi estruturada em forma de Projeto pelo Serviço Social do
Ministério Público do Estado do Paraná. A RIPS atua em temáticas elencadas como prioritárias pelos(as)
profissionais do município e atualmente se debruça na problemática da violência sexual. Sobre a RIPS
recomendamos a leitura de SASSON, et. Al (2016).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p844 850


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para debates e Projetos de Lei para extinção da SPM6 que, com a resistência de alguns
profissionais e movimentos sociais foi arquivado.
Destaca-se ainda que o município de Toledo conta uma Delegacia da Mulher que em
muito contribui no acesso ao sistema de segurança e justiça, no entanto, o município apresenta
uma demanda importante que justificaria a criação de um Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher bem como de uma instituição de abrigamento. Tais aspectos são
levantados pontualmente por algumas organizações e movimentos, mas não fazem parte da
agenda política da atual gestão.
Nos próximos parágrafos, analisaremos como as noções de gênero e violência são
acionadas e articuladas na prática da rede de atendimento às mulheres em situação de
violência em Toledo, partindo das considerações feitas no artigo de Guita Grin Debert e Maria
Filomena Gregori intitulado “Violência e gênero: novas propostas velhos dilemas” (2008), no
qual as autoras buscam situar as variações de sentido no uso da noção de violência contra a
mulher com o objetivo de compreender a distribuição da justiça e a consolidação de direitos e
cidadania para as mulheres, a partir da década de 1980 até o os primeiros anos do século XXI.
A violência contra a mulher ganhou visibilidade na década de 1980 em um contexto
de ações políticas voltadas ao combate às violências sofridas por mulheres, por meio do
trabalho de ONGs como a SOS-Mulher. Esse movimento é fundamentado por noções que
explicam as relações entre homens e mulheres no âmbito do Patriarcalismo, um paradigma
dominante nos debates teóricos feministas da época. A condição feminina era tida como
universal e compartilhada por todas as mulheres de forma essencialista. Os debates sobre as
interseccionalidades, as experiências culturais e históricas só foram introduzidas a partir da
década de 1990, passando a revisar as produções teóricas e propor novas formas de analisar as
relações entre os sexos (DEBERT; GREGORI, 2008).
À parte estas considerações epistemológicas, o movimento feminista da década de
1980 no Brasil, colocou em evidência a dimensão dos conflitos e violências na relação entre
homens e mulheres, explicada a partir de uma estrutura de dominação (DEBERT; GREGORI,
2008).
Visto que,

6
No dia 02 de fevereiro de 2018, por meio da mensagem nº 7 anexa ao Projeto de Lei Municipal nº 09/2018, o
Poder Executivo, representado pelo prefeito Lucio de Marchi, evidenciou que o desenvolvimento de políticas
para mulheres não é prioridade em sua gestão. Sem qualquer estudo, análises ou dados que ofereçam
consistência ao PL 09/20186, o poder executivo propõe a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres e do
cargo de Secretário(a) da pasta. O PL foi arquivado no mês de abril.

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(...) Tal interpretação não estava presente na retórica, tampouco nas práticas
jurídicas e judiciárias no enfrentamento de crimes até a promulgação, em
2006, da Lei n. 11.340 (‘Maria da Penha’) A questão da desigualdade de
poder implica nas diferenças marcadas pelo gênero, ainda que esteja
sugerida na Constituição e no delineamento dessa lei, encontra imensas
resistências nas práticas e nos saberes que compõem o campo da aplicação e
efetividade das leis.” (DEBERT; GREGORI, 2008, p. 168).

Assim, a Lei Maria da Penha foi a primeira expressão de âmbito jurídico que
compreendeu que os conflitos entre homens e mulheres se originam de relações de poder
assimétricas, estabelecidas pelo gênero (DEBERT; GREGORI, 2008).
Em Toledo, a prática da rede de atendimento à mulher em situação de violência tem
a Lei Maria da Penha como o principal orientador das lógicas de intervenção. Como exemplo,
temos a Patrulha Maria da Penha, que acompanha as Medidas Protetivas de Urgência,
previstas nos artigos 18 a 21. No âmbito da assistência social, a SPM, embora alegue possuir
um fluxo aberto para o atendimento às mulheres, em grande medida, orienta mulheres que já
registraram Boletim de Ocorrência por violência doméstica, por meio do trabalho
desenvolvido no âmbito da Patrulha Maria da Penha.
Com base nas informações coletadas com a Delegacia da Mulher e com a 1ª Vara
Criminal da Comarca de Toledo, que recebe os processos de Lei Maria da Penha; é percebido
como o teor de muitas queixas é de origem civil e não criminal, apontando para a recorrência
de relatos de mulheres que não se concebem em relações de violência, mas sim de desarmonia
das relações, as quais buscam retomar o equilíbrio por meio da intervenção jurídica. Observa-
se que as mulheres acionam a Lei Maria da Penha para resolver questões como divórcio,
pagamento de pensão, guarda dos filhos, etc.
Para entender porque há esta procura da proteção pela Lei Maria da Penha sem que
haja a compreensão das mulheres de que estão em uma relação de abusos faz-se necessário
considerar que as instituições que compõem a rede de proteção à mulher não atuam para
modificar a representação que as queixosas possuem de sua situação. Assim, prevalece a
“lógica da queixa” (GREGORI, 1993) na qual a prática dos atendimentos valoriza a
representação da mulher como vítima e não há espaço para a problematização das relações
nas quais se encontram:

[...] O pior não é ser vítima (passiva) diante de um infortúnio; é agir para
reiterar uma situação que provoca danos físicos e psicológicos. O difícil para
esse tipo de vítima é exatamente o fato de que ela coopera na sua produção
como não-sujeito. Isto é, ela ajuda a criar aquele lugar no qual o prazer, a
proteção e o amparo se realizam desde que se ponha como vítima. Esse é o
‘buraco negro’ da violência contra a mulher: São situações em que a mulher

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se produz - não é apenas produzida- como não sujeito. (GREGORI, 1993, p.


184)

Gregori (1993) indica aqui que, a mulher coloca-se como vítima na narrativa de sua
queixa para situar-se como sujeito de direito em uma relação que a desagrada, buscando
revertê-la, seja por meio do divórcio, decisão da guarda dos filhos, ou fazer com que o
companheiro cumpra suas obrigações como pagar a pensão ou ainda relatar a ocorrência de
violências na relação.
Estas considerações não são inéditas e fazem parte da perspectiva crítica de autoras
como Debert e Gregori (2008), ao analisarem a distribuição da justiça nos casos de violência
contra a mulher. Em nosso trabalho, chamamos a atenção para como outros serviços, que não
são exclusivos do âmbito jurídico, como a Secretaria de Política para Mulheres e demais
órgãos da política de assistência social tendem a empregar uma lógica de intervenção
delimitada pela compreensão da violência de gênero dentro dos limites das relações afetivas
de âmbito doméstico e familiar, consequência do emprego da Lei Maria da Penha como
principal orientador das práticas interventivas. Observamos outra consequência desta prática
que é a limitação das violências de gênero dentro de definições criminais, excluindo a
dimensão social desta violência, que apontariam para práticas de prevenção.
Pontualmente, essas impressões estão postas a partir dos relatos da delegada da DDM
ao afirmar que muitas mulheres procuram a delegacia para relatar queixas que muitas vezes
não se enquadram nos critérios de composição de um Boletim de Ocorrência. Entre os
membros da equipe da Patrulha Maria da Penha, há o relato de que muitas das atendidas
estabelecem uma relação de dependência com o serviço pois necessitam desabafar suas
contendas.
Neste aspecto, compreendemos ser necessário que a Secretaria de Políticas para
Mulheres oriente suas ações enquanto secretaria propositora de intervenções no sentido de
qualificar a oferta de serviços e os atendimentos às mulheres, além de ampliar o diálogo com
a rede de atendimento, em especial com os Centros de Referência Especializados de
Assistência Social (CREAS) para que a violência de gênero não seja entendida apenas como
sinônimo de violência familiar. Assim, ao constatar relações de abuso e violência os serviços
possam orientar esta mulher a exercer seus direitos ainda que isto implique em conceber uma
mudança das relações domésticas e outros arranjos familiares.

3 A intersetorialidade como estratégia política

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Diante do exposto é importante destacar que as práticas de intersetorialidade


representam um potencial para a oferta qualificada de respostas às demandas sociais das
mulheres em situação de violência. A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres (BRASIL, 2011) conceitua a Rede de Atendimento como a

[...] atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-


governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da
qualidade do atendimento; à identificação e encaminhamento adequado das
mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de estratégias
efetivas de prevenção. A constituição da rede de atendimento busca dar
conta da complexidade da violência contra as mulheres e do caráter
multidimensional do problema, que perpassa diversas áreas, tais como: a
saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, a cultura, entre
outras” (BRASIL, 2011, p. 29-30).

O documento aponta para a necessária superação da desarticulação e fragmentação


nos serviços levando em conta a “rota crítica”7 percorrida pela mulher em situação de
violência. Importa destacar que, dos 16 serviços que compõem a Rede de Atendimento à
Mulher em Situação de Violência mencionados pela Política, o município de Toledo conta
com apenas 5, contando o Numape e serviços nacionais como as polícias civil e militar e o
Disque 180.
A intersetorialidade tem sido reconhecida nos últimos anos como possibilidade de
ampliação da democracia e da cidadania. De acordo com Potyara Pereira (2014), além de ser
considerada uma estratégia política, a intersetorialidade “também é entendida como:
instrumento de otimização de saberes; competências e relações sinérgicas, em prol de um
objetivo comum; e prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e
avaliação para a realização de ações conjuntas” (PEREIRA, 2014, p. 23).
A autora ressalta ainda que a intersetorialidade não pode ser pensada de maneira
vertical, ou seja, como um ato governamental, onde as decisões são pensadas pelo Estado e
impostas às políticas sociais ou instituições. Dessa forma, ressalta que a intersetorialidade
apenas pode ser pautada a partir da perspectiva dialética, assumindo a transformação de
decisões políticas conflituosas.
Argumenta-se ainda que apenas pela perspectiva dialética a intersetorialidade pode
ser fiel a realidade. Na concepção da autora, a intersetorialidade orientada por perspectivas

7
Segundo o documento “A rota crítica refere-se o caminho que a mulher percorre na tentativa de encontrar uma
resposta do Estado e das redes sociais frente à situação de violência. Essa trajetória caracteriza-se por idas e
vindas, círculos que fazem com que o mesmo caminho seja repetido sem resultar em soluções, levando ao
desgaste emocional e à revitimização” (BRASIL, 2011, p. 30).

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positivistas a reduz a um arranjo técnico, ou seja, como mera articulação, soma ou superação
de fragmentações entre os setores.

Por outro lado, ao ser, a intersetorialidade, considerada um rompimento da


tradição fragmentada da política social, que a divide em “setores”, admite-se
que ela propicie mudanças de fundo; isto é, mudanças nos conceitos, valores,
culturas, institucionalidades, ações e formas de prestação de serviços, além
de inaugurar um novo tipo de relação entre Estado e cidadão (PEREIRA,
2014 p. 26).

Assim, a dialética avança, “acertando contas com o positivismo”8, superando a ideia


de articulação entre as partes que não implica em reais mudanças qualitativas. Dessa forma,
pensar a intersetorialidade a partir da perspectiva dialética é assumir o desafio de inovar e
superar o passado eliminando velhas lógicas ao mesmo tempo que se avança a partir delas.
A superação das subalternidades de gênero exige a articulação de diversos atores,
políticas, propostas que busquem oferecer condições objetivas para tal superação. Ações
fragmentadas, desprovidas de recursos financeiros, recursos materiais e humanos próprios,
diluídas em outras políticas e serviços, não serão capazes de oferecer alternativas reais às
mulheres em situação de violência. De acordo com Mirales (2013):

Não é nova a necessidade de uma política social, que seja capaz de


impulsionar a autonomia, a independência e a emancipação feminina, pondo
fim ao movimento cotidiano das mulheres, que percorrem as instituições,
buscando superar as suas necessidades e que, muitas vezes, passam a ser
consideradas pelas instituições como poli queixosas. (MIRALES, 2013, p.
140)

Nesse sentido, pensar a intersetorialidade no contexto das políticas para mulheres é


também superar a lógica do atendimento pontual em casos comprovados de violência, onde a
exigência de Boletim de Ocorrência e Medidas Protetivas de Urgência sejam o eixo central da
atuação. É também avançar na pactuação de fluxos e protocolos que estabeleçam as
responsabilidades e atribuições de cada componente da rede de atendimento. Dado os limites
deste trabalho e o não contato com as equipes dos CREAS, alguns questionamentos ainda
precisam ser elucidados como: quais as responsabilidades dos CREAS em municípios onde há
uma Secretaria específica de Políticas para Mulheres? A existência de uma Secretaria exime o
CREAS da oferta de serviço especializado em mulheres em situação de violência?

8
A autora defende que: “[...] a tentativa de romper com esta postura positivista fez com que se descobrisse na
lógica dialética a orientação para um conhecimento da realidade no seu conjunto, ou totalidade, mas não de
qualquer totalidade; e sim, daquela que não suprime as suas contradições, não retifica as suas sinuosidades e não
desconsidera o seu caráter histórico, dinâmico e relacional (PEREIRA, 2014, p.29).

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Considerações finais

Pautar o debate da igualdade de gênero nas políticas públicas num contexto onde
4.621 mulheres são assassinadas por ano no Brasil, o que equivale a uma taxa de 4,5 mortes
para cada 100 mil mulheres (IPEA, 2017) é não apenas uma necessidade de gestão pública,
mas uma demanda política urgente. Digno de nota é fato de que, a taxa de mortalidade de
mulheres negras em relação ao total de mulheres vítimas de morte por agressão passou de
54,8% em 2005 para 65,3% em 2015, ou seja, 65,3% das mulheres assassinadas no Brasil
eram negras (IPEA, 2017).
Não resta dúvida de que muitas dessas mortes poderiam ter sido (e podem ser)
evitadas com a efetiva proposição, execução, qualificação e articulação de políticas de
igualdade de gênero. Em muitas situações, diversas formas de violência antecedem uma
violência física fatal, é dever da rede de atendimento à mulher identificar essas diversas
formas de violência e concretizar alternativas para sua prevenção.
A intenção deste trabalho foi evidenciar como a violência de gênero está presente nos
ambientes que estruturam e elaboram as políticas sociais, por meio do distanciamento que
existe entre as mulheres e a política. E apontar como faz-se necessário que as práticas dos
diferentes agentes envolvidos na aplicação das políticas sociais estejam em sintonia com a
dimensão social da violência de gênero. Isto leva a compreender que uma mulher em situação
de violência e abusos não terá resolvido seus problemas somente por meio de registro do
boletim de ocorrência. É necessário um acompanhamento que fortaleça a sua decisão e
busque garantir o exercício de sua cidadania.
Para isso, a ampliação e aprimoramento das políticas públicas de gênero precisa estar
garantida independente de vontades políticas conservadoras. Oferecer opções reais para que
mulheres possam romper com o ciclo de violência exige o desenvolvimento de uma Política
para Mulheres, produção de conhecimento, qualificação profissional e evidentemente, atitudes
administrativas, como previsão orçamentária.
Por fim, ressaltamos que as intenções deste artigo foram apontar as dinâmicas e
práticas dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, articulando com
análises críticas da literatura sobre violência de gênero e políticas sociais. Este exercício
analítico indicou a possibilidade e necessidade de muitos aprofundamentos no que diz
respeito à distribuição da justiça, à judicialização das práticas sociais bem como outros
aspectos importantes para defender a luta das mulheres por direitos.

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Referências
BIROLI, Flávia. Divisão Sexual do Trabalho e Democracia. Dados. In: Dados – Revista de
Ciências Sociais, v. 59, n.3, Rio de Janeiro. 2016, p. 719-754. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582016000300719&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 08 abril 2018.

BRASIL. Secretaria de Políticas para Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à


Violência contra as Mulheres. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres. Secretaria de Políticas para as Mulheres – Presidência da República, Brasília, 2011.

DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência e gênero: novas propostas,
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Disponível em:
<http://www.toledo.pr.gov.br/sapl/sapl_documentos/norma_juridica/4294_texto_integral> ,
2018.

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A avaliação sobre o trabalho da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual


do município de Londrina/PR na perspectiva dos profissionais

Lorraine Fróis da Silva1


Cássia Maria Carloto2

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo geral identificar como os profissionais que
participam da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual do munícipio de
Londrina/PR avaliam o trabalho desta rede na cidade, a partir disso pautou-se os objetivos
específicos de identificar o funcionamento da Rede e os serviços que a compõem, e por fim
compreender os desafios e contribuições elencados pelos sujeitos da pesquisa para esse
instrumento de gestão. Para isso, a pesquisa de abordagem qualitativa foi construída através
de revisão de literatura a partir de autores de referência sobre a temática, além de documentos
oficiais elaborados pelo governo federal para estruturar o trabalho em rede e o atendimento às
mulheres em situação de violência, como também foi realizada pesquisa de campo com uma
amostra de cinco sujeitos, sendo estes profissionais de políticas públicas distintas: Segurança
Pública (Delegacia da Mulher), Políticas para as Mulheres (Secretaria Municipal de Políticas
para as Mulheres), Saúde (Hospital Zona Sul), Assistência Social (CREAS III) e sócio
jurídico (NUMAPE) que participam efetivamente da Rede Municipal de Enfrentamento à
Violência Doméstica e Sexual de Londrina/PR.
A aproximação com os sujeitos ocorreu nas reuniões da própria Rede nos meses de agosto e
outubro de 2017 que possibilitou conhecer as instituições mais presentes e os profissionais
mais assíduos, além da utilização das atas das reuniões disponibilizadas pela gerência do
Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CAM), viabilizando a identificação e a
realização dos contatos telefônicos com os sujeitos, verificando a disponibilidade destes e o
agendamento das entrevistas.
A coleta de dados aconteceu no mês de outubro de 2017 e a metodologia escolhida foi de
entrevistas semiestruturadas com um roteiro de questões abertas. Já a análise dos dados
norteou-se na associação de palavras, com o método de análise temática da autora Minayo.
Neste trabalho foi possível concluir que os entrevistados avaliam de forma positiva o trabalho
em Rede desenvolvido no município de Londrina, pois os sujeitos apontaram nas entrevistas
que existe integração e articulação entre os serviços para atender o objetivo de atendimento
qualificado e humanizado, assim como fortalecer os órgãos envolvidos, mesmo diante das
dificuldades estruturais de déficit de recursos humanos, alta demanda, precarização e
sucateamento das políticas públicas e dos serviços especializados, portanto essa estratégia tem
contribuído significativamente para o enfrentamento à violência contra as mulheres no
município.

Palavras-chaves: Violência contra as Mulheres; Rede; Enfrentamento à Violência.

1
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Bacharela em Serviço Social e estudante de Pós-graduação em
Serviço Social: Competências Profissionais, Política Social e Práticas Contemporâneas pela Unifil/PR; E-mail:
lo.frois.s@gmail.com.
2
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Pós-doutora em Serviço Social pela PUC/SP; E-mail.
cmcarloto@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p858 858


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Introdução.

A violência contra as mulheres é uma realidade que permeia toda a sociedade, afinal
suas manifestações são resultadas por uma ordem patriarcal de gênero, que atribui dominação
e exploração dos homens sobre as mulheres tanto no âmbito público como privado,
expressando de forma notória a desigualdade dos gêneros.
O aspecto privado é uma forma de particularizar a violência contra as mulheres, pois
acontece no espaço doméstico, e o agressor pode ou não pertencer à família, e o seu domínio
no território/domicílio ultrapassa questões geográficas, torna-se também uma questão
simbólica (SAFFIOTI, 2015) que é dificultada pela relação de afeto e intimidade, além de ser
naturalizada por todos/as.
Nesse sentido, a urgência em buscar possibilidades de enfrentamento a esse
fenômeno foi iniciada pelo movimento feminista, no Brasil especificamente, o fortalecimento
e protagonismo feminino teve maior alcance no período de 1980 com a redemocratização. A
violência contra as mulheres foi compreendida como um problema social e estrutural, que
precisava de visibilidade e inserção nas políticas públicas.
A partir das lutas e mobilizações das mulheres e do movimento feminista no Brasil,
foram desenvolvidas políticas públicas, serviços especializados, além de legislações e
normatizações para atender as demandas voltadas a questão da violência doméstica e familiar
e aos direitos das mulheres.
Diante disso, a estruturação dos serviços no munícipio de Londrina seguiu as
recomendações nacionais e internacionais, e foi uma das cidades pioneiras na implementação
das instituições de atendimento as mulheres em situação de violência, como por exemplo, a
Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher no ano de 1986 e o Centro de Referência
de Atendimento à Mulher no ano de 1993 (LONDRINA, 2018).
Contudo, o fenômeno da violência contra as mulheres é complexo e amplo, logo
perpassa diversas áreas, políticas públicas e instituições, afinal ela ocorre de forma transversal
e demanda respostas tanto para a área da saúde, assistência social, segurança pública, entre
outros.
Portanto, se faz necessária uma articulação entre os serviços instituídos para atender
de forma mais integral possível. O trabalho em rede surge como estratégia de gestão para
contribuir com atendimentos mais qualificados, pois são estabelecidos fluxos, normatizados
procedimentos e encaminhamentos das usuárias dos serviços.

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Além disso, é uma exigência da Política Nacional de Enfrentamento à Violência


contra as Mulheres que conceitua a Rede de atendimento como,

[...] atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não


governamentais e a comunidade, visando à ampliação e melhoria da
qualidade do atendimento; a identificação e encaminhamento adequado das
mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de estratégias
efetivas de prevenção (BRASIL, 2011, p. 29).

Ou seja, a assistência para as mulheres em situação de violência precisa desse


trabalho em Rede, pois além de traçar o mesmo objetivo, responsabiliza as instituições em
qualificar seu atendimento e executar ações conjuntas para o enfrentamento dessa demanda e
também para a prevenção.
Sendo assim, foi nessa perspectiva que a Rede de Enfrentamento à Violência
Doméstica e Sexual de Londrina foi organizada no ano de 2011 e neste trabalho será
apresentado como funciona essa estratégia na cidade, além dos serviços e demais órgãos
participantes, e por fim será explicitada a avaliação das profissionais entrevistadas e
envolvidas com a Rede, elencando as contribuições e desafios.

1. O funcionamento da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual de


Londrina.

A Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual de Londrina teve início


com a Secretaria de Políticas para as Mulheres do município no ano de 2011, mediante a
estruturação de um plano de trabalho com serviços especializados de atendimento à mulher
em situação de violência, como também demais órgãos de políticas públicas que atendem essa
demanda (LONDRINA, 2018).
No ano de 2012, foi instituído o Decreto Municipal nº 246, que delimitou uma
Comissão de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual contra a Mulher conforme
aponta o Art. 5º,

A comissão será composta por um representante de cada um dos seguintes


órgãos:
I. Centro de Referência e Atendimento à Mulher – CAM/SMPM/PML
II. Casa Abrigo Canto de Dália – SMPM/PML
III. Programa Rosa Viva – Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência
Sexual – SMS/PML
IV. Diretoria de Ações em Saúde – SMS/PML

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V. Diretoria de Epidemiologia – SMS/PML


VI. Pronto Atendimento Municipal – SMS/PML
VII. Hospital da Zona Sul
VIII. Hospital da Zona Norte
IX. Hospital Universitário
X. Hospital Evangélico
XI. Hospital Infantil
XII. 17ª Regional de Saúde
XIII. Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
XIV. Instituto Médico Legal
XV. Polícia Militar
XVI. Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
XVII. Ministério Público
XVIII. Centros de Referência da Assistência Social – CRAS/SMAS/PML
XIX. Centros de Referência Especializado de Assistência Social –
CREAS/SMAS/PML
XX. Conselho Tutelar
XXI. Conselho Municipal dos Direitos da Mulher
XXII. Conselho Municipal de Assistência Social
XXIII. Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
XXIV. Conselho Municipal de Cultura de Paz (LONDRINA, 2012, p. 2).

Diante desse Decreto e dos órgãos elencados, foi apontado pelas entrevistadas que os
representantes dos serviços são designados a partir da disponibilidade, interesse e pelo convite
da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres.
A partir disso, organizaram-se as reuniões da Rede de Enfrentamento à Violência
Doméstica e Sexual contra a Mulher com as instituições interessadas em discutir e
desenvolver ações no município. Foram definidos encontros mensais na terceira sexta-feira de
cada mês, no auditório da Associação Médica de Londrina, com duração de duas horas.
Todavia a entrevistada 03 informou que no ano de 2017 houve variação na periodicidade dos
encontros conforme a seguinte fala: “[...] a gente ficou uns três meses sem reunião, a gente
teve alguns problemas, mas geralmente é todo mês”. Nesse caso, essas oscilações para
realizar os encontros, podem prejudicar o andamento das atividades planejadas.
Além das reuniões mensais, três entrevistadas informaram que existem também
grupos de trabalho para o desenvolvimento de atividades pontuais, ou seja, existe uma divisão
de alguns serviços que é consensuada por toda a Rede para a realização de trabalhos
específicos fora das reuniões, mas a demanda permanente é discutida, planejada e executada
por todos.
Com relação aos objetivos dos encontros da Rede, a entrevistada 01 destaca a
possibilidade de monitoramento e avaliação das ações desenvolvidas pelos serviços que
atendem mulheres em situação de violência.

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O objetivo dessas reuniões é buscar verificar o que está funcionando, o que


precisa ser melhorado, em que a gente pode ajudar um serviço,
complementar e discutir realmente o que pode ser feito pra proteção da
vítima de violência doméstica contra a mulher (entrevistada 01)

A entrevistada 02 aponta que outro objetivo relevante da Rede é de estabelecer


fluxos de atendimento e/ou encaminhamentos para as mulheres em situação de violência,
buscando a melhoria da qualidade do serviço prestado e atendimento integralizado para as
usuárias.
A mesma também considera que o conhecimento dos serviços que compõem a Rede
é um fator importante:

O objetivo desse trabalho de reuniões sistemáticas da Rede é, são vários


objetivos né, a gente tem em mente a importância de alinhar conceitos
mesmos, conceitos que fundamentam a prática no dia-a-dia de todos os
profissionais, em relação às questões de gênero, em relação à violência, aos
direitos humanos, discutir os documentos que orientam a Política de
Enfrentamento à violência de cada área, os documentos que orientam, que
estabelecem diretrizes e critérios para a organização dos serviços, então um
dos objetivos é que todos conheçam, saibam qual o papel do outro, conheça
o serviço, conheça como funciona e inclusive também as dificuldades né,
porque o objetivo final é ter um atendimento integral, que é isso que a gente
sempre almeja, mas considerando a complexidade da violência, muito difícil
de atender todas as demandas dessas mulheres. Isso é o ideal que a gente
vislumbra, que a gente tem em mente né? [...] (entrevistada 02).

Outro ponto abordado na fala explicitada acima, é entender os conceitos sobre a


temática, conhecer as particularidades da violência contra as mulheres para que o profissional
tenha um atendimento mais humanizado, evitando preconceitos, discriminações e
mistificações sobre o assunto.
O diagnóstico da realidade local também é discutido nas reuniões da Rede e torna-se
um objetivo significativo como pondera a entrevistada 04,

Trocas de experiências, a exposição das maiores dificuldades, poder mostrar


pra Rede o que é possível, o que a cidade tem pra oferecer, os maiores
impasses, as dificuldades são sempre debatidas na Rede, pensando que
juntos a gente tem muito mais chances de superar entraves do que um único
serviço ou vários serviços atuando de forma desarticulada (entrevistada 04).

É possível perceber que a mesma compreende o território da Rede como espaço de


potencialidades e dificuldades, que precisam de um trabalho articulado pelos serviços e
constante aproximação para levantar essas questões.

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Além disso, um elemento citado pela entrevistada 05 é sobre a capacitação dos


profissionais que prestam atendimento as mulheres em situação de violência,

Olha, eu acredito que é a implantação de serviços que sejam voltados para o


atendimento à mulher vítima de violência, capacitação dos profissionais que
atende essa Rede, prevenção, eles também fazem trabalho de prevenção,
divulgação sobre a violência, tudo que permeia essa questão da violência
contra a mulher [...] (entrevistada 05).

Essa questão de capacitar os profissionais conforme mencionado acima, é uma das


atribuições da Rede descrita no Decreto 246 de 2012, especificamente no Art. 4º item V.
“Sensibilizar e capacitar os gestores e os profissionais dos diversos serviços que compõe a
Rede para o atendimento humanizado às mulheres em situação de violência” (LONDRINA,
2012, p. 2).
Segundo o Plano Municipal de Políticas para as Mulheres de Londrina (2011), a
capacitação também ajuda a reconhecer os casos de violência doméstica, pois amplia o olhar
dos profissionais na avaliação dos riscos das usuárias, além de notificar os órgãos
competentes e produzir dados sobre a situação vivenciada.
Portanto, os pontos centrais considerados pelas entrevistadas para a realização desse
trabalho em Rede e das reuniões sistemáticas são: articulação, encaminhamento, formação e
capacitação, assim como a proteção das usuárias, prevenção e enfrentamento da violência.
Diante do exposto, o próximo tópico aborda como os sujeitos da pesquisa avaliam
esse trabalho em rede, se consideram de fato a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica
e Sexual de Londrina articulada, se os objetivos elencados são cumpridos e quais as principais
contribuições e desafios desse mecanismo de gestão.

2. A avaliação do trabalho da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual de


Londrina – contribuições e desafios.

Como já abordado no tópico anterior, a Rede de Enfrentamento à Violência


Doméstica e Sexual de Londrina tem se desenvolvido no município e tem alguns objetivos
para auxiliar os serviços especializados, demais órgãos e comunidade a atender a demanda de
violência contra as mulheres.
No que diz respeito ao trabalho realizado até o momento e a articulação da Rede,
todas as entrevistadas concordam que existe a integração entre os serviços e políticas, isso se

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dá pelo interesse em comum de atender as mulheres em situação de violência de forma mais


humanizada, além de buscar avanços no enfrentamento desse fenômeno complexo.
A articulação na opinião dos sujeitos da pesquisa acontece quando os serviços
mantem contato, estabelecem fluxos de atendimento e encaminhamento, compreendem o
trabalho das instituições que atendem essas mulheres, estudam e dão visibilidade para a
questão da mulher em situação de violência, como pode ser observado nas falas a seguir:

[...] trabalhar de forma articulada, não tenho nem o que falar. Nas reuniões
da Rede são vários representantes de vários setores, e todo mundo
discutindo, buscando um consenso ali (entrevistada 01).
[...] Mas essa articulação que nós temos que tem contribuído muito para que
a gente consiga ser até referência no atendimento nesta área. Há articulação
porque a gente tem esse mecanismo bem estabelecido e há adesão, isso que
eu acho importante sabe, que eu vejo como aspecto positivo na Rede aqui
em Londrina, a adesão. Os principais serviços estão envolvidos, se
comprometem, entendem a importância de estar conversando, de estar
fazendo esse trabalho em rede, de garantir o trabalho em rede no
enfrentamento à violência, isso a gente percebe, há uma adesão e um
compromisso com isso. Então por isso que eu falo assim, Londrina tem
articulação, o trabalho está articulado! [...] (entrevistada 02).

A entrevistada 03 aponta que essa articulação da Rede ajuda a identificar o que


compete a cada serviço, qual a demanda que a mulher traz além da violência, e
consequentemente, isso beneficia as usuárias, pois os serviços buscam seguir um
encaminhamento adequado.

[...] a mulher não chega só com a demanda de violência doméstica, que é o


que eu presencio aqui todos os dias, ela não precisa só tirar aquele marido de
dentro de casa, não é só a ação de divórcio que ela precisa fazer, às vezes ela
precisa de um encaminhamento de saúde mesmo, pra UBS. A maioria do
nosso público (como a gente atende o público de baixa renda), acaba não
tendo muito acesso, não essa noção do que é justiça, dos direitos, então por
exemplo, aqui a gente tenta garantir ao máximo que esses direitos estão
sendo prezados, estão assegurados por elas. Então assim, quando a gente
acaba fazendo os encaminhamentos daqui, partindo do NUMAPE, esse
trabalho em rede é fundamental, porque aonde nossas clientes vão conseguir
um atendimento de saúde? Orientação, por exemplo, da Vara de Família, que
tem alguns processos que a gente acaba não fazendo aqui. Do CAM, o
abrigo do CAM que é só o CAM que tem acesso. Então o trabalho em rede
ele está muito bem [...] (entrevistada 03).

A fala acima explicita aquilo que a Política Nacional estabelece ao conceituar a Rede
e o objetivo de “ampliação e melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e

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encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e ao desenvolvimento de


estratégias efetivas de prevenção” (BRASIL, 2011, p. 29).
Já duas entrevistadas apontam que existem fragilidades na articulação da Rede de
Enfrentamento em Londrina, que o trabalho não é ideal, tem algumas falhas que
comprometem a integração entre os serviços, mas ainda assim é um bom instrumento para
agir diante da violência contra as mulheres.

A maior parte das vezes sim, é lógico que sofre oscilações, mudanças de
gestão abalam a articulação da Rede, mudanças das pessoas nos serviços,
isso faz com que permanentemente precise ser refeitos os pactos, mas sim,
de alguma forma os serviços são articulados, não uma articulação ideal, mas
dentro do possível sim (entrevistada 04).
Sim, senão eu nem estaria lá. Eu acredito que tenha o trabalho em rede,
apesar de ter as falhas, porque assim, todos os serviços estão bem
articulados. E a Rede é isso, é essa articulação, essa integração entre os
serviços. Todas as vezes que nós precisamos pra algum atendimento da
mulher, houve esse atendimento. Talvez não da forma ideal, mas sempre ela
foi atendida, ela nunca ficou desprotegida nesse sentido (entrevista 05).

Diante dessas falas, serão pontuadas as dificuldades que as entrevistadas consideram


também como desafios para melhorar a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e
Sexual de Londrina.

a) Déficit de Recursos Humanos e alta demanda

Essa foi uma questão muito explicitada nas falas das entrevistadas, pois devido a alta
demanda de casos de violência doméstica no município, há necessidade de contratação de
novos profissionais e que estes sejam capacitados para atender essas usuárias, entretanto o que
se observa é o contrário, o serviço público não tem contratado trabalhadores suficientes para
responder as necessidades da população, tanto no cenário local, como nacional.

[...] considerando essa precariedade de recursos humanos, a estrutura


precária do serviço, a gente acaba tendo... eu acho que prejudica, a gente não
consegue fazer a Política, as ações fluírem melhor por essa precariedade dos
serviços. [...] existem nós, existem situações, inclusive o que eu falei, a
estrutura deficitária dos serviços que compromete um pouco, acaba
comprometendo esse resultado que é de que os fluxos sejam sempre
seguidos né, que não haja furo nos protocolos, que a vítima não se perca no
meio do atendimento, no processo do atendimento. A rotatividade de
profissionais, a gente às vezes tem um setor ou outro que há mudanças de
gestão, há rotatividade de profissionais, então você tem que novamente fazer

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aquele trabalho de formação, existem algumas dificuldades que são nossos


desafios e que acabam pautando a nossa ação (entrevistada 02).

b) Sucateamento das Políticas para as Mulheres

Conforme Godinho e Costa (2006, p. 60),

O aprofundamento de uma concepção neoliberal de Estado leva a uma


redução da perspectiva de políticas sociais universais, entendidas como
direito; reforça a fragmentação e precarização dos direitos sociais, dando
lugar a políticas focalizadas e parcializadas.

Como exposto pelas autoras acima, esse avanço neoliberal acarreta no sucateamento
das políticas públicas, afetando também as Políticas para as Mulheres, além do fortalecimento
do conservadorismo, que nos últimos anos tem aumentado no Brasil e traz retrocessos para os
direitos das mulheres.
Segundo a entrevistada 04,

Essas mudanças de gestão, o sucateamento da política pública, falta de


recursos, eu acho que a gente padece mais, o nosso trabalho é mais truncado
pelas dificuldades estruturais dos serviços, as dificuldades de se fazer
implantar, de funcionar de uma forma adequada a política pública, mais do
que a própria natureza do serviço [...]

O atendimento das mulheres em situação de violência é prejudicado diante dessa


falta de recursos dos serviços, o sucateamento atinge desde a gestão da política e das
instituições, até as atividades desenvolvidas diretamente com as usuárias.

c) Precarização da estrutura física dos serviços de atendimento

A falta de recursos nas Políticas para as Mulheres ocasiona a precarização dos


espaços físicos dos serviços que atendem as mulheres em situação de violência, o que está
diretamente ligado ao ponto anterior do sucateamento das políticas públicas.
Quando não há orçamento e investimento, os locais de atendimento são afetados por
falta de materiais, falta de salas adequadas que permitam o sigilo de informações, falta de
segurança para a usuária e para os profissionais, entre outros.
Uma das entrevistadas relata essa situação e mostra preocupação com o descaso e
falta de investimento do Estado.

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O principal: recurso. Não tem recurso de melhoria dos serviços, estruturais


mesmo das unidades. Você está vendo a nossa sala, o espaço é minúsculo,
não tem privacidade, não tem questão de sigilo, e aqui a gente ainda está
bem comparado aos outros serviços que a gente está tendo um pouco de
conhecimento do serviço de cada um nas reuniões. [...] Essa falta de recurso
pra todo mundo, não tem nem papel pra imprimir direito os documentos, por
exemplo aqui, em algumas audiências, a advogada até dá carona pras
clientes, porque sai do Fórum, não tem quem acompanhe, não tem carro
daqui, não tem segurança, então a gente acaba tendo mil funções que na
verdade poderiam ser feitos de uma maneira bem melhor se tivesse o recurso
né? (entrevistada 03)

Após todos esses apontamentos sobre as dificuldades e desafios da Rede de


Enfrentamento, as entrevistadas também explicitaram as contribuições e avanços desse
trabalho na cidade, que é considerada como um local privilegiado por ter sido referência na
implementação de serviços especializados para o atendimento às mulheres em situação de
violência.
A participação constante dos serviços foi uma das questões elencadas como fator
positivo nas reuniões da Rede, afinal além de capacitar os profissionais existem possibilidades
de desmistificar a violência contra as mulheres e trazer um canal de diálogo e novas
perspectivas sobre a temática, como também conhecer as instituições que integram esse tipo
de atendimento.
Outra questão são os procedimentos que foram definidos a partir das Reuniões da
Rede, os fluxos de encaminhamento, protocolos, a ampliação notificação compulsória sobre
violência doméstica contra as mulheres, etc.

A gente consegue desde 2011 até agora, manter essa metodologia com
participação muito efetiva dos diversos setores, então isso é um ponto que
evidencia isso, e segundo que nós temos desde 2011, nós começamos a fazer
esse trabalho mais sistemático da Rede, muitos avanços, como eu já te falei
já, a notificação compulsória dos casos de violência. Antes quase não havia
notificação, hoje a gente tem um número significativo, as formações que nós
fizemos documentos, protocolos, que foram criados, fluxos que foram
estabelecidos, então é uma estratégia que funciona e tem funcionado muito
bem em Londrina, essa é a minha avaliação (entrevistada 02).

As profissionais compreendem que a Rede de Enfrentamento trouxe e ainda traz


benefícios para as usuárias, os/as trabalhadores/as das instituições e para os serviços
especializados. Entretanto, é um trabalho que precisa de tensionamentos das instituições e da
comunidade para ter suas propostas atendidas e ações desenvolvidas no município.

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Considerações finais.

Pode-se concluir a partir dessa pesquisa que as profissionais que participam da Rede
de Enfrentamento à Violência Doméstica e Sexual de Londrina avaliam de forma positiva o
trabalho em rede desenvolvido, pois existe integração e articulação entre os serviços, existe
envolvimento e interesse para atingir o objetivo de um atendimento mais humanizado e
qualificado para mulheres em situação de violência, mesmo que ainda não esteja de acordo
com o ideal.
A melhoria dos encaminhamentos é outro ponto relevante, pois diante do
conhecimento do trabalho desenvolvido pelas instituições que atendem essas usuárias, há um
direcionamento de acordo com a demanda explicitada pela mulher em situação de violência, o
acolhimento e a assistência acontecem de forma mais assertiva, evitando transtornos com
atendimentos e serviços que não respondem as necessidades da usuária.
Foram levantados também alguns pontos que dificultam a realização dos objetivos e
ações da Rede de Enfrentamento, como: déficit de recursos humanos, sucateamento das
Políticas para as Mulheres e precarização dos serviços, porém o comprometimento em
levantar a questão da violência contra as mulheres com diferentes políticas públicas é tão
presente, que fortalece no enfrentamento desses obstáculos e dá mais visibilidade para cobrar
do Estado e fazer com que assuma a responsabilidade diante das demandas trazidas pelas
mulheres e os serviços que as atendem.
Agora ficam algumas indagações para posteriores pesquisas; será que a avaliação das
usuárias seria tão positiva como das profissionais sobre a Rede de Enfrentamento? De fato,
elas reconhecem que existe articulação entre os serviços, atendimento humanizado e
qualificado?

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<http://www.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/legislacao/plano_m
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SAFFIOTI. H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. Editora Fund. Perseu Abramo, São


Paulo, 2015.

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Policiamento e gênero: visões entre policiais militares paranaenses

Cleber da Silva Lopes 1

Resumo: Estudos mostram que a integração feminina às polícias latino americanas vem
encontrando obstáculos decorrentes do modo como os policiais concebem o policiamento e o
papel que homens e mulheres deveriam desempenhar dentro dele. A representação do
policiamento como uma atividade arriscada de enfrentamento violento da criminalidade,
combinada com a visão segundo qual os homens são mais fortes e corajosos do que as
mulheres, favorece a defesa da divisão sexual de funções dentro da polícia entre homens que
deveriam se dedicar ao trabalho operacional de combate ao crime e mulheres que deveriam se
restringir ao trabalho administrativo e de cuidado, gerando assim barreiras à plena integração
das mulheres à polícia. Esse trabalho pretende contribuir para o entendimento da natureza
dessas representações e barreiras. Ser homem ou mulher condiciona a percepção de que força
física e coragem são atributos fundamentais para o policiamento? Influencia a visão segundo
qual os policiais masculinos são mais preparados para as atividades operacionais e as policiais
femininas para as atividades de cuidado e assistência? O artigo analisa essas questões por
meio de análise quantitativa multivariada de dados provenientes de uma pesquisa de survey
realizada em 2012 na Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR), Brasil. Os resultados
indicam que homens e mulheres têm visões distintas sobre quem é mais apto a atuar nas
atividades operacionais. Os homens tendem a pensar que as mulheres são menos capazes do
que eles no desempenho dessas atividades. Já as mulheres discordam dessa ideia. Isso indica
haver na PMPR obstáculos informais postos pelos homens à plena integração das mulheres à
polícia, bem como atitudes de resistências a esses obstáculos por parte das mulheres. Todavia,
essas atitudes de resistência convivem com uma visão masculinizada do policiamento que
acaba por favorecer os homens. Os dados indicam que homens e mulheres concordam
igualmente com a visão de que o policiamento é uma atividade que demanda força física e
coragem, a despeito do fato de sabermos que as qualidades mais exigidas no policiamento não
são essas e sim a sensibilidade para prestar serviços a pessoas em situações de vulnerabilidade
e o senso de justiça para dirimir conflitos que não envolvem violações claras da lei criminal.
Essas são qualidades socialmente associadas ao universo feminino e valorizá-las em
detrimento da coragem e da força física implicaria em um possível fortalecimento da posição
das mulheres nas atividades de policiamento, o que não ocorre. Assim, as mulheres buscam se
colocar como iguais dentro de um contexto de representações sociais permeadas por valores
masculinos ao invés de questionarem o sentido desses valores para as atividades policiais. Em
outros termos, aceitam a visão masculinizada do policiamento e procuram se afirmar como
iguais dentro desse universo
Palavras-chaves: Polícia Militar; Gênero; Paraná.

Introdução

O Brasil tem cerca de 73 mil mulheres empregadas nas polícias militares e civis, o que
corresponde a cerca de 13% do efetivo total dessas organizações (FBSP, 2015). Trata-se de
1
Docente da Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Ciência Política (USP); clopes@uel.br

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um percentual inferior ao existente na década de 2000 nos países da Europa ocidental, mas
superior ao encontrado nos EUA (11,8%) e em muitos países da América Latina2. Essa
presença feminina e suas consequências foi até o momento pouco estudada. Enquanto a
incorporação das mulheres à polícia vem sendo amplamente pesquisada na bibliografia
internacional desde a década de 70, há poucos trabalhos brasileiros sobre o tema. Como
notado em estudo realizado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública/SENASP (Brasil,
2013), embora crescente, a produção nacional sobre polícia e gênero é ainda formada por
apenas três trabalhos de referência (Calazans, 2004; Soares e Musumeci, 2005; e Sadeck,
2005). Essa produção não dialoga com a vasta literatura internacional sobre o tema e é
dominada por estudos qualitativos.
Este trabalho pretende contribuir com essa bibliografia por meio de um survey
realizado junto à Polícia Militar do Paraná (PMPR) cujos dados serão analisados a partir de
hipóteses derivadas de perspectivas teóricas presentes na literatura internacional sobre polícia
e gênero. A PMPR foi a segunda corporação militar brasileira a incorporar mulheres em seus
quadros. Essa incorporação ocorreu em 1977 por meio da criação de uma divisão de
policiamento feminino. Em 2000 essa divisão foi extinta e as mulheres integradas a uma
carreira policial única. Apesar da unificação de quadros representar um avanço no processo
formal de incorporação das mulheres à polícia, estudos mostram que a plena integração
feminina ainda encontra obstáculos informais decorrentes do modo como os membros das
corporações policiais veem o policiamento e o papel que homens e mulheres deveriam
desempenhar dentro dele. A representação do policiamento como uma atividade arriscada de
enfrentamento violento da criminalidade, combinada com a visão segundo qual os homens são
mais fortes e corajosos do que as mulheres, favorece a defesa da divisão sexual de funções
dentro da polícia entre homens que deveriam se dedicar ao trabalho operacional de combate
ao crime e mulheres que deveriam se dedicar ao trabalho administrativo e de cuidado. Assim,
saber como os indivíduos policiais veem o policiamento e a adequação dos gêneros ao
trabalho policial é fundamental para a compreensão da natureza das resistências e desafios
existentes à integração das mulheres ao policiamento ostensivo.
Ser homem ou mulher condiciona a percepção de que força física e coragem são
atributos fundamentais para o policiamento? Influencia a visão segundo qual os policiais

2
Com exceção do Uruguai, que tem padrões discrepantes do restante da América Latina (25,6%), e do Chile,
que tem o mesmo percentual de mulheres que o Brasil (13%), as forças policiais dos demais países latino
americanos pesquisados por Donadio (2009) apresentam percentuais de mulheres em torno de 10% do efetivo:
Guatemala (11.1%), Peru (10,6%), Paraguai (10,2%), Bolívia (10,5%) e Gendarmeria Nacional da Argentina
(9,7%).

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masculinos são mais preparados para as atividades operacionais e as policiais femininas para
as atividades de cuidado e assistência? Há na literatura internacional respostas distintas a
essas questões. Essas respostas estão relacionadas a três perspectivas teóricas: as teorias sobre
papéis de gênero; as teorias sobre socialização ocupacional; e as teorias sobre construção
social de gênero. O artigo analisará predições derivadas dessas três teorias por meio de análise
quantitativa multivariada. Para isso o trabalho está organizado da seguinte forma. A seção 1
apresenta as hipóteses de trabalho e seus fundamentos teóricos. A seção 2 descreve a
metodologia do estudo. A seção 3 testa as hipóteses de pesquisa por meio de regressão
logística. Os resultados encontrados na análise de regressão são discutidos na seção 4. Por
fim, o trabalho conclui com apontamentos sobre os achados de pesquisa e sobre o que ainda
precisamos entender melhor sobre a participação das mulheres na polícia.

Polícia e Gênero: abordagens teóricas e hipóteses de pesquisa

Pelo menos três grandes perspectivas teóricas têm sido mobilizadas para explicar as
atitudes e visões dos indivíduos policiais: as teorias sobre papéis de gênero; as teorias sobre a
socialização ocupacional; e as teorias sobre construção de gênero. As duas primeiras estão
diretamente relacionadas, respectivamente, ao que Poteyeva e Sun (2009) chamaram de
abordagem teórica da diferença e abordagem teórica da semelhança atitudinal entre gêneros
na polícia. Já a terceira perspectiva pretende ser uma alternativa teórica às anteriores,
especialmente às teorias sobre papéis de gênero.
As teorizações sobre papéis de gênero oferecem os fundamentos da abordagem da
diferença. Essas teorizações sustentam que homens e mulheres tendem a ter visões diferentes
sobre o policiamento. Essas diferenças, por sua vez, gerariam a concordância de que algumas
atividades dentro da polícia devem ser desempenhadas por homens e outras por mulheres.
Enquanto os homens dariam mais valor ao trabalho de combate ao crime e imposição
coercitiva da lei, as mulheres dariam mais importância às atividades de manutenção da ordem
e prestação de serviços que ocupam a maior parte do tempo dos policiais – mediação de
disputas, resolução de conflitos domésticos, orientações ao público, atendimento de vítimas,
policiamento de trânsito e os demais trabalhos que ocorrem nas delegacias de polícia.
Subjacente a essas atitudes está a visão dos homens de que as habilidades físicas que eles
possuem os tornariam mais aptos ao trabalho de imposição coercitiva da lei do que as
mulheres (Chu, 2013), que se sentiriam mais vocacionadas para as atividades de atendimento
de vítimas, prevenção do crime e mediação de disputas que não envolvem violações claras da

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lei criminal. A preferência das mulheres por essas atividades estaria relacionada ao fato de
elas serem socializadas desde a infância em papéis familiais e de cuidado que as levam a
desenvolver uma “moralidade do cuidado” (Guilligan, 1982; Worden, 1993; Poteyeva & Sun,
2009). Dessa forma, se as teorias sobre papéis de gênero estiverem corretas devemos
encontrar: (i) diferenças significativas entre policiais homens e policiais mulheres a respeito
da importância atribuída à força física e à coragem no policiamento, com os homens
valorizando esses atributos mais do que as mulheres; e (ii) nenhuma diferença de gênero em
relação à opinião de que os homens são mais preparados para as atividades operacionais e
de risco e as mulheres para as atividades que envolvem cuidado e assistência.
As teorias sobre socialização ocupacional levam a hipóteses contrárias à das teorias
sobre papéis de gênero e enfatizam que homens e mulheres tendem a ver o policiamento de
forma parecida e que as mulheres demandam igual participação nas atividades policiais. Essas
teorias estão por trás do que Poteyeva e Sun (2009) denominaram de abordagem da
semelhança. O ponto de partida dessas perspectivas é a ideia de que as crenças e atitudes dos
policiais são parte de uma cultura ocupacional que é forte o suficiente para suplantar
eventuais visões de mundo decorrentes do modo como homens e mulheres são socializados
antes da vida adulta. Essa cultura seria formada por um conjunto de símbolos, rituais e
estórias que valorizam o combate físico, o perigo, a bravura e outros atributos socialmente
reconhecidos como masculinos (Waddington, 1999; Reiner, 2004; Dick e Cassell, 2004;
Brown, 2007). Policiais homens valorizariam esses atributos para exaltar as peculiaridades e
dificuldades do seu trabalho frente ao olhar crítico do público e dos superiores hierárquico. As
mulheres fariam o mesmo, mas não apenas para afirmar a sua identidade policial perante o
público e supervisores; valorizariam o uso da força e a coragem também para fortalecer a sua
identidade profissional frente aos colegas de trabalho homens. Estes tenderiam a concordar
com a ideia de que o policiamento operacional deve ser controlado pelos homens porque é
uma atividade arriscada e conflituosa que requer coragem e capacidades físicas que as
mulheres não detêm a contento, razão pela elas se sairiam melhor nas atividades policiais que
envolvem cuidado e assistência. Essas atitudes masculinas de restrição à participação
feminina nas atividades operacionais e arriscadas seria rechaçada pelas policiais mulheres,
que demandariam igual participação no policiamento das ruas por se sentirem tão preparadas
quanto os homens. Assim, se as teorias da socialização ocupacional estiverem corretas
devemos encontrar: (i) nenhuma diferença significativa entre policiais homens e policiais
mulheres a respeito da importância atribuída à força física e à coragem no policiamento; e
(ii) diferenças de gênero em relação à opinião de que os homens são mais preparados para

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as atividades operacionais e de risco e as mulheres para as atividades que envolvem cuidado


e assistência, com os homens tendendo a concordar com essas visões mais do que as
mulheres.
Pesquisas qualitativas realizadas nos EUA e no Reino Unido apoiam a hipótese de que
as policiais mulheres dão grande importância à aplicação coercitiva da lei e reclamam
participação nessas atividades (Westmarland, 2001; Heidenshohn, 1992). Todavia, os estudos
quantitativos a esse respeito apresentam resultados contraditórios (Poteyeva & Sun, 2009).
Como notaram Poteyeve e Sun (2009), os resultados divergentes das pesquisas quantitativas
podem estar relacionados ao fato de elas trabalharem com conceitos amplos sobre o papel da
polícia e diferentes formas de mensurá-lo. Mas é preciso notar que as divergências podem
também estar ligadas ao fato de as atitudes do/as policiais sobre a sua ocupação,
especialmente das mulheres, serem mais heterogêneas e mutáveis do que as teorias sobre as
diferenças de gênero e as teorias sobre a socialização ocupacional supõem. Essas questões
têm sido levadas em consideração por uma outra abordagem influente no campo dos estudos
sobre polícia e gênero: a perspectiva da construção social de gênero (Martin (1996). Essa
abordagem também sustenta que os policiais homens valorizam o combate ao crime e
resistem à participação das mulheres nessas funções, mas defende que a visão das policiais
mulheres em relação ao policiamento e à divisão de funções policiais varia de acordo com as
escolhas que elas fazem entre ser uma “policial mulher” ou ser uma “mulher policial”. Como
a cultura policial valoriza comportamentos associados ao universo masculino, Martin (1980)
argumenta que as mulheres que ingressam na polícia se deparam com um dilema. Por um
lado, espera-se que elas pensem e ajam como os seus colegas policiais homens. Por outro,
espera-se e pressiona-se para que elas tenham atitudes e comportamentos considerados
femininos. Assim, ao fazer gênero no trabalho as mulheres continuamente devem decidir
quando e como agir como uma policial e quando e como agir como uma “dama” (Brown,
2002). Segundo Chun, Doran e Marel (2010), essas escolhas são condicionadas por fatores
estruturais e conjunturais. Mulheres que estão no início da carreira policial e mulheres sem
filhos tendem ver o mundo como “policiais mulheres”: consideram que a força física e a
coragem são fundamentais para o policiamento e rejeitam a ideia de que os homens são mais
preparados para o trabalho operacional e de risco e as mulheres para as atividades
assistenciais e de cuidado. Já as mulheres em estágios mais avançados da carreira e com filhos
tendem a pensar como “mulheres policiais”: aceitam o discurso das diferenças físicas entre
homens e mulheres e a ideia de que a linha de frente do policiamento deveria ser ocupada
pelos homens. Assim, a partir da perspectiva da construção social de gênero é possível

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hipotetizar que (i) policiais mulheres em estágios mais avançados da carreira ou com filhos
tenderão a atribuir menos importância à força física e à coragem no policiamento do que as
mulheres no início da carreira e sem filhos, assumindo assim uma posição diferente da dos
homens; (ii) policiais mulheres em estágios mais avançados da carreira ou com filhos
tenderão a concordar mais com a visão segundo qual os homens são mais preparados para
as atividades operacionais e de risco e as mulheres para as atividades que envolvem cuidado
e assistência do que as mulheres no início da carreira e sem filhos, assumindo assim posição
semelhante a dos homens.

Metodologia

Os dados analisados na próxima seção são provenientes da pesquisa "Direitos


Humanos, Igualdade de Gênero e Ação Policial da Polícia Militar do Paraná". O objetivo da
pesquisa foi captar as orientações subjetivas dos policiais militares paranaenses sobre direitos
humanos e gênero. Para isso, foi realizado um survey com os policiais militares da ativa, que
no momento da confecção do plano amostral (março de 2012) compunham um efetivo de
16.267 indivíduos. Considerando um erro amostral de 4% e um nível de confiança de 95%,
foi sorteada uma amostra com 600 indivíduos por meio da técnica de conglomerado em dois
estágios: no primeiro foram selecionadas as unidades administrativas de policiamento e no
segundo os policiais.
Na parte relativa à temática de gênero, uma série de afirmações foram formuladas para
captar percepções e atitudes dos entrevistados a respeito de características ou qualidades da
atividade policial militar. Os entrevistados eram incentivados a se posicionarem a respeito de
cada uma delas em uma escala de concordância que comportava as alternativas “discorda
muito”, “discorda”, “concorda” e “concorda muito”. Dentre essas afirmações, selecionamos
cinco que representariam bem as percepções que se relacionam às hipóteses explicitadas
anteriormente: 1) A força física e a coragem são qualidades fundamentais para o desempenho
da atividade policial; 2) O homem tem um melhor desempenho no serviço operacional por ser
mais forte e corajoso que a mulher; 3) O policial masculino lida melhor com ocorrências de
risco; 4) A policial feminina lida melhor com ocorrências de cuidado e assistência; 5)
Considerando que você trabalhe ou trabalhasse na atividade operacional, é preferível trabalhar
com policiais masculinos.
Para tornar mais compreensíveis os resultados dos modelos multivariados, optamos
por recodificar as escalas distinguindo apenas respostas concordantes das discordantes,

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convertendo as cinco variáveis em dicotômicas. A partir desse procedimento, as medidas


foram inseridas como dependentes em modelos de regressão logísticos binários, com o
objetivo de estimar impactos de alguns atributos sobre a razão de chance de concordância.
Coerentemente com as hipóteses de interesse da pesquisa, foram incluídos como preditores o
sexo e perfis produzidos pela combinação da idade e da declaração de maternidade das
policiais mulheres. Assim, foram gerados quatro perfis para serem contrastados nos modelos
com a condição de “homem”: mulheres jovens; mulheres maduras, mulheres com filhos;
mulheres sem filhos. Além desses preditores, foram também adicionadas variáveis discretas
relativas ao tipo de atividade (operacional ou administrativa) e ao grupo hierárquico (oficial
ou praça). Nas tabelas abaixo são reportados sempre os exponenciais de B e, entre parênteses,
o erro padrão. Os níveis de significância são representados por asteriscos ao lado dos
exponenciais.

Resultados

A Tabela 1 indica que não existem diferenças estatisticamente significativas entre


homens e mulheres no que diz respeito à concordância com a afirmação de que “A força física
e a coragem são qualidades fundamentais para o desempenho da atividade policial”. A única
variável com efeito nesses modelos iniciais foi a idade, com impacto idêntico nos modelos 1 e
3. Nessas duas equações, para cada acréscimo de unidade de idade (anos de vida), a chance de
concordar com a afirmação diminui em 3,5%. Ainda que esse efeito possa parecer reduzido, é
preciso destacar que essa variável é contínua e comporta valores entre 20 e 59, o que torna o
impacto cumulativo bastante relevante. Esse resultado, portanto, indica um efeito geracional,
com os mais jovens apresentando níveis mais elevados de concordância.

Tabela 1. Preditores da concordância com a afirmação “A força


física e a coragem são qualidades fundamentais para o
desempenho da atividade policial”
Variáveis Preditores Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
1,43 - -
Homens
(,328)
1,68 -
Mulheres jovens
- (,379)
2,09 -
Explicativas Mulheres maduras
- (,668)
- 1,51
Mulheres sem filhos
- (,441)
- 1,13
Mulheres com filhos
- (,628)

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,965** - ,965*
Idade
(,012) (,012)
,985 1,08 ,992
Controles Operacional
(,255) (,250) (,257)
1,254 1,34 1,26
Oficial
(409) (,406) (,409)
% de acerto Bloco 0 59 59,3 60,7
% de acerto Bloco 1 60,2 59,3 60,7
Nota: **sig>,001 *sig>0,05

Algo distinto ocorre quanto à afirmação “O homem tem um melhor desempenho no


serviço operacional por ser mais forte e corajoso que a mulher” (Tabela 2). No Modelo 1,
como previsto pela perspectiva da socialização ocupacional, ser homem aumenta em 169% a
chance de concordância. Quando passamos para o Modelo 2, ao contrário do predito pelas
teorias sobre construção social de gênero, verificamos que as mulheres jovens (36 anos ou
menos) têm probabilidade de concordância 124% maior do que os homens.

Tabela 2. Preditores da concordância com a afirmação “O


homem tem um melhor desempenho no serviço operacional por
ser mais forte e corajoso que a mulher.”
Variáveis Preditores Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
2,69** - -
Homens
(,351)
- 2,24* -
Mulheres jovens
(,403)
- ,51 -
Explicativas Mulheres maduras
(,760)
- - 1,57
Mulheres sem filhos
(,452)
- - ,29
Mulheres com filhos
(,718)
,99 - ,99
Idade
(,011) (,011)
1,03 1,02 ,98
Controles Operacional
(,253) (,251) (,258)
,751 ,75 ,73
Oficial
(397) (,395) (,396)
% de acerto Bloco 0 55,6 55,9 56
% de acerto Bloco 1 59,3 59,1 56
Nota: **sig>,001 *sig>0,05

Sobre a afirmação “Considerando que você trabalhe ou trabalhasse na atividade


operacional, é preferível trabalhar com policiais masculinos”, o Modelo 1 indica que,
conforme previsto pelas teorias sobre papéis de gênero, ser homem ou mulher não faz
diferença. Por outro lado, no Modelo 2 os dados são consistentes com os anteriores em
relação à não comprovação das teorias sobre construção social de gênero: as mulheres jovens

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(36 anos ou menos) têm uma chance 18% maior do que os homens de concordar com a ideia
de que é preferível trabalhar com homens nas atividades operacionais.

Tabela 3. Preditores da concordância com a afirmação


“Considerando que você trabalhe ou trabalhasse na atividade
operacional, é preferível trabalhar com policiais masculinos”
Variáveis Preditores Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
1,45 -
Homens
(,372)
- 1,18*
Mulheres jovens
(,550)
- ,69
Explicativas Mulheres maduras
(,656)
- - ,97
Mulheres sem filhos
(,461)
- - ,44
Mulheres com filhos
(,639)
1,00 - 1,00
Idade
(,011) - (,012)
,91 ,89 ,87
Controles Operacional
(,261) (,258) (,265)
1,35 1,35 1,31
Oficial
(,420) (,419) (,420)
% de acerto Bloco 0 60,3 59,9 61,2
% de acerto Bloco 1 60,3 62 61,2
Nota: *sig>0,05

Como previsto pela perspectiva da socialização ocupacional, no Modelo 1 da Tabela 4,


ser homem aumenta em 231% a chance de concordar com a afirmação “O policial masculino
lida melhor com ocorrências de risco”. Aqui os resultados também contradizem as predições
das teorias sobre construção social de gênero, já que no Modelo 2 “mulheres jovens” têm uma
chance 144% maior de concordância e no Modelo 3 “mulheres sem filhos” tem probabilidade
elevada em 172%, sempre considerando a comparação com homens. Ou seja, o efeito é
contrário ao predito pelas teorias sobre construção social de gênero.

Tabela 4. Preditores da concordância com a afirmação “O


policial masculino lida melhor com ocorrências de risco”.
Variáveis Preditores Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
3,31**
Homens
(,351) - -
2,44*
Explicativas Mulheres jovens
- (,382) -
,22
Mulheres maduras
- (,848) -

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2,72*
Mulheres sem filhos
- - (,447)
,65
Mulheres com filhos
- - (,659)
1,02 1,02
Idade
(,012) - (,012)
1,21 1,08 1,18
Controles Operacional
(,262) (,259) (,265)
,78 ,74 ,77
Oficial
(402) (,400) (,402)
% de acerto Bloco 0 65,1 65,0 65,1
% de acerto Bloco 1 68,3 68,1 68,2
Nota: **sig>,001 *sig>0,05

Sobre a última afirmação, “A policial feminina lida melhor com ocorrências de


cuidado e assistência”, como esperado a partir das teorias sobre papéis de gênero, não há
diferenças entre homens e mulheres. As evidências também não dão sustentação às teorias
sobre construção social de gênero, pois nenhum dos preditores tiveram efeito.

Tabela 5. Preditores da concordância com a afirmação “A policial


feminina lida melhor com ocorrências de cuidado e assistência”
Variáveis Preditores Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
1,15 - -
Homens
(,334)
- ,783 -
Mulheres jovens
(,610)
- ,583 -
Explicativas Mulheres maduras
(,705)
- - 1,09
Mulheres sem filhos
(,461)
- - ,90
Mulheres com filhos
(,639)
1,02 - 1,01
Idade
(,012) (,012)
1,14 1,14 1,13
Controles Operacional
(,260) (,256) (,263)
,903 ,90 ,90
Oficial
(404) (,403) (,405)
% de acerto Bloco 0 63,7 63,6 63,7
% de acerto Bloco 1 63,7 63,3 63,7

Discussão

Os resultados apresentados anteriormente indicam uma realidade complexa na qual


estão presentes evidências que se enquadram tanto nas expectativas derivadas das teorias
sobre papéis de gênero quanto nas predições associadas às teorias sobre socialização

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ocupacional. As hipóteses relacionadas às teorias sobre construção social de gênero não


encontraram apoio nos dados.
As opiniões prevalecentes entre homens e mulheres de que as policiais femininas
lidam melhor com ocorrências de cuidado e assistência e de que é preferível realizar o
policiamento operacional com policiais masculinos podem ser consideradas condizentes com
as hipóteses derivadas das teorias sobre papéis de gênero. Essas teorias defendem que a
socialização em papéis de gênero antes da entrada na polícia faz com que as mulheres
desenvolvam uma moralidade do cuidado e os homens uma moralidade da justiça (Guilligan,
1982). A importação dessas moralidades para dentro da polícia acabaria por gerar apoio à
divisão sexual de funções policiais baseada na ideia de que as policiais femininas são mais
preparadas para as atividades que envolvem cuidado e os policiais masculinos para as
atividades que demandam coragem e força física (Worden, 1993; Poteyeva & Sun, 2009). Se
levarmos em conta a concordância de ambos os gêneros com a afirmação de que as mulheres
lidam melhor com ocorrências de cuidado e assistência e se interpretarmos a preferência da
maioria dos indivíduos policiais pelo trabalho operacional ao lado de policiais masculinos
como um indicativo de reconhecimento do desempenho superior dos homens nessas
atividades, poderíamos inferir que há dentro da Polícia Militar do Paraná apoio generalizado à
divisão sexual de funções entre homens dedicados ao policiamento operacional de risco e
mulheres dedicadas às atividades policiais que envolvem cuidado e assistência.
Ocorre que esse apoio à divisão sexual de funções não se sustenta a partir do
posicionamento dos membros da Polícia Militar paranaense em relação às demais questões.
Policiais masculinos e policiais femininas têm posicionamentos distintos em relação à
afirmação de que o homem tem um melhor desempenho no serviço operacional por ser mais
forte e corajoso do que a mulher. Também têm posicionamentos distintos em relação à
afirmação de que o policial masculino lida melhor com ocorrências de risco. Em ambos os
casos ser homem aumenta significativamente as chances de concordar com essas afirmações
ao passo que ser mulher diminui essas chances. Assim, esses resultados não dão sustentação
às hipóteses derivadas das teorias sobre papéis de gênero e sim às hipóteses relacionadas às
teorias sobre socialização ocupacional. Para essas teorias a ocupação policial gera uma cultura
policial que valoriza um conjunto de atributos associados ao universo masculinos, dentre os
quais a coragem e a força física (Waddington, 1999; Reiner, 2004; Brown, 2007). Esses
atributos seriam valorizados tanto pelos policiais homens quanto pelas policiais mulheres
como forma de engrandecer o trabalho policial frente às desconfianças da sociedade e de
superiores hierárquicos (Waddington, 1999). Entre as mulheres essa valorização também seria

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p870 880


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uma forma de afirmação perante os colegas de trabalho homens, que as consideram pouco
preparadas para o trabalho operacional que envolve risco (Dick e Cassell, 2004). Daí a
tendência de os homens concordarem e de as mulheres discordarem das afirmações de que os
policiais masculinos são mais preparados do que as policiais femininas para o trabalho
operacional e a centralidade atribuída por ambos os gêneros à força física e à coragem no
policiamento. Os resultados gerais são então ambíguos do ponto de vista da corroboração das
hipóteses derivadas das teorias sobre papéis de gênero e das hipóteses relacionadas às teorias
sobre socialização ocupacional.
Mas essa ambiguidade está alinhada com as descobertas dos estudos qualitativos sobre
polícia e gênero realizados no Brasil. Soares e Musumeci (2005) já haviam notado que a
integração das mulheres à Polícia Militar do Rio de Janeiro por meio da criação de uma
carreira policial única, aliada à persistência de barreiras informais para impedir a participação
feminina no policiamento operacional, criava uma situação que contribuía para gerar atitudes
ambíguas nas mulheres, que frequentemente se dividiam entre “a necessidade de se afirmar
como iguais aos homens, demonstrando sua capacidade como policiais, e ao mesmo tempo
garantir o respeito às suas singularidades” (Soares e Musumeci, 2005, p 179). Esse
posicionamento feminino diverso também foi detectado pelo trabalho de Souza (2014), que
descobriu que uma parte das mulheres buscava se espelhar nos comportamentos masculinos
como forma de obter reconhecimento no policiamento operacional, enquanto outra
demandava o reconhecimento da condição feminina e disposição para as atividades que
demandavam maior sensibilidade e capacidade de comunicação.

Conclusão

Quais as implicações das opiniões reveladas pela pesquisa para a plena integração das
mulheres à Polícia Militar do Paraná? Os dados sugerem que a participação das mulheres em
atividades que envolvem cuidado e assistência não é objeto de discordâncias e está
consolidada dentro da corporação militar paranaense. Mas o mesmo não se dá em relação à
participação das mulheres nas atividades operacionais arriscadas e que são percebidas como
demandando coragem e força física. Os homens tendem a desaprovar a participação das
mulheres nessas atividades com base no argumento de que elas são menos capazes do que
eles. Em uma ocupação dominada por homens essa visão é decisiva, já que é da percepção de
mundo dos policiais que nascem as atitudes e comportamentos que impedem a participação
das mulheres no policiamento operacional. Já as mulheres tendem a discordar da ideia de que

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elas têm um desempenho inferior ao dos homens no serviço operacional, indicando assim
haver na Polícia Militar do Paraná resistências aos obstáculos informais criados para a plena
integração das mulheres ao policiamento operacional. Worden (1993) já havia chamado a
atenção para o fato de que em contextos nos quais um grupo tenta excluir outro da igual
participação em determinadas atividades ou em uma determinada cultura é esperado que os
grupos excluídos reajam e expressem percepções e atitudes de resistência à exclusão imposta
pelos grupos dominantes. Os dados analisados parecem se ajustar bem à essa ideia.
Interessante notar que as resistências das mulheres à exclusão do policiamento
operacional parecem não colocar em xeque a visão masculinizada do policiamento. Estudos
realizados desde a década de 1960 mostram que o grosso do trabalho policial é formado por
atividades de prestação de serviços e manutenção da ordem que pouco demandam coragem e
força física (Reiner, 2004, p. 163-171). As qualidades mais exigidas no policiamento são a
sensibilidade e o cuidado para prestar serviços a pessoas em situações de vulnerabilidade
(policiamento como serviço) e o senso de justiça para mediar e dirimir conflitos que não
envolvem violações claras e inequívocas da lei criminal (policiamento como manutenção da
ordem). Essas são qualidades socialmente associadas ao universo feminino e valorizá-las
implicaria em um possível fortalecimento da posição das mulheres nas atividades de
policiamento. Mas isso não ocorre. As mulheres valorizam a força física e a coragem no
policiamento tal qual os homens e discordam da ideia de que apenas os primeiros estão aptos
a realizar o policiamento por serem os portadores dessas qualidades. Ao invés de
representarem o policiamento como uma atividade associada a valores que poderiam
favorece-las, as mulheres reproduzem assim visões tradicionais sobre as atividades policiais e
buscam se afirmar como iguais diante da desaprovação masculina à participação feminina no
policiamento operacional. Ao se posicionarem dessa forma elas buscam se colocar como
iguais dentro de um contexto de representações sociais permeadas por valores masculinos ao
invés de questionarem o sentido desses valores para as atividades policiais. Em outros termos,
aceitam a visão masculinizada do policiamento como uma atividade que depende
fundamentalmente de força física e coragem e procuram se afirmar como iguais dentro desse
universo.

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Mulheres, jovens e polícia: a construção de um novo paradigma?

Letícia Figueira Moutinho Kulaitis1


Graziele de Jesus Pestana2
Resumo
Executado pelo Ministério da Justiça, entre 2009 e 2012, o Projeto Mulheres da Paz, ação
integrante do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, foi definido como um
projeto de capacitação de lideranças femininas para atuação como mediadoras sociais,
contribuindo para a construção e o fortalecimento de redes de prevenção e enfrentamento às
violências que envolvem jovens e adolescentes. As Mulheres da Paz seriam responsáveis pela
identificação e acompanhamento de jovens em “situação de risco infracional ou criminal” em
suas comunidades e encaminhamento dos mesmos para o Projeto Proteção de Jovens em
Território Vulnerável (PROTEJO) ou demais projetos do Programa. No escopo do projeto, as
mulheres eram identificadas pela associação com a maternidade, pela capacidade de proteger e
resgatar jovens. Sendo assim, eram utilizadas como instrumentos para o fim que se pretendia,
ou seja, para manter os jovens pobres afastados do crime. A efetividade de sua ação teria por
base o respeito e a legitimidade alcançados por essas mulheres diante de suas comunidades.
Sendo assim, embora não se configure como uma política específica para combater a violência
de gênero o Projeto Mulheres da Paz aponta, na perspectiva do Ministério da Justiça, para o
estabelecimento de uma dinâmica entre mulheres, jovens e violência. O objetivo deste artigo é
compreender como se estabeleceu essa dinâmica na elaboração da política pública bem como
investigar a execução da mesma. Para realizar esse objetivo foram avaliadas informações
coletadas sobre a execução das atividades do Projeto Mulheres da Paz por municípios e Estados
da União no período compreendido entre 2008 e 2012. Tais informações indicam a
desarticulação entre as ações do Projeto Mulheres da Paz e do Projeto PROTEJO e a ausência
de centralidade da ação no corpo do Programa PRONASCI. Além disso, concluímos que as
mulheres têm sido instrumentalizadas pelo governo para o controle do corpo dos jovens,
contribuindo com os estereótipos de gênero denunciados pela literatura.
Palavras-chaves: Gênero; Políticas Públicas; Mulheres da Paz.

1
Professora Colaboradora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina; Doutora
em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná; leticia.kulaitis@gmail.com
2
Estudante do bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Londrina; Licenciada em Ciências
Sociais pela Universidade Estadual de Londrina; grazielepestana@live.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 884


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Políticas Públicas de Gênero


Diferente dos estudos de gênero que se consolidaram por volta da década de 1970 junto
ao movimento feminista, a perspectiva de gênero nas políticas públicas encontra-se ainda
relativamente incipiente (FARAH, 2004). Nas democracias modernas, cabe ao Estado o papel
de prover respostas às demandas sociais através da implementação de políticas públicas. De um
modo geral, estas políticas contemplam decisões complexas que atuam para além de seu
processo de formulação e se desenvolvem mais na fase de implementação do que propriamente
na fase de elaboração, podendo haver mudanças em seu conteúdo com o decorrer do tempo.
Equivale dizer que os processos nos quais as políticas públicas se desenvolvem são dinâmicos
e refletem as questões presentes em seu próprio período histórico (HAM; HILL, 1993). Farah
(2004) sustenta que na perspectiva de gênero, busca-se olhar para além das políticas e
programas que atendam apenas as mulheres, ainda que isto seja um passo essencial.
O conceito de gênero busca salientar a construção social e histórica do feminino e do
masculino nas relações entre os sexos que são fortemente desiguais. Tal conceito tem sido
mobilizado pela literatura feminista desde a década de 1970, sendo interpretado de formas
diversas pelas várias correntes feministas. No entanto, a mais difundida é a proposta pelo
feminismo da diferença (CARVALHO, 1998, apud FARAH, 2004). Essa corrente se opõe ao
feminismo da igualdade, que defende que as diferenças entre os homens e as mulheres são
biológicas, ao passo que as demais diferenças são culturais advindas de relações de opressão e
que, portanto, devem ser eliminadas. A teoria da diferença vai sustentar que o conceito de
gênero se refere aos traços culturais femininos (e também masculinos) que são construídos
socialmente a partir do elemento biológico.
Constrói-se assim uma polarização binária entre os gêneros, em que a diferença é concebida
como categoria central de análise, fundamental na definição de estratégias de ação. As diferenças
entre homens e mulheres são enfatizadas, estabelecendo-se uma polaridade entre masculino e
feminino, produção e reprodução, e público e privado. Para o feminismo da diferença, o poder
concentrar-se-ia na esfera pública, estando nessa polaridade a origem da subordinação das
mulheres. (HITA, 1998, apud FARAH, 2004, p. 48)

Há ainda a perspectiva pós-estruturalista, que enfatiza a historicidade das diferenças de


gênero e a construção social da percepção da diferença sexual (SCOTT, 1994; CARVALHO,
1998, apud FARAH, 2004). Essa corrente reafirma que é imprescindível romper com a
homogeneização do masculino e feminino, priorizando a diversidade. Diante disso, faz-se
necessário incluir nas análises categorias como raça, classe e geração (NICHOLSON, 1994,
apud FARAH, 2004). O conceito de gênero ao salientar as relações sociais entre os sexos, traz
à tona as desigualdades entre os homens e as mulheres, sobretudo no que diz respeito ao poder.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 885


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Em todas as sociedades, para além de outros sistemas de desigualdade, é possível verificar um


padrão de dominação dos homens sobre as mulheres, seja na esfera pública ou na esfera privada
(CARVALHO, 1998, apud FARAH, 2004).
Silvana Aparecida Mariano (2003) afirma que as políticas públicas de gênero ocupam,
em grande medida, os debates sobre desigualdade econômica e injustiças culturais e simbólicas.
Conforme a autora, o feminismo e o movimento negro foram os pioneiros na conformação das
políticas identitárias. Partindo do pressuposto de que a população não é homogênea e de que as
políticas não são neutras, a perspectiva feminista lança mão de uma crítica às relações de
gênero, onde os homens e as mulheres são portadores de interesses e necessidades distintas, os
quais devem refletir nas ações de alcance público para superar as condições de subordinação
do feminino sob o masculino.
No arcabouço do pensamento feminista, teórico e político, gênero constitui-se numa
categoria de análise histórica e num método de planejamento. Para tanto, porta um
conteúdo crítico e emancipatório no que diz respeito às relações sociais desiguais entre
homens e mulheres. (Silvana aparecida MARIANO, 2003, p. 5)

No que diz respeito à construção social dos papeis das mulheres no Brasil, do ponto de
vista histórico destacam-se três elementos centrais: planejamento familiar, creches e violência
contra a mulher (DESOUZA, BALDWIN, 2000). Ao concentrarmo-nos no primeiro elemento,
percebemos uma atribuição à mulher do papel de encarregada da família, de cuidadora dos
filhos e do marido. Essas premissas encontram-se presentes inclusive nas políticas públicas.
Embora não se configure como uma política específica para combater a violência de gênero, o
Projeto Mulheres da Paz instrumentaliza mulheres para identificar jovens em risco infracional
e encaminha-los para programas de combate à violência do governo. Nesse sentido, há uma
correlação, na perspectiva do Ministério da Justiça, entre a dinâmica dessas mulheres, jovens e
violência. O objetivo deste artigo é compreender como se estabeleceu essa dinâmica na
elaboração da política pública do Mulheres da Paz em conjunto com o programa PROTEJO,
bem como investigar a execução da mesma. Para isso, avaliamos as atividades do Projeto
Mulheres da Paz por municípios e Estados da União no período compreendido entre 2008 e
2012.

PROTEJO e Mulheres da Paz: a articulação proposta pelo PRONASCI


Lançado pelo Ministério da Justiça em agosto de 2007, o Programa Nacional de
Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) consolidou o foco etário e territorial da
política nacional de segurança proposta pelo Ministério da Justiça desde a criação da Secretaria

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Nacional de Segurança Pública (SENASP) em 1995. O programa teve suas ações dirigidas para
jovens entre 15 e 24 anos, identificados como aqueles em situação infracional ou no caminho
de situação infracional: adolescentes em conflito com a lei, jovens oriundos do serviço militar
obrigatório, jovens presos, jovens egressos do sistema penitenciário e jovens em situação de
descontrole familiar grave (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p.5). Estes jovens não estariam
integrados aos demais programas sociais do governo federal e seriam moradores das periferias
dos grandes centros urbanos do Brasil.
Partindo da afirmação da violência juvenil como uma questão de segurança pública, o
Ministério da Justiça destacou, dentre as 94 ações do PRONASCI, o projeto Proteção de Jovens
em Território Vulnerável (PROTEJO) – ação nº 62 – como uma ação destinada a atender jovens
de 15 a 24 anos, em situação de vulnerabilidade social e exposição à violência.

É o projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável. Vai cuidar dos jovens


expostos à violência doméstica e urbana, ou que vivam nas ruas. A ajuda virá por meio
da integração desses jovens em atividades culturais, esportivas e educacionais, com o
apoio de psicólogos, educadores e assistentes sociais, que identificarão o melhor
caminho para cada adolescente (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008a, p. 8)

Os jovens, moradores dos territórios que concentravam a execução das demais ações
PRONASCI, eram selecionados por sua identificação como “aqueles em situação infracional
ou no caminho de situação infracional” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p.5). Na proposta
do Programa, estes indivíduos, por conta das características atribuídas a juventude3 e de sua
situação de marginalidade social, caminhariam numa linha tênue entre a prática concreta da
criminalidade e a possibilidade efetiva de realizá-la num futuro próximo. A solução proposta
ao problema apontado pelo governo federal é a inserção dos jovens pobres em programas de
qualificação profissional.
A identificação dos jovens participantes do PROTEJO seria realizada por integrantes do
Projeto Mulheres da paz; por equipe multidisciplinar contratada para acompanhar aexecução
do projeto; por assistentes sociais; por conselheiros tutelares; por agentes do Programa Saúde
da Família ou por indicação de parceiros do ente federado responsável pela execução do projeto
ou do Ministério da Justiça, como por exemplo, Ministério Público ou Vara da Infância e
Juventude.
Após processo de seleção, os jovens participariam de um percurso sócio formativo cuja
estrutura foi estabelecida pela Coordenação do PROTEJO e executada pelos gestores locais. O
percurso tinha uma carga horária de 800 horas, divididas em 2 ciclos:

3
Os jovens são comumente reconhecidos, em nossa sociedade, como impulsivos, emocionalmente instáveis,
egocêntricos e irresponsáveis, ou seja, como indivíduos que não hesitam em colocar-se em situações de risco.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 887


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1º Ciclo (440 h):


a) 320h de oficinas educacionais, culturais e esportivas

b) 80h de informática

c) 30h de atividades complementares

d) 10h de reuniões pedagógicas

2º Ciclo (360h):
a) 273h de desenvolvimento de projetos locais e acompanhamento psicoterapêutico

b) 72h de informática

c) 15h de reuniões pedagógicas

No 1º ciclo, os jovens deveriam ter presença mínima de 75% nas oficinas propostas.
Após os dois primeiros meses do 1º ciclo, os jovens, em idade escolar, que não estivessem
matriculados nas redes de ensino municipal ou estadual deveriam retornar à educação formal.
O PROTEJO oferecia aos jovens o pagamento de bolsa no valor de R$ 100,00 durante
a realização do percurso social formativo. A frequência às atividades do Projeto garantiria o
recebimento do benefício pelo período de um ano4.
De acordo com a Coordenação Nacional do PROTEJO, o percurso social formativo
tinha como objetivo a formação de jovens responsáveis pela disseminação da cultura de paz em
suas comunidades e envolvia a prática de atividades culturais, esportivas e educacionais sob a
forma de oficinas. Ocupando 320 horas do 1º ciclo de formação, as oficinas abordavam os
seguintes temas: adaptação, atividades psicossociais, construção do percurso social formativo
individualizado, violências, autoestima e estética, corpo e sexualidades, família e paternidade
responsável, meio ambiente, mitos, direitos humanos (abordagem em gênero, raça, sexualidade
e juventude), classes sociais, mídia, estado e sociedade, cidadania (formação sócio jurídica),
protagonismo juvenil, segurança pública e sistema penal, drogas e redução de danos, projeto
comunitário (rito de passagem) e prática cidadã (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2007).
Embora fosse apontada como uma ação voltada para o protagonismo juvenil, o projeto,
formulado pela Secretaria Executiva do PRONASCI, constituiu-se como um modelo a ser
reproduzido pelos entes responsáveis por sua execução. As oficinas, como descrito acima,

4
A Caixa Econômica Federal foi responsável pelo pagamento dos benefícios. O pagamento era feito por meio de
um cartão personalizado, com a logomarca do PRONASCI.

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apresentavam temas pré-determinados pela Coordenação do PROTEJO. Havia, portanto, uma


pequena margem para que os executores do projeto o adaptassem às temáticas locais.
Por conta da estrutura do projeto, os jovens selecionados não participavam da concepção
ou do planejamento do PROTEJO. Sendo assim, os jovens tornavam-se objetos e não sujeitos
da ação. Trata-se, portanto, de uma política com jovens e não de uma política para jovens
(CASTRO, 2008, p.11).
De acordo com a estrutura proposta pelo PRONASCI, as Mulheres da Paz seriam
responsáveis pela identificação e acompanhamento de jovens em “situação de risco infracional
ou criminal” em suas comunidades e encaminhamento dos mesmos para o Projeto Proteção de
Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO) ou demais projetos do Programa. No escopo do
projeto, as mulheres eram identificadas pela associação com a maternidade, pela capacidade de
proteger e resgatar jovens. Sendo assim, eram utilizadas como instrumentos para o fim que se
pretendia, ou seja, para manter os jovens pobres afastados do crime. A efetividade de sua ação
teria por base o respeito e a legitimidade alcançados por essas mulheres diante de suas
comunidades.

O papel das mulheres na perspectiva da Segurança Pública


Executado pelo Ministério da Justiça, entre 2009 e 2012, o Projeto Mulheres da Paz,
ação integrante do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, foi definido como
um projeto de capacitação de lideranças femininas para atuação como mediadoras sociais,
contribuindo para a construção e o fortalecimento de redes de prevenção e enfrentamento às
violências que envolvem jovens e adolescentes. As Mulheres da Paz seriam responsáveis pela
identificação e acompanhamento de jovens em “situação de risco infracional ou criminal” em
suas comunidades e encaminhamento dos mesmos para o Projeto Proteção de Jovens em
Território Vulnerável (PROTEJO) ou demais projetos do Programa.
A execução do PROTEJO deveria ocorrer de forma articulada com a ação PRONASCI
nº 61 denominada Mulheres da Paz. Observa-se que na Medida Provisória nº. 384 de 20 de
agosto de 2007 e no projeto de lei enviado ao Congresso, a ação foi denominada, pelo Ministério
da Justiça, de Mães da Paz. Durante o trâmite do projeto no Senado, o nome da ação foi alterado
para Mulheres da Paz. Sobre este processo, Sorj e Gomes (2011, p. 152) esclarecem que:

Ao longo de um processo disputado de articulações políticas, o projeto ganhou outras


estruturas e conotações, que giram em torno da tensão mães versus mulheres. A
Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SPM), a partir de um viés feminista,
identificou que o projeto, configurado como estava para promover a ação das mães junto
aos jovens, tinha como pressuposto central a imagem e o papel de “mães/cuidadoras”

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das mulheres. A SPM posicionou-se contrariamente a isso e defendeu que o projeto


deveria promover o “empoderamento” das mulheres, o que significaria “tirá-las do lugar
de cuidadoras”. A SPM sugeriu, então, que o programa deveria se chamar “Lideranças
da Paz”, o que, além de contemplar a meta de “empoderamento”, admitiria também a
possibilidade de inclusão de homens como operadores locais, enfraquecendo, assim, a
associação entre o feminino e os cuidados. Este último ajuste não foi contemplado, e o
programa ganhou o nome final de “Mulheres da Paz”.

Podemos inferir que a identificação das mulheres integrantes do projeto como Mulheres
da Paz reforça as normas de gênero que definem os sexos em nossa sociedade. No vocabulário
da segurança pública, os homens protagonizam a guerra urbana como profissionais da
segurança ou criminosos. São, portanto, identificados como guerreiros. As mulheres, nessa
ordem, são aquelas que cuidam, protegem, defendem e pacificam.
Depois de nomeada a ação foi definida como um projeto de capacitação de lideranças
femininas para atuação como mediadoras sociais, contribuindo para a construção e o
fortalecimento de redes de prevenção e enfrentamento às violências que envolvem jovens e
adolescentes (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA; SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA
PÚBLICA: 2009).
As Mulheres da Paz seriam responsáveis pela identificação e acompanhamento de
jovens em “situação de risco infracional ou criminal”5 em suas comunidades e encaminhamento
dos mesmos para o PROTEJO ou demais projetos do Programa.
Novamente aponta-se uma aproximação entre a política pública proposta pela área de
segurança pública e a política pública proposta pela área de assistência pois as mulheres são
percebidas pelas duas áreas como responsáveis pela execução das políticas nas comunidades.
Sua esfera de atuação vai desde cuidados com a saúde, alimentação e escolarização de crianças,
adolescentes e jovens, cuidados com os idosos da família, administração da renda familiar e o
envolvimento de adolescentes e jovens com o tráfico de drogas e o crime organizado (MEYER;
KLEIN; FERNANDES, 2012).
Ao analisar a execução orçamentária do PRONASCI, enfocando as questões de gênero
e de “raça”, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) criticou a ausência de uma
política específica para combater a violência de gênero. Segundo o Instituto:

O programa Mulheres da Paz ignora, no entanto, o fato de que as próprias mulheres


muitas vezes são vítimas de múltiplas formas de violência, que violam seus direitos.
Entendemos que afirmar a cidadania das mulheres é um elemento fundamental ao
enfrentamento da violência e que o Programa não pode usar as mulheres como mero
instrumento de pacificação das relações sociais, ou do bem-estar dos outros. Antes de
tudo, é preciso afirmar e proteger os direitos das mulheres para que elas possam

5
Expressão utilizada, pelo Ministério da Justiça, em múltiplos materiais de divulgação para caracterizar os jovens
que integrariam as ações do PRONASCI.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 890


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colaborar na proteção e afirmação dos direitos dos outros (INSTITUTO DE ESTUDOS


SOCIOECONÔMICOS, 2010, p. 58).

Na perspectiva do projeto as mulheres eram identificadas pela associação com a


maternidade, pela capacidade de proteger e resgatar jovens. Sendo assim, eram utilizadas como
instrumentos para o fim que se pretendia, ou seja, para manter os jovens pobres afastados do
crime. Tal perspectiva foi explicitada pelo secretário executivo do PRONASCI, Ronaldo
Teixeira, em entrevista à FGV:

Há momentos curiosos. Há um projeto, por exemplo, que foi identificado numa


conversa do ministro [Tarso Genro] com o MV Bill. A consolidação da tese do
Mulheres da Paz se deu quando o Bill e o Celso Ataíde disseram que a mãe é uma
referência que o tráfico não enfrenta. Se a mãe buscar o guri lá na esquina e tirar do
tráfico, o traficante não reage. Ele respeita a figura da mãe. Então, há momentos assim
que são muito significativos. A ministra Dilma, quando me encontra, chama-me de
‘Minha mãe da Paz’. E pede para eu me orgulhar do gênero. (FERREIRA; BRITTO,
2010, p. 70).

A perspectiva que orientou a elaboração do projeto Mulheres da Paz – o resgate de


jovens envolvidos com a criminalidade – é a mesma identificada nos programas de transferência
de renda nos quais as mulheres são apontadas como responsáveis pelos cuidados intrafamiliares
no âmbito privado doméstico (CARLOTO; MARIANO, 2012). No caso da proposta do
Mulheres da Paz, esse cuidado estende-se da família para a comunidade. Assim, as mulheres
seriam responsáveis por todos os jovens que teriam envolvimento com o tráfico de drogas e o
crime organizado.

O papel atribuído às mulheres por estas políticas “reforça o lugar da mulher enquanto
responsável pelo gerenciamento da família e destaca a centralização das políticas públicas e
assistenciais na figura da mãe” (DETONI; MACHADO; NARDI, 2018, p.7). Ainda que a
palavra mãe tenha sido retirado do nome do projeto, as mulheres são reconhecidas como
referências na comunidade por conta da maternidade.
Para realizar a seleção das participantes do projeto nos territórios PRONASCI, os
convenentes poderiam contratar, com recursos dos convênios firmados, fundações
educacionais, universidades, Organização da Sociedade Civil para Interesse Público - OSCIPs
e empresas privadas6. Para participar da seleção, as candidatas deveriam atender os seguintes
critérios: pertencer às redes sociais ou de parentesco dos jovens foco do PRONASCI; ter idade
mínima de 18 anos; ter cursado, no mínimo, até a quarta série do ensino fundamental ou

6
A seleção de participantes do Projeto Mulheres da Paz, assim como a seleção de participantes do PROTEJO, era
divulgada por meio de edital e o processo incluía a análise de fichas de cadastro preenchidas pelos candidatos à
seleção e a realização de entrevistas.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 891


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comprovar capacidade de leitura e escrita; ser residente nas comunidades das regiões indicativas
do PRONASCI; ter capacidade de representar interesses coletivos e participação comunitária
atuante e possuir renda familiar de até 2 salários mínimos (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA;
SECRETARIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA: 2009).
As mulheres selecionadas participariam de processo de capacitação de 150 horas/aula
divididas em 4 módulos: 1º módulo – 60 horas/aula em 1 mês e 2º, 3º e 4º módulos – 30
horas/aula - nos meses subsequentes. Os temas dos módulos, definidos pelo Coordenação
Nacional do Projeto Mulheres da Paz, eram: Acesso à justiça (direitos humanos e mediação de
conflitos); Lei Maria da Penha; apoio psicossocial; ações do PRONASCI e conhecimentos de
informática.
Cabe destacar que dentre as 94 ações propostas pelo PRONASCI, inexiste ação voltada
para o enfrentamento da violência masculina no ambiente doméstico. Não há, portanto, na
concepção ou execução do Programa preocupação quanto à violência de gênero. Resta no
módulo sobre a Lei Maria da Penha7 a única possibilidade de que as mulheres envolvidas no
Projeto Mulheres da Paz tivessem acesso às informações necessárias para denunciar e combater
a violência de gênero.
As participantes deveriam cumprir um mínimo de 75% da carga horária dos quatro
módulos para que iniciassem a atuação como Mulheres da Paz e recebessem benefício mensal
no valor de R$ 190,008. A continuidade do recebimento do benefício era condicionada a
realização de visitas domiciliares; promoção de reuniões e realização de palestras oficinas.

7
Promulgada em 07 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria Penha, criou mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispôs sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei
de Execução Penal; e dá outras providências.
8
Assim como no PROTEJO, a Caixa Econômica Federal foi responsável pelo pagamento do benefício às
participantes do Projeto.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 892


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FIGURA 1 – Integrantes do projeto Mulheres da Paz

Fonte: BRASIL (2012).


A participação nas atividades de “resgate” e “reeducação” dos jovens e das jovens e
adolescentes, com vistas a sua reintegração na família e na comunidade foi descrita, pelo
Ministério da Justiça e pela SENASP (2009) como um dos objetivos do Projeto Mulheres da
Paz. Nas palavras de Luís Paulo Barreto Teles, secretário executivo do Ministério da Justiça, a
associação entre o papel exercido pelas Mulheres da Paz no Programa e a juventude, novamente
percebida como criminosa, se dava do seguinte modo:
Do outro lado, qual era o desafio? Pescar o jovem, resgatar o jovem. Como fazer isso?
Tem que entrar na favela. Então, vamos planejar um projeto em que alguém possa
buscar esse jovem. Quem, em geral, pode buscar? São as mães. São as mulheres que
estão dentro da favela e que sabem qual é o garoto que já está começando a praticar
delitos, pequenos furtos, a ser aviãozinho do tráfico. Então, vamos naquela mãe, ou
naquela mulher. E aí criamos o projeto Mulheres da Paz. São mulheres que vão lá,
identificam aqueles garotos, não para entrega-los à polícia, mas para permitir que eles,
a partir dali, sejam resgatados pelo Pronasci e envolvidos num projeto social ou de
capacitação, desmontando assim essa cadeia de crimes. Esse garoto, em geral, está com
o pai preso, está com o pai morto ou desaparecido. Então o Estado entra junto com as
mães e começa um processo de recuperação social. Dá um percurso formativo àquele
jovem. (FERREIRA; BRITTO, 2010, p. 157).

Na prática, a articulação entre as duas ações, PROTEJO e Mulheres da Paz, dependia


da existência, simultânea, dos dois convênios numa mesma localidade. No decorrer da execução
do programa9, a principal dificuldade enfrentada para realização da proposta do projeto

9
A execução físico-financeira do Programa é analisada no CAPÍTULO 4 deste trabalho.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 893


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Mulheres da Paz era a ausência do projeto PROTEJO ou a realização do mesmo em outro


período.
Ao analisar a execução do Projeto Mulheres da Paz, em Salvador/BA, Rocha e Tavares
(2014, p. 298) apontam que:
A falha na execução das ações [descompasso na execução das ações PROTEJO e
Mulheres da Paz] abriu espaço para problemas ainda maiores. Foi gerado um grande
desconforto e insegurança entre as mulheres, pois para elas não estava claro qual seria
a sua real função. Iriam encaminhar que jovens, se já estava ocorrendo uma seleção dos
participantes do Protejo antes das mediadoras concluírem sua formação? Afinal, de
acordo com o previsto para a atuação dessas mulheres, elas deveriam participar
ativamente do processo seletivo, o que não foi possível nas turmas formadas no estado,
devido à demora em executar o Projeto Mulheres da Paz.

Por outro lado, as pesquisadoras indicam que as participantes eram apontadas como
“delatoras” ou “dedos-duros” em boatos que circulavam nos locais de execução do projeto. O
que “demonstra tanto a ausência de planejamento como a inexistência de um esquema positivo
de comunicação e divulgação detalhada e cuidadosa do programa para a sociedade, mas,
principalmente, para a comunidade local” (ROCHA; TAVARES, 2014, p. 298).
A percepção das Mulheres da Paz como “delatoras” ou “dedos-duros” reforçava-se pela
presença da polícia como parte do trinômio (jovens, mulheres e polícia) que configurava a
execução do Programa nos territórios PRONASCI.
A análise da execução orçamentária do PRONASCI indica que o projeto Mulheres da
Paz não ocupou um lugar central na execução do Programa. Em princípio, o projeto deveria ser
executado como apoio ao PROTEJO. Entretanto, apenas 24 municípios tiveram oportunidade
de executar ambas ações10.
Ao todo 34 municípios assinaram convênios para realização do Projeto Mulheres da Paz
no período compreendido entre 2008 e 201211. Nos anos de 2010 a 2012, a ação não recebeu
nenhum investimento. O montante de investimentos na ação foi de R$ 22.942.722,98.

10
Isto é: Alvorada/RS; Araucária/PR; Cachoeirinha/RS; Canoas/RS; Cariacica/ES; Curitiba/PR; Diadema/SP;
Esteio/RS; Fortaleza/CE; Gravataí/RS; Novo Hamburgo/RS; Passo Fundo/RS; Porto Alegre/RS; Rio de
Janeiro/RJ; Santa Luzia/MG; Santo André/SP; São Bernardo do Campo/SP; São Leopoldo/RS; Sapucaia do
Sul/RS; Serra/ES; Taboão da Serra/SP; Viana/ES; Vila Velha/ES e Vitória/ES.
11
A saber: Alvorada/RS; Araucária/PR; Bagé/RS; Cachoeirinha/RS; Canoas/RS; Cariacica/ES; Contagem/ES;
Curitiba/PR; Diadema/SP; Esteio/RS; Ferraz de Vasconcelos/SP; Fortaleza/CE; Gravataí/RS; Guaíba/RS;
Guarulhos/SP; Novo Hamburgo/RS; Passo Fundo/RS; Piraquara/PR; Pirenópolis/GO; Porto Alegre/RS; Rio de
Janeiro/RJ; Santa Luzia/MG; Santo André/SP; São Bernardo do Campo/SP; São José dos Pinhais/PR; São
Leopoldo/RS; Sapucaia do Sul/RS; Serra/ES; Taboão da Serra/SP; Uberaba/MG; Vacaria/RS; Viana/ES; Vila
Velha/ES e Vitória/ES. Bem como no caso do PROTEJO, o município de São Bernardo do Campo/SP assinou
dois convênios para execução do Mulheres da Paz. O primeiro em 2008 e o segundo em 2009.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 894


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Em 2008 e 2009 foram firmados 12 convênios para efetivação da ação Mulheres da Paz
com 9 estados12.

Não foram firmados, no período analisado, convênios da ação Mulheres da Paz com
OSCIPS. Ao todo foram executados 46 convênios e investidos R$ 42.810.099,13 conforme
demonstrado na TABELA 3

12
4 convênios foram firmados com o governo do estado do Rio de Janeiro. Os demais estados são: Acre; Alagoas,
Bahia; Distrito Federal; Goiás; Maranhão; Pará e Pernambuco.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 895


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A partir de 2012, a SENASP passou a publicar editais para que os municípios, estados
e Distrito Federal apresentem propostas para execução conjunta dos projetos Mulheres da Paz
e PROTEJO13. Após o primeiro edital, publicado em 18 de abril de 2012, foram aprovadas 12
propostas dos municípios de: Betim/MG; Canoas/RS; Cariacica/ES; Diadema/SP; Jandira/SP;
Lauro de Freitas/BA; Linhares/ES; Novo Hamburgo/RS; São José dos Pinhais/PR; São
Leopoldo/RS; Uberaba/MG e Vitória/ES. O valor total de repasse para execução dos projetos
foi R$ 8.147.997,12.
A execução conjunta dos projetos tinha por objetivo garantir a articulação entre as ações
e consequentemente, a integração das atividades realizadas pelas Mulheres da Paz e pelos
jovens que participavam do PROTEJO.

Considerações finais
O presente trabalho dedicou-se à análise da proposta e da execução do projeto Mulheres
da Paz no âmbito do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. A avaliação da
política pública nos permitiu avançar quanto à compreensão da articulação proposta entre
mulheres, jovens e polícia.
Partindo da constatação de que a maternidade se torna objetificada e codificada pelas
políticas públicas do Estado e de que as mulheres tornam-se agentes destas políticas e são
instrumentalizadas para a realização da estratégia do governo de cuidado, controle,
quantificação e organização dos sujeitos (DETONI; MACHADO; NARDI, 2018) é possível
identificar que na segurança pública, as mulheres são instrumentalizadas para o controle dos
corpos jovens.
Sendo assim, a análise do projeto Mulheres da Paz corrobora para os estudos de gênero
e políticas públicas como um estudo de caso na área de segurança pública que reforça a
compreensão de que:
[As mulheres] têm sido mobilizadas, ao mesmo tempo, como causadoras de boa parte
dos problemas enfrentados por seus núcleos familiares e como agentes responsáveis

13
No ANEXO I do referido edital, a SENASP informa que “os convênios celebrados entre o Ministério da Justiça
e municípios, estados e o Distrito Federal para a execução dos Projetos Mulheres da Paz e PROTEJO, terão como
objeto comum a seleção e capacitação de mulheres para atuação nas comunidades que constituem áreas
conflagradas, com vistas à construção e fortalecimento das redes sociais de prevenção e enfrentamento à violência,
bem como a promoção do atendimento aos adolescentes e jovens, com idade entre 15 e 24 anos, que estejam em
situação de vulnerabilidade familiar e social ou de violência, envolvidos na criminalidade e com drogas. Sendo
assim, o convênio atenderá dois públicos prioritários: mulheres e jovens. Os Projetos Mulheres da Paz e Protejo
integram um único termo de convênio devendo cumprir cronograma conjunto na execução das atividades. Nesta
perspectiva, ambos os Projetos são metas do mesmo termo de convênio a ser firmado. Tal orientação visa, além
de buscar a qualificação e maior eficácia no desenvolvimento dos projetos, atender o que determina a Lei 11.530
de 24 de outubro de 2007, em seu artigo 8º-D, além de otimizar os recursos investidos” (SECRETARIA
NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2012).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 896


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pela promoção da inclusão social que se almeja – processo que nomeamos de


politização contemporânea do feminino e da maternidade (MEYER; KLEIN;
DAL´IGNA; ALVARENGA, 2014, p. 886)

Ao tomar as mulheres como responsáveis pela identificação de jovens como criminosos


ou futuros criminosos, em comunidades marcadas pela pobreza e violência, a política de
segurança pública as coloca como agentes de um processo de marginalização que reforça o
estigma da juventude violenta.
Na análise da execução orçamentária do PRONASCI foi possível observar que a
desarticulação entre as ações do Projeto Mulheres da Paz e do Projeto PROTEJO inviabilizou
a integração entre mulheres e jovens. Sendo assim, pode-se concluir que a proposta do Mulheres
da Paz perdeu seu sentido ao longo da execução do Programa. Nesse mesmo sentido, constatou-
se que as ações PROTEJO e Mulheres da Paz não tiveram centralidade na execução
orçamentária do PRONASCI.

Referências
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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p884 898


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Análise crítica das cotas eleitorais de gênero para o alcance da paridade


participativa de mulheres negras na política institucional

Paula Fernanda Ribeiro1


Samia Moda Cirino2

Resumo: O presente trabalho tem como propósito analisar a desigualdade de gênero


presente nos cargos eletivos e investigar a legislação voltada às políticas estatais para o
alcance da paridade participativa de mulheres na política institucional. De modo
específico, o trabalho visa a realizar uma análise crítica das cotas eleitorais de gênero
como políticas públicas afirmativas para a representatividade e inserção de mulheres,
sobretudo negras, no âmbito das esferas públicas e deliberativas. Sob esse aspecto, a
pesquisa utilizou instrumentos qualitativos, exploratórios e bibliográficos para aferir
maior aprofundamento teórico da hipótese. Adotou-se uma perspectiva pragmática de
estudo de caso a fim de compreender a realidade inserida no contexto social relatado,
com abordagem crítica das interações das categorias de análise de acordo com os
pensamentos feministas de justiça de gênero. Por fim, realizou-se análise documental
para elucidar as implicações acerca das limitações legislativas. O conjunto de análises
permite compreender que, não obstante algumas conquistas decorrentes dos
movimentos feministas nas últimas décadas, consagradas em políticas públicas
afirmativas e normatizadas pelo Direito, a legislação destinada à paridade de gênero nas
esferas públicas não foram suficientes e eficientes para inserir de forma consistente as
mulheres, sobretudo negras, no espaço político eleitoral. Além disso, o parco
contingente de mulheres negras e oriundas de classes sociais inferiores que consegue se
inserir na esfera política enfrenta barreiras consideráveis para se afirmar e se manter
nesse espaço, diante de uma estrutura de poder que reproduz a opressão e dominação
das mulheres, tendo como exemplo emblemático o caso da vereadora Marielle Franco.

Palavras-chave: Vagas eleitorais de gênero. Raça. Política.

Introdução

As mulheres negras compõem um grupo vulnerável sobre o qual recaem


diferentes formas de opressão e exploração, como gênero, classe e raça que, se não são
fatores impeditivos, dificultam demasiadamente a representatividade e o alcance de

1
Graduanda em Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Aluna colaboradora do grupo de
pesquisa Liberdades em Disputa (UEL); paulafrribeiro@gmail.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora pesquisadora do Grupo
Liberdades em Disputa (UEL) e Professora do curso de Graduação em Direito da Faculdades Londrina;
samoci26@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p673 673


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posições de poder. O assassinato da vereadora Marielle Franco é emblemático dessa
sub-representação que perpassa todas as casas legislativas no cenário brasileiro. Em
especial, esse caso concreto reflete o impacto de uma sociedade que reproduz os
padrões androcêntricos e excludentes das relações de poder, de modo que não permite
às mulheres, em especial negras, situarem-se como cidadãs plenas e participarem em
igualdade de condições do ambiente político de decisões.
Os dados empíricos que versam sobre a representatividade de mulheres na
política institucional corroboram essa assertiva ao expor que a participação política das
mulheres resulta em 14% em todo país, colocando o Brasil na 154º posição no ranking
de 193 países que possuem a presença de mulheres nos parlamentos3. Em contraste a
essa realidade, nas últimas décadas surgiram leis que visaram a incentivar a participação
de mulheres no espaço político, no intuito de garantir à paridade de gênero e aperfeiçoar
o exercício da democracia, a exemplo da norma contida no art. 10°, § 3°, da Lei
9.504/19774. Todavia, essa garantia, embora obrigue os partidos e coligações a
preencherem no mínimo 30% de cada sexo, na prática, tem seu escopo desvirtuado, pois
muitas de suas candidaturas são fictícias, atendendo apenas ao interesse partidário.
Diante desse contexto, compreende-se que a trajetória feminina realçou os
desafios para a superação das desigualdades persistentes no Brasil, sobretudo, no que
diz respeito à participação política de mulheres negras. Nesse sentido, busca-se no
presente trabalho analisar a desigualdade de gênero na política institucional brasileira
em uma perspectiva feminista de justiça de gênero. Para tanto, a partir da investigação
de políticas públicas normatizadas pelo Direito voltadas à inserção e representação de
mulheres nos cargos eletivos, a exemplo da previsão contida na Lei da Lei 9.504/1977,
é possível uma abordagem crítica das cotas eleitorais de gênero para a inserção e
representatividade política de mulheres negras, tendo como perspectiva pragmática o
caso da vereadora Marielle Franco.

1 A representatividade feminina na política institucional

3
Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.
4
Lei 9.504/1977, art. 10°, parágrafo 3° Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo,
cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por
cento) para candidaturas de cada sexo.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p673 674


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A análise da conjuntura social no Brasil permitiu aprofundar o debate político e
compreender o espaço público como parte de um processo que envolve as interações
sociais entre gênero, raça e classe. Os dados empíricos constantes nos relatórios que
cuidam da questão de gênero na política institucional demonstram que a média de
ocupação feminina nos cargos eletivos no Brasil é atualmente de 14% e se encontra na
3º pior posição do continente americano, atrás somente de Belize e Haiti.
Especificamente na América do Sul, é o país com menor representação parlamentar
feminina5. Essa subrepresentação de mulheres nas esferas de poder está presente em
todos os Estados da Federação, inclusive em todos os níveis, que vão das Câmaras
municipais de vereadores ao Senado.
No cenário político brasileiro, uma questão relevante a ser destacada é que,
embora o percentual de mulheres que participam do processo eleitoral atenda ao mínimo
legal, na prática, não conseguem se eleger. Essa circunstância é revelada na análise dos
dados estatísticos das eleições municipais de 2016 que indicam a representação das
mulheres acima de 30% das candidaturas. Segundo os dados disponibilizados pelo
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do total de candidatos dessas eleições, 31,6% é do
sexo feminino, o que representa mais de 155 mil candidatas. Nota-se, também, que na
disputa para os cargos de vereador essa proporção é ainda maior: um total de 32,79% de
candidaturas femininas6.
Uma questão ainda mais contundente se apresenta nesse cenário: se, por um
lado, as mulheres, em geral, representam uma porcentagem mínima de participação
política institucional, por outro lado, as mulheres negras representam um nível de
participação duas vezes menor, segundo os dados obtidos pelo Tribunal Superior
Eleitoral referente às eleições para vereador em 20167.
Nesse sentido, a realidade prática sobrepõe-se à generalidade e abstração dos
enunciados jurídicos e desvela o distanciamento entre o discurso de conquista de
direitos pelas mulheres e a realidade por elas vivenciada. Não se olvida que a
Constituição de 1988 é um marco na luta por igualdade de gênero e contra a

5
Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.
6
Disponível em < http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/eleicoes-2016-mulheres-
representam-mais-de-30-dos-candidatos>. Acesso em 27/05/2018.
7
Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/brasil-elegeu-apenas-32-vereadoras-negras-em-2016-
politica-e-branca-masculina-e-proprietaria-diz-estudo/>. Acesso em 27/05/2018.

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discriminação racial, considerado o contexto histórico no qual foi promulgada, de
intensa discriminação e opressão das mulheres. Segundo essa pauta, a nova ordem
constitucional possibilitou que nas últimas décadas fossem implementadas políticas
públicas normatizadas pelo Direito visando à inserção das mulheres na esfera pública
como membros plenos da sociedade e, consequentemente, diminuir o padrão branco e
androcêntrico das esferas de poder. Como exemplo, desde 1997 o processo eleitoral, sob
a vigência da Lei 9.504, certifica no mínimo 30% das candidaturas destinadas para cada
sexo, no intuito de assegurar a paridade de participação feminina.
Contudo, embora exista um sistema de cotas objetivando o aumento da
participação feminina na política partidária e, mesmo reconhecendo os avanços
constitucionais que fundamentam as ações afirmativas para o alcance da paridade de
gênero na política institucional, a parcela de vagas efetivamente conquistadas por elas
permanece baixa. Ou seja, mesmo com a legislação eleitoral reservando uma
porcentagem de vagas para candidaturas femininas, sua efetivação não representa
necessariamente um aumento substantivo dessa participação.
Logo, a imposição de um quantitativo no lançamento das candidaturas
femininas, embora obrigue os partidos e coligações a preencherem no mínimo 30% de
cada sexo, não se mostra suficiente para a participação consistente de mulheres nas
cadeiras parlamentares, uma vez que a obrigatoriedade imposta pela Lei Eleitoral acaba,
muitas vezes, oportunizando candidaturas fraudulentas. Em outras palavras, muitos
partidos e coligações com o objetivo único de cumprir a cota imposta pela lei, lançam
candidaturas fictícias e fantasmas, consoante constatado nas eleições de 2016,
considerando que os dados estatísticos demonstram que 14.413 mil candidaturas
femininas não obteve qualquer voto nas eleições municipais para vereador8.
A situação é ainda mais crítica em relação às mulheres negras, uma vez que a
soma da discriminação de gênero e do aspecto racial torna ainda mais difícil o acesso a
recursos partidários. Essa dificuldade é emblemática no caso de Marielle Franco, única
mulher declarada preta a ser eleita como vereadora no Rio de Janeiro. Como afirma o
Cristiano Rodrigues do departamento de Ciência Política da UFMG, “Marielle e Áurea
Carolina - vereadora do PSOL mais votada para a Câmara de Belo Horizonte - entre

8
Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/mais-de-16-mil-
candidatos-tiveram-votacao-zerada-nas-eleicoes-2016>. Acesso em 27/05/2018.

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outras poucas, são infelizmente a exceção da exceção da exceção”9. Ainda, no referido
caso, deve-se ressaltar que a vereadora Marielle era oriunda das classes sociais menos
abastadas, de modo que o caso evidencia a tríade fundamental da discriminação:
mulher-preta-pobre.
Assim, a referida disparidade de gênero, tanto na composição das chapas
eleitorais como em suas candidaturas, permite compreender gênero, raça e classe como
componentes fundamentais dessas desigualdades, consoante será abordado na próxima
seção.

2 A representação política das mulheres negras

As mulheres negras correspondem a cerca de um quarto do total da população


brasileira10, contudo esse número não é proporcionalmente compatível à representação
nas esferas públicas e deliberativas. Não se pode atribuir essa baixa representatividade
no espaço político à suposta falta de organização dos movimentos feministas negros,
considerando que a presença de mulheres negras em diversas formas de organização
social é marcante. Elas estruturam movimentações, articulações e formulações políticas
em busca da diminuição da discriminação racial e da paridade de participação na esfera
pública como membros efetivos da sociedade.
A maior parte dos movimentos de base no Brasil é composto por mulheres
negras. Elas se organizam, em nível mais básico na política do cotidiano, desde a
participação em associações de bairro até a mobilização em grupos contra a violência da
juventude negra. Não obstante, ao mesmo tempo em que fazem parte desses espaços, a
tripla opressão não as permite participação acentuada nos espaços de poder, restando
apenas uma atuação política secundária. Essa condição política, que afasta as mulheres
negras de cargos públicos de destaque, não as reconhece como parte integrante da esfera
pública de decisões, uma vez que o cenário político brasileiro é composto
majoritariamente pelo sexo masculino de cor branca. Essa lógica predominante
influencia diretamente na garantia, ou não, de políticas públicas voltadas ao
enfrentamento do racismo, desigualdade de gênero, violência contra mulher, entre
outros aspectos de vulnerabilidade social.

9
Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43424088>. Acesso em 27/05/2018.
10
Disponível em < http://www.spm.gov.br/assuntos/diversidade-das-mulheres/negras/dados>. Acesso em
27/05/2018.

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Em 1988 foram estabelecidas as principais bases para as ações e pensamento
do feminismo negro, que se afirmaria nas próximas décadas com o I Encontro Nacional
de Mulheres Negras e em 2001 com a participação das mulheres negras na III
Conferência Mundial contra o Racismo. Esses movimentos confirmaram a consolidação
de um novo sujeito político coletivo.
A trajetória do feminismo negro manifestou-se quando as mulheres negras
perceberam que suas especificidades não estavam sendo pautadas no interior dos
movimentos feministas. Embora reconhecessem a pertinência do debate que os
movimentos feministas realizavam à época quanto às diferenças entre os sexos, as
reivindicações das mulheres negras foram construídas a partir do momento em que suas
particularidades não foram tratadas e reconhecidas dentro do movimento, ou seja, a
realidade da mulher negra em suas discussões. A necessidade desse debate, atrelada à
luta por liberdades divergentes, teve as mesmas motivações na maior parte dos países
ocidentais. No Brasil, o movimento surgiu no final da década de 1970, organizando e
possibilitando maiores mobilizações políticas acerca das demandas e reinvindicações
por elas exigidas.
Desse modo, a criação de uma nova corrente no feminismo gerou diversas
críticas e discordâncias, principalmente entre mulheres brancas, que, inicialmente, não
consideraram a separação das categorias. Essa desavença decorreu, em grande medida,
de uma concepção essencialista de mulher, como se as lutas de todas as mulheres
fossem universais e a opressão sexista sofrida por elas fosse um vínculo comum entre
todas. Dessa forma, era excluída a diferente condição política da mulher negra dentro de
um Estado racista, sexista e capitalista (HOOKS, 2015, 195.).
As mulheres brancas que sempre dominaram o discurso feminista, destaca
Hooks (2015, p.195), raramente questionaram se a realidade vivenciada por elas era a
mesma realidade e experiência do restante das mulheres. Além disso, acrescenta a
autora, também não questionaram se, de algum modo, suas perspectivas de mulheres
brancas refletiam seus preconceitos e racismo.
Acerca dessas diferenças na própria categoria de mulher, Davis (2016, p. )
aponta que a experiência das mulheres negras na escravidão possibilitou que fossem a
primeira categoria de mulher no trabalho fora de casa, sendo que, após a abolição, não
foram incluídas na política governamental para participarem da mão de obra assalariada.
Tal circunstância possibilitou a institucionalização da desigualdade racial na estrutura
política de vários países, inclusive o Brasil. Desse modo, o funcionamento das

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sociedades marcadas pela escravidão, ligada às experiências das mulheres negras
durante e pós-abolição, conclui Davis (2016, p.64), permitiu a consolidação de uma
divisão racial e sexual, racista e sexista, que foi percebida principalmente nas pautas do
movimento feminista.
O processo de desumanização ao qual as mulheres negras são frequentemente
submetidas diz respeito muitas vezes às origens colonizadoras e capitalistas em que seus
países se fundaram e às consequências de uma falsa abolição que determinou a condição
da mulher negra.
Dessa forma, enquanto as mulheres brancas - que lideravam o discurso
hegemônico feminista, acadêmicas, donas de casa e de classes sociais abastadas -,
reivindicavam igualdade de gênero para se inserirem no campo profissional, as negras e
as não negras pobres já estavam inseridas há um longo tempo, devido aos efeitos
abolicionistas da escravatura que as direcionaram à pobreza, falta de infraestrutura e ao
menor índice de educação.
A desconsideração do conceito binário que envolvia a relação de gênero fez-se
necessário justamente pelo fato de a mulher não ser considerada uma categoria única,
afirma Davis (2016, p.97). A categoria mulher é composta por muitas subdivisões e
particularidades, que estão estritamente ligadas ao gênero, raça, classe, sexualidade,
religião, entre outras características. Essa singularidade que cada feminismo carrega não
significa obrigatoriamente que devemos pensá-las de formas isoladas. Ao contrário,
essas ramificações femininas devem ser analisadas de maneira interligada.
Essa perspectiva interseccional não significa que exista uma opressão maior
que a outra, ou que a opressão vivenciada pela mulher negra é mais importante que a da
mulher branca. Mas, que as mulheres negras carregam outras questões e especificidades
que não atingem diretamente as mulheres brancas. Esse diálogo do feminismo negro
interseccional, que se tornou mais acentuado na obra Mulheres, raça e classe de Angela
Davis, desvela o quanto o racismo impede a flexibilidade social da população negra e,
simultaneamente, a tripla opressão que coloca as mulheres negras em uma situação
muito maior de vulnerabilidade social.

3 Caso Marielle Franco

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A disparidade representativa no âmbito político compreende não só o gênero
como fator impeditivo de atingir à paridade participativa nas esferas de poder, mas,
igualmente, a raça e a classe como componentes fundamentais da desigualdade política
no processo eleitoral. O caso emblemático envolvendo a vereadora Marielle Franco,
demonstra claramente essa inter-relação entre opressões de sexo, raça e classe,
historicamente identificadas no cenário político brasileiro.
Importante rememorar que nas eleições realizadas em 2016 para o parlamento
municipal, dentre 811 vereadores eleitos nas capitais, Marielle Franco foi uma das 32
mulheres negras eleitas nas capitais brasileiras, o que corresponde a um percentual de
menos 0,1%11. Ainda, ressalte-se que Marielle foi também a quinta vereadora mais
votada do Rio de Janeiro pelo PSOL, com mais de 46.000 mil votos.
"Mulher, negra, mãe e da favela", era como Marielle Franco se intitulava.
Socióloga e Mestra em Administração Pública, mulher, negra, mãe, da periferia e
bissexual, feminista e ativista negra, a trajetória da vereadora é marcada por uma
profunda crença nas instituições democráticas e pela militância em favor de grupos
vulneráveis que se encontram à beira de uma estrutura social naturalizada pela opressão
e dominação.
O desfecho de sua historia representa bem a crítica à condição da mulher negra
na sociedade brasileira: a vereadora foi assassinada em março de 2018, logo após um
encontro entre mulheres negras. Um dos fatos que envolvem a discussão sobre sua
morte: dias antes havia sido nomeada relatora da Comissão da Câmara de Vereadores
que acompanhava a intervenção Federal no Rio de Janeiro.
O impacto da sua morte gerou diversos protestos no Brasil e em outros países
que se identificaram com a questão racional e de gênero que o caso expressa. O
assassinato de uma mulher negra, parlamentar e militante dos direitos humanos
despertou uma comoção pública internacional que não era prevista, mas que partilharam
do mesmo sentimento de compaixão e cobrança por uma investigação competente sobre
o crime, que ainda não teve nenhuma resposta.
Inúmeros significados e interpretações podem ser atribuídas ao caso da
vereadora, mas talvez a crítica mais contundente que se extrai refere-se à compreensão
de que a população negra no Brasil convive cotidianamente com a exclusão social, a

11
Disponível em < https://www.revistaforum.com.br/brasil-elegeu-apenas-32-vereadoras-negras-em-
2016-politica-e-branca-masculina-e-proprietaria-diz-estudo/>. Acesso em 27/05/2018.

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dificuldade de participação como membros plenos na sociedade, a ausência de
representatividade nas esferas públicas e deliberativas, além da morte programada e a
violência direcionada que matam milhares de jovens negros e pobres. Matam em nome
de uma luta contra o crime, que se traduz na legitimação de um genocídio que subtrai
vidas negras todos os dias. Desse modo, o caráter discriminatório que aflige
proporcionalmente mais a juventude negra, não se restringe somente às causas
socioeconômicas, mas também pela cor da pele. Os dados certificam que o cidadão
negro possui chances 23,5% maiores de sofrer assassinato, já descontado o efeito da
idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência em relação aos cidadãos de
outras cores12.
Somadas às especificidades de estigmas marcados pelo colonialismo, raça e
classe, as mulheres têm acentuada sua condição de vulnerabilidade pela questão de
gênero, como configurado no último levantamento do Mapa da Violência quanto à
vitimização da mulher negra nos casos de homicídios de mulheres. Os dados apontados
revelam que entre 2003 a 2013 o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%,
enquanto os casos de homicídio de mulheres negras aumentaram 54,2% no mesmo
período13.

CONCLUSÃO

Ao se desvelar a lógica androcêntrica das relações de gênero, associada à


compreensão do desenvolvimento histórico do capitalismo e do processo de exclusão
que lhe é inerente, pode-se repensar novas formas de relações sociais, principalmente no
que tange à representatividade e inserção de mulheres negras na política institucional.
Compreende-se que a disparidade eleitoral de gênero identificada no Brasil, atrelada às
desigualdades sociais e aos resquícios do abolicionismo, elucidam a complexidade no
processo de reconhecimento dessas categorias dentro do espaço político.

Tendo em vista os aspectos observados, a instituição de cotas eleitorais de


gênero, embora objetive o aumento da participação feminina na política partidária, não
determina a participação substantiva dessas mulheres. A garantia de um percentual

12
Disponível em <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>. Acesso em 27mai2018.
Acesso em 27/05/2018.
13
Disponível em <https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>.
Acesso em 27 de maio de 2018.

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mínimo de 30% de vagas, na pratica, tem possibilitado candidaturas fictícias com
objetivo de cumprir somente a cota legal sem efetiva ocupação dos cargos eletivos.

A análise das discussões também permite entender que a intersecção de outros


fatores de discriminação, como ser mulher negra, da periferia, mãe e bissexual, torna
ainda menor a possibilidade de inserção na esfera institucional, a exemplo do caso
pragmático da vereadora Marille Franco. Nesse sentido, percebe-se que a luta pela
paridade de gênero na esfera política, sobretudo por mulheres negras, perpassa não só
aspectos normativos como também político-sociais. Assim, entende-se que a reprodução
das desigualdades presentes no âmbito político está condicionada por outros fatores
além do sexo, compreendendo gênero, raça, classe, sexualidade, religião, entre outras
especificidades.

REFERÊNCIAS

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci ReginaCandiane. São


Paulo:Boitempo, 2016.

HOOKS, Bell. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro – abril de
2015, pp. 193-210.

<http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43424088>. Acesso em 27mai2018.

<https://www.conjur.com.br/dl/parecer-participacao-mulheres-partidos.pdf>. Acesso em
26/05/2018.

<http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017.> Acesso em 27mai2018.

Lei 9.504/1977, art. 10°, parágrafo 3° Do número de vagas resultante das regras previstas neste
artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de
70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

<https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>.
Acesso em 27mai2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p673 682


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ISSN 2177-8248
< https://www.revistaforum.com.br/brasil-elegeu-apenas-32-vereadoras-negras-em-
2016-politica-e-branca-masculina-e-proprietaria-diz-estudo/>. Acesso em 27mai2018.

<http://www.spm.gov.br/assuntos/diversidade-das-mulheres/negras/dados>. Acesso em
27mai2018.
<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/eleicoes-2016-mulheres-
representam-mais-de-30-dos-candidatos>. Acesso em 27mai2018.

<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Novembro/mais-de-16-mil-
candidatos-tiveram-votacao-zerada-nas-eleicoes-2016>. Acesso em 27mai2018.

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Diversidade sexual e de Gênero: entraves postos pelo Movimento “Escola sem Partido”
para a Constituição da Escola Justa.

Angela Maria de Sousa Lima1


Aline Oliveira Gomes da Silva2
Meire Ellen Moreno3

RESUMO: O propósito desse texto é problematizar, sociologicamente, a relevância da inserção


dos conteúdos de direitos humanos, mais especificamente, de diversidade sexual e de gêneros
nos currículos da Educação Básica e das Licenciaturas e mostrar, teoricamente, os impactos da
invisibilização ou exclusão destes no processo de estigmatização e de desvalorização dos
saberes e das representações sociais desses sujeitos, em especial, nas políticas educacionais.
Como procedimentos metodológicos, nos embasaremos na pesquisa qualitativa bibliográfica e
documental, analisando, prioritariamente, dois textos oficiais que respaldam a inserção desses
conteúdos: a Resolução CNE nº 01/2012 e a Resolução CNE nº 02/2015. Neste processo,
preocupa-nos a força de uma coalização política contrária, reunida principalmente nos
movimentos conservadores como o Movimento Escola Sem Partido que, utilizando-se de
diferentes estratégias para excluir esses conteúdos dos currículos, dos Planos Estaduais e
Municipais de Educação, do Exame Nacional do Ensino Médio, da Base Nacional Curricular
Comum e dos outros documentos oficiais, continuam tentando impedir a representação dos
conhecimentos e dos grupos sociais historicamente invisibilizados nesse país nos espaços
curriculares. Nesse contexto, tomamos como hipótese a ideia de que a inclusão desses
conteúdos nos currículos da Educação Básica e das Licenciaturas, representa também a inserção
da representação sociocultural desses sujeitos e de seus conhecimentos nas políticas
educacionais e que tais inserções relacionam-se diretamente com um debate importante sobre
o processo de constituição da chamada “Escola justa”, já refletida, entre outros autores, por
François Dubet. Mesmo cientes de que a concepção de “Escola Justa” extrapola as discussões
de política curricular, defendemos a hipótese de que a garantia dos conteúdos e das
representações das “minorias sociais” nos currículos educacionais configura-se em um passo
significativo para atingir a justiça escolar e a justiça social.
Palavras-chave: Escola Justa; Direitos Humanos; Diversidade de Gênero. Currículo.

INTRODUÇÃO

Como mostra o parecer da Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) nº


02/12, os “direitos humanos têm se convertido em formas de luta contra as situações de
desigualdades de acesso aos bens materiais e imateriais, as discriminações praticadas sobre as
diversidades socioculturais, de identidade de gênero, de etnia, de raça, de orientação sexual, de

1
UEL; Doutora em Ciências Sociais; E-mail: angellamaria@uel.br
2
UEL; Mestra em Ciências Sociais; E-mail: alinegomes131290@hotmail.com
3
UEL; Mestra em Ciências Sociais; E-mail: moreno.meire@hotmail.com

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deficiências, dentre outras [...]”. (2012, p.516-517). A Resolução CNE nº 02/2015 vai nesse
mesmo caminho, quando exige que, dentre outros saberes relevantes que priorizam os estudos
das identidades, das diferenças e das diversidades com foco na redução das desigualdades, os
direitos humanos e as diversidades sexuais e de gênero configurem-se em conteúdos
obrigatórios na formação inicial e continuada de professores no Brasil.

Os cursos de formação deverão garantir nos currículos conteúdos específicos


da respectiva área de conhecimento ou interdisciplinares, seus fundamentos e
metodologias, bem como conteúdos relacionados aos fundamentos da
educação, formação na área de políticas públicas e gestão da educação, seus
fundamentos e metodologias, direitos humanos, diversidades étnico-racial, de
gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, Língua Brasileira de Sinais
(Libras), educação especial e direitos educacionais de adolescentes e jovens
em cumprimento de medidas socioeducativas. (BRASIL, Resol. CNE/CP nº
02/2015, Art.13, § 2º).
Neste processo de reconhecimento das diferenças/diversidades, insere-se a luta
permanente pela manutenção dessas duas Resoluções de âmbito nacional (CNE nº 01/2012 e a
CNE nº 02/2015), compreendendo-as como estratégias significativas na orientação das políticas
públicas educacionais, especialmente no campo das disputas curriculares, uma vez que a
obrigatoriedade de inserção desses saberes nas propostas pedagógicas de formação inicial e
continuada de professoras/es pode impactar positivamente em toda a Educação Básica.
Mesmo cientes dos limites e alcances dessas Resoluções, sabendo que elas não dão
conta de impedir tantos processos de invisibilização sociocultural que persistem no campo dos
currículos, compreendemos que elas continuam tendo um papel relevante como indicadoras de
práticas e de políticas na formação ética, humana, cidadã e profissional dos diferentes sujeitos
sociais. Dentre tantos recortes que se pode efetuar neste debate, nesse artigo em específico,
ousamos traçar paralelos entre a inserção curricular dos conteúdos de direitos humanos e de
diversidades de gênero e a constituição da chamada “Escola Justa”, especialmente diante da
dificuldade que as instituições de ensino têm enfrentado atualmente no Brasil para valorizar as
pluralidades, as diversidades e as diferenças frente as persistentes tentativas de silenciamento e
de acirramento das múltiplas desigualdades.
Os fundamentos da “Escola Justa” já se encontram no Art. 1º da Constituição Federal
de 1988, que trata dos princípios fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Por isso, torna-se inadiável trazer para o debate as orientações curriculares que respaldam
processos de inclusão socioeducacional, que somados a outros direitos, garanta o acesso a esses
saberes e considere a diversidade humana, política e cultural dos grupos historicamente
excluídos. A inserção desses conhecimentos, por mais simples que pareça aos olhares daqueles

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que defendem um currículo universalista, ao contrário, exerce um papel de empoderamento dos


sujeitos e dos grupos humanos no processo de reconhecimento e de luta pelo exercício dos seus
direitos, dentre estes o de permanecer dignamente na escola e na universidade, participando
concretamente das decisões educacionais.

Escola “sem” Partido e a “Ideologia de Gênero”

Desde o processo eleitoral de 2010, é possível identificar, no cenário político


brasileiro, o avanço de vozes conservadoras e reacionárias (MIGUEL, 2016), em especial o
tradicionalismo de gênero (MATOS e PINHEIRO, 2012) e uma onda de resistência à difusão e
a inclusão da agenda feminista na formulação de políticas públicas. (MORENO, 2016)
Engendrada principalmente por fundamentalistas religiosos, os discursos reacionários têm
ganhado força nas casas legislativas, no âmbito da união, dos estados e dos municípios. Os
parlamentares fundamentalistas religiosos realizam aberta “oposição ao direito ao aborto, a
compreensões inclusivas da entidade familiar e a políticas de combate à homofobia, entre outros
temas” (MIGUEL, 2016, p. 593), dos quais destacamos a resistência à inclusão da perspectiva
de gênero nas políticas públicas educacionais, sob o rótulo do combate à “ideologia de gênero".
Sobre o avanço dos discursos conservadores no debate público brasileiro e suas relações com o
campo da educação, Luis Felipe Miguel diz,

O fortalecimento público deste discurso abertamente conservador permitiu


que ganhasse visibilidade – e expressão parlamentar – um movimento que
acusa as escolas de “doutrinação ideológica” e propõe medidas para impedir
que professoras e professores expressem, em sala de aula, opiniões
consideradas impróprias. (2016, p. 595).

É importante lembrar que o combate à “ideologia de gênero” é uma vertente ou uma


faceta do discurso conservador que se apresenta no debate público nesse país. Assim como
argumenta Miguel (2016, p. 593), há na América Latina e no Brasil uma nova roupagem do
anticomunismo, como reação ao “bolivarianismo” e o “Foro de São Paulo, conferência de
partidos latino-americanos e caribenhos de centro-esquerda e de esquerda, que na narrativa
anticomunista assumiu a feição de uma conspiração para dominar o subcontinente”. No Brasil,
acrescenta-se a sobreposição entre anticomunismo e antipetismo, associando-a à encarnação do
projeto marxista pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que durante seu governo até recente o
golpe parlamentar adotou discursos e práticas políticas moderadas. Há, ainda, os libertarianos
que numa perspectiva herdada da “escola econômica austríaca”, agem na defesa de um

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neoliberalismo que tem como pressuposto as liberdades econômicas e individuais, na defesa do


Estado mínimo e meritocrático. A ideologia libertariana é promovida por fundações privadas
estadunidenses, as think tanks, de alcance internacional – entre elas, o Instituto Millenium.
Trata-se de instituições que têm entre seus objetivos promover ideias, formar divulgadores,
opiniões e consensos além de financiar grupos de intervenção nos campos da cultura, da
religião, da economia, entre outros espaços. (BARBOSA, 2017; MIGUEL, 2016).
É ao lado do Instituto Millenium, a think thank ultraliberal, que o Movimento Escola
sem Partido ganhou espaço no debate político sobre educação no Brasil. É interessante salientar
que as questões de gênero tampouco a moral sexual e os valores da família patriarcal, não estão
entre as bandeiras prioritárias do Instituto Millenium. No entanto, é quando o Movimento
Escola sem Partido passa a adotar a vertente do combate contra a suposta “ideologia de gênero”
que a organização ganha visibilidade e importância no debate público. Inicialmente agiam em
defesa da eliminação do que é chamado de “doutrinação marxista” e da neutralidade da
educação, depois o “receio da discussão sobre os papéis de gênero cresceu com iniciativas para
o combate à homofobia e ao sexismo nas escolas” (MIGUEL, 2016, p. 595).
O Movimento Escola Sem Partido, fundado nos anos 2000 e coordenado pelo
advogado Miguel Nagib, se apresenta como uma iniciativa de estudantes e pais organizados e
preocupados com “a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários”4 em todos os níveis de ensino, ou seja, da Educação Infantil, ao Ensino Superior.
O Movimento Escola sem Partido passou a ter maior visibilidade no início dos anos de 2010,
“quando passou a ser uma voz frequente nos debates sobre educação no Brasil” (MIGUEL,
2016, p. 595). Atualmente, vários projetos idealizados pelo Movimento Escola sem Partido
tramitam no Congresso Nacional e nas câmaras municipais e estaduais. Juntos, eles integram o
denominado “Programa Escola sem Partido”, que;

não liquida somente a função docente, no que a define substantivamente e que


não se reduz a ensinar o que está em manuais ou apostilas, cujo propósito é de
formar consumidores. A função docente no ato de ensinar tem implícito o ato
de educar. Trata-se de, pelo confronto de visões de mundo, de concepções
científicas e de métodos pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler
criticamente a realidade e constituírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia
da confiança e do diálogo crítico é substituída pelo estabelecimento de uma
nova função: estimular os alunos e seus pais a se tornarem delatores.
(FRIGOTTO, 2017, p. 31).

4
Tal como anunciado no website http://www.escolasempartido.org/objetivos. Acesso em 10/05/2018.

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Com a prática da imposição do medo e da violência, antes mesmo da aprovação dos


projetos, incentivam estudantes e responsáveis a denunciarem práticas pedagógicas que não
estiverem de acordo com os valores da família, especialmente da família patriarcal. No que diz
respeito ao combate à “ideologia de gênero”, este se sustenta em discursos antifeministas. Tais
discursos encontram representação no cenário político e nas legislaturas de fundamentalistas
religiosos, cujas ideias têm profunda ligação com as defendidas pelos movimentos pró-vida e
pró-família.
Fato interessante é que embora o antifeminismo tenha ganhado corpo e expressão nas
instituições formais de poder político no Brasil nos últimos anos, isso não significa que as
articulações dos grupos conservadores e reacionários sejam recentes. Podemos dizer que uma
reação antifeminista às lutas e avanços alcançados em termos de direitos pelo movimento
feminista, tem sido esboçado ao menos desde a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres
realizada em Pequim em 1995, considerada um marco histórico no que tange aos avanços
conceituais e programáticos, sobretudo em relação à inserção da perspectiva de gênero nas
agendas governamentais. Esse é um fato que se revela quando lemos criticamente documentos
utilizados por grupos conservadores e reacionários contra o que se denominou “ideologia de
gênero”, no processo político de formulação do Plano Nacional de Educação 2014-2024.
O Plano Nacional de Educação continua sendo um importante instrumento de
planejamento da política educacional nacional brasileira, que orienta a execução das políticas
públicas educacionais por um prazo de dez anos no país. O processo político de formulação do
Plano culminou na supressão de todas as referências às questões de gênero e sexualidade. A
ausência desses conhecimentos em seu texto final aprovado pela Câmara dos Deputados e
sancionado pela Presidenta Dilma Rousself, sem vetos, continua sendo um caso emblemático e
inaceitável para aqueles/as que lutam pela democratização do ensino.
Durante todo o processo, grupos reacionários e conservadores publicaram e
distribuíram materiais pela mídia tradicional, internet e redes sociais com o objetivo de
convencer a opinião pública sobre a suposta existência, nas escolas, da “ideologia de gênero”,
que colocaria em risco a família tradicional, fundamentada nos padrões heteronormativos. Entre
eles, o texto “Agenda de gênero: redefinindo a igualdade”, de Dale O’Leary, publicado em 1997
e distribuído pelo site oficial do Movimento Escola sem Partido; e o livro “Ideologia de Gênero:
neototalitarismo e a morte da família”, do advogado pró-vida Jorge Scala, publicado em 2011.
Os textos antifeministas foram produzidos após a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres,
e “são respostas à organização e resultados alcançados pelas lutas feministas, especificamente
à emergência e usos do conceito de gênero na política internacional” (MORENO, 2016, p. 95),

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distribuídos no Brasil como estratégia para disseminar a posição dos grupos contrários à
inserção das questões de gênero e sexualidade/orientação sexual no Plano Nacional de
Educação 2014-2024.
Esses textos, que consideramos representativos dos discursos antifeministas, revelam
que o antifeminismo tem como fundamento a naturalização das diversas dimensões das
desigualdades, reiterando divisões dicotômicas entre natureza e cultura, feminilidade e
masculidade, esfera privada e pública, emoção e razão. A sexualidade humana é compreendida
como a expressão das supostas naturezas femininas e masculinas. Sugerem, assim, que há uma
única expressão possível da sexualidade humana: a heterossexualidade. Adotam uma noção de
família que colabora para a essencialização dos sujeitos e que é entendida como o menor
fragmento social possível, tornado ela e não o indivíduo como sujeito de direitos. A mulher,
fora do contexto familiar heteronormativo, na percepção dos grupos reacionários, não se
complementa, tendo em vista que para a política antifeminista, a feminilidade é caracterizada
pela maternidade.
Cabe salientar que a construção do discurso antifeminista, que têm encontrado força
política no Brasil, especialmente na última década, e que vêm ocupando cada vez mais espaço
nas arenas formais de debate e decisão das questões públicas, se dá para/pela distorção dos
argumentos feministas em relação ao gênero, que se sustentam na defesa dos binarismos, na
fixidez dos papéis sociais, especialmente dos “papéis” tradicionais de gênero, numa concepção
e abordagem ahistórica e acultural com sérias consequências políticas, especialmente quando o
que se está em jogo é a concepção de direitos para minorias políticas e grupos sociais
historicamente marginalizados.

Relevância dos Conteúdos de Gênero e Direitos Humanos nos Currículos Escolares

Segundo Stromquist (2007), a maior parte dos governos supõe, de forma errônea, que
questões de gênero não são problemas para a sua realidade. Elas não são entendidas como
prioritárias nos planos educacionais, com exceção dos casos em que existem sérias
disparidades. Stromquist (2007) afirma, ainda, que o Brasil é um exemplo das raras exceções,
com esforços no sentido de modificação dos currículos e melhoria dos livros didáticos. No
entanto, evidencia que a “tradução de tais princípios em práticas diárias, entretanto, dependerá
da formação e do apoio recebidos pela administração e pelo professorado das escolas em relação
a essa temática” (STROMQUIST, 2007, p. 18).

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No campo das políticas educacionais, nas últimas décadas, esforços têm sido
empreendidos no sentido de promover mudanças na educação brasileira (VIANNA e
UNBEHAUM, 2004). Tal como afirma Fúlvia Rosemberg (2001), a década de 1990, no Brasil,
foi marcada por movimentações que, em grande medida, foram implicações dos
desdobramentos da promulgação da Constituição de 1988 e da nova conjuntura internacional.
Reformas foram realizadas no sentido de ampliar a oferta, obter ganhos em qualidade, reduzir
o uso de recursos públicos, etc. Tais reformas não se limitam ao contexto brasileiro, apontando
para um movimento internacional que busca, entre outros, estabelecer a educação como um
elemento estratégico para a redução de desigualdades de ordem econômicas culturais e sociais,
e, neste sentido, como possibilidade de promoção de justiça social.
No âmbito educacional, quando o que está em jogo é a noção de justiça, a proposta de
Nancy Fraser (2001), nos parece relevante. Uma abordagem a partir de uma perspectiva de
gênero para a educação pressupõe dois aspectos: a redistribuição ou transformação do acesso
aos bens materiais, estes relacionados à dimensão econômica; e o reconhecimento ou
encaminhamento de injustiças simbólicas e culturais presentes em representações
estereotipadas das mulheres e pessoas LGBTI+, vinculando-se, então, à dimensão cultural. Tais
questões são pensadas com pouco peso pelas políticas públicas educacionais. Quando se tem
uma preocupação com as questões de gênero e sexualidade, geralmente, a abordagem é
superficial, contemplando o contexto da igualdade de oportunidades, especialmente de acesso
(Stromquist, 2007, p. 18).
Defendemos, portanto, que a abordagem de gênero e da educação sexual são
importantes não apenas no currículo formal, mas também no currículo real e no currículo oculto.
Entende-se como currículo formal aquele que é oficialmente instituído como documento
vigente nas áreas específicas, tais como a Lei de Diretrizes e Bases, o Plano Nacional de
Educação, O Plano Municipal de Educação, os Parâmetros Curriculares, as Orientações
Curriculares e as duas Resoluções de âmbito nacional que recortamos para a análise neste
artigo.
Já quando falamos de currículo real, estamos nos referindo àquele que efetivamente é
ministrado nas salas de aula, pois sabe-se que na realidade nem todas as disposições e os
conteúdos obrigatórios nos currículos formais chegam a ser colocados em prática. O currículo
oculto consiste em todos os acontecimentos, costumes, simbolismos, atitudes e
comportamentos das pessoas que compõe o ambiente escolar (GIROUX, 1986). Em todas essas
configurações de currículo estão implicadas as concepções das/os professoras/es sobre
educação e sociedade, por consequência, suas concepções acerca das diversidades e das

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desigualdades. Estas concepções norteiam suas lutas pelos currículos formais através das
associações, dos sindicatos, dos fóruns, dos conselhos, das entidades representativas de cada
área do conhecimento, dos colegiados de curso, etc. Elas também norteiam seus planejamentos,
aulas, avaliações e demais intervenções diretas com os estudantes em sala de aula, lá no espaço
vivo onde se concretiza os currículos reais e ocultos.
Por isso, a relevância da concepção de um currículo formal, que valorize os conteúdos
de diversidade sexual e de gênero, utilizado como referencial teórico-metodológico na
formação inicial e continuada de professores. São essas concepções que orientarão também as
concepções de escola. Nesse sentido, a escola é entendida como um espaço significativo de
difusão de conhecimentos e busca por uma sociedade mais justa e mais igualitária. Mesmo
assim, em determinadas épocas surgem tentativas para dificultar que as questões de gênero, de
educação sexual, assim como todos os conteúdos relacionados aos direitos humanos sejam
discutidos na escola. Ocorre que mesmo com essas incursões realizadas por movimentos
conservadores, tais conceitos e tudo que estes representam, mesmo que não sejam nominados,
citados, debatidos e explicados pelas/os professoras/es, continuarão presentes no ambiente
escolar, posto que permeiam a multiplicidade da vida em sociedade.
Assim, para que a prática dessas/es professoras/es não seja alvo de perseguições e
repreensões indevidas, são necessários documentos oficiais que amparem seus saberes/fazeres
pedagógicos, não só respaldando-os, como também exigindo o cumprimento dessas inserções
curriculares, muitas vezes negligenciadas por gestores adeptos às concepções conservadoras.
Lutar para que os conteúdos de diversidades sexuais e de gênero, por exemplo,
permaneçam em um documento referencial como a Resolução CNE nº 02/2015 é lutar para que
a educação sexual deixe de ser tratada como tabu. De um modo geral, muitas pessoas,
especialmente pela ausência de uma formação crítica, ainda evitam discutir essas temáticas com
os adultos e jovens e, principalmente, com as crianças. “Adultos/as que assim agem com as
crianças, enfatizando-se aqui os/as professores/as, acabam repetindo a educação sexual que
tiveram, repressora, acrítica, perpetuadora dos valores burgueses e, portanto, de um sexismo
que reforça a questão de gênero vigente” (BRAGA, 2008, p. 118).
O acesso ao aprofundamento teórico-metodológico dos conhecimentos sobre gênero e
sobre direitos humanos, concebidos pelo viés do empoderamento dessas “minorias sociais”,
que mesmo sendo maiorias populacionais como é o caso das mulheres e dos negros, são sub-
representados nos currículos e nas políticas educacionais, podem trazer mudanças no exercício
docente, posto que modificam olhares, posturas e comportamentos em sala de aula, em relação
ao enfrentamento das situações de discriminação, intolerância e preconceitos, mas, sobretudo

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em relação ao estranhamento dos próprios preconceitos que persistem entre esses profissionais.
As/os professoras/es precisam superar seus preconceitos, tantas vezes explicitados no currículo
oculto, impregnados nos valores e padrões sociais que são transmitidos nos
planejamentos/práticas de ensino. Mesmo porque, segundo Giroux, (1986), essa forma de
currículo consiste nas práticas, valores e situações que permeiam a escola e acabam sendo
vivenciadas e incorporadas pelas/os alunas/os.
Os adeptos do conservadorismo sabem da importância que os documentos
educacionais oficiais como materializações relevantes do currículo possuem na formação
das/os estudantes, das/os professoras/es e na organização de práticas pedagógicas includentes,
por isso a insistência dos ataques que visam excluir conhecimentos, alterar metas/estratégias de
planos, chamar de exercício de ideologização o que na verdade é um exercício científico de
direitos sociais e políticos, especialmente no que tange às questões sexuais e de gênero. Nesse
sentido, tal como afirma Gaudêncio Frigotto (2017, s/p), as práticas e os discursos do “Escola
sem Partido não podem ser entendidas nelas mesmas e nem como algo que afeta apenas a escola
e os educadores”. Concordamos ainda com o autor quando este afirma que,

Ao por entre aspas o termo “sem” da denominação Escola sem Partido, quer-
se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por seus arautos, da escola
do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou
antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de
liberdade; partido, portanto, da xenofobia nas suas diferentes facetas: de
gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc.. Um partido que ameaça os
fundamentos da liberdade e da democracia. (FRIGOTTO, 2017, s/p).

Atualmente, a exclusão dos conteúdos de gênero nos currículos já efetivada em alguns


estados brasileiros, especialmente por imposição de Lei alcançada pelo Movimento Escola sem
Partido tem sido considerada inconstitucional5. Mas, até que seja possível reverter todos os
estragos já efetuados, ainda demorará algum tempo. Sendo assim, os professores precisam se
apoiar em documentos oficiais, como a Constituição Federal de 1988, a LDB/1996, a Resolução
CNE nº 01/2012 e a Resolução CNE nº 02/2015, por exemplo. Além dos que já ressaltamos na
introdução acerca da importância dessas duas resoluções, no artigo 3.º da CF/1988, que trata
dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o inciso IV coloca que um dos
objetivos é “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Na Lei de Diretrizes e Bases da

5
Ver mais em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/02/14/interna_politica,659916/mpf-quer-que-
stf-julgue-inconstitucional-projetos-de-escola-sem-partid.shtml. Acesso em 10/05/2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p720 728


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Educação Nacional, de 1996, o artigo 3º, inciso IV, prevê “o respeito à liberdade e apreço à
tolerância” (BRASIL, 1996).

Pela construção de uma “Escola Justa”

Segundo Ione Ribeiro Valle (2013, p.289), “[...] as desigualdades fracionam-se,


multiplicam-se e diversificam-se no âmbito da escola, do mundo do trabalho, das hierarquias
sociais, sem que se consiga desmontar o mecanismo e a lógica que elas ocultam”. Na
perspectiva da autora, “é nesse quadro de reflexão crítica que se constrói a noção de justiça
escolar; uma noção que pode representar um avatar das políticas para a educação, pois abrange
todas as dimensões dos sistemas educacionais”. (VALLE, 2013, p.289). Mas isso não significa
dizer que pela escola, de forma heroica e miraculosa, conseguiremos mudar o mundo, pois “[...]
sabe-se que as relações entre os sistemas escolares e as sociedades nas quais eles se inserem são bem
mais complexas e bem mais incertas do que se imaginava quando se acreditava que a escola per si, de
forma miraculosa, poderia transformá-las” (VALLE, 2013, p.291).
François Dubet já anunciava questões muito semelhantes à esta a respeito da
concepção de escola que aqui defendemos, pois “[...] o fator de igualdade essencial é antes de
tudo a redução das próprias desigualdades sociais. Nenhuma escola consegue, sozinha, produzir
uma sociedade justa” (DUBET, 2004, p.545). Se por um lado sabe-se que a escola não consegue
sozinha mudar o cenário de persistentes exclusões e desigualdades, entende-se também que não
se pode concebê-la como espaço em que só se reproduzem relações desiguais de poder, a
perpetuação de hierarquizações sociais e culturais ou ainda a primazia da transmissão de
assimetrias sociais.
Concordamos com Ione R.Valle quando afirma que “tem sido unânime entre os
pesquisadores a ideia de que a educação passa a ocupar um lugar estratégico na cena moderna
desde a sua inclusão no campo dos direitos do cidadão”. (VALLE, 2013, p.291). Mesmo
porque, “o reconhecimento político das diversidades, fruto da luta de vários movimentos
sociais, ainda se apresenta como necessidade urgente no ambiente educacional, dadas as
recorrentes situações de preconceitos e discriminações que nele ocorrem” (BRASIL, DCNs-
Direitos Humanos, 2013, p. 529). Como diz Dubet (2004) convém construir a igualdade de
acesso. Porém, a “igualdade do direito de acesso à escola [...] nunca foi suficiente para garantir
a igualdade de tratamento das crianças, respeitando-se suas singularidades, sejam quais forem
sua origem social, seu sexo, sua prática religiosa” (VALLE, 2013, p.298). Nesse sentido, a
concepção de “Escola justa” passa pelo acesso, mas sobretudo pelo direito de permanência e
sucesso escolar em uma instituição que não discrimine e exclua as pessoas.

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Para Dubet, “uma das formas de justiça social consiste em garantir um mínimo de
recursos e proteção aos mais fracos e desfavorecidos” (2004, p.546). Esse mínimo, neste recorte
de análise, julgamos passar pelo conhecimento dos documentos oficiais referenciais que
protegem e respaldam o exercício dos direitos das/os estudantes e das/os professoras/es,
atualmente atacados, inclusive, no seu direito social de educar especificando a relevância das
diversidades, com foco na redução das desigualdades. Fazê-los conhecer que há amparo legal
em documentos em vigor, como a CF/1988, a LDB/1996, a Resolução CNE nº 02/2015 e a
Resolução CNE nº 01/2012, é contribuir para o exercício de seus direitos.
Como mostra o Parecer das DCNs-Direitos Humanos (2013) justiça social, igualdade e
diversidade não são antagônicas. Aliás, no nosso entendimento, são elementos indissociáveis
na formulação de currículos, na elaboração de materiais didáticos, nas políticas educacionais e
nas práticas pedagógicas cotidianas dos professores em uma concepção de “Escola justa”, pois
só quando os saberes dos grupos humanos, marginalizados historicamente no país, forem
representados e valorizados nas propostas pedagógicas, podemos dizer que estamos mais
próximos da construção de um ideal de justiça escolar.

[...] Em uma perspectiva democrática e, sobretudo, em sociedades


pluriétnicas, pluriculturais e multirraciais, [...] deverão ser eixos da
democracia e das políticas educacionais, desde a educação básica e educação
superior que visem a superação das desigualdades em uma perspectiva que
articula a educação e os Direitos Humanos. (BRASIL, 2010, Apud BRASIL,
DCNs-Direitos Humanos, 2013, p. 520).

Concordamos também com os dizeres das DCNs-Direitos Humanos (2013) de que a


educação em direitos humanos tem por escopo principal uma formação ética, crítica e política,
entendida como perspectiva que pode promover “o empoderamento de grupos e indivíduos,
situados à margem de processos decisórios e de construção de direitos, favorecendo a sua
organização e participação na sociedade civil” (BRASIL, DCNs-Direitos Humanos, 2013, p.
522). No que diz respeito à formação, “a primeira [formação ética] se refere à formação de
atitudes orientadas por valores humanizadores [...] a reciprocidade entre povos e culturas,
servindo de parâmetro ético-político para a reflexão dos modos de ser e agir individual, coletivo
e institucional” (BRASIL, DCNs-Direitos Humanos, 2013, p. 522).
Como afirma Candau (2010:400), “hoje não se pode mais pensar na afirmação dos
direitos humanos a partir de uma concepção de igualdade que não incorpore o tema do
reconhecimento das diferenças, o que supõe lutar contra todas as formas de preconceito e
discriminação”. (apud BRASIL, DCNs-Direitos Humanos, 2013, p.522). Segundo o mesmo
documento, o reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades é um dos

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princípios da educação em direitos humanos, que tem por finalidade promover a educação para
a mudança e a transformação social. Esse princípio se refere “ao enfrentamento dos
preconceitos e das discriminações, garantindo que diferenças não sejam transformadas em
desigualdades”. (Idem, p.522).
Para Moreira e Candau (apud BRASIL, DCNs-Ed.Básica, 2013, p.55), “a escola
sempre teve dificuldades em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e
neutralizá-las”. Na perspectiva dos autores, “a escola sente-se mais confortável com a
uniformidade e a padronização”. Mas, ao contrário disso, ela “precisa acolher, criticar e colocar
em contato diferentes saberes, diferentes manifestações culturais e diferentes óticas”, afinal, “a
contemporaneidade requer culturas que se misturem e ressoem mutuamente”. De acordo com
as DCNs-Direitos Humanos (2013), as instituições de Ensino Superior não estão isentas de
graves violações de direitos. Compreendidas também como escolas, estas precisam se engajar
na luta pela reversão dessas desigualdades e formas de exclusão. Afinal, quando se trata de uma
concepção de “Escola justa” está se falando também na concepção de uma universidade justa.

Muitas delas (re)produzem privilégios de classe e discriminações étnicas,


raciais, de orientação sexual, dentre outras. Mesmo com tantas conquistas no
campo jurídico-político, ainda persiste a falta de igualdade de oportunidades
de acesso e permanência na Educação Superior, sendo ainda necessária a
implementação de políticas públicas que, efetivamente, revertam as situações
de exclusão a que estão sujeitos muitos/as estudantes brasileiros/as.
(BRASIL, DCNs-Direitos Humanos, 2013, p. 529).

Aqui se fazem importantes as discussões de Dubet sobre as políticas equitativas.

Mas esta concepção de justiça será suficiente se considerarmos que as pessoas


e os grupos sociais não são iguais diante da escola? Para obter mais justiça,
seria preciso, portanto, que a escola levasse em conta as desigualdades reais e
procurasse, em certa medida, compensá-las. Esse é o princípio da
discriminação positiva. [...] É necessário introduzir uma dose de
discriminação positiva a fim de assegurar maior igualdade de oportunidades.
(DUBET, 2004, p.546 e 553).

Neste contexto da escola de educação básica justa e da universidade justa, inserem-se


as lutas pela política de cotas sociais e raciais. Essas não são questões de debate desse artigo,
mas valem a pena ser enfatizadas rapidamente, pois têm relação indireta com o exercício dos
direitos humanos, que no nosso modo de ver, devem estar registrados nos referenciais
curriculares e concretizados na prática da “escola justa”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Sabemos que “nas sociedades onde as desigualdades são profundas, tal como a
brasileira, o sonho da igualdade está longe de se tornar realidade”. (VALLE, 2013, p.295). Mas
“reconhecendo que todo otimismo em relação à escola deve estar cercado de prudência,
consideramos que ela pode contribuir para uma ação política consciente, afinal ela é uma –
talvez a única – instituição social capaz de promover a justiça em contextos atravessados pela
injustiça” (VALLE, 2013, p.302).
No que diz respeito à Educação Básica a própria realidade, marcada pelo acirramento
das desigualdades e de diversas formas de violência contra os direitos humanos, que afeta
especialmente as minorias, deve ser conteúdo das disciplinas, não só na área de Ciências
Humanas. O conhecimento sobre o mundo real e suas exclusões significa um passo fundamental
no processo de criticidade dos estudantes. É a consciência sobre essa realidade que permitirá a
participação dos mesmos em organizações coletivas que poderão mudar os contextos sociais.
Trata-se, em outras palavras, de colocar em prática as exigências da Resolução CNE nº 01/2012
“Propõe-se assim que, no currículo escolar, sejam incluídos conteúdos sobre a realidade social,
ambiental, política e cultural, dialogando com as problemáticas que estão próximas da realidade
desses estudantes” (BRASIL, DCNS-Direitos Humanos, 2013, p. 527).
Quanto no Ensino Superior, além das obrigações com a inserção da temática de direitos
humanos em projetos de pesquisa/ensino/extensão, a criação de núcleos com atuação em várias
demandas que devem compor políticas públicas mais includentes, contemplando teorias e
práticas acerca das relações de gênero, identidade de gênero, diversidade de orientação sexual,
diversidade cultural, espera-se a implementação efetiva da Resolução CNE nº 02/2015 no que
diz respeito à inserção das diversidades sexuais e de gênero, assim como de direitos humanos
em todos os Projetos Político Pedagógicos dos cursos de graduação – Licenciatura.

As demandas por conhecimentos na área dos direitos humanos requerem uma


política de incentivo que institua a realização de estudos e pesquisas. Faz-se
necessário, nesse sentido, a criação de núcleos de estudos e pesquisas com
atuação em temáticas como violência, direitos humanos, segurança pública,
criança e adolescente, relações de gênero, identidade de gênero, diversidade
de orientação sexual, diversidade cultural, dentre outros. (BRASIL, DCNS-
Direitos Humanos, 2013, p. 528).

Às universidades públicas, entendemos que cabe ainda “o papel de assessorar


governos, organizações sociais e a sociedade na implementação dos direitos humanos como
forma de contribuição para a consolidação da democracia” (BRASIL, DCNs-Direitos
Humanos, 2013, p. 528). Sob as perspectivas do debate que optamos efetuar nesse artigo, é o

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mesmo que afirmar sua responsabilidade, assim como de seus professores e organizações
coletivas, na constituição processual da “escola justa”, que não pode ser concebida enquanto
persistir uma ideia de currículo formal ou real onde apenas um grupo sociopolítico e econômico
dominante é estudado e representado como intelectual, a saber, o grupo hetero, europeu, cristão,
masculino, rico, branco, perseguido por anos a fio como regra padrão para formação das
identidades e subjetividades humanas.

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O Plano Municipal de Educação de Londrina e a representatividade política do


movimento LGBT nos espaços de deliberação do município

Marcelo Luan Lopes Jarreta1


Natalia Caroline Soares de Oliveira2

Resumo: Considerando o intenso debate acerca da relação entre a educação, gênero e


sexualidade ao longo da história, que se acentuou no Brasil nos últimos anos, muito em
virtude do processo de redemocratização que ainda está em desenvolvimento, o presente
trabalho objetiva demonstrar o vínculo entre a referida relação e a representatividade política
LGBTI+ no âmbito do município de Londrina, traçando a interação entre o Plano Municipal
de Educação local com a ausência de representatividade do grupo social. De modo a
possibilitar um satisfatório entendimento da problemática apresentada, é primordial a
definição de conceitos basilares da pesquisa, como representatividade, movimento LGBTI+ e
uma concepção acerca de gênero e sexualidade na educação. Para tanto, é imprescindível a
compreensão de uma linha teórica adequada à hipótese proposta, o que se viabiliza por meio
de pesquisa bibliográfica e documental. Além da exploração bibliográfica, é necessária a
exploração documental, uma vez que o trabalho demanda da análise de leis municipais, bem
como levantamento estatístico acerca da representatividade política da população LGBTI+ no
Brasil. O artigo está amparado em pesquisas qualitativas relacionadas à temática bem como
na experiência sensível acerca dos quadros de representação política de Londrina. Desta
forma, temos como objetivo auferir como a construção do Plano Municipal de Educação de
Londrina e suas conseguintes alterações acarreta na ausência de representatividade política da
população LGBTI+ em Londrina e como o contexto político dos espaços de deliberação no
município interferem na estruturação da relação entre as diretrizes educacionais e a identidade
de gênero e diversidade sexual, ressaltando a manutenção do preceito padrão heteronormativo
pautado na sistematização ideológica tradicional de grupos dominantes do cenário político
municipal.

Palavras-chaves: Educação; LGBTI+; Representatividade e esfera pública.

1
Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; marcelo.ljarreta@gmail.com
2
Doutoranda em Direito, Instituições e Negócios pela Universidade Federal Fluminense, Mestra em ciências
sociais e jurídicas pela Universidade Federal Fluminense. natoliveira88@gmail.com

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Introdução

Inegavelmente a educação desempenha papel preponderante na construção de


relações sociais que estejam em consonância com a realidade que a sociedade apresenta e a
escola têm sido espaço fundamental para determinar o que pode ser considerado natural e o
que é avesso a este. Os simbolismos e legados sociais que compõem a escola determinam o
que pode ser entendido como modelo a ser seguido por aquelas(es) que lá estão para aprender,
sendo que ao que – ou àquela(e) – que não se enquadra nesse dito modelo, de certo modo, lhe
é negada(o) o reconhecimento (LOURO, 1997, p. 58).
Entender como as relações sociais – e, por consequência, as relações jurídicas e
políticas – se entrelaçam com a educação é fundamental para se compreender o problema
enfrentado por grupos sociais vulneráveis no que diz respeito à representatividade política,
sendo recorte deste trabalho as questões de gênero e sexualidade, representadas pela
comunidade LGBTI+, procurando estabelecer esse elo com base nas alterações e propostas de
alterações do Plano Municipal de Educação de Londrina.3 Vale ressaltar que para as
discussões propostas pelo artigo, utilizamos como base teórica relacionada à educação a
autora Guacira Lopes Louro, que em seu livro Gênero, Sexualidade e Educação, publicado
em 1997, se debruçou a essas questões.
Análise empreendida busca oferecer a hipótese, tanto de que a ausência de
representatividade nos espaços deliberativos do município ocasiona falta de combate a ações
legislativas que visam limitar a liberdade de ensino e aprendizagem, que poderia proporcionar
maior interação social e consequente redução de práticas preconceituosas e que ignoram a
diversidade social, quanto o caminho inverso – mas não desconectado - que considera que a
constante supressão das questões de gênero e sexualidade na educação pode ter como reflexo
o esvaziamento da representatividade política da população LGBTI+ no município.
A maximização da compreensão da análise proposta, perpassa pela necessidade de se
oferecer a conceituação de algumas abstrações que alicerçam a discussão.4 Dissertaremos
acerca do entendimento sobre representatividade política idealizado para a formulação das

3
Vale ressaltar que o debate normativo acerca das relações de educação tem sido constante no município e não
se restringem ao Plano Municipal de Educação, mas a propostas de emendas à Lei Orgânica do Município,
propostas de lei municipal que verse sobre a fiscalização do ensino aplicado nas escolas da rede pública
municipal, dentre outros mecanismos. Essa informação se faz útil de modo a se compreender que as discussões
são muito amplas e dinâmicas e incumbe ao presente artigo, tratar de uma fração do referido debate.
4
Deve ser claro que não é objetivo do trabalho oferecer uma variável definição de conceitos, mas apresentar
sentidos que sejam mais adequados à proposta, de modo a possibilitar maior compreensão da hipótese
formulada. Isso não significa restringir a discussão com base apenas nas definições apresentadas, essencialmente
em se considerar que, para os conceitos aqui tratados, são oferecidas inúmeras noções.

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hipóteses apresentadas, procurando demonstrar sob este prisma a questão de


representatividade LGBTI+ nos espaços deliberativos do município. Além de
representatividade, é necessário compreender o que se assume quanto ao movimento
LGBTI+, uma vez que o entendimento acerca do grupo permeia compreender as
subjetividades que o compõe e as problemáticas que afetam a cada um. Por fim, é necessário
compreender, mesmo que brevemente, o relacionamento entre as questões de gênero e
sexualidade na educação escolar, o que implica definir o papel da escola na formação do
indivíduo e decorrente constituição social e, a partir disso, buscar demonstrar as hipóteses da
relação entre a educação e falta de representatividade da população LGBTI+ nos espaços
democráticos deliberativos.

I. Noção sobre Representatividade Política

Precedendo a análise acerca da relação da educação com a representatividade política


LGBTI+5, é necessário apresentar a conceituação clássica do que se compreende como
representação política e as atuais concepções acerca do tema, a fim de aproximar a discussão
aos debates intrínsecos ao movimento LGBTI+ em seus anseios por representatividade no
curso da história. Delimitar o que se entende por representatividade política aqui é importante,
pois o conceito apresenta indistintas definições teóricas e uma compreensão popular que
oferece margem a inúmeras interpretações.
Historicamente, o conceito de representação política recebeu classificações de
diferentes teóricas(os) políticas(os) que, em momentos de afloramento dos debates acerca de
inclusão e participação política – de escravos, passando por trabalhadoras(es) industriais,
chegando ao debate feminista na política – desenvolveram teses que buscam afirmar como a
sociedade deveria compreender o que seria ser representada(o) politicamente. Entretanto, foi
Hannah Pitkin, em seu livro “Conceito de Representação” de 1967, que classificou e ofereceu
uma conceituação considerada marco dentre as teorias modernas acerca de representatividade.
Segundo Pitkin, em suma, representação pode ser entendida como tornar presente aquilo que
está ausente (PEREIRA, 2017, p. 123).
Pitkin oferece uma classificação histórica de tipos de representação, subdivididos em
quatro categorias: formalista, descritiva, simbólica e substantiva. A primeira consiste na

5
A sigla LGBTI+ compreende à Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais, sendo acompanhada
pelo sinal de adição (+) que representa a inclusão de demais sujeitos alinhados à diversidade sexual não
abrangidos pela sigla.

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representatividade pautada no indivíduo autorizado pelos próprios representados a


representar, o que leva ao debate acerca dos interesses dos representados e a autonomia dos
representantes, o que traz à tona o conceito da accountability, uma prestação de contas que o
representante deve conceber aos representados. Contudo, este tipo de representação carrega
um problema que se evidencia com o tempo, em que ocorre certo distanciamento – e até
mesmo rompimento – das ações do representante em face dos interesses dos representados.
Este problema se evidencia quando eclodem manifestações populares baseadas na insatisfação
contra os representantes.
Já a definição descritiva de representatividade pode ser entendida como uma
representatividade reflexiva, isto é, que reflete nos espaços de deliberação, os próprios
representados. O problema deste tipo de representação reside exatamente no inflar exagerado
sobre a figura de quem é representado, o que proporciona um esvaziamento de discussões de
ideias nos espaços de representação, além da diminuição da qualidade da representação e da
prestação de contas dos representantes.
A terceira categoria denomina simbólica, pode ser entendida como o inverso da
representatividade descritiva, uma vez que não se pauta no espelhamento dos representados,
mas sim em símbolos que não possibilitam a representação com base nos interesses daqueles
que necessitam ser representados e sim nos simbolismos ligados às emoções e aos
sentimentos.
Segundo as análises empregadas por Clayton Feitosa Pereira às teorias de
representatividade política de Pitkin, é a categoria substantiva que, melhor se conecta com a
real necessidade de representatividade política, uma vez que este tipo de representação não se
enfoca nos sujeitos a serem representados, mas sim nas ideias e concepções que devem ser
representadas nos espaços deliberativos (PEREIRA, 2017, p. 124). Desta forma, seria possível
oportunizar aos representados que acompanhem as medidas dos representantes e se estas
atendem ao esperado por eles, bem como não elimina a ideia da accountability, o que garante
a liberdade e autonomia dos representantes que não se vêm obrigados e amarrados à
determinadas ações.
Essas definições exprimem conceitos de representatividade que são, de certo modo,
dominantes no que diz respeito à doutrina de ciência política que verse sobre o tema.
Contudo, os anseios que levam determinados grupos sociais marginalizados a requisitarem
representatividade política, não se enquadram necessariamente no conceito de substantivo,
que segundo Clayton é considerado por Pitkin como aquele que melhor define
representatividade política. Os embates desencadeados pelas lutas feministas, de movimentos

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raciais – especificamente o movimento negro – e do movimento LGBT6, que não conseguem


adentrar aos espaços políticos de deliberação, abrem margem para uma reanalise do conceito
descritivo de representação, que remete à representação espelhada àqueles que requerem ser
representados.
Anne Phillips, autora voltada às discussões feministas, retoma a discussão acerca da
melhor conceituação de representatividade aplicável ao problema enfrentado pelos
movimentos feministas no que diz respeito à representatividade política, as ideias
desenvolvidas pela autora facilmente são aplicáveis às problemáticas apresentadas por outros
grupos sociais que se assemelham às reivindicações feministas acerca de representatividade,
como o movimento negro e o movimento LGBTI+. Segundo Phillips, escolher os
representantes a partir da imagem que apresentam e/ou com base no ideário demonstrado pelo
partido político deste representante, pode se mostrar uma pseudo representatividade, uma vez
que este tipo de escolha muitas vezes pode estar viciada por questões monetárias e da
influência da mídia sobre a política, o que não garante que as questões minoritárias serão de
fato representadas (PHILLIPS, 1995, p. 03).
Os questionamentos propostos pela teoria de Phillips passam pela reivindicação
natural que grupos voltados para as discussões de gênero, raça e quaisquer grupos socialmente
vulneráveis que vêm superando barreiras de reconhecimento de sua realidade – fora da
participação política – apresentam por não se verem de fato representados nos cenários
políticos, o que leva a uma releitura acerca da representatividade com base apenas no plano
das ideias a serem representados, evidenciando a necessidade de também se considerar quem
está representando estas ideias.
Relacionando as diversas definições empregadas ao conceito de representatividade,
podemos compreender que, o conceito desenvolvido por Phillips melhor se adequa à
problemática que envolve a ausência de representatividade política LGBTI+, que remetem a
uma junção das ideias que abarcam o conceito, ou seja, entendemos representatividade como
um conjunto que abrange levar aos espaços deliberativos tanto os interesses que refletem às
necessidades levantadas pelos movimentos sociais de grupos marginalizados, bem como a
representação de presença, possibilitando que aqueles que estejam abarcados nos grupos

6
Dado o período histórico remetido no texto, referente à crescente nas reivindicações do movimento LGBT na
década de 70, o movimento que representava a diversidade sexual se limitava à sigla LGBTs, principalmente na
figura de homens gays (PEREIRA, 2017, p. 121). A inclusão de demais grupos identificados à diversidade
sexual, traduzida nas mudanças da sigla que representa o movimento, é uma discussão contemporânea.
Trataremos melhor desta questão no tópico acerca da compreensão do movimento LGBTI+ (tópico II).

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sociais que disputam e requerem espaço, possam de fato adentrar às esferas públicas de
deliberação.
Vale ressaltar que o alinhamento à essa perspectiva acerca da representatividade
política não significa alinhamento necessário à política de quotas nos espaços deliberativos,
ou mesmo nos partidos políticos, à indivíduos LGBTI+, como se pode observar acontece com
as mulheres atualmente, uma vez que as particularidades que envolvem as problemáticas sui
generis aos LGBTI+, conforme desenvolveremos ao longo do texto, impossibilitariam ainda
mais a participação política destes em um formato de quotas, pois poderia ser encarada como
uma imposição de uma parcela de LGBTI+ na política, o que gera repulsa por parte da
sociedade que enxerga os representantes deste grupo uma ameaça à configuração
heteronormativa “normal”; ao contrário, promover a participação política LGBTI+ com base
em incentivos à paridade junto à própria comunidade LGBTI+ pode ser encarado como
menos ofensivo, o que diminui a aversão social a estes.
Em conformidade com essa análise, definir o que é o movimento LGBTI+ e sua
construção histórica é imensamente importante para o desenvolvimento da ideia central do
artigo, de modo a possibilitar maior compreensão acerca do movimento e possíveis razões que
geram o esvaziamento representativo LGBTI+ dos espaços de discussão, ressaltando o
dinamismo histórico que acompanha o movimento e a abrangência a atores alinhados à
questões de diversidade sexual.

II. As muitas faces do Movimento LGBTI+

Uma das principais barreiras quando se versa sobre a temática da diversidade sexual
é entender, simplesmente, o que é essa diversidade sexual e o que abrange o movimento
LGBTI+. Entretanto, definir um grupo social que se compõe com base em um enredo de
subjetividades de sujeitos e idealizações, assim como um dinamismo constante não se
constitui tarefa fácil nem mesmo para teóricos que se debruçam sob o movimento e ainda para
os próprios sujeitos inseridos ou representados pelo grupo. Podemos considerar que a
organização LGBTI+ enquanto movimento social se deu mais tardiamente, se compararmos
com demais grupos sociais como o movimento feminista, o movimento negro e o movimento
de trabalhadores da classe operária por exemplo.
A priori, é necessário compreender a metamorfose da sigla que acompanha o
movimento, já que, constantemente esta aparece com um ou outro formato distinto, o que
sempre gera dúvidas, dentro e fora da comunidade LGBTI+. Isso acontece pois,

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constantemente, se buscam formas de inclusão de quaisquer sujeitos que reivindiquem


reconhecimento baseado em diversidades sexuais frente àquela padronizada na sociedade, cis
gênero e heterossexual7, diversidades estas que a psicologia e as ciências sociais vêm cada vez
mais reconhecendo. Aqui consideramos necessária uma breve nota explicativa acerca do
termo cis gênero, que consiste na formação identitária do sujeito em conformidade com o
gênero que lhe foi atribuído no nascimento, ou seja, uma pessoa que nasce identificada
biologicamente com o sexo masculino e se mantem identificada como tal, por exemplo
(JESUS, 2012, p. 10). Configurações distintas da sigla não devem ser encaradas com
estranhamento; LGBT, LGBTT, LGBTQ, LGBTI8, quaisquer formatos que possam
apresentar o movimento apenas são formas para se identificar alguns daqueles que compõem
o grupo social tratado, muitas vezes acompanho o sinal de mais (+), que apenas indica que
além das siglas ali escritas, o movimento se implica à demais grupos de diversidade sexual.
É importante evidenciar que existe uma subdivisão substancial dos movimentos de
diversidade sexual no que diz respeito a algumas pautas e entendimentos psicossociais de
reconhecimento: o movimento LGBTI+ propriamente dito e o movimento Queer. Não é
objetivo deste trabalho, adentrar na discussão e definição acerca da teoria Queer, pois dada
sua complexidade, seria necessário a execução de pesquisa própria voltada a esse fim.
Contudo, suscitar algumas peculiaridades que englobam os movimentos pode ser importante
para o esclarecimento de pautas e necessidades dos mesmos.
De modo sucinto, fazendo referência à ampla pesquisa realizada por Leandro Colling
em seu livro Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer,
publicado em 2015, o movimento LGBTI+ se pauta na consecução de conquistas baseadas em
leis – direito a matrimônio, direito à sucessão, criminalização da LGBTfobia, etc. –; não se
permeia de objetos culturais que possam trabalhar questões de diversidade sexual; há um
predomínio gay nas ações do movimento; e não enxerga com tanta veemência o sistema
capitalista como sendo um real vilão no alcance de objetivos do movimento (COLLING,
2015).

7
A afirmação de que a sociedade brasileira é predominantemente cis e hétera advém da realização de pesquisas
esparsas realizadas pela USP (Universidade de São Paulo) em 2009 e dados extraoficiais publicados no site
Brasil de Fato em 2012 e que apontam que apenas cerca de 10% da população brasileira está inserida no quadro
representativo do Movimento LGBTI+. Ressaltamos a dificuldade de se encontrar tais dados, bem como a
imprecisão destes, já que ainda não existe um levantamento demográfico oficial acerca da população LGBTI+ no
Brasil. Apresentamos essas informações apenas para confirmar que a população brasileira é majoritariamente
heterossexual, conforme exposto no texto.
8
A sigla base que acompanha o movimento social ao longo do tempo é LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transexuais. A adição de demais caracteres indica a representação de algum grupo ao qual abrange a diversidade
sexual: Queer, Transgêneros, Intersexuais, Não-binários, entre outros.

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Já o movimento Queer, basicamente vai no sentido contrário ao apresentado para se


definir o movimento LGBTI+. Enxergam no aparelho cultural uma forma de tratar a
diversidade sexual e promover o respeito a esta; evita perpetuar um padrão a ser seguido por
aqueles que buscam reconhecimento à diversidade sexual e não prioriza um determinado
grupo dominante; e compreende as desigualdades naturais do sistema capitalista como uma
das fontes de empecilho a superação das opressões sofridas pelo movimento (COLLING,
2015, p. 21-31). Evidentemente que, independentemente das particularidades que afetam o
movimento LGBTI+ e o movimento Queer, o objetivo do trabalho deve ser ressaltado no que
diz respeito as dificuldades de representatividade políticas dos movimentos de diversidade
sexual com base na relação entre a educação e composição dos espaços de deliberação.
Desta forma, conforme Clayton Feitosa Pereira (2017), o movimento LGBTI+
consiste em um movimento composto por inúmeros sujeitos identificados à diversidade
sexual que, em conjunto – mesmo com peculiaridades distintas – objetivam alterar padrões
institucionalizados de normas que dificultam a superação de violências e discriminação contra
indivíduos que não se enquadram no dito padrão de sexualidade (PEREIRA, 2017, p. 122).
Isto posto, podemos adentrar à hipótese proposta pelo artigo e tratar da relação entre
a educação e a representatividade política LGBTI+, enfatizando essa relação no âmbito do
município de Londrina, procurando entender como a educação se relaciona com a idealização
social dos sujeitos e, consequentemente, com a compreensão acerca da diversidade sexual.

III. A educação e representatividade política LGBTI+ em Londrina

A escola se apresenta como ente fundamental na construção do indivíduo e como


este convive em sociedade, com base naquilo que aprendeu. O que a história demonstra é que
a escola vem servindo como instrumento de separação e acentuação das diferenças,
normatizando e reafirmando padrões sociais, conforme dissertado por Guacira Lopes Louro:
“Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz
isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva” (LOURO, 1997, p.
57).
Contudo, podemos compreender a escola como sendo o espaço de ensinamento
(dentre todos os demais) que com mais facilidade acompanha a dinâmica da vida em
sociedade e, mais profundamente, molda as metamorfoses psicossociais, ou as impedem, a
depender de fatores sociais e políticos que constituem a educação, dentre estes a os grupos
que dominam os espaços de discussão e deliberação.

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Isto posto, é possível compreender que o modo com que se configuram as relações na
escola reflete no modo com que os alunos agirão perante as relações sociais fora da escola, o
que facilita entender que, sendo as questões de gênero e sexualidade questões presentes no
cotidiano social, é relevante demonstrar no ambiente escolar, ações que estejam em
consonância com essa “nova” dinâmica social. Para tanto, o mecanismo talvez considerado
mais relevante nas relações de ensino é preponderante para a adequação da escola às atuais
questões de gênero e sexualidade: a linguagem.
Por meio da linguagem, a naturalização das distinções de gênero e/ou discriminações
acerca da diversidade sexual se tornam evidentes. Termos e expressões naturalizadas que
tratam todas as pessoas com adjetivos masculinos, reforçam no consciente de meninas a
naturalização quanto ao masculino como preponderante. O mesmo acontece quando se trata
da diversidade sexual, mas aqui o problema se manifesta por meio da omissão, quando se
procura esconder, não tratar acerca da diversidade sexual, o que ocasiona aos alunos
reconhecidos ou em processo de reconhecimento, a sensação de não pertencimento àquele
ambiente, dando margem a que, quando manifestadas as sexualidades diversas no ambiente
escolar, atitudes repreensivas e discriminatórias entre os alunos, sejam internalizadas como
naturais (LOURO, 1997).
Procuramos até aqui apresentar uma ideia que nos possibilita perceber que a
compreensão acerca da representatividade política aqui versada, abrange a ideia de
representação com base na junção entre ter os interesses levados aos espaços deliberativos,
cuja formação conterá pares alinhados e identificados ao grupo social que representa, sendo
motivo desta pesquisa o movimento LGBTI+, que se constitui em movimento social
composto por inúmeros sujeitos identificados à diversidade sexual que objetivam alterar
padrões institucionalizados que atentam à dignidade, vivência e participação do grupo em
sociedade. Contudo, para o sucesso do objetivo do Movimento LGBTI+ em se alcançar
representatividade política nos espaços públicos de decisão, é necessário que as relações de
ensino estejam alinhadas a proporcionar paridade na abordagem da diversidade sexual, uma
vez que a escola reflete, a curto, médio e longo prazo, as relações sociais desenvolvidas em
seu âmago, influindo diretamente em como a sociedade compreende o movimento LGBTI+ e
seus atores.
Na tentativa de afastar as discussões acerca de gênero e diversidade sexual das
escolas, sob a justificativa de garantir um ensino livre de doutrinação ideológica e política por
parte dos educadores, grupos políticos alinhados a correntes ideológicas consideradas
conservadoras vêm propondo leis e promovendo discussões no âmbito legislativo do

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município de Londrina que limitam e alguns casos até proíbem a abordagem escolar acerca de
gênero e diversidade sexual. É o caso do projeto de lei que visa instituir o programa Escola
sem Partido em Londrina; assim como o recente projeto de emenda à Lei Orgânica do
Município nº 32017, que insere artigo à carta orgânica de Londrina que visa impedir que seja
tratada, em qualquer âmbito da rede municipal de ensino, questões de gênero e diversidade
sexual. Entretanto, esses casos exemplificativos decorrem da alteração do Plano Municipal de
Educação de Londrina em 2015 que suprimiu das diretrizes educacionais locais o combate às
desigualdades de gênero e diversidade sexual.
Entendendo a educação como preponderante na formação social, é possível
compreendê-la como fundamental no processo de representatividade política. Desta forma,
podemos considerar que, quando a escola promove um processo de omissão frente à grupos
identificados à identidade de gênero e diversidade sexual, ela pode interferir direta e
indiretamente no processo de construção da representatividade política da comunidade
LGBTI+, já que, no caminho inverso, acaba reforçando a cultura padronizada
heteronormativa, o que se reflete na política, conforme aponta Clayton Feitosa Pereira:
"Como o campo político é pouco permeável às pautas e pessoas LGBT, há uma notória
tendência do eleitorado em votar em candidatos que detém o perfil dominante da arena
política, ou seja, masculina, burguesa, branca e heterossexual, mesmo entre o eleitorado
LGBT” (PEREIRA, 2017).
Considerando as recentes alterações nos documentos legais que constituem as bases
educacionais, como a supressão da diversidade sexual e identidade de gênero do Plano
Municipal de Educação de Londrina, que se intensificaram a partir de 2015, é possível fazer
uma relação com a queda na eleição de representantes engajados ao Movimento LGBTI+ já
nas eleições municipais de 2016, conforme estudo realizado pela Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), em que observamos que nas
eleições municipais de 2012 (anteriores às alterações nas bases curriculares), a comunidade
LGBTI+ elegeu 29 políticos no Brasil. Já nas eleições municipais de 2016 (posteriores às
alterações), este número caiu para 26.
Outra hipótese relacionada a esta é a de que a já carente representatividade política
LGBTI+ nas esferas deliberativas, possibilita que grupos que predominam essas esferas
promovam ao debate legislativo as propostas que visam suprimir o reconhecimento dos atores
identificados à diversidade sexual. Grupos formados por políticos alinhados à uma moralidade
religiosa, por exemplo, tem ocupado cada vez mais os espaços de representatividade política,
reforçando a ideia que reflete a padronização social na política.

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Considerações finais

A relação entre a representatividade política e a educação concebe que incluir as


questões ligadas à diversidade sexual e identidade de gênero é primordial para possibilitar
paridade de participação política por parte do Movimento LGBTI+, principalmente no que diz
respeito às esferas deliberativas municipais, ambiente em que se efetuam com mais frequência
os debates acerca da conectividade entre a educação e à diversidade sexual e identidade de
gênero, onde, muitas vezes ocorre o afastamento dessas questões da educação, como ocorreu
nas alterações promovidas ao Plano Municipal de Educação de Londrina em 2015.
A mitificação que vem sendo desenvolvida por representantes políticos atualmente,
que enxergam na politização do Movimento LGBTI+ como uma tentativa de se garantir
privilégios às pessoas identificadas com o Movimento, além de uma forma de viabilizar a
transformação de indivíduos em LGBTI+, especialmente crianças, vêm ocasionando cada vez
mais um afastamento representativo ao Movimento, endossado por projetos e leis que visem
institucionalizar esse esvaziamento político, dentre os quais, projetos ligados à educação
escolar (PEREIRA, 2017, p. 125).
Clayton Feitosa Pereira, em seus estudos que levaram ao artigo Barreiras à ambição
e à representação política LGBT no Brasil levanta algumas possibilidades de superação da
ausência de representatividade política do Movimento LGBTI+, dentre as quais, “campanhas
de recrutamento partidário, estímulo à candidaturas e promoção de debates sobre esse tema
em diferentes setores da sociedade poderiam produzir ótimas iniciativas em um cenário
escasso de ações nessa direção.” (PEREIRA, 2017, p. 125), além da criação e
desenvolvimento de canais de interlocução entre as esferas políticas e o Movimento LGBTI+
(PEREIRA, 2017, p 129).
Destarte, é compreensível não atribuir à ausência de representação política LGBTI+
exclusivamente às relações educacionais, mas, com base nas análises propostas, é preciso
repensar no papel da educação na participação política, em especial de grupos sociais que se
encontram à margem da atuação educacional, como o Movimento LGBTI+. Desta forma,
poderíamos compreender a ligação, direta e indireta, entre a marginalização dos grupos
sociais de diversidade sexual e identidade de gênero no âmbito educacional escolar com a
defasagem na representatividade política desses atores.

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As capacidades de realizações das mulheres e o pensamento de Amartya Sen

Ana Julieta Parente Balog1

Resumo: Muito se fala sobre como os direitos femininos evoluíram ou como estamos
caminhando para um mundo cada vez mais “igualitário”. É notável que em muitos aspectos
alguns locais do mundo evoluíram no que concerne ao tratamento prestado as mulheres ou as
leis de proteção contra a violência. Todavia, existem muitos outros locais que continuam a negar
direitos fundamentais. Nesse sentindo, a teoria de justiça pode auxiliar nesse processo de
expansão dos direitos femininos. Amartya Sen é um dos principais expoentes da teoria de
justiça contemporânea com sua teoria de “iguais capacidades”. É a partir dessa teoria, que foca
nas efetivas liberdades como meio de alcançar uma boa vida, na avaliação das liberdades como
a “capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar” (SEN, 2011,
p. 265), que se pretende entender quais são as capacidades de realização do feminino na
atualidade. O foco aqui é a liberdade que temos para efetivamente escolher diferentes modos
de vida e não simplesmente na vida que conseguimos levar com o que nos foi possibilitado ter.
Sendo o conceito de capacidades um aspecto da liberdade que se concentra particularmente nas
oportunidades substantivas (SEN, 2011), é possível constatar – não só a partir da obra de Sen
(2011) mas outras (OCKRENT; TREINER, 2011; WAISELFISZ, 2012; WAISELFISZ, 2015)
– que em várias partes do mundo essa capacidade é negada a muitas mulheres. Conclui-se assim
que a liberdade que uma pessoa tem sobre suas escolhas é fundamental para evitar abusos das
mais variadas formas. Nesse sentindo, a capacidade de realizações do feminino está
intimamente ligada a liberdade que elas possuem para ter o poder de agência sobre as próprias
vidas, e isto só será alcançado fazendo com que elas participem de formas mais ativa na
sociedade, mas também através do reconhecimento das mesmas para o desenvolvimento desta
sociedade.

Palavras-chaves: Teoria de iguais capacidades; mulher; teoria de justiça.

1
UNESP/FCLAr. Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCS/UNESP/FCLAr e Bacharela em Ciências Sociais
pela UECE. julietaparente@yahoo.com.br.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p747 747


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Introdução

Muito se fala sobre como os direitos femininos evoluíram ou como estamos


caminhando para um mundo mais “igualitário”. É notável que em muitos aspectos alguns
locais do mundo evoluíram no que concerne ao tratamento prestado as mulheres ou a leis de
proteção contra violência. Todavia, existem muitos outros locais que continuam a negar
direitos fundamentais.
Não obstante aos direitos obtidos ao longo da história, nascer mulher na atualidade
ainda não é nenhuma garantia de segurança, mesmo que isso ocorra em países ditos
desenvolvidos (OCKRENT; TREINER, 2011). Posto que a violência é um fenômeno
estrutural e cultural, ela ainda ocorre de maneira diferente entre mulheres e homens adultos.
Pois, enquanto eles são as principais vítimas da violência urbana, as mulheres são da
doméstica e familiar, aquela faz parte do que conhecemos como violência de gênero, que é
um tipo de violência orientada pelo gênero da vítima (SAFFIOTI, 2015).
Os dados referentes a violência contra a mulher – seja ela física, psicológica etc.– ainda
continuam assustadores ao redor do mundo. Mulheres ainda recebem menos que homens pelo
mesmo serviço prestado, estão sujeitas a abusos de toda natureza, são as principais
responsáveis pela educação dos filhos, fazem a maior parte do trabalho doméstico em casa
etc.
Especificamente na China, a reprodução do sistema clânico patriarcal, com a
perpetuação da linhagem através do filho homem – apesar desse sistema estar em tendência
declinante, a ideologia clânica continua preponderante –, influencia as baixas razões entre
mulheres e homens (OCKRENT; TREINER, 2011).
Aos olhos da sociedade chinesa, principalmente nas regiões rurais e afastadas dos
grandes centros urbanos, quando casada a mulher deixa sua família biológica, devendo
devoção ao seu esposo e a família dele pelo resto de sua vida. Soma-se a isto a política do
filho único2 e o fato de grande parte da população não possuir forma alternativa de sustento
na velhice (e.g. aposentadoria), sendo, dada a ideologia, o filho homem a única saída de uma
velhice miserável, o que acarreta em uma significativa piora da posição, que já é marginal, da
mulher. Elas acabam por receber menos comida e educação, caso cheguem a nascer,
diminuindo drasticamente suas capacidades de chegar a vida adulta. Destarte, são vários os

2
A política do filho único consiste na proibição do governo chinês de casais terem mais do que um único filho.
Foi implantada na década de 1970 e tinha como finalidade conter o crescimento populacional. Recentemente,
foi revogada, sendo permitido que casais possuam até dois filhos.

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fatores que explicam a ausência de mulheres.


No Oriente Médio, muitas mulheres são obrigadas a pagar com a própria vida pelo
crime de seus algozes, ou – em casos de estupro – obrigadas a se casar com o abusador. Por
“mancharem a honra”3 da família são “convidadas” a findar com a própria vida e em caso de
recusa, alguém da própria família o faz.
A existência de leis civis que as protejam de toda sorte de abusos e privações, não
possui efeito algum na maioria dos lugares. O que acaba prevalecendo – principalmente nos
vilarejos mais afastados – são as leis religiosas, que são na verdade distorções do Alcorão,
feitas por grupos religiosos locais, utilizadas de acordo com os costumes morais da
comunidade afim de controlar os corpos femininos.
No Brasil, mesmo que se tenha avançado, um árduo caminho ainda precisa ser
percorrido até que as mulheres tenham as mesmas oportunidades dos homens de alcançar
uma vida boa. O direito sobre o próprio corpo ainda lhes é negado. O aborto só é permitido em
casos específicos e até mesmo estas exceções correm o risco de serem proibidas, caso projetos
de leis que preveem a proibição do aborto até em caso de estupro sejam aprovados.

A teoria da justiça pode auxiliar nesse processo de expansão dos direitos femininos.
Desde Ralws, Dworkin, Amartya Sen, ou mulheres como Iris Young, Martha Nussbaum e
Susan Okin, muitos foram os que buscaram pensar como alcançar uma sociedade mais justa,
alguns com mais atenção voltada para o feminino, como no caso das últimas autoras.
Pode-se entende-lo como um grande defensor da emancipação feminina – mesmo que
este nunca tenha sido o foco de sua argumentação, apresentando de passagem e em um contexto
de uma ideia de justiça mais ampla, que é plausível – e de como esta levaria ao
desenvolvimento: Amartya Sen é um dos principais expoentes da teoria de justiça
contemporânea, com sua teoria de “iguais capacidades”.
Sen propõe uma teoria de justiça que foque nas efetivas liberdades como meio de
alcançar um boa vida. Estas liberdades seriam avaliadas de acordo com abordagem das
capacidades, que é medida pela “capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão
para valorizar” (SEN, 2011, p. 265).
É uma abordagem mais sutil, visto que apesar da maioria das privações que as pessoas
passam terem relação com a renda, nem todas podem ser medidas pelo o que um indivíduo

3
Fazer qualquer coisa sem o consentimento do marido, pai etc. ou ser vítima de um rumor. Desde a ter relações
sexuais fora do casamento, até realizar uma visita a sua família de origem sem a autorização prévia do marido.

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possui ou deixa de possuir4. A complexidade da vida humana envolve muitas outras questões
que apenas a renda e recursos conseguem explicar.
Desta forma, pretende-se entender as capacidades de realizações do feminino a partir
da perspectiva da abordagem das capacidades de Amartya Sen

A importância da liberdade para uma vida boa

Qualquer teoria de justiça que se preze escolhe parâmetros através dos quais vai medir
a vantagem dos indivíduos, se uma sociedade é justa ou não. O utilitarismo, uma das primeiras
e principais correntes presentes na teoria da justiça, concentra-se na felicidade ou prazer
individual para julgar se o indivíduo possui ou não uma boa vida. É uma abordagem focada
na utilidade e nos recursos, avaliando a vantagem que uma pessoa possui a partir da sua renda,
sua riqueza, deixando de levar em consideração outros fatores que também são importantes5.

O foco rawlsiano sobre os bens primários é mais abrangente do que a renda


(de fato, a renda é apenas um de seus constituintes), mas a identificação de
bens primários ainda é guiada, na análise de Rawls, por sua busca por meios
úteis para múltiplos fins, entre os quais a renda e a riqueza são exemplos
específicos, e particularmente importante. No entanto, pessoas diferentes
podem ter oportunidades completamente diferentes para converter renda e
outros bens primários em características da boa vida e no tipo de liberdade
valorizada na vida humana. Assim, a relação entre recursos e pobreza é
variável e profundamente dependente das características das respectivas
pessoas e do ambiente em que vivem – tanto natural como social (SEN,
2011, pp. 288-289).
Diferente do utilitarismo, Sen considera uma vida boa a liberdade de poder escolher
que decisões, dentre todas as possíveis, tomar. O foco desta vida boa, é a liberdade que temos
para efetivamente escolher diferentes modos de vida e não simplesmente na vida que
conseguimos levar com o que nos foi possibilitado ter.
É um conceito valioso por duas razões: 1) mais liberdade nos dá mais oportunidade de
buscar nossos objetivos; e 2) há a possibilidade de atribuir importância sobre o próprio
processo de escolha, ou seja, sabermos que escolhemos algo sem sofrer imposições de
terceiros. É o que ele distingue entre “aspecto de oportunidade” e “aspecto do processo”.

4
Nem sempre possuir recursos significa possuir boa-vida. É o que Sen chama de “capacidade de conversão”,
isto significa que a capacidade de possuir uma boa vida depende também da capacidade de uma pessoa
transformar seus recursos em algo que valoriza. Uma pessoa pode possuir a renda necessária para realizar todos
os seus desejos, mas não possui capacidade física – por eventual doença genética, por exemplo –, enquanto
alguém pode possuir pouco dinheiro, mas conseguir realizar aquilo que valoriza – por não possui esta doença
genética – com mais facilidade do que quem possui renda.
5
Como, e. g., a divisão de comida dentro das famílias, o esforço feito para a educação entre as crianças, o cuidado
prestado aos idosos e as pessoas com algum tipo de dificuldade na conversão de capacidades.

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Trata-se, basicamente, da oportunidade de ter a liberdade de escolher dentre todas as


possiblidades e de mudar de ideia no processo, caso queira, sem nenhum dano a sua
integridade.
Posso citar como exemplo o seguinte caso: O “aspecto do processo” é a liberdade de
uma mulher desistir de fazer sexo com outra pessoa no meio do processo, porque talvez notou
que esqueceu a camisinha e não quer arriscar engravidar ou contrair uma doença sexualmente
transmissível (DST), ou porque simplesmente não quer mais, mesmo que ela tenha
concordado inicialmente.
Ela teve a liberdade no “aspecto da oportunidade” de decidir praticar sexo dentre todas
as outras opções, mas também deve ter a liberdade de mudar de ideia no processo, caso
contrário o ato seria uma violação da sua liberdade – mais conhecido como estupro.
Há ainda a distinção no “aspecto das oportunidades” entre aquilo que escolhemos fazer
dentre todas as opções (a variedade de opção também é relevante) e aquilo que escolhemos
fazer por sermos constrangidos a tal. Suponhamos a mesma mulher que decidiu fazer sexo,
mas depois desistiu, voltou a concordar pois se viu constrangida (ameaça de morte, por
exemplo, para que ela concordasse) em continuar o ato. Pode-se pensar também em algo mais
sutil, como a demonstração de chateação do parceiro e/ou uma pressão por manter o
relacionamento agradável, por ela (a mulher) objetivar ser a ‘mulher ideal’ da revista
‘Cosmopolitan Nova’.

A diferença no “aspecto de oportunidade” entre os meios que levaram a mulher a


praticar sexo é fundamental, visto que um torna o sexo consentido e o outro, caso de
opressão, estupro etc. Ele pode ser visto de diferentes maneiras a partir da distinção entre
“resultado de culminação” e “resultado abrangente”:
Pode ser definido apenas com relação a oportunidade para “resultados de
culminação” (com o que uma pessoa acaba), se vemos uma oportunidade
desse modo particularmente estreito e consideramos que a existência de
opções e a liberdade de escolha não tem maior importância. Como
alternativa, podemos definir de forma mais ampla (...) a oportunidade
quanto à realização dos resultados abrangentes, levando também em conta a
forma como a pessoa atinge a situação culminante (por exemplo, quer
através de sua própria escolha, quer por meio dos ditamos dos outro) (SEN,
2011, p. 264).
Na visão mais ampla, o aspecto de oportunidade da liberdade da mulher é minado
quando ela não quer fazer sexo e é obrigada a fazê-lo, levando a diferenciação entre sexo
consentido e estupro. Enquanto que na visão estreita as duas situações trata-se apenas de sexo,
independente do consentimento da mulher.
Esta distinção é necessária para examinar se a capacidade de uma pessoa levar o tipo

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de vida que ela preza, mas que ela levaria de qualquer modo, ou uma abordagem que leve em
consideração as possibilidades que ela teve para escolher para, dentre todas, optar por uma.
Baseado na abordagem das capacidades de Sen, esta visão busca demonstrar que deve existir
uma gama de possibilidades a qual o indivíduo deve ter a liberdade de escolher.
Diferente das abordagens utilitaristas, que se concentram na felicidade ou prazer
individual como melhor forma de avaliar a vantagem que alguém tem6 – quanto mais prazer
possível e a menor dor evitável – a abordagem proposta com Sen, a “abordagem das
capacidades”, busca julgar a vantagem individual na capacidade de esse indivíduo tem de
fazer coisas pelas quais valoriza. Ou seja, ela é baseada na liberdade que um indivíduo pode
ou não desfrutar de fazer determinadas escolhas.
O conceito de capacidade proposto por Sen está ligado diretamente com o aspecto de
oportunidade de liberdade, explicado anteriormente. O conceito deve ser visto com relação
as oportunidades “abrangentes” e não concentrado na “culminação”. Ou seja, aquilo que
fazemos mesmo possuindo outras oportunidades e tendo a liberdade de desistir no processo.
Há, ainda, duas características fundamentais nessa abordagem, são elas: “1) ela aponta
para um ‘foco informacional’ para julgar e comparar vantagens individuais globais e não
propõe qualquer fórmula específica sobre como essa informação pode ser usada” (SEN, 2011,
p. 266); e 2) a perspectiva dessa abordagem é interessada em pluralidade de características
diferentes de nossas vidas e preocupações. A métrica das capacidades é

superior à métrica dos recursos por que se concentra nos fins e não nos
meios, pode lidar melhor com a discriminação contra pessoas incapacitadas,
é adequadamente sensível as variações individuais em funcionamento que
tem importância para a democracia, e é apropriada para orientar a justa
prestação dos serviços públicos, sobretudo a saúde e na educação
(ANDERSON, 2010 apud SEN, 2011, p. 298).
Desta forma, esta abordagem se concentra na vida humana e na sua pluralidade de
possiblidades, e não em certos objetos que uma pessoa poderá vir a possuir. Esta abordagem
também é pertinente por demonstrar o papel fundamental das desigualdades de capacidades
nas avaliações das diferenças sociais (SEN, 2011). Ela propõe um deslocamento de foco, pois
o que lhe importa são os meios para a oportunidade de satisfazer os fins e o papel da liberdade
para realizar esses mesmos fins.
O objetivo é chamar atenção para o quanto as pessoas podem de fato realizar;
“compreender que os meios para uma vida humana satisfatória não são em si mesmo os fins

6
O problema da teoria utilitarista está na ênfase de associação entre felicidade (prazer) e renda, o que fez com que
fosse interpretada e simplificada somente como renda ou esta sendo a sua melhor proxy (principalmente pela
economia neoclássica).

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da boa vida ajuda a gerar um aumento significativo do alcance do exercício avaliativo” (SEN,
2011, p. 269).
A ideia de capacidade pode comportar a importante distinção entre passar fome por
não possuir alimento e passar fome por escolha própria – seja por motivo religioso, políticos
entre outros – visto que ela é orientada para a liberdade e as oportunidades, “ou seja, a aptidão
real das pessoas para escolher viver diferentes tipos de vida a seu alcance, em vez de confinar
a atenção apenas ao que pode ser descrito como culminação – ou consequências – da escolha”.
(SEN, 2011, p. 271).
Por essa abordagem se utilizar de objetos heterogêneos para medir as vantagens dos
indivíduos7, há um certo receio por parte de alguns teóricos em utilizá-la. Sen propõe fazer
uma análise e avaliação crítica – utilizando-se do debate público – para a escolha das
capacidades de avaliação social e, desta forma, ir além da ideia de contar para medir as
vantagens.
A necessidade de análise e avaliação crítica não é apenas uma exigência da
avaliação autocentrada por parte de indivíduos isolados, mas um indicador
da fecundidade do debate público e da argumentação pública interativa: as
avaliações sociais podem carecer de informações úteis e bons argumentos
se forem inteiramente baseadas em reflexões solitárias. A discussão pública
e a deliberação podem levar a uma melhor compreensão do papel, do
alcance e do significado de funcionamentos específicos e suas combinações
(SEN, 2011, p. 276).
Ele foca sua análise nos meios que levam as pessoas a chegar a determinados fins –
resultados abrangentes –, e não apenas nos fins – ou “resultado de culminação”. Desta forma,
é possível fazer uma real avaliação das efetivas capacidades que alguém tem de realização.
A partir disso surge o questionamento: E as mulheres? Quais são suas capacidades de
realizações a partir desta abordagem?
Ressalta-se aqui importante limitação do presente trabalho, para fazer essa discussão
(capacidades de realizações das mulheres) da maneira correta seria importante realizar
debates com essas mulheres, conversar com elas, e. g., por meio de grupos focais tralhando
com localizações específicas. Contudo, optou-se por uma discussão mais genérica.

As capacidades e o feminino

Em sua vasta obra sobre a questão da justiça, Amartya Sen é recorrente na defesa da

7
Ele não mede quantas pessoas estão desnutridas, por exemplo, mas quem está por não possuir alimento e quem
está por outros motivos que não a ausência de meios para se alimentar.

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emancipação feminina como forma de “desenvolvimento como expansão das capacidades”,


na importância do papel de agente das mulheres para uma melhora social.
A questão em torno da negação de oportunidades e capacidades às mulheres é
demonstrada a partir de vários exemplos, muitos utilizando regiões da Ásia e da África com
situações extremas de desigualdades e privação de oportunidades. No entanto, estas negações
ocorrem também de outras formas como, por exemplo, salários diferenciados para homens e
mulheres.
Dispomos de muitas evidências gerais de que frequentemente as mulheres
estão em muito pior situação que os homens, e que as meninas sofrem de
muito mais privação do que os meninos. Essas diferenças aparecem de
várias maneiras, algumas sutis, outras grosseiras, e em várias de suas formas
podem ser observadas em diversas partes do mundo, tanto em países ricos
como pobres (SEN, 1993).
De todo modo, é notável que sejam estas privações grosseiras ou sutis, a sua superação
é necessária para alcançar uma sociedade mais justa; todos os membros da sociedade devem
ter igual liberdade de capacidade para alcançar suas realizações.
Entende-se o conceito de capacidades como um aspecto da liberdade que se concentra
particularmente nas oportunidades substantivas (SEN, 2011), é possível constatar que em
várias partes do mundo essa capacidade é negada a muitas mulheres. Seja pela negação de
uma boa educação – aqui inclui-se uma educação libertadora, sem estereótipos de gênero que
diminuam a mulher frente ao homem –, de oportunidades de emprego, de meios que
conscientize e a proteja de DSTs ou de violências, de uma boa assistência pré-natal, durante
e pós parto, de creches para seus filhos, dentre tantos outros.

Estas privações são frequentes no Brasil, e além, o país é um dos que mais violenta e
mata mulheres. Até o ano 2012, o país ocupava a sétima posição do ranking de homicídios
femininos (WAISELFISZ, 2012), com uma taxa de 4,4 homicídios a cada 100 mil mulheres.
Atualmente, subiu no ranking internacional e figura a quinta posição (WAISELFISZ, 2015)
entre as nações que mais matam mulheres no mundo, com uma alarmante taxa de 4,8
homicídios a cada 100 mil mulheres. O Brasil só fica atrás de El Salvador, Colômbia,
Guatemala e da Federação Russa e chega a ter uma violência 24 vezes maior do que países
como Dinamarca e Irlanda, tidos como civilizados (WAISELFISZ, 2015).
Apesar destas taxas, no Brasil a violência contra a mulher é considerada crime, com
punição prevista em lei. O Estado brasileiro – depois de muita luta por parte dos movimentos
sociais, sobretudo o feminista – criminalizou a prática maneira específica (Lei Maria da

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Penha, principalmente, e a do feminicídio, com menor importância8) e criou um aparato


estatal para evitar e reprimir este tipo de violência. A Arábia Saudita, que é considerada um
dos países mais repressores para mulheres ao redor do mundo9, apenas no ano de 2013
aprovou uma lei que protege as mulheres em caso de violência doméstica e, somente em
2015, garantiu o direito ao voto feminino.
Apesar da violência, seja qual for o tipo, ser uma violação da liberdade de capacidades
do indivíduo e a comparação entre quem sofre mais violência não levar a lugar algum para
encontrar saídas para o problema, é importante a tentativa do governo brasileiro de erradicar
esse tipo de violência10 – junto a pressões de movimentos sociais que buscam o debate público
em torno da temática –, o que finda por tornar as oportunidades de liberdades das brasileiras
um pouco melhor do que das mulheres sauditas, por exemplo, que até pouquíssimo tempo
atrás não tinham11, literalmente, a quem recorrer caso sofressem qualquer tipo de agressão.

Ao rejeitar avaliações baseadas na utilidade, podemos ser tentados a levar


em conta os bens reais (de que usufruem mulheres e homens,
respectivamente) para avaliar as desigualdades entre eles. Deparamo-nos
aqui com o problema, já discutido, da inadequação das avaliações baseadas
em mercadorias, porque estas são apenas meios para a obtenção de bem-
estar e liberdade, e não refletem a natureza das vidas que as pessoas
envolvidas podem levar. Ademais, temos o problema das dificuldades — às
vezes intransponíveis — para obter informações sobre como os bens
pertencentes à família são divididos entre homens e mulheres, e entre
meninos e meninas (SEN, 1993).
Na Índia, país com fortes desigualdades não só econômicas, mas sociais e de gênero,
é prática comum a divisão dos bens da família serem desiguais entre seus membros. A mulher,
quase sempre, é a que recebe menos alimento, menos cuidado caso adoeça – podendo essa
doença ser consequência da sua má alimentação – e menos educação. Quando pobres, essas
dificuldades tornam-se ainda mais atenuadas no que diz respeito a sua própria vida. O
pagamento de um dote pela família da noiva a família do noivo ainda é comum na Índia, o
que leva a muitos pais em situação de pobreza não desejarem estas meninas que vistas como

8
De menor importância, entre outros fatores, porque não tem um enfoque na prevenção, preocupação esta muito
presente na redação da Lei Maria da Penha.
9
As proibições vão desde não poder dirigir, viajar sozinhas ou ficar sozinhas com homens que não são seus
familiares até praticar educação física na escola ou poder denunciar alguém caso venha a sofrer violência
doméstica – as duas últimas foram recém permitidas, em 2015 e 2013 respectivamente.
10
Apesar de, por vezes, não serem políticas de Estado, que de maneira insistente e perene trabalhe para isso. Coisas
como o Estado brasileiro realizando políticas administrativas para diminuir o machismo no aparelho estatal, entre
a burocracia etc. ou por meio de uma formação de professores emancipadora e depois uma escola emancipadora
etc. seriam muito mais notáveis e relevantes.
11
A recomendação é que os conflitos sejam resolvidos no meio familiar que, dependendo do engajamento
religioso, não vê maiores problemas em agressões que busquem “corrigir comportamentos femininos”.

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personae non gratae, recebem menos atenção quando chegam a nascer, ou nem isso
conseguem (OCKRENT; TREINER, 2011).
É na desigualdade contínua na divisão dos alimentos – e talvez (ainda mais)
nos cuidados com a saúde – que a desigualdade entre os sexos se manifesta
de modo mais flagrante e persistente nas sociedades pobres com
pronunciado viés antifeminino (SEN, 2010, p. 252).
E, mesmo que pertençam a famílias com recursos, não há nenhuma garantia de que
esses recursos serão convertidos em capacidades por elas, visto que há uma ordem patriarcal
que detém o poder familiar – incluindo aqui os recursos – nas mãos do pai, irmão ou filho,
de forma que sua liberdade de oportunidade fica à mercê de outrem.
Certamente, ser capaz de sobreviver é apenas uma capacidade entre outras
(embora sem dúvida uma capacitação básica), outras comparações podem
ser feitas com base em informações sobre saúde, morbidade, etc. A
capacidade de ler e escrever também é muito importante, e as taxas de
analfabetismo são muitas vezes escandalosamente mais altas entre as
mulheres em diversas partes do mundo. O efeito combinado de uma alta
taxa de analfabetismo em geral (a carência de uma capacidade básica nos
dois gêneros) e de uma desigualdade de gênero nessa taxa (carência maior
das mulheres com respeito a essa capacidade básica) tende a ser desastroso
para as mulheres. Aparentemente, mesmo deixando de lado muitos países
sobre os quais não dispomos de informações confiáveis, em muitos outros
a taxa de analfabetismo das mulheres é superior a 50%. Na verdade, é
superior mesmo a 70% em 26 países, a 80% em 16 e a 90% em pelo menos
5 (SEN, 1993).
Desta forma, não raro, meninas são privadas de oportunidades mesmo que pertençam
a famílias ricas. Vistas como mero objeto de troca.
Sendo a pobreza, não somente o baixo nível de renda, mas a privação de toda sorte
de oportunidade – saúde e educação, por exemplo – uma das formas de privação das
capacidades básicas, mulheres tendem a permanecer na pobreza por uma série de motivos
que não só a privação de uma renda explicam, apesar de esse fator ser importante.

O enfoque da avaliação baseada na utilidade é particularmente limitador


nesse contexto, pois as desigualdades, em especial na família, são muitas
vezes tornadas "aceitáveis" por certas noções sociais a respeito de arranjos
"normais", e isso pode afetar a percepção tanto de homens quanto de
mulheres com respeito aos níveis comparativos de bem-estar de que
desfrutam (SEN, 1993).
Quando engravidam durante a adolescência, as chances de uma menina melhorar suas
oportunidades de capacidades diminuem drasticamente. Muitas precisam largar a escola pois
não há com quem deixar a criança, a ausência de vagas em creches é outro fator amplificador
dessas privações. Quando conseguem um emprego, muitas com a educação incompleta,
ganham baixos salários e correm mais risco de serem despedidas por serem as únicas

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responsáveis12 pelos filhos quando este precisa da mesma. Isto acaba por gerar um ciclo
vicioso, onde a falta de intervenção do estado também piora a situação de privações a que essas
famílias tendem a permanecer inseridas.
Um bom exemplo de política de estado que influenciou na melhora da autonomia das
mulheres foi o programa Bolsa Família. Ele logrou êxito, principalmente, pela renda ser
recebida pelas mulheres, o que não só as libertou financeiramente de relações privadas
opressoras13, como as auxiliou no aumento de autonomia, das suas respectivas capacidades
de agência. Ao saírem da miséria, elas passaram a protagonizar a própria vida (CAPAI, 2013).
De todo modo, argumentar que apesar de todas as privações que lhes são impostas,
essas pessoas são felizes, é no mínimo se utilizar-se da má fé, afinal esta felicidade não pode
ser considerada como boa vida caso estas pessoas não tenham tido as oportunidades – muitas
não o têm – de converter suas liberdades em capacidades. De todo modo, elas conseguem ser
felizes com aquilo que lhes foi permitido ser/ter, mas isso não significa o que são/têm pode
ser considerado uma vida justa. É apenas uma maneira que muitos encontram de viver em
paz com as persistentes privações pelas quais passam (SEN, 2011).

O cálculo utilitarista baseado na felicidade ou satisfação dos desejos pode


ser profundamente injusto com aqueles que passam privações de forma
persistente, uma vez que nossa disposição mental e nossos desejos tendem
a se ajustar as circunstâncias, sobretudo para tornar a vida suportável em
situação adversas. É através da “adaptação” a uma situação desesperadora
que avida das tradicionalmente menos favorecidos se torna uma pouco
suportável, como acontece com as minorias oprimidas em comunidades
intolerantes, os sofridos trabalhadores de regimes industriais exploradores,
os precários arrendatários que vivem em um mundo de incertezas ou as
desanimadas donas de casa em culturas profundamente sexistas. As pessoas
desesperadamente necessitadas podem carecer da coragem para desejar
qualquer mudança radical e, normalmente, tendem a ajustar seus desejos e
expectativas ao pouco que veem como viável. Elas treinam para tirar prazer
das pequenas misericórdias. (...) Desconsiderar a intensidade de sua
desvantagem apenas por causa de sua capacidade de experimentar um pouco
de alegria em suas vidas não é um bom caminho para alcançar uma
compreensão adequada das exigências da justiça social (SEN, 2011, pp.
317-318).
Outra forma de violação da liberdade de capacidades femininas, quiçá uma das mais
cruéis por seus danos não apenas físicos, mas psicológicos; o estupro é um crime de afirmação
de poder, na maioria das vezes praticado pelo homem contra a mulher.

12
Dados do Conselho Nacional de Justiça revelam que 5,5 milhões de crianças não possuem o nome do pai no
registro. O abandono paterno é prática comum no Brasil, deixando toda a responsabilidade com a criança nas mãos
da mãe (ESTADÃO, 2013).
13
Refere-se, em específico, a uma pesquisa realizada no interior do estado do Piauí, sobre as mudanças ocorridas
na primeira cidade em que o Bolsa Família foi implementado.

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Não há o entendimento da prática da liberdade sexual feminina como direito corrente,


em especial no Brasil onde a socialização feminina é notadamente diferente da masculina,
pois ambas são feitas com bases fincadas no machismo. A distinção entre formas que homens
e mulheres devem se comportar é clara, principalmente quando se busca justificar um estupro
com a forma como a vítima estava vestida, onde estava ou com quem estava. Em raríssimas
exceções o questionamento inicial em estupros recai sobre quem era o agressor e por que ele
fez isso.
A sociedade brasileira está evoluindo e uma parcela cada vez maior da sua população
vê com maus olhos crimes contra mulheres, principalmente a violência doméstica, mas essa
mesma sociedade ainda julga e crê que existe punição para mulheres que vivem sua
sexualidade de forma livre.
A mesma sociedade que rechaça a violência, a apoia caso a “mulher dê motivo”. É
claro que nós estamos a caminho da construção de uma sociedade melhor, mas para que esse
processo seja benéfico para todos, o debate em torno de tais questões faz-se necessário. É
relevante que haja um debate aberto sobre todas as questões que dizem respeito a sociedade,
incluindo-se aqui a questão de desigualdade entre homens e mulher, e também:
as questões de imigração, intolerância racial, carência de direitos a
assistência médica ou posição das mulheres na sociedade, sem desencadear
o alegado paternalismo. Existe muita argumentação que pode – e, em muitas
sociedades consegue – desafiar a inquestionada hegemonia dos
“sentimentos” e das crenças não examinadas sobre todo o resto (SEN, 2011,
p. 310).
A partir deste debate, o Estado deve garantir aquilo que foi – e continua a ser, através
de contínuos debates – acordado, junto aos meios de levar uma vida boa, proporcionando
saúde e educação universal e gratuita e, não menos importante, uma divisão justa dos recursos
entre os indivíduos da sociedade.

A oferta a todos da oportunidade de levar uma vida minimamente decente


não necessita ser unida a insistência de que todos façam uso de todas as
oportunidades que o Estado oferece. Por exemplo, a garantia a todos do
direito de dispor de uma quantidade adequada de alimento não necessita ser
unida a uma proibição estatal do jejum (SEN, 2011, p. 322).
Tais práticas podem contribuir para diminuir de forma acentuada a privação pela qual
muitas mulheres passam ao longo de suas vidas. Seja aquilo que deixam de fazer por temerem
pela violação da sua própria liberdade ou aquilo que nunca nem tentaram ou puderam tentar
por que a liberdade de oportunidades nunca lhes foi total, ou por que suas capacidades sempre
foram limitadas por fatores outros.
Há provas abundantes de que, sempre que as disposições sociais deferem da prática

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tradicional da propriedade masculina, as mulheres conseguem tomar iniciativas nos negócios


e na economia com grande êxito (SEN, 2005, p. 233). Desta maneira, é notável que a
sociedade como um todo só tema ganhar com a diminuição das desigualdades e das privações
pelas quais as mulheres passam, sobretudo pobres e negras no Brasil.
Está claro que o resultado da prática feminina não é meramente a geração
de renda para as mulheres, mas também a provisão dos benefícios sociais
decorrentes de status mais elevados e da independência feminina (incluindo
a redução das taxas de mortalidade e fecundidade). Assim, a participação
econômica das mulheres é tanto uma recompensa em si (com a redução
associada do viés contra o sexo feminino na tomada de decisões familiares)
como uma grande influência para a mudança social em geral (SEN, 2005, p
233).

Conclusão

Na atualidade, as formas de violência que a maioria das mulheres ainda estão sujeitas
é apenas uma das formas de negação da liberdade das mesmas. Suas capacidades de
realizações são drasticamente reduzidas ao longo de suas vidas, seja pela falta de alimento –
que as tornam mais frágeis e suscetíveis a doenças que podem, inclusive, matá-las –, pela
ausência de preocupação com a sua educação ou pelo não entendimento das mesmas como
indivíduos possuidoras de poder de agência sobre as próprias vidas.

A partir disto, é possível observar que a abordagem das capacidades possui um papel
central no reconhecimento que não só a renda14 é importante para entender as privações pelas
quais muitas pessoas passam. Nascer numa família possuidoras de renda e recursos não é
garantia alguma que a mulher possuíra alguma capacidade de agência sobre a própria vida,
ou conseguirá transformar este recurso – que ela tem direito, ou pelo menos deveria ter – em
capacidades. Muitas, mesmo possuidoras de recursos, não podem também converter esses
recursos em capacidades de liberdade como, por exemplo, ir e vir a qualquer horário sem
correr o risco de sofrerem algum tipo de violação sobre seus corpos, suas liberdades.
De modo geral, a perspectiva das efetivações e capacidade proporciona um
enfoque plausível para o exame das desigualdades de gênero. Ele não sofre
do subjetivismo que torna a avaliação baseada na utilidade particularmente
obtusa no tratamento de desigualdades consolidadas. Tampouco sofre da
superconcentração nos meios, tal como na avaliação baseada em bens
(SEN, 1993).
Conclui-se assim que a liberdade que uma pessoa tem sobre suas escolhas é

14
Reconhece-se que a renda tem um papel importante, principal na sociedade a qual todos estamos inseridos.
O capitalismo só reconhece o valor do indivíduo a partir daquilo que ele produz e que pode ser convertido em
dinheiro.

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fundamental para evitar abusos das mais variadas formas. No caso feminino, a renda possui
um papel importante – o que Sen em nenhum momento negou – para que a mulher obtenha
mais autonomia dentro da relação familiar, visto que o trabalho doméstico, por não poder ser
convertido em renda, não é valorizado.
É claro que uma educação mais igualitária entre os gêneros, torna o entendimento que
todos devem ser tratados com respeito e possuírem as condições mínimas de oportunidades
para que suas liberdades possam ser convertidas em capacidades, naquilo que valorizam
realizar.
Esta educação mais igualitária levaria, inclusive, ao entendimento da sociedade como
um todo da mulher enquanto sujeito possuidor de agência, dona de si, consequentemente, ao
entendimento que mulheres devem ser respeitas e não terem suas liberdades violadas, como
qualquer ser humano, independentemente de qualquer circunstância.
A capacidade de uma pessoa pode ser caracterizada como liberdade para o
bem-estar (refletindo a liberdade para promover o próprio bem-estar) e
como liberdade da agencia (refletindo a liberdade para promover quaisquer
objetivos e valores que uma pessoa tem razão para promover.) (SEN, 2011,
p. 323).
A capacidade de realizações do feminino está intimamente ligada a liberdade que elas
possuem para ter o poder de agência sobre as próprias vidas, e isto só será alcançado fazendo
com que elas participem de forma mais ativa na sociedade, mas também através do
reconhecimento da importância das mesmas para o desenvolvimento desta sociedade.

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Referências
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FONSECA, A. D.; MADUREIRA, V. S. F. A Globalização e o Segundo Sexo. Rev Bras


Enferm Brasília (DF) 2003 maio/jun. pp.: 306-309. Disponível
em:
<http://www.scielo.br/pdf/reben/v56n3/a18v56n3.pdf>. Acesso em: abril 2018.

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RJ: Difee, 2011. 826 p.

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado e violência. 2 ed. São Paulo: Expressão popular,


2015.

SEN, A. More than 100 million women are missing. 1990. Disponível
em:
<http://www.nybooks.com/articles/1990/12/20/more-than-100-million-women-are-
missing/>. Acesso em: abril 2018.
. O desenvolvimento como expansão das capacidades. Lua Nova São Paulo apr.
1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64451993000100016>. Acesso em: abril 2018.
. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso. 2010.
416 p.

. Uma ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 492 p.

WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2012: Os novos padrões da violência homicida no


Brasil. São Paulo, Instituto Sangari, 2011.
. Mapa da violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília-DF,
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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p747 761


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Gênero e políticas públicas: enfrentando a violência doméstica contra as mulheres

Claudia Bragança Pedro1


Rafael Bozzo Ferrareze2

Resumo: Este trabalho centra-se no enfrentamento a violência contra as mulheres


problematizando as discussões sobre gênero/mulheres em meio as políticas públicas vistas em
nosso contexto social atual. O mesmo apresenta como objetivo investigar os limites e
possibilidades na atualidade para a consolidação de políticas públicas para mulheres no Brasil,
sobretudo no que tange a coibição da violência doméstica contra mulheres. Este estudo teve
como método a revisão bibliográfica e documental das políticas para mulheres no século XXI
no contexto brasileiro, de modo a compreender a cobertura do fenômeno da naturalização da
violência doméstica contra as mulheres, as possiblidades de superação e os desafios atuais.
Através deste trabalho pudemos concluir portanto, que apesar do grande avanço que estas
políticas trouxeram, ainda carregam algumas contradições que merecem ser observadas. Estas
políticas mostram o protagonismo social das mulheres, contudo, ainda são políticas limitadas
ao passo que muitas vezes não apresentam estrutura adequada para sua operacionalização e a
efetiva consolidação dos desses direitos. Faz necessário observar ainda que, apesar da
importância que tais políticas presentes na atualidade tem, não conseguem romper com o
preconceito dificilmente identificado no cotidiano, que é inerente aos moldes burguês de
família, que naturalizam da violência, dando a ela a condição de violência estrutural.
Palavras-chaves: Gênero; Violência doméstica; Mulheres; Políticas Públicas.

1
Universidade Federal do Paraná (UFPR); Especialista em Gestão Social, Redes e Defesa de direitos
(UNOPAR); Mestranda pelo Programa de Educação (UFPR); Assistente Social do Núcleo de Apoio
Psicopedagógico e Assistência Estudantil (UTFPR); e-mail: claudiabpedro@gmail.com
2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Mestre em Desenvolvimento Comunitário
(UNICENTRO); e-mail: rafaelferrareze@hotmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p800 800


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Introdução.
A violência doméstica contra as mulheres é um fenômeno histórico, cultural e
estrutural. Trata-se não somente de uma condição de dominação do masculino pelo feminino,
mas de uma condição de exploração, legitimado pelos valores do sistema capitalista.
É uma prática difundida no cotidiano, que se mostra de forma complexa e muitas
vezes difícil de ser identificada. Não se trata de uma questão pontual, mas de uma violência
estrutural. Assim a violência perpassa vários períodos históricos e nações mundiais, e não
escolhe classe social, credo ou etnia e configura um quadro alarmante de uma diversidade de
mulheres que sofrem a violência doméstica no mundo todo, ainda que existam normativas
jurídicas legais que as protejam3.
O presente trabalho tem como objetivo investigar os limites e possibilidades na
atualidade para a consolidação de políticas públicas para mulheres no Brasil, sobretudo no
que tange a coibição da violência doméstica contra mulheres, utilizando como metodologia a
revisão bibliográfica e documental, as quais faz saber que:
A pesquisa bibliográfica para GIL (2008, pg. 50):

[...] reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de


fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Esta
vantagem se torna particularmente importante quando o problema de pesquisa
requer dados muito dispersos pelo espaço.

E a pesquisa documental, consiste em “materiais que não receberam ainda um


tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da
pesquisa” (GIL, 2008).

Apontamentos sobre a violência doméstica contra as mulheres.

A violência é um fenômeno que se apresenta de forma complexa, diversificada,


concreta e material. Não é criada abstratamente pela razão humana, mas deve ser
compreendida, descrita e analisada pelo pensamento humano (SILVA, 2009). A razão não é
absoluta e não constrói isoladamente a realidade, mas se reconstrói com o auxílio do
pensamento crítico. As pessoas não deixam de ser sujeitos históricos construtoras de suas

3
Constituição Federal de 1988; Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

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próprias vidas, mas fazem história limitados pelas condições de suas épocas e pelos desafios
concretos que encontram em uma determinada sociedade (Idem).
A violência supõe o uso da força para alcançar determinados objetivos. São diferentes
formas de violência com maior ou menor intensidade. Trata-se da ação de oprimir algo ou
alguém impondo a lógica dos que violentam aos violentados. De acordo com (SILVA, 2009,
s/p):

Há, portanto, um grau de consciência dos sujeitos, dos grupos e das classes sociais
que praticam a violência (mesmo que não a assumam como tal), ainda que possamos
discutir a diversidade e os níveis de consciência dos atores que fazem parte do
processo violento.

Silva (2009, s/p), afirma que a violência se materializa de forma estrutural, pois,
envolve “ao mesmo tempo, a base econômica por onde organiza o modelo societário (a
estrutura) e sua sustentação ideológica (a infraestrutura)”. Não se trata, contudo, de uma
relação mecânica entre a estrutura e a infraestrutura (política, cultura, entre outras); Mas é
necessário frisar que para a sobrevivência humana, primeiramente o homem precisa satisfazer
suas necessidades básicas (comer, beber, vestir, etc.). E ainda, que:

[...] a questão social possui uma historicidade marcada por determinado modelo
societário que busca a máxima mercantilização dos seres humanos [...]. A economia
não pode ser desconsiderada nesse contexto, o que não significaria atribuir-lhe um
papel único e mecânico ao influir na vida do ser social (SILVA, 2009, s/p).

Desta forma, embora a violência estrutural seja cotidianamente observada pela grande
maioria da população, não é apreendida e reconhecida como tal. Produzem e se reproduzem
na vida cotidiana, caracterizando-se por uma violência estrutural, mas quase sempre não é
considerado violência. Assim como a violência, a relação de gênero faz parte de construções
históricas e sociais, que “se refere ao modo como as características sexuais são
compreendidas e representadas ou, então, como são trazidas para a prática social e tornadas
parte do processo histórico” (SILVEIRA; MEDRADO, p.120 e 121, 2009).
A violência contra as mulheres4 se insere no contexto da violência permeado por
valores da ordem patriarcal de gênero. Entende-se que a existência da relação patriarcal incide
não somente na hierarquização entre os sexos, mas também na contradição de seus interesses,

4
Ressalta-se a necessidade de utilizar-se do termo “Mulheres” no plural, para considerar o amplo arcabouço de
diversidade cultural, geracional, classe, etnia, região, dentre outros diferentes aspectos existentes entre as
mulheres.

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isto é, na manutenção do status quo para o homem e a busca pela igualdade entre os sexos,
pela mulher, pois, não se trata apenas de um sistema de dominação, mas é, de forma
imbricada, um sistema de exploração

[...] o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela


ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração.
Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos
campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno
econômico (SAFFIOTI, 1988, pg. 50).

O sistema de exploração/dominação antecede o capitalismo. Porém, ele se agrava com


a Revolução Industrial no século XIX, onde uma maior abertura para as mulheres no mercado
de trabalho que se deu para atender a demanda da mão de obra dos grandes capitalistas. Nesse
período, mulheres e crianças eram cruelmente exploradas sendo submetidas a longas e
precárias jornadas de trabalho. Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, ela passa a
ser duplamente, (ou às vezes até triplamente) explorada, dentro e fora do lar. Agora a mulher
tem a incumbência de cuidar da esfera doméstica onde a responsabilidade de cuidar do lar e a
criação de seus filhos são unicamente uma responsabilidade feminina. A ideia vista neste
período, era de que seu salário, que geralmente era menor do que o de seu companheiro,
servia apenas como um complemento da renda doméstica. As tarefas domésticas não são
divididas e compartilhadas e ambos perdem com isso.
Nesse sentido, é do interesse do capitalismo que se continuem mantendo as mais
diversas formas de discriminação e dominação. Enquanto essas categorias forem
marginalizadas, serão justificáveis menores salários e as condições de exploração por essas
categorias.

Obviamente, a classe patronal tem o maior interesse na existência de categorias


sociais discriminadas: mulher, negros, homossexuais. Quanto mais discriminada
uma categoria social, tanto mais facilmente ela se sujeitará a trabalhar em más
condições e por baixos salários (SAFFIOTI, 1988, pg. 23).

O patriarcado tem seu marco histórico datado desde o fim do século XVII. A partir
deste período de ascensão da família burguesa, surgem representações sociais hierarquizadas
definindo papéis específicos para homens e para mulheres, e de modo desigual, pressupõe a
superioridade do primeiro. Assim, o homem reina na esfera pública, é a autoridade na tomada
de decisões e a sociedade exige como seus atributos a agressividade, virilidade, austeridade e
comportamentos no controle do raciocínio e da razão (SCHAIBER, 2005); Enquanto “(...) a

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mulher “reina” no lar dentro do privado da casa, delibera sobre as questões imediatas dos
filhos, mas é o pai quem comanda em última instância” (Almeida, 1987, p. 61).
A “violência contra as mulheres, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica,
não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero que privilegia o
masculino (SAFFIOTI, 1999, s/p)”. Ressalta-se ainda que a violência doméstica contra as
mulheres, além de apresentar determinantes estruturais, é considerada também de natureza
interpessoal, faz parte de um contexto de relacionamento homem/ mulher ou adulto/criança
que foram historicamente tratados de modo desigual nas relações hierárquicas de poder da
família (SAFFIOTI, 1999).
Schaiber (2005, p. 75) relata que a família é uma instituição que tem importância
reconhecida por todas as sociedades, porém,

[...] não se constitui de um grupo sempre harmonioso e sereno, mas como uma
unidade composta por indivíduos de sexos, idades e posições diversificadas que
vivenciaram um constante jogo de poder.

Para Foucault (1979, pg. 75), o poder é algo dinâmico, inserido em espaços de
relações de poder, ele se manifesta como algo “enigmático, ao mesmo tempo visível e
invisível, presente e escondido, investido por toda parte”. Não há, portanto, um poder estático,
mas sim relações de poder inseridas nas relações humanas.

Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no


entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros
do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (Idem,
pg. 75 e 76, 1979).

[...] nas relações humanas, quaisquer que sejam elas - quer se trate de comunicar
verbalmente, como o fazemos agora, ou se trate de relações amorosas, institucionais
ou econômicas -, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um
procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em
diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, a,
podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas. (Ibidem,1984, pg. 276).

Marinho (2003) valendo-se de Foucault afirma que, ainda que as instituições fazem
uso de sua grande influência para manter uma falsa ideia de poder, estático e imutável, de tal
modo que poderiam manter seu status quo, transformando-se em algo indestrutível. O autor
não exclui a necessidade das instituições para impor normas necessárias para o funcionamento
da sociedade, entretanto, o mesmo afirma que existe um exagero nas normas e valores ditados
para controlar as relações entre os indivíduos.

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[...] Do lado onde o poder é sofrido, se tende igualmente e o ‘subjetivisar’,


determinando o ponto onde se faz a aceitação da proibição, o ponto onde se diz
‘sim’ ou ‘não’ ao poder; e assim, para dar conta do exercício da soberania se supõe
seja a renúncia aos direitos naturais ou do contrato social ou ao amor do mestre
(MARINHO apud FOUCAULT, 2003, pg. 423)

Esta subjetivação apontada por Foucault na citação acima, ocorre nas sociedades
patriarcais, nas quais os direitos das mulheres são inferiores aos dos homens, e esta deve
renunciar seus direitos naturais em detrimento da superioridade masculina. Ricotta (1999, p.
29) alerta discorrendo que o ambiente doméstico é o local onde os agressores acreditam ter
maior poder, espaço onde tem domínio. “[...] a mulher, a filha, o filho [...] e até os animais são
as maiores vítimas, exatamente porque fazem parte do espaço onde os agressores acreditam
ser do seu domínio e reinado”.
De acordo com o secretário geral da Organização das Nações Unidas, cerca de 70%
das mulheres já sofreram algum tipo de violência ao longo de sua vida. Afirma ainda, que “As
mulheres de 15 a 44 anos correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica do que de
câncer, acidentes de carro, guerra e malária, de acordo com dados do Banco Mundial” (BAN
KI-MOON, 2013). As Organizações da Nações Unidas destaca ainda, que várias pesquisas
mundiais apontam que metade das mulheres mortas por homicídio são mortas pelo marido ou
parceiro, atual ou anterior.
Ao longo da história, sobretudo com a ascensão mundial do movimento feminista na
década de 60, trouxeram consigo algumas conquistas que foram concretizadas no âmbito de
políticas públicas para o enfrentamento desta questão. No Brasil, a eclosão dos movimentos
sociais ocorreu principalmente a partir da década de 1980. Neste momento histórico, o
movimento feminista também deixa sua marca através de lutas enfrentamento, que se
cristaliza mais tarde em políticas públicas e direitos garantidos pelo Estado. Contudo, ainda
que haja na atualidade políticas públicas para mulheres, que visam coibir a violência
doméstica e as práticas discriminatórias de gênero, estas não são suficientes para seu
enfrentamento, que se consolida na lógica complexa da violência estrutural.
No entanto, inseridos neste modo de produção, a luta pela ampliação e consolidação
de políticas públicas deve ser usadas como mecanismo de defesa das classes oprimidas,
portanto, representa uma vitória não só das mulheres, mas como também dos movimentos
sociais, e da classe trabalhadora como um todo.

Movimento Feminista e Políticas Públicas para as mulheres.

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Foucault (1979, pg. 75 e 76) aponta que o poder só é possível se considerar a condição
existencial das partes, ao passo que o submisso, desconhece suas condições de liberdade
(consciente possibilidade de tomar decisões) e assim legitima o poder que lhe é atribuído.
Quando se tem clareza da consciência dos níveis de poder, torna-se possível a luta contra as
injustiças inseridas em certas relações de poder. Assim as relações de poder, portanto, são
passíveis de serem invertidas, derrubadas, quando os sujeitos submetidos ao poder de outros
sujeitos, não aceitam mais os valores e as verdades que lhes foram impostas, de tal modo que
problematizam e tornam pública as injustiças que lhe são cometidas:

E se designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é


porque ninguém ainda tinha consciência disto, mas porque falar a esse respeito –
forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem o fez, designar o alvo
– é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o
poder (FOUCAULT, 1979, pg. 75 e 76).

Como exemplo histórico disso, podemos citar a cristalização das políticas sociais,
resultado de lutas do movimento feminista, momento em que as mulheres vão a cena pública
para contestar os valores machistas e vão busca pela igualdade de direitos.
Sobre o surgimento das políticas sociais Behring (2006, pg. 64) afirma que este movimento:

[...] foi gradual e diferenciado entre países, dependendo dos movimentos de


organização e pressão da classe trabalhadora, e composições de força no âmbito do
Estado. Os autores são unânimes em situar o final do século XIX como o período em
que o Estado capitalista passa a assumir e realizar ações sociais de forma mais
ampla, planejada, sistematizada e com caráter de obrigatoriedade (BEHRING, 2006,
pg. 64).

A autora afirma ainda, que no Brasil, o surgimento de políticas sociais é composto de


características peculiares que merecem ser analisadas de acordo com as “heranças da
colonização trazendo desde sua formação uma forte subordinação e dependência dos países
capitalistas centrais” (BEHRING, 2006, pg. 72).
O contexto de lutas do movimento feminista tem como marcos iniciais no final da
década de 60, onde eclodiam grandes discussões da temática nos EUA e na Europa. No
contexto nacional, segundo Goldenberg (2001, s/p), o movimento feminista apresenta
elementos peculiares que merecem ser considerados. Elementos estes que podem ser
explicados pela formação histórica e a dependência do Brasil por blocos hegemônicos do qual
esse país foi subordinado desde a colonização. Para esta autora, os colonizadores trouxeram
consigo, o modelo patriarcal de família e a Igreja Católica como força política e instrumento

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de controle social, tendo como resultado, o patriarcalismo e conservadorismo da sociedade


brasileira.
Durante a década de 60, surgiram as primeiras organizações femininas a se organizar
no Brasil, que, ainda mantinham traços conservadores podendo ser observados na maior parte
dos primeiros estatutos que defendiam apenas o espaço no mercado de trabalho e a igualdade
entre os sexos, repudiando a discussão a respeito da liberdade sexual, num contexto histórico
em que se primava pela ordem pública. No contexto sócio-político que se instaura com o
golpe de 64, registra-se um período em que criou uma barreira significativa na causa das
mulheres, que se exprimia como dos movimentos sociais reprimidos pela ditadura. Registra-
se, contudo, o protagonismo de grupos de mulheres em resistência à ditadura através de
passeatas, manifestações públicas, organizações clandestinas. Essa conjuntura política
possibilitava que muitas mulheres refletissem melhor sua postura social.
No contexto sócio-político que se instaura com o golpe de 64, registra-se um período
em que criou uma barreira significativa na causa das mulheres, que se exprimia como dos
movimentos sociais reprimidos pela ditadura. Registra-se, contudo, o protagonismo de grupos
de mulheres em resistência à ditadura através de passeatas, manifestações públicas,
organizações clandestinas. Essa conjuntura política possibilitava que muitas mulheres
refletissem melhor sua postura social.
Em 1972, surgia em São Paulo o primeiro grupo organizado de feministas pós-
Beauvoir5 sendo dirigido por Célia Sampaio, Walnice7Nogueira Galvão, Betty Mindlin,
Maria Malta Campos, Maria Oscila Silva Dias e, mais tarde, Marta Suplicy (CHRISTO, 2001,
s/p). Esse período representa um marco de uma nova era para o movimento feminista no
Brasil. Segundo GOLDENBERG (2001, s/p):

Os anos 70 marcaram uma reviravolta no movimento feminista, que passou a


colocar como um dos eixos da sua luta a questão da relação homem-mulher e a
necessidade de reformulação dos padrões sexuais vigentes.

A partir de então, ocorreram diversos fóruns de discussões em âmbito internacional,


que, viabilizaram uma maior abertura do tema e seus processos de redemocratização. Nesta

5
Simone de Beauvoir, através de sua obra “O segundo sexo”, inaugurou no século XX uma nova discussão
sobre as relações de gênero, causando um impacto global em um momento onde ainda não havia sido cunhado o
termo “feminismo”. O trabalho desta consagrada autora, traz como tese, de que a figura feminina e as posturas
que lhes são atribuídas constituem construções históricas e sociais. Sua obra foi traduzida em mais de 30 idiomas
e foi incluída no Índex dos livros proibidos pela Igreja Católica, pois considerava que seu conteúdo era um
atentado para família. Seu legado foi trazer à tona, discussões ainda hoje considerados tabu, que submetem a
sexualidade feminina ao jugo masculino.

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perspectiva, a partir 1975, registra-se um salto de qualidade: a reflexão a partir das categorias
gêneros. Porém, somente dez anos depois, é que a Comissão de direitos Humanos da ONU
(Organização das Nações Unidas) na Reunião de Viena em 1993, exigiu que fossem inclusas
medidas para coibir a violência de gênero.

Políticas Públicas para mulheres no Brasil: Avanços e limites.

Com a Constituição de 1988, algumas conquistas foram alcançadas no âmbito das


lutas do movimento feminista como a formalização da equidade de gênero prevista em lei,
que nos termos da constituição dispõe “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações”. A partir de então a mulher passa a ser igual ao homem perante a lei, porém este
reconhecimento legal não foi o suficiente para que este fato se concretizasse de forma eficaz
na prática. Tal medida ainda era muito pouco para alterar as pesquisas onde o Brasil, até
então, ocupava a 51ª posição dentre 56 países pesquisados no Fórum Econômico de Davos,
sobre países que aplicam política pública de equidade de gênero.
A primeira Delegacia da Mulher foi criada 1985. A ideia era propiciar às vítimas de
violência de gênero em geral e, em especial, da violência doméstica, um tratamento
diferenciado, humanizado, que exige capacitação das policiais que possibilite que o trabalho
destas profissionais fosse sensível à ótica das relações de gênero (SAFFIOTI, 1999).
Sendo o Brasil signatário de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos,
como a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher – Convenção Belém do Pará” e da ONU ocorrida em 1994, o poder estatal vê-se
obrigado a implantar políticas públicas para este segmento no prazo de 10 anos. Contudo,
conforme pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2001, 43% das mulheres
ainda afirmavam terem sofrido ou sofrem algum tipo de violência, portanto, a criação de
mecanismos de proteção e garantia de direitos humanos consolidados através de políticas
públicas de enfrentamento da violência doméstica contra mulheres, se faz indispensável.
A criação da Lei Maria da Penha (11.240/06), possibilitou o esclarecimento perante a
definição do que seria violência então se entendia por violência, apenas agressões que
deixassem marcas visíveis como hematomas ou feridas. Este lei avança significativamente ao
discorrer sobre as diversas formas da violência: caráter físico, psicológico, sexual, moral ou
patrimonial. É, portanto, uma lei na qual a compreensão da violência refere-se a tudo aquilo
que fere a integridade da pessoa.

Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

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I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência
patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração,
destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer
conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Contudo, mesmo após a criação da lei Maria da Penha, foi registrado o aumento dos
casos de violência contra as mulheres, mostrando que apenas a criação desta política não é o
suficiente para acabar com a violência. De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de
Família (2013), nos primeiros anos após a criação da Lei Maria da Penha (2006) houve um
decréscimo nas taxas de homicídio. Em contrapartida, após este período dos anos iniciais da
criação da Lei Maria da Penha, os índices de violência contra as mulheres tem aumentado nos
últimos anos conforme aponta o mapa da violência de 2012 (JUSBRASIL, s/p, 2013):

Segundo o relatório, o Espírito Santo apresenta a taxa de homicídio mais alta do


país, com 9,8 homicídios a cada 100 mil mulheres. No Piauí, foi registrada a menor
taxa, com 2,5 homicídios para cada 100 mil mulheres [...].

Conforme o Mapa da Violência 2012, e a Pesquisa Nacional por Amostra de


Domicílios (Pnad/IBGE), ambos apresentados no relatório, mesmo após o advento
da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é significativamente expressiva
no Brasil. Os registros de homicídio e agressão têm aumentado nos últimos anos.

Desta forma, a violência doméstica contra as mulheres ainda constitui uma das
principais preocupações do Estado brasileiro que ocupa o sétimo lugar no ranking mundial
dos países com mais crimes praticados contra as mulheres. Este contexto coloca como
necessário o constante monitoramento da aplicabilidade e o alcance dessas políticas. Ainda de
acordo com a pesquisa (JUSBRASIL, s/p, 2013) a falta de falta de estrutura é um dos motivos
apontados para a ineficiência e o agravamento deste quadro:

Desde o advento da Lei Maria da Penha, em 2006, até o primeiro semestre de 2012,
foram criadas 6612 varas ou juizados exclusivos para o processamento e julgamento
das ações decorrentes da prática de violências contra as mulheres. O estudo analisou

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apenas os juizados de competência exclusiva e concluiu que é preciso dobrar o


número dos referidos juizados para atender à demanda atual no país. Atualmente,
são 66 unidades, mas o ideal seriam 120. Também é preciso tornar o atendimento
mais proporcional nas cinco regiões do país.

Além da falta de estrutura adequada, para a efetivação dos direitos conquistados, e a


erradicação da discriminação de gênero bem como da violência doméstica contra as mulheres,
é imprescindível que profissionais que operacionalizam os serviços nos atendimentos ao
público, se comprometam em valorizar a defesa dos direitos humanos combatendo toda e
qualquer forma de preconceito. De acordo com Safiotti (1999, s/p) a execução dos serviços
públicos de combate à violência doméstica contra as mulheres, requer profissionais
capacitados e sensibilizados na ótica do entendimento de relações de gênero. No entanto, a
falta de qualificação e preparo destes profissionais é recorrente nas várias instâncias das redes
que operacionalizam estes serviços.

O problema reside no conhecimento das relações de gênero, que não é detido por
nenhuma categoria ocupacional. Profissionais da saúde, da educação, da
magistratura, do ministério público, etc. necessitam igualmente, e com urgência,
desta qualificação (Safiotti, 199, s/p).

A falta de qualificação destes profissionais trata-se de uma questão muito grave, pois
pode ter como consequência a violência institucional, que se trata da violência praticada
através da ação-omissão de profissionais que deveriam garantir o atendimento humanizado.
Muitas vezes, para procurar o apoio da polícia, as vítimas dependem do apoio de parentes,
amigos, vizinhos e médicos, mas nem sempre as pessoas ou profissionais prestam o
atendimento necessário.
Identificar e combater a violência se mostra um grande desafio para os profissionais
que executam políticas públicas para este segmento, pois, é um fenômeno multifacetado e
complexo, legitimado pelos valores burgueses, e naturalizado na esfera cotidiana, tomando a
forma de violência estrutural. É cabal que estes profissionais considerem a violência não
como um fenômeno pontual e localizado, e que exige o comprometimento de investigar e
reconstruir o mais fielmente possível da totalidade de um movimento de uma realidade
complexa e contraditória que não é abstratamente criada (SILVA, 2099, s/p).
Desse modo, além dos desafios para a consolidação de políticas públicas para
mulheres e no combate a violência doméstica já discorridos acima, o contexto social e político
atual brasileiro traz à tona um projeto conservador que se revela no retrocesso dos direitos que
foram conquistados através da luta do movimento feminista por muitos anos. Como exemplo,

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temos a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos


Direitos Humanos, uma das primeiras ações do presidente Michel Temer após assumir o
cargo em 2016, que coloca as questões pertinentes às mulheres, igualdade racial e direitos
humanos para o Ministério da Justiça e Cidadania, o que de acordo com Pontes e Damasceno
(2017), os movimentos sociais apontam como um retrocesso por representar o fim de um
Ministério fundamental para a visibilidade de pautas e garantias de direitos pertinentes de
minorias.
Para Pontes e Damasceno (2017):

(...) o governo Temer vem desenvolvendo frentes, organicamente vinculadas, que


bem encarnam elementos do seu projeto conservador: privatização e cortes dos
chamados gastos sociais com a destituição de direitos e desmonte de políticas
sociais. Pode-se inferir que a luta por políticas públicas, sua implementação e o
controle social dessas políticas podem ser também lócus de crítica, reação e
resistência ao capitalismo, ao patriarcado e ao racismo.

Além da extinção do MMIRDH, entre os anos de 2016 e 2017, houve a redução de


61% de recursos destinados ao atendimento das mulheres em situação de violência e a
redução de R$ 11,5 milhões para R$ 5,3 milhões o orçamento destinado às políticas de
incentivo à autonomia das mulheres. Assim, sob a mesma ótica conservadora, outros projetos
da agenda neoliberal entram em pauta no cenário político brasileiro representando mais
retrocessos nas políticas públicas para mulheres da atualidade tais como; a PEC/1816 de 2015
que criminaliza o aborto até mesmo nos casos atualmente permitidos por lei, como em
situações de estupro, sem considerar os altos índices desse fenômeno ainda na atualidade, que
apontam que a cada duas horas e meia uma mulher é vítima de estupro no país (CRESS/PR,
2017), a Reforma Trabalhista aprovada em julho de 2017 que entre outros pontos, permite o
trabalho de mulheres gestantes em locais insalubres, além de outras ações que colocam em
risco os direitos já conquistados.
Essas medidas requerem a atenção e a resistência das/dos profissionais e movimentos
sociais que lidam diariamente com diariamente no combate a violência, além do engajamento
de toda sociedade para romper com a violência muitas vezes naturalizada no cotidiano e na
luta pela qualidade dos serviços públicos prestados e contra o desmonte das políticas públicas
para mulheres da atualidade.

Considerações finais.

6
O projeto de Emenda Constitucional nº 181/2015 pretende criminalizar o aborto até em casos de estupro, risco
de morte para a gestante de fetos anencéfalos, onde há prerrogativa de aborto legal no Brasil desde 1940.

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As recentes políticas públicas para as mulheres criadas século XXI representam


grandes conquistas de mulheres que tomaram a esfera pública na luta pelo rompimento da
discriminação e violência, exigindo do Estado à proteção e garantias de direitos humanos,
sociais e fundamentais.
Desse modo, faz necessário a resistência de toda sociedade frente ao projeto
conservador que se instala paulatinamente justificado por uma crise política e financeira, o
que inclui o desmonte das políticas públicas para mulheres e na luta contra a violência
doméstica através do corte com gastos sociais. É indispensável que movimento feminista se
fortaleça e amplie seu protagonismo ocupando a esfera pública, e assim, denuncie e
reivindique a garantia e a possibilidades reais de efetivação dos direitos já conquistados e na
qualidade dos serviços públicos prestados, além da luta pela superação dos valores
burgueses/capitalistas que naturalizam a exploração/dominação de “classes sociais, as
raças/etnias e os gêneros” (SAFFIOTI, 1999).

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Análise de arranjos de implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência


contra mulheres em municípios de pequeno porte

Ana Carolina Almeida Santos Nunes1

Resumo: A implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra


mulheres apresenta um grande desafio no âmbito de municípios de pequeno porte, realidade
pouco explorada por pesquisas. O presente trabalho analisa os arranjos de implementação
dessas políticas em Afogados da Ingazeira – PE e Palmeira das Missões – RS, partindo das
premissas estabelecidas pela Lei Maria da Penha e pelo Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência Contra as Mulheres. Por meio de uma adaptação das abordagens de análise dos
arranjos institucionais e de modelos de coprodução de políticas públicas, estabeleceu-se
quatro dimensões para a análise desses arranjos: (a) articulação intersetorial, (b) articulação e
colaboração entre os diferentes entes federativos, (c) tratamento dado à dimensão territorial e
(d) modelos de coprodução de políticas públicas. Os achados da pesquisa trazem elementos
importantes para a discussão da adaptação do desenho institucional de políticas nacionais para
realidades locais.
Palavras-chaves: Implementação; Violência contra Mulheres; Municípios Pequenos.

1
UFABC; Mestre em Políticas Públicas; ananunes14@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p814 814


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Introdução
As políticas públicas de gênero2 vêm se destacando enquanto temática de investigação
não somente pelos avanços políticos observados nas últimas décadas, mas também pela
urgência das questões que buscam resolver. Esse destaque se deve principalmente ao amplo
esforço do movimento de mulheres brasileiro em levantar essa pauta na agenda pública
(PINTO, 1994; SOARES, 1994), e à recente institucionalização das políticas públicas para
mulheres3, que se materializa na criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) com
status de ministério e na promulgação da Lei Maria da Penha (PITANGUY, 2003;
CALAZÁNS e CORTÉS, 2011).
Onze anos após a promulgação dessa Lei, que é considerada uma das três melhores
legislações do mundo pela ONU e é conhecida por 97% da população brasileira 4, segue na
agenda pública o debate sobre como efetivá-la. As políticas públicas de enfrentamento à
violência contra mulheres são iniciativas fundamentais para que a legislação se cumpra e,
segundo a previsão normativa, sua implementação deve envolver todas as esferas de governo
e atores não-governamentais. O acesso pleno a direitos pelas mulheres depende, portanto, do
trabalho articulado entre todos os entes federativos, os Três Poderes e a sociedade civil.
Neste sentido, o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres
(PNEVCM) apresenta-se como uma iniciativa que busca capilarizar e potencializar as ações
do poder público a partir de uma visão integral do problema (CARDOSO, 2009) e articulação
entre os diversos atores e atrizes. O Pacto tem como premissas a transversalidade,
intersetorialidade e a capilaridade (BRASIL, 2010).
Quando se observa o contexto de implementação das políticas públicas de
enfrentamento à violência contra mulheres, é possível reconhecer que as desigualdades
regionais, sociais, raciais e étnicas, entre outras, impõem grandes desafios ao poder público. A
violência de gênero é um problema enraizado na sociedade brasileira e presente em todo o
território, mas atinge a diversidade de mulheres de maneiras distintas de acordo com sua
realidade. Nesse sentido, especialistas no tema destacam a importância de as políticas de
enfrentamento a esse problema serem adaptadas às realidades locais e desenvolvidas em
2
Considere-se a seguinte definição de para políticas públicas e gênero: iniciativas que consideram as diferenças
nos processos de socialização entre homens e mulheres e nas suas consequências nas vivências individuais e
coletivas de homens e mulheres, e se propõem a enfrentar e desconstruir as desigualdades geradas por esses
processos (SOARES, 2004).
3
Entende-se aqui que as políticas públicas para mulheres compõem as políticas públicas de gênero, mas com um
horizonte mais reduzido. Conforme destaca Bandeira (2005, 9): “As políticas para as mulheres não são
excludentes das políticas de gênero, embora tenham uma perspectiva restrita, pontual, de menor abrangência,
atendendo a demandas das mulheres, mas sem instaurar uma possibilidade de ruptura com as visões tradicionais
do feminino”.
4
Informações divulgadas pelo Portal Brasil

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conjunto com as próprias mulheres (PRADO e SANEMATSU, 2017).


Para garantir o acesso universal a direitos observando as diferentes realidades, é
essencial a colaboração entre governo central e governos subnacionais, especialmente
municípios. De acordo com a própria SPM (BRASIL, 2011), as ações de competência
municipal no âmbito das políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres são
a criação/reaparelhamento de serviços especializados, como centros de referência e casas-
abrigo, e a realização de campanhas locais. O PNEVCM, por sua vez, prevê as seguintes
responsabilidades aos governos municipais:

a. Prestar contas, junto à SPM e demais Ministérios envolvidos, dos convênios


firmados pelas instituições municipais; b. Garantir a sustentabilidade dos projetos; c.
Participar da Câmara Técnica de Gestão Estadual; d. Promover a constituição e o
fortalecimento da rede de atendimento à mulher em situação de violência, no âmbito
municipal e/ou regional, por meio de consórcios públicos (quando couber); [...]
(BRASIL, 2010)

Tendo em vista a importância dos municípios na implementação de políticas públicas


de enfrentamento à violência contra mulheres e os desafios imbricados nesse processo, o
presente artigo se propõe a analisar como ele se dá no contexto de municípios de pequeno
porte, um universo pouco discutido pelas literaturas de estudos de implementação e de
políticas de gênero. A escolha desse recorte se justifica também nos dados alarmantes de que
72,3% dos municípios brasileiros registraram homicídios de mulheres em 2013
(WAISENFILZ, 2015) e de que as maiores taxas de feminicídios estão nos municípios de
menos de 50 mil habitantes (PRADO e SANEMATSU, 2017). A demanda por interiorizar
essas políticas públicas e adaptá-las aos diversos contextos é, portanto, urgente (MARTINS,
CERQUEIRA e MATOS, 2015; PRADO e SANEMATSU, 2017).
São analisados os arranjos de implementação de políticas públicas de enfrentamento à
violência contra mulheres em dois municípios de pequeno porte – Afogados da Ingazeira - PE
e Palmeira das Missões - RS –, de modo a compreender como os desenhos institucionais se
adaptam às realidades e dinâmicas locais. A análise busca abranger o campo de forças,
normas e instituições que constituem o microcosmos da implementação de uma política
pública complexa. Os parâmetros da análise partem do modelo de governança do PNEVCM,
que destaca a necessidade das articulações horizontal e vertical entre os atores, a participação
de atores não-governamentais e a adaptação das ações aos contextos territoriais. Esses eixos,

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por sua vez, compõem as quatro dimensões da análise, adaptadas da proposta de análise dos
arranjos institucionais de Lotta e Favareto (2016). Dessa forma, os resultados podem
contribuir para a discussão posterior dos modelos de governança do Pacto Nacional.

Abordagens de análise
Para a investigação, usam-se as abordagens de análise dos arranjos institucionais e de
coprodução, adaptadas à pergunta de pesquisa. Ambas permitem agregar novas variáveis na
análise do processo de implementação – para além da comparação entre a proposta da política
pública e a sua entrega –, valorizando a compreensão das interações entre atores.
Compreendendo que o contexto brasileiro passou por um processo de complexificação
da produção de políticas, propõe-se analisar seus arranjos institucionais, que definem de que
maneira os processos são coordenados e quais são as atribuições dos diferentes atores
(LOTTA e VAZ, 2015; PIRES e GOMIDE, 2014; LOTTA e FAVARETO, 2016). A
compreensão do conceito mais utilizada pelas análises atuais na agenda brasileira, da qual
esse trabalho compartilha, é definida por Pires e Gomide (2012,14): “Por arranjos
institucionais entende-se o conjunto de regras, organizações e processos que definem a forma
como se coordenam os atores e os interesses em pauta em uma determinada política pública”.
Já a coprodução de políticas públicas é um conceito emergente na agenda de estudos
de políticas públicas, que aqui definimos como a participação de outros atores, que não a
organização provedora, na produção de serviços públicos e políticas públicas (OSTROM,
1996). Isso inclui desde a parceria com entes privados e conveniamentos até a participação de
cidadãs e cidadãos de forma institucionalizada (HUPE, 1993) ou não (TOPS, 1999). Hupe e
Hill (2002, 135) resumem a definição de coprodução como uma abordagem na qual um
governo nacional ou local envolve cidadãos, organizações sem fins lucrativos, empresas ou
outros governos na produção de uma política pública específica.
No âmbito da implementação de políticas nacionais em municípios, a análise das
formas de coprodução permite identificar a rede envolvida na execução das políticas, o que
contribui para compreender suas potencialidades e a influência dessas parcerias nos
resultados.

Metodologia
A pesquisa de campo foi realizada no ano de 2017, nos municípios de Afogados de
Ingazeira – PE e Palmeira das Missões – RS, além das capitais de cada estado. Foram
entrevistadas gestoras e gestores públicos de todas as áreas envolvidas nas políticas públicas

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de enfrentamento à violência contra mulheres, em seus respectivos locais de trabalho, além de


representantes da sociedade civil e burocratas do nível de rua, totalizando 49 entrevistas
semiestruturadas.
Os municípios foram escolhidos com base em 5 critérios: (1) ter menos de 50 mil
habitantes, (2) ter um Organismo Municipal de Políticas para Mulheres (OPM), (3) ter um
Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, (4) ser indicado como referência em
implementação de políticas públicas de combate à violência contra mulheres, (5) não fazer
parte de região metropolitana. Inicialmente, as referências enunciadas pelo critério (4) foram
buscadas entre gestoras da SPM do governo federal. Diante da dificuldade em obter essas
referências, optou-se por direcionar a pesquisa a dois estados que se destacam por ter muitos
municípios que implementaram políticas públicas para mulheres: Pernambuco e Rio Grande
do Sul. As pessoas entrevistadas nas capitais indicaram municípios de referência nos seus
estados, o que conduziu a pesquisa à imersão nos municípios indicados. A seleção de
entrevistados se deu por meio da técnica bola de neve, partindo das gestoras municipais e
estaduais dos OPMs.
Em consonância com a proposta de imersão no campo-tema, as conversas informais,
os espaços de trabalho e os discursos escritos e não-escritos compunham a observação
(BATISTA, BERNARDES, MENEGON, 2014 e CORDEIRO, BRASILINO, CARDONA,
2014). Ao longo da pesquisa de campo, foram construídas sequências narrativas sobre a
implementação das políticas públicas nos dois municípios estudados.
Foram consideradas na análise três das quatro dimensões da abordagem propostas por
Lotta e Favareto (2016): a integração horizontal (articulação intersetorial); a integração
vertical (articulação e colaboração entre os diferentes entes federativos); e como é tratada a
dimensão territorial. A quarta dimensão da proposta dos autores é a de participação, que, na a
presente pesquisa, foi alterada para modelos de coprodução de políticas públicas.
A intersetorialidade e a integração vertical são princípios contidos no próprio conteúdo
da política pública analisada, o que aponta um campo fértil para a análise dessas dimensões.
Assim como a dimensão da coprodução, uma vez que a colaboração e a participação ativa de
cidadãos, individual ou coletivamente, estão apontadas no escopo da política pública
estudada. A pesquisa, então, visa compreender quem são seus coprodutores (redes e parcerias
intra e intergovernamentais) no âmbito dos municípios e quais são os modelos de coprodução
existentes. Por fim, considerando que a capilaridade também é uma premissa da política
pública analisada, a dimensão territorial se mostra essencial para o entendimento da sua
adaptação aos contextos locais.

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As entrevistas e o levantamento de dados foram conduzidos de modo a responder às


perguntas do quadro de referência de análise de arranjos institucionais (exposto abaixo), que
tem norteado as pesquisas de Lotta e Favareto (2016).

Tabela 1 – Dimensões de análise dos arranjos de implementação

Integração horizontal Integração vertical Coprodução de Dimensão territorial


(intersetorialidade) (subsidiariedade serviços públicos
federativa)

Há intersetorialidade na Quem faz as regras da Que atores participam Como a política lida com
formulação da política? política efetivamente? da formulação da a dimensão territorial?
(ex: sistemas e (governo federal, política? (descrever (há menções a
instrumentos de estadual ou municipal?) atores da sociedade, do especificidades espaciais
diagnóstico ou O que se prevê no pacto estado ou do mercado e ou à necessidade de
planejamento federativo em termos de que arranjo de diferenciar/adaptar os
interministeriais) competências participação há – instrumentos de políticas
constitucionais neste conselhos, conferências, a contextos específicos
tema/setor? audiências públicas, (como diagnósticos
GTs, fóruns etc.) locais)?

Há intersetorialidade na Quem financia a Que atores participam Há espaços de


implementação da política? (governo da implementação da participação territoriais
política? (ex: execução federal, estadual ou política? (descrever (fóruns, conselhos,
feita em conjunto entre municipal?) E qual atores da sociedade, do comitês, colegiados)
diferentes ministérios) instrumento de estado ou do mercado e previstos?
financiamento que arranjo de
(convênio, origem dos participação há –
recursos – Tesouro, conselhos, conferências,
Fundo etc.) audiências públicas,
GTs, fóruns etc.)

Há intersetorialidade no Quem implementa a Que atores participam Há formas de


monitoramento e política? (governo da avaliação da política? articulação/diálogo/
avaliação da política? federal, estadual ou (descrever atores da integração com outras
(ex: sistemas integrados, municipal?) sociedade, do estado ou instâncias participativas
grupos de trabalho, do mercado e que já existentes nos
comitês gestores, salas arranjo de participação territórios?
de situação etc.) há)

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Elaboração original por Gabriela Lotta. Adaptado pela autora.

Resultados da pesquisa: Pernambuco e Afogados da Ingazeira


Conforme o que foi constatado na pesquisa de campo em janeiro de 2017, o governo
estadual do Pernambuco conta com um OPM bem estruturado e com altas capacidades de
coordenação e execução. As políticas públicas de enfrentamento à violência são integradas às
políticas de geração de renda e promoção da cidadania. O organismo tem uma agenda forte de
capilarização das políticas públicas para mulheres e conta com coordenadoras de cada
macrorregião do estado para acompanhar as agendas locais. O estado também oferece um
mecanismo próprio de financiamento de políticas para mulheres em municípios e se
responsabiliza pela gestão dos equipamentos de abrigamento de mulheres em situação de
violência.
Em Afogados da Ingazeira, o OPM é coordenado por uma gestora com alta capacidade
técnica e de articulação e a agenda de gênero tem apoio dentro da gestão municipal. A
sociedade civil participa ativamente na formulação e implementação das políticas públicas e
respalda a atuação da coordenadora do OPM. Os gestores da Prefeitura dispõem de
mecanismos de articulação intersetorial e a agenda de políticas públicas para mulheres é
adaptada às particularidades do território. Por fim, o OPM estadual apoia o município na
elaboração e implementação dessas políticas públicas, que também conta com a cooperação
do Sistema de Justiça.

Resultados da pesquisa: Rio Grande do Sul e Palmeira das Missões


O governo estadual do Rio Grande do Sul vem desmontando suas estruturas de
execução de políticas públicas para mulheres, o que se reflete em menos recursos para as
prefeituras. Na gestão anterior, no entanto, havia uma agenda de fortalecimento da Rede Lilás,
composta pelos equipamentos de atendimento às mulheres. O governo do estado fornecia
veículos (viabilizados por convênio com o governo federal) aos municípios para ajudar a
estruturar essa rede, mas não chegava a acompanhar a evolução territorializada das políticas
públicas. Uma inovação promovida pelo OPM do governo estadual, ainda na gestão anterior,
é a alocação da assessoria técnica a municípios no equipamento estadual de atendimento, que
normalmente presta serviços apenas ao público geral. Outro destaque é o fato de os
municípios serem incentivados a constituir consórcios para gerir equipamentos de
abrigamento a mulheres em situação de violência.

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Em Palmeira das Missões – RS, a implementação de ações de enfrentamento à


violência contra mulheres está mais a cargo de uma rede informal formada por atores do
Poder Judiciário, da Polícia Civil e da burocracia de nível de rua da Assistência Social. A
gestora do OPM municipal, por sua vez, tem pouco conhecimento sobre as ações em curso e
não promove a articulação dos atores envolvidos na temática de gênero. O Conselho
Municipal de Direitos da Mulher e as organizações da sociedade civil ligadas à temática de
gênero atuam pautando o tema na agenda municipal e promovendo atividades pontuais com o
apoio da Prefeitura, mas as suas funções se misturam com a do OPM, que parece não ter
atuação definida. Enquanto isso, o governo estadual apoia pouco o município na
implementação de políticas públicas para mulheres.

Análises e reflexões sobre os casos


Ambos municípios estão na faixa de 30 mil habitantes, situados a mais de 300
quilômetros das capitais de seus estados, cujos OPMs e Conselhos Municipais de Direitos
Mulher foram instalados há menos de 3 anos e cujos prefeitos foram reeleitos. Ainda que não
estivesse previsto no desenho metodológico, os dois casos pesquisados se complementam por
representarem situações opostas, apesar das similaridades.
Entretanto, as políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres por eles
implementadas estão em estágios muito distintos. Em Afogados da Ingazeira – PE há políticas
públicas em curso e notória evolução na organização das ações de enfrentamento à violência
contra mulheres desde a criação do OPM. Já em Palmeira das Missões – RS verifica-se uma
atuação muito tímida do OPM, o que se reflete na ausência de políticas públicas estruturadas e
na desarticulação da rede de atendimento a mulheres em situação de violência.
Na Tabela 2, é possível comparar as avaliações dos dois casos a partir das quatro
dimensões de análise estabelecidas pela pesquisa:

Tabela 2 – Análise dos arranjos de implementação nos municípios

Integração horizontal Integração vertical Coprodução de Dimensão


(intersetorial) (entre entes políticas públicas territorial
federativos)

Afogados Alta. O OPM se Média. Cooperação Participação direta Bastante


da relaciona com todas as direta com governo de movimentos de considerada, tanto
Ingazeira secretarias que têm estadual, que cria mulheres na pelos gestores
– PE mulheres dentre os mecanismos para implementação de quanto pelos

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alvos de suas políticas facilitar a políticas públicas, movimentos de


públicas, além de se implementação em mas não como mulheres, que
articular com a Justiça. municípios. Não há prestadoras de propõem agendas
contato direto com a serviço. específicas.
SPM do governo
federal.

Palmeira Baixa. O que acontece é Baixa. Estado tem Judiciário Algumas gestoras e
das o trabalho conjunto do pouco conhecimento produzindo política burocratas de nível
Missões – CREAS e o Judiciário, sobre o que acontece pública junto com de rua consideram
RS sem a supervisão de nos municípios, apesar burocratas de nível o contexto
nenhuma secretaria. de, na gestão anterior, de rua. Organizações territorial na leitura
haver uma orientação da sociedade civil do problema, mas o
para ajudar a espalhar promovem ações diagnóstico não
as políticas públicas. com o apoio da gera respostas
Prefeitura. específicas.
Elaborada pela autora

A primeira dimensão mostra-se determinante para que as políticas públicas sejam de


fato implementadas, uma vez que o estabelecimento de uma rede de atendimento às mulheres
em situação de violência depende da articulação entre secretarias, como saúde, educação,
assistência social e o OPM. A participação do OPM na articulação e coordenação dessa rede
faz a diferença no caso de Afogados da Ingazeira – PE, enquanto em Palmeira das Missões –
RS, onde o OPM tem participação mínima, falta articulação.
A dimensão da integração vertical também se mostrou determinante para os casos
pesquisados. Por se tratarem de municípios com poucos recursos – orçamentários, humanos e
até técnicos – em comparação com outros de maior porte, a colaboração das secretarias de
políticas para mulheres dos governos estaduais e federal impacta diretamente a capacidade de
implementação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres. A
interação com a SPM do governo federal é praticamente nula, mas com os OPMs dos
respectivos governos estaduais é radicalmente distinta. Enquanto a Secretaria da Mulher do
governo do Pernambuco é uma referência técnica para a gestora do OPM de Afogados de
Ingazeira – PE, além de o Estado assumir a gestão de várias políticas nos eixos de Proteção e
Justiça; o Departamento de Políticas para Mulheres do governo do Rio Grande do Sul não
consegue nem prover nem induzir políticas públicas em Palmeira das Missões – RS, mas
aparece para as gestoras do município como um órgão apoiador de suas atividades.
A terceira dimensão, de coprodução de políticas públicas, aparece de forma pouco

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pronunciada nos dois casos estudados. Em Afogados da Ingazeira – PE, há intensa


participação da sociedade civil na formulação e implementação das políticas públicas, mas as
funções de provisão de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência são
assumidas pela Prefeitura, com coordenação do OPM. Já em Palmeira das Missões – RS, as
organizações da sociedade civil promovem ações que são apoiadas pela Prefeitura, mas as
funções do OPM, do Conselho Municipal de Direitos da Mulher e da sociedade civil não são
claramente separadas, o que dificulta a identificação de processos participativos. No entanto, a
cidade conta com um caso de coprodução entre o Poder Judiciário e a burocracia de nível de
rua da Assistência Social.
A última dimensão diz respeito à consideração das questões territoriais nos arranjos de
implementação. Em dois territórios tão distintos, foi possível identificar desafios muito
diferentes no enfrentamento à violência de gênero, bastante discutidos por todas as gestoras e
gestores entrevistados. No primeiro caso, no entanto, a interpretação da dimensão territorial é
traduzida em especificações para as políticas públicas implementadas. Já no segundo caso, a
leitura do território não gera respostas específicas, principalmente porque as políticas públicas
de enfrentamento à violência contra mulheres do município são muito incipientes.
Os casos analisados mostram que os Organismos de Políticas para Mulheres (OPM)
coordenados por gestoras com capacidade técnica e política promovem a integração
horizontal dessas políticas (a); a capacidade de implementação dos municípios é influenciada
pela atuação do OPM estadual, que pode acompanhar as agendas e dar suporte técnico e
financeiro às Prefeituras (b); o atendimento às mulheres ainda depende muito dos
equipamentos de Assistência Social, o que reforça a necessidade da gestão intersetorial (c); a
adaptação das políticas públicas às dinâmicas do território está intrinsecamente ligada à
participação da sociedade civil (d); e a proatividade do Poder Judiciário pode impulsionar
ações do Executivo e amparar mulheres que não são atendidas por falta de atuação da
Prefeitura (e).

Considerações finais
O presente trabalho visa contribuir para a discussão sobre a implementação de
políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres em diferentes contextos.
Buscou-se, portanto, compreender como essas políticas públicas podem ser implementadas,
observando as premissas estabelecidas pelo Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
Contra Mulheres, em municípios de pequeno porte – realidade pouco analisada no âmbito de
políticas públicas de gênero.

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Os resultados apontam para algumas conclusões. A primeira diz respeito à atuação dos
OPMs nos municípios, organismos que se mostram essenciais para coordenar políticas
públicas. A trajetória política e as capacidades técnicas das pessoas que assumem a
coordenação dos OPMs – e, em municípios pequenos, geralmente trabalham sozinhas –
importa tanto quanto a própria existência dessas estruturas. Elas são responsáveis, pois, por
levar a perspectiva de gênero a todos as atrizes e atores atuantes no território, principalmente
aos outros setores do Poder Executivo; e articular uma rede de enfrentamento à violência
contra mulheres no território. Nesse sentido, as ferramentas de monitoramento e de gestão
intersetorial podem fazer a diferença.
É preciso formar uma agenda consonante com os princípios da Política Nacional de
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, e nesse sentido, os OPMs dos governos
estaduais devem dar subsídios técnicos, acompanhar o trabalho dos municípios e promover a
temática de gênero. Isso leva à segunda conclusão: a atuação dos governos estaduais é
fundamental para municípios de pequeno porte, que trabalham com orçamentos curtos e têm
menores capacidades institucionais. Eles dependem de “intermediários” para conseguir
implementar políticas de âmbito nacional – especialmente quando se trata de uma agenda
emergente. Os governos estaduais, além de fazerem a ligação entre os recursos federais e os
governos municipais, são os principais responsáveis pela política de Segurança Pública, eixo
fundamental do enfrentamento à violência contra mulheres. Portanto, ainda que um município
disponha de gestoras e gestores comprometidos com a temática e tente implementar essas
políticas, o alcance de suas ações é limitado quando o governo estadual não cumpre suas
funções.
Ambos os casos não dispunham de equipamentos especializados de atendimento
psicossocial à mulher em situação de violência, mas conseguiam fornecer esse serviço por
meio dos equipamentos de Assistência Social. O que remete ao terceiro ponto, sobre a
dificuldade de municípios de pequeno porte manterem equipamentos especializados. Ainda
que haja apoio técnico e financiamento para a sua construção, a manutenção dos mesmos traz
custos incompatíveis com a realidade dessas Prefeituras. As soluções apontadas são a
formação de consórcios ou a “estadualização” da gestão de equipamentos especializados.
Outra questão relacionada é a necessidade de fortalecer a Assistência Social e vincular o
atendimento às mulheres em situação de violência aos programas federais financiados pelo
SUAS. A participação ativa desse setor na rede de atendimento, por sua vez, só reforça a
importância dos mecanismos de gestão intersetorial das políticas públicas no nível municipal.
A quarta conclusão é que a adaptação das políticas públicas às dinâmicas do território

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está intrinsecamente ligada à participação da sociedade civil na sua produção. Em municípios


pequenos, as organizações temáticas da sociedade civil têm força para pautar a agenda local,
de forma a conferir legitimidade às políticas públicas de enfrentamento à violência contra
mulheres; e também para estender o alcance dessas políticas. A coprodução com a sociedade
civil enriquece a leitura dos gestores públicos locais sobre as demandas específicas do
território e da diversidade de mulheres, adaptando as iniciativas e aumentando sua
efetividade. Além disso, trata-se de uma agenda recente, na qual as organizações da sociedade
civil detêm maior conhecimento e acúmulo histórico que o poder público.
Destaca-se como última conclusão que a proatividade do Sistema de Justiça nos
municípios de pequeno porte pode impulsionar ações do Executivo e amparar as mulheres que
buscam ajuda do Estado quando falta atuação da Prefeitura. Assim como na relação entre
governos municipais e estaduais, quando uma das partes não cumpre totalmente com as suas
funções dentro dessas políticas públicas, a outra pode flexibilizar as suas funções para atender
às demandas emergentes. O que, no entanto, não é suficiente diante da complexidade do
problema enfrentado.
Por fim, é importante ressaltar que a pesquisa esbarrou nas dificuldades em encontrar
referências a municípios de pequeno porte. A maior parte das gestoras entrevistadas, quando
solicitadas a indicar um município de até 50 mil habitantes que fosse referência na
implementação das políticas públicas estudadas, faziam referências a municípios maiores e de
regiões metropolitanas, explicitando a invisibilidade dessa categoria até mesmo entre as
gestoras responsáveis por capilarizar as políticas para mulheres no território. Essa dificuldade,
por si só, aponta para a necessidade de ampliar a atenção sobre esse universo, que segundo o
IBGE, corresponde a 88,24% dos municípios brasileiros, onde reside 32,1% da população.

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Psicologia na rede: Tecendo uma rede de atenção trans em


Londrina

Dayana Franciele de Souza 1


Vinicius Manoel Salvador 2
Herbert de Proença Lopes 3

Resumo: Com este trabalho temos como objetivo apresentar o processo de construção de uma
rede de ações que visam proteger e garantir direitos de travestis e transexuais (Rede T), na
cidade de Londrina. Tem como base teórico-metodológica a Psicologia Social, dialogando com
os movimentos sociais, estudos sobre gêneros e sexualidades, pensando nos diversos contornos
que contribuem para a construção de um corpo e suas subjetividades, pela inquietação dos
envolvidos na causa e por posicionamentos ético-políticos diante das desigualdades sociais e a
necessidade de mudanças. Considerando que o processo está em curso, podemos ponderar que,
os resultados embora parciais, já contribuem de maneira expressiva para alavancar a discussão
acerca da importância dos temas trabalhados no campo. Com base em relatos da população que
temos alcançado é notável o quão significativas as ações da Rede T tem sido naquilo que se
propõe. Destacamos também a importância da articulação de diversos setores sociais, visto que
as demandas não são apenas de saúde, como também de trabalho, cultura, educação, moradia,
entre outros aspectos que temos encontrado. Trabalhar em rede faz com que o alcance da
população em questão seja ampliado, contribui para o acesso aos serviços, aumento e
compartilhamento de informação. Todas estas questões têm sido problematizadas a partir da
experiência de Estágio Básico em Psicologia e se configuram como um importante eixo de
questionamento sobre o processo de formação, de modo a responder demandas da atualidade
que esta população tem colocado ao campo teórico-prático da Psicologia.
Palavras-chaves: Psicologia; Políticas Púbicas; Travestis e Transexuais.

1
Universidade Pitágoras Unopar; graduanda em Psicologia; dayasouza90@gmail.com.
2
Universidade Pitágoras Unopar; graduando em Psicologia; salvadorvinni@gmail.com
3
UNESP/Assis, mestrando em Psicologia; Professor de Psicologia Universidade Pitágoras Unopar;
herbert.proenca@gmail.com

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Introdução
Nosso objetivo com este trabalho é apresentar algumas problematizações sobre o
processo de construção de uma rede de ações voltadas à garantia de direitos de travestis e
transexuais, na cidade de Londrina. Este processo, que se encontra atualmente em curso, foi
iniciado no final do ano de 2017, quando o Coletivo ElityTrans Londrina mobilizou a criação
da chamada “Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População Trans em Londrina”.
O Coletivo ElityTrans, formado por travestis e transexuais, foi fundado em 2012 por
duas ativistas com protagonismo trans na cidade de Londrina/PR. Surge com o objetivo de
reivindicar direitos, garantir o exercício da cidadania, denunciar situações de violência,
proporcionar visibilidade e empoderamento da população que representa.
Assim, como resultado da articulação com diferentes setores da sociedade, surge em
dezembro de 2017 a Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População Trans de Londrina,
formada pelo ElityTrans em parceria com a Defensoria Pública do Paraná em Londrina,
profissionais de diferentes serviços públicos, pesquisadores acadêmicos e voluntários. Os
principais objetivos da Rede são: criação de fluxos na saúde e demais políticas, promoção e
educação em direitos humanos e cidadania em diversos âmbitos da sociedade, promoção de
políticas públicas de gênero, formulação de um conjunto de ações e políticas para dar maior
apoio ao público - principalmente àqueles(as) que estejam em situação de risco ou
vulnerabilidade social.
O ElityTrans elaborou uma proposta de atividades ofertadas à população trans, que
representa parte das estratégias da Rede. Esta proposta visa diferentes formas de atendimento
que buscam se configurar também espaços de convivência e socialização. Estas atividades são:
EscutaTrans (recepção e atendimento psicossocial individual ou coletivo), Oficina de
Aquendação de Cidadania (Atividades grupais de sensibilização e reflexão) e atividades
artísticas como Ciranda das Cores (ciranda e grupo de movimento, na perspectiva da psicologia
corporal) e Grupo de Teatro Translúcidas (grupo formado em 2016 por LGBTs, principalmente
por pessoas trans).
Tais atividades têm sido elaboradas de modo participativo, por ativistas membros do
Coletivo em conjunto com professores de Psicologia e psicólogos(as) parceiros. Se tornaram,
assim, um importante campo de estágio básico em Psicologia vinculada à Universidade
Pitágoras Unopar. Assim, a oferta de tais ações visa a criação espaços individuais e grupais de
diálogo com as pessoas trans, contribuindo com as ações da Rede, mas também
problematizando noções de “atendimento” da Psicologia e ampliando referências formativas da
área.

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A perspectiva teórico-metodológica do estágio se orienta pela da Psicologia Social, a


partir de contribuições que se interessam por um processo de pesquisa indissociado da
intervenção, pelo viés comunitário, pelo diálogo com os movimentos sociais, pela consideração
dos gêneros e sexualidades como aspectos constituintes das subjetividades, pela implicação
dos(as) pesquisadores(as) e por posicionamentos ético-políticos que diante das desigualdades
sociais. A partir da imersão nos processos sociais e no diálogo com diferentes atores/atrizes da
sociedade, visa construir um estudo e uma ação pautada pela visão emancipatória da
subjetividade e, deste modo, pode ser transformadora. Esta perspectiva pode contribuir de modo
mais efetivo com a construção de políticas públicas para as pessoas trans e travestis.

De que Psicologia estamos falando?


Enquanto “pessoas”, somos movidos pela necessidade de mudanças. Com a psicologia
não poderia ser diferente. A psicologia como profissão se traduz num leque gigante de
possibilidades, um campo plural, sendo importante destacar que não estamos limitados à
tradicional prática clínica, orientada pelo modelo biomédico, centrado no ser individual. A
psicologia constitui-se de modo fragmentar, se configura um campo teórico e prático disperso
que não formar um “continente”, mas um “um arquipélago conceitual e tecnológico”, conforme
define Luís Cláudio Figueiredo (2009). Seria melhor denomina-la de Psicologias, no plural,
dadas as diferentes matrizes que constituem o que chamamos de Psicologia e que, no processo
de formação, se apresenta como uma disciplina bastante plural e diversa.
O Estágio Básico, que é orientado pela Psicologia Social, permite perceber novos
espaços de atuação, novos saberes, fazeres diferentes da tradicional atuação clínica que marca
fortemente a formação. Pensar a pessoa, singular e coletivamente, evitando a clássica dicotomia
entre indivíduo-sociedade, nos permite observar os modos de subjetivação que a compõem
enquanto produto e produtor de uma construção social.
Pensar a relação psicologia e sociedade nos faz voltar no tempo e como diria Ana Bock
(1999) “começar do começo”. A autora faz um resgate histórico da Psicologia desde o Brasil
Colonial, onde aponta que as ideias psicológicas, de uma área científica em surgimento já
operavam nestas terras, mesmo antes da regulamentação da profissão que aconteceu somente
em 1962. Paralelo ao modelo de modernização do Brasil que observamos que um tipo de
Psicologia parece corresponder às transformações que a sociedade, voltada para um modelo
higienista e padronizador do fazer psicológico, baseado no modelo médico. Período em que
surgem os hospícios, com o intuito de “varrer” das ruas pessoas ditas como doentes morais, que

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não se encaixavam no padrão social da época – prostitutas, loucos, pobres – em resposta ao


questionamento “Como eliminar problemas que existem na sociedade?” (BOCK, 1999).
Seria, no entanto, simplista considerar que a história deste campo fosse um percurso
único. Maria das Graças Gonçalves (2010) propõe a historicização da Psicologia para refletir
sobre sua presença no campo das políticas sociais, considerando importante destacar as
diferentes vertentes que se encontram nesta história. Segundo a autora, o desenvolvimento da
Psicologia precisa ser analisada através de sua relação com as transformações sociais. De modo
geral, esta história revela que a Psicologia, apesar de carregar uma falsa ideia de “neutralidade”
– ideia que marca até hoje este campo – sempre esteve comprometida com as demandas
histórico-sociais. Sobre este aspecto, a relação da Psicologia com o desenvolvimento da
sociedade capitalista precisa ser analisada na medida em que esta área de saber e atuação se
encontra marcada por este fator.
De um lado, podemos verificar nesta história uma vertente do fazer psicológico que
esteve comprometido com “a normalização, adaptação, com a adequação dos indivíduos, apesar
de suas diversidades, aos lugares sociais a que pertencem” (GONÇALVES, 2010, p. 79). De
outro lado, segundo a autora encontram-se também tentativas de “criar espaços de atuação que
promovam formas de expressão social de indivíduos questionadoras, inovadoras, que
possibilitem a superação das condições que impedem o pleno desenvolvimento de sujeitos” (p.
79).
Encontramos nesta história alguns importantes elementos que nos permitem pensar a
psicologia que se volta às problemáticas sociais, como se observa a partir dos anos 70.
Destacamos a inserção da Psicologia nos contextos comunitários e de iniciativas populares que
fazem com que a atuação da Psicologia seja pautada a partir de demandas concretas de setores
da sociedade marcadas por diferentes sistemas de desigualdade social e que colocam
definitivamente o atravessamento ético sobre esta atuação. Como a Psicologia pode contribuir
com o desenvolvimento pessoal e social de pessoas, coletivos, comunidades?
Fazendo um breve resgate do nosso campo de estágio, temos uma infinidade de
possibilidades. Trata-se das ações oferecidas pelo ElityTrans em parceria com estagiários(as),
que faz parte da Rede T. O Coletivo é dos importantes articuladores da Rede e do Movimento
LBGT com protagonismo Trans, e desenvolve suas atividades no Canto do MARL4. Mas
falaremos muito mais sobre o assunto no decorrer do trabalho. A atenção que queremos aqui, é

4
O Canto do MARL é um espaço cultural resultado de uma ocupação de um prédio público abandonado no centro
da cidade de Londrina. Foi ocupado em junho de 2016 pelo Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MARL),
e realiza diversas atividades culturais, políticas e educativas oferecidas à população.

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sobre o que esse campo vem se tornando. No início, nossa inserção neste campo iniciou com
observação participante. A partir desse contato inicial, o que observamos colocaram uma série
de questionamentos, bombardeavam (positivamente) aquele lugar. Eram resultado de uma ação
em construção e, por isso, não prescrita a priori, como acontece em outros campos que têm
uma orientação técnica do trabalho (por exemplo nos serviços de políticas públicas). Que lugar
é esse? O que faz um psicólogo nesse campo? Quem somos nós aqui, enquanto pesquisadores
em psicologia? O tempo todo buscando respostas. E elas vieram, de uma demanda social. Como
dito anteriormente, a Psicologia Social atenta para a condição coletiva do indivíduo e para sua
necessidade de relação com o outro, com o ambiente em que está inserido.
Segundo Silvia Lane (1984, p. 19), “toda a psicologia é social” e para a mesma, tal
afirmação não reduz as Psicologias à Psicologia Social, mas permite que, outras áreas
específicas da psicologia reflitam sobre a natureza histórico-social do ser humano. É a partir
dos relacionamentos (com o eu, o outro, o ambiente, a sociedade como um todo), das questões
que surgem desses encontros, das desigualdades e da necessidade de mudanças, que chegamos
em uma importante relação: o que a psicologia sabe sobre as demandas de travestis e pessoas
trans?

Que sabe a Psicologia sobre as demandas de pessoas trans e travestis?


Como ponto de partida para esse questionamento, propomos considerar os novos
discursos e sujeitos(as) que emergem na contemporaneidade, assim como as profundas
transformações nas relações de produção econômica, cultural, social e desejante em processo.
Essa transformação é expressa por autores como Stuart Hall (2002) e Rosi Braidotti (2006),
para denominar os processos de crise dos paradigmas e das posições de sujeitas e sujeitos em
ação na contemporaneidade. Este cenário se configura como um imperativo para teóricas e
teóricos para re-conceberem sua própria situação e suas práticas dentro desse esquema
complexo presentes na contemporaneidade (BRAIDOTTI, 2006). A crise de paradigmas, de
valores morais, de posicionamentos éticos, políticos e estéticos representa uma abertura para
novas possibilidades de produção de conhecimentos/práticas, na medida em que exigem
criatividade teórica e política.
Voltada ao estudo de sujeitos/sujeitas, subjetividade, psiquismo, e demais categorias
que foram construídas historicamente, o campo das Psicologias apresenta-se, em sua maioria,
marcado por um projeto epistemológico embasado pela reprodução de concepções acerca do
indivíduo, compostas por vieses essencialistas, universalizantes e que denotam falta de
historicidade nas considerações sobre a experiência humana. Tais modelos servem como

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referência para práticas psicossociais que são, nos cotidianos, produtoras de violências
existenciais, ao não considerar a multiplicidade da experiência das pessoas. Nesse sentido, as
patologias mais do que as potências e, desse modo, a doença mais do que a saúde, remontam a
figurações e discursos que atravessam de maneira intensa os processos de formação em
Psicologia, a exemplo das disciplinas presentes das matrizes curriculares dos cursos de
formação na área. Efetuam, assim, exatamente o proposto por tais disciplinas: disciplinam os
olhos, a escuta e os corpos de profissionais voltados ao enfoque da patologização de aspectos
da experiência humana (SALES; LOPES; PERES, 2016).
Ao voltarmos o olhar, como proposto por Wiliam Peres (2013), sobre as teorias e
metodologias utilizadas em práticas em psicologias normativas, podemos observar que a
maioria destas se encontra comprometida com a manutenção do sistema que produz expressões
de sujeitas/sujeitos, de gêneros e sexualidades aceitas e tidas como normais, assim como exclui
e nega o estatuto de existência às expressões dissidentes, aos desejos marginalizados e às formas
de vida singulares como as expressas pelas travestilidades e transexualidades. E a partir disso,
vemos Psicologias comprometidas em “[...] observar, classificar, esquadrinhar, diagnosticar,
trancafiar, tratar, curar e até produzir morte civil das pessoas que de alguma maneira tornaram-
se dissidentes das ordens e modelos impostos como únicos, corretos e normais” (PERES, 2013,
p. 56).
Ao responder a tais modelos, de acordo com as problematizações apresentadas por
Michel Foucault (1988), a Psicologia corrobora com as ações do bio-poder e de regulações
biopolíticas, constituindo-se no eixo das relações de saber/poder, um dos vetores de manutenção
de modelos regulatórios, de práticas excludentes e de discriminação. Nossas implicações éticas
nos levam a fazer apostas em uma psicologia política e emancipatória de respeito e defesa das
diferenças e seus direitos.
Sob a perspectiva de um saber criado e vinculado às demandas da contemporaneidade,
os referenciais e significados conceituais disponíveis para análise das relações humanas não se
mostram mais adequados às complexidades que enredam tais processos de produção. Nesse
sentido, as posições de sujeitos e sujeitas postas em jogo trazem problematizações acerca das
noções clássicas de sujeitos(as) e subjetividade, geradas a partir das críticas às epistemologias
colonialistas e das ontologias afeitas aos essencialismos e reducionismos. Estas tradicionais
posições criam ficções de sujeitos-padrão, de ordem social e da normalidade.
Negar as dualidades e oposições binárias advindas de certa filosofia moral e modelo
científico, operante na produção e reprodução de indivíduos padronizados em séries e os “fora
do padrão” - o objeto de estudo e intervenção psicossocial, permite que pensemos, juntamente

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com Michel Foucault (1988) os movimentos de resistências que estão presentes nestas
operações, que se constituem relações de poder. Ao resgatar o processo de ativismo travesti e
trans, Keila Simpson, ativista e atual presidente da ANTRA (Associação Brasileira de Travestis
e Transexuais, criada em 2000 que surge a partir da organização do movimento social travesti
e trans desde o ano de 1992), aborda que os desafios que o movimento tem enfrentado passam
pela ressignificação destas identidades, pois os próprios termos “travesti” e “transexual” são
historicamente considerados pejorativos. Além disso, conforme afirma Simpson:
Travestis e transexuais sempre estiveram na ponta de lança dos preconceitos e das
discriminações existentes no Brasil com a população LGBT. Isso ocorre porque essa
população ostenta uma identidade de gênero diversa da imposta pelos padrões
heteronormativos, em que homem é homem e mulher é mulher, e qualquer coisa que
fuja dessa norma é encarada com estranhamento. No caso de trans, esse estranhamento
se traduz em assassinato dessa população (SIMPSON, 2015, p. 09).
Na problematização acerca das concepções de pessoas que tencionam, na proposta
apresentada, as posições teóricas e políticas acerca do objeto de estudo tradicional da
Psicologia, na intersecção com as experiências de travestilidades e transexualidades,
consideramos importante destacar as categorias de gêneros e sexualidades, em suas interfaces
com outros marcadores sociais da diferença, tais como, classes/cores, gerações e estilos de vida,
como referenciais importantes através dos quais o poder opera. Como forma de manutenção
dos sistemas de dominação, a reprodução de modelização dos gêneros e sexualidades com base
em normas regulatórias, produzem referências para identidades tidas como fixas e como parte
de uma ordem natural.
Através do controle dos corpos e dos desejos, os dispositivos de poder atuam de forma
a tomar a materialização dos gêneros, dos corpos e das sexualidades, como elemento
fundamental da experiência das pessoas. Os gêneros podem ser pensados como relacionais, “um
ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes” (BUTLER, 2003, p. 29). Ao contrário de considerar o gênero
como um substantivo, noção essencialista, deveríamos pensa-lo como efeito de discursos e
práticas que operam sobre os corpos das pessoas, como parte de estratégias de regulação dos
prazeres e de disciplinarização dos corpos. São as vias nas quais se opera a materialização do
bio-poder, efetuados em consonância com instâncias de saber que lhe garantem legitimidades
(BUTLER, 2003).
Pensar as produções de novas expressões de gêneros e sexualidades que se configuram
a partir de rupturas aos processos normatizadores, que agem sobre essas produções, garantem
importantes conexões entre novas posições conceituais de sujeitos(as), em contraposição aos
modelos naturalizantes e binários de gêneros e sexualidades. Alinhadas aos gêneros e

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sexualidades, temos a produção de outras categorias como classe, raça, etnia, orientação sexual,
estética corporal, entre outras, que operam no sentido reforçar processos de discriminação,
estigmatização e marginalização, intensificadas nas experiências travestis e transexuais,
conforme discutido por Wiliam Peres (2015).
Os gêneros que borram as delimitações predeterminadas são marcados por formas de
violências e exclusão em todas as esferas do cotidiano, como operações correcionais que visam
o mesmo processo regulatório, em formas mais ou menos extremadas, dando manutenção ao
que Judith Butler (2003) denominou sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais. Indagamos
em que medida as práticas em psicologia se constituem como parte da produção de sofrimentos
psicossociais, a que são chamadas a responder, na medida em que corroboram com a reprodução
dos referidos modelos. Garantir-se-ia, dessa maneira, os terrenos de ação psicossocial
hierarquizada pela capacidade de falar pelo outro(a), que participa das ações pautadas em
quadros diagnósticos.
Falar pelo outro(a) se configura uma forma de violência que aumenta os processos de
invisibilização que pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade tanto conhecem. Sobre este
aspecto, retomamos a posição de Keila Simpson que aborda a importância da articulação com
o movimento social organizado na criação de políticas públicas para a população de travestis e
transexuais. Em material organizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2015) sobre atenção
à saúde de travestis e transexuais, Keila Simpson faz questão de destacar a importância desta
relação:
As organizações da sociedade civil têm desempenhado um papel fundamental nessas
parcerias, pois é a partir delas que se dão as contribuições para a construção dessas
políticas públicas. É sobre o trabalho de base dessas organizações que estão sendo
pensadas as políticas públicas para responder às demandas de populações específicas.
Fazer esse trabalho sem a parceria do movimento organizado seria impensável e
ineficiente (SIMPSON, 2015, p. 14).

O desafio que tem sido colocado, inicialmente é considerar estas expressões de vida
singulares, dissidentes dos padrões sociais, como sujeitos e sujeitas de direitos e que se
constroem num panorama social que historicamente promove a exclusão social. A partir deste
desafio, levar gestores e profissionais que atuam com essa população a promover ações que
levem em conta as especificidades de travestis e transexuais, no que se refere ao acesso aos
serviços ofertados, além da necessidade de ampliação dos mesmos, de modo a alinhar os
objetivos destas ações com as reivindicações colocadas pelo movimento social organizado.
Desta maneira, pode-se contribuir para a construção de políticas públicas que garantam acesso

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aos direitos sem preconceito de gênero, raça/etnia, orientação sexual e práticas sexuais e
afetivas, a exemplo do debate que se insere na saúde pública (BRASIL, 2015).
Nesse sentido, é importante destacar que a Psicologia é considerada pela Associação
Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP) órgão que fornece diretrizes curriculares para os
cursos de Psicologia no Brasil, como uma das profissões da área de saúde. Sobre este aspecto,
a compreensão de saúde é ampliada, não somente ligada aos campos de atuação em saúde
(clínica, hospitais, saúde pública), mas a perspectiva de promoção de saúde deve estar presente
em outras áreas de atuação, como a educação, assistência social, jurídica, prisional,
organizacional, etc.
No que se refere às diretrizes para atuação profissional no que se refere à atenção às
pessoas trans e travestis, destacamos a Resolução 001/2018 do Conselho Federal de Psicologia
(CFP, 2018). Tal resolução, recentemente lançada, estabelece normas para a atuação para
psicólogos(as) em relação às pessoas transexuais e travestis. Dentre os diferentes artigos da
resolução, encontramos a orientação de que os(as) profissionais devem atuar segundo os
princípios éticos da profissão (CFP, 2005), contribuindo com o seu conhecimento para uma
reflexão voltada à eliminação da transfobia e do preconceito em relação às pessoas transexuais.
A partir da resolução, compreende-se que nem toda intervenção realizada pela Psicologia está
de acordo com a perspectiva ética pautada no respeito à dignidade humana exigidos pelo Código
de Ética Profissional. Por isso é necessário pensar em modos de atuação que também respondam
a tais requisitos.

Como a experiência tem sido tecida?


Assim, como uma perspectiva que destacamos neste trabalho, consideramos
importante aliançar as questões teóricas e práticas da Psicologia com o atendimento da
população trans e travesti. A experiência de Estágio tem sido construída com base em princípios
da Psicologia Comunitária, principalmente no que diz respeito a construção coletiva de ações
na qual se respeita os saberes de todos(as) os(as) agentes envolvidos (SARRIERA, 2014). Nesse
sentido, é importante destacar o papel do Coletivo ElityTrans nesse processo.
O Coletivo ElityTrans surgiu em 2012 fundado por ativistas LGBT com protagonismo
trans, na cidade de Londrina/PR, com o objetivo de reivindicar direitos enquanto cidadãos, lutar
por visibilidade e empoderamento. É um dos coletivos associados à ANTRA, rede nacional de
articulação de instituições que desenvolvem ações para promoção de cidadania da população
Trans, fundada em 2000 em Porto Alegre/RS.

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Entendendo o fazer artístico como forma de enfrentamento e ativismo, o Coletivo desde


seu surgimento dialoga com a linguagem artística (mais fortemente teatral) em suas propostas
de manifestação política. A relação com o teatro era de oficinas teatrais ofertadas para as
travestis e transexuais do grupo. Esta experiência abriu possibilidades de utilização de cenas
teatrais para visibilizar denúncias de transfobia vividas por participantes.
Paralelamente a estas ações, o Coletivo foi construindo relações e participando de
espaços, como setores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), do governo municipal,
como as Secretarias de Política para Mulheres e de Saúde. Também construía relações com
alguns movimentos sociais, como coletivos feministas, com movimento cultural, entre outros.
Esse cenário se costurou, ao passo que o Coletivo foi sendo convidado para dialogar, através
da participação em mesas em eventos e outras atividades, na Academia e na militância.
Participava também frequentemente de atos públicos e manifestações políticas organizados por
tais movimentos. Esse processo, de algum modo, contribuiu para dar local visibilidade ao
Coletivo e à pauta trans que o movimento trazia. Em 2015, as atividades do ElityTrans
resultaram a criação do grupo teatral Translúcidas, grupo que surge dentro do Coletivo e que
pesquisa especificamente a linguagem teatral, estreando em janeiro de 2018 sua primeira
montagem teatral realizada, a peça “Transtornada Eu”.
Em 2017, ampliando ainda mais as conexões, o Coletivo ElityTrans abre portas para o
campo de estágio em Psicologia, processo onde nos inserimos. Essa inserção acompanhou o
desenvolvimento das ações teatrais, bem como a articulação de outras ações que visavam
responder às demandas trazidas pelas pessoas trans e travestis que começavam a procurar o
Coletivo, resultado de sua visibilidade no cenário local.
Assim, no final deste mesmo ano, o Coletivo começa a articular-se com profissionais e
outros ativistas parceiros e sensíveis às pautas da população trans e passam a iniciar a
construção de um trabalho em rede. Surge, em dezembro de 2017 a Rede de Proteção e Garantia
de Direitos da População Trans em Londrina, atuando junto com outros(as) importantes
profissionais e ativistas para o debate deste tema na cidade. A ocupação em espaços de
construção de políticas públicas, realizados em diálogo com o movimento social e construído a
partir de uma ação militante, traz elementos que podem contribuir efetivamente com a
construção de ações em políticas públicas que se respondam concretamente às demandas dessa
população. A formação em Psicologia, nesta perspectiva, movimenta-se a partir das relações
que se consegue estabelecer com os processos sociais que pretende estudar/intervir. E por isso,
a inserção nesta rede é de extrema importância para o desenvolvimento das ações de estágio em
parceria com o Coletivo.

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Os trabalhos da Rede T visam diferentes frentes de ações voltadas a responder às


demandas mais urgentes, além de mapear tais demandas, estuda-las e mobilizar um processo
de reivindicação de políticas públicas com base nestes dados. Dentre as várias ações que já
estão sendo ofertadas (como atendimentos médicos, orientação jurídica), o Coletivo ElityTrans
também oferece atividades, em parceria com profissionais e estagiários de psicologia.
As atividades ofertadas em parceria com o ElityTrans, vem sendo realizadas no espaço
do Canto do MARL, uma ocupação do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina, espaço de
luta e reivindicação e conquista de direitos, logo, um ambiente propício para acolher e
empoderar pessoas, em todos os aspectos. O Canto do MARL tem sediado as ações do Coletivo
e possibilitado diálogo entre as pautas da população trans e travesti com as de artistas, entre
outros setores que compartilham o espaço e ideais.
No decorrer do estágio, as ativistas do movimento e integrantes do Coletivo começaram
a levantar questionamentos quanto a nossa atuação dentro do campo de estágio, a partir de
necessidades levantadas por pessoas trans que chegavam até as mesmas, fosse pessoalmente ou
meio de redes sociais. Questões que iam desde um simples grito de desabafo frente a dificuldade
em ser quem se é perante uma sociedade transfóbicas, até situações mais complexas como
tentativas de suicídio. Um ponto a ser pensado era a possibilidade de escuta dessas pessoas.
Pensamos em desenvolver, já pensando na articulação de serviços à população trans, espaço de
escuta, pois estes relatos precisavam ser ouvidos, pois advinham de pessoas em sofrimento
ético-político. Nós enquanto futuros profissionais da área de psicologia, questionávamos como
acolher e escutar suas inquietações.
A partir dos relatos trazidos pelas pessoas trans, vimos a urgência em se pensar uma
rede de “apoio” em termos proteção e garantia de direitos, como por exemplo, a importância de
um profissional da medicina no acompanhamento do processo de hormonioterapia. De pessoas
dispostas a ouvir de maneira empática, livre de pré-julgamentos, o que a população trans tem a
dizer. Ter um lugar para que a demanda possa ser encaminhada, com a ciência de que, terão
seus direitos assegurados.
Assim, elaborou-se um leque de atividades que articulassem a demanda de escuta, assim
como a relação com as expressões artísticas e necessidade de organização coletiva para
enfrentamento de uma situação social que atinge a população trans e travesti. Estas são as ações
propostas:
• EscutaTrans – espaço informal de escuta e diálogo iniciado em maio de 2018,
realizado por sete estagiários(as) de psicologia, a partir de uma abordagem
psicossocial, na qual se articulam posições individuais e sociais de sujeitos(as).

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Este espaço é oferecido semanalmente por um período de três horas. As pessoas


podem chegar sozinhas ou acompanhadas e, de sua chegada, se formará um circulo
de conversa que pode ser individual e/ou grupal. Não há roteiro pré-estabelecido
de conversa e o interesse inicial é aproximar-se destes relatos e experiências de
vida que também servirão para orientar futuras ações.
• Ciranda das Cores – Iniciada em maio de 2018, é um grupo oferecido por uma
psicóloga corporal, integrante do MARL e supervisora de estágio, com dois
estagiários(as). Trata-se de um grupo de movimento propõe o trabalho corporal
com base em atividades da bioenergética e de danças populares, como a ciranda.
É uma proposta de uma prática de experimentar corpos brincantes como uma forma
alternativa de promoção de saúde. A atividade tem sido oferecida semanalmente
para travestis, transexuais, também acolhe familiares, amigos, pessoas LGBTs ou
não.
• Oficinas de Aquendação de Cidadania – atividade em grupo, a partir da proposta
de trabalho de oficinas já realizadas com travestis e transexuais no período de ação
da ONG AdeFidan5. Trata-se de espaço grupal, atualmente em fase de
planejamento com a participação de dois estagiários, que pretende articular o
compartilhamento das experiências de vida com a discussão da cidadania e
promoção de direitos. Esta atividade tem sido programada para iniciar no segundo
semestre de 2018.
• Oficinas de teatro pelo Grupo Translúcidas – oficinas teatrais que trabalham
atividades de teatro: jogos teatrais, exercícios de expressão corporal, de criação
coletiva, de improvisação, a partir de uma metodologia participativa e construída
a partir do desejo dos(as) participantes. São conduzidas por um integrante do
MARL e do Elity, psicólogo e supervisor de estágio. Atualmente, as oficinas de
teatro estão sendo reelaboradas e estão programadas para retomas no segundo
semestre de 2018.
Estas ações começam a ser implementadas, algumas ainda não foram colocadas em
prática, mas já começam a ser planejadas. Este trabalho acompanha um percurso em ação, o
desenvolvimento destas atividades. Estas ações têm sido divulgadas e ofertadas, inicialmente

5 Organização Não-Governamental da cidade de Londrina que atuou no período de 2001 a 2007, referência nos
trabalhos com prevenção, trabalho e garantia dos direitos básicos para as pessoas travestis e transexuais. As
oficinas eram realizadas por Wiliam Siqueira Peres, psicólogo e professor universitário.

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para travestis e pessoas trans que já são atendidas por um dos pontos da Rede T (a Defensoria
Pública e o atendimento médico voluntário).
A proposta é que conforme a consolidação das ações propostas, elas sejam divulgas e
ofertadas a outras travestis e pessoas trans que não se encontram nestas listas, o que implica um
trabalho de busca ativa da população. Todas estas atividades, garantidas de forma voluntária,
encontram limites nos recursos humanos e materiais que dispõe, o que influencia diretamente
sua capacidade de atuação.
Entretanto, este processo em plena ação e bastante fervilhante no que diz respeito às
mobilizações geradas (em estagiários, profissionais, ativistas e participantes), tem aberto canal
para identificar, pautar, estudar estas demandas específicas. Tais atividades tem possibilitado
campos de estágio para estudantes de psicologia, com a intenção de enriquecer e contextualizar
a formação e o fazer do psicólogo, visto que, infelizmente a formação acadêmica ainda deixa a
desejar no que diz respeito a atualizar-se diante das mudanças

Considerações finais.
Ainda que seja um processo em curso, é possível perceber na prática toda a
problematização que permeia o contexto. A falta acolhimento e respeito para com a população
trans e travesti é algo que temos nos deparado de modo recorrente. Já podemos mapear, mesmo
a partir dos relatos iniciais, que a vivência de situações de transfobia são marcantes e
compartilhadas em diferentes modos e níveis pelas pessoas que procuram as atividades. Temos
observado também que os relatos de transfobia também perpassam os serviços públicos, o que
se configura um obstáculo para a efetivação dos direitos dessa população.
Nos referimos a pessoas que têm seus direitos enquanto cidadãos impedidos diariamente
de serem acessados. O descaso e abandono afeta desde as relações pessoais e familiares, as
profissionais, saúde (de maneira integral). Vemos direitos que são garantidos por lei, serem
negados simplesmente pelo fato de não estarem encaixados no padrão imposto.
Não temos ainda dados organizado e analisados, uma vez que esta experiência se
encontra em fase inicial de desenvolvimento. Não foi nosso objetivo também como este
trabalho, apresentar estes relatos, mas antes apresentar as ações em rede que tem sido
articuladas. Nosso objetivo principal foi de apresentar este processo de formação de um trabalho
em Rede, onde se articulam saberes e forças advindas de diferentes atores/atrizes da sociedade,
implicados com a luta pela garantia do acesso aos direitos de travestis e transexuais, na cidade
de Londrina. Esta articulação, resultado da urgência do debate e de responda às violências
sofridas por essa população, orienta um processo coletivo de construção e reinvindicação que

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visam a criação de políticas públicas, responsabilizando o Estado pela garantia dos direitos
constitucionais.
Toda essa experiência tem sido vivenciada e foi aqui relatada, a partir do envolvimento
de estagiários de Psicologia neste percurso. Temos experimentado um campo plural e diverso,
onde as fronteiras não são estritamente definidas, e os modos de se envolver de cada estagiário,
supervisor de estágio, psicólogos(as), ativistas, se encontram transpassadas, transformadas,
transbordadas de seus papéis socialmente definidos. Apontamos a necessidade de uma
perspectiva crítica no campo da Psicologia, no sentido de posicionar-se diante do cenário de
desigualdade social e transfobia. Assim, se faz necessária a revisão não somente das práticas de
psicólogos(as) de serviços que atendem (ou deveriam atender) essa população. Mas também a
revisão dos esquemas de referência teóricos de sujeito(a), subjetividade, sexualidade, gênero,
entre outros aspectos que compõem as composições subjetivas da experiência humana,
considerando a diversidade histórico-social.
As questões éticas que atravessam este campo de estudos e práticas se tornam um dos
pontos chaves para problematizar os aspectos de formação em Psicologia, a partir da
experiência relatada neste trabalho. Respondem, de alguma forma, às orientações dos órgãos
regulamentadores da formação e atuação em Psicologia. Estas questões se colocam como
desafios à Psicologia e à formação, no sentido de resgatar seu compromisso com a
transformação social, política e emancipatória de todo ser humano (PERES, 2013).NA
formação em Psicologia deve estar comprometida com a realidade social vinculando ética e
exercício da cidadania.

Referências
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O corpo pesquisador e o corpo pesquisado: os processos de inserção do pesquisador,


para a construção coletiva junto ao movimento transexual de Londrina, de um veículo
popular e comunitário de comunicação

Reginaldo Moreira1

Resumo

O objetivo deste artigo é revelar a entrada do extensionista pesquisador/cartógrafo, do campo


da comunicação popular e comunitária, no território trans. Quais as implicações e afetos
múltiplos geram no corpo pesquisador e no corpo pesquisado, que também é pesquisador e
vice-versa. A via de mão dupla dessas pesquisas concomitantes e a permissão das ativistas do
movimento social, para nossa entrada no campo. A pesquisa se dá a partir das ações de
extensão do Projeto “Plataformas Digitais: a produção comunitária de novas narrativas
alternativas ao discurso hegemônico, como dispositivo de produção de novos sentidos”, em
curso na Universidade Estadual de Londrina (UEL). O objetivo é a construção coletiva de um
programa de rádio, cuja narrativa seja contra hegemônica à narrativa produzida pela grande
mídia, que via de regra, as estigmatiza. Descobrir cada potencialidade na construção de uma
nova narrativa, que possa interferir na construção de uma nova imagem das transexuais e
travestis da cidade de Londrina, cidade do interior do Estado Paraná, interferindo no
imaginário social acerca desta população. Para tanto a pesquisa utiliza-se da proposta
metodológica da Cartografia Sentimental, de Sueli Rolnik, que se inspira na fonte cartográfica
de Deleuze e Guattari. Toda inserção, afetações e agenciamentos, se transversalizam a partir
do corpo pesquisador ao encontro com os corpos vibráteis e rizomáticos das trans,
participantes do Coletivo Elity Trans. A metodologia teórica-pragmática-poética, da
cartografia sentimental, possibilita que o pesquisador/cartógrafo narre em primeira pessoa as
implicações com o campo. O processo de produção do programa de rádio já dura dez meses e
os quatro primeiros programas para web rádio acabaram de ser finalizados. A produção de
uma rádio revista eletrônica, denominada “É BABADO, KYRIDA!” é resultado de um
processo de participação democrática, que reuniu as trans, os ativistas do Grupo Elity Trans,
docentes e discentes da Universidade Estadual de Londrina e de outras universidades, tendo
como eixo norteador a saúde integral da população trans e garantindo seu protagonismo. A
narrativa alternativa em rádio visa revelar a diversidade de pontos de vista das pessoas trans
sobre a realidade. O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, cuja expectativa de
vida é de 35 anos. Diante destes dados alarmantes, o programa visa contribuir com a prestação
de serviço à toda sociedade, esclarecendo sobre os direitos desta população, a fim de diminuir
os estigmas sociais impostos e mostrar como pode ser rica a convivência com as diferenças.

Palavras-chaves: É babado, kyrida!; Elity Trans; Cartografia Sentimental.

1
Docente do Departamento de Comunicação, da Universidade Estadual de Londrina (UEL); Doutor em
Comunicação; email: regismoreiraregis@gmail.com

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Introdução: A Proposta Metodológica


A cartografia sentimental (2007), de Suely Rolnik, é a proposta metodológica que me
orienta neste artigo. Ela, que bebe da fonte de Deleuze e Guattari (2005), possibilita a
validação das subjetividades como verdade científica, a partir dos afetos, dos corpos vibráteis
e dos processos rizomáticos, que produzem sentidos a partir do experimentar na própria pele.
Essa proposta não pressupõe hipóteses, nem objetos, nem início ou fim, o que a norteia são os
processos, que vão sendo vivenciados, emprestando o olhar do pesquisador sobre o campo,
num percurso que implica na produção de novos sentidos, eixos e conexões tanto na vida do
pesquisador, quanto na vida dos pesquisados. Este artigo, retrata as afetações do campo em
meu corpo pesquisador, que se descobre pesquisado pelas trans, a partir do momento em que
me insiro nos em seus territórios vivenciais. Ledo engano a pesquisa que se propõe isenta,
imparcial e distante, como se esse falso rigor a fortalecesse ou que a verdade científica
estivesse atrelada a distanciamentos de um pesquisador observador não implicado.

Neste processo, o conhecer demandado será um conhecer militante, um saber


que não pode deixar de ser singular, ou quase particular, que faça sentido para
quem está no processo sob análise, e que poderá fazer sentido para os outros
que compõem o cenário protagônico em interrogação. (MERHY, 2004, p. 13)

Para esta pesquisa, a inserção do pesquisador in-mundo é que valida as verdades dos
corpos, tanto das pesquisadas, quanto do meu próprio, numa proposta contra hegemônica de
produção do saber, que a mim é um caminho possível para tornar a ciência, de fato, potente e
livre de academicismos, que se baseiam tão somente em conceitos representação, enquanto
que a proposta cartográfica busca os conceitos vivência, sendo o pesquisador também um
cartógrafo, e também, segundo Rolnik, um antropófago.

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se
espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades do seu tempo e
que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos
possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O
cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago. (ROLNIK, 2007, p. 23)

Nós, seres vivos, estamos num processo de produção de vida e de mundo, por meio da
criação dos sentidos que damos a eles. O real vivido é validado por nós por meio das

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afetações, que constituem a realidade de como pensamos, somos e agimos. Nada é estanque
na produção das vidas e dos mundos, mas processual. Não há começos e nem fins, mas
caminhos. Não há qualquer tentativa de enquadramento ou formatação do que é
intrinsicamente processual, que não perca as amálgamas, as ligações imbricadas, as conexões
diversas, o rizoma apresentado por Deleuze e Guattari.

Um rizoma não começa, nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança. A
árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...
e... e...” Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o
verbo ser. (...) É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as
coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação
localizável que vai de uma para outra reciprocamente, mas uma direção
perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho
sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 37)

Nas conexões “e” desses processos rizomáticos, em que os corpos vibráteis


potencializam os encontros, o sentimental proposto por Rolnik, está longe de significar
sentimentalismos, mas traz no seu significado as relações de afeto, o estado de ser afetado por
alguém, alguma causa, pelo território, pelo mundo.

(...) É bom lembrar que “sentimental” aqui não tem nada a ver com
sentimentos e muito menos com sentimentalismo (...) O “sentimental” aqui
tem mais a ver com afeto: cartografia do afetar e do ser afetado, dos corpos
vibráteis de uma geração. Devir desses corpos. (ROLNIK, 2007, p. 231)

A validação da verdade por meio do saber militante e implicado, possibilita a


existência da subjetividade na construção da ciência, por meio da proposta metodológica da
cartografia sentimental, que é teórica, pragmática e poética. Esses processos de devoração
antropofágicos e de retro-alimentação, possibilitam a ressignificação e a validação dos
territórios, das verdades e das trajetórias de vida. Rolnik (2007) observa a transformação dos
territórios, com seus modos de subjetivação, seus objetos e saberes, compondo-se e
decompondo-se, em processos de territorialização e desterritorialização, para criação de novos
mundos, por meio das paisagens psicossociais.

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A construção do conhecimento singular desta pesquisa se dá por meio desta proposta


apresentada, com o intuito de revelar a vista de um ponto e colaborar com a comunidade
trans, com futuros pesquisadores e com a academia.

Primeiras cenas do aproximar do corpo pesquisador/cartógrafo dos corpos


pesquisadxs/cartografadxs2: vias de mão dupla

A entrada no campo de pesquisa-ação-extensão é sempre uma delicadeza, cheia de


nuances, que deslocam, territorializam e desterritorializam nossos corpos ao encontro com os
outrxs, nossos desejos, nossos sonhos, nossas aspirações, nossas emoções, nossos sentires,
nossos olhares, afecções múltiplas postas na mesa, para serem antropofagicamente deglutidas,
engravidadas e transformadas em outros afetos... Dividirei o primeiro encontro em cenas, para
melhor explicitá-las ao leitor.

Cena 1: Era uma tarde de sábado, coloquei-me como voluntário para ir ajudar a fazer
o jantar no evento Unir para Trans-Formar Sul, encontro realizado na cidade de Londrina, nos
dias 14 e 15 de julho de 2017, que reuniu lideranças do ativismo TT (travestis e transexuais),
vindas dos três estados da região sul do Brasil. O encontro acontecia no Canto do MARL,
uma ocupação do Movimento dos Artistas de Londrina, localizado no norte do Paraná.
Cheguei um pouco tarde e a produção do jantar já estava bem adiantada. Coloquei-me à
disposição para fazer o que fosse preciso e antes de mais nada, me dispus a cuidar da louça
após o jantar. O grupo havia se deslocado para a Plenária Pela Igualdade Racial, que também
acontecia na cidade, para apoiar Abelha Rainha3, uma das coordenadoras do evento trans. Na
cozinha estávamos eu, Tuluia (uma travesti com mais idade), um outro rapaz (que eu não
consegui identificar se era um gay ou um trans homem) e Tito, que era o cozinheiro chef
daquele momento. Passadas as apresentações iniciais, resolvi então puxar um assunto, eu que
sou gay, mas não sou trans; oriento trabalhos de pesquisa sobre trans, mas nunca havia estado
tão junto com eles/elas, e nessa dicotomia de pertencimentos, pertencer à causa, porém de
outra forma, de um outro lugar de certa forma historicamente privilegiado; vivo na pele um
pouco de tudo o que se vive com relação à violência de gênero, porém nem perto do que os/as
trans vivem, estava eu ali, puxando um papo para quebrar o gelo e falei de uma reportagem da
Globo local, que havia me incomodado muito naquela semana, pois mascarava o crime de
homofobia cometido contra um cabeleireiro da cidade, enquadrando o assassinato como
2
Por vezes utilizarei o “x” para conjugar muitos verbos no plural, artigos, rponomes etc, que a gramática da
Língua Portuguesa determina que sejam no gênero masculino, porém parte do movimento LGBT tem se
utilizado do “x” para deixar sem gênero definido, ampliado esse leque.
3
Os nomes reais foram substituídos para preservação das identidades.

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latrocínio, sem nem considerar as condições em que a vítima havia sido duramente torturada e
morta. A reportagem dizia que o cabeleireiro havia saído de um bar, localizado numa avenida
da cidade, sabidamente um bar LGBT, porém não citava esse detalhe. Depois narrava que ele
havia dado carona para dois homens, na região da Catedral da cidade, conhecidamente como
área de prostituição masculina, porém também não fazia alusão à questão dos michês. Falei
do caso com indignação, pois o crime de homofobia não era considerado nem pela polícia,
nem pelo jornalismo, que me parecia hipócrita ou mesmo homofóbico (e as questões com o
jornalismo, com “j” minúsculo mesmo, me incomoda muito, por ser jornalista e professor de
um curso que forma futuros jornalistas). Enfim, ao final da minha prosa, veio a primeira
lambada, que me descolou completamente do lugar de onde eu estava falando, quando Tito,
nosso chef, diz: - “Eu sou surfistinha! (referindo-se ao seu trabalho como michê). E não tem
mais garotos de programa fazendo ponto perto da Catedral, eles se mudaram de lá. Ali só tem
nóia. Eu sou um dos poucos que ainda faço ponto por ali, porque falei com os nóia para eles
me respeitarem, que estou precisando trabalhar. Mas pelo que você disse, ele deve ter dado
carona pros nóia”. Eu me recolhi, diante de minha fala desatualizada e de quem não vive na
pele a realidade da prostituição. Somente perguntei pra onde é que eles haviam mudado o
local de trabalho, ao que ele não soube responder. A prosa continuou sobre violência entre
clientes e michês, travestis e trans, em que eles e elas narravam as violências ocorridas, na
maioria das vezes ocasionada pelo não cumprimento dos contratos e combinados iniciais. Fui
totalmente deslocado de meu saber limitado, analítico, crítico, de quem não vivencia a
prostituição para sobreviver. Era como que Tito tivesse me dito, nas entrelinhas: - “Você está
querendo insinuar que os michês são criminosos?” Longe de mim querer dizer isso, mas era
por um triz que não havia escapado algo que pudesse ser interpretado dessa forma. A
preparação para o jantar transcorria e eu me colocava, cada vez mais, como ajudante do chef,
que gostava do papel de coordenar como tudo se daria. Fiquei responsável pelo suco, ajudei a
cortar as frutas e comprei duas caixas de bombons para sobremesa, ao que ele determinou: -
“Vai ser um bombom para cada um”. E eu, ingênuo novamente, sugeri: - “Vocês não estão em
quinze? Acho que dá para ser dois pra cada um”. Ao que ele me retrucou: - “Um para cada
um! E se sobrar, a gente dá mais um. Você não sabe quanta gente vem para o jantar?” E eu
coloquei no meu lugar rapidinho: - “Nada melhor que ouvir a voz da experiência”. A maioria
dos ingredientes do evento tinham sido doados pelo Feirão do MST (Movimento dos Sem
Terra), que havia acontecido há uma semana naquela ocupação. Dali algum tempo todos
chegaram para o jantar. As trans traziam lanches, água e refrigerantes que haviam ganhado na
Conferência Pela Igualdade Racial. Era uma rede de solidariedade. Além dos e das trans,

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chegaram para o jantar muitos artistas de rua, que estavam pela cidade, apresentando-se nos
semáforos e outros espaços públicos. Era uma riqueza de sotaques argentinos, chilenos,
peruanos... Entendia a história de ser um bombom, compreendia a rede solidária que ali
vibrava e comunguei com todos num prato de comida, que comi mesmo sem estar com fome,
mas para não fazer desfeita e também não parecer que era o “nojentinho do rolê”. O ato
antropofágico do comer, ali simbolizava a devoração das redes MST, MARL, TRANS,
Ocupações, que se fundiam em mim e eu me sentia um pouco mais pertencente.

Cena 2: As louças começaram a surgir e por ali, a regra era para cada um lavar a sua,
mas eu tinha me colocado à disposição para lavar de todos. E fui para meus afazeres. Certo
momento sai da pia e quando voltei, quem estava lavando os pratos e talheres era a Abelha
Rainha (coordenadora do evento) e eu tratei logo de dizer: - “Rainha, deixe que essa função
hoje é minha e você deve estar cheia de afazeres para o Cabaré4”. Ela só me olhou e naquele
olhar, quantos processos rizomáticos se fizeram ali. Era o corpo vibrátil da Abelha Rainha
comunicando para mim: - “Agora eu entendi o que você veio fazer aqui”. Assim eu interpretei
aquele olhar, que me autorizava a entrar na pia. E o nosso projeto dentro do Observatório,
localizado no Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL),
que se denomina “Plataformas Digitais: A Produção Comunitária de Novas Narrativas
Alternativas ao Discurso Hegemônico, como dispositivo de Produção de Novos Sentidos”, ali,
era buchinha e sabão. Nada mais analógico, nada mais verdadeiro. Quando se está no campo,
não é somente o cartógrafo/pesquisador que está pesquisando, somos também pesquisados o
tempo todo. E essa autorização para que possamos participar da cena, vem das sutilezas, dos
deslocamentos, daquele olhar da Abelha Rainha. Aqui em Londrina (uma cidade de 600 mil
habitantes), os docentes da UEL são mapeados e ganham certa autoridade, atribuída pelas
pessoas. Isso, por vezes, prejudica um pouco o trabalho de campo. Quando há esse tom do
distanciamento, é preciso, antes de mais nada desconstruí-lo e revelar outras nuances que a
universidade tem para ofertar e receber. Há certa reclamação de pesquisas realizadas sem
nenhuma devolutiva para os coletivos, como acontece em muitos casos e muitas instituições
de ensino. Quebrar esse gelo inicial e construir uma relação horizontal de respeitabilidade,
participação e confiança, são condições para as transversalidades múltiplas dos afetos e dos
devires.

4
Após o jantar foi realizado um evento cultural, com performances, música e dança, denominado Cabaré, que
encerrou o Encontro de Trans. Betinha Bafo, por ser atriz, estava toda envolvida com essa produção.

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Cena 3: O Cabaré havia começado e a qualidade era surpreendente. Lindo, sensível, a


arte de fazer muito com poucos recursos e tocar, tocar porque é integro, porque é intenso,
porque é visceral. E naquele momento comecei a fotografar com meu celular e os amigos e
amigas trans pediram para que disponibilizasse posteriormente na página do evento. Fiquei
feliz, estava começando a ser plataforma digital por ali. Mas não pense que Abelha Rainha
estava satisfeita com sua pesquisa sobre mim. Quando o som começou a ficar propício, ela
veio me tirar para a dança, mas não pense você que era um simples “levanta e dança”, ela me
desafiava, como que em passos da capoeira, como se me testasse, vendo até onde estava
disposto a ir com ela na contradança, qual seria o meu limite para a entrega. E eu fui, com
experiência de anos de Biodança, deixando a música me invadir e respondendo aos estímulos
e desafios dela, que gerou uma dança bonita, harmônica, com movimentos de entrega.

Cena 4: Mais tarde, o Cabaré ia chegando ao fim, e Abelha Rainha veio até mim e
presenteou com um lindo calendário, ilustrado com fotos de personas da cidade, entre elas, ela
própria. Fiquei emocionado, ela me agradeceu com um beijo na testa e, ainda para saber qual
era a minha e qual meu posicionamento diante da vida, falou: - “Ah, desculpe, deixei uma
marca de batom em você. Seu marido vai achar ruim. Porque você é casado, não é mesmo?”
No que eu respondi: - “Ihhh, tranquilo, tenho namorado, mas ele está em Curitiba esses dias,
até ele chegar essa mancha de batom já saiu...” Rimos. Coraçãozinhos popularam pelos ares,
como nos emotions digitais. Trans-bordadxs em trans-versos trans-formadores. Foi lindo! Foi
intenso! Foi pura afetação!

A representação trans na mídia

A representação da população trans pela mídia ainda é calcada em estereótipos e


estigmas, que, ou as invisibiliza, ou as vincula e veicula à marginalidade, à criminalidade, à
disforias e desvios diversos, sem, na maioria das vezes, representar a pluralidade, a
singularidade e a subjetividade que as compõem, contribuindo com a estigmatização histórica
a essa população, gerando ainda mais preconceito e exclusão social, e, porque não dizer, ódio
e fobias em relação aos e às transexuais.

Historicamente a população LGBT foi representada da pior forma possível. Os


primeiros registros constam nos autos de processos policiais, em que a população LBGT era
enquadrada enquanto criminosa. Junto a esses registros, a medicina tentava por métodos
questionáveis, nos enquadrar como doentes. Foi somente no ano 1990, que a
homossexualidade deixou de ser considerada doença pela Organização Mundial de Saúde

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(OMS) e somente agora, em 2018, está em processo de revisão a realocação do capítulo de


“transtornos mentais de identidade de gênero” para “condições relativas à saúde mental”, que
prevê retirar as identidades trans e travestis do capítulo transtorno mental, porém na
atualização do Código Internacional de Doenças (CID), da OMS, previsto para ser publicado
este ano, elas ainda continuam como CID-11, na Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde.

Sobre tais representações históricas, os autores James Green e Ronald Polito, no


livro “Frescos Trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870 -
1980)”, revelam, entre outras coisas, a invisibilidade da população trans nos processos
históricos, generalizando as trans e as travestis como homossexuais masculinos ou
afeminados. Esses registros policiais e medicinais trazem toda carga de estigmas, na tentativa
de criminalizar ou enquadrar esta população como doente, como perigosa, como vidas que
valem menos. São nos registros policiais e da medicina que se encontram as primeiras
representações da população LGBT e dessa união entre a medicina e o aparato jurídico-
policial, surge o mesmo destino para encaminhamento dos homossexuais: o confinamento.

Os médicos tinham conceitos sobre o que era normal ou anormal, que os


orientavam para caracterizar o homossexualismo como doença ou não.
Tentavam discriminar os homossexuais como passivos, ativos ou mistos e
procuravam também causas para explicar a existência de homens assim,
fossem hereditárias, psicanalíticas, biotipológicas ou endocrinológicas. É
extensa a aproximação entre médicos e aparato jurídico-policial, cabendo à
polícia capturar homossexuais considerados delinquentes e entregá-los a
pesquisadores do campo da medicina para “estudos”. Uma vez apanhados pela
lei, os homossexuais teriam dois destinos distintos, mas idênticos do ponto de
vista do seu resultado: o confinamento. Se o conhecimento médico atestasse
sua “doença”, poderiam ser encaminhados para tratamento clínico específico;
se não, poderiam ser tratados como criminosos comuns. E, se houvesse uma
doença, os médicos também planejariam os “remédios” e as “profilaxias”
possíveis ao caso. (GREEN & POLITO, 2006, p. 21)

Certamente, as experiências da medicina e as intervenções da polícia se deram, no


Brasil, sobre a população pobre. Os LBGTs ricos eram poupados dessas estigmatizações e
estavam “protegidos” dos deploráveis métodos empregados.

Tal como outros grupos oprimidos da sociedade, eles entraram para a história
na precisa medida em que foram detectados, estudados e controlados pelos

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grupos heterossexuais, dominantes desde sempre no conjunto social. Mais


especificamente ainda, foram geralmente os homens pobres, lançados na mais
absoluta miséria econômica, os que se viram investigados e esquadrinhados
pelas instituições policiais e científicas, sem terem nenhuma condição de se
oporem a ter suas vidas e intimidade devassadas. Naturalmente, os
homossexuais masculinos da classe média ou da burguesia do Brasil sempre
puderam escapar do cerco policial e médico implacável que foi armado,
durante quase todo século XX, buscando classificá-los e condená-los.
(GREEN & POLITO, 2006, p. 17/18)

Na imprensa, os LGBTs continuam a ser registrados em jornais, de forma estigmatizada.


Sempre da vista de um ponto de uma imprensa elitizada, composta por jornalistas e
intelectuais, que de modo vertical, imprimiram seus olhares a esta população.

Como não é difícil de imaginar, a maioria das fontes acerca dos homossexuais
masculinos não foi produzida por eles próprios. Com efeito, levando-se em
conta os inúmeros preconceitos e perseguições sofridos pelas minorias
sexuais, foram raríssimos aqueles que ousaram deixar testemunhos de próprio
punho acerca de sua condição, pelo menos até os anos 1960. (GREEN &
POLITO, 2006, p. 17)

Algumas iniciativas de colunas na grande imprensa e boletins gays começam a surgir


no final dos anos 70, mas foi somente com a fundação do jornal Lampião de Esquina, no ano
de 1978, durante a ditadura militar, pós período do Ato Institucional (AI) 5, que um grupo de
homossexuais consegue formatar um periódico mensal, revelando pontos de vista da
população homossexual, para a população homossexual.

(...) O Lampião não pretende solucionar a opressão nossa de cada dia, nem
pressionar válvulas de escape. Apenas lembrará que uma parte
estatisticamente definível da população brasileira, por carregar nas costas o
estigma da não-reprodutividade numa sociedade petrificada na mitologia
hebraico-cristã, deve ser caracterizada como uma minoria oprimida. E uma
minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz. (GREEN & POLITO,
2006, p. 183)

Porém, a de se destacar, que no grupo idealizador e produtor do Lampião, não há a


participação de transexuais ou travestis, o que denota, que mesmo sendo uma conquista ao
universo LGBT, deixava de fora, em sua estrutura pensante, a população trans.

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O Lampião da Esquina teve duração até o ano de 1981 e fez parte de uma imprensa
denominada alternativa e de resistência. A partir do fim da ditadura militar e da reorganização
política democrática, as potentes ações dos movimentos sociais suscitaram por um novo tipo
de comunicação, cujo conteúdo fosse realizado pelas pessoas que vivenciavam essas
transformações, para a reconstrução das cidadanias, das lutas, das leis, tendo a Constituição
Federal de 1988, como um importante marco; da criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
entre tantas importantes pautas na reconstrução da democracia, maculada pelos 20 anos de
ditadura militar.

A manipulação midiática, posta a serviço do controle social, esconde o fracassado e


não bem sucedido, que é a maquinaria do capital. Tal maquinaria faz uso de uma lógica
violenta, que não dá conta de suportar sujeitos de sua própria história e oferece somente as
engrenagens esmagadoras de projetos, sonhos, identidades, singularidades, diversidades,
pluralidades... A criação de novos imaginários sociais dos desobedientes, dos criadores da
lógica da desobediência civil. Para dar conta de fazer um contraponto a essa fracassada e mal
sucedida produção midiática manipulada e tendenciosa à manutenção do domínio da mesma
velha elite dominante, são necessários dispositivos em que possam reconhecer esse não lugar
da maquinaria do capital, como um novo lugar na estética do viver, de produção de novos
cuidados e sentidos. É a desterritorialização e territorialização, a desconstrução de antigos
mundos, para o surgimento dos novos potentes mundos, amplos de significados. Esses
dispositivos de comunicação devem dar acesso às pessoas em situação de desobediência para
que digam: eu tenho um lugar, eu existo!

Esse novo precariado produtivo luta para obter o “copyright” sobre sua própria
produção cultural e imagem, sabendo que o agenciamento entre as diferentes
esferas (favelas, universidades, movimentos, Estado) pode apontar para uma
rede mais ampla de parcerias produtivas e profundamente transformadora da
cultura urbana brasileira. (BENTES, 2009, p. 61)

Neste sentido a produção de um programa de rádio comunitário, participativo e


democrático com a população trans da cidade de Londrina, tem o objetivo de produzir
narrativas contra hegemônicas sobre a população trans, pela população trans e para a
população trans, sem interferências de editores com visões verticais e estigmatizantes. O
Projeto de Extensão Universitária, denominado “Plataformas Digitais: a produção comunitária
de novas narrativas alternativas ao discurso hegemônico, como dispositivo de produção de

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novos sentidos”, por mim coordenado, tem como uma das frentes de trabalho, o Grupo Elity
Trans, com o objetivo de criar novas possibilidades de dizibilidades e visibilidades desta
população.

Assim nasce o programa de web rádio É BABADO, KYRIDA!, com o objetivo de


revelar a toda sociedade os pontos de vista da população trans sobre o mundo. De maneira
participativa e democrática o programa foi sendo criado, desde os gêneros e formatos
jornalísticos, a veiculação radiofônica, numa emissora web, a partir de uma revista eletrônica;
quanto aos quadros, músicas... e todos os conteúdos que o vieram a compor. Nesse processo
do fazer comunicação comunitária, é fundamental o “fazer com”, vigiando-se sempre com
relação à herança colonizadora, neoliberal e um tanto facista, do “fazer por” ou do “fazer
para”.

A revista é composta por diversos quadros. O quadro de esclarecimentos sobre


assuntos relativos à população trans recebeu o nome de “É bafo, Mona”. Outro quadro é sobre
denúncias da população trans, batizado de “Bota a Cara no Sol”. As dicas foram intituladas
por “Almanaka”. Já a língua Pajubá, traduzida para a população, levou o nome de “Nossa
Língua Pajubá”. O “Minuto Trans”, traz depoimentos sobre os processos de transformação de
trans. Histórias da vida real são transformadas em radionovela, no quadro “O Exagero de La
Piele”. “Sarau no ar” traz a produção poética trans. A enquete também se faz presente, como o
nome “Da esquina” e a entrevista levou o nome de “Aquenda”.

O primeiro programa vai ao ar pela Alma Londrina Rádio Web -


https://www.almalondrina.com.br/, a partir do dia 16 de junho, marcada por uma festa de
lançamento. A periodicidade dos programas será quinzenal e ficarão disponíveis em podcast,
em nossa veiculadora.

Grupo Elity Trans

O Elity Trans é um Grupo de Trabalho (GT), criado no ano de 2012, na cidade de


Londrina, interior do Paraná, com a compreensão e a necessidade de organização da
comunidade trans, diante da realidade devastadora de assassinatos e desassistências diversas,
que esta população enfrentava. Desde então, o grupo de militância luta por uma sociedade
mais justa e igualitária, por um mundo em que a convivência com as diferenças e os diferentes
seja harmoniosa.

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As principais lutas de resistência do grupo se dão contra a transfobia, a lgbtfobia,


contra todo tipo de violência social à população trans, à garantia de direitos civis e pela saúde
integral das trans. O desrespeito com a diversidade sexual são considerados crime contra o
ser humano e a luta por uma vida digna, pelo direito de ser quem são, com todos os direitos
garantidos pela Constituição Brasileira, de 1988, e pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos, datada de 1948.

Considerações finais

Foram tantas implicações, afetações e afetos entre os corpos pesquisados, tanto trans,
cis, bi, homo, hétero, binários ou não... nesses dez meses de trabalho para criação do
programa É BADADO, KYRIDA!, tantos entremeios, transversalidades e processos, que os
corpos se somaram num só corpo: o programa de rádio web. Os grupos Elity Trans e o grupo
do Projeto de Extensão “Plataformas Digitais”, composto por militantes, professores
universitários, profissionais da área do Jornalismo, da Assistência Social, das Artes,
estudantes das áreas do Jornalismo, Relações Públicas, Psicologia, Administração e Artes
Visuais, somaram forças, com parcerias com a Rádio UEL (rádio universitária), com o
Departamento de Comunicação da UEL e com a Alma Londrina Rádio Web. O corpo vibrátil
em ato! Os processos rizomáticos vivenciados em todo processo. Meu corpo já não é mais o
mesmo, trans-formou-se. Os corpos pesquisados também já não os são. Na política dos afetos
fez-se possível a criação de novas narrativas, a partir da própria pele.

A produção do programa de rádio teve um efeito disparador para outras ações da


militância trans. O grupo começou um trabalho junto com a Defensoria Pública e foi criada
uma Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População Trans de Londrina, em parceria
com o Centro Pop, dos viventes das ruas da cidade. A rede está em funcionamento na
Ocupação Cultural do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina - Kanto do MARL – e
semanalmente recebe trans para diversas atividades de saúde e cultura.

Numa das últimas ações do coletivo do programa de rádio, antes do encerramento


deste artigo, sobre a divulgação da revista eletrônica, a veiculadora sugeriu um texto para o
release de assessoria de imprensa, em que me nominava como representante do programa, o
que me causou estranhamento e logo ao partilhar no grupo de whatsapp, criado
exclusivamente para as produções do programa, disse que não concordava que fosse o
representante, sendo que as legítimas representantes eram as duas trans militantes e
participantes de todo o processo de criação do É BABADO, KYRIDA! Elas, que estavam

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viajando num evento ligado à militância do movimento trans, enviaram um áudio generoso,
em que davam o aval para que fosse representante do coletivo ou coordenador, achando isso
indiferente e colocando-se como parte do coletivo e colocando-me como quem havia tomado
iniciativa e integrante desta história. Sim, somos todos integrantes desta história, todos
integrantes deste coletivo, mas pedi as devidas alterações no texto de divulgação. Não há
porque alguém representar xs transexuais. Não há motivo para um professor universitário
representar esse coletivo produtor de narrativa contra hegemônica da população trans. O
protagonismo deve ser todo da comunidade trans. Basta de verticalizações. Deixemos que a
população trans fale por elxs mesmxs!

Referências Bibliográficas

BENTES, Ivana. Redes Colaborativas e Precariado Produtivo. Periferia: Revista de Programa


de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação da FEBF/UERJ, v. 1, n.1. Rio de
Janeiro: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/issue/view/262, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix; tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
GREEN, James & POLITO, Ronald. Frescos Trópicos: fontes sobre a
homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio,
2006.
MERHY, Emerson. O conhecer militante no sujeito implicado: o desafio em reconhece-lo
como saber válido. In: FRANCO, PERES, FOSCHIERA et alls. Acolher Chapecó: uma
experiência de mudança do modelo assistencial, como base no processo de trabalho. São
Paulo: Editora Hucitec, 2004.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p636 648


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Repercussão entre internautas da inserção da primeira atleta transgênera na


superliga feminina de vôlei do Brasil

Guilherme\Isabela Silva Safraider1


Adriana Gelinski2

RESUMO
A presente reflexão tem como objetivo compreender a partir dos comentários em sites
de notícias, publicadas no ano de 2018, sobre a participação e atuação da atleta Tiffany na
superliga feminina de vôlei do Brasil. Tendo como objetivos específicos identificar o conjunto
de ideais estabelecidos em relação a binariedade nos comentários dos sites de notícias
relacionados a atleta trans Tiffany. Quantificar comentários positivos e negativos em relação a
participação da atleta trans Tiffany na superliga feminina de vôlei do Brasil e averiguar o
discurso biológico nos comentários sobre a presença em quadra da atleta trans Tiffany na
superliga feminina de vôlei do Brasil. Apesar do mundo esportivo ser constantemente
marcado pelas relações binárias de gênero tradicionalista e cheia de estigmas (CHAVES,
2015), a atleta trans Tiffany teve aprovação do COI e federações para a sua atuação no esporte
de alto nível. A sua inserção no meio esportivo foi de grande destaque nos sites de noticias
esportivas, gerando assim apoio e revolta d@s internautas. Assim foram realizados buscas em
um total de 62 sites, deles 18 obtiveram 658 comentários dentre eles comentários positivos e
negativos em relação a participação da atleta Tiffany na superliga feminina de vôlei do Brasil.
E o restante totalizando 31 sites não obtiveram nenhum comentário em relação ao assunto.
Evidenciou-se assim a partir dos comentários que a maioria das pessoas preservam
concepções binárias em relação a gênero e mostram o quão negativo entendem a participação
da atleta na superliga feminina de vôlei do Brasil.

Palavras-chaves: Atleta trans; sites de noticias; noções binárias.

1
Universidade Estadual de Ponta Grossa; graduandx de Bacharelado em Educação Física;
isasafraider@gmail.com.
1
Universidade Estadual de Ponta Grossa; mestra em Geografia; drycagelinski@gmail.com.

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Introdução.

O presente trabalho tem como objetivo compreender a partir dos comentários em


sites de notícias, publicadas no ano de 2018, a participação e atuação da atleta Tiffany na
Superliga feminina de vôlei do Brasil. No ano de 2016 houve alteração da regra, pelo Comitê
Olímpico Internacional (COI) para a participação de atletas transgener@s nas Olimpíadas. Em
suma, a regra atual não exige operação de transgenitalização, mas sim níveis hormonais
adequados e controlados por no mínimo dois anos anterior a competição. Regra esta que
possibilitou a inserção de pessoas trans no esporte amador e profissional. No início deste ano
esteve em destaque a jogadora de vôlei Tiffany, a primeira mulher transexual a jogar no brasil
na Superliga feminina de vôlei.
A sua atuação teve grande repercussão em sites de notícias esportivas, apoio e,
principalmente, revolta entre as/os internautas, visto que o esporte é marcado pela binariedade
de gênero, começando que quase todos os esportes são divididos em categorias distintas para
homens e mulheres. A partir de então questiona-se este padrão binário e heteronormativo qual
homens tem pênis e são masculinos, mulheres tem vagina e são femininas (CAMARGO;
KESSLER, 2017).
A repercussão da participação de Tiffany foi tamanha que foram encontrados
sessenta e duas (62) notícias, em sites nacionais e internacionais no período de janeiro a abril
de 2018. A soma dos comentários chagou ao total de 658 comentários. Foram todos
analisados e classificados em: a favor, contra e sem ralação.
Desta forma, foi pesquisado no Google notícias com as palavras Tiffany e vôlei,
foram utilizadas todas as matérias que foram publicadas neste ano (2018) no período de
janeiro a abril. Nesta pesquisa foram encontrados 62 sites, nacionais e internacionais, destes
somente 18 foram comentados por internautas, os comentários somaram-se em 658 que
posteriormente foram divididos em a favor, contra e sem relação. Para a primeira divisão
tiveram 39 comentários, para a segunda 540 e para a última 79.
Para analise do conteúdo dos comentários foram tiradas evocações e separadas em
subgrupos, para aqueles favoráveis obtivemos subgrupos: comentários que é o seu direito
participar, com 10 citações; ela está dentro da regra, 9 vezes evocado; que são novos tempos e
as pessoas utilizam opinião leiga, com 6 cada; internautas que acreditam que é resultado de
muito treino e que pessoas contra é por preconceito ou discriminação, somaram 5 cada.

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Uma atleta trans? reflexões sobre identidade de gênero, corpo e discursos nas redes
sociais.

Partindo da premissa que o mundo esportivo é constantemente marcado pelas relações


de gênero, normatizações e cheio de estigmas, pode-se entender os espaços esportivos como
espaços generificado. Assim, torna-se imprescindível estabelecermos como um dos fios
condutores as reflexões sobre identidade de gênero e corpo.
De acordo com Lanz (2015) as identidades fora da hegemonia heterossexual ou
"gênero-divergentes" rompem e afrontam a heteronormatividade e a noção binária gênero
homem\mulher. Tais identidades transgridem os discursos hegemônicos de gênero.
Entendemos que as sexualidades podem ser compreendidas como uma complexa malha de
regulação (FOUCAULT, 1997), historicamente construída por discursos, práticas e normas.
Entendendo as noções binárias homem x mulher, masculino x feminino como produtos
do mecanismo de gênero, este que, por sua vez, é construído e estabelecido de forma pré-
discursiva, podemos estabelecer assim uma conexão com nosso fenômeno.
O mecanismo de gênero, regula e normatiza os corpos, esses corpos, por sua vez, que
não seguem este modelo regulatório são passíveis de punição e vigilância para se adequar às
regras estabelecidas (BUTLER, 2003) nas mais variadas espacialidades desde a escola, casa
da família, praças, espaços de sociabilidade até os espaços esportivos. Ressaltando que o
espaço pode ser compreendido a partir das as relações e os discursos estão conectados e
compõem a vivência das pessoas, ao passo que determinados espaços podem ser acolhedores
e outros excludentes. Além disso, os espaços, de acordo com Massey (2000), são constituídos
pelas relações, compreendendo que o espaço é o lugar de encontro:

em vez de pensar os lugares como áreas com fronteiras ao redor, pode-se imaginá-
los como momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, mas
onde uma grande proporção dessas relações, experiências e entendimentos sociais se
constroem numa escala, seja uma rua, uma região ou um continente. (MASSEY,
2000, p. 10).

Desta forma, como afirma Butler (2003), o mecanismo de gênero reforça e naturaliza
as noções de masculino e feminino. Segundo a autora, é a partir dos discursos e práticas
constantemente repetidos que a noção de gênero é concebida. Reforça que o gênero não é o
que somos em essência, mas é algo que foi produzido, reproduzido e naturalizado.

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Para Butler (1990), o gênero nada mais é que uma construção e uma ordem fantasiosa
sobre os corpos. Através de repetições, gestos, contextos e práticas há a reiteração sobre a
construção de feminino e masculino, isto é, através da performatividade. Butler (2003) reforça
ainda que a materialidade corpórea está diretamente ligada aos discursos. Para a autora, o
gênero e o corpo são elaborados e interpretados, ou seja, fazem parte de uma construção.
Desta forma, a autora ressalta que o sexo não pode ser entendido como uma unidade
estática do corpo, mas sim é entendido como algo discursivo, produzidos devido às práticas
regulatórias. Sendo assim, o gênero é resultado de um mecanismo. Para Scott (1989), o
gênero está associado com as relações de poder. Este por sua vez, não está desencaixado do
contexto cultural, social, histórico, político e religioso que o elaboram e o mantém, como
afirma Butler (2003). Noutras palavras, o gênero não é algo que a pessoa é em sua essência,
mas é elaborado de maneira pré-discursiva, aberta para atuação na cultura (BUTLER, 1990).
Butler (1990, p.15) ainda afirma que:

o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido
e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície
politicamente neutra sobre a qual age a cultura.

Pensando assim, ao evocar que uma criança antes mesmo do seu nascimento é uma
menina ou menino, há uma suposição do sexo, gênero e desejo como algo a-histórico,
antecedente da cultura, constituindo assim um pensamento binário. Butler (2003) também
afirma que esta prática faz parte de uma ordem, leia-se, é parte da norma hegemônica
heterossexual. Logo,

Gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas


e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses
termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados. De fato, pode ser que o próprio
aparato que pretende estabelecer a norma também possa solapar esse
estabelecimento, que esse estabelecimento fosse como que incompleto na sua
definição (BUTLER, 2015, p. 254).

O que equivale dizer que o gênero é entendido como uma produção, reprodução e
expressão ou, como conceitua Butler (2003), é uma identidade constituída. Pensando assim, as
roupas ou a forma de se vestir, seguindo uma norma ou não, transforma um corpo reconhecível,
„apropriado‟ ou não (LANZ, 2014). Para a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos
serem identificados ou estigmatizados dentro de contextos específicos. Logo, a roupa não é

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apenas uma vestimenta, mas faz parte da identidade da pessoa, a qual se torna uma marca para o
corpo.
O corpo, antes de qualquer coisa, está no espaço como é o espaço (Lefebvre 1991
[1974]), e este mesmo corpo vivo dotado de energias, envolto por redes de relações (BUTLER,
2015), também carrega marcas. Noutros termos, o corpo não é somente natural e fixo, mas sim
é fluido e móvel, sendo entendido e significado no tempo e espaço (SILVA E ORNAT, 2016).
Para tanto, este “corpo não apenas existe no vetor das relações, mas é o próprio vetor”
(BUTLER, 2015, p. 85). Corpo este ilimitado em suas práticas, discursos e mobilidade na
exterioridade.
O corpo está em um tempo e espaço que não controla, estando social e geograficamente
distribuídos. (SILVA E ORNAT, 2016). Desta forma, as roupas ou a forma de se vestir,
seguindo uma norma ou não, transforma um corpo reconhecível, „apropriado‟ ou não (LANZ,
2014). Para a autora, a roupa torna-se um dos meios para os corpos serem identificados ou
estigmatizados dentro de contextos específicos Porém, algumas marcas são mais suscetíveis à
estigmatização e preconceitos como evidenciado nos comentários analisados em relação a
atleta trans. Como evidenciado nas tabelas que seguem, onde os comentários foram
analisados e separados em evocações favoráveis e não favoráveis.

Natureza A favor Contra Sem relação Total


Quantidade 39 540 79 658

Comentários a favor
Evocações Quantidade
Seu direito 10
Está dentro das regras 9
Novos tempos 6
Opinião leiga 6
Muito treino 5
Preconceito/discriminação 5
Outros 8

Comentários contra

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Subgrupo Evocações Quantidade


Homem/XY/masculino 274
Desempenho de homem/
181
Binário vantagem física
Fim do esporte feminino 43
Orientação sexual 29
Coisa/culpa das feministas 26
Lei Maria da Penha 8
Ideológico/Político Vão falar que é preconceito 30
Politicamente correto/
42
LGBT/esquerdista
Pelo menos é ruim 21
Motivos Porque não teve destaque na
25
liga masculina
Aberração/nojo/traveco 40
Vergonhoso/absurdo/
Ofensas 47
inaceitável
Covardia/injustiça/abuso 37
Times/ligas de trans 70
Soluções
Times mistos 7
Outros Dopping/ homens trans 19

Diante de um total de 658 comentários, evidenciou-se que 540 foram não favoráveis e
dentre eles em sua maioria são comentários relacionadas a questão binária. Evidencia-se que
há uma leitura no corpo de uma pessoa trans diretamente relacionada a genitália e a questões
biológicas. Desta forma, para Lanz (2014, p. 4) o termo transgênero pode ser entendido como
“um termo guarda-chuva„, destinado a reunir debaixo de si todas essas identidades gênero-
divergentes, ou seja, identidades que, de alguma forma e em algum grau, descumprem, ferem
e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero”.
O termo transgênero é muito abrangente, nele não cabem apenas as pessoas
transexuais (pessoas que recorrem a hormonização e/ou cirurgias), mas também pessoas que
desviam do dispositivo binário de gênero desde a utilização de acassórios “masculinos” e/ou

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“femininos” (LANZ, 2014. AGUIAR; QUADRADO, 2017). A transgressão destes padrões


leva a viver a margem da sociedade, como é dito por Lanz (2016, p. 206):

Ser uma pessoa transgênera é ser um não-ser. [...] significa muito mais do que
simplesmente não ter a própria existência legitimada pela sociedade e, em virtude
disso, não gozar nem de cobertura na matriz de inteligibilidade cultural nem de
cobertura jurídica para a própria existência.

Diante disso, há a marginilização das pessoas gênero-divergentes, nos mais variados


em espaços como a casa da família e a escola, bem como são excluídas “do acesso e
permanência ao esporte e lazer” (GOELLNER, 2010, p.72). Pois este é um espaço marcado
constantemente pela diferença de gênero pautada na binariedade somente, produzindo e
reiterando concepções normativas.
Esta forma binária de pensar foi reforçada pelos discursos da medicina, áreas jurídicas,
biológicas e religiosas, pois asseguravam/asseguram que existem duas classificações: somente
homem e mulher. No entanto, inúmeras são as combinações possíveis entre os arranjos sexo,
gênero e desejo (BUTLER, 2003), uma vez que uma pessoa traz consigo todos os acessórios e
combinações para se transformar. Logo, pessoas com o corpo identificado como feminino,
devido a sua genitália e seus seios, podem trazer combinações como suas práticas, expressões e
roupas associadas ao masculino.
Pensando assim, a sociedade, muitas vezes, faz uma suposição diante de corpos
circunscritos como de homens e mulheres. Entretanto, não são as diferenças físicas que
posicionam as pessoas em hierarquias, mas sim como a sociedade vê e interpreta o conceito de
gênero (ROSE, 1993). Desse modo, a correspondência entre a noção linear de sexo, gênero e
desejo (Butler, 2003) é correlata a um conjunto de ideias e valores que a sociedade, a cultura e a
vivência constroem e reconstroem dialeticamente.
Desta forma, é ilusório afirmar que o gênero é algo natural, pois ser homem ou “ser
mulher é uma construção e representação social” (SILVA, 2009, p. 100), a qual faz parte de
um discurso hegemônico da heterossexualidade. Os corpos assim são vistos, representados e
identificados de acordo com o sexo/genitália.
Conforme Silva e Ornat (2011), quando nascemos há uma classificação feita pela
sociedade, em que são usadas características baseadas na forma da genitália para orientar os
gêneros. Tal classificação colabora para que haja relações de poder fundamentadas no binarismo
mulher/homem. A partir disso, a sociedade criou certa hierarquização relacionada a características

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físicas: aos homens atribui-se a força, razão e objetividade, bem como uma pessoa identificada
como homem é aquela que possui características físicas, órgão genital masculino, músculos,
barba; por sua vez, são identificadas como mulheres as pessoas com certos atributos „ditos‟
femininos: cabelos cumpridos, seios e os gestos. No entanto, pessoas que não correspondem às
concepções binárias e normativas de feminino e masculino, como o grupo LGBT, são colocadas à
margem, lidas como desviantes e pecadoras diante das compreensões religiosas entre outras
instituições.
Entretanto, as diferenças físicas e a genitália não definem se a pessoa é mulher ou
homem, não definem se irá seguir a linearidade sexo, gênero e desejo; a exemplo do grupo
LGBT, tal noção é empregada de forma normativa pela sociedade. Visto que “a materialidade
corpórea só adquire existência quando assumida pela existência das ações” (SILVA, J. M.,
2009, p. 35) e de acordo com suas vivências e experiências. Noutros termos, não é o fator
biológico, mas sim a construção social que “transforma fêmeas e machos humanos em mulheres
e homens ou classifica em gênero feminino ou masculino, conforme os papéis desempenhados
na sociedade” (SILVA, J. M., 2009, p. 35).
Desta forma, corpos que destoam do ideal binário de gênero exercendo as mais variadas
formas de feminilidades e/ou masculinidades estão desempenhando performances de gênero.
De acordo com Silva (2009), o ato performático de gênero não existe de maneira individual ou
isolada, mas é uma construção através das relações.
Pensar o gênero como essência natural nada mais é que reproduzir o pensamento
heteronormativo regulatório. Para Ornat (2011), influenciado pelas reflexões de Butler (2003), a
concepção de gênero é construída através de atos repetitivos ou „performances‟. Assim, é tendo
práticas, expressões e se identificando como mulher que alguém se torna mulher, independente
do sexo/genitália.

É sendo mulher que alguém se torna mulher. Nós projetamos a nós próprios nos
modelos culturais de identidade que nos são oferecidos, e é a partir dessas projeções
que criamos em nós a noção da pré-existência de uma tal identidade. Através da
socialização, internalizamos os atributos, significados, valores e expressões dos
modelos identitários que a cultura tem para nos oferecer, tornando-os parte de nós ou,
melhor ainda, nos transformando no próprio modelo que nos serviu de inspiração.
(LANZ, 2014, p. 114).

Desta forma, juntamente com o corpo, as práticas, a sexualidade e o gênero compõem o


ser de cada pessoa, constituindo assim a identidade de cada pessoa. E não há um destino único e

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fixo para os corpos (BUTLER, 2003), mas sim são mutáveis para subverter e rearticular a lógica
normativa imposta pelos padrões sociais de sexo, gênero e desejo.
Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente natural nesse terreno, a começar pela
própria concepção de corpo. Através de processos culturais, definimos o que é ou não natural;
produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos
históricas.

Considerações finais.

O presente artigo evidenciou como comentários em reportagens demonstram as


noções, concepções binárias em relação a atleta trans Tiffany. Tais concepções têm influência
na noção normativa sobre as sexualidades, sobre a noção binária em relação a feminino e
masculino, bem como a noção linear sexo, gênero e desejo como algo natural (BUTLER, 2003).
Para tanto, os comentários evidenciaram o não entendimento por um lado e por outro a
reiteração de discursos heteronormativo, onde o aceitável e bom é somente corpos que seguem a
linearidade de sexo, gênero e orientação sexual. Estando diretamente ligada ao dispositivo
hegemônico composto por normas regulatórias de gênero e sexualidade

Referências

BUTLER, Judith. Critically Queer. In Playing with Fire: Queer Politics, Queer Theories.
Ed. Shane Phelan. New York & London: Routledge.11-29, 1990.

______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

______. A reivindicação da não violência. In: __________. Quadros de guerra: quando a


vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da
Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

______. A reivindicação da não violência. In: __________. Quadros de guerra: quando a


vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da
Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a


conformidade com as normas de gênero. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

LEFEBVRE, Henri. Espacio y política: El derecho a la ciudad, II. Barcelona: Ediciones


península, 1972.

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ORNAT, Márcio Jose. Território Descontínuo e multiterriterritorialidade na prostituição


travesti através do Sul do Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro

ROSE, Gillian. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge.


Cambridge: Polity Press, 1993.

______. Performing Space. In: MASSEY, Doreen; ALLEN, John; SARRE, Phillip. Human
Geography Today. Cambridge: Polity Press, 1999.

SILVA, Joseli Maria. Geografias Subversivas. Discursos sobre Espaço, Gênero e


Sexualidades. Ponta Grossa: Toda Palavra, 2009.

SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose. Corpo como espaço: Um desafio à imaginação
geográfica. 2016

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Por uma teoria feminista do Poder Constituinte: instituições, justiça e representação


política na Bancada Feminina da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988

Silvana Santos Gomes1

Resumo: O processo constituinte brasileiro, iniciado em 1987 e concluído com a


promulgação da Constituição Federal de 1988, representou mais um episódio de dominação
masculina da esfera pública e das instâncias de poder. Esta experiência da história recente do
país reforça a necessidade de se pensar em elementos para a construção de uma teoria
feminista do Poder Constituinte, tarefa esta que constitui o objeto deste trabalho. A partir da
articulação entre as categorias instituições, justiça e representação, buscou-se avaliar a
atuação da Bancada Feminina da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 e seus
reflexos para o texto constitucional resultante. Apoiando-se nestas chaves de compreensão,
concluiu-se que as distorções de representatividade verificadas no bojo da Constituinte se
fazem sentir até o momento presente, acarretando dificuldades em termos de aderência e
efetividade das disposições constitucionais que tratam da igualdade de gênero. De modo a
alcançar os objetivos propostos, adotou-se uma abordagem reflexiva ancorada na perspectiva
das mulheres.
Palavras-chaves: Poder Constituinte; Feminismo; Assembleia Nacional Constituinte.

1
Mestranda em Ciência Política e Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-
graduanda em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). E-mail:
silvanagomes@id.uff.br

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I. Introdução

Embora as narrativas tradicionais acerca do restabelecimento da ordem democrática no


Brasil apresentem como característica comum a invisibilidade ou a minoração da atuação
política feminina, não são poucas as evidências que desmentem estes discursos que tentam
atribuir às mulheres uma afonia que destoa, por completo, de seu protagonismo.
Os processos históricos de luta por reconhecimento e participação requerem que se
enxergue as mulheres como sujeitos dotados de capacidade de agência política, e não meras
destinatárias de normas produzidas, predominantemente, por mandatários políticos
masculinos supostamente encarregados de vocalizar suas demandas na esfera pública
deliberativa.
A arrogação masculina da voz feminina é uma persistência diuturna no domínio da
vida pública. No caso brasileiro, o reconhecimento de direitos políticos às mulheres só foi
alcançado na década de 1930, após o transcurso de 43 anos de instauração da República e 112
anos desde a independência frente a Portugal.
O atroz regime ditatorial que se instaurou no Brasil entre 1964 e 1985 operou,
igualmente, como ponto alto da institucionalização da dominação masculina. O militarismo
que impregnou as instituições outrora democráticas e o controle rígido sobre as manifestações
da vida social sufocaram, ainda mais, as dissonâncias da oposição.
Este cenário não é uma vivência exclusiva do Brasil. Mesmo países com tradição
democrática mais consolidada tardaram em conferir às mulheres direitos elementares de
cidadania, como é o caso da Suíça. Inobstante o referendo realizado em 1971 ter assegurado o
direito das mulheres ao voto em eleições federais, o cantão de Appenzel Innerrhoden só
procedeu ao reconhecimento do sufrágio feminino vinte anos depois, em 1991, em razão de
uma decisão proferida pela Corte Suprema do país.
Desde Aristóteles, a invenção da política depende da criação de uma igualdade dita
artificial. Diante de indivíduos naturalmente desiguais, a superação das contingências
impostas pela physis só seria possível ao se buscar refúgio no campo da nomos. Não por
acaso, para este filósofo, as diferenças das mulheres as posicionavam inferiormente aos
homens, o que lhes custava a condição de cidadania e, consequentemente, de engajamento
político.
Esta compreensão se fez sentir, em maior ou menor grau, ao longo de toda a filosofia
política e, no limite, acabou por lastrear concepções liberais de democracia e justiça, nas quais

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os aspectos formais sobrepujam a materialidade e a substantividade. Ainda que, atualmente, a


noção de sociedade democrática pressuponha a garantia de que homens e mulheres sejam
iguais em direitos e deveres, o que se observa é uma discrepância entre aquilo que é
formalmente assegurado e sua efetividade no plano fático.
Não é despiciendo frisar que o avanço das pautas das mulheres nas searas
institucionais e legislativas não é fruto da atividade de agentes públicos masculinos
benfazejos. Contrariamente ao que muitas vezes se supõe, as conquistas arduamente
alcançadas não se deram de modo linear, derivando de lutas históricas concretas travadas pela
via do ativismo.
É preciso, pois, realizar um exame detido dos limites institucionais e sociopolíticos
que conduziram a uma reduzida participação feminina no processo constituinte que se iniciou
em fevereiro de 1987. Neste sentido, adotam-se como ponto de partida duas categorias
fundamentais propostas por Nancy Fraser (1990): subaltern counterpublics (esferas públicas
subalternas) e frame-setting (estabelecimento do enquadramento).
Especificamente, buscou-se investigar (i) a dimensão da participação feminina na
Assembleia Nacional Constituinte; (ii) as razões do impasse entre a participação de mulheres
nos movimentos sociais pela redemocratização e sua inserção no processo constituinte; (iii) os
reflexos normativos decorrentes do formato no qual a Bancada Feminina foi estruturada; e
(iv) os principais elementos para se construir uma teoria feminista do Poder Constituinte.
O desenvolvimento deste trabalho está ancorado em três eixos: em um primeiro
momento, buscamos promover uma discussão sobre a construção de uma teoria feminista do
Poder Constituinte. Em seguida, avaliamos a correlação entre instituições, justiça e
representação, e, por fim, nos debruçamos sobre a atuação da chamada Bancada Feminina na
Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.
Em termos metodológicos, adotou-se o método de pesquisa indutivo e uma abordagem
reflexiva pautada pela perspectiva das mulheres (women's standpoint). A primeira etapa de
desenvolvimento do trabalho se valeu da revisão bibliográfica da literatura sobre teorias
feministas da justiça e teorias do Poder Constituinte. Em um segundo momento, foi realizada
pesquisa documental em fontes primárias como os Diários da Constituinte, os Anais da
Constituinte e as Bases de Dados da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, todas
disponibilizadas em sítio eletrônico.

II. A Necessidade de Construção de uma Teoria Feminista do Poder Constituinte

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Reflexões acerca do Poder Constituinte são, de longa data, um ponto focal na Ciência
Política e no Direito. Contudo, os esforços para inseri-las em um recorte de gênero ainda têm
sido tímidos, o que acarreta, além de uma deficiência teórica, implicações práticas para as
ações políticas.
A experiência constitucional brasileira é profundamente marcada pela obliteração das
mulheres tanto da participação nos processos constituintes quanto das Cartas Políticas deles
resultantes. Somente na terceira Constituição do país (1934), promulgada na porção inicial do
primeiro governo de Getúlio Vargas, os direitos políticos deixaram de ser um privilégio
exclusivamente masculino e foram estendidos às mulheres.
O constitucionalismo e seu predicado inerente de limitação do poder governamental
impõem amarras cogentes às autoridades públicas no exercício de suas funções. Dessa forma,
simultaneamente, inserem-se mecanismos contra-majoritários no arcabouço normativo-
institucional do Estado e se diminui a margem de liberdade para que governantes e
legisladores suprimam ou restrinjam direitos.
Em geral, as Constituições contemporâneas que se proclamam democráticas e
garantistas estão assentadas em três grandes pilares: fixação de direitos fundamentais,
organização do Estado e organização dos Poderes. Para Roberto Gargarella (2014), a fixação
de direitos se encontra na parte dogmática do texto constitucional, ao passo que a organização
institucional se inscreve na parte orgânica.
O Poder Constituinte, enquanto momento histórico de expressão máxima da soberania,
tem um forte sentido fundacional ou refundacional do Estado, significando a formulação de
uma nova gramática social que passará a nortear a totalidade do ordenamento jurídico, da
atividade jurisdicional, da formulação e implementação de políticas públicas. Hanna Lerner
(2011) sintetiza estas ideias afirmando que as Constituições devem desempenhar dois papéis:
um fundacional e outro institucional.
Antonio Negri (1999) enxerga o Poder Constituinte como uma ocasião de crise e,
como tal, de embate de forças políticas. Para o autor, este ponto crítico também deve ser
interpretado como uma chave de regulação da política democrática. Disto decorre que, apesar
de ser uma manifestação circunscrita no tempo e no espaço, o Poder Constituinte e seus
efeitos persistem, em algum grau, durante todo o período de vigência da Constituição que
originou.
Neste ponto, o vasto e denso pensamento de Nancy Fraser apresenta contribuições
relevantes para este debate. Frame-setting, aqui traduzido como “estabelecimento do
enquadramento” e “subaltern counterpublics” (esferas públicas subalternas) constituem

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categorias-chave para o propósito de se pugnar pela construção de uma teoria feminista do


Poder Constituinte.
Por excelência, o Poder Constituinte é o momento de estabelecimento do
enquadramento, uma vez que é neste contexto em que o delineamento do modelo
democrático, dos direitos assegurados e da forma de organização do Estado e dos Poderes será
realizado.
O fenômeno de crescente constitucionalização do Direito em geral – incluindo o
Direito Privado – e os clamores recorrentes pela convocação de uma nova Assembleia
Nacional Constituinte para a promoção de reformas estatais profundas são razões que nos
instam a refletir acerca do enquadramento proporcionado pela Constituição a partir da
perspectiva das mulheres.
Antes de se adentrar nas questões de gênero, algumas considerações genéricas
merecem ser tecidas. Por mais paradoxal que pareça, o Poder Constituinte é alheio ao próprio
Direito; isto é, por ser ilimitado2, encontra-se fora do alcance do ordenamento jurídico
existente no momento de sua manifestação.
Posto de outra forma, pode-se considerar que este Poder localiza-se à margem dos
sistemas institucionalizados de controle (sobretudo o sistema de freios e contrapesos), o que
acarreta, potencialmente, riscos para a inclusão de demandas formuladas por grupos sociais
minoritários ou de maior vulnerabilidade, que têm sua posição agravada pelo fato de,
historicamente, enfrentarem um número maior de óbices em sua participação política.
Quais são, então, as possibilidades de controlar o Poder Constituinte no sentido de
inserir, em suas deliberações e decisões, as pautas dos movimentos de mulheres? A principal
resposta para esta indagação parece residir no ativismo cívico feminino, seja na esfera dos
movimentos sociais organizados, seja no próprio bojo deste poder – ou seja, elegendo
deputadas constituintes.
Todavia, os meios de engajamento feminino na atividade política através do ativismo
também se encontram sujeitos a impedimentos informais socialmente arraigados. O não-lugar
da mulher na política é algo a ser endereçado e combatido já nas primeiras discussões sobre a
instauração de um processo constituinte.
Assim, sobressai a necessidade de se refletir acerca da construção de uma teoria
feminista do Poder Constituinte. A finalidade precípua de uma teoria desta natureza é colocar,

2
Embora não se inclua no escopo deste trabalho, é preciso notar que há quem defenda que existe, sim, uma
forma de limitação ao exercício do Poder Constituinte: o respeito aos direitos humanos elencados em tratados
internacionais dos quais o Estado em questão seja signatário.

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como meta de justiça social, a democratização do processo de estabelecimento do


enquadramento (frame-setting) sob a perspectiva das mulheres.
Para cumprir com este propósito, é preciso que as mulheres agreguem o núcleo de
controle apto a estabelecer o enquadramento, de modo que possam imprimir seus parâmetros
aos direitos que lhes serão fixados, reconhecidos e efetivados.
Em paralelo, a participação paritária institucional na Assembleia Nacional Constituinte
figura como uma garantia imprescindível. Conforme será tratado na seção IV deste trabalho, a
disparidade representativa entre homens e mulheres pode ser entendida como uma das causas
da morosidade na produção e da baixa eficácia na execução de políticas públicas voltadas
para as mulheres.
Dado o caráter não-jurídico do momento constituinte e as parcas formas de se
controlar este processo, vislumbra-se que a determinação de paridade de gênero na
composição da Assembleia Constituinte em seu ato convocatório seja uma boa alternativa
capaz de assegurar uma representação justa e equânime.
Vale lembrar que, no ano de 2009, a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97) foi modificada
para incluir a chamada “cota de gênero”. Na realidade, o que se prescreveu foi a
obrigatoriedade de partidos políticos e coligações respeitarem o preenchimento mínimo de
30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada gênero em disputas eleitorais para cargos
do Poder Legislativo em todas os níveis federativos.
A instauração de medidas que induzam a participação paritária institucional já é parte
integrante da legislação brasileira há quase uma década, o que demonstra sua viabilidade no
arranjo político e a plausibilidade de estendê-la ao órgão eventualmente encarregado de
elaborar uma nova Carta Política para o país.
A relevância do Poder Constituinte originário não se esgota com a promulgação de
uma nova Carta Magna. Na verdade, o modelo de enquadramento adotado em sua
manifestação atuará enquanto vetor das instituições, das teorias de justiça e dos arranjos de
representação na ordem constitucional que (re)funda.

III. Instituições, Justiça e Representação

A ocupação feminina dos espaços e esferas públicas tem sido essencialmente


condicionada pela abertura propiciada pela dominação masculina destes ambientes. Do ponto
de vista político, esta restrição repercute de forma direta nos nichos das instituições, da justiça
e da representação.

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A lógica insular de participação das mulheres as circunscreve nas chamadas esferas


públicas subalternas (FRASER, 1990). Neste cenário, há a delimitação de dois terrenos com
legitimidades distintas: um institucional, densamente ocupado por detentores tradicionais de
privilégios e direito de participação política, e outro subalterno, notadamente assimilado como
o espaço de produção de discursos e debates por minorias.
A existência de esferas públicas subalternas pode ter o efeito benéfico de estreitar e
aprofundar laços de identidade entre membros de um mesmo grupo social, porém impõe
entraves de diversos matizes à transposição das demandas ali produzidas para os planos
institucionais e normativos reconhecidos como legítimos.
A rejeição aos papéis e lugares reservados às vivências impostas de feminilidade nem
sempre encontra respaldo institucional, conforme é evidenciado pela proeminência das esferas
públicas subalternas enquanto locus de atuação e mobilização de mulheres.
A reivindicada textura abertura da democracia colide, na prática, com um modelo
altamente sectário. Quanto maior é a vulnerabilidade social de determinado grupo, maior é o
seu distanciamento das instâncias políticas e, com isto, maiores são as dificuldades de
engajamento e influência no processo de formulação de políticas públicas (policy-making).
A respeito do tema, Nathalie Lebon (2016, p. 160) destaca que, estando alinhada com
a tendência dominante em escala global, as relações de gênero na América Latina apresentam
um duplo sentido: concomitantemente, confinam as mulheres na esfera privada (enfatizando
seu papel/dever reprodutivo) e as distanciam da participação na esfera pública e, em especial,
na vida política.
A representação é faceta necessária da justiça social que se relaciona com a
possibilidade de indivíduos e grupos historicamente minoritários e/ou vulneráveis acessarem
os centros de poder e participarem dos processos de decisão coletiva.
Estas questões, somadas, nos reconduzem ao confronto com um questionamento
central: como assegurar o direito das mulheres ao engajamento no processo de
estabelecimento do enquadramento? Conforme abordamos na seção anterior, deve-se avalizar
que o Poder Constituinte originário seja permeado, de forma paritária, por sujeitos políticos
femininos que façam uso de sua capacidade de agência para que se adote um viés
emancipatório no endereçamento das questões de gênero.
Na direção oposto, a política é frequentemente interpretada como força associada a
padrões de masculinidade que, por definição, não são dados ou acessíveis às mulheres. À
figura do “homem público”, ou seja, do indivíduo masculino virtuoso à quem cabe a gestão da
res publica, nunca correspondeu a construção de um arquétipo feminino da “mulher pública”.

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A filosofia política e a história do pensamento político mantêm, há séculos, uma teorização


que exclui, subjuga ou minora a inserção das mulheres no pensar e no agir político.
Sob um olhar de gênero, a legitimidade democrática da Constituição Federal de 1988
pode ser questionada. Embora seja celebrada como a Constituição “cidadã” e a narrativa
dominante acerca de sua elaboração tente imprimir ênfase à participação da sociedade, pouco
se fala sobre quais parcelas desta sociedade foram exitosas em apresentar, conferir
visibilidade e efetivamente contemplar suas demandas e reivindicações no texto
constitucional nascente.
É pertinente notar que
o desenho institucional, isto é, as normas e regras que organizam as instituições
públicas, quaisquer que elas sejam, só será justo na medida em que todos os
segmentos da sociedade, sejam eles do grupo majoritário ou de grupos
minoritários, tenham a possibilidade de participar de maneira igualitária na
formulação dessas regras (CASTRO, 2010, p. 3).
As distorções de representação feminina na Assembleia Nacional Constituinte de
1987-1988 macularam o intento de justiça que o órgão havia fixado em seu horizonte de
atuação. Em contraste, a participação das mulheres em movimentos sociais no mesmo período
era elevada e caracterizou uma força relevante na redemocratização do Brasil nos anos 1980.
Para tentar jogar luz sobre os motivos desta discrepância, a próxima seção analisará a
Bancada Feminina da Constituinte e seus antecedentes sociais.

IV. A Atuação da Bancada Feminina na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988

As raízes do envolvimento das mulheres com o Poder Constituinte originário podem


ser localizadas consideravelmente antes da própria convocação da Assembleia Nacional
Constituinte em 1987.
A instauração da ditadura militar em 1964 constituiu um ponto de inflexão crucial nas
experiências feministas brasileiras. Esta clivagem no tecido social também operou como fator
de aglutinação e coordenação de diversos grupos de ativismo cívico na demarcação de
posições de resistência e combate ao autoritarismo violento que perdurou até meados da
década de 1980.
Cynthia Andersen Sarti (2004) enfatiza que
o feminismo militante no Brasil, que começou a aparecer nas ruas, dando
visibilidade à questão da mulher, surge, naquele momento, sobretudo, como
consequência da resistência das mulheres à ditadura, depois da derrota das que

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acreditaram na luta armada e com o sentido de elaborar política e pessoalmente


essa derrota (SARTI, 2004, p. 37).

Após um momento inicial de organização nos anos 1970, com a virada para a década
de 1980, os movimentos feministas vivenciaram um processo de ampliação e diversificação
da sua estrutura e das pautas defendidas, capilarizando-se, gradativamente, rumo às
agremiações políticas.
A contemplação da agenda feminista nas instâncias legislativas não se deu em um
único momento, mas
algumas conjunturas parecem ter sido favoráveis à introdução da discussão
parlamentar sobre a questão [feminina], a qual recebeu certa atenção em três
momentos – entre 1976 e 1979, entre 1981 e 1983 e entre 1989 e 1991. Os
períodos (transição de Geisel para Figueiredo; transição de Figueiredo para
Sarney e Constituinte) correspondem a momentos de abertura política e/ou
consolidação da ordem constitucional. A Constituição de 1988 provavelmente
tenha esvaziado, no curto prazo, a discussão sobre o tema, porém sua retomada, a
partir de 1995, indica que permaneceu como uma das áreas de concentração da

ação parlamentar atual. (SENADO FEDERAL, 2004, p.51)


Em novembro de 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)
promoveu a Campanha Mulher e Constituinte, cujos motes “Constituinte pra valer tem que ter
palavra de mulher” e “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher” capitanearam
este esforço no sentido de superar o fosso entre sociedade civil e instituições políticas que foi
agravado pelos anos de ditadura.
A mensagem central que estes motes carregavam consigo era uníssona: a legitimidade
da Constituinte dependia da participação feminina. Neste sentido, o CNDM, através desta
campanha, intentou estabelecer um canal de comunicação entre mulheres da sociedade civil e
representantes constituintes com o objetivo de coletar e consolidar suas demandas, bem como
pugnar por seu direito ao engajamento ativo na vida política.
Consubstanciadas na Carta das Mulheres (1987, p.3), as expectativas femininas com o
processo constituinte eram elevadas, uma vez que
para nós, mulheres, o exercício pleno da cidadania significa, sim, o direito à
representação, à voz e à vez na vida pública, mas implica, ao mesmo tempo, a
dignidade na vida cotidiana, que a lei pode inspirar e deve assegurar, o direito à
educação, à saúde, à segurança, à vivência familiar sem traumas.

Como é de se extrair da dicção da carta, as reivindicações políticas das mulheres no


contexto da Assembleia Nacional Constituinte possuíam três grandes frentes intimamente
relacionadas entre si: representação, participação e luta por direitos.

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A representação – enquanto simetria de interesses entre representantes e representadas


ou mandatários e mandantes – e a participação – engajamento direto das mulheres na
condição de deputadas constituintes – integravam e continuam a integrar dimensões
importantes na luta pela inserção, garantia e proteção de direitos, sobretudo aqueles abrigados
pelo recorte de gênero.
Assim, após deliberação por ocasião do Encontro Nacional de Mulheres em agosto de
1986, a Carta das Mulheres apresentou às deputadas e deputados constituintes suas demandas,
que foram estruturadas em um eixo de princípios gerais e outro de reivindicações específicas,
sendo estas divididas em diversos temas.
Na porção dos princípios gerais, a tônica geral era de defesa da igualdade. Neste
sentido, requereu-se o estabelecimento de “preceito que revogue automaticamente todas as
disposições legais que impliquem em classificações discriminatórias”, além da determinação
de que afrontas ao princípio da igualdade importassem em crime inafiançável.
É curioso notar que, a despeito da existência de rubricas próprias na seção de
reivindicações específicas, a principiologia genérica sustentada na Carta também abrangeu “o
reconhecimento da titularidade do direito de ação aos movimentos sociais organizados,
sindicatos, associações e entidades da sociedade civil, na defesa dos interesses coletivos”.
Uma vez mais, resta evidenciada a combatividade e a interseccionalidade como traços
característicos dos movimentos organizados de mulheres.
Por sua vez, a seção da Carta dedicada às reivindicações específicas estruturou-se em
torno de seis rubricas: família, trabalho, saúde, educação e cultura, violência e questões
nacionais e internacionais.
O fio condutor destas áreas temáticas foi a igualdade, focalizando ações concretas para
a correção de distorções de paridade de gênero. Operar uma análise destas proposições é
tarefa interessante que permite cotejar as expectativas de então com os avanços realizados até
o presente.
A este respeito, algumas conquistas importantes ocorreram, principalmente nas esferas
da família, do trabalho e da violência. Representativos deste progresso são, respectivamente, a
substituição do instituto do pater poder pelo do poder familiar, a estabilidade empregatícia
conferida às gestantes e a promulgação da Lei Maria da Penha, à qual se coadunam as
Delegacias de Atendimento Especializado à Mulher e demais instituições destinadas à
prestação de amparo a vítimas de violência de gênero.
Contudo, certas pautas permanecem politicamente engessadas. A reforma agrária e o
fomento à abordagem de temas referentes a relações de gênero nas escolas ainda enfrentam

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muita resistência legislativa em um Congresso Nacional de composição majoritariamente


masculina, conservadora e vinculada a interesses econômicos colidentes com estas pautas.
As reflexões de Simone de Beauvoir (2009) acerca das condições materiais que
posicionaram a mulher em segundo plano na sociedade são um bom quadro interpretativo
para se compreender o porquê de parcelas consideráveis das deputadas constituintes de 1987-
1988 deverem sua inserção política à associação com figuras masculinas às quais estavam
associadas por matrimônio ou parentesco.
Das 25 mulheres que integraram a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988
(ou seja, 4,47% do total de 559 deputados constituintes), 9 estavam ligadas a políticos homens
(PINTO, 1994, p. 209). Em adição, nenhuma destas deputadas provinha dos Estados que
compõem a região Sul do país, o que indica mais uma distorção em termos de
representatividade da Bancada Feminina.
Conforme a tabela abaixo é capaz de demonstrar, outro traço interessante desta
bancada é o fato de ter sido predominantemente constituída por deputadas filiadas a partidos
de centro-direita e com perfil mais conservador. Cumpre pontuar que, com a criação do
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) em junho de 1988, diversas deputadas que,
inicialmente, encontravam-se em outros partidos, migraram para a nova agremiação.

Tabela 1 – Composição da Bancada Feminina


Deputada Constituinte Partido/Estado

Abigail Feitosa PSB/BA

Anna Maria Rattes PSDB/RJ

Benedita da Silva PT/RJ

Beth Azize PSDB/AM

Cristina Tavares PSDB/PE

Dirce Quadros PSDB/SP

Eunice Michiles PFL/AM

Irma Passoni PT/SP

Lídice da Mata PCdoB/AM

Lúcia Braga PFL/PB

Lúcia Vânia PMDB/GO

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Márcia Kubitschek PMDB/DF

Maria de Lourdes Abadia PSDB/DF

Maria Lúcia PMDB/AC

Marluce Pinto PTB/RR

Moema São Thiago PSDB/CE

Myriam Portella PDS/PI

Raquel Cândido PFL/RO

Raquel Capiberibe PSB/AP

Rita Camata PMDB/ES

Rita Furtado PFL/RO

Rose de Freitas PMDB/ES

Sadie Hauache PFL/AM

Sandra Cavalcanti PFL/RJ

Wilma Maia PDT/RN

(Fonte: elaborado pela autora)

V. Considerações Finais

A elaboração e a promulgação de novas Constituições representam o estabelecimento


de um enquadramento normativo, institucional e hermenêutico que guia as ações do Poder
Público e regula a vida em sociedade.
A análise da última manifestação do Poder Constituinte originário no Brasil demonstra
a marginalização das mulheres no centro decisório (re)fundacional do Estado. Seria
demasiadamente forçoso considerar que uma participação da ordem de 4,47% (ou 25
mulheres em comparação a um total de 559 parlamentares constituintes) seja minimamente
representativa das mulheres brasileiras.
Este fenômeno reverbera efeitos perversos mesmo após um lapso de quase três
décadas desde a promulgação da Constituição de 1988. Mesmo com todas as vicissitudes que

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acometeram sua elaboração, esta Carta Política pavimentou o caminho para que uma série de
avanços normativos e institucionais com recorte de gênero pudessem alcançados.
Contudo, em boa medida, é possível identificar um nexo de causalidade entre as
dificuldades enfrentadas para promover pautas atuais como os direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres quando estas foram eclipsadas do próprio momento histórico de fixação das
balizas constitucionais.
Ainda que a ocupação feminina efetiva dos centros de poder seja a melhor via pela
qual as mulheres possam participar do estabelecimento do enquadramento, é igualmente
necessário que se construa uma teoria feminista do Poder Constituinte que suplante as práticas
políticas que venham a ser empreendidas.
Neste sentido, dois elementos são especialmente relevantes: a inserção de mulheres no
núcleo de comando do Poder Constituinte e a participação paritária institucional. Conforme
defendemos, o próprio ato convocatório da Assembleia Nacional Constituinte deve conter
normas que determinem e disciplinem uma representação equilibrada entre gêneros.
Em um contexto de fragilidade das instituições e da própria democracia como o
experimentado hodiernamente, a já elevada vulnerabilidade social das mulheres torna-se ainda
mais pungente. Com isto, um dos principais desafios a serem enfrentados reside na ampliação
da ocupação feminina da esfera pública para além daquelas de natureza subalterna.
A articulação entre instituições, justiça social, representação e atividade política sob a
perspectiva de gênero é essencial para a reconstrução do ethos democrático da sociedade
brasileira.

Referências

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2009.

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Mulheres na política, cotas, isonomia e princípio constitucional da igualdade: análise a


partir de perspectivas discursivas
Cathy Mary do Nascimento Quintas1

Resumo: A partir do estudo de propostas de emendas à Constituição (Emenda aglutinativa n.


57 da PEC 182/07 e PEC 134/2015) que visam estabelecer reserva de cadeiras nas casas
legislativas de todas as esferas federativas (exceto Senado) a partir do critério de sexo/gênero,
verificou-se que tanto contrários(as) quanto favoráveis à existência de cotas invocam o
princípio constitucional da igualdade para fundamentar a validade de seus argumentos. Os
contrários afirmam que reservar cadeiras, levando ao parlamento mulheres com menos votos,
em desfavor de homens, viola o princípio da igualdade de voto - "one man, one vote". Por outro
lado, parlamentares que atuam em favor da aprovação das cotas registram a necessidade de sua
instituição para obedecer ao princípio da igualdade material entre homens e mulheres, também
previsto na Constituição. Estes argumentos foram analisados a partir de metodologias
discursivas (Análise do Discurso de Escola Francesa e Análise de Narrativa Política) em sua
relação com os princípios republicano, democrático, federativo e da igualdade de voto,
previstos na Constituição Federal. A conclusão foi a de que a reserva de cadeiras, a partir de
uma política de cotas, não viola nenhum dos princípios constitucionais citados, sendo que, ao
contrário, justamente os consagra. A instituição de políticas públicas de caráter afirmativo,
relacionadas ao processo eleitoral e ao direito de ser representada e de ser representante, é ato
de afirmação dos princípios republicano, democrático e da igualdade.

Palavras-chaves: Mulheres; política de cotas; igualdade de voto; representação; princípio


federativo; PEC 134/2015.

1
Procuradora Federal; bacharel e licenciada em História, Usp 1990; bacharel em Direito Ufsc 2004. Mestranda do
curso de Ciências Sociais da Uel 2016/18.

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Introdução

Este trabalho é parte integrante de pesquisa que está sendo desenvolvida no contexto
de estudos para elaboração de dissertação de mestrado a ser defendida no programa de pós-
graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Durante a análise dos discursos parlamentares sobre as propostas de emenda
constitucional (Emenda aglutinativa n. 57 da PEC 182/07 e PEC 134/2015) que veiculam
projetos de reserva de cadeiras nos parlamentos, em todos os níveis da federação (exceto
Senado Federal), verificou-se que tanto contrários quanto favoráveis à existência de cotas de
sexo /gênero invocavam o princípio constitucional da igualdade para fundamentar a validade
de seus argumentos.
Inicialmente, apenas para fins de registro, faremos algumas observações sobre a
controvérsia sobre se as cotas previstas seriam para o sexo ou para o gênero.
Por ocasião da discussão da PEC 134/15 na Comissão de Constituição e Justiça, o
Deputado Evandro Gussi (PV/SP) apresentou voto em separado contra o acolhimento da PEC,
invocando, além do argumento da violação ao princípio da igualdade, a inconstitucionalidade
do projeto em razão da incompatibilidade entre os conceitos de sexo/gênero. Segundo o
parlamentar, a Constituição Federal ignora o que vem a ser a palavra “gênero”, o que poderia
causar uma distorção ainda maior na exigência da equivalência entre os votos conferidos,
constitucionalmente estabelecida no Art. 14, caput, da CF/88. Afirma o Deputado que a
Constituição Federal, quando quer distinguir homens de mulheres, vale-se exclusivamente da
palavra sexo, conforme é possível inferir dos regramentos constantes dos comandos
constitucionais presentes nos arts. 3º, inciso IV, 5º, inciso XLVIII, 7º, inciso XXX e 201, §7º,
inciso II. Como a proposição acrescenta art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias para reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias
Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais, nas 3 (três)
legislaturas subsequentes, manifestou seu voto pela inadmissibilidade e consequente
inconstitucionalidade da Proposta de Emenda Constitucional nº 134, de 2015, como também
das Propostas de Emenda à Constituição nº 205, de 2007, e nº 371, de 2013, apensadas.
Ocorre que o argumento apresentado pelo deputado Evandro Gussi foi debatido e
decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, ao responder uma consulta2 formulada
pela senadora Fátima Bezerra (PT-RN), decidiu que candidatos transgêneros poderão utilizar o
nome social na urna a partir das eleições de 2018. O relator do caso destacou a necessidade de

2
Consulta 060293392 TSE.

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se avançar na adoção de medidas que denotem respeito à diversidade, ao pluralismo, à


subjetividade e à individualidade como expressões do postulado supremo da dignidade da
pessoa humana, ressaltando ainda que um dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil consiste em promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor
idade ou quaisquer outras formas de descriminação, nos termos do artigo 3º, inciso IV, da
Constituição Federal.
A questão jurídica debatida ficou em torno da expressão “cada sexo”, mencionada no
artigo 10, parágrafo 3º, da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), segundo o qual cada partido ou
coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. O
relator afirmou que a expressão refere-se ao gênero, e não ao sexo biológico, de forma que tanto
os homens quanto as mulheres transexuais e travestis podem ser contabilizados nas respectivas
cotas de candidatura masculina e feminina, esclarecendo que aquelas(es) que optarem pelo
nome social deverão comparecer ao Cartório Eleitoral até o dia 9 de maio (data do fechamento
do Cadastro Eleitoral) para se declararem transgêneros e com qual gênero que identificam, se
masculino ou feminino.
Importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível a
alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem a realização de
procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. A decisão ocorreu no julgamento da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4275, encerrado na sessão plenária realizada em 1º de
março de 20183. A ação foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) a fim de que
fosse dada interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58 da Lei 6.015/1973, que
dispõe sobre os registros públicos, no sentido de ser possível a alteração de prenome e gênero
no registro civil mediante averbação no registro original, independentemente de cirurgia de
transgenitalização4. Todos os ministros da Corte reconheceram o direito, e a maioria entendeu
que, para a alteração, não é necessária autorização judicial. Assim, a alteração de registro pode
ser realizada através da autodeclaração da pessoa interessada, bastando para tanto que goze de
plena capacidade civil, que no direito brasileiro é conferida, em resumo, a todo o indivíduo com
18 anos ou mais, que não seja pessoa com deficiência intelectual que comprometa sua

3
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085 . Acesso em 11.
03.18
4
A decisão do STF foi aprovada por dez votos a zero e responde a duas ações distintas, agregadas em 2017 no
mesmo processo. Ela vai além dos pedidos originais, que usavam a palavra “transexual”, e adota “transgênero”
como um termo guarda-chuva amplo, que se refere a pessoas que se identificam com um gênero diferente do que
lhes foi atribuído ao nascer. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/02/STF-permite-a-
trans-mudarem-nome-e-g%C3%AAnero-direto-no-cart%C3%B3rio. Acesso 11.03.18

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 686


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capacidade de escolha e discernimento, e não adote regularmente práticas que o impeçam de


tomar decisões de forma livre e consciente (como exemplo, uso abusivo de álcool e drogas).
Assim sendo, as decisões judiciais afastaram qualquer dúvida sobre a possibilidade de
intercâmbio entre as expressões “cada sexo” e “cada gênero” que estão presentes na
Constituição Federal e na legislação infraconstitucional, fato que também elide a alegado
fundamento de inconstitucionalidade da PEC 135/15.
Definido este ponto, ressalta-se que parlamentares contrários à adoção das cotas
afirmam que reservar cadeiras, levando ao parlamento mulheres com menos votos, em desfavor
de homens (embora os textos das propostas legislativas façam menção a reserva por sexo , na
prática é uma reserva para mulheres, que são minoritárias em praticamente todas as casas
parlamentares) viola o princípio do "one man, one vote"5. A instituição desta reserva de cadeiras
estaria criando uma distinção concreta entre o eleitorado, fazendo que o voto de alguns tenha
maior peso do que de outros, o que seria uma clara violação ao princípio constitucional da
igualdade do voto, previsto no artigo 14 da CF/88: A soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei.
Invoca-se a igualdade, portanto, a partir do direito do eleitor(a).
Já quem defende a adoção das cotas afirma que as condições da "política real"
impedem a realização do princípio da igualdade entre homens e mulheres, sendo que as políticas
afirmativas (como a reserva de cadeiras) seriam uma forma idônea e constitucionalmente
correta de efetivar, na vida real, a igualdade entre os cidadãos. Invoca-se o fundamento da
necessidade de isonomia, afastando-se a mera igualdade formal, de tal forma que se possa
efetivar o princípio da igualdade previsto no art. 5º da Constituição Federal: Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Assim, a defesa das cotas para reserva
de cadeiras é enquadrada como política pública necessária para a efetivação da igualdade como

5
One man, one vote: o peso do voto de cada cidadão deve ser o mesmo. Ocorre que esta regra é relativizada nas
eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados (art. 45, § 1º, CF). Esse artigo coloca os limites mínimo e
máximo dos deputados federais por Estado. Os deputados representam a população, por isso, estados com maior
número de habitantes, por óbvio, terão maior número de deputados. No entanto, a CF coloca o limite mínimo de
8 e máximo de 70. Se fosse considerada a proporcionalidade estrita, a partir do número real de habitantes de cada
Estado, ocorreria que estados mais populosos – como São Paulo e Minas Gerais – teriam uma super-representação,
com capacidade superlativa de impor seus interesses aos demais entes políticos. Em algum medida, a
proporcionalidade que decorre do voto na legenda ou coligação também cria um desequilíbrio de valor de cada
voto, na medida em que candidatas(os) mais votadas(os) podem deixar de ser eleitos, em favor de outros menos
votados, mas que se beneficiaram do quociente partidário.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 687


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isonomia (tratamento igualitário com fundamento material, observando-se as condições


concretas de possibilidade de concretização da igualdade).
Estes argumentos foram analisados a partir de metodologias discursivas (Análise
do Discurso de Escola Francesa e Análise de Narrativa Política) em sua relação com os
princípios republicano, democrático, federativo e da igualdade de voto, previstos na
Constituição Federal. O estudo foi realizado através de levantamento bibliográfico - livros,
artigos, pareceres e relatórios sobre o referencial teórico (primordialmente sobre princípios
constitucionais e regras eleitorais) e o objeto de investigação (representação política igualitária
e cotas de sexo/gênero), análise de dados quantitativos (quantidade de pareceres e relatórios,
escrutínio das votações, etc) e análise de dados qualitativos - entrevista com atores
(parlamentares e assessores) que participaram diretamente da construção dos discursos
proferidos pelos grupos pró e contra a ampliação da representação feminina no Parlamento
através de ações afirmativas.
O objetivo deste trabalho é analisar as hipóteses de discriminação positiva e
critérios de proporcionalidade previstos constitucionalmente (como o limite mínimo e máximo
de deputados, por exemplo) e sua relação com os argumentos que evocam o princípio da
igualdade para acolher ou rechaçar propostas legislativas de alteração constitucional para a
implementação de uma política de cotas parlamentares de sexo / gênero.

1. O princípio constitucional da igualdade de voto e os fundamentos jurídicos das


políticas públicas de cotas
Importante ressaltar, em brevíssima explanação, o caráter cogente/obrigatório da
observância do princípio constitucional da igualdade. O artigo 5º da Constituição Federal de
1988 trata das garantias e direitos fundamentais e é, sem dúvida, um dos artigos mais
importantes de uma ordem jurídica que se pretende democrática. Dentre os diversos princípios
relacionados aos direitos e garantias fundamentais, um dos mais polêmicos e importantes é o
princípio da igualdade. Para o caso em estudo – cotas de representação por sexo / gênero, a
previsão do caput e inciso I são basilares:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 688


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A igualdade, portanto, não se restringe a uma invocação de justiça de caráter filosófico


ou moral, uma simples exortação ou convite ao respeito à isonomia. Conforme ensina Mello
(2011, p. 09), a igualdade é um princípio jurídico – portanto, de observância obrigatória –
dirigido tanto aos legisladores quanto aos aplicadores da lei, assim como a integrantes da
sociedade, em suas relações quotidianas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Há que se ressaltar que a igualdade a ser considerada não se resume àquela de caráter
meramente formal (igualdade perante a lei), mas também a igualdade material consagrada na
máxima aristotélica: devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na
medida de sua desigualdade.
O próprio fato da Constituição enunciar explicitamente, no inciso I, que “homens e
mulheres são iguais”, induz à interpretação de que está presente, no mundo real, uma
desigualdade material entre cidadãos dos sexos feminino e masculino que exige a enunciação
expressa desta prescrição de igualdade. Caso contrário, o texto do caput – “todos são iguais” –
seria suficiente para marcar o caráter prescritivo da norma constitucional quanto à necessidade
de tratamento isonômico entre as pessoas.
As diversas políticas de cotas, também denominadas “ações afirmativas”, conformam-
se neste espectro de luta por igualdade material.

2. A reserva de cadeiras no legislativo e o princípio da igualdade do voto: o direito de


ser representada a o de ser representante
Nas palavras de Mello (2011, p. 11), indaga-se: “qual o critério legitimamente
manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos
apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos ?”
Segundo o mesmo autor (2011, p. 23), são dois os requisitos básicos para a instituição
de fatores de discriminação sem afronta à isonomia:

a. a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que
singularize no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a
ser colhido pelo regime peculiar;
b. o traço diferencial adotado necessariamente há de residir na pessoa, coisa
ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não exista nelas
mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes diferentes.

Ao analisarmos a proposta de emenda constitucional que prevê a reserva de cadeiras


para cada sexo que atualmente está tramitando na Câmara dos Deputados (PEC 134/15), pode-
se aferir que atende aos dois requisitos acima apresentados, posto que:
a. o critério diferencial não beneficia indivíduos específicos, mas um conjunto de
pessoas “de cada um dos sexos” , que terão a garantia de representação progressiva

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 689


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(10, 12 e 16%), ao longo das próximas três legislaturas, após a aprovação da emenda
constitucional;
b. não se destina a instituir uma situação definitiva, mas sim uma regra que vigorará
por três legislaturas após a aprovação, criando uma espécie de “regra de transição” que
venha a assegurar a presença de mulheres nas casas legislativas e, a partir daí, crie
condições concretas de respeito à isonomia, condições estas capazes de se
reproduzirem a partir da dinâmica própria do exercício do poder político;
c. o traço diferencial – extrema dificuldade de acesso das mulheres aos cargos de
representação política – está comprovadamente presente na vida social, como
demonstram os inúmeros estudos e dados estatísticos oficiais6.

3. Representação das unidades federadas na Câmara dos Deputados e o princípio da


igualdade do voto: isonomia, princípio federativo
O princípio federativo tem como pressuposto a igualdade entre as pessoas políticas.
Previsto nos arts. 1º e 18 da CF/88, enuncia um princípio fundamental estruturante da
República, elevado a condição de cláusula pétrea pelo art. 60, §4º, I, da Carta Maior. Em seu
art. 1º, a CF/88 enuncia que a República Federativa do Brasil é formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Já no art. 18, prevê que “a
organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos”. Prevê o art. 60 § 4º : “Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de
Estado”.
Nota-se, assim, que o princípio federativo está baseado na igualdade e não
discriminação entre as pessoas políticas (não há hierarquia entre União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, mas tão somente áreas de atuação e de exercício de poder político-
administrativo diferentes e complementares) , ressaltando-se a autonomia dos entes políticos e
a indissolubilidade da federação.

6
Nas eleições municipais de 2016, em 23% dos municípios brasileiros não houve a eleição de mulheres nas
Câmaras de Vereadores. Este percentual de cidades sem mulheres em cargos eletivos parlamentares é praticamente
o mesmo que o registrado nas eleições de 2012, assim como a proporção de mulheres eleitas para o cargo, que
também se manteve. Em 2016, 13,5% dos eleitos são mulheres – ou 7,8 mil de 57,8 mil candidatos. Em 2012, o
percentual foi de 13,3% – 7,7 mil de 57,4 mil candidatos. Informação disponível em
http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/blog/eleicao-2016-em-numeros/post/23-das-cidades-do-pais-nao-
terao-nenhuma-mulher-na-camara.html . As estatísticas mostram que 14 das 27 unidades federativas brasileiras
não contam com representação de mulheres no Senado Federal. Na Câmara de Deputados, nesta legislatura (eleição
2014), cinco estados não têm nenhuma mulher entre seus representantes. Informação disponível em
https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-livreto-mais-mulheres-
na-politica.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 690


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Embora o argumento de que os votos de todos os cidadãos devem ter o mesmo peso
seja válido do ponto de vista filosófico, moral e político, na prática a própria Constituição
Federal prevê institutos - como o voto proporcional e as diretrizes do princípio federativo - que
se utilizam de técnicas de ponderação para evitar desequilíbrios que possam ser causados
quando são considerados números absolutos. Exemplo claro é a previsão de limites mínimo e
máximo de deputados de cada Estado na Câmara Federal.
No Congresso Nacional, Estados e Distrito Federal estão representados no Senado, em
igualdade numérica. Três representantes por ente federativo. Já a população de cada Estado está
representada na Câmara dos Deputados. Em tese, cada parlamentar representa uma quantidade
de pessoas / cidadãos, com uma relação de proporcionalidade entre a população e o número de
parlamentares na Câmara Federal. Mas, ao prever limite de piso e teto no número de deputados
(Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema
proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal. § 1º O número total
de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido
por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários,
no ano anterior às eleições, para que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos
de oito ou mais de setenta Deputados) esta relação objetiva e direta entre número de pessoas e
quantidade de representantes se perde.
Com um número mínimo e um máximo de representantes para cada Estado, esta
relação de proporcionalidade entre representantes/representados passa a não ser numérica e
objetiva. De acordo com a norma constitucional, nenhum Estado pode ter menos de 8 nem mais
de 70 representantes na Câmara dos Deputados. Os casos de São Paulo e Roraima, que estão
nos extremos, exemplificam esta quebra de proporcionalidade. A título de exemplo, temos o
mais e o menos votados nas eleições 2014 para Deputado Federal, em Roraima e em São Paulo:

Eleitos em Roraima : Shéridan (35.555 votos) e Carlos Andrade (6.733 votos)

Eleitos em São Paulo: Celso Russomano (1.524.361 votos) e Fausto Pinato (22.097 votos)

Em razão desta desproporção alguns autores, como Oliveira (2010, p. 13-14),


defendem que a fixação de piso e teto no número de representantes de cada unidade da
federação deveria ser revista:

A superação plena das distorções que ocorrem na representação dos Estados


e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados, em face das circunstâncias
que lhe são inerentes, exigiria a aprovação de uma proposta de emenda à
Constituição que tivesse por objeto a ampliação do teto de representação dos
Estados na Câmara, especialmente para aumentar a representação do Estado

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 691


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de São Paulo, o único que, para ser corretamente representado, deveria contar
com mais de setenta deputados federais ou a diminuição do piso de
representação dos Estados, o que implicaria um resultado de mais difícil
realização, do ponto de vista prático (em face da realidade política), qual seja,
a diminuição da representação de sete estados - Roraima, Amapá, Acre,
Tocantins, Rondônia, Sergipe e Mato Grosso do Sul – e do Distrito Federal.

No mesmo sentido é o argumento de Silva (2012, p. 354), relativamente ao princípio


da igualdade de voto previsto no art. 14 da CF/88:

Essa expressão – voto com valor igual para todos, constante do art. 14 – é
mais do que a simples relação de igualdade de voto entre eleitores. Ela, além
do princípio do one man, one vote, traz a ideia da igualdade regional da
representação, segundo a qual cada eleito, no País, deve corresponder o
mesmo número ou um número aproximado de habitantes. Contraria a regra do
valor igual o fato de que um voto, por exemplo, no Acre, vale cerca de vinte
vezes mais do que um voto em São Paulo...

Apesar destas afirmações serem objetivamente verdadeiras – há uma


desproporcionalidade entre o valor do voto na relação representante/quantidade de
representados – acreditamos que algumas ponderações são necessárias.
Importante ressaltar, de início, que a igualdade é um princípio constitucional.
Conforme a lição de Robert Alexy7, diferentemente das regras - que se aplicam a partir da
lógica do tudo ou nada - os princípios são comandos de otimização, aplicam-se a partir da
ponderação de valores, considerando-se os casos concretos. Assim como os critérios de justiça,
a observância do respeito ao princípio da igualdade exige a avaliação do cenário fático no qual
deve ser aplicado.
Ainda segundo Oliveira (2010, p. 9-10), o princípio da igualdade do voto é basilar na
democracia representativa, um voto de uma pessoa não pode ter um peso superior ao voto de
outra e “isso não pode ocorrer por qualquer razão”. Para o autor, “nada escusa ao legislador ou
ao aplicador da lei determinar que a manifestação político-eleitoral de um cidadão ou cidadã
possa, por qualquer motivo, influenciar o resultado da eleição de um modo mais relevante do

7
A teoria de Robert Alexy tem complexidade que não cabe aqui abordar; para os objetivos deste trabalho, basta
considerar que regras e princípios são subespécies de normas. Ambos são normas porque dizem o que deve ser
(estão num plano deontológico e podem exprimir ordem, permissão ou proibição). O ponto fundamental para a
distinção entre regras e princípios é que as primeiras obedecem a um funcionamento do tipo tudo ou nada,
enquanto que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades fáticas e jurídicas existentes, sendo assim considerados comandos de otimização. A aplicação de
um princípio não deve ter como consequência a inobservância total de outros que se devem ser aplicados ao caso
concreto.

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que o voto de outro cidadão ou cidadã” e será inconstitucional “qualquer critério que institua
uma modalidade de ‘peso’”, pois violará o princípio da igualdade do voto.
Com todo respeito ao acadêmico, ousamos discordar de tais afirmações. Retomando-
se o conceito de princípio como comando de otimização, assinala-se que a igualdade de voto é
um parâmetro, um objetivo a ser perseguido pelo sistema eleitoral, mas não é, de fato, uma
realidade aritmética. Exemplo é o caso da fixação de limites mínimo e máximo de Deputados
na Câmara Federal. Caso não fossem adotados, muito provavelmente a população de alguns
Estados não teria condição de exercer qualquer influência na construção do arcabouço
legislativo nacional, considerando a quantidade irrisória de votos que teriam no plenário da
Câmara.
Ao fixar o limite mínimo de 8 e máximo de 70 representantes na Câmara Federal o
constituinte originário reconheceu que existem desigualdades entre os estados por questões
históricas, geográficas, econômicas, sociológicas, etc. Decidiu, desta forma, criar critérios que
levaram em conta esta desigualdade fática e criaram mecanismos jurídico-constitucionais para
otimizar a realização do princípio federativo, que pressupõe a igualdade e não hierarquia entre
os entes políticos. O mesmo raciocínio lógico-jurídico pode ser empregado na defesa das cotas
parlamentares de gênero para reserva de cadeiras de representação.

Considerações Finais
Dois aspectos supostamente contraditórios estão presentes no contexto constitucional
brasileiro, no que diz respeito ao sistema eleitoral e ao sistema político que dele resulta: de um
lado, a centralidade que a ordem jurídico-constitucional brasileira confere ao princípio da
igualdade de voto – a manifestação político-eleitoral de um cidadão ou cidadã não pode ter um
peso superior à manifestação político eleitoral de outra pessoa - e de outro a fórmula adotada
pela própria Constituição para determinar o piso e o teto da representação das unidades
federadas do Brasil na Câmara dos Deputados, que importaria, em termos estritamente
numéricos, desrespeito a esse mesmo princípio da igualdade do voto.
No entanto, como foi observado acima, para a preservação da forma federativa de
Estado (cláusula pétrea de nossa constituição) é necessário que se encontrem mecanismos de
equilíbrio entre o poder político dos diferentes entes políticos, limitando-se a representação
parlamentar em patamares mínimo e máximo. A efetivação do princípio constitucional da
igualdade exige a adoção de práticas e políticas públicas que estão para muito além de uma
proporcionalidade numérica ou meramente "objetiva". Para a construção da justiça são
necessárias ponderações de ordem fática, com exame de dados de realidade.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 693


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Da mesma forma, para que se imprima densidade ao princípio da igualdade entre


homens e mulheres, expressamente previsto na Constituição Federal, é necessário que se
instituam políticas públicas que efetivem a igualdade de voto, conferindo às mulheres, na
pratica, tanto o direito de serem representadas e quanto de serem representantes.
Por todo o exposto conclui-se que a reserva de cadeiras, a partir de uma política de
cotas, não viola nenhum dos princípios constitucionais citados, sendo que, ao contrário,
justamente os consagra. A instituição de políticas públicas de caráter afirmativo, relacionadas
ao processo eleitoral e ao direito de ser representada e de ser representante, é ato de confirmação
dos princípios republicano, democrático e da igualdade.

Referências
AMORIM, Letícia B. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy.
Disponível em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/165/ril_v42_n165_p123.pdf
Acesso em 27/05/18

MELLO, Celso Antonio B. de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade.


SP: Malheiros, 2011. 3ª ed. 20ª tiragem

OLIVEIRA, Arlindo F. de. O princípio da igualdade de voto na constituição brasileira e as


distorções na representação das unidades federadas na Câmara dos Deputados.
Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/191790
Acesso em 14/04/18.

_____________________ Sobre a representação dos estados na Câmara dos Deputados.


Disponível em https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-
estudos/textos-para-discussao/td-5-sobre-a-representacao-dos-estados-na-camara-dos-
deputados Acesso em 14/04/18.

SALGADO, Eneida D. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral.


Disponível em
https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/22321/Tese_Eneida_Desiree_Salgado.pdf?
sequence=1&isAllowed=y Acesso em 27/05/18

SILVA, José A. da. Curso de direito constitucional positivo. SP: Malheiros, 2012. 35ª ed.
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL – RORAIMA. Resultado da votação – eleitos.
Disponível em http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-rr-candidatos-eleitos-1o-turno
Acesso 12/04/18

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Estatísticas de Resultados - Quocientes eleitoral e


partidário de todo o Brasil. Disponível em
http://www.tse.jus.br/hotSites/estatistica2010/Est_resultados/quocientes_eleitoral_partidario.html
Acesso 12/04/18

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p684 694


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A representação feminina no Congresso Nacional: dilemas e desafios

Silvana Gomes1
Marcos Sepúlveda2
Barbara Botassio3

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o processo de formação da representação


feminina no Congresso Nacional. Nesse aspecto, questiona-se: quais são os fatores
limitadores da participação feminina? E qual é a efetividade das normas aplicadas quando
aplicadas ao processo constitucional e na formação do Congresso Nacional e intrapartidária?
A hipótese é que ainda que haja avanços nos processos vivenciados no Brasil sobre a
participação feminina, esta ainda é muito limitada em virtude das características da sociedade
brasileira, que colide com a possibilidade de encarar a mulher na esfera da política, em
especial no âmbito federal. Para realizar esta análise, inicialmente o presente trabalho valeu-se
das lições de Rawls (2001, 2011, 2016) de procedimento político entre os quais as duas
concepções de justiça de Rawls para considerações iniciais sobre uma representação
hipotética equitativa. Por consequência, os dados da Pesquisa Social Brasileira realizada por
Almeida (2015) através do DataUff lançam possíveis explicações sobre o porquê do baixo
índice de parlamentares femininas na Câmara dos Deputados e Senado Federal. Em um
segundo momento, é analisado o avanço das ações no Congresso Nacional sobre o tema da
participação feminina, focalizando sua efetividade e seu impacto no país. Da mesma forma, é
debatida a disputada interna entre os partidos, dos quais foram selecionados PT e PMDB. A
metodologia deste trabalho apoiou-se em meios qualitativos e quantitativos.

Palavras-chave: Congresso Nacional; Representação Feminina; Partidos Políticos.

1
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF); E-mail:
silvana.sn.gomes@gmail.com
2
Mestrando em Ciência Política pela UFF; E-mail: marcosaraujoba@gmail.com
3
Mestra em Ciência Política pela UFSCar, doutoranda pela UFSCar; E-mail: barbara.botassio@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p695 695


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Introdução
Passados aproximadamente 111 anos desde a Proclamação da República, somente em
2010 foi eleita a primeira presidenta do Brasil. Os motivos deste longo interstício ainda são
objeto de bastante investigação. Assim, este trabalho tem como objetivo elucidar algumas das
variantes que ocasionam a limitação da representação feminina no Congresso Nacional.
Em um primeiro momento, será exposta uma formulação hipotética sobre o
procedimento político adequado para um país. Nesse sentido, esse trabalho expõe inicialmente
os dois princípios de justiça de Rawls (2011) para então questionar com base nos números da
pesquisa do IBGE (2018) inter alia sobre a participação das mulheres na política. Da mesma
forma, é de grande valia a pesquisa realizada por Almeida (2015), que pode esclarecer alguns
pontos obscuros sobre quais motivos acarretam os referidos resultados.
Logo, incorre analisar as iniciativas por meio de atividade legiferante, outrossim de
algumas pesquisas realizadas pelos próprios órgãos legislativos federais. É interessante nesse
segundo momento observar a efetividade das normas no cenário brasileiro, em especial após a
instituição de cotas de gênero nos partidos políticos a partir de uma alteração na legislação
eleitoral. Da mesma forma, almeja-se jogar luz sobre os resultados produzidos em virtude de
tais ações institucionais.
Dessarte, é analisada a disputa intrapartidária entre dois dos principais partidos
políticos no Brasil: PT e PMDB. A este respeito, analisa-se como esta representação é posta
institucionalmente nos referidos partidos, bem como os resultados tanto para o partido quanto
para o sistema político brasileiro.

Representação
Atualmente, segundo dados do IBGE (2018), 10,5% da Câmara dos Deputados é
composta por mulheres, enquanto no Senado este percentual é da ordem de 16%. Em virtude
desta enorme inequidade, o Brasil atualmente ocupa a 152º posição em proporção de gênero
em representação nacional, sendo o último na América do Sul (IBGE, 2018). Diante disso, é
necessário fazer algumas considerações sobre uma representação adequada.
De acordo com Rawls (2016), é necessário que, em um país, seja estabelecido
procedimento político, legislativo inter alia que seja apropriado, tendo em conta que as
normas acordadas devem ser elaboradas desconhecendo suas características pessoais,
inclusive de renda, etc.
Para Rawls,

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[...] no caso fundamental da cooperação na estrutura básica da sociedade, os


representantes dos cidadãos, como agentes razoáveis e racionais, devem ser
situados de uma forma razoável, isto é, de forma equitativa ou simétrica, sem
que nenhum deles tenha vantagens de barganha em ração aos demais. Esta
condição última é satisfeita por meio do véu da ignorância (RAWLS, 2011,
p.62).
Assim sendo, ao se partir do véu da ignorância, seriam estabelecidos dois princípios de
justiça que resultariam e seriam efetivos na determinação da vida política, social e do modo
de cooperação entre os indivíduos, os quais são:
a) Cada pessoa tem um direito igual a um sistema planejamento adequado de
direitos e liberdades iguais, sistema esse que deve ser compatível com um
sistema similar para todos. E, neste sistema, as liberdades políticas, e
somente estas liberdades, devem ter um valor equitativo.
b) As desigualdades sociais e econômicas devem ser satisfazer duas
exigências: em primeiro lugar, devem estar vinculadas a posições e cargos
abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; em
segundo lugar, devem se estabelecer para o maior benefício possível dos
membros menos privilegiado da sociedade (RAWLS, 2011, p.06).
Desse modo, a representação parlamentar reproduziria, a priori, um resultado próximo
da equidade de representação, via de regra, 50%. No entanto, conforme destacado no início
deste trabalho, o Brasil está 39,5% na Câmara dos Deputados e 34% no Senado aquém desta
representação hipotética igualitária. Logo, cabem algumas considerações sobre o porquê deste
resultado.
Em primeiro lugar, Almeida (2015) na Pesquisa Social Brasileira empreendida pela
DataUff revelou dados quantitativos sobre como o brasileiro pensa e que podem estar
associados ao estado no qual se encontra a estrutura de representação atual. Neste sentido, é
preciso destacar o pensamento patrimonialista da sociedade brasileira e familista bastante
arraigado no pensamento tanto da mulher quanto do homem brasileiro (ALMEIDA, 2015).
De acordo com Almeida (2015), as mulheres tendem a ser um pouco menos
patrimonialistas que os homens. Mas, por outro lado, expõe que as mulheres são
significativamente mais hierárquicas que os homens. Desse pensamento decorrem algumas
implicações: se por um lado o pensamento contrário ao patrimonialismo pode ser uma
variável considerável para o eleitor e impulsionar um melhor e maior representação no
Congresso Nacional, por outro, a aceitação das condições impostas sociais e econômicas, ao
agir em associação do status quo não acarretam os resultados desejáveis seja do ponto de vista
social quanto político etc.
Em seu estudo sobre marketing político, Torquato (2014) explica que a participação
feminina está mais ligada aos cargos mais baixo como, por exemplo, prefeituras, câmaras
municipais, ao passo que quanto maior for o grau hierárquico e a responsabilidade a ele

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associada, mais o homem é visto como mais adequado e preparado para aquele cargo –
certamente uma das variantes de explicações sobre o porquê do longo interstício para ser
eleita a primeira presidenta brasileira em 2010. Outrossim, como esclarece Torquato (2014,
p.199):
[...] a mulher opta pelo valor da proximidade (física e psicológica) e
identificação. Ou seja, ela sente-se mais confortável em votar em um
candidato do seu sexo pela identificação de valores. As mulheres mais
pobres e menos instruídas, contudo, tendem a votar em candidatos do sexo
masculino, o que não deixa de revelar traços de subordinação e exploração.
Requer destacar que tanto Torquato (2014) quanto Almeida (2015) defendem, como
via hábil a aumentar a participação da mulher na política e na ocupação dos espaços, o
aumento do nível educacional e de renda. Sobre isso, é importante provocar alguns
questionamentos: no processo político, o aspecto econômico é, muitas vezes, determinante
para o desempenho eleitoral. Se por um lado há financiamento público de campanha, através
dos fundos partidários, há equidade de como os partidos distribuem esses recursos, em
especial para possíveis novos representantes em detrimento daqueles que estão hoje no
exercício do cargo?
Já as doações de campanhas e o autofinanciamento mostram-se naturalmente
limitados. Em primeiro lugar, pelo pensamento arcaico, retrógrado e conservador da
sociedade brasileira, o que inviabiliza inovações dos atores políticos. Por outro lado, se as
mulheres possuem menor renda e poder aquisitivo que os homens, como então financiar as
campanhas eleitorais femininas?
Oportuna é essa provocação tendo em vista as próximas seções desse trabalho, que
analisarão o desenvolvimento institucional e a efetividade das iniciativas para combater essa
assimetria na representação nacional entre os gêneros nos últimos anos.

O Enfrentamento da Sub-Representação Feminina pelas Vias Normativas e


Institucionais
O arranjo institucional brasileiro vem apresentando uma permeabilidade maior às
questões de gênero desde a redemocratização do país na década de 1980. A despeito deste
processo de abertura da tecitura das normas e das instituições aos debates acerca das relações
de gênero, o avanço alcançado não tem se dado segundo uma lógica linear e inabalável. A
extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos é um
exemplo disto.
Conforme buscamos explorar ao longo deste trabalho, os obstáculos enfrentados pelas
mulheres na sua luta por inserção e representação política têm causa multifatorial. Nesta

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seção, tem-se como objetivo mapear iniciativas que se proponham a superar tais obstáculos
nos planos normativo e institucional, neste último caso, focalizando o Congresso Nacional.
No âmbito do Congresso, em fevereiro de 2016, instituiu-se a Frente Parlamentar
Mista em Defesa dos Direitos Humanos das Mulheres, atualmente presidida por Ana Perugini
(deputada federal eleita pelo Partido dos Trabalhadores/São Paulo) e composta por 206
deputados federais e 5 senadores. Adicionalmente, também está em funcionamento a
Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher, sob a presidência da
deputada federal Elcione Barbalho (Movimento Democrático Brasileiro/Pará).
Na Câmara de Deputados, para além da existência da Comissão Permanente de Defesa
dos Direitos da Mulher, a Resolução nº 31/2013 alterou o regimento interno da Casa para
incluir as disposições pertinentes à criação da Secretaria da Mulher, composta pela
Procuradoria da Mulher e pela Coordenadoria dos Direitos da Mulher.
Esta Secretaria, que possui forte articulação com a Bancada Feminina, tem como
missão a prestação de serviços de apoio às parlamentares, sobretudo (i) acompanhamento
legislativo, (ii) assessoria jurídica e recebimento de denúncias, (iii) promoção da imagem e da
atuação da mulher na Câmara de Deputados e (iv) realização de eventos e audiências.
No Senado Federal, destacam-se dois órgãos: o Observatório da Mulher contra a
Violência e a Procuradoria Especial da Mulher. Além disto, o Instituto de Pesquisa
DataSenado vem conduzindo investigações relevantes para a produção de conhecimento em
matérias legislativa e eleitoral a partir de um recorte de gênero.
Em 2014, a Procuradoria Especial da Mulher divulgou uma pesquisa de opinião
intitulada “Mulheres na Política”, tendo em vista a realização de eleições gerais naquele ano.
Os resultados da pesquisa evidenciam, sobremaneira, as distorções presentes na prática
política brasileira sob uma perspectiva de gênero. A metodologia adotada pelo DataSenado
abrangeu a realização de entrevistas telefônicas com 1091 cidadãos que contassem com mais
de 16 anos em todas as unidades da federação.
Alguns pontos endereçados pela pesquisa são especialmente relevantes para os
propósitos da discussão desenvolvida no presente artigo. Em primeiro lugar, quando
questionados se “na hora de escolher alguém para votar, o sexo do candidato faz diferença
para você?”, 83% dos indivíduos entrevistados disseram que não, ao passo que somente 12%
afirmaram que sim. Além disso, quando indagados se já haviam votado em alguma mulher
para ocupar um cargo político, 79% assinalaram que sim, enquanto 20% indicaram que não e
1% não soube responder.

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No tocante à percepção acerca das dificuldades que obstam a candidatura de mulheres,


a falta de apoio do partido figurou como o principal óbice apontado tanto por homens quanto
por mulheres, sendo seguido pela falta de interesse por política, pela dificuldade de concorrer
com um homem, pela falta de apoio da família e pelo tempo dedicado às tarefas domésticas.
Como é possível inferir a partir do substrato proporcionado pela pesquisa em questão,
a construção dos deveres e papéis de gênero ainda permeiam, fortemente, a percepção da
sociedade quanto à ocupação das arenas políticas pelas mulheres. Ainda que haja um
componente institucional (isto é, falta de apoio dos partidos políticos), as dimensões de
gênero, somadas, ganham maior proeminência.
Estes dados contrastam com a realidade atual do engajamento feminino nas instâncias
políticas. Embora a ampla maioria dos entrevistados tenha afirmado que o gênero dos
candidatos a cargo eletivos não seja fator determinante de seu voto e que já votaram em
mulheres em pleitos anteriores, o que se observa é uma sub-representação das mulheres tanto
no Legislativo quanto na Chefia dos Poderes Executivos nas esferas da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios.
Operar um balanço crítico das políticas de cotas enquanto via de indução ao
incremento da participação efetiva das mulheres na política é necessário para que possa fixar
um horizonte normativo e institucional a ser perseguido de modo a suprir as carências que
ainda se fazem presente.
É importante destacar que eleger um número maior de mulheres também significa
aumentar a capacidade de mobilização política para promover pautas associadas às
reivindicações de gênero. A aderência de parlamentares majoritariamente masculinos às
demandas femininas é reduzida em razão da impossibilidade per se de agirem sob a
perspectiva das mulheres (women's standpoint), o que apresenta reflexos diretos no perfil de
sua atuação parlamentar.
As repercussões das assimetrias nas relações de gênero no âmbito político não são um
fenômeno recente. Em um primeiro momento, pode-se identificar na luta travada pelas
mulheres pelo reconhecimento de direitos políticos um marco importante de reivindicação
cidadã na história republicana do Brasil.
A criação da Justiça Eleitoral em 1932 e a inserção do direito ao sufrágio feminino na
Constituição de 1934 constituem pontos de inflexão importantes na trajetória dos movimentos
de mulheres. Contudo, passados 84 anos desde a promulgação da Carta Política de 1934, o
cenário da participação política feminina ainda é desalentador.

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A própria elaboração da Constituição de 1988, tão celebrada em sua principiologia e


nos direitos fundamentais que formalmente assegura, foi completamente díspar em termos de
representação de gênero na Assembleia Nacional Constituinte. Basta mencionar que, do total
de 557 parlamentares constituintes, somente 25 (ou 4,47% do total) eram mulheres.
A sub-representação das mulheres na política revela-se, portanto, sistêmica e
persistente. Esforços têm sido empreendidos no sentido de reverter esta tendência quase
inexorável do sistema representativo brasileiro, no entanto, a efetividade alcançada com as
medidas ainda se encontra substancialmente aquém do desejável e necessário.
Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral apurou que as mulheres compõem 52%
do eleitorado brasileiro, correspondendo a 77.076.395 votantes alistadas e cadastradas até
fevereiro de 2018. Por outro lado, inobstante a criação de instrumentos que visem a enfrentar
as desigualdades de gênero na seara política, os efeitos de medida desta natureza mostram-se
fracos e limitados.
A chamada Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997) foi alterada em 2009 com o objetivo
de estabelecer as “cotas de gênero”. De início, é preciso salientar que o Direito Eleitoral é
vetorizado pela igualdade de oportunidades nas disputas eleitorais, porém a configuração das
relações de gênero no Brasil claramente não corroboram com o alcance desta paridade sem a
adoção de políticas voltadas para o empoderamento feminino e a mitigação gradativa das
inúmeras manifestações de desigualdade entre homens e mulheres.
Assim, diante deste panorama, a Lei das Eleições sofreu uma modificação no
parágrafo 3º, inciso I, de seu artigo 10, que passou a prever que “do número de vagas
resultantes das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo
de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada
sexo”.
Embora o escopo deste trabalho esteja centrado no Congresso Nacional, não é
despiciendo mobilizar certos dados com o intuito de arguir que o fenômeno ora analisado é
mais amplo do que sua manifestação no plano legislativo federal, significando, a rigor, uma
prática capilarizada em todos os níveis da federação.
Frente a um total de 5.568 Municípios brasileiros, 1.286 destes não elegeram mulheres
para suas Câmaras de Vereadores. Somando-se a isto, somente em 0,43% das cidades, as
mulheres compõem a maioria dos candidatos eleitos no pleito para o preenchimento dos
assentos de vereador.
Neste sentido, o Tribunal Superior Eleitoral vem reiteradamente chamando atenção
para o fato de que há um grave descompasso entre os números de eleitoras, candidatas e

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exercentes de mandatos eletivos. Tal constatação está relacionada com a existência de fraudes
praticadas pelos partidos que têm como efeito mais pernicioso a distorção dos mecanismos de
promoção da igualdade de gênero em termos de participação política.
De modo geral, tais fraudes têm como intuito burlar a determinação legal da cota
mínima de gênero. Com isto, o Tribunal, em conjunto com o Ministério Público Eleitoral, tem
investigado diversas condutas que caracterizam a indicação de “candidatas-laranja”.
O estopim para estas apurações deu-se com a verificação de que, no pleito de 2016 4,
um número superior a 16 mil candidatos não recebeu um voto sequer, ou seja, nem mesmo os
candidatos votaram em si próprios, o que é digno de estranheza.
Entretanto, um dado ainda mais alarmante – e que foi descoberto em uma etapa
posterior – veio à tona no curso das investigações: 14.417, dentre os mais de 16 mil citados
acima, eram mulheres. Para o Tribunal Superior Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral,
esta circunstância excepcional apontava para a existências de “candidaturas-fantasma”, em
que, não raro, as próprias mulheres que haviam sido registradas enquanto candidatas perante a
Justiça Eleitoral estavam cientes disto.
A despeito da intenção dos legisladores quando da inserção da cláusula de cota
mínima de gênero na norma de regência das eleições, na prática, as agremiações políticas
acabaram por deturpar a aplicação do instituto com dois propósitos: (i) simular o
cumprimento do preceito legal e (ii) esquivar-se das sanções que decorreriam da constatação
de seu descumprimento.
Em 2016, a Procuradoria da Mulher promoveu nova pesquisa de opinião pública com
o objetivo de identificar as principais razões que conduzem à sub-representação política
feminina. Por ocasião deste estudo, apurou-se que 37% das mulheres afirmaram sofrer
discriminação no ambiente político em virtude do seu gênero.
Mais uma vez, resta claro que as políticas de fomento ao engajamento político
feminino não podem se exaurir na conquista de normas, mecanismos e estruturas
institucionais que proclamem assegurar formalmente os direitos políticos titularizados pelas
mulheres. A este respeito, Herrera Flores (2009) muito precisamente adverte que, sob uma
ótica emancipatória, a luta por direitos não deve se esgotar com o alcance de marcos legais,
posto que estes são insuficientes para imprimir efetividade às demandas dos atores
sociopolíticos. Desse modo, é pertinente analisar como a disputa entre os gêneros é ocorrida
no sistema intrapartidário de dois partidos: PT e PMDB.

4
Vale mencionar que as eleições de 2016 não foram gerais, mas locais. Dessa forma, foram sufragados somente
os cargos de prefeito e vereador.

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A Disputa por Espaços de Poder no Interior dos Partidos

Um fator pouco mencionado na literatura sobre o debate da representatividade


feminina é o papel desempenhado pelas mulheres nos órgãos decisórios dos partidos políticos
brasileiros. O desenvolvimento dos partidos políticos está associado ao avanço da democracia
representativa, à ampliação das prerrogativas parlamentares e principalmente à conquista de
direitos políticos como o sufrágio. Sendo assim, o princípio da organização dos partidos
políticos e da competição partidária eleitoral, está relacionado à emancipação de setores
sociais e da consequente emergência de partidos de esquerda apoiados por esses setores,
principalmente na Europa dos séculos XIX e XX, e ao sistema partidário norte-americano de
meados dos séculos XVIII (PANEBIANCO, 2005).
Há uma estreita ligação apontada pela Ciência Política entre os partidos políticos e o
funcionamento da democracia representativa. De forma simplificada Amaral (2013) indica
pelo menos três funções essenciais que as agremiações desempenham: a) estruturar a
competição eleitoral; b) agregar interesses; c) governar e conduzir trabalhos legislativos.
Tomando como base o trabalho de Michels (1982), que serve de alicerce para
pesquisas sobre a organização e a distribuição de poder no interior das organizações políticas,
o autor defende que os partidos tendem a desenvolver uma estrutura burocrática centralizada e
a oligarquização de sua direção 5. Segundo o autor, a incapacidade das massas em dirigir a
organização, combinada às exigências técnicas-administrativas levaria ao desenvolvimento de
uma estrutura burocratizada, comandada por um conjunto de dirigentes profissionais que se
preocupam com a manutenção de suas posições internas e com a sobrevivência da
organização. Como consequência, decorre uma autonomização da liderança com relação às
bases partidárias e uma flexibilização dos princípios ideológicos da organização.
O processo de oligarquização, exigiria um distanciamento entre representantes e
representados, de maneira que a cúpula se focaria em conservar o poder interno ao invés de
abrir priorizar as demandas das bases. Sendo assim, os dirigentes formariam uma classe
estável dentro do partido, perpetuando-se no poder invariavelmente até a morte.
Para Duverger (1980), em oligarquias abertas, a renovação das elites ocorreria
primeiro intrapartidariamente e posteriormente no campo legislativo e de governo. Nesse
sentido, vale o questionamento de qual o papel das mulheres nessas oligarquias partidárias.
No caso dos Partidos dos Trabalhadores (PT), a partir de 2005, ocorre o processo de eleição

5
Essa tendência é conhecida como “Lei de Michels” ou “Lei de Ferro da Oligarquia”.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p695 703


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direta, em que seus filiados podem escolher os membros da cúpula nacional. Desde 1993, o
partido adota uma política de cotas de 30% para representantes femininas.

Tabela 1. Dados sobre os órgãos dirigentes do PT6


Diretório Comissão Executiva
Número total de 149 36
mulheres
Média de composição 20,3 21,2
Tempo médio de 1,8 1,7
permanência
Número máximo de 09 04
permanência nas
composições
Moda 01 01
Mediana 01 01
Fonte: Leveguen, Castro e Ribeiro (2017)

Segundo os dados da tabela acima, os resultados se mostram parecidos para ambos os


órgãos dirigentes, a porcentagem fica na média de 20% para ambos. Segundo Leveguen,
Castro e Ribeiro (2017), os indicadores apresentados demonstram que a maioria das mulheres
permanecem por apenas uma composição, significando que apesar das mulheres conseguirem
acessar esses órgãos devido as regras formais, elas não permanecem por muito tempo.
Realizando a mesma análise para o PMDB, os seguintes resultados se apresentam:
Tabela 2. Dados sobre os órgãos dirigentes do PMDB/MDB7
Diretório Comissão Executiva
Número total de 26 05
mulheres
Média de composição 5,5 3,7
Tempo médio de 2 1,6
permanência
Número máximo de 4 3
permanência nas

6
15 diretórios e 16 executivas analisadas.
7
8 diretórios e 16 comissões executivas analisadas.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p695 704


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composições
Moda 1 1
Mediana 2 1
Fonte: Leveguen, Castro e Ribeiro (2017)

Em comparação com o PT, o PMDB tem o menor número de representação feminina


em sua cúpula. Com isso, apesar das regras criadas que incentivem a participação das
mulheres no sistema eleitoral, no caso do PMDB esse resultado é pífio, a mesma consideração
podemos fazer de sua média de permanência nessas composições.
Dessa forma, podemos inferir que a participação das mulheres nos núcleos duros e de
decisão dos partidos políticos ainda é baixíssima. Mesmo no caso do PT, que possui existem
mais regras formais que incentivem a participação de membros femininos, a participação fica
abaixo do esperado e as mulheres que chegam nesses cargos tendem a não ter continuidade. O
quadro de participação das mulheres em quadros dirigentes das organizações partidárias do
país pode ser um indicativo do processo que vemos na arena eleitoral e governativa.

Considerações Finais
As práticas de representação, enquanto dimensão necessária da democracia e da justiça
social, são permeadas por distorções que, no limite, afastam, limitam ou obstaculizam a
participação de mulheres nas esferas públicas e nas instâncias de poder político.
Os diversos óbices que se impõem ao engajamento feminino na atividade política, para
além de serem historicamente sedimentados, apresentam naturezas distintas. Assim, aspectos
sociais, econômicos, normativos e institucionais colocam-se no caminho daquelas que
desejam integrar os centros de poder decisório do Estado.
Os princípios de justiça de Rawls são bons guias para que se possa reformar o arranjo
político altamente sexista e excludente vivenciado no Brasil. Ainda que medidas visando à
promoção da igualdade entre homens e mulheres tenham sido empreendidas nas últimas três
décadas, é preciso voltar os olhos para o plano da efetividade.
Conforme se expôs ao longo do desenvolvimento deste trabalho, as dificuldades de
participação e representação enfrentadas pelas mulheres são diversas e se manifestam
inclusive no âmbito dos partidos políticos aos quais são filiadas, o que é evidenciado pela
baixa proporção feminina em órgãos de cúpula das agremiações.
A promoção das pautas e reivindicações das mulheres na esfera pública depende, em
grande medida, do redimensionamento de sua representação no Congresso Nacional. Para

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p695 705


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tanto, é fundamental que se altere a visão formalista predominante da democracia para uma
perspectiva substantiva que esteja ancorada no tecido social e comprometida com a superação
dos obstáculos à participação política feminina.

Referências

ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2015.

AMARAL, O. “O que sabemos sobre a organização dos partidos políticos: uma avaliação de
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Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes
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LEVEGUEN, B. D.; CASTRO, L. A.; RIBEIRO, P. “Rompendo o teto de vidro: mulheres no


comando dos partidos brasileiros.” Anais do 41º Encontro Anual da Anpocs, 2017.

MICHELS, R. Sociologia dos Partidos Políticos. Brasília: UNB, 1982.

PANEBIANCO, A. Modelos de Partido: organização e poder nos partidos políticos. São


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RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_______. O liberalismo político. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

_______. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

TORQUATO, Gaudêncio. Novo manual de marketing político. São Paulo: Summus, 2014.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p695 706


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Liberdade de gênero e direito ao desenvolvimento1

Letícia Rocha Santos 2

Resumo: Em um cenário político e social de retrocessos em diversos âmbitos, faz-se


necessário refletir sobre o conceito e o alcance do direito ao desenvolvimento. Ao mesmo
tempo em que a economia parece ser colocada em primeiro plano, os direitos sociais são
negligenciados e as liberdades dos indivíduos são cerceadas. Um dos aspectos dessa liberdade
é a liberdade de gênero, que será tratada a partir da perspectiva de teorias feministas e dos
estudos de gênero, que possuem maior profundidade no tema. Para trazer elementos da teoria,
será estudado o gênero enquanto categoria de análise, compreendendo de que forma seu
conceito vem sendo formulado e reestruturado ao longo do tempo por biólogas, sociólogas e
filósofas. A partir disso, será questionada a reação social que ocorre quando o indivíduo foge
dos moldes pré-estabelecidos na perspectiva de gênero, as possibilidades que esse sujeito tem
e os condicionamentos que sofre ao longo da sua vida. A concepção de gênero como
construção social e a sua influência sobre a formação de homens e mulheres será tratada a
partir da visão especialmente de Simone de Beauvoir e Judith Butler, trazendo elementos da
sociologia e da filosofia. Apesar de esses padrões de comportamento e estereótipos atingirem
tanto homens quanto mulheres, ressalta-se que os condicionamentos que as pessoas enfrentam
ao se tratar do gênero alcançam profundamente as mulheres por limitarem suas liberdades e
tentarem restringir sua condição de agentes. Como foi possível observar, o cerceamento da
liberdade atinge diversos âmbitos da vida das mulheres e limita o pleno exercício do direito ao
desenvolvimento, que será analisado sob a ótica de Amartya Sem. Ressaltando a importância
das liberdades pelos indivíduos para a concretização desse direito, o autor traz a proposta de
enxergar o mundo e seu desenvolvimento para além das questões econômicas. Também serão
trazidos elementos da condição das mulheres no mundo, a fim de perceber como essas teorias
se articulam na prática, em uma perspectiva histórica. Ao tratar sobre a lógica do direito ao
desenvolvimento, percebe-se essa ligação entre o individual e o coletivo. Em como essas
dimensões estão ligadas, na medida que o indivíduo é ensinado e condicionado a partir das
experiências coletivas, mas também influencia na construção e reconstrução desse ideal
coletivo, em uma perspectiva dialética. Quando se coloca em questão a situação das mulheres,
especialmente em relação à concretização do direito ao desenvolvimento em sua perspectiva,
faz-se necessário o estudo das intersecções entre o público e o privado, pois as dificuldades
sofridas pelas mulheres em âmbito doméstico só são consideradas quando levadas ao espaço
público. As reflexões de Amartya Sen permitem pensar sobre o papel do desenvolvimento na
sociedade atual, observando a concretização das liberdades como sendo essencial a uma
sociedade mais justa.

Palavras-chaves: gênero; desenvolvimento; liberdade.

1
Artigo apresentado à disciplina isolada “Direito ao Desenvolvimento, Humanismo e Fraternidade”, do
Mestrado em Direito da Universidade Federal de Sergipe.
2
Universidade Tiradentes; Mestranda em Direitos Humanos – UNIT; Bolsista CAPES/FAPITEC;
leticia.rocha.aju@gmail.com

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Introdução
Ao realizar qualquer pesquisa, ainda que bibliográfica, é necessário observar e
compreender o contexto social e político de onde se fala. No caso do Brasil, entender em que
medida a situação do país influencia no tema sob análise é crucial para fazer uma crítica
fundamentada e evitar discussões vazias.
Especialmente falando sob a perspectiva das ditas minorias, o que se evidencia é um
quadro político de retrocessos nos direitos sociais, a crise de uma democracia que sequer foi
consolidada e uma perseguição (com fundamentos questionáveis) à chamada “ideologia de
gênero”.
Para trazer elementos da teoria, será estudado o gênero enquanto categoria de
análise, compreendendo de que forma seu conceito vem sendo formulado e reestruturado ao
longo do tempo por biólogas, sociólogas e filósofas. A partir disso, será questionada a reação
social que ocorre quando o indivíduo foge dos moldes pré-estabelecidos na perspectiva de
gênero, as possibilidades que esse sujeito tem e os condicionamentos que sofre ao longo da
sua vida.
Esses elementos serão relacionados ao direito ao desenvolvimento na medida que o
cerceamento das liberdades é central na ideia desenvolvida por Amartya Sen. Dessa forma,
será estudada a perspectiva do autor e as mudanças na condição das mulheres, individual e
coletivamente, entendendo que o pessoal é político.

Desenvolvimento

Gênero Enquanto Categoria de Análise

O termo “gênero”, assim como outros termos que consubstanciam realidades


complexas, é de difícil definição. A depender da área de conhecimento que o utiliza, pode ser
um conceito mais ou menos estável.
As questões de gênero são tratadas nas análises de Beauvoir (2016) que, mesmo não
conceituando diretamente gênero, falam sobre a construção do “ser mulher” como sendo
definida a partir do “outro”: dessa forma, uma pessoa seria do gênero feminino por não se
identificar com o gênero masculino, em uma evidente relação de alteridade. Assim, nota-se o
início de uma concepção do conceito de gênero como construção social, características que
são atribuídas a partir do sexo biológico da pessoa.

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A partir do livro O segundo sexo, inúmeras autoras discorreram acerca da condição


das mulheres, como Gayle Rubin, discorrendo sobre conceitos como patriarcado, identidade e
assimetria de gênero; esse movimento de criação de um sujeito político (mulher) também
gerou contestações daquelas que não se enquadravam nessa “identidade feminina universal” –
que usualmente abarcava apenas as mulheres brancas de classe média (PISCITELLI, 2009).
Por fim, as novas leituras sobre gênero, como a de Judith Butler (2017a), trazida no
livro “Problemas de gênero”, é mais radical, especialmente considerando autoras anteriores.
Conforme esclarece a autora, cientistas sociais entendem o gênero como fator ou dimensão de
análise; também é aplicado a pessoas reais como uma marca de diferença biológica,
linguística e cultural. Considera tanto o gênero quanto o sexo construções sociais. Mais do
que isto, fala sobre como o gênero está ligado à performatividade, ou seja, ao que se expressa
ao mundo exterior como característica de si. Assim, sentir-se mulher ou homem tem um
caráter completamente subjetivo, que não depende do fator biológico nem se define a partir
dessa performance de gênero.
Abarcando um pouco das duas visões, Saffioti acredita que a
perspectiva feminista toma o gênero como categoria histórica, portanto
substantiva, e também como categoria analítica, por conseguinte, adjetiva.
Não existe um modelo de análise feminista. Rigorosamente, o único
consenso existente sobre o conceito de gênero reside no fato de que se trata
de uma modelagem social, estatisticamente, mas não necessariamente,
referida ao sexo. Vale dizer que o gênero pode ser construído
independentemente do sexo. [...] Não há, portanto, um modelo feminista; há
uma perspectiva feminista que se traduz por diversos modelos. (SAFFIOTI,
2001, p. 129)

Apesar de, na teoria, haver grande flexibilidade sobre essas questões, na vida prática
há uma grande dificuldade em compreender as diversas formas como as pessoas podem ser e
se expressar. Esta inclusive é a motivação para que as teorias feministas e os estudos de
gênero também sejam dotados de caráter militante, para os quais não basta a pesquisa e a
constatação da realidade existente, mas deve haver um estímulo à propagação dessas ideias, a
fim de gerar mudanças culturais.
Como meio de normatização e controle, existem padrões estabelecidos de formas e
comportamentos, determinações sobre o que é “coisa de homem” e “coisa de mulher”, tão
naturalizadas que parecem biológicas – o que já foi enunciado pela teoria dos papéis sociais.
Isso se evidencia quando se fala sobre direito à cidade, inclusive sobre como esses
corpos, de homens ou mulheres, devem se apresentar e se comportar em sociedade. Há uma
expectativa (e mesmo uma cobrança) social para que os homens sejam fortes, racionais e

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provedores e para que as mulheres sejam frágeis, sensíveis e alvo de proteção. São narrativas
que vêm de longe e acabam condicionando e aprisionando não apenas as mulheres, mas
também os homens.
Por este breve panorama, nota-se que esse conceito pouco tem a ver com a temida
“ideologia de gênero”. Depois da passagem de Judith Butler pelo Brasil e das agressões
sofridas por ela nesse contexto, a autora escreveu que a “teoria da performatividade de gênero
busca entender a formação de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um
direito e uma liberdade fundamental. Não é uma ‘ideologia’.” (BUTLER, 2017b, p. 1).
Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório
quanto dogmático, algo que "tomou conta" do pensamento das pessoas de uma maneira
acrítica. Essa definição se distancia da perspectiva da autora, já que seu ponto de vista
é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adotam como
certas em seu cotidiano, e as premissas que os serviços médicos e sociais
adotam em relação ao que deve ser visto como uma família ou considerado
uma vida patológica ou anormal. (BUTLER, 2017b, p. 1)

Assim, nota-se que as teorias de gênero retratam a diversidade de indivíduos,


comportamentos e subjetividades, que muitas vezes não se adequam aos padrões. Pautam,
sobretudo, que essas diferenças não podem ser justificativa para violências e intolerâncias de
quaisquer espécies.

A Fuga dos Moldes

Como foi dito, a existência de padrões de gênero não apenas cria padrões de
comportamento, mas também lança para o campo da invisibilidade ou marginalização formas
diversas de expressão de gênero.
Em relação aos homens, tem-se a ideia, por exemplo, de que não podem exagerar no
cuidado da aparência ou na sensibilidade – afinal, delicadeza é uma característica feminina.
Então, a partir do momento em que um homem destoa do que é esperado para o seu gênero,
está fugindo de um molde que estava pronto antes mesmo do seu nascimento.
Frequentemente o desvio desses padrões é relacionado à sexualidade do indivíduo,
corroborando a ultrapassada ideia de que homossexuais buscam se parecer com pessoas do
gênero oposto. Como se todos os homens gays fossem “afeminados” e todas as mulheres
lésbicas fossem “masculinizadas”. Ou até mesmo quando são alvo de suposições relativas à

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sua sexualidade por se encaixarem em determinados estereótipos – e esses fatores acabam por
limitar suas opções de desenvolvimento e cercear sua liberdade.
Esses padrões estabelecidos geram condicionamentos e limitam possibilidades.
Condicionam as pessoas, que desde crianças escutam coisas como “chorar é coisa de menina”
ou “futebol é coisa de menino”, fazendo com que elas saibam desde cedo quais lugares devem
ocupar.
Ainda na infância, enquanto muitas meninas brincam com bonecas e utensílios de
cozinha, como se devessem aprender apenas sobre maternidade e serviços domésticos, muitos
meninos brincam com carrinhos e jogos, que estimulam a independência e o raciocínio lógico.
Pode parecer algo simples, mas é notável a influência de tudo isto ao decorrer da vida de
homens e mulheres e no aprimoramento de suas habilidades.
Apesar de esses padrões de comportamento e estereótipos atingirem tanto homens
quanto mulheres, os condicionamentos que as pessoas enfrentam ao se tratar do gênero
alcançam profundamente as mulheres por limitarem suas liberdades e acarretarem diversos
tipos de violência – até a morte. Como se verá adiante, o cerceamento da liberdade atinge
diversos âmbitos da vida da pessoa e limita o pleno exercício do direito ao desenvolvimento.

A Perspectiva de Amartya Sen

As lutas pela igualdade e liberdade de gênero suscitam discussões sobre os limites do


exercício dos direitos fundamentais, especialmente diante do desafio constitucionalmente
posto de se promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer espécie.
No livro “Desenvolvimento como liberdade”, Amartya Sen expõe a dicotomia que se
observa atualmente no mundo, onde existe a força da globalização e, ao mesmo tempo,
privação, destituição, opressão. Problemas novos e antigos, inclusive a “ampla negligência
diante dos interesses da condição de agente das mulheres” coexistem e a superação desses
problemas é central para o processo de desenvolvimento (SEN, 2010, p. 9).
O autor faz uma análise da relação entre o individual e o coletivo, ao considerar a
liberdade individual um comprometimento social. Ou seja, é necessário o reconhecimento da
centralidade da liberdade individual e, ao mesmo tempo, da influência social sobre essa
individualidade. Dessa forma, o que as pessoas conseguem realizar positiva e individualmente
tem influência das oportunidades econômicas, liberdades políticas e boas condições sociais.
O desenvolvimento é definido como a “eliminação das privações de liberdade que
limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição

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de agente” (SEN, 2010, p. 10), sendo a liberdade humana o seu objetivo supremo. Essa
perspectiva sugere uma análise integrada das perspectivas econômica, social e política,
enxergando os indivíduos como agentes ativos de mudança.
Trata-se de uma proposta para enxergar o mundo e seu desenvolvimento para além
do mero desenvolvimento econômico. Não por este não ser importante, mas sim porque ele é
relativo e é apenas um dos aspectos importantes para o desenvolvimento, que “tem de estar
relacionado sobretudo com a melhora da vida que levamos e da liberdade que desfrutamos”
(SEN, 2010, p. 28).
Partindo dessa análise, consequentemente ao desenvolvimento econômico o
indivíduo deve possuir uma autonomia para tomar decisões e exercer direitos, que muitas
vezes a ausência de recursos financeiros não permite. No entanto, o desenvolvimento pode ser
alcançado através da utilização de instrumentos que refletem a liberdade de escolha a pessoa
que tem oportunidades de conduzir a sua vida de acordo seus interesses e necessidades.
Assim, Sen (2010) coloca cinco liberdades instrumentais como elementares para o
direito ao desenvolvimento, quais sejam: (i) liberdades políticas; (ii) facilidades econômicas;
(iii) oportunidades sociais; (iv) garantia de transparência; e (v) segurança protetora. Cumpre
aqui mencionar que, observando de forma pormenorizada cada um desses instrumentos, há
uma interligação entre eles, a ponto de verificar a sua indissociabilidade, ou seja, coexistem
em um mesmo plano empírico.
Reitera essa colocação que o direito ao desenvolvimento em si não está adstrito a
riqueza, ou simplesmente desenvolvimento econômico e que, de forma inversa, não restringe-
se o baixo desenvolvimento à predominância da pobreza. Assim, as liberdades instrumentais
corroboram que há uma estrutura interligada ao ser humano no âmbito social que o permite
dialogar com as diversas vertentes sociais, tendo uma razoável participação em todas elas.
Essa perspectiva traz uma reflexão extremamente diversa do que se costuma
compreender como desenvolvimento, no sentido de observar, por exemplo, o que o senso
comum entende ser uma nação desenvolvida, que rapidamente é respondida como aquela que
possui um elevado desenvolvimento tecnológico, com aspectos mais urbanizados, um forte
desenvolvimento industrial, em suma, retrata aspectos de desenvolvimento econômico.
Porém, não são analisados pontos essenciais de toda uma estrutura social, que nesses
exemplos citados, retratam a concentração de riqueza e uma preocupação majoritária a
respeito do desenvolvimento econômico, que frequentemente é resultante de reiteradas
privações de liberdade.

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Corrobora tal viés o fato de que, como bem se posiciona Amartya Sen (2010), é
melhor ser pobre em um país com baixo desenvolvimento econômico do que classe média em
um país com maior desenvolvimento econômico. Exatamente pelo fato de que tal modalidade
de desenvolvimento não reflete as garantias de exercício pleno de liberdades, pelo contrário,
há uma conjuntura social que possui mais índices de privação de liberdade.
Um exemplo disto é a Europa, que possui os maiores índices de desemprego do
mundo, o que reflete uma exclusão social. A taxa de mortalidade de mulheres no Sul da Ásia,
na Ásia ocidental, na África setentrional e na China, que está ligada aos aspectos de déficit no
acesso a saúde e educação, como também aspectos culturais onde a mulher não possui uma
posição de igualdade em relação aos homens na sociedade. Dentre vários outros exemplos
citados pelo autor, que demonstram com base em dados práticos que o desenvolvimento
econômico não está ligado a conquista de liberdades, pelo contrário, pode até restringir o seu
exercício.
Nessa perspectiva, observa-se que as liberdades instrumentais possuem papel
extremamente essencial se devidamente exercidas, vez que envolvem aspectos elementares da
condição do indivíduo de viver em sociedade exercendo direitos, ou seja, além do exercício
dos direitos econômicos, a participação política, acesso a direitos sociais básicos, estes, que
integram o desenvolvimento não apenas de determinada comunidade, mas de todo um país.

Mudanças na condição das mulheres

Ao falar sobre a condição de agente das mulheres e a mudança social, Amartya Sen
cita Mary Wollstonecraft, enquanto autora de um livro que contém reivindicações de direitos,
especialmente relacionados ao bem estar da mulher. Muito citada ao se falar sobre a história
do feminismo, pois “ao colocar, com clareza exemplar, o problema em termos de direitos,
Wollstonecraft promove uma inflexão na direção da construção de uma teoria política
feminista.” (BIROLI e MIGUEL, 2014, p. 21).
Amartya Sen, por sua vez, ressalta o fato de que por muito tempo as reivindicações
estavam voltadas ao bem-estar de mulher, não à promoção de sua condição de agente.
Esclarece que não se pode desconsiderar a urgência de corrigir muitas desigualdades que
atrapalham o bem-estar das mulheres, sujeitando-as a um tratamento desigual. Mas que
entender o papel da condição de agente é necessário para reconhecer os indivíduos enquanto
responsáveis por suas ações e omissões, pois ninguém ocupa unicamente o papel de
“oprimido” ou “opressor”, de “enfermo” ou “são”.

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Portanto, o autor admite não ser descabido o foco anteriormente dado sobre o bem-
estar das mulheres, especialmente considerando que as privações de direitos básicos, como
direito à vida, ainda não é garantido. Cita a “mortalidade excessiva” das mulheres na Ásia e
na África setentrional como exemplo de como essas necessidades podem ser negligenciadas,
inclusive na distribuição de cuidados de saúde e outras necessidades.
Teóricas feministas apontam que a invisibilidade é uma das maiores marcas dessas
violências contra as mulheres, através do encobrimento do que ocorre no espaço privado, no
âmbito doméstico e pelo atravessamento das questões de gênero (MACHADO, 2002). Para
Heleith Saffioti (2015), o silenciamento desprotege a vítima e contribui com a perpetuação
das violências, notadamente na esfera privada, com a ideia de que nesta esfera o homem tem
direito sobre a mulher e ninguém deve intervir nisso.
Em contrapartida, não se pode esquecer que a limitação do papel da condição de
agente ativa das mulheres afeta a vida de todas as pessoas, sendo esta uma pauta urgente e
básica. Amartya Sen aponta que deve ser dado enfoque nessa condição pelo seu potencial para
remoção de iniquidades que restringem o bem-estar feminino.
Por exemplo, o potencial para auferir rendimentos influencia na condição dessa
mulher no seio familiar, sua participação nas decisões da família e aumenta a possibilidade de
que sua visão seja mais considerada. Da mesma forma acontece quando a mulher desenvolve
papéis econômicos e sociais fora da família, o que amplia tanto a visão da família sobre ela
quanto a visão da própria mulher sobre o mundo, inclusive sobre o mundo doméstico. O
acesso à educação também viabiliza a participação social e política, na tomada de decisões
dentro e fora da família.
Tudo isto contribui positivamente para fortalecer a voz ativa e a condição de agente
das mulheres. Então, segundo o autor, essas variáveis acabam dando poder às mulheres, o que
pode ter grande influência sobre as forças que governam as divisões dentro da família e na
sociedade. Também influencia no que é aceito como “intitulamento” das mulheres, o que é ou
não “papel de mulher”, até onde elas podem chegar.
Em uma introdução crítica ao direito das mulheres, ressalta-se que é preciso
caminhar em busca de legitimidade do poder exercido pelo Estado, pelas
instituições da sociedade e (por que não?) pelas próprias pessoas. Para tanto,
é preciso, primeiramente, que as mulheres assumam uma cidadania ativa.
Em outras palavras, é necessário que tenham consciência das fontes de
opressão, tanto históricas quanto pessoais, para que seja possível conciliar
experiências de diversas mulheres para formar a teoria e a estratégia de ação.
(COSTA; SENRA; SANTOS, 2011, p.234)

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Nas relações interpessoais, Amartya Sen destaca que sempre existem conflitos entre
homens e mulheres e que isso tende a se resolver a partir de uma solução cooperada sobre os
aspectos conflitantes. Isto é característica geral de muitas relações de grupo, em que todos os
lados podem ganhar, conforme o que for acordado (geralmente implicitamente) entre os
envolvidos. Entretanto, esses ajustes podem assumir formas alternativas, que podem ser mais
favoráveis a um lado do que ao outro.
A partir das observações do autor, percebe-se que, no âmbito doméstico e familiar,
isto é influenciado pelo papel socialmente atribuído a mulher. O autor diz que “às vezes a
mulher que sofre privação nem sequer é capaz de avaliar claramente o seu grau de privação
relativa” (SEN, 2010, p. 250). Isto demonstra o lugar em que a mulher é colocada nas relações
familiares – mais do que as concessões e privações inerentes a qualquer relacionamentos,
costuma ser cobrado que a mulher tenha uma postura mais compreensiva e pacificadora. Esse
“instinto maternal” atribuído à mulher acaba fazendo com que a mesma acabe “naturalmente”
assumindo esse papel de cuidadora, não conseguindo enxergar que seu grau de privação
geralmente é maior que o do homem.
Isso se reflete no tópico seguinte, em que o autor fala sobre a influência de um poder
maior das mulheres para que salvem suas próprias vidas e outras vidas – como a de homens e
crianças. Por mais que demonstre a influência da posição das mulheres para o bem estar
dessas outras pessoas (inclusive através de dados) não se pode negar que essa perspectiva
também acaba atribuindo outra responsabilidade a essas mulheres. Como se não bastasse a
condição de “ser humano” das mulheres para que todas as pessoas lutem por seu
desenvolvimento e bem estar: é necessário ressaltar o quanto essas mulheres contribuem para
a vida de homens e crianças, como uma forma de reforçar algo que deveria ser óbvio: as
mulheres devem ter condições de assumir o papel de agentes, a autonomia sobre suas próprias
vidas.
Outro ponto levantado pelo autor é de que, mesmo quando trabalham fora de casa, as
mulheres frequentemente continuam sendo responsáveis pelo trabalho doméstico. Apesar de
ser um trabalho que demanda muitas horas, por não ter remuneração esse trabalho acaba
sendo desconsiderado ao computar a contribuição das mulheres para a prosperidade conjunta
da família. O trabalho feminino só se torna visível quando é feito fora de casa e gera
remuneração.
Então, assim como o desenvolvimento econômico pode contribuir na realização de
outras liberdades, a autonomia financeira da mulher parece influenciar na consecução de

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outras liberdades, dentro e fora do âmbito doméstico. A liberdade de ter ou de procurar


emprego pode ter impacto nas privações que as mulheres enfrentam.
O autor também relata que há evidências consideráveis de que as taxas de
fecundidade tendem a diminuir quando as mulheres obtém mais poder, pontuando que são as
mulheres mais jovens que sofrem o maior desgaste com gestações e criações dos filhos.
Assim, quando o poder decisório da mulher é aumentado, a tendência é evitar as gestações
muito frequências; conclui-se que a geração e criação constante dos filhos acaba dilapidando a
vida as mulheres jovens em muitas sociedades do mundo em desenvolvimento.
Não se pretende refutar que geralmente o acesso ao conhecimento e o aumento do
poder decisório acarreta na diminuição na taxa de natalidade, nem que as mulheres é que
costumam carregar os cargos relativos a gestações. Mas não se pode naturalizar a questão e
deixar de questionar os motivos pelos quais esta questão está centrada apenas nas mulheres.
Ora, se existem métodos contraceptivos para homens e mulheres e se a gestação de
um filho é resultante da ação de ambos, por que somente a vida das mulheres é crucialmente
impactada quando ocorrem frequentes gestações? Naturalizar essas questões significa
perpetuar uma lógica patriarcal, que responsabiliza desde cedo as mulheres sobre uma questão
que deveria ser pautada pelo casal.

“O pessoal é político”

Ao tratar sobre a lógica do direito ao desenvolvimento, percebe-se essa ligação entre


o individual e o coletivo. Em como essas dimensões estão ligadas, na medida que o indivíduo
é ensinado e condicionado a partir das experiências coletivas, mas também influencia na
construção e reconstrução desse ideal coletivo, em uma perspectiva dialética.
Quando se coloca em questão a situação das mulheres, especialmente em relação à
concretização do direito ao desenvolvimento em sua perspectiva, faz-se necessário o estudo
das intersecções entre o público e o privado, pois as dificuldades sofridas pelas mulheres em
âmbito doméstico só são consideradas quando levadas ao espaço público.
Um exemplo disto é o caso de Maria da Penha, mulher que foi agredida e quase
morta pelo seu então companheiro e que só conseguiu ser ouvida depois que tal
acontecimento foi à público e, mais do que isso, depois que sua luta passou a ter caráter
político, sendo um dos símbolos de força e resistência das mulheres brasileiras na atualidade.
Retomando as reflexões sobre gênero, essas mulheres muitas vezes são agredidas
quando fogem o padrão de submissão e subserviência, no âmbito doméstico ou público. A

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luta dos movimentos feministas e dos estudos de gênero chamam a atenção “sobre o quanto o
que é da ordem privada da família é operado no social: ‘o pessoal, é político’”. (DANTAS-
BERGER e GIFFIN, 2005, p. 418).
Durante muito tempo, essas discussões não eram levadas à esfera pública, já que
o status subordinado das mulheres durante muito tempo não foi
considerado um problema público, assim como a violência contra a
mulher também não era considerada um problema público, mas um
problema que deveria ser resolvido na esfera privada e no qual o
Estado não deveria intervir. O que atualmente é considerado problema
público, provavelmente antes não era e possivelmente depois não será,
pois a formação da agenda pública é mutante. (VÁZQUEZ e
DELAPLACE, 2011, p. 37)

A mudança de paradigma em relação ao direito positivado foi um avanço enorme,


especialmente considerando o tempo que demorou para que a discussão de problemas
relativos ao gênero, especialmente ao gênero feminino no âmbito familiar, não fossem
restritos ao ambiente doméstico.
Em que pese tenha o movimento feminista reivindicado a inserção dos direitos das
mulheres em leis e a criminalização das violências, verifica-se que isto ainda é insuficiente.
No dizer de Machado, se
os movimentos feministas, inspirados nos direitos igualitários e genéricos
das modernas sociedades individualistas lograram inserir a denúncia da
violência contra a mulher como um direito, não conseguiram ainda a adesão
da lógica judicial tradicional, que, em nome da família tolera ações violentas
contra os direitos individuais das Mulheres. (MACHADO, 2002, p. 17)

Dessa forma, o cerceamento das liberdades no âmbito privado deve ser levado em
conta, considerando que não se trata de algo individual ou isolado, mas sim como parte de um
sistema que estimula e legitima essas violações.

Considerações finais
Há muito tempo o cerceamento da liberdade de gênero tem prejudicado homens e
principalmente mulheres. Embora os homens também sofram com esses padrões, o grau de
liberdade de que eles desfrutam é inequivocamente maior, considerando que existem dentro
de uma sociedade patriarcal.
O estudo das teorias de gênero permite reflexões acerca do papel socialmente
atribuído a homens e mulheres, cerceando a sua liberdade de ser e existir em sociedade – seja
por conta do seu gênero, de como performam esse gênero ou por conta de sua sexualidade.

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As reflexões sobre Amartya Sen nos permitem pensar sobre o papel do direito ao
desenvolvimento na sociedade atual, observando a concretização das liberdades como sendo
essencial a uma sociedade mais justa.
Além disto, estuda-se o gênero como um dos âmbitos em que a liberdade pode e
deve ser exercida, a fim de que os indivíduos tenham autonomia para serem quem são e que
suas expressões de gênero não resultem em violência, já que isto também acaba por cercear a
sua liberdade.

Referências

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Religião, direito, política e a criminalização da mulher que aborta no Brasil1

Iane Ulhoa Faria2

Resumo: O aborto, a interrupção do desenvolvimento do feto durante a gravidez, é um tema


complexo e, por isso mesmo, determinado por inúmeros fatores. A atualidade do tema e as
contribuições da sua discussão para a sociedade brasileira, em geral, e para as mulheres
brasileiras, em particular, mostra a relevância da pesquisa e justifica o trabalho que, por meio
de revisão bibliográfica, buscou responder a seguinte pergunta: se o Estado brasileiro é laico,
a questão do aborto não deveria ser tratada como um assunto de saúde pública? No sentido de
investigar a questão levantada, o objetivo geral da pesquisa foi discutir a influência e
participação de grupos religiosos no congresso nacional brasileiro e sua relação com a
aprovação de normas jurídicas conservadoras e sexistas. Já o objetivo específico foi analisar
como um Estado laico como o Brasil decide as questões jurídicas relacionadas ao aborto por
um viés religioso. A resposta encontrada: há influência religiosa no congresso nacional, o que
compromete o Estado Laico, o tratamento político da questão do aborto e resulta no
endurecimento da responsabilização criminal da mulher que aborta no Brasil. Nesta seara o
que prevalece é o controle da sexualidade feminina por Deus (religião), pela família
(patriarcado) e pelo Estado (poderes executivo, legislativo e judiciário).
Palavras-chaves: aborto; religião; criminalização.

1
Este artigo, produzido de forma independente, é o desdobramento de um projeto de pesquisa
apresentado em forma de painel como trabalho de conclusão do curso de Ciências da Religião do Programa de
Pós-Graduação lato sensu em Ciências da Religião do Instituto Passo 1, sob orientação de Pollyana de Souza
Conceição Ribeiro.
2
Instituto Passo 1/Programa de Pós-Graduação lato sensu em Ciências da Religião, pós-graduanda em
Ciências da Religião; Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, mestranda em Ciências Sociais; ianeulhoafaria@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p527 527


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Introdução

O aborto, a interrupção do desenvolvimento do feto durante a gravidez, é um tema


complexo e, por isso mesmo, determinado por inúmeros fatores. Diante disso, o problema que
esta pesquisa pretendeu analisar foi, tão somente, o da relação entre o aborto e a religião e
suas ligações estreitas com a política e o direito no Brasil. Assim, pergunta-se: se o Estado
brasileiro é laico, a questão do aborto não deveria ser tratada como um assunto de saúde
pública?
Nesse sentido, o objetivo geral da pesquisa é discutir a influência e participação de
grupos religiosos no congresso nacional brasileiro e sua relação com a aprovação de normas
jurídicas conservadoras e sexistas. E, como objetivo específico, pretende-se analisar como um
Estado laico como o Brasil decide as questões jurídicas relacionadas ao aborto por um viés
religioso.
Para alcançar os fins dessa pesquisa, a metodologia utilizada foi a qualitativa,
realizada a partir da revisão de uma literatura recente sobre problemas envolvendo a relação
entre aborto e religião e suas imbricações com a política e o direito no Brasil contemporâneo.
Como justificativa para a existência da pesquisa tem-se que sua relevância está na
atualidade do tema e nas contribuições da sua discussão para a sociedade brasileira, em geral,
e para as mulheres brasileiras, em particular. Além disso, como o aborto se apresenta na
realidade social como fato é, por isso mesmo, fenômeno social passível de investigação
científica e, nesse sentido, a pesquisa contribui para a ampliação do conhecimento acadêmico
sobre a temática.
Esse artigo intenciona ainda entender os caminhos da influência religiosa sobre as
questões do aborto no legislativo e judiciário brasileiros com o intuito de desfazer as amarras
do entendimento do aborto como uma questão de saúde pública e, assim, fomentar a
formulação de políticas públicas para mulheres que realmente atendam suas necessidades de
aborto seguro, a fim de garantir a dignidade de suas vidas e escolhas.
Para dar conta da discussão proposta, o artigo se divide em duas partes. A primeira
parte, intitulada Religião, direito e política: uma discussão sobre o aborto, apresenta como a
religião – tratada aqui de maneira geral, mas tendo como e referência o cristianismo –
interfere nas decisões do legislativo e judiciário brasileiro.
A segunda parte, Aborto: uma discussão de gênero, apresenta a reprodução do ponto
de vista da divisão binária de expectativas biológicas e sociais sobre as mulheres para chegar
ao aborto, uma negação da maternidade, e apresentar a perspectiva feminista – no seu aspecto

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mais amplo – sobre como funciona o controle sobre o corpo da mulher e a reivindicação da
autonomia feminina e do direito de escolha da mulher sobre não dar prosseguimento à
gestação. Por fim, são apresentadas as considerações finais.

Religião, direito e política: uma discussão sobre o aborto

Para dar início ao debate, a pesquisa parte da discussão de uma polêmica central, a
saber: quando tem início a vida? Do ponto de vista religioso, a vida começa desde a
concepção. Nesse sentido, no ventre materno o embrião já teria direitos independentes dos
direitos da mãe. Para “[...] perspectiva pró-vida ou antiaborto, o feto engloba a mulher, que é
encarada como suporte para seu desenvolvimento e não pode optar por interromper a
gravidez, pois a vida sagrada é uma totalidade maior do que ela” (DUMONT, 1997;
DWORKIN, 2003 apud LUNA, 2014, p. 105).
O que parece é que os direitos do embrião chegam a ultrapassar os direitos da mãe
ou, no mínimo, negá-los. O argumento de que a vida é sagrada e de que preservar o feto é
preservar a vida perde o sentido quando não se pensa na vida da mãe, na sua preservação, na
sua dignidade.
No que diz respeito ao campo legal, "[...] a Constituição protege o direito à vida —
sem, no entanto, delimitar sua exata extensão ou indicar o momento preciso em que tal
proteção tem início ou fim [...]" (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.16). A vida é direito
fundamental, mas não absoluto. A Constituição por exemplo, prevê a pena de morte em caso
de guerra e o direito à legítima defesa, (GONÇALVES; LAPA, 2008).
No direito brasileiro existe apenas uma norma jurídica que prevê
expressamente a proteção do direito à vida desde a concepção, no caso, o
Pacto de São José da Costa Rica, também conhecido como Convenção
Americana de Direitos Humanos, tratado internacional [...] ratificado pelo
Brasil em 25 de setembro de 1992, sendo, portanto, válido em todo o
território nacional (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.56).
No entanto, até mesmo no Pacto de São José da Costa Rica é possível pensar em
exceções. Como afirmam Gonçalves e Lapa, o tratado internacional também deixa brechas
para se pensar casos particulares em que o aborto pode ser praticado sem configurar um crime
contra a vida.
Antes de mais nada, é importante observar que o referido documento prevê a
“proteção da vida desde a concepção, em geral”. Ao adicionar-se a cláusula
“em geral” abre-se a possibilidade de que haja exceções à proteção da vida
desde a concepção. É dizer, deve-se buscar garantir este direito, mas é
preciso também considerar que haverá hipóteses em que esta proteção
deverá ser flexibilizada (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.57).

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Enfim, não há no direito brasileiro uma prerrogativa legal capaz de criminalizar todo
o aborto praticado no Brasil. Contudo, o aborto é crime segundo o Código Penal brasileiro.
O Código Penal Brasileiro pune o aborto provocado na forma do auto-aborto
ou com consentimento da gestante em seu artigo 124; o aborto praticado por
terceiro sem o consentimento da gestante, no artigo 125; o aborto praticado
com o consentimento da gestante no artigo 126; sendo que o artigo 127
descreve a forma qualificada do mencionado delito (JESUS, 1999 apud
MORAIS, 2008, p.50).
O aborto é crime e, “Apesar da proibição legal, estima-se que no Brasil são
realizados dois abortos por minuto, geralmente em condições precárias, devido à sua
clandestinidade. É o aborto a quarta causa de morte materna no Brasil, atingindo
principalmente as mulheres de baixa renda” (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.29). Assim,
percebe-se que a lei anda em descompasso com a realidade social e que a restrição legal, com
penas de reclusão previstas, não impede o acontecimento do fenômeno aborto e, mais ainda,
segundo o que nos aponta Morais:
A penalização do aborto não protege a vida das gestantes [...]. Segundo
estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), no Brasil, 31% das
gestações terminam em abortamento. Anualmente, ocorrem
aproximadamente 1,4 milhão de abortamentos espontâneos e inseguros, com
uma taxa de 3,7 abortos para 100 mulheres de 15 a 49 anos (MORAIS, 2008,
p.54).
Não obstante, o Código Penal prevê exceções. “No Brasil, admite-se duas espécies
de aborto legal: o terapêutico ou necessário e o sentimental ou humanitário” (JESUS, 1999
apud MORAIS, 2008, p.50). E, apesar dos dois casos que excluem a ilicitude, “[...] os
médicos escusam-se de realizá-lo sob alegação de divergência moral. Ademais, não há infra-
estrutura adequada para o procedimento e os profissionais de saúde exigem da mulher
autorização judicial, termo de boletim de ocorrência ou avaliação por uma Junta Médica
“(MORAIS, 2008, p.51).
Assim, mesmo nos casos de abortamento previsto em lei, a mulher encontra uma
série de dificuldades para fazer valer os seus direitos. Morais corrobora este pensamento
quando diz que: “O aborto legal é semi-clandestino no Brasil. A população é mal informada e
os serviços são invisíveis. As mulheres são constrangidas a peregrinar de hospital em hospital,
muitas vezes, de um estado a outro, para conseguir algo que lhes é assegurado por lei
(MORAIS, 2008, p.52)”.
Nesse contexto, nota-se que para além do debate religioso e jurídico, a questão do
aborto no Brasil é também uma questão de saúde pública. Em sendo assim, a questão do
aborto no Brasil, visto como um problema social de saúde pública, é uma questão política. E
aqui se chega à discussão sobre a pressão de parlamentares religiosos pela

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constitucionalização do direito à vida desde a concepção.


A influência e participação de grupos religiosos no congresso nacional brasileiro e
sua relação com a aprovação de normas jurídicas conservadoras e sexistas é nítida quando,
por exemplo, analisamos a mobilização dos parlamentares religiosos, que vêm atuando nas
Propostas de Emenda a Constituição nº 181-A, de 2015 e de nº 58-A, de 2011, a fim de, mais
tarde, poderem enrijecer a punição ao crime de aborto no Brasil.
O que se percebe é um oportunismo dos parlamentares religiosos quanto às Propostas
de Emenda a Constituição nº 181-A, de 2015 e de nº 58-A, que buscam alterar a redação do
inciso XVIII do artigo 7º para dispor sobre a licença-maternidade em caso de parto prematuro,
bem como do inciso III do art. 1º e do caput do art. 5º. O que parece ser uma proposta
legítima e necessária às mulheres, ao adicionar o fragmento “desde a concepção” no inciso III
do art. 1º e no caput do art. 5º, pretende de fato criar condições jurídicas para anular as vias
legais já estabelecidas para o aborto.
Parece claro que os parlamentares religiosos estão se aproveitando de uma causa
justa e de demanda das mulheres, que é a licença-maternidade em caso de parto prematuro,
para dar um golpe e estabelecer parâmetros para criminalização total do aborto e das mulheres
que abortam no Brasil. A aprovação dessas emendas, em última instância, apresenta um
retrocesso para a descriminalização do aborto no Brasil.
"A controvérsia sobre o aborto mostra alianças entre católicos, evangélicos e
espíritas no movimento antiaborto […]" (LUNA, 2014, p. 103). E, apesar de manterem
diferentes posições sobre alguns pontos da polêmica, o fato é que parlamentares estão
assumindo parâmetros religiosos para a aprovação de leis num Estado laico e isto é, no
mínimo, incabível.
Outro ponto que merece destaque nesta discussão é a interferência da religião quando
se trata de decisões judiciais. Nesse sentido são ilustrativas as conclusões parciais da pesquisa
de Gonçalves e Lapa sobre as decisões dos tribunais brasileiros sobre casos de aborto.
A pesquisa pôde identificar que em alguns dos casos analisados (doze
acórdãos, representando 2% do total) houve interferência da esfera religiosa
no espaço de atuação estatal, com o que se feriu o princípio de laicidade
previsto na Constituição Federal. Tal mostrou-se por meio de argumentação
com fundamento em doutrinas religiosas em decisões de magistrados em
casos concretos sobre aborto. Foram encontradas como substrato para as
decisões, verdades notadamente aceitas no contexto das doutrinas cristãs,
católica ou evangélica. Embora houvesse respaldo jurídico em tais julgados,
nota-se que a religião do magistrado interferiu indevidamente na vida
privada de uma pessoa que estava sujeita à sua jurisdição. É dizer, a doutrina
religiosa de um magistrado foi imposta a alguém que não necessariamente
partilha de tal religião (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.94).

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A situação merece preocupação ainda que tenham sido poucos os casos com
interferência direta da religião ou com a efetiva participação de grupos religiosos. O que é
importante perceber é que esses dados apontam para uma persistente confusão entre Estado e
religião e isto, em última instância, pode significar substanciais restrições à autonomia sexual
e reprodutiva das mulheres, reafirmando um lugar social que lhes é destinado
preponderantemente por doutrinas de cunho religioso.

Aborto: uma discussão de gênero

Apresentada a discussão principal desse artigo, a saber, a relação entre religião e


aborto e a sua estreita ligação com política legislativa e direito no Brasil, pretende-se amarrar
a questão abordando a discussão do aborto à luz da perspectiva feminista. Para tanto, é preciso
iniciar tratando a reprodução e as expectativas biológicas e sociais em relação às mulheres e
homens no que diz respeito a gerar uma nova vida.
A maior parte dos animais (incluindo os (as) humanos (as)) se reproduz
sexuadamente, ou seja, a reprodução acontece a partir da união das células sexuais de dois
indivíduos distintos da mesma espécie, o macho e a fêmea. No caso humano, como as células
sexuais femininas (óvulos) encontram-se dentro do corpo da fêmea, a fertilização é interna e,
para que seja possível a gravidez, o macho tem que introduzir no corpo da fêmea os gametas
masculinos (espermatozoides).
Alcançado sucesso na fecundação, a fêmea carrega em seu ventre, durante
aproximadamente nove meses, o novo ser em formação. E aqui se destaca uma diferença
marcante no que diz respeito à participação biológica masculina e feminina na reprodução: a
gestação e o parto são exclusivamente femininos. Se se levar em conta que, após a
fecundação, o uso do corpo da fêmea para dar origem ao novo indivíduo da espécie dispensa o
uso do corpo do macho e, com isso, a presença do macho, pode-se afirmar o quão grande e
desafiadora é a missão da fêmea em perpetuar a espécie.
Logo, para chegar até aqui, a humanidade teve que, ao longo do processo evolutivo,
estabelecer estratégias reprodutivas que garantissem a sobrevivência do maior número
possível de descendentes. Grosso modo, isso só foi possível graças ao cuidado (alimentação,
abrigo, proteção, etc.) dedicado aos recém-nascidos até que pudessem, de alguma forma,
"seguir sozinhos". Dado o destino biológico da fêmea, podemos inferir que o cuidado, se não
exclusivamente feminino, é parte considerável do "pacote" da missão feminina para garantir a
sobrevivência humana.

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Feita essa breve explanação dos aspectos biológicos que conduziram e conduzem a
reprodução da humanidade, pode-se então tratar de discutir como essas determinações sobre
os corpos masculinos e femininos conduziram e conduzem a construção de expectativas
sociais. E a primeira expectativa construída socialmente é que o ser nascido com aparelho
reprodutor masculino torne-se homem e que o ser nascido com aparelho reprodutor feminino
torne-se mulher. Homem e mulher são, desse ponto de vista, construções sociais geradas pelas
expectativas reprodutivas de seres diferenciados sexualmente pela natureza.
Visto que a natureza sexual dos corpos humanos é, grosso modo, determinante das
funções reprodutivas, e acolhidas essas determinações como verdades absolutas, a
humanidade traduziu as diferenças percebidas nos sexos em representações sociais objetivas.
Assim pareceu óbvio que ao homem cabia apenas introduzir na mulher a sua contribuição
genética e à mulher cabia gestar, parir e cuidar.
Foi diante dessa construção social histórica e universal que "caminhou" a
humanidade. E é a partir dela que pretende-se discutir as maternidades e as expectativas
geradas em relação às mulheres. Expectativas estas que, senso comum, conduzem à
coisificação da mulher e à maternidade compulsória.
A ideia da mãe como ser sagrado, da mãe ideal e da maternidade como destino
biológico de toda e qualquer mulher precisa ser discutida. Não que seja uma novidade esse
tipo de problematização, mas, por se tratar de um tema ainda muito envolto por mitos, que
naturalizam e universalizam o que é ser mulher, é que se pretende entrar nessa seara.
Enfim, é preciso falar que existem muitas maternidades. Por se tratar de uma
construção social complexa, não se pode tratar da maternidade no singular, pois se correria o
risco de reforçar a naturalização que já se faz dela. Deseja-se, pois, discutir as maternidades e
também a possibilidade de não ser mãe.
Neste ponto retorna-se ao aborto. É quando se fala da possibilidade de não ser mãe,
no direito de decidir sobre o próprio corpo e desenvolvimento da gestação, que a posição das
feministas choca-se com a perspectiva religiosa. “Como se trata de uma relação hierárquica
entre a mulher grávida e o feto, na perspectiva feminista e pró-escolha, a mulher engloba o
feto e tem precedência sobre ele” (LUNA, 2014, p. 105).
A posição pró-escolha, na defesa da autonomia feminina e na luta pelas demandas
dos movimentos de mulheres, questiona as decisões parlamentares e jurídicas sob influência
religiosa que regulam o corpo das mulheres. E, a primeira coisa a se pensar e questionar é
quem são essas pessoas que decidem sobre os corpos das mulheres no Brasil. Em sua maioria
os parlamentares e magistrados no Brasil são homens, brancos e cristãos.

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Do ponto de vista feminista, as mulheres deviriam decidir sobre seus corpos. E


afinal, não é questionável num país majoritariamente composto por mulheres elas estarem
sub-representadas nos poderes legislativo e judiciário ao ponto das decisões que as afetam não
estarem sendo decididas por elas mesmas?

Considerações finais

A maternidade ainda ocupa um lugar destacado nas representações sociais


construídas sobre as mulheres e pelas mulheres, portanto, é inegável a pertinência desse tema
ao se propor qualquer discussão acadêmica e/ou social a respeito das relações de gênero
intrínsecas às sociedades contemporâneas.
O aborto, enquanto demanda das mulheres, ao negar a maternidade, encontra forte
oposição social, por ser o Brasil uma sociedade ainda marcada pela dominação masculina,
pela heteronormatividade e pelo mito do amor materno, um amor sagrado e, por isso mesmo,
inquestionável do ponto de vista religioso.
A resistência à descriminalização do aborto no Brasil é de caráter religioso e essa
participação religiosa se dá, fortemente, no congresso nacional através da atuação de
parlamentares religiosos e também encontra respaldo nas decisões dos magistrados
brasileiros. Tanto nas decisões parlamentares quanto nas do judiciário brasileiro é possível
perceber o quanto as religiões influenciam as questões de ordem pública neste país.
Assim, a resposta para a pergunta dessa pesquisa é que o Estado brasileiro é
supostamente laico visto a influência das experiências religiosas em decisões que deveriam
estar revestidas do mais sagrado interesse público pelo bem comum. Logo, a questão do
aborto fica impedida de ser tratada como questão de saúde pública.
A responsabilização criminal da mulher esbarra também em outra questão polêmica
para além da vida do feto, a saber: a vida da mãe. Pela defesa da autonomia sexual e
reprodutiva da mulher, pela dignidade da sua vida, nem a religião, nem o direito e nem a
política parecem estar preparados para a discussão. Nesta seara o que prevalece é o controle
da sexualidade feminina por Deus (religião), pela família (patriarcado) e pelo Estado (poderes
executivo, legislativo e judiciário).
Enfim, encerra-se esse trabalho na expectativa de se ter percorrido um caminho que
possibilite mais discussões a cerca da problemática do aborto e sua relação íntima com a
questão religiosa no Brasil, que instigue o surgimento de novas pesquisas e que aqueça novos

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debates. Também se espera que as críticas ao artigo venham contribuir para desenvolvimento
da autora enquanto mulher pesquisadora e feminista.

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Um corpo, um vírus (HIV) e muitas religiosidades


Flávio Candomblé1
Luciana Butzke2

Resumo: Esta pesquisa utilizou o método qualitativo e buscou por meio da revisão
bibliográfica e do estudo da arte produzida nos últimos anos, refletir sobre a influência das
religiosidades sobre os corpos que vivem e convivem com o vírus HIV, percebendo como elas
têm interferido no acolhimento das pessoas que vivem e convivem com HIV. Na revisão
bibliográfica fizemos uma busca por artigos científicos, produções acadêmicas e literatura
voltada ao tema, produzidas nos últimos 15 anos (2002 – 2017), que estivesse disponível no
Portal de Periódicos CAPES3/MEC, o que nos possibilitou perceber as relações construídas
em torno do corpo com suas sexualidades, religiosidades e o vírus HIV. Por meio da análise
feita percebemos a necessidade que nossos princípios morais passem por uma reavaliação do
ponto de vista da ética da alteridade, permitindo que nos reconheçamos e reconheçamos @
“Outr@” como ser humano, igual em direitos e respeito, pois, em uma sociedade que se
pretende igualitária @ “Outr@”, é, na verdade, um prolongamento do “eu” e do “nós”. A
pesquisa aponta para alguns resultados, a saber, a falta de pesquisas neste campo, a percepção
de ausências populacionais e a configuração moral em determinadas pesquisas.
Palavras-chave: Corpo. HIV. Religiosidades. Alteridade.

Introdução
O corpo não foi constituído para ser ilha, ele contém em si um arquipélago, que
desde sua origem primeira se faz belo, não por ser sozinho, mas pela profundidade do
encontro que faz com seus pares, com aqueles que o rodeiam. Se faz belo a partir de
experiências únicas e irreplicáveis que se dão no encontro, pois, as experiências são sempre
únicas, todas têm uma origem, um princípio, mesmo que a vida tenha já a muito tempo se
iniciado. Durante séculos, a religião tem buscado dar significados a existência do ser humano
em sua trajetória pelos caminhos que escolhe traçar, dando-lhe assim segurança para dar o
próximo passo na aventura principal do ser que é viver. Neste artigo, trabalharemos caminhos,
construídos por e num mesmo ser, embora, as principais vias a serem seguidas sejam, “o
corpo, as religiosidades e suas relações com o vírus HIV”.
O método escolhido é o método indutivo, de forma qualitativa e a epistemetodologia
a ser adotada segue o encontro da filosofia ocidental racional com a sabedoria ancestral

1
Flávio Fortunato Cardoso, FURB, Licenciando em Ciências da Religião, e-mail: ffcardoso@furb.br
2
FURB, Doutora em Sociologia Política, e-mail: butzkeluciana@gmail.com
3
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p537 537


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africana dos Odus (caminhos)4. Foi feita uma pesquisa bibliográfica, mais precisamente
aquilo que chamamos de Estado da Arte (FERREIRA, 2002). A pesquisa foi feita no Portal de
Periódicos da CAPES em abril de 2018 e localizou oito publicações sobre o tema. A análise
dessas publicações possibilitou a identificação de diferentes leituras em torno do corpo, suas
sexualidades e o vírus HIV.
Machado (2014), afirma que existem oito odus originais, o primeiro deles seria o
Odu de Origem, que poderíamos definir como o caminho inicial, e que está contido em todas
as nossas ações, portanto, através de suas considerações podemos afirmar que o ser humano é
capaz de ter múltiplas origens durante o percurso da sua vida, desde o seu nascimento até a
sua morte, e segundo algumas crenças até depois dela.
[...]só didaticamente que se começa falando do Odu de Origem, entendendo que
origem não é começo [...] não há uma origem única, não tem um dia em que a
bondade começou, que a maldade começou, que o homem nasceu, que a história
iniciou [...] a origem é uma questão de escolha, não é uma questão ontológica, ou
seja, não é um fato consolidado, é só uma escolha, cada pesquisador, cada
pesquisadora escolhe o seu ponto de partida, porque o ponto de partida não é
arbitrário (MACHADO, 2014, p. 115).

Desde que o ser humano está sobre a face da terra, tem feito escolhas e essas escolhas
têm determinado novas origens para si e para as gerações seguintes, neste sentido todos os
dias (re)inventamos a vida e o viver sobre a terra, quando criamos ou recriamos teorias
filosóficas, quando indicamos a criação de um novo Odu (caminho).
a “origem não se impõe como um dado, a origem é uma construção epistemológica,
a origem é uma construção mental, é uma construção conceitual” (Idem), ela é uma
escolha. E essa escolha não se dá do nada, é uma pesquisa científica, ela se dá
porque somos livres, partindo de um princípio ético, onde essa ética apresenta-se
como a porta de entrada da liberdade e da escolha de cada um, ou seja, pauta-se na
liberdade e na ação ética (aula, 2011),[...] Isso eu acho maravilhoso, porque
desautoriza as autoridades absolutas e coloca como condição da produção do
conhecimento a interação com o outro. (MACHADO, 2014, p. 115 - 116).

Pedimos desta forma que nos acompanhe pelas nossas escolhas epistemetodológicas,
pelas nossas construções, não para torná-las verdades absolutas visto que nada é absoluto, mas
construção. Nosso intento não é apresentar respostas a nossos interlocutor@s, ao contrário
nosso intuito com esta pesquisa é trazer questionamentos e um pensar crítico de si, do outro e
da sociedade, como está constituída na atualidade.

O PONTO DE PARTIDA PARA PENSAR

4
Odu é uma espécie de signo que rege o nascimento de cada pessoa[...] Dentro dos odus estão os caminhos e as
possibilidades que cada um de nós carregará para o resto das nossas vidas. Nesse sentido, odu é o destino
possível de cada um. [...]. Nenhum homem escapa ao seu odu. Vive os caminhos ire (positivos) ou ibi
(negativos), mas não escapa. Odu é o desígnio de Olorum, o deus maior (ỢLAIGBO, 2011).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p537 538


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Conceituar corpo talvez seja uma das mais difíceis tarefas a ser realizadas, pois se
tratam de construções particulares (re)criadas constantemente durante o percurso da vida e
através dos séculos e das diferentes formas de pensamento, construindo-se a partir de diversas
origens. Não só a genética, mas as várias construções que vão se (re)afirmando culturalmente,
socialmente e estruturalmente com o passar dos anos, e das diversas leituras que fazemos ao
longo da vida, epistemetodologicamente, a partir de nossas construções. Entretanto, criaram-
se conceitos que buscam definir o que é o corpo, e como ele pode ser qualificado.
Entre os diferentes conceitos construídos filosoficamente através dos séculos de
construções epistemológicas, uma definição em particular nos chama bastante a atenção,
motivo pelo qual o trazemos a reflexão. Nela Merleau-Ponty, afirma que:
O corpo não é um objeto, uma coisa. "Quer se trate do corpo de outrem, quer se trate
do meu, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o, isto é,
assumindo por minha conta o drama que me atravessa e confundindo-me com ele".
Mas essa vivência do próprio corpo nada tem a ver com o "pensamento do corpo" ou
com "a ideia do corpo” que formamos por reflexão através da distinção entre o
sujeito e o objeto. Essa experiência nos revela um modo de existência "ambíguo": se
procuramos pensar o corpo como um feixe de processos em terceira pessoa (p. ex.,
como "visão", "mobilidade", "sexualidade") perceberemos que essas funções não
estão ligadas entre si e com o mundo externo por uma relação de causalidade, mas
estão todas fundidas e confundidas num único drama. (grifos nossos)
(Phénoménologie de la perception, p. 231; cf. DESCARTES, Opera, III, p. 690)
(ABBAGNANO, 2007, p. 214).

Destacamos aqui dois pontos apresentados por Merleau-Ponty: o primeiro deles, onde
o autor afirma que, “não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o”
(ibid., p.214), cada sujeit@ viverá o seu corpo de maneira singular, não há como outro ser
viver o seu corpo, por mais que alguns tentem avisar das dificuldades do percurso formativo
desse ser corpo, apenas o “eu-sujeit@” é capaz de sentir/viver seu próprio corpo, onde o viver
a vida é a única forma de perceber-se enquanto corpo. É neste viver que tudo o que somos e
tudo o que vivemos, todas as experiências se fundem em um ser que se constitui diariamente,
(com)vivendo consigo e com os outros, é necessário que compreendamos as relações desses
corpos diversos com o mundo, pois como dissemos na introdução, o corpo não é uma ilha
isolada, não vive sozinh@, necessita de um corpo outro para que possa se perceber corpo. O
segundo ponto, alerta para a questão de que a vivência do próprio corpo nada tem a ver com o
‘pensamento ou com a ideia do corpo’ que formamos por reflexão ao separar o sujeit@ da
ideia de objeto. Segundo Merleau-Ponty, se procurarmos “pensar o corpo como um feixe de
processos em terceira pessoa (p. ex., como "visão", "mobilidade", "sexualidade")
perceberemos que essas funções não estão ligadas entre si e com o mundo externo [...] estão
todas fundidas e confundidas num único drama” (ibid., p. 214). Em outras palavras, não

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podemos abandonar nenhuma parte de nós para viver, todos os órgãos e sentidos são
necessários para que possamos nos perceber como unidade completa, e através dessa unidade
‘perfeita’, sem partes faltantes, possamos reconhecer o outr@, como alguém que também é
complet@, e merece ser percebid@ como inteir@ e ‘perfeit@’. Esta reflexão converge para o
que os feminismos do Sul chamam de encarnação ou a corporificação da teoria. “No es
“teoría” de ideas y de conceptos abstractos, de lenguaje simbólico y de semiótica. Es teoría
hablada, vivida, sentida, bailada, olida, tocada.” (MARCOS, 2014, p. 23).
Todavia, o “ser corpo”, a corporificação da teoria é restrita pela “norma”. As
instituições sociais (família, escola, religião, Estado, dentre outras) nos orientam a seguir a
“norma”. Aprendemos nas instituições que este corpo nasce, cresce, se reproduz ou não, e um
dia morrerá, no entanto se somos preparados desde a tenra idade para crescer e ser o mais
produtivos possível, não somos preparados para morrer, por esse motivo durante os séculos
desde os primórdios da humanidade, o ser humano buscou formas de explicar o que virá após
a vida, podendo desta forma dar um significado mais valioso a vida terrena. “A morte sempre
inquietou o ser humano uma vez que parece tirar do sujeito qualquer possibilidade de
continuidade de seus projetos de mundo e de vida”. (PARANÁ, 2006, p. 104). Neste sentido a
religião vem como um alívio para as dúvidas do porvir, visto que muitas delas buscam dar
continuidade a existência do ser após sua vida terrena. Entretanto, as garantias de
continuidade da vida, trazem consigo algumas exigências, as quais o ser humano deve se
submeter, para que a sua continuidade, neste outro lugar próprio de cada visão religiosa, seja
boa. Em grande parte das visões religiosas para que o ser humano alcance um lugar de
descanso para sua alma, livre dos sofrimentos do mundo, um dos principais preceitos é a
libertação dos desejos carnais, sendo o principal deles o sexo.
Com o passar dos séculos não só a religião, mas também as classes dominantes viram
na dominação da sexualidade, uma forma bastante útil de disciplinar o corpo, seus instintos,
seus sentimentos e paixões, e desta forma disciplinar o “ser” que é a priori o seu próprio
corpo5 e tudo que o constitui como “ser”. Foucault (1988, p. 14) percebe que a construção
das dominações na modernidade perpassa a dominação do corpo, por meio da dominação de
um de seus aspectos básicos que é a vivência da sexualidade, e que esta, se dá por meio de
normas morais impostas pela religião, questão que fica clara quando afirma que o sexo “foi”
associado ao pecado, ao mesmo tempo que questiona o motivo pelo qual ainda nos culpamos
por termos feito dele um pecado.

5
Conforme conceito de Merleau-Ponty, citado na página três deste artigo.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p537 540


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Transformado o sexo como foi em pecado, deveria ser esquecido, retirado do


vocabulário, censurado a qualquer preço, na busca de uma sociedade disciplinada e limpa,
entretanto, ele não deixa de existir nem de ser pronunciado, apenas foi isolado e
marginalizado, saindo das altas rodas e da alta sociedade para as margens. A configuração que
temos dos corpos na atualidade, nasce nesta época, de construções melindrosas, e continua
sendo perpassada por fatores sociais de mesma ordem. “O pudor moderno obteria que não se
falasse dele, exclusivamente por intermédio de proibições que se completam mutuamente:
mutismos que, de tanto calar-se, impõe o silêncio” (FOUCAULT, 1988, p. 21).
As construções que têm sido feitas sobre a sexualidade podem estar mudando na
atualidade, quando adolescentes e jovens não forjam mais tabus para falar a respeito da sua
sexualidade, visto que a liquidez dos tempos modernos lhes permite falar sem serem de fato
ouvidos, e mostrar sem que de fato sejam vistos. afrontam os velhos conceitos expondo-se de
maneira tenaz, na busca de serem (re)conhecidos como sujeit@s, don@s de suas vidas,
moldando um novo padrão identitário.
Entretanto, o silêncio das gerações anteriores esqueceu de instruir seus filh@s sobre
os riscos de não se conhecer, nem conhecer a/o outr@, fator que tem levado adolescentes e
jovens a (com)viver com dores em seus corpos, ainda existentes na sociedade, por conta do
(pré)conceito que ainda não conseguimos vencer.
Falamos do corpo numa perspectiva das diversas origens que vivemos no decorrer de
nossas vidas, dos vários corpos constituintes do “Eu” (identidade que damos ao corpo que
carregamos), podemos afirmar que apenas reconheceremos estas origens quando
conseguirmos parar para refletir sobre as experiências e vivências experimentadas pelo(s)
corpo(s). Para isto, é necessário que esta reflexão aconteça diariamente no confronto comigo
mesmo, com as imagens que faço de mim e que exteriorizo para o outr@, bem como, as
imagens que construo em conexão com o outr@. Entender o corpo como um arquipélago e
não como uma ilha isolada, é perceber que o ser humano não é capaz de se construir/constituir
sozinh@, é necessário neste processo de autoconhecimento contar com o outr@, mesmo em
uma época de individualização do ser, onde muitas vezes se deseja que o outr@ esteja
disposto a vê-l@, senti-l@, mas não há disposição para ver e sentir o outr@.
Quando os sujeitos conseguem se livrar destes conceitos castradores e dominantes e
sair do mutismo, para observar o que antes era inobservável, a “sexualidade”. Surge então
uma nova forma de pensar as diversidades existentes nos corpos, esta nova forma recebe o
nome de teoria Queer. Tendo como intuito, questionar, problematizar, transformar, radicalizar
e ativar uma minoria excluída da sociedade centralizadora e heteronormativa, tinha em sua

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gênese o objetivo de representar as minorias sexuais em sua diversidade e multiplicidade.


Essa nova teoria, teve como referencial teórico os estudos de Foucault e Derrida, além da
contemporânea Judith Butler, constituindo uma resposta a problemática do déficit sofrido
pelos estudos gays e lésbicos.
Ao assumir esta diferença e este descaso da sociedade heteronormativa que busca a
evidência daquilo que é considerado normal, e se colocar propositadamente na contramão das
construções morais, construindo assim um lugar de resistências de múltiplos sujeit@s que
Louro , define como “um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que
assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indecidível [...] é um corpo
estranho que incomoda perturba, provoca e fascina” (LOURO, 2004).
A teoria Queer, busca construir-se na intersecção de tod@s, justamente por isso, para
que dessa forma, sendo fluída e podendo percorrer todos os espaços, possa a partir das
vivências individuais buscar formas adequadas de lutar pelo direito de cada um, de ser
estranhamente único. Fator este que tem causado estranhamentos entre aqueles que se
definem ativistas e os queer (definidos como acadêmicos), fato que acontece conjuntamente
com o surgimento da epidemia de HIV/AIDS na década de 1980.
Ao considerarmos que os primeiros casos de AIDS passam a ser estudados no ano de
1978, embora estudos posteriores tenham estabelecido casos de Aids já na década de 1950 na
Europa. Segundo Laurindo-Teodorescu e Teixeira (2015), apenas a partir da década de 1980
que a epidemia de AIDS começa a se desenhar em um cenário mundial, inicialmente com
casos descobertos nos Estados Unidos e a partir da descoberta dos sintomas, chegasse à
conclusão de que já haviam outros casos ao redor do mundo. Embora, os primeiros casos na
década de 1980 tenham sido descobertos nos Estados Unidos da América, logo se constatou a
partir de dados europeus, “casos de doentes heterossexuais originários do Haiti e de países da
África, ou que haviam estado nesses países” (LAURINDO-TEODORESCU; TEIXEIRA,
2015, p. 31). No entanto, o que acontece nos Estados Unidos, irá marcar alguns grupos
minoritários de pessoas por várias gerações, expondo-as a um regime de discriminação e
medo que se estendem até os dias de hoje,
A sigla Aids foi adotada oficialmente no segundo semestre de 1982 Antes disso,
havia sido chamada sucessivamente por diferentes nomes: gay penumonie, gay
cancer, GRID (Gay-Related Immune Defcienty) ou gay compromise syndrome
(grifos dos autores), (IDEM, 2015, p. 31).

Não demorou muito a partir deste momento, para que os primeiros casos fossem
descobertos no Brasil, e que junto com estes casos aterrissa-se também a discriminação e o
preconceito oriundos das primeiras nomenclaturas dadas pelos médicos estadunidenses, sendo

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assim, logo a Aids foi considerada a “peste gay” também aqui em terras tupiniquins, este
estigma que aterrissou por aqui continua a existir na atualidade, e talvez seja o pior sintoma a
ser superado pel@s portador@s da síndrome.
O estigma que já não era pequeno foi reforçado pela literatura médica que vinha dos
Estados Unidos,
falava-se, portanto, do estilo de vida homossexual como causa primeira da epidemia.
[...]. Quando se falava em prevenir a doença, invocava-se imediatamente a redução
do número de parceiros sexuais e da frequência do coito anal, o que abria brechas
para a questão da moralidade sexual (idem, p.62-63).

Neste sentido, há a exigência de uma reflexão mais ampla dos conceitos de moral e
ética, como afirma Cesar Luiz Pasold, “a questão da AIDS deve ser prioritariamente
abordada, examinada e equacionada sob o prisma da Ética e não da Moral” (TRIDAPALLI,
2003, p. 14), uma vez que os sujeitos expostos ao vírus são transformados em nosso cotidiano
pela mídia sensacionalista e pela falta de (in)formação, em meros seres promíscuos e imorais
(principalmente aquel@s sujeit@s ligados a sigla LGBT+).
Quase meio século depois da descoberta desta que se não é a maior, é uma das
maiores pandemias a assolar o planeta, para a qual ainda não se descobriu “oficialmente” uma
cura, é sabido que ela não atinge apenas homossexuais, profissionais do sexo, usuários de
drogas injetáveis, hemofílicos, que eram considerados grupos de risco quando da descoberta
desse novo vírus. A Aids possui hoje filhos e netos, pessoas que nasceram com ele, atinge
mães de família que tiveram e têm que viver em relacionamentos abusivos, muitos deles
abençoados por expressões religiosas, que veem na sujeição da esposa ao marido uma forma
de santificação do lar. Enquanto isso, alguns grupos religiosos (fundamentalistas, com
destaque para algumas tradições religiosas neopentecostais e alguns grupos da igreja católica)
continuam buscando formas de culpar o público LGBT+, pela propagação do vírus, conforme
observam Natividade e Oliveira (2013), em sua obra “As novas guerras sexuais, diferença,
poder e identidades LGBT no Brasil”. É importante salientar que não é possível generalizar, e
que muitas expressões religiosas têm agido na contramão de grupos fundamentalistas,
buscando a inserção de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS6 , na sociedade de forma
igualitária, ou pelo menos, o mais próximo possível disso.

A PESQUISA

6
PVHA, forma utilizada atualmente para nomear de forma menos preconceituosa pessoas que foram expostas ao
vírus da imunodeficiência humana

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Nossa pesquisa busca compreender como as religiões e a vivência da religiosidade


tem afetado positiva ou negativamente ess@s sujeit@s que foram e continuam sendo expostos
diariamente ao HIV/AIDS. A pesquisa foi realizada no Portal de Periódicos da CAPES em
abril de 2018, nela buscamos por trabalhos que levassem em consideração a religião e seus
correlatos (religiosidade e espiritualidade) com o HIV/Aids, nossa busca localizou oito
publicações sobre o tema. Sendo elas: uma resenha de livro, seis artigos e uma dissertação de
mestrado, publicados entre 2005 e 2017. Buscaremos analisar as obras de maneira sucinta,
para que possamos entender o que tem sido produzido nas diferentes áreas do conhecimento a
respeito do vírus HIV nas últimas décadas.
A resenha é de autoria de Martins Filho (2016), nela o autor analisa a obra:
“Medicina e Religião no enfrentamento do HIV/AIDS: família como ângulo de análise”.
Martins Filho (2016), percebendo em sua análise, o duplo enfrentamento das PVHA, um
contra os males do corpo pelo reestabelecimento da saúde, e outro no plano simbólico das
relações sociais e afetivas, que buscam impor-se contra preconceitos de diferentes ordens, que
fazem padecer não apenas o físico, mas também o espiritual. Ao analisar a obra supracitada
ele encontra ainda dois pontos que considera muito pertinentes na discussão trazida pelos
autores, e que o mesmo transcreve, sendo eles:
1) a infecção pelo HIV/AIDS na mulher vem aumentando
significativamente nos últimos anos? Quais fatores estão contribuindo para a
feminização da doença? 2) Além da medicina, que papéis desempenham a religião e
a família no combate à doença em mulheres soropositivas? (p. 9-10) (MARTINS
FILHO, 2016, p.682).

É válido destacar na leitura e análise de Martins Filho (2016), o caminho que os


autores dão a obra a partir do segundo capítulo que “toma como mote os desafios,
enfrentamentos e soluções apresentados pelas mulheres soropositivas [...] o medo, o
preconceito e a sexualidade” (MARTINS FILHO, 2016, p. 682). O medo que essas mulheres
carregam consigo, no entanto, não é apenas o medo da morte física, que tem sido suprimido
por meio da terapia antirretroviral, aliado a esse medo existe ainda o medo do preconceito,
fator que faz com que essas e muitas outras mulheres carreguem sozinhas o fardo imposto
pela infecção. Martins Filho admite em sua análise que, “enquanto fator de mobilização social
o preconceito certamente é um elemento de importância na manutenção das hierarquias
sociais, entre as quais aquelas pertencentes ao universo religioso” (MARTINS FILHO, 2016,
p. 683). No terceiro capítulo o livro faz alusão a religião como forma de enfrentamento do
HIV/AIDS, nele fica clara a influência da religião como ponto de sustentação da maioria das

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mulheres entrevistadas, Martins destaca alguns mecanismos por meio dos quais a religião
pode influenciar a saúde a partir da obra analisada. Para ele,
comportamento e estilo de vida, apoio social, crenças religiosas, cognição fora do
ordinário, rituais religiosos, oração, meditação, confissão, perdão, conversão,
exorcismo, liturgia, bênção, direção espiritual, linguajar para depurar o estresse e
gerar adequação na conduta pessoal. (MARTINS FILHO, 2016, p. 684).

Nos assombra algumas relações que a religião impõe subjetivamente a essas mulheres
que já estão expostas a um vírus de deficiência maior que o HIV, impondo-lhes que mudem a
sua maneira de “ser” e “viver”, mudando a sua forma de conduta pessoal, pois na maioria das
vezes devem continuar se submetendo a relacionamentos abusivos. Fator esse analisado no
quarto capítulo da obra que vai buscar perceber o papel da família no combate à doença.
Destaca-se neste capítulo a busca da família como lócus de aconchego e afeto, condição que
nem sempre existe, frente a famílias que se vem “desestruturadas, imersas em crises das quais
talvez não conseguirão se libertar” (idem, p. 685).
O segundo trabalho analisado é de autoria de Faria e Seidl (2006), pesquisadoras
vinculadas a UNB, na área de Psicologia, publicado em 2006, portanto, há 13 anos. Nele as
autoras se propõem a “investigar as variadas estratégias de enfrentamento, incluindo o
Enfrentamento Religioso (ER), escolaridade e condição de saúde (assintomático ou
sintomático) em relação ao bem-estar subjetivo (afeto positivo e negativo) em pacientes HIV
positivos” (FARIA; SEIDL, 2006, p.155). Faria e Seidl (2006), definem através da
interlocução com Tix e Frazier (1998), o ER como, “estratégias cognitivas ou
comportamentais para lidar com eventos estressores, advindas da religião ou da
espiritualidade da pessoa” (FARIA; SEIDL, 2006, p. 155), afirmam ainda que, o ER pode ter
padrões positivos e negativos. Os positivos podem ser: “busca de apoio espiritual, perdão
religioso, enfrentamento religioso colaborativo, ligação espiritual e redefinição benevolente
do estressor” (idem, p. 156), associa-se a este padrão positivo o crescimento psicológico e
espiritual e a redução de problemas. Já os padrões negativos seriam caracterizados por
“descontentamento religioso, presença de conflitos interpessoais com membros do grupo
religioso e de dúvidas sobre os poderes de Deus para interferir na situação estressora”
(ibidem, p. 156), esse padrão foi correlacionado com sintomas de depressão. O interesse das
autoras pela pesquisa caracterizou-se pela percepção de não se ter controle sobre o
HIV/AIDS, por a mesma não ter cura, e ser “muitas vezes ainda percebida como sinônimo de
morte e altamente estigmatizante - pode remeter a conteúdos religiosos no processo de
enfrentamento, com possibilidade de influências [...] sobre o bem-estar subjetivo” (ibidem, p.
156). O estudo de Faria e Seidl (2006), as leva a concluir que: “a importância da religiosidade

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como fonte de suporte emocional, mas também alerta quanto a possibilidade de ser fonte de
conflito e sofrimento” (FARIA; SEIDL. 2006, p. 163).
No artigo seguinte, Calvetti, Muller e Nunes (2007) ambas vinculadas a PUCRS7, área
da Psicologia, publicado no ano de 2007, cujo título é “Qualidade de vida e bem-estar
espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS”. Tiveram por objetivo, “avaliar a qualidade de
vida e bem-estar espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS” (CALVETTI; MULLER;
NUNES, 2007, p. 523). As autoras, não se afastam muito das conclusões que tiveram Faria e
Seidl (2008), quanto ao ER ambos consideram-no positivo para a vivência das PVHA, embora
Calvetti e suas companheiras não tenham analisado os possíveis aspectos negativos na vida
d@s portador@s de HIV/AIDS, fato que as leva a indicar a necessidade de que novas
pesquisas possam ser feitas no futuro analisando também os aspectos negativos do ER.
Prosseguimos com a pesquisa de Ferreira, Favoreto e Guimarães (2012), que fazem
uma pesquisa interdisciplinar entre a medicina e as ciências sociais, publicada em 2012, na
revista Interface. Para a produção dessa pesquisa utilizou-se o método qualitativo. A pesquisa
foi intitulada “ A influência da religiosidade no conviver com o HIV”, e teve por objetivo,
“apresentar os resultados da análise realizada a partir dos relatos das pessoas que convivem
com HIV, nos quais emergiram questões relacionadas a religiosidade, procurando interpretar e
captar o sentido desses relatos no enfrentamento da doença e suas repercussões sociais,
morais e clínicas” (FERREIRA, FAVORETO; GUIMARÃES, 2012, p. 385). Para a
efetivação dessa pesquisa foram entrevistadas nove pessoas no período de março a junho de
2008, no Hospital Universitário Pedro Ernesto na cidade do Rio de Janeiro, as entrevistas
buscaram abordar os seguintes temas com @s sujeit@s, “aspectos relativos à sua vida antes
do diagnóstico, no momento do diagnóstico e na fase atual de convivência com a infecção, e a
terapia utilizada” (idem, p. 385), segundo @s autor@s não houveram perguntas sobre o tema
religiosidade, espiritualidade ou congênere, e que o tema surgiu espontaneamente nas
respostas. Fator que leva @s autor@s a concluir que,

Na construção do enfrentamento do adoecimento pelo HIV - doença ainda hoje


orbitada por questões morais, como preconceitos, estigmas em relação ao gênero e à
infecção, assim como sociais, como dificuldades de inserção no trabalho ou em
grupos específicos, como, também, dificuldades econômicas e pessoais - se faz
necessário um olhar cada vez mais amplo. neste contexto, a religiosidade se faz
presente, por se tratar de uma estrutura moral (subjetivamente construída) e social
(culturalmente construída). [...] o profissional deve procurar fazer um deslocamento
de seus próprios valores religiosos para poder compreender os valores de seus
pacientes e as influências da religiosidade no processo terapêutico, assim como estar

7
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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aberto para discutí-las com o paciente (FERREIRA, FAVORETO; GUIMARÃES,


2012, p. 390-391).

Na sequência abrimos a discussão sobre o artigo de Pérez-Giraldo, Veloza-Gómez e


Ortiz-Pinilla (2012). Que apresentam uma pesquisa intitulada “Afrontamento e adaptação e
sua relação com a perspectiva espiritual no paciente com HIV/AIDS8”, publicada em 2012.
Essa pesquisa teve como objetivo, “identificar o processo de afrontamento e adaptação e sua
relação com a perspectiva espiritual no paciente com HIV/AIDS” (PÉREZ-GIRALDO,
VELOZA-GÓMEZ; ORTIZ-PINILLA, 2012, p. 331). D@s autor@s destacamos dois pontos
da discussão, o primeiro deles, quando se referem a perspectiva espiritual, como
um aspecto importante a destacar relacionado à espiritualidade, tanto no sentido
religioso e não religioso, ao promover o censo de conexão consigo mesmo, com
outras pessoas e com um Deus ou um poder superior. Tem um valor terapêutico
representado em facilitar a conexão através da dissolução da culpa excessiva sentida
dentro de si mesmo, expectativas de crítica de outros e a solução de hostilidade para
com o resto. (PÉREZ-GIRALDO, VELOZA-GÓMEZ; ORTIZ-PINILLA, 2012, p.
337).

E em sua conclusão, quando afirmam que “existe uma relação fraca, mas
significativa, entre a perspectiva espiritual e o processo de enfrentamento e adaptação,
tornando-se recursos da natureza humana de grande relevância no cuidado à pessoa que vive
com HIV/AIDS” (PÉREZ-GIRALDO, VELOZA-GÓMEZ; ORTIZ-PINILLA, 2012, p. 337).
Na pesquisa de Lemos e Ecco (2014), intitulada “religião, sexualidade e família: o
caso em que um dos parceiros é soropositivo para o HIV”, buscou-se “verificar a repercussão
da constatação de que um dos (ou ambos) cônjuges é portador do HIV, nas representações e
na configuração de suas famílias, tendo por base o possível ideário religioso subjacente às
identidades de gênero masculina e feminina, bem como das formas de exercício da
sexualidade que tal identidade de gênero comporta” (LEMOS; ECCO, 2014, p. 568).
Consideramos importante transcrever parte do que Lemos e Ecco (2014) chamam de ideias
conclusivas, onde afirmam,

[...] embora os ideários religiosos sobre família sejam aceitos pelas pessoas
entrevistadas, estas posicionam-se criticamente em relação aos ensinamentos
referentes à sexualidade; no contexto familiar em que as pessoas entrevistadas se
encontram, suas famílias já se encontravam em situações deterioradas em suas
relações; as fronteiras entre as identidades masculina e feminina, bem como os
papéis sexuais delas esperados também encontravam-se pouco definidas,
destacando-se um significativo número de casais homossexuais em relações bastante
conflitivas; a notícia que um membro da família é soropositivo causa grande
impacto sobre os frágeis laços familiares, na maioria das vezes em relação à família
de origem da pessoa soropositiva para o HIV; os desdobramentos desses impactos se

8
Coping and adaptation and their relationship to the spiritual perspective in patients with HIV/AIDS, título
original em inglês.

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dão basicamente em duas direções: a (re)união da família e o apoio ao soropositivo;


o abandono do mesmo. Caso seja o abandono, há uma re-formulação da própria
concepção de família, sendo esta entendida, então como: as pessoas que me
acolhem, me respeitam e me vêm como gente (LEMOS e ECCO, 2014, p. 585).

O último artigo a ser analisado é de autoria de Pinho, Gomes, Trajano, Cavalcanti,


Andrade e Valença, publicado em 2017 pela “Revista Gaúcha de Enfermagem”, sob o título,
“Religiosidade prejudicada e sofrimento espiritual em pessoas vivendo com HIV/aids”, cujo
objetivo era “verificar a inferência dos Diagnósticos de Enfermagem, Religiosidade
prejudicada e Sofrimento espiritual em pessoas vivendo com HIV/AIDS” (PINHO, GOMES,
et al., 2017, p. 01), @s autor@s concluem com esta pesquisa que,
A religiosidade e a espiritualidade são dimensões do ser que devem ser
contempladas em todas as ações de enfermagem, no campo assistencial, de pesquisa
e extensão, possibilitando a construção do conhecimento. [...]os resultados aqui
discutidos trazem contribuições para uma prática assistencial qualificada, com um
atendimento mais eficiente considerando os diagnósticos de Enfermagem
relacionados à religiosidade prejudicada e ao sofrimento espiritual, os quais devem,
também ser considerados no ensino de Enfermagem (PINHO et al., 2017, p. 6 - 7)

Por fim apresentamos a dissertação de Calvetti (2006), apresentada ao programa de


Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUCRS, para a obtenção do grau
de Mestre em Psicologia Clínica, no ano de 2006, homônimo a artigo da mesma autora já
apresentado, cujos resultados e conclusões são os mesmos já informados anteriormente.
Dos textos analisados, seis apresentaram a religiosidade como algo positivo para as
pessoas que convivem com o HIV/AIDS. Apenas dois abordam a religiosidade como forma
de enfrentamento, mas também como forma de sofrimento (FARIA; SEIDL, 2006 e LEMOS;
ECCO, 2014). O exercício da religiosidade não é algo naturalmente “pacífico” e “bom” para
este grupo de pessoas que historicamente vem sendo estigmatizado. Há de se considerar nos
processos de saúde e doença os conflitos existentes entre as pessoas que convivem com o
HIV/AIDS e suas religiões/religiosidades. Precisamos romper com a ideia de que a religião e
religiosidade é algo “bom-em-si, sem problemas, perfeita” e, ampliar nossa escuta para
aspectos/práticas/sentidos das religiões/religiosidades que tendem a aprofundar ainda mais os
processos de doença, sofrimento, não aceitação e preconceito.

REFLEXÕES INCONCLUSAS
Concluímos com esta pesquisa que dos oito trabalhos encontrados, cinco deles se
propõe claramente como qualitativos, totalizando 62,5% das obras. Ao analisarmos a área de
conhecimento a que tais pesquisas estão associadas, percebemos que 75% estão diretamente
ligados à área da saúde (seis trabalhos), dos quais dois deles fazem relações, um com a área

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das Ciências Sociais e outro com a Estatística, e os demais 25% (dois trabalhos) a área das
Ciência(s) da(s) Religião (ões).
Estes dados nos fazem questionar, porquê nas últimas décadas se tem buscado saber
tão pouco sobre os efeitos da religião, religiosidade e/ou espiritualidade na vida das PVHA?
Seria esta uma área de estudos já esgotada em si, seriam est@s sujeit@s menos importantes
para o conhecimento científico? Ou seriam os nossos julgamentos morais empecilhos para o
reconhecimento das populações marginalizadas pela existência deste vírus duplamente
mortal? Percebemos na análise das pesquisas, a preocupação em definir quantitativamente
quando as mesmas foram feitas com grupos majoritariamente masculinos, femininos ou com
famílias, bem como a presença de casais homoafetivos, entretanto, sentimos falta de um outro
grupo marginalizado entre os marginalizados, @s transgêneros sejam eles masculinos ou
femininos. Queremos crer que este fato se deva, a uma humanização dos processos na área da
saúde que já os percebe em suas identidades sociais, que por incluí-l@s não vê mais a
necessidade de nomeá-l@s.
A verdade é que nossa pesquisa não consegue responder neste momento a essas
questões, apenas abre caminho para que elas aconteçam de maneira crítica e pertinente, livre
de preconceitos morais e quiçá rica de responsabilidade ética e alteridade. Para que o
Enfrentamento Religioso descrito na maioria das pesquisas possa ter maior efeito positivo que
negativo, possibilitando a est@s sujeit@s a superação das dores impostas por esta
enfermidade que lhes oprime física, psicológica e espiritualmente.

REFERÊNCIAS
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Fontes, 2007.
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Virgem Maria Rosa, a Joana d'Arc do sertão do Contestado – líder máxima do


povo caboclo em guerra - a menina-mulher, cujo corpo e sexualidade sobressaíram ao
silencio secular imposto pela república
Angela Zatta1
Diego da Luz Rocha2
Nilson Cesar Fraga3

Resumo: O presente trabalho objetiva estudar o papel social da líder cabocla da Guerra do
Contestado – Maria Rosa, conhecida como a Virgem Maria Rosa e, pela população secular
regional e por estudiosos e folcloristas, além de musicistas, como a Joana D´Arc do sertão do
Contestado. Busca, mesmo envolta por uma biografia muito curta e cheia de romantismos,
traçar um breve olhar sobre a figura feminina mais impactante que se fez tão importante
liderança durante a Guerra. O seu corpo, assim como a sua sexualidade não foram expostos a
ponto de denigrir sua imagem de líder, pois os poucos escritos e relatos a tratam a partir do
fato de ser uma menina-mulher no topo da hierarquia de uma guerra de proporções federais.
Sobressaem os atributos de bela, ousada, santa e guerreira nos registros mais facilmente
encontrados, não havendo termos depreciativos sobre Maria Rosa. Metodologicamente se
buscou na literatura brasileira produzida no meio acadêmico, na poesia, na música e no
folclore regional, as menções sobre a líder cabocla e seu papel na Guerra do Contestado.
Constatou-se que, num país machista como o Brasil daquela época, uma líder cabocla
perpassou um século sem ser vulgarizada pelo simples fato de ser mulher e bonita, permanece
Maria Rosa como uma representação de mulher-guerreira-líder, cujos apelos sexuais, não
sobressaíram no pouco rompimento da invisibilidade e do silêncio imposto ao povo caboclo
desde que ela os liderou. Maria Rosa é, para os que dela falam, aos sobreviventes da guerra e
seus descendentes, apenas uma grande líder – a Joana D´Arc do Sertão.
Palavras-chaves: Maria Rosa; Mulheres do Contestado; Guerra do Contestado.

1
Acadêmica de Administração; Universidade do Oeste de Santa Catarina; angela@editoraexito.com.br.
2
Professor na Rede de Ensino Básico; rochageologia@gmail.com.
3
Pesquisador do CNPq/PQ; Geógrafo. Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Meio Ambiente;
ncfraga@uel.br

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Introdução
As questões de gênero, sobretudo o papel da mulher no decorrer da Guerra do
Contestado, ocorrida no sertão catarinense e paranaense, entre os anos de 1912 e 1916, ainda
são pouco estudadas. Há todo um vácuo de estudos sobre elas, sobremaneira nos estudos
geográficos, onde as concepções de gênero na Geografia, chamada também “geografia
feminista”, vem sendo discutidas e mesmo que os avanços deste tema em comparativo com
outros países ainda tenham sido escassos, cabe ressaltar sua importância. Embora a Geografia
tenha centrado suas análises espaciais durante muito tempo, ignorando a variável gênero
como um elemento de diferenciação social e considerando a sociedade como um conjunto
neutro, assexuado e homogêneo (REIS, 2015), esta ciência passou a levantar as diferenças
existentes entre homens e mulheres no uso do espaço já que “o conceito de gênero permite
compreender as relações sociais, especificamente, como os sexos contribuem para a
reprodução social” (REIS, 2015, p. 13). Tais elementos, do espaço geográfico e das questões
de gênero, são tratados aqui, abrindo a possibilidade de se pensar, inclusive, a organização do
territorial, a partir das mulheres atuantes na Guerra, com destaque para Maria Rosa, uma das
líderes mais carismáticas e atuantes nos arranjos do mundo caboclo.
Pensar o gênero no contexto geográfico se faz importante para que se compreenda as
relações existentes em todos os ramos da sociedade, demonstrando a complexidade em que se
insere a mulher, em meio a transformações no tempo e espaço. Desta forma, Joseli Silva et al.
(2003, p. 36) define gênero enquanto [...] “o conjunto de ideias que uma cultura constrói do
que é ser mulher e ser homem e tal conjunto é resultado de lutas sociais na vivência
cotidiana.” Deste modo, o fator predominante para se entender como se dão as relações entre
gêneros em uma sociedade, vem a ser a própria evolução desta, diante de fatores culturais,
determinantes nesse sentido.
De acordo com Joseli Silva et al (2009a, p. 38) a abordagem de gênero permite-nos
perceber que apesar da feminização da Geografia brasileira ter sido crescente, a análise
científica tem se demonstrado pouco permeável à expansão da compreensão das relações
entre espaço e gênero. No caso aqui tratado, quando se analisa o papel social de Maria Rosa,
há uma transcendência da relação espaço, tempo e gênero, pois ela avança disso, estando num
processo mais profundo, no caso, com poder de organização territorial, geradora de uma
territorialidade cabocla naquela região, para além da hegemonia masculina da sociedade
regional daquela época. “Tal impermeabilidade está alicerçada tanto na hegemonia masculina

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p551 552


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nos postos de poder como na reprodução da versão epistemológica androcêntrica 4 [...]”, pois,
diversos estudos nesse sentido, promulgam a distinção de gêneros no decorrer da evolução
social. García (2004) destaca que a análise de gênero como processo teórico-prático na
pesquisa geográfica
permite-nos analisar diferencialmente entre homens e mulheres os papéis,
responsabilidades, conhecimentos, acesso, uso e controle sobre os recursos,
problemas e necessidades, prioridades e oportunidades, concretizadas única
e diferencialmente nos lugares. Sendo o propósito contribui para analisar
processos estruturais e locais que criam e reproduzem a ideologia
hegemônica de gênero, assim como as práticas de resistência presentes no
território da Luta pela Terra, no caminho da transformação e superação da
realidade social (GARCÍA, 2004, p. 59).

Joan Scott (1995) corrobora com esta visão ao teorizar gênero como uma categoria
de análise das relações de poder, tal como o são a classe social e a raça, referindo-se ao modo
como as diferenças sexuais são construídas e trazidas para as práticas sociais para se tornar
partes do processo histórico – a líder da Guerra do Contestado, Maria Rosa, deteve poder
muito superior aos homens que a cercavam e, ao mesmo tempo, eram líderes com ela. Assim,
o gênero é a organização social da diferença sexual (SCOTT, 1995), um conhecimento que se
refere não somente às ideias, mas abrange as instituições, estruturas, práticas cotidianas,
rituais, formas de representação, e tudo o que constitui as relações sociais.
É válido, ainda, destacar a visão de Simone de Beauvoir de que
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro (BEAUVOIR, 1967, p. 9)

Maria Rosa, não nascera mulher, tornara-se mulher entre os 15/16 anos da sua tenra
idade, para liderar seu povo numa das maiores guerras civis ocorridas no continente
americano, tendo, na condição de líder máxima do povo caboclo, astúcia política e controle
territorial, numa área vasta área do sertão sulista – seu serviço de espionagem, chamado de
bombeiros, por exemplo, são relados por militares, como imprescindíveis para a manutenção
do povo em guerra, por quatro anos seguidos. Nesse tocante, sobre as questões espaciais-
geográficas, numa perspectiva de geografias feministas insistido na concepção do gênero
como uma possibilidade de análise do espaço é que se coloca a líder cabocla, pois é
construído de tal forma que venha a ser modificado por meio das ações humanas para

4
O termo androcêntrico destacado pela autora, nesse sentido se refere a própria sociedade centrada em
valores masculinos, onde a mulher é vista como inferior.

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consolidar seus anseios econômicos, culturais ou políticos na forma de um território


(SANTOS, 1988), deve-se compreender que as principais marcas de um espaço são as
relações de poder que nele estão marcadas (RAFFESTIN, 1993). Mas que poder poderia
exercer uma mulher em meio a um cenário de guerra, especialmente no contexto da Guerra do
Contestado? Como explicar a ascensão de Maria Rosa como líder máxima do seu povo
conflagrado?

O(s) Contestado(s) e Maria Rosa, a Virgem que tudo sabia.


A população que habitava a região do Contestado era formada por vários tipos
humanos, com predominância da união de “brancos, negros e índios, os puros e os mestiços,
em torno de causas comuns: liberdade e justiça social” (THOMÉ, 1992, p. 12). Esta
população era composta “por diversas famílias, muitas compostas por antigos peões,
agregados, ex-escravos, negros libertos ou fugitivos, que abandonaram as antigas fazendas de
criação onde viviam, tonando-se independentes” (BRANDT, 2007, p. 01). Destaca-se, ainda,
sua característica de um povo trabalhador, inserido nas bordas da lógica capitalista daquela
época, que exercia atividades de forma coletiva, ligada à terra, já que dela extraía sua
subsistência – o povo caboclo do Contestado ainda era (e é) marcado por uma forte
religiosidade com a presença de figuras místicas como os Monges.
Alguns autores definem esta presença como “tradição de João Maria” ou
“lendas de João Maria”. Outros caracterizam João Maria como um único
sujeito denominado como monge peregrino, monge santo, mago prodigioso,
profeta, profeta dos humildes, um velhinho bom que nunca desejou a luta,
que pregava e praticava o bem, homem de bons conselhos, que viveu de
forma simples entre os sertanejos, atendia a todos que o solicitassem, orava e
seguia os mandamentos de Deus. Também aconselhava, batizava, receitava
remédios, predizia fatos terríveis, profetizava que o fim do mundo estava
próximo, pregava penitências, fornecia uma esperança aos sertanejos,
orientava sobre a vida cotidiana ou dava conselhos sobre como se preparar
para o momento em que apenas “os justos serão escolhidos” (WELTER,
2007, p. 52).

Nesse universo místico e religioso das representatividades simbólicas é que se


inserem as mulheres no contexto da Guerra do Contestado. Algumas delas se destacaram
durante os embates, ganhando espaço e respaldo, sem que fossem rebaixadas ou que delas
fosse esperada tão somente a função reprodutiva e objetificadora, como em tantos outros
territórios no mesmo período.
Mesmo vivendo sob acentuado domínio patriarcal, muitas mulheres
desempenharam papéis importantes no movimento do Contestado. A
começar pelas “virgens”. O monge José Maria se fazia acompanhar de um
séquito delas para auxiliá-lo nas rezas, nas pregações e no preparo de chás

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homeopáticos. As “virgens” eram escolhidas por ele e pelas lideranças dos


Redutos – ou Cidades Santas – entre aquelas que manifestavam piedade e
pureza de alma. Não precisavam ser virgens no sentido biológico, pois havia
entre elas mulheres casadas. Mas as que mais se destacaram eram
adolescentes. A proximidade com o monge lhes dava respeitabilidade e
poder junto à comunidade. Na ausência do líder religioso, assumiam o papel
de videntes [...] (TONON, 2012, s/p)

Silva (2010) aponta que as Virgens detinham poder e influência sob o povo caboclo,
bem como sob o mundo mítico, já que adquiriram a insígnia de representantes do poder e da
inspiração divina, criando um elo entre o “mundo encantado” e o mundo dos sertanejos, numa
figura similar às representações de poder da Igreja Católica, notoriamente masculina. Dentre
as mulheres que tiveram destaque ao longo da Guerra do Contestado estão a Virgem Teodora,
que deu esperança à população por meio de suas visões; Chica Pelega, a guerreira que
espalhou coragem e bondade por onde passou, a despeito de sua história trágica; Nega Jacinta,
ou Nhá Jacinta, conhecida pela prática de benzeduras e parteira; e Maria Rosa, que liderou
milhares de homens e mulheres contra as forças repressivas republicanas, além de
proporcionar fé e esperança ao povo.
As meninas “virgens” eram capazes de estabelecer um elo entre o mundo
encantado e mítico com o mundo dos sertanejos, mundo este que os levaram
a lutar até a morte pela crença da Santa Religião e que nos remete à
possibilidade de conceber este movimento através de um olhar voltado para
universo mítico religioso em que as mulheres foram portadoras e
representantes de um grande poder simbólico, mas que trazidos para o plano
concreto, influenciaram certamente, muitas das ações e decisões nos redutos.
(FELDMAN, 2005, p.2-3.)

Maria Rosa participava das procissões no reduto e costumava receber mensagens de


José Maria. Silva (2010, p. 58) esclarece que a Virgem, para os sertanejos, “era considerada
uma santa e que ela tudo sabia”. Ao representar com fidelidade a vontade do Monge, tinha os
poderes de destituir, designar e sentenciar. Borges (2007, p. 130) cita uma das mensagens
recebidas pela Virgem:
O nosso reduto será bombardeado e arrasado. Esta é a nossa missão santa.
Nossa missão é divina. Não temos que temer nada. Devemos estar prontos e
oferecer as nossas vidas. A mansão celestial está cheia de lugares para os
seus anjos. Quanto mais ardorosa for a batalha mais beatificados seremos.
São Sebastião e São Jorge e mais José Maria dizem que cada um de nós tem
um propósito no nosso Exército Encantado. O nosso povo é abençoado!
Quem não quiser participar da nossa luta divina, que saia agora. Não temos
lugar para covardes e indecisos. A hora de sair é agora! [...]

Muitas das mulheres que participaram da Guerra do Contestado, em meio à floresta,


reivindicando seus direitos e lutando por sua liberdade, história e identidade como seres de
ação continuam vivas no imaginário caboclo. Mas Maria Rosa ainda possui outros aspectos.

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Afora a alcunha de virgem santa, a personagem cruza o espectro de gênero e se posiciona


como uma guerreira, líder de um exército de gente humilde que freou os avanços do Exército
Nacional por anos a fio. Fez história entre os seus e em boa parte do país naquela época,
ficando conhecida e, sendo canta em música até os dias atuais, como a Joana D´Arc do sertão
catarinense.

Maria Rosa, a guerreira, a Joana D´Arc do sertão.


Maria Rosa é citada por numerosos pesquisadores e a mulher de maior destaque,
também lembrada como guerreira, heroína, líder, mártir e guia, mas escassos são os trabalhos
que a pensam numa perspectiva de gênero. Os relatos que comprovam sua existência estão
expressos na literatura acadêmica, na literatura, na poesia e na música, como se pode verificar
na obra de Vicente Telles, importante folclorista, historiador e musico regional catarinense, ao
dizer que “Maria Rosa entrou na guerra/Na terra do Contestado/Levando flores no
cabelo/Comandou o povo armado”. Ela, ainda, em conformidade com Queiroz (1977, p. 151)
era uma adolescente de 15 anos “loura, cabelos crespos, pálida, alegre de extraordinária
vivacidade” e mesmo sendo analfabeta falava sem embaraços e, que teria se alfabetizado nos
redutos caboclos, para dar ordens e nomear seus guerreiros, sobretudo na frente de controle
territorial sertanejo.
[...] Andava amiúde com um vestido branco, enfeitado de fitas azuis e verdes
e de penas de pássaros, de todos os matizes, em profusão. Era ela quem nas
procissões marchava à frente, carregando uma grande bandeira com a cruz
verde. (QUEIROZ, 1981, p. 151).

Queiroz (1977) aponta que Maria Rosa era vista como a principal representante da
vontade do Monge e dele conhecia os secretos desejos. Também cabia a ela a instrução de
uma rígida disciplina militar e, segundo Borges (2007), era quem determinava a execução de
exercícios diários.
Maria Rosa, aos 15 anos, em meio a orações, entrava em transe e discursava
dizendo receber ordens do monge José Maria. Durante os transes tinha
visões de batalhas e, daí em diante, era ela quem definia as ordens recebidas
pelo espírito do monge para organizar o comportamento do grupo. Com o
passar do tempo, além de líder espiritual, a virgem Maria Rosa se transforma
em chefe militar e comandou a retirada estratégica, após a primeira batalha
de Taquaruçú, em 1913, para o novo reduto em Caraguatá. (RUBIM, 2008,
s/p)

No que tange a disciplina militar, Maria Rosa se posiciona como sujeito e renuncia a
passividade da “mulher feminina” e se constrói fazendo-se ser, tal como permite-se
socialmente a ação masculina (BEAUVOIR, 1967). Analfabeta e comandante militar, ela

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manifesta “a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a


mesma ousadia de um menino” (BEAUVOIR, 1967, p. 22).
Maria Rosa é incansável. Procura dar apoio a todos os enfermos. Consola as
famílias. É provida de obstinada dedicação ao seu povo. Todos os
necessitados esperam pelo seu conforto. É espantosa a transformação que
ocorreu naquela menina. Ora é menina, ora é uma mulher, determinada,
cheia de iniciativas. Não se descuida, no entanto das atribuições militares.
Literalmente incorpora um espírito guerreiro e autoritário. Dá ordens,
estabelece estratégias e não quer ser surpreendida pelo inimigo. (BORGES,
2007, p. 140.)

A figura de Maria Rosa, mulher respeitada e temida por todos é representada a partir
de declarações dos próprios caboclos. Willy Alfredo Zumblick pinta Maria Rosa em sua
pintura (Figura 1) onde a retrata ao cavalo, conduzindo as rédeas do animal com uma mão e
levantando a espada com a outra, sendo que sua cabeça e olhar, estão envolto por um halo de
luz, como se fosse, ao mesmo tempo, guerreira e santa – uma Joana D´Arc do Sertão do
Contestado.

Figura 1 - Pintura: Maria Rosa.


Fonte: Zumblick (2018),

Machado (2004) expõe que Maria Rosa comandou uma longa marcha para evacuar
Caraguatá indo em direção ao novo reduto de Bom Sossego com cerca de 2 mil homens e 600
cabeças de gado cargueiros de mantimentos, o que denota que tal feito não a diferenciava dos
homens. Ela teria morrido em 1915, na Páscoa Sangrenta do Brasil, quando do grande cerco

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final da Guerra do Contestado ao vale de Santa Maria, hoje nos limites dos municípios de
Timbó Grande e Lebon Régis, em Santa Catarina, lutando contra as tropas do Capitão
Tertuliano Potyguara nas incursões do Exército brasileiro, que colocariam um final ao mundo
caboclo e, ao mesmo tempo, concluindo a participação do Governo Federal na campanha do
Contestado. Tais fatos, até aqui, consolidam Maria Rosa como mulher guerreira na busca
incessante de justiça social e pelo direito à terra do seu povo.

Maria Rosa, a mulher e a sexualidade.


Mas onde se encontra a mulher Maria Rosa? Pouco se fala sobre Maria Rosa como
mulher, aquela a quem se torna socialmente. Mesmo considerando que a região do
Contestado, de onde vem, vivenciou brutalmente a entrada da lógica capitalista em sua
organização social e com ela a padronização da família burguesa caracterizada por Engels
(1986) como a grande derrota histórica do sexo feminino, pois o triunfo do capitalismo e a
derrota da propriedade privada dependiam de um modo de procriação que assegurasse a
certeza da paternidade dos herdeiros da riqueza acumulada, não fica menos surpreendente
verificar a atuação de Maria Rosa no desempenho de seus papéis sociais como Virgem ou
como guerreira, ou, até mesmo, como Santa – a Joana DÁrc do Sertão do Contestado.
Todavia, não se pode ignorar que os retratos de Maria Rosa se baseiam no discurso
patriarcal, compreendido pelas geógrafas feministas como um sistema hierarquizado de
relações onde os seres humanos possuem poderes desiguais, tendo a suprema autoridade
masculina sobre a feminina em diversos aspectos da vida social que partes desde os sistemas
econômicos e jurídico-institucionais até atingir a vida cotidiana no exercício da sexualidade
(SILVA, 2009b). E, uma vez dentro da sociedade patriarcal, a alcunha de Virgem cumpre um
papel de exaltação dos ânimos masculinos, que notoriamente detém um desejo sobre o corpo e
a sexualidade daquela que não seria possível controlar. Maria Rosa está envolta nesses
princípios, mas ao mesmo tempo e, inexoravelmente, foi líder máxima do povo caboclo em
guerra, demonstrando, ainda, a complexidade e as contradições contidas no meio social
caboclo.
Butler (2004) propõe a compreensão de gênero como um mecanismo por meio do
qual se naturalizam as noções de feminilidade e masculinidade, podendo servir como uma
ferramenta de desconstrução e de desnaturalização das próprias noções. Partindo do
pressuposto de que as identidades de gênero são instáveis, permanecem em transformação e
que o seu distanciamento da dualidade macho/fêmea pode permitir a ampliação do campo

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semântico de gênero, não se pode considerar uma linearidade entre o sexo, o gênero e o
desejo.
Na perspectiva desconstrucionista, o espaço é concebido de forma
paradoxal: de um lado, compõe as representações sociais hegemônicas dos
gêneros e das sexualidades; de outro é elemento de subversão dessas mesmas
representações, pois é por meio das ações espaciais concretas
desempenhadas pelos seres humanos que se dão as contínuas transformações
da realidade socioespacial (SILVA, 2009b, p. 47-48).

Ao transitar pelos paradoxos do espaço, Maria Rosa cumpre as representações


sociais de gênero e sexualidade heteronormativa ao ser retratada como Virgem e, portanto,
objeto de desejo do patriarcado, sem deixar de vivenciar um espaço de subversão por sua
atuação como guerreira. Mas ela ainda era mulher, e como mulher, faltava-lhe algo aos olhos
do patriarcado.
Depois do primeiro e grande ataque ao reduto de Taquaruçu, em janeiro de 1914, a
maior parte dos camponeses, entretanto, havia fugido ao cerco na noite chuvosa do dia 8,
rumo a Caraguatá, ao norte, já sob o comando de uma valente menina – Maria Rosa. O
comandante da coluna que atacara Taquaruçu, Tenente-Coronel Alleluia Pires, deu parte de
doente em rio Caçador, sendo substituído, em 24 de fevereiro, pelo Coronel José Freire
Gameiro. Este, sabendo do reajuntamento em Caraguatá, reconstituiu a coluna e rumou para a
nova concentração sertaneja. Subestimando o poderio do adversário, atacou no dia 9 de março
e foi derrotado depois de sangrenta luta, na qual os camponeses adotaram a tática de
guerrilhas, ainda desconhecida pelos soldados – nesse momento da guerra, Maria Rosa torna-
se líder máxima do povo caboclo, com a marca dessa grande vitória sobre as tropas federais.
Diante desse insucesso, assumiu o comando o General Carlos de Mesquita (com experiência
na Campanha de Canudos, na Bahia), que instalou o comando da 2ª Brigada Estratégica, em
Calmon, a 16 de abril, com efetivos totalizando 1.700 homens – iniciando a partir de então,
um esforço maior das forças legalistas, para vencer os caboclos e caboclas do Contestado,
chegando a mais de 8000 soldados até 1915 (FRAGA, 2006).
A “bela virgem” Maria Rosa, comandante suprema do reduto de Caraguatá, vendo a
movimentação, e bastante temerosa, ordenou a retirada de seu pessoal para outros redutos
menores, mais seguros, em Pedra Branca, São Pedro, Santo Antônio, Santa Maria, Caçador
Grande, Tamanduá e outros. A essa altura, os sertanejos contavam com mais de 3.000 homens
do “Exército Encantado”, com armas brancas, mais 200 homens do “Exército de Cavalaria”
armados de winchesters e mausers, os 24 homens da guarda dos “Pares de França”, 25
homens do “Piquete da Avançada”, cerca de 2.000 mulheres com mais de 17 anos em

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condições de lutar, e mais 500 crianças aptas a auxiliar as forças na retaguarda – aqui, sobre o
comando de Maria Rosa, a resistência cabocla alcança suas máxima aglutinação de gentes em
guerra, a líder, parecia, com a vitória em Caraguatá, ter conseguido o feito de unificação da
causa cabocla (FRAGA, 2017).
De 13 a 29 de maio de 1914, o General Mesquita efetuou ações contra Caraguatá (dia
13) e contra Santo Antônio (de 16 a 18), quando os ditos “fanáticos”, mais espertos, evitaram
o confronto direto e simularam dispersar. A missão foi dada por encerrada, ficando o capitão
Mattos Costa no comando do destacamento de guarda e policiamento (FRAGA, 2017).
Machado (2004) destaca que Maria Rosa teria recebido a visita do capitão Mattos
Costa, oficial do exército que comandou as forças federais na região entre maio e setembro de
1914, na tentativa de iniciar as negociações de paz. Com simpatia e compreensão pela causa
cabocla, o oficial adota uma postura conciliadora que é partilhada por Maria Rosa. Nas
narrativas sobre a Guerra do Contestado, é neste ponto em que a menina se apaixona e por seu
relacionamento com Mattos Costa, considera-se que “perdeu o aço”, ficando, tal como
Teodora, numa posição secundária nos futuros redutos (MACHADO, 2004).
Maria Rosa, a guerreira do Contestado, líder máxima e mulher-menina de prestígio,
volta a torna-se apenas mais uma menina-mulher nos meses finais da Guerra do Contestado,
com a ascensão e o retorno dos homens de “briga” ao poder, isso depois de ter “perdido o
aço”, ao ter mudado seu olhar, ao olhas da própria sociedade cabocla, quando deparou-se com
o culto Mattos Costa, mas, nada disso retira dessa personagem invisível, dentre as heroínas
brasileiras, o papel ávido da transgressão vivida na periferia do sistema patriarcal e
coronelista do sertão brasileiro. Maria Rosa, a Joana D´Arc do Sertão do Contestado é uma
guerreira e heroína invisível dentre tantas outras mulher fantásticas produzidas na resistência
dos perseguidos desta Nação, mas para o folclore e a música catarinense, ela se encontra em
pé de igualdade com Anita Garibaldi, a heroína do Litoral, sendo Maria Rosa, a heroína da
Serra Acima – um estado com nome e personagem mulher, tendo duas mulheres na
construção territorial e unificação da terra barriga verde – no mínimo contraditório, em terra
tão machista.

Considerações finais
A hierarquia social estruturada pelo patriarcado se confirma aos olhos das meninas
de muitas formas. Para Beauvoir (1967) a cultura histórica, a literatura, canções e lendas são
uma exaltação ao homem e foram eles que construíram a Grécia, o Império Romano, a França
e todas as outras nações.

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A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados


pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a
menina explora o mundo e nele decifra seu destino. A superioridade
masculina é esmagadora: Perseu, Hércules, Davi, Aquiles, Lançarote,
Duguesclin, Bayard, Napoleão, quantos homens para uma Joana d’Arc; e por
trás desta, perfila-se a grande figura masculina de São Miguel Arcanjo!
(BEAUVOIR, 1967, p. 30)

E então, uma mulher irrompe pelos sertões do Contestado. A Joana d’Arc do Sertão.
A guerreira. A Virgem. Uma mulher que resiste ao massacre de uma guerra que reuniu mais
de 30 mil pessoas ao mesmo tempo e no mesmo espaço geográfico (FRAGA, 2017), no
episódio descrito por Galeano como uma das maiores guerras civis do Continente Americano,
já que o genocídio de milhares de camponeses pobres foi a sua principal marca. Uma mulher
que resiste à República - que seu povo chama de República do Diabo -, e que se mantém
virgem para não sujar suas mãos com o sangue da injustiça diante da fome capitalista de obter
terras e levar a cabo um plano de colonização que previa a eliminação do povo caboclo. Uma
mulher-menina resiste como virgem em uma terra coronelista, que usa e abusa de todas e
todos, mas permanece menina-mulher, 110 anos depois do aniquilamento do mundo Caboclo
do Contestado. Uma virgem com poderes messiânicos. Resiste Maria Rosa, uma ideia de
subversão e de posicionamento feminino perante a hegemonia do espaço.
Mas Maria Rosa é mais. É uma guerreira retratando as carências, a pobreza, a
violência e as práticas relacionadas aos espaços e sujeitos marginais-marginalizados. Ela é
fruto de uma trama expressa a oposição centro/periferia e homem/mulher quando delineia
espaços socialmente distintos no seu mundo social. Maria Rosa personagem central na
construção identitária cabocla, uma personagem reveladora das representações femininas do
início do século XX, que serve de inspiração para geografias feministas (de gênero) até os
dias atuais, mesmo sendo tão pouco estudada e ressignificada pela geografia do Brasil. A
Virgem Maria Rosa, a Joana d'Arc do sertão do Contestado – líder máxima do povo caboclo
em guerra - a menina-mulher e mulher-menina, cujo corpo e sexualidade sobressaíram ao
silencio secular imposto pela república. Lembrada até a Segunda Guerra Mundial nos
batalhões do Exército brasileiro, era uma inspiração para muitos soldados que traziam-na
como referência de destemida e controladora territorial, dizendo que ela seria ótima para o
serviço de espionagem e controle do território nacional, no caso de uma invasão do Eixo,
naqueles anos de 1940, 30 anos depois dela ter marcado a memória de muitos homens que
estiveram no território do Contestado, por ela controlado como líder (FRAGA, 2005)

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Hoje, sobretudo nos movimentos sociais brasileiros, Maria Rosa, assim como outros
elementos e personagens da Guerra do Contestado, sobremaneira os ligados a sua resistência,
permanecem e se sobressaem, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra:
Aconteceu no último domingo (27), a festa de comemoração pelos dois anos
do aniversário do acampamento Maria Rosa do Contestado, localizado no
município de Castro, Paraná.

Além das 200 famílias que residem no acampamento, a confraternização


contou com a presença de pessoas de várias regiões do estado, colaboradores
e simpatizantes da luta pela terra. Durante a comemoração foi realizada a
feira de sementes crioulas e de alimentos, além de outras atividades. (...)
Hoje a comunidade conta com Cooperativa dos Trabalhadores da
Reforma Agrária Maria Rosa do Contestado (CMRC), para
comercialização e auto sustentação das famílias. O acampamento produz
aproximadamente três toneladas de alimentos orgânicos, como verduras,
hortaliças, grãos e legumes por ano. Devido a grande produção, em 2016
alguns serviram de doações para as escolas da região (MST, 2018). (Grifos
nossos)

Há, na cidade de Curitibanos, em Santa Catarina, a Rádio Comunitária Maria Rosa


FM – 104,9, mantendo viva a personagem histórica, bem como a própria Guerra do
Contestado na região, isso em uma cidade, cuja história é marcada por um dos coronéis de
atuação mais importante durante a guerra, o coronel Albuquerque – Maria Rosa resistem,
enquanto o coronel é quase invisível, sendo apenas uma avenida importante da cidade.
Interessante constatar que, num país machista como o Brasil daquela época, uma
líder cabocla perpassou um século sem ser vulgarizada pelo simples fato de ser mulher e
bonita, permanece Maria Rosa como uma representação de mulher-guerreira-líder, cujos
apelos sexuais, não sobressaíram no pouco rompimento da invisibilidade e do silêncio
imposto ao povo caboclo desde que ela os liderou. Maria Rosa é, para os que dela falam e aos
sobreviventes da guerra e seus descendentes, apenas uma grande líder – a Joana D´Arc do
Sertão.

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Revista Nin e Aleta Valente: o queer na representação do corpo das mulheres

Bruna Neves Pellegrini1

Resumo: Acredita-se que, em nossa sociedade o corpo das mulheres é submetido à um sistema
ditatorial, no sentido de que elas não têm autonomia sobre seus próprios corpos pois, devem
obediência à moral e à uma cultura machista. Assim, a proposta deste artigo é de compreender como
a epistemologia queer pode funcionar como instrumento de mobilização para a libertação do corpo
das mulheres, além de refletir sobre a representação desses corpos. Para isso, será analisado o ensaio
de Aleta Valente, uma artista contemporânea, presente na Revista Nin: naked for no reason, uma
publicação erótica carioca, criada por duas mulheres. O intuito é de mostrar como a política de
gênero queer é refletida na proposta editorial, estética e erótica da revista Nin, a fim de desconstruir
estereótipos sobre a mulher e a representação do corpo feminino. Na parte teórica foi abordado um
breve histórico sobre a sexualidade da mulher e apresentados conceitos sobre a teoria queer. Para a
análise foi utilizada a metodologia Iconografia e Iconologia, proposta por Panofsky, pela qual foi
possível concluir que a Nin de fato representa uma nova forma de ser mulher e de olhar para a
mulher em nossa sociedade.

Palavras-chaves: corpo da mulher; revista nin; queer.

1
Mestranda em Comunicação Visual pela Universidade Estadual de Londrina; bruna.pellegrini@hotmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p578 578


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Introdução

Existe um consenso em estudos feministas de que vivemos em uma sociedade


ditatorial em relação ao corpo da mulher, no sentido de que ela não tem autonomia sobre seu
próprio corpo, pois deve obediência ao estado, à moral e à uma cultura machista que dita
como deve ser a estética corporal feminina e a quem esse corpo deve servir. A sexualidade da
mulher só é válida quando está a serviço do homem, quando é vivenciada no corpo da mulher,
seja em prol do desejo feminino, ou, apenas aparente em seu corpo nu – sem motivo, ela é tida
como juízo de valor sobre a mulher, que passa a ser desrespeitada.
Pensando nisso e, na libertação do corpo das mulheres, este artigo pretende analisar a
Revista Nin: naked for no reason, uma publicação do Rio de Janeiro que traz no nome uma
alusão à escritora de literatura erótica Anaïs Nin. A revista foi criada por Alice Galeffi e
Letícia Gicovate em 2015, possui edições bilíngues e, não apresenta um público alvo
específico por sexo, gênero, idade, ou seja, é direcionada à um público plural. Aliás, essa
pluralidade é proclamada nas páginas da revista que traz “sem qualquer pudor, imagens de
homens, mulheres e transexuais nas mais diversas condições: gordas, baixas, altas, peludas,
sem pelos, carecas, evidenciando as genitálias, axilas, pelos pubianos” (NETO; AMARAL,
2018, p. 2), sem se preocupar com os padrões normativos difundidos em nossa sociedade.
Assim, entende-se que, as epistemologias queer são refletida nas proposta editorial,
estética e erótica da revista Nin ao representar a complexidade dos gêneros e expor imagens
algumas vezes, estranhas ou fora da normalização, mas que assim se tornam necessárias para
movimentos a favor das diferenças, como sugere o queer. (MISKOLCI, 2015). Para
delimitação do corpus, será analisado o ensaio de Aleta Valente, presente na segunda edição
da revista, por meio da metodologia Iconografia e Iconologia, proposta por Panofisky (2011),
a fim de verificar como o queer pode funcionar como instrumento de mobilização para a
libertação do corpo da mulher.
Sendo assim, a parte teórica deste artigo pretende apresentar uma breve
contextualização histórica da sexualidade da mulher e da representação do corpo feminino,
para depois tratar da política de gênero queer e as possibilidades de desconstruções de
estereótipos relacionados à imagem da mulher, buscando a sua libertação. Por fim, será
apresentada a metodologia utilizada e a análise da revista.

O corpo e a sexualidade da mulher

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Acredita-se que, para entender a sexualidade feminina e como o corpo da mulher é


representado na atualidade, é importante compreender que vivemos um regime de repressão
sexual desde o século XVII (FOUCAULT, p. 1988, p. 15) e que as mulheres são as principais
vítimas desse regime.

A civilização patriarcal destinou a mulher à castidade, reconheceu-se mais ou menos


abertamente ao homem o direito de satisfazer seus desejos sexuais ao passo que a
mulher é confinada ao casamento: para ela o ato carnal; não sendo santificado pelo
código, pelo sacramento, é falta, queda, derrota, fraqueza (BEAUVOIR, 2016, p.
126).

Ao longo dos anos, a mulher foi vista e reconhecida em relação a sua sexualidade,
apenas como objeto sexual masculino “desde as civilizações primitivas até os nossos dias
sempre se admitiu que a cama era para mulher um ‘serviço’ ao qual o homem agradece com
presentes ou assegurando-lhe a manutenção” (BEAUVOIR, 2016, p. 126), mas como afirma
Beauvoir (2016), servir é ter um senhor, ou seja, não há reciprocidade nessa relação. Entende-
se que, a sexualidade é exercida como um poder político sob a mulher, o qual Foucault (1984)
aborda ao comparar as relações sexuais com as relações sociais, citando Aristóteles:

Ao tratar das relações de autoridade e das formas de governo próprias à família,


Aristóteles define, em relação ao chefe da família, a posição de escravo, a da mulher
e a do filho (homem). Governar escravos, diz Aristóteles, não é governar seres
livres; governar uma mulher é exercer um poder “político” no qual as relações são
de permanente desigualdade (ARISTÓTELES apud FOUCALT, 1984, p. 191).

Beauvoir (2016) aponta a própria estrutura do casamento e a existência das


prostitutas como prova dessa relação de poder, afinal, nas palavras da filósofa francesa: “a
mulher se dá, o homem a remunera e a possui. Nada impede o homem de dominar e possuir
criaturas inferiores; os amores ancilares sempre foram tolerados, ao passo que a burguesa que
se entrega a um jardineiro, a um motorista, degrada-se socialmente” (BEAUVOIR, 2016, p.
126). Para Lauretis (1987, p. 222), esse poder político é exercido sob o corpo da mulher até a
atualidade, pois mesmo quando a sexualidade é localizada no corpo da mulher, é percebida
como propriedade do homem. Pensando nisso, é interessante observar que, a frase “naked for
no reason” no subtítulo da Nin (objeto de análise deste artigo), traduzido para o português
como “nua sem motivo”, pode ser interpretada como uma libertação do corpo da mulher.
Afinal, de acordo com Gomes e Sorji (2014, p. 49), para as antigas gerações de feministas, a
autonomia pelo corpo significava maior controle da reprodução e da saúde e, a

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descriminalização do aborto, mas, para as gerações feministas contemporâneas essa


autonomia passou a ter um significado mais amplo, “a se referir principalmente a um modo de
experimentação do corpo que, embora não prescinda de transformações da política, na cultura
e nas relações interpessoais, é vivenciado como sujeito” (GOMES; SORJI, 2014, p. 49).
Dessa forma, acredita-se que o “naked for no reason”, na Revista Nin, possa ser
interpretado como um manifesto, possível de associação ao significado do corpo nu explorado
na Marcha das vadias, em que “a sensualidade dos corpos é celebrada; os padrões de beleza
feminina são questionados por corpos que reivindicam pelos diferentes formatos; a
menstruação é positivamente assumida” (GOMES; SORJI, 2014, p. 49), e, além disso,
confronta o pensamento de que o corpo feminino, quando nu ou parcialmente nu, se torna
propriedade de consumo do homem. Esse pensamento vem da intensa sexualização do corpo
da mulher:

Todas as mulheres, sejam elas esposas, parteiras, bruxas, prostitutas ou freiras, são
sempre descritas exclusivamente em termos sexuais (a bruxa dorme com o diabo e a
freira, com Deus; a puta dorme com todos, a freira, só com Jesus – uma canção de
Chico Buarque nos revela como essas imagens exclusivamente sexuadas das
mulheres ainda permanecem no imaginário e no cotidiano brasileiro, de tal modo
que o encontro matinal da puta, voltando do trabalho, com a freira, indo à missa, é
uma espécie da síntese da imagem feminina brasileira para o olhar masculino
(CHAUI, 1984, p. 105).

Por outro lado, essa sexualidade serve apenas como juízo de valor sobre a mulher,
pois em nossa sociedade, a sexualidade feminina não pode ser vivenciada em seu corpo como
sujeito.

O queer e a desconstrução dos estereótipos

Pensando na importância de uma desconstrução desses conceitos cristalizados para


libertar o corpo feminino e, na intenção deste artigo de apresentar uma nova proposta de
representação do corpo da mulher – diferente dos estereótipos frequentemente difundidos,
entende-se ser necessário compreender que estereótipo é uma espécie de simplificação de
representação problemática pois:

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma


dada realidade. É uma simplificação, porque é uma forma presa, fixa, de
representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do Outro
permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de
reações psíquicas e sociais (BHABHA, 1998, p. 117, grifo do autor).

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Fora desse padrão estereotípico, a nova política de gênero, como se refere Butler
(2017) a epistemologia queer, aponta novas possibilidades de identidade e representação, em
busca de desconstruir esses estereótipos. Afinal, o queer estende as pautas do feminismo e
passa a questionar o próprio sujeito do movimento pois, o gênero passa a ser visto como algo
construído culturalmente, como uma interpretação cultural do sexo.

Quando a “cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos


dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado
e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Nesse caso, não a
biologia, mas a cultura se torna o destino (BUTLER, 2017, p. 29)

Os fundamentos do queer, tem suas bases nas teorias sobre poder formuladas por
Foucault, em sua obra Vigiar e Punir. O filósofo francês explica como a concepção do poder
localizado apenas no repressor, não faz sentido, pois o poder está em toda parte para estimular
os sujeitos a agirem conforme os interesses hegemônicos – o que mudou por completo a luta
do movimento feminista e do movimento homossexual (MISKOLCI, 2015). Até as décadas
de 1960 e 1970, esses movimentos eram liberacionistas, ou seja, lutavam pela liberdade dos
homossexuais e das mulheres, acreditando em um poder repressor que agia de cima para
baixo, mas a partir de 1980, a nova política de gênero passou a refletir sobre cultura e sobre
construções sociais, em que os sujeitos também operam (MISKOLCI, 2015, p. 28). Partindo
desse ponto de vista, o queer vêm para questionar aquilo que é consolidado e difundido como
“normal”.

A Teoria Queer lida com o gênero como algo cultural, assim, o masculino e o
feminino estão em homens e mulheres, nos dois. Cada um de nós – homem ou
mulher – tem gestuais, formas de fazer e pensar que a sociedade pode qualificar
como masculinos ou femininos independente do nosso sexo biológico. No fundo,
gênero é relacionado a normas e convenções culturais que variam no tempo e de
sociedade para sociedade (MISKOLCI, 2015, p. 32).

Assim, lembramos da icônica frase de Simone de Beauvoir (2016), em O segundo


sexo: “Ninguém nasce mulher, torna-se”, que sugere que o gênero é construído socialmente e
independe do sexo biológico. Além disso, também sugere que os conceitos definidos sobre
“mulher” e “feminilidade” são uma construção social e cultural. Afinal, o que é ser mulher? A
mulher carrega o estigma da delicadeza, pureza, sensibilidade. E, a sexualidade feminina, se
reduz a simplesmente satisfazer o sexo oposto, fazendo com que o corpo da mulher seja

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encarado como eterno objeto de desejo e consumo do homem (LAURETIS, 1987, p. 222). No
entanto, Beauvoir propõe que o corpo feminino deve ser instrumento de liberdade da mulher
“e não uma essência definidora e limitadora” (BUTLER, 2008, p. 35 apud BEAUVOIR,
2016).
Pensando nisso, pretende-se analisar a Revista Nin: naked for reason, que pode ser
um meio de representação dessa libertação, que apresenta algo fora dos padrões, que opera
com imagens fora dos estereótipos consolidados. A Nin apresenta-se como uma revista
impressa de arte erótica e, diz pouco sobre sua identidade que parece querer não definir:

A Nin é uma revista impressa de arte erótica criada para aguçar os sentidos e
desmitificar o erotismo através de imagens e palavras. Criada por duas mulheres, a
Nin apresenta em suas edições bilíngues visões pessoais e amplas de colaboradores
do mundo inteiro sobre o corpo, a nudez e a sexualidade, combinando elegância,
humor, naturalidade e delicadeza. Para exibicionistas e voyeurs, para homens e
mulheres, para você! (Site da Revista Nin, grifo deles2).

Por meio dessa citação é possível perceber que a revista carioca não pretende
segmentar seu público por idade, sexo, gênero, ou, qualquer outra especificação. O foco é se
manter aberta e isso também pode ser observado em seu extenso leque de representações,
como afirma Neto e Amaral sobre a Nin:

O leque de representação do corpo, apresentado pela revista, é muito extenso, pois


retrata homens e mulheres com sobrepeso, carecas, tatuados, peludos ou depilados,
transexuais, homossexuais, lésbicas, ex-profissionais do sexo que lutam para manter
a vida fora desse nicho, ou seja, uma gama repleta que não contempla
exclusivamente o corpo imaculado e ilibado das representações midiáticas
convencionais (NETO; AMARAL, 2018, p. 10).

A Nin também chama a atenção pela ousadia na maneira como expõe os corpos nus
em seus ensaios fotográficos, o que poderá ser observado na análise do ensaio de Aleta
Valente, que será abordado e que também, é possível de associação com o queer, termo inglês
que traduzido para o português significa: estranho, repugnante. Já para os estudos das
sexualidades, esses adjetivos expressam “os traços que operam fora do quadro considerado
normativo e, por isso, localizam-se o limbo das representações, o que não quer dizer que não
tenham valor social ou que não ofereçam uma riqueza de possibilidades de representações das
sexualidades” (NETO; AMARAL, 2018, p. 15).

2
Apresentação da Nin em seu site. Disponível em <http://www.ninmagazine.com/sobre/> Acesso em 01 fev.
2018.

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Assim, no tópico abaixo, pretende-se apresentar a metodologia que será utilizada na


análise, a fim de verificar como a política de gênero queer atua em uma revista erótica e como
pode ser instrumento de libertação do corpo da mulher.

Metodologia: Iconografia e Iconologia

Para a análise, será utilizada a metodologia Iconografia e Iconologia, proposta por


Panofsky (2011), para analisar obras de arte, que vai de encontro à Nin que, apresenta-se
como uma revista de “arte erótica”, mas que também já foi adaptada para análise de
fotografias pelo historiador e fotógrafo Boris Kossoy (2014).
Panofsky (2011) propõe que a análise Iconográfica seja separada em três partes
sendo a Pré-iconográfica (tema primário ou natural), que consiste na identificação das formas
puras, como: linhas, cor, volume, ano, movimento (PANOFISKY, 2011, p. 50). A
Iconográfica (tema secundário ou convencional), ligação dos motivos artísticos com os
assuntos e conceitos, que visa “a identificação de tais imagens, estórias e alegorias é o
domínio daquilo que é normalmente conhecido por iconografia” (PANOFSKY, 2011, p. 51),
mas, que de acordo com o autor (2011, p. 58), pressupõe mais do que familiaridade com
imagens adquiridas pela experiência prática, “pressupõe familiaridade com temas específicos
ou conceitos, tal como são transmitidos através de fontes literárias, quer obtidos por leitura
deliberada ou tradição oral”.
Por fim, Panofsky (2011) propõe o uso da Iconologica, que depende da interpretação,
pois “se o sufixo ‘grafia’ denota algo descritivo, assim também o sufixo ‘logia’ – derivados de
logos, que quer dizer “pensamento”, “razão” – denota algo interpretativo” (PANOFSKY,
2011, p. 54). Nesse momento, o observador deve perceber o que está intrínseco na obra, ou,
na imagem que está servindo como objeto de análise, o que depende do repertório
bibliográfico de cada um e conhecimento sobre o tema que está sendo explorado. No tópico
abaixo será apresentada a análise proposta.

Análise da Revista Nin – Ensaio de Aleta Valente

Importante ressaltar que, o ensaio que será analisado faz parte da segunda edição da
Nin, publicada em 2016. Além disso, as imagens que acompanham os textos
“@ex_miss_febem é Aleta Valente bangu”, escrito por Letícia Gicovate e “Aleta Valente, a
boca do novo mundo”, de autoria de Alessandra Colassanti, foram inicialmente publicadas no

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Instagram @ex_miss_febem, título inventado por Aleta Valente, cujo nome de registro é
Aleta Gomes Vieira.

Figura 1 - Ensaio de Aleta Valente

Fonte: Revista Nin, n. 2, p. 58.

No nível Pré-Iconográfico podemos observar do lado direito da figura acima, quatro


fotografias. A primeira da esquerda para a direita tem as cores branco, azul, vermelho e bege.
Tem a forma de uma calcinha, que parece estar com uma mancha.
A segunda imagem da esquerda par a direita, tem as cores amarelo, bege, vermelho,
preto e azul claro. Pode-se ver uma garrafa encostando um seio.
A terceira imagem, que está localizada no meio da página, tem tons de bege, preto,
marrom e branco. Ver-se o rosto de uma pessoa com a língua de fora, quase em contato com
os pelos de sua axila.
A quarta imagem, que está no final da página esquerda, tem tons de tijolo, branco,
bege, verde, cinza, preto e concreto. É possível ver uma pilha de tijolos com um portão atrás.
Na frente dos tijolos é possível ver a figura de uma pessoa ajoelhada com os braços apoiados
no chão. Do lado direito da imagem é possível ver uma página preta com um texto escrito em
branco e a frase “pelos, poses e apelos” escrita na vertical.
No nível Iconográfico, é possível ver que a primeira imagem é uma fotografia tirada
por Aleta Valente, possivelmente sentada no vaso sanitário, de sua calcinha abaixada na altura

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de seus joelhos, suja de sangue menstrual. Já a segunda imagem, trata-se do seio esquerdo de
Aleta sendo exposto, com a blusa levantada, como se estivesse “amamentando” uma garrafa
de Coca-Cola. A terceira imagem, mostra Aleta sentada em um banco de ônibus, com fones
no ouvido – uma cena aparentemente cotidiana, com a língua para fora, quase encostando em
sua axila esquerda, expondo seus pelos. Na quarta e última imagem, é possível ver Aleta
ajoelhada com as mãos apoiadas no hão, em frente à uma pilha de tijolos, usando camiseta
branca e boné na cabeça. Já do lado direito da imagem, ver-se o texto escrito por Letícia
Gicovate, que acompanha as imagens na matéria da Nin, com a frase “pelos, poses e apelos”
em destaque.
Aleta é uma artista formada em Belas Artes pela UFRJ, mãe precoce, moradora de
Bangu – região periférica do Rio de Janeiro, e nas palavras de Gicovate (2016, p. 59): “uma
gostosa, que um dia se cansou de carregar estigma nas costas e passou a esfrega-los na própria
cara, na bunda perfeita, nos peitos prontos e nos braços fortes de mãe”, que usa sua página no
Instagram como uma mídia, um meio de protesto artístico. Na primeira imagem ela mostra a
calcinha com sangue de menstruação, algo tradicionalmente escondido – um tabu em nossa
sociedade. Na segunda, Aleta mostra os seios de forma escrachada, fora do padrão sensual em
que eles geralmente são expostos. Na terceira, ela confronta padrões estéticos, expondo as
axilas peludas e, na quarta imagem. Assim, no nível Iconológico podemos ver que, Aleta
mostra sua realidade, a periferia do Rio de Janeiro em uma rede social conhecida pelos filtros
que visam justamente mascarar e manipular a realidade. Ou seja, na rede social conhecida
pela glamourização das imagens e da vida cotidiana, Aleta mostra sua realidade sem retoques,
sendo esta composta por periferia, axilas peludas e vulva menstruada.

Aleta converge seu corpo sujeito, objeto e suporte, tese e tubo de ensaio, artista e
ativista, modelo e fotógrafa, médica e medusa, musa e antimusa. Abre seu corpo, sua
carne, sua casa, sua cama, seu banheiro, seu fogão, seus amigos, seu cotidiano, seu
imaginário e mídias sociais dissecando, ressignificando e ponto à prova estereótipos,
tabus, os limites da rede e seus próprios (COLASSANTI, 2016, p. 63).

Assim, entende-se que, as imagens analisadas acima desconstroem diversos


estereótipos, como o da feminilidade delicada e passiva, do pudor da mulher em relação à
exposição do corpo, do seio da mulher como objeto sexual, da depilação obrigatória para as
mulheres, do Instagram como rede social que divulga apenas aquilo que é belo de acordo com
os padrões normalizadores. Assim, entende-se como a Nin pode ser interpretada como um
meio de difusão do queer, pois luta pelo fim da normalização e a favor das diferenças, da
liberdade.

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Figura 2 - Ensaio de Aleta Valente “L’origine du nouveau monde”

Fonte: Revista Nin, n. 2, p. 65.

No nível Pré-iconográfico é possível observar duas imagens iguais. A primeira é


menor e acompanha pedaços dela se repetindo. A segunda é maior e tem um ângulo mais
focado. Entre as duas imagens aparece escrito “L’origine du nouveau monde”. A respeito das
cores, ver-se tons de preto, bege, branco e vermelho. A imagem é a forma de uma pessoa
deitada com a barriga para cima e as duas pernas abertas, mostrando a vagina com sangue.
Já no nível Iconográfico, pode-se ver que se trata da fotografia que Aleta Valente
divulgou em seu Instagram, em fevereiro de 2016, e gerou repercussão nas mídias sociais. A
imagem mostra sua vagina exposta e supostamente menstruada. A frase “L’origine du
nouveau monde”, traduzida do francês como “A origem do novo mundo”, faz alusão ao
famoso quadro de Coubert, pintado em 1866 e foi colocada por Aleta, como legenda para a
fotografia de sua vagina.
Na interpretação iconológica é possível perceber que, a artista usou a imagem de sua
vagina para expor aquilo que é natural no ser humano, mas encarado socialmente como algo
estranho e repugnante – o que tem relação com o queer (MISKOLCI, 2015). Sobre a
publicação de Aleta, Colassanti (2016, p. 62) diz na Nin: “E, naquela manhã, muitas pessoas
ficaram confusas se aquilo era narcisismo, exibicionismo, guerrilha, piada, neurose ou

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poesia”. Entende-se que, não é comum ver a nudez feminina mostrando-se como algo natural
e expondo a menstruação. A nudez feminina é corriqueiramente explorada para apresentar a
beleza da mulher, de acordo com os padrões estéticos impostos socialmente, para servir como
objeto de desejo e consumo do homem. Com essa imagem, Aleta usa seu corpo e sua vulva
menstruada como meio de choque e ruptura do que é tradicional, moralista e convencional,
assim, transformando-se em instrumento de libertação do corpo da mulher, pois como afirma
Colassanti (2016, p. 64), colocar a vagina menstruada no Instagram é gritar pelos direitos da
mulher:

É dizer “eu sou mulher, a buceta é minha e eu faço o que eu quiser com ela”. É dizer
“eu sou mulher, o corpo é meu e eu escolho se quero mostra-lo, como quero gozar,
gozá-lo, se o quero gordo, magro, se quero fazer filhos, dar de mamar, dar, não dar
para quem dar, envelhecer, usar saia, usar barba, não usar. Não é a moral, nem os
costumes, nem os bons modos, nem a conduta burguesa, nem as regras estéticas,
nem o cânone, muito menos o Estado que vão decidir onde quando e como eu faço
uso do meu corpo” (COLASSANTI, 2016, p. 64)

Nesse momento, podemos pensar nas reinvindicações contemporâneas feministas em


relação à autonomia do corpo da mulher, que vão além da legalização do aborto (GOMES;
SORJI, 2014, p. 49). É possível compreender que Aleta clama pela liberdade da mulher
mostrar seu corpo, se quiser, sem que isso tenha um significado sexual. E mais do que isso,
que a mulher seja dona do seu próprio corpo e tenha autonomia para fazer com ele o que
desejar. Nesse sentido, é interessante refletir sobre os dados que Colassanti (2016, p. 62) traz
junto à matéria de Aleta Valente, na Nin:

A cada onze segundos uma menina tem seus órgãos genitais mutilados, e 140
milhões de mulheres sobrevivem a despeito dos clitóris ceifados com cacos de vidro,
a frio, a céu aberto, sem anestesia, em nome da cultura, de Deus, dos costumes e da
tradição (...) Sim, a interrupção da gravidez é considerada crime, e a cada uma hora
e meia um homem mata uma mulher no Brasil. E nessa coexistência estranha de
múltiplos tempos históricos, ingressamos na Idade do Deixa Ela em Paz. Ela quem?
Ela, a vulva, a vagina, a buceta. Ela, a boca do mundo” (COLASSANTI, 2016, p.
62).

Assim, entende-se o intuito deste ensaio para a revista Nin, que já alertou: “É preciso
ler Aleta dentro do campo das manifestações simbólicas. É esse o território de onde seu
discurso é emitido” (COLASSANTI, 2016, p. 62), ou seja, quando a Nin pede para deixar a
vagina em paz, ela diz para deixar a mulher em paz, os corpos femininos livres para que as
mulheres possam vivenciá-los como quiserem, sem que a moral, o Estado e as religiões
interfiram.

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Além disso, sendo a Nin uma revista de arte erótica e explorando esse universo,
entende-se que, seu objetivo é trazer o erotismo e a nudez além do campo da sexualidade, mas
sim nas diversas possibilidades de identidade e representação, ou seja, pela libertação dos
estereótipos normalizadores – como também propõe as epistemologias queer.

Considerações finais

Considerando a análise e o referencial teórico deste trabalho, acredita-se que o queer


pode ser encontrado na Nin, quando pensamos que a revista usa o choque, o estranho e o fora
do comum como meio de protesto político. Entende-se que, a Nin, assim como Aleta Valente,
usa a arte (arte erótica, no caso) como protesto político e reivindica por demandas de gênero.
A política queer acredita no gênero como algo cultural e, que o masculino e o
feminino estão presentes em homens e mulheres (MISKOLCI, 2015, p. 32), assim, entende-se
que este pensamento pode ser encontrado no ensaio de Aleta Valente, quando a artista
desconstrói o estereótipo do que é ser mulher, da feminilidade delicada. Além disso, os textos
de Letícia Gicovate e Alessandra Colasanti, que acompanham o ensaio, contribuem para
mostrar a ideologia da revista que luta pela libertação do corpo da mulher:

Aleta é uma artista visual radical, executando uma performance permanente com
fins de protesto, uma performance cotidiana com fins de crítica social, uma
performance em processo que confronta as normas culturais vigentes, com vistas a
uma transformação da realidade, a libertação do corpo da mulher, a dissolução da
ideologia machista dominante e o fim das minorias (COLASSANTI, 2016, p. 63).

Assim, quando Aleta Valente mostra os seios em seu Instagram aparentemente sem
motivo, assim como sugere o subtítulo da Nin: naked for no reason, ela proclama pela
liberdade da mulher mostrar seu corpo quando quiser e se quiser, sem que isso implique em
algo voltado para a sexualidade. Quando ela mostra a menstruação, trata de um lado humano e
natural do corpo da mulher que é renegado, encarado como algo nojento em nossa sociedade.
Entende-se que, tanto Aleta Valente, quanto a revista Nin – que fez a matéria sobre a
performance da artista, expõe o corpo e a sexualidade da mulher de forma ousada e fora dos
padrões, de maneira inaceitável dentro da cultura machista. A Nin mostra tudo o que a
sociedade misógina faz questão de castrar, por tanto, com uma nova forma de representação,
acredita-se que ela serve como instrumento de libertação do corpo da mulher e dos padrões
tradicionais de gênero.

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O reconhecimento da união homoafetiva sob a perspectiva da Lei Maria da


Penha
Julina Kiyosen Nakayama 1
2
Renata Braga da Silva

Resumo: O presente artigo tece algumas considerações sobre a importância do


reconhecimento referente ao alargamento do conceito de família, já realizado pela
Constituição Federal de 1988 e realizado pela primeira vez por uma lei infraconstitucional que
é a Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que por sua vez, redimensiona o entendimento legal
das uniões homoafetivas. Além disso, importante destacar que nessa nova perspectiva as
uniões homoafetivas são consideradas entidades familiares, que por assim ser, devem estar
agasalhadas sob o Direito das Famílias, conferindo maior isonomia e liberdade para os casais
homoafetivos. Nessa trilha o artigo deverá analisar a importância desse reconhecimento para a
concretização do casamento homoafetivo, traçando alguns aspectos sobre a evolução do
conceito de família no Direito das Famílias contemporâneo juntamente com a análise de
jurisprudências que reconhecem o casamento homoafetivo com todos os efeitos dados pelo
Direito familiar, além de discutir brevemente sobre a importância da criação de leis
infraconstitucionais que reconheçam efetivamente o casamento homoafetivo e todos os
direitos negligenciados para a população LGBTI.

Palavras-chaves: união homoafetiva; Direito das Famílias; Lei Maria da Penha

1
Professora Dr. Escritório de Aplicação de Assuntos Jurídicos - UEL; Mestre em Direito – UEL e Doutora em
Estudos da Linguagem - UEL; uelprofessorajuliana@hotmail.com.
2
Graduanda do 3º Ano de Direito - UEL ; Pós-Graduada em Ensino de Filosofia para o Ensino Médio - UNESP;
solcomchuva@msn.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p591 591


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Introdução

A Lei 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, nasceu diante da negligência
vivenciada por milhares de mulheres que sofriam agressões físicas e psicológicas de seus
pares no âmbito doméstico, traz uma nova perspectiva diante dos casos de violência
doméstica praticados contra as mulheres no Brasil, entre elas, está o afastamento do suposto
agressor do lar ou local de convivência com a vítima, a fixação de limite mínimo de distância,
o encaminhamento da mulher e de seus dependentes a programas oficiais ou comunitários de
proteção e atendimento, determina que o violência doméstica contra a mulher independente de
sua orientação sexual, entre outras mudanças.
Não é por acaso que está Lei tem o seu nome, visto que é uma gloriosa homenagem a
cearense Maria da Penha que lutou durante dezenove anos e seis meses para ver seu agressor
ser condenado e preso, após várias tentativas de aniquilar com sua vida, sendo que em uma
delas acabou deixando Maria com uma seqüela permanente da paraplegia dos seus membros
inferiores. Ainda hoje é uma figura de destaque na luta e resistência contra todo tipo de
violência feminina.
Segundo Teixeira e Moreira (2011, p.276), “a violência doméstica contra a mulher
era tratada como crime de menor potencial ofensivo, agraciando o agressor com os benefícios
da Lei 9.099/1995, a qual lhe impunha, quando muito, penas restritivas de direito de conteúdo
econômico (com o pagamento de cestas básicas) ou multas”. Nesse sentido, a Lei Maria da
Penha, em consonância a Constituição Federal de 1988, vislumbra uma série de dispositivos
regulamentares nos âmbitos do processo penal, administrativo, civil que podem ser utilizados
pelas mulheres no intuito de minimizar e coibir a violência ainda vivenciada nos redutos
domésticos.
Além disso, configura violência doméstica como está legalmente expresso no caput
do art. 5º, que diz:
Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais,
por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independente da coabitação.

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Verifica-se como o dispositivo descreve de forma detalhada o que caracteriza uma


convivência familiar, superando os conceitos reacionários que permeavam e ainda permeiam
o nosso Código Civil. Por exemplo, ainda existe a persistência em sacralizar a família e
preservar o casamento, percebe-se isso quando o Código Civil em seu art. 1542 diz que é
possível casar por procuração, mas quanto ao divórcio isso não é permitido, art.1.582.
É nesse sentido que além de criar formas de prevenção e punição da violência
doméstica e familiar a lei inova em trazer modernas concepções sobre o conceito de família.
Como ressalta Teixeira e Moreira (2011, p. 277) “pode-se afirmar, sem receio de errar, que a
Lei Maria da Penha representa um marco legislativo no direito brasileiro, por trazer
expressamente em seu texto o reconhecimento legal do conceito moderno de família, formado
por pluralidade de formas familiares e baseada no afeto.”
Além disso, a lei também preenche uma lacuna que existia na nossa legislação
infraconstitucional referente aos relacionamentos e famílias homoafetivas. Pois, no art. 5º, §
único, ressalta que: “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação
sexual”. Ou seja, pela primeira vez há um dispositivo legislativo que reconhece as relações
homoafetivas como sendo entidades familiares.
Esse reconhecimento é muito significativo para as pessoas que mantêm um
relacionamento com pessoas do mesmo sexo, pois há vários anos existe uma luta no Brasil
para que a sociedade e o direito reconheçam e respeitem essas uniões, sendo que essa
realidade apenas começa a ser discutida no âmbito jurídico a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988, que elenca cláusulas gerais de igualdade e vedatórias de
tratamento discriminatório.
Ressalta-se que o art. 1º, inc. III da CF/88 coloca como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, o que garante que todos
devem ter os seus direitos e as suas liberdades individuais plenamente assegurados, não sendo
vítimas de preconceito e exclusão por sua orientação sexual, etnia, condição econômica ou
gênero. Segundo Matos (2011, p.129) “há de conhecer-se a dignidade existente na união
homoafetiva. O conteúdo abarcado pelo valor da pessoa humana informa poder cada pessoa
exercer livremente sua personalidade, segundo seus desejos de foro íntimo”.
Sendo assim, reiteramos a importância que traz a Lei 11.340/2006 quando reconhece
a união homoafetiva como entidade familiar, pois reafirma a existência social dessa união,
que é fundada nos laços do afeto e companheirismo.
Nesse sentido, nada mais justo que essa união possa ser legitimada através da
possibilidade do casamento civil e seus direitos serem protegidos civilmente por todos os

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direitos decorrentes do Direito das Famílias. Como afirma Matos (2011, p.133) “o sistema
clássico prioriza a formalidade nas relações jurídicas. Configura-se uma família a partir do
estabelecimento de um vínculo formal, sendo a certidão do registro de casamento a prova
dessa união”.
Assim sendo, o objetivo dessa pesquisa é demonstrar como a Lei Maria da Penha foi
um marco essencial para o alargamento e entendimento do moderno conceito de família. O
que era apenas um entendimento hermenêutico realizados pelos dispositivos constitucionais
expressos no art. 226, §§ 3º, 4º e 7º, hoje já pode vislumbrar a materialidade desse
entendimento em uma lei, o que garante uma maior legitimidade nos entendimento dados nas
ações judiciais para o pedido do reconhecimento de casamento civil dos casais homoafetivos,
que já estão sendo reconhecidos pela jurisprudência como poderemos analisar.
Assim, foi realizada uma pesquisa qualitativa a fim de demonstrar como a Lei Maria
da Penha foi um marco importante para o reconhecimento das uniões homoafetivas como um
vinculo familiar que devem ter suas relações reconhecidas no âmbito civil através do
casamento. Para isso, foi utilizado um arcabouço teórico referenciando as pesquisas já
realizadas sobre o assunto e na análise de algumas jurisprudências que reconheceram o
casamento de casais homoafetivos.
Do matrimônio ao afeto – uma nova visão de família
É inegável o entendimento que a família vai além de um conceito sociológico e
jurídico. A família é uma entidade orgânica e histórica, que passa por transformações e
alterações no decorrer do tempo. Segundo Chaves (2012, p. 95) “A organização ou estrutura
do grupo familiar, a fisionomia da família, não se manteve a mesma ao longo do tempo e, ao
contrário, passou por mudanças e transformações com o passar dos séculos”. O que antes era
apenas um arranjo social para o fortalecimento do patrimônio e da garantia das descendências,
atualmente é compreendido pelo viés do afeto e da busca da satisfação pessoal, pautada nos
sentimentos de solidariedade, lealdade, respeito e cooperação. Nessa seara, o STJ cada vez
mais referencia paternidade e família como vínculo afetivo e não vínculo jurídico. Assim,
Dias (2006,p.35) “A cultura do início do século passado levou o legislador a emprestar
juridicidade apenas ao relacionamento matrimonializado, como uma verdadeira instituição,
geradora de vínculo indissolúvel”. O que estivesse fora desse patrão institucionalizado
também estava excluído das garantias legais assegurados pela lei.
No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, novos rumos e
entendimentos foram traçados em relação ao conceito de família. Entende Chaves (2012,

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p.103) “observa-se o aparecimento de uma sociedade mais justa, e os direitos fundamentais,


expressos no art. 5º, asseveram a interdição de toda e qualquer discriminação ou preconceito”.
Igualmente, o Direito das Famílias foi abarcado pela Constituição Federal dando
novos vieses interpretativos. Reitera Matos (2011, p.131) “O Texto Constitucional de 1988
tratou de dedicar atenção a algumas entidades familiares, não se restringindo a um modelo
unifamiliar voltado exclusivamente para o matrimônio, como fez a nossa primeira
Codificação Civil”.
No entanto, apesar dos avanços que trouxe a Carta Magna em relação ao
reconhecimento de outros modelos de família, nada está escrito quanto ao direito das relações
homoafetivas visto que os dispositivos ainda usam as expressões homens e mulheres. O
Código Civil de 2002 também somente faz referência a homens e mulheres, tanto na parte que
trata do casamento, como no dispositivo que regulamenta a união estável.
O título que trata da união estável no Código Civil de 2002 em seu art. 1.723 diz que
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Diante dessa omissão legislativa, coube ao poder judiciário a tutela dos direitos da
população LGBTI.
Segundo Dias (2011, p.251) “A omissão covarde do legislador infraconstitucional de
assegurar direito aos homossexuais e reconhecer seus relacionamentos, em vez de sinalizar
neutralidade, encobre grande preconceito”.
Diante da omissão do poder legislativo, o judiciário decidiu quanto às demandas que
buscavam direitos e reconhecimentos decorrentes das uniões homoafetivas. Durante muito
tempo a magistratura não deu razão às ações que traziam como fundamentos jurídicos as
normas do direito das famílias, indeferindo a petição inicial, sendo considerado impossível o
pedido do autor, pois os casamentos com pessoas do mesmo sexo eram inexistentes para o
mundo jurídico. Quando havia algum reconhecimento, a competência para julgar era das
varas cíveis, pois as uniões homoafetivas eram compreendidas como sociedade de fato, para
que pudesse ter efeito pelo menos de ordem patrimonial.
Ou seja, enquanto as questões referentes a casamentos heteroafetivos eram tratadas
em Varas de Família, os de relações homoafetivas eram tratadas em Varas Cíveis por estas
serem entendids como sociedade de fato.
Segundo Dias (2011, p.252):
“A primeira decisão que reconheceu a união homossexual como entidade
familiar é do tribunal gaúcho. O julgamento teve enorme repercussão, pois

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retirou o vínculo afetivo homossexual do direito das obrigações, em que era


visto como simples negócio, como se o relacionamento tivesse objetivo
exclusivamente comercial e fins meramente lucrativos. Esse equivocado
enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não
conseguia ver a existência de um vínculo afetivo na origem da relação”.

Esse entendimento foi revisto em maio de 2011 quando o STF se manifestou sobre a
matéria através do julgamento da (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental)
ADPF 132 e da (Ação Direta de Inconstitucionalidade) ADI 4.277 que equiparou a união
homoafetiva com os mesmos direitos das uniões estáveis heterossexuais. A partir desse
entendimento, a competência para julgamento das causas envolvendo uniões homoafetivas
passou a ser a vara de família e não mais as varas cíveis, corrigindo um erro que se perpetuava
no judiciário, visto que se trata de afetividade familiar.
Mesmo antes dessa decisão, vale ressaltar a decisão pioneira da Justiça do Rio
Grande do Sul em junho de 1999 que julgou procedente a vara de família para julgar uma
causa envolvendo relacionamento homoafetivo.

RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO


DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS
FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. EM SE TRATANDO
DE SITUAÇÕES QUE ENVOLVEM RELAÇÕES DE AFETO, MOSTRA-
SE COMPETENTE PARA O JULGAMENTO DA CAUSA UMA DAS
VARAS DE FAMÍLIA, A SEMELHANÇA DAS SEPARAÇÕES
OCORRIDAS ENTRE CASAIS HETEROSSEXUAIS. AGRAVO
PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 599075496, Oitava Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Breno Moreira Mussi, Julgado em
17/06/1999)

Apesar de ainda não existir nenhum dispositivo legislativo infraconstitucional, a não


ser um entendimento extensivo da CF/88 que pudesse amparar a decisão do TJ/RS, os
desembargadores entenderam que o caso deveria ser julgado pela vara de família por se tratar
de um caso que envolvia o pedido de separação da sociedade de fato de um casal homoafetivo
envolvendo todos os requisitos existentes em relação a um casal heterossexual, ou seja, como
disse o relator do caso o Desembargador Breno Moreira Mussi “...as partes dividiam cama,
mesa, proventos, amor, solidariedade, companheirismo e mais outros sentimentos inerentes
aos casais homossexuais”. Reconhecendo que a formação de uma família supera os critérios
estabelecidos em lei, e que modernamente os sentimentos de afeto, respeito e lealdade são
preponderantes para o estabelecimento do conceito de família.

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Mesmo antes da decisão da ADI 4.277 e da ADPF 132 da Suprema Corte, a Lei
Maria da Penha, em um ato progressista, reconheceu os novos modelos de família existente
que tem como escopo as relações fundadas no afeto e na busca da felicidade.

Uma breve análise sobre as repercussões da decisão do STF após o julgamento da ADI
4.277 e da ADPF 132

Segundo o art. 5º da CF/88 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade”.
Destarte, cabe destacar que todas as pessoas merecem ser amparadas pela lei independente da
sua orientação sexual. Tendo em vista o princípio da igualdade de direitos e deveres, o
principio da dignidade humana, não faz sentido negar aos LGBTIs o desfrute de todos os
direitos correspondentes as pessoas heterossexuais. As sociedades em geral passaram por
diversas transformações em decorrência das transformações tecnológicas, sociais, culturais e
econômicas vivenciadas pelo mundo afora nos últimos tempos. O direito ainda não consegue
acompanhar essas transformações na mesma velocidade, no entanto, as discussões e
transformações devem acontecer. Como foi o caso do reconhecimento das uniões
homoafetivas.
O direito já havia avançado no reconhecimento de diferentes tipos uniões que
surgiram no decorrer dos anos, legalizando inclusive a união estável. Como consta no art.
226, § 3° da Lei: “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”.
E isso foi reconhecido também no Código Civil de 2002 que estabelece no art. 1.723:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição
de família”.
No entanto, nada foi dito em relação às uniões homoafetivas, o que levou a
Procuradoria Geral da República ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.
4.277 para pleitear o reconhecimento da união estável para as pessoas do mesmo sexo. Esse
também foi o objetivo do governo do Rio de Janeiro ao ajuizar a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, alegando que o não
reconhecimento da união homoafetiva maculava os direitos fundamentais da pessoa humana

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contidos na Constituição Federal. Essa ADPF teve perda parcial de objeto e foi recebida como
ADI. As duas ações foram analisadas conjuntamente no dia 05 de maio de 2011, sendo
publicada no dia 14 de outubro do mesmo ano. Os Ministros reconheceram a
inconstitucionalidade do não reconhecimento das uniões homoafetivas como instituto
jurídico, estabelecendo uma interpretação constitucional ao art. 1.723 do Código Civil, o que
na prática permitiu a união estável das pessoas do mesmo sexo, sendo que essa decisão teve
efeito erga omnes e vinculante, ou seja, valendo para todos os casos com o mesmo pedido de
regularização das uniões homoafetivas para uniões estáveis.
Essa decisão confirmou o que estava tentando ser comprovado desde a Lei Maria da
Penha, que é a nova interpretação sobre o conceito de família. A união estável estabelece as
mesmas garantias do casamento civil quanto a direitos. Nesse sentido, não existe mais porque
as uniões homoafetivas serem consideradas sociedades de fato, excluindo uma parte
significativa das pessoas devido a sua orientação sexual.
Essa decisão possibilitou que relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo
pudessem ser reconhecidos como união estável, garantindo e efetivando os direitos
estabelecidos por esse instituto jurídico.

APELAÇÃO CÍVEL. PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO


VOLUNTÁRIA. REGISTRO PÚBLICO. CONVERSÃO DE UNIÃO
ESTÁVEL EM CASAMENTO. RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO.
POSSIBILIDADE. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE
PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 132 E AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4277. EFICÁCIA ERGA OMNES E
EFEITO VINCULANTE. RECONHECIMENTO PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO
ENTIDADES FAMILIARES. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO
CÓDIGO CIVIL CONFORME A CONSTITUIÇÃO. RECOMENDAÇÃO
CONSTITUCIONAL CONFERINDO À UNIÃO ESTÁVEL
HOMOAFETIVA OS MESMOS DIREITOS E DEVERES DOS CASAIS
HETEROSSEXUAIS. (Apelação N.0079881-41.2012.8.19.0021, Primeira
Câmara Civil, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Relator Des. José
Carlos Maldonado de Carvalho, Julgado em 02/07/2013)

No entanto, tanto a Constituição Federal no seu art. 226, § 3. ° como o art. 1.726 do
Código Civil, deixam claro sobre a possibilidade de a união estável ser convertida em
casamento: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos
companheiros ao juiz e ao assento no Registro Civil”.

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No entanto, muitos cartórios estavam negando o registro das uniões entre pessoas do
mesmo sexo alegando que não sabiam como proceder, e isso levou a judicialização da
questão. No estado do Rio de Janeiro houve decisões favoráveis, tal qual a que segue:

Rio de Janeiro – Constitucional. Mandado de segurança. Direito de família.


Habilitação para casamento. Casamento homoafetivo. Possibilidade.
Coerência do texto. Constitucional. Precedentes do TJRJ. 1. O STF, guardião
da Constituição Federal, reconheceu, por decisão unanime, em maio de
2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, ao afirmar que o artigo
1.723 do Código Civil não poderia ser lido em sua literalidade e estendendo
o conceito de família também à união de pessoas do mesmo sexo. 2.
Seguindo a mesma linha de raciocínio e como o STF determinou o
reconhecimento da união estável homoafetiva tem as mesmas consequências
da união estável heteroafetiva, o STJ, recentemente por maioria de votos,
reconheceu a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. 3. E
não poderia ser diferente, já que a expressão “homem e mulher” utilizada
pela Constituição Federal no artigo 226, §3º, e pelo artigo 1723 do Código
Civil, foi afastada pela decisão do STF, que tem efeito vinculante e eficácia
ergaomnes. 4. Princípio da máxima efetividade ou da eficiência do texto
constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê” –
inexistência de lacuna legislativa. 5. O reconhecimento do casamento
homoafetivo deriva do princípio da máxima efetividade do texto
constitucional e se apoia na violação de princípios constitucionais como o da
dignidade humana, da liberdade, da não discriminação por opção sexual, da
igualdade, e principalmente, no texto constitucional que confere à família a
especial proteção do Estado. 6. Inexistência de impedimento para o
casamento. Parecer pela concessão da ordem. (TJRJ, Proc. nº 0001957-
80.2013.8.19.0000, 12ª C. Cív., Rel. Des. Lucia Maria Miguel da Silva
Lima, j. 11/06/2013).
Diante disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 175/2013
que dispõe sobre a habilitação da união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Segundo (Monteiro, 2011) notícia do CNJ do dia 11 de maio de 2018 ao menos 19,5 mil
casamentos homoafetivos foram celebrados desde a edição da Resolução n. 175/2013, do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Com todos esses dispositivos não existe mais dúvidas sobre o reconhecimento das
uniões homoafetivas serem entidades familiares que devem ser tutelas pelo Direito das
famílias. Ainda assim existe muito caminho a ser percorrido, pois há um entrave quanto à
aprovação de uma lei que regularize definitivamente as uniões homoafetivas. O que garante
sua existência no mundo jurídico é a interpretação jurisdicional realizada por todo esse
marcos jurisdicionais apresentados nesse trabalho. No entanto, a interpretação jurisdicional é
passível de modificação de forma muito mais volátil que uma lei ou uma emenda à
Constituição que sedimenta o direito das pessoas em relações homoafetivas. Sendo que, no

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aspecto da lei infraconstitucional apenas a lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, apresenta um
dispositivo que reconhece a união homoafetiva como entidade familiar.

Considerações finais
Diante do que foi exposto, verificamos que a equiparação das uniões homoafetivas as
uniões estáveis heterossexuais com a possibilidade dessa união ser convertida em casamento
civil foi árdua e ainda depende da jurisprudência para ser provida, pois o poder legislativo
coloca na gaveta os diversos projetos sobre o tema existente atualmente na casa legislativa.
Um deles, o Projeto de Lei do Senado Federal n. 612, de 2011 da senadora Marta Suplicy
propõe a alteração dos arts. 1.723 e 1.726 do Código Civil, para permitir o reconhecimento
legal da união estável das pessoas do mesmo sexo. Essa alteração se daria com a supressão
das palavras homens e mulheres, colocando „duas pessoas‟, o que afasta a concepção binária
feminina e masculino para a realização do casamento.
Apesar da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, reconhecer as uniões homossexuais
como entidades familiares, o que demonstra o avanço e a sensibilidade do legislador quanto às
mudanças existentes na formação familiar da contemporaneidade, formações essas que
compõe um mosaico de diversidade e estruturas.
Ainda existe um grande caminho a ser percorrido para a superação do preconceito.
Dados recentes mostram que o aumento da violência de pessoas homossexuais e transgêneros
aumentou 30% de 2016 para 2017. Segundo (Souto, 2018) o jornal O Globo a cada 19 horas
um LGBT é assassinado ou se suicida em virtude da “LGBTfobia” o que torna o Brasil
campeão de morte desse tipo de crime.
Não podemos deixar esses dados se perpetuarem, nem que os direitos adquiridos com
tanta luta sejam recuados, levando um retrocesso histórico e social no nosso país. Ignorar a
existência da diferença e permitir que a desigualdade e a injustiça permaneçam. O direito
sobre o corpo, o sexo é um direito personalíssimo, e não deve ser mantido à margem da lei, a
justiça deve garantir a liberdade de todas as pessoas exercerem e vivenciarem sua
personalidade de maneira segura e de forma legitima. Acreditamos que muito já foi superado
e que muito ainda há de ser feito. O debate não pode ser cessado para que as mudanças
possam acontecer.

Referências:
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de ago. de 2006. Lei Maria da Penha. Brasília – DF. 2017.

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CHAVES, Mariana. Homoafetividade e Direito: Proteção Constitucional, Uniões, Casamento


e Parentalidade. Curitiba: Juruá, 2012.

DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. Porto Alegre: Livraria
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MATOS, Ana Carla Harmatiuk. O conceito de família na Lei Maria da Penha. In: DIAS,
Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos
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Agência CNJ de notícias. Distrito Federal, 11 mai. 2018. Disponível em: <
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86781-em-tres-anos-cartorios-registraram-19-5-mil-
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Entre a escravidão sexual e o estupro: uma análise da prostituição como instrumento


da dominação masculina

Caroline dos Santos Coelho3


Alessandra Benedito 4

Resumo: Confrontando as premissas estabelecidas acerca da prostituição como a profissão


mais antiga do mundo, envolta por mera moralidade, este artigo tem por finalidade analisar a
prostituição a partir da perspectiva dos instrumentos de dominação masculina em função da
hierarquia entre os gêneros masculino e feminino. Procura-se, através da interpretação de
dados em articulação com teoria, expor os modelos teóricos e suas perspectivas jurídicas
acerca da prostituição, estabelecendo o diálogo entre trabalho e exploração sexual. A partir de
tal diálogo, analisa-se a prostituição como intrinsecamente violenta às mulheres.
Palavras-chaves: Prostituição; Sexualidade; Instrumentos de dominação masculina.

3Universidade Presbiteriana Mackenzie; Discente da Graduação em Direito na Universidade Presbiteriana


Mackenzie, campus Campinas, São Paulo; carolinedscoelho@gmail.com

4Universidade Presbiteriana Mackenzie; Docente e Coordenadora da Graduação em Direito da Universidade


Presbiteriana Mackenzie, campus Campinas, São Paulo; ale.bened@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p602 602


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ISSN 2177-8248
Introdução

O debate sobre a prostituição pode se dar a partir de diferentes óticas de estudo e


ocorre tanto a partir de noções do senso comum quanto nos campos do direito do trabalho e
em diferentes perspectivas do movimento feminista.
Neste artigo será debatida exclusivamente a prostituição feminina, uma vez que
quando falamos em prostituição, a associação automática é a do homem como comprador e da
mulher como a pessoa em situação de prostituição. Segundo a fundação francesa Scelles, que
luta contra a exploração sexual, de fato, a grande maioria das pessoas em situação de
prostituição (75%) são mulheres com idades entre 13 e 25 anos.
Historicamente, a prostituição é tratada como o ofício que resta às mulheres em
situação de miséria. Na obra Os Miseráveis, em que a personagem Fantine, esgotados todos
os demais meios de sobrevivência, acaba na prostituição, Victor Hugo chega a afirmar que a
escravidão continua sendo uma realidade, “mas agora pesa somente sobre a mulher e é
chamada prostituição”. Entre os clássicos do cinema de Hollywood, não faltam mulheres na
situação de prostituição em busca de um cliente que se case com ela e a faça socialmente
respeitável novamente.
Ademais, dentro do movimento feminista há grande divergência entre a visão da
prostituição como uma profissão tomada por estigmas morais, que necessita da tutela do
direito para garantir que lhes sejam estendidas as proteções relativas às relação de trabalho, e
a visão da prostituição como um meio de violência contra as mulheres decorrente da
supremacia masculina.
Assim, o intuito deste trabalho é debater a prostituição em si, com suas implicações
sociais e jurídicas, demonstrando as consequências da prostituição para as mulheres enquanto
classe dentro da estrutura das sociedades patriarcais.

A prostituição como fruto da escravidão

O entendimento popular expõe a crença na prostituição como a profissão mais antiga


do mundo, de modo que sua contestação se depara inevitavelmente com tal suposto fato
histórico, que perpetua a ideia de que a prostituição é inerente à todas as sociedades e tempos
históricos. Ocorre que as origens da prostituição não remontam à mera escolha, em uma

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esfera de ampla liberdade, mas sim do sistema de escravidão; não de uma escolha das pessoas
prostituídas, mas, sim, das pessoas que decidiram aliciar, via de regra mulheres, para
comercialização de seus corpos e sexualidade.
Assim, num primeiro momento, a prostituição por meio da escravatura, ao mesmo
tempo em que era fruto da sujeição sexual da mulher face ao homem e da defesa do direito ao
prazer do homem, era também apenas um dos aspetos da redução de uma pessoa à condição
de escravo. No texto A Escravatura branca lê-se o seguinte:
Pode dizer-se que a mulher foi o primeiro ser humano, que conheceu a
escravidão, e pôde acrescentar-se que foi escrava ainda antes de haver
escravatura. (…) Uma escravidão, que dura centenares de anos, torna-
se um habito, e a hereditariedade e a educação fazem que as duas
partes interessadas considerem a escravatura da mulher como uma
cousa natural. (…) Toda a opressão tem por ponto de partida a
dependência económica, em que o oprimido se encontra com relação
ao opressor. É o que se tem dado com respeito à mulher (…) (SOUSA,
1896, pp. 8-9).

Nesse sentido, a naturalização da prostituição é reforçada pelo mito se sua


inevitabilidade, ignorando o proxenetismo para que seja possível manter o sentimento de que
a prostituição não pode ser superada. Assim, Janice Raymond discorre que:
A tentativa de fortalecer um sistema de prostituição, recorrendo a sua
suposta inevitabilidade, apela a uma história patriarcal em que as
mulheres são os objetos, não sujeitos. Como com qualquer argumento
que invoca validação histórica, devemos perguntar quem são seus
beneficiários. A prostituição não é a profissão mais antiga. Ser
proxeneta é. O único fato inevitável sobre a prostituição são os
proxenetas que vendem mulheres e crianças para o sexo da
prostituição e os homens que o exigem. (RAYMOND, 2013, p. )

É a partir de tal premissa que são expostas as semelhanças entre a escravidão racial e
a escravidão sexual. Tais semelhanças são reveladas a partir da análise dos discursos
favoráveis e contrários à abolição da escravidão negra. Isto pois os que eram contrários à
abolição da escravidão negra defendiam práticas de regulamentação por parte do Estado, de
modo que fosse criado não só um sistema de normas mas sim a estrutura de um “setor
econômico”. Os ataques eram destinados ao tráfico de escravos e não à escravidão em si,
sendo apenas o primeiro considerado como um problema social, do mesmo modo que, no que
diz respeito à escravidão sexual, as críticas limitam-se ao tráfico de pessoas e à prostituição
forçada, nunca à prostituição.
Entretanto, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas, designado para acompanhar a
Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outros
de 1949, declarou a prostituição como uma forma contemporânea de escravidão. Mas este

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entendimento não é pacífico. Assim, de acordo com as diferentes visões sobre a prostituição,
foram elaborados modelos que visam afirmar o seu caráter e suas perspectivas.

Principais modelos e perspectivas acerca da prostituição

Nesse contexto, mulheres feministas sustentaram os primeiros movimentos em prol


da abolição da prostituição, sendo Josephine Butler precursora de tais campanhas,
denunciando o sistema de prostituição como “uma classe de mulheres criadas e
regulamentadas para ministrar aos apetites sexuais dos homens”. Foram estas feministas que
se opuseram ao sistema de “limpeza” feminina que submetia forçadamente mulheres
consideradas “imorais” a exames médicos invasivos e degradantes, que estigmatizavam como
prostitutas até mesmo as mulheres que não estavam em situação de prostituição.
Margaret Jackson, destaca a atuação de Butler:
“Ao desafiar a ideologia essencialista da necessidade sexual
masculina, ela atacou o sistema de valores (ainda) reinante de que a
prostituição é necessária e inevitável. Ela era muito clara ao
expressar que uma economia social e política da sexualidade
impulsionava, principalmente, as mulheres pobres e operárias a
venderem seus corpos para a sobrevivência financeira,
principalmente para os homens de classe média e alta, uma
economia para a qual os homens eram os
responsáveis.” (JACKSON, 1994, p. 25)

Assim, o movimento abolicionista se atreve a ser utópico, defendendo que um


mundo sem prostituição é possível é viável. Afastando-se de sentimentos conformistas, aposta
que a abolição da prostituição é uma consequência inevitável caso o feminismo seja bem
sucedido. Isto pois, a derrubada do patriarcado abre o caminho para uma sociedade em que a
opressão sexual de mulheres e meninas seria coerentemente intolerável.
Num contexto contemporâneo, o modelo nórdico, também conhecido como
“abolicionismo sueco”, é considerado inspirado nas raizes do abolicionismo tradicional,
embora recorra ao Direito Penal para punir tanto o proxenetismo como a clientela da
prostituição, com o intuito de coibir a demanda pelo comércio do sexo. Surgida na Suécia, a
Lei do Comprador do Sexo trabalha com a ideia de criminalização unilateral: torna comprar
serviços sexuais infração penal, com o intuito de atingir a demanda que impulsiona o tráfico
sexual, ao passo que discriminaliza todas as pessoas em situação de prostituição, oferecendo

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serviços de apoio para que deixem a prostituição, acompanhada de uma campanha
educacional em larga escala.
Dessa forma, tal modelo tem o intuito de modificar a cultura de comercialização de
mulheres, afirmando sua prejudicialidade por meio de sanções penais, que devem
desencorajar a compra de mulheres para sexo e o tráfico sexual. Por sua vez, as políticas
públicas devem ser oferecidas sem margem para julgamentos e incluir o acesso à moradia,
treinamento e educação adicional, creches, aconselhamento jurídico e apoio psicológico a
longo prazo.
Embora reflita a realidade em uma minoria de países, como os Estados Unidos e
alguns países do Oriente Médio, a criminalização da prostituição, sendo a figura da prostituta
estigmatizada.
Em contrapartida, a Anistia Internacional orienta desde 2015 que os países legalizem
a prostituição, oferecendo o status de profissão. É demonstrada uma mudança de linguagem,
utilizando termos mais amenos, tais como “profissional do sexo” e “trabalho sexual”. A
legalização cumpriria o papel de retirar o estigma da atividade de sexo remunerado,
combatendo a discriminação e exclusão, em defesa da liberdade e responsabilidade
individual, bem como o direito à livre escolha da profissão. Com o reconhecimento da
prostituição como mera profissão, as profissionais do sexo poderiam usufruir de benefícios
trabalhistas, enquanto as casas de prostituição teriam o mesmo tratamento legal que qualquer
outro comércio. Tal ideologia se concretizou no chamado “modelo germânico”, tendo sido
implementada na Alemanha em 2002 a lei que equiparava a prostituição a qualquer outra
profissão.

Prostituição: trabalho ou exploração sexual? Diálogos entre a teoria marxista e


feminista

Por trabalho, toma-se toda a produção humana em torno de sua sobrevivência; o ser
humano se apropria da natureza e a modifica para suprir suas necessidades. É a partir desse
primeiro sentido dado ao trabalho, que Marx defende o trabalho como inato à existência do
homem. Nesse sentido, expõe que:
“[...] a existência [...] de cada elemento da riqueza material não existente na
natureza, sempre teve de ser mediada por uma atividade especial produtiva,
adequada a seu fim, que assimila elementos específicos da natureza a
necessidades humanas específicas. Como criador de valores de uso, como

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trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem,
independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de
mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida
humana.” (MARX, 1985, p.50)

A partir de tal premissa é que Marx determinará, para além, a natureza dupla do
trabalho, nas noções consolidadas como trabalho concreto e trabalho abstrato, que se
identificam, respectivamente, como “trabalho-vivo” e “trabalho-morto”. Isto pois o trabalho
concreto é aquele presente em todas as formas de organização humana e que, mesmo sob o
controle do capitalismo, cria valores de uso essenciais para satisfação das necessidades
humanas. Por sua vez, o trabalho abstrato, deixa de ser uma atividade com o qual o ser
humano se identifica, produzindo valor de uso apenas se diante de um valor de troca.
Entretanto, não é a partir de tais conceitos que é construído o pensamento marxista
acerca das mulheres prostitutas, mas sim a partir do conceito de lumpemproletariado. Como
membros dessa classe degenerada, não útil para o processo revolucionário da classe
proletária, Marx inclui:
“os vagabundos, soldados dispensados, prisioneiros libertos, escravos fugidos
de navios, malandros, charlatões, lazarentos, punguistas, trapaceiros,
jogadores, cafetões, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de
realejo, trapeiros, amoladores de faca, funileiros, mendigos – em suma, toda
a massa indefinida, desintegrada, jogada aqui e acolá, denominada pelos
franceses de a boemia” (MARX, 1851-1852, p.149).

Apesar disso, a prostituição em si só será abordada explicitamente na obra de Engels,


A Origem da Família, da Propriedade e do Estado. Assim, discorre que:
“quanto mais o heterismo antigo se modifica em nossa época pela
produção capitalista à qual se adapta, mais se transforma em franca
prostituição e mais desmoralizadora se torna a sua influência. E, na
verdade, desmoraliza mais os homens do que as mulheres. A
prostituição, entre as mulheres, degrada somente as infelizes que a ela
se dedicam, e mesmo a estas em um grau muito menor do que se
costuma acreditar. Em compensação, envilece o caráter do sexo
masculino inteiro” (ENGELS, 1884, p.85)

Para além da perspectiva moral, que, na visão de Engels, envolve tanto os homens
como as mulheres que se dispõe à mercantilização da sexualidade, é trazida a afirmação do
homem como “consumidor da prostituição” e da mulher em situação de prostituição como
“infeliz” e “degradada”.
Nesse contexto, Catharine MacKinnon enfim constrói o diálogo entre marxismo e
feminismo ao afirmar que “a sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o
marxismo: aquilo que é mais próprio de alguém, porém, aquilo que mais lhe é retirado”. Ao

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tratar da objetificação sexual como o processo primário de sujeição da mulher, MacKinnon
analisa a distinção entre objetificação e alienação:
“Objetificação no materialismo marxista é concebido como sendo o
fundamento da liberdade humana, o processo laboral por meio do qual o
sujeito se encarna em produtos e relações. Alienação é a distorção
socialmente contingente do processo, uma reificação dos produtos e das
relações que os impedem de serem, e de serem vistos como, dependentes da
agência humana. Porém do ponto de vista do objeto, objetificação é
alienação. Para as mulheres, não há distinção entre alienação e objetificação
porque mulheres não têm sido autoras da objetificação, nós temos sido a
objetificação. As mulheres têm sido a natureza, a matéria, aquilo sobre o que
se atua, submetidas pelo sujeito atuante buscando encarnar-se no mundo
social. Reificação não é apenas uma ilusão para o reificado; é também a sua
realidade.” (MACKINNON, 1982, p. 808)

Assim, quando se fala em corpo como mercadoria, que se traduziria por reificação,
tem-se em vista que, na prostituição, o usufruto do corpo como objeto para satisfação sexual
do comprador é uma condição intrínseca ao ofício. Reitera-se a relevância de se falar em
reificação visto que a prostituta não é monetariamente remunerada na condição de prestadora
de serviço, mas na condição de quem aluga seu corpo como uma mercadoria destinada ao
prazer masculino, inclusive no prazer masculino pela violência contra a mulher.

Confrontando a prostituição a partir da noção de instrumentos de dominação

De acordo com um estudo feito pelo Ministério da Família da Alemanha em 2004,


82% das mulheres que atuam como prostitutas dentro do modelo germânico mencionaram
sofrer violência psicológica e 70% das prostitutas sofreram violência física, sendo que 92%
alegam ter sofrido violência sexual. Ao mesmo tempo, os relatórios do Ministério da Família
apontam que a legalização “não trouxe nenhuma melhora real mensurável na cobertura social
das prostitutas".
Isto pois a igualdade jurídica proporcionada pela elevação da prostituição ao status
de profissão não é capaz de modificar a estrutura hierárquica entre gêneros que sustenta as
sociedades patriarcais, de modo que a violência na prostituição não é mitigada pela
legalização da prostituição, mas sim elevada, pois a misoginia que lhe é intrínseca ganha
ainda mais força dentro da esfera de prestação legal de serviços.
É como livres possuidores de sua força de trabalho que os homens participam do
mercado capitalista. E mesmo gozando do status de homem livre, tal liberdade se revela a
liberdade de ser explorado. Tal como no capitalismo, na prostituição há a ideia de liberdade.
Liberdade de ter sua sexualidade explorada não só pela figura do comprador, mas pelo

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sistema que sustenta a indústria do sexo. Entretanto, quando trata-se do trabalho alienado dos
homens, o fato de receberem algum dinheiro pelo seu trabalho não transforma a experiência
deles em uma experiência prazeirosa. Ao contrário, pensamos que sua qualidade de vida
deveria ser melhor e que não deveria se submeter a tal condição para sobreviver.
No contexto da prostituição, Susan Sontag questiona:

“Para desfrutar qual sexualidade há que se liberar a mulher? Meramente


remover o ônus colocado sobre a expressividade sexual da mulher é uma
vitória vazia se a sexualidade para a qual se tornam mais livres para desfrutar
permanece a mesma velha sexualidade que converte as mulheres em
objetos... Esta sexualidade ‘mais livre’ reflete em boa parte ideia espúria de
liberdade: o direito de cada pessoa de, em poucas palavras, explorar e
desumanizar alguém. Sem uma transformação das próprias normas da
sexualidade, a liberação da mulher é um objetivo sem sentido. O sexo como
tal não é libertador para a mulher. Tampouco é mais sexo”. (SONTAG, 1973,
p. 180-206.)

Importante afirmar que a prostituição se estabelece num comércio criado por homens
para satisfazer homens, que obtém lucro à custa da exploração das mulheres, seja como
proxenetas, como donos de casas de entretenimento erótico ou como diretores de filmes
pornográficos. Conforme afirma Andrea Dworkin:

“Se é necessário que uma classe inteira de pessoas seja tratada com crueldade
e indignidade e humilhação, colocada em uma condição de servidão, de
modo que os homens possam ter o sexo que eles pensam que têm direito,
então é o que acontecerá. Essa é a essência e o significado da dominação
masculina. Dominação masculina é um sistema político. [...] Assim, em
diferentes culturas, as sociedades são organizadas diferentemente para
alcançar o mesmo resultado: não somente as mulheres são pobres, mas a
única coisa de valor que uma mulher tem é sua assim chamada sexualidade,
que, junto com o seu corpo, tem sido transformada em um produto vendável.
(DWORKIN, 1992, p. 3)

Na concepção defendida por Dworkin, a prostituição está inserida na noção de


instrumentos de dominação masculina, que se perpetuam ao longo do tempo e do espaço de
diferentes maneiras. Tais instrumentos, como o estupro, o incesto, o controle de natalidade,
assédio sexual e, até mesmo, a visão do lesbianismo como uma perversão, garantem que a
mulher seja subjugada diante da sociedade patriarcal. Em paralelo, encontramos a indústria do
sexo, que traz a pornografia, o erotismo e a prostituição como liberdade.
Apesar de a indústria do sexo se utilizar do argumento da liberdade sexual feminina,
estrutura-se na premissa de que o sexo é uma necessidade masculina. Tal necessidade dialoga
com a construção da sexualidade exacerbada do homem, frente à negação da sexualidade

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feminina, como uma ausência; a construção da sexualidade feminina se dá exclusivamente
sob o ponto de vista masculino, para sua excitação.
Nesse sentido, Emma Goldman afirma que:
“É um fato sabido que a mulher é criada como uma mercadoria, ainda que
seja mantida em absoluta ignorância sobre o significado e a importância do
sexo. Tudo o que diz respeito a esse assunto é suprimido e as pessoas que
tentam iluminar essa terrível escuridão são perseguidas e atiradas na prisão.
No entanto, apesar de tudo, é verdade que se uma garota é mantida na
ignorância sobre como cuidar de si mesma, desconhecendo a função da parte
mais importante de sua vida, não deveríamos nos surpreender se ela se torna
uma presa fácil da prostituição, ou de qualquer outra forma de relação que a
degrade à posição de objeto de mera gratificação sexual.” (GOLDMAN,
1909, p. 7)

Dessa forma, a prostituição só pode ser tolerada dentro de uma sociedade em que
prevaleça a hierarquia entre gêneros, que é justamente sustentada por instrumentos de
dominação que assegurem a supremacia masculina. Nesta lógica, apenas com a superação da
estrutura patriarcal, que reduz as mulheres à condição de classe inferior, subjugada por meio
da construção de uma sexualidade que atende apenas a classe dos homens, é que podemos
falar na completa abolição das prostituição.
Abolir a prostituição inclui sonhar um mundo em que as mulheres possam de fato
desfrutar da sexualidade de modo não violento e coercitivo. Ou como diz a letra do hino de
Mujeres Libres escrita por Lucía Sanchez Saornil, escrever de novo a palavra mulher.

Conclusões

A prostituição deve, portanto, ser concebida como intrinsicamente misógina, uma


vez que só existe a partir da construção da sexualidade feminina em função da satisfação
masculina. Isto pois, nas sociedades patriarcais, as mulheres são socializadas de modo que sua
sexualidade seja afirmada apenas diante do sexo oposto.
Embora a defesa da legalização da prostituição vise a liberdade sexual da mulher, tal
liberdade se revela ainda a liberdade de ser explorada, a partir de uma estrutura de
desigualdade, a qual chamamos reiteradamente de patriarcado.
Cumpre ressaltar que não é o direito enquanto ciência normativa que irá ditar, de
fato, a realidade das mulheres que tem sua sexualidade explorada, mesmo que supostamente
dentro de uma esfera consensual como a do contrato. Portanto, um debate feminista que
contemple a emancipação das mulheres frente à dominação masculina inclui,

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necessariamente, a abolição de todos os instrumentos de manutenção da supremacia
masculina, entre eles a prostituição.

Referências

DWORKIN, Andrea. Discurso no simpósio intitulado "Prostituição: Da Academia ao


Ativismo," patrocinado pelo Michigan Journal of Gender and Law, realizado na Universidade
de Michigan Law School, 31 de Outubro, 1992. Disponível em: <http://
antipatriarchy.wordpress.com/2009/03/10/prostituicao-e-supremacia-masculina>. Acesso em:
19 mar. 2018.

MACKINNON, Catherine A.. Feminismo, Marxismo, Método e o Estado: uma agenda para
teoria. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 15, p.798-837, 2016. Tradução: Juliana
Carreira Ávila; Juliana Cesario Alvim Gomes.

OLIVAR, José Miguel Nieto. Prostituição feminina e direitos sexuais...: diálogos possíveis?.
Sexualidad, Salud y Sociedad: Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n. 11, p.88-121, ago.
2012. Disponível em: <http:www.redalyc.org/articulo.oa?id=293323029005>. Acesso em: 23
mar. 2018.

PEDROSO, Vanessa Alexsandra de Melo. O Pecado Feminino: do exercício e da exploração


da sexualidade na prostituição feminina. Revista Ciências Jurídicas Sociais, Umuarama, v.
12, n. 2, p.439-449, jul./dez. 2009.

PEDROSO, Vanessa Alexsandra de Melo. Exercício ou exploração?: O eterno dilema da


sexualidade na prostituição feminina. Derecho y Cambio Social, [Lima, Peru], n. 39, p.01-14,
01 jan. 2015. Disponível em: <www.derechoycambiosocial.com>. Acesso em: 02 abr. 2018.

RAYMOND, Janice G.. Not a choice, not a job. Massachusetts: Potomac Books, 2013.

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Ciranda das Cores: Psicologia e resistência

Eduardo Barbosa de Freitas1


Hemilli Luana de Lima2
Valéria Mendonça Barreiros3

Resumo: O presente trabalho visa apresentar o projeto de extensão e campo de estágio básico
em Psicologia vinculada à Universidade Pitágoras Unopar, denominado Ciranda das Cores:
Psicologia e Cultura popular como dispositivos de saúde e defesa de direitos. O projeto se
materializa através de uma ação desenvolvida junto ao Coletivo Elitytrans, formado por
transexuais e travestis, que compõe a Rede de Proteção e Garantia de Direitos da População
Trans em Londrina. Esta rede, criada no final do ano de 2017, é composta pelo Coletivo
Elitytrans, Defensoria Pública do Paraná em Londrina, pesquisadores, profissionais de
diferentes serviços públicos, e voluntários. A Ciranda das Cores destina-se ao atendimento
psicossocial à população transexual e travesti, através da articulação entre a Psicologia
Corporal, Psicologia Social Comunitária e Artivismo, objetivamos esse trabalho como um
novo dispositivo, tendo a Psicologia e a Cultura Popular transdisciplinarmente articuladas na
reinvenção do cuidado como potência agenciadora de singularidades no processo de
construção da cidadania. Esse encontro se dá a partir de corpos vibráteis/brincantes, onde a
energia de vida circula na força do canto, do movimento e da roda. Roda que potencializa
saberes e poderes. A Ciranda das Cores possui encontros semanais onde dançamos, tocamos,
compomos cirandas, resistimos a uma sociedade transfobica nos sentindo inebriados pela
potência política da arte. Segundo Rolnik (2004,2007) nossa sociedade colonizada e
capitalista nos distanciou do contato com os conhecimentos tradicionais e com nossa potência
criadora, para ela a resistência está no próprio ato de criação. Pensamos em nosso
encontro/produção como um ativismo, onde nossos corpos ganham força como ativistas e

1
Universidade Pitágoras UNOPAR; graduando em Psicologia; edu_barbosa_freitas@hotmail.com.
2
Universidade Pitágoras UNOPAR; graduando em Psicologia; limahemilli@gmail.com
3
Universidade Pitágoras UNOPAR; professora no curso de Psicologia; especialista em Gestão de Políticas
Públicas para Crianças e Juventude; vabarreiros@hotmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p612 612


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cidadãos/cidadãs que atuam no espaço público. Ao partirmos da concepção do corpo como


multiplicidade - corporeidades -, podemos visualizar tanto suas inscrições históricas, quanto
suas possibilidades de resistência. Conclui-se que a possibilidade de resistência às transfobias
e seus desdobramentos passa pelo resgate do movimento de invenção e criação no corpo, e a
Ciranda das Cores pode ser um caminho possível nessa direção. Esperamos como resultado
dessa ação, e do exercício do Artivismo, uma ação social e politica que utiliza da produção
artística em forma de militância na intenção de ser disparador de reflexões diante da realidade
da população transexual e travesti.

Palavras-chaves: Psicologia; Transexualidade; Ciranda.

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Introdução
O presente trabalho pretende trazer reflexões iniciais de graduandos em Psicologia,
acerca da Ciranda das Cores, projeto de extensão do Curso de Psicologia da UNOPAR, que
propõe a perspectiva de um atendimento psicossocial a população de travestis e transexuais de
Londrina. Tem por objetivo criar um espaço de articulação entre a Psicologia
Corporal/Bioenergética e a Cultura popular através de Grupo de Movimento e Ciranda,
pretende ainda, contribuir para a defesa de direitos e promoção integral à saúde da população
transexual e travesti.
Ao trazermos a perspectiva da integralidade da atenção à saúde da população trans,
reconhecemos que a orientação sexual e identidade de gênero são fatores de vulnerabilidade
para a saúde. De acordo com Peres (2015) os estudos sobre as sexualidades, as relações de
gênero participam dos modos de subjetivação das pessoas, considerando as imagens,
discursos e sentidos que são construídos no seu contexto histórico diante de vivencias e
experiências, estabelecendo um modo de explicação de mundo e de relações.
A inscrição de gêneros - feminino ou masculino - nos corpos é feita, sempre, no
contexto de uma cultura e, portanto, como marcas dessa cultura. As possibilidades
da sexualidade das formas de expressar os desejos e prazeres - também são
socialmente estabelecidos e codificados. As identidades de gêneros e sexuais são,
portanto, composta e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de
poder de uma sociedade. (Louro, 1999, p. 11)

De acordo com os dados apresentados pela ANTRA (Associação Nacional de


Travestis e Transexuais) mostram que só no ano de 2017 foram 179 assassinatos de Mulheres
Trans, Travestis e Homens Trans, e o Brasil é uns do país onde mais mata essa população no
mundo e a cada 48 horas uma travesti ou transexual é morta, no ano 2018 já foram 69
assassinadas até o dia 21/05/2018. E é na intenção de colaborar com a construção de cuidado
e defesa dessa população que se objetiva esse trabalho.
A Ciranda das Cores acontece em uma okupação cultural denominada como Canto do
MARL, espaço de resistência do Movimento de Artistas de Rua de Londrina (MARL)
movimento que surge em 2012 com a intenção de agregar artistas de todas as áreas que
realizam seu trabalho em espaços públicos. Pretende ainda propositar discussões artísticas e
politicas, principalmente à cidade de Londrina. Possibilita também troca de experiências e
informações que promove parcerias para ações político/culturais e intercambio entre artistas
londrinenses e movimentos culturais no Brasil.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p612 614


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O coletivo Elitytrans é um dos coletivos que faz parte MARL, uma de suas
fundadoras é Melissa Campos4, ativista LGBTI, com propósito de reivindicar direitos
enquanto cidadãos, lutar por visibilidade e contra a transfobia e consequentemente buscar
empoderamento, causando reflexões na sociedade.
O coletivo desejava fazer uma nova militância, as (os) integrantes não queriam apenas
uma militância tão ligada a Hiv/Aids e entregas de camisinhas, pensavam e queriam ampliar
estas questões com uma militância que tivesse outros formatos, foi então que decidiram fazer
teatro, palco para reivindicar e problematizar questões políticas, com foco na temática de
gênero. Essa nova postura de militância se apresenta como Artivismo, conceito que
trataremos logo mais.
As integrantes do coletivo junto com o Herbert Proença5, pensaram em estratégias
para agregar pessoas trans e travestis para o movimento, sendo que as estratégias nada mais
eram que oficinas de teatro e ao fim de cada oficina, havia um bate-papo para discutir sobre o
acontecimento e partilhar experiências.
Inicialmente, o coletivo não pensava que houvesse a necessidade de montar uma peça
de teatro, mas sim, cenas que seriam usadas como atos políticos pela cidade, assim, aqui já se
percebe o caminho da arte na defesa de direitos. Dessa forma nasce uma das principais
estratégias de atuação, que através de apresentações artísticas principalmente cênicas,
levavam aos diversos cantos a discussão acerca das questões de gênero e transfobia, por nós
aqui identificada como Artivismo .
Em um dossiê sobre Artivismo da Revista Cult de agosto de 2017, Colling (2017), traz
a emergência de artistas e coletivos artivistas que se desenvolve na atualidade e se dá por
alguns razões, dentre elas estão o crescimento de estudos de gênero e sexualidade no Brasil,
em especial os ligado a perspectiva queer, o acesso as tecnologias e as redes sociais; a
ampliação da temática LGBT nas mídias em geral, e o aumento da visibilidade e das
identidades trans.
O ato de manifestação é denominado de ativismo /artivismo e discute questões
referentes ao mundo social, político, cultural e artístico, alguns autores consideram como arte
envolvida ou arte política. A arte e política, ambos têm autonomia e diversos instrumentos de
ação, ao trabalharem juntas ou em áreas semelhantes pode possibilitar uma série de novos
significados. Segundo Chaia, a arte politica pode ser compreendida a partir destas relações:

4
Melissa Campos: Artivista e Militante nas áreas da Saúde e Direitos Humanos, Atriz e Produtora Cultural.
5
Herbert Proença: Docente de Psicologia na universidade Unopar Pitágoras, Artista, militante e artivista.

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A compreensão da relação entre arte e política deve não apenas visar às


circunstâncias históricas, mas também levar em conta as múltiplas concepções sobre
o significado da politica na arte. As diversidades de conceituação da política podem
ser compreendidas numa larga faixa que vai da sua imediata identificação com o
social, o coletivo, o público conforme a tradição clássica e até as abordagens em
torno da prática do sujeito. (CHAIA, 2007, p.19)

Ao percebermos essa estratégia tão potente, pensamos em uma ação que pudesse
transversalmente articular cuidado em saúde, defesa de direitos e arte, que nesse cenário se
materializa com a junção da Psicologia Corporal e as tradições populares.
Desta forma o objetivo deste projeto é trabalhar a autonomia dos participantes,
trazendo potencialidade aos corpos para lutar pelos seus direitos. Trabalhamos com o
referencial teórico da Psicologia Corporal que é uma abordagem que buscar entender o ser
humano como um ser repleto de energia entre o psiquismo (mente) e o corpo. Busca ainda
compreender, como o indivíduo manifesta sua subjetividade e interação com o outro, e de
como será a manifestação energética da mente sobre o corpo, e o corpo sobre a mente. Com
intenção, que o indivíduo se encontre e sabia perceber a sua própria energia e
consequentemente seus pensamentos e emoções, obtendo uma vida saudável.
O projeto Ciranda das Cores traz a perspectiva de aliar o grupo de Movimento
Emocional e a tradição Popular da Ciranda, para tanto iremos trazer inicialmente alguns
conceitos importantes da Psicologia Corporal.
Wilhekm Reich (1897 - 1957) foi o percursor da psicologia corporal. Era médico e
psicanalista vienense e discípulo de Freud, que ao romper com a psicanálise criou sua própria
escola. Reich compreende que o ser humano é repleto de energia, e denominou a energia de
orgone. Segundo’’ Volpi e Volpi (2003, p. 02)’’: é uma energia que preenche todo o espaço
cósmico e se expressa em diferentes concentrações, movimento e forma.
Quando Reich era psicanalista ao lado de Freud, não entendia porque alguns pacientes
não conseguiam alcançar a ‘’ cura’’ diante dos métodos de análise tradicional. Afirmou-se
então, de que no modo de análise tradicional o terapeuta perdia contato de alguns
comportamentos típicos de cada pessoa, por exemplo, o modo de falar, gesticular, etc. Diante
dessa necessidade, levou Reich a atender os seus pacientes de forma que o terapeuta esteja
sentado enfrente a ele, olho a olho, sendo assim seria, mas eficaz intervir sobre processos
psíquicos do atendido. E desta forma que surgiu a técnica de análise do caráter.
Conforme ‘’ Volpi e Volpi (2003, p. 02)’’: o caráter de uma pessoa se forma com base
nos bloqueios sofridos nas etapas do desenvolvimento psico-emocional.

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Um trabalho sistemático orientado ao corpo, que coloca em evidência os processos


emocionais do indivíduo, permitindo a este que se expresse através de gestos,
posturas, tom de voz, etc. Partindo da análise do caráter, uma operação psíquica que
procede de acordo um plano definido, desenvolvendo a partir da estrutura peculiar
do paciente. ‘’. (Volpi e Volpi, p.4, 2003 apud Reich, 1995).

Diante a esse trabalho sistemático, Reich descobriu a couraça muscular, tensões


crônicas que vão se formando ao longo da vida do individuo, a função da couraça é defender
o individuo de experiências negativas que causam sofrimento. Desta forma a análise do
caráter deixou de ser uma terapia somente psicológica, e atribui-se a trabalhar com o corpo
em conjunto com o psiquismo (mente).

A partir das concepções da teoria reichiana, encontramos na Bioenergética idealizada


na década de 1950 por Alexander Lowen, uma abordagem neo-reichiana que tem como
objetivo o resgate da natureza primária que é a condição do organismo de ser livre, gracioso e
belo.
A bioenergética é uma técnica terapêutica que ajuda o indivíduo a reencontrar-se
com o seu corpo, e a tirar o mais alto grau de proveito possível da vida que há nele.
Essa ênfase dada ao corpo inclui a sexualidade, que é uma das funções básicas. Mas
inclui também as mais elementares funções de respiração, movimento, sentimento e
auto-expressão. O indivíduo que não respira corretamente reduz a vida de seu corpo.
Senão se movimenta livremente limita a vida de seu corpo. Se não se sente
inteiramente, estreita a vida de seu corpo e, se sua auto-expressão é reduzida, o
indivíduo terá a vida de seu corpo restringida. (LOWEN, 1982, p.38-39)

Em todos os níveis de desenvolvimento da vida, a bioenergética acredita que há uma


energia em cada movimento do corpo, sentimentos e pensamentos. Através da respiração
ocorre aumento do nível de energia, diante dos movimentos proporcionando a auto-expressão
e restaurando os sentimentos corporais. Segundo Volpi e Volpi (2003) ‘’a Análise
Bioenergética, se dá sobre o funcionamento energético atual do individuo e sobre a sua
história de vida, acreditando que ambos estão correlacionados’’.
Nossa proposta aqui, não se refere a processos psicoterápicos e muito menos a partir
de um viés psicopatologizante. Trabalhamos a partir de princípios da Análise Bioenergética,
e utilizamos a técnica do Grupo de Movimento Emocional que foge dos padrões tradicionais
de uma psicoterapia. Seu objetivo é direcionar o/a participante ao conhecimento do seu corpo,
sensibilizando-o na busca do desenvolvimento de sua consciência de si. Conforme Gama e
Rego (1994), ‘’ buscar literalmente conscientizar o inconsciente, querendo trazer à tona o
material recalcado, tira-lo da toca de seus esconderijos corporais e também tentamos resgatar
a vitalidade e o bem-estar. ‘’.
Mas que corpo é esse:

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Quando se fala em corpo, na bioenergética, fala-se em respiração, em movimento, em


sentimento, em auto-expressão, em sexualidade. É através do corpo, superando as
barreiras impostas pelas restrições que se desenvolvem como forma de sobrevivência,
que se chega à liberdade, à graça e a beleza. A liberdade é a ausência de restrição a
sentimentos e sensações, a graça é a capacidade de expressão e a beleza é a harmonia.
(VOLPI & VOLPI, 2003, p 21)

O Grupo de Movimento Emocional é uma estratégia de intervenção grupal que


consiste em proporcionar às pessoas vivências que ajudem a amenizar tensões físicas e
emocionais, favorecendo segundo Gama e Rego (1996), a percepção de si, a vitalidade, o bem
estar e a expressividade. Tem por objetivo levar o participante a um processo de
sensibilização e conscientização corporal, melhorando sua percepção de si e do outro. Busca-
se ainda recuperar a vitalidade e o bem estar, resgatando a capacidade de expressão através da
desinibição, do aumento da autonomia e do desbloqueio emocional. É um trabalho preventivo
e, psicoprofilático, pois dá ao sujeito a possibilidade de um autoconhecimento através da
própria linguagem expressiva do organismo. Caminha-se assim à espontaneidade e à descarga
energética e emocional.

O objetivo é ajudar cada participante a fazer um maior contato com seu próprio
corpo, amplificar as sensações corporais, a torna-se consciente das tensões
musculares e dos bloqueios existentes em seu corpo e, trabalhando com movimentos
e respiração num processo bem grupal, buscar sua liberação. O resultado que
esperamos chegar com este processo é um fluxo mais livre e energia no corpo, o
qual traria consigo um sentimento mais intenso de estar vivo, que por sua vez,
aumentaria nos participantes a capacidade de sentir prazer. (Gama; Rego, p. 18,
1994 apud Green, 1990)

A partir dessa breve colocação sobre a Psicologia Corporal, iremos agora trazer
algumas considerações sobre a Ciranda, para ao final deste artigo compreender a potência
desse encontro.
A ciranda é uma dança típica brasileira, muito comum em danças de roda infantil
porém, no nordeste e principalmente em sua cidade de origem no litoral Pernambucano na
ilha de Itamaracá, devido as mulheres de pescadores que cantavam e dançavam a espera de
seus maridos chegarem do mar. Uma das representantes mais conhecida entre os
cirandeiros/cirandeiras é a Lia de Itamaracá.
A ciranda assim como a coco de roda, era mais dançada nas ruas e nos terreiros de
casa de trabalhadores rurais, e depois começaram a sair para as praças, avenidas, ruas, afirma
Gaspar (2009). A ciranda é uma dança comunitária e não faz discriminação quanto a raça,

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gênero, idade e situação financeira e não há uma quantidade limite de números de


participantes, quanto mais pessoas participarem melhor e mais divertido fica cirandar.
O projeto é desenvolvido por meio de oficinas semanais, o público alvo tem sido
homens e mulheres trans, seus familiares e/ou companheirxs. Contamos com a colaboração
militante de alguns percussionistas e musicistas que trabalham a construção de nosso cantar e
tocar. No primeiro momento da oficina realizamos os exercícios propostos pelo Grupo de
Movimento Emocional, e a seguir soltamos nossos corpos na Ciranda. Os exercícios
bioenergéticos potencializam e acordam nossos corpos que ao bailarem a Ciranda trazem a
alegria de existir.
Enquanto tocamos e dançamos, olhamos nos olhos uns dos outros e desta forma
algumas histórias são contadas e outras tecidas!
Entre os exercícios de bioenergética e a dança temos momentos de conversa que trazem a
riqueza dos encontros ali facilitados, trocamos histórias e construímos mundos possíveis.

Considerações finais.

Assim, pensamos na potência desse encontro também como uma estratégia de saúde
mental e empoderamento de corpos na luta por seus direitos. A população trans muitas vezes
(e literalmente) tem seus corpos negados, escondidos e mutilados pela violência da transfobia,
assim adotamos o artivismo como estratégia política, pois nossa Ciranda pretende dançar pela
cidade, em feiras, eventos culturais e acadêmicos, trazendo a leveza de corpos potentes.
Essa sabido que as organizações da sociedade civil tem desempenhado um papel
fundamental para construção de políticas públicas e pensando sobre o trabalho de base do
coletivo Elitytrans poderemos nos aproximar de demandas dessa população
Pensamos que a Ciranda das Cores, enquanto um projeto cultural pode dar visibilidade
às pessoas trans deslocando-as de seus cantos de dor para cantos de luta numa sinergia de
corpos rodopiando pela cidade.

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Referências

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de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e Travestilidade na saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, 2015.

CHAIA, Miguel. Arte e Política. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2007.

LOURO, G.L. (1999). Pedagogias da Sexualidade. In_____. (Org.) (1999). O Corpo


Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte. Autêntica.

LOWEN, A. Bioenergética.3°ed. São Paulo:Summus, 1982

MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: Arte Ativista e ação coletiva. São Paulo:
Annablume Editora, 2011.

PERES, Wiliam Siqueira. Travestis Brasileiras: dos estigmas a cidadania Curitiba: Juruá,
2015.

ROLNIK, S. "Fale com ele" ou como tratar o corpo vibrátil em coma. In: FONSECA, T e
ENGELMAN, E. Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

COLLING, Leandro. Artivismo das dissidências sexuais e de gênero. Apresentação do


Dossiê, Revista Cult. Ano 20, N 226, Agosto, 2017.

ROLNIK, S. Memória do corpo contamina museu. Revista Concinnitas. v. 1, n. 12, Rio de


Janeiro,2010. Disponível em:<http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/concinnitas/article/view/22811>. Acesso em17 maio, 2018.

GASPAR, Lúcia. Ciranda. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso 17 maio, 2018.

<https://antrabrasil.org/mapa-dos-assassinatos/>. Acesso 15 abril, 2018.

VILAS BOAS, Alexandre Gomes, A(r)tivismo: Arte + Política Ativismo- Sistemas Híbridos
em Ação, 312f. Dissertação de Mestrado em Artes- Universidade Estatual Paulista, São Paulo,
2015.

VOLPI, José Henrique; VOLPI, Sandra Mara. Psicologia Corporal – um breve histórico.
Centro Reichiano, Curitiba,2003. Disponível em: <http:/www.centroreichiano.com.br >.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p612 620


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Cárcere: suas concepções e marcas concebidas pelos homens ex-detentos


da cidade de Ponta Grossa – PR a partir da vivência de suas diferentes
territorialidades

Dimas Diego Gontarek1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo compreender como os egressos do sistema
penitenciário da cidade de Ponta Grossa interpretam a experiência do cárcere a partir das
vivências territoriais no interior da instituição prisional. Como fio condutor, utilizou-se o
conceito de território concebido por e a partir das relações de poder (SOUZA, 2009), criando
sobre uma malha diferentes pontos de acesso e limites diferenciado pelo sujeito que o acessa,
num processo dinâmico de apropriação e desconstrução. Para auxiliar na compreensão da
questão central foram elaboras questionamentos específicos no qual buscam compreender
qual é o perfil dos detentos da cidade de Ponta Grossa e como o cárcere é interpretado pelo
grupo. Para isso, foram realizadas 7 entrevistas semi-estruturadas com homens egressos do
sistema penitenciário da cidade de Ponta Grossa, resultantes de uma trajetória de pesquisa
vinda desde a iniciação científica e sistematizado a partir do método proposto por Bardin
(1970). Além disso, foram utilizadas fontes estatísticas de órgãos oficiais em relação a
dinâmica que tange a população carcerária. A pesquisa evidencia que o cárcere é
majoritariamente composto por homens de origem pobre, com baixa escolaridade e sem
qualificação profissional, com crimes de baixa periculosidade e em grande parte relacionados
com o tráfico de drogas e contra o patrimônio. Além disso, o cumprimento da pena é vivido
de forma diferenciada de acordo com o perfil de masculinidade que homem exerce durante o
cumprimento de suas penas, podendo ser agravado o sofrimento da pena de forma desigual
por aqueles que compõem o espaço carcerário.

Palavras-chaves: cárcere; território; masculinidades.

Introdução
Atos criminosos são constantemente presenciados ao decorrer de nossas vidas. Suas
características se desenvolvem nas mais variadas formas. Fato transversal em todos esses
acontecimentos é a forma com que esses atos ilícitos serão cobrados, caso isso venha a
ocorrer, ou seja, qual a maneira mais justa dos autores desses atos arcarem com os prejuízos
ocasionados, nisso, a prisão é uma das primeiras imagens a surgir em nossa cabeça.

1
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Mestrando Gestão do Território. Email:
gontarek.dimas@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 565


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Concomitantemente com o debate realizado sobre a violência realiza-se também o


debate em relação a efetividade punitiva dessas instituições, o seu caráter ressocializador ou
os seus efeitos sobre a pessoa presa e sobre a comunidade em geral. Kropotkin, anarquista e
pensador político russo, já em 1897 apontava que ‘as prisões extingue no homem todas as
qualidades que o torna um ser próprio para a vida social’ (KROPOTKIN, 1897, pg, 11).
A ciência geográfica pouco vem se preocupando em analisar as geograficidades dessas
instituições e as vivências das pessoas que passam por essa experiência. Contextualizando a
produção científica desta temática dentro da ciência geográfica, utilizando como instrumento
de pesquisa o banco de dados dos dois principais órgãos científicos nacionais disponibilizados
em meio digital, a saber, o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia(IBICT)2 e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES)3, encontrou-se no total apenas 7 dissertações e 2 teses enquadrados na área de
conhecimento 'Geografia', 'Geografia Humana' ou 'Geociências'.
Esta baixa produção de reflexões sobre as prisões no âmbito da geografia brasileira
pode ser vista enquanto um tema ainda pouco discutido, não se constituindo enquanto um
objeto de interesse da análise científica e fazendo parte de um discurso ausente e silencioso
dentro da geografia brasileira (SILVA, 2009). Essa despretensão geográfica de análise se
constitui enquanto paradoxal na medida em que dados disponibilizados pelo Institute for
Criminal Policy Research4, localizado em Londres, apontam que no Brasil nos últimos 17
anos, houve um crescimento de 257% na taxa de encarceramento populacional, dinâmica que
a geografia não vem se preocupando em incluir em seu hall de debate e reflexão.
Desta forma, este artigo surge como possibilidade de contribuir com esse importante
debate e também expandir o leque teórico referente às análises da geografia humana. Na
primeira parte será discutido o conceito de território fazendo referência às dinâmicas internas
da prisão levando em consideração a fala dos sujeitos pesquisados que contribuíram com
entrevistas semi-estruturadas e que nos levou a aceitar o conceito de território como o mais
apropriado. Em seguida, será exposto o perfil dos detentos da cidade de Ponta Grossa
egressos da Cadeia Pública Hildebrando de Souza e/ou da Penitenciária Estadual de Ponta

2
Disponível em:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Resultslookfor=cC3%A1rcere&type=AllFields&filter%5B%5D=format%3Adaa
sddada%22masterThesi22&limit=20&sort=relevance <. Acessado no dia 10/5/2018.
3
Disponível em: >http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses<. Acessado no dia 10/05/2018.
4
Disponível em: >http://www.prisonstudies.org/<. Acessado no dia 10/05/2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 566


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Grossa, ambas instituições de regime fechado. Por fim, serão tratados as espacialidades e
categorias discursivas a partir da análise de conteúdo de suas falas proposto por Bardin (1970)
resultantes do processo investigatório.

Uma compreensão geográfica sobre o cárcere


Evidenciou-se durante o processo de campo exploratório, que a vivência carcerária em
que esses homens são sujeitos é composta e influenciada por diversas relações de conflitos,
limites, fronteiras, controle de acessos e domínios de corpos. Por conta disso, optou-se por
escolher o conceito de território enquanto fio condutor, por esse apresentar em seu conteúdo
embasamentos que permitem fortalecer a discussão teórica do fenômeno em questão.
A concepção de território utilizada neste trabalho é aquela permeada por relações de
poder, ou seja, resultado de uma ação hierarquicamente organizada por diferentes grupos que
imprimem no espaço relações de distâncias e acessibilidades distintas, na qual, 'ordena sobre
o espaço um sistema de controle sobre aquilo que pode ser distribuído, alocado e/ou possuído
pelos diferentes atores que se inserem nesse contexto' (RAFFESTIN, 1993, pg. 151).
Neste sentido, a instituição prisional em seu contexto contemporâneo ao mesmo tempo
em que é resultado da ação direta do Estado na busca por impor punições sobre aqueles que
em algum momento cometeram atos intransigentes, é transformada cotidianamente a partir da
organização dos próprios detentos, aplicando a partir disso estratégias paralelas ao controle
estatal, como podemos visualizar no seguinte trecho de entrevista:
'Depois que o PCC colocou ordem na cadeia pra não ter mais o uso de crack,
não pode ter agressão um com o outro, só pode pegar uma pessoa se o cara
esteja devendo alguma coisa pro crime, se o cara for devedor, aí eles dão o
aval pros cara pegar o cara. Agora você tirar uma satisfação com outro cara,
sendo que até você pode ter uma treta lá da rua, só que você não pode levar
isso pra dentro da cadeia, a treta de você deve ser resolvido lá na rua, la
dentro você tem que ter o respeito um pelo outro. Se você briga com um
cara, você agride ele você já ta no erro.' (Trecho de entrevista realizada com
Rastaman em Julho de 2017).

Esse fato nos permite ligar a realidade encontrada em campo com as reflexões de
Marcelo Lopes de Souza no qual afirma que toda modificação feita sobre um espaço de
primeira natureza (SANTOS, 1999) que implique sobre esse, diferentes formas de acesso,
modifique seu meio natural, transforme suas características orgânicas em matéria
sistematicamente organizada, que cria distinções entre diferentes grupos, produz

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constantemente insides e outsides (SOUZA, 2009), são por si só, características de um


território ou de uma territorialização.
Souza (2009) influência na concepção a cerca do território na medida em que introduz
sobre este uma mobilidade e construção muito mais complexa do que aquela fixada em sua
definição inicial. Em sua concepção, a dinâmica territorial pode ser exercida através de
diferentes grupos nos mais variados contextos, levando também em consideração o momento
histórico que ocorre determinado fenômeno. Para ele, territórios podem existir nas mais
variadas escalas, se contrapor e coexistir de maneira simultânea, sobrepondo-se de maneira
dinâmica e nunca de forma acabada.
Em Ponta Grossa essa dinâmica de relações de poder distintas que criam
territorialidades também podem ser encontradas na medida em que verificamos espaços de
exclusão determinados para aqueles sujeitos que tem um perfil de conduta que não se
enquadrada entre os perfis aceitos pela maioria dos detentos. Esse perfil pode variar de acordo
com o crime cometido, orientação sexual, aproximação com a administração da instituição,
etc. Essa dinâmica pode ser verificada no trecho de entrevista abaixo:
'Dae então é tudo separado. Tem a galeria das bicha, tem a galeria dos
jaguara, galeria dos trabalhador, galeria dos malandro. Jaguara são os
cagueta, cagueta é os jaguara! E dae tem aqueles outros que não convive por
que as vezes é boca dura, sabe, tudo que você vai falar com o cara, o cara
"não cara, vai se fuder", o cara é mais isolado assim sabe, o cara quer ser
mais cocozinho na malandragem mesmo sabe, quer ser mais cocozinho ali o
cara já fica separado também, fica lá na galeria dos playboy por exemplo'.
(Trecho de entrevista realizada com Vida Loka, em maio de 2015).

Podemos perceber que para esses sujeitos a vivência territorial da prisão se dá de


forma ainda mais limitada do que o restante do grupo, pois se limitam a vivenciar somente um
recorte imposto pelo maioria dos detentos que compõem a vivência interna deste ambiente,
sendo esse um poder paralelo ao Estado, que muitas vezes dita o que é permitido e constrói
sobre a prisão limites de acessos e separação entre diferentes grupos independente do controle
estatal.
Seguindo essa linha de reflexão, podemos definir o cárcere, em específico, a Cadeia
Pública Hildebrando de Souza, sendo essa vivenciada pelos entrevistados, um território
punitivo composto por outras territorialidades, sendo essas, resultantes de um complexo jogo
de relações de poder de um grupo paralelo ao Estado, que aplica sobre o espaço carcerário,
uma dinâmica particular de vivência, buscando facilitar o cotidiano de suas penas na medida

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do possível, e de outro lado, impondo sobre a pena de um grupo determinado uma carga extra
de limitação e castigo além daquela prevista na forma constitucional da lei estatal.
Caracterizado o fio condutor teórico que tange esse trabalho, partimos agora para o
perfil das pessoas que vivenciaram esses territórios punitivos no Estado do Paraná e na cidade
de Ponta Grossa, para está em específico no ano de 2016, momento em que foram coletados
os dados.

O perfil dos homens encarcerados na cidade de Ponta Grossa


Em primeiro lugar a população carcerária nacional é majoritariamente constituída por
pessoas do sexo masculino. Segundo o Mapa do Encarceramento (2015), das 515.482 pessoas
privadas de liberdade no nosso país no ano de 2012, 93% eram homens. Segundo o
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (2014), das 28 mil
pessoas privadas de liberdade no estado do Paraná, 93% são homens. A similaridade no valor
desses indicadores servem para nos apontar que a dinâmica do sistema penal paranaense não
se configura enquanto isolado ou desconectado do restante do Brasil, fazendo parte de uma
estrutura que se reflete a nível nacional.
Para elaborar o perfil dos detentos da cidade de Ponta Grossa foi utilizado o relatório
elaborado pelo Núcleo de Estudo e Acompanhamento das Execuções de Pena na Vara de
Execuções Penais na Comarca de Ponta Grossa, sendo esse um documento elaborado entre os
anos de 2014, 2015 e 2016 que utiliza como recorte a Penitenciaria Estadual de Ponta Grossa
e sistematiza as informações de faixa etária, escolaridade, perfil profissional e tipo penal em
relação ao número total de detentos dentro dos anos mencionados.
Em relação a Cadeia Pública Hildebrando de Souza, outra instituição penal de regime
fechado localizado na cidade de Ponta Grossa a dinâmica encontrada na fase de campo
exploratório foi outra. Em conversa com o vice-diretor, esse argumentou que a falta de um
sistema informacional de cadastro, a baixa quantidade de funcionários, a sobrecarga de
trabalho e o grande volume de entrada e saída diária de novos detentos, impossibilitava a
sistematização dos dados solicitados para o número total dos custodiados, que na época
somava a quantia total de 762 presos em um estabelecimento projetado para suportar 283
pessoas. Entretanto, a administração da instituição preocupada em contribuir com a presente
pesquisa, nos forneceu dados de faixa etária, tipo penal e escolaridade de 20 detentos
escolhidos de forma aleatória, podemos perceber que o perfil dos detentos homens

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 569


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custodiados na cidade de Ponta Grossa não se distancia das características em relação ao


restante do país. Podemos perceber que em relação a idade, esse perfil consiste se tratar de
homens jovens, em sua maioria (50,6%) entre 18 e 29 anos. Podemos perceber também que
massivamente a população carcerária atual não possui o ensino fundamental completo,
somando um total de 71,4%. Além disso, são enquadrados enquanto tendo baixa qualificação
profissional se levarmos em consideração que 56,4% do total de detentos tralhavam
exclusivamente nas áreas de construção civil, pintura e serviços gerais, tendo oportunidades
no mercado de trabalho reduzido nessas áreas. Em relação ao tipo penal desses homens,
averiguamos que se tratam de crimes de baixa periculosidade pois na maioria dos casos se
enquadram em artigos de tráfico de drogas e crimes contra patrimônio como roubo e furto,
somando juntos um total de 67% entre os crimes cometidos.
Essas características servem para nos apontar empiricamente algumas reflexões de
Soares (2011) no qual afirma que a justiça se faz de maneira seletiva na medida em que
somente um determinado grupo de indivíduos sofre com as sanções estatais, deixando de
priorizar os crimes cometidos por outros grupos localizados em diferentes estratos sociais e
com uma prática criminosa diferenciada, vivendo de forma impune.
Apesar das constantes relações privilegiadas que o homem encontra em uma sociedade
patriarcal capitalista, o grupo masculino não pode ter suas vivências generalizadas enquanto
homogêneas, pois entre ele, existem diferentes perfis e práticas sociais que refletem em
diferentes relações de poder uns sobre os outros, onde aqueles que se encontram em posições
de proximidade com o padrão de ser homem estabelecido pela sociedade, tem uma posição de
privilegio em relação ao restante (SILVA, 2011).
Connel (1995) ao debruçar-se sobre os temas de gênero e masculinidades, elaborou o
conceito de 'masculinidade hegemônica', sendo esse, um termo tratado para discutir daquele
ideal de masculinidade criado socialmente que tem como pressuposto a imagem do homem
branco, viril, heterossexual, provedor de sua família, mas que em geral não corresponde a
vida da maioria dos homens. A não correspondência desse ideal de masculinidade, seja pela
classe social, religião, idade ou raça reproduz outras formas de masculinidades, que se
chocam com aquele ideal imposto, chamada pelo autor de 'masculinidades periféricas'.
Apesar do grupo não apresentar características que se enquadram em um ideal de
masculinidade hegemônica, as suas relações cotidianas são compostas pela busca da
centralidade nas relações de poder, de forma contínua e nunca de maneira acabada. Pensando

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a partir de Foucault (1998), este nos aponta o poder não enquanto algo possuído em sua
totalidade, mas que de maneira dinâmica é composto por um feixe de relações que
constantemente (re)configuram as posições de centro e margem entre aqueles envolvidos
nessas relações.
Pois bem, dentro de um território carcerário composto por limites e tensionamentos e
permeados por relações de poder diferenciadas entre os grupos, as masculinidades mesmo
sendo consideradas periféricas em seu contexto geral, possuem dentro de cárcere, práticas
diferenciadas que podem alocar esses sujeitos entre centro e margem nas relações de poder.
Além disso, outras práticas são impostas entre os detentos a fim de moldar um perfil
de convivência próprio da instituição penal, tendo os sujeitos suas práticas moldadas e que de
maneira direta, influenciam na construção de suas masculinidades no cotidiano de
cumprimento de suas penas. Podemos compreender melhor essa situação a partir do seguinte
trecho de entrevista:
'Daí eu tava passando no meio dos cara conversando assim e o cara chamou
eu de volta, "o cara, chegue aí" quando eu cheguei o cara deu assim na
minha boca. Daí quando eu olhei ´pra todo mundo assim eu tinha que matar
o cara né? Na hora que eu fui no mocó la no pátio que eu saquei da faca os
cara me colaram assim num canto "o que você vai fazer cara?", eu falei "eu
vou dar uma facada nesse cara, o cara bateu na cara de cara homem" os cara
falaram " não não não irmão, você não vai matar ninguém, isso dae é pra
você aprender. Sabe o que você ta aprendendo? você ta aprendendo de
quando tiver gente conversando você não passa pro meio, não é por causa
disso que você não vai ser cara homem. Você vai ser cara homem sim só que
você ta aprendendo. Nós sabemos que você chegou agora irmão, nós tamo te
ensinando a ser uma pessoa pá'. (Entrevista realizado com Vida Loka em
2015)

Tratado o perfil dos homens detentos da cidade de Ponta Grossa (PR), recorte espacial
deste trabalho, seguimos agora ao tratamento dos dados empíricos obtidos no processo de
campo no decorrer desta pesquisa, citando a metodologia proposta e os resultados finais deste
trabalho.

Espacialidades discursivas e categorias discursivas na vivência cotidiana dos homens


egressos na cidade de Ponta Grossa, Paraná
O trabalho de campo foi realizado a partir de diferentes fases. A primeira delas teve
início com a seleção de um grupo que contemplasse os eixos fundamentais de objeto de
estudo a partir de seus discursos, sendo que esses deveriam ser de homens egressos do sistema

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de regime fechado da cidade de Ponta Grossa. Após o contato e devida aproximação, ocorreu
a realização de entrevistas com roteiros semiestruturados aplicados de maneira individual e
gravada.5
Após isso ocorreu a transcrição das mesmas com o intuito de facilitar o processo de
análise e sistematização dos dados, sendo esta, realizada através da análise do conteúdo e
aplicado em um banco de dados através do método proposto por Bardin (1970) que implica na
definição de categorias de análise a partir da frequência de evocações identificadas em seus
discursos.
Assim, a sistematização das entrevistas transcritas e sistematizadas em um banco de
dados, resultou na caracterização de 441 evocações, que analisadas e sistematicamente
elencadas, caracterizam-se em 32 categorias discursivas nas quais, 14 fazem menção a
espacialidade ‘Cadeia, 7 estão relacionadas com a espacialidade ‘Cidade’, 8 contemplam a
espacialidade ‘X’ e 3 relacionadas a espacialidade ‘Seguro6’, fato esse que reflete as
diferentes territorialidades que compõem a cadeia.
Compreendendo que a experiência do cárcere marca a vida das pessoas presas de
maneira diferenciada e que influência no comportamento e modo de encarar a vida em
liberdade, partimos para a reflexão de como o cárcere é interpretado pelos homens ex-
detentos da cidade de Ponta Grossa, suas principais características a partir do ponto de vista
de quem o viveu de forma intensa, concebendo nisso o objetivo central deste trabalho.
O arranjo de posicionamentos ora centrais ora periféricos dentro de uma malha
constituída de limites, exclusões, e acessos diferenciados para cada sujeito (RAFFESTIN,
1993) é resultante das características que cada detento possui frente ao grupo, variando de
acordo com sua situação financeira, vínculo com o crime organizado, tipo penal, redes de
afetividade com outros detentos, dependência química, entre outros.
Esta vivência diferenciada do cárcere que ora amplia e ora reduz os direitos,
benefícios, auxílios e regalias que cada detento terá com o grupo, pode ser visto no seguinte
trecho de entrevista:

5
Totalizando seis horas e quarenta e quatro minutos de entrevista gravada
6 Nas entrevistas em geral apareceram 6 espacialidades discursivas , mas que apenas 4
serão tratadas pois apresentam mais que 2% de evocações em cada classe e juntas contemplam a
quantidade de 98,32% das evocações elencadas.

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'É, porque antigamente era muito, era muito cruel, era cruel pra quem não
era marginal! Pra quem era marginal era até bom às vez, mais fácil, sabe?'
(Entrevista realizado com Vida Loka em 2015)

As diferenciações no cumprimento da pena, variando a intensidade para cada detento


dentro de uma instituição criada para tratar todos de maneira igualitária é reflexo ao modo
como os detentos constroem suas próprias normas e estratégias de resistência dentro da prisão
como afirmam Foucault (1996), criando uma nova dinâmica entre a organização espacial do
presídio estruturado pela sua disposição física e os circuitos espaciais da criminalidade.

Fonte: Entrevistas semi-estruturadas com egressos da cidade de Ponta Grossa


Organizador: GONTAREK, D. D.

Evidencia-se que a maior categoria é a do ‘sofrimento’, com 22% do total das


evocações presentes nessa espacialidade. O sofrimento é algo presente na experiência dos seis
homens entrevistados, caracterizando-se enquanto algo inevitável no cumprimento de suas
penas.
O sofrimento, interpretado como sendo o padecimento ou a dor que sente uma pessoa,
consciente ou inconsciente e que se reflete na moléstia e esgotamento físico ou moral ou em
sua infelicidade é concebido de diferentes maneiras pelos detentos. Em relação ao estado de
sofrimento não corporal, este é caracterizado pela sensação de abandono, angustia, medo,
desprezo e insegurança sentida pelos entrevistados. Além disso ele também se configura na
relação de saudade com os familiares pelo fato de ver a figura materna sofrer. Entretanto, o
sofrimento também é resultado da dor e moléstia física, aquele resultante das condições
insalubres e desumanas em que se encontra o ambiente prisional. Além disso, ele é resultado

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 573


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das agressões físicas aplicadas sobre esses homens, seja por parte de outros detentos ou por
parte da polícia e administração do presídio.
'A hora que eu vi minha mãe lá cara foi a hora que eu coloquei minha mão
na cabeça e pensei, "puta lá merda, o que que eu fui fazer”. Minha mãe
chorando eu me senti assim...Não sei cara. Não vou dizer estéril, por que eu
tava muito mais estéril, eu estava muito abalado com aquilo ali velho. Tava
abalado psicologicamente, mentalmente. Não por eu tá lá, mas por minha
mãe tá lá me vendo' (Trecho de entrevista realizado com Zapata em 2015)

Daí é melhor nós apanhar e ficamos uns quinze dias no veneno, só que nós
ficamos 45 dias no veneno, dormindo pelado, sem colchão, sem copo pra
tomar café, sem comida, a comida deles, café da manhã, almoço e janta.
Depois da rebelião era surra, todo dia. (Trecho de entrevista realizado com
Vida Loka em 2015)

A 'aprendizagem' segunda categoria mais citada pelos entrevistados acompanhado de


'coletividade', é caracterizada pelos entrevistados como fazendo parte do processo de vivência
da prisão, adequando o individuo dentro de um contexto diferente do qual esse homem estava
acostumado, forçando-o a uma adaptação em relação a esse contexto. Este aprendizado se
referencia no ato de aprender as regras da cadeia, formas de conduzir o dia a dia, se portar e
conduzir, instituída pelos próprios detentos, como visto na fala abaixo:
'Então tem muito código de conduta entre eles lá! Se você pisa na bola, não
cumpre uma norma é cobrado também né cara. Às vezes rola de dar mio, se
você passar por cima do alimento, às vezes já é um mio. Tem que acordar
na hora, tem um ritmo lá de dentro mesmo, tem que acordar cedo, tem que
fazer as atividade, tem que lavar a roupa, passar não, mas lavar. Cozinhar,
né cara. Várias atividades lá dentro né.' (Trecho de entrevista realizado com
Rosa em 2014).
O aprendizado está diretamente relacionado com a terceira evocação mais presente
nesta espacialidade, a ‘Coletividade’. Está é citada em suas falas como sendo algo
característico entre o convívio dos detentos, expresso através de atos de solidariedade, ajuda,
amizade, fraternidade, igualdade e segurança entre os mesmos. Importante lembrar que essa
coletividade é compartilhada entre o grupo majoritário e exclui dessa rede de ajuda aqueles
excluídos do convívio.
“é uma decisão assim, que qualquer coisa que uma pessoa vai decidir lá
dentro não é só uma pessoa que decide, desde pra matar um cara, não é
assim de levantar lá e "vou matar", sabe, se ele fazer sozinho tá sujeito de
morre também. Por que as vezes os cara tão num tatu lá quase indo embora e
o cara da um mio desse e cai o tatu lá, vai sobrar pro cara entendeu. É por
isso que é feito uma reunião primeiro com os cabeça, pra ver como que é a
decisão.” (Trecho de entrevista realizada com Zapata em 2016)

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p565 574


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A terceira espacialidade mais referenciada na fala dos entrevistados é o ‘X’, com


7,04% do total das evocações.7 Ela é caracterizada enquanto sendo um local de coletividade,
regras, sofrimento e conforto.

Fonte: Entrevistas semi-estruturadas com egressos da cidade de Ponta Grossa


Organizador: GONTAREK, D. D.

Esta categoria serve para contextualizar a dinâmica territorial enquanto sendo algo
mutável e sobreposto, construída na mesma medida em que outras são desfeitas a partir de
regras que se sobrepõem em detrimento dos diferentes grupos que a compõem.
O “X”8 neste caso é algo que não é acessado por todos, e que tem regras diferenciadas
de acordo com o grupo que o sustentam, apresentando dinâmicas distintas daquelas
encontradas na cadeia em geral. Ela é a única espacialidade que apareceu a categoria
‘Conforto’, visto que é local que pode apresentar regalias diferenciadas, a partir do uso de
celulares, a presença de televisão e vídeo game, a possibilidade de uma melhor alimentação
compartilhada pelo grupo presente, etc.
Essa união é legal mesmo cara, tipo se tiver um pão ali, ninguém come se
não der pra todo mundo. Tudo é dividido, tudo tem que ser dividido dentro
do ‘X’. O que que não é dividido? Luxo, luxo que eles falam. Luxo é droga e
cigarro. (Trecho de entrevista realizado com Lobo em 2015)

A espacialidade ‘Seguro’ se faz enquanto algo bastante curioso por ser a espacialidade
que representa aquilo que não é aceito no convívio entre os detentos, sendo caracterizado

7
A espacialidade Cidade (18%) não será discutida nesse artigo, pois este está se prepondo em analisar
somente as espacialidades que compõe somente a prisão.

8
Cela

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enquanto um local de exclusão (78% do total de evocações), desprezo e mal caráter (juntos
somam 22% do total das evocações), utilizando aqui para representar as diferentes
territorialidades existentes no espaço carcerário.
Essas celas em específico, são criadas pela organização interna e asseguradas pela
instituição para assegurar a segurança desses sujeitos não aceitos no convívio entre o restante
dos detentos. Podemos considerar que suas condutas ou práticas criminosas configuram em
seus corpos estigmas (GOFFMAN, 1988) que os impedem de acessar a centralidade das
relações de poder internas, limitados a vivências somente essas espacialidades e com isso,
aumentando o rigor de sofrimento em suas penas.

Considerações finais
Este trabalho preocupou-se em compreender como os egressos do sistema
penitenciário da cidade de Ponta Grossa interpretam a experiência do cárcere a partir de suas
vivências territoriais. Este objetivo inicial leva em consideração a experiência do individuo
dentro do território carcerário marcado por distintas relações de poder e que a partir dela,
carregará consigo marcas de ressignificação das relações no momento de sua liberdade.
Teve como condutor teórico o conceito de território, compreendido ao longo do
trabalho como relacional, pois ao mesmo tempo que é composto por individualidades envolve
desafios coletivos que constantemente alteram a sua composição, sobrepondo-se e coexistindo
de variadas formas.
A prisão a partir da vivência realizada pelo grupo entrevistado é definida enquanto um
local de sofrimento (22%), aprendizado (12%), coletividade (12%) e regras (9%), termos que
mais aparecem ao decorrer de suas falas.
Ele também nos indicou que a realidade em que se encontra atualmente a maiorias das
instituições penais é composta pelo descumprimento da legislação que assegura direitos dos
apenados, como por exemplo o alto índice de superlotação, o cumprimento da pena em
cadeias provisórias, a insegurança em relação a integridade física e moral dos reclusos, as
condições insalubres que essas instituições são encontradas, entre outros.
Cumpre finalizar esse trabalho ressaltando a importância e a necessidade de dar
visibilidade a essa dinâmica pouco valorizada dentro das discussões geográficas, tema
considerado ainda marginal na produção de análise científica.

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Referências
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SOUZA, Marcelo José Lopes de. O Território: Sobre Espaço e Poder, Autonomia e
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T
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Reflexões acerca da divisão sexual do trabalho

Nathália Lipovetsky1

Resumo: O presente artigo pretendeu sumarizar reflexões a respeito da relação entre a


evolução do conceito de trabalho na história e as discussões a respeito de gênero, abordando
aspectos da chamada divisão sexual do trabalho e trazendo dados para demonstrar as
microteses discutidas. O que se procura demonstrar é que o desenvolvimento do conceito de
trabalho ocorreu impregnado de uma carga cultural sexista e excludente para mulheres, com
fortes reflexos na economia e no mercado de trabalho, bem como nas possibilidades de
geração de renda por parte das mulheres, tendo, como última consequência, uma feminização
da pobreza, especialmente em países em desenvolvimento. A metodologia empregada se
fundamenta na análise de dados secundários disponibilizados em sítios eletrônicos do
Governo Federal, especialmente IPEA e IBGE, bem como leitura e fichamento de obras para
a delimitação de conceitos tais como trabalho, nova história do trabalho, divisão sexual do
trabalho, e gênero. Essa aproximação se faz em especial no tocante à questão salarial e de
empregabilidade, conjugada com a má distribuição de tarefas domésticas e de cuidados da
família e o impacto que isso gera na vida profissional da mulher. O conceito jurídico de
trabalho não necessariamente se confunde com o conceito de atividade laborativa, que sempre
ocorreu na humanidade anteriormente ao surgimento do trabalho livre e subordinado por meio
de um contrato de trabalho Moderno. A divisão do trabalho, inerente à vida em sociedade,
encontra na distribuição das tarefas segundo o sexo precedência quanto ao surgimento do
trabalho em termos Modernos, mas o capitalismo e o mercado direcionaram uma
redistribuição de tarefas entre mulheres e homens segundo as esferas produtiva e reprodutiva,
ficando os homens com a primeira, e as mulheres com a segunda. A consequência disso é que
as mulheres enfrentam piores condições e oportunidades no mercado de trabalho, tem
remuneração pior, e ainda enfrentam a chamada dupla jornada, pois continuam quase
exclusivamente responsáveis pelo trabalho doméstico de cuidado, que não é remunerado e
nem considerado trabalho pelas análises do IBGE, exatamente por não ter valor mercantil
óbvio ou imediato. O conceito de trabalho em sua acepção mais ampla nos leva à ideia de
trabalho decente, que é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos
estabelecidos recentemente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a saber: o
respeito aos direitos no trabalho, em especial aqueles definidos como fundamentais pela
Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho; promoção do
emprego produtivo e de qualidade; extensão da proteção social; fortalecimento do diálogo
social.

Palavras-chaves: trabalho; gênero; desigualdade.

1
Professora Adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia; Bacharela, Mestra e Doutora em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); nathalialipovetsky@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p445 445


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INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende sumarizar reflexões a respeito da relação entre a evolução


do conceito de trabalho na história e as discussões a respeito de gênero, abordando aspectos
da chamada divisão sexual do trabalho e trazendo dados para demonstrar as microteses
discutidas.
O que se sustenta, aqui, é que o desenvolvimento do conceito de trabalho ocorreu
impregnado de uma carga cultural sexista e excludente para mulheres, com fortes reflexos na
economia e no mercado de trabalho, bem como nas possibilidades de geração de renda por
parte das mulheres, tendo, como última consequência, uma feminização da pobreza,
especialmente em países em desenvolvimento.
Inicialmente será necessário estabelecer os conceitos sobre os quais se apoiam o
presente texto, tais como trabalho, divisão sexual do trabalho, e gênero. Na sequência, à luz
da nova história do trabalho, serão analisados os parâmetros e critérios adotados para
qualificar a atividade como trabalho historicamente e na contemporaneidade, para que, a
partir das estatísticas encontradas em pesquisas possa ser feita uma crítica acerca da situação
da mulher na divisão sexual do trabalho. Essa aproximação será feita em especial no tocante à
questão salarial e de empregabilidade, conjugada com a má distribuição de tarefas domésticas
e de cuidados da família e o impacto que isso gera na vida profissional da mulher.

SOBRE O TRABALHO

A palavra trabalho deriva, segundo a doutrina, da palavra em latim tripalium, que


denominava, originalmente, um instrumento feito de três paus, algumas vezes com pontas de
ferro, para os agricultores baterem o trigo, as espigas de milho, com a finalidade de rasgá-los
ou esfiapa-los. Desse instrumento e da atividade realizada, derivou no latim vulgar o verbo
tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar alguém no tripálio. Pode-se
pensar tanto no trabalho de torturar quanto na tortura que é trabalhar, considerando que na
Antiguidade o trabalho braçal não possuía status social valorizado.
Quando falamos em trabalho sob uma perspectiva propriamente jurídico-dogmática
não é possível cogitar da existência de trabalho anteriormente à existência da noção de
trabalho subordinado e livre, pois o fenômeno jurídico surge com o surgimento da categoria
básica do ramo jurídico analisado. Segundo DELGADO (2008), a existência do trabalho livre
é pressuposto histórico-material do surgimento do trabalho subordinado: histórico porque

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requer a existência de grande oferta de mão de obra livre no universo econômico-social, e


material porque a subordinação só surge quando o prestador não se submete de modo pessoal
ao tomador de serviços. Embora não seja possível, em realidade, afirmar que a submissão
pessoal se extinguiu por completo da relação de trabalho por ser explícita a situação de
vulnerabilidade social e econômica da maior parte dos trabalhadores na contemporaneidade,
ao menos ela deixou de ser uma característica essencial da atividade laborativa, em oposição
ao que ocorria em momentos históricos anteriores.
Temos, assim, na escravidão e, posteriormente, na servidão, que funcionou como
transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado livre, a noção de sujeição pessoal,
subjetiva, que é uma situação jurídica que não supõe a liberdade do prestador e que atua sobre
a pessoa do trabalhador, reproduzindo sua falta de liberdade pessoal. Na relação de trabalho
Moderna, temos a noção de subordinação, sob um prisma estritamente objetivo, situação
jurídica derivada de contrato de trabalho, no qual o empregado se obriga a acolher a direção
do empregador sobre o modo de realização da prestação de serviços. (DELGADO, 2008)
A servidão foi um modo de vida durante o período medieval para a maior parte da
população, por razões de segurança, e foi a principal forma de realização das atividades
laborativas necessárias à manutenção da sociedade, uma vez que a escravidão já vinha
desaparecendo desde os últimos tempos do Império Romano por diversos fatores, inclusive
em função da influência do cristianismo. Ao final do medievo temos o fenômeno da expulsão
dos servos das glebas, que acabou proporcionando o surgimento de uma massa de pessoas
juridicamente livres dos meios de produção e do proprietário desses meios. A reconexão do
trabalhador com o sistema produtivo se dá por meio da Revolução Industrial: o trabalhador foi
e permanece separado dos meios de produção e passa a ser subordinado no âmbito da relação
empregatícia ao proprietário desses meios produtivos.
Enquanto na Antiguidade o trabalho representava punição, e a necessidade de se ter
escravos derivava justamente da natureza escravizante das atividades necessárias à
manutenção da comunidade (ARENDT, 1958), na Idade Média encontramos na servidão um
tipo atenuado de escravidão, pois o indivíduo naquelas condições não dispunha de liberdade,
estando sujeito a severas restrições, como a impossibilidade de livre locomoção. O homem
medieval se submetia ao trabalho que beneficiava quase que somente o dono da terra, em
troca meramente de habitação, alimentação e vestuário. No sistema de corporações, também
medieval, o mestre era não somente o senhor da disciplina profissional, mas também senhor
pessoal do trabalhador, que explorava economicamente o ramo de atividade, tendo sob seu
comando o aprendiz. (VIANNA, 1991)

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Na segunda metade do século XX começam a surgir teorias sobre o trabalho e a


história do trabalho que procuram focar na história de luta dos próprios trabalhadores, em vez
de focar na história institucional, que tem seu foco na descrição de debates, lideranças e
desenvolvimento organizacional. A velha história do trabalho é eurocentrista e não se adequa
aos acontecimentos históricos e sociais do hemisfério sul, por exemplo. A nova história busca
ser uma história global, levando em consideração não apenas os processos de trabalho e
cultura cotidiana. As relações de gênero, etnia, raça e idade recebem atenção, ao lado das
estruturas domésticas, sexualidade e políticas informais. (VAN DER LINDEN, 2009) 2
O surgimento de uma história global do trabalho permite abordagens mais
abrangentes e adequadas às discussões sobre gênero e todos os temas que transversalmente se
relacionam (e mutuamente influenciam-se), uma vez que abarca temas transnacionais e
transcontinentais, engloba trabalho livre e não livre, remunerado e não remunerado, formal e
informal, empregadores e empregados, e, principalmente, considera o trabalhador inserido no
contexto de sua família e das suas relações de gênero. (VAN DER LINDEN, 2009)
A divisão do trabalho na sociedade sempre foi uma realidade, mesmo antes que se
pudesse dar conta disso, e cresce na mesma proporção em que cresce a sociedade e sua
complexidade, bem como a sofisticação do que se produz. Mesmo o trabalhador “isolado”,
fora de uma linha de produção, já é parte de uma longa cadeia que compreende desde a
retirada da natureza da matéria necessária até o produto final chegar ao seu usuário final.
Frank Taussig, economista conservador de Harvard sintetizou esta ideia nos anos 1920:
Comumente, referimo-nos a um alfaiate como aquele que faz roupas,
um carpinteiro como aquele que faz mesas, um sapateiro como aquele
que faz botas. Tal frase, como muitas desse tipo, é elíptica e leva
facilmente a mal-entendidos. O trabalho do alfaiate apenas dá o toque
final ao trabalho previamente realizado por uma longa cadeia de
pessoas – o pastor que cuidou do rebanho, o tosquiador de lã, aqueles
que transportaram a lã por terra e por mar, o penteador de lã tecelão
etc., sem mencionar aqueles que fizeram as ferramentas e maquinaria
destes trabalhadores. Similarmente, o carpinteiro é o último de uma
sucessão de pessoas que trabalharam para um mesmo fim – o lenhador
nos bosques, o cortador de madeira no moinho, o maquinista e o
engenheiro na ferrovia e assim por diante. Muitos trabalhadores,
distribuídos em longas series, se combinam a fim de produzir mesmo
as mais simples mercadorias. (Frank W. Taussig. Principles of
Economics, vol. I New York: Macmillan, 1921, p. 15. apud VAN
DER LINDEN, 2009)

2
Ver Formação da Classe Operária Inglesa, de E. P. Thompson, um marco para a disciplina de história social,
lançado em 1963.

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A própria definição de trabalho já existe, desde sempre, atrelada a algum tipo de


dominação e à valoração econômica, reduzindo o conceito àquelas atividades que se vinculam
ao mercado. No entanto, o que se pode observar é que a divisão sexual das atividades
humanas, se não se puder falar em trabalho anteriormente ao surgimento da economia, é
anterior ao mercado e ao conceito clássico de trabalho. O que ocorre é que o capitalismo, o
mercado e a Revolução Industrial mudam o conceito de trabalho, ou o criam, dependendo do
ponto de vista, e mudam também a dinâmica social que o envolve, afetando o equilíbrio
anterior da divisão sexual do trabalho. As abordagens sobre a divisão do trabalho passam a
envolver necessariamente ideias como submissão, hierarquia, dependência – há sempre uma
figura dominante e outra dominada.
O que não se pode deixar de lado é que podemos encarar o trabalho como trabalho
que transforma a natureza e permite à humanidade existir e se desenvolver, mas que não
ocorre (nem poderia) dissociado do trabalho que transforma o próprio ser humano. Encarar a
história do trabalho de maneira ampla e global permite uma concepção de que a história do
trabalho é o local da transformação das relações sociais de produção e de reprodução.
(GAMA, 2014)

SOBRE DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

As abordagens sobre a divisão do trabalho consideram a especialização da divisão de


papeis por gênero das sociedades tradicionais como o ponto de partida, sendo substituída pela
agricultura, artesanato, comércio, indústria à medida que a humanidade vai se
complexificando.
Embora o conceito de trabalho seja atrelado ao surgimento do mercado e do
capitalismo, a existência de uma divisão sexual das atividaes humanas parece sempre ter
existido, o que poderia trazer uma ideia de que a justificativa biológica ou natural estaria
correta. Não obstante, o que se observa é que
a designação prioritária dos homens para a produção e das mulheres
para a reprodução não data do capitalismo. Essa diferença dos sexos
na produção e na reprodução traduz uma divisão sexual que estrutura
as relações entre os sexos sobre uma base tanto política quanto
econômica. No entanto, diferença não significa necessariamente
desigualdade. Antes do capitalimo, a família tinha papel fundamental
na organização da produção e da reprodução e homens e mulheres
participavam de ambas as esferas. Desta ótica, a valorização
diferencial e a crescente feminização da esfera da reprodução tomam

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uma nova dimensão a partir da organização do trabalho remunerado


nos moldes capitalistas. (GAMA, 2014, p. 39)
O surgimento de economia, mercado, capitalismo (ou rudimentarmente
mercantilismo) é que proporcionou uma virada nas concepções dos papeis dentro do grupo
familiar e social, de forma que por divisão sexual do trabalho pode-se entender que
é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais
entre os sexos; mais do que isso é um fator prioritário para a
sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada
histórica e socialmente. Tem como características a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das
funções de maior valor adicionado (políticos, econômicos, militares
etc). (HIRATA; KERGOAT, 2007.)
A divisão sexual do trabalho tem por base a repartição das esferas produtiva e
reprodutiva, ficando a primeira a cargo da mulher e a segunda, a cargo do homem, provedor,
responsável por manter financeiramente a família da qual a mulher (mãe e esposa) é a
cuidadora. O não reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados oculta sua dimensão
econômica e a relação com a exploração capitalista. (KERGOAT, 2000)
Homens e mulheres são dois grupos sociais engajados em uma relação social
específica – relações de gênero – que tem como base material a divisão sexual do trabalho. As
justificativas ideológicas para a divisão sexual do trabalho vêm no sentido de naturalizar a
desigualdade, com base na biologia e nas atividades que, na natureza, eram repartidas entre
mulheres e homens no grupo. Servem para articular a ideologia, a reprodução simbólica, com
a existência de uma base material. (KERGOAT, 2000)
A divisão sexual do trabalho tem dois princípios organizadores, que são o princípio
da separação, que separa trabalho de homens e de mulheres, e o princípio da hierarquização,
segundo o qual o trabalho do homem vale mais que o da mulher. (KERGOAT, 2000) Cultural
e historicamente, essas são as caracteríticas que marcam a existência da divisão sexual do
trabalho e que gera como consequência o fato das mulheres, em geral, ocuparem cargos de
menor relevância, receberem salários mais baixos para cargos equivalentes, terem menos
oportunidades de emprego mesmo muitas vezes tendo maior nível de escolaridade, tenderem a
escolher carreiras menos rentáveis exatamente por serem associadas à feminilidade, criando
uma setorização de saberes a que é permitido à mulher atuar, o fenômeno chamado de dupla
jornada, a distribuição desigual das tarefas domésticas, dentre outros.
Os princípios organizadores fundamentais da divisão sexual do trabalho podem ser
observados em todas as sociedades conhecidas e se legitimam pela ideologia naturalista,
embora apresentem variabilidade no tempo e no espaço, segundo estudos da História e da

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Antropologia. O elemento de estabilidade que demonstra a existência dessa divisão na história


e no espaço é exatamente a distância existente entre os grupos de sexo. (GAMA, 2014)
Produção e reprodução social são indissociáveis e se interpenetram, embora não se
confundam:
A partir dessa compreensão da produção e da reprodução social,
podemos ancorar o conflito que se estabelece entre essas esferas e
destacar a necessidade de romper com uma lógica de separação entre
o mundo do trabalho e do mundo da cultura (família). Assim, não há
como existir um processo social de produção apartado ou oposto à
reprodução da vida social; produção e reprodução da vida social são
momentos diferenciados, mas não autônomos, de uma mesma forma
social. (GAMA, 2014, p. 34)
Segundo HIRATA e KERGOAT existe uma tendência a embutir a questão de gênero
dentro da questão de classe (operária), que faz com que outras variáveis também acabem
passando despercebidas, como nacionalidade ou idade. A construção do conceito de gênero
começa nos anos 1970 e só então será criticada a divisão em classes sociais desconsideradora
da heterogeneidade na composição de uma classe que é composta por homens e mulheres. A
abordagem, quando feita, mostrou-se biologizante e estereotipada com perda do argumento
racional, político ou sociológico. O conceito de exploração, que é o conceito chave do
marxismo, não basta para mostrar a opressão sofrida pela mulher nas relações sociais.
Relações de classe são sexuadas e as relações sociais de sexo são transversais na sociedade.
Afirmar que relações de opressão e de exploração além de se articularem formam uma teia
não é suficiente – há ainda o contexto econômico, social, político, grau de desenvolvimento
daquela sociedade, de uma maneira geral. Como lutar simultaneamente como mulher, negra e
proletária? A luta acontece como um ou como outro, segundo oportunidades políticas, lugares
e momentos da vida. Por exemplo, em países em desenvolvimento a trajetória de homens na
atuação profissional se assemelha à trajetória das mulheres de países desenvolvidos, ou seja, o
entrelaçamento das relações de classe e de sexo é ainda maior. (HIRATA; KERGOAT, 1994)
Por outro lado, para SCOTT, a utilização da tríade gênero, classe e raça, quando
gênero e raça não encontram precisão teórica como classe (definida pelas teorias marxistas),
pode não ser o caminho mais garantido. A história das mulheres deve ser tratada em separado
ou em conjunto com a dos homens? As mulheres não fazem parte da história política e
econômica? Trata-se apenas de sexo e família? Como é que o gênero funciona nas relações
sociais humanas? Como é que o gênero dá um sentido à organização e à percepção do
conhecimento histórico? Segudo a autora, as respostas dependem de gênero tornar-se uma
categoria de análise, tarefa para a qual convoca as historiadoras. (SCOTT, 1989)

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Gênero virou sinônimo de mulher, numa ideia de aceitabilidade política do campo de


pesquisa, dissociação da política escandalosa feminista, sem posicionar-se sobre a igualdade
ou desigualdade do poder e nem mesmo designar a parte lesada e invisível da história. Outro
uso de gênero é o de que as informações sobre mulheres são também informações sobre os
homens e que ambos devem ser igualmente estudados, pois estudar as mulheres
separadamente perpetua o mito de que se trata de experiências separadas entre os sexos.
Ainda outro uso de gênero é a designação de relações sociais entre os sexos, que rejeita
justificativas biológicas e serve para indicar construções sociais dos papeis de cada sexo,
como modo de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos
homens e das mulheres, o que leva à ideia de gênero como categoria social imposta a um
corpo sexuado. Esses usos descritivos de gênero continuam restritos às coisas das mulheres e
à família, sem abordar aspectos políticos ou esferas de poder, reproduzindo a visão baseada na
biologia e na separação das histórias de mulheres e homens. (SCOTT, 1989)
Nesse uso descritivo o termo “gênero” afirma que as relações entre os sexos são
sociais, mas não diz nada sobre as razões pelas quais essas relações são construídas como são
nem como elas funcionam ou como elas mudam. Torna-se um conceito associado ao estudo
das coisas relativas às mulheres. É um novo campo de pesquisas históricas, mas não tem a
força de análise suficiente para interrogar (e mudar) os paradigmas históricos existentes.
Segundo SCOTT “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as
relações de poder”, de forma que o lugar das mulheres na vida social-humana não é
diretamente o produto do que ela faz, mas do sentido que as suas atividades adquirem através
da interação social concreta. (SCOTT, 1989)

DISCUSSÕES ESTATÍSTICAS

As pesquisas indicam que as condições do mercado para a mulher brasileira


melhoraram nas últimas décadas, assim como no restante do mundo. No entanto, persiste uma
segregação de gênero no tocante às ocupações e quando as mulheres alcançam as mesmas
ocupações que os homens, são pior remuneradas. Mesmo tendo, em geral, melhor nível de
escolaridade. A escolha da ocupação provavalmente afeta fortemente essa diferença salarial, o
que nem sempre pode ser medido estatisticamente. Além disso, o custo de oportunidade de
manter a dupla jornada ainda afasta as mulheres do mercado de trabalho. (MADALOZZO,
2010)

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MADALOZZO indica que mulheres casadas tendem a receber salários piores que
mulheres em união estável, que recebem salários piores que mulheres solteiras. A
maternidade também constitui um fator de descontinuidade da mulher no mercado de
trabalho. (MADALOZZO, 2012) Embora essas concepções pareçam evidentes em leituras
vulgares da realidade, é extremamente relevante que sejam comprovadas pelas estatísticas do
IBGE via PNAD, para que as afirmações a respeito da segregação sexual no mercado de
trabalho sejam inequivocamente demonstradas.
A divisão do trabalho doméstico também não é igualitária: as mulheres, em média,
contribuem duas a três vezes mais do que os homens para as tarefas domésticas. As tarefas
são distribuídas segundo critérios de feminilidade ou masculinidade e o que ocorre é que as
tarefas “tipicamente femininas”, como a preparação das refeições ou o cuidado da roupa, são
tarefas que consomem mais tempo e que precisam ser realizadas com maior regularidade do
que as tarefas “tipicamente masculinas”, como as reparações de objetos ou a manutenção do
carro. No trabalho de cuidado com os filhos as mulheres tanto se consideram como são
consideradas as principais responsáveis, de forma que as atividades que exigem mais cuidado
e tomam mais tempo, como higiene e alimentação ficam com as mães, enquanto os pais se
ocupam de atividades interativas, associadas à diversão. Essa crença em torno dos tradicionais
papeis familiares mostra-se fortemente arraigada nas mentalidades de ambos os cônjuges.
(POESCHL, 2010)
A alteração do conceito de trabalho ocasionada pelo capitalismo e a Revolução
Industrial impõe que a mulher oriunda de uma classe social mais baixa trabalhe fora para
contribuir com o sustento da família, isso quando não é exclusivamente responsável por esse
sustento. Isso criou a assertiva de que essa mulher estaria submetida a uma dupla jornada, ou
seja, trabalhar no mercado e ainda dar conta de todas as tarefas domésticas, que são de sua
responsabilidade. A ideia de dupla jornada mascara a economicidade do trabalho doméstico
ou de cuidado, que acaba sendo invisível, embora imprescindível. E a ironia está na conversão
de tudo em mercadoria operada pelo capitalismo, especialmente a força de trabalho, acontecer
sem que haja qualquer valorização do trabalho doméstico de cuidado, justamente por não ter
valor econômico imediato, o que é uma falácia, pois se se contrata uma terceira pessoa para
executar o mesmo trabalho, haverá um preço (considerável) a ser cobrado. A invisibilidade do
trabalho feminino de cuidado não se elimina nem por meio da conversão capitalista de toda e
qualquer atividade em mercadoria.
Medir o trabalho segundo critérios exclusivamente econômicos não é viável, uma
vez que o trabalho doméstico não remunerado não é facilmente substituível por nada que se

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encontre no mercado, atende a necessidades emocionais e não tem prazo de duração definida,
pois mesmo que seja delegado, sua gestão precisa ser constante. Daí a necessidade de se
valorar o trabalho segundo uma perspectiva global, que abarque o trabalho no mercado e o
trabalho doméstico, ou seja, as esferas pública e privada da vida.
O processo de trabalho doméstico não remunerado produz
valor de uso que será posteriormente consumido como tendo valor de
troca a força de trabalho. Esse trabalho requer habilidades,
conhecimentos, meios de produção particulares para a realização de
cada um dos seus produtos que, no cuidado com as crianças,
contempla: gerar, parir, amamentar, preparar alimentos específicos,
manter o ambiente limpo e a saúde, fortalecer e desenvolver o corpo, o
intelecto, a socialização, o brincar, a educação formal para o trabalho
(ou para a emancipação), os afetos. Logo, esse trabalho produz valor
ponderado no interior da lógica de produção do valor. (GAMA, 2014,
p. 43)
No Brasil o conceito de trabalho adotado pelo IBGE na contabilização da população
ativa e ocupada, considera apenas o trabalho em atividades econômicas, excluindo boa parte
daquilo que é realizado pelas mulheres no seu cotidiano, e o próprio relatório do IPEA
pondera esse fato:
O conceito de trabalho que fundamenta a produção de estatísticas no
país caracteriza-se, portanto, pelas ideias de produção e
mercantilização. A produção de bens e serviços não remunerados no
mundo privado é invisibilizada e entendida como atividade não
produtiva que confere aos seus executores a condição de inativos, caso
também não desenvolvam atividades no mercado de trabalho. (IPEA,
2016)
Os apontamentos discutidos na doutrina se confirmam nas estatísticas: o conceito de
atividade é excludente e desconsidera o trabalho não remunerado desenvolvido no espaço
doméstico de cuidado do próprio domicílio, de filhos, idosos, doentes, como uma atividade
que contribui para a produção e reprodução da vida e que gera valor. Em se tratando de
distribuição do trabalho doméstico, não existem nem mesmo as diferenças entre os grupos
raciais, tão significativas em todos os outros aspectos: “a questão do trabalho doméstico não
remunerado tem um marcador de gênero que, estritamente do ponto de vista do envolvimento
e das jornadas, parece ser igualmente sentido por mulheres negras e brancas” (IPEA, 2016).
No período de 2004 a 2014, segundo o IPEA, observa-se a consolidação do que seria
uma feminização do trabalho, a partir da proporção de pessoas economicamente ativas (PEA).
Em 1970, 18,5% das mulheres eram economicamente ativas, número que sobe para mais de
50% em 2010. No entanto, é preciso ter cuidado com os números, pois
as mulheres permanecem em trabalhos precários e vulneráveis, em
setores já tradicionalmente por elas ocupados. Recebem os piores

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salários e possuem jornadas extensas e incalculáveis de trabalho,


produto da acumulação do trabalho remunerado com os serviços de
cuidados. (IPEA, 2016)
O IPEA conclui que, a despeito da conjuntura de crescimento econômico e de
relações de trabalho mais formalizadas na última década, não houve reversão do quadro de
divisão sexual e racial do trabalho, pois o crescimento da participação feminina no mercado
de trabalho aconteceu por meio de contratos atípicos, da terceirização ou do
autoempresariamento precário. As piores ocupações continuam sendo as da mulher negra,
convergência da tríplice opressão de gênero, raça e classe: 39,1% das mulheres negras
ocupadas estão inseridas em relações precárias de trabalho, seguida pelos homens negros
(31,6%), mulheres brancas (27,0%) e homens brancos (20,6%). (IPEA, 2016)
A renda das mulheres subiu, nos últimos dez anos, de 63% para 70% da renda
masculina, ou seja, as mulheres ainda ganham, em média, 30% a menos que os homens. Se
levarmos em consideração o fator racial, comparando a renda da mulher negra com a do
homem branco, temos uma diferença de mais de 60%, ou seja, as mulheres negras ainda não
alcançaram 40% da renda dos homens brancos. (IPEA, 2016)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de trabalho em sua acepção mais ampla nos leva à ideia de trabalho
decente, que é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos estabelecidos
recentemente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a saber: o respeito aos
direitos no trabalho, em especial aqueles definidos como fundamentais pela Declaração
Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho; promoção do emprego
produtivo e de qualidade; extensão da proteção social; fortalecimento do diálogo social.
Levando em consideração essas diretrizes e os dados sobre a participação das
mulheres no mercado de trabalho e na economia do país, vemos que, apesar dos avanços
alcançados, especialmente em decorrência dos programas de redistribuição de renda
promovidos pela União no período analisado (sobretudo Bolsa Família e Benefício de
Prestação Continuada), a desigualdade de gênero persiste e só se aprofunda quando somada às
questões raciais e de classe. Os obstáculos a serem vencidos são muitos:
A estruturação de sistemas de proteção social e políticas
públicas capazes de contribuir efetivamente para a superação das
desigualdades de gênero e para o enfrentamento das tensões entre
família e trabalho pressupõe não apenas superar a tradicional
dicotomia entre “mulher cuidadora” e “homem provedor”, que esteve

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na base da constituição da grande maioria das instituições do Estado


de Bem-Estar Social, mas também superar a noção da mulher como
força de trabalho secundária, que apesar de todas as evidências
empíricas em contrário, continua tendo uma grande persistência no
imaginário social, na teoria econômica e sociológica, e entre os
formuladores de políticas públicas. (GAMA, 2014, p. 55)
As políticas públicas articuladas nesse sentido devem ser capazes de promover a
igualdade no mundo do trabalho e a autonomia econômica das mulheres urbanas, do campo,
das águas e da floresta, para reduzir / eliminar a feminização da pobreza. É preciso considerar,
no desenvolvimento de políticas públicas, conjuntamente, as desigualdades de classe, raça e
etnia para que sejam traçadas ações especificas que contribuam para a eliminação das
desigualdades na divisão sexual do trabalho, com ênfase nas políticas de erradicação da
pobreza, e na valorização da participação das mulheres no desenvolvimento do país, como já
proposto no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. The human condition. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1958.

BRASIL. IPEA. Nota técnica n. 24. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014.
Brasília, 2016.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2008.

GAMA, Andrea de Souza. Trabalho, família e gênero – impactos dos direitos do trabalho e
da educação infantil. São Paulo: Cortez, 2014.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A classe operária tem dois sexos. In: Estudos
Feministas, v. 1, ano 2, p. 93-100, 1994.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.


Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.

KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA,
Helena; LABORIE, Françoise; DOARE, Hélène le; SENOTIER, Danièle. Dictionnaire
critique du féminisme. Ed. Presses Universitaires de France. Paris, 2000. Traduzido por
Miriam Nobre em agosto de 2003. Disponível em <
https://poligen.polignu.org/sites/poligen.polignu.org/files/adivisaosexualdotrabalho_0.pdf >.
Consultado pela última vez em 15 set 2017.

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in Brazil. Est. Econ., São Paulo, vol. 42, n.3, p. 457-487, jul.-set. 2012.

MADALOZZO, Regina. Occupational segregation and the gender wage gap in Brazil: an
empirical analysis. Economia Aplicada. vol.14 no.2 Ribeirão Preto Apr./June 2010.

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POESCHL, Gabrielle. Desigualdades na divisão do trabalho familiar, sentimento de justiça e


processos de comparação social. In: Análise Psicológica, 2010, 1 (XXVIII), p. 29-42.

SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of
history. New York, Columbia University Press. 1989. Tradução Christine Rufino Dabat e
Maria Betânia Ávila. Disponível em < moodle.stoa.usp.br/mod/resource/view.php?id=39565
>. Consultado pela última vez em 15 set 2017.

VAN DER LINDEN, Marcel. História do trabalho: o velho, o novo e o global. In: Revista
Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.

VIANNA, Segadas. O trabalho até a idade moderna. In: SÜSSEKIND, Arnaldo.


MARANHÃO, Délio. VIANNA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. 11. ed. São
Paulo: Ltr, 1991. vol. 1.

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Gênero e mundo do trabalho: uma reflexão sobre o mercado de trabalho


brasileiro entre os anos de 2004 - 2014)

Caíque Diogo de Oliveira1

Resumo: O alvorecer do século XXI trouxe expectativas de renovação para a economia


brasileira, com o país figurando entre os países emergentes no cenário internacional
apresentando crescimento do produto interno bruto, valorização da renda e criação de postos de
emprego. Esse cenário refletiu no mercado de trabalho com a diminuição da taxa de
desemprego, valorização do salário mínimo e renda, chegando a se cogitar a hipótese de um
cenário de pleno emprego. Acompanhado do crescimento econômico, verifica-se a presença
cada vez maior do trabalho feminino com registro em carteira. Utilizando-se de pesquisa
documental e bibliográfica investigamos os bancos de dados e pesquisas da área econômica,
amparados pelo conceito de interseccionalidade de gênero e cor/raça, para verificar se houve
mudanças estruturais em relação as variáveis gênero e cor/raça no período de 2004-2014.
Embora no período estudado o desemprego tenha variado de 12% em 2004 para 5% em 2014,
desde o início até o fim do período as mulheres mantêm taxas de desemprego maiores que os
homens, mesmo se consideradas cor/raça nas análises. Há também a ocorrência de uma
hierarquia no rendimento médio mensal não alterada durante o período em que os homens
brancos figuravam o topo seguidos das mulheres brancas que ganham mais que homens negros,
enquanto as mulheres negras são quem mais sofrem essa disparidade ganhando os menores
rendimentos. Apesar do desenvolvimento econômico brasileiro durante o período de 2004-
2014, verificamos a ocorrência de assimetrias de gênero e cor/raça não se alteradas durante o
período.
Palavras-chaves: Mercado de trabalho; interseccionalidades; Gênero.

1
Mestrando PPGEd – UFSCar campus Sorocaba e bolsista CAPES; caique.diogo@outlook.com.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p458 458


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Introdução

A inserção do Brasil no processo de mundialização do capital a partir da década de


1990 com a abertura comercial e a implantação de políticas públicas de cunho neoliberal trouxe
diversas mudanças para a classe trabalhadora brasileira. No início dos anos 2000, estudos já
sinalizava com as questões de gênero e trabalho feminino que envolviam o contexto esse
contexto econômico apontando para o aumento na participação das mulheres no mercado de
trabalho, atuando no setor de serviços e/ou empregos precarizados, em geral nos países da Ásia
e América Latina (HIRATA, 2002; GUIMARÃES, 2004; ANTUNES; ALVES, 2003).
Contudo, a sociedade contemporânea vivência um cenário cada vez mais crítico, que tem
transformado as relações de trabalho no mundo todo, desde os países de capitalismo avançado
até os países considerados periféricos do processo de produção de valor-capital.
Inserido no processo de globalização, o Brasil tem ocupado uma posição de pouca
autonomia para suas escolhas de desenvolvimento industrial e tecnológico, apesar destes
processos de dominação em que o Brasil está inserido, o início dos anos 2000 são marcados
com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Partido dos trabalhadores e a
tentativa de aplicação de um projeto econômico neodesenvolvimentista, o mercado de trabalho
brasileiro passou por diversas mudanças, tanto na oferta quanto na demanda de emprego. Nesse
período o Brasil, junto a Rússia, Índia, China e África do Sul passaram a figurar como países
emergentes entre o cenário internacional com crescimentos acelerados do produto interno bruto
e de investimentos de capital externo. Além da diminuição na taxa de desemprego, houve
também uma valorização do salário mínimo e consequentemente dos salários reais – muitas
vezes decorrentes de políticas públicas de valorização do emprego.
O desenvolvimento econômico não é um fenômeno que abrange todos os indivíduos
da mesma forma, nosso estudo irá se utilizar de fontes documentais e bibliográficas para
investigar como se comportam as variáveis gênero e cor/raça2 no mercado de trabalho brasileiro
entre os anos de 2004 e 2014.

Método

Neste estudo de caráter exploratório, cujos dados primários e secundários que remetem
as condições do mercado de trabalho brasileiro, realizamos uma coleta em bancos de dados

2
Chamaremos de homens negros e mulheres negras aqueles indivíduos auto-declarados pardos e pretos pelos
critérios do IBGE, uma vez que essa medida também é adotada pelo IPEA para a organização de dos dados que
serão utilizados nesse estudo.

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como IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - como fontes primárias e os estudos
realizados por economistas e estudos direcionados a questões de gênero e cor/raça realizados
pelo IPEA – Instituto Brasileiro de Pesquisa econômica -. Os periódicos nacionais pesquisados
para a fundamentação dos dados foram da área de economia.
Para a instrumentalização do olhar investigativo iremos recorrer a dois conceitos: lugar
de fala e interseccionalidade como forma de aprofundamento dos dados mais gerais sobre o
contexto do mercado de trabalho brasileiro no período.
O trabalho de Ribeiro (2017) intitulado O que é lugar fala? Procura refletir sobre a
questão do lócus social do sujeito discursivo. A autora inicia o trabalho desvelando as
dificuldades que as intelectuais negras enfrentam para se fazerem presentes nos discursos
universitário e também nos espaços fora das universidades, dificultando articulações contra as
opressões de gênero e etnia/raça. Embora o livro esteja focado no debate sobre o papel do
feminismo negro e o conceito de lugar de fala como instrumento discursivo, refletindo sobre o
lugar que cada indivíduo pode ocupar no debate público Ribeiro (2017, p.61) entende que “Ao
ter como objetivo a diversidade de experiências, há a consequente quebra de uma visão
universal” (RIBEIRO, 2017, p.61), o que se propõe com a concepção de lócus social é
estabelecer novos caminhos de concepção e validação, diferentemente das críticas que se faz a
esse conceito argumentando que ele tende a encerrar discussões e restringir a troca de ideias
Considero importante ressaltar o lugar de fala ocupando no debate por esse estudo.
Portanto, nesse momento do texto quero deixar de lado a terceira pessoa e me referir ao leitor
a partir da primeira pessoa para delimitar meu lugar de fala nesse estudo. Sou um jovem
estudante que me identifico com o gênero masculino. Ao ser um homem olhando para o trabalho
feminino, farei um esforço de não descrever os sentidos das opressões do mercado de trabalho
assumidos na condição feminina, assim buscarei apresentar os dados no sentido de auxiliar e
contribuir com uma reflexão sobre as condições objetivas as quais estão inseridos os sujeitos.
Durante muito tempo, os estudos sobre a condição da mulher na sociedade tenderam a
olhar para a mulher como categoria genérica e universal fazendo o uso do termo mulheres como
elemento analítico (HIRATA, 2014) para levar em consideração as diferenças existentes entre
a condição humana das mulheres brancas, indígenas, negras, ou entre trabalhadoras e burguesas,
chegou-se à conclusão de haver uma impossibilidade de se pensar a mulher – e os próprios
movimentos sociais feministas - a partir de uma perspectiva universal.
Para que a reflexão proposta nesse texto alcance essas heterogeneidades que compõe
a realidade do gênero feminino, iremos recorrer ao conceito de interseccionalidade. No esforço
de olhar as transformações no mundo do trabalho Hirata (2014, p.61) aponta que

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Nessa perspectiva, a ideia de um ponto de vista próprio à experiência e ao


lugar que as mulheres ocupam cede lugar à ideia de um ponto de vista próprio
à experiência da conjunção das relações de poder de sexo, de raça, de classe,
o que torna ainda mais complexa a noção mesma de “conhecimento situado”,
pois a posição de poder nas relações de classe e de sexo, ou nas relações de
raça e de sexo, por exemplo, podem ser dissimétricas. Assim, um primeiro
ponto para aprofundamento é a análise do conceito de “conhecimento situado”
ou de “perspectiva parcial” da epistemologia feminista a partir dos conceitos
de interseccionalidade ou de consubstancialidade.

A análise interseccional procura estudar como os vários eixos de poder – como gênero,
raça, classe, etnia, orientação sexual, idade/geração, entre outras – se constituem e entrecruzam
em meio as relações sociais estabelecendo desigualdades sociais e hierarquizações (HENNING,
2015), ou como afirma Crenshaw3 (2002, p.177)

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como
ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Entre as principais contribuições para a análise interseccional foi realizada por Davis
(2016), olhando para a realidade americana, a autora nos faz uma denúncia sobre o fato de
grande parte dos estudos feitos para resgatar a história dos ocorridos no período de exploração
da mão de obra escravizada esqueceram do papel das mulheres nesse período, em especial
dessas diferenciações em relação a gênero, raça e classe, assim como as opressões e lutas
enfrentadas por essas mulheres. Além disso a autora chama a atenção para o papel das mulheres
negras nas diferentes lutas por direitos como o voto ou os direitos a liberdade nos oferecendo
uma reflexão sobre a necessidade de olharmos para a realidade das mulheres negras.

Notas sobre o mercado de trabalho brasileiro entre 2004 - 2014

Como observaremos no gráfico abaixo, a trajetória da taxa de desemprego assume um


caráter declinante no período entre 2004-2014. O mercado de trabalho brasileiro inicia o ano
de 2004 apresentando uma taxa de desocupação de aproximadamente 11,7% e encerra o ano de
2014 com 4,3%. Para Mattos (2015) a redução significativa do número e da taxa de desemprego

3
Conforme afirma Henning (2015) foi Kimberlé Crenshaw quem utilizou o conceito de interseccionalidade pela
primeira vez, inicialmente como “metáfora” e posteriormente em seus textos como “categoria provisória”

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está diretamente associada ao fato de que no período estudado ocorreu crescimento do número
de postos de trabalho com carteira assinada acima do crescimento da PEA. Embora o baixo
índice verificado entre os anos de 2013 e 2014 tenha acendido no Brasil uma discussão sobre
uma situação de pleno emprego. Mattos e Lima (2015) realizaram um estudo com bases
econométricas analisando o desemprego e o crescimento econômico ocorrido entre o período
de 2002 a 2013, os autores argumentam com base existência de elevada informalidade,
persistência de parcela expressiva de mão de obra subutilizada e tendo como referência algumas
reflexões teóricas, que a economia brasileira não operava em pleno emprego em meados de
2013, apesar de ter, naquele momento, atingido o patamar mais baixo de uma longa série
histórica.
Gráfico 1: Taxa média anual de desemprego no Brasil

Fonte: IPEADATA, 2015


Elaboração: Próprio autor

Durante o período de 2004 – 2014 certamente pode ser considerado como um período
com mais postos abertos do que fechados no mercado de trabalho brasileiro. No período foram
gerados pouco mais de 14 milhões de empregos. Ocorrendo picos, como em 2010, com a
criação de mais de 2,1 milhões de empregos. E até durante a crise financeira de 2008-2009,
quando a instabilidade e a redução da atividade econômica ocorreram quase que em caráter
global, o Brasil conseguiu fechar o ano de 2008 com crescimento no PIB de 5% e 1,5 milhões
de novos empregos formais e 2009 com 0,2% de PIB e 995 mil novos postos de trabalho
(MATTOS, 2015; SABOIA, 2014).
Esse aumento quantitativo nos empregos formais nos levam a apontar a formalização
das relações de trabalho que até então eram muito informais, ou seja, um processo de
progressivo aumento da formalização das relações de trabalho, medida que abrange o emprego
assalariado com carteira assinada, funcionários estatutários do setor público e empregadores

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(MATTOS, 2015). Saboia (2014, p.120) aponta que os empregos com carteira assinada
passaram a corresponder de 44% para 55% da PEA – População Economicamente Ativa –.
Como também

[...] No caso dos direitos trabalhistas, seu não cumprimento costuma resultar
em processos na Justiça do Trabalho, usualmente ganhos pelos empregados.
Por outro lado, o governo aumentou a fiscalização nas empresas para cobrar o
cumprimento da legislação trabalhista. Finalmente, a própria melhoria do
mercado de trabalho observada no período aumentou o poder de barganha dos
trabalhadores, com a possibilidade de escolherem melhores empregos que
respeitam a legislação trabalhista

Conforme apontam alguns estudos, apesar do aumento da expansão econômica e dos


empregos formais no Brasil durante o período de 2004 – 2014, as vagas de emprego criadas
estão majoritariamente na faixa de remuneração daqueles/daquelas que recebem até um salário
mínimo e entre um e dois salários mínimos.
Durante o período de 2011-2013, Saboia (2014) aponta que em alguns segmentos de
serviços especializados, como nas áreas médica e de ensino, e em determinados setores da
indústria, a geração de empregos atinge níveis salariais mais elevados, mas para o conjunto do
mercado de trabalho ela está limitada aos salários mais baixos. Todavia, é importante ressaltar
o aumento da renda média no período estudado. Pois, de um lado, há uma expansão na atividade
econômica com direitos trabalhistas ainda pouco alterados pelo contexto neoliberal e de outro
lado, políticas públicas de valorização do salário mínimo e diminuição da pobreza com
intervenção direta do Estado4.
Esse dado sobre o desemprego, renda e informalidade, apesar de importante, possui
limites para compreender o fenômeno do mercado de trabalho brasileiro, tomado por si só
oculta realidades e vivências de diferentes nesse contexto. Assim, vale lembrar o discurso de
Sojourner Trouth (2018) sobre o papel e a vida das mulheres negras, onde ela ressalta que as
mulheres negras sempre trabalharam e são esquecidas pelo olhar dominante. Inspirado na
preocupação de Trouth de não ocultar a realidade das mulheres – no nosso caso negras e brancas
– optaremos por olhar esses dados gerais buscando sempre questionar: Quanto essas taxas

4
Nesse período foi possível verificar um aumento no consumo de bens duráveis e serviços por aquelas camadas
da estrutura de renda que até então estavam privados desse consumo, todavia como afirma Pochmann (2014) isso
não significa que esses indivíduos passaram a constituir a classe média brasileira, uma vez que a ascenção de classe
não se dá pelo consumo, mas pela detenção dos meios de produção. Para Pochmann, assim como para Chauí, essa
“medianização” da sociedade brasileira não encontra fundamentação na realidade concreta, sendo então mais uma
implicação do contexto neoliberal como mais uma forma de fragmentação das classes sociais e das organizações
sociais que pretendem romper com as estruturas do capital.

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gerais do mercado de trabalho têm afetado mulheres e homens, pessoas autodeclaradas brancas
e negras?

Desafios estruturais do mercado de trabalho brasileiro entre 2004 - 2014

Há no Brasil, e em grande parte do mundo, uma ausência de método para quantificar


com precisão a população empregada/desempregada. Pinheiro et alli (2016) e Alves (2013)
realizam suas análises a partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -
IBGE -, cuja categoria central é dada pela População Economicamente Ativa – PEA – e segundo
os dados de Alves a taxa de participação dos homens na PEA era em 1960 de 77,2% enquanto
as mulheres ocupavam 16,5% dessa população, em 2010 a diferença de participação foi para
67,1% composta por homens e 48,9% para mulheres. Com base nesses dados Pinheiro et alli
(2016) afirma que algumas ressalvas devem ser feitas: primeiramente sobre a imprecisão do
método, pois é evidente que a população feminina sempre trabalhou e não esteve fora do
mercado de trabalho, essas mulheres estavam empregadas em grande parte na produção
agropecuária e nos trabalhos domésticos – lugares não contemplados no método de análise. Em
segundo lugar, essa ausência das estatísticas não foi sentida da mesma maneira por mulheres
de diferentes etnias/raças, as mulheres negras e indígenas ocuparam postos de trabalho que
passaram invisíveis a essa estatística – postos já supracitados.
Com relação ao desemprego, de 2004 - 2014, as mulheres mantêm taxas de
desemprego maiores que os homens, mesmo se consideradas cor/raça nas análises (PINHEIRO
et ali, 2016; LEITE, 2017).
Gráfico 2 – Taxa de desocupação da população brasileira por sexo e cor/raça para o
período de 2004-2014

Considerando também a educação dos grupos analisados, nota-se que é nas faixas
extremas de anos de escolaridade que se encontram as menores taxas de desemprego, ou seja,

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os indivíduos com muitos anos de estudo e os indivíduos com o menor tempo de estudo, assim
o desemprego tem se espalhado pelas camadas com escolarização média – 5 a 11 anos de estudo
(IPEA, 2013). A condição que se encontra sob maior vulnerabilidade no mercado de trabalho
são as mulheres negras com 5 a 11 anos de estudo, portanto aquelas com formação do ensino
fundamental e médio são as maiores vítimas do desemprego no Brasil.
Diversos estudos têm nos informado que há uma diferenciação entre cor/raça e gênero
com relação aos rendimentos médios desses grupos, a intersecção desses dois atributos na
análise nos conduz a descobertas de diferentes desigualdades. No ano de 2004, Segundo Pinto
(2006) verifica-se a desigualdade de rendimentos entre gênero e cor/raça, estruturando uma
hierarquização nos rendimentos, donde os homens brancos figuravam o topo seguidos das
mulheres brancas que ganham mais que homens negros, enquanto as mulheres negras são as
que mais sofrem essa disparidade ganhando os menores rendimentos. 10 anos depois, com uma
taxa de desemprego menor em relação a 2004, o Brasil não conseguiu superar essas hierarquias,
o homem branco continua com o maior rendimento, seguido da mulher branca, homem negro
e mulher negra, respectivamente (LEITE, 2017). E ainda, é importante ressaltar entre essas
desigualdades de gênero em relação a renda, o fato das estatísticas apontarem que as mulheres
brancas ainda recebem 60% do valor relativo aos homens brancos e as mulheres negras 40%
em relação ao homem branco (PINHEIRO et ali, 2016, p.11).
Entendendo o trabalho precarizado como aquele caracterizado por ser realizado sem
carteira assinada, renda de até 2 salários mínimos, trabalho por conta-própria. Considerando
esses requisitos na análise Pinheiro et ali (2016, p.11) argumenta haver uma queda expressiva
do trabalho precarizado entre 2004 – 2013 “[...] com leve tendência de aumento a partir de então
[2014], corroborada pelos dados da PNAD 2014.” Entre o trabalho precarizado, a mulher negra
é “sujeito preferencial” nessas ocupações, do total de mulheres negras ocupadas em 2004, 50%
estavam em condições de trabalho precarizadas, em 2014 esse percentual caiu para 39%, em
seguida aparece os homens negros – 45% em 2004 e 32% em 2014 -, mulheres brancas – 38%
em 2004 e 27% em 2014 – e por último os homens brancos – 31% em 2004 e 20% em 2014.
Além do aumento da participação da mulher no mercado de trabalho formal – e maior
visibilidade desse fenômeno pelas estatísticas - Guimarães (2009, p.27) observa nesse início de
século XXI no Brasil uma “recomposição etária da força de trabalho”, expressada no crescente
uso dos trabalhadores mais experientes, realizando um movimento de exclusão dos mais jovens
e os mais idosos, porquanto a convergência deste movimento de queda dos jovens no quadro
de empregos, alterou o perfil educacional dos indivíduos economicamente ativos. Em relação
a recomposição etária argumentada pela socióloga Nadya Guimarães podemos estabelecer um

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cruzamento com os dados de Lima, Rios, França (2013), assim verificamos que a aplicação da
força de trabalho feminina com idades de 10 a 15 anos, entre os anos de 1995 – 2009, a
participação das mulheres brancas nessa faixa etária caiu de 15,7% para 6,9%. No caso das
mulheres negras, caiu de 19,3 para 8,3%. Apesar da aparente redução, é importante assinalar
que essas mulheres por iniciarem suas trajetórias profissionais ainda no ensino fundamental
tendem a não alcançar maiores anos de escolaridade, considerando que a atual conjuntura, como
supracitado por Guimarães (2009), requer cada vez mais anos em sala de aula, olhares precisam
ser direcionados para essas adolescentes.
Segundo Carvalho (2003) e Carvalho, Senkevics, Loges (2014) as mulheres têm
conseguido alcançar mais anos de estudo em relação aos homens no Brasil. Esse quadro é
resultado de mudanças que vêm ocorrendo desde os anos 1960 quando os homens brasileiros
estavam em maior número no ensino superior e médio, a democratização da educação ocorrida
junto a urbanização e principalmente com as conquistas da constituinte de 1988, possibilitaram
o aumento do alunado feminino em todos os níveis de ensino. Já a recente ampliação do acesso
ao ensino superior ocorrida no Brasil nos anos de 1990 - 2000 possibilitaram as mulheres uma
inserção cada vez maior no ensino superior.
O estudo de Lima, Rios, França (2013), Pinto (2006) mostram que na categoria de
funcionários públicos e/ou militares, encontra-se um contingente significativo de mulheres
trabalhando nas áreas de educação e saúde, a presença feminina se destaca. Sob a burocracia do
Estado, o preenchimento dos postos de trabalho se dá de maneira diferente em relação a
iniciativa privada. Como afirmam os pesquisadores do IPEA Lima, Rios, França (2013, p.68):
Embora sejam necessários estudos mais aprofundados sobre o assunto, não se
pode deixar de notar que, na categoria de funcionários públicos e militares,
cujo ingresso exige impessoalidade, meritocracia e certo grau de
escolarização, dado o caráter do concurso público, percebe-se que, nestes
segmentos, de modo geral, as mulheres possuem boa inserção, chegando a
superar os homens, situação singular, quando comparadas as demais
categorias analisadas.

Este parece ser um bom indicio da falta de democracia e justiça nos processos de
recrutamento e seleção da iniciativa privada. Como assinalado por Hirata (2002) A globalização
tem aumentado a divisão sexual do trabalho, podemos também iniciar uma reflexão sobre como
os padrões estéticos e sexistas tem reforçado barreiras com relação a gênero, classe e cor/raça.

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Considerações Finais

No Brasil um “[...] país, [onde] o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano


com o rural; o exótico com o civilizado – e o mais arcaico e o mais moderno coincidem, um
persistindo no outro, como uma interrogação. ” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.19). Em
um período em que a classe trabalhadora se depara cada vez mais com suas heterogeneidades e
distanciamentos entre si própria e diversas lutas sociais se travam no espaço de relações sociais
desiguais. Esse ensaio é uma tentativa de apontar que mesmo diante de avanços sociais para as
mulheres ocorridos no período entre 2004 – 2014 como a Lei Maria da Penha - no campo das
políticas públicas - ou também o cenário brasileiro de aumento nos postos de trabalho e
ocupação da PEA brasileira com aumento do trabalho decente para as mulheres, ressaltamos
aqui que o início do século XXI continuou a reproduzir recorrentes desigualdades na
intersecção gênero, classe e cor/raça. A manutenção de algumas hierarquias sociais parece nos
mostrar como as desigualdades estão multiplicadas dentro da classe trabalhadora, de modo a
demandar estudos com aprofundamentos nessas problemáticas.
Embora desde meados do século XX vem aumentando a participação das mulheres no
mercado de trabalho formal (HIRATA; LOMBARDI; PAIVA, 2016; LEITE, 2017) ou no
mundo produtivo fabril (ANTUNES, 2009), a ampliação do trabalho feminino no mundo do
trabalho, em especial nos empregos formais, faz parte do processo de emancipação feminina
das formas de exclusão social, todavia, é importante que essa luta seja reforçada por questões
tanto de interseccionalidades apontando as assimetrias presentes no mundo do trabalho e nesse
processo de inserção das mulheres, quanto as condições de emprego e trabalho que essas
mulheres se encontram inseridas.
Uma consideração final também deve ser feita em relação as limitações do método
utilizado. Com base no pensamento de Cox (2009) nos parece importante olhar também para
as mulheres transexuais, e como suas trajetórias foram marcadas em um período de ampliação
de empregos no Brasil, como foi experimentado entre 2004 – 2014.
Por fim, este capitalismo de influência neoliberal, tem despendido esforços para a
redução dos direitos dos trabalhadores com reformas – e projetos de reforma – protagonizados
pelo Estado. Espero com esse ensaio contribuir com uma reflexão do tempo presente, esperando
no longo prazo estabelecer comparativos com os dados aqui levantados. Será que as
desigualdades irão se dissipar? Isso só o tempo pode nos dizer.

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A homossexualidade vista por dentro: estudo de casos sobre a adoção por casais
homoafetivos1

Marcelly Olivia Fernandes Amorim2


Iane Ulhoa Faria3

Resumo: Este trabalho pretende mostrar, por meio de estudo de casos, as diferentes
experiências que contribuem com as abordagens sobre adoção de filhos (as) por casais
homossexuais e/ou em relacionamentos homoafetivos. Foram entrevistados três casais
homossexuais: dois são constituídos por mulheres e um por homens. Este estudo foi
desenvolvido buscando elementos que evidenciem o preconceito e a discriminação
relacionados ao gênero, as formas tradicionais de família em contraposição aos “novos”
arranjos familiares e à orientação sexual homoafetiva, buscando identificar as diferenças e
semelhanças de cada processo, principalmente nos sentidos jurídico, sociológico e
antropológico. Comparações feitas, notamos a falta políticas voltadas à conscientização da
sociedade com relação ao princípio da alteridade e aceitação das diferenças. Acreditamos que
é necessário dar visibilidade à diversidade de arranjos familiares. É preciso que as diferenças
sejam colocadas em questão de maneira a possibilitar a garantia de direitos da população
LGBT. Ainda são necessárias e urgentes as leis específicas à adoção homoafetiva, bem como
a lei contra a homofobia, para que os direitos a respeito da população LGBT sejam
considerados e levados em questão.
Palavras-chaves: Arranjos familiares. Homossexualidade. Adoção. Preconceito.

1 Este artigo utiliza entrevistas realizadas entre os anos de 2011 e 2012 e, também, para a
análise, a legislação vigente à época, o que deixa de lado tanto reformas nas leis utilizadas quanto novos
entendimentos quanto aos direitos sexuais e reprodutivos de brasileiras e brasileiros. Cabe destacar ainda que
não foram visitados os processos em que as famílias estavam inseridas e, com isso, eles foram interpretados
apenas a partir do ponto de vista das (os) entrevistadas (os).
2 Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais; mestranda em Ciências Sociais; marcellyolivia@yahoo.com.br.
3 Universidade Federal de Uberlândia/Instituto de Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais; mestranda em Ciências Sociais; ianeulhoafaria@gmail.com.br.

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INTRODUÇÃO

Entre as várias instituições sociais que compõem uma sociedade, a família é uma das
que tem sido mais afetada no que diz respeito às transformações na sua estrutura tradicional.
Segundo Giddens (2000), a modernidade é contrária à tradição, contudo, devido ao
predomínio existente da família patriarcal, antidemocrática, com costumes e hábitos próprios
que prevaleceram em diferentes esferas da vida cotidiana, emergem empecilhos ao
surgimento de novas possibilidades e oportunidades, diferentes daquilo até então estabelecido.
Várias têm sido as mudanças sociais, nas sociedades ocidentais, que contribuem para
o surgimento de novas configurações familiares: a entrada da mulher no mercado de trabalho,
o aumento exponencial das taxas de divórcio, o progresso científico, principalmente no que
diz respeito às técnicas de fertilidade, entre outras. Todos estes fatores exercem fortes
influências que abalam as relações tradicionais relacionadas à família.
Surgem como fruto de um processo histórico as famílias monoparentais que
compreendem um adulto (pai ou mãe) a viver com o filho (a) ou filhos (as), famílias
recompostas que reagrupam pelo menos um membro do casal que é divorciado com filhos
(as) a outro membro também já com filhos (as) de outra relação, e cresce também o número
de famílias chefiadas por casais que vivem em uniões homoafetivas, tentando afirmar-se
juridicamente em diversas sociedades ocidentais. Todas estas mudanças implicam
consequências que influenciam diretamente os padrões de comportamento entre gerações, no
que diz respeito ao que seria socialmente esperado destes indivíduos e, consequentemente,
dando lugar a um novo ciclo de alterações na sociedade, em geral.
A instituição família sofre algumas alterações no que se refere à vida sexual e
reprodutora de seus membros. Ocorre uma separação entre sexualidade e reprodução, os
indivíduos têm a possibilidade de escolha de quando terão filhos (as) ou se têm vontade de tê-
los (as). A vida sexual deixa, assim, de ser algo dominado exclusivamente pelas relações
heterossexuais, conforme também aponta Giddens (2005).
A partir dessas questões, o presente trabalho foi desenvolvido, enfatizando
abordagens do ponto de vista sociológico como, por exemplo, a dimensão da família – que
deve ser pensada a partir de novas configurações, de forma contemporânea, para que haja a
compreensão de expressões, como “novos arranjos familiares” – em contraste com o modelo

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de família nuclear, e identificando os significados jurídicos dados a estas configurações


durante o processo de adoção.

Assim, pretende-se, neste trabalho, explicitar as posições favoráveis e as imposições


contrárias à adoção de crianças por casais homoafetivos partindo da análise específica de três
casos de pedidos de adoções por casais homossexuais.

FAMÍLIA: NOVOS CONCEITOS E DISCUSSÕES

De acordo com Zambrano (2006), a sociedade ocidental percebe a família como a


mais natural das instituições, o núcleo organizador a partir do qual irão estruturar-se e serão
transmitidos os valores mais importantes da nossa cultura. A sociologia clássica universalizou
e difundiu o conceito de família nuclear colocando em evidência a capacidade de seus
membros de cooperar economicamente, reproduzindo e educando seus filhos (as) em
ambientes que proporcionem apoio emocional para que eles possam aprender as regras do
grupo, e, assim, transformar-se em adultos produtivos.

Os teóricos funcionalistas, desde os anos de 1940, argumentam que a família nuclear


é a mais apropriada para alcançar esses objetivos. A família nuclear é aquela composta por um
homem e uma mulher que convivem e mantêm um relacionamento sexual aprovado
socialmente – já que é um relacionamento heterossexual – tendo no mínimo um (a) filho (a).
Como exemplo, tem-se a família nuclear tradicional, na qual a esposa trabalha em casa sem
qualquer remuneração, enquanto o marido trabalha fora de casa por um salário. Neste arranjo
familiar o homem se torna “o provedor primário e a autoridade última” (POPENOE 1998,
apud BRYM et al, 2006). Assim, a visão funcionalista trata a família como uma instituição
com a dupla função, reprodução e socialização, através da divisão de papéis que se estabelece
entre o masculino e o feminino.
É necessário perceber que, ao analisar as relações sociais na contemporaneidade, esse
modelo familiar sofre transformações. É notável a permanente decadência da família nuclear
tradicional com base em uniões formais entre homens e mulheres e o aumento da incidência
da mãe que não mais trabalha somente dentro de casa serem vistos como um fracasso. Na
concepção sociológica dos funcionalistas, o aumento da criminalidade, do uso de drogas
ilegais e da pobreza tem origem no fato de que muitas crianças atualmente não vivem em
domicílios biparentais com mães que só trabalham em casa. E, acreditando nisso, defendem
uma série de reformas legais e culturais que visam fortalecer a família nuclear tradicional, de

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maneira a tornar mais difícil o divórcio ou incentivando as pessoas a enfatizar menos a


felicidade individual em detrimento da responsabilidade para com a família (POPEONE, 1988
apud BRYM et al, 2006).
A família nuclear como forma ideal e dominante de família apenas pode ser
considerada como tal diante de específicas condições sociais e históricas. Quando ocorrem
significativas mudanças destas condições, surgem outros arranjos familiares e a família
nuclear deixa de ser predominante. Por isso é que o funcionalismo não consegue oferecer uma
representação precisa das relações familiares em qualquer ponto da história. A perspectiva
funcionalista partiu dos padrões familiares existentes nas sociedades coletoras e caçadoras e
aplicou os ideais de família presentes nestas sociedades como modelo padrão e viável de
família. Não é possível trazer este discurso para sociedade atual, mostrando que ocorre um
enfraquecimento da família, enquanto na verdade o que acontece é uma mudança na forma
constitutiva destas famílias.
Vaitsman (1994) afirma que o que caracteriza a família e o casamento numa situação
pós-moderna é justamente a inexistência de um modelo dominante, seja a respeito das práticas
ou do discurso normatizador destas, em qualquer contexto social. Ao resgatar a história do
desenvolvimento da família, verificou-se que questões preestabelecidas nas famílias
patriarcais como o casamento, o trabalho, a sexualidade e o amor transformaram-se em
projetos individuais.

A forma hierárquica de família foi substituída, dando espaço para a sua


democratização. Gerando relações mais igualitárias e de respeito recíproco. O que permite
considerar que a entidade familiar não se mostra em decadência conforme alguns autores
expõem. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais, como aponta, por exemplo,
Giddens (2000).
O vínculo familiar que liga um adulto a uma criança se desdobra em quatro
elementos, segundo Zambrano (2006), que não são necessariamente concomitantes, a saber:
(a) o vínculo biológico, dado pela concepção e origem genética; (b) o parentesco, vínculo que
une dois indivíduos em relação a uma genealogia, determinando o seu pertencimento a um
grupo; (c) a filiação, reconhecimento jurídico desse pertencimento de acordo com as leis
sociais do grupo em questão e (d) a parentalidade, que se refere ao exercício da função
parental, implicando cuidados com a alimentação, vestuário educação, saúde, entre outros,
que se tecem no cotidiano em torno do parentesco.

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A abrangência conceitual das relações interpessoais acabou refletindo no conceito de


família. As mudanças sociais e a evolução dos costumes levaram a uma verdadeira
reconfiguração, da conjugalidade e da parentalidade. Com a “repersonalização” das relações
familiares buscou-se atender aos interesses mais valiosos da sociedade como “pessoas
humanas”, que envolve afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor.
O preconceito com relação às novas formas de família, quando gerado a partir da
percepção de gênero impede, muitas vezes, que novos arranjos familiares possíveis possam se
efetivar. Como por exemplo, a adoção de crianças por casais homossexuais que desejam
constituir uma família, já que pela forma biológica não é possível. Fato que merece uma
análise, visto que não se pode considerar a existência de um único arranjo familiar, por existir
famílias com pais divorciados, órfãos de pai ou de mãe que são criados por um dos dois e
outras diversas formas possíveis. E o divórcio ou mesmo a morte do pai ou da mãe não é fator
significativo para tratar a família assim constituída, de modo a diferenciá-la de outras, como
também não se pode impedir a maternidade ou paternidade em função da orientação
homossexual. Assim, cabe ao Estado, enquanto executor legislativo e jurisdicional, o dever
jurídico-constitucional de implementação de medidas consideradas necessárias e
indispensáveis para a constituição e desenvolvimento das famílias.

Dessa forma, seguindo os passos que levam em consideração as relações de


afetividade nos mais diferentes e divergentes espaços, dos mais variados modelos de práticas
destas, com processos de confiança entre grupos que se completam e formam famílias
baseadas no companheirismo e no afeto, será visto de forma mais intensa no próximo capítulo
a questão da homoparentalidade4 juntamente com a questão da adoção de crianças por casais
homoafetivos na sociedade, sobre falhas e olhares das leis.

OLHARES JURÍDICOS: A ADOÇÃO NAS RELAÇÕES HOMOPARENTAIS

O processo de adoção é um ato jurídico de extrema complexidade e depende da


sentença para determinar o vínculo da adoção. O Estado é o responsável pelas crianças e
adolescentes cujos pais foram retirados do pátrio poder, fato que explica a intervenção no
decorrer da vida desses sujeitos. A constituição eliminou a distinção entre adoção e filiação ao

4 De origem na França, o termo homoparentalidade é utilizado para nomear as relações de


parentalidade exercidas por homens e mulheres homossexuais.

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deferir idênticos direitos e qualificações aos (às) filhos (as), proibidas quaisquer designações
discriminatórias.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabeleceu em seu artigo
n° 227, os Direitos da Criança no Brasil. Foi proposto o Estatuto da Criança e do Adolescente,
o ECA, visando regulamentar tal artigo da Constituição, inspirado nos Instrumentos
Internacionais de Direitos Humanos da ONU e, em especial, na Declaração dos Direitos da
Criança, seguindo os "Princípios das Nações Unidas para a prevenção da delinquência
juvenil", de acordo com as "Regras mínimas das Nações Unidas para a administração da
Justiça Juvenil" e as "Regras das Nações Unidas para proteção de menores privados de
liberdade”.
O Estatuto descreve que a criança ou o adolescente possuem o direito fundamental de
serem criados e educados no seio de uma família, seja ela natural ou substituta, pois considera
a criança e o adolescente como sujeitos de direito. Primeiramente, deve-se ter o entendimento
de que a adoção é uma forma particular de substituição familiar definitiva, sendo por isso um
instituto que atribui a condição de filho (a) ao (à) adotado (a), com todos os direitos e deveres,
extinguindo qualquer vínculo com a família biológica, com exceção dos impedimentos
matrimoniais, como é estabelecido no artigo n°41 do ECA. O que se pretende com a adoção é
o bem-estar do adotando, proporcionando a ele carinho, afeto, cuidados e principalmente
amparo familiar.
É importante ressaltar que, segundo Dias (2006), a lei não limita a adoção a quem se
encontra previamente inscrito e também não impede concessões de adoção em outras
situações. Existe uma lista para organizar os pretendentes, que deve ser obedecida. Para
efetuar a adoção, além de estar inscrito no cadastro de pretendentes à adoção é necessário
possuir os seguintes requisitos básicos, de acordo com o artigo n°42 do ECA: ser maior de
dezoito anos, independentemente de estado civil e, em caso de adoção conjunta, é
indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável,
comprovada a estabilidade da família. Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-
companheiros podem adotar conjuntamente contanto que acordem sobre a guarda e o regime
de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período
de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com
aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão. A adoção
ainda poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a
falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.

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A adoção por casais homossexuais não é abordada no ECA, embora não exista
nenhum argumento no estatuto que proíba tal ato. Existiram no país casos de adoção por
pessoas consideradas homossexuais nos últimos anos e, segundo Dias (2006), desde o ano de
2001, assim como são indeferidas, também são deferidas às uniões homoafetivas, direitos, no
âmbito do Direito das Famílias e das Sucessões, sendo reconhecidas como entidade familiar,
ou aplicada por analogia à legislação da união estável. Juízes deram parecer favorável, de
acordo com o Estatuto que visa o bem-estar da criança, mas também de acordo com o bom
senso e desprovimento de preconceito, além da aceitação da existência de formatos novos de
famílias, o que é a proposta em questão.
Não existe nenhuma lei que legaliza a adoção de crianças por casais homossexuais,
porém existem projetos de lei em tramitação, inclusive um projeto que criminaliza a
homofobia5. Em se tratando de referência legal sobre homossexuais, encontra-se na Lei Maria
da Penha6 algum respaldo, visto que a mesma conceitua família como relação íntima de afeto,
independente da orientação sexual. E, a partir do ano de 2011, tem-se o respaldo referente à
união estável entre pessoas do mesmo sexo, que a torna legal.
Ainda de acordo com Dias (2006), as decisões pioneiras relativas às uniões
homoafetivas aconteceram no Rio Grande do Sul, mas todos os estados têm tomado decisões
no mesmo sentido. É recorrente a concessão de direitos previdenciários, pensão por morte e a
inclusão em plano de saúde de casais homossexuais. São inúmeras as decisões que deferem
direitos sucessórios, assegurando direito à meação, direito real de habitação, direito à herança,
bem como o exercício da inventariança. São deferidos também alimentos e assegurado o
direito à curatela do companheiro declarado incapaz. Da mesma forma, é assegurada a adoção
e a habilitação conjunta, bem como declarada a dupla parentalidade quando são usados os
meios de reprodução assistida. No caso de violência reconhecida como doméstica, mesmo
quando entre parceiros homossexuais, são aplicadas medidas de proteção da Lei Maria da
Penha.
Juridicamente poucos avanços a respeito da união e da constituição de famílias por
casais homoafetivos e ou por homossexuais aconteceram e, mesmo que de forma gradativa,
tendem a acontecer cada vez mais. Dessa forma e a partir das questões expostas no decorrer
deste capítulo, tratar-se-á no próximo especificamente do estudo de três casos de pedidos de
adoção. A proposta é perceber, através das falas desses sujeitos, que viveram/vivem

5 Atitude hostil a respeito de homossexuais, como preconceito, medo, desprezo, entre outros.
6 Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher,
nesse caso independente da orientação sexual.

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ativamente o processo de adoção, como se dão essas relações, que ultrapassam teorias e
pesquisas relacionadas ao tema.

ESTUDO DE CASOS: ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS

Propõe-se aqui, como dito anteriormente, expor as diferentes experiências de vida de


três casais homoafetivos que passaram por processos de adoção que divergem entre si por
fatores específicos de cada um, cada qual com suas proposições e consequências. A ideia é
relacioná-los de maneira a perceber quais são as convergências e divergências existentes entre
tais processos a partir de algumas falas destes sujeitos que, para além das teorias sobre a
temática, muito tem a oferecer enquanto sustentação para a pesquisa.
O “Casal I”7, aqui denominado, mora em Uberaba – MG e é composto por: Ana
Cláudia (44 anos), negra, artista plástica e atriz de teatro e Cecília (52 anos), branca,
funcionária pública do Ministério da Saúde em Uberaba na área de Enfermagem. Elas se
conheceram no ano de 2002, e após cinco anos de relação adotaram seus dois primeiros filhos,
Laura e Ezequiel.8. Inicialmente a proposta de adoção era de três irmãos, L (8 anos), Laura (5
anos) e Ezequiel (3 anos). A mais velha deles, L (8 anos), não se adaptou e passou pelo
processo de extinção da ação de adoção. Não houve adaptação de sua parte, e a mesma não
quis ter “duas mães”. Dessa forma, foi adotada por outro casal, heterossexual, mas também
não se adaptou. Independente disso, os irmãos mantém contato, L continua morando no
abrigo (Lar) e vai ser adotada pela responsável do local. Hoje ela está com doze anos e tem
outra irmã que também mora lá, de quinze anos. Ambas continuarão no Lar após os dezoito
anos, já que serão adotadas, o que facilita a manutenção do contato entre os irmãos. Por
último adotaram o André (2 anos), quando ainda era bebê. Laura e Ezequiel são negros e
André é branco.
O “Casal II” mora em Uberlândia-MG, é formado por Fernanda (34 anos), branca,
nutricionista, porém atua como empresária e trabalha no setor de alimentação, e Camila (25
anos), branca, estudante de arquitetura, atua como empresária, junto com Fernanda. Fernanda

7 O casal I pediu que o nome delas e das crianças (com exceção da criança que não se adaptou e
voltou para o abrigo) fossem colocados como forma de combate ao preconceito, “não podemos ficar no
anonimato se quisermos que o preconceito acabe”. Já o casal II disse que poderia colocar, mas como o processo
da adoção ainda não foi efetivado e para evitar problemas foram usados nomes fictícios, assim como para o casal
III que pediu para que não fosse usado o nome verdadeiro deles.
8 Por achar mais adequado, escolhemos citar apenas as iniciais dos nomes dos filhos dos casais
II e III e da criança que foi adotada e não se adaptou à convivência com o casal I.

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trabalhava no Hospital de Clínicas da cidade de Uberlândia quando conheceu L, na época com


dois anos de idade, que lá foi internada com graves problemas intestinais. Nessa época,
Fernanda mantinha uma relação homoafetiva, com outra parceira que não a atual.
O “Casal III” também mora em Uberlândia-MG e é formado por Hugo (28 anos),
negro, possui segundo grau completo e Maurício (47 anos), branco, também com segundo
grau completo. Maurício foi casado por quinze anos, tem dois filhos biológicos deste
casamento, e outro filho biológico de quando era solteiro. É avô de duas crianças, filhas de
seu filho caçula. O filho do meio (24 anos) é homossexual e o mais velho (25 anos),
heterossexual. O casal se conheceu em um site de relacionamentos na internet e, após cinco
meses de conversa, Hugo decidiu se mudar para a cidade de Uberlândia, onde Maurício
reside. Hoje trabalham juntos em uma ONG da cidade, que presta serviço de assistência social
a pessoas portadoras do vírus HIV. A entrevista foi concedida apenas por Hugo, já que no dia
Maurício não pode participar por ter outro compromisso.

A partir dos relatos dos casais verifica-se a existência do desejo de possuir um


parceiro fixo e ter seus direitos em relação à união e constituição de família garantidos. Grossi
(2003) considera este fato como uma nova construção da identidade homossexual pautada no
amor, no companheirismo e não apenas na multiplicidade de parceiros, o que é constatado
aqui neste estudo de casos. Os depoimentos revelam que a família homoafetiva surge pautada
nos mesmos interesses de qualquer família heterossexual, embora não aconteça pela forma
biológica.
Percebe-se em algumas falas que após a adoção a relação homossexual passa a ser
vista pelas famílias dos casais de forma mais madura, como algo estabelecido e não
passageiro como achavam ou queriam que fosse. A adoção surge e efetiva a
homossexualidade diante da família, que passa aceitar a homossexualidade, ou, pelo menos,
desiste de pensar que poderia ser diferente. A adoção e o desejo de constituir família são
vistos como algo bonito, movido pelo amor, nobre, o que, nesse caso, torna a relação
homossexual menos banal. Existe uma visão do homossexual ligada à promiscuidade, uma
vez que não é voltada para reprodução e sim para o amor e pela atração sexual.
Com exceção do casal II, que se uniu após o pedido de adoção da criança (por uma
das mães), os outros casais optaram pela adoção por sentirem vontade de cuidar, dar carinho,
amor e família a uma criança. Fernanda porque se encontrou em uma posição na qual o amor
e o afeto foi inevitável (conheceu a L quando estava trabalhando em um hospital). Ana
Cláudia e Cecília porque acharam que a relação já estava madura o suficiente e que filhos (as)

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seriam bem-vindos (as). Hugo porque tinha o sonho de ser pai e, ao entrar em contato com as
crianças, se apegou, acontecendo o mesmo com o parceiro Maurício.
O Casal I possui grandes particularidades em relação aos demais, pois foi o único
que entrou com o pedido de adoção e ao ser entrevistado já havia adotado todas as crianças e
passado pelo período de adaptação com sucesso. Como dito, adotaram dois irmãos da
primeira vez, ambos negros, e depois adotaram mais um bebê, de cor branca. A questão racial
é colocada nas entrevistas pelos casais I e III, já que convivem com a diferença nesse sentido
e enfrentam situações diversas no dia a dia, como pessoas que acham que a mãe Ana Cláudia
(negra) é “babá” do seu filho André (branco). Sobre como a questão racial é vivida em casa, o
casal I fala que quando adotaram o bebê de cor branca os irmãos negros ficaram com ciúme e
chegaram a falar que elas só davam atenção para o nenê branquinho, mas que depois ficou
tudo normal. Consideram que “é muita informação para eles assimilarem: abandono, duas
mães, irmãos de cores diferentes, mas que tudo é resolvido com atenção, carinho, amor e
diálogo.”
Os processos de adoção dos casais II e III se encontravam em andamento até a
conclusão da pesquisa. Fernanda, segundo orientações de seu advogado, tentava sozinha a
guarda da criança, para logo ser convertida em adoção, já que a mãe biológica ainda não tinha
perdido o poder sobre a mesma, apesar da criança já morar com o casal II. O que ocorre é o
fato de que, em audiência, a mãe biológica desistiu de entregar a criança para Fernanda
adotar, o que foi acordado inicialmente, e a juíza do caso negou a adoção.
O casal III entrou com o primeiro pedido de adoção, mas não conseguiu. Hugo há
pouco tempo entrou com o pedido sozinho. As crianças a serem adotadas pelo casal III estão
no abrigo e as visitas são constantes. Ao contrário dos casais I e III, Fernanda não declarou a
sua orientação sexual durante o processo de adoção. Ela tem medo que isto influencie de
forma negativa na decisão da juíza, apesar de acreditar que a mesma já sabe da sua orientação.
O único casal que não se mostra frustrado, indignado ou impotente diante do
processo de adoção é o casal I, que entrou com o pedido e obteve sucesso em todos os
processos. O casal assumiu a homossexualidade desde o começo da adoção. Em nenhum
momento omitiu ou mentiu sobre sua sexualidade. Ambas acharam que o processo foi
demorado, sentiram que um juiz ficava mandando o processo para outro, seja por medo de
julgar por ser um casal homossexual ou mesmo por não ter passado pela experiência e não
saber como proceder. Em nenhum momento se sentiram discriminadas ou sofreram
preconceito pela orientação sexual. Sentiram que era algo novo e que, portanto requeria

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cuidado. Elas sabem que cabe ao juiz o deferimento, então esperaram pela “sorte” de
encontrar aquele que é mais livre de preconceito, aberto a novas possibilidades de família e
que aja de acordo com a constituição.
Os casais II e III sentem-se frustrados e discriminados quanto ao processo de adoção.
Tiveram os primeiros pedidos negados. No caso do casal II, a lei pesa muito, pois a mãe
biológica não perdeu o poder sobre a criança, embora não queira cuidar dela, fato que pode
ser claramente notado pela L morar com a Fernanda e a mãe biológica não se importar, pelo
contrário, liga para Fernanda buscá-la quando a mesma está em sua companhia. Embora
Fernanda não tenha colocado no estudo psicossocial sua orientação sexual, não descarta a
possibilidade de a juíza ter conhecimento sobre. Não descarta também a possibilidade da
mesma dificultar o processo devido a isso.
O casal III sente-se da mesma forma que o casal II. A diferença jurídica existente
entre os dois é que Hugo e Maurício declararam no estudo psicossocial a sua orientação
sexual e que os pais biológicos já perderam o poder sobre as crianças. O fato dos pais não
terem mais o poder sobre as crianças é favorável, mas pouco ajudou, pois o casal III não
conseguiu a guarda definitiva das crianças. Por sentirem-se muito frustrados, não buscaram
saber o motivo da negação do primeiro pedido e o prazo de consultar a decisão já se esgotou.
Se o casal tivesse consultado a decisão, hoje saberia o motivo pelo qual foi indeferido, o que
poderia ser favorável a eles agora no segundo pedido, pois o advogado poderia usar o motivo
do indeferimento para fazer suas fundamentações no atual processo, mesmo sabendo que o
juiz pode ter negado alegando um motivo que não seja por preconceito. Como Ana Cláudia
falou em sua entrevista, mesmo que o juiz negue um pedido de adoção pela orientação sexual
e não aceitação de outra forma de família, isso não será colocado na sua decisão.
Os processos de adoção diferem entre si em algumas especificidades e, como já dito,
são estudados psicológica e socialmente de acordo com as necessidades reais consideradas,
como: lar, educação, entre outros fatores que tendem a garantir determinado equilíbrio na vida
do adotado. O processo se torna mais rápido quando há acordo entre pais biológicos (ou
representantes legais destes) e pais adotivos. Fica a cargo do juiz responsável pelo caso, a
partir dos fatores citados acima, que dão assistência completa ao (à) adotando (a), homologar
ou não a sentença. A orientação sexual não é fator que deve ser considerado na decisão do
juiz, porém, em alguns casos, pode ocorrer de o mesmo levá-la em consideração, de acordo
com suas próprias concepções e valores acerca dessa questão.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p470 480


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Esta preocupação é vista no processo de adoção do casal III, que relata que foi
perguntado durante uma entrevista com a psicóloga responsável pelo processo sobre o motivo
de o casal preferir “meninos em vez de meninas”, deixando os interessados constrangidos,
pois a opção era por achar mais fácil cuidar, uma vez que são homens, e não por interesse
sexual. É como se o fato de ser homem com orientação homossexual significasse desejar todo
e qualquer homem, inclusive crianças. Este ponto foi levantado somente pelo casal III,
formado por homens, os casais I e II, formados por mulheres, não passaram por nada
parecido.
O casal I relata não ter encontrado grandes dificuldades ligadas a homossexualidade
para adotar, a não ser o processo burocrático que envolve qualquer adoção e o fato de ser algo
novo. O pedido de adoção dos primeiros filhos foi no nome de Cecília, somente. Já o de
André, o último adotado, o advogado aconselhou que as duas entrassem juntas com o pedido,
pois a adoção poderia ser concedido às duas. Elas entraram e conseguiram, na certidão de
nascimento da criança consta como filiação o nome das duas mães. Ana Cláudia pretende
entrar agora com o pedido para adotar os filhos de Cecília, já que estão em um relacionamento
e a lei permite que o (a) cônjuge adote o (a) filho (a) do (a) outro (a)9.
O preconceito em relação à homossexualidade é sentido de alguma forma por todos
os casais. Mesmo aqueles que se disseram respeitados, em algum momento passaram por
alguma situação desconfortável. Nota-se que existe um otimismo de que o conceito das
pessoas com relação à homossexualidade está mudando e que com o tempo a aceitação pela
sociedade aumentará. Este otimismo é perceptível quando o casal I menciona que a sua filha
sofreu um bullying10 na escola e, quando elas foram até a instituição reclamar sobre o
acontecido, a pedagoga propôs realizar debates sobre adoção homossexual.
Outro aspecto é quanto à orientação e comportamento sexual dos (as) filhos (as) de
casais homossexuais. Pode-se acreditar que os (as) filhos (as) sigam seus pais nesse sentido.
Como exemplo, os filhos biológicos de Maurício, que compõe o casal III, permitem uma
reflexão, diante do fato de que dois dos seus três filhos são heterossexuais, com relações

9 De acordo com o artigo 41, da Lei nº 8.069/90, a adoção atribui a condição de filho ao
adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e
parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. § 1º “Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro,
mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos
parentes”.
10 Bullying é um termo da língua inglesa (bully = “valentão”) que se refere a todas as formas de
atitudes agressivas, verbais ou físicas, intencionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente e são
exercidas por um ou mais indivíduos, causando dor e angústia, com o objetivo de intimidar ou agredir outra
pessoa sem ter a possibilidade ou capacidade de se defender, sendo realizadas dentro de uma relação desigual de
forças ou poder.

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assumidas até o momento, e um deles é homossexual. Cada qual se orientou diferentemente,


de acordo com suas individualidades, desejos pessoais, independente da orientação
homossexual de seu pai.
A partir dos relatos de todos os entrevistados percebe-se que, assumidos ou não,
todos enfrentaram – e dois deles ainda enfrentam – a adoção pelo desejo de ser tornarem mães
e pais. A homossexualidade para eles não apresenta o problema maior, mas acreditam que por
trás da orientação sexual existe um processo burocrático um tanto preconceituoso, que
dificulta a efetivação do processo, quando não impede que a criança tenha uma família.
O casal I enfrentou de forma mais leve o preconceito, o medo e a rejeição. Obteve
sucesso ao entrar com seus pedidos de adoção e a batalha não deixou estigmas. Fernanda
(casal II) enfrenta ainda a burocracia e os trâmites, com certo pavor da justiça e teme se
identificar como homossexual no processo, pois sente já um preconceito, que pode ser
declarado ou não por parte da juíza que atua no seu processo. Hugo (casal III), movido pelo
afeto, luta pela adoção das crianças que ainda estão no abrigo, se declarou, com medo,
homossexual e espera decisão.
Percebe-se que estas dificuldades estão estritamente relacionadas às questões de
gênero, raça, orientação sexual, rejeição ao diferente e ao novo, justificadas através de fatores
biológicos, fatores que discriminam e oprimem. Welzer-Lang (2001), ao analisar, coloca que
o masculino (macho/dominador/superior/forte), é percebido como quadro geral normal, e o
feminino (fêmea/inferior/fraca) como uma especificidade particularista que constitui toda
prática social que se distingue da normal, o que impõe uma ideia (falsa) de que o normal é o
relacionamento entre um homem e uma mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do estudo de casos feito com os três casais neste trabalho pode-se
notar que cada casal passou por uma experiência particular, mas todos enfrentaram e dois
deles ainda enfrentam certa dificuldade quanto ao processo de adoção, por serem
homossexuais. O casal I está com os (as) filhos (as) todos (as) adotados (as), não sentiram
discriminação e preconceito por parte dos responsáveis pela adoção, mas sentiram que o
processo ficou travado nas mãos do juiz, por ser algo novo. O casal II sente que o fato de ser
homossexual pode ainda influenciar o processo, mas percebe maior desconforto em relação à
burocracia ligada à adoção. Questionam a lei, que faz de tudo para manter as crianças dentro

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do seio familiar biológico, mesmo quando estas não tem o mínimo de amor e dedicação por
parte dos familiares. E o casal III, representado por Hugo, sente enorme indignação quanto ao
preconceito de que os homossexuais são alvos.
Pode-se constatar o preconceito e a resistência por parte da sociedade em aceitar a
homossexualidade bem como a nova família que assim se constitui. O casal I é totalmente
assumido, assim o foi durante todo o processo de adoção e, ao contrário dos demais, não se
sentiram inferiores ou estigmatizados diante o processo, mas sentiram que os juízes veem
como algo novo e que, portanto, requer cuidado, o que tornou o processo mais demorado do
que já é. A visão do casal I sobre o processo é de pessoas que aceitaram a homossexualidade e
não fazem questão nenhuma de esconder a sua orientação, inclusive durante o processo,
assumiram-se como homossexuais e foram respeitadas.
O casal II não se assumiu durante o processo de adoção apesar de aceitar a sua
orientação sexual, porém se assumem só quando se sentem confortáveis. Fernanda achou que
durante o processo não era relevante assumir sua orientação sexual. Teve medo do
preconceito e da resistência por parte das pessoas envolvidas e considera ter tido razão, pois
se deparou com situações preconceituosas durante o processo.
O casal III também aceita a homossexualidade a ponto de ambos se assumirem como
tais e assim procederam durante o pedido de adoção. De acordo com Hugo, ele passou por
constrangimentos e acredita que o seu pedido foi indeferido pelo juiz devido a sua orientação
sexual, pois preenchia todos os requisitos e inclusive estava adotando dois irmãos negros
visando não separá-los, o que é bem-visto pela justiça, já que crianças negras permanecem
mais tempo nos abrigos e adoção de irmãos é incentivada.
Propõe-se aqui pensar no conceito de estabilidade e relacioná-lo à vida de uma
criança, adotada ou não. Um casal que quer adotar e está apto a isso tem o direito de passar
pelo processo de adoção independente do núcleo familiar que constitui. Casais homoafetivos
que compõem os novos arranjos familiares estão inseridos nessa discussão e demonstram, de
diversas maneiras, que o preconceito estabelecido no passado relacionado à promiscuidade,
sexo e doenças hoje tende a diminuir cada vez mais, no sentido de que se percebe que os
grandes agentes dessas relações são o amor e a vontade de ser feliz. Nesse sentido, a
orientação sexual é e tem de ser vista como indiferente.
O debate é imenso e deve continuar. Esta pesquisa tem como finalidade inserir nos
espaços sociais – privados, públicos e íntimos – a discussão sobre o assunto. O preconceito
aos novos arranjos familiares ainda existe. No campo acadêmico, autores como Giddens

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(2000/2005), Vaitsman (1994), Zambrano (2006), trazem importantes contribuições para


pensar de modo crítico todas essas questões e abranger novos conhecimentos acerca dos
arranjos familiares presentes na sociedade.
Notamos a falta de informações e políticas voltadas à conscientização da sociedade
no sentido de dar maior visibilidade à diversidade de arranjos familiar, bem como colocar as
diferenças em questão, de modo a possibilitar a garantia de direitos da população LGBT.
Ainda são necessárias e urgentes as leis específicas à adoção homoafetiva, bem como a lei
contra a homofobia, para que os direitos a respeito da população LGBT sejam considerados.

REFERÊNCIAS

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Disponível em:
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em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 05 de maio de
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GIDDENS, A. Sociologia. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.

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A função protetiva das famílias e a responsabilização das mulheres-mães: um estudo


sobre a matricialidade sociofamiliar na Política de Assistência Social

Thais Gomes de Oliveira1


Bruna Moraes Battistelli2
Lílian Rodrigues da Cruz3

Resumo: Este trabalho é desenvolvido a partir de pesquisa realizada na Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS), no município de Porto Alegre. É pensado na interface entre
Psicologia e Assistência Social e focalizado na Proteção Social Básica do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). Tem por objetivo analisar, a partir de documentos da Política
Nacional de Assistência Social, como aparece o conceito de matricialidade sociofamiliar,
investigando o que se entende por práticas de proteção e de cuidado, analisando suas possíveis
implicações em relação ao gênero, mais especificamente a responsabilização pelo cuidado e
proteção das/os filhas/os e o papel das mulheres neste cenário. Além disso, são utilizadas
referências teóricas de autoras e autores que dialogam com estudos de Gênero e de Políticas
Públicas. O trabalho social com as famílias aparece nos documentos associado aos cuidados
parentais e centralidade da maternidade enquanto fator de proteção para crianças e
adolescentes – o que nos leva a apontar para um processo de feminização da política de
Assistência Social. Em paralelo, problematizamos o trabalho da Psicologia que enquanto
campo de construção de saberes se apropria do conceito de família por diferentes vieses de
estudo que tendem a normatizar e a regular práticas de cuidado. Na inquietação dessa
temática, abre-se espaço para pesquisa em Psicologia Social, perguntando como essa pode
contribuir em outros entendimentos possíveis, com práticas que não acabem por normatizar e
regular modos de vida: o que pode a Psicologia Social no campo de produção de saberes no
trabalho com as famílias, no objetivo de construir outros entendimentos e outras
possibilidades?
Palavras-chave: Famílias; Psicologia Social; Assistência Social.

1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Graduanda do curso de Psicologia e bolsista de Iniciação
Científica BIC/UFRGS no Projeto de Pesquisa “A constituição das práticas psicológicas no campo das políticas
públicas de assistência social”; E-mail: thais_gomes.oliveira@hotmail.com.
2
Psicóloga. Especialista em Instituições em Análise (UFRGS). Mestre em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS). Doutoranda do PPG em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), bolsista CAPES; E-mail:
brunabattistelli@gmail.com.
3
Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do PPG em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS). Doutora em Psicologia (PUCRS); E-mail: lilian.rodrigues.cruz@gmail.com.

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Introdução

A trajetória histórica das políticas sociais brasileiras é marcada pela manutenção de


padrões clientelistas na condução de ações e serviços às populações que delas necessitavam
(FIUZA e COSTA, 2015). Nesse cenário, vinculavam-se ações que seriam de assistência
social a práticas que são fundamentadas em benesses e caridades – relacionando-se com a
filantropia e o primeiro-damismo. Com a Constituição de 1988, há uma mudança na
concepção de Assistência Social, que passa a compor o tripé da Seguridade Social, juntamente
com a Saúde e a Previdência Social – caracterizando mudança fundamental que institui a
transformação do que antes era caridade, para a noção de direito e cidadania, salientando seu
caráter de Política Pública (LASTA; GUARESCHI; CRUZ, 2014). Em 1993, aprova-se a Lei
Orgânica de Assistência Social (LOAS), e a partir das diretrizes da IV Conferência Nacional
de Assistência Social, elabora-se e torna-se pública a Política Nacional de Assistência Social
(PNAS), em 2004, na perspectiva de implementação do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). O SUAS se estabelece tendo como diretrizes a descentralização político-
administrativa, o atendimento a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à
seguridade social e a participação da comunidade; e se propõe como instrumento para
unificação das ações da Assistência Social, com objetivo de materializar o que é proposto na
LOAS.
O SUAS operacionaliza suas ações e serviços a partir de dois níveis de atenção: a
Proteção Social Básica (PSB) e a Proteção Social Especializada (PSE). Na PSB, que tem por
objetivo prevenir situações de risco e fortalecer vínculos familiares e comunitários,
encontram-se os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS4), porta de entrada da
Assistência Social. Na PSE se destina ao atendimento de situações de risco pessoal e social
envolvendo violação de direitos, com preservação de vínculos familiares e comunitários,
encontram-se os Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS5).
Tanto no CRAS quanto no CREAS, a psicóloga/o6 compõe a equipe mínima.
Nesse contexto, na interface entre Psicologia e Assistência Social, o projeto de
pesquisa intitulado “A constituição das práticas psicológicas no campo das Políticas Públicas

4
Caracteriza-se por equipamento público descentralizado, que é responsável pela organização e oferta dos
serviços de Proteção Social Básica.
5
Unidade pública estatal responsável pela oferta de orientação e apoio especializados, inserido na Proteção
Social Especializada.
6
Neste trabalho será utilizado o gênero feminino inicialmente, com objetivo de resistir ao gênero masculino
universal e neutro – que compõe a norma escrita do nosso idioma.

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de Assistência Social” alia-se com a necessidade de produção de conhecimento no campo da


Psicologia e Políticas Públicas, tomando a práxis dos psicólogos na Assistência Social como
lócus de investigação e problematização. Alguns de seus objetivos são: compreender como se
constituem as práticas de trabalho nos Centros Regionais da Assistência Social e demais
serviços que efetivam a Proteção Social Básica; conhecer os possíveis efeitos das práticas nos
usuários da assistência social; conhecer os discursos que estão sendo produzidos sobre o risco
social e o que estabelecem como critérios de verdade.
Este trabalho é desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
– município de Porto Alegre –, enquanto parte do projeto de pesquisa referido e é pensado
como um projeto da Iniciação Científica da primeira das autoras e surge de inquietações que
iniciaram a partir da leitura do primeiro documento com o qual trabalhamos: Orientações
Técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF II (2012). A
partir dele, questionamo-nos sobre como pode se trabalhar com as famílias na conjuntura
atual, respeitando suas multiplicidades de existência e não atribuindo funções prévias, com
ideias de certo e errado e de “boas famílias” – relacionando com o que é produzido a partir da
Psicologia, que muitas vezes tende a normatizar modos de viver. Com essas questões, inicia-
se essa pesquisa – que é feita a partir da análise e fichamento de documentos da Política de
Assistência Social, atrelando com literatura sobre estudos feministas e de gênero, Serviço
Social e Psicologia. O trabalho é focalizado na PSB e é pensado a partir da ênfase que é dada
às famílias na PNAS. Com isso, nosso interesse se detém no conceito de matricialidade
sociofamiliar. Na PNAS, entende-se o enfoque nas famílias a partir da perspectiva de que
“são funções básicas das famílias: prover a proteção e a socialização dos seus membros;
constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal,
além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o
Estado” (BRASIL, 2004, p. 35) e a matricialidade sociofamiliar tem ênfase “ancorada na
premissa de que a centralidade da família e a superação da focalização, no âmbito da política
de Assistência Social, repousam no pressuposto de que para a família prevenir, proteger,
promover e incluir seus membros é necessário, em primeiro lugar, garantir condições de
sustentabilidade para tal” (BRASIL, 2004, p. 41) o que abre espaço para pensarmos sobre o
que se pode entender a partir desses conceitos e o que podem produzir no campo da Política.
Nessa direção, perguntamo-nos como alguns vieses da Psicologia utilizam conceitos e
práticas que acabam por normatizar e regular práticas de cuidado e de proteção. Em paralelo,
problematizamos o trabalho da Psicologia que enquanto campo de produção de saberes
constrói entendimentos sobre família; e vimos que é fundamental nos questionarmos quanto à

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ideia de família que está em jogo nesse cenário e o que pode ser produzido a partir da
interface entre a Psicologia e a Política de Assistência. Assim, abre-se espaço para algumas
interrogações: de quais famílias estamos falando? Como trabalhar com essas famílias?
Alguém se responsabiliza por elas? Podemos falar de alguma função protetiva a priori?
Neste trabalho analisaremos como o conceito de matricialidade sociofamiliar aparece
nos documentos da Política de Assistência Social – investigando o que se entende por práticas
de proteção e de cuidado e analisando suas possíveis implicações em relação ao gênero, mais
especificamente a responsabilização pelo cuidado e proteção das/os filhas/os e o papel das
mulheres neste cenário. Para isso utilizamos a análise de documentos da PNAS. Os
documentos consultados foram/são os seguintes: Política Nacional de Assistência Social –
NOB/SUAS (2004); Orientações Técnicas Centro de Referência de Assistência Social –
CRAS (2009); Orientações Técnicas sobre o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à
Família – PAIF II (2012); Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para
fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social (2016).
Além disso, utilizaremos como referencial teórico autoras/es que dialogam com estudos de
gênero e Políticas Públicas.
A análise dos quatro documentos se deu no intuito de pensarmos o que se entende
por família e por matricialidade sociofamiliar diretamente na PNAS e em documentos
subsequentes a ela. O texto da PNAS, de 2004, “demonstra a intenção de construir
coletivamente o redesenho desta política, na perspectiva de implementação do Sistema Único
de Assistência Social – SUAS” (BRASIL, 2004, p. 11); dessa forma, objetiva materializar
ações e diretrizes para efetivação da assistência social como responsabilidade do Estado. Em
um processo de amadurecimento da PNAS e do aprimoramento do SUAS, é lançado o
documento de Orientações Técnicas – CRAS, em 2009, que apresenta o funcionamento do
CRAS em todo o país, trazendo um conjunto de diretrizes e informações para auxiliar no
planejamento e implementação do mesmo (BRASIL, 2009). O PAIF II é marco organizador
para o principal serviço da PSB e trabalha minuciosamente a ideia de Trabalho Social com
Famílias (TSF), trazendo diretrizes, exemplos e recomendações; no documento é entendido
que “o PAIF é pedra fundamental e se caracteriza como eixo basilar para a ‘nova’ política de
assistência social que vem sendo construída no Brasil” (BRASIL, 2012, p. 05). O documento
mais recente que analisamos constitui referencial quanto ao TSF (2016). Este é redigido por
Regina Mioto, assistente social e pesquisadora sobre as famílias, políticas sociais etc., e uma
das referências utilizadas neste trabalho.

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Os documentos foram escolhidos pelas autoras no intuito de pensar sobre o trabalho


que é feito com as famílias no âmbito da proteção social básica, buscando também relacionar
com as práticas psicológicas. Os documentos foram lidos na seguinte ordem: PAIF II (2012);
Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social
com Famílias na Política Nacional de Assistência Social (2016); Orientações Técnicas Centro
de Referência de Assistência Social – CRAS (2009); Política Nacional de Assistência Social –
NOB/SUAS (2004). A partir da leitura e fichamento deparamo-nos com algumas questões
que foram divididas em três eixos de discussão: (1) matricialidade sociofamiliar e implicações
possíveis; (2) responsáveis familiares e mulheres-mães: feminização do cuidado; (3) família:
possibilidades a partir de uma leitura da Psicologia Social.

1. Matricialidade sociofamiliar e implicações possíveis

O SUAS traz como um dos eixos estruturantes a matricialidade sociofamiliar. Na


PNAS o foco das ações e programas é a família, o que é diversas vezes explicitado no
documento analisado: “centralidade na família para concepção e implementação dos
benefícios, serviços, programas e projetos” (BRASIL, 2004, p. 33). Ainda na PNAS, em certa
forma de “alerta” é dito que “[...] o grupo familiar pode ou não se mostrar capaz de
desempenhar suas funções básicas7”. (BRASIL, 2004, p. 35). Ainda neste documento, a
família é entendida “como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização
primárias, provedora de cuidados aos seus membros [...]” (BRASIL, 2004, p. 41). Aqui é
possível perceber que existe uma naturalização da função das famílias, que é de proteção de
seus membros – o que é reforçado através do PAIF II, que estabelece que a família deve ser
apoiada no “objetivo de exercer sua função protetiva, prevista na Constituição Federal8,
respondendo ao dever de sustento, guarda e educação de suas crianças, adolescentes e
jovens, e garantindo proteção aos seus demais membros em situação de dependência,
principalmente, idosos e pessoas com deficiência”. (BRASIL, 2012, p. 94).
No documento Orientações Técnicas para o CRAS (BRASIL, 2009), é descrito que

[...] o fortalecimento dos vínculos familiares e a defesa e promoção do


direito à convivência familiar e comunitária, finalidades da política da
assistência social, são um grande desafio. Para responder a esse desafio, o
SUAS estrutura-se buscando apoiar a família nas suas funções de
proteção, socialização, aprendizagem e desenvolvimento das

7
Todos os grifos encontrados nas citações deste trabalho são feitos pelas autoras do mesmo.
8
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p486 490


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capacidades humanas, assumindo como pressuposto fundamental que o


usuário de seus serviços ou benefícios não pode ser desvinculado do seu
contexto familiar e social. Isto é, a política de assistência social reconhece
que somente é possível tecer uma rede de proteção social ao se compreender
os determinantes familiares de uma situação de vulnerabilidade social e
acolher mais de um membro dessa família na busca da superação dessa
situação (p. 12).

A partir do documento sobre trabalho social com famílias (BRASIL, 2016) encontra-
se, inicialmente, que “a família, independente de sua configuração, continua sendo espaço
privilegiado de convivência humana e, ao lado do trabalho, constitui um dos eixos
organizadores da vida social” e que “a família enquanto espaço de proteção e cuidado
permite que muitas necessidades de saúde e bem-estar não se transformem em demandas
para serviços sociais”. A partir desse fragmento, podemos entender que se as famílias
cumprissem suas funções de proteção e de cuidado “adequadamente”, não existiria demanda
para os serviços da Assistência Social. Dessa forma, fica evidente que os serviços operam
quando as famílias “falham” – o que gera uma cultura de responsabilização, em que as
famílias apenas acessariam o serviço quando incapazes de protegerem seus membros de
quaisquer adversidades possíveis. Além disso, acaba apontando para uma
desresponsabilização do Estado enquanto instância de proteção social das cidadãs/ãos. Meyer
et. al. (2014, p. 433) trazem que “[...] ‘a’ família tem se constituído como o alvo preferencial
de políticas e programas direcionados para a ‘inclusão social’; nesse contexto, ela tem sido
posicionada tanto como ‘origem’ quanto como instância de resolução de problemas sociais e
econômicos de países pobres e em desenvolvimento”.
Entendemos que é fundamental pensarmos sobre qual conceito de família está em
jogo na Política. Além disso, é fundamental pensarmos sobre qual função protetiva é essa que
se espera das famílias e sobre como trabalhar com essas ideias sem acabar culpabilizando as
famílias que “falharam” nessa função prévia que é escrita nos documentos – e que é
ferramenta de construção de verdades sobre as famílias e pessoas usuárias. Entendendo e
assumindo que a família enquanto instituição vem atravessando diversas mudanças que dizem
respeito a novas organizações societárias e relacionais, não seria contraditório reconhecer as
variedades das experiências familiares da atualidade e mesmo assim apostar em funções e
responsabilizações prévias? Desse modo, perguntamo-nos: que famílias são essas de que
falam os documentos? Podemos afirmar que elas devem compor função protetiva prévia? Elas
atuam como braço do Estado na proteção social? A família em questão é “órgão auxiliar”? Se
sim, sob responsabilidade de quem?

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No texto "A governamentalidade”, Foucault (2013) trabalha com o desdobramento do


papel da família e de como esta enquanto modelo de governo vai desaparecer. Em
compensação, o autor vai afirmar que o que se constitui nesse momento é a família como
elemento no interior da população e como instrumento fundamental para a arte de governar.
Até a criação do conceito de população, a arte de governar só podia ser pensada com base no
modelo da família, com base na economia entendida como gestão da família. A partir do
momento em que a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta passa
para um plano secundário em relação à população – aparece como elemento interno à
população e, portanto, não mais como modelo e sim como segmento. E segmento
privilegiado, à medida que, quando quiser obter alguma coisa da população, é pela família que
se deverá passar. De modelo, a família vai se tornar instrumento, e instrumento privilegiado,
para o governo da população. É a partir da metade do século XVIII que a família aparece
nessa dimensão instrumental em relação à população, como demonstram as campanhas contra
a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento, de vacinação etc. Falar de governo em
Foucault é se remeter à prática de dirigir a conduta das pessoas.
Quando comparamos os documentos analisados fica notório que o mais recente deles,
escrito por Regina Mioto, traz algo novo no que diz respeito à matricialidade sociofamiliar,
apontando para uma segunda perspectiva do mesmo conceito – em que é necessário desonerar
as famílias de encargos que foram atribuídos em um momento anterior a tantas mudanças de
ordem social. Sobre essas mudanças, a autora traz que são “transformações que concorreram
substantivamente para forjar as formas atuais de ser e conviver da família, de seus valores e
de seus modos de vida, [e que] impactaram também a capacidade de proteção,
tradicionalmente, esperada da família”. (BRASIL, 2016, p. 19). Em se tratando de outra
perspectiva possível para o trabalho com as famílias, Mioto (BRASIL, 2016) afirma que

[...] no campo da PNAS já não tem sustentação as concepções que tratam a


família a partir de uma determinada estrutura, tomada como ideal (casal com
seus filhos) e com papéis pré-definidos, e nem aquelas que apostam na
família como principal fonte de provisão de bem-estar. Dessa forma, tem
se fortalecido a concepção de matricialidade sociofamiliar pautada no
entendimento de que o caráter protetivo do Estado em relação às famílias
reside em grande parte na antecipação dos custos do bem-estar, através da
garantia de direitos sociais, contemplando a oferta de benefícios,
transferências de renda e de ampla gama de serviços sociais. (p. 19)

Surge neste documento algo que é novo, que está em construção. Mas é importante
lembrarmos que este é único momento em que essa direção é apontada. De acordo com

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Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013), a expressão "fortalecimento dos vínculos familiares e


comunitários" está presente em todos os documentos da política de assistência social, logo, a
consideram como fundante para garantia do direito à convivência familiar e comunitária,
sendo quase um imperativo. Além disso, marca, primeiramente, a necessidade de seu
fortalecimento (proteção social básica) e, em seguida, sua reconstrução (objetivo da proteção
especial). Portanto, as autoras apontam que tanto as ações que enfatizam o fortalecimento
quanto as que enfatizam sua reconstrução partem do pressuposto de que os vínculos já se
encontram fragilizados, inadequados ou fora de uma ordem que é esperada, necessitando de
intervenções que os potencialize, permitindo que as famílias possam supostamente sair da
zona de vulnerabilidade social na qual são caracterizadas.

2. Responsáveis familiares e mulheres-mães: feminização do cuidado

A análise dos documentos nos convoca a pensar sobre a responsabilidade familiar


como uma estratégia de controle da população usuária da Assistência Social, com o foco nas
mulheres-mães como “alvos” e responsáveis que estariam “ao lado do Estado” na proteção
social de “suas” famílias. Na PNAS consta que uma das mudanças que aconteceram nos anos
anteriores à criação desta “refere-se à pessoa de referência da família. Da década passada9
até 2002 houve um crescimento de 30% da participação da mulher como pessoa de
referência da família”. (BRASIL, 2004, p. 20). No PAIF II (BRASIL, 2012), a/o responsável
familiar é entendida/o como

Membro adulto da família que responde pelo cuidado cotidiano dos demais
membros. Pode ser a mulher que não aufere renda, mas é responsável por
atividades diárias em relação ao domicílio e à família ou, ainda, a avó que
cuida das crianças e/ou adolescentes enquanto a mãe desempenha o
papel de provedora. O responsável familiar é a pessoa assim considerada
pelos demais membros, em função do reconhecimento de sua
responsabilidade de proteção e autoridade no âmbito familiar. (p. 22)

A partir dessa ideia de responsável familiar e desses exemplos, colocamo-nos a


pensar sobre quais efeitos podem ter esses entendimentos. Unindo essa função protetiva
prévia que é exigida na política à ideia de responsável familiar, indagamos: é possível que
esse trabalho seja feito nessa perspectiva, sem que recaia sobre as mulheres-mães a
responsabilidade por “falhas”? Se essas mulheres-mães acessam o CRAS quando “falharam”

9
Respeitando a referência que foi produzida no ano de 2004, salientamos que a década passada diz respeito aos
anos 1990 do século passado.

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em cumprir a função protetiva prévia que é esperada delas, como esse processo se daria de
forma a respeitar essas vidas e não a culpabilizá-las?
As autoras Cruz e Guareschi (2012) apontam que é responsabilidade das famílias
explicar e responder pelas ações inadequadas dos seus filhos, sendo que sobre elas recai a
culpa sobre tudo o que não ocorre dentro do esperado; ao passo que Meyer, Klein e
Fernandes, (2012) escrevem apontando “[...] para um processo de dupla responsabilização de
mulheres-mães (sobretudo de mães pobres), posicionadas como ‘alvo’ de políticas e
programas de inclusão social” (p.886).
No decorrer da análise dos documentos, deparamo-nos com um campo de tensões: em
alguns momentos, é apontado para a proteção familiar como algo que seria feito pelas
mulheres – como no fragmento citado acima, que aponta a mãe como alguém que seria
responsável pela família e, na ausência dessa, a avó; mesmo que em outros momentos os
documentos enfatizem que não é intenção que se responsabilize ou culpabilize essas famílias
pela sua condição (BRASIL, 2012). O que é pensado também por outras autoras como
Carloto e Mariano (2008, p.155) que falam “[...] de uma centralidade não tanto na família, que
é o termo que o documento adota, mas de uma centralidade na mulher-mãe”.
Nesse processo em que as mulheres são “alvo” das políticas sociais, elas têm sido
entendidas enquanto causadoras de boa parte dos problemas enfrentados pelas suas famílias,
bem como enquanto pessoas-referência para promoção da inclusão social que se almeja. Esse
processo é nomeado como “politização contemporânea do feminino e da maternidade”.
(MEYER; KLEIN; FERNANDES, 2012, p.886). Ainda no que diz respeito a esse lugar
atribuído às mulheres nas políticas sociais, as autoras afirmam que “isso tem intensificado
tanto o trabalho que elas realizam no plano familiar quanto fragilizado o seu trabalho no plano
profissional. [...] as mulheres têm sido interpeladas, também de diferentes modos e cada vez
mais incisivamente, como ‘produtoras’ de educação e de saúde no âmbito de suas famílias
[...]” (p.887).
As autoras Rodrigues e Hennigen (2012) apontam para o grande número de políticas
e programas que buscam incentivar certas condutas familiares com a justificativa de assim
operar na promoção da saúde, educação, proteção integral de crianças e adolescentes, entre
outros aspectos. As autoras afirmam também que além de prever condutas, os programas e
políticas de assistência preconizam a família como o melhor lugar para a criança, mas o que
não diz respeito a toda e qualquer família (organização familiar), mas sim a um tipo de família
ideal, marcada por lugares determinados. E nesse contexto, para existir uma família ideal,
seria preciso que essas mulheres-mães desempenhassem papéis vinculados a ideais de

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mulheridades e de maternagens. A partir disso, podemos pensar sobre os direitos dessas


mulheres, que são imperativamente colados à figura da maternidade. E figuras maternas
específicas, que são incumbidas de um papel de proteção, sustento, autoridade – como é dito
nos documentos. Devemos considerar os efeitos possíveis dessa construção de saberes e
práticas, que podem estar reforçando estereótipos de gênero, em que essas mulheres seriam
naturalmente capazes de exercer o cuidado, e em que o cuidado e as políticas de proteção e
cuidado são feminizados. De acordo com Carloto e Mariano (2008) “a centralidade na
mulher-mãe reforça estereótipos sobre a condição feminina dentro de um viés biologicista que
coloca como predisposições naturais a função de boa cuidadora no âmbito privado/doméstico”
(p.161). E nesse aspecto, pensamos sobre a importância de se desnaturalizar alguns
entendimentos, para que possamos nos questionar sobre quais efeitos podem a atribuição de
funções prévias para essas famílias, com o objetivo de construir outros entendimentos que
componham o trabalho com as famílias e com todas as pessoas usuárias da Assistência Social.
Consideramos que para respeitarmos às multiplicidades dessas famílias e de seus
funcionamentos, é fundamental que se trabalhe em vias de fornecer possibilidades de
autonomia – desenvolvendo pensamentos e trabalhos críticos. As autoras Corrêa e Petchesky
(1996), discutindo acerca do tema da autonomia pessoal em um artigo sobre direitos sexuais
reprodutivos, afirmam que ouvir as mulheres é chave para se respeitar sua autonomia pessoal,
moral e legal, isto é, seu direito à autodeterminação. Significando assim, tratá-las como
sujeitos, e não meramente como objetos. O conceito de autonomia trabalhado pelas autoras
implica o respeito pelo modo como as mulheres tomam decisões, pelas consultadas e pelos
valores envolvidos.

3. Família: possibilidades a partir de leituras da Psicologia Social

A Psicologia enquanto campo de construção de saberes historicamente esteve


construindo conhecimento sobre conceitos como os de família, infância, adolescência –
apontando para modos de viver “disfuncionais”, e/ou que levariam a situações de risco. Nesse
espaço de construção, muitas vezes se levou em conta apenas o que é do campo do individual,
atribuindo normas e responsabilizações – “[...] já que os saberes psi tradicionalmente
forneceram explicações que atribuíam à família a origem de patologias individuais” (CRUZ e
GUARESCHI, 2012, p. 09). A Psicologia enquanto campo de conhecimento e profissional
por muito esteve longe das políticas sociais e, em contexto da PNAS, ocupa – atualmente –
equipe mínima em CRAS e CREAS.

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Sabe-se que, muitas vezes, a psicologia sequer considerou outras realidades sociais,
que não fossem eurocentradas, como é dito por Maria Carolina Vecchio (2007):

O livro Introdução à Psicologia (Atkinson, 1995), muito utilizado por


estudantes brasileiros das mais diversas áreas afins, se propõe um apanhado
geral sobre as mais recentes pesquisas em psicologia. [...], no entanto, dentre
suas 720 páginas consagradas ao tema do desenvolvimento psicológico
humano, não há sequer um capítulo dedicado aos determinantes
socioeconômicos ou a experiências de vida dentro de outros contextos e
sociedades fora dos parâmetros Ocidentais” (p.84).

É nesse imbricamento que nos colocamos a pensar: como a família, no contexto das
políticas sociais, pode ser entendida pela(s) Psicologia(s)? Nesse campo de tensionamento, as
autoras Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013) trazem contribuições que dizem respeito à (falta
de) formação política na psicologia, voltada também para o que concerne ao social:

Se, por um lado, muitos psicólogos têm criticado a medicalização da vida,


por outro, a psicologização atualiza-se quando se remete ao campo das
explicações psicológicas tudo o que acontece ao sujeito, isso porque o
cotidiano é esvaziado politicamente e as diversas formas de dominação e
controle são invisibilizadas e atribuídas ao território do psicológico.
Arriscamos dizer que, majoritariamente, a psicologia tem-se ocupado de
adequar as pessoas à norma, autorizando-se a estabelecer a
normalidade/anormalidade, a classificar apto/inaptos,
corrigíveis/incorrigíveis, determinando modos de vida. (p.12)

Psicólogas/os compõem equipe mínima dos CRAS desde sua implementação. Mas é
possível pensarmos que muitas/os dessas/es não receberam e não recebem formação para a
execução de trabalho em políticas públicas. Em relação ao resgate dessa história recente entre
as práticas psicológicas na assistência, muitas ações foram pautadas na dicotomização entre
normal e patológico, famílias estruturadas ou desestruturadas – e ainda discursos que
culpabilizaram as famílias por sua condição socioeconômica (CRUZ; GUARESCHI, 2012).
Consideramos que a Psicologia tem outros entendimentos a construir a partir da sua
inclusão profissional – cada vez mais presente – no campo das políticas sociais. E que o
espaço para pesquisa em Psicologia Social é fundamental nesse contexto – o que se dá por
meio de desafios: o que pode a psicologia social na produção de entendimentos que se
desvinculem com a tradição psicológica normativa e reguladora, no que diz respeito às
famílias e ao trabalho com essas mulheres-mães?

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Considerações finais

Dado o processo de pesquisa deste trabalho, fica evidente que os conceitos de família
e de matricialidade sociofamiliar são campos de investigação por diferentes áreas de
conhecimento e que seu modo de entendimento pode vir a reforçar estereótipos de gênero.
Nesse processo, mulheres-mães podem ser responsabilizadas pelo cuidado e pela proteção
dessas famílias usuárias da Assistência Social, em um processo de culpabilização destas, e de
consequente desresponsabilização de outras esferas possíveis, como o Estado. Desse modo,
entendemos como fundamental que as ideias envoltas às famílias sigam sendo amplamente
debatidas e desnaturalizadas, a fim de que se possa, nos documentos e em campo, construir
narrativas que promovam autonomia e acesso a direitos – desviando das lógicas que
normatizam e regulam o que essas famílias devem fazer para serem “boas famílias”,
respeitando suas multiplicidades e não as tomando como principais responsáveis pela
proteção e pelo cuidado em realidades em que, muitas vezes, elas não recebem o mínimo
necessário.
Nos documentos, é possível perceber que existe um rearranjo conceitual em relação
às famílias, rearranjo este que diz respeito às estruturas dessas famílias, em que é entendido
que essas não são mais aquelas compostas por pai/mãe/filhas/os – mas que são
estruturalmente multifacetadas na nossa organização social. E a partir dessa mudança de
atores familiares, talvez mudassem também as funções esperadas que cada um exerceria – até
para não recair responsabilidades sobre as mulheres, que permaneceram enquanto chefes
dessas famílias, em sua maioria. Porém, entendemos que se mantiveram as expectativas sobre
as funções das mesmas, que estão tradicionalmente calcadas em considerações da cultura
referentes ao papel materno. Recorrendo às autoras Carloto e Mariano (2008)

A concepção de família está mais aberta e ampliada, porém são mantidas as


mesmas expectativas sobre o papel da família e suas responsabilidades
enquanto um grupo/arranjo de proteção e cuidados dos indivíduos,
principalmente o papel da mulher/mãe como principal elemento provocador
de mudanças, e tendo um papel ativo para a configuração de uma “boa
família”. (p.156).

Pensamos que esse mesmo padrão de funcionalidade que é exigido dessas famílias
deve ser colocado em análise, e que outros estudos no campo da psicologia social nas
políticas públicas se fazem necessários. É importante salientarmos que neste trabalho
partimos de uma análise inicial e que é nosso objetivo complexificá-la e seguir propondo

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questões referentes a essa temática, recorrendo às possibilidades a partir da psicologia social,


no diálogo com a assistência social.

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Da vida íntima à esfera pública: a politização do parto

Julia Ester de Paula1

Resumo:
Neste artigo pretendemos discutir a transição do debate sobre o parto da esfera íntima
para a esfera pública. Defendemos que o nascimento vem passando por um processo de
politização nos últimos anos e argumentamos que recentes resoluções propostas pela ANS
(2015), CFM (2016) e Câmara dos deputados (2016) podem ser considerados exemplos disso.
Deste modo, estruturamos o artigo em quatro partes. Primeiramente, abordaremos os
modelos de assistência obstétrica presentes na sociedade ocidental e estabeleceremos um
panorama do processo de nascimento no Brasil contemporâneo. Depois, examinaremos o
papel dos media, das conversações e das histórias de vida nas discussões sobre o tema. Em
seguida, estudaremos como o debate se constitui em meio a assimetrias de poder entre
profissionais do parto e gestantes, bem como o modo pelo qual os sentimentos morais de
injustiça são percebidos pelas mulheres. Finalmente, observaremos como o processo de
nascimento passou a ser discutido na esfera pública ao longo dos anos. Nossa discussão será
exemplificada pela deliberação e conversação política centrada na resolução normativa 2144
do Conselho Federal de Medicina, divulgada em 22 de junho de 2016, e no Projeto de Lei
5687, proposto em 29 de junho de 2016, que buscam estabelecer diretrizes para o processo de
nascimento no país.

Palavras-chaves: politização; parto; teoria deliberativa.

1
PPGCOM/UFMG; mestranda; juliaester.paula@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p500 500


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Introdução

O debate sobre o parto é um tema complexo e controverso na sociedade brasileira.


Durante séculos, o processo de nascimento foi entendido pela sociedade como uma questão de
fórum íntimo, direcionada às mulheres e suas famílias. Os partos eram realizados em casa,
sem intervenções ou uso de anestesias. Com a ascensão do modelo tecnocrático, entretanto, o
modelo de assistência obstétrica sofreu alterações e a cesárea se popularizou entre as
gestantes. O uso de aparatos para lidar com a dor e diminuir os riscos fizeram com que
obstetras assumissem o papel de “salvadores” das mulheres e passassem a exercer influência
na decisão pelo modelo de parto. Esse dado pode ser evidenciado através da pesquisa Nascer
no Brasil, que mostra que no início da gestação quase 70% das mulheres afirmam preferir o
parto normal, mas ao final, cerca de 52% dos nascimentos são por cesáreas, o que não é
justificado pela existência de complicações ou intercorrências (FIOCRUZ, 2014).
Contudo, esse incentivo à cesárea vem na contramão do que é recomendado pela
Organização Mundial de Saúde e pelos movimentos pela diminuição da mortalidade perinatal
e materna, estabelecidos desde a década de 1970. Estes atores incentivam a realização de
partos normais e o protagonismo da mulher durante o processo. Para eles o parto é um assunto
que concerne à sociedade como um todo, no qual as informações sobre os riscos de cada
modelo precisam ser divulgadas abertamente entre os envolvidos. Deste modo, eles
impulsionam a discussão sobre o tema e buscam uma responsabilização social e política pela
realização de partos mais respeitosos (DINIZ, 2005).
Assim, o objetivo do trabalho é investigar a politização do tema (WOOD e
FLINDERS, 2014) e o papel das conversações e dos media na impulsão da discussão pra a
esfera pública e fiscalização dos abusos. A partir dessas instâncias é possível assimilar os
danos sofridos e questionar os padrões de injustiça. As histórias de vida auxiliam na formação
da reflexão crítica e compreensão de aspectos por vezes marginalizados. As conversações
promovem uma ligação entre esfera privada e esfera pública e ajudam a entender os conflitos
e interesses de forma mais clara, além de trazer demandas novas para o debate. Os media
podem difundir informações relevantes e incluir atores na discussão, fomentando o debate e
ampliando o público interessado (MAIA, 2012; MANSBRIDGE, 2009).
O artigo está estruturado em quatro seções. Primeiramente, abordaremos a história
ocidental do parto e estabeleceremos um panorama do processo de nascimento no Brasil. Em
seguida, discutiremos sobre sistema deliberativo e seus sub-sistemas na constituição do debate
ampliado. Depois, examinaremos como os danos são percebidos pelas gestantes e a maneira

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pela qual é possível constituir uma discussão em meio a assimetrias de poder. Enfim,
observaremos como o debate saiu da esfera privada e atingiu a esfera pública, alcançando,
inclusive, a instância legislativa governamental.

Um breve panorama histórico sobre o parto

A história ocidental do parto é perpassada por diferentes modelos de assistência


obstétrica. Durante séculos, o sofrimento durante o parto foi entendido pela sociedade, a partir
do modelo tutelado pela igreja católica, como um “castigo divino” pelo “pecado original”, de
modo a inibir qualquer assistência médica que reduzisse as dores e os riscos. O parto era tido
como um momento relegado às mulheres, no qual homens apenas aguardavam pelo
nascimento do filho. No século XX, entretanto, a obstetrícia adotou o modelo tecnocrático,
com intervenções e anestesias. Foi neste momento em que os partos começaram a ser
trabalhados como uma questão de ordem médica e que a obstetrícia passou a ocupar o papel
de “resgatadora da mulher” (LUZ e SARMENTO, 2016). Este papel a fez alcançar também o
“poder simbólico” (ARAÚJO e CARDOSO, 2007) de detentora da razão e os profissionais de
saúde passaram a exercer influência nas decisões de parto.
No final da década de 1970, um novo modelo de assistência emergiu e, em 1979, com
a criação do Comitê Europeu para estudar as intervenções em busca da redução da
mortalidade perinatal2 e materna, a crítica ao modelo tecnocrático se acelerou. Iniciou-se,
então, “um processo internacional para priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade de
interação entre parturiente e seus cuidadores, e a desincorporação da tecnologia danosa”
(DINIZ, 2005. P. 629), desencadeando a ação de movimentos sociais que buscam devolver o
protagonismo ativo da mulher no parto, ao resguardar a ação obstétrica somente ao que for
estritamente necessário e incentivar a realização do parto por parteira e enfermeiros, isto é,
buscam a humanização do parto.
Estes três modelos de assistência obstétrica – modelo tutelado pela Igreja católica,
modelo tecnocrático e modelo humanizado – marcaram a história ocidental do parto, bem
como a história brasileira, reverberando até os dias contemporâneos.

O parto no Brasil

Em 2014, a Fundação Fiocruz realizou o estudo Nascer no Brasil, o maior sobre


nascimento já feito no país. O estudo entrevistou mais de 23 mil mulheres, de cidades do

2
Relativo ao período entre 22 semanas completas de gestação e sete dias completos após o nascimento.

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interior e capitais de todos os estados brasileiros, de hospitais públicos e privados e


apresentou um panorama geral de como acontecem os partos no Brasil. De acordo com ele, no
início da gestação quase 70% das mulheres afirmam preferir o parto normal, mas ao fim cerca
de 52% dos nascimentos são através de cesáreas. Em hospitais privados este número chega
88%. A principal justificativa pela escolha do parto normal era “recuperação rápida” e pela
cesárea era o “medo da dor do parto normal”. Este último pode ter sido utilizado por médicos
como forma de incentivo à realização de cesáreas.
“Embora a preferência inicial pelo parto vaginal fosse maior, observou-se que, ao
longo da gravidez, houve uma mudança da decisão em relação ao tipo de parto, que
não pode ser explicado pela ocorrência de problemas e complicações. Isso sugere
que a orientação pré-natal pode estar induzindo a maior aceitação da cesariana”.
(FIOCRUZ, p. 4)

A pesquisa mostra ainda que todos os anos quase um milhão de mulheres são
submetidas a cesáreas sem indicação obstétrica adequada e que de 1970 pra cá – década em
que o modelo de assistência obstétrico tecnocrático começou a ser criticado - o número de
cesáreas quase quadriplicou no país, saindo de 14,5% para 52%. Os dados mostram que
apenas 5% das mulheres têm o parto normal sem intervenções e são 43% de parto normal com
intervenção, o que totaliza 48% de partos normais realizados no país. Dos 52% de cesáreas,
apenas 18% são realizadas com mulheres já em trabalho de parto e 34% de cesáreas
agendadas. São números muito diferentes do que acontece no Reino Unido, por exemplo,
onde 40% dos partos realizados são normais e sem intervenções, ressaltando o modelo de
atenção extremamente medicalizado no Brasil e com grande índice de violência obstétrica
(FIOCRUZ, 2014).
Deste modo, por vezes, a escolha pelo parto é na verdade uma escolha entre uma
cesárea e um parto normal com violência obstétrica, não podendo, portanto, ser considerada
uma escolha genuína. A autonomia nem sempre é percebida neste contexto - seja pela falta de
diálogo entre médicos e gestantes, seja pelo não reconhecimento da mulher enquanto um
sujeito apto a agir moralmente. Estas violações, contudo, vêm aos poucos sendo tematizadas
na esfera pública por atores envolvidos e que buscam uma discussão ampliada sobre o tema,
como a próxima seção deste ensaio discorrerá.

Os media, as conversações e as histórias de vida no debate sobre o parto

Em Direito e Democracia (1997), Habermas propõe a noção de democracia


deliberativa. Entende-se por deliberação a troca pública de razões entre interlocutores livres

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de coerção, em condições de igualdade com respeito e reflexividade, em busca do bem


comum (HABERMAS, 1997). De acordo com Habermas (1997), a deliberação deve ser
“racionalmente motivada” e abranger todos os assuntos passíveis de regulação, de modo que
assuntos da esfera privada também poderiam ser tematizados.
Neste modelo de democracia há uma circulação contínua entre o poder administrativo
(centro) e o poder comunicativo (periferia), logo, a participação dos cidadãos se estenderia
para além do voto, alcançando o debate sobre questões de interesse público.
Habermas entende também que a deliberação caminharia em dois fluxos: o comum e o
extraordinário. O comum seria do centro do poder político para a periferia. O extraordinário,
por sua vez, aconteceria quando a demanda partisse da periferia do sistema político para o
centro, buscando que seja discutida pelo poder administrativo. A esfera pública seria, então, a
instância de argumentação e exposição de razões, constituída a partir do momento em que
atores tematizam problemas da sociedade como um todo.
Partindo deste conceito, Mansbridge e colegas (2012) inseriram a deliberação numa
abordagem sistêmica. O sistema deliberativo entende que a democracia é uma organização
complexa, constituída por diferentes sistemas que seriam interdependentes e conectados. Por
consequência, o sistema abrangeria tanto ambientes formais de debate quanto ambientes
informais, investigando diferentes atores e arenas discursivas. De acordo com eles,
"Para entender o objetivo maior da deliberação, sugerimos que é necessário ir além
do estudo de instituições e processos individuais para examinar sua interação no
sistema como um todo. Reconhecemos que a maioria das democracias são
entidades complexas com uma grande variedade de instituições, associações e
locais de contestação política - incluindo redes informais, meios de comunicação,
grupos de defesa organizados, escolas, fundações, instituições privadas e sem fins
lucrativos, agências executivas e tribunais. Defendemos, portanto, o que pode ser
chamado de abordagem sistêmica da democracia deliberativa." (MANSBRIDGE et
al. 2012 - tradução nossa)

Neste aspecto, Jane Mansbridge (2009) reconhece a importância da conversação


cotidiana e de contextos informais para a realização da deliberação, considerando-os “parte
crucial do amplo sistema deliberativo” (MANSBRIDGE, 2009. P. 207). De acordo com ela,
“a conversação cotidiana entre cidadãos sobre problemas que o público deve discutir, prepara
o caminho para as decisões governamentais formais e para decisões coletivas, para além da
decisão em si” (MANSBRIGDE, 2009. p.209).
Os media também ocupam um papel central dentro da deliberação, uma vez que
promovem a “ampla circulação de mensagens compreensíveis, estimuladoras de atenção, [e]
asseguram certamente uma inclusão suficiente dos participantes” (HABERMAS, 1997. P. 94),

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trazendo reflexões, informações e argumentos sobre determinado tema e contribuindo para a


discussão. Maia (2012) enfatiza o papel dos media para a qualidade deliberativa do sistema:
"Os meios de comunicação de massa podem, em algumas circunstâncias, favorecer
práticas democráticas, fornecendo informações inteligíveis, precisas e
adequadamente interpretadas; explorando emoções, dramas e narrativas pessoais
que encorajam a reflexão crítica e debates democráticos; e desempenhando um
papel relativamente independente, monitorando os abusos do governo e protegendo
os direitos civis.” (P. 316 – tradução nossa)

Maia fala ainda que na maioria das situações, as pessoas formam suas opiniões
combinando suas experiências pessoais com os discursos disponíveis nos media. Assim, como
os media não só difundem as informações, mas também selecionam como são mostradas, eles
podem ser vistos como fórum de debate e também como ator do debate,
No caso do debate sobre o parto, consideramos que os media ampliam o público
interessado pelo tema e fomentam a discussão. Entretanto, ao entender que eles não apenas
difundem as informações, mas as enquadram em viés específico, concordamos com Maia e
Oliveira (2017) quando as autoras dizem que a publicização das questões pode gerar efeitos
contraditórios.
Um exemplo disso é o caso da morte da enfermeira e professora da Universidade
Federal de São Carlos, Mariana Machado (ARAÚJO, 2015). Em junho de 2015, Mariana
passou por uma cesárea de emergência após tentar, por mais de 48 horas sem sucesso, ter um
parto natural humanizado. A enfermeira teve hipotensão e choque hemorrágico e morreu após
11 dias internada. Este caso teve forte repercussão midiática, mas os enquadramentos foram
diversos. Enquanto alguns portais destacavam que Mariana morreu depois de tentar o parto
natural por dois dias, outros focavam no fato dela ter morrido após a realização de uma
cesárea. Assim, apesar de impulsionar os debates sobre o tema e expor argumentos de ambos
os lados da discussão, os portais de notícia foram entendidos como sensacionalistas,
manipuladores e difusores de informações inverídicas e conflitantes.
A atuação desses sub-sistemas no processo de troca de razões, entretanto, não implica
que a deliberação deixe de ser perpassada por desigualdades e assimetrias diversas e que as
mulheres não passem por violências e privações no processo de parto. A próxima seção deste
ensaio explora melhor este aspecto.

As relações de poder e a percepção dos danos

Ainda que a deliberação seja perpassada por diferentes arenas e atores, destacamos
que o debate não se faz isento de relações de poder. Sabendo disso, Mendonça (2006) destaca

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que não se pode desconsiderar as questões de poder que circundam os media enquanto espaço
de disputa por visibilidade, tampouco ignorar as transformações que eles promovem. Araújo e
Cardoso (2007) dizem que os media e a área da comunicação são palco para embates em
torno do poder simbólico e este poder está ligado à legitimidade do discurso.
“... o poder simbólico de uma pessoa, grupo ou instituição está na razão direta do
seu capital simbólico. Este resultado do reconhecimento, como legítimos, dos
capitais de outra espécie – econômico, cultural ou social. A legitimidade se
conquista, via de regra, no território da comunicação, que é o da produção e
circulação dos sentidos sociais. E, num movimento circular, a comunicação é mais
eficaz quando emanada de uma voz autorizada por legitimidade.” (ARAÚJO e
CARDOSO 2007. P. 38)

Ainda sobre poder, a teoria feminista trouxe uma forte contribuição à teoria política ao
ampliar os espaços em que ele é tematizado (FRASER, 1990). De acordo com Young (2001),
família, corpo e sexualidade podem ser percebidos como arenas que impedem a completa
efetivação da mulher enquanto sujeito político. Na sociedade atual, médicos têm um poder
simbólico perante pacientes e, deste modo, suas opiniões seriam deteminantes da escolha de
um parto.
“Por determinadas circunstâncias, algumas teorias adquirem prevalência sobre as
demais, ganham o estatuto da verdade, passando a orientar a percepção de um
grande número de pessoas, tornando-se hegemônicas. Mais que isto, algumas
teorias se naturalizam, passam a ser percebidas como algo natural e não construído
pelas pessoas, em determinada época e com determinados interesses. Assim, temos
caracterizada em seu mais alto grau a possibilidade do exercício do poder
simbólico, o “poder de fazer ver e fazer crer.” (Araújo e Cardoso, 2007. P. 36)

Entendemos que na sociedade atual medicina é uma profissão de prestígio e, assim, as


opiniões de médicos são percebidas como legítimas e sensatas, podendo ser determinantes na
escolha pela via de parto. Além disso, a teoria feminista destaca que a mulher ainda não é
vista de forma igualitária em relação a homens e os espaços em que há controle sobre o sexo
feminino pode ser compreendido de maneira ampliada. O parto, por ser uma vivência apenas
feminina, seria perpassado pela assimetria de poder relativa ao status social e ao gênero.
Neste aspecto, podemos destacar o conceito de sentimento moral de injustiça,
entendido por Axel Honneth como a sensação de que a situação vivenciada deveria ser
diferente (2003). Para o filósofo são os sentimentos de injustiça, as violação que afetam a
autoconfiança, o autorrespeito e autoestima que incitam as lutas sociais. Honneth defende que
os indivíduos estão em busca de uma autorrealização – constituída tanto na relação consigo
mesmo quanto na relação com o outro – e que seria estabelecido em três esferas: i) o plano
das necessidades subjetivas, marcada pelo amor; ii) o plano da autonomia moral, marcado

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pela cidadania; e iii) o plano da valorização das próprias necessidades e competências,


marcado pela estima social.
No processo de nascimento há a violação das três esferas de Honneth. Na esfera do
amor as violações se dariam através de violências físicas e qualquer ataque que faça com o
que o indivíduo sinta que não tem domínio nem mesmo sobre o próprio corpo. A violência
obstétrica, com cortes e manobras indevidos, ofensas, negação de métodos que possam
oferecer alívio para dor, se encaixaria neste aspecto. A autoconfiança e segurança afetiva
seriam prejudicadas, afetando negativamente a defesa das próprias preferências e a habilidade
de participar da vida pública.
Na esfera da cidadania as violações ocorreriam pela privação de direitos, como o
direito à escolha pelo modelo de parto, direito a acompanhante durante o nascimento e direito
ao acesso a todas as informações envolvidas no processo. Os indivíduos precisam ter sua
liberdade e sobrevivência asseguradas legalmente e serem tratados como iguais na esfera
pública. No entanto, uma vez que estas violações impedem que o indivíduo tenha a
possibilidade de tomar decisões morais, o autorrespeito é afetado e o indivíduo perde a
compreensão de si mesmo enquanto cidadão.
Já na esfera da estima social, as violações ocorreriam pela depreciação do papel de
mãe por conta do modelo de parto escolhido. Dependendo da via de parto vivenciada a
mulher pode ter suas qualidades de mãe desacreditas. Na nossa cultura, em que certos
discursos colocam a cesárea como o modelo seguro de nascimento (KENIA, 2016), é dito que
mulheres que optam pelo normal seriam irresponsáveis ou caprichosas, que estariam
arriscando a vida de seus bebês por conta de um desejo tolo. Por outro lado, com os
movimentos de humanização do parto pregando o protagonismo da mulher durante o
processo, muitos dizem que a gestante que escolhe a cesárea eletiva é fraca ou menos digna da
maternidade. Assim, em ambos os casos, a habilidade de ser mãe pode ser questionada,
afetando a autoestima da mulher.
Em vista disso, é preciso dizer que estas percepções de injustiça só acontecem porque
há uma expectativa de como deveria ser o tratamento ideal. As histórias de vida auxiliam na
compreensão desta sensação, ao proporcionar que pessoas conheçam novas perspectivas e
percebam, então, o dano sofrido. Assim como Maia (2008) e Sarmento (2014), acreditamos
que é preciso estabelecer um debate entre os grupos em desvantagem e os grupos percebidos
como opressores, na tentativa de negociar entendimentos e construir corresponsabilidade e
cooperação. Consideramos que um enfrentamento discursivo é parte importante na
democratização das relações e que enfrentamento das desigualdades passa por um domínio

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discursivo. A politização da questão seria um importante passo na busca por solidariedade e


engajamento coletivo em busca do “progresso moral da sociedade” (HONNETH, 2003;
MAIA e VIMIEIRO, 2013).

Da esfera privada à esfera pública: a politização do parto

Argumentamos, a partir do que foi dito nas seções anteriores, que a abordagem
sistêmica da deliberação, a tematização do parto como um assunto de interesse social e os
sentimentos morais de injustiça – que a exposição de razões, os media, as conversações
cotidianas e as histórias de vida ajudariam a proporcionar – podem ser relacionados a um
processo de politização do parto na sociedade brasileira.
De acordo com Wood e Flinders (2014), a politização pode ser classificada em três
tipos. O primeiro é relativo à capacidade de deliberar sobre temas antes intocados. Neste
aspecto, durante muito tempo, como mostrado neste ensaio, o parto foi percebido como um
assunto íntimo e feminino. Logo, deveria ser resguardado aos limites da casa e às mulheres da
família. Homens e pessoas de fora não precisariam saber dos detalhes tampouco exigir
melhorias. Atualmente, esta situação é vista como descabida. Os media difundem informações
e mulheres relatam suas experiências. Diferentes pessoas refletem sobre o tema, ficam
indignadas quanto a alguns tópicos, fiscalizam abusos e discutem como alcançar melhorias
(MAIA, 2012).
O segundo tipo se refere à compreensão da questão como pública e não privada. O
debate sobre o modelo de parto, antes entendido como apenas uma questão de escolha da mãe,
passou a ser percebido num contexto mais amplo, perpassado pela relação com os médicos,
familiares e sociedade como um todo, bem como das condições físicas, psicológicas e
econômicas da mulher. Isto posto, não bastaria “mudar” a opinião da gestante, mas seria
preciso estabelecer possibilidades e materialidades para que as melhorias propostas fossem
viáveis.
Por fim, o terceiro tipo é referente a uma impulsão do debate para a esfera
governamental, que deveria propor alternativas à situação e tomar parte da responsabilidade.
Aqui, algumas legislações propostas pela Agência Nacional de Saúde/ANS, Justiça Federal,
Conselho Federal de Medicina/CFM e Câmara dos Deputados nos dois últimos anos podem
exemplificar esta interpretação.
Com o objetivo de reduzir a taxa de cesáreas no sistema particular, a ANS determinou,
em janeiro de 2015, que os planos de saúde devem informar suas taxas de parto normal e

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cesáreas e implantar o cartão gestante e o partograma, com informações sobre a grávida e o


processo de nascimento, de modo a facilitar o atendimento da mulher por múltiplas equipes.
Ainda em 2015, no mês de dezembro, a Justiça Federal, definiu que o pagamento pela
realização de partos normais no sistema particular de saúde será três vezes maior que o
pagamento pela realização de cesáreas, equiparando os valores recebidos com o tempo médio
despendido no trabalho (partos normais costumam demorar mais que cesáreas). A meta aqui
era desestimular as indicações desnecessárias de um tipo ou de outro no parto.
No ano seguinte, no dia 22 de junho, o CFM na resolução normativa/RN 2144 proibiu
o agendamento de cesáreas eletivas antes de 39 semanas completas de gestação. No
documento é alegado que a RN busca garantir a segurança de mãe e feto e que muitas vezes a
decisão pela cesárea e decorrente de um medo do parto. Assim, médicos precisariam debater
de maneira plena e abrangente sobre riscos, benefícios e direitos da mulher quanto à via de
parto já nas primeiras consultas pré-natais.
“Art. 1º É direito da gestante, nas situações eletivas, optar pela realização de
cesariana, garantida por sua autonomia, desde que tenha recebido todas as
informações de forma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus
respectivos benefícios e riscos. Parágrafo único. A decisão deve ser registrada em
termo de consentimento livre e esclarecido, elaborado em linguagem de fácil
compreensão, respeitando as características socioculturais da gestante.
Art. 2º Para garantir a segurança do feto, a cesariana a pedido da gestante, nas
situações de risco habitual, somente poderá ser realizada a partir da 39ª semana de
gestação, devendo haver o registro em prontuário.” (CFM, 2016. P. 1)

Em resposta a esta resolução, no dia 27 do mesmo mês, menos de uma semana após o
lançamento da resolução, o Deputado Federal do Partido Social Cristão do Mato Grosso/
PSC-MT, propôs o Projeto de Lei 5687, com o intuito de autorizar o agendamento ao
completar 37 semanas de gravidez. O texto do documento alega que o projeto garante a
dignidade e autonomia da mulher que escolheu passar por uma cesárea. O texto diz
“Sabemos que O Conselho Federal de Medicina através da Resolução N.
2.144 de 22 de junho de 2016, em seu Art. 2º, traz uma nova regra para as gestantes
que preferirem a cesariana em vez do parto normal. Disciplinou que a mulher terá o
direito de fazer prevalecer sua escolha entre parto normal ou cesariana, desde que o
procedimento seja realizado após a 39ª semana de gravidez. Criando com certeza uma
polêmica sobre o direito de escolha dessas mães, sabendo que antes era de 37
semanas.
O Art. 2º da Resolução 2.144/2016, entendo que interfere diretamente na
autonomia da paciente. Agora é uma regra para ser seguida nos hospitais públicos e
privados. Não havendo situação de risco para a mãe nem para o bebê, a determinação
do Conselho é no sentido que a cesárea após agendamento seja feita a partir da 39ª
semana de gestação. Antes, a regra era a partir da 37ª.
Portanto, este projeto dará dignidade e autonomia para as mães que ao
escolherem através de agendamento prévio o procedimento cesariano, lhes será dado o
direito de escolher logo após a 37ª semana de gestação.” (GALLI, 2016. P. 1)

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O Projeto de Lei foi rejeitado pelas comissões de Defesa dos direitos da mulher e de
Seguridade Social e Família. No parecer, a relatora destacou a importância deste debate e
enfatizou que a RN 2144 tem como objetivo proteger mães e bebês, garantindo o
desenvolvimento necessário para o feto e evitando os riscos proporcionados pela cesariana. O
texto diz:

“A tendência de preferir a cesariana é explicada por questões culturais, medo


da dor, realização concomitante de laqueadura, conveniência dos médicos e da
mulher. Outros fatores de apreensão são a intensa medicalização do parto, que acaba
por submeter a mulher a intervenções excessivas, a imposição de condutas
desaconselhadas como limitação ao leito, o impedimento da presença do
acompanhante, a realização de episiotomia de rotina, uso de ocitocina em desacordo
com as normas, tratamento rude e até violento das parturientes. Enfim, vigora a
impressão de que o parto normal é um caminho para inescapável sofrimento.
A constatação paradoxal de que o momento de nascer se transformou em
pesadelo para as parturientes, famílias e crianças, impulsionou o movimento pelo
resgate do parto normal, humanizado, com acolhimento da gestante e de quem a
acompanha. Experiências exitosas como as Casas de Parto, a maior participação de
doulas, a incorporação do pai nas atividades do pré-natal, a vinculação com a
maternidade e a elaboração do Plano de Parto estão estimulando as pessoas a tomarem
consciência das vantagens do parto vaginal.” (OLIVEIRA, 2017. P. 2)

Logo, destacando a RN 2144 do CFM, o PL 5687 e o parecer da relatora Shéridan


Oliveira, podemos perceber o acionamento das três instâncias de politização. Primeiramente,
o parto deixa de ser entendido enquanto um tema indiscutível, particular, e passa a ser pauta
pública, de interesse coletivo.
Segundo, ao destacarem os valores de autonomia relacionando a escolha pela via de
parto à informação sobre os riscos, ao relacionamento das gestantes com os médicos e aos
medos, questões culturais e às normas, há uma complexificação da escolha pessoal, que deixa
de ser percebida enquanto algo que é tomado de maneira isolada e passa a ser entendido como
algo também contextual, dependente de inúmeros fatores e variáveis.
Por fim, aos serem propostas diretrizes e respostas a elas, todos estes exemplos
evidenciam a terceira instância de politização do debate, que sai da esfera privada e atinge o
âmbito legal, buscando destacar que a luta por um parto justo e respeitoso precisa ser além de
uma demanda social, uma causa política e de responsabilidade das instâncias legislativas.

Considerações finais

Neste artigo investigamos a discussão sobre o parto no Brasil, que saiu dos espaços
privados e atingiu esferas legislativas. Entendemos que o processo de nascimento passa por
uma politização e que a escolha pela via de parto vem sendo tematizada na esfera pública

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enquanto um tema de interesse coletivo. Estruturamos o artigo em quatro partes.


Primeiramente, traçamos um breve panorama do parto no Brasil, relatando que o país é
recordista mundial na realização de cesáreas e que há um alto índice de violência obstétrica.
Em seguida discutimos sobre o sistema deliberativo e a constituição do debate, enfatizando
que os media, as conversações e os relatos têm papel um fundamental, expondo pontos de
vista, difundindo informações e trazendo reflexões sobre o tema. Depois, falamos brevemente
sobre as relações de poder e destacamos que os sentimentos de injustiça impulsionam a busca
por melhorias e o engajamento nas discussões. Finalmente, discorremos sobre os tipos de
politização e exemplificamos através da Resolução Normativa 2144 do Conselho Federal de
Medicina e do Projeto de Lei 5687/2016.
Neste aspecto, julgamos que o debate sobre o parto é perpassado por assimetrias de
poder e a escolha pela via de parto não se constitui de maneira isolada, mas depende do
contexto mais amplo em que a mulher está inserida. Assim, acreditamos que a violência
sofrida durante o parto não é fruto de um caso particular e que a luta pelo parto respeitoso é
uma causa social.
Deste modo, consideramos que o engajamento discursivo torna-se fundamental no
enfrentamento das desigualdades. É por meio da troca dialógica ou da troca pública de razões
que se faz possível buscar soluções legítimas e concernentes ao bem comum para questões de
ordem pública.
Enfim, percebemos a politização do nascimento no Brasil como um grande passo para
a busca de um processo de parto mais justo. Esta não é uma demanda de ordem pessoal e deve
ser debatida na ordem da coletividade. É preciso que governo e sociedade deixem de delegar,
privatizar ou negar alternativas ao processo e assumam a responsabilidade sobre as injustiças
e violações.

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Políticas Públicas contra a violência obstétrica no Brasil: o HumanizaSUS


Lucília Mendes de Oliveira e Silva 1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como o programa HumanizaSUS tem
influenciado na transformação das políticas públicas de saúde da mulher, principalmente no
enfoque da saúde reprodutiva e no parto e puerpério. Ao longo dos últimos séculos a saúde da
mulher passa a ser tratada como uma questão de saúde pública, com maior medicalização do
corpo da mulher, inclusive na gravidez. Esta maior medicalização teve o efeito de criar
importantes políticas públicas voltadas para a prevenção de doenças, controle e prevenção da
gravidez indesejada, acompanhamento da gravidez e do parto, assim como o
acompanhamento do bebê recém-nascido. No entanto este controle sobre o corpo da mulher
teve consequências nem sempre benéficas, como a redução do controle da mulher sobre o
próprio corpo, a perda de conhecimentos ancestrais sobre a gravidez e o parto, conhecimentos
estes antes reservados ao âmbito feminino e repassado de mãe para filha, de parteira para
parturiente. A violência obstétrica também surge como um espectro do machismo da
sociedade patriarcal, muitas vezes por falta de informação a mulher leva muito tempo para
reconhecer ter sido vítima deste tipo de violência. Sendo assim é importante pensar a
violência obstétrica como um tipo de violência de gênero e entender quais são os programas e
políticas públicas voltadas para combater esta violência, oferecendo maior informação para
garantir maior autonomia e direito de escolha da mulher sobre o seu corpo, em específico no
momento do parto. Após a análise histórica das políticas públicas de saúde da mulher no país
será feita a definição sobre violência obstétrica para, em seguida, compreender como o
HumanizaSUS pode ajudar a combatê-la. Este trabalho é teórico e se baseia na leitura e na
análise de conteúdo do programa HumanizaSUS, comparando suas propostas com a aplicação
destas propostas demonstrada por outros trabalhos científicos.

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFU. Trabalho realizado através do
financiamento da bolsa de mestrado da FAPEMIG e sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia
Vanucchi. Email: lusilva_4@hotmail.com .

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Palavras-chaves: Políticas Públicas; Violência Obstétrica; HumanizaSUS.

INTRODUÇÃO

A medicalização do corpo feminino fez parte do processo de transformar aspectos da


vida cotidiana em objetos da medicina, garantindo a obediência às normas sociais, como
demonstra Nagahama (2005). A passagem dos cuidados com o parto de um momento
feminino, envolvendo a gestante e a parteira, para um momento institucional e hospitalar
passou pelo desenvolvimento da obstetrícia, pelas pesquisas sobre o corpo feminino e pela
descoberta da ovulação, tornando a gestação um momento de fragilidade da mulher e, sendo
perigoso, necessitando da proteção da medicina.
O trabalho se propõe a analisar como as políticas públicas para mulheres vem se
desenvolvendo no Brasil e como estas políticas lidam com a garantia dos direitos
reprodutivos, dando um enfoque no tratamento da gestação e do parto.
Posteriormente se explicará quais situações são consideradas como violência
obstétrica, uma violência muitas vezes invisibilizada, mas que têm crescido cada vez mais no
país. Para pensar a humanização no parto é preciso primeiro entender os processos que o
fazem ser desumanizado, compreender como os profissionais atuam de forma desrespeitosa e
quais seriam algumas das razões para este tratamento.
Por fim se analisará o programa HumanizaSUS e seu volume voltado para a
humanização do parto, a partir de uma perspectiva de humanização baseada no respeito e na
participação ativa da mulher na tomada de decisões sobre como seu trabalho de parto
ocorrerá. Neste contexto é importante avaliar quais são as diretrizes do programa para que o
parto seja humanizado, como estas orientações podem transformar a atuação dos profissionais
da saúde e se este programa pode, enquanto base para políticas públicas voltadas para a saúde
da mulher, auxiliar na redução da violência obstétrica.

POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS REPRODUTIVOS

Segundo Costa (2010) as primeiras políticas públicas de saúde surgiram no século


XVIII na Europa com surgimento da medicina social e com o objetivo de controlar a

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sociedade, privilegiando a higiene, a infância e a família. A família começou a se organizar


em torno da criança e, por isso, torna-se importante proteger a mulher grávida, garantir um
parto saudável e, ao mesmo tempo, controlar a natalidade. Para que este último fosse possível
a institucionalização do parto, através do hospital, foi um passo importante.
Na década de 1980, em meio à ênfase da ‘superpopulação’ e da ideia de que as
mulheres têm muitos filhos surge, como nos mostra Qadeer (2000), a defesa pelo
fortalecimento de programas de saúde e planejamento familiar com enfoque na saúde
reprodutiva da mulher. O objetivo é que os programas voltados para a saúde reprodutiva
abrangessem mulheres de todas as idades e que a mulher pudesse administrar sua vida sexual
e sua saúde reprodutiva. O problema é que a saúde reprodutiva foi construída enquanto
conceito médico baseada mais na ‘vulnerabilidade biológica’ e no conceito de ‘ciclo vital’ da
mulher do que no empoderamento da mulher com o autocontrole da sua sexualidade.
Isso produziu um sutil deslocamento que transforma o processo social de ter
e criar filhos em um evento essencialmente biológico. A noção de ‘ciclo
vital’ compartimentiza a vida da mulher, cria uma desarticulação de classe e
gênero sobre a saúde. Além disso, incute na imagem da mulher a existência
instintiva e sem pensamento dos vertebrados, desenfatizando sua capacidade
de atuar inteligentemente sobre seu meio ambiente e de transformá-lo
(QADEER, 2000, p. 32).
De acordo com Batista (2000) o movimento feminista utilizou o conceito de direitos
reprodutivos para dar “visibilidade a questões relacionadas ao aborto, à contracepção, à
assistência à saúde e ao incremento das novas tecnologias conceptivas” (BATISTA, 2000, p.
51). Porém o conceito passou a ser utilizado pelos órgãos estatais de forma descaracterizada,
com o objetivo de controlar a concepção (seja através da esterilização ou das novas
tecnologias conceptivas).
Lucila Scavone (2004) aponta para o fato de que as mulheres são frequentemente
objeto de pesquisas médicas, inclusive por isto os contraceptivos tiveram um avanço tão
grande e tão rápido, apesar das ressalvas quanto a seus efeitos colaterais. Outros tratamentos
médicos apontados por Eliane Bio (2015) são: a interrupção da menstruação, as cirurgias
plásticas radicais do corpo, a reprodução assistida que segue um planejamento racional, a
escolha do parto cesáreo com a promessa de menos riscos e menos dor, o excesso de
medicalização do parto induzida pela insegurança em relação ao corpo.
As políticas de controle de natalidade, em geral, não consideram o aspecto subjetivo
presente na escolha da mulher de ter ou não um filho. Porém muitas mulheres, com
consciência sobre o próprio corpo, desejando vivenciar uma sexualidade independente da
reprodução, escolhem se desejam a maternidade ou não. No caso de escolherem pela

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maternidade estas mulheres começam a pensar sobre qual parto desejam, como querem
vivenciar a maternidade e a cobrar uma participação maior do homem na gestação e criação
dos filhos.

No Brasil a proteção à maternidade e à infância enquanto assunto de saúde pública


surge no Estado Novo como uma política voltada para a garantia do aumento de mão de obra
para o país. A partir de 1964 institui-se o modelo de atendimento privado, focado em uma
relação de cuidado médico individualizado. E na década de 1970 o interesse do Estado se
volta para a prevenção de gravidez de risco, para promover o aumento de tempo entre as
gravidezes e fornecer anticoncepcional para que a mulher possa decidir pela maternidade ou
não.

Neste contexto surge nos anos 80 o Programa de Assistência Integral à Saúde da


Mulher (PAISM), com a pretensão de acompanhar a mulher da adolescência à terceira idade,
sendo uma política pública voltada para as conquistas dos direitos da mulher-mãe e para o
planejamento familiar. O PAISM, conforme o resgate histórico de Batista (2000), propõe uma
visão integral da mulher, considerando todas as fases de sua vida, suas especificidades e
necessidades biológicas, psicológicas e de saúde. A integralidade pressupõe também um
atendimento integrado dos profissionais, atendendo às queixas das mulheres, além do repasse
de informações para o melhor conhecimento das mulheres sobre a sua sexualidade. O
programa forneceria informações sobre sexualidade mas não interferiria na fecundidade das
mulheres, seja para reduzi-la ou aumentá-la.
Alejandra Rotania (2000) entende o corpo “como o território material da constituição
do ser integral, enquanto tal, uma dimensão estrutural do ser” (ROTANIA, 2000, p.13). É
uma integralidade físico-biológica-psíquica construída como projeto, construção está que é
simbólico-cultural. O novo é a transformação, manipulação e mercantilização da vida em
função de valores e verdades considerados únicos, certos e claros. Sendo assim ele se torna
um sujeito, com base na materialidade, na identidade e na permanência. O corpo feminino
está em constantes transformações (gravidez, menstruação, menopausa) e por isso é visto
como mais vulnerável e com melhores possibilidades de ser controlado.
O ciclo tecnológico da saúde reprodutiva é formado pela: contracepção medicalizada,
pelo parto cirúrgico, pela esterilização e pela reprodução assistida. Percebe-se um interesse
pelo corpo da mulher através da obstetrícia, é também através desta área que a medicina e as
políticas públicas de saúde conseguem o acesso aos corpos destas mulheres.

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As políticas de planejamento familiar, nem sempre bem-sucedidas quando se trata de


classes mais baixas, são voltadas para a saúde reprodutiva, com o enfoque da reprodução
como um acontecimento puramente biológico e sem influências sociais, e deixando de lado a
saúde da mulher como algo mais global.
Lima Schraiber (2012) aponta que a área da medicina é entendida, no pensamento
hegemônico, como distanciada das questões sociais, econômicas, políticas ou culturais.
Apenas a técnica e a qualificação dos profissionais eram consideradas importantes. Por isso
um movimento importante é o que tenta politizar a área da saúde, entendida como saúde
pública, planejada para uma determinada sociedade com características próprias. Desta forma
pode-se entender que, para além das técnicas, as práticas médicas são práticas sociais.
Este processo politizador começou com a demonstração de que a saúde faz parte de
processos sociais como a desigualdade socioeconômica e os jogos de poder. O paciente não
deve ser entendido apenas como sinônimo da sua patologia, e da forma de tratamento desta,
mas também como um indivíduo formado por um todo bio-psico-social que pode interferir na
contração da doença ou no seu tratamento.
A política é uma esfera fundamental quando pensamos em saúde pública, pois é ela
que coordena, cria projetos, remaneja verbas, abre vagas para contratação de profissionais. No
entanto a esfera política e sua gestão de serviços faz parte de uma dimensão diferente da
dimensão das práticas profissionais na saúde. A política pode propor ações, mas são os
profissionais que executarão estas ações com base nos conhecimentos adquiridos e
tecnologias disponíveis. Neste sentido os profissionais possuem uma certa autonomia em
relação à política e, desta forma podem alcançar uma visão crítica do Estado, através da
saúde, e repensar as condições de acesso da população a esta saúde, alcançando a esfera do
planejamento público crítico.
Segundo Leticia Visbal (2002) para que as política públicas sejam planejadas de forma
a garantir os direitos dos cidadãos é importante levar-se em conta as necessidades da
população e a desigualdade social. Segundo a autora a importância do enfoque de gênero nas
políticas públicas de saúde, entendendo a saúde como um bem público e um direito de
cidadania, é que homens e mulheres estão expostos a condições e riscos diferentes,
principalmente no que diz respeito à reprodução (gravidez, parto).
De acordo com Visbal a igualdade de gênero será alcançada mediante o processo de
compreender “os processos que constroem a desigualdade entre homens e mulheres, seja no
nível simbólico, normativo, institucional e subjetivo” (VISBAL, 2002, p.128) É preciso que

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os sujeitos entendam as diferentes condições entre homens e mulheres e incorporem este


entendimento no cotidiano, de forma a mudar a identificação da sociedade e melhorar a
elaboração e execução de políticas públicas voltadas para a igualdade de gênero.
Em relação à saúde a mulher está em uma condição desigual por ser mais exposta a
riscos devido à sua condição de reprodutora (gravidez, parto e puerpério). As jornadas duplas,
triplas, na sociedade também fazem as mulheres desenvolverem mais doenças como
depressão, ansiedade, distúrbios alimentares. Considerando todas estas questões as mulheres
acabam tendo uma alta demanda nos serviços de saúde e se torna fundamental a perspectiva
de gênero no processo de planejamento das políticas públicas, de forma a garantir a
diversidade e equidade.

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

A violência obstétrica pode ser considerada uma violência de gênero por ser
praticada contra a mulher, no exercício de sua saúde sexual ou reprodutora pelos profissionais
da saúde, do setor público ou privado ou por civis. A violência obstétrica pode ter caráter
físico, psicológico, sexual, institucional e reduz a autonomia das mulheres por passarem a
depender de uma intervenção técnica (médico) para lidarem com sua vida sexual e
reprodutiva (Gomes, 2015). Este tipo de violência pode ocorrer no pré-natal, durante o parto,
nos primeiros meses de vida do bebê ou após um abortamento.
Algumas formas de violência durante o pré-natal são: negar atendimento ou impor
dificuldades a este atendimento nos postos de saúde onde se realiza o pré-natal; ofender ou
humilhar a mulher e sua família; negligenciar atendimento de qualidade; agendar cesárea sem
recomendação baseada em evidências científicas; fazer comentários constrangedores à mulher
por sua etnia, idade, escolaridade, sexualidade, condição socioeconômica, número de filhos,
dentre outros.
Outras formas comuns de violência obstétrica durante o parto e pós-parto são:
humilhar, xingar, coagir, constranger, fazer piadas ou comentários desrespeitosos sobre seu
corpo, sua raça ou situação econômica; utilizar de forma inadequada de procedimentos para
acelerar o parto; submeter a mulher a jejum, nudez, raspagem de pelos, lavagem intestinal
durante o trabalho de parto; violar direitos da mulher garantidos por lei; não oferecer
condições de amamentação e do contato do bebê sadio com a mãe, entre outros.

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A violência obstétrica também é uma violência institucional quando praticada pelos


funcionários dos serviços públicos de saúde. De acordo com Botti (2010) esta violência é
exercida pelos próprios serviços públicos (sistema de saúde, polícia, órgãos públicos) por
ação ou omissão. Sendo assim podemos incluir a peregrinação da gestante por diversos
serviços até conseguir o atendimento necessário como uma forma de violência. A mulher não
só perderia poder durante a gestação e o parto peça sua condição subalterna na sociedade
machista mas também seria apropriada pelo projeto científico da obstetrícia.
A Rede Parto do Princípio é uma das redes mais antigas e conhecidas,
principalmente por sua atuação na luta por uma legislação que garanta os direitos das
mulheres no parto e pela redução na taxa de operações cesarianas. O site oferece também uma
aba para relatos de parto onde se pode encontrar vários relatos de violência obstétrica
vivenciada por estas mulheres, muitas delas que nem sabiam estarem sendo vítimas de
violência no momento.
Em uma busca breve é possível encontrar vários sites com a proposta de discutir
sobre temas como maternidade, cuidados com o bebê e apresentar relatos de parto. Alguns
que podemos citar aqui, e que possuem relatos parto de mulheres vítimas de violência
obstétrica, são: Estação Materna, Tão Feminino, Indiretas Maternas e Comparto. Estes sites
são fundamentais ao denunciarem a realidade da violência obstétrica no país, além de trazer
informações sobre o assunto, pois muitas mulheres são vítimas deste tipo de violência e só
vem a descobrir depois do ocorrido.
Apesar de ser perceptível a alta taxa de violência obstétrica 2 no país ainda não existe
uma legislação nacional específica para punir os profissionais que praticam a violência.
Alguns estados, como o de Santa Catarina 3, possuem legislações próprias contra a violência
obstétrica e tramita na Câmara dos Deputados três projetos de lei4 sobre o tema. A mulher
também pode fazer uma denúncia à defensoria pública tendo como apoio legislações como: A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Constituição Federal (1988); Convenção
de Belém do Pará (1994); Atenção ao parto e nascimento da OMS (1985/1996); Ministério da

2
Segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela
Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto. A
pesquisa Nascer no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, constatou o uso de ocitocina em 60% dos partos,
manobra de Kristeller em 56% dos partos e episiotomia em 86% dos partos.
3
Lei nº de 17.097 de 17 de janeiro de 2017.
4
São eles: PL 8219/17, do deputado Francisco Floriano; PL 7867/17, da deputada Jô Moraes; e 7633/14, do
deputado Jean Wyllys que definem que tipo de atitude pode ser considerada violência obstétrica e as punições
previstas, que vão de multa a dois anos de prisão.

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Saúde: Política de Humanização Pré-Natal e Nascimento (2000); Norma Técnica Atenção


Humanizada ao Abortamento (2005) Rede Cegonha (2011); dentre outras.
A humanização no tratamento realizado por profissionais da saúde vem como uma
solução para acabar com a violência obstétrica, e outros tipos de violência hospitalar,
vivenciada por tantas mulheres no país. De acordo com a OMS outras formas de diminuir os
casos de violência são: o governo dar maior apoio a pesquisas e ações contra o desrespeito e
os mau tratos à gestantes e parturientes; criar e manter programas para melhoria da qualidade
dos cuidados de saúde materna; maior ênfase nos direitos das mulheres a uma assistência
respeitosa; produzir dados sobre os índices de violência; e envolver a mulher no processo de
melhoria do atendimento nos serviços de saúde.

HUMANIZASUS E A HUMANIZAÇÃO DO PARTO

O Ministério da Saúde constituiu o Programa de Humanização no Pré-Natal e


Nascimento (Portaria 569/2000 e outras) com os objetivos de ampliar o direito da mulher ao
acesso à saúde; garantir a qualidade do tratamento à mulher, desde o pré-natal até o puerpério;
reduzir altas taxas de morbimortalidade materna, perinatal e neonatal; tudo isso na perspectiva
dos direitos e da cidadania. No entanto, a ampliação do acesso não veio em conjunto com a
melhoria da qualidade do atendimento.
Em 2016 a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC)
lançou a Diretriz Nacional de Assistência ao Parto Normal. Este documento é voltado,
principalmente, para os profissionais da saúde que atuam na assistência ao parto, mas pode ser
utilizado como referência para as gestantes do que pode ou não ser realizado no trabalho de
parto, segundo as necessidades. O documento trata, de forma bem completa, das orientações
para manejo da dor no trabalho de parto, sobre os períodos do parto, da alimentação, do apoio
físico e emocional e sobre os cuidados após o parto com a mãe e com o recém-nascido.
A humanização proposta pelo movimento de ‘humanização do parto’ entende a
gestação e o parto como eventos fisiológicos perfeitos (onde apenas 15 a 20% das gestantes
apresentam adoecimento neste período necessitando cuidados especiais), cabendo a
obstetrícia apenas acompanhar o processo e não interferir buscando ‘aperfeiçoá-lo. Humanizar
é acreditar na fisiologia da gestação e do parto. É respeitar esta fisiologia, e apenas
acompanhá-la. É perceber, refletir e respeitar os diversos aspectos culturais, individuais,

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psíquicos e emocionais da mulher e de sua família. É devolver o protagonismo do parto à


mulher. É garantir-lhe o direito de conhecimento e escolha. O parto humanizado, cujo
movimento surgiu na década de 80, pressupõe uma relação com o corpo baseada em conceitos
modernos como autonomia e individualidade. Por isso percebe-se a importância do
protagonismo feminino no parto. Desta forma, dentro da concepção do parto humanizado, o
corpo é entendido não somente como pertencente a um sistema de ação simbólico e social,
mas também de um sistema de ação fisiológico.
Em 2014 surge o programa HumanizaSUS com o volume 4 todo dedicado à
Humanização do Parto e do Nascimento. Neste volume o enfoque é o protagonismo da mulher
neste momento, de forma a rever o modelo obstétrico atual. Inclui também relatos
jornalísticos e de experiência sobre como o parto acontece no país. Encontra-se também
diretrizes do governo sobre o parto normal, os casos em que a cesariana é indicada, o papel da
doula no trabalho de parto, dentre outras.
De acordo com as diretrizes do programa a humanização do parto é um direito da mãe
e do bebê, para além de uma escolha. Este momento deve ser pleno de respeito, cuidado e
acolhimento para os dois. Para garantir um tratamento humanizado é necessário garantir a
autonomia e liberdade de escolha a mulher, promover um ambiente acolhedor, oferecer à
mulher as melhores condições e recursos disponíveis para que ela se sinta segura neste
momento, prestar assistência ao parto baseada em evidências científicas.
Entendemos como aspecto principal da diretriz para humanização do parto o incentivo
à autonomia da mulher. Através de um pré-natal com orientações, informações, com o apoio
de uma equipe multidisciplinar, do planejamento do parto através de ferramentas como o
plano de parto, as mulheres podem ter maior segurança para tomar decisões sobre quais
procedimentos serão realizados no parto. Para tomar decisões estas mulheres precisam
repensar e conhecer mais o seu próprio corpo, tornando-se um sujeito de direitos com força
para exigir estes direitos na prática.
Não podemos negar a importância do desenvolvimento da obstetrícia para salvar
vidas, principalmente através da cirurgia cesárea, e é preciso reconhecer que a medicina atual
está bem menos mecanicista e unilateral do que no início do processo de institucionalização
do parto. No entanto ainda é predominante o paradigma da técnica e da medicalização, como
vemos em Belli (2013), e a atenção ao parto ainda vê a mulher como um objeto de
intervenção e não um sujeito de direitos. A tecnologia deve estar à serviço do parto e não o

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parto à serviço de tecnologias que, por muitas vezes, são usadas de formas desnecessárias
atrapalhando o desenvolvimento do trabalho de parto.
A medicina baseada em evidências5 faz parte de um movimento na linha contrária à
lógica produtivista e colonial na assistência à saúde, inclusive no parto e na gestação. Através
dela é possível conhecer quais são as reais necessidades de intervenção no trabalho de parto,
sem gerar mais complicações ou riscos devido a intervenções desnecessárias. Para Pimentel
(2014):
Se no modelo biomédico, a gestação é entendida como uma patologia, a
noção de risco é mobilizada para corroborar a intervenção do médico, como
forma de salvação e cura de possíveis danos inerentes à gestação e ao parto.
Já na proposta de humanização, que entende a gravidez de forma
integralizada em seus aspectos bio-psíquico-sociais, o conhecimento dos
riscos inerentes às escolhas participa do planejamento esclarecido da
experiência subjetiva de parturição. (PIMENTEL, 2014, p. 169)
Enquanto o modelo biomédico é focado na intervenção e na tecnologia o modelo da
humanização questiona a onipotência dos médicos e enfermeiros, adota uma equipe
interdisciplinar (com fisioterapeutas, doulas), respeita as diferenças, fortalece a relação entre a
mulher e o seu potencial de conduzir o parto e estabelece um cuidado baseado nas
necessidades da parturiente.
As principais práticas de humanização do parto vigentes são: a privacidade para a mãe
e o acompanhante, possibilidade da mulher se movimentar, possibilidade de se alimentar com
líquidos e alimentos leves, acesso à métodos de alívio de dor (desde massagem, banho até
analgesia), ouvir os batimentos cardíacos do bebê e controle dos sinais vitais da mãe, escolher
a melhor posição para o parto, contato imediato do bebê com a pele da mãe, corte do cordão
umbilical após o fim das pulsações, estímulo da amamentação na primeira hora de vida e
realizar procedimentos de rotina no recém-nascido após a primeira hora de vida.
É fundamental que a mulher receba informações sobre o trabalho de parto, sobre como o corpo
feminino se prepara e age neste momento e sobre procedimentos rotineiros, mas comprovadamente
desnecessários, muitas vezes sendo inclusive prejudiciais. Alguns destes procedimentos são:
episiotomia (corte no períneo), tricotomia (raspagem dos pelos pubianos), enema (lavagem intestinal),
proibição de ingerir líquidos ou alimentos leves durante o trabalho de parto, soro com ocitocina para
acelerar o trabalho de parto, ficar deitada em macas durante o trabalho de parto, dentre outros.
A humanização do parto, passa pelo processo de humanização no tratamento do
profissional da saúde com a parturiente. Para que esta humanização ocorra é preciso pensar

5
Esta concepção se baseia na ideia de que todo conhecimento é enviesado, sendo preciso controlar estes vieses
na sua produção. Ao se falar de evidências científicas se considera também a humanização das práticas, a
participação da paciente e o direito à escolha informada.

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uma assistência centrada na mulher e na família, um atendimento com acolhimento, fortalecer


a participação da mulher na tomada de decisões, promover a gravidez e o parto como
processos saudáveis e fisiológicos.
O local onde a mulher é cuidada não pode ser um ambiente hostil, com
rotinas rígidas e imutáveis, onde ela não possa expressar livremente seus
sentimentos e suas necessidades. Deve receber cuidados individualizados e
flexíveis de acordo com suas demandas. É necessário que se sinta segura e
protegida por todos aqueles que a cercam. (BRASIL, 2014, p. 28)
O programa de humanização do parto acerta ao ser focado nas mudanças de modelo
obstétrico no tratamento ao parto, pois é a partir da mudança na preparação e prática dos
profissionais da saúde que a humanização se tornará efetiva e aplicável. A divulgação das
orientações para o parto também é um meio importante de informar e orientar as gestantes
para saberem seus direitos, os estágios do parto e em quais situações as intervenções
realmente são necessárias. Apenas com conhecimento é possível para a mulher cobrar seus
direitos, distinguir uma atuação médica baseada em evidências de uma tecnocrata e perceber
quando sofre uma violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio das análises realizadas no trabalho foi possível perceber que as diretrizes
para a humanização propostas pelo Ministério da Saúde têm como principais objetivos a
redução da taxa de cesáreas e a formação humanizada dos profissionais da saúde para garantir
a redução, se não o fim, da violência obstétrica. Por mais que não seja efetivamente uma lei
ainda assim o programa tem um papel importante ao expor como os partos vem sendo
realizados no Brasil e orientar quais as mudanças necessárias para se obter tratamento
humanizado e respeitoso nesse momento delicado para a gestante a sua família.
O programa de humanização do parto vem sendo bem-sucedido na sua
implementação nos hospitais públicos, principalmente por ter um enfoque de aumento de
informação para as mulheres, durante o pré-natal, e formação mais humanizada para os
profissionais da saúde. Muitos hospitais municipais e estaduais têm entrado para o programa e
oferecendo treinamentos para seus funcionários baseadas nas diretrizes do programa.
Infelizmente esta realidade não se repete nos hospitais particulares, responsáveis ainda por
taxas de mais de 80% de cesáreas.
Mesmo com a implementação do cartão da gestante, da cobrança da divulgação das
taxas de partos normal e cesárea por hospital, da exigência do governo sobre os hospitais para

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explicarem os motivos das altas taxas de cesáreas, ainda há um longo caminho a ser
percorrido.
A legislação e as políticas públicas precisarão se voltar para o setor privado, de
forma a reduzir a taxa de cesáreas desnecessárias, reduzindo assim os riscos de vida da mãe e
do bebê, garantindo um nascimento mais respeitoso e mais saudável para os dois. Para
garantir que a legislação de fato seja melhorada e aplicada é necessário a sua melhor
divulgação e aumentar a pressão, por parte das gestantes e da sociedade civil, de forma a
garantir cada vez mais um tratamento com mais respeito e liberdade de decisão.

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PAISM: um estudo de caso. In: BATISTA, Luís Eduardo; SCAVONE, Lucila. Pesquisas de
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O feminicídio e a condição feminina sob a perspectiva dos tribunais brasileiros

Natalia Battini Simões Leite1


Marisse Costa de Queiroz2

Resumo: Esse artigo apresenta a discussão teórica e jurídica que sustenta a pesquisa do
projeto de Iniciação Científica “O Feminicídio e a Condição Feminina sob a perspectiva dos
tribunais brasileiros” que discute o modo como os Tribunais Superiores e os Tribunais
Estaduais fundamentam e constroem sua argumentação jurídica sobre os crimes de
feminicídio. O feminicídio se evidencia pela assassinato de mulheres decorrente de uma
violência de gênero, haja vista que o delito é consequência direta das desigualdades de
gênero,da discriminação e do menosprezo à condição feminina. A Lei Federal nº
13.104/2015, promulgada em 09 de março de 2015, institui e reconhece o crime de
feminicídio em nosso ordenamento jurídico, dessa feita prevendo o delito como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e acrescentando-o ao rol de crimes hediondos, dando
continuidade ao processo de criminalização contra a violência à mulher junto a Lei Federal nº
11.340/06 (Lei Maria da Penha). Os processos metodológicos que norteiam essa pesquisa
estão sustentados pela revisão bibliográfica sobre o tema segundo a perspectiva dos estudos
de gênero, além da análise de dados produzidos sobre o tema. Essa discussão está fundada nos
autores que defendem o reconhecimento do feminicídio como elemento importante para o
entendimento dos crimes contra a vida, impactando na superação da visão da violência de
gênero, centrada em uma visão patriarcal de sociedade.

Palavras-chaves: Violência de Gênero; Feminicídio; Desigualdade.

1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Graduanda do 7ºsemestre do Curso de Direito (Campus Londrina)
Bolsista de Iniciação Científica no projeto de pesquisa “Tribunas e Tribunais: os discursos de feminicídio nas
notícias jornalísticas e na jurisprudência”, coordenado pela Profª. Me. Marisse Costa de Queiroz; e-mail.
nbattini@gmail.com
2
Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professora Mestra do Curso de Direito (Campus Londrina);
Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Tribunas e Tribunais: os discursos de feminicídio nas notícias
jornalísticas e na jurisprudência”, e-mail:marisse.queiroz@pucpr.br ou marisse_q@hotmail.com..

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1. Introdução.

O presente estudo compõe-se de uma análise preliminar que pretende apresentar a


discussão teórico-jurídica que sustenta a pesquisa do projeto de Iniciação Científica “O
feminicídio e a Condição Feminina sob a Perspectiva dos Tribunais Brasileiros”. Portanto
esse artigo apresenta uma revisão bibliográfica sobre a temática do feminicídio no campo do
direito, considerando a recepção dos estudos de gênero como paradigma para análise do
direito. Nesse contexto, o feminicídio se evidencia pela violência contra a mulher, decorrente
de uma violência de gênero, haja vista que o delito é consequência direta das desigualdades de
gênero, da discriminação e do menosprezo à condição feminina.

A violência contra as mulheres existe desde os primórdios da sociedade humana,


entretanto os mecanismos para sua coibição são recentes. Podemos citar como exemplo a Lei
Federal nº 13.104/2015, que alterou o Código Penal Brasileiro, instituindo e reconhecendo o
crime de feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei é de autoria da Comissão
Parlamentar de Inquérito da Violência contra a Mulher prevendo o feminicídio como
circunstância qualificadora do crime de homicídio, dando continuidade ao processo de
criminalização contra a violência à mulher, que teve como passo importante a promulgação da
Lei Federal nº 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha.
Ademais, sabe-se que o Estado, através da Constituição da República do Brasil de
1988, assegurou a igualdade entre os gêneros3, assim como em seu Art. 226, §8º4 e Art. 2275,
declara repúdio a violência intrafamiliar e afirma que a família é, basicamente, a base de
nossa sociedade, sendo então dever do Estado, oferecer-lhe proteção.

A inserção do feminicídio no âmbito jurídico como fato tipificado não diminui a


prática delitiva em si, mas traz para os Movimentos Feministas e grupos de mulheres, o
reconhecimento da desigualdade entre os sexos, almejando a concretização da lei.

3
Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à
propriedade, nos termos seguintes. I-homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição.
4
Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] §8ºO Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no
âmbito de suas relações.
5
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com prioridade
absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda a
forma de negligência, discriminação, exploração violência, crueldade e opressão”.

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A premência de se definir o feminicídio e submetê-lo a um rol de crimes hediondos,


vem de uma desigualdade presente em uma sociedade patriarcal, não condizente aos direitos
garantidos à pessoa humana, motivo pelo qual, sua ascensão pode suscitar ensejos de maiores
defesas e atitudes, haja vista que os dados constantes no Mapa da Violência (2015),
publicados posteriormente à promulgação da Lei, mostram que o Brasil é o 5º país mais
violento para as mulheres:

Com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil, num grupo
de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial
da Saúde, ocupa uma pouco recomendável 5ª posição, evidenciando que os
índices locais excedem, em muito, os encontrados na maior parte dos países
do mundo. (WAISELFZ, 2015, p. 25)
Importante salientar que ocorreu uma mudança no termo, em virtude das
transformações sociais. Inicialmente a questão da violência contra a mulher era denominada
de femicídio, referindo-se a morte de mulheres por homens simplesmente pelo fato se serem
mulheres. Esse termo estava vinculado as manifestações feministas, ou seja, a necessidade de
compreender um homicídio pelo simples fato da vítima ser mulher. Esse termo é atribuído a
Diane Russel em 1976 no Tribunal Internacional de Crimes Contra a Mulher, em Bruxelas,
atribuindo que o femicídio é associado ao homicídio de mulheres por razões de gênero.

Posteriormente, o conceito foi alterado por Marcela Lagarde, a qual aduz que a
definição de femicídio de Diane Russel apenas indica que a vítima do fato ocorrido é mulher.
Desse modo, Lagarde (2008), que é uma antropóloga e parte integrante do Movimento
Feminista, passa a utilizar a expressão feminicídio, atribuindo a essa um significado de uma
perspectiva de justiça criminal, adotando a concomitância ao crime de feminicídio a
impunidade, omissão, negligência e a conivência das autoridades do Estado.

“El feminicidio se fragua en la desigualdad estructural entre mujeres y


hombres, así como en la dominación de los hombres sobre las mujeres, que
tienen en la violencia de género, un mecanismo de reproducción de la
opresión de las mujeres. De esas condiciones estructurales surgen otras
condiciones culturales como son el ambiente ideológico y social de
machismo y misoginia, y de normalización de la violencia contra las
mujeres. Se suman también, ausencias legales y de políticas democráticas
con contenido de género del gobierno y de los órganos de justicia del Estado,
lo que produce impunidad y genera más injusticia, así como condiciones de
convivencia insegura, pone en riesgo su vida y favorece el conjunto de actos
violentos contra las niñas y las mujeres.” (LAGARDE, 2008, p.217)

Assim, a questão de gênero, torna-se um elemento constitutivo de relações sociais


baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e é uma forma primária de dar significado

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às relações de poder (SCOTT, p. 86). Podendo analogicamente afirmar, que se a condição do


gênero feminino é inferior ao masculino, a relação de poder ensejará ao homem, em seu status
patriarcal maior, a noção de propriedade quanto a mulher, o que lhe dá poder sobre sua vida e
seus corpos.

Consequentemente, uma das características do tipo penal do feminicídio é a


desigualdade em que a mulher é submetida ao gênero masculino, gerando o feminicídio em si,
como um ato final a um processo violento em que muitas mulheres são expostas ao longo de
suas vidas, tendo em seu dia a dia agressões verbais, físicas, manifestações de violência e
privação que são baseadas por conta de seu gênero.

Desse mesmo modo, a violência de gênero é a violência misógina contra as mulheres


pelo fato de serem mulheres, situadas em relações de desigualdade de gênero: opressão,
exclusão, subordinação, discriminação, exploração e marginalização, podendo esses
elementos ser vinculados ao conceito de violência simbólica, de Pierre Bourdieu:

A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa


justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem
necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem
social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a
dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho,
distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois
sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos. (BOURDIEU, 2012,
p.18)

Muitas mulheres são vítimas de ameaças, agressões, maus tratos, lesões e danos
misóginos, sendo que as principais formas de violência e gênero são: familiar, comunitária,
institucional e feminicida (LAGARDE, p.33). Assim, podemos perceber que existe uma
relação entre gênero, violência simbólica e violência física, sendo essas a base para os
diversos tipos de violência contra a mulher, dentre eles o feminicídio.

2. O Movimento Feminista e sua relação com o Direito e o feminicídio

O Movimento Feminista, em sua segunda e terceira onda, originou-se nas formas e


tipos originais de mobilizações antiinstitucionais e antiautoritárias que emergiram nas
sociedades pós-industriais nos anos 1960 e 1970.
Com atuação importante durante o período ditatorial, o Movimento Feminista
Brasileiro, em 1975, na instituição do Ano Internacional da Mulher, pela Organização das

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Nações Unidas, já era atuante e pautava como demandas essenciais os seguintes objetivos:
identificar e denunciar as discriminações e as desigualdades que afetavam a situação da
mulher brasileira, lutar pela liberação das mulheres enquanto sexo dominado e oprimido,
promover a conquista de direitos civis para todas as mulheres e de espaços públicos de
atuação para as representantes dessa minoria política.
Segundo Bueno, feminismo é a denominação de um movimento social e político pelo
qual busca-se a melhoria da condição de vidas das mulheres, visando a eliminação das
diferenças e desvantagens condizentes ao status dos homens (2011, p.35)
O Movimento Feminista é uma resposta à submissão das mulheres e de sua forma de
viver em detrimento ao sexo masculino. Essa imposição e discrepância entre os gêneros pode
ser denominada de patriarcado, que nada mais é que o mais antigo sistema de dominação,
onde todas as esferas da vida social (economia, política, cultural...) são comandadas pelos
homens ou segundo as perspectivas e privilégios masculinos. O patriarcado é um sistema que
justifica a dominação sobre a base de uma suposta inferioridade biológica das mulheres
elevado tanto à categoria de política e econômica. O patriarcado é reafirmado nas instituições
sociais, muitas vezes responsável pela construção do caráter e da moral, como mostram os
autores:
A religião, a família, os mecanismos de comunicação de massa, a política, o
direito, têm como paradigma essencial o masculino ocidental. Desta forma, a
mulher é considerada e visibilizada dentro de todas essas instâncias de poder
somente como o outro sexo. Causa perplexidade pensar que a mulher não
existe ou não é enxergada, para essas instituições, sob outra ótica que não seja
a machista e patriarcal, e que a tentativa de outra visão impossibilita o
reconhecimento da mulher como sujeito de direitos. (NETTO; BORGES,
2013, p. 328)

É nessa perspectiva que se institui uma relação de normas regras sociais centradas na
superioridade do homem em detrimento a mulher, estabelecendo a violência de gênero,
raça/etnia, de classe, sendo que essas são a base da estrutura da nossa sociedade (BIJOS,
2004).
Nesse sentido, as mulheres, em grande parte, são submetidas a uma sociedade
patriarcal, a qual é composta, segundo Saffioti e Almeida, por três hierarquias, sendo elas a
hierarquia de gênero, de etnia e de classe. Conforme afirmam as autoras:
A violência de gênero, desconhece qualquer fronteira de classe social, de tipos
de cultura, de grau de desenvolvimento econômico, podendo ocorrer em
qualquer lugar - no espaço público como no privado – e ser praticado em
qualquer etapa da vida das mulheres e por parte de estranhos ou
parentes/conhecidos, especialmente destes últimos (SAFFIOTI E ALMEIDA,
1995, p.8)

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A sociedade patriarcal garante ao homem o título de autoridade máxima em área de


convivência familiar, o que já foi, outrora prevista em legislação, sendo percebido:
Os homens reinam soberanos no espaço privado, como detentores do
monopólio do uso “legítimo” da força física. Com efeito, o domicílio constitui
um lugar extremamente violento para mulheres e crianças de ambos os sexos,
mas especialmente para as meninas. Desta sorte, as quatro paredes de uma
casa guardam os segredos de sevícias, humilhações e atos libidinosos/estupros
à posição subalterna da mulher e da criança diante do homem e da ampla
legitimação social dessa supremacia masculina. (BIJOS, 2004, p.120)

Conforme algumas teóricas afirmam, definir o homicídio de mulheres decorrentes de


razões de gênero como feminicídio, cria uma potência de denúncia da precarização
engendrada pela sexagem6 inserida no âmbito do poder patriarcal (SEGATO, 2006, 2012;
DINIZ, 2015). Como descritor de uma desigualdade específica e bem eficiente, o feminicídio
tem um papel de escancarar a pseudoneutralidade presente no conjunto geral de homicídios
existentes e contabilizados na nossa sociedade7.

Por isso é importante entender que o feminicídio inclui-se num contexto estrutural
que resulta num modo letal de governança dos corpos das mulheres. A estrutura de poder
denomina-se patriarcado e o regime político de governo da vida é que se denomina gênero8.

6
Conceito operacional utilizado por algumas teóricas feministas para descrever como as diferenças biofisiológicas e
psíquicas entre homens e mulheres subjazem e são construídas por relações hierárquicas e desiguais de poder (MATHIEU,
2009, p. 226). Nesse contexto sexagem se difere de sexismo, já que este se refere a um comportamento ou atitude
determinada, e aquele relaciona-se com a construção de sistemas sociais que justificam e naturalizam a “apropriação” das
mulheres (GUILLAUMIN, 2012) ou que cria uma ilusão naturalista, em que as marcas do sexo (sexagem) ressignificam a
ordem política das relações de gênero para não problematizá-las ao torná-las essencialistas (DINIZ, 2014).

7 Segundo os dados do Mapa da Violência (WAISELFIZ, 2015) o número de homicídio de mulheres no Brasil é crescente e
preocupante, tanto que o Brasil é o quinto país mais letal para as mulheres no mundo. Se analisarmos apenas números
absolutos, verificaremos que a quantidade de homens que morrem por homicídio é exponencialmente maior que o das
mulheres. Contudo, o contexto da morte provocada que atinge as mulheres é muito diferente e deflagra as marcas da
sexagem, que podem ser agravadas, com um potencial de letalidade maior, quando se agrega ao gênero questões geracionais,
raciais, geográficas e econômicas.

8 Gênero, de modo geral é um termo ou conceito operacional vinculado à diferenciação social dos sexos, diversa da
diferenciação funcional da natureza ou da biologia. Para SCOTT (1995) gênero é constitutivo das relações sociais baseadas
nas diferenças entre os sexos que, de modo primário, dá significado às relações de poder. Esse modo de organizar o poder
segundo as diferenças biológicas afeta também o modo de organização das instituições, e não só as relações individuais entre
homens e mulheres. Nas instituições são legitimados conceitos normativos que são elaborados em diversas esferas de
conhecimento, tais como na religião, na educação, na ciência, na justiça e na política, e expressam “interpretações dos
significados dos símbolos” que levam à representação binária do gênero. Em outro estudo, LAURETIS (1994), desenvolve o
conceito de gênero tendo por base a teoria do discurso (semiótica), ao expressar que essas esferas ou espaços relacionais (ela
inclui aí também o cinema) são tecnologias de gênero, no sentido que engendram subjetividades como representações e auto
representações dos indivíduos. Contudo, no contexto dessa pesquisa, procura-se incluir a categoria gênero como
intrinsicamente imbricada na ordem do patriarcado, nos termos trabalhados por Guillaumin (2012), Delphy (2009), Mathieu
(2009) e Diniz (2014, 2015).

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Assim, “ao nomear a sexagem da vítima e do agressor e as precarizações de corpos sexados


como femininos, denuncia-se o patriarcado como regime de poder” (DINIZ, 2015, p. 227).
Portanto, segundo Diniz (2015, p. 228)

O patriarcado é um marco de poder, com diferentes regimes de governo pela


subalternização, pela vigilância e pelo castigo. O gênero é só um deles; a
colonialidade, a classe ou a cor são outros. [...] reconhecemos a existência de
múltiplas configurações que atualizam e particularizam o patriarcado como poder, e o
gênero, como regime político de governo da vida. O feminicídio seria, assim, a
matança de corpos sexados como mulheres pelo regime político do gênero em um
marco patriarcal de poder. Esse verbete é já um gesto político audacioso, um
neologismo que, ao ser enunciado, provocaria a opressão do gênero escondida sob a
neutralidade do tipo penal homicídio. (Grifamos)

Para Guillaumin (2012, p. 31), as formas de dominação da classe das mulheres pela
classe dos homens, têm um efeito material e um efeito ideológico. O primeiro se refere a uma
relação de poder – que para Safiotti (2001, p. 117) implica em dominação-exploração das
mulheres; o segundo efeito afeta o campo dos valores e dos símbolos, assim como afeta as
instituições e a linguagem. No campo ideológico a apropriação das mulheres e seu uso é
considerado natural e parte de uma ordem desconectada, aparentemente, das relações
materiais que as fazem existir. Nesse contexto, a forma ideologizada do patriarcado naturaliza
as relações sociais desiguais e afeta as representações discursivas e mentais: mulheres são
coisa no pensamento e no discurso, o que legitima, em muitos contextos, a apropriação de
seus corpos, de seu tempo e de sua sexualidade (GUILLAUMIN, 2012, p. 33-34).

Posto isso, o Movimento Feminista empenha-se em desenvolver e defender


intervenções Estatais, também por meio do Direito Penal, sobretudo no âmbito dos crimes
sexuais e dos crimes de violência doméstica, visando a criminalização de condutas como
agressão baseadas no gênero, cujo objetivo é promover uma transformação social, onde
ocorra uma reorganização da forma de olhar a diferença entre os gêneros, não mais pela
superioridade e sim pela igualdade. (BUENO, 2011, p.87)

2.2 O crime de feminicídio no Brasil

Ressalta-se que o termo Feminicídio foi utilizado pela primeira vez no Brasil na obra
“Violência de gênero: poder e impotência” de autoria de Heleith Saffioti e Suely de Souza
Almeida (1995), que faz uma análise de morte de mulheres, decorrentes da violência de
gênero em relações conjugais. Para as autoras, isto equivale dizer que o inimigo da mulher

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não é propriamente o homem, mas a organização social de gênero cotidianamente alimentada


pela sociedade.
O feminicídio foi tipificado através da Lei 13.105/2015, alterando desse modo o
Decreto-Lei nº 2.848, inserindo um novo inciso ao rol de qualificadoras, sendo qualificado o
homicídio realizado “contra a mulher por razões do sexo feminino”. Destarte, o tipo penal se
reconhece se, o homicídio decorre de violência doméstica e familiar, ou quando ocorre por
menosprezo ou descriminação à condição de mulher. A pena prevista para o homicídio
qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos. O legislador aduz ainda, hipóteses de aumento de pena:
§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o
crime for praticado:
I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II – contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos
ou com deficiência;
III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima. (BRASIL,
2015).

Cabe analisar ainda que para que exista a incidência da qualificadora do feminicídio,
o sujeito passivo deve ser uma mulher. Nesse sentido, Mello (2016) aponta três posições
doutrinárias para a finalidade de se reconhecer mulher. A primeira posição doutrinária condiz
ao critério psicológico, a segunda posição condiz ao critério jurídico cível, e a terceira, com o
critério biológico.
Segundo Mello, (2016, p.141) a primeira posição doutrinária diz respeito ao critério
psicológico que identifica como mulher aquela cujo aspectos psíquicos e comportamentais são
femininos. Adotando-se esse critério matar alguém que fez a cirurgia de resignação de gênero,
ou que, mesmo sem tê-la feito, psicologicamente, acredita ser uma mulher, será aplicada a
qualificadora da feminicídio; a segunda posição leva em conta, o critério jurídico-cível, que
deve considerar o que consta no registro civil, ou seja, se houver decisão judicial para
alteração do registro de nascimento, alterando-se assim, o sexo, teremos um novo conceito de
mulher, que deixará de ser natural para ser um conceito de natureza jurídica; e a terceira
posição, que adota o critério biológico, que identifica-se a mulher em sua concepção genética
ou cromossômica, sendo que mesmo com a cirurgia de resignação, existe a alteração da
estética mas da concepção genética, não será possível a aplicação da qualificadora.
Assim, quando se exige uma política de reconhecimento da especificidade da maioria
dos homicídios de mulheres como feminicídio (nomear para conhecer), subverte-se também a
estrutura patriarcal dos quais esses atos são resultado (nomear para simbolizar) e se estabelece

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mecanismos mais objetivos e diretos de responsabilização dos agentes (nomear para punir)
(DINIZ, 2015; CAMPOS, 2015).
Além da configuração sujeito passivo do delito, a prática do delito se dá por razões
de gênero, ou seja, pelo fato da condição de ser mulher. Nesse sentido, deve-se verificar se a
agressão foi realizada com base no gênero e se o crime ocorreu no contexto de violência
doméstica, ou de relação íntima de afeto, ou com indícios de crueldade à condição feminina.
Em relatório do Ministério da Justiça, Marta Rodriguez de Assis Machado (2015)
demonstra que o feminicídio é um crime recorrente em nossa sociedade atual e patriarcal,
sendo, em muitos casos, executado de forma cruel. No referido estudo, constata-se que para a
execução do crime, os autores do mesmo utilizavam-se, muitas vezes de:
(...) Faca, peixeira, canivete. Espingarda, revólver. Socos, pontapés. Garrafa
de vidro, fio elétrico, martelo, pedra, cabo de vassoura, botas, vara de pescar.
Asfixia, veneno. Espancamento, empalamento. Emboscada, ataques pelas
costas, tiros à queima-roupa. Cárcere privado, violência sexual, desfiguração.
Quando se volta o olhar para a maneira pela qual foi infligida a violência,
chamam a atenção a diversidade dos instrumentos usados no cometimento do
crime e a imposição de sofrimento às vítimas anteriormente à execução. A
arma branca (faca, peixeira e canivete) foi identificada em 14 dos 34 casos
analisados.24 A quantidade de facadas verificada em algumas situações é
expressiva – há processos em que as vítimas foram atingidas por dezenas de
facadas,25 o que tende a indicar tanto a intenção de provocar aflição
suplementar anterior à morte quanto o desejo de aniquilar fisicamente a
mulher. As facadas são profundas e não raro atravessam o corpo(...)
(MACHADO, 2015, p. 41)

Ainda no referido relatório são expostas, dentro dos casos analisados, as razões pelas
quais os autores do crime foram denunciados e processados pelo crime de feminicídio, sendo
elas:
Discussões por razões variadas foram mencionadas como motivo para o
cometimento do crime: término de relacionamento, compra de drogas, uso
do gás de cozinha. Em algumas situações, mobiliza-se o argumento de que a
ação do autor foi uma reação à conduta da mulher: a vítima permitiu a
entrada de um homem em casa na ausência do companheiro, a vítima
desferiu um tapa no rosto do marido, a vítima disse para o marido “lamber a
bunda” dos amigos, a vítima chamou o ex-companheiro de “corno”, a vítima
disse que o pênis do ex-companheiro era pequeno. (MACHADO, 2015 p.
45)

Como a referida pesquisa baseou-se nos autos dos Processos Criminais de


Feminicídio, constata-se por meio das narrativas processuais, que o feminicídio, decorre
muitas vezes como desfecho de situações de violências ao decorrer do relacionamento, sendo
muito presente a existência de xingamentos, ameaças e agressões, conforme demonstrado:

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É bastante presente, na análise dos feminicídio íntimos, o histórico de


violência doméstica na relação entre vítimas e autores. Esse convívio
violento por muitas vezes mostrou-se naturalizado tanto pela mulher quanto
pelo homem ou por testemunhas envolvidas. As partes, quando inquiridas a
respeito da existência de violência física ou psicológica, confirmam que ela
ocorria. (MACHADO, 2015, p. 46)

Nesse sentido os autores apontam a necessidade do reconhecimento por parte do Poder


Judiciário da violência quanto a desigualdade de gênero, haja vista que ainda hoje é
considerada rara, existindo apenas a visão sobre a existência do ato delitivo em si.
As formas mesmas de incriminação e penalização adotadas pelo sistema de
justiça obscurecem o histórico e o substrato do conflito que redundou no
crime, refletindo-se na condução dos processos, que seguem a mesma lógica.
O centralismo da discussão em torno da motivação do autor – cara à própria
estrutura do direito penal – mitiga a carga simbólica do ato praticado e
distancia o direito do papel de enfrentamento estrutural da violência contra a
mulher. (MACHADO, 2015, p.47)

Por fim, os estudos de Waiselfiz (2015) indicam que os principais responsáveis pelos
crimes de feminicídio são: o pai, a mãe, o padrasto, a madrasta, o cônjuge, o ex-cônjuge, o
namorado, o ex-namorado, o irmão ou o filho da vítima. Segundo esse mesmo autor, entre
1980 e 2013, o País contabilizou 106.093 assassinatos de mulheres. Esse quantitativo
corresponde ao universo das meninas e mulheres de cidades do porte de Americana ou
Presidente Prudente, em São Paulo; Macaé, no Rio de Janeiro ou Itabuna, na Bahia.

3. Considerações finais.
Apresentamos dados significativos para pensar a necessidade de um maior
entendimento por parte do Poder Judiciários, sobre os crimes realizados sobre as mulheres.
Conforme mostrado, as estatísticas sobre os casos de feminicídio no Brasil são bem poucas,
frente a quantidade de crimes contra a vida, mesmo com a promulgação da Lei 13.104/2015.
Essa questão é importante pois, segundo os autores, é necessário que os legisladores
compreendam e reconheçam a prática do feminicídio, como fonte de crime, superando a visão
do crime pelo crime.
É urgente o entendimento da Lei, por parte da sociedade, visto que os padrões
culturais do patriarcado, ainda prevalecem, mesmo que em menor intensidade, nas relações
entre homens e mulheres. É essencial que todos entendam que quando o homicídio de mulher
acontece por “razões de condição de sexo feminino”, deverá ser considerado crime hediondo.
Nesse sentido, o Movimento Feminista e suas ações tornam-se ferramentas para a
consolidação não só na lei, mas no dia a dia da sociedade, da valorização da mulher como

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sujeito de direitos e que deve ser respeitada em sua integralidade, e não sofrer violência física,
moral e simbólica, pelo simples fato de ser do gênero feminino.

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Marielle: a mulher à frente da política versus o machismo estrutural/patriarcal no Brasil

ROSA JUNIOR, JOSÉ1

Resumo: O presente estudo tem como objetivo principal discutir a violência simbólica que
permeia em nossa sociedade, de maneira em que a mulher é a sua principal vitima, sendo
embasada por um machismo estrutural em nossa cultura. A pesquisa é de abordagem
qualitativa e de caráter bibliográfico- explicativo, fundamentado nas principais obras de
Bourdieu, Beauvoir, Louro e Bonfim, e eentre outros que abordam a temática. Norteando o
estudo a questão central busca esclarecer sobre a violência simbólica contra as mulheres que
assumem lugares de destaques na sociedade, principalmente no campo político. A principio o
estudo buscou uma revisão conceitual em que busca esclarecer ao leitor princípios basilares,
para a temática. Em um segundo momento destaca se o quanto as mulheres são silenciada
dentro do contexto social atual, em diversas esferas, chegando assim no campo político,
mulheres na sendo caladas no legislativo e executivo. E por fim, busca evidenciar a triste
tragédia da execução da vereadora Marielle Franco, uma mulher de luta e que defendia as
minorias, pois ela também fazia parte dela. Até a presente data não há nada confirmado sobre
a morte da mesma. Concluindo se que é necessário o engajamento político de mais mulheres e
que o fundamental para a mudança desse contexto social machista, é a educação que
emancipe, transforma e humanize nossa sociedade, tornando a mais igualitária e equitativa.

Palavras-chaves:Violência Simbólica; Machismo; Marielle Franco.

1
Faculdade Dom Bosco, Professor na Prefeitura Municipal de Cornélio Procópio, Licenciado em Pedagogia, Pós
graduado em Psicopedagogia Clínica e Institucional e Neuropsicopedagogia Clínica FATEC.jr-junior88@live.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p382 382


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Introdução.

O presente estudo tem como objetivo central discutir violência simbólica contra a
mulher, quando ela assume papéis políticos e evidentes na sociedade.
A pesquisa é de abordagem qualitativa e de caráter bibliográfico-explicativo. O
estudo se fundamenta especialmente em Bourdieu, Beauvoir, Louro, Bonfim, entre outros
autores que abordam a temática.
A questão norteadora busca esclarecer sobre a violência simbólica contra a mulher
que assume papeis evidentes na sociedade, sejam eles em departamentos públicos e privados,
assim questiona-se: quais formas de violência são utilizadas pelo machismo estrutural para
manter a invisibilidade histórica sofrida pelas mulheres especialmente no cenário político
brasileiro?
Conceitua-se gênero, igualdade, machismo, violência, violência simbólica,
dominância masculina entre outras categorias centrais do estudo. Compreende se que a
dominância masculina está estruturada e impregnada no machismo da sociedade patriarcal, a
qual distorce, por inúmeras vezes, o papel da mulher na sociedade, limitando-a, apenas a
papeis secundários.
Quando a mulher assume posições de destaque questionam não apenas sua
competência e sim, sua moral. É notável, que, quando uma mulher ocupa uma posição de
destaque, especialmente no cenário político, vem uma onda desprestigiando seu trabalho,
através da violência simbólica, muitas vezes, acompanhada de violência física. Muitas
pessoas veem, ouvem e até reproduzem esse discurso misógino sem, ao menos, reconhecer o
quanto é ofensivo para as mulheres.
É necessário identificar que esses discursos repugnantes, que passam por nós sem
percebermos o reflexo que isso causam no cotidiano. Atualmente, na política brasileira, as
mulheres vem sofrendo golpes, violências de toda ordem e até mesmo, sendo executadas por
lutarem por equidade de gênero, social e econômica.
O caso mais recente, é da vereadora da cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco,
que foi assassinada, uma representante política que tinha como bandeira as minorias excluídas
e questionava os direitos das mesmas, especialmente, das mulheres, negras, periféricas, que
por vezes, foram ignoradas, ficando à margem da sociedade, sem vez, sem voz.
Considera-se que apontar os efeitos negativos dessa hegemonia masculina no cenário
político é essencial, pois as políticas públicas sociais voltadas ao público feminino,
geralmente são feitas e aprovadas por homens, os quais possuem um pensamento machista,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p382 383


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elitista e seguem uma “ideologia branca”, que não vislumbram uma totalidadeigualitária para
ambos os gêneros e classes sociais.A política brasileira deve ser composta por mais mulheres
atuantes, e não apenas pelos “coronéis”. A exclusão social e política que as
mulheres,historicamente sofreram,culminou na sua invisibilidade como sujeito, especialmente
no cenário político.
Ter mais representantes mulheres que realmente busquem romper com
ospreconceitos e desigualdadessociais irá contribuipara construção de uma sociedade
igualitária, que respeite as pessoas, independente do sexo, gênero ou orientação sexual.
Uma sociedade onde homens e mulheres possam ser igualmente respeitados e
tenham efetivados os mesmos direitos garantidos pela nossa Constituição, sem um gênero ou
classe sobressair o outro. Respeito independe de gênero, homens e mulheres devem lutar pela
uma igualdade social, politica e econômica, só assim será possível construir de uma sociedade
justa e pacífica, onde as pessoas sejam respeitadas em sua singularidade e humanidade.

Revisão Conceitual

A princípio, busca se esclarecer alguns conceitos basilares para a compreensão e


leitura do artigo.

a) SEXO
A palavra m si quando é dita em qualquer contexto social, ela já é imediatamente
ligada ao pratica, ato sexual,a cópula. Já atualmente com os estudos e grande bibliografia
sobre o tema, já pode se conceituar sexocomo apenas a distinção genital e órgãos reprodutores
dos seres vivos. Aprofundando a pesquisa, e citando Guimarães (1995, p23), o qual refere-se,
ao sexo como:

[...] ao fato natural, hereditário, biológico da diferença física entre homem e


a mulher e da atração de um pelo outro para a reprodução. [...] à diferença
biológica entre macho e fêmea, incluindo diferenças da anatomia, da
fisiologia, da genética, do sistema hormonal.

Já em outros autores, exemplo Nunes e Silva (2000, p.74), afirmam que “sexo é a
marca biológica, caracterização genital e natural”. Os próprios permitem o esclarecimento
da palavra em seu sentido biológico,referindo se a anatomia dos seres vivos, sendo esses
aspectos anatômicos que é considerável e classificado como homem e mulher, em nossa

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sociedade. Sexo, é definido pela nossa genitália. E aprática, o ato sexual, tem comofinalidade
a conquista pelo prazer, e consequentemente é a forma de reprodução da espécie.

b) SEXUALIDADE

Sexualidade, é uma palavra que sempre ouvíamos frequentemente, e logo é associada


ao ato sexual, a pratica. O que é uma ótica bem deturpada, pois o conceito de sexualidade, vai
muito mais além do que o ato sexual, pode se considerar que a sexualidade é toda forma de
interação do sujeito que seja prazerosa. Não limitemos, a apenas, a prática sexual, mas sim
toda a integridade do ser humano, e a sua experiência como o outro.
Bonfim (2012, p.24) afirma que :

Freud afirma que a sexualidade não está limitada à função dos órgãos
genitais e ao ato sexual em si. Para ele, a vida sexual começa logo após o
nascimento e se desenvolve por meio de diversas atividades e estímulos que
ocorrem na infância, proporcionando um prazer que não está vinculado às
satisfações fisiológicas.

Freud, ressalta que a nossa sexualidade esta concomitante em nosso desenvolvimento


desde quando nascemos, e não apenas na adolescência quando o período da puberdade
desperta. A sexualidade, inerente ao ser humano, pois ela está presente desde a gestação do
indivíduo, e assim desenvolve com o nascimento do mesmo. Vale lembrar que essa
sexualidade inicial não possui um caráter erótico. Todas as sensações prazerosassão
integradas a sexualidade.
Podemos considerar desde o ato da amamentação que não deixa de ser um ato sexual,
pois é um ato prazeroso e afetuoso tanto para mãe, quanto para a bebê. Buscando experiência
mais além, no aspecto que refere se à sexualidade, pois toda relação que desperte a
afetividade, entre duas pessoas ou mais, e que essa ação,se torne prazerosa para todos os
envolvidos, e não seja necessariamente uma relação sexual, mas que pode ser uma relação
amistosa.
Bonfim (2012, p.40), afirma que:

Se entendemos a sexualidade como relação humana, precisamos reconhecer


que toda relação em si envolve a nossa sexualidade, o que não significa
envolvimento sexual (no sentido de sexo, de prática sexual), e sim relações
afetivas, construção de vínculos afetivos e atitudinais.[...] se concebermos a
sexualidade para além do aspecto biológico e reducionista do sexo, como

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expressão da subjetividade humana, o que implica o desenvolvimento de


uma ética e de uma estética para sua vivência em sociedade, pois não somos
meros animais, mas seres dotados de racionalidade e individualidade.

Dessa forma, pode se compreender que sexualidade é muito mais ampla do que
pode se imaginar, pois ela envolve a integralidade do individuo, a subjetividade, a afetividade,
é por meio do desenvolvimento da sexualidade que ambos os sexos se humanizam, se
diferencia dos animais, e são essas experiências sexuais afetivas, que possibilita a criação de
laços afetivos com outros, para que dessa maneira podemos ter um convívio harmonioso
socialmente.

c) GÊNERO

Gênero é um condicionante social, atua como um homem ou uma mulher devem se


vestir, comportar, agir e atender a expectativa que cada sociedade impõe, dentro desse
condicionante. Cada sociedade, dentro de uma cultura hegemônica, dissemina alguns
estereótipos, que designa papeis distintos para homens e mulheres. Dentro do patriarcado,
esses condicionantes são bem específicos os quais delimitam nitidamente o gênero feminino,
causando uma castração da liberdade da mulher. A mulher é condicionada a um papel de
submissão, passiva, e que historicamente suas virtudes estão sempre relacionados a
fragilidade, tornando sempre dependente de uma figura masculina.
No que se refere ao papel masculino, a virilidade é uma virtude praticamente inerente
a ele, pois o homem sempre é visto como uma figura que remete a força, a proteção de sua
mulher e sua prole, e que sempre em suas atitudes demonstrar mais racionalidade do que
afetividade, pois essa características emocional, afetiva, é exclusivamente a mulher, ao gênero
feminino.
Nesse contexto, é que Bonfim (2012, p.37), afirma:

[...] é o que “determina” aquilo que culturalmente seriam


características do ser “masculino” e do “feminino”: forma física,
anatomia, maneira de se vestir, falar, gesticular, enfim as atitudes,
comportamentos, valores e interesses de cada gênero ( lembrando que
essas características são designadas pela sociedade culturalmente
dominante). Essas diferenças são estabelecidas historicamente, de
acordo com dada sociedade, e influenciadas por sua cultura. Portanto,
elas representam uma categoria histórica e não são naturalmente
determinadas.

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Essas características foram difundidas historicamente, e aceitas por uma grande massa
que não ousa em questionar essa imposição, e que consideram fazer parte da essência da
natureza biológica de homens e mulheres,e que não são fatores sociais e culturais construídos
a partir da moral exigida na sociedade hegemônica; e reproduzidos historicamente.

d) IDENTIDADE DE GÊNERO

Hoje, tem se debatido muito sobre esse tema, que se refere que a pessoas que
nasceram biologicamente e anatomicamente com um gênero, porem se reconhece e se
identifica com outro, essa identificação se trata tanto pelo modo de falar, de se vestir, agir,
sentir. Considerando Bonfim (2010, p.174), a identidade de gênero, refere se a:

[...] refere-se à forma como alguém se sente, se identifica, se apresenta, para


si próprio e aos que o rodeiam, bem como, relaciona-se à percepção de si
como ser “masculino” ou “feminino”, ou ambos, independe do sexo
biológico ou de sua orientação sexual, ou seja, da sua maneira subjetiva de
ser masculino ou feminino, de acordo com comportamentos ou papéis
socialmente estabelecidos.

Louro (2007, p. 11), considera que as “identidades de gênero e sexuais são, portanto,
compostas e definidas por relações sociais, elas são modeladas pelas redes de poder de uma
sociedade”. Dessa forma, podemos considerar que a identidade de gênero é uma construção
social, que passa ser um determinante no momento em que o individuo passa a conhecer a si
mesmo.
Romero apud Bonfim (2012, p.39), afirma que:

[...] O papel sexual que a criança vai desempenhar será punido ou reforçado,
segundo a cultura e o contexto social no qual ela está inserida. A
determinação e a manutenção do comportamento sexual para homens e
mulheres criam e mantêm as desigualdades entre eles existentes na
sociedade, quase sempre com prejuízos para a mulher, que acaba
desempenhando um papel de menor prestígio e valor. (ROMERO apud
BONFIM, 2012, p.39)

De acordo com o seu desenvolvimento comportamental,irá se identificar e de acordo


com a sua unidade familiar, a criança poderá, ser punido ou incentivado. O meio social é um
dos grandes responsáveis no modo como é compreendido a identidade do individuo.

e) PRECONCEITO DE GÊNERO

O preconceito pode ser identificado em diversas esferas sejam elas, sociais, raciais e a
de gênero. O preconceito de gênero, refere se quando um gênero é posto em um papel inferior

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na sociedade, esse preconceito é uma situação imposta culturalmente e historicamente, mesmo


sendo humanamente iguais. Chauí (1996/1997, p.116) defende o estereótipo, a um “conjunto
de crenças, valores, saberes, atitudes que julgamos naturais, transmitidos de geração em
geração sem questionamentos, e nos dá a possibilidade de avaliar e julgar positiva ou
negativamente „coisas e seres humanos”.
Identificar que determinados hábitos sejam repassados historicamente, sem indagar
que os mesmos vem carregados de preconceitos, e ainda repassa – los, condicionando a
futuras gerações ao sofrimento, devido a esses “hábitos preconceituosos”. E esse preconceito
nada mais é do que a manifestação da ignorância alheia.
Considerando Werebe (1998, p.145) que:

[...] As regras impostas à mulher no tocante à sexualidade não são as


mesmas impostas ao homem. Aliás, o duplo padrão de moralidade (liberdade
sexual para o homem e restrições sexuais para a mulher) perdura na maioria
dos países. O adultério feminino, em muitas sociedades, é julgado com
maior severidade do que o masculino.

Na questão de gênero, o feminino historicamente foi mantida em uma posição de


restrição, repreensão, e por qualquer habito ou comportamento que minimamente seja
considerado desvirtuoso, ela era julgada e condenada a mais baia condição moral e social. E
infelizmente isso reflete até os dias de hoje.

f) PATRIARCADO

Na literatura, a etimologia da palavra de patriarcado, é caracterizada como o “poder


do pai”, ou seja, o poder, e tudo que há de relevantedeve ser decidido pela figura masculina,
ao homem. Ou seja, no patriarcado, a perspectiva, os interesses, as decisões, é tudo realizado
por um ou um grupo de homens.
Therborn (2006, p.29), esclarece que:

O patriarcado tem duas dimensões intrínsecas básicas: a dominação do pai e


a dominação do marido, nessa ordem. Em outras palavras, o patriarcado
refere-se às relações familiares, de geração ou conjugais – ou seja, de modo
mais claro, às relações de geração e gênero.

Essa referência de dominação, perpassa por núcleos familiares, e gira em torno de


uma sociedade que é regida por meio de dogmas e preconceitos, no qual a mulher é
invisibilizada, calada e discriminada.

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g) IGUALDADE

Esse seria um conceito imprescindível, não só para esse artigo, mas também para
toda uma sociedade, em que a desigualdade é alarmante em diversas esferas. Porém, na
sociedade brasileira, há uma desigualdade de direitos, a qual possui uma incoerência gritante,
a igualdade é um direito assegurado pela nossa Constituição , que deveria ter garantia em
todas as instâncias. Com isso o art. 5º de nossa Constituição Federal de 1988:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,


garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

A sociedade em um conjunto deve garantir que essa igualdade seja respeitada, e


regente e que abranja todo cidadão.

h) SEXISMO E MACHISMO

Em nossa sociedade o machismo é estrutural, se manifestando nas relações humanas,


predominando a dominação do sexo masculino sobre o feminino. Esta inerente em nossa
sociedade essaideologia, de hierarquização em relação ao sexo, há um pensamento
equivocado de que os homens são superiores as mulheres, porém, é um pensamento
totalmente errôneo e ultrapassado, pois ambos tem capacidade equitativas, se desenvolvidas
corretamente. Bonfim (2015, p.9) aponta:

O sexismo refere-se às discriminações sofridas por determinado gênero ou


orientação sexual, onde um deles é privilegiado e o outro discriminado. Mas
as mulheres são mais atingidas por esta prática advinda de uma cultura
falocrática, patriarcal e machista onde as mulheres são desqualificadas e
inferiorizadas. Sexismo e machismo seguem a mesma lógica de dominação e
de discriminação. Onde se designa papeis e julgamentos distintos para
homens e mulheres, repugnando comportamentos e atitudes feminilizadas.

O machismo, ele prega em que as mulheres são dominada submissas aos homens, ele
categoriza as relações entre dominador e dominada. A mulher é semprevista como sensível,

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p382 389


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frágil, e indefesa, a qual necessita sempre de uma figura masculina, para responder, decidir,
por ela. Considerando Drumont (1980, p.82) :

O machismo constitui portanto, um sistema de representações dominação


que utiliza o argumento do sexo, mistificando assim as relações entre os
homens e as mulheres, reduzindo-os a sexos hierarquizados, divididos em
polos dominante e polo dominado que se confirma mutuamente numa
situação de objetos.

Romper esses preconceitos reproduzidos durante séculos, é uma obrigação social,


pois nenhum gênero é superior. Sem rotular, ou categorizar ninguém. Todas as pessoas devem
ser igualmente respeitadas, desassociadas de gêneros.

i)VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E DOMINAÇÃO MASCULINA

Os dois termos podem ser conceituados juntamente, pois um esta ligado ao outro
dentro desse contexto, pois a violência é uma conceito usado quando há o uso de força física,
porem quando é usado esse termo, é que não há uso de força física, e essa violência acaba
cerceando a vitima em diversos aspectos. Bourdieu( 2012, p. 47)
A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado
não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação)
quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para
pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que
ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da
relação de dominação, fazem essa relação ser vista como natural;[...]

Essa violência, não necessita de coação física, no entanto, os resultados são morais e
psicológicos, pois acaba atingindo em vários campos sociais a vítima. Em uma relação
homem e mulher, os homens vem usando dessa tática para manter sua dominação masculina,
seja ela no campo sentimental, familiar, social. Pois a mulher acaba nem percebendo essa
violência, e achando natural o fato dela ser tratada dessa forma.

A Dominância Masculina dentro do contexto social e político.

Historicamente, a mulher tem sido silenciada e invisibilizada em vários campos


sociais, a dominação masculina tem sido perpetuada por longos anos, e luta pelo
reconhecimento da mulher na sociedade e pela igualdade de direitos, foi uma longa batalha
até o século passado aqui no Brasil.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p382 390


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Por muito tempo, a sua decisão foi negada e transferida para alguma figura
masculina, fazendo a dependente principalmente no aspecto econômico. E ainda sim quando a
conquista os que é de direitos basta uma crise, que já é retirado. Considerando se Beauvoir
apud Gaivoto (1960) :

Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para
que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são
permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.

Infelizmente, essa realidade não esta totalmente fora de nosso cotidiano, pois há
muitas mulheres que não se emanciparam, pois devida a essa castração da liberdade
individual se tornou praticamente intrínseca a nossa cultura, e para romper com esses
paradigmas sociais, machista, as quais condicionam a mulher sempre em papel de submissão,
é preciso romper, presumindo se que a principal forma de transformação social, seja por meio
da educação, a qual promova a igualdade de gênero, social, humana, sem que seja uma
educação dual, machista e tecnicista, afim de romper a hegemonia vigente na sociedade.
Hoje quando a mulher assume uma posição de destaque seja ele qual for, as críticas
vem em massa também. Mas o problema das críticas, e que elas veem acompanhadas de
ofensas morais e pessoais, pois não apenas criticam por uma falha profissional ou algo do
tipo, pois todos estamos suscetíveis a falhas e a críticas.
A forma como desprestigiam o trabalho e a luta da mulher, seja ela em qual cenário
for, é uma violência simbólica, pois os ataques pessoais são morais, e que chegam a violência
física, o que já hoje é considerado crime devido a Lei 11.340 sancionada em 2006, a qual diz
no seu “Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:”
Ao perceber essa violência simbólica, nota se que ela esta presente em nosso
cotidiano quando referirmos algum comentário corriqueiro, porém o mesmo esta impregnado
de ódio e misoginia, despreciando a figura da mulher ou até mesmo incitando alguma
abordagem mais violenta, na mesma. Reconhecer esse discurso é fundamental, para que assim
não reproduzimos e perpetuamos.
O discurso misógino é reproduzido com muito mais ênfase, quando a mulher
assume um papel de destaque, seja ele na liderança de uma empresa, em departamentos
públicos, ou até quando a mesma entra no cenário politico.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p382 391


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Isso ficou bem notável nos últimos anos, onde a mulher teve um grande destaque no
cenário político, tivemos a primeira presidente mulher a senhora Dilma Rouseff, a qual
também sofreu um impeachment, que passou por um golpe político, legislativo, judiciário e
midiático, e ainda por cima com ataques misóginos.
Recentemente o que mais marcou dentro dessa violência foi a execução politica de
uma vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco, a qual foi morta a tiros por seu
posicionamento político, e que até presente data da produção desse texto, não foi solucionado
sua morte.

Marielle: A mulher a frente da política.

Marielle Franco, foi a quinta vereadora mais votada nas eleições 2016 na cidade do
Rio de Janeiro, com mais de quarenta e seis mil votos. Ela veio da favela da Maré, onde foi a
maior parte da sua vida, mãe aos 19 anos, ao mesmo tempo começou a tentar mudar sua
realidade a qual foi condicionada diante essa sociedade racista e elitista.
Após o nascimento da sua filha, ela começou a frequentar um curso pré vestibular
comunitário, o qual permitiu ela se matricular em 2002 na faculdade como bolsista pelo
PROUNI, um programa de universidade para todos, ela estudou na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, a Puc-RJ, cursando de Ciências Sociais.
Após a conclusão do seu curso, ela permaneceu no meio acadêmico e fazendo seu
mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense UFF. Foi a partir de
então que Marielle, entrou no meio político, se filiando ao Partido Socialismo e Liberdade-
PSOL.
Marielle, pode se dizer que é uma típica mulher brasileira, a qual sempre foi
negligenciada pela sociedade por trazer traços bem fortes, negra, da favela, lésbica, pobre.
Analisando essas características, sabe se que o Brasil é um país construído ao sangue negro, e
que foi um dos últimos países a abolir a escravatura (ao menos legalmente). Também é o país
que mais mata a população LGBT, Segundo dados da Rede TransBrasil e do Grupo Gay da
Bahia (GGB). Já a pobreza e as áreas periféricas nos Brasil, não são tratadas como uma
questão de desigualdade social, e sim como um status, o qual apenas beneficia a elite
burguesa, já os que sobram são vistos como preguiçosos, vagabundos.
Diante a todo esses estigmas sociais, ela conseguiu por meio da educação se
emancipar se e lutar pelos oprimidos, Marielle era uma feminista a qual discutia sempre em
sessões da câmara do RJ, que as mulheres teriam que tomar lugar em cargos políticos, e em

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seu último discurso ela diz “ Uma mulher sobe e puxa a outra”, esse era o lema das marchas
das mulheres negras, ela ressalta ainda e cita a autora feminista reconhecida
internacionalmente Chimamanda“ e isso deve ser concretizado, e só isso só será operado se
as mulheres tiverem no espaço de poder, de fato, trouxerem, derem pé, abraçarem,
acolherem, construir, com outras mulheres”.
A parlamentar, era uma ativista em torno das causas feministas, raciais e dos direitos
humanos, ela abraçava as causas sociais que estava nas comunidades, pois ela vivenciou
quase todas. Em sua gestão ela foi presidente da Comissão da Mulher da Câmara , elaborou
projetos que beneficiassem a população carente, um dos principais projeto de lei foi o “
Espaço Coruja” o qual visa atender pais e mães que estudam ou trabalham a noite, que
tivessem uma creche noturna, para que as crianças ficassem em lugares seguros.
Em fevereiro desse ano ela foi relatora da Comissão contra a intervenção militar que
se instaurava nas periferias do Rio, onde a taxa de inocentes mortos estavam sendo altas,
questionando os critérios dos policiais.
Infelizmente Marielle Franco, foi executada com 13 tiros disparados em seu veiculo,
acertando ela e o seu motorista Anderson Pedro Gomes, o óbito foi de imediato, até o presente
momento na produção desse artigo, não se sabe o certo quem disparou e o por que, pois não
há vestígios de assalto, o que se sabe é que a vereadora, foi executada.
Partindo se dessa tragédia, a qual não podemos deixar passar em branco, pois Marielle
foi apenas uma que deu a cara a tapa, não se calou com a voz opressora masculina, batia de
frente, mulher, negra, feminista, mãe, ativista dos direitos humanos, periférica, lésbica. É
obvio, que não podemos limitar toda a sua batalha nesses estereótipos, no entanto seu
engajamento político, serviu de certa forma de combustão para que essa tragédia seja
executada, não podemos afirmar nada diante a uma investigação policial. Porém, o nosso país
esta em uma situação em que o caos político esta se instaurando, e de certa forma quem ouse
levantar a voz contra esse sistema conservador e caótico, sofre represálias.
O fato em si é triste, revoltante, no entanto, serve como uma forma sororidade, em
que mais mulheres engajem no campo político, e lutem por criações de políticas públicas que
visiabilizem as, e não as silenciem, que quando se filiarem a um partido, seja para buscar
melhorias e não apenas para servir de cota feminina, essa cota, já é uma violência simbólica, a
mulher é silenciada, e apenas a voz do homem, é o que vale.
A dominação masculina, está presente firmemente no cenário político, o que em sua
maioria não representa uma boa parte do povo brasileiro. E as poucas mulheres que estão no
poder, no congresso, são silenciadas, manipuladas, impeachmada, executada.

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Isso é uma forma lógica que o machismo também está enraizado no campo político,
e que ele vem servindo de base há vários anos, e que há poucos anos as mulheres começaram
a ser donas de si, e a terem políticas públicas, as quais reconhecessem as suas necessidades e
singularidades. Há muito, a se lutar e ainda a conquistar, porém necessitamos de mais
ativismo, feminismo, de mais Marielles, para que assim futuras gerações sejam equitativas em
seus direitos e em suas conquistas.

Considerações Finais

Ao findar esse artigo, não há muitas esperanças, pois a luta contra o machismo de cada
dia é constante, é na forma de falar, expressões habituais, como já havia falado, o machismo é
estrutural em nossa sociedade, porém só hoje é visto como uma violência, uma violência
simbólica, que impede muito a forma como a mulher é vista atualmente na sociedade.
A forma como tentar romper com esse machismo, é ainda uma educação que seja
emancipadora, que não seja dual seja no aspecto social, ou de gênero, e o principal mais
mulheres e menos machismo ocupando a política brasileira, pois ocupando esses espaços é
fundamental para a redução da desigualdade que nos cercam.
A esperança é a integração de políticas publicas que priorize ou visibilize a mulher na
sociedade, e que ela se sinta segura e capaz de exercer o que é seu por direito, e
complementando uma educação que não reflita hábitos e expressões machista que estejam
enraizados em nossa cultura, rompendo esse estigmas, poderá alcançar uma sociedade mais
justa, humana e equitativa, respeitando todos os gêneros.

Referências
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As raízes históricas da divisão sexual do trabalho no sistema penitenciário brasileiro

Ana Clara Gomes Picolli1


Flávia Granzotto Fachini2

Resumo: Este trabalho se trata de um ensaio teórico produzido por meio de pesquisa
bibliográfica e documental a partir compilação de livros, artigos, dissertações, teses e
documentos que tratam sobre a pena de prisão, a gênese dos presídios femininos no Brasil e
divisão sexual do trabalho. O objetivo geral é apresentar como se constituem os presídios
femininos no Brasil e identificar as raízes históricas da divisão sexual do trabalho no sistema
penitenciário brasileiro. Destarte, o trabalho é dividido em: i) Pena de prisão; ii) Pena de
prisão na América Latina; iii) Presídios femininos no Brasil; e iv) Presídios femininos no
Brasil e sua relação com a divisão sexual do trabalho. Tem-se como norte epistemológico o
materialismo histórico-dialético, utilizando-se de autoras que tratam a questão de gênero de
forma articulada e interseccional. Ainda hoje, o aprisionamento de mulheres está permeado
por julgamentos morais da lógica patriarcal e da divisão social do trabalho que é regida pelos
princípios de separação e hierarquização de atividades realizadas por homens e mulheres. O
conhecimento e debate da gênese dos presídios femininos pode contribuir para a visibilidade
do encarceramento de mulheres e percepção do caráter histórico do patriarcado, fator
essencial para apreensão crítica das desigualdades entre homens e mulheres que ainda estão
presentes na sociedade.

Palavras-chaves: divisão sexual do trabalho; prisão; mulheres encarceradas.

1
Universidade Federal do Paraná; graduanda de Serviço Social; anaclaraggpicolli@gmail.com.
2
Universidade Federal do Paraná; Profa. Ms. substituta no curso de Serviço Social; flaviagfachini@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p397 397


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Introdução

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, realizado pelo


Ministério da Justiça e Segurança Pública, publiciza informações estatísticas sobre o sistema
penitenciário brasileiro, contribuindo para a fiscalização pública e visibilidade da população
encarcerada no país. Em 2014 teve sua primeira versão voltada exclusivamente a população
carcerária feminina, trazendo dados surpreendentes como o crescimento de 567% de mulheres
presas no país entre os anos 2000 e 2014. Quatro anos depois surge a segunda edição do
INFOPEN Mulheres, com dados atualizados e mais abrangentes sobre as mulheres
encarceradas no Brasil e os estabelecimentos em que se encontram.
O INFOPEN Mulheres 2018 traz dados referentes a junho de 2016. Nele consta que a
população feminina encarcerada nessa época era 42.355 mulheres. Esse número faz com que
o Brasil seja, atualmente, o 4º país com maior população prisional feminina do mundo. Essa
realidade demonstra um dos elementos que podem justificar a realização de um trabalho sobre
este tema.
Este trabalho é um ensaio teórico produzido por meio de pesquisa bibliográfica e
documental a partir compilação de livros, artigos e documentos que tratam sobre a pena de
prisão, a gênese dos presídios femininos no Brasil e divisão sexual do trabalho. O objetivo
geral é apresentar como se constituem os presídios femininos no Brasil e identificar as raízes
históricas da divisão sexual do trabalho no sistema penitenciário brasileiro. Tem-se como
norte epistemológico o materialismo histórico-dialético utilizando-se de autoras que tratam a
questão de gênero de forma articulada interseccional.
A primeira parte do trabalho consiste em relatar brevemente a história da pena de
prisão no ocidente; posteriormente é discorrido sobre o processo de materialização dos
estabelecimentos penais femininos no Brasil; por fim, é discutida a influência da sociabilidade
patriarcal capitalista na estruturação e funcionamento dos primeiros presídios femininos no
Brasil, tendo como principal eixo de análise a divisão sexual do trabalho. Conforme Saffioti
(2004) é essencial compreender a dimensão histórica da dominação masculina para que se
apreenda adequadamente o patriarcado.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p397 398


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Pena de Prisão
Cláudio do Prado Amaral (2016) aponta que durante a Antiguidade3 e Idade Média a
prisão era um espaço destinado a réus que aguardavam seus julgamentos e execução de suas
sentenças. Na Idade Média o autor alega já existir comutação da pena por meio de pagamento
de valores, permanecendo aprisionados nos cárceres dos senhores feudais aqueles que não
possuíam condições econômicas para pagar por sua liberdade. Nessa época, a aplicação de
pena de prisão era destinada a delitos considerados mais brandos, não condenados a
penalidades mais fortes. A Igreja e a Inquisição tiveram papéis relevantes no que condiz a
esses aprisionamentos
A Igreja vislumbrava o encarceramento como local de correção espiritual,
onde o pecador poderia refletir, em isolamento celular, sobre o erro
cometido, reconciliando-se com Deus [...] a Inquisição, por sua vez, utilizou
a prisão com fins de mera custódia, mas também como pena aplicada a quem
praticasse leves heresias (AMARAL, 2016, p. 26-27).

O aprisionamento de indivíduos considerados delituosos se tornou uma oportunidade


de a Igreja manter sua hegemonia no campo das ideias e participar ativamente do controle
social. Com a Idade Moderna e a ascensão da acumulação primitiva4, a ordem societária foi se
transformando e junto dela os debates sobre as práticas político-econômicas e sociais. A
prisão como pena privativa de liberdade passa a ter protagonismo no conjunto de punições,
demarcando um momento de grande importância na história da justiça penal: seu caráter
“humanitário” e reformista. Segundo Amaral (2016), é a partir do surgimento das ideias
iluministas, principalmente posterior as publicações das obras de Beccaria e John Howard,
que se reforçou a ideia de humanização das penas de prisão, enfatizando o trabalho como um
dos principais meios de regeneração moral. A valorização do trabalho como principal eixo da
“regeneração” moral deve ser correlacionada com o modelo de produção em ascensão na
época, a crescente industrialização e a expansão do capitalismo como ordem societária inclui
dominação da força de trabalho para reprodução e manutenção de tal ordem. Visto que a

3
Para devidas contextualizações históricas, compreende-se por Antiguidade o período que chega até o ano de
476, Idade Média entre os anos de 476 e 1453 e Idade Moderna de 1453 a 1789 (AMARAL, 2016).
4
“Trata-se do processo que propiciou que se encontrassem duas espécies bem diferentes de mercadorias: de um
lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência, que se propõem a valorizar a soma-
valor que possuem mediante compra de força de trabalho alheia; do outro, trabalhadores livres, vendedores da
própria força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho [...] com essa polarização do mercado estão dadas
as condições fundamentais da produção capitalista. Trata-se do processo de separação do trabalhador da
propriedade das condições de seu trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de
subsistência e de produção em capital, por outro os produtores diretos em trabalhadores assalariados” (MARX,
1984, I, 2:262).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p397 399


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prisão é um meio de dominação e controle social sobre os apenados, a imposição do trabalho


enquanto forma de regeneração gera vantagens a economia
Através da rígida disciplina de trabalho impingida às prisões, pretendia-se o
adestramento do proletariado com a finalidade de que, quando saíssem em
liberdade, aceitassem as condições de trabalho que lhes eram oferecidas,
permitindo, dessa forma o máximo de extração de mais-valia. (MELOSSI,
1987, p. 170).

Conforme Bruna Soares Angotti Batista de Andrade (2011), o primeiro presídio


exclusivo para o sexo feminino foi criado em 1645 na Holanda. Essa instituição abrigava não
apenas as mulheres que cometiam delitos, mas também aquelas marcadas pela pobreza,
prostituição, uso de álcool e até mesmo as que demonstravam mau comportamento para com
os pais ou marido. Foi durante o século XIX que o debate sobre a necessidade de criação de
instituições prisionais destinadas unicamente a mulheres ganhou corpo em países como a
França, Inglaterra e Estados Unidos
As mulheres compunham um pequeno percentual da população encarcerada,
sendo 20% na Inglaterra, entre 14% e 20% na França e entre 4% e 19% nos
Estados Unidos (...) Resgate da moral, da feminilidade e o aprendizado das
tarefas femininas eram os principais objetivos dos que se dedicavam à causa
das mulheres presas (ANDRADE de, 2011, p.22).

Lucia Zedner (1995) afirma que a separação das prisões conforme o sexo foi uma das
maiores realizações da reforma penal de alguns países no século XIX. Lucia também relata
que surgiram dúvidas com relação ao modelo de regime penitenciário a ser aplicado as
mulheres na época de criação desses espaços. Uma dessas dúvidas foi com relação a interação
entre as mulheres presas, se deveria haver regime de silêncio absoluto com celas individuais
ou celas coletivas, variando os momentos de silêncio e convívio social. A opção por celas
individuais, para evitar que as mulheres de diferentes classes e condutas morais pudessem
estabelecer algum tipo de contato foi priorizado em grande parte da Europa durante o século
XIX (ZEDNER, 1995).
As mulheres aprisionadas eram submetidas a um controle muito maior se comparado
aos homens em igual situação, pois estas, além de terem de se submeter as regras do regime
da prisão, deveriam aprender condutas e comportamentos considerados femininos (ZEDNER,
1995. p. 342). Em alguns presídios dos Estados Unidos havia uma simulação do ambiente
doméstico, para que as mulheres pudessem praticar atividades relacionadas a manutenção do
lar. No início do século XX esse modelo de prisão feminina foi desestabilizado por conta do
aumento da população prisional durante a Primeira Guerra Mundial, pois muitas prostitutas e
usuárias de álcool ou drogas ilícitas foram aprisionadas nesse período (ZEDNER, 1995).

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Pena de Prisão na América Latina


No período colonial a prisão não era um dos principais de punição, nem tinha como
intuito a reforma moral dos aprisionados, tinha como finalidade aprisionar indivíduos que
infringiam as leis e normas impostas – execuções públicas, açoites, trabalhos públicos, entre
outros, eram mais frequentes no antigo regime – embora tenha exercido forte influência na
manutenção do controle social, laboral e racial no período pós-colonial (AGUIRRE, 2007).
De acordo com Tiago da Silva Cesar (2013), mesmo a prisão não tendo ocupado centralidade
nas cidades coloniais durante o Antigo Regime, considerá-la apenas como um local onde era
garantida a detenção das (os) réus pode ser insuficiente, tendo em vista que era um espaço de
sofrimento, tortura e abandono, além de propiciar a articulação e exercício de poder. Esses
cárceres, tidos como insalubres e sem a intencionalidade de “reformar” moralmente os
indivíduos aprisionados, continuaram sendo a realidade prisional mesmo após as
independências e surgimento dos códigos penais.
A partir de 1790, sob a influência da reforma penitenciária que ocorrera nos Estados
Unidos, se iniciou nas primeiras décadas do século XIX debates acerca de inovações nas
técnicas e procedimentos punitivos, que passaram a repercutir na América Latina, gerando em
suas autoridades estatais o anseio em reproduzir os modelos de instituições penais europeus e
estadunidenses, com o intuito de caminharem rumo à modernização5 e obterem êxito no
controle da população considerada indisciplinada.
Na América Latina não há como associar o surgimento das penitenciárias com o
processo de industrialização, tendo em vista que não há evidências de complexos industriais
precedentes a introdução deste modelo de prisão. Mesmo com o intuito de reformar as
práticas punitivas, algumas punições do período colonial continuaram a ser aplicadas após a
independência dos países latino-americanos
La retórica liberal, republicana y de respeto al estado de derecho que los
líderes de estos nuevos Estados independientes profesaban, era casi siempre
neutralizada por discursos y prácticas que enfatizaban la necesidad de
controlar a las masas indisciplinadas e inmorales a través de mecanismos
severos de castigo (AGUIRRE, 2007, p. 213).

Aguirre (2007) aponta que o primeiro estabelecimento prisional construído na


América Latina foi a Casa de Correção do Rio de Janeiro; sua construção se iniciou em 1834,
sendo finalizada em 1850. As penitenciárias latino-americanas enfrentaram problemas

5
Com relação ao considerado como moderno Quijano (2006, p. 121) discorre “Como parte do novo padrão de
poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da
subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção de conhecimento”.

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administrativos e financeiros devido à escassez de recursos financeiros, recebendo críticas por


não cumprir com a proposta de tratamento humanitário aos apenados e nem com o combate à
criminalidade “estas penitenciárias ofrecían condiciones más seguras de confinamiento,
imponían rutinas más severas sobre los presos y ejercían un nivel de control sobre ellos que
hubiera sido virtualmente inimaginable en las cárceles pré-existentes” (AGUIRRE, 2007, p.
217). O ideal penitenciário na Europa e Estados Unidos considerava os indivíduos delituosos
como sujeitos reformáveis, passíveis de retornarem para a sociedade com uma moral
socialmente aceitável. Para os reformadores latino-americanos, esse ideal de prisão moderna
contribuiria na democratização das sociedades liberais, além de cumprir com a vontade das
elites em acompanhar a “modernidade” mantendo práticas coloniais de exercício de poder e
exclusão da população negra e indígena, como por exemplo o tributo indígena, o recrutamento
militar forçado, entre outras práticas de controle laboral, racial e social (MALLON, 1992 e
LARSON, 2004).
Se por um lado as prisões tinham como intuito aprisionar infratores para oferecer
segurança para a sociedade, ao mesmo tempo, reproduzia e reforçava a essência autoritária e
excludente da mesma. O alcance das ações dos reformistas liberais para modernizar o cárcere
brasileiro era limitado, haja vista que a organização da sociedade na época era dividida entre
pessoas livres e escravos, negros e brancos. Com o passar do tempo o exercício privado de
punição começou a declinar e o Estado precisou buscar alternativas de enfrentamento ao
crescente número de delituosos, uma delas foi o uso do Exército como instituição penal
De hecho, el Ejército se convirtió en el más grande instrumento punitivo para
los delincuentes en Brasil durante la segunda mitad del siglo XIX. Miles de
sospechosos, mayoritariamente pobres y negros, fueron reclutados a la fuerza
por el Ejército a través del uso de la conscripción como mecanismo de
castigo (AGUIRRE, 2007, p. 223).

Com relação ao Brasil, alguns países latino-americanos saíram na frente na criação de


presídios femininos, como é o caso do Chile, Argentina, Peru e Uruguai. No Chile a primeira
casa de correção feminina foi criada em 1864, no Peru em 1871 e na Argentina na década de
1980 (ANDRADE, 2011, p. 192). Havia uma preocupação unânime entre os penitenciaristas
da América Latina em superar práticas primitivas e aplicar punições “modernas”. Para isso,
permutavam ideias e experiências sobre a pena de prisão em seus respectivos países durante
os congressos latino-americanos de criminologia.

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Presídios Femininos no Brasil


O período de criação dos presídios femininos no Brasil se iniciou durante o governo
do presidente Getúlio Vargas, entre as décadas de 1930 e 1940, a partir da promulgação do
Código Penal e do Código de Processo Penal, ambos de 1940. O Código Penal determinava
em seu 2º parágrafo, do Art. 29º que “As mulheres cumprem pena em estabelecimento
especial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum, ficando sujeitas a
trabalho interno”. A partir disso, deu-se o ensejo de criar presídios exclusivamente femininos
e reorganizar estabelecimentos mistos.
Nessa época quem pensava e debatia o cárcere eram os denominados penitenciaristas.
Em sua maioria médicos e juristas, todos homens, eram responsáveis em refletir o cárcere, seu
papel na sociedade e alternativas para o seu melhor funcionamento. Esses homens estavam
sempre presentes em congressos internacionais, nas academias e em outros ambientes que
propiciavam debates sobre as novidades de práticas prisionais da época. Eram acionados
sempre que se precisava de pareceres sobre a situação prisional ou formulação de reformas.
Andrade (2011) afirma que tiveram um papel relevante na estruturação dos presídios
femininos no país e cita alguns que contribuíram com esse debate, como José Gabriel de
Lemos Britto
Lemos Britto exerceu um papel importante no período de criação dos
primeiros estabelecimentos prisionais para mulheres no país. Desde seu
relatório escrito em 1924 chamava a atenção para a situação degradante do
aprisionamento de mulheres, e sugeria a construção de espaços próprios para
elas. Durante as negociações para a construção do Penitenciária de Mulheres
de Bangu, em 1941, participou ativamente, como presidente do Conselho
Penitenciário, tanto da criação do regulamento interno da casa, quanto da
escolha das Irmãs administradoras e do regime penitenciário a ser adotado na
Instituição. (ANDRADE, 2011, p. 73).

O primeiro estabelecimento prisional feminino foi o Instituto Feminino de


Readaptação Social, localizado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Inicialmente
nomeado de Reformatório de Mulheres Criminosas, foi criado em 1937, sendo a primeira
instituição prisional destinada exclusivamente ao público feminino. Segundo Andrade (2011),
o Instituto não teve um edifício construído destinado a execução de suas funções, ocupando
um antigo “prédio senhorial” no centro da cidade, fator comum a outros estabelecimentos
prisionais femininos construídos posteriormente que foram instalados em construções já
existentes.
Angela Teixeira Artur (2011), cita que os primeiros presídios femininos criados no
Brasil foram nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, ambos inaugurados em 1942. Em São
Paulo, o Presídio de Mulheres foi inserido em um terreno da Penitenciária do Estado que

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servia de antiga residência dos diretores. O Presídio de Mulheres só recolhia mulheres já


condenadas, como informa o Decreto de Lei n.º 12.116, não compreendendo o restante de
mulheres cujas sentenças ainda não haviam sido julgadas. O contingente da população
carcerária feminina era extremamente inferior se comparada a masculina nessa mesma época.
Conforme Marina Albuquerque Silva (1992), em 1942 o Presídio contava com somente sete
sentenciadas e entre os anos de 1942 a 1952 passaram por ele 212 mulheres.
A Penitenciária de Mulheres do Distrito Federal, localizada no Rio de Janeiro –
capital do país naquela época – foi criada pelo Decreto n.º 3.971 de dezembro de 1941
(ANDRADE, 2011). Inaugurada em 1942, foi a primeira instituição penal construída
exclusivamente para receber a população carcerária feminina, situada no bairro Bangu.
Posterior a esses estabelecimentos, conforme se passaram os anos, foram sendo construídos
outros estabelecimentos prisionais femininos nos demais estados.
Desde o princípio, as instituições prisionais femininas foram administradas por freiras,
principalmente da Congregação Bom Pastor d’Angers, responsáveis por cuidar da reeducação
moral das apenadas
No rol das obrigações contratuais da Congregação figuravam tarefas como
receber as sentenciadas enviadas pelas autoridades competentes, trabalhar
pelo progresso moral e instrução doméstica das sentenciadas entregues aos
seus cuidados, cuidar das sentenciadas enfermas, encarregar-se da
administração interna, solicitar o fornecimento de gêneros, apresentar
relatórios e estatísticas (ARTUR, 2017, p. 157, grifo nosso).

Artur (2017) discorre sobre as congregações católicas, afirmando que estas foram
instrumento de resistência e colaboraram com a difusão do catolicismo na França e Europa.
Ainda afirma as características dessas congregações, de intervenção social e de utilidade
pública “despontaram, portanto, ao longo do século XIX, como um braço da Igreja que
associava um novo modelo de vida religiosa ao comprometimento com projetos de atuação
social” (ARTUR, 2017, p. 95). Em poucas décadas essas congregações se disseminaram a
outros continentes e na maioria das vezes, haviam fundado mais de um estabelecimento por
país.
Concorde Andrade (2011), o Instituto Bom Pastor d’ Angers foi fundado na França,
em 1829, pela Madre Maria Eufrásia Pelletier e tinha como missão
A “salvação das almas” e a “cura moral” de meninas e mulheres em estado
de abandono material e moral. “Cooperar com Deus na salvação de almas” é
a vocação primeira das Irmãs que fazem voto de pobreza ao vestir o hábito e
prometem se dedicar à reeducação e reabilitação das “desafortunadas” por
meio da moral cristã (ANDRADE, 2011, p. 198).

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As Irmãs da Congregação Bom Pastor não “cuidavam” apenas de mulheres


consideradas delituosas, mas também de mulheres socialmente desamparadas, abandonadas
pela família, que se prostituíam, entre outras que não correspondiam com o arquétipo
feminino imposto na época. Acreditava-se na reforma moral das meninas e mulheres através
do isolamento total da vida social pública, devendo de preferência estarem isoladas umas das
outras (ARTUR, 2017, p. 120). A presença da Congregação Bom Pastor na América do Sul
data de 1855, sendo o Chile o primeiro país a receber as irmãs. No Brasil, a Congregação se
estabeleceu três décadas depois, em 1891.
As freiras foram as primeiras a ficar com a responsabilidade de administrar os
presídios femininos (ANDRADE, 2011, SILVA, 2015), incumbidas de organizar a rotina das
mulheres e o espaço físico da prisão, fazendo com que o tempo que ali passassem servisse
para aprimorar seus comportamentos, tendo como referência o padrão do “ser mulher” da
época
Pelo regulamento interno da prisão, formulado e aplicado pelas religiosas,
chamado Guia das Internas, as presas só tinham dois caminhos para remirem
as suas culpas, e ambos supunham que elas se transformassem nas perfeitas
mulheres piedosas, recatadas, discretas, dóceis e pacíficas. Dedicadas às
prendas domésticas de todo o tipo (bordado, costura, cozinha, cuidado da
casa e dos filhos e marido), elas estariam aptas a retornar ao convívio social
e da família ou, caso fossem solteiras, idosas ou sem vocação para o
casamento, estariam preparadas para a vida religiosa (SOARES,
INGENFRITZ, 2002, p. 58).

Como afirma Andrade (2011), devido ao baixo contingente de mulheres no mercado


de trabalho na época e a extensa experiência da Bom Pastor no trato de mulheres consideradas
transgressoras das normas sociais, foi deliberado que as irmãs seriam a melhor resposta no
trato às apenadas.

Presídios femininos no Brasil e sua relação com a divisão sexual do trabalho


Dada a trajetória histórica apresentada acerca da constituição dos presídios femininos
no Brasil, compreende-se que estes foram pensados de acordo com o entendimento social do
que seja o campo do masculino e do feminino, onde estes se caracterizariam enquanto dois
campos de extremos opostos incomensuráveis. A naturalização dessa visão resulta no
engessamento de homens e mulheres em estereótipos construídos socialmente acerca do que
seja “ser homem” e “ser mulher” e que não condizem necessariamente com a realidade. As
estratégias de planejamento quanto ao funcionamento e normas dos presídios ao longo da
história buscaram reproduzir esses estereótipos reforçando que as mulheres privadas de

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liberdade deveriam corresponder ao esperado socialmente, e ainda, a própria ação das freiras
intricadas ao cuidado.
O cuidar foi construído e associado enquanto atribuição naturalmente feminina.
Quando as mulheres conquistam o direito de estudar e ocupar o mercado de trabalho, isto se
dá, em um primeiro momento, em profissões ligadas ao cuidado e que estariam associadas as
características “essencialmente” femininas e a maternidade, por isso, é ainda grande a
presença de mulheres em ocupações que exigem formas de cuidado (CARVALHO, 1999).
Destaca-se as ações desenvolvidas pelas educadoras, damas de caridades e as freiras que
ocupavam um papel reconhecido no âmbito público e que representavam um movimento
importante na vida das mulheres para o momento histórico (especialmente as brancas), mas
que não transgrediam os papéis considerados essenciais ao campo do feminino.
Cuidar é uma atividade regida pelo gênero (compreendido como uma construção
social/cultural e de relações sociais e de poder entre os sexos) tanto no âmbito público quanto
na vida privada. As ocupações das mulheres são geralmente aquelas que envolvem cuidados,
além disso, elas acabam realizando um montante desproporcional de atividades de cuidado no
ambiente doméstico privado. Desta forma, a perspectiva tradicional de gênero em nossa
sociedade implica que os homens tenham “cuidado com” e que as mulheres “cuidem de” e
que consequentemente recaia sobre um juízo moral dessas mulheres havendo uma clivagem
considerável em relação ao que se é exigido dos homens (TRONTO, 1997).
Tortato e Carvalho (2009) discorrem ainda sobre quais sãos os comportamentos
construídos socialmente como essencialmente femininos e masculinos. Para elas, das
mulheres espera-se que estas sejam dóceis, silenciosas, recatadas e maternais e os homens
viris, agressivos e provedores.
De acordo com Luz (2009), a divisão sexual do trabalho é uma das formas da divisão
social do trabalho. Trata-se da separação entre as atividades desenvolvidas pelas mulheres e
das desenvolvidas pelos homens. Tal divisão associa o trabalho das mulheres a esfera da
reprodução (como por exemplo, o espaço domiciliar e da família no qual as atividades se
voltam para a reprodução e manutenção da vida, buscando suprir as necessidades de
sobrevivência familiar) e o trabalho dos homens ao âmbito produtivo (espaço público no qual
se produz bens e serviços para a sociedade). Para Hirata e Kergoat (2007) a divisão sexual do
trabalho é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e,
simultaneamente, apropriação pelos homens de funções com maior valor social adicionado
(políticos, religiosos, militares, entre outros). De acordo com as autoras, se organiza com base

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em dois princípios: a) o da separação – ou seja, existem trabalhos de homens e trabalhos para


mulheres – b) o princípio hierárquico – o trabalho dos homens tem maior valor do que o
trabalho das mulheres.
Consequentemente, em uma perspectiva que defende a ideia de atividades inerentes a
biologia de homens e mulheres, caberia a elas estritamente ou majoritariamente o cuidado dos
filhos, de pessoas doentes e idosos, bem como, as demais atividades desenvolvidas no âmbito
privado. Na trajetória histórica dos presídios femininos as mulheres privadas de liberdade
foram sempre submetidas ao controle sobre os seus corpos a partir de uma perspectiva
moralizante e conservadora. Além disso, delas se exigiu que se correspondessem aos papéis a
elas designados socialmente, seja o de serem dóceis, silenciosas e recatadas, seja a sua relação
com o cuidado ou com as atividades que deveriam ser realizadas estritamente no ambiente
interno dos presídios.

Considerações finais
O contexto político, histórico e social em que se deu a gênese dos presídios femininos
no Brasil, é marcado pela transição da mulher urbana do espaço privado para o público. Como
forma de conter essa mobilidade os “papéis sociais” femininos foram reiterados, visando
normatizar comportamentos e corpos femininos em um padrão que não desestruturasse a
ordem social vigente, a família nuclear burguesa, o patriarcado. Isso refletiu no cárcere,
tornando os primeiros presídios femininos uma espécie de escola para que a reforma moral de
mulheres consideradas transgressoras do feminino pudessem refletir e reaprender a exercer
seus papéis conforme demandava a sociedade. Nesses espaços, dentre outros, ficou nítida a
relação da divisão sexual do trabalho, sendo o público destinado aos homens e o privado às
mulheres, sendo inclusive amparado por lei, já que constava no Código Penal que o trabalho
conferido às mulheres em situação de cárcere seria apenas em ambiente interno.
Os estabelecimentos penais femininos terem ficado por tanto tempo sob administração
de freiras só reforça o forte apelo moral destinado a esses espaços na época. A religião tinha a
missão de reestruturar a mulher delituosa às expectativas do Estado e da sociedade, pois suas
ações estavam voltadas, majoritariamente, no cuidado da educação moral dessas mulheres. A
prisão era tida como espaço de redenção e reeducação de mulheres para que pudessem ocupar
seus lugares na sociedade. Sua estrutura e funcionamento esboçam as expectativas capitalistas
e patriarcais referentes às mulheres naquela época e os espaços a elas destinados.
Ainda hoje o aprisionamento de mulheres está cerceado por julgamentos morais da
lógica patriarcal, sendo observadas nas instituições prisionais femininas, práticas laborais

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relacionadas com o conceito de feminino do pensamento hegemônico. Compreender a história


das prisões femininas a partir da visão crítica de estruturas como o patriarcado e o racismo se
fazem de extrema importância e urgência para que caminhemos rumo a extinção dessas
práticas que tanto oprimem, estigmatizam e excluem a população de mulheres na sociedade.

Referências
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A dualidade entre o ser mulher e o ser policial:


discussões acerca do encontro "Chá das Rosas”

Daniela Cecilia Grisoski1


Eneida Santiago2

Resumo: O objetivo central do trabalho em questão foi problematizar a concepção sobre o ser mulher
dentro do âmbito da Polícia Militar do Estado do Paraná na contemporaneidade, a partir da análise da
notícia "Policiais femininas participam de encontro para a valorização da autoestima do seu lado
mulher" publicada pelo site da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária -
Governo do Estado do Paraná, em 31 de outubro no ano de 2013, levando em consideração
perspectivas teóricas do campo da Psicologia denominada Análise Institucional (BAREMBLITT,
2002). As discussões aqui colocadas são frutos de uma pesquisa exploratória de materiais
selecionados conforme nosso objetivo, bem como da possibilidade de acesso aos materiais
bibliográficos, sendo estes materiais as obras de Baremblitt, publicações oficiais e não oficiais de livre
acesso que dizem respeito a inserção de mulheres na Polícia Militar do Paraná e notícias referentes aos
encontros denominados “Chá das Rosas” contidas no site Secretaria de Segurança Pública e
Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná . O estudo também se enquadra no campo
denominado Relações de Gênero, compreendendo uma análise de papéis sociais que são tidos como,
historicamente, denominados para um gênero específico, como é o caso do homem e da mulher
inseridos nas organizações da instituição Segurança Pública. Compreendeu-se que os encontros “Chá
das Rosas” foram iniciados através da reprodução de um discurso masculino dominante, propondo
uma divisão de funções de gênero, compondo lógicas instituídas como, por exemplo, a ideia de que
ser mulher e ser policial diz respeito a uma dupla jornada, levando em conta a concepção de que toda
mulher é dona de casa e mãe, estando ligada ao trabalho no ambiente público e privado, também uma
concepção de que feminilidade está atrelada a delicadeza.

Palavras-chaves: Relações de gênero. Polícia Militar. Instituição Militar.

1
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Londrina – UEL. Psicóloga
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. Mestranda em Psicologia Social e
Processos Institucionais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL, e-mail
grisoskidaniela@gmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina – UEL, Psicóloga, Mestre em Psicologia e Sociedade e Doutora em Saúde
Coletiva pela Unesp-Assis. Atualmente é Professora Adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no
Departamento de Psicologia Social e Institucional e Docente no Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em
Psicologia (PPGP-UEL), e-mail ensantiagobr@yahoo.com.br

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Introdução
O presente trabalho se caracteriza como parte do processo de desenvolvimento de uma
dissertação, iniciada em 2018, no programa de Mestrado em Psicologia, seguindo a linha em
Psicologia Social e Processos Institucionais pela Universidade Estadual de Londrina – UEL.
Como objetivo geral, visamos realizar uma problematização acerca da concepção sobre o que
é ser mulher dentro do âmbito da Polícia Militar do Estado do Paraná na contemporaneidade,
a partir da análise da notícia "Policiais femininas participam de encontro para a valorização da
autoestima do seu lado mulher" publicada pelo site da Secretaria de Segurança Pública e
Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná, em 31 de outubro no ano de
2013, levando em consideração perspectivas teóricas do campo da Psicologia denominada
Análise Institucional (BAREMBLITT, 2002).
A abordagem denominada Análise Institucional, de acordo com L’Abbate (2003), tem
a característica de desenvolver conjuntos de conceitos e instrumentos visando analisar e
intervir em instituições. No Brasil, a Análise Institucional começou a se destacar por volta da
década de 1970, a partir de pesquisas em universidades com variados tipos de profissionais. A
Análise Institucional não possui um caráter único, pois é formada a partir de um conjunto de
disciplinas as quais se iniciaram por volta das décadas de 1940 a 1950 na sociedade francesa,
tais disciplinas tem o intuito de problematizar a constituição de um campo como um conjunto
de saberes e práticas em um contexto amplo, enquadrados em uma ordem político-social,
ideológica e técnico-científica (L’ABBATE, 2003). Por sua vez, nesse trabalho em específico,
utilizou-se a produção a respeito da Análise Institucional do teórico Gregório Baremblitt,
renomado teórico da América Latina, que nasceu na Argentina, mudando-se para o Brasil na
década de 1970, após a instauração de uma ditadura militar em seu país de origem, tornando-
se, posteriormente, um dos maiores pensadores do campo da Análise Institucional (HUR,
2014).
Baremblitt caracteriza o chamado movimento institucionalista enquanto um leque de
tendências as quais não são unilaterais, mas que possuem um objetivo em comum: apoiar os
processos de autoanálise e autogestão de um meio social. Esses termos se caracterizam
conforme a organização de uma sociedade, o teórico aponta que o saber de nossa população
vem sendo produzido através de experts, sendo esses os conhecedores de uma sociedade, que
influenciam os modos de vida dos cidadãos. Já os processos de autoanálise e autogestão
compreendem a organização de uma sociedade para produzir saberes e dispositivos
necessários para a manutenção e melhoramento sobre suas vidas. Neles, há hierarquia através

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da capacidade de produção, mas não há a hierarquia de poder, em que um sujeito sobressai o


outro (BAREMBLITT, 2002).
Baremblitt ainda ressalta que uma instituição se caracteriza como um conjunto de
lógicas e leis que compõe determinado valor social, sendo entidades abstratas. Na perspectiva
em que esse trabalho foi desenvolvido, a instituição que o compõe é a Segurança Pública. Por
sua vez, quando as instituições se constituem através de uma estrutura material, passam a ser
chamadas de organizações, objetivando-se uma entidade simples ou complexa. Tendo em
vista este trabalho, a organização que se destaca é a Polícia Militar do estado do Paraná.
Ainda considerando as lógicas que compõem a Análise Institucional para Baremblitt
(2002), um estabelecimento surge como as estruturas específicas as quais se enquadram
dentro de uma determinada organização, sendo esse o 20º Batalhão de Polícia Militar (20º
BPM), pertencente ao 1º Comando Regional da PM (1º CRPM) localizado na cidade de
Curitiba-PR ( SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO
PENITENCIÁRIA, 2018), compreendendo que esse foi o Batalhão em que sediou o encontro
“Chá das Rosas” o qual será analisado. A configuração de um estabelecimento conta com
equipamentos, consistindo em materiais, objetos ou dispositivos os quais se organizam para a
constituição deste estabelecimento. Também conta com os agentes, que por sua vez, são
descritos como os profissionais atuantes em um determinado estabelecimento
(BAREMBLITT, 2002). Neste caso, os agentes da instituição em questão seriam as policiais
femininas atuantes no 20º BPM que participaram do encontro “Chá das Rosas”, visto que o
objetivo do trabalho é a análise do evento ocorrido apenas, e não do Batalhão por um todo,
tendo como equipamentos disponíveis as estratégias utilizadas durante o encontro, como o
diálogo e as trocas de experiências entre as participantes.
Para tal, essa produção foi configurada através de uma pesquisa exploratória de
materiais selecionados conforme nosso objetivo, bem como da possibilidade de acesso aos
materiais bibliográficos. Segundo Severino (2007, p.123), a pesquisa exploratória busca
apenas levantar informações sobre um determinado objeto, delimitando assim um campo de
trabalho, mapeando as condições de manifestação desse objeto. Na verdade, ela é uma
preparação para a pesquisa explicativa (SEVERINO, 2007). Sendo assim, exploramos o
material utilizado, a partir de nossos objetivos, visando uma análise crítica do mesmo, sendo
estes materiais uma matéria publicada pelo site da Secretaria de Segurança Pública e
Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná, bem como, publicações oficiais
e não oficiais de livre acesso que dizem respeito a inserção de mulheres na Polícia Militar do
Paraná.

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O cotidiano de trabalho de policiais militares femininas foi tomada enquanto ator de


análise, considerando que as lógicas que compõem esta organização estão no contexto de
funcionamento de uma sociedade em geral, principalmente no que diz respeito às ideias de
segurança e bem-estar social. Ademais, este estudo também se enquadra no campo
denominado Relações de Gênero, compreendendo uma análise de papéis sociais que são tidos
como, historicamente, denominados para um gênero específico, como é o caso do homem e da
mulher inseridos na organizações da instituição Segurança Pública.

O encontro Chá das Rosas


De acordo com a notícia "Policiais femininas participam de encontro para a
valorização da autoestima do seu lado mulher" publicada pelo site da Secretaria de Segurança
Pública e Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná, em 31 de outubro no
ano de 2013, o primeiro encontro denominado “Chá das Rosas” aconteceu na data
31\10\2013, mesma data em que a notícia sobre o mesmo foi publicada. O mesmo ocorreu na
cidade de Curitiba-PR, a qual é composta pelo 20º BPM, pertencente ao 1º CRPM (Cf.
SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA,
2018)
Considerando a notícia, o encontro contou com a participação de 26 mulheres atuantes
no 20º BPM, as quais estiveram presentes a partir de indicações da psicóloga que atuava no
local, Kelly Oliveira. Levando em consideração que essa foi a primeira ocorrência do mesmo,
o encontro teve como intuito inicial abordar a

questão da auto-estima da policial, especificamente para que ela se veja e se


cuide. Nós entendemos, pela particularidade do serviço policial como
desgastante e estressante, que mexe muito emocionalmente com as pessoas,
notadamente com a mulher. Nossas policiais são mães, donas de casa e
esposas, e por isso elas precisam sentir-se bem, para que assim possam
atender bem as situações de trabalho, buscando a integração com a
comunidade, que é o pensamento do policiamento comunitário”, explica o
tenente-coronel Zanatta, Comandante do 20º Batalhão de Polícia Militar (20º
BPM), pertencente ao 1º Comando Regional da PM (1º CRPM). (SANTOS,
2013, s\p).
Santos (2013) ressalta que o propósito desse primeiro encontro era servir de pontapé
inicial para que demais encontros ocorrerem, inicialmente uma vez por mês, no 20º BPM,
para que as mulheres inseridas em tal contexto pudessem usufruir deste espaço enquanto um
lugar para expressarem suas questões sobre feminilidade, autoestima e relacionamentos. Esse
encontro, especificamente, também proporcional espaço de diálogo e discussão entre as
participantes durante sua ocorrência.

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Durante o encontro as policiais puderam falar sobre suas experiências como


mãe, dona de casa, esposa, policial militar e como mulher, trazendo
questionamentos sobre como conciliar o trabalho e a vida familiar com o
cuidado pessoal. A psicóloga fez com que as policiais repensassem como é
manter seu lado mulher em um ambiente militar, mas sem perder a
feminilidade (SANTOS, 2013, s\p).

Investigando a partir das palavras-chaves “Chá das Rosas” no site da Secretaria de


Segurança Pública e Administração Penitenciária - Governo do Estado do Paraná, através da
notícia “2º Encontro do Chá de Rosas para a valorização da policial feminina acontece na
capital”, nota-se que a segundo encontro no 20º BPM ocorreu na data 21 de novembro do ano
de 2013, cumprindo-se a ideia de desenvolvimento de encontros mensais. Na busca de
palavras-chaves também é possível identificar que, além dos encontros contínuos ocorridos no
20º BPM, demais Batalhões da Polícia Militar do estado do Paraná também aderiram a
ocorrência dos encontros, realizando-se em diferentes espaços de tempo e a partir das diversas
demandas de cada Batalhão.
Tendo em conta os principais objetivos situados na notícia em questão sobre o
primeiro encontro “Chá das Rosas”, é possível perceber uma dualidade na concepção sobre o
que é ser mulher dentro de uma organização de Segurança Pública, como é o caso da Polícia
Militar. Tal afirmação é percebida através da fala da psicóloga que explica sobre o encontro
ocorrido entre as policiais femininas. “Segundo a psicóloga Kelly Oliveira, que faz o
atendimento na unidade, o objetivo do encontro é trazer as mulheres para dentro do batalhão,
procurando trabalhar um lado mais feminino neste universo que é quase 100% masculino”
(SANTOS, 2013, s\p).
Assim, a proposta central do trabalho é poder abrir espaços de problematizações, de
acordo com o viés da Análise Institucional, acerca da dualidade sobre a questão da virilidade
ligada ao homem versus feminilidade vivida por mulheres inseridas no âmbito da Polícia
Militar na contemporaneidade, compreendendo que ainda há uma concepção sobre a mulher
estar ligada às ideias de cuidado e maternagem dentro das instituições de Segurança Pública.

A Polícia Militar do Paraná e a inserção de mulheres: um contexto histórico


A Polícia Militar do estado do Paraná constituiu seu primeiro batalhão em 10 de
agosto de 1854, estando enquadrada aos moldes da Segurança Pública. Essa, atualmente
possui mais de 60 elos que atuam transversalmente, como, por exemplo, iluminação pública,
perícia forense, ministério público, entre outros. A Polícia Militar, como um todo, se divide

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em 27 eixos pelo Brasil, sendo correspondente um para cada estado e um para o Distrito
Federal, atuando também como campo subordinado do Exército Brasileiro (SECRETARIA
DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA, 2018). Entretanto,
essa organização, fundada no ano de 1854, se caracterizada unicamente como sendo formada
por homens, assim como todos os batalhões constituintes no território brasileiro da época.
A Polícia Feminina, por sua vez, se inseriu no estado do Paraná na década de 1970,
sendo o segundo estado a configurar os Batalhões da Polícia Militar com a presença de
mulheres, sendo o estado de São Paulo o primeiro, abarcando a presença feminina na década
de 1950. Moreira (2016), ressalta que a nova categoria de Polícia foi prevista a partir da
necessidade de criação de uma denominada “nova polícia”, ou seja, a partir de nossa analítica,
no processo de inserção feminina na Polícia, idealizava-se a figura da mulher como sendo
menos viril. Consequentemente, isso resultaria em uma polícia mais preventiva e menos
repressiva, contribuindo para a realização de tarefas específicas dentro da instituição, tais
como policiamento preventivo e operações ostensivas ligadas a menores, estando envolta em
um discurso de “humanização da polícia”, visto que mulheres, naquele meio social, eram tidas
como figuras de auxílio, proteção, maternidade e moral da época em questão. “A opção da
corporação policial militar foi por reforçar o estereótipo feminino vinculado à essência
biologicamente determinada e que se contrapõe à concepção de virilidade” (MOREIRA,
2016, p. 189).
Cabe ressaltar que a inserção de mulheres na organização da Polícia Militar contava
com uma seletividade de operações que por elas poderiam ser desempenhadas, sendo que
outras operações que precisassem ser realizadas seriam executadas por homens, deixando-se
claro tal fato a partir da Diretriz n. 048\77 (POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO
PARANÁ, 1977 Apud MOREIRA, 2016) que foi instituída posteriormente a inclusão da
presença feminina no batalhão, trazendo o seguinte conteúdo:

Policiamento ostensivo normal visando à guarda à segurança de


estabelecimentos públicos;
Policiamento preventivo de trânsito em estabelecimentos escolares;
Ações de policiamento ostensivo relacionados à mulher, a menores e anciãos
(POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÁ, 1977, Apud
MOREIRA, 2016, p. 54).

Cabe ressaltar que a ideia da mulher inserida dentro da organização Polícia Militar, em
primeiro plano, foi assegurar um ideal de “essência feminina” a qual estava diretamente
ligada a concepção de maternidade, delicadeza, cuidado e proteção, trazendo à tona, assim

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como citado por Moreira (2016), a figura de um “anjo tutelar”, para o qual as questões
consideradas mais leves no âmbito da Segurança Pública seriam destinadas. Levando em
consideração as falas dos responsáveis pelo desenvolvimento do primeiro encontro “Chá das
Rosas” ocorrido no 20º BPM, identifica-se resquícios dessa representação de um “anjo
tutelar” ligado a figura da policial militar feminina.

O movimento instituinte e o trabalho das policiais militares femininas


O campo conhecido como Análise Institucional consiste em um leque de teorias e
conceitos, entre eles as ideias de processos instituídos e instituintes propostos por Baremblitt
(2002). Para este autor, instituinte se caracteriza como sendo um processo mobilizado por
forças, ao mesmo tempo produtivas e desejantes, que tendem a revolucionar e fundar
instituições, ou transformá-las. Através do compartilhamento de suas potências e matérias
sociais acaba por fundar novos instituídos. Esses, por sua vez, são os resultados de ações de
movimentos instituintes os quais produziram cristalização de lógicas que perpassam uma
instituição. Essas lógicas cristalizadas vigoram para ordenar atividades sociais essenciais para
a vida em coletividade, tendo uma tendência a serem estáticas e conservadoras
(BAREMBLITT, 2002). O instituído é necessário para a existência mínima das organizações
e instituições, mas ele se cristaliza de tal modo que não permite ser representado, tendendo a
falar sempre em nome de um processo dominante.
Fazendo uma discussão em relação a esses conceitos propostos, pode-se compreender
a entrada de policiais femininas dentro do contexto da Polícia Militar paranaense como um
movimento instituinte, ou seja, produzindo novas formas de funcionamento na organização e
no funcionamento dos processos institucionais.
A identificação de ocorrências de movimentos instituintes é um convite para se pensar
uma revolução nas instituições, como, e este é o caso, os profissionais atuantes na Polícia
Militar deixaram de ser uma universalidade do sexo masculino para dar lugar a entrada de
mulheres neste mesmo campo, causando uma reestruturação de tarefas e de formas de
funcionamento dessa organização, como, por exemplo, a instauração de um curso de oficiais
mulheres na instituição e a divisão de operações a serem realizadas por policiais homens e
mulheres. Percebe-se também que esse processo instituinte abriu lugar para uma figura antes
inexistente dentro do âmbito dessa instituição: a mulher. Ao mesmo tempo em que produzia
uma demanda de reconfiguração do cotidiano institucional.
Moreira (2016) compreende que o marco da entrada de mulheres como oficiais da
Polícia Militar se deu através do início de um processo de ruptura com o binarismo de gênero.

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Gênero, por sua vez, de acordo com a autora Joan Scott (1995), devendo ser compreendido a
partir de uma organização social entre os sexos, e, a partir dessa organização, dando sentindo
ao funcionamento das relações sociais humanas. A noção de gênero se refere aos domínios
estruturais e ideológicos que implicam nas relações entre os sexos. Tal preocupação, começou
a ocorrer nas décadas finais do século XX, sendo considerado uma categoria de análise a
partir do momento em que integrantes do movimento feminista encontraram aliados (as)
cientistas e políticos. Tomando como bases teórica as discussões do filósofo Michel Foucault,
Scott (1995), compreende que há linhas de pensamento em que dizem respeito a sexualidade
como sendo este um conteúdo produzido através de contextos históricos distintos (SCOTT,
1995).
“O corpo é construído no mundo social como realidade sexuada e como depositário de
princípios de visão e divisão sexualizantes” (MOREIRA, 2016, p. 131). A partir de um ideal
de corpo produzido pelas distinções de funções sociais determinadas, tem-se a noção de que
há a divisão social entre funções consideradas masculinas e femininas, sendo a função do
policial militar uma delas. Há a relação de gênero na inserção da Polícia Feminina no estado
do Paraná a partir do momento em que a mesma é pensada para funções desmilitarizadas, ou
seja, voltada ao cuidado ao outro (MOREIRA, 2016).
Em contrapartida, é necessário abarcar que as lógicas constituintes de processos
instituídos e instituintes se perpassam, havendo uma transversalidade dessas lógicas as quais
se encontram cristalizadas e, ao mesmo tempo, em constante movimento. Visto isso, é
possível fazer um ressalvo que, mesmo que com todas as mudanças inseridas pelo movimento
instituinte proposto pela entrada de mulheres na organização Polícia Militar, também houve a
reprodução de lógicas instituídas dentro desse mesmo contexto, havendo assim uma
contraposição entre instituído e instituinte.
Uma das lógicas que se mantiveram, a partir deste processo, foi a questão do corpo
militarizado estar voltado para a ideia de disciplina. As mulheres inseridas na instituição
militar em questão, assim como os homens, também deveriam cumprir leis que propunham
um padrão de comportamento que dava manutenção há um controle disciplinar estruturado e
estruturador de seu ambiente de trabalho. Entretanto, esses comportamentos eram
diferenciados para, mais uma vez, reafirmarem uma produção de binarismo de gênero onde o
masculino era visto como superior ao feminino.

Excluídas da memória e da tradição institucional, as quais afirmam um ideal


de masculinidade no culto aos heróis, as policiais femininas, assim

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nomeadas para marcar mais uma diferença nas identificações que existem no
espaço institucional, precisam assumir o comportamento feminino definido
pela legislação. Para serem reconhecidas como agentes institucionais
honradas, deveriam assumir publicamente um comportamento qualificado
para uma policial feminina (SCHACTAE, 2015, p. 4).

Vale destacar um fragmento da Diretriz nº 046\77 (POLÍCIA MILITAR DO ESTADO


DO PARANÁ, 1977, apud MOREIRA, 2016), cujas competências dizem respeito
exclusivamente aos comportamentos femininos que estariam sujeitos a punição dentro da
instituição:

a. Comprometer-se irregularmente com encargos de família; b. fazer-se


acompanhar, quando uniformizada, salvo se estiver em missão ou
serviço; c. frequentar, uniformizada, cafés, bares ou estabelecimentos
similares, salvo em missão ou serviço; d. frequentar, quando
uniformizada, cinemas, teatros, casas de diversão e similares, salvo em
missão ou serviço; e. fumar em serviço, estando uniformizada ou não; f.
manter relacionamento ou amizade com pessoas de reputação duvidosa;
g. receber visitas nos postos de serviço ou interior do aquartelamento; h.
usar, quando uniformizada, cabelos compridos, de cor diferente do
natural, com penteados exagerados, perucas, maquilagem excessiva,
unhas longas ou com verniz de cor (POLÍCIA MILITAR DO ESTADO
DO PARANÁ, 1977, apud MOREIRA, 2016 p. 71).

Assim, as mulheres, no contexto da Polícia paranaense deveriam estar ligadas a lógica


disciplinar voltada ao contexto da organização militar, também deixando transparecer que
havia uma diferenciação em relação aos homens, com regras e diretrizes exclusivas para as
policiais, em que elas reproduziam a gestão de seus comportamentos do ser policiais
femininas, evidenciando o entrelaçamento entre os processos instituídos e instituintes na
Polícia Militar.
Tendo em vista essa concepção de instituído e instituinte que vigoram no
funcionamento de instituições, cabe enfatizar que o entrelaçamento desses dois processos
estão contidos na notícia aqui analisada, visto que o evento “Chá das Rosas” se configurou
enquanto um processos instituinte, pois está traçando novas lógicas dentro de um
estabelecimento, dando um lugar de fala para as participantes do encontro que antes era
inexistente. Ao mesmo tempo compõe lógicas instituídas, como por exemplo, a ideia de que
ser mulher e ser policial diz respeito a uma dupla jornada, levando em conta que toda mulher
é dona de casa e mãe, estando ligada ao trabalho no ambiente público e privado, também uma
concepção de que feminilidade está atrelada a delicadeza.

Considerações finais

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Ponderando a concepção de Schactae (2015), evidenciam-se as lógicas


transversalizadas pelos movimentos instituídos e instituintes com inclusão de mulheres na
Polícia Militar do Estado do Paraná

Vale destacar que a Polícia Feminina foi ao mesmo tempo uma inovação —
a instituição deixou de ser exclusividade dos homens — e uma afirmação da
tradição, pois sua existência reafirma o domínio masculino. É a partir da
relação entre a inovação e a tradição que foi instituída a Polícia Militar
Feminina como um lugar de contradição (SCHACTAE, 2015, p. 3).

Apesar de esse movimento ter se construído inicialmente através de um movimento


instituinte, propondo, de certo modo, uma revolução dentro da instituição, algumas lógicas
instituídas ainda se mantiveram como iguais, ou até mesmo maior intensidade dentro desse
movimento. Entre o que se manteve, também há compreensão de uma suposta superioridade
da figura masculina dentro da instituição, alimentada pela categoria social de virilidade,
(Breattie, 2004 apud Schactae, 2015) ressalta que o ideal de uma identidade militar foi
composto em meados do século XX no Brasil, tendo em vista a construção de uma
masculinidade controlada, que, por sua vez, visava a virilidade (BREATTIE, 2004, p. 266-
299 Apud SCHACTAE, 2015). “A Polícia Feminina foi ao mesmo tempo uma inovação — a
instituição deixou de ser exclusividade dos homens — e uma afirmação da tradição, pois sua
existência reafirma o domínio masculino” (SCHACTAE, 2015, p. 3).
A instituição Segurança Pública, a qual enquadra a organização Polícia Militar em seu
entorno, é atravessada por outras instituições que se configuram entre si a todo momento, não
deixando, assim, que as instituições prevaleçam de uma forma estática, estando também
nessas instituições regras instituídas que são compostas por lógicas cristalizadas, que, por sua
vez, são estáticas, havendo assim uma ambivalência de lógicas. Dentre elas, comporta-se a
questão de um binarismo de gênero, o qual produz a concepção de uma visão do masculino
enquanto viril, ligado a coragem e a luta, se sobressaindo ao feminino, que é ligado a uma
fragilidade, maternidade e cuidado, os apontamentos apresentados através da notícia
"Policiais femininas participam de encontro para a valorização da autoestima do seu lado
mulher" (SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO
PENITENCIÁRIA, 2018), reproduzem essa concepção na prática, no que diz respeito ao
entendimento das mulheres inseridas no contexto da Polícia Militar dentro dessa lógica de
feminilidade ligada ao cuidado.
O trabalho em questão teve o intuito de apresentar alguns conceitos ligados ao campo
da psicologia chamado Análise Institucional, tais conceitos formulados por Gregório

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Baremblitt (2002), sustentando a análise do contexto em que os encontros “Chá das Rosas”
começaram a ocorrer no âmbito da Polícia Militar do estado do Paraná, além de concepção
históricas acerca da inserção de mulheres no campo da Polícia Militar do Paraná.
Compreendeu-se que os encontros “Chá das Rosas” foram iniciados através da reprodução de
um discurso masculino dominante, propondo uma divisão de funções de gênero. Nesse
contexto, cabe uma problematização para trabalhos subsequentes sobre como se derem os
encontros posteriores, tanto no 20º BPM, quanto nos demais Batalhões localizados na Polícia
Militar do Paraná.

Referências
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prática, 5ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari, 2002.

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Pesquisas em Psicologia. v. 14 n. 3. Universidade Federal de Goiás – UFG, Goiânia – Goiás:
2014. Disponível em: http://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/13899/10585 . Acesso em: 02 de abril de
2018.

L’ABBATE, Solange. A análise institucional e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva,


2003. p. 265-274. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v8n1/a19v08n1.pdf . Acesso
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MOREIRA, Rosemeri. Entre o mito e modernidade: a entrada de mulheres na Polícia Militar


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MOREIRA, Rosemeri. A invenção da mulher policial militar do Paraná in MOREIRA,


Rosemeri; SCHACTAE, Andréa Mazurok (Orgs.). Gênero e instituições armadas. Editora
Unicentro: Guarapuava -PR, 2016.

GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ Decreto Estadual nº 3238, 19 de abril de 1977.

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÁ. Diretriz nº 046\77. CFAP. Procedimentos


para o Curso de Formação de Sargentos Femininos, de dezembro de 1977.

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÁ. Diretriz nº 048\77. 3º Seção do Estado


Maior, de dezembro de 1977. Emprego da Polícia Feminina.

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Disponível em: http://www.pmpr.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=8397
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acontece na capital. Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária.

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SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA-


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SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São
Paulo: Cortez, 2007.

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O trabalho da mulher em ambientes informais na produção calçadista no espaço urbano


de Birigui/SP

Diego da Luz Rocha1


Angela Zatta2
Nilson Cesar Fraga3

Resumo: Ao longo do processo da industrialização brasileira no início do século XX, O


mesmo venho acompanhado por muitas transformações no campo do trabalho e também na
configuração social do país, isso se deu ao forte investimento no setor industrial do Brasil.
Com a política de substituição das importações por produtos nacionais, o Brasil tinha como
esforço se inserir no mercado de trabalho mundial, procurando ter plantas industriais
brasileiras que viesse competir com os produtos externos. Nesse sentido, inúmero incentivos
foram dados para implantação de indústrias no país e, a cidade de Birigui/SP não deixou de
participar desse cenário econômico, surgindo várias fábricas de calçados em meados do
século XX. Nesse contexto, o presente trabalho buscou analisar as transformações ocorridas
ao longo do processo de industrialização e expansão do setor calçadista biriguiense, bem
como suas interferências no trabalho informal exercido, em muitos casos, por mulheres que
deixam de receber o real valor pelo seu trabalho. Com tudo, para a pesquisa ser realizada, a
presença nesses lugares de trabalho foi indispensável no sentido de observar a realidade de
muitas mulheres biriguienses que estão inseridas no circuito inferior da economia urbana,
constatando uma ampla exploração de mão de obra, como a precarização do trabalho em
ambientes informais. Nesse sentido, a pesquisa buscou compreender as condições de trabalho
das mulheres que pespontam (costuram) o calçado para a grande empresa, que por sua vez,
desvalorizam a mão de obra feminina no processo de produção de calçados em Birigui/SP.

Palavras-chaves: Precarização; Trabalho informal; Birigui/SP.

1
Universidade Estadual de Londrina/Instituto Federal Catarinense Campus Fraiburgo-SC; Professor da rede de
ensino básico; rochageologia@gmail.com.
2
Universidade do Oeste de Santa Catarina; Graduanda em Administração; angela@editoraexito.com.br.
3
Pesquisador do CNPq/PQ; Geógrafo. Universidade Estadual de Londrina; Doutor em Meio Ambiente;
ncfraga@uel.br

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Introdução.

No espaço urbano e as relações que o compõem vão de encontro com a divisão social
do trabalho, isso quando pretende-se referir alguns setores da produção econômica e suas
implicações na sociedade. Mediante tais condições econômica que cada localidade tem,
surgem atividades para suprir necessidades do mercado em escala local e
nacional/internacional, tendo como objetivo, o baixo custo produtivo com maior
lucratividade. Nesse sentido, a produções irá refletir não somente no âmbito econômico,
estendendo as consequências para as relações sociais em geral.
Nessa ocasião, trata-se de uma sociedade que utiliza de meios técnicos para
transformar o natural em mercadorias, mantendo um ciclo das atividades que movem a
economia local e global. A lógica do sistema econômico, consiste, basicamente na produção e
comercialização, isso, para perpetuar um ciclo de atividades lucrativas e, ao mesmo tempo, o
consumo, transporte, moradia, tudo que envolva a participação do ser humano enquanto
elemento dentro de uma lógica mercantilista.
Mas, para que todo esse processo produção/produto seja concretizado, é preciso
quantidade significativa de pessoas inseridas em diversas tipos de funções, com salários e
ambientes diferentes e, espacialmente distribuídas pelo território. Logo, pode-se afirmar uma
divisão do trabalho, que culminará em realidades antagônicas do proletário com a dos
proprietários dos meios de produção. Santos (2008) vai pontuar esse cenário enquanto
conjunto de fatores no espaço urbano, sendo que:
A existência de uma massa de pessoas com salários muitos baixos ou
vivendo de atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito
elevadas, cria na sociedade urbana uma divisão entre aqueles que podem ter
acesso de maneira permanente aos bens e serviços oferecidos e aqueles que,
tendo as mesmas necessidades, não têm condições de satisfazê-las. Isso cria
ao mesmo tempo diferenças quantitativas e qualitativas no consumo. Essas
diferenças são a causa e o efeito da existência, ou seja, da criação ou da
manutenção, nessas cidades, de dois circuitos de produção, distribuição e
consumo dos bens e serviços (SANTOS, 2008, p. 37).

O espaço urbano tem características econômicas, que traz à tona a


desproporcionalidade de consumo, acesso aos meios de produção de alta tecnologia e dos
resultados, ou seja, o produto final. Santos (2008) ainda observa, mediante a essas condições,
dois tipos de circuitos na economia urbana, onde um depende do outro, ou seja, a coexistência
é necessária no modo do sistema produtivo, onde:
Um dos dois circuitos é o resultado direto da modernização tecnológica.
Consiste nas atividades criadas em função dos progressos tecnológicos e das

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pessoas que se beneficiam deles. O outro é igualmente um resultado da


mesma modernização, mas um resultado indireto, que se dirige aos
indivíduos que só se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam dos
progressos técnicos recentes e das atividades a eles ligadas (SANTOS, 2008,
p. 38).

Percebe-se uma exclusão de determinada classe social em ter acesso às mercadorias,


isso devido pelas condições econômicas que o próprio meio impõe sobre uma parcela social.
A partir do momento que o trabalho tem grande peso na determinação das relações
sociais, inicia-se, concomitantemente a transformação do espaço, pelos interesses distantes
que Santos (2008) aborda que:
Os espaços dos países subdesenvolvidos caracterizam-se primeiramente pelo
fato de se organizarem e reorganizarem-se em função de interesses distantes
e mais frequentemente em escala mundial. Mas não são atingidos de um
modo maciço pelas forças de transformação, cujo impacto, ao contrário, é
muito localizado e encontra uma inércia considerável à sua difusão
(SANTOS, 2008, p. 20).

É interessante observar nas palavras de Santos (2008), quando trata sobre os impactos
de transformação, afirmando que são poucos os países atingidos por interesses distantes, mas,
a partir do momento que determinado setor da economia participa do mercado global,
qualquer tipo de oscilação tratará efeitos para sociedade local, obviamente que, dependendo o
nível de atuação que o setor tem nos países subdesenvolvidos, que o caso do município de
Birigui/SP, exportador de calçados para vários países, participando maciçamente do mercado
global.

Desenvolvimento
Para melhor compreender os dois circuitos na economia urbana, Santos (2008) cita
algumas características essenciais para diferenciá-los como também para apontar qual camada
social beneficia mais de um e de outro, no qual:
O circuito superior utiliza uma tecnologia importada de alto nível, uma
tecnologia “capital intensivo”, enquanto no circuito inferior a tecnologia é
“trabalho intensivo” e frequentemente local ou localmente adaptada ou
recria. O primeiro é imitativo, enquanto o segundo dispõe de um potencial
de criação considerável. As atividades do circuito superior dispõem do
crédito bancário. Acontece frequentemente de as grandes firmas criarem e
controlarem os bancos, o que é uma maneira de também controlar outras
atividades e eventualmente absorvê-las (SANTOS, 2008, p. 41).

É interessante observar uma das características que ambos os circuitos têm, enquanto o
superior utiliza capital intensivo, possibilitando melhores condições desde os meios de
produção como mão de obra qualificada, necessitando de poucas pessoas envolvidas no

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processo produtivo. Contudo, no circuito inferior a operacionalização das atividades, baseiam-


se no uso intensivo de força braçal, maior número de pessoas envolvidas em locais, como
disse Santos (2008), adaptados. A exigência neste circuito é maior para permanecerem em
atividade e garantir trabalho e salário, tendo como fator a contribuir a recriação de produtos.
Observando os meios e as condições econômicas e sociais de trabalho, pode-se
discorrer de um discurso que divide socialmente em classes as pessoas dentro do sistema
produtivo onde, economicamente quem teve melhor preparo, logo, ocupam funções no
circuito superior. Ao contrário disso, Santos (2008) diz que:
O emprego, no circuito inferior, raramente é permanente, e sua remuneração
situa-se com frequência no limite ou abaixo do mínimo vital [...]. Esse
circuito é o verdadeiro fornecedor de ocupação para população pobre da
cidade e os migrantes sem qualificação. (SANTOS, 2008, p. 45).

Existem inúmeros condicionantes favoráveis à permanência do trabalhador no circuito


inferior, além da forte mobilidade de emprego o conjunto de fatores como: salário,
insegurança e direitos trabalhista não estão presentes na realidade de pessoas que buscam
estarem inseridas neste circuito. Percebe-se que, nessas condições de trabalho, desenvolve
algumas funções que o meio econômico propicia, ou seja, absorve a mão de obra excedente,
podendo ser qualificada ou não e, ao mesmo tempo, obriga o(a) trabalhador(a) vender sua
força de trabalho por preços baixos.
É nesse sentido que as mulheres que trabalham nos espaços informais na produção de
calçado de Birigui/SP entram em cena, pois as condições que as mesmas são inseridas, na
grande maioria, é um ambiente precário, sem direito trabalhista nenhum.
São destinadas para essas mulheres, a produção de parte do produto, ou seja, pespontar
o calçado em suas casas, nesse caso, na parte de trás da casa, justamente para não serem vistas
e por ser um trabalho que deixa de atender as exigências dos órgãos público, sobretudo das
condições de funcionamento do local. Cisne (2012) vai abordar muito bem a situação de
trabalho precarizado nesse contexto, quando diz que:
A divisão sexual do trabalho resulta de um sistema patriarcal capitalista que
por meio da divisão sexual do trabalho confere às mulheres um baixo
prestígio social e as submete aos trabalhos mais precarizados e
desvalorizados (CISNE, 2012, p. 111).

Parte do produção calçadista de Birigui/SP é realizada na grande empresa, por


exemplo o corte, logo após, o destino acaba sendo para os espaços informais, tanto o pesponto
e, em alguns casos, montagem do calçado, voltando depois para a grande empresa para ser
finalizado e vendido. Santos (2008) aborda a questão de lucro marginal as empresas ao
adotarem esse processo de produção, em Birigui, esses espaços, que por sua vez, são

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precários, sem estruturas suficientes para funcionamento de maquinários, acabam sendo


lugares que são ocupadas por mulheres, que trabalham mais de dez horas diárias para
conseguir um salário que dê o mínimo de condições para a família sobreviver, visto que o
valor por par de calçado costurado varia de R$ 0,50 a R$ 0,70 centavos, que segundo Cisne
(2012):
É necessário perceber que a feminização do trabalho, explicita numa análise
crítica da divisão sexual do trabalho, implica em determinações relevantes
para a produção e para a reprodução do capital, que, para tanto, desenvolve
uma superexploração sobre o trabalho e sobre as atividades desenvolvidas
por mulheres, tanto na esfera pública quanto na privada. Na esfera privada,
pela utilização/responsabilização da mulher pela garantia da reprodução
social, o que possibilita a produção social ser realizada com um custo menor;
na esfera pública pela desvalorização, subordinação, exploração
intensificada (por exemplo, baixos salários) e desprestígios presentes no
mundo produtivo (CISNE, 2012, p. 112).

Esses espaços informais, conhecido como banca de calçados, absorve a mão de obra
que não conseguiu ser inserida na grande empresa, forçando o aparecimento de bancas ao
longo de vários bairros da cidade, ou seja, o próprio sistema produtivo dá condições para a
permanência desses espaços, garantindo o lucro marginal das empresas. Ainda Santos (2008),
sobre o circuito inferior, pontua:
A extrema divisão do trabalho no circuito inferior constitui, em si mesma,
um elemento multiplicador. Antes de mais nada, ela estimula a utilização
produtiva do capital. A frequência das trocas aumenta a rapidez das
transações e, por isso mesmo, multiplica a formação dos lucros, qualquer
que seja seu volume. De outro lado, a multiplicidade dos atos de comércio
age como um acelerador da circulação da moeda. O fracionamento e a
descontinuidade das atividades do circuito inferior criam uma multiplicidade
de serviços de contato e de articulações, assim como toda uma cadeia de
outras atividades. O próprio terciário o setor moderno frequentemente cria
seu próprio círculo de serviços de nível inferior (SANTOS, 2008, p. 252-
253).

Em Birigui/SP, as grandes indústrias faz com que perpetuem o circuito econômico


inferior da produção calçadista, quando parte da produção são destinadas para as bancas de
calçados, deixando claro o interesse de baratear parte do processo produtivo ao não contratar
na grande empresa e, depois, destinando parte do produto para mulheres em suas casa, claro,
com preço bem menor, forçando elas a terem dupla jornada de trabalho e muito mais horas
trabalhadas do que se estivem na grande empresa. Neves (2000), destaca que:
De fato, a utilização da mão de obra feminina no processo de flexibilização e
modernização produtiva ocorre por meio de jornadas parciais, contratos por
meio tempos determinados, trabalhos em domicílios, utilizando-se, uma vez
mais, da qualificação informal adquirida pelas mulheres no trabalho
doméstico, mas sem nenhuma forma real de valorização do trabalho
feminino. Pelo contrário, elas estão submetidas a condições de trabalho

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precárias e inseguras, marcadas por baixos salários, pela realização de várias


tarefas simultâneas e flexíveis, ocasionando intensificação do ritmo do
trabalho e perda de direitos legais. Com a reestruturação produtiva,
permanecem a discriminação e a exclusão das mulheres no novo modelo de
organização produtiva, trazendo várias consequências de sofrimentos não
apenas físicos como também psíquicos para as trabalhadoras (NEVES, 2000,
p. 182).

Nesse sentido, ao destinar parte da produção à espaços informais (bancas), a grande


empresa flexibiliza essa mão de obra pensando nas oscilações do mercado, que, segundo
Santos (2008):
O circuito moderno tende mais a criar a conjuntura do que a adaptar se a ela.
Ele o faz com diversas possibilidades de sucesso, pois sempre há uma
margem de distorção entre as decisões das grandes firmas e o
comportamento do mercado. Ao contrário, o circuito inferior só pode
funcionar através de uma adaptação estreita às condições conjunturais. Nisso
ele é favorecido pela divisibilidade e a mobilidade tanto da mão de obra
como do capital, que permitem aos empresários seguir com mais
flexibilidade as variações quantitativas e qualitativas da demanda e, assim,
melhorar os rendimentos marginais da empresa (SANTOS, 2008, p. 253).

Esse melhor rendimento que Santos (2008) aborda, é possível apenas pelo
rebaixamento da mão de obra feminina no setor calçadista de Birigui/SP, pois, a partir do
momento que recebem pouco, exige que elas trabalhem muito mais horas para ganhar um
salário digno para sobreviver. Outro ponto importante a ser abordado são os direitos
trabalhistas que elas deixam de ter trabalhando nesses espaços informais, pois, qualquer
acidente de trabalho ou por outro fator não poder trabalhar, elas não tem como continuar
recebendo, como também, não tem décimo terceiro, férias, carteiras assinada e, se não
contribuir, deixam de ter o direito de aposentadoria. (MACHADO DA SILVA, 1993).
Segundo Araújo e Amorim (2001), as condições no mundo de trabalho, sobretudo para
quem está inserido no circuito inferior, acaba tendo uma realidade bastante cruel, pois o
sistema capitalista de produção não quer saber as condições das trabalhadas de fundo de
quintal em Birigui/SP, e sim, do barateamento da produção e do ganho marginal das
empresas, que, segundo o mesmo:
Emprega na maioria dos casos como expediente de redução de custos, a
terceirização tem imposto aos trabalhadores relações de empregos instáveis,
redução de salários e benefícios e condições de trabalho degradadas, que tem
como consequência o aumento dos acidentes de trabalho e das doenças
profissionais. Além disso, ela tem levado ao desalojamento de uma parcela
dos/as trabalhadores/as para a economia informal, submetendo-os/as a
condições precárias de trabalho e excluindo-os/as dos benefícios assegurados
por lei e da representação sindical (ARAÚJO E AMORIM, 2001, p. 275).

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Percebe-se que, as mulheres que trabalham costurando calçados, deixam de ter uma
série de benefícios assegurados por lei e conquistados ao longo de muitos anos mediante a
luta de classe, que, aos poucos vem perdendo representatividade ao posso que políticas
deixam de priorizar o(a) trabalhador(a) e passam a atender mais o capitalista e suas formas de
lucrar mediante a perda de direitos, no caso, das mulheres do setor calçadista de Birigui, que,
acabam sendo invisibilizadas em seus domicílios através do trabalho mal remunerado.
Na imagem 1, pode-se ter uma noção do ambiente de trabalho de muitas mulheres que
estão inseridas no setor do pesponto (costura) do calçado.
Imagem 1: Mulher pespontando em sua residência em Birigui/SP

Fonte: Diego da Luz Rocha, 2015.

Ao observar a imagem é possível reparar uma série de irregularidade, pois, ao utilizar


produtos químicos, como é o caso da cola, é necessário várias adaptações no ambiente de
trabalho, como por exemplo: máscaras protetoras (devido ao cheiro muito forte), protetor
auricular (devido ao ruído que a máquina faz), são medidas que deveriam ser tomadas e
fiscalizadas para a segurança da trabalhadora, e, ao mesmo tempo, isso vem mostrar a
precarização do ambiente de trabalho, revelando também, as condições de muitas mulheres
que estão inseridas no circuito inferior da economia urbana na cidade de Birigui/SP.
Cisne (2012) vai tratar bem da questão sobre o que o trabalho informal causa na vida
das trabalhadoras do setor calçadista de Birigui/SP, ao abordar que:
A flexibilização se expressa na crescente informalidade, na precarização dos
direitos trabalhistas, que hoje configuram as novas expressões da "questão
social". Essa flexibilização é também facilitada pela subordinação que
historicamente foi imputada às mulheres no mercado de trabalho devido à
forma desprestigiada com que suas atividades são vistas ou até mesmo não
percebidas como trabalho, justificando os baixos salários, o desprestígios e a
falta de necessidade de proteção trabalhista. Dessa forma, há uma

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configuração de vários tipos de exploração no trabalho das mulheres


(CISNE, 2012, p. 125).

Lins (2000) afirma que a parte da costura do calçado é de extrema importância no


processo de montagem, pois constitui um trabalho utiliza uma máquina e manual, no sentido
de direcionar quais as partes a serem costuradas, nesse sentido, acaba sendo um serviço de
baixo custo e de péssima remuneração, possibilitando destinar esta parte da produção de
calçados para os domicílios.
Portanto, um circuito depende do outro, mas cada qual com suas atividades
delimitadas para assegurar o funcionamento do sistema econômico em escala local como
nacional e internacional.
Mas, quando remete-se no sistema produtivo e as estruturas/organizações que dão
condições para produção de mercadorias os meios de comunicação e transporte, como
também a relação homem/meio, logo as técnicas, fixos, fluxos são instrumentos que oferecem
meios para formação do espaço geográfico. Segundo Pierre George (1974):
A influência da técnica sobre o espaço se exerce de duas maneiras em duas
escalas diferentes: a ocupação do solo pelas infraestruturas das técnicas
modernas (fábricas, minas, carreiras, espaços reservados à circulação) e, de
outro lado, as transformações generalizadas impostas pelo uso da máquina e
pela execução dos novos métodos de produção e de existência (PIERRE
GEORGE, 1974, P. 13).

Para (SANTOS, 1978, p. 128) “o espaço não é nem a soma nem a síntese das
percepções individuais. Sendo um produto, isto é, um resultado da produção, o espaço é um
objeto social o que conhecemos como espaço geográfico”. É notável que ambos autores
trabalham como construção do espaço o resultado da produção, mas que antes disso há os
meios que conduzem o surgimento de fixos, de objetos e ações, sendo assim, Santos (1978)
conclui que o espaço é objeto social com infraestrutura que resulta nas relações sociais.
Dentro dessa temática, (SANTOS, 2008, p. 64) afirma que: “as coisas seriam um dom
da natureza e os objetos um resultado do trabalho”. Entretanto, os dois circuitos econômicos
que norteiam as ações e os resultados do trabalho exercido, logo, conclui que as técnicas são
instrumentos que atuam para o resultado final: os objetos, onde neles estão inseridos a força
de trabalho, tempo, tecnologia e infraestrutura, indo de encontro do que Pierre George (1974)
escreveu quando diz sobre a influência das técnicas no sentido de transformações no âmbito
natural e social atrás do uso das máquinas.
Nesse sentido, pensar na produção calçadista do espaço geográfico e nos processos de
como chegou a fase atual são necessários para entender as relações sociais, sobretudo o que
dá forma e condições para determinar arranjo espacial com suas funcionalidades. Se o espaço

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geográfico é formado por objetos, ações, fixos, fluxos e a interrelação dos mesmos, incluindo
a participação do homem como elemento de transformação da natureza, entende-se que outros
fatores da ordem política e econômica fazem parte dessa configuração espacial, resultando nas
características dos dois circuitos, sendo eles o superior e o inferior como dois fatores dentro
de um sistema maior e que, de certa forma, perpetua as condições precárias das trabalhadoras
do setor calçadista de Birigui/SP. Santos (2012), vai abordar a configuração do espaço
geográfico na tentativa de permanecer a influência do capitalismo sobre o mundo do trabalho,
reafirmando a existência/permanência da divisão social do trabalho, sendo que:
As condições atuais do crescimento capitalista criaram uma forma particular
de organização do espaço, indispensável à reprodução das relações
econômicas, sociais e políticas. A forma como atualmente se distribuem as
infraestruturas, os instrumentos de produção, os homens – enfim, as forças
produtivas – possui até certo ponto um caráter de permanência, isto é, de
reprodução ampliada, isso amparado, exatamente, na longevidade de um
grande número de investimentos fixos. Tudo, pois, conspira para que a
organização do espaço se perpetue com as mesmas características,
favorecendo o crescimento capitalista e suas distorções (SANTOS, 2012, p.
73).

Nesse sentido é importante abordar o que Cavalcanti (2001) trata sobre a produção do
espaço urbano capitalista:
A produção do espaço urbano capitalista tem uma lógica na necessidade de
aglomeração que tem o capital, mas também na necessidade de ocultar
contradições sociais. Isso fez com que essa produção resultasse em
diferentes lugares, lugares de diferentes classes e diferentes grupos, lugares
contraditórios (CAVALCANTI, 2001, p.17).

É interessante a contribuição de Cavalcanti (2001) quando trata da questão que o


sistema oculta as contradições que ele mesmo gera na produção do espaço urbano, sobretudo
na participação das mulheres na produção de calçados, deixando claro a diferenciação de
classes sociais como a reprodução dessas contradições no espaço urbano capitalista.

Esse esforço de ocultar as contradições no espaço urbano faz parte de um sistema


maior para atuar na desvalorização, não somente salarial, mas também emocional, como
afirma Cisne (2012):

A não valorização do trabalho faz com que muitas mulheres não se


percebam como trabalhadoras, não construindo, portanto, a identidade com a
sua classe. Isso faz com que algumas mulheres se acomodem, não se
organizem e nem participem politicamente das lutas da classe trabalhadora.
Deixam também de assumir cargos em associações, sindicatos ou na direção
de movimentos sociais, o que contribui diretamente com o capital, pois
significa menos pessoas em confronto com este sistema (CISNE, 2012, p.
114).

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Considerações finais

É indiscutível que a economia brasileira está globalizada, participando do mercado


global com os produtos produzidos no país, alcançando boa parte do mundo nesse sistema
capitalista que, com a evolução das técnicas, possibilitou o aumento produtivo e seu
deslocamento.
Atender a demanda global por produtos em muitas esferas de consumo, faz necessário
abordar as diversas maneiras que tal mercadoria chegou ao seu destino, partindo de como ele
foi produzido, ou melhor, de como ele foi pensado em sua produção para reduzir custos e ter
mais lucros.
Trazendo essa produção para uma escala mais local, no caso das bancas de calçados de
Birigui/SP, é possível averiguar a existência de muitos fatores que norteiam a permanência
das mulheres nos espaços informais da produção calçadista, incluindo as políticas trabalhistas
que buscam manter cada indivíduo na sua classe social. Neste caso específico, o sistema
capitalista de produção ao dividir o espaço urbano em dois circuitos da economia, fica
perceptível o esforço de, segundo Santos (2008) obter lucros marginais, que, no caso de
Birigui/SP, através das bancas de calçados no fundo de quintal, fazendo com que muitas
mulheres se sujeitem às péssimas condições de trabalho impostas por um sistema econômico
globalizado e que, paralelamente, é amparado por políticas que precarizam o mundo do
trabalho, sobretudo para as mulheres que têm dupla jornada de trabalho com salários
desvalorizados.
Nesse sentido, a luta por mudanças no mundo do trabalho, sobretudo, no que se remete
na conquista da valorização do trabalho feminino é, sem dúvida, uma luta de classe, de união
contra as amarras do capital produtivo, que, por muitas vezes, precariza e desvaloriza o
trabalho das mulheres pespontadeiras de Birigui/SP.

Referências

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subcontratação e trabalho a domicílio na indústria de confecção: um estudo na região de
Campinas. Cad. Pagu [online]. 2001.

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espaço urbano de Goiânia. Goiânia: Editora Alternativa, 2001.p.11-32.

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GEORGE, Pierre. A técnica:construção e desconstrução. Paris: PUF, 1974.

LINS, Hoyêdo Nunes. Têxteis Catarinenses anos 90. Atualidade Econômica. Universidade
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MACHADO da SILVA, L. Trabalho informal: teoria, realidade e atualidade. In: Tempo e


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NEVES, Magda de Almeida. Reestruturação produtiva, qualificação e relações de gênero, in:


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Campinas: ABEP, NEPO/Unicamp e Cedeplar /UFMG/ São Paulo: Ed. 34, 2000.

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Adoecimento mental de docentes: o custo psíquico da feminização


do trabalho no magistério da educação básica no Brasil

Marcia Neves1
Samia Moda Cirino2

Resumo: Este artigo objetiva verificar as interações entre gênero, magistério e adoecimento
mental. De modo específico, o artigo objetiva expor por meio da análise histórica e de
indicadores sociais a feminização do trabalho no magistério da educação básica no Brasil e
desvelar a divisão sexual do trabalho que sustenta a hierarquização e precarização nessa
atividade ocupacional. Ainda, analisa-se de que modo a opressão e exploração das mulheres
nas suas atividades produtivas e reprodutivas, especialmente ocupações laborais feminilizadas
como o magistério na educação básica, indicam maiores fatores de risco para o adoecimento
mental. Trata-se de pesquisa que se utilizou de instrumentos qualitativos, exploratórios e
bibliográficos. A abordagem das interações das categorias de análise requer uma perspectiva
feminista, uma vez que essa teoria assume uma postura crítica acerca das relações de gênero.
Sob esse prisma, o gênero é adotado como categoria de descrição e análise das interações
sociais, as quais estão fundamentadas na diferença sexual que, por sua vez, é significada pelas
relações de poder no nosso contexto sócio-histórico dando ensejo à divisão sexual do
trabalho. O conjunto das análises permite afirmar que a predominância de mulheres no
magistério da educação básica acaba por representar uma extensão do papel tradicional de
gênero vinculado às mulheres profissionais de educação.

Palavras-chaves: divisão sexual do trabalho; magistério; saúde mental.

Introdução

A análise dos relatórios que cuidam da questão de gênero no trabalho evidencia que
as mulheres são o maior contingente de trabalhadores em empregos instáveis e mal
remunerados, principalmente por estarem concentradas em atividades socialmente menos
valorizadas, consideradas tipicamente femininas, associada a tarefas de cuidado e de
reprodução, como as áreas de educação e da saúde. Especificamente quanto ao trabalho no
magistério, o relatório elaborado a partir dos dados do Censo da educação básica de 20073

1
Graduanda no curso de Direito da Faculdades Londrina; Graduada em Pedagogia (UNIFIL) e Especialista em
Educação (UNOPAR); Professora/Coordenadora na Rede Municipal de Ensino; marcia.nb@hotmail.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Professora pesquisadora do Grupo
Liberdades em Disputa (UEL) e Professora do curso de Graduação em Direito da Faculdades Londrina;
samoci26@gmail.com
3
Relatório disponível em <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/estudoprofessor.pdf>. Acesso em 20 de maio
de 2018.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p433 433


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evidencia que nas creches, na pré-escola e nos anos iniciais do ensino fundamental o maior
contingente de docentes é predominantemente feminino (98%, 96% e 91%, respectivamente).
A análise dos dados empíricos em conjunto ao entendimento da historicidade da
inserção das mulheres em profissões ligadas a funções consideradas femininas e socialmente
desvalorizadas permite desvelar como as estruturas de poder, ao significar as relações sociais
a partir do sexo e do gênero, reificam a divisão sexual do trabalho, a exemplo do trabalho no
magistério da educação básica. Essa estrutura assentada na divisão sexual do trabalho aponta
para os desafios impostos pela articulação entre o sexo e o gênero na atividade docente e
indica diferentes significados das identidades docentes e das relações escolares, geralmente,
associando-se à imagem de mãe, de cuidadora e do trabalho como expressão do amor
maternal.
Nesses termos, o presente trabalho analisa o processo de inserção massiva de
mulheres no magistério da educação básica no Brasil a fim de averiguar o contexto sócio-
histórico que culminou na feminização e precarização da docência. Essa análise, ainda,
permite expor que esse processo decorreu de uma estratégia articulada para atender a
demanda da educação pública a um custo baixo e, ao mesmo tempo, garantir a reprodução dos
padrões sociais androcêntricos relativos ao papel da mulher na sociedade.
A fim de averiguar a real extensão desse processo, a análise perquire acerca das
consequências dessa lógica androcêntrica na saúde de docentes, especificamente a saúde
mental. Objetiva-se estabelecer uma relação entre a feminização da atividade docente no
ensino básico, fundamentada na divisão sexual do trabalho, e o sofrimento patológico do real
do trabalho.
Dessa forma, mais que denunciar a feminização de atividades como ocorre no
magistério da educação básica, é necessário abordar a lógica que sustenta essa divisão e
hierarquização, bem como avançar as análises para perquirir acerca de suas consequências na
saúde mental de docentes. Considera-se que fatores importantes na exigência da atuação nessa
profissão, muitas vezes acompanhados por restrições das políticas educacionais - com efeitos
diretos nas atividades de professores, no modo de execução de suas atividades - possuem
efeitos nefastos sobre a saúde de docentes, causando o adoecimento mental. Nesses termos,
desvela-se como essa estrutura feminizada e precária no magistério da educação básica
contribui para o sofrimento patológico expresso no grande contingente de docentes afastadas
de suas ocupações em decorrência do adoecimento mental.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p433 434


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1 O processo histórico de feminização e precarização no magistério da educação básica

A feminização do magistério é um fenômeno que tem se manifestado na maioria dos


países ocidentais desde a segunda metade do século XIX. No ensino desenvolvido sob a
responsabilidade do Estado, no Brasil, Vianna (2001, p. 84) destaca que a docência feminina é
estabelecida no final do século XIX relacionada, especialmente, com a expansão do ensino
público primário.
De fato, com o desenvolvimento do capitalismo industrial Chamon (2006, p. 2)
ressalta que é instituída a educação sob a tutela do Estado para a classe operária, visando a
atender as novas exigências do mundo industrializado e à sua ideologia. Contudo, a
polarização do processo educacional que se estabeleceu a partir de então é nitida, conforme
descreve a aludida autora (CHAMON, 2006, p. 10): "aos privilegiados, uma formação mais
geral e científica, visando o fortalecimento intelectual de uma elite projetada para a direção
dos destinos da nação; ao povo, uma formação elementar disciplinadora, direcionada para o
trabalho assalariado".
O processo de institucionalização da profissão docente intensifica-se no Brasil a
partir das décadas de 1930 e 1940 com o surgimento das primeiras escolas normais. Portanto,
a Escola Normal assumiu a função de preparar profissionais para atuarem na rede de escolas
primárias públicas, uma vez que no Brasil, em decorrência de suas condições históricas e
culturais, não havia um contingente feminino escolarizado o suficiente para atender a
demanda crescente da educação prestada pelo Estado. Com isso, confirmou-se o entendimento
culturalmente enraizado da existência de uma vocação natural da mulher para o magistério, o
que aumentou e legitimou como profissão adequada para o seu gênero, uma vez que havia
certa repetição do que lhes era imputado em suas casas.
Essa idealização da atividade docente fundamentada na vocação natural da mulher é
bem retratada por Chamon (2006, p.22):
A personificação do ideal da professora da escola elementar foi se cristalizando ao
longo de anos no imaginário social como um profissional da virtude, do amor, da
dedicação e da vocação. A mistificação da ação educativa é uma das características
mais fortes do ideário da professora. A dignidade do ofício, a nobreza de sua
missão, a exaltação do zelo só comparável às causas religiosas e patrióticas, ainda
hoje, materializam a ética do ideal de professora. Esta idealização, no entanto, não
é um fenômeno singular da sociedade brasileira, mas algo que passou a integrar o
imaginário social em diferentes contextos culturais, a partir de determinados
momentos históricos. Este fato nos leva a supor que tal idealização não se deu de
forma gratuita, mas que foi construída historicamente para cumprir funções
políticas.

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Nesses termos, a profissionalização da mulher no magistério público deu-se em meio


ao entendimento de que a educação escolar era uma extensão da educação dada em casa.
Logo, a função de mãe na família era estendida à escola pela pessoa da professora.
A idealização profissional da professora do ensino básico, como uma profissional
vocacionada para a missão de ensinar não foi ainda abandonada. A figura da mulher atuante
na escola, mãe que redime e encaminha para uma vida de utilidade e sucesso, ainda persiste.
A visão da mulher que também é a mãe e professora como iluminadora do saber e da moral e
esperançosa de uma escola que se diz transformadora, não tem grandes inovações no aspecto
do gênero.
Assim, a docência passou a adquirir um caráter eminentemente feminino, tornando-
se uma profissão expressivamente de mulheres. Exercer a função de professora exigia
abnegação e dedicação, inclusive, secundarizando a importância do pagamento pelo seu
trabalho. Os baixos salários pagos às mulheres no trabalho de docente decorrem do fato de
serem considerados uma espécie de renda complementar e não principal da família. Soma-se a
isso o fato de que o magistério público passava, cada vez mais, a ser uma profissão que
atendia à população de baixa renda, desvalorizada socialmente.
A análise do contexto histórico de institucionalização da atividade docente do Brasil
evidencia a desvalorização social da profissão decorrente da feminização e baixa
remuneração. Conforme descrevem Dametto e Esquinsani (2015, p. 150):
Esta lógica é alimentada por um ascendente, histórico e palpável processo de
desvalorização do magistério e do trabalho docente, sentido simbolicamente nas
representações da docência e concretamente pela média de remuneração ofertada
para professores. Para explicar tal desvalorização, há uma recorrência ao processo
de ‘feminização’ do magistério.

Além disso, essa análise auxilia a compreender a insatisfação profissional traduzida


numa indisposição constante face aos colegas, aos alunos e à escola, discurso de
desculpabilização e ausência de uma reflexão crítica sobre sua ação profissional. Essa
desvalorização também é acompanhada por um discurso de desconfiança em relação às
competências e à qualidade do trabalho de professores.
Nesse cenário, a falta de condições da materialidade docente parece ser motivo de
orgulho. Em outras palavras, ressaltam Dametto e Esquinsani (2015, p. 153), é como se não
fossem necessários salários dignos, condições físicas adequadas, instrumentos ou recursos
técnicos. Ainda, complementam os autores, não há uma preocupação efetiva com as
dificuldades da atividade laboral da professora, sob o discurso de que enfrenta a rudeza de seu
cotidiano por vocação, dando uma ideia equivocada de que todas as demais docentes que não

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sacrificarem sua vida pessoal, que não se submeterem a uma sofrível experiência de cabeça
erguida estão equivocadas e, de certo modo, não honram a profissão.
Além da apontada feminização, a atividade docente vive uma tendência de
precarização, conforme ressalta Nóvoa (1995, p. 15), ao descrever alguns paradoxos dessa
profissão. O primeiro paradoxo é o excesso das missões da escola, o excesso de exigência da
sociedade e a falta de prestígio da profissão. O segundo paradoxo refere-se à proposta de
professores reflexivos e, ao mesmo tempo, a inexistência de condições de trabalho concretas,
isto é, condições de tempo, a matéria-prima e o desenvolvimento profissional que possam, de
fato, alimentar a idéia de professores reflexivos. O último paradoxo refere-se ao fato de que as
escolas continuam a ser vistas como um agrupamento de salas de aula e como um lugar onde
se presta um serviço a alguém, ao invés de um lugar onde se institui a sociedade, a cultura,
onde nos instituímos como pessoas.
Todas essas questões reforçam o lado perverso que as questões de gênero
estabelecem sobre o trabalho docente, pois, de um lado, esclarecem Dametto e Esquinsani
(2015, p. 154), reforçam a primazia feminina na atividade da docência e, de outro lado,
indicam uma face ainda mais contundente: "a mulher está, dada sua condição física e sua
posição social, no seu cotidiano pessoal e na escola, mais vulnerável à violência, sendo alvo
preferencial das agressões".
O momento exige ressignificar teorias e práticas à luz das relações de gênero e de
suas articulações com o processo educativo, buscando questionar os valores, os
conhecimentos e os códigos dominantes. Assim, é necessário desnaturalizar o discurso
relativamente consensual acerca da docência feminina e da compreensão distorcida da tarefa
profissional da professora. Essa análise requer a compreensão da divisão sexual do trabalho
para efetiva reflexão sobre os aspectos contraditórios geradores de tal processo, consoante
será exposto na próxima seção.

2 Divisão sexual do trabalho no magistério

A divisão sexual do trabalho dá sustentação não apenas à separação fundamental


entre trabalho produtivo pago e trabalho doméstico e reprodutivo não pago, mas, igualmente,
estrutura a divisão no âmbito do trabalho pago entre atividades essencialmente femininas,
socialmente menos valorizadas, e as atividades masculinas, com maior reconhecimento e
remuneração. Essa é a lógica que se verifica na feminização do trabalho no magistério do
ensino básico no Brasil, pois se considera que a predominância de mulheres nessa ocupação

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acaba por representar uma extensão do papel tradicional de gênero vinculado às mulheres, ou
seja, a função materna.
Importante esclarecer que no presente trabalho gênero é empregado sob uma
perspectiva social, histórica e cultural não restrita, portanto, apenas ao aspecto da diferença
sexual, conferindo-se ênfase às significações atribuídas às relações de gênero em
determinados contextos sócio-históricos pelas estruturas de poder.
A feminização e a precarização da atividade docente que se busca evidenciar neste
trabalho não é um processo natural com gênese simplesmente no processo histórico. Decorre
da lógica das relações de poder - que engendram os parâmetros sociais, econômicos e
políticos de acordo com uma racionalidade androcêntrica - constitutiva dos próprios sujeitos,
representada pela divisão sexual do trabalho no aspecto específico das ocupações.
Diante disso, em uma perspectiva feminista, conforme definição elaborada por
Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007, p. 599):
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das
relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a
sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e
socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera
produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação
pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos,
militares etc.).
Nos termos da teoria proposta pelas autoras, (KERGOAT; HIRATA, 2007, p. 599),
são dois os princípios basilares da divisão sexual do trabalho: o princípio da separação,
segundo o qual existem trabalhos específicos destinados ao sexo masculino e outros ao sexo
feminino; e o princípio da hierarquização que consiste na afirmação de que o trabalho do
homem tem mais valor do que o trabalho da mulher.
Nessa estrutura androcêntrica, conforme crítica de Aldacy Rachid Coutinho (2000, p.
14), os homens ocupam um lugar de primazia na divisão social do trabalho, uma vez que a
eles são destinadas as atividades intelectuais ou de capital intensivo. Às mulheres restam,
prioritariamente, as atividades de reprodução e as atividades produtivas rotinizadas, de menor
qualificação, remuneração e prestígio social, gerando formas de exploração, dominação e
opressão tipicamente sexista.
Diante disso, há uma tendência de atribuir-se um status social secundário às
atividades produtivas e reprodutivas das mulheres. De acordo com essa lógica, "as profissões
feminizadas, que guardam alguma similitude com as tarefas domésticas e com o papel da
mulher na família, como enfermeiras, professoras e secretárias, são socialmente
desvalorizadas e mal remuneradas" (GOSDAL, 2006, p. 307).

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Correlacionada à composição sexuada está a precarização do trabalho, conforme


defende por Helena Hirata (2009, p. 25). Segundo a autora (HIRATA, 2009, p.28), há uma
distribuição por sexo da maioria dos empregos precários, uma vez que as mulheres são o
maior contingente de trabalhadores em empregos instáveis, mal remunerados e pouco
valorizados socialmente, nos quais as possibilidades de promoção e de carreira são quase
nulas e os direitos sociais atinentes são limitados ou inexistentes.
Nesses termos, articula-se precarização com a reprodução de determinados padrões
androcêntricos das relações de gênero na docência, relacionados ao suposto papel social da
mulher. A feminização do magistério no ensino básico sedimenta, conforme ressaltam Brito et
al (2012, p. 322):
[...] um tipo específico de saber-fazer considerado como próprio da condição
feminina, uma vez que, socialmente, as mulheres são consideradas as guardiãs da
afetividade e do futuro das novas gerações. Ou seja, a produção de uma prática em
que a afetividade é associada aos atributos maternos e não uma característica
provavelmente condizente à atividade docente.

Como consequência, Vianna (2001, p. 90) destaca que a feminização do magistério


associa-se às péssimas condições de trabalho, ao rebaixamento salarial e à estratificação
sexual da carreira docente, assim como à reprodução de estereótipos por parte da escola.
Diante desse cenário, o adoecimento mental de docentes não é uma infeliz
coincidência, mas decorre da estrutura opressora e exploratória da atividade, na qual a
possibilidade de realização da mulher pela contribuição da sua atividade laboral é quase nula.
O acúmulo de atividades produtiva e não produtiva, em uma dupla jornada
extenuante, a baixa remuneração, a falta de estrutura para o desempenho da atividade laboral,
a imposição da postura de professora-mãe, a falta de investimento para ascensão na carreira, a
desvalorização social da profissão, a violência nas escolas, são apenas alguns exemplos do
sofrimento que o real do trabalho impõe nessa profissão.

3 Adoecimento mental de docentes

A relação entre o trabalho docente, as reais condições sob as quais ele se desenvolve
e o possível adoecimento mental constitui um desafio e uma necessidade para se entender o
processo saúde-doença dessa profissão. O adoecimento da categoria docente surge como uma
saída socialmente aceitável para a superação da impotência e da frustração profissional e
como maneira de expressar silenciosamente o sofrimento vivenciado, no qual não aparecem
as condições de trabalho e as limitações as quais o professor é exposto.

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Nesse sentido, uma pesquisa realizada pela Fundação Jorge Duprat e Figueiredo
(Fundacentro), órgão do Ministério do Trabalho e Emprego, destinado a pesquisas
relacionadas à segurança e saúde no Trabalho, aponta que no triênio 2013-2015 a rede
estadual de ensino de São Paulo concedeu uma média de 372 licenças médicas por dia a
professores, sendo que 27% dos casos de afastamento referem-se a transtornos mentais4.
Esses profissionais, ressaltam Souza e Leite (2011, p. 1116), são mais suscetíveis a
transtornos mentais, como a síndrome de bornout (síndrome do esgotamento profissional),
movidos pela crença da educação transformadora, diante do descompasso entre as
expectativas profissionais e a impossibilidade de alcançá-las. Da mesma forma, as referidas
autoras destacam que as expectativas sociais e dos dirigentes do sistema educacional "para
que os professores tenham um desempenho que seja capaz de superar as diversidades culturais
e sociais, sem lhes dar condições para atingi-lo, contribuem para gerar ansiedade, estresse e
acabam por levar ao burnout" (SOUZA; LEITE, 2011, p. 1116).
O estudo realizado por Diniz (1998, p. 203) sobre o sofrimento de mulheres
professoras das séries iniciais do ensino fundamental revela a vivência de um profundo mal-
estar:
Na escola, as professoras se queixam das condições de trabalho, dos alunos, do
salário. Mas nos consultórios, para os médicos que lhes concedem licenças para
tratamento de saúde, as queixas e sintomas apresentados mais frequentemente são
outros: "diarréia, pressão alta, vômito, dores na nuca, na cabeça, na coluna, nas
costas, dormência nas mãos, irritabilidade, choro fácil, depressão, ansiedade,
insônia.

As professoras queixam-se de que sofrem e adoecem. Quando adoecem, afastam-se


da sala de aula e, às vezes, definitivamente, da escola. O adoecimento mental não é tolerado,
uma vez que a escola é considerada o local da estabilidade, do controle, da transparência, da
não-contradição. São obrigadas a permanecer e aguentar, convivendo com o sofrimento
patológico, e com tudo que ele desencadeia.
Nesse sentido, Brito et al (2012, p. 323) apontam algumas formas de
desenvolvimento reativos de professoras frente ao sofrimento e contra doenças mentais:
Encontramos professoras que exercitam diariamente novas formas de lidar com os
limites e as dificuldades da docência ao elaborarem modos de regulação das
variabilidades inerentes à sua atividade, fazendo com que escolas, sem recursos de
toda ordem, mantenham-se, sobretudo, em função da criatividade de suas docentes.
Ou seja, exercitam ações propositivas de luta permanente pela afirmação de si, de
sua potência de vida, pela realização de seu trabalho e de prazer e pela busca de sua
saúde. Quanto à dimensão do prazer no trabalho, ele é facilmente evocado pelas
4
Disponível em <http://fepesp.org.br/artigos/centenas-de-professores-sao-afastados-por-transtorno-mental>.
Acesso em 23 de maio de 2018.

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docentes, sobretudo na relação afetiva que estabelecem com os alunos e no fato de


conceberem e perceberem os resultados de seu trabalho na formação deles.
Remetem-se, assim, principalmente, à dimensão afetiva existente na relação
educativa, o que não deixa de configurar atitude paradoxal, em que amor e
saturação emocional em relação aos alunos se impõem simultaneamente e sob
conflito.

Somada a essa ausência de condições dentro da profissão está a dupla jornada, uma
vez que as professoras ainda devem arcar sozinhas com as demandas cotidianas do trabalho
doméstico, vinculada às restrições orçamentárias do segmentos da sociedade a que pertencem
em sua maioria. De certa forma, essa constatação explica o cansaço expresso ao gerar
constrangimentos do tempo diferentes para homens e mulheres. Nesse aspecto, a divisão
sexual do trabalho tem implicações diferenciadas na saúde de homens e mulheres em termos
de maior ou menor margem de tolerância ao meio decorrente do acúmulo de atividades.
Embora a atividade docente apresente fatores de risco para adoecimento mental
indistintamente, Souza e Leite (2011, p. 1109) ressaltam que, em razão do maior contingente
da categoria ser do sexo feminino, "devem ser ressaltados, em particular, os efeitos desse
estresse na saúde das mulheres, como amenorréia, tensão pré-menstrual, cefaléia, melancolia
climatérica, frigidez, anorexia, bulimia, neurose de ansiedade e psicose depressiva".
Nesses termos, constata-se que a ausência de reconhecimento social do trabalho
docente - expressivo, por exemplo, na baixa remuneração e falta de investimento -, o acúmulo
pelas mulheres da atividade produtiva e reprodutiva (não remunerada), em uma dupla jornada
extenuante, a violência nas escolas e a exigência da figura de professora-mãe, impossibilita a
construção do sentido no trabalho e, consequentemente, de construção da subjetividade
saudável, dando ensejo ao sofrimento patológico.

Conclusões

As mulheres estão em maior proporção nos anos iniciais da educação de uma criança
relacionado a uma estrutura que prestigia o papel de educadora e mãe. Uma estratégia que
mascara a intenção de atender à demanda crescente da educação prestada pelo Estado à classe
trabalhadora a um baixo custo, bem como de reproduzir os padrões androcêntricos que
fundamentam a divisão sexual do trabalho.
Como um processo natural, atrelado a uma suposta vocação de ensinar crianças,
verificou-se a feminização da educação básica, sob o manto de um discurso reprodutor da

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lógica androcêntrica de que a atividade docente era perfeitamente adequada ao seu gênero,
considerando o seu papel reprodutivo na sociedade.
Socialmente menos valorizadas, por se tratar de atividade tipicamente feminina, a
atividade docente também vivencia a precarização da profissão, caracterizada não apenas pela
baixa remuneração, mas, igualmente, o desestimulo à atualização, especialização, progressão
e permanência na carreira, inexistência de condições de trabalho concretas, a violência nas
escolas e a exigência da personificação da figura da mulher-mãe-professora.
Nesse sentido, a feminização e a precarização da atividade docente decorrem da
lógica das relações de poder que engendram os parâmetros sociais, econômicos e políticos de
acordo com uma racionalidade androcêntrica, constitutiva dos próprios sujeitos, representada
pela divisão sexual do trabalho no aspecto específico das ocupações. Pode-se afirmar que o
sexo da docência articula-se com a reprodução de determinados padrões androcêntricos
relacionados ao suposto papel social da mulher, ou seja, a atividade produtiva (de menor
hierarquia e prestígio social) e reprodutiva (não remunerada, ligada aos cuidados domésticos).
Nesse contexto, o adoecimento mental de docentes é consequência de uma estrutura
opressora e exploratória da atividade, na qual a possibilidade de realização da mulher pela
contribuição da sua atividade laboral é praticamente inexistente. O adoecimento mental da
categoria docente apresenta-se como uma tentativa de superação da impotência e da
frustração profissional e como maneira de expressar silenciosamente o sofrimento vivenciado.
O momento exige ressignificar as relações de gênero e suas articulações com o
processo educativo, buscando questionar os valores, os conhecimentos e os códigos
dominantes. É necessário ultrapassar esses padrões relacionados a dados naturalizantes e
buscar a diversidade caracterizadora da identidade docente considerando o cotidiano escolar e
as constrições que o real do trabalho impõe ao profissional dessa área.
A elevada prevalência de transtornos mentais em professoras destacada neste estudo
e sua associação aos fatores investigados apontam para a necessidade de ações que melhorem
as condições de trabalho no magistério da educação básica. Dentre elas, destaca-se a
promoção de espaços de discussão entre docentes e gestores com vistas a subsidiar políticas
que forneçam condições favoráveis ao exercício da docência, incluindo as questões
relacionadas à autonomia, à criatividade e à disponibilidade de recursos materiais.
A escola precisa ser um lugar de vida e de crescimento e construção, mesmo que
com suas diferenças e paradoxos, sem ser produtora de um adoecimento e ou do sofrimento
pela intensidade do que tem que ser suportável.

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VIANNA, Cláudia Pereira. O sexo e o gênero da docência. Cadernos Pagu, (17/18)
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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p433 444


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Subversão feminina, patriarcado e feminicídio: um olhar sobre o conto A Curva, de


Henriette Effenberger

Sebastião Bonifácio Junior1

Resumo: Este trabalho contempla a análise do conto A Curva, de Henriette Effenberger. A


principal finalidade foi perceber a ideologia da emancipação feminina que permeia
determinadas ações da protagonista, a fim de refletirmos sobre a evolução causada pelo
movimento feminista na sociedade. Por outro lado, com o objetivo de destacar a persistência
das práticas androcêntricas, houve a abordagem das ideologias contrárias à independência
feminina, presentes no conto por meio da figura masculina, para retratarmos a predominância
do patriarcado. Objetiva-se, assim, refletir sobre a prática do feminicídio, no âmbito das
relações afetivas, como consequência de um falocentrismo responsável por autorizar a
ocorrência de tais crimes. Para tal, duas perspectivas foram levadas em conta: a crítica
literária feminista interligada à filosofia que aborda os movimentos emancipatórios da mulher;
e a Análise do Discurso francesa (AD) juntamente com o conceito de ideologia. No primeiro
caso, levamos em conta a parte da crítica literária feminista que focaliza os textos escritos por
mulheres – a ginocrítica, explorada nos trabalhos de Showalter (1977), de Xavier (2007), etc.
–, bem como os preceitos de estudiosos das áreas filosófica e literária que voltam seus olhares
para a opressão de gênero na sociedade, tais como: Bourdieu (2002), Beauvoir (1980), Gomes
(2015). Em se tratando da AD, priorizaremos os estudos realizados por Authier-Revuz (2004),
e Pêcheux (1990), pois todos consideram os comportamentos dos indivíduos como sendo
frutos de atravessamentos ideológicos e construções sociais. Ainda no âmbito discursivo,
consideramos o detalhamento feito por Brandão (1997) acerca do que Althusser (1970) e
Ricoeur (1977) falam sobre o fenômeno ideológico atrelado a certas funções. Em A Curva, é
narrada a história de um casal cuja mulher decide sair de casa após várias brigas com o
marido. Após o abandono, o homem não se conforma e passa a aguardá-la debruçado à janela,
olhando sempre para a curva da rua. Em tal ponto, podemos notar que os elementos com os
quais ele, mentalmente, a descreve, revelam-nos escolhas mais recatadas quanto ao vestuário,
sugerindo um “padrão ideal” de roupas femininas. Uma perspectiva que levamos em conta,
nesse caso, é a de Pêcheux (1990), afinal o enunciador adota imagens de si, do outro e da
sociedade. No entanto, vemos que as imagens mentais construídas pelo marido sobre a esposa
representam, segundo Authier-Revuz (2004), a existência de outras vozes atravessando-o. No
final do conto, a mulher volta para casa, porém dirigindo seu veículo e utilizando vestes mais
despojadas, que simbolizam a liberdade de seu corpo. A partir do ponto em que a consorte se
projeta fora das expectativas do marido, há uma reação violenta dele, que a assassina “com
um tiro certeiro no coração” (EFFENBERGER, 2008, p. 35). Esse desfecho nos remete às
relações de dominação estudadas por Pêcheux, afinal a esposa é assassinada por não
corresponder à imagem mental do marido, sofrendo o castigo homicida por tentar se ver livre
das algemas do patriarcado.

Palavras-chaves: Feminicídio; Análise do Discurso francesa; Crítica literária feminista.

1
Universidade Estadual de Londrina; mestrando; junior.of.spades@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p289 289


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1 - Introdução.

Como uma maneira de demonstrar os problemas da Pós-modernidade, principalmente,


no que se diz respeito à opressão de gênero vivenciada pelas minorias em uma civilização
androcêntrica, o texto literário A Curva, de Henriette Effenberger, tem muito a oferecer aos
estudos acadêmicos relacionados à ideologia da emancipação feminina. É possível afirmar
que o conto selecionado para este trabalho apresente características bastante caras aos
movimentos feministas, pois a personagem principal subverte os padrões de inferiorização da
mulher, mas acaba sendo punida por uma sociedade patriarcal. Por esse motivo, tal produção
foi selecionada com o objetivo de ilustrar a representação da mulher emancipada, bem como
para detectar as ideologias contrárias à autonomia feminil, pois ambas as situações derivam de
todo um processo histórico que atravessa a malha de nossa sociedade.
No presente trabalho, existe uma tendência a comprovar que o empreendimento em
prol da emancipação da mulher pode ser visto como reflexo da evolução ideológica da
sociedade nesse quesito, afinal, de acordo com a Análise do discurso (AD) francesa, todos os
indivíduos são frutos de atravessamentos ideológicos transmitidos pela linguagem de
determinado meio social. Na contramão dessa possibilidade, queremos provar, também, que
as práticas androcêntricas continuam a ocorrer devido a um mecanismo diferente de
assujeitamento, que, mesmo em tempos tão evoluídos, ainda insiste em transmitir, por meio
da palavra, ideias mais reacionárias no sentido de barrar as buscas pela independência
feminina, e isso nos mostra o poder ideológico da linguagem, que, na esfera discursiva se
mostra como “interação, e um modo de produção especial; ela não é neutra, inocente (na
medida em que está engajada numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia” (BRANDÃO, 2013, p. 12).

2 – Por uma convergência entre a AD francesa e as teorias feministas.

Em linhas gerais, tomando como base o conto de Henriette Effenberger, procuramos


verificar as formas de resistência e de subversão da protagonista de A curva, a fim de
refletirmos sobre o funcionamento das relações de dominação entre homens e mulheres. Em
vista disso, utilizamos alguns autores da Análise do Discurso (AD) francesa, que se volta para
a constituição do sujeito como um fator influenciado por construtos sociais, sendo estes os
resultados de inúmeras formações discursivas e ideológicas. A listagem de teóricos que se
debruça sobre esses aspectos é bastante vasta, composta por linguistas, filósofos da

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linguagem, estudiosos de aspectos referentes ao fenômeno da ideologia e analistas do


discurso, dentre os quais, podemos citar alguns nomes: Jacqueline Authier-Revuz, Michel
Pêcheux, Louis Althusser, Paul Ricoeur, etc. Houve, também, a preocupação de se refletir a
respeito das ideologias que possibilitem a emancipação feminina e sobre aquelas responsáveis
pela resistência do patriarcado. De acordo com isso, utilizamos textos filosóficos e da teoria
literária de autores que, em determinado momento de suas trajetórias, voltaram-se para a
opressão de gênero presente na sociedade. Assim, foram abordados conceitos e reflexões de
alguns estudiosos, tais como: Pierre Bourdieu, Simone de Beauvoir, Elaine Showalter, Elódia
Xavier, dentre outros.

2.1 – Sobre a Análise do Discurso (AD) de linha francesa.

No final da década de 60, surgiram inúmeros estudos que tiveram como base as
práticas discursivas e, assim, a Análise do Discurso (AD) se firma como uma disciplina
autônoma e se coloca como uma alternativa aos aspectos da ideologia, das ciências sociais e
da linguagem no que tange à Linguística. O objetivo era o de fazer com que os enunciados
fossem estudados não apenas como uma sequência de frases soltas, e sim, como textos
capazes de produzir sentido aos interlocutores, levando-se em conta os contextos de produção.
De acordo com Charaudeau & Maingueneau (2012, p. 41), seria muito complicado
retraçar, com precisão, a história da AD, pois se trata de um campo de estudos resultante da
convergência entre os trabalhos recentes e a renovação de práticas antigas (com base em
filólogos, retóricos e hermenêuticos). Pode-se, entretanto, citar algumas evoluções da AD em
relação à Linguística tradicional. Dentre elas, está o fato de esse novo conteúdo explorar a
interdisciplinaridade com as Ciências Humanas (História, Filosofia, Sociologia, Literatura,
etc.), de modo a se considerar os contextos sócio-históricos dos discursos.
De acordo com Orlandi (2009, p. 50), “a Análise do Discurso é marcada pelo fato de
que a noção de leitura é posta em suspenso. Desse modo, a linguagem só produz sentido a
partir do ponto em que se situa em determinado contexto histórico. Além do mais, a AD de
linha francesa apresenta três regiões convergentes de conhecimento: teoria da sintaxe e da
enunciação; teoria da ideologia; teoria do discurso. As duas últimas serão exploradas, com
mais detalhes, ao longo deste artigo, de modo a serem instrumentalizadas na análise.

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2.1.1 - Michel Pêcheux: Condições de produção, Formações Discursivas, Formações


Ideológicas e assujeitamento

É relevante citar a contribuição de Pêcheux para a AD francesa (1975, p. 17), pois,


com base em seus estudos, surge o reconhecimento de que a língua é a condição de
possibilidade de um discurso, afinal se faz necessária para a materialização discursiva nas
mais variadas condições de produção e em momentos históricos diversos. Por outro lado, os
processos discursivos são vistos como a origem dos efeitos de sentido no discurso, portanto a
língua é o lugar concreto em que se realizam todos os movimentos de propagação ideológica.
Além do mais, foi Pêcheux quem fez a primeira definição empírica geral da noção que
envolve as condições de produção (CPs). O mais importante, feito pelo pesquisador,
relaciona-se ao fato de ele não ter visto nos protagonistas do discurso, apenas, a presença
física dos indivíduos, uma vez que conseguiu visualizar a representação de dados lugares com
traços bem definidos na composição de uma formação social. Em se tratando do discurso, isso
diz respeito ao lugar que o enunciador atribui a si e ao outro, bem como se vincula à imagem
feita dos lugares ocupados por ambos os interlocutores. Assim, o enunciador pode moldar as
suas estratégias discursivas com base em uma antevisão que fará das reações alheias.
Ainda falando sobre a importância dos pressupostos de Pêcheux, é de suma
importância que frisemos a articulação da ideologia com o discurso – relação esta responsável
por gerar a Formação Ideológica (FI) e a Formação Discursiva (FD). A princípio, esses
conceitos têm a ver com o assujeitamento do sujeito tido como ideológico. Brandão (1997, p.
38) exemplifica esse fenômeno com o fato de que cada sujeito “seja levado a ocupar seu lugar
em um dos grupos sociais ou classes de uma determinada formação social” Deixando mais
claro, somos acometidos por atravessamentos que nos condicionam a determinada situação e,
assim, acatamos certos dizeres, passivamente, e ocupamos os nossos lugares sociais, bem
como diversos outros valores que são disseminados a nós desde a infância. Tal processo faz
com que nos tornemos sujeitos, porém assujeitados devido a todas essas relações. Já a
Formação Ideológica (FI) serve para comportar uma ou inúmeras Formações Discursivas
(FDs) e isso nos leva a crer que os discursos são capazes de revelar não apenas a nossa
opinião sobre determinado assunto, mas também o que já foi dito por diversas outras vozes
que ainda reverberam, em geral, de épocas muito distantes a do nosso nascimento.
Na verdade, são as Formações Discursivas que nos condicionam a dizer algo
devidamente elaborado para determinada conjuntura. Funcionam, dessa forma, para articular
língua e discurso. O conceito de FD envolve a noção do pré-construído, que se relaciona,

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indubitavelmente, a uma construção anterior e exterior a nós. É como se surgisse disso um


Sujeito Universal, o qual representa nada mais, nada menos que a padronização do indivíduo
destinado a dizer sempre o já esperado dentro de determinada situação. Assim sendo, todos os
indivíduos se assujeitam à medida que se confundem com o Sujeito Universal da FD, por
intermédio da veiculação de “várias linguagens em uma única”.
Todavia, é previsto o princípio constitutivo da contradição no seio de toda FD, ou seja,
sempre serão emitidos pareceres desfavoráveis à tentativa de homogeneidade discursiva, o
que causará embates e, possivelmente, estratégias subversivas cuja intenção primeira seja a de
lutar contra os construtos sociais e as relações de dominação.

2.1.2 - Jacqueline Authier-Revuz: a heterogeneidade discursiva.

De acordo com Authier-Revuz, passamos a verificar duas ocorrências do discurso


heterogêneo quanto aos elementos do exterior, os quais podem aparecer, na materialidade
discursiva, de forma marcada ou opaca, isto é, o escritor pode ou não deixar evidentes as
influências de terceiros em seu texto. Tal estudo está presente em Entre a transparência e a
opacidade: um estudo enunciativo do sentido (2004) e, por meio desses apontamentos, a
estudiosa associa a heterogeneidade mostrada aos momentos em que existem marcas
linguísticas de outrem em certa produção textual; já a heterogeneidade constitutiva diz
respeito ao amontoado de vozes as quais não estão visivelmente explícitas, mas que, ainda
assim, permeiam dado conteúdo. Pode-se afirmar que tais pressupostos influenciaram bastante
os preceitos dos atravessamentos ideológicos estudados pela AD francesa.
Sendo assim, vale refletir sobre o seguinte fator: a ausência de marcas textuais do
outro cria a falsa ilusão de que o sujeito detém a autoria única da obra. Mas isso está longe de
ser verdade, afinal existem outras vozes que atravessam os dizeres de toda e qualquer
produção, fazendo do sujeito um ser assujeitado porque “dá lugar explicitamente ao discurso
de um outro em seu próprio discurso” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 12)

2.1.3 Althusser e Ricoeur: o conceito de ideologia.

Em Ideologia e aparelhos ideológicos do estado, Althusser (apud BRANDÃO, 1997,


p. 21 - 23) toma o fenômeno ideológico como a abstração do concreto e, com isso, elabora
três hipóteses: a) “a ideologia representa a relação imaginária de indivíduos com suas

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condições de existência”; b) “a ideologia tem uma existência porque existe num aparelho e na
sua prática ou suas práticas”; c) “a ideologia interpela indivíduos como sujeitos”.
Desse modo, é impossível falar sobre Análise do Discurso sem mencionar Louis
Althusser (1918 - 1990), que elaborou os conceitos de Aparelho Repressor de Estado (ARE) e
Aparelho Ideológico de Estado (AIE), sendo este último referente às instituições (Igreja,
Escola, mídias, culturas, família, partido político, sindicato, etc.) perpetuadoras de ideologias
várias. Resumindo, de acordo com a linha althusseriana, o fator ideológico é algo que está
presente no inconsciente coletivo das sociedades e, por meio disso, são elaboradas as
construções sociais cujo principal objetivo é o de mascarar a realidade.
Ampliando o conceito de ideologia, Ricoeur (apud BRANDÃO, 1997, p. 24 - 27)
define três instâncias para o fenômeno ideológico: a) Função geral da ideologia (serve para
que as pessoas se representem e está atrelada a uma motivação ou justificativa); b) Função de
dominação (pode se ligar ao desejo de dominar outros indivíduos, como fazem, por exemplo,
as autoridades ao criarem todo um sistema para justificar a hierarquia de determinada
civilização); c) Função de deformação (referente à distorção da realidade por meio de
símbolos religiosos, políticos, etc.). Por intermédio disso, a ideologia é concebida como algo
inerente ao signo e, dessa forma, todo falante a possui independentemente de sua vontade.

2.2 – Sobre algumas das teorias feministas.

Em decorrência dos movimentos em prol da emancipação feminina, tornou-se possível


a existência de uma crítica feminista, também, nos meios literários. Desse modo, verifica-se a
oportunidade de parte da teoria literária voltar seus olhos para os textos escritos por mulheres.
Tal vertente, que se consolida nos anos 70, prevalece até os dias atuais, recebendo o nome de
ginocrítica. Nesse segmento, é importante reconhecermos a ensaísta norte-americana, Elaine
Showalter (1977), como uma das precursoras dessa tendência – sobretudo por ter apresentado
um esquema de leitura com rigor crítico. Em sua pesquisa, ela percebe a existência de três
fases da arte literária feita por mulheres: Feminina (reprodução dos valores transmitidos pelo
patriarcado); Feminista (surge a consciência da opressão de gênero, mas a personagem não
possui forças para quebrar as convenções falocêntricas adotadas pela sociedade); Fêmea
(marcada por uma autodescoberta, ou seja, existe a adoção de uma identidade própria capaz
de romper com os convencionalismos sexistas).
Em vista dessa maior liberdade conquistada pelas escritoras, é interessante lembrar o
que Elódia Xavier (2007), em seu estudo sobre a representação do corpo feminino, diz sobre

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os questionamentos feitos pelas escritoras brasileiras acerca do patriarcado. De acordo com os


seus trabalhos, constata que existem vários corpos feminis sendo representados como formas
de as literatas se oporem à opressão masculina. Fala, por exemplo, sobre o corpo liberado –
aquele que faz da personagem feminina a mentora da própria vida social e psicológica, a
partir do momento em que se desvincula das amarras impostas pelo seu meio.
É possível abordar essas questões feministas referentes ao corpo do sujeito mulher,
também, pelos preceitos de Pierre Bourdieu ,em A dominação masculina (2002) e em O poder
simbólico (1989). A partir desses conteúdos, percebe-se que a dominação do gênero
masculino se dá por meio de instituições (igreja, estado, escola, etc.) que formulam
construções sociais visando ao cerceamento dos corpos femininos. Sobretudo, nota-se que o
corpo feminino é tido como o único fator a ser valorizado na mulher; enquanto, no homem, a
valorização se dá em torno de suas capacidades intelectuais. Contudo, em diversos casos, as
pessoas dominadas criam estratégias de subversão de modo a quebrar esses estereótipos
perpetuadores da violência simbólica da sociedade patriarcal em relação ao feminino.
Entretanto, para que o poder simbólico seja estabelecido, é preciso haver plena aceitação das
pessoas dominadas. Tal conceito, elaborado por Bourdieu (1989, p. 6 - 16), refere-se à
ideologia que elege pessoas dominantes e dominadas com base nas relações de dominaçãoo
construídas socialmente. Por meio desses simulacros, o homem se torna dominador, o que
explica a construção de sua masculinidade ser associada à virilidade (BOURDIEU, 2002, 43).
Ainda no terreno das construções sociais, o próprio casamento é visto, por Simone de
Beauvoir, em O segundo sexo, como um fim em si mesmo quando se trata do feminino. A
teórica, guiada por essa percepção, associa a atitude de as mulheres não trabalharem fora ao
conceito de imanência, ou seja, elas são privadas e, ao mesmo tempo, privam-se de terem uma
vida social, a partir do ponto em que se veem coagidas a pertencerem, única e
exclusivamente, aos ambientes domésticos (BEAUVOIR, 1980, vol. II, p. 395), espaços
responsáveis por restringirem o contato da mulher à presença inanimada de seu espelho.
Sendo assim, o fato de os serviços domésticos serem funções destinadas somente à mulher é a
mais clara demonstração de um estado imanente da individualidade feminina no meio social.
No entanto, quando a mulher não cede ao contrato fiduciário da imanência (ou quando
abandona tal situação), é possível que sofra represálias dos indivíduos que impõem o modo de
vida patriarcal. Essa reação, no âmbito feminino, pode ir da violência simbólica (ex.: insultos,
xingamentos, humilhações públicas, etc.) aos casos de feminicídio. Como o assassinato de
mulheres associado ao gênero sexual será o foco principal de nossa análise, faz-se necessário
saber, por ora, que o sinônimo apropriado para se referir ao feminicídio é violência de gênero,

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pois “é usado para relativizar a questão da passividade feminina, visto que, nos estudos que
têm como referência o sistema de justiça, não se aceita mais a mulher como vítima passiva da
dominação” (GOMES, 2015, p. 785). E, nessa perspectiva, os homicídios de mulheres
motivados pela condição genérica apresentam uma fundamentação de desprezo pelo corpo
feminino; por isso, é possível apontarmos a existência de uma cultura sexista em nossa
sociedade. Em suma, a mulher é punida por ter se projetado fora do construto da
subalternidade feminil – que, por sua vez, revela a faceta patriarcal da civilização.

3 - Um olhar sobre o conto A curva, de Henriette Effenberger.

É narrada, nesse conto, a história de um casal cuja mulher decide sair de casa após
inúmeras brigas com o marido. Após o abandono da esposa, ele não se conforma e passa a
aguardá-la, ansiosamente, debruçado na janela, olhando sempre para a curva por onde a rua
termina. Nesses momentos de espera, vale analisar o horizonte de expectativas criado pelo
homem em torno da antiga companheira:

[…] ela não viria dirigindo seu próprio carro nem tomaria um táxi. Viria a
pé, carregando com uma das mãos uma pequena valise e com a outra um
agasalho, além da bolsa a tiracolo. Estaria discretamente vestida, talvez uma
saia escura e blusa sem mangas, branca com bolinhas no tom da saia.
Calçaria sapatos de saltos baixos e meias de seda no tom da pele. Os cabelos
estariam presos por uma fivela de osso. Sabia também que ela viria
caminhando compassadamente, se aproximaria da casa e olharia para a
janela e encontraria o olhar dele observando-a (EFFENBERGER, 2008, p.
32).

Uma perspectiva que poderíamos levar em conta ao nos referirmos a esse excerto é a
de Pêcheux (1990) que, em sua teoria discursiva, diz que o enunciador, de modo instintivo,
adota imagens de si, do outro e da sociedade. É, justamente, o que faz o protagonista do conto
ao pressupor uma forma imagética para a consorte de uma maneira bastante definida. O
mesmo é feito em relação a si próprio, no momento em que pressupõe sua reação ao vê-la
andando para a casa, pois, de acordo com seus pensamentos, “não sorriria”, apesar de suas
mãos se crisparem “no parapeito da janela” e de suar “desagradavelmente”. Cria imagens, até
mesmo, sobre a dissimulação de seus sentimentos: “E, enquanto seu coração disparava, ele
tentaria aparentar uma serenidade que nem de longe sentia” (EFFENBERGER, 2008, p. 32).
Após o primeiro impacto, na sua concepção, “esboçaria um arremedo de sorriso e reabriria
para ela as portas de sua casa e de sua vida” (idem). No entanto, vemos que essas imagens

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construídas de si e da esposa querem dizer algo ao leitor, afinal, segundo Authier-Revuz


(2004), há a existência de outras vozes atravessando os discursos de todos os indivíduos,
fazendo-os assujeitados. Desse modo, ao construir a imagem de si mesmo, o homem utiliza
subterfúgios que nos apontam para uma construção social da masculinidade, principalmente,
quando afirma que não iria sorrir após ver aquela por quem tanto esperou. Ao elaborar tal
pensamento, ele reproduz estereótipos de que o riso, o choro e os excessos não se vinculam ao
sexo masculino, sobretudo se considerarmos o simples “arremedo de sorriso” o qual seria
demonstrado apenas depois de algum tempo, ou seja, passado o impacto inicial.
De modo geral, esse jogo de imagens que o protagonista formula para si e para o seu
“objeto de desejo” são frutos não exclusivamente dele, mas de outras vozes que perpassam
um dos maiores discursos disseminados pelo senso comum: o dos padrões estéticos e
comportamentais referentes ao masculino e ao feminino. Vejamos o trecho a seguir:

Já debaixo do chuveiro recordou-se do dia em que ela partira. Tinham


discutido por motivos banais: a camisa que ele queria vestir não estava
passada e a que ela queria que ele usasse não combinava com a gravata. Da
camisa a ser passada à discussão foi um passo. Ela sentia-se sobrecarregada
com as tarefas domésticas, ele sentia-se rejeitado. Ela não se sentia desejada,
ele disse que não a desejava mesmo. Ela cobrou-lhe flores, bombons e
presentes de aniversários nunca recebidos. Ele retrucava, dizendo que ela
estava constantemente mal-humorada, que não ria de suas piadas, que estava
desleixada, velha e feia. Ela respondeu que não mais o amava e que iria
deixá-lo. Ele não pediu que ficasse. Ela fez as malas e partiu...
(EFFENBERGER, 2008, p. 32).

De imediato, percebemos o já apontado por Beauvoir (1980, vol. II, p. 395) no que diz
respeito à obrigatoriedade de as tarefas domésticas recaírem sobre o feminino e, levando em
conta essa perspectiva, é perceptível que as execuções dessas atividades pela mulher sejam
frutos de inúmeros atravessamentos ideológicos, vinculados ao patriarcado, e que não passam
de construções sociais. Outro ponto importante, também baseado nos estudos da filósofa,
refere-se ao conceito de imanência (BEAUVOIR, 1980, vol. II, p. 395), pois está claro que a
personagem de A curva era uma dona de casa que vivia em função do marido – sendo privada
e, ao mesmo tempo, privando-se de ter uma vida social.
A respeito desse reducionismo vinculado ao feminino, é possível notar a violência
simbólica (BOURDIEU, 1997, p. 204) exercida pelo personagem central, que, além de não
auxiliar a esposa nos serviços rotineiros da casa, discutia com a companheira “por motivos
banais”, como, por exemplo pelo simples fato de ela não ter passado determinada peça de
roupa, isso sem contar as humilhações constantes ao chamá-la de “desleixada, velha e feia”.

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No entanto, talvez o mais interessante de ser notado, no excerto acima, seja a


capacidade de subversão da mulher, que não pode ser vista como intrinsecamente passiva. De
acordo com a crítica literária feminista, Showalter (1977), nas narrativas, essas atitudes
indisciplinares seriam chamadas de representação da mulher fêmea, sendo esta capaz de
subverter os construtos de poderio entre o masculino e o feminino. Por meio do ato de
abandonar o homem e a casa, ela teve seu corpo liberado que, de acordo com os estudos de
Xavier (2007), representa a personagem feminina tomando as rédeas de sua própria vida
social e psicológica. Para completar esse apontamento, vale dizer que, antes de partir, num
lapso de ironia e vingança, a dona de casa ainda deixa “a camisa, pivô da discussão, […]
impecavelmente passada e dependurada na cadeira” (EFFENBERGER, 2008, p. 33).
Ademais, a ausência da senhora faz com que ele passe a ter a janela como única
companhia – apenas o ser inanimado por onde olhava era capaz de estabelecer uma relação
entre ele, a natureza ao redor e a espera incessante pelo retorno da mulher que o deixara.
Assim sendo, a curva se torna o símbolo de sua maior expectativa de vida: o regresso da
amada. Anos após esperá-la, todavia, eis que surge uma mulher diferente da que o deixou:

Ao se preparar para sair, ouviu o ruído de um carro estacionando em frente


da sua casa e saiu à janela a tempo de vê-la descer do automóvel trazendo
duas grandes malas de viagem, além de uma enorme sacola de plástico, onde
se via estampada a marca de um conhecido magazine. Vestia calças jeans
desbotadas, acompanhadas da jaqueta do mesmo tecido, sobre uma camiseta
de malha vermelha. Os cabelos, originariamente castanhos, estavam agora
loiros e compridos. Usava-os soltos sobre os ombros (EFFENBERGER,
2008, p. 34).

Chegamos, finalmente, a um conflito entre a imagem que ele fez da esposa e a


realidade avassaladora. Na construção feita pelo homem, em seus pensamentos, ela chegaria
“a pé” ao invés de sair de “um carro”. Carregaria “uma pequena valise”, “um agasalho” e a
“bolsa a tiracolo”, e não, “duas grandes malas de viagem, além de uma enorme sacola de
plástico, onde se via estampada a marca de um conhecido magazine”. Optaria pela discrição
ao se vestir, “talvez uma saia escura e blusa sem mangas, branca com bolinhas no tom da
saia” e “sapatos de salto baixo e meias de seda no tom da pele” em detrimento de “calças
jeans desbotadas, acompanhadas da jaqueta do mesmo tecido, sobre uma camiseta de malha
vermelha”. Os cabelos que se mostrariam “presos por uma fivela de osso”, na verdade,
“estavam agora loiros e compridos”, “soltos sobre os ombros”. Na idealização do marido, ela
viria “compassadamente” (idem), mas acabou se acercando da casa de maneira rápida.

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A partir do ponto em que a consorte se projeta fora das expectativas criadas pelo
marido, há uma reação violenta dele, que serve para pôr fim à história: “Ela o traíra e retirara
dele o único prazer de que dispunha: a janela. Não teve dúvidas: ao abrir a porta alvejou-a
com um tiro certeiro no coração” (EFFENBERGER, 2008, p. 35). O narrador, ainda, finaliza
com a afirmativa irônica: “Agora sim: ela nunca mais voltaria!” (idem). Ao analisar esse
desfecho, é impossível não notarmos uma evidente relação de dominação, afinal podemos
afirmar que a esposa foi assassinada por não ter correspondido à imagem mental elaborada
pelo marido. Em outras palavras, sofreu o castigo homicida por “ser mulher”.
De modo a corroborar o dito acima, Gomes (2015) já havia nos alertado sobre o
feminicídio ser o símbolo do corpo feminino como algo desprezado pela sociedade. Isso
posto, faz-se pertinente a inferência de que, no texto literário, o homem matou a mulher por
menosprezar o corpo dela, ou seja: não considerou, em momento algum, que ela poderia ter
vontades próprias, como, por exemplo, a decisão de se locomover, vestir-se e se portar da
forma que bem entendesse. Para ele, tudo teria que ser conforme suas aspirações – excluindo,
assim, o livre arbítrio do sexo feminino. Considerando que, de certa maneira, esse pensamento
esteja presente no imaginário popular, o apontamento para uma ordem social sexista é
inevitável. Além do mais, tal discurso é transmitido para a sociedade por meio de inúmeras
vozes que ecoam de um período muito anterior ao de nosso nascimento – mostrando, desse
modo, a fusão discursiva entre o passado e o presente. Pêcheux (1990) chama essas ideologias
vindas de tempos remotos de pré-construído (uma construção anterior e exterior que percorre
vários momentos históricos, de modo a fazer com que as pessoas da atualidade fiquem
condicionadas a um discurso pretérito). Por meio disso, vemos, na narrativa breve, o construto
de dois Sujeitos Universais: o sexista, visto na figura do homem; e a feminista, constatada
pelo aspecto da mulher que se recusa a jogar o jogo de cartas marcadas do machismo.
Tomando também como base o estudo sobre as Formações Discursivas (FD) e
Formações Ideológicas (FI) sobre o qual Pêcheux (1990) se debruçou, a construção de, no
mínimo, duas FDs é bem explícita em se tratando do conto analisado: por um lado, temos as
FDs que fazem reverberar uma ideologia patriarcal em nossa sociedade (esta é adotada pelo
homem que pune a mulher por ela ter ignorado as imagens construídas por ele); por outro
lado, notamos as FDs contrárias e constituídas por meio de posicionamentos ideológicos
feministas sobre a emancipação da mulher (isso pode ser visto nas estratégias subversivas da
personagem – que, além de abrir mão, temporariamente, da convivência com o esposo, cria
uma imagem de si opositiva ao querer dele). No entanto, vemos que a elaboração dessas
Formações Ideológicas (FIs) – tanto do feminismo, quanto do patriarcado –, como frutos de

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várias outras FDs, acabam tendo resultados opostos, pois o masculino ainda impera sobre o
feminino, não apenas no texto escolhido para a análise, como também em todo o meio social.
Quanto às duas personagens da história, veremos agora como se manifestam nelas
algumas das hipóteses ideológicas de Althusser (1970) e de Ricoeur (1977). A respeito da
criação de formas simbólicas para a representação da realidade, analisamos que isso é feito
tanto pelo marido, quanto pela esposa. Afinal, logo de início, o homem idealiza o momento
do regresso da mulher, criando uma imagem de si – respaldada na construção da virilidade
masculina – e outra da consorte – marcada pelo recato que, no seio da sociedade, é construído
em torno do âmbito feminil. Em contrapartida, a personagem feminina, ao sair de casa,
também se mostra capaz de fazer tais projeções, porque vislumbra a imagem do próprio futuro
denotado pelo afastamento entre si e o cônjuge, o que permite o atravessamento de uma
ideologia vinculada a sua emancipação. A representação imaginária dela com suas condições
reais de existência também é constatada pelo processo de formular outras características
físicas e comportamentais para si mesma quando do retorno ao lar. Tais procedimentos podem
ser arrolados à função geral da ideologia, defendida por Ricoeur (1977), que, similar ao
posicionamento de Althusser (1970), está atrelada aos modelos representativos os quais
fazemos de si e do outro por meio de uma motivação ou justificativa: no caso do protagonista,
o seu motivo para limitar a mulher se vincula a uma ideologia androcêntrica; já em se tratando
dela, o fundamento de fugir do ambiente doméstico e de se projetar fora da perspectiva do
marido diz respeito ao processo ideológico da emancipação feminina na sociedade.
Mas o ápice de como determinada ideologia pode acarretar uma ação, nesse conto, é
retratado no instante em que ocorre o feminicídio, pois a violência de gênero se mostra como
uma forma de controle do homem sobre o corpo feminino (GOMES, 2015) e isso,
imediatamente, denota a função ideológica da dominação (que se liga ao desejo de dominar
outros indivíduos pelo construto de uma relação impositiva) sobre a qual falava Ricoeur.
Inclusive, vale ressaltar que o marido não passa do posicionamento de objeto a sujeito, afinal
sua imagem sempre teve as bases estabelecidas nesta última esfera.
A última função abordada pelo estudioso supradito é a da deformação cujo intuito é o
de desfigurar a realidade com base em dada ideologia. Acerca do conto, vemos que existe um
conteúdo ideológico que subjaz todo o comportamento do protagonista: isso se associa às
vozes responsáveis por legitimar os abusos realizados por homens contra as mulheres. Por
isso, o indivíduo do sexo masculino tem a sensação de naturalidade ao se recusar às tarefas
domésticas, ao humilhar a esposa e, consequentemente, ao matá-la pelo simples fato de ela,
finalmente, ser quem gostaria de ser – alguém livre das algemas do patriarcado.

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4. Conclusão

A princípio, é válido ponderarmos sobre os discursos, a respeito da emancipação


feminina, que atravessam a malha social, de modo a entender as representações literárias
aliadas à intencionalidade discursiva de expor e denunciar os abusos que, diariamente, são
praticados contra as mulheres. Não obstante, muitos dos textos que revelam o empoderamento
feminil e a denúncia de mecanismos opressivos contra a mulher são realizados, na maioria das
vezes, por escritoras, com o intuito de representar, de forma crítica, as vivências do próprio
gênero sexual em um processo semelhante ao da autorrepresentação. Isto posto, uma
importante posição de sujeito é ocupada pelas autoras que procuram dar voz às suas iguais.
De certa forma, esse fazer literário revela uma atitude de sororidade das literatas diante das
inúmeras vítimas do patriarcado.
Se temos, de um lado, essa perspectiva ideológica que persegue os ideais da
emancipação feminina, existem, também, em outro âmbito, os fios discursivos dissonantes,
que aderem a Formações Discursivas próprias do androcentrismo. O aglomerado de FDs
dessa espécie acabam gerando Formações Ideológicas (PÊCHEUX, 1990) de caráter
misógino, responsáveis pela manutenção do desnivelamento social entre os gêneros. Por isso,
é de suma relevância a atitude das artistas que, com suas obras, assumem um posicionamento
de sujeito capaz de gerar reflexão social. Por meio de tais discursos, disseminados nas artes,
percebemos a ideologia da emancipação feminina agindo positivamente na sociedade, a partir
do ponto em que desconstrói padrões consolidados pelo assujeitamento inerente às vozes
discursivas responsáveis por legitimar a inferiorização da mulher.
Com a influência das teorias pós-colonialistas, percebemos, na atualidade, diversos
talentos que procuram transmitir, em suas manifestações artísticas, o discurso de tolerância às
chamadas minorias sociais. É nesse projeto que se insere a literatura de autoria feminina
quando trata de assuntos espinhosos, como, por exemplo, do feminicídio – temática bastante
explorada por Henriette Effenberger e que tem como objetivo primeiro a denúncia social de
crimes cometidos contra a mulher. De certa forma, ao nos depararmos com esses conteúdos
ideológicos que nos permitem enxergar o mundo pela visão do Outro, surge a possibilidade de
nos tornarmos empáticos às vivências dos indivíduos que, por um motivo ou outro, foram
colocados à margem do construto de comunidade.

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O papel desenvolvido pela mulher e sua invisibilidade na sociedade brasileira durante o


regime militar
Bárbara de Souza da Silva1
Jamilly Nicácio Nicolete2

Resumo
As mulheres que militavam durante o período militar, tiveram inúmeras barreiras para se
desprender e irem as ruas lutar pelos seus direitos, seus interesses, além de ter que enfrentar
os obstáculos sociais, tinha a existência de tortura durante este mesmo período não a
intimidara, e por consequência deste fato, muitas delas passaram pela tortura, que se consistia
em violência física, psicológica e moral, após essas torturas que elas foram submetidas
ocasionando marcas que estão presentes até os dias atuais.

Palavras-chave: Ditadura Militar; Mulher; Tortura.

1
Graduanda em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP; e-mail:
baabi009@hotmail.com.
2
Docente dos cursos de Licenciatura do Centro Universitário Toledo de Ensino – Araçatuba/SP, Doutora em
Educação; e-mail: jamillynicacio@hotmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p303 303


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Introdução
Durante o período militar (1964-1985), de acordo com Fausto (2015), o controle do
poder Executivo do país esteve nas mãos do Exército Brasileiro. Nessa época, as mulheres
passaram por alguns martírios quando saíram às ruas em busca dos seus direitos juntando-se
aos movimentos de oposição ao governo. Alguns benefícios foram alcançados graças ás lutas,
como a criação do Conselho da Condição Feminina, em 1982, para denunciar a morte de
muitas delas. Grande parte dessas mulheres militantes foi torturada com choques por todo o
corpo, estupros, humilhações verbais e violência psicológica que chegou a levá-las a morte
durante o regime.
Partindo desta perspectiva, suscitou-nos o interesse em analisar a invisibilidade da
violência sofrida por essas mulheres durante o período militar. Dissertar sobre os métodos de
violência utilizados contra as militantes ou mulheres de militantes e evidenciar a trajetória
histórica dessas mulheres, pois, muito embora tenha sido um período de relevância histórica, é
nítida a restrição das documentações sobre o período. Por último, e não menos importante,
expor as consequências das torturas às quais essas mulheres foram submetidas, tendo sequelas
que marcaram a trajetória das sobreviventes.
A pesquisa foi realizada através de levantamento bibliográfico com autores como
Teles (2014), Tomazony (2015), Ridente (1990), filmes e documentários, incluindo a análise
de relatos disponíveis em jornais. O presente artigo é de caráter qualitativo, seguindo o
método analítico indutivo e, a partir dos autores referenciados, serão apresentados os
resultados da violência sofrida pelas mulheres.

Iniciando a conversa...
Antes de começar uma investigação mais aprofundada sobre a mulher durante este
período, é preciso compreendê-lo por meio de uma investigação histórica a respeito das
conjunturas sociais e políticas vividas na época.
O Golpe Militar de 1964 tem início quando os militares partem para o Rio de Janeiro
espalhando medo e caos por onde passava, repreendendo movimentos populacionais, sindicais
e serviços públicos, além de realizar perseguições, sequestros e até mesmo prisões políticas,
como apontado por Teles (2014).
Todavia, segundo Fausto (2015), os militares tinham o intuito de livrar o país da
corrupção e da ameaça comunista, restaurando, portanto, a democracia de modo não
convencional. Nesse processo de recomposição democrática foram instaurados Atos
Institucionais (AI) para ampliar a autoridade e poder de quem estivesse à frente do país.

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Algumas das medidas foram adotadas durante esse processo, como a votação sendo
realizada pela maioria do Congresso e a extinção dos partidos políticos, porque, para os
militares, a crise era consequência da existência de partidos, e assim se cria uma constituição
que concretizava que o poder Executivo seria por exercido por sucessão.
Teles (2014) mostra que a imprensa escrita, televisiva e radialista passou a
desenvolver um papel fundamental com as propagandas que facilitavam a formação de uma
opinião pública conservadora, alem de criticar abertamente o governo de Jango 3 e as reformas
de base. A vinda do padre Patrick Peyton4, em 1963, pregando a ordem “família que reza
unida, permanece unida” tinha como intuito a tentativa de mobilizar mulheres para a Marcha
contra João Goulart e o comunismo.
Após o anúncio das reformas de base e agrária de João Goulart, a direita passou a
reagir:
Como resposta, a direita mostrou o seu lado mais enganoso e manipulador: com o
apoio da Igreja, empresários e latifundiários, devidamente instruídos por entidades
financiadas pelos Estados Unidos como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), mobilizou mulheres para
serem usadas como base social dos golpistas que passaram a se vangloriar de ter
uma sustentação política com “forte apoio popular”.
Estas manifestações de mulheres manipuladas pelas forças mais conservadoras e
retrógadas se realizaram em ações dominadas: [...] Ao todo, foram realizadas 49
manifestações deste tipo, em todo o país, constituídas majoritariamente de mulheres
(Teles, 2014, p. 10)

Durante este momento de tentativa de instauração da ditadura, as mulheres tiveram um


papel importante para fazer com que a população concordasse com o regime. Segundo a
autora, foram 49 marchas, somando de 300 a 500 mil pessoas, compostas majoritariamente
por mulheres pobres, empregadas domésticas, negras e moradoras da periferia. Contudo, as
mulheres que organizavam as manifestações e já tinham alcançado alguma equidade dos seus
direitos não se faziam presentes nos atos populares. Mulheres brancas, de classe média alta,
esposas de militares e católicas extremamente religiosas.
A junção das organizações financiada pelo governo, como por exemplo, CAMDE 5,
União Cívica Feminina6 e a LIMDE 7, entre outras por todo o país, e as manifestações das
mulheres nas ruas com medo do comunismo e pedindo por democracia foi lacuna necessária
para a efetivação do golpe militar. Não se pode atribuir culpa a essas mulheres devido ao fato

3
João Gourlat, governador eleito legitimamente.
4
Patrick Peyton (1909 - 1992). Era um padre católico irlandês, pároco de Hollywood e fundador da Cruzada
5
Campanha da Mulher pela Democracia, situada no Rio de Janeiro.
6
Situada em São Paulo.
7
Liga da Mulher pela Democracia, localizada em Belo Horizonte.

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de terem sido levadas a acreditar em um discurso conservador sem nenhuma estrutura


progressista.
Embora estudos a respeito do golpe militar e da participação das mulheres não
relacionam o fato da desorganização das mulheres comunistas, simpatizantes e
progressistas, com o fato de ter havido a manipulação das massas femininas pelos
golpistas, faço uma leitura de que este episódio criou condições para tornar as
mulheres menos atentas às questões políticas e acríticas, o que possibilitou o apoio
feminino tão massivo às forças golpistas, as mais atrasadas do país (Teles, 2014, p.
11)

Mulheres de direita tenham tido orientações dos militares e autorização dos maridos
para participarem direta e indiretamente das manifestações, autorizações indispensáveis, pois
elas entendiam que seus respectivos lugares eram dentro casa, cuidando do lar e de seus
afazeres domésticos. Era evidente a não aceitação da participação política irrestrita das
mulheres, sendo possível observar durante a “Marcha com Deus pela Família, pela
Liberdade” que, ao mesmo tempo em que muitas levavam em suas mãos rosários, tantas
outras carregavam cartazes que diziam “Vermelho bom, só do batom”,
Ainda que as mulheres tenham apoiado a instauração do governo militar, não estariam
salvas de passarem por violências sexuais, psicológicas e morais quando perceberam que não
se tratava de uma retomada da democracia, mas sim da posse do poder governamental,
iniciando assim um regime ditatorial, com direito a perseguições e torturas a todos que
insistissem em defender a democracia e a liberdade.
O século XX seria o “Século das Mulheres”, pois elas decidiram enfrentar as barreiras
da família, religião, mercado de trabalho, escola e a sociedade em geral, até mesmo dentro de
grupos partidários que acreditavam que elas não possuíam capacidade para liderar
manifestações, lutar por um país e pela igualdade, além de pressupor que elas não
aguentariam as repressões e não teriam atitude suficiente para enfrentar os obstáculos e
ingressar no mercado de trabalho, nas universidades, na militância e serem forte a ponto de
resistir aos exílios que transformaram as mulheres no grupo social que mais sofreu alterações
durante a ditadura militar.
O século trouxe mudanças comportamentais, de valores e perspectiva, dando liberdade
para que elas deixassem de serem objetos sexuais dos homens e passassem a pensar no seu
próprio desejo, no próprio prazer, possibilitando até mesmo orgasmo, apartando-se da
gravidez com a chegada da pílula contraceptiva ou anticoncepcional e tendo, portanto, poder
de optar pela maternidade.
Apesar das transformações pelas quais o papel da mulher passou, Tomazoni aponta
que “para a repressão, a quebra dos papéis destinados à mulher e a consequente busca por

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igualdade trouxe o conceito de “mulher subversiva”, que era dividida em duas categorias: a de
prostituta, objeto de desejo dos homens, e a de comunista, desviante política” (2015, p. 42).
As barreiras impediam diversas conquistas femininas foram muito mais do que a
família. Envolvia, principalmente, a moral dessas mulheres perante a sociedade e uma questão
de ego masculino que estava sendo desconstruído, pois o grito delas era quase inaudíveis
devido, na maioria das vezes, ao fato de se encontrarem atrás de seus maridos.
Seguindo a diante é possível chegar ao ponto principal desta pesquisa. Partindo do
objetivo de mostrar pelo o que essas mulheres militantes passaram, veremos que a tortura foi
muito mais do que um método para extrair informações, foi utilizada como ferramenta para
causar mortes lentas e dolorosas, como foi o caso de Eduardo Leite, o ‘Bacuri’, apresentado
pela Comissão Nacional da Verdade. A tortura também foi institucionalizada como um
método científico, o que causava constrangimento maior para as mulheres, devido ao fato de a
maioria dos torturadores serem homens e se aproveitavam da situação para humilhá-las:

A questão de ser mulher torna a tortura um processo muito particular, por conta dos
padrões de conduta, que sob o aspecto sexual colocava a mulher como objeto de
prazer do homem. [...] Os objetivos fundamentais do agressor eram fragilizar,
amedrontar e coibir a vítima, deixando claro a sua posição de inferioridade absoluta
em relação ao poder instituído. Cabe as mulheres uma cota suplementar de
sofrimento que resulta da violência sexual (estupros, às vezes seguidos de gravidez)
ou dos rituais de humilhação que foram submetidas em função de seu gênero.
(Tomazari, 2015, p. 46)

Quando essas mulheres eram presas, passavam por sessões de torturas que, através dos
relatos dessas vítimas, permite observar e até mesmo sentir muito mais do que uma violência
física. Tinha muita violência sexual usada para destruir a feminilidade e maternidade, além de
demonstrar o quanto elas eram vulneráveis diante deles:

“Sobe depressa, Miss Brasil” dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava


minhas nádegas escada acima do Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os
‘40 dias’ do parto. Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada
e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando eu
entrei. ‘Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já esta magra, mas tem um quadril
de vaca’, disse ele. Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’. Mostrou uma
pagina do jornal com a matéria sobre o premio da vaca leiteira Miss Brasil numa
exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu
vestido. Picou a pagina do jornal e atirou em mim. Segurei os seios, o leite escorreu.
Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me virou de costas, me pegando
pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas, nas costas, com o vestido
levantado.um outro segurava meus braços, minha cabeça, me dobrando sore a mesa.
Eu chorava, gritava, e eles riam muito, gritavam palavrões. Só pararam quando iram
o sangue escorrer nas minhas pernas. Ai me deram muitas palmadas e um empurrão.
Passaram-se alguns dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se
me esperasse. Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava
com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro

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horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio
desse terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma
injeção. Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no chão, mais um outro
segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O torturador zombava:
‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não melhorar, vai para o barranco,
porque aqui ninguém fica doente’. Esse foi o começo da pior parte. Passaram a
ameaçar de buscar meu filho. ‘Vamos quebrar a perna’, dizia um. ‘Queimar com
cigarro’, dizia outro.8

Esse depoimento de Rose Nogueira permite notar com nitidez a proporção da


violência que não parava por aí, pois essas mulheres sofriam muito mais nas dependências do
DOI-CODI9, DOPS10.
Outro depoimento que reafirma o sofrimento destas mulheres é o de Dulce Maia:

Muitos deles vinham assistir para aprender a torturar. E lá estava eu, uma mulher
franzina no meio daqueles homens alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda
vejo a cara dessas pessoas, são lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do
estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na
vagina e dizia: ‘ Você vai parir eletricidade’. Depois disso, me estuprou ali mesmo.
Levei muitos murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão
amarrada num banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das
mãos. Para aumentara carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de
canal, ‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único
trauma que permaneceu até hoje. Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu
ficava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na
minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos que
eles punham muitos nos seios. E jogava água para o choque ficar mais forte, além de
muita porrada. O estupro foi nos primeiros dias, o que foi terrível para mim. Eu
tinha que lutar muito para continuar resistindo. Felizmente, eu consegui. Só que eu
não perco a imagem do homem. É uma cena ainda muito pressente. Depois do
estupro, houve uma pequena trégua, porque eu estava desfalecida. Eles tinham
aplicado uma injeção de pentanol, que chamavam de ‘soro da verdade’, e eu estava
muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim porque diziam que eu era macho de
aguentar. Perguntavam quem era meu professor de ioga, porque, como eu estava
aguentando muito a tortura, na cabeça deles eu devia fazer ioga. Me tratavam de
‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam como uma pessoa completamente desumana. Eu
também os enfrentei muito. Com certa tranquilidade, eu dizia que eles eram seres
anormais, que faziam parte de uma engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com
isso, me achava com a moral mais alta. 11

Os métodos de torturas que serão expostos a seguir foram reconhecidos pela Comissão
Nacional da Verdade, que tem como intuito explicitar e permitir acesso ao público sobre o
que foi a repressão militar como nos depoimentos citados. Entre os métodos de tortura estão:

8
Depoimento de Rose Nogueira, ex - militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi
presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora
dos direitos humanos.
9
Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e Destacamento de Operações de Informações (DOI), ficando
conhecido como DOI-CODI
10
Delegacias de Ordem Política e Social
11
Relato de Dulce Maia, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VRP), era produtora cultural
quando foi presa na madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive em Cunha (SP), é
ambientalista, dirigi a ONG Ecosenso e é cogestora do Parque Nacional da Serra da Bocaina.

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 Choque elétrico: eram provocados por pequenas máquinas movidas à


manivela, que também controlavam a intensidade do choque. Geralmente eram encostados em
áreas sensíveis como nariz, gengivas, mamilos, ânus, órgãos genitais femininos e masculinos.
Podia causar diarreias involuntárias, queimaduras, incontinência urinária e convulsões, além
de dores extremas que levavam a paradas cardíacas e abortos.
 Afogamento ou sufocamento: mergulhavam a cabeça dos prisioneiros num
tanque com água. Também era comum colocar mangueiras na boca e tampar as narinas. Para
sufocar, utilizavam de amoníaco 12 para embebedar os capuzes e causar o sufocamento.
 Espancamentos: utilizavam de socos e pontapés em áreas sensíveis do corpo
como os seios, barriga e nas costas. Também usavam o ‘telefone’ para causar ruídos nos
ouvidos das vítimas, além de desfigurar e a extrair o globo ocular 13.
 Empalamento: é o método de introduzir objetos pontiagudos ou cilíndricos
pelo ânus. Além de causar ferimentos externos, as vítimas poderiam ter hemorragias e vir a
óbito.
 Simulação de Fuzilamento: era um tipo de tortura psicológica comumente
utilizada contra presos que já haviam sido torturados.
 Queimadura: provocadas por pontas de cigarro, ferros ou maçaricos em
contato com a pele nas partes mais sensíveis do corpo.
 Isolamento em locais inóspitos14: técnica de imobilização com celas
minúsculas (chamadas de ‘geladeira’) utilizadas para causar desconforto, pois não permitia
que o preso ficasse em pé ou com o corpo esticado, a temperatura era alterada entre calor e
frio intensos, com som ou ruídos muito altos e luzes acesas para que os presos não
conseguissem dormir.
 Drogadição: é o ‘soro da verdade’, usavam para causar confusão mental e
assim obter mais informações.
 Estupro: utilizado na tortura contra mulheres, às vezes utilizavam objetos
como o cassetete para praticar os estupros.
As técnicas que não foram citadas acima são: Pau-de-arara, Cadeira do Dragão, Cama
Metálica e Suspensão, técnicas essas utilizadas para a imobilização dos torturados, a
utilização de parentes e membros das famílias das militantes que se encontravam em poder

12
É um composto químico construído por nitrogênio e hidrogênio, utilizavam durante o regime militar para
sufocar as pessoas.
13
Olhos.
14
Lugares inóspitos: inabitáveis, sem condições de manter a vida.

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dos militares para tortura-las psicologicamente, muitas vezes ameaçando a vida dos filhos
delas, assim como relata. Essas posições e maneiras de torturas são extremamente bárbaras,
de extrema violência ao ser humano que causariam graves problemas futuros na vida das
sobreviventes.
O Filme “Que Bom Te Ver Viva” (1989) mostra os depoimentos chocantes de
mulheres que passaram por diversas dessas maneiras de torturas e sobreviveram. Algumas
dessas mulheres passaram muito tempo vendo os torturadores em todos os lugares que
frequentavam ou terem adquiridos problemas de saúde, como por exemplo, crise de soluços
quando pressionadas, ou depois das torturas as quais Regina Toscano15 foi submetida, crises
de epilepsia que se tornaram mais frequentes e severas.
Sobreviver é até um instinto animal, né? Você tem que sobreviver.
Agora, ter sobrevivido e sem ter enlouquecido é a grande vitória da
gente, é a grande verdade. (Que bom te ver viva, 1986).
Não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos. E isso
nós temos muito! – Maria Amélia de A. Teles (As Vítimas da
Ditadura, 2014).
Se tem uma coisa que os torturadores estavam certos é em dizer que
marca de tortura não passa, não passa mesmo. – Rose Almeida (As
Vítimas da Ditadura, 2014).

A vida na clandestinidade também não era fácil, além de toda a dificuldade que
passavam por ficar distantes de amigos e família e terem que se esconder, os filhos das
militantes precisavam viver longe do núcleo familiar principal, como pais, para que não
fossem pegos para serem usados como pressão psicológica nas presas, ou até mesmo.
Chegando a viver com os avós para evitar os mesmos problemas.
Após tudo isso, Magda Neves, no documentário “Memórias Femininas da Luta Contra
a Ditadura Militar” (2015), relata a criação do Comitê Feminino pela Anistia, fundado em São
Paulo por Teresinha Zerbini. E, em 1976, um ano após a ONU colocar em destaque a mulher,
o movimento se espalha e Magna Neves saiu à procura de pessoas que desejavam fazer parte
do movimento, por exemplo, companheiras(os) que tinham maridos (ou esposas) presas, mães
com filhos exilados, para assim começar o movimento e assim virar o Comitê Brasileiro pela
Anistia16.
Após toda esta análise, pode-se concluir que as torturas estavam ligadas muito mais à
questão de humilhá-las, mostrar que apesar de toda a sua militância, eles poderiam fazer com
elas o que eles bem entendessem.

15
Militante da organização guerrilheira MR-8, é torturada e fica um ano na cadeia em 1970. Tem três filhos e
trabalha como educadora
16
Formado em 1978 formados por advogados, amigos e parentes de presos políticos.

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O objetivo de tamanha violência aplicada de várias formas contra essas mulheres era
distribuir horror, tinham um teor sexista de ver a mulher como um objeto pertencente a eles,
muitas vezes sexual, que se faz muito presente nos relatos das vítimas. A todo o momento se
fazia presente o ar de superioridade, de serem usadas para extrair informações sobre os grupos
militares, entretanto, não há justificativa para qualquer motivo que os levou a praticar
tamanha crueldade contra elas, contra os direitos humanos, contra os direitos de cidadã.

Referências

As vítimas da Ditadura – Depoimentos (2014) – Disponível em: <http://youtu.be/L-u7-


mq_U48>. Acesso em: 23 de Maio de 2018.
Comissão Nacional da Verdade – Disponível em: <https://www.memoriaditadura.org.br>.
Acesso em: 03 de Abril de 2018 e 25 de Maio de 2018.
Diálogo sem Fronteira – Mulheres e Trauma da Ditadura Militar – Disponível em:
<https://youtu.be/koKlqGYAJsc>. Acesso em: 22 de Maio de 2018.
Ditadura Militar e violência sexual (2015) – Disponível em:
<https://youtu.be/0rY9KK69XXE>. Acesso em: 19 de Maio de 2018.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. Ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
Jornal GGN. Testemunho de mulheres que foram vitimas da ditadura militar. Disponível em:
<https://www.jornalggn.com.br/blog/iv-avatar/o-testemunho-de-mulheres-que-foram-
vitimias-da-ditadura-militar-0>. Acesso em: 20 de Maio de 2018.
Memórias Femininas Contra a Ditadura Militar (2015) – disponível em:
https://youtu.be/YWtuhUsn5ao. Acessado em 18 mai. 2018.
Que Bom Te Ver Viva (1986) Disponível em: <https://www.youtu.be/EAD3Mf4aXuE>.
Acesso em: 21 de Maio 2018.
Relatório: Tomo II: Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-
1985).
Repare Bem (2015). Disponível em:
<https://www.youtube.com/playlist?list=PL7UwKVJ6n_6WIjIJI3IyK4o35EUaTsfGo>.
Acesso em: 22 de Maio de 2018.
RIDENTE, S. Marcelo. As mulheres na política brasileira: os anos de chumbo. Tempo
Social; Rev. Social, 2(2), São Paulo. 2. Sem/1990
TELES, A. A. Maria. O protagonismo de mulheres na luta contra a ditadura militar. RIDH.
Bauru, v. 2, n. 2, Bauru- SP. jun/2014.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p303 311


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TOMAZONI, Larissa. A mulher na ditadura militar: uma análise das limitações e


consequências da participação politica feminina. Cad. Esc. Dir. Rel. Int. vol. 1, n. 22,
Curitiba-PR. jan/jun, 2015.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p303 312


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Assédio no transporte público coletivo em Ponta Grossa/PR:


Apontamentos e problematizações

Juliana Yuri Kawanishi1


Rafael Bozzo Ferrareze2

Resumo: O objetivo deste trabalho foi o de investigar o assédio no transporte público coletivo
(ônibus) como uma problemática presente no município de Ponta Grossa/PR.
Especificamente, através desta proposta objetivou-se constatar se o assédio é uma realidade
das mulheres que usam os ônibus como meios de transporte público no município referido;
trabalhar as relações de gênero vividas no cotidiano destas mulheres e fomentar dados
empíricos para futuras pesquisas, comunidade e demais pesquisadores. A metodologia
empregada nesta proposto centrou-se na pesquisa quanti-qualitativa, nas fontes bibliográficas
e documentais. Em meio ao campo de pesquisa utilizamos o questionário estruturado
(fechado) e a técnica de observação e como técnica de análise para o tratamento das
informações, nos apropriamos da análise de conteúdo. Os locais onde a pesquisa foi realizada
foram: o Centro de Especialidades da Mulher (CEM), o Terminal Central e a Rodoviária
Municipal, totalizando 27 mulheres participantes desta proposta. Concluímos nesta pesquisa é
que sim, mulheres são assediadas de deferentes formas ao utilizarem transporte público
urbano (ônibus); que os mesmos não fornecem seguranças para as mulheres e que mesmo
sofrendo diferente tipos de assédio as mulheres por medo, intimidação, desconhecimento e/ou
descrença em nosso sistema público de segurança não realizam denúncia sobre o assédio
ocorrido.
Palavras-chaves: Mobilidade urbana; Assédio; Mulher; Direito à cidade.

1
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais Aplicadas (PPGSCA/UEPG); kawanishi.juliana@gmail.com.
2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE); Mestre em Desenvolvimento Comunitário
(PPGDC/UNICENTRO); rafaelferrareze@hotmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 313


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Introdução.

A história se mostra complexa em relação às construções sociais. Essas, por sua vez,
se apresentam na sociedade ditando comportamentos, influenciadas pela cultura, política e
outros fatores que são determinantes nas relações de gênero, na construção da sociedade e
formação das cidades. Nesse contexto, surge o meio de transporte público e coletivo na
tentativa de facilitar a vida das pessoas que residem nos centros urbanos e nas bordas
periféricas. O transporte público coletivo é tão relevante, que se consolidou como um direito
social pela Constituição Federal de 1988. Dessa maneira, diariamente homens e mulheres
utilizam esse meio para fazer o seu deslocamento. Mas através da história verificamos que a
mulher esteve em uma condição de maior vulnerabilidade na sociedade.
Nesse cenário, as cidades demonstram que não estão preparadas para receber as
mulheres, as quais enfrentam diariamente dificuldades para ter acesso aos direitos e cidadania
e no uso do transporte público não se mostrou diferente. Assim, quando as mulheres passam a
usar o transporte público para a locomoção, elas acabam por esbarrar em outro obstáculo, o
assédio. Devido à importância do modo como as cidades se organizam, o direito à cidade, à
mobilidade urbana e ao transporte público, a pesquisa tem como tema central o assédio que as
mulheres sofrem no transporte público.
O objetivo deste trabalho foi o de investigar o assédio no transporte público coletivo
(ônibus) como uma problemática presente no município de Ponta Grossa/PR.
Especificamente, através desta proposta objetivou-se constatar se o assédio é uma realidade
das mulheres que usam os ônibus como meios de transporte público em Ponta Grossa/PR;
trabalhar as relações de gênero vividas no cotidiano destas mulheres e fomentar dados
empíricos para futuras pesquisas, comunidade e demais pesquisadores.
A metodologia empregada nesta proposto centra-se na pesquisa quanti-qualitativa,
onde primeiro processamos todas as informações coletadas para em seguida apresentarmos
tais informações em categorias analíticas. Essa técnica se expressa no pensamento de Minayo
quando a autor afirma que “o estudo quantitativo pode gerar questões para serem
aprofundadas qualitativamente e vice-versa” (MINAYO & SANCHES 1993). Recorremos
também as fontes bibliográficas e documentais, nos permitindo intender a cobertura de
fenômenos mais amplos do que os pesquisados diretamente (GIL, 2008); Utilizamos em meio
ao campo de pesquisa questionário estruturado (fechado) direcionado para as mulheres que
utilizam o transporte público. E como técnica de análise para o tratamento das informações,

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nos apropriamos da análise de conteúdo. Junto a todas essas técnicas, a observação se fez
presente, complementando todo o processo para chegar até o resultado final da pesquisa, se
transformando em uma aliada na leitura dos dados coletados.
A observação constitui elemento fundamental para a pesquisa. Desde a formulação do
problema, passando pela construção de hipóteses, coleta, análise e interpretação dos dados, a
observação desempenha papel imprescindível no processo de pesquisa. É, todavia, na fase de
coleta de dados que o seu papel se torna mais evidente. A observação é sempre utilizada nessa
etapa, conjugada a outras técnicas ou utilizada de forma exclusiva. Por ser utilizada,
exclusivamente, para a obtenção de dados em muitas pesquisas, e por estar presente também
em outros momentos da pesquisa, a observação chega mesmo a ser considerada como método
de investigação (GIL, 2008). Por meio dessa técnica foi possível observar e fazer a leitura dos
movimentos corporais das mulheres ao responder as perguntas do questionário.
A fim de facilitar a visualização dos resultados da pesquisa, todos os dados coletados
foram tabulados, sistematizados e transformados em gráficos referente às perguntas do
questionário. Os locais onde realizamos a pesquisa foram: o Centro de Especialidades da
Mulher (CEM) onde neste, participaram 10 mulheres, o Terminal Central onde 11 mulheres
também participaram desta pesquisa e a Rodoviária Municipal contando com a participação
de 06 mulheres para a realização deste trabalho, totalizando assim 27 mulheres participantes
desta proposta.

Apontamentos em torno do conceito de cidade, mobilidade urbana e políticas públicas.

A cidade, como fruto das relações e transformações que ocorrem ao longo da história,
também é responsável por gerar muitos problemas de ordem social, assim como a falta de
estrutura para a população urbana, o que repercutiu diretamente na mão-de-obra para as
grandes indústrias. Nas grandes fábricas o proletariado trabalhava em condições insalubres e
com jornada de trabalho excessiva, refletindo nas demandas sociais da classe trabalhadora.

A história dos tecelões manuais ingleses ou dos colonos do café do Brasil, por
exemplo, mostra que, juntamente com a classe operária, se formam um imenso
exército industrial de reserva de trabalhadores excedentes, que jamais encontraram
emprego regular, sendo obrigados a sobreviver através de trabalhos precários. A
presença desse exército industrial de reserva permite aos empregadores pagar
salários subnormais, impor aos operários jornadas excessivamente longas de
trabalho e empregar por salários ainda menores, mulheres e crianças. (SINGER,
1932, p.69 -70)

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Como consequência do deslocamento de pessoas, gerou-se um inchaço urbano, pois as


cidades eram desprovidas de infraestrutura para abrigar toda a população que migrava de uma
área para outra. Neste cenário, tem-se que pensar no processo de desenvolvimento da cidade,
seus problemas (inclusive o assédio sexual sofrido pelas operárias, entre tantos outros
sinistros) até se situar naquilo que se compreende hoje como direito à cidade.
Simultaneamente ao processo de crescimento das cidades surge a necessidade por melhores
condições de vida para os sujeitos que moram nos centros urbanos e ao redor também. Essas
condições são possibilitadas por meio das políticas públicas sociais e abordagens na saúde,
educação e ampliação de programas e equipes técnicas para o trabalho, pensando na
necessidade de acesso dos sujeitos aos equipamentos públicos, à cidade, escolas, unidades de
saúde, etc. Segundo Behring e Boschetti (2006, p. 51) as,

políticas sociais e a formação dos padrões de proteção social são desdobramentos e


até mesmo respostas e formas de enfrentamento – em geral setorializadas e
fragmentadas – às expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo
fundamento se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho.

Estas cidades funcionam como um campo magnético que atrai grande parte da
população justamente por oferecer melhores condições de vida, emprego, educação, saúde
entre outros serviços. Porém, também surgem contradições nesse espaço, justamente pelo
inchaço urbano que é uma consequência da atração que as cidades geram. O espaço urbano
entra como parte fundamental para a acumulação do capital, focando em vários âmbitos do
mercado, cedendo espaço para o crescimento do sistema capitalista. Nesse sentido, as cidades
promovem um meio de organização através do capital. Consequentemente ocorre o
desenvolvimento, o que atrai mais pessoas em busca de uma qualidade de vida melhor. Mas
também nesse espaço urbano ocorrem os grandes embates e lutas de classes, ocorre, ainda, a
transformação do meio natural devido às atividades antrópicas. A cidade pode se apresentar
como um palco concreto para a produção e comercialização de bens e serviços justapostos
entre si. Tais ações desempenhadas pelos seres humanos transformam o meio natural e o meio
social, por consequência, modificando e remodelando o solo e as cidades nele fundamentadas.
(ROLNIK, 2004).
Segundo Rolnik (2004) o conceito de cidade vai além das edificações, casas,
comércios, entre outros. Assim, expõe outras questões que são fundamentais para a
construção da área urbana como a política, gestão, tecnologia e outras.

O espaço urbano deixou assim de se restringir a um conjunto denso e definido de


edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre

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o campo. Periferias, subúrbios, distritos indústrias, estradas e vias expressas


recobrem e absorvem zonas agrícolas num movimento incessante de urbanização.
No limite, este movimento tende a devorar todo o espaço, transformando em urbana
a sociedade como um todo. (ROLNIK, 2004, p.12)

Cada cidade tem suas peculiaridades devido às relações sociais existentes, então elas
acabam adquirindo certas características trazendo em sua estética urbana uma própria história
a ser contada quando se observa a forma de como são as construções. Assim, “a aparência de
uma cidade e o modo como os seus espaços se organizam formam uma base material a partir
da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de possíveis sensações e práticas
sociais.” (HARVEY, 1989 p. 69)
O uso do transporte público é apenas uma parte das inúmeras possibilidades que são
legitimadas dentro da cidade. Desse modo o espaço urbano se revela como um ambiente para
agregar todos os cidadãos independentemente de raça, orientação sexual, gênero ou por falta
de mobilidade, assim também é nesse cenário que ocorrem as lutas sociais em prol de um
coletivo, mas é necessário reconhecer a diferença de gênero para que a mulher tenha as
mesmas condições de acessibilidade à vida urbana que o homem, objetivando a redução e
eliminação das diferenças socioterritoriais dentro do espaço urbano. Segundo GUASCH
(2005, p. 03) o,

derecho a la ciudad, entendido como la posibilidad de participar en las


actividadesque el medio urbano ofrece y como la inclusión de las personas en las
distintas esferasurbanas (productiva, comercial, de ocio, asociativa, etc.) sólo puede
ser real si existe unadecuado acceso a los bienes, servicios y actividades que ésta
ofrece (SEU, 2003). Laaccesibilidad hace referencia a la facilidad con que cada
persona puede superar ladistancia que separa dos lugares y de esta forma ejercer su
derecho como ciudadano.

O modo que a sociedade brasileira se organiza retrata traços da segregação social 3.


Isso se torna mais visível quando se observa as limitações que as mulheres têm em relação à
liberdade de ir e vir, mas esse direito é frequentemente violado de acordo com os meios que
são ofertados a mobilidade urbana para essas mulheres. Podendo as colocar em risco por
diversos fatores. Segundo Pinheiro (2017):

A cidade é perversa especialmente para as mulheres ao restringir ou até bloquear o


seu direito de ir e vir tranquilamente. Ônibus lotados, paradas longínquas, terrenos
baldios, iluminação precária e ruas sem movimento são um risco real à sua
integridade física. Dificuldade de acesso a escolas e creches, as longas horas nos

3
Segregação Social: Castells (1), define como a “tendência à organização do espaço em zonas de forte
homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida
não só em termos de diferença, como também em hierarquia” (CASTELLS, 1983, p. 210).

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hospitais e postos de saúde, o esgoto na porta de casa, acarretam mais entraves à sua
rotina doméstica – já que o espaço da reprodução social continua, “por excelência”,
sendo seu. Preferência na contratação de homens, salários mais baixos, assédio,
tornam a rotina profissional também mais dificultosa para elas. Violência doméstica
e violência urbana se somam a muitas das situações vivenciadas. (PINHEIRO, 2017,
p 44)

Cada cidade está em constante expansão e consequentemente o seu espaço geográfico


se amplia isto desemboca no aumento das distâncias que os sujeitos precisam percorrer para
acessar à cidade de um ponto ao outro. As cidades têm como propósito servir aos interesses
coletivos e atender as maiores demandas que surgem conforme as mudanças que ocorrem.
Para que haja o direito à cidade é preciso pensar em uma gestão democrática, na qual todos
tenham voz e possam participar, garantindo que assim todos os espaços sejam ocupados.
Dessa forma as políticas públicas sociais são um conjunto de ações voltados para
solucionar os problemas que sejam de interesse coletivo, assim possibilitando melhorar as
condições de infraestrutura, saúde, assistência, educação e outros segmentos. A mobilidade
urbana é uma forma de inclusão social que promove o acesso as áreas que as cidades
possuem.
Através da locomoção os indivíduos exercem seus papeis dentro das cidades. A
mobilidade urbana deve ocorrer com qualidade, pois reflete diretamente na vida dos
habitantes, porém, para se pensar em uma mobilidade eficiente e eficaz, existe a dependência
de decisões políticas as quais determinam como será aplicada a mobilidade urbana de acordo
com o plano de cada cidade. Ao se pensar em uma rede articulada de mobilidade urbana, é
possível favorecer o desenvolvimento em outros setores da cidade.
Quando discutimos o processo histórico da luta das mulheres em ocupar os espaços e
acessar a cidade, o transporte público está atrelado a essa realidade como um aliado para que
as mulheres realizassem seus deslocamentos diariamente, porém quando elas passam a usar o
meio de transporte se deparam com outra manifestação da questão social, as relações de poder
se fizeram presente mesmo nesse ambiente público, reforçando a hierarquia construída
socialmente. Dessa forma, não tem como falar em assédio se não fizer recortes na história que
demonstram as correlações de forças que implicam na subordinação do papel da mulher.

Violência de gênero e assédio no transporte público em Ponta Grossa/PR.

Para adentrar na temática da pesquisa, assédio no transporte público, será necessário


explanar sobre a questão de gênero no sentindo de compreender a sua importância e as

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representações dentro da sociedade. O conceito de gênero permite “entender processos de


construção/reconstrução das práticas das relações sociais, que homens e mulheres
desenvolvem/vivenciam no social" (BANDEIRA e OLIVEIRA, 1990, p.8). As relações que
envolvem gênero são dialéticas refletindo as vivências em sociedade, tratando da relação dos
sujeitos sociais, entendendo que na sociedade atual não existe igualdade de gênero.

[...] o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos.
O seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de
que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O
gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É
uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado (8). Com a proliferação dos
estudos do sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra particularmente
útil, porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos
às mulheres e aos homens. (SCOTT, 1989, p.7)

Scott (1994) descreve as relações de gênero que perpassam a história que deixam claro
o papel do homem e da mulher, atribuindo as questões do patriarcado e as grandes
desigualdades e opressões, sendo gerado a partir do modo de como a sociedade se organiza.
As diferenças são percebidas no modo como a sociedade se fundamenta, ressaltando o papel
da mulher de subordinação ao homem. Ainda a sua entrada no mercado de trabalho foi de
forma tardia, também a questão salarial desencadeava um valor inferior pelo mesmo trabalho
que o homem prestava. São vários os autores que conceituam gênero, porem o conceito que a
autora Scott (1994) desenvolveu é o mais apropriado para esse trabalho. Para ela gênero é,

... a organização social da diferença sexual percebida. O que não significa que
gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e
mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece significados para as
diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos
sociais e no tempo, já que nada no corpo […] determina univocamente como a
divisão social será estabelecida. (Scott, 1994, p. 13)

Quando se pensa em gênero não se pode esquecer as representações culturais


dominantes que interferem nos modos de se vestir, no labor, nas atividades habituais, entre
outras. São normas e valores morais ou seja códigos de comportamento de acordo com a
construção da sociedade que influencia a vida dos sujeitos. Essas relações não ocorrem de
forma igualitária historicamente, pois culturalmente a mulher foi incumbida de cuidar do lar e
dos filhos.

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A violência de gênero pode ser exercida tanto pela mulher quanto pelo homem, porém
quando estudamos a história verificamos que é a mulher que está mais exposta a violência – o
assédio é uma destas violências. A construção cultural de mulher ideal e de respeito acabam
interiorizado, mesmo que inconscientemente a terem um determinado tipo de comportamento,
sobretudo erigido na ideia do RECATADA e do LAR. Isto por si só já é uma violência de
gênero. Assim, o entendimento sobre violência de gênero representa,

[...] toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral,


psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a
organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos,
explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual
(SARDENBERG, 2011, p. 1)

A violência incide com uma taxa alta sobre a mulher em muitos âmbitos e espaços,
sendo vários os tipos de violência como a: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Estas ações violentas sobre os corpos femininos são naturalizados pela cultura do patriarcado
sendo repassados através das gerações. O gênero está ligado à valores e a função de papéis
sociais, mas quando partimos para a violência de gênero existe a naturalização desse papel
social. No caso da mulher, o próprio sistema cultural faz com que se torne invisível algumas
ações justamente pela formação da base da sociedade ter sido construída no patriarcado. É
inerente a constituição da família estando explícita nos papéis designados à mulher em relação
à concepção “naturalista” e “essencialista” de sua condição de gênero, desconhecendo o
caráter de condição cultural que este reveste (DOROLA, 1989).
A violência e o assédio aumentam conforme a deficiência presente na mobilidade
urbana. A falta de um meio de transporte público e coletivo em que haja qualidade contribui
com a segregação das mulheres com o espaço urbano, pois a simples atividade diária de usar
um meio de transporte coletivo se torna difícil, impossibilitando-as de viver e usar tudo que a
cidade oferece.
São muitas as mulheres que sofrem assédio na rua ou no transporte público. Segundo a
pesquisa realizada pela jornalista Karin Hueck, para a campanha “Chega de FiuFiu 4”, 98%
das mulheres responderam que já foram assediadas na rua e 64% no transporte público. É
interessante ressaltar, ademais, que 81% das mulheres responderam que já deixaram de fazer
alguma coisa pelo medo do assédio. Para justificar e salientar a relevância do tema, a

4
Chega de FiuFiu: é uma campanha contra o assédio foi criada para lutar contra o assédio sexual em locais
públicos. Mas queremos aqui também lutar contra outros tipos de violência contra a mulher.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 320


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campanha “Chega de FiuFiu” criou um site através do qual as mulheres de todo o país podem
descrever o assédio e como se sentem, na busca por mais informações.
O assédio no transporte coletivo em sua maioria ocorre através de olhares e palavras,
podendo ou não ocorrer o contato físico. O assédio praticado pode ser uma reafirmação de
masculinidade. Para Hirigoyen (2005) o assédio moral no

contexto sociocultural atual, de forma geral, induz-nos à cegueira, à tolerância e à


complacência, levando-nos a banalizar tal forma de perversão, que tem origem em
um processo inconsciente dei destruição psicológica. Justifica que se utiliza dos
termos "agressor" e "agredido", por entender que se trata de uma violência
declarada, mesmo quando oculta, na qual o processo de destruição moral do outro,
pode levá-lo à enfermidade mental ou, em casos extremos, ao suicídio
(HIRIGOYEN, 2005, p. 7)

Reforça a ideia de o homem se afirmar e reforçar a própria posição de “dominação”


construída culturalmente. Um aspecto que está muito implícito é a construção dos papéis
sociais e de que forma homens e mulheres assumem estes. Segundo Bourdieu (2012 p. 96).

A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo


ser (esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito coloca-las em permanente
estado de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem
primeiro pelo, e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos,
atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas”, isto é, sorridentes,
simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas.

Assim o assédio ocorre em qualquer ambiente por diversos motivos, o que resulta na
própria mulher deixando de ocupar algum espaço por medo da violência machista presente na
nossa sociedade. No transporte coletivo o assédio pode se intensificar devido à superlotação
ou horários de pico, visto que tantos homens quanto mulheres fazem o uso do transporte para
a locomoção não se pode ignorar a temática.
Para obtenção dos dados a serem analisados, 27 mulheres aceitaram responder
voluntariamente um questionário. Não houve um critério para abordar as mulheres, isso
ocorreu de forma aleatória conforme a disponibilidades delas. Nem toda mulher que
respondeu o questionário foi assediada, segundo suas percepções sobre o assédio. Algumas
aceitaram responder, porém quando era solicitado que assinalassem o termo de livre
consentimento se recusaram a assinar, descartando assim seus questionários.
Na função de facilitar a visualização das informações referente às amostras de
pesquisa, foi elaborada uma tabela onde os dados foram tabulados cuja função foi categorizar
e deixar claro as porcentagens de cada informação em meio a este trabalho.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 321


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TABELA 1 – Dados sobre o assédio no transporte público em Ponta GROSSA/PR.

Local Nº de Faixa Estado Já foi Quantas Sabem onde


mulheres etária Civil assediada vezes pode
denunciar o
assédio

1 A cima Solteira Sim Várias Não


de 40 vezes
anos

2 26 à Solteira Sim Várias Não


33 vezes
anos

3 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

4 18 à Casada Sim Várias Não


25 vezes
anos
5 18 à Solteira Sim Várias Não
25 vezes
anos

Terminal 6 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

Central 7 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

8 A cima Casada Não - -


de 40
anos
9 18 à Viúva Sim Várias Não
25 vezes
anos

10 A cima Solteira Sim Uma vez Não


de 40
anos

11 26 à Separada Não - Não


33
anos

12 34 à Solteira Não - Não


40
anos

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 322


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13 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

Rodoviária 14 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos
15 18 à Solteira Sim Várias Não
25 vezes
anos

16 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

17 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

18 A cima Casada Não - Não


de 40
anos

19 34 à Solteira Sim Várias Não


40 vezes
anos

20 18 à Casada Sim Várias Não


25 vezes
anos

21 18 à Solteira Sim Várias Não


25 vezes
anos

Centro de 22 A cima Viúva Não - Não


de 40
anos

Especialidades 23 18 à Casada Sim Várias Não


25 vezes
anos

da Mulher 24 26 à Casada Sim Várias Não


33 vezes
anos

25 26 à Casada Sim Várias Não


33 vezes
anos
26 34 à Casada Sim Várias Não
40 vezes
anos

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 323


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27 34 à Casada Sim Várias Não


40 vezes
anos

Fonte: A autora, 2017.

Os dados foram coletados em alguns lugares estratégicos, focando nas mulheres que
fazem uso do transporte público coletivo no município de Ponta Grossa – PR, para isso foi
delimitado quatro lugares: Rodoviária, Terminal Central, Aeroporto e Centro de
Especialidades da Mulher. Para obter as informações foi aplicado um questionário fechado
que continha 20 perguntas ao total. Para o artigo foi elaborada a tabela contendo informações
principais para contemplar a pesquisa.
Ressalta-se a importância em compreender através destas informações que o assédio
dentro no transporte público coletivo ocorre em várias faixas etárias e independentemente do
estado civil. Outro dado importante, mais das metades das mulheres afirmam já terem sofrido
assédio por várias vezes, vivenciando essa violência diariamente quando exerce o seu direito à
cidade.
Um dado alarmante é referente ao número de mulheres que desconhecem um
local/lugar/órgão para denunciar quando sofre o assédio dentro do transporte público coletivo.

Considerações finais.

O que pudemos concluir nesta pesquisa é que sim, mulheres são assediadas de
deferentes formas ao utilizarem transporte público urbano (ônibus); que os mesmos não
fornecem seguranças para as mulheres e que mesmo sofrendo diferente tipos de assédio as
mulheres por medo, intimidação, desconhecimento e/ou descrença em nosso sistema público
de segurança não realizaram/realizam denúncia sobre o assédio ocorrido, incutindo assim,
muitas vezes, como vimos nos dados das 6 participantes que relataram nunca terem sido
assediadas pois ‘se dão ao respeito’, que a culpa por terem sido assediadas é das mulheres e
não de uma cultura machista que legitima veladamente tal violência ao homem.

Referências bibliográficas.

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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p313 324


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O debate da violência contra a mulher no processo e na experiência do parto em Belo


Horizonte/MG.

Letícia Vulcano de Andrada1

Resumo: O presente artigo possui como objetivo geral realizar uma crítica ao fenômeno da
violência obstétrica no parto da mulher, analisando falas de quatro parturientes na última
década na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Para alcançar o objetivo proposto, foi
realizada revisão da literatura a respeito do tema, utilizando não somente livros, pesquisas e
artigos da área, mas também casos relatados em redes sociais, notícias divulgadas na mídia
digital, impressa e televisiva. Ao apresentar o objetivo deste projeto, tem-se em mente que a
melhor maneira de se interpretar a narrativa e os sentidos atribuídos à prática de violência
obstétrica por mulheres, se dá através do método de pesquisa qualitativa. De acordo com
Minayo (2001), “a pesquisa qualitativa pode responder a questões muito particulares, se
preocupando com um nível de realidade que não pode ser quantificado” (Minayo, 2001. P.22).
Por isso, realizei entrevistas semi-estruturadas direcionadas para quatro mulheres que
experimentaram o parto de 2008 a 2018, buscando identificar relatos condizentes com a
definição da violência obstétrica. A violência obstétrica durante a gestação e parto podem ser
caracterizadas por: negação do atendimento à mulher, comentários humilhantes a mulher no
que diz respeito a sua cor, idade, religião, escolaridade, classe social, estado civil, orientação
sexual, número de filhos; palavras ofensivas até mesmo a sua família; humilha-la; agendar
cesárea sem recomendação baseadas em evidencias cientificas, atendendo as necessidades e
interesse do próprio médico. (Dossiê Rede de Parto do Princípio, 2012). Procurei diferenciar
as entrevistadas por classe social, raça/etnia, idade das parturientes no momento do parto. A
busca por essas mulheres envolveu contato com a minha rede social, indicação de conhecidos,
colegas e amigos. Resultados: Percebi nas falas das entrevistadas uma fragilidade entre o
vínculo do profissional de saúde e a mulher em situação de parto nos hospitais públicos aos
quais as entrevistadas passaram. Já a experiência relatada em acompanhamento particular foi
respeitosa e acolhedora com a entrevistada. As falas dessas mulheres exibem uma banalização
da dor e do sofrimento alheios, falta de atenção e cuidados, omissão de informação e
equívocos médicos pelos profissionais de saúde e as atenderam.

Palavras-chaves: Violência obstétrica; Parto; Gestação; Violência de gênero.

1
Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; let.vulcano@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p326 326


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Introdução
As discussões que envolvem as violências contra a mulher há algumas décadas tem
ganhado força no cenário contemporâneo. Apesar do esforço de diversas entidades e do
movimento feminista para que sejam erradicados os casos de violência, ainda é possível
identificá-las em inúmeras esferas da vida da mulher. O caso da violência obstétrica não é
diferente. Falar de parto é falar não apenas das emoções ligadas àquela experiência, mas
abordar questões voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos, abrangendo realidades além do
íntimo, do privado. São questões que se perpetuam nas políticas de saúde pública, saúde da
mulher e também do feto. Além de se revelar como uma discussão relativamente recente, a
detecção de casos de violência obstétrica, dadas as definições disponíveis para construção
deste artigo, podem ser ocasionalmente identificadas por meios comuns, algumas vezes em
relatos de mulheres próximas a nós e que não possuem noção da situação de violência a qual
foram expostas.
Para refletir sobre o histórico de luta por superação das injustiças entre sexos e
gêneros, faz-se necessário compreender os processos de emancipação e afirmação dos direitos
das mulheres. Esses processos aconteceram e acontecem em contextos históricos, sociais e
culturais diversos, por isso, são encontradas tantas realidades desiguais em todo mundo.
Historicamente as mulheres são subjugadas em relação aos homens, com uma submissão
culturalmente construída, baseada na ideia de que existe diferença entre homens e mulheres,
sendo a mulher um ser inferior, o que sustenta o fenômeno da violência de gênero (Beauvoir,
2016).
O conceito de violência é considerado uma construção cultural uma vez que, para
alguns países, determinadas práticas são consideradas violência e até mesmo crime e em
outros não. De igual forma, em determinados momentos históricos uma ação pode ser
considerada violência e pode vir a não ser em momento posterior, fruto das mudanças sociais
que as sociedades enfrentam constantemente.
O Código Penal Brasileiro, de 1940, define vários tipos de violência, em seu artigo
136, qualificando como o ato de expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua
autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer
privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo
ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina.
Por isso, o que caracteriza uma situação como prática violenta contra a mulher
envolve uma discussão profunda de termos, contextos, desigualdades e relações de poder. São
tantos os possíveis cenários e formas de violência que podem ser caracterizados nos estudos

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p326 327


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acadêmicos como violência contra a mulher que é preciso estabelecer um foco de estudo.
Nesse sentido, este artigo pretende abordar uma recente discussão e caracterização de prática
violenta contra a mulher: a violência sofrida nos processos e experiências que envolvem o
parto, conhecida também pelo termo violência institucional na atenção obstétrica ou somente
violência obstétrica (Aguiar, 2010; Miranda, 2015).

Violência Obstétrica, o que é?


Em um dos esforços para categorizar e definir o termo “violência obstétrica” foi
elaborado em 2012, pela Rede de Parto do Princípio para a Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito (CPMI) da violência contra a mulher, um dossiê no qual as autoras colaboradoras do
dossiê reproduzem discursos e narrativas de mulheres vítimas de violência obstétrica. Na
definição conceitual deste tipo específico de violência, além das leis que criminalizam a
violência obstétrica na Venezuela e na Argentina, foram incluídas novas categorias de análise,
tais como: “caráter físico; caráter psicológico; caráter sexual; caráter institucional; caráter
material, e; caráter midiático” (Dossiê Rede de Parto do Princípio, 2012, p.58). As ocasiões
nos quais a violência obstétrica é sofrida por mulheres podem aparecer no transcorrer do
parto, durante a gestação, em abortamento e no processo de esterilização (Dossiê Rede de
Parto do Princípio, 2012, p. 60).
No Brasil, a ocorrência da violência obstétrica não é considerada como crime. Apesar
disso, a Lei 13.257/2016 assegura a todas as mulheres o acesso aos programas e às políticas
de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção
humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério com atendimento pré-natal, perinatal e pós-
natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Lei nº 13.257/2016 em seu
artigo 8º, § 8, deixa claro que a gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda
a gestação e ao parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras
intervenções cirúrgicas por motivos médicos. Existem diversas leis ao qual a prática da
violência obstétrica pode ser enquadrada no Brasil, mas não uma que unifique e objetive o
conceito da violência como crime do profissional de saúde, o que pode dificultar as denúncias
e ouvidorias contra acusados dessa prática violenta.
Em 2014, Deputado Federal Jean Willys, formulou um projeto de lei (PL 7633/2014)
que pretende, assim como na Venezuela, Argentina e México, tornar a prática de violência
obstétrica um crime no Brasil. A PL, entre outros pontos, aborda a obrigatoriedade no
cumprimento de leis já sancionadas, como direito da gestante: acompanhante de quarto,
tratamento com respeito e dignidade de mulheres que estão em trabalho de parto, abortamento

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e puerpério, garantia do direito da mulher grávida a um Plano Individual de Parto, no qual ela
deverá decidir se utilizará ou não métodos farmacêuticos para aliviar a dor, a posição em que
o parto irá se realizar e o monitoramento dos batimentos cardiofetais.
Estudos recentes têm contribuído significativamente para o avanço neste campo de
conhecimento, como a pesquisadora Juliana Z. Miranda (2015), que apresentou seu trabalho
em 2015 na XXI semana da mulher, realizada em Marília no estado de São Paulo, o qual
define que:
A violência obstétrica durante a gestação e parto podem ser caracterizadas por:
negação do atendimento à mulher, quando a mesma procura unidades de saúde
como postos de saúde, ou quando lhe impõe qualquer tipo de dificuldade onde está
sendo realizado o pré-natal; comentários humilhantes a mulher no que diz respeito a
sua cor, idade, religião, escolaridade, classe social, estado civil, orientação sexual,
número de filhos; palavras ofensivas até mesmo a sua família humilha-la; agendar
cesárea sem recomendação baseadas em evidencias cientificas, atendendo as
necessidades e interesse do próprio médico (MIRANDA, 2015, p. 3).

Para Miranda (2015), o debate acerca do tema no Brasil tem se fortalecido,


especialmente a partir de meados de 2011, quando as ferramentas virtuais começaram a
“aparecer como estratégia de comunicação e fortalecimento da autonomia das mulheres,
possibilitando o diálogo entre quem já viveu e quem ainda vai viver a experiência de parir”
(Miranda, 2015. p. 3). A caracterização da violência obstétrica ainda envolve o entendimento
do que seria a apropriação do corpo e de processos reprodutivos da mulher pelo profissional
de saúde, que se dá através do tratamento desumanizado, perda de autonomia, negligência,
incapacidade da vítima em decidir livremente sobre o seu corpo, e as consequências disso de
dão com uma série de impactos negativos na qualidade de vida da mulher.
Desse modo, entender o papel da mulher e também do profissional de saúde torna-se
fundamental para caracterizar a violência obstétrica no momento do parto. Análises como a de
Rothman (1991), mostram como o modelo médico vê os processos da gravidez e do parto de
uma perspectiva tecnológica e masculina. Para a autora, a revolução que se deu no processo
médico de apropriação do parto e da gestação foi realizada por médicos homens, já que a
mulher não tinha lugar nas faculdades de medicina ou em grupos de estudo (Rothman, 1991,
p.34).
Em contrapartida, o modelo alternativo de nascimento em hospitais, os casos de
partos realizados em ambiente doméstico por parteiras e/ou doulas, tentam combinar
elementos da medicina holística e natural, juntamente com a perspectiva da mulher parteira na
realização do ato. Atualmente é o modelo médico que predomina nas salas de parto na
sociedade contemporânea, principalmente no Brasil, onde as taxas de partos cesáreas

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ultrapassam em muito os 10 a 15% recomendados pelo relatório da Organização Mundial da


Saúde (OMS, 2014).

Gênero e violência no parto.


Entender o significado de gênero e identidade de gênero no contexto sociocultural é
crucial para a construção e pensamento das teorias sobre violência de gênero, e por
consequência, sobre a proposta deste artigo.
Em Foucault (1980), a sexualidade, especialmente para a mulher, é utilizada como
mecanismo de controle sobre o seu corpo, o que faz com que as diversas etapas que envolvem
o parto estejam cercadas de valor, dentro de cada contexto histórico, cultural e social
específico. Discutir o processo histórico relacionado ao parto envolve o aprofundamento de
esferas relacionadas à construção de gênero, sexualidade, território, realidade sociocultural,
econômica, história da medicina, atividade laboral relacionada à saúde entre outros.
Na formação da medicina social, Foucault (2007) traça uma linha histórica de
fenômenos sociais, políticos e econômicos que compõem a base de formação da medicina que
conhecemos hoje. Antes do século XVIII, os hospitais eram essencialmente uma instituição de
assistência aos pobres, com caráter higienista de retirada e aglomeração de doentes em uma
localização. A imagem que a instituição hospitalar gerava naquela época era de reclusão de
pessoas doentes ou de proteção dos não doentes que não habitavam o universo hospitalar. A
mudança se deu no inicio século XIX, em que o hospital foi medicalizado e a medicina
tornou-se hospitalar (Foucault, 2007, p.104).
Naquela época, essa mudança pouco interferiu no trabalho de parto, ato quase que
exclusivamente acompanhado por parteiras dentro da casa da parturiente. O parto tornou-se,
de fato, um evento médico em meados do século XIX (Foucault, 2007), quando a sociedade
ocidental já era quase que exclusivamente capitalista, em que era recorrente o discurso de
exaltação da maternidade como algo natural à mulher. O parto deveria ser acompanhado por
um profissional especialista, que trouxesse com segurança o bebê ao mundo. A interferência
médica no parto, ao longo dos anos, trouxe consequências como o aumento significativo da
taxa de partos cesáreos. O processo histórico de medicalização do corpo da mulher passa,
necessariamente pela ideia de que “existe uma natureza biológica determinante e dominante
da condição feminina. É justamente por meio dessa concepção que a medicina poderá se
apropriar do corpo das mulheres” (Vieira, 1999, p.68).
É indiscutível que a prática da cesárea, quando bem realizada e corretamente indicada,
possa vir a salvar a vida da mãe e do bebê, além de evitar danos a um dos dois, como

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neurológicos ou físicos. Entretanto, assim como qualquer cirurgia, a cesárea acarreta riscos
imediatos e em longo prazo. É crescente a preocupação de órgãos não governamentais e
também governamentais com o aumento no número de partos cesáreo e suas possíveis
consequências negativas para a saúde materna e infantil.

Metodologia
Ao apresentar os objetivos deste artigo, tem-se em mente que a melhor maneira de se
interpretar a narrativa e os sentidos atribuídos à prática de violência obstétrica em mulheres
vítimas seria através do método de pesquisa qualitativa, uma vez que “a pesquisa qualitativa
pode responder a questões muito particulares, se preocupando com um nível de realidade que
não pode ser quantificado” (Minayo, 2001. p.22). Por isso, este projeto pretende realizar
entrevistas semi-estruturadas com quatro mulheres que experimentaram o parto nos último
dez anos. Procurei diferenciar essas mulheres por classe social, etnia/raça, idade e
escolaridade, e assim realizar um comparativo desses perfis. Todas elas foram entrevistadas
com consentimento das mesmas, mantendo o compromisso de que nenhuma deles seria
identificada por seu nome verdadeiro. Todas moram em Belo Horizonte/MG e tiveram
experiências de partos nessa mesma cidade, sendo que uma entrevistada, com duas
experiências de parto, pariu seu filho caçula em Campo Grande/MS.

Caracterização das entrevistadas


A Tabela 1 mostra os principais dados das entrevistadas segundo as informações
ligadas à experiência do parto. Elas possuíam entre 19-39 anos no momento do parto, todas
realizaram pré-natal durante toda a gravidez e apenas uma teve seu filho em hospital privado.

Tabela 1 – Caracterização das entrevistadas segundo informações relativas ao parto.


Possuia plano de
Idade que teve o Quantos filhos
Nome² Idade saúde na ocasião do Fez pré-Natal Parto em Hospital
último parto (vivos) tem
parto
Adriana 27 25 2 Sim Sim Público
Bruna 20 19 1 Não Sim Público
Carla 31 30 1 Sim Sim Privado
Denise 40 39 3 Não Sim Público
2
Fonte: Elaboração própria, 2018

2
Todos os nomes das entrevistadas são fictícios para manter a confidencialidade das informações passadas.

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A Tabela 2 nos mostra dados socioeconômicos das mulheres parturientes. A maioria


se declarou de etnia/raça branca, três estão em uma relação estável, todas concluíram o ensino
médio e possuem rendas bem variadas.
Tabela 2 – Caracterização das entrevistadas segundo informações socioeconômicas.
Renda
Nome² Etnia/Raça Estado Civil Escolaridade Mensal Ocupação
(SM)
Adriana Branca Amigada Superior Completo 1 a 2 SM Autônoma
Bruna Parda Solteira Ensino Médio Não possui Desempregada
Carla Branca Casada Pós-Graduação 6 a 7 SM Advogada
Denise Branca Casada Magistério 3 a 4 SM Servidora Pública
Fonte: Elaboração própria, 2018

As entrevistas ocorreram em lugar privado, foram gravadas em um dispositivo


eletrônico e duraram entre 20 e 40 minutos. Conduzi as perguntas de maneira livre na medida
em que as entrevistadas foram fazendo seus relatos. Entrevi somente quando havia dúvidas na
fala e na descrição ou para complementar a informação.

Adriana
A entrevista de Adriana se deu na sua casa, entre os seus dois filhos, um nascido em
2014, outro em 2016. Ela tem 27 anos, mora com o pai dos meninos em uma casa alugada na
zona leste de Belo Horizonte. A sua primeira experiência de parto foi em um hospital público
da cidade. Segundo Adriana “é um hospital referência no país por respeitar as mulheres e
seus desejos no momento do parto”. O seu segundo parto ocorreu na cidade de Campo
Grande, Mato Grosso do Sul, onde ela e o companheiro moravam na época.
Em seu primeiro parto, Adriana tinha o desejo de que ele fosse normal ou natural.
Quando teve a primeira contração, a sua bolsa estourou. Assim que isso ocorreu, ela se
encaminhou ao hospital, e após consulta com um profissional de saúde, constatou apenas 3
centímetros de dilatação. Foi um momento de aguardar. Foram 5 horas de espera na recepção
até ser encaminhada a sala de pré-parto. Depois de mais 4 horas na sala de pré-parto, sem se
alimentar, Adriana conta que “eu já não estava agüentando mais, sentindo muita dor, ai
comecei a pedir anestesia. Eu tinha contratação, acordava, ai quando a contração parava eu
desmaiava. (...) isso era duas horas da tarde, quando deu quatro e meia, eu já estava “agora
eu não agüento mesmo”. Em seu relato, ela conta que a equipe médica a atendeu muito bem,
levou em conta o seu desejo de ter um parto natural, entretanto, as 16h:30, a própria
parturiente pediu a anestesia e foi atendida. As 18h, Adriana foi encaminhada a sala de parto,
onde ela relatou a volta da dor, mas sem a contração. “Muita dor, eu já estava há mais de 12h
lá, muita dor. Com fome, eu só tinha comido uma gelatina aquele tempo todo. Depois daquilo

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tudo, a equipe que eu tava gostando mudou o plantão e a outra [equipe] já era mais
secona.”. Depois de 40 minutos, o médico fez o toque e constatou que o bebê havia subido no
colo e por estar há mais de 20h em trabalho de parto, ela não tinha mais líquido amniótico e
precisaria realizar uma cesariana. “Ele não me perguntou se eu queria, ele falou que eu tinha
que fazer. Assim que ele falou eu vomitei na hora. Eu não quero fazer uma cesariana, mas ai
me veio um choque de realidade, eu não tô agüentando mais, eu não sei se eu tivesse a opção
de ir mais eu agüentava, sabe?”. Adriana concordou com o procedimento cirúrgico,
entretanto, relata que ninguém explicou o que iria acontecer, nem a ela nem ao seu
companheiro, que foi levado para a esterilização sem informação. Segundo ela, isso causou
um mal estar entre ele e a equipe médica, que só permitiram a sua entrada quase no
nascimento do filho. A operação ocorreu bem, ela relata apenas que no dia seguinte ao
nascimento do filho, a recuperação da cesárea foi bem dolorosa e difícil.
Por ter passado por uma cesárea no seu primeiro parto, Adriana optou por contratar
uma equipe de doulas para a preparação e realização do seu segundo parto. Na ocasião ela e
seu companheiro residiam em Campo Grande/MS. Adriana entrou em trabalho de parto 10
dias antes do nascimento em si, e todos os dias foram acompanhados pela doula. “No décimo
dia, certinho, a dilatação começou, então eu fui pro espaço onde elas [a doulas e a parteira]
ficam. Foi ótimo, eu recebi floral, massagem, fiz exercício com a bola, fiz tudo assim. Ai
quando eu tava com 7 centímetros, ela falou o seguinte: ou você vai para o hospital agora ou
você entra aqui na banheira, você da uma relaxada e a gente vê, você pode ter ele aqui
mesmo”. Falei: nó, demorou, quero ter ele aqui, vou ter ele aqui.” Entretanto, no momento
de preparação da banheira de parto, o registro estourou e impossibilitada de realizar seu parto
naquele local, Adriana foi encaminhada ao hospital público mais próximo de onde estava. A
acompanharam o seu companheiro e a doula. “Quando a gente chegou ao hospital, logo de
imediato eles não deixaram a doula entrar, sendo que tem uma lei que garante que você
tenha o seu acompanhante mais a sua doula, não deixaram ela entrar. Ai o marido da
parteira, que era advogado, ligou para o hospital para que deixassem ela entrar. Só que eu já
tinha entrado com meu companheiro porque eu não podia esperar, ele tava nascendo.(...)
tinha uma médica ótima, maravilhosa do SUS lá. Ela me botou naquela banqueta, ficou lá
esperando, na hora que vinha a contração ela ficava esperando, nem encostou. Vinha uma
enfermeira de meia em meia hora pra ouvir o batimento, tava tudo bem, tudo normal. Eu
estava com muita dor, estava dando umas uivadas, o meu companheiro me ajudando a
respirar e a contar comigo. Nisso as enfermeiras estavam ficando incomodadas porque
estava demorando mais tempo do que elas achavam que demoraria. Falavam que eu estava

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incomodando outras mulheres e mandando eu gritar baixo”. (...) A minha doula conseguiu
entrar e a me ajudar, de repente entrou a médica chefe, já mandou a doula encostar na
parede, nisso ela veio, pegou tipo um tampão, minha bolsa ainda não tinha estourado, ele
poderia ter nascido com a minha bolsa íntegra, no que ela pegou no tampão, assim que ela
cheirou e falou: “nossa! Você está com uma infecção, esse menino vai ter que nascer agora e
vocês vão ficar no antibiótico sete dias.”. Ela me tirou da banqueta e me deitou.” Adriana foi
colocada para fazer força para que seu filho nascesse. Ela relata grande aflição e medo a partir
do momento em que a médica afirmou que ela estava com uma infecção, seu maior medo era
que isso prejudicasse seu filho. “Ela ainda falou: “você só não vai pra cesariana porque ele
já está lá em baixo se não você ia pra cesariana agora!”. Eu fiquei desesperada, fiz a força,
ele não saiu. Ai ela disse: “negócio é o seguinte, o batimento caiu, se eu não tirar ele agora,
ele vai morrer.”. A medica cortou o períneo de Adriana para que o bebê saísse com mais
facilidade. Depois da primeira contratação pós corte, Adriana fez força e o bebê apenas
coroou. “Ai o que ela fez? Pegou o fórceps e... puxou”. Nesse momento, Adriana pausou sua
fala. “Eu fiquei desesperada, por que ele nasceu apagado! Ela só deu anestesia pra cortar.
Ele nasceu apagado. Antes eu já tinha falado com a pediatra pra ela não fazer os
procedimentos que a gente não queria, a gente tinha entendido que não era necessário. Só ia
rolar a injeção de vitamina K. Só que a mulher me fala que ele tava com uma infecção e ele
nasce apagado? Ai veio um pediatra já fazendo tudo, todos os procedimentos, e ele não
chorava! Eu tava morrendo de medo.” Adriana foi retirada do quarto e ficou no corredor do
hospital enquanto seu bebê era examinado. Passaram 15 minutos sem que ela tivesse qualquer
informação. Foi necessário que o bebê fosse reanimado. Adriana pediu que o exame com a
suposta infecção fosse apresentado a ela. Nesse momento ela descobriu que não existia
infecção nem nela nem no bebê. Ela relata um ambiente sujo, sem porta e com profissionais
bem grosseiros. “A mulher [a médica] mentiu para que eu acelerasse e ela pudesse me tirar
da sala de parto. Eu comecei a chorar desesperada. Eu tinha planejado! Fiquei 10 dias em
trabalho de parto para ter ele do jeito que eu queria e a mulher me entra e em 20 minutos
e...daquele jeito ainda entendeu? Mentindo e me violentando profundamente.”

Bruna
A entrevista de Bruna foi em sua casa, onde ela mora com a mãe, o padrasto e seu
filho na zona oeste de Belo Horizonte. O pai do bebê esta encarcerado desde 2014, ela
engravidou em uma visita intima. Quando ganhou a criança, Bruna tinha 19 anos. Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a adolescência é o período entre 12 e 19 anos,

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portanto a experiência de Bruna configura como gravidez na adolescência. No momento do


parto ela relata: ”Eu comecei a ter dor na quinta, fui pro hospital municipal, fui atendida, eles
fizeram o exame de toque, tava com 5 centímetros de dilatação e eles não quiseram me
internar. No sábado eu cheguei no hospital 22h, eu já tava com 7 centímetros de dilatação e
tava doendo muito. A médica mandou eu andar, mas a minha barriga tava muito dura e ela
resolveu me internar. Eles perguntaram se eu queria anestesia pra tentar parto normal, eu
falei que não, que eu ia conseguir ter ele natural. Ai a enfermeira falou que ia me colocar no
soro. Pra te falar a verdade, meu parto foi horrível, porque eu quase morri.”. Passaram 2
horas desde que Bruna tinha sido colocada no soro, sua dilatação aumentou, mas o bebê não
dava sinais de que iria nascer. “Quando deu 5 horas da manhã eu já não agüentava mais,
arranquei o soro, eu não conseguia mais, estava doendo muito. O médico disse que eu já
tinha dilatado 9 centímetro mas que a minha bolsa não tinha estourado. Ai veio uma
enfermeira com uma agulha grandona e enfiou dentro de mim para estourar a bolsa, ai
quando estourou a bolsa a dor piorou.”
O médico fez o exame de toque às 7 horas da manhã, Bruna conta que ela já estava
com 10 centímetros de dilatação, mas como o bebê não descia o médico colocou a mão dentro
dela para puxar a criança. “Ele disse que era pra eu fazer mais força, colocou minhas pernas
em cima do ombro dele e ficava forçando pra baixo, mas ele não saia. Essa dor foi muito,
muito forte, eu não gosto nem de lembrar. O médico empurrou ele. O nenê subia sempre que
chegava perto de coroar. Isso foi até umas 9 horas da manhã. 9 e meia o médico colocou a
mão dentro de mim e disse que ele tinha subido e que ia ter que fazer um cesárea de
urgência.” . Bruna disse que foi até a sala de cirurgia e tomou anestesia para fazer a cesárea.
Depois de 40 minutos, Bruna teve o bebê por procedimento cirúrgico. “Foi a melhor coisa da
minha vida, porque depois da anestesia eu não sentia dor, não sentia mais nada. Minha
recuperação foi ótima. Ele nasceu respirando mal, mas foi porque ele engoliu um liquido da
minha barriga. É isso, foi um parto horrível, mas graças a Deus tá tudo bem agora.
Perguntei a Bruna se alguém da equipe médica, seja no pré-natal ou no momento do
parto, explicou a ela os procedimentos do parto. “Tudo que eu perguntei foi respondido sim,
mas eu não sei se eu perguntei o suficiente agora que eu to lembrando de tudo. O médico ter
subido na minha barriga foi de longe a pior parte. Eu deveria ter ido pra cesárea desde o
começo não ia ter passado por tudo isso. Graças a Deus deu certo e graças aos médicos
também.”

Carla

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Conversei por Carla via telefone e depois pessoalmente. Atualmente ela reside em
uma cidade do centro-oeste mineiro, mas ganhou sua filha em um hospital privado de Belo
Horizonte. A opção de Carla pelo parto natural veio desde o inicio de sua gravidez, afirmando
que o parto normal é opção mais segura para a mãe e para o bebê. “A vontade de vivenciar a
experiência de ter o parto normal, de sentir verdadeiramente o nascimento da minha filha,
com todas as dores e emoções do momento e de não ser submetida a uma cirurgia da qual
não tinha qualquer indicação.” O trabalho de parto de Carla começou a noite e se estendeu
pela madrugada. Ela e o marido contrataram uma enfermeira obstetra e uma doula para
acompanhar o casal até o momento de ir ao hospital. “Minha experiência com o trabalho de
parto e nascimento da minha filha foi a melhor possível, exatamente como havia desejado e
planejado. Desde o início da gestação sempre quis muito que meu parto fosse normal.”. No
hospital, não houve nenhum impedimento de acompanhamento ao parto de Carla, segundo
ela, apesar das dores, ele ocorreu de maneira natural. “Claro que para que o parto seja um
momento de prazer é necessário que a mulher seja ouvida, bem orientada, bem preparada, e
que seus desejos, medos e inseguranças sejam respeitados. Tive possibilidade de ter acesso a
uma equipe multidisciplinar de médico, doula, enfermeira, que me auxiliaram antes e durante
o parto, para que fosse possível ter uma experiência positiva, além do fato de ter
possibilidade ainda de utilizar a analgesia assim que sentisse necessidade, entretanto, fiz uso
apenas de métodos não farmacológicos de alívio de dor, como massagem, mudança de
posições, imersão na banheira, assim, não foi preciso utilizar analgesia. Poder viver o
trabalho de parto humanizado, respeitoso, foi certamente a experiência mais intensa e
transformadora que pude viver, sentir cada etapa do parto até o nascimento e o primeiro
olhar da minha filha foi mágico.” A filha de Carla nasceu de parto natural, em uma banheira
de parto em um hospital particular de Belo Horizonte.

Denise
Entrevistei Denise em seu local de trabalho, ela mora na zona oeste de Belo Horizonte.
Ela é casada, mas seu marido mora em São Paulo. Possui três filhas, duas adolescentes e o seu
bebê. Foi uma gravidez não planejada, em um momento que a família não tinha plano de
saúde e todo o acompanhamento e pré-natal foi realizado pelo SUS. “O maior problema disso
tudo era a fila de espera para atendimento. As consultas eram marcadas tipo 13 horas e eu só
era atendida mais ou menos 16 horas. Ficava lá 4, 5 horas esperando. (...) era por chegada
né? Eles marcavam um monte de grávida no mesmo horário que eu e quem chegasse
primeiro era atendida.” Denise foi categorizada desde o início da gravidez como alto risco.

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Tinha pressão alterada, algumas hemorragias e constantes infecções urinárias. “A minha


gravidez foi difícil demais! Nas outras duas eu fiquei super tranqüila, achava que era
frescura de mulher passar mal, mas não é frescura não. Eu não conseguia nem escovar os
dentes sem vomitar.” Em uma quarta-feira pela manhã, a bolsa de Denise estourou e ela foi,
junto com uma prima, para o hospital. O seu marido estava a caminho de São Paulo para estar
presente no parto. “Assim que eu cheguei, fiquei no corredor esperando ser atendida.
Demorou quase 1 hora. Minha bolsa tinha estourado então estava com muita dor, mas não
tinha lugar pra ficar no hospital. Depois eu consegui ir prum quarto e a médica ficava me
examinando pra ver se eu dilatava. Quando eu cheguei estava com 4 centímetro de dilatação.
Essa médica ai que me atendeu nem olhava na minha cara direito, por causa de tudo que eu
passei durante a gestação, eu tava com muito medo do parto. Lá pra 15 horas mais ou menos
eu já estava com 7 centímetro, mas parou por ai, não dilatava mais, então me colocaram no
soro.” Perguntei a Denise se em algum momento alguém a equipe médica explicou para ela o
que estava acontecendo. “Não, nem quando eu perguntei eles responderam direito. Teve uma
enfermeira que até disse que eu sabia tudo porque já tinha as outras duas [filhas].”. Após a
chegada do marido de Denise ao hospital, a dilatação dela progrediu. “Era mais ou menos 20
horas quando eu fui pra sala de parto. Eu gritei pelo amor de Deus para ter anestesia, mas a
médica disse que naquele ponto já não dava mais. Por mim eu tinha tomado desde que
cheguei, mas não consegui falar com ninguém, ninguém me escutava. Comecei a fazer força
pra ela sair, foi uma dor que não tem como descrever, e a médica lá falando pra eu fazer
força e força. Eu comecei a chamar minha vó, ela era parteira, eu sei que não pode chamar
quem já foi, né? Mas eu precisava de força extra porque eu sozinha não conseguia mais.
Quando a nenê nasceu, ela veio me rasgando, rasgou tudo, tudo. Teve que costurar de cima a
baixo, eu não gosto nem de lembrar. Ela veio bem, não teve nada, mas eu sofri, viu? Sofri
muito.”. Denise precisou de um dia no hospital para exames uma vez que ela chegou com um
quadro de infecção urinária. Seu receio era que essa infecção fizesse mal para a sua filha.
“Eles sabiam que eu tava com infecção, mas ninguém falou nada então achei que estava tudo
bem, mas ela precisou tomar remédio por via das dúvidas. (...) meu parto foi natural porque
eles quiseram que fosse, por mim eu queria anestesia. Diz que o hospital tava sem anestesia
naquela época, que precisava economiza, mas diz né? Confirmação disso ninguém
tem.”Denise só ganhou sua filha no dia seguinte, totalizando 16 horas desde o rompimento de
sua bolsa até parir.

Analise dos relatos

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Foram quatro mulheres com quatro experiências distintas. Três delas com relatos
graves e explícito de violência exercida pelo(s) profissional(is) de saúde que as atendeu. As
falas dessas mulheres exibem uma banalização da dor e do sofrimento alheios, falta de
atenção e cuidados, omissão de informação e equívocos médicos. A variável que temos em
comum entre as três mulheres que tiveram partos violentos foi o hospital público. Essa
pesquisa se baseou em relatos de quatro mulheres, o que não representa um universo
estatístico para afirmar que a violência obstétrica ocorre com mais freqüência em hospitais
públicos. Entretanto, pesquisas como a de Aguiar (2010), concluíram que a grande parte dos
profissionais de saúde por ela entrevistados para falar de violência obstétrica, consideram as
práticas violentas mais freqüentes em hospitais públicos, já que existe um risco de punição
mais significativos no ambiente privado e os níveis de vigilância são maiores (Aguiar, 2010,
p.169). Além disso, quem possui acesso plano de saúde privado, como no caso de Carla, cria
um vínculo maior com o profissional que acompanha a gestação. Percebemos nos relatos de
Denise e Bruna, que por serem acompanhadas pelo SUS, nem sempre o profissional de saúde
que as atendia em uma consulta era o mesmo que as atenderia novamente em outra. Isso, não
impede que mulheres com planos particulares não possa ser também vítima de violência
obstétrica. Adriana possuía plano de saúde na ocasião do seu primeiro parto, optou por ter seu
filho em hospital público pela qualidade do serviço prestado naquele local especificamente.
No Dossiê Parirás com Dor (2012), as autoras encontraram falas dos profissionais de saúde
que induziam as mães ao parto cesárea e medicalização sem necessidade, e esse tipo de
violência era encontrado mais comumente em hospitais particulares. Nas falas colhidas,
percebemos uma fragilidade entre o vínculo do profissional de saúde e a mulher em situação
de parto nos hospitais públicos aos quais as entrevistadas passaram. Já a experiência relatada
em acompanhamento particular foi respeitosa e acolhedora com a entrevistada.
A experiência do parto tem princípio e fim. A fala de Bruna mostra que ela passou por
situações violentas durante seu parto, mas ao fim ela agradece a Deus e a equipe médica pelo
término do seu sofrimento. Essa violência se expressa em uma situação que engloba tantos
sentimentos, como confiança, medo e dor, e, assim que se dá o fim do processo do parto, vem
a sensação de alívio e alegria pela chegada do bebê, e muitas vezes as denúncias são
propositalmente esquecidas.
Nenhuma das entrevistadas disse ter denunciado os hospitais e/ou médicos que as
violentaram. Adriana pensou em processar a médica que lhe passou erroneamente a
informação sobre a infecção, mas não prosseguiu com nenhuma ação. Bruna não considerou
que o médico que subiu em sua barriga a tivesse violentado, segundo ela, ele “estava tentando

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fazer o bebê nascer”. Denise também não denunciou a equipe médica que a atendeu, dizendo
que “agora que o trabalho de verdade começava.”.
Identifiquei as seguintes violações nas falas das minhas entrevistadas: dificuldade de
atendimento no momento do parto, comentários humilhantes, atendimento às necessidades do
médico e não da paciente, utilização de procedimentos invasivos e desnecessários, perda de
autonomia da mulher - que não podia decidir livremente sobre o seu corpo, falta de
informações ou informações equivocadas sobre o processo do parto e nascimento para a
parturiente, tratamento hostil e grosseiro de profissionais de saúde e banalização do
sofrimento da mulher.
Conclusão
Esse artigo buscou identificar, dentro das narrativas de quatro mulheres que
experimentaram o parto nos últimos 10 anos, moradoras de Belo Horizonte/MG, falas
condizentes com a definição de violência obstétrica. Não foi preciso buscar, especificamente,
mulheres que tivesse a experiência de sofrimento e violações no momento do parto, busquei
dentre as variáveis ligadas a classe social e gênero, relatos de mulheres que se encaixavam na
descrição proposta: experimentaram o parto entre 2008 e 2018 e moravam em Belo
Horizonte.
Existe uma banalização da violência como um fenômeno social em todo o país, e isso
é também levado para as instituições de atendimento público ligadas a fiscalização, ouvidoria
e sistema judiciário. A violência obstétrica é pautada por significados socioculturais,
fundamentados na desvalorização e submissão da mulher que é vista em situação de objeto
das ações dos profissionais de saúde. É percebido também que a naturalização do processo de
medicalização do corpo feminino constitui, como levantado anteriormente, um mecanismo de
controle social, que possui padrões de comportamento diferentes de classe social e raça/etnia.
Considero necessária uma exploração mais sofisticada da temática sobre a violência
obstétrica. Existem artigos, teses, dossiês sobre a pauta, que necessitam melhor entendimento,
mesmo para que sejam construídas políticas públicas de prevenção e tragam sustentabilidade
às falas das mulheres que sofreram esse tipo de violência, para que, as vítimas se sintam
capazes e confortáveis em formalizar denúncias contra seus agressores.

Referências
AGUIAR, Janaína Marques (2010). Violência institucional em maternidades públicas:
hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero (Tese de doutorado,
Faculdade de medicina da USP, Departamento de Medicina Preventiva, São Paulo/SP).

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Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de
maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de
2012. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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REDE PARTO DO PRINCÍPIO. Violência Obstétrica: Parirás com dor. (Dossiê elaborado
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em:
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ROTHMAN, Bárbara Katz. In labor. Women and power in the birthplace. New York – USA,
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Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999. 468 p. ISBN 85-85676-61-2.Available from
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Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra às Mulheres: desafios


e possibilidades em um projeto de extensão universitária

Leticia de Matos Lessa1


Lorena Maria da Silva2

Resumo: Redigida em 2011, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as


Mulheres é fruto de uma militância histórica de movimentos de luta pelos direitos das
mulheres. Ela aponta os princípios, diretrizes e objetivos que devem direcionar as ações de
enfrentamento as diferentes violências que subjugam mulheres por todo o território brasileiro.
Tendo em vista essa Política nosso ensaio objetiva refletir acerca dos possíveis reflexos da
aplicação dos princípios e diretrizes da Política na efetividade e integralidade dos
atendimentos às mulheres em situação de violência doméstica e de gênero em um Núcleo de
Extensão Maria da Penha (NUMAPE). A fim de alcançarmos o objetivo proposto
analisaremos os atendimentos realizados no Núcleo Maria da Penha da Universidade Estadual
de Maringá (Numape/UEM). Nossa reflexão contará com as lentes da história, para
compreendermos tais princípios e diretrizes dispostos na Política e, posteriormente, faremos
uma análise do desenvolvimento das ações do Numape/UEM averiguando as possibilidades e
desafios da aplicação da Política nas práticas de atenção à mulher em situação de violência
doméstica e de gênero. A Política propõe o trabalho interdisciplinar e intersetorial enquanto
uma das diretrizes para o enfrentamento à violência. Entendemos assim, que as práticas do
Numape/UEM podem favorecer o fortalecimento da rede de atenção as mulheres, por meio do
trabalho articulado e interdisciplinar. Com pressupostos que extrapolam o campo jurídico e
buscando atender as mulheres integralmente, este Núcleo de Extensão direciona suas ações
para além do escopo do judiciário e busca concretizar a Política Nacional convidando
diferentes mecanismos da rede para unir esforços a fim de desnaturalizar a violência
doméstica e de gênero contra as mulheres.

Palavras-chaves: Política Nacional; Enfrentamento à violência; Princípios e diretrizes.

1
Bolsista recém-formada no Numape/UEM; pós-graduanda em Direito e Processo Penal pela Universidade
Estadual de Londrina; leticia_mlessa@hotmail.com.
2
Bolsista recém-formada no Numape/UEM; mestranda em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá;
lorenamaria.sanches@gmail.com.

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Introdução

Tratar acerca de uma Política Nacional é debater sobre um conjunto de diretrizes,


objetivos e ações que devem ser postos em prática para que os direitos já previstos legalmente
à uma população sejam efetivados, já que a lei por si só não é uma garantia de sua aplicação
na sociedade. Neste sentido, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres tem por finalidade o estabelecimento de conceitos, ações, princípios e diretrizes
para a prevenção e enfrentamento às múltiplas formas de violências que atravessam a vida das
mulheres. Redigida em 2011 pela extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República, a Política organiza princípios e diretrizes para a concretização de
uma sociedade mais igualitária e sem violências - em quaisquer espaços - às mulheres. A
Política Nacional apresenta em seu texto a contextualização do cenário da violência no Brasil,
conceituando os tipos de violência vivenciados pelas mulheres, o enfrentamento à violência, a
rede de atenção, além de apresentar os princípios, diretrizes, objetivos e as ações a serem
efetivadas na luta contra a violência.
Ao pensar na Política Nacional, não podemos pensá-la desgarrada de seu contexto
histórico fundante. Ela é resultado de lutas traçadas por mulheres desde o início do século XX
no Brasil e busca a efetivação de leis que visam a proteção e a garantia de direitos a todas as
mulheres. Mencionar que a Política visa, dentre outras coisas, a garantia das legislações que
buscam coibir as violências contra as mulheres é remeter a Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006). Tal Lei é inegavelmente um avanço para a consolidação dos direitos e
enfrentamento às históricas violências contra as mulheres (CAMPOS, 2016, p.17 e
PASINATO, 2016, p. 63). Resultante de movimentos feministas políticos e sociais, a Lei
reforça a construção de políticas públicas para as mulheres como uma possibilidade de
enfrentamento não restrita ao Poder Judiciário. Assim, é notável que a Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher é um dos frutos desta legislação. Frente aos
marcos já conquistados, e denotando a importância de uma Política Nacional para a
regulamentação das ações de enfrentamento, nosso ensaio objetiva refletir acerca dos
possíveis reflexos da aplicação dos princípios e diretrizes desta Política na efetividade e
integralidade dos atendimentos às mulheres em situação de violência doméstica e de gênero
em um Núcleo Maria da Penha (Numape/UEM).

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A fim de alcançarmos o objetivo proposto analisaremos os atendimentos realizados no


Núcleo Maria da Penha da Universidade Estadual de Maringá (Numape/UEM). Nossa análise
se dará por meio de duas fases: 1) inicialmente, por meio das lentes da história, analisaremos
os princípios e diretrizes dispostos na Política; 2) e, posteriormente, faremos uma análise do
desenvolvimento das ações do Numape/UEM averiguando as possibilidades e desafios da
aplicação da Política nas práticas de atenção à mulher em situação de violência doméstica.

Os caminhos percorridos para a garantia de direitos

Pensar na consolidação de uma Política que se proponha ao engajamento contra as


diferentes expressões da violência implica em conhecermos o caminho histórico em que essa
foi fundamentada, já que é a contextualização histórica que possibilita o reconhecimento da
importância de legislações e políticas de enfrentamento a violência de gênero.
Os debates em torno das desigualdades entre homens e mulheres e consequentemente
da violência de gênero, obtiveram maior expressão no cenário mundial especialmente no
início do século XX, o que não exclui o fato de haver debates feministas desde a Idade Média.
Biroli e Miguel (2014, p. 19) apontam que ainda no século XV, Cristina de Pizán (1364-1430)
poetisa e filósofa italiana que viveu na França, já questionava acerca das relações desiguais
existentes entre homens e mulheres - conferindo inferioridade a estas - e que contrariamente
ao que era dito, tais diferenças não pautavam-se em pressupostos naturais, mas em condições
sociais. O pensamento de Pizán subsidia a construção de um pensamento feminista definido
pela edificação de aportes críticos que questionam a submissão da mulher à esfera doméstica
e à sua exclusão da esfera pública. Logo, os autores apontam que enquanto movimento
político e intelectual, o feminismo desponta no cenário ocidental na virada do século XVIII
para o século XIX e pode ser tido como fruto da Revolução Francesa.
Inspirada nas bases teóricas de Rousseau, a Revolução Francesa não pressupunha
direitos às mulheres e compreendia estes com certa hostilidade visto que as mulheres eram
tidas como naturalmente restritas ao ambiente doméstico. Olympe Gouges (1748-1793) deu
voz a este nascente movimento por meio da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã3,
contudo Biroli e Miguel (2014, p. 20) discorrem que tal texto de Gouges ainda não

3
Escrita em 1791 a fim de igualar-se a “Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão” aprovada em
Assembléia Nacional, a Declaração dos Direitos da Mulher propõe que as mulheres tenham liberdade de
expressão, além de romper com os ideais de ser mulher da época, exigindo direitos.

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compreendia sistematicamente o que subjazia a opressão sofrida pelas mulheres. Para os


autores, é Mary Wollstonecraft (1759-1797), considerada a fundadora do feminismo, que
apresenta as raízes desta opressão em sua obra “Um vindicação dos direitos da mulher”
publicada em 1792. Neste trabalho, Wollstonecraft sistematiza a necessidade e os obstáculos
no percurso para a emancipação das mulheres. Nesse primeiro momento do emergente
feminismo as principais questões debatidas se apoiavam na educação das mulheres, o direito
ao voto e a igualdade no casamento, especialmente sobre o direito das mulheres em relação a
sua propriedade.
Ao longo do século XX, a pauta feminista tornou-se ainda mais contundente e
expressiva, sendo que tanto o direito ao voto, como os direitos relacionados à educação foram
conquistados neste período. As legislações passaram a ser examinadas de modo cuidadoso a
fim de combater qualquer nova legalidade que admitisse a submissão das mulheres em relação
aos homens na esfera pública. Destacamos Simone de Beauvoir (1908-1986) como uma das
figuras mais representativas deste período, que por meio de sua relação com filósofo
Jean-Paul Sartre buscou conferir nova perspectiva a conjugalidade, não levando em
consideração premissas predominantes as relações afetivas que necessitavam de superação
para a concretização de vínculos mais horizontais (BIROLI e MIGUEL, 2014, p. 25).
Os movimentos feministas europeus e norte-americanos influenciaram o despontar das
lutas no Brasil, especialmente, no início do século XX. As greves das costureiras em 1907 e a
imigração européia de inspiração anarco-sindicalistas (italianos e espanhóis) em 1917
exigiam, dentre outras coisas, a regulamentação das condições de trabalho dentro das fábricas,
especialmente as têxteis, local onde predominava a força de trabalho feminina. As exigências
iam desde a regulamentação das horas trabalhadas pelas mulheres até a igualdade nos salários
e a aceitação das mulheres nos serviços públicos.
Ainda no início do século XX no Brasil, as luta pelo direito ao voto e à participação da
mulher na política mantém-se sendo fundada em 1922 a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino4. Em 1932, tais lutas começam a galgar resultados sendo inserido pela primeira vez
no texto do Código Eleitoral Provisório o direito ao voto e a candidatura por mulheres pelo
então governo de Getúlio Vargas, conquista que só tornaria-se plena na Constituição de 1946.

4
Fundada em 09 de agosto de 1922, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) foi uma
organização que se dedicou a luta por direitos as mulher, principalmente por iniciativa da líder feminista
brasileira Bertha Lutz, e sediada no Rio de Janeiro.

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Sarti (2001, p. 33) aponta que apesar do golpe militar em 1964, o movimento ainda
mostrou-se expressivo, especialmente na década de 1970, em que estava fortemente vinculado
a movimentos contrários a regimes ditatoriais. A luta em prol dos direitos das mulheres no
Brasil neste momento histórico pautava-se em bases marxistas para sua fundamentação,
caracterizando o movimento pela sua luta democrática diante de um contexto que calava
vozes discordantes. A presença de mulheres na luta armada ao longo da ditadura apontava não
apenas para a garantia de direitos que se ansiava conquistar, mas para um confronto direto
com os padrões esperados para essa população, que deveria dedicar-se aos cuidados com o lar
e com seus maridos.
Sarti (2001, p. 34) debate que ao menos na retórica5 a confrontação de mulheres ao
regime militar apontou para as desigualdades de gênero ainda presentes na sociedade
brasileira e para os caminhos ainda a serem percorridos, especialmente em relação aos direitos
reprodutivos, a violência doméstica e as desigualdades nos postos de trabalho. Cabe discorrer
que a presença de mulheres na luta contra os regimes militares em toda a América Latina
propiciou um cenário para o estabelecimento do Ano Internacional da Mulher, pela
Organização das Nações Unidas em 1975, e o reconhecimento oficial das desigualdades
sofridas pelas mulheres em diversos âmbitos enquanto um problema social, favorecendo que o
movimento social feminista que ainda atuava na clandestinidade, se consolidasse por meio da
formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente.
Nos anos de 1980, ligado a outros movimentos sociais que exigiam a
redemocratização do país, as demandas feministas se difundiram por todo o território
nacional, não só pela representatividade das mulheres engajadas, mas também pelo abertura
vivida pelo Brasil, que buscava modernizar-se enquanto sociedade. Neste período, surgiram
ainda grupos feministas que buscavam uma atuação mais profissional, especializada e técnica,
por meio da criação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que pressionavam para o
desenvolvimento de políticas públicas para as mulheres. Adentraram nesta tendência à
especialização, pesquisas científicas que aperfeiçoaram teoricamente a temática, apontando
sobre a necessidade de modificações estruturais, principalmente por meio das instâncias
governamentais, da situação da opressão e desigualdades de gênero vividas pelas mulheres no
país. Ainda no final da década de 1980 o saldo dessas lutas se expressou por meio da criação

5
Sarti (2001) aponta que na retórica houveram avanços, contudo, depoimentos de mulheres que lutaram ao
longo do período ditatorial, apontam que as diferenças de gênero, mesmo entre os homens que também
buscavam pela redemocratização do país, eram expressivas.

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de delegacias especializadas para o atendimento à situação da violência doméstica contra a


mulher e a alteração da condição de tutela da mulher na esfera conjugal na Constituição de
1988. Com ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo em 2003, foi criada a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres, com status de ministério, recriando o Conselho de
Direitos das Mulheres, extinto com a entrada de Fernando Collor de Mello e Fernando
Henrique Cardoso na presidência. Em 2006, a Lei Maria da Penha caracteriza-se enquanto
importante conquista e visibilidade a situação da violência doméstica contra mulher, tratada
até então como uma situação do contexto privado ao qual o Estado não deveria interferir.
A partir da Carta Magna de 1988 o Estado brasileiro tem percorrido caminhos, ainda
mediante constantes lutas feministas, para a garantia dos direitos das mulheres e para o
enfrentamento às diversas formas de violências. Para Sarti (2001) atentar-se ao contexto
histórico, possibilita a compreensão da totalidade do movimento feminista, assim como, das
transformações, mesmo que tímidas, mas já visíveis na atualidade, como os espaços de
atuação pública da mulher e as legislações que deram visibilidade a questão da violência
contra a mulher no contexto doméstico.
Vemos então, que as transformações e conquistas históricas permitiram que atualmente
milhões de mulheres no território brasileiro tivessem acesso a direitos e a não violação desses.
Para a garantia desses direitos, o surgimento da Política Nacional foi fundamental, já que é
este documento que traça os percursos a serem seguidos para a efetivação das legislações.
Não apenas, mas da consolidação de políticas públicas para o enfrentamento às violências,
superando o escopo do Poder Judiciário enquanto única possibilidade de prevenir violações de
direitos.
Uma das estratégias de enfrentamento apontada pela Política Nacional consiste na
consolidação de uma Rede de Atendimento. Essa rede, composta por diferentes serviços em
sua maioria especializados, evitaria o que a Política chama de “rota crítica”, que seria o
percurso que a mulher faz após a situação de violência na tentativa de encontrar uma solução
por parte do Estado e da rede de serviços públicos para a sua situação. Para a Política a
consolidação e fortalecimento de uma rede, especializada ou não, é uma importante aliada
frente às situações de violência. Além de um papel informativo e portanto, preventivo, a rede
de serviços públicos pode ofertar um atendimento integral frente às complexas situações de
violação de direitos. Pensar em uma situação de violência é deparar-se com um problema
social que afeta todos os âmbitos da realidade das mulheres, assim, a articulação entre os

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equipamentos de saúde, assistência social, trabalho, educação, entre outros, pode ser um
instrumento fortalecedor e constructo da autonomia de mulheres fragilizadas por um contexto
de violência.

Princípios e Diretrizes da Política Nacional: um caminho possível?

A Política Nacional está estruturada com base nos Planos Nacionais de Políticas para
as Mulheres6. Sua relevância consiste na elaboração de mecanismos para a concretização do
eixo do enfrentamento à violência contra a mulher apresentado pelos Planos Nacionais: são os
conceitos que dão sustentação para a própria formulação e execução das políticas voltadas a
prevenção e a responsabilização dos casos de violência contra a mulher.
Nesse momento, esses conceitos – os princípios e diretrizes da política – servirão
também para a avaliação do trabalho realizado pelo Numape/UEM. A fim de se reconhecer a
importância de determinado serviço e se o mesmo se presta a concretização do enfrentamento
à violência contra as mulheres, é indispensável, conforme o nosso escorço histórico
demonstrou, uma mudança nas “regras” do patriarcalismo e do machismo que estruturam
nossa sociedade. Uma iniciativa que não promova tal alteração, portanto, é questionável, a
partir da opção teórica feita pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
Mulheres.
Sendo assim, se faz necessária a retomada dos mencionados princípios e diretrizes,
compreendendo cada um deles separadamente e a que eles se referem. Dessa forma saberemos
o que é considerado relevante para a instrumentalização de iniciativas - públicas ou privadas -
para o enfrentamento da violência contra as mulheres.
É preciso, assim, que se parta da igualdade e respeito à diversidade, o que significa
trazer à tona a igualdade material, entendendo, por isso, que há desigualdades em nossa
sociedade que precisam ser corrigidas também por meio de intervenções da lei e do Estado.
Mulheres e homens são iguais em direitos, ao menos formalmente, e suas individualidades, no
que concerne “à diversidade cultural, étnica, racial, inserção social, situação econômica e

6
Resultado das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, os Planos Nacionais de Políticas para as
Mulheres (2005, 2008 e 2013) são fruto do diálogo democrático entre o Estado e a sociedade civil. O último
Plano, com vigência de 2013-2015, foi elaborado com base na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres, em 2011 e visa o fortalecimento e a institucionalização da Política Nacional para as Mulheres,
aprovada em 2004 e referendada em 2007 e 2011 por suas respectivas conferências nacionais.

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regional” (POLÍTICA, 2011, p. 31), devem ser ponderadas tanto pela sociedade civil quanto
pelas diferentes instâncias governamentais. Ainda, é preciso ressaltar as diferenças de geração
e acessibilidade, que também influem diretamente em como será o exercício desses direitos
que a Constituição proclama como de todos.
Por isso é que se fala em equidade na Política: assegurar que se dê o acesso aos
serviços para a concretização de direitos. A Política fala em garantia de ”igualdade de
oportunidades”, o que nada mais é que materialmente possibilitar o que se afirmou
anteriormente como o exercício de direitos, como o à vida, à moradia, ao lazer, dentre outros.
A Política trouxe, também, como princípio, a autonomia das mulheres e afirma
textualmente que deve existir para estas um “poder de decisão sobre suas vidas e corpos”,
além da possibilidade de decidirem acerca dos caminhos políticos nos locais onde viverem
(POLÍTICA, 2011, p. 31). O desenvolvimento da autonomia é um dos aspectos que as
políticas públicas buscam alcançar, já que a decisão sobre como lidar com a situação de
violência deve caber à mulher, funcionando os serviços como pontos de apoio. Assim, é
importante que os serviços e seus profissionais, institucionalmente, compreendam que
caminharão junto às mulheres os percursos traçados por elas, deixando que elas sejam
protagonistas no processo de superação da situação de violência.
Diretamente relacionado à autonomia é o princípio da laicidade do Estado. O texto da
política é bastante exato ao colocar que as políticas públicas “devem ser formuladas e
implementadas independentemente de princípios religiosos, de forma a assegurar os direitos
consagrados na Constituição Federal e nos instrumentos e acordos internacionais assinados
pelo Brasil” (POLÍTICA, 2011, p. 31). Assim, os serviços devem priorizar a autonomia das
mulheres, e não propósitos outros que, inclusive, reforcem ideias machistas e patriarcais.
Atingir o máximo possível de mulheres, seja qual for o seu contexto e suas
particularidades, é o objetivo dos serviços voltados ao enfrentamento à violência contra as
mulheres e assim que é percebida a universalidade das políticas públicas. Porém, talvez esse
seja, justamente, o grande desafio, pois a compreensão das interseccionalidades7 implica em
que sejam percebidas uma multiplicidade de realidades, o que pode ser encarado como uma
dificuldade em criar um protocolo de atendimento abrangente o suficiente, como aponta

7
É fundamental que se demarque a existência de mulheres negras, ribeirinhas, indígenas, quilombolas, mulheres
com deficiência e outros marcadores sociais e econômicos que vulnerabilizam historicamente diferentes grupos
populacionais.

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Ribeiro (2017, p.41), “A insistência em falar em mulheres como universais, não marcando as
diferenças existentes, faz com que somente parte desse ser mulher seja visto.”
As questões de renda e trabalho são expressivas quando pensamos nas possibilidades
trazidas às mulheres para decidirem ou não por um fim nos seus relacionamentos abusivos,
isso porque muitas delas são também mães e, por este motivo, apresentam dificuldades para
se inserirem no mundo do trabalho, ou ainda, por serem alocadas em trabalhos precarizados,
dependendo financeiramente dos companheiros (ALMEIDA, 2015, s/p). Em outros trabalhos
exploramos a relação da dependência econômica com a desistência dos processos judiciais
(MACHADO; PERES; LESSA, 2017, s/p). Assim, podemos entender que o princípio da
justiça social, no contexto da Política Nacional, aponta para a não indiferença dos serviços
públicos a essa realidade, devendo os mesmo buscarem estratégias para a geração de renda
pelas mulheres.
Como a Política trata, não só, mas principalmente, dos serviços do âmbito público
estatal, é inevitável, e constitucionalmente previsto (artigo 37), que se considere a
transparência como algo a ser levado em consideração. Por isso, esses serviços estão sujeitos
ao controle social para a avaliação da efetividade dos serviços. Inclusive, a participação e o
controle social são outro princípio: eles ocorrem não só no momento de avaliar tais serviços,
mas também no planejamento e execução destes.
Além de princípios, a Política prevê diretrizes. As diretrizes, diferentemente dos
princípios - que visam orientar de forma genérica - apontam como deve ser feito o
enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, deve-se observar tratados, acordos e
convenções internacionais; deve-se reconhecer a violência contra as mulheres enquanto
violência estrutural e histórica; deve-se combater a exploração sexual e o tráfico de mulheres;
deve-se capacitar os profissionais, especialmente da e na área da assistência e, finalmente,
deve-se estruturar a Rede de Atendimento. Essas diretrizes indicam como os esforços serão
efetivamente direcionados, inclusive os orçamentários, mas, antes disso, como se dará a
execução contínua dos serviços.
Uma vez retomados os princípios e diretrizes, tentando apreender seu conteúdo,
passamos, no próximo item, à análise de como os mesmos balizam o trabalho feito pelo
Numape/UEM.

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Núcleo Maria da Penha e as possibilidades de efetivação dos princípios e diretrizes da


Política Nacional

O Numape/UEM - Núcleo Maria da Penha - é um projeto de extensão financiado pela


SETI/PR (Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, do Estado do Paraná), inserido
no contexto do programa Universidade sem Fronteiras, tendo iniciado seus atendimentos à
comunidade em 2015 e estando, atualmente, no terceiro edital pela mesma fonte de
financiamento.
A extensão é um dos pilares das Universidades e está ao lado do ensino e da pesquisa
em importância para seu funcionamento, conforme previsão constitucional do artigo 207,
sendo sua função levar o que é produzido em termos de inovação e conhecimento para a
comunidade, a fim de contribuir com a implementação de políticas públicas e com o
desenvolvimento social.
Nosso projeto presta atendimento psicossocial e jurídico a mulheres em situação de
violência doméstica e familiar, sendo realizadas orientações, atendimentos e
encaminhamentos. A equipe conta com uma assistente social, duas psicólogas, duas
advogadas, uma estagiária graduanda em Psicologia e duas estagiárias graduandas em Direito.
A coordenação é feita por uma professora do Direito, mas há outras três profissionais que
fazem orientações as três áreas, a saber, Direito, Serviço Social e Psicologia. Os atendimentos
acontecem de segunda às sextas-feiras, das 8h às 17h30min, preferencialmente por meio de
agendamento prévio.
Ao chegar ao atendimento, seja via demanda espontânea ou agendamento, a mulher
passará por um atendimento denominado psicossocial. Neste atendimento inicial serão
identificadas as principais demandas e possíveis encaminhamentos que extrapolam o âmbito
jurídico. Respeitando os critérios socioeconômicos, a assistida será encaminhada para um
segundo atendimento junto a equipe jurídica, que se dará dez dias após o primeiro encontro. O
espaço de dez dias entre os atendimentos foi estabelecido para que as mulheres dispusessem
de tempo hábil para providenciarem os documentos necessários à entrada com o processo. No
atendimento jurídico, a equipe recolherá todos os documentos requeridos anteriormente, bem
como, informações adicionais que as assistidas considerarem importantes. Ao longo de todo o
processo, a equipe psicossocial acompanhará a assistida, buscando suprir as necessidades que
se apresentarem ao longo do percurso jurídico. Cabe pontuar que toda a equipe, especialmente

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sua parte psicossocial, mantém-se em contato com os demais serviços da rede de atendimento
às mulheres e tem esta enquanto aliada no enfrentamento às violências.
Tão importantes quanto os atendimentos feitos individualmente, que dão origem a
demandas judiciais, em muitos dos casos, são outras ações que o Numape/UEM desenvolve e
integra. São campanhas locais de conscientização sobre violências contra as mulheres,
desenvolvimento de pesquisas no campo dos Estudos de Gênero e de políticas públicas, além
da participação em audiências públicas e conselhos municipais que tratem ou atravessem
questões relativas às mulheres. Outra ação é o trabalho realizado junto às adolescentes
selecionadas pelo Projeto de Iniciação Científica com Bolsa do Ensino Médio, em que essas
cooperam, por meio de oficinas, para multiplicação da Lei Maria da Penha no contexto
escolar. Essa linha de trabalho insere o Numape/UEM numa atuação enquanto advocacy
feminista, sendo que o atendimento individualizado a cada mulher está conexo a compreensão
de que é preciso alterar a estrutura posta para serem concretizados direitos das mulheres.
Ao nos referirmos a estrutura posta, reportamos às ideias que naturalizam as
diferenças entre mulheres e homens e que hierarquizam essas diferenças. Segundo Mendes, “o
sistema sexo-gênero se coloca como uma variável fundamental da organização da vida social
através da história e da cultura da modernidade” (MENDES, 2014, p. 86). Ainda segundo a
autora, o conceito de gênero tem a potência de questionar como foram construídas as relações
entre mulheres e homens (MENDES, 2014, p. 91).
Sendo o Direito um dos campos responsáveis por manter tal estrutura, pode parecer
incoerente lançar mão do mesmo para pretender mudanças significativas. De fato, se o
manejarmos da forma como o mesmo se apresenta, é possível a mera repetição das fórmulas
sexistas postas. Mas a posição que o Numape/UEM busca manter é a de interpelar o Direito e
de usá-lo como “estratégia de legitimação de novas pretensões e novos princípios, como
linguagem para a reconstrução da realidade, desde o ponto de vista das mulheres” (MENDES,
2014, p. 174).
Por isso, para a nossa atuação, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres é texto fundamental: seus princípios e diretrizes procuram ser o mais bem
observados na nossa atuação cotidiana, desde a elaboração dos protocolos de atendimento à
condução dos processos judiciais. Entendemos que há uma miríade de mulheres que podem
procurar nossos serviços, com os mais variados marcadores sociais perpassando suas vidas e,

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por isso, o atendimento deve tentar ao máximo refletir tal realidade, de modo a atender à
diversidade mencionada pela Política.
Ainda, como trabalhamos com um critério socioeconômico, o Numape/UEM pode ser
um órgão que promove a equidade, uma vez que buscamos voltar nosso trabalho para pessoas
que não possam arcar com os custos processuais e honorários advocatícios. É importante
frisar que já no momento de agendar o atendimento buscamos demarcar o âmbito da nossa
atuação para que não aconteça a revitimização.
Ademais, nosso principal objetivo é assegurar que a mulher atendida receba as
orientações necessárias para que possa tomar a decisão que for, mas que seja de forma
assessorada, seja do ponto de vista jurídico, como também pela Psicologia e pelo Serviço
Social. Daí a importância de que essas três áreas trabalhem harmoniosamente, sem a
sobreposição do Direito, pois nem sempre uma saída jurídica será o suficiente para auxiliar a
mulher a romper com o ciclo de violência.
No entanto, há algumas situações que precisam ser revistas pelo nosso serviço, como,
por exemplo, a acessibilidade ao próprio local dos atendimentos. Tornar o serviço prestado
universal, para utilizarmos o termo que a Política trouxe, é um desafio que se apresenta para o
nosso projeto de extensão e que precisa ser afrontado.

Considerações Finais

A história nos mostra que longo foi o caminho para a garantia de direitos pelas
mulheres e, especialmente, a desnaturalização e o direito a não violência. A violência contra
as mulheres é um fenômeno complexo e necessita de um conjunto de variáveis para o seu
enfrentamento. Sem a articulação entre a rede de serviços públicos e o Poder Judiciário, a lei
se torna letra morta. Para o efetivo cumprimento das leis, é necessário que governo e
sociedade civil compreendam que um trabalho setorial e fragmentado é insuficiente ante as
demandas apresentadas por mulheres em situação de violação de direitos. É nesse sentido que
a Política Nacional trabalha, buscando tornar responsável a sociedade e o Estado pelo
enfrentamento às violências. Do mesmo modo, as ações do Numape/UEM visam o
atendimento multidisciplinar e intersetorial, sabendo que isoladamente, não é capaz de suprir
as necessidades que se apresentam em um contexto de violência doméstica.

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Sendo a Política o texto formulado pela extinta Secretaria de Políticas para as


Mulheres, ela foi tomada como o ponto primordial para análise do serviço prestado pelo
Numape/UEM. Por meio do estudo pormenorizado dos seus princípios e diretrizes, podemos
identificar o caminho que nos empenhamos em seguir e, do mesmo modo, verificar como os
impactos dessa opção para as mulheres locais atingidas pelo trabalho.
Existem diretrizes que estão solidificadas no projeto desde a sua implementação, como
é com o reconhecimento da violência de gênero como histórica e estrutural. Acreditamos,
também, que o fato de existirmos e prestarmos serviço específico e voltado às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar, de modo intersetorial, ajudamos na estruturação da
Rede de Atendimento. Quanto aos princípios, todos eles estão no cerne de nossa atuação,
embora existam alguns que nos são impossibilitados, muito em razão de termos nossas
dificuldades institucionais, tal como acontece com a acessibilidade.
A constante avaliação do serviço, a partir dos princípios e diretrizes da Política
Nacional, permitirá sua melhora e, igualmente, a salutar fiscalização exercida sobre a Rede de
Atendimento como um todo, tornando possível a sugestão de mudanças, se necessárias
.
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A importância da intersecção entre gênero e fatores socioeconômicos para a elaboração


de políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica contra mulheres

Marília Ferruzzi Costa1

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo o estudo das relações e intersecções
existentes entre as violências domésticas de gênero praticadas contra mulheres e a realidade
socioeconômica destas, bem como a análise da relevância da temática para a elaboração e
execução de políticas públicas voltadas para o enfrentamento de tais violências. O trabalho foi
conduzido por consultas bibliográficas nas áreas de Direito, Ciências Sociais,
Ciências Políticas e Teorias de Gênero, especificamente nas temáticas de violência de gênero,
violência doméstica, Lei Maria da Penha e políticas públicas. Observou-se que o
enfrentamento à violência doméstica sofrida por mulheres está diretamente relacionada à
situação econômica na qual elas vivem, mormente no que diz respeito à dependência
financeira que possuem em relação a seus agressores. Nessa linha, foi possível
concluir que as políticas públicas elaboradas para o enfrentamento da violência
doméstica contra mulheres devem ser repensadas a partir de uma perspectiva
interseccional, que situe as mulheres em contextos específicos de violência, construídos a
partir do cruzamento entre o gênero e outras categorias sociais que marcam suas
existências, como raça e classe social. Chegou-se também à conclusão de que tais
políticas públicas podem ser pensadas sob o viés transformativo da economia feminista,
com vistas a garantir a autonomia econômica de mulheres a partir da reorganização justa
da produção do cuidado.
Palavras-chaves: violência doméstica; políticas públicas; autonomia econômica.

1
Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais.
Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Advogada inscrita na OAB/PR sob o n. 85.079. E-
mail: mariliaferruzzi@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p355 355


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Introdução.

As políticas públicas voltadas para o enfrentamento de violências domésticas praticada


contra mulheres ganharam especial força, no Brasil, com o advento da Lei Maria da Penha
(Lei no 11.340/06). Conforme Castilho (2014), a própria Lei Maria da Penha pode ser
considerada enquanto uma política pública voltada para o enfrentamento às violências
domésticas e familiares contra as mulheres, na medida em que atribui legalmente ao Estado a
obrigação de agir para coibir tais violências.
Um dos desafios ainda existentes no campo das políticas públicas voltadas para o
enfrentamento de violências domésticas diz respeito à falta de intersecção entre as
discriminações de gênero e outras formas de discriminações e vulnerabilidades, como a
vulnerabilidade econômica. Tanto os estudos feministas sobre violência contra mulheres
quanto as políticas de enfrentamento à violência doméstica tendem a priorizar uma
abordagem unidimensional do gênero, sem incorporar a interseccionalidade deste com outras
importantes categorias sociais, como classe social, raça, etnia, orientação sexual, deficiência,
entre outras. (SANTOS, 2017, p. 37) A própria Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), o mais
importante marco legal de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulheres no
Brasil, embora contemple outras categorias sociais além do gênero em seu texto, não promove
uma intersecção entre as categorias e tampouco se utiliza delas para a definição de violência
doméstica. A definição de violência doméstica trazida pela Lei Maria da Penha se baseia
somente na categoria gênero, e os estudos voltados para a lei também costumam se limitar a
tal categoria, não adotando uma abordagem interseccional. (SANTOS, 2017, p. 40) Disso
resulta a dificuldade de se implementar políticas públicas específicas que contemplem, por
exemplo, a realidade de mulheres pobres e negras em situação de violência doméstica.
O presente trabalho se propõe a analisar a relevância do entrecruzamento da violência
de gênero com fatores de vulnerabilidade social e econômica presentes na vida de mulheres
para a elaboração e execução de políticas públicas que visam promover a igualdade de gênero
e o enfrentamento às violências domésticas praticadas contra mulheres.

Justiça econômica e justiça de gênero.

É preciso que se tenha uma compreensão de como a violência de gênero pode ser
entrecruzada, no campo teórico, com a desigualdade socioeconômica enfrentada pelas
mulheres.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p355 356


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Cumpre retomar, para tanto, a discussão tecida por Fraser (2006) a respeito da
possibilidade de conciliação entre as pautas políticas voltadas para a justiça cultural e as
pautas políticas voltadas para a justiça econômica ou de classe, situando tal dilema no cenário
das necessidades políticas de mulheres.
A partir da teorização de Fraser (2006, p. 233), é possível reconhecer que as mulheres,
enquanto grupo identitário, buscam o reconhecimento das diferenças sociais existentes entre
os gêneros e, consequentemente, o reconhecimento das violências de gênero geradas por tais
diferenças. Buscam, então, evidenciar uma injustiça cultural ou simbólica, consubstanciada no
desrespeito e desqualificação de mulheres, nas representações culturais públicas
estereotipadas de comportamentos femininos e na imposição de padrões conforme uma
configuração social androcêntrica. Dessa forma, o remédio para tal injustiça – e,
consequentemente, para a violência de gênero praticada contra mulheres - seria uma mudança
cultural ou simbólica, que pode envolver a o reconhecimento e a revalorização do grupo
identitário ou uma “transformação abrangente dos padrões sociais de representação,
interpretação e comunicação”. (FRASER, 2006, p. 232)
Por outro lado, é preciso reconhecer que mulheres também estão inseridas, em grande
número, em outra coletividade: a classe explorada economicamente. Elas se constituem,
portanto, enquanto um grupo que combina características da classe explorada
economicamente e do grupo identitário discriminado por seu gênero. Nesse sentido, Fraser
(2006, p. 233) classifica as mulheres como uma coletividade bivalente, já que são
“diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômico-política quanto da
estrutura cultural-valorativa da sociedade” e que, portanto, “sofrem injustiças que remontam
simultaneamente à economia política e à cultura.” Dessa forma, segundo a autora, para além
do suposto dilema da redistribuição-reconhecimento, é preciso reconhecer que existem
coletividades específicas, localizadas na região intermediária do espectro conceitual que
divide as coletividades entre classe explorada e classe culturalmente discriminada. Tais
coletividades, híbridas ou bivalentes, estão sujeitas, simultaneamente à má distribuição
econômica e à desconsideração cultural. Em suma, as políticas de reconhecimento voltadas
para um grupo identitário devem também incluir políticas de redistribuição, sob o risco de
perderem seu caráter emancipatório. (FRASER, 2006, p. 233)
Mais do que injustiças independentes que estão presentes nas vidas e no cotidiano das
mulheres, a discriminação cultural de gênero e a exploração de classe estão interligadas. Isso
porque o “gênero”, enquanto um dos paradigmas de coletividades bivalentes, abarca em si
tanto redistribuição quanto reconhecimento. (FRASER, 2006, p. 233) É preciso ter em mente

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que o gênero “estrutura a divisão fundamental entre trabalho ‘produtivo’ remunerado e


trabalho ‘reprodutivo’ e doméstico não-remunerado, atribuindo às mulheres a
responsabilidade primordial por este último”. Mais do que isso, o gênero também estrutura a
divisão interna na esfera do trabalho remunerado, dividindo as ocupações profissionais entre
aquelas de remuneração mais alta (nas quais predominam os homens) e aquelas de serviços
domésticos ou de baixa remuneração (nas quais predominam as mulheres). (FRASER, 2006,
p. 234)
A forma com a qual a produção e reprodução das pessoas são organizadas socialmente
influenciam diretamente nas discriminações de gênero. Nossa sociedade é estruturada de
forma que às mulheres são reservados os trabalhos domésticos, não remunerados e realizadas
no âmbito privado, enquanto aos homens são reservados os trabalhos formais, os espaços
públicos e de tomada de decisões. Tal diferenciação de papéis de gênero gera injustiças de
gênero, na medida em que os trabalhos realizados pelos homens são mais valorizados e
representam maior poder, em detrimento do trabalho realizado pelas mulheres.
Dessa forma, é preciso se reconhecer que a invisibilização e a desvalorização do
trabalho de cuidado também geram violência doméstica e de gênero, já que a hierarquização
das formas de trabalho e a precarização e não-reconhecimento do trabalho doméstico
reforçam a dependência econômica de mulheres em relação aos homens, o que, por sua vez,
reforça a desigualdade de poder e de autonomia nas relações estabelecidas entre homens e
mulheres. A organização androcêntrica dos espaços e a divisão sexual do trabalho cria
também diversas catracas invisíveis, que dificultam e restringem o acesso de mulheres não
somente a direitos, mas também a espaços urbanos. (MORENO, 2016, p. 69) Assim sendo, é
possível concluir que os modos de exploração e de marginalização econômica estão, em sua
estrutura, marcados pelo gênero. (FRASER, 2006, p. 234)
Portanto, é possível concluir que a injustiça de gênero pode ser compreendida
simultaneamente enquanto injustiça cultural e injustiça distributiva, exigindo, dessa forma,
remédios que deem conta de tal especificidade.
Yuval-Davis (2012, p. 21-22) avança na discussão proposta por Fraser e sustenta que
as políticas da interseccionalidade seriam mais efetivas para dar conta das múltiplas injustiças
sofridas pelas mulheres, transcendendo as políticas de “reconhecimento” e “redistribuição”.
Isto porque, embora as pessoas possam se identificar com um agrupamento identitário
específico, sua posição social está construída a partir do entrecruzamento de múltiplas
categorias de poder, entre as quais a “classe” figura apenas como uma.

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Tal entendimento pode ser aplicado à necessidade de uma abordagem interseccional


nos estudos e na aplicação de políticas voltadas para o enfrentamento da violência doméstica
contra mulheres. Para Santos (2017, p. 39), a interseccionalidade pode ser entendida como

o cruzamento de sistemas de opressão e de privilégio, como o


(hetero)patriarcado, o capitalismo e o racismo, que estruturam as relações
sociais com base em categorias historicamente situadas, tais como, classe
social, gênero, raça, etnia, orientação social, deficiência, entre outras.

As diferentes formas de discriminações e violências sofridas por mulheres podem ser


entrecruzadas, de maneira que as violências sofridas por cada mulher seja determinada de
forma específica, conforme todos os marcadores sociais que a atravessam e conforme as
dificuldades e vulnerabilidades às quais estas mulheres estão sujeitas. Mulheres brancas e de
classes sociais mais abastadas, que se encontram em uma situação financeira estável e segura
também estão sujeitas à violência doméstica de gênero, mas é necessário entender que essa
violência se diferencia da violência doméstica sofrida por mulheres negras e mulheres
pertencentes a classes sociais mais vulneráveis, exatamente por estas últimas estarem sujeitas
ao entrecruzamento desses marcadores sociais. Tal diferenciação deve ser compreendida e
incorporada também pelas políticas públicas que visam o enfrentamento da violência
doméstica.

Vulnerabilidades e relação de dependência econômica nas situações de violência


doméstica: a experiência do NUMAPE/UEM.

A teorização até aqui trabalhada é enriquecida com as observações obtidas a partir da


experiência prática do NUMAPE/UEM, um núcleo de extensão voltado para o atendimento
jurídico e psicológico de mulheres em situação de violência da cidade de Maringá, Paraná,
Brasil, onde a autora do presente trabalho atuou como estagiária e, posteriormente, como
advogada. Trata-se de um projeto de extensão financiado pela SETI/PR – Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, do Estado do Paraná, no âmbito do programa
Universidade Sem Fronteiras. O projeto funciona na Universidade Estadual de Maringá, desde
dezembro de 2015, e tem como principal objetivo “promover orientações, atendimentos e
encaminhamentos a mulheres em diferentes contextos de violência doméstica e familiar”,
buscando se concretizar enquanto experiência de advocacy feminista. (MACHADO et al.,

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2017, p. 154-155)
A partir de um estudo da atuação do núcleo, é possível notar que a violência de gênero
sofridas pelas mulheres no ambiente doméstico, principalmente por parte de seus
companheiros, está frequentemente ligada à situação de vulnerabilidade social enfrentada por
tais mulheres e à dependência econômica que elas mantém em relação a seus agressores. Tal
relação reside principalmente na dificuldade que as mulheres enfrentam para saírem da
situação de violência doméstica, já que, na prática, se desvencilhar do agressor compreende
uma série de gastos financeiros e emocionais. (MACHADO; LESSA; LIMA, 2017, p. 5-7)
Conforme mencionado, a atuação jurídico-processual do NUMAPE/UEM se dá
principalmente por ações que estão diretamente ligadas aos direitos e necessidades cíveis e
econômicas de mulheres que saem de uma relação de violência doméstica. Após a realização
do registro do boletim de ocorrência e do requerimento de medidas protetivas de urgência,
previstas na Lei Maria da Penha, as mulheres em situação de violência doméstica precisam,
entre outras providências, realizar a partilha dos bens que possuem com o agressor e realizar o
requerimento de pensão alimentícia, para si ou para os filhos que eventualmente possuírem
em comum com os agressores. Entretanto, entre o período de janeiro de 2016 e maio de 2017,
foi possível observar que 33,7% do total de mulheres atendidas pelo NUMAPE/UEM
desistiram do acompanhamento processual realizado pelo núcleo. (MACHADO; LESSA;
LIMA, 2017, p. 5) É importante compreender que a demora da prestação judicial das
demandas, bem como a organização estabelecida pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná, que obriga as mulheres vítimas de violência doméstica a peregrinarem por diferentes
juízos, são fatores cruciais para tais desistências, principalmente diante do recorte de classe
estabelecido como critério para o atendimento do núcleo. Diante da situação de
vulnerabilidade em que as mulheres atendidas se encontram, não se torna razoável, para elas,
a espera pela prestação jurisdicional.
Inseridas em uma posição de vulnerabilidade econômica e em uma estrutura familiar
onde o trabalho remunerado é exercido predominantemente pelos homens, tais mulheres
enfrentam, juntamente com a ruptura da relação violenta, uma “ruptura da condição
econômica em que se vivia” e, em muitos casos, a interrupção “do suporte financeiro feito
pelo homem”2. No intervalo entre o início do processo até a decisão liminar que obriga o
agressor, pelo menos, ao pagamento de pensão alimentícia, elas passam a ter que arcar

2
De acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada para investigar a situação da violência contra a
mulher no Brasil, entre abril de 2006 a dezembro de 2011, 40,49% das vítimas de violência doméstica que
recorreram à Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) dependiam financeiramente do agressor. (BRASIL,
2013, p. 24-26)

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sozinhas com a criação dos filhos e com os gastos da casa, consistentes em pagamento de
aluguel e de outras despesas de rotina. (MACHADO; LESSA; LIMA, 2017, p. 5-6) Dessa
situação de necessidade econômica resulta, muitas vezes, a decisão, por parte das mulheres,
de reatarem o relacionamento com os agressores.

é possível salientar duas características das mulheres de Maringá que


procuram a assistência jurídica do NUMAPE e que, em razão das
circunstâncias econômicas – ainda que não somente em decorrência delas –
poderão vir a desistir do processo: a casa em que vivem é alugada, e têm
filhos ainda crianças. Para elas, mesmo que estejam empregadas ou tenham
sua própria fonte de renda, mesmo assim, será bastante difícil conseguir
encarregar-se do aluguel por conta própria, o que torna a espera pela solução
judicial um momento delicado. (...) outro traço possível do perfil das
mulheres é a carência de um suporte familiar efetivo.
Durante nossa atuação, portanto, identificamos que há uma preocupação de
ordem econômica – seja com os bens adquiridos durante a constância do
relacionamento, ou com a subsistência dos filhos – que opera como
condicionante na decisão de iniciar ou continuar com a ação proposta e,
mesmo, na de permanecer com o agressor. À vista disso, um cenário típico e
frequente de desistência é o de, estando protocolado o processo, antes ou até
a audiência de mediação e conciliação, há o pedido para sua suspensão, pois
decide-se por “dar uma nova chance”, isto é, há uma reconciliação. Para essa
decisão, foi notoriamente determinante a situação financeira (...)
(MACHADO; LESSA; LIMA, 2017, p. 5-6)

Nota-se que a situação de dependência econômica que as mulheres mantém com seus
agressores as colocam em uma situação de vulnerabilidade financeira que constitui a forma
específica de violência doméstica que elas sofrem.
A Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres reconhece a autonomia econômica
enquanto elemento essencial para que as mulheres possam “promover seu próprio sustento e
decidir por suas próprias vidas”, de forma que tal autonomia pressupõe, além da
independência financeira e geração de renda, uma autonomia para realizar escolhas. Segundo
a SPM, “além de garantir a própria renda, é preciso que as mulheres tenham liberdade e
condições favoráveis para escolher sua profissão, planejar seu futuro, ter tempo para o lazer e
para se qualificar”. (SPM, 2016)

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No Brasil, tanto o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher


quanto a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, dois dos
principais planos de políticas públicas para o enfrentamento à violência doméstica contra
mulheres do país, reconhecem a garantia da autonomia econômica e financeira de mulheres
como um de seus direitos fundamentais para uma vida livre de violência. (BRASIL, 2011b;
BRASIL, 2011c, p. 32)
Não obstante, conforme aponta Santos (2017, p. 37), as políticas públicas voltadas
para o enfrentamento de violências domésticas praticadas contra mulheres, conceituadas e
positivadas em nosso ordenamento jurídico por meio da Lei Maria da Penha, ainda não são
pensadas de uma maneira que incorpore efetivamente uma abordagem interseccional das
violências. A efetiva implementação de ações como as destacadas do Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra a Mulher e na Política Nacional de Enfrentamento à
Violência Contra as Mulheres também perpassa por desafios que estão atrelados à dificuldade
de se superar o paradigma hegemônico econômico neoclássico, ainda dominante no
pensamento econômico e na elaboração de políticas públicas de caráter econômico.
(CARRASCO, 2006, p. 2)
Conforme já mencionado, as políticas públicas voltadas para o enfrentamento deste
tipo de violência, para lograrem efetividade, não podem ignorar as especificidades da
realidade socioeconômica das mulheres. Mais do que isso, é preciso que tais políticas públicas
se preocupem em garantir a independência econômica de mulheres, tendo em vista que este é
um fator crucial para o rompimento do ciclo de violência doméstica.

Novas formas de se pensar as políticas públicas para o enfrentamento da violência de


gênero: a contribuição da economia feminista.

Conforme pontuado nos itens anteriores, o enfrentamento a desigualdades econômicas


e a garantia da independência econômica de mulheres são fatores essenciais para que estas
consigam romper com o ciclo de violência doméstica e possam exercer seu direito a uma vida
livre de violências. Políticas públicas afirmativas, que busquem compensar as desigualdades
presente entre homens e mulheres e as desigualdades econômicas existentes entre diferentes
classes sociais são de extrema importância para garantir a autonomia econômica de mulheres
e, consequentemente, contribuir para o enfrentamento da violência doméstica. No âmbito da
área de atuação do NUMAPE/UEM, por exemplo, Machado, Lessa e Lima (2017, p. 7-10)
sugerem que a política de abrigamento brasileira (BRASIL, 2011a) seja interpretada de

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maneira ampla, destacando a importância de que seja efetivamente implementada a concessão


de aluguel social para as mulheres em situação de violência doméstica, para que elas
consigam exercer com dignidade seu direito à moradia e consigam se sustentar
financeiramente após romperem com o ciclo de violência.
No entanto, no presente trabalho, sugere-se que, para a criação de medidas que deem
conta de promover reconhecimento e redistribuição para mulheres enquanto coletividade, é
possível se pensar, ainda, na possibilidade de uma nova abordagem para as políticas públicas,
que vá além do escopo afirmativo e compensatório e que busque promover mudanças nas
próprias estruturas discriminatórias. (FRASER, 2006, p. 237-238)
Embora políticas públicas afirmativas, como a promoção do aluguel social para
mulheres em situação de violência, sejam necessárias e de extrema importância para o
enfrentamento das injustiças, subsiste o desafio de se pensar em outras possibilidades de
políticas públicas, que tenham por escopo a transformação, em diferentes níveis, do sistema
de produção e das estruturas culturais-valorativas. Pretende-se sustentar, portanto, que para se
corrigir as desigualdades econômicas que se interseccionam com a violência doméstica de
gênero praticada contra as mulheres, são necessárias políticas que visem e incentivem uma
mudança no próprio pensamento econômico e na organização do sistema econômico vigente.
Para tal mudança, a economia feminista pode funcionar como norte teórico,
epistemológico e empírico na análise da importância da autonomia econômica de mulheres
para a implementação de políticas públicas de gênero. Apesar de ser heterogênea e se
desmembrar em linhas distintas de investigação, é possível identificar a economia feminista
como “um corpo maduro de pensamento, com uma estrutura comum de referência”, cujo
objetivo comum consiste em rejeitar e romper com as tradições e os paradigmas
androcêntricos presentes no pensamento econômico tradicional e dominante. (CARRASCO,
2006, p. 1, 22, 23)
As teóricas do pensamento econômico feminista sustentam que o pensamento
econômico tradicional e hegemônico, ancorado no paradigma neoclássico, não são capazes de
oferecer soluções que deem conta dos problemas de injustiça de gênero e que transformem a
realidade social das mulheres. Mais do que isso, o pensamento hegemônico justifica e
legitima a desigualdade econômica de gênero. Isso porque tal pensamento atua e se expressa
por meio de um viés androcêntrico e seu método analítico se restringe ao estudo de uma
economia de mercado, não sendo capaz de analisar e apreender as diferentes e concretas
realidades sociais nas quais as mulheres se encontram inseridas. (CARRASCO, 2006, p. 2)
Em contrapartida, portanto, a proposta de uma economia feminista visa promover uma

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ruptura com os próprios métodos analíticos e epistemológicos dominantes no campo do


pensamento econômico. Trata-se de reconhecer que “nem a estrutura da economia e nem os
ciclos econômicos são neutros ao gênero” (CEPAL, 2012, p. 127), de superar o modelo
universal e androcêntrico de “homo economicus” e considerar a presença e a importância do
trabalho das mulheres para a economia. Trata-se, também, de superar e rejeitar um modelo
universal e analítico de economia de mercado, que supostamente daria conta de analisar e
compreender todas as relações econômicas. (CARRASCO, 2006, p. 2)
Como modelo inovador e alternativo de pensamento econômico, as teóricas da
economia feminista sugerem o conceito da “economia do cuidado”. Trata-se incluir na análise
do pensamento econômico o trabalho a sustentabilidade da vida e a “satisfação das
necessidades básicas de subsistência e qualidade de vida das pessoas”, realizado
majoritariamente, em nossa sociedade, pelas mulheres. Sustenta-se que é preciso reconhecer a
importância do trabalho realizado pelas mulheres para a sustentabilidade da vida humana e,
consequentemente, para a reprodução da força de trabalho necessária para o trabalho de
mercado. Procura-se evidenciar, no pensamento econômico e no debate para a elaboração das
políticas públicas da área econômica, as mulheres trabalhadoras que não estão inseridas
diretamente na economia de mercado. (CARRASCO, 2006, p. 2; ENRÍQUEZ, 2015, p. 31-
32)
Dessa forma, para a efetivação de políticas públicas que visam garantir a autonomia
econômica e os direitos das mulheres, é preciso que se altere o paradigma do pensamento
econômico, para que se produzam informações a partir de uma perspectiva de gênero. A partir
do viés da economia do cuidado, as políticas públicas devem levar em conta as possibilidades
das pessoas de “eleger o modo de organizar o cuidado e que facilitem a conciliação entre sua
vida laboral e familiar”. Principalmente, é preciso eliminar os estereótipos de gênero nas
relações laborais e do cuidado, de forma que as atividades necessárias para a subsistência e
para a sustentabilidade da vida sejam distribuídas justamente entre os membros da sociedade,
sejam homens ou mulheres. (ENRÍQUEZ, 2015, p. 44; MORENO, 2016)
Para se alcançar uma justiça de gênero no âmbito econômico e laboral, é preciso
superar a ideia de que mulheres devem buscar uma igualdade laboral e econômica dentro de
uma lógica capitalista. Pelo contrário, deve-se buscar a superação do próprio modelo
econômico hegemônico e, nesse sentido, a economia do cuidado é um eixo fundamental para
se pensar na transformação do sistema, na medida em que possibilita a construção de modelos
econômicos alternativos e social-solidários, onde são reconhecidas diferentes formas de
organização da propriedade, da produção e do trabalho, que não estão reduzidas à forma

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empresarial capitalista. (LEÓN T., 2014)


Trata-se, portanto, de pensar em mudanças que estejam direcionadas também para
uma divisão do trabalho mais justa. É preciso reconhecer que, embora um número cada vez
maior de mulheres estejam conseguido acessar o mercado de trabalho, o ato de ocupar tais
espaços implica em um processo muito mais caro para as mulheres do que para os homens.
Em suma, há uma abertura para que mulheres ingressem no mercado de trabalho, mas não há
políticas públicas que deem assistência e incentivo para que tais mulheres possam exercer seu
trabalho nas mesmas condições que os homens. Para se alcançar uma igualdade substancial
entre homens e mulheres, no âmbito econômico e do trabalho, é preciso pensar em uma
organização laboral que apresente condições justas e igualitárias para o acesso e permanência
nos espaços. (ONU MUJERES, 2017, p. 21)
Entende-se ser possível o planejamento e a execução de políticas públicas que
incentivem novas formas de economia e que incorporem experiências alternativas “que estão
se implementando ao redor do mundo por parte de movimentos sociais progressistas e grupos
feministas”. (SCAMPINI, 2012, p. 1)
Além da observância do marco teórico da teoria econômica feminista, é de extrema
importância, na análise, planejamento e execução de políticas públicas, a observância e a
compreensão da atuação prática de movimentos feministas e de grupos de mulheres reais na
construção de novas formas de se organizar a economia. Conforme observa Scampini (2012,
p. 1), “as mulheres têm ampla experiência em desenhar estratégias de sobrevivência e
resistência aos modelos de desenvolvimento falido e as crises recorrentes que eles têm
provocado”.
Nesse sentido, para uma transformação do sistema econômico vigente, parece ser
fundamental que sejam exploradas as realidades concretas de comunidades e mulheres que
estão lutando para superar as desigualdades e injustiças. (SCAMPINI, 2012, p. 1) Como
exemplos de experiências econômicas alternativas brasileiras, cita-se as experiências de
economia solidária e da agroecologia (LOPES; JOMALINIS, 2012, p. 10-11), as quais vêm
fornecendo pistas sobre a possibilidade de se organizar uma economia voltada para a
cooperação, que proporcione uma sociedade mais justa para mulheres.3, 4

3
Cita-se, a título de exemplo, a experiência do projeto Mulheres e Agroecologia, organizado pela ActionAid
Brasil, em 2006, a qual teve por objetivo o empoderamento de mulheres a partir do reconhecimento da
importância de seus trabalhos dentro da dinâmica da agroecologia. (LOPES; JOMALINIS, 2012, p. 10-11)
4
A economia solidária e a agroecologia são consideradas como formas de se opor ao modelo capitalista de
produção e desenvolvimento. No entanto, é importante que existam ações de enfrentamento das violências e
discriminações presentes nesses próprios espaços alternativos de economia e produção. (LOPES; JOMALINIS,
2012, p. 10-11; PESSOA; RAMOS; PEIXOTO, 2008)

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Considerações finais.

Foi possível observar que a violência doméstica sofrida por mulheres está diretamente
relacionada à situação econômica na qual elas vivem, mormente no que diz respeito à
dependência financeira em relação a seus agressores. A partir da experiência de um núcleo
voltado para o atendimento jurídico e psicológico de mulheres em situação de violência
doméstica na cidade de Maringá, Paraná, Brasil, foi possível também perceber que, além das
injustiças econômicas causadas pela desigualdade de gênero, o nível de dependência
econômica que mulheres possuem em relação a seus agressores interfere diretamente na
constituição de sua situação de vulnerabilidade financeira e na possibilidade de se
desvencilharem da situação de violência.
Conclui-se que as políticas públicas elaboradas para o enfrentamento da violência
doméstica contra mulheres, assim como os estudos sobre a temática, devem ser repensadas a
partir de uma perspectiva interseccional, que situe as mulheres em contextos específicos de
violência, construídos a partir do cruzamento entre o gênero e outras categorias sociais que
marcam suas existências. Nesse sentido, tais políticas públicas devem também considerar as
situações específicas de vulnerabilidade socioeconômica nas quais diferentes mulheres estão
inseridas.
Ao se concluir que a busca pela justiça de gênero depende também do acesso de
mulheres a sua autonomia e seus direitos econômicos, percebe-se que as políticas públicas
devem ser pensadas não somente a partir de um caráter meramente afirmativo e assistencial,
mas também a partir de um viés transformativo, que busque modificar as estruturas mesmas
que causam as discriminações. Para tanto, sugere-se que tais políticas públicas sejam
pensadas a partir da perspectiva da economia feminista, a qual se propõe a promover uma
ruptura epistemológica, metodológica e empírica com o pensamento econômico hegemônico,
para dar espaço a um pensamento que considere e evidencie o trabalho despendido para o
cuidado e a sustentabilidade da vida. Dessa forma, para que a realidade social das mulheres
seja transformada e, consequentemente, para que a violência de gênero praticada contra
mulheres seja enfrentada, é também fundamental reconsiderar meios alternativas de
organização econ6omica, que busquem reorganizar de forma justa a produção do cuidado a
partir de pensamentos da teoria feminista e de experiências concretas vividas por mulheres.

Referências.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p355 366


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Masculinidade criminosa e violência masculina: apontamentos para um estudo


sobre identidade de gênero no Instituto Penal de Campo Grande (IPCG)

Daniel Attianesi de Lima1

Resumo: O artigo que proponho aqui estrutura-se desde de uma discussão entre os estudos de gênero
e a noção clássica de alteridade na antropologia, a partir do conceito de diferença. Em um primeiro
momento, problematizo as masculinidades em consonância com noções mais amplas de identidade e
movimentos identitários. Depois, atento para a separação entre sexualidade e gênero numa perspectiva
pós-estruturalista. Por último, penso na possibilidade de observar a existência de uma masculinidade
criminosa entre os detentos do sistema penal brasileiro, mais precisamente no Instituto Penal de
Campo Grande-MS (IPCG). Dessa forma, o fio condutor teórico do artigo se encontra nos estudos de
gênero e no pós-estruturalismo, que propiciam a construção de explicações sobre o gênero não
restritas aos referenciais biológico e psicológico e radicam suas análises no campo cultural,
entendendo a cultura como um horizonte de tensões entre representações e significações.
Palavras-chaves: Masculinidades; Identidade; Crime; Gênero; Violência; Prisão.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul; Bolsista da Fundação de apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato
Grosso do Sul (FUNDECT); danielattianesi@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 236


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Introdução – Identidade ou “Identidade”?

Busco nesse artigo me aproximar de minha dissertação de mestrado no programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Mato Grosso
do Sul (UFMS) incluo nesse artigo os sujeitos presentes no meu campo, isto é, alguns
detentos de crimes violentos2 do Instituto Penal de Campo Grande (IPCG). Nesse artigo se
pretende apresentar uma mais visão panorâmica das discussões que aqui se encontraram. Em
vias de um maior aprofundamento dos debates aqui presentes, seria aconselhável uma revisão
dos textos utilizados na bibliografia, encontrada ao final do texto.
Início o debate pensando a questão das atuais lutas identitárias, que são demandas
vindas de grupos possuidores de identidades marcadas, como por exemplo o movimento
negro, movimento feminista e movimento LGBT. Atualmente se ouve uma expansão dessas
lutas no cenário político brasileiro. Como nos diz Francisco Bosco (2017, p.53), determinados
fatores causaram sua sistematização e intensificação, como por exemplo o colapso do lulismo,
as revoltas de junho de 2013 e a nova relação entre as lutas identitárias e o novo espaço
público das redes sociais digitais. A partir do alargamento dos discursos em torno das pautas
identitárias em prol do reconhecimento, é que buscamos problematizar a questão da
nomenclatura dos movimentos como “identitários”.
Problematizando o conceito de uma identidade fixa ou naturalizada tanto pelos saberes
médicos, psicológicos e biologizantes, assim como por determinados movimentos identitários
que buscam fixar a identidade como uma solidez imutável, pensaremos aqui no conceito de
identidade a partir de Stuart Hall (2000, p.108), isto é: não essencializar as identidades,
devendo pensar nelas, nunca como singulares, mas multiplamente construídas ao longo de
discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou serem antagônicas entre si. Podemos
pensar também nos grupos identitários que buscam utilizar uma identidade como fachada, no
sentido de formas que os grupos procuram utilizar ela como conceito estratégico e
posicional3.
Dessa forma, neste artigo quando pensamos identidades queremos nos afastar um
pouco das ideias apresentadas pelos os movimentos identitários que utilizam sua identidade
como ferramenta política de mudança e em prol do reconhecimento de seus direitos. Com isso
em mente, gostaria de apontar, a partir de Manuela Carneiro da Cunha (2009, p.311), a

2
Aqui entendidos como os detentos do crime de Homicídio, número 121 no Código Penal Brasileiro.
3
Para mais aprofundamento na utilização do conceito de identidade como política nas questões de diferenças ver
Brah (2006)

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 237


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separação criada entre as categorias analíticas4 “cultura” e cultura. A cultura enquanto algo
criado pelas sociedades em si e a “cultura” sendo utilizada como um projeto político sobre o
conhecimento tradicional,
[...] Decorre daí que dois argumentos podem ser simultaneamente verdadeiros: i)
existem direitos intelectuais em muitas sociedades tradicionais: isso diz
respeito a cultura; ii) existe um projeto político que considera a
possibilidade de colocar o conhecimento tradicional em domínio público
(payant): isso diz respeito a "cultura". O que pode parecer um jogo de
palavras e uma contradição e na verdade uma consequência da reflexividade que
mencionei. (CARNEIRO DA CUNHA, 2009. p.358, grifo meu).

A autora, no debate sobre a utilização dos conhecimentos tradicionais de comunidades


indígenas da Amazônia e outras regiões, por meio dos direitos intelectuais de propriedade dos
estados nacionais, buscou criar a categoria analítica de “cultura”. A utilização de cultura com
aspas busca demonstrar como uma determinada palavra do vocabulário antropológico acaba
por ser levada para os povos das regiões periféricas e sendo utilizado pelos mesmos como
uma metacultura no sentido de serem usados como uma forma de legitimação em disputas
políticas por terras ou, como no debate do texto, pelos direitos à propriedade intelectual dos
saberes tradicionais. Essa “cultura” sendo apropriada então pelos “nativos” acaba por ser
utilizada como uma arma de resistência.
Tendo observado essa explicação de “cultura”, como a autora pensará o principal fator
que buscará separar a “cultura” da cultura sem aspas? Carneiro da Cunha demonstra que esse
fator se encontra na reflexividade e os efeitos decorrentes dela (mais a frente voltaremos a
esse fator numa problemática costumeira das lutas identitárias). A partir da reflexividade
então que dentro da linguagem que se é possível, como nos diz Carneiro da Cunha (2009,
p.358), “utilizar “cultura” entre aspas quando nos referirmos àquilo que é dito acerca da
cultura. No sentido visto até aqui, o conceito de cultura tradicional continuará a ser
fundamental para o estudo da antropologia, pois sua definição e discussão sobre o conceito
segue as linhas da disciplina para o aprofundamento dessa discussão (Geertz, 2008;
Sahlins,2003; Wagner,2010).
Voltando aos movimentos identitários, observamos uma questão parecida com a
problemática enfrentada por Carneiro da Cunha. Nesses movimentos, se têm uma utilização
da “identidade” como ferramenta política, assim como a “cultura” foi/está sendo utilizada, em
busca da realização de demandas especificas de determinados grupos identitários. Mas o
problema que decorre desses movimentos é exatamente a impressão passada pela acepção

4
A autoria consciente evita a utilização da palavra conceito por seu grande peso epistemológico dentro do saber
antropológico como nos diz Carneiro da Cunha (2009, p.312).

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 238


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“movimentos identitários”, que possibilita pensar que nesses movimentos existem apenas as
“identidades” como uma construção social e que fora deles as identidades seriam pensadas
como naturalizadas e essenciais.
Em vias de exemplificação, podemos pensar duas questões: a primeira seria a ideia de
um homem, branco e heterossexual não participar de nenhum dos tradicionais movimentos
identitários, deixando a impressão da existência de uma não-identidade, quando o que
deveríamos pensar é sobre uma não “identidade” com aspas, no sentido de ferramenta política
pelo reconhecimento, tendo em vista o já reconhecimento dessas categorias (homem, branco,
heterossexual) em nossa sociedade.
Numa segunda questão, podemos pensar no que as lutas identitárias chamam hoje de
lugar de fala5. Na ideia desse conceito, os movimentos buscam que a identidade e a
“identidade” sejam correspondentes para que dessa forma se tenha legitimidade para se falar
politicamente sobre determinadas pautas identitárias. Teríamos também, quando em
dissonância, um encontro da identidade sem aspas com a “identidade”, pois dentro nesse
conceito está em questão o que agentes podem falar a respeito das questões de “identidade”,
sempre partindo de sua identidade em si.
Tendo isso em mente, esse artigo busca criar como categoria analítica uma separação
semelhante à de Carneiro da Cunha, só que no tocante às questões identitárias: pensaremos a
partir daqui, então, em uma identidade sem aspas e uma “identidade”6. Esse movimento é
importante devido à especificidade político-metodológica de se analisar masculinidades em
uma pesquisa de gênero, isso se encontra no sentido da problemática da alteridade dentro da
antropologia como um todo. Na próxima seção, faremos algumas considerações sobre os
estudos de gênero na antropologia, bem como sua separação da sexualidade e a ascensão dos
estudos sobre masculinidades.
Antropologia, sexualidade e gênero: onde estão as masculinidades?

Aqui, busca-se traçar três marcos nos estudos de gênero e sexualidade na antropologia
e ao final procuramos fazer uma pequena revisão dos estudos de masculinidade dentro desse
contexto. Dois destes marcos, nos estudos de gênero e sexualidade, se estabelecem a partir
dos trabalhos de duas autoras norte-americanas, Gayle Rubin e a Carol Vance, e uma autora

5
Para uma referência da história do conceito de “Lugar de Fala”. Disponível em:
<https://esquerdaonline.com.br/2017/01/08/sobre-o-lugar-de-fala/> Acesso em: 16 dez. 2017.
6
Em forma de simplificar, se para o leitor ainda não ficou clara a separação, é pensarmos a categoria homicídio
e feminicídio, o primeiro ignora as questões de identidade, logo seria pensar a identidade sem aspas. Enquanto o
segundo, o feminicídio, coloca a categoria gênero em evidência, sendo então a “identidade” pensada com aspas,
quando ela não é ignorada, mas sim marcada e utilizada como ferramenta de sentido.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 239


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brasileira, Lia Zanotta Machado. Gayle Rubin promove uma reflexão sobre a questão da
sexualidade e do gênero, bem como das limitações do movimento feminista; Carol Vance
apresenta a trajetória da produção da antropologia sobre sexo e gênero, bem como as linhas
teóricas que estão em discussão; por último, temos a chegada, no Brasil, dos estudos de
gênero e sua inserção no cenário intelectual brasileiro.

O ensaio de Rubin foi apresentado em 19847, durante o que hoje chamamos de guerras
sexuais feministas8, elas foram uma série de debates dentro do movimento feminista sobre
pornografia, sadomasoquismo e prostituição, que foi considerado um dos momentos de
nascimento da terceira onda9 do feminismo e um momento de grande polarização ideológica
dentro do movimento. Um dos pontos principais do texto de Rubin (2003) será a crítica de
como a sexualidade tem se dado apenas, até aquele momento, por meio de debates entre as
áreas de psicologia e biologia deixando de lado a questão cultural, o que dessa forma acabou
por criar nas sociedades ocidentais uma hierarquia valorativa das práticas e dos sentidos de
expressão da sexualidade.

Nesse ensaio, a parte que nos será interessante é a que a autora focará sobre os limites
do feminismo. Ele - como será visto mais a frente - é de fundamental importância para o
início dos estudos de masculinidades dentro do que viria a ser chamado de estudos de gênero.
Ao final dessa parte, Rubin (2003) argumentará que o feminismo é uma teoria da opressão de
gênero, não podendo assim se assumir, como um lugar ideal para uma teoria da opressão
sexual, dessa maneira seria uma falha a junção entre gênero e desejo erótico como forma de
compreensão dos dois fenômenos.

Voltando assim a um antigo ensaio, “O Tráfico de Mulheres”, de 1975, Rubin critica o


seu próprio conceito de sistema sexo/gênero, em que ela o entendia como uma “série de
arranjos através dos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da
atividade humana” (Rubin,1993, p.2). Com isso, a autora tratava, neste ensaio mais antigo,
gênero e sexualidade como ambas modalidades de um mesmo processo social. Já no ensaio

7
Todos os anos de referência são os anos da primeira publicação do texto em língua inglesa, enquanto as versões
que utilizo e estão referenciadas são de anos depois das traduções em português.
8
Para mais informações sobre as guerras sexuais e os debates. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerras_sexuais_feministas>Acesso em: 16 dez. 2017.
9
As Ondas feministas são entendidas como as gerações dos projetos feministas, muitas vezes controversas em
nível teórico e prático. O termo ondas é elucidativo enquanto um projeto que ainda não se completou, em dois
sentidos. O primeiro corresponde a um parâmetro cronológico ou de gerações e o segundo liga-se às sucessivas
construções teórico-temáticas. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/entenda-o-feminismo-e-
suas-ondas/>Acesso em: 16 dez. 2017.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 240


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de 1984, a própria Rubin reconhece as limitações e problemáticas de se trabalhar gênero e


sexualidade dentro de um mesmo quadro. Ela conclui:

[...] o gênero afeta a operação do sistema sexual e o sistema sexual já teve


manifestações específicas do gênero. Mas apesar do sexo e do gênero serem
relacionados, não são a mesma coisa, e eles formam a base de duas arenas
distintas da prática social. Em contraste à minha perspectiva em “O Tráfico
de Mulheres”, estou agora argumentando que é essencial separar
analiticamente o gênero da sexualidade para refletir com mais precisão a
separação social existente. Isso vai contra o alicerce de muitos pensamentos
feministas contemporâneos, que tratam a sexualidade como uma derivação do
gênero. (RUBIN, 2003. p.42, grifo meu).

Com isso, a autora procura combater a visão de autoras como Catherine MacKinnon,
que buscavam tornar a sexualidade como fundamental para o movimento feminista em sua
estrutura, de maneira em que a sexualidade deveria ser vista a partir das relações generificadas
presentes na sociedade. Algo que Rubin (1993, p.43) demonstra em forma de analogia,
aproximando do que os pensadores marxistas estavam tentando fazer, ao utilizar o marxismo
como o único sistema capaz de explicar todas as desigualdades sociais.

No presente artigo, não acreditamos que se pode dar uma ênfase única a nenhum dos
diversos marcadores sociais da diferença10 como solução ou ferramenta de análise em nenhum
contexto social especifico. Enaltecer marcadores como classe (no estilo marxista) ou gênero
(em alguns feminismos) seria uma simplificação da complexidade cultural das realidades
sociais com um cunho político que estaria ignorando diversos outros marcadores importantes
como geração, escolaridade, gênero, raça, entre outros.

Carol Vance, a seu turno, em uma pesquisa apresentada no encontro anual da


American Anthropological Association em 1988, intitulada “A Antropologia Redescobre a
sexualidade: Um Comentário Teórico”, busca fazer um apanhado histórico percorrendo os
primeiros trabalhos de antropologia para entender melhor e descrever o estudo da sexualidade
e do gênero no correr de formação e consolidação da disciplina. Influenciada – também como
Rubin - pelo debate da terceira onda feminista, busca um discurso mais cultural e não
essencialista sobre a sexualidade e o gênero. Vance, assim reflete:

[...], a sexualidade e o gênero eram fenômenos analiticamente distintos que


requeriam estruturas explicativas próprias, mesmo que fossem inter-
relacionados em circunstâncias históricas específicas. As teorias da sexualidade
não podiam explicar o gênero, e levando a argumentação para um novo
patamar, as teorias do gênero não podiam explicar a sexualidade. Esta

10
Para maior aprofundamento das questões de marcadores sociais da diferença ver (Zamboni, 2014) e para a
utilização deles com maestria ver o trabalho sobre prostituição internacional de (Piscitelli,2008; Piscitelli,2013)

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p236 241


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perspectiva sugeriu uma nova estrutura: a sexualidade e o gênero são sistemas


distintos entrelaçados em muitos pontos. (VANCE, 1995. p.12, grifo meu).

Nessa citação, a autora se coloca no que ela chama em seu próprio texto de
construcionismo moderado, a mesma abordagem que utilizaremos aqui quando tratarmos dos
estudos de masculinidade. Apesar de existir um debate dentro do próprio construcionismo a
respeito de suas diferenciações, de um mais moderado a um mais radical. Sendo a primeira a
compreensão tradicional e essencialista que entende tanto o sexo como o gênero como dados
naturais, as vezes por meio de argumentos biológicos, outras por ideias vindas no início da
psicologia num sentido próximo ao freudiano11 e o terceiro modelo de influência cultural.

Nos modelos de influência cultural da sexualidade, que foram os convencionais nas


abordagens antropológicas entre os anos de 1920 até 1990, segundo a autora, “a sexualidade é
vista como material básico – uma espécie de massa de modelar – sobre o qual a cultura
trabalha, uma categoria naturalizada que permanece fechada à investigação e à análise”
(Vance,1995, p.18). Com isso, Vance parece indicar que esse modelo fosse um movimento
em direção ao que viria a ser o construcionismo na medida em que nele já se pensa a cultura
com certa variabilidade, ainda que entendida com certos limites.

O modelo de influência cultural da sexualidade se torna interessante para esse artigo,


na medida em que ele se mostra presente tanto no início dos estudos de masculinidades como
atualmente em algumas correntes da psicologia, pois nessa tradição gênero é pensado ainda
conectado com a sexualidade e com isso se utiliza muito a categoria “papéis sexuais”. Eles
aceitam uma variabilidade nas possíveis formas de masculinidades, mas ainda se tem uma
ideia de uma virilidade do sexo masculino. Vance nos diz que “essa perspectiva teórica aceita,
sem questionar a existência de categorias universais como heterossexual, homossexual,
sexualidade masculina e feminina, e pulsão sexual. ” (Vance, 1995, p.21).

Estes debates chegam ao Brasil. Eles chegam aqui influenciados por algumas destas
visões que discutimos até agora. Na década de 1990, Lia Zanotta Machado, entre outras
pesquisadoras, busca pensar os estudos de gênero como um novo paradigma no campo
intelectual brasileiro. Seu artigo Gênero, um novo paradigma? publicado em 1998 nos
Cadernos Pagu, já questionava a utilização do conceito de gênero como sinônimo do campo
de estudos de mulheres, com isso a autora comenta

11
Apesar do avanço das teorias freudianas sobre a sexualidade e até o próprio gênero, hoje se tem mais em
mente as críticas a respeito de seu, ainda persistente no período da criação da psicanálise, naturalismo preso às
questões biológicas da sexualidade humana. Para uma maior compreensão ver Laqueur (2001).

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[...] quando propusemos que a área de “estudos de mulheres” fosse substituída e


suplantada pelos estudos das relações de gênero. Os estudos de mulheres
tratavam especificamente de retirar as mulheres da situação de relativa
invisibilidade pelo encompassamento da ideia de “homens” como se
“neutros” fossem em relação ao sexo, da relativa invisibilidade pela sua
inserção privilegiada na história privada e pela sua quase exclusiva visibilidade
enquanto exercendo funções complementares ao sexo masculino. (MACHADO,
1998. p.110, grifo meu).12

Para Machado (1998), as análises de gênero se classificavam como novo paradigma


devido primeiro à ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero
que estava surgindo. Em segundo lugar, pelo privilégio metodológico das relações de gênero
sobre qualquer substancialidade das categorias já tradicionais de mulher e homem ou de
feminino e masculino e, por último, pela transversalidade do gênero perpassando as mais
diferentes áreas da cultura. Com isso, a autora conclui que “qualquer noção de feminino e de
masculino se tornou contestável. O consenso foi o de que não há consenso sobre qualquer
natureza do feminino e do masculino” (1998, p.110).

A partir desses três olhares, percebemos uma falta de foco sobre a questão específica
dos estudos sobre masculinidades. Como Karen Giffin ira nos mostrar, “mesmo durante os
primeiros anos do ressurgimento do feminismo nos anos 60 e do início dos ‘estudos das
mulheres’, antes do desenvolvimento do conceito de gênero, havia homens interessados em
participar da reflexão sobre essas questões” (2005, p. 48).

Antes mesmo dos textos de Rubin e Vance vistos aqui, já havia grupos de discussões e
estudo das masculinidades, sendo eles influenciados por duas vertentes: uma diretamente
ligada aos questionamentos do movimento feminista sobre a construção do gênero feminino e
outra de estudos autônomos que não reconheciam no feminismo uma teoria fundadora
(Matos,2001).

A partir das décadas de 70 e 80, paralelo ao avanço das guerras sexuais nos debates
feministas, houve uma expansão na academia norte-americana dos “men’s studies”13. Nesse
momento, surgiram autores considerados fundadores do campo nos Estados Unidos, como
Michael Kaufman e sua argumentação sobre a “tríade de violência” – dos homens contra as
mulheres, contra outros homens e contra si mesmo; a obra de Michel Kimmel com uma
análise histórica das imagens da masculinidade nos Estados Unidos; e também Raewyn

12
Nessa citação podemos observar como a categoria analítica apresentada anteriormente seria pensada como uma
identidade sem aspas com o que a autora quis dizer sobre os homens serem “neutros” em relação ao sexo.
13
A autora francesa, Elisabeth Badinter, teoriza sobre o porquê de o surgimento do campo de estudos sobre
masculinidades ter surgido nos estados unidos, ver em (Bandinter,1993, p.7)

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Connel (na época Robert Connel), um dos teóricos mais conhecidos dessa geração, com sua
argumentação em Gênero e Poder (1987), uma primeira teorização do conceito de
masculinidade hegemônica, ainda utilizado atualmente apesar de críticas quanto à sua
capacidade analítica (Matos,2001).

Muitos desses estudos sobre masculinidades já surgem na esteira das perspectivas


construtivistas. Logo, o conceito de masculinidade hegemônica já se encontra no terreno das
intersecionalidades, ao discutir toda uma variedade de masculinidades a partir de questões de
classe, raça, geração, expressão sexual e outros marcadores sociais da diferença (Giffin,
2005).

A expansão dos estudos sobre masculinidades se inicia nos anos 90 e 2000 com
muitos autores de diversas áreas pensando a questão do gênero masculino. Influenciando o
trabalho no Brasil, a filósofa e historiadora francesa Elisabeth Badinter, escreve o livro “Sobre
a identidade masculina”, publicado em no Brasil em 1993. Pensando a partir de diversas áreas
do conhecimento sobre a questão da masculinidade, também temos o sociólogo Pierre
Bourdieu, que publica seu livro “A dominação Masculina”. Este texto que chega ao Brasil em
1999. Apesar de uma perspectiva mais estruturalista, ele possui grande influência nos estudos
de masculinidade no país.

Sobre a produção nacional, temos na área de sociologia o trabalho de Pedro Paulo


Martins de Oliveira “A construção social da Masculinidade” (2004) que faz um apanhado
histórico da área, assim como os diversos discursos dentro do campo das masculinidades. No
Nordeste, mais precisamente em Recife, em 1997 ocorre a fundação do Instituto Papai, que,
com uma visão mais ligada às áreas da saúde e psicologia, irá pensar e estudar diversas
questões sobre masculinidades, sobretudo, mas não apenas, a partir das investigações de Jorge
Lyra e Benedito Medrado.

Nesse breve resumo, buscamos apontar as principais obras a partir dos anos 70 que
vêm influenciando uma parcela dos estudos sobre masculinidades no exterior e no Brasil.
Existe, pois uma falta, em língua portuguesa, de estudos mais amplo sobre essa história dos
estudos sobre masculinidades como um todo.

Masculinidade Criminosa e Violência Masculino

Após a exposição de uma metodologia para entender a identidade masculina e uma


revisão de alguns estudos de masculinidades e da separação teórica entre a categoria de

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gênero e sexualidade, busca-se agora, a partir das primeiras idas no Instituto penal de Campo
Grande, pensar em forma de hipótese a existência de uma possível masculinidade criminosa,
bem como crimes que mais poderiam visibilizar a violência masculina.

Para propósito de análise, os crimes aqui só serão pensados em seu caso de acordo
com Código Penal Brasileiro. De acordo com o artigo. 14, o crime deve ser consumado com
artigo. 18 apenas levaremos em consideração o crime doloso (quando o agente quis o
resultado ou assumiu o risco de produzi-lo) e que não estejam nas categorias dos artigos 24 e
25, que constituem respectivamente estado de necessidade da pessoa que cometeu o crime e
quando o crime for cometido em legítima defesa.

Essa hipótese de uma masculinidade criminosa, surge a partir de meu trabalho de


campo no Instituto Penal de Campo Grande (IPGC). Durante a pesquisa, foi possível a
realização de observações do dia-a-dia dos detentos da unidade penal em seus respectivos
solários14. A partir das observações, houve a cogitação de uma masculinidade diferente das
que o eu costumava estar próximo em meu cotidiano, seja a partir dos códigos corporais, das
vestimentas, ou de comportamentos. Como Dominique Kalifa nos diz,

É primeiro pela aparência e pela força física que se reconhece o homem. Em


um sistema de relações interpessoais dominado pela violência física, força
potência e musculo constituem atributos maiores. Um homem é, em primeiro
lugar, um “forte”, um “braçudo”, um “parrudo”, um musculoso como
testemunham os numerosos pseudônimos forjados sobre tais competências.
(KALIFA, 2013.p. 304, grifo meu).

Algo que ficava evidente nas visitas no IPCG era essa demonstração dos corpos, pois
os homens no geral sempre andam sem camisas dentro de seus respectivos solários,
praticando algum exercício físico ou apenas conversando em rodas. Parece-me relevante a
questão do corpo dos detentos para pensar uma masculinidade criminosa. Em outros espaços,
como na universidade, em cursos de uma frequência majoritariamente masculina não se
costuma ver tanta exposição da força e músculos como se existe no presídio. Essa questão
também se repete entre os jovens infratores que, como nos diz Machado “apontam a
articulação entre masculinidade e a encenação ritualizada do poder e do controle, para se
inscrever continuamente como aparição espetacular...” (2001, p.2). O poder e o controle
estariam, nesse caso, muito perto das questões do corpo e da violência por meio da coação dos
demais sujeitos.

14
Solários no contexto do IPCG são os lugares, rodeados pelas celas dos detentos, onde existe uma abertura no
teto para que se realize os banhos de sol, sendo permitido aos detentos, dependendo das circunstâncias a
permaneceram lá até as 16hrs

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Diferentemente do que podemos pensar sobre a masculinidade hegemônica ocidental


do século XXI, em que as sociedades já se encontram afastadas de certa forma dos atos
violentos e poderia ser chamada de sociedades “pacificadas”15, e a violência física não é mais
utilizada como forma direta de conseguir status. A impressão que fica da masculinidade
criminosa é a do modelo de Elias, isto é, o uso legitimo da violência como forma de solução
de conflitos, como veremos mais à frente, nas questões de violência masculina.

Outro fator que despertou minha curiosidade sobre a possível existência de uma
masculinidade especificamente criminosa está no caráter de uma moralidade, que poderíamos
chamar de uma “moralidade viril”. Apesar da ideia, preconceituosa, que existe na sociedade
de que os criminosos não possuem regras e apenas as desobedecem, não foi isso o observado
durante o trabalho de campo. Destaco aqui o caráter viril de uma moralidade dos criminosos,
exatamente porque ela parece estar atrelada ao fator essencial de ser apenas entre os “homens
de verdade”. Ela seria um código moral generificado, que vale apenas entre os próprios
homens do grupo.

Os dois princípios que parecem fundamentar essa moral é o da lealdade e o desprezo


às outras categorias de homens, bem como às mulheres. No primeiro caso, temos a questão da
lealdade com “manter a palavra”. Para ser um “homem” se deve cumprir sua palavra e a
questão de jamais “entregar” ou “denunciar” outro companheiro homem do grupo. Enquanto a
questão do desprezo funciona como uma espécie de parceria entre os homens que desqualifica
permanentemente o feminino e os homens subalternizados (aqui podemos pensar os homens
homossexuais passivos e afeminados, assim como homens que denunciam os companheiros
do grupo), que devem sofrer supostamente a potência e a força do “homem verdadeiro”,
sendo tratados como de segunda classe.

Nesse momento, gostaria de dedicar atenção à violência praticada entre homens.


Fazemos esse movimento, pois quando buscamos os números de violência no campo das
masculinidades, encontraremos números alarmantes. Tais números dizem respeito a todas as
esferas de violência. Em um universo em que os homens representam 49,35%16 da população
brasileira (50,11% no estado do Mato Grosso do Sul), eles apresentam 94,4% da média
nacional de homicídios por arma de fogo (Mapa da Violência Homicídio por armas de fogo
no Brasil, 2016), 93% dos homicídios de adolescentes de 16 e 17 anos (Mapa da Violência

15
Refiro-me à noção de “pacificação” presente no “processo civilizador” da cultura ocidental, segundo
Norbert Elias (1990).
16
IBGE 2017, Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação.

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Adolescentes de 16 e 17 anos no Brasil, 2015), e 82,3% Óbitos no trânsito segundo sexo das
vítimas (Mapa da Violência Acidentes de Trânsito e Motocicletas no Brasil, 2013).

Em todos os estados da federação e em diversos tipos de violência (arma de fogo,


trânsito e na juventude), a predominância do gênero masculino é exacerbada, sobretudo ao
aproximar este dado do percentual da população masculina do país. O mesmo fenômeno já era
visto na questão de homicídio dos anos 90 pela pesquisadora Lia Zanotta Machado em sua
pesquisa intitulada Matar e Morrer no feminino e masculino, em que ela nos diz: “a nítida
diferenciação por sexo já nos aponta que as relações dos gêneros com a violência são
construídas diferentemente. Mata-se e morre-se mais no masculino. No feminino: morre se
um pouco menos: e mata-se muitíssimo menos (Machado,1998, pg.4 e 5, marcação pela
autora).

Junto a esses dados, e utilizando os critérios apresentados no artigo de José Remon,


intitulado Masculinidade e violência: formação da identidade masculina e compreensão da
violência praticada pelo homem, em que o autor separa as formas de violência que possuiriam
um caráter de “naturalização” com o gênero masculino, sendo elas “a vingança, prestígio,
honra e coragem” (Silva, 2014). Assim buscaremos pensar cada um dos atos de violência com
suas possíveis influências generificadas nesse momento final do artigo.

O primeiro ato a ser pensando é a questão da vingança, entendida aqui como um agir
diretamente contra uma pessoa, grupo ou entes a eles relacionados com a finalidade de
retribuir, geralmente em grau mais elevado, algo que foi percebido como sendo prejudicial a
si mesmo. Poderíamos pensar como uma forma pré-civilizatória de resolução de conflitos, se
relacionando com o gênero masculino na medida em que o ideal de “homem” não poderia
admitir, sem resposta imediata e na forma de uma lição como maneira de se impor sua
autoridade, qualquer ação que compreenda como prejuízo. Nesse sentido deixar uma ofensa,
mesmo que banal, passar seria algo visto como desmasculinizante em sua condição de
homem.

O segundo ato que pensamos aqui se dá na questão do prestígio, definido por


determinados padrões de comportamentos que se espera de um homem hegemônico. O seu
não cumprimento pode ser visto pelo agente como uma estima inferior e sua redução de status
de homem. Dessa forma, parece que o prestígio masculino se compõe como uma
personalidade autoritária e já pré-disposta à violência. Para um homem manter o prestígio se

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entende que ele deve exercer um certo regime de autoridade entre os homens considerados
subalternos e os demais sujeitos.

No terceiro ato, pensamos na questão da honra, entendida como um sentimento interno


de dignidade que se reflete em empenho constante na manutenção de sua reputação pessoal. O
homem honrado não pode permitir que maculem sua moral, agindo enfaticamente ou
violentamente contra o que quer que entende que manche sua dignidade. Agir com violência
nesse caso poderia ser visto como legítimo dentro de um sistema de moralidade fora do
código penal brasileiro institucionalizado.

Nesse quarto e último ato, que diz respeito à coragem, temos uma diferenciação, pois muito
do que se atribui a atos de coragem tendem a causar mais danos ao próprio homem, que o
pratica, do que a outros homens. Dessa maneira, esse ato seria uma atitude baseada na
expectativa generificada do que faz um “homem de verdade”, dessa forma a coragem nesse
sentido se manifesta como uma imprudência e arrogância, fazendo com que os homens, como
nos diz Silva “se exponham deliberadamente a situações de risco, renunciando a qualquer
prudência e propósito em suas ações” (2014, p.2813). Nos quatro atos observados acima se
pensa na existência de uma questão de uma masculinidade construída a partir de atos
violentos, que busca dessa forma corresponder esses determinados atos com a construção da
masculinidade dos indivíduos praticantes

Conclusões finais

Ao longo artigo, procuramos ressaltar a ideia de uma identidade não pensada e da


“identidade” politizada a partir da separação entre cultura com aspas e cultura sem aspas
proposta por Manuela Carneiro da Cunha, assim como vimos o momento em que Gayle
Rubin busca quebrar a sua ideia anterior de analisar sexo/gênero como um conjunto sistêmico,
procurando fazer uma análise de cada uma dessas categorias separadamente. Observamos o
trabalho de Carol Vance em pensar o campo do atual construcionismo social assim como suas
críticas a tradições anteriores sobre sexualidade e gênero dentro da antropologia, foi
constatado também a chegada do gênero como um campo paradigmático no meio intelectual
brasileiro na visão de Lia Zanotta. Se pensou no surgimento do campo de estudos das
masculinidades nos estados unidos no mesmo período em que se formava as discussões do
feminismo de segunda com a terceira onda, e por fim se pensou na possibilidade da existência
de categorias ligadas ao estudo de gênero das masculinidades junto com o campo de prisão e
violência. Nesse sentido, o artigo persegue a ideia da constituição de uma “violência

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masculina” enquanto parte da identidade, que os interlocutores buscam visibilizar, a partir de


uma narrativa que tem como parte central uma “masculinidade criminosa”, capaz de
tornarem-se inteligíveis como homens.

Procurou-se, neste artigo, apresentar uma curta discussão metodológica sobre a


questão da identidade masculina, uma breve revisão teórica da área do gênero e sexualidade
dentro do contexto mais amplo da antropologia e por fim, em forma de hipótese, pensar duas
categorias, sendo elas masculinidade criminosa e violência masculina dentro do Instituto
Penal de Campo Grande. Muitas das questões que se colocam dentro desse texto se encontram
num conjunto de ideias maiores que planejamos futuramente estarem sendo discutidas na
dissertação do pesquisador intitulada, atualmente, “Os discursos dos detentos sobre a relação
entre masculinidades e violência no Instituto Penal de Campo Grande”, nela toda discussão
presente no artigo será expandida após a utilização das realidades observadas e percebidas
dentro do campo proposto.

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Gaslighting e mansplaining: As formas da violência psicológica

Mirian Maria Kosak1


Deivdy Borges Pereira2
Adriele Andreia Inácio3

Resumo:A violência contra mulher em nossa sociedade ocorre de diversas maneiras, destaca-
se a violência doméstica por gerar o maio número de vítimas. A violência doméstica é aquela
que acontece dentro do âmbito da família, entre quaisquer membros, sendo possíveis
agressores os maridos, companheiros, namorados, ou pessoas com as quais a mulher teve
alguma relação afetiva íntima como ex-maridos e ex-namorados. Os tipos de violência que
podem acontecer nesse âmbito são as violências físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais e
morais. A violência psicológica consiste em um tipo de violência silencioso e de difícil
detecção, pois suas marcas não são aparentes. Dentre as formas de violência psicológica estão
o gaslighting e mansplaining, pouco discutidos, porém bastante comuns nas relações afetivas.
Desta forma, o presente artigo busca explanar e discutir o gaslighting e o mansplaining,
ressaltando a prejudicialidade destas práticas contra as mulheres. Consiste em uma pesquisa
bibliográfica empreendida nas bases de dados online SciELO, PePSIC, Lilacs, Teses USP e
Google Acadêmico. Os resultados apontaram que o gaslighting consiste em uma forma de
violência na qual o agressor tenta fazer, através da distorção de fatos e omissão de situações,
com que a vítima duvide de sua memória e sanidade, passando a duvidar de seu senso de
realidade e percepções. O mansplaining refere-se a uma fala didática direcionada à mulher,
como se ela não tivesse a capacidade de compreender ou executar determinada tarefa,
justamente pelo fato de ser mulher. As duas formas de violência, assim como todo tipo de
violência psicológica diminuem a autoestima da mulher, fazem com que ela perca a confiança
em si mesma, trazem grandes prejuízos à saúde mental das mesmas bem como prejudicam sua
vida social e laboral. Foi constato também que existe pouca produção científica sobre o tema.

Palavras-chaves: Gaslighting; mansplaining; violência contra mulher.

1
Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras Português/ Espanhol da UEPG, Psicóloga especialista em
Gerontologia e Saúde do idoso e MBA em Liderança e Coaching para Gestão de Pessoas,
mirian_patd@hotmail.com.
2
Assistente Social do Patronato Municipal de Pitanga, academicoucp@hotmail.com
3
Assistente Social, doutoranda em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC -
adrieleinacio@yahoo.com.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p251 251


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Introdução

A violência contra as mulheres assume vários aspectos. Quando se debate a violência


de gênero, não se está falando somente da violência física, que é visível aos olhos da
sociedade, mas fala-se também da violência silenciosa, aquela que tem um caráter quase de
normalidade, que só é percebida como violência quando os estragos já foram feitos: a
violência psicológica. É esse tipo de violência que aos poucos vai minando a autoestima da
mulher, sua autoconfiança, sua liberdade, paz e vontade de viver.
Neste sentido, a violência psicológica desdobra-se em várias formas de manifestação,
desde as mais discutidas como agressões verbais, humilhações, exercício do controle sobre o
comportamento e as vontades da mulher até as menos conhecidas, mas não menos destrutivas,
como é o caso do gaslighting e o mansplaining, O gaslighting é um termo utilizado para
referir-se à violência emocional através de manipulação psicológica, que leva a mulher e as
pessoas ao seu redor acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz (STOCKER;
DALMASO, 2016).
O mansplaining se refere a uma fala do homem, explicando determinadas tarefas à
mulher como se ela fosse incapaz de compreender ou executar a tarefa pelo fato de ser mulher
(STOCKER; DALMASO, 2016). Este trabalho objetiva explanar e discutir o gaslighting e o
mansplaining, ressaltando a prejudicialidade destas práticas contra as mulheres. A
metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica.

Metodologia

Este trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica, segundo Lima e Mioto (2007),
este é um procedimento metodológico muito importante na produção do conhecimento
científico, pois pode gerar hipóteses e interpretações com potencial de basear outras
pesquisas, principalmente com relação a temas de pouca exploração no campo científico.
Para Gil (1994) a pesquisa bibliográfica é uma possibilidade de acessar amplamente
as informações, também permite reunir e utilizar dados que estão dispersos em diversas
publicações, possibilitando, desta maneira, a construção ou definição do quadro conceitual
que envolve todo o objeto de estudo.
Os dados que são consultados por meio da pesquisa bibliográfica consistem em todas
as produções publicadas que possuem relação com o tema em estudo. A partir dessas

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produções, pode-se reunir conhecimentos sobre o tema em questão (RAUPP; BEUREN,


2003).
Foram realizadas buscas com os termos “mansplaining”, “gaslighting” e “violência
psicológica” nas bases de dados online como SciELO, PePSIC, Lilacs, Teses USP e Google
Acadêmico. Foi realizada a leitura e seleção do material encontrado a fim de atingir os
objetivos propostos. No decorrer da pesquisa de materiais bibliográficos, foi possível
constatar a escassez de trabalhos científicos que abordam o tema em estudo.

Resultados e discussão

Violência contra mulher

A violência consiste em um fenômeno complexo, e pode ser compreendido a partir


de fatores sociais, históricos, culturais e subjetivos, entretanto não pode ser limitado a nenhum
deles (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015). A Organização Mundial da Saúde (2002) define
violência como o uso intencional da força ou poder de uma pessoa como forma de ameaça ou
de forma efetiva contra si mesmo, contra outra pessoa, grupo ou comunidade, ocasionando ou
tendo possibilidade de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações desenvolvimentais ou
privações.
A violência contra mulher é entendida como qualquer sofrimento ou agressão
direcionada às mulheres pelo fato de serem mulheres (SACRAMENTO; REZENDE, 2006).
A violência não se dá apenas através do uso da força física para causar danos, mas também a
ideia de submissão que está impregnada culturalmente nas relações de gênero, nas quais o
homem age como dominador em relação à mulher, que é vista como submissa e inferior
(SILVA et al., 2015).
O termo “violência contra a mulher” foi alcunhado pelo movimento social feminista
há mais de vinte anos. Esta expressão refere-se a diversas situações, atos e comportamentos
que prejudicam a mulher e seu bem-estar:

Violência física, assassinatos, violência sexual e psicológica cometida por parceiros


(íntimos ou não), estupro, abuso sexual de meninas, assédio sexual e moral (no
trabalho ou não), abusos emocionais, espancamentos, compelir a pânico, aterrorizar,
prostituição forçada, coerção à pornografia, o tráfico de mulheres, o turismo sexual,
a violência étnica e racial, a violência cometida pelo Estado, por ação ou omissão, a
mutilação genital, a violência e os assassinatos ligados ao dote, violação conjugal,
violência tolerada perpetrada pelo Estado, etc. A violência contra a mulher violência
inclui, ainda, por referência ao âmbito da vida familiar, além das agressões e abusos

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já discriminados, impedimentos ao trabalho ou estudo, recusa de apoio financeiro


para a lida doméstica, controle dos bens do casal e/ou dos bens da mulher
exclusivamente pelos homens da casa, ameaças de expulsão da casa e perda de bens,
como forma de “educar” ou punir por comportamentos que a mulher tenha adotado
(SACRAMENTO; REZENDE, 2006, p.96).

Como supracitado, dentre as inúmeras formas de violência contra as mulheres,


atualmente destaca-se a violência doméstica, que concentra o maior número de vítimas. É
considerada violência doméstica, o tipo de violência que ocorre dentro do âmbito familiar ou
doméstico, entre quaisquer membros que compõe a família. São várias as formas de violência
que podem ocorrer neste âmbito, e entre os agressores possíveis estão maridos, amásios,
amantes, namorados ou ex-namorados e ex-cônjuges (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Ressalta-se que, o ambiente doméstico e familiar consiste em um dos principais
lugares em que ocorre a violência contra as mulheres, 60% dos casos de violência ocorrem
neste âmbito. Na maioria das vezes o agressor é alguém com quem a vítima mantém ou
manteve uma relação de proximidade íntima. Os números apontam que 46% dos casos de
violência são provenientes de agressores de relações atuais e 23% de relações passadas
(ARAÚJO, 2008).
A violência doméstica contra as mulheres consiste em um problema que vêm se
destacando em discussões e preocupações da sociedade brasileira. Apesar do fenômeno não
ser um problema contemporâneo, é notável que a visibilidade política e social deste, somente
deu-se recentemente, apenas nos últimos 50 anos têm sido destacado a gravidade e seriedade
da violência sofrida pelas mulheres dentro de suas relações afetivas (GUIMARÃES;
PEDROZA, 2015).
A fim de contribuir para a eliminação da violência contra as mulheres foi criada a Lei
Maria da Penha - Lei 11.340, promulgada em 2006 que cria mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra as mulheres, a Lei dispõe que:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,


cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes
à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver
sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual e social (BRASIL, 2006, ART. 2º).

A Lei 11.340/06, dispõe sobre as formas de violência que podem ocorrer no âmbito
doméstico, entre elas estão a violência física, moral, psicológica, sexual, patrimonial. A
violência física consiste em qualquer ato que ofenda a integridade física da mulher ou sua
saúde corporal (BRASIL, 2006), como por exemplo, a utilização da força física ou armas e
instrumentos que possam ocasionar cortes, hematomas, fraturas.

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A violência sexual é entendida como qualquer ação na qual uma pessoa em situação
de poder obriga a outra a presenciar, manter ou participar de relação sexual contra sua
vontade por meio de coação, intimidação, ameaça ou uso de força física. Também consiste em
uma violência de ordem sexual limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais ou
reprodutivos da mulher (BRASIL, 2006).
A violência patrimonial consiste em condutas que configure retenção, subtração ou
destruição de bens, instrumentos de trabalho, documentos, entre outros pertences da mulher,
também inclui o controle dos recursos econômicos da mesma, inclusive os destinados a
satisfazer suas necessidades. De acordo com a Lei Maria da Penha a violência moral consiste
em qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, 2006).
Segunda a Lei Maria da Penha, é considerada violência psicológica, qualquer
conduta que seja emocionalmente danosa, que diminua a autoestima ou que prejudique a
mulher de se desenvolver de forma plena. Também consiste em violência psicológica o
controle das ações das mulheres, seus comportamentos, crenças e decisões através de
ameaças, constrangimento, humilhações, dentre outras condutas nocivas. A limitação do
direito de ir e vir também é uma forma de violência bem como qualquer outro meio que traga
prejuízos à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006).
Dados apontam que a violência física é a mais prevalente, ou a mais denunciada,
dentro do ambiente doméstico, consistindo no total de 58% das denuncias realizadas por
mulheres, sendo que em 32% dos casos há lesão corporal. Seguidamente, aparece a violência
psicológica, 36% das denúncias e a sexual 6% (ARAÚJO, 2008).

Violência Psicológica

Como salientam Silva, Coelho e Caponi (2007, p.98) “a principal diferença entre
violência doméstica física e psicológica é que a primeira envolve atos de agressão corporal à
vítima, enquanto a segunda forma de agressão decorre de palavras, gestos, olhares a ela
dirigidos, sem necessariamente ocorrer o contato físico”.
Para Sá (2011) a violência psicológica consiste em qualquer conduta moral ou verbal
que intimide a vítima, a desvalorize, produza sentimentos de culpa ou sofrimento. Esse é o
tipo de violência mais difícil de identificar do ponto de vista social, pois as marcas que essas
condutas deixam não são aparentes.
Além de consistir em uma violação de direitos, a violência psicológica causa danos
muito graves às vitimas trazendo consequências para a saúde e o bem-estar biopsicossocial

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das mulheres. A violência prejudica a vida social das mesmas, as reprime e abala
psicologicamente (SILVA et al., 2015). Os danos causados pela violência psicológica não
concentram-se só na vítima, mas estendem-se para todos os que presenciam ou convivem com
a situação de violência (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Dentre as consequências mais graves da violência psicológica, estão os problemas de
saúde originados pelo intenso sofrimento psicológico, como dores crônicas, síndrome do
pânico, depressão, tentativa de suicídio e distúrbios alimentares. Desta forma, é
imprescindível que a violência seja enfrentada como um problema de saúde pública (SILVA;
COELHO; CAPONI, 2007).
Muitas mulheres que sofreram algum tipo de violência relatam transtornos e
consequências psicológicas, bem como redução da qualidade de vida e menor satisfação em
relação à vida, o corpo, vida sexual e relacionamentos interpessoais. Também é comum a
atribuição à violência sofrida a ocorrência de cefaléia, problemas na coluna cervical, náuseas,
tonturas, picos hipertensivos (SILVA et al., 2015).
Em um estudo desenvolvido por Marinheiro (2003) foi encontrada associação entre
ocorrência de violência psicológica e sentimentos de tristeza e depressão. Segundo o estudo,
66% das mulheres que se encontravam tristes ou deprimidas sofreram algum tipo de violência
psicológica durante a vida, enquanto que um percentual de 28,7% das mulheres que não
relataram sentimentos de tristeza e depressão sofreu algum tipo de violência na vida. Foi
encontrada relação também entre sentimentos de morte e violência psicológica. Um total de
75,8% das mulheres que relataram preferir estar mortas ou distantes do local onde vivem
sofreram violência psicológica, e 30,8% das que não relataram estes sentimentos sofreram
algum tipo de violência psicológica na vida.
A violência causa muitos danos às vitimas, e esses danos podem ser mais destrutivos
quando a violência é recorrente e não identificada. Como afirmam Silva, Coelho e Caponi
(2007) as formas de violência psicológica que ocorrem no âmbito doméstico nem sempre são
de fácil identificação pela vítima. A violência pode ocorrer de forma diluída, e não ser
reconhecida por se associar a fenômenos emocionais com frequência agravados por fatores
como álcool, perda de emprego, problemas familiares, luto e demais situações de crise.
É importante atentar-se para o fato de que a violência doméstica psicológica é
negligenciada em nossa sociedade, pois as denúncias que são feitas através dos meios de
comunicação, da mídia, dão destaque a violência doméstica somente quando a mesma se
manifesta de forma aguda, em outras palavras, quando a vítima sobre danos físicos graves ou

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quando vai a óbito. A mídia também apresenta o mito de que a violência urbana é superior do
que a violência doméstica em quantidade e gravidade (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
A violência doméstica na maioria dos casos inicia-se de forma silenciosa, tanto que
às vezes não é nem percebida. Os primeiros sinais de violência do agressor são mais sutis, e
mesmo que isso não ocorra em todos os casos, muitas vezes progride gerando violência aguda
grave. O autor de violência no início não lança mão de agressões físicas, mas começa com o
cerceamento da liberdade da vítima, avançando para o constrangimento e humilhação. As
estratégias dos autores de violência podem ser inúmeras, como por exemplo, começando com
chantagens e insinuações em relação à troca de roupa, de maquiagem, proibições de
frequentar lugares, fazer as mulheres desistir de ir a programas com amigas ou parentes,
desistir de traçar metas e buscar seus objetivos (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Com o passar do tempo, as insinuações e chantagens vão progredindo e tornando-se
mais evidentes, mesmo que sutis. A violência psicológica então passa a manifestar-se
verbalmente, através de humilhações privadas ou públicas, exposição da mulher a situações
que causem embaraço como ridicularizar o corpo da vítima, apelidar ou chamar por
características que causam sofrimento. Essas ações podem fazer com que a mulher comece a
se justificar e se desculpar perante o agressor como perante outras pessoas pelo
comportamento do agressor. Este movimento de violência é muitas vezes imperceptível tanto
para agressor quanto para a vítima, muitas vezes a vítima acaba por tentar justificar os
comportamentos do agressor, utilizando-se de desculpas como estresse, uso de substâncias ou
culpabilizando-se pelo comportamento dele. E assim a violência aos poucos instala-se e
avança mais (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007).
Em uma pesquisa realizada por Carneiro e Freire (2015) com mulheres que
frequentam locais que prestam assistência às mulheres que sofrem violência doméstica, foi
constatado que 100% das participantes haviam sofrido algum tipo de insulto ou se sentiram
mal consigo mesmas por causa de maridos ou companheiros. Em relação à frequência dessas
ocorrências, cerca de 23% das participantes afirmaram que isso acontece muitas vezes. O
percentual de 92% das participantes afirmaram que o marido/companheiro depreciou ou a
humilhou na frente de outras pessoas, e 92% das mulheres disseram que o
marido/companheiro já teve comportamentos para assustá-las ou intimidá-las, como por
exemplo, forma de olhar e gritos. E ainda, 100% das participantes afirmaram que os
maridos/companheiros já ameaçaram machucar elas ou pessoas de quem elas gostam. Na
pesquisa também foi avaliada a autoestima das participantes, e todas elas apresentaram

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autoestima insatisfatória. Este estudo apontou a relação existente entre violência psicológica e
baixa autoestima.
As mulheres vítimas de violência desenvolvem diferentes estratégias para lidar com a
violência vivenciada. Algumas delas reagem à agressão sofrida denunciando os agressores e
buscando ajuda para sair de relacionamento abusivos. Entretanto, outras acabam por
permanecer na relação e viver anos sob situação de violência na expectativa de que um dia as
agressões cessem. O grande problema é que com o passar do tempo, a violência acaba por ser
banalizada e a vítima passa a naturalizar a situação, pois a continuada exposição à situação de
violência anula a autoestima e a capacidade de pensar e reagir, e desta forma, a esperança de
mudança de comportamento do companheiro/marido/namorado acaba dando lugar ao
conformismo (ARAÚJO, 2008).
A natureza da relação entre vítima e agressor pode implicar na tomada de decisões
em relação ao último. A intimidade existente entre vítima e agressor interfere nesse processo e
muitas vezes resulta no silêncio da mulher e dos familiares ou na retirada de queixas policiais
quando essas acontecem. As grandes conseqüências da violência contra as mulheres, além de
impactar na saúde reprodutiva e sexual das mulheres, atinge o bem estar dos filhos e a
economia local/nacional (MARINHEIRO, 2003).
A ideologia de gênero é uma das principais responsáveis pela permanência das
mulheres em relações abusivas. "Muitas delas internalizam a dominação masculina como algo
natural e não conseguem romper com a situação de violência e opressão em que vivem"
(ARAÚJO, 2008, p.5).

Formas de violência psicológica

A violência psicológica é ampla e o gaslighting e mansplaining são outras duas


formas de sua manifestação. O termo gaslighting advém do filme Gaslight (1944), no enredo
do qual o homem deliberadamente realiza ações para enlouquecer a esposa e fazer com que
ela pareça “louca” aos olhos de outras pessoas também, para assim o mesmo obter ganhos
financeiros (BERNARDES, 2016).
Uma estratégia que o homem utiliza no filme é diminuir a quantidade do gás que
alimenta as luzes da casa, ocasionando o enfraquecimento das mesmas. Quando a mulher
menciona as luzes enfraquecidas o homem afirma que não tem nada de errado com a
iluminação, (KUSTER, 2017), por isso o filme recebe este nome, traduzido como “À Meia
Luz” (DEVULSKY, 2016).

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No filme, o agressor também utiliza-se de outros ardis como fazer com que ela não
encontre objetos e pense ouvir passos no sótão vazio. Diante de todas essas percepções que o
agressor faz a vítima ter, ela começa a acreditar que está “perdendo a sanidade” e que tem
alucinações, o marido por sua vez encoraja o isolamento da mulher alegando que seu “estado
alterado” não a permite conviver com outras pessoas (KRUGER, 2016).
Segundo o Conselho Federal de Psicologia o “gaslighting”, consiste em uma forma
de abuso mental em que o agressor distorce os fatos e omite situações para deixar a vítima em
dúvida em relação a sua memória e sanidade (CFP, 2016). Nesta forma de violência a mulher
se vê como incapaz, passa a duvidar do seu senso de realidade e de suas percepções
(STOCKER; DALMASO, 2016).
Kuster (2017, p.96) define gaslighting como “uma manipulação psicológica que faz a
vítima acreditar que está com a mente embaralhada, ou que determinado evento não ocorreu,
ou aconteceu de forma diferente da que ela se recorda”.
O gaslighting é uma prática comum em relacionamentos abusivos, nos quais ocorrem
comportamentos rotineiros que fazem com que a vítima duvide de sua própria sanidade
mental e percepção dos fatos. Frases comuns nesta prática são: “você está louca”, utilizada
muitas vezes para justificar um comportamento errado do agressor, “você está exagerando”,
“você é muito sensível”, “mas eu só estava brincando”, “você está delirando” (MENDES,
2016).
A recorrência desses comportamentos e frases, muitas vezes convence a mulher de
que é mesmo irracional louca ou extremamente sensível. Assim, vão sendo criados bloqueios
e inseguranças que fazem com que muitas mulheres tenham medo de participar da vida social
da mesma forma que os homens participam e que acabem por aceitar as diversas formas de
desvalorização e rebaixamentos, sejam estes de ordem intelectual, emocional ou profissional,
por exemplo. Esse tipo de violência ocorre em diversos meios como os educacionais,
corporativos e familiares, neste último são recorrentes os casos de mulheres que não
conseguem livrar-se de relacionamentos abusivos. Esta prática serve ao propósito de as
manter em situação de subserviência e sob controle, desmotivando a realização de denúncias e
reforçando a lógica de culpabilização de vítimas (KRUGER, 2016).
Dessa forma, as mulheres que contestam essa forma de manipulação psicológica e
tentam contrapô-la são transformadas em figuras desnecessariamente agressivas,
ameaçadoras, descontroladas e histéricas (KRUGER, 2016).
O termo “mansplaining” é derivado de uma junção de man (homem) e explaining
(explicar). Segundo Stocker e Dalmaso (2016), o mansplaining refere-se a uma fala didática

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direcionada à mulher, como se ela não tivesse a capacidade de compreender ou executar


determinada tarefa, justamente pelo fato de ser mulher.
Segundo o site Mulher 360 (2016), no mansplaining o homem acredita que tem mais
conhecimento de determinado tema do que uma mulher, muitas vezes o mansplaining está
ligado ao manterrupting, que caracteriza-se por interrupções que o homem faz na fala da
mulher para mostrar que sabe mais do que ela.
A intenção por detrás do mansplaining é desmerecer o conhecimento que uma
mulher tem, desqualificando seus argumentos. Falas dirigidas às mulheres que estão
relacionadas com “entender/aprender” e explicar/desenhar” são comuns neste tipo de
violência. O mansplaining tira a confiança, a autoridade e o respeito da mulher sobre o que
ela está falando e a trata como inferior e como se tivesse menos capacidade intelectual do que
o homem (STOCKER; DALMASO, 2016). Esta prática também serve ao machismo para que
o agressor explique à mulher o porquê ela está errada quando na realidade ela está certa
(MENDES, 2016). Para (KRUGER, 2016, p.184) “como uma prática sexista sutil e
extremamente naturalizada, o fenômeno contribui para a recorrente desqualificação intelectual
e infantilização de mulheres”.
Diante do exposto, é evidente a necessidade de ações para combater a violência
contra as mulheres. Acosta et al., (2015) colocam a importância de realizar ações preventivas
e educativas que tenham como foco a valorização da mulher e da família, assim como o
incentivo ao diálogo e fortalecimento dos vínculos familiares. Os autores enfatizam também
que, o problema da perpetuação da violência continuará sem solução se as intervenções
tiverem como alvo somente as mulheres, pois é necessário incluir os homens nas ações de
combate e prevenção à violência contra as mulheres.

Considerações finais.

A violência psicológica ocorre muitas vezes de forma silenciosa e pode passar


invisivelmente aos olhos da sociedade. Entretanto, a violência psicológica além de consistir
em uma violação de direitos é também um problema de saúde pública, pois suas
consequências são graves danos à saúde física e psíquica das vítimas.
Muitas vezes a violência não é percebida nem mesmo por quem a sofre como nos
casos de gaslighting e mansplaining. As duas formas de violência diminuem a autoestima da
mulher, fazem com que ela possa perder a confiança em si mesma, acreditando muitas vezes

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que é inferior ou que não é capaz de sobreviver sozinha. Essas formas de manipulação trazem
grandes prejuízos à saúde mental das mesmas bem como prejudicam sua vida social e laboral.
Diante disso, faz-se importante a realização de ações que desconstruam essa
ideologia de gênero ainda tão arraigada na sociedade. É necessária a luta não só pelos direitos
da mulher, mas também ações que visem o empoderamento e autonomia das mulheres. São
importantes trabalhos que envolvam a sociedade e contribuam para a identificação e
eliminação de violências que muitas vezes passam despercebidas, mas que trazem inúmeras
consequências para todas as mulheres que as vivenciam.

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DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p251 262


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ISSN 2177-8248

A mulher na mídia: a relação entre violência simbólica de gênero e o mito da beleza


no contexto da responsabilidade simbólica

Beatriz Molari1

Resumo: o objetivo deste trabalho é apontar, por meio de uma discussão bibliográfica, os
aspectos da relação entre poder simbólico e o mito da beleza na publicidade que faz uso de
representações da mulher. A teoria sobre o poder simbólico de Pierre Boudieu possibilita a
compreensão da sociedade como um sistema estruturado. Dentro deste sistema, as instituições
assumem as posições de agentes sociais e, como tais, interferem na estrutura do espaço
simbólico. Fazendo uso do poder concedido pela sua posição, as instituições modificam o
espaço simbólico a seu favor. Contudo, compreende-se que tais ações provocam mudanças
graves na sociedade e, devido a isto, torna-se necessário cobrar a responsabilidade do que
envolve o público. Com base na fundamentação proposta por Pierre Bourdieu, notou-se que a
representação da mulher na mídia é condicionada pelo olhar da dominação masculina. Neste
contexto, o mito da beleza, conceito elaborado pela autora Naomi Wolf, é aplicado com o
objetivo de reduzir a mulher a sua aparência, promovendo uma violência física, psicológica e
social. As representações da mulher na mídia do mito da beleza seguem estereótipos e
conceitos que desrespeitam os direitos da mulher e regulam a sua atuação como agente de
transformação do espaço simbólico, o que, consequentemente, fortalece a dominação
masculina e as coerções sociais impostas à mulher. Tais resultados fazem do mito da beleza
uma violência simbólica de gênero.
Palavras-chaves: violência simbólica de gênero; mito da beleza; mídia.

1
Universidade Estadual de Londrina. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Imagem,
e bacharela em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas, ambos pela Universidade Estadual
de Londrina. E-mail: beatriz.molari@gmail.com.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p263 263


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Introdução

A teoria desenvolvida em O Poder Simbólico por Pierre Bourdieu é facilmente


observada na configuração da sociedade atual. A sociedade é um espaço simbólico. Os
agentes são os indivíduos agrupados de acordo com uma definição social estipulada. Se junta
a estes protagonistas algumas instituições que interferem na ordem do espaço simbólico, estas
sempre apoiando àquele que lhes trouxerem mais benefícios. Dentro do cenário descrito, este
estudo aborda a condição da mulher como agente dominado pela lógica de dominação
masculina, a qual impõe uma série de coerções sociais visando manter o controle e a
configuração do espaço que beneficia aqueles que dela se servem. Este é o caso da mídia. Em
O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres, Naomi Wolf
expõe a forma como as mulheres são controladas por esta ideologia, tal qual é tão prejudicial
que pode ser caracterizada como uma violência simbólica de gênero, como mostra o estudo a
seguir.

Poder simbólico e a dominação masculina

Dentre os estudos do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), destaca-se a sua teoria


sobre o poder simbólico. Compreendido como um poder invisível e que somente é exercido
mediante a cumplicidade de ambos os lados, ou seja, tanto daqueles que a ele estão sujeitos
quanto os que o dele fazem uso (BOURDIEU, 2007a, p. 7-8), o poder simbólico é aplicado
em um sistema simbólico estruturado e condutor das relações interpessoais entre os
indivíduos que convivem dentro deste espaço. Nas palavras do autor, o poder simbólico

[...] é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem


gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social)
supõe aquilo a que Durkeheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna
possível a concordância entre as inteligências (BOURDIEU, 2007a, p. 9; grifos do
autor).

Como o autor coloca, o poder simbólico contempla a realidade social e é por meio
dele que os agentes mantêm as relações dentro de um espaço. Para Bourdieu, o poder
simbólico tem a capacidade “[...] de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste
modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” (BOURDIEU, 2007a, p.

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14). A aplicação do poder simbólico é feita pela mobilização, ou seja, tem êxito quando um
agente institui um movimento entre as estruturas do espaço simbólico. O autor ressalta que a
força do poder simbólico reside na relação entre os agentes. Somente será aplicado se for
reconhecido pelos envolvidos, o que ocorre quando o seu caráter arbitrário é ignorado
(BOURDIEU, 2007a, p. 14). Para Martino, “esconder o arbitrário da decisão na forma da
ilusão do natural: é a definição de poder simbólico” (MARTINO, 2009, p. 151). Esta
característica determina que o poder simbólico atue como uma estratégia aplicada nas
relações entre os agentes, estas sendo baseadas em disputas simbólicas. Bourdieu salienta que
o poder simbólico não surge nas estruturas dos sistemas simbólicos, mas está presente nas
relações entre aqueles que desejam exercer algum controle sobre os demais. Para o autor, a
autoridade do poder simbólico está na crença das ordens do agente que o exerce, sendo muitas
vezes sobre o pretexto de manter a ordem do espaço (BOURDIEU, 2007a, p. 14-15).
Para compreender a aplicação do poder simbólico é necessário entender o princípio
do espaço simbólico. Para Martino, “o espaço simbólico é o lugar construído a partir das
relações sociais. No entanto, esse espaço é desigual: pessoas ocupam posições diferentes, e
esses desníveis levam à noção de campo” (MARTINO, 2009, p. 147; grifo do autor). O
campo, por sua vez, “é um espaço estruturado de relações onde agentes em disputa buscam a
hegemonia simbólica das práticas, ações e representações. Essa definição é uma expansão da
ideia de espaço social, incluindo uma perspectiva de luta simbólica” (MARTINO, 2009, p.
147). O autor explica que o espaço simbólico é dividido em níveis e possui uma hierarquia.
Há lugares fixos a serem ocupados, mas os ocupantes serão determinados pelo seu
desempenho nas disputas simbólicas. Aqueles que ocuparão os lugares de prestigio serão
aqueles que obtiverem vitórias sobre os demais. “As posições são fixas, portanto,
estruturadas, mas os ocupantes podem mudar de lugar. Estar nos primeiros lugares não
garante o domínio do campo, a não ser pela redefinição contínua das condições que geraram
essa situação” (MARTINO, 2009, p. 147-148; grifo do autor). O espaço simbólico está em
constante movimento, o que promove disputas frequentes entre os agentes que almejam
melhores posições ou manter o poder já conquistado.
Compreende-se agente como uma categoria de indivíduos que pode agir dentro de
um campo (MARTINO, 2009, p. 148). Segundo Martino,

Na estrutura de um campo é possível identificar os dominantes, atuando nas


primeiras posições, com o poder de legislar e fazer essa legislação valer, e os
dominados, nas posições inferiores. Há também agentes marginais, em disputa
apenas parcial, e os aspirantes, que ainda não ganharam o direito a competir no
campo. Essa é uma das concepções possíveis para se compreender a noção de

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“hegemonia” – a imposição simbólica, nem sempre deliberada, de uma prática


(MARTINO, 2009, p. 148-149; grifos do autor).

Os enfrentamentos entre os agentes promovem movimentações dentro do espaço


simbólico. Cada agente atuará de acordo com o seu objetivo: os dominantes desejam
conservar a sua posição; os dominados procurarão formas de alcançar as posições de
prestígio. Martino explica que os dominantes tentarão evitar qualquer mudança no espaço,
pois o mais simples movimento pode significar a sua destituição da posição. Para evitar isto,
“[...] é necessário o controle dos outros elementos do campo e a repetição contínua das
práticas anteriores na manutenção de uma situação confortável. Qualquer risco deve ser
eliminado ou assimilado” (MARTINO, 2009, p. 148). Os dominados, por sua vez, necessitam
executar movimentos que elevem o seu poder simbólico. Martino explica que os dominados
tendem a serem os agentes mais novos no campo, o que por outro lado os tornam mais
arrojados com os riscos (MARTINO, 2009, p. 149). Tais movimentações são executadas
visando um mesmo objeto coletivo, qual, segundo Bourdieu, é adquirir o poder de apropriar-
se das vantagens simbólicas da posição ocupada e, assim, tomar posse de uma identidade
reconhecida pelos demais agentes do campo (BOURDIEU, 2007c, p. 125).
A construção de uma identidade é algo a ser edificado pelos agentes. Parte desta
identidade é constituída pelo habitus. Segundo Martino,

O habitus é o conjunto de práticas, ações, gostos e representações adquiridas pelo


sujeito no decurso de sua trajetória social que, por sua vez, tendem a estruturar as
práticas posteriores. O habitus é inexorável e não pode ser desaprendido. Ele
permite o reconhecimento e interpretação prévios da realidade social e a
compreensão das situações a partir da repetição” (MARTINO, 2009, p. 150; grifos
do autor).

O habitus incorpora elementos que estruturam as ações dos agentes. É algo inerente
ao agente devido a sua característica de repetição. Para Bourdieu, o habitus é “um
conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na
tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural -, mas
sim o de um agente em ação” (BOURDIEU, 2007b, p. 61; grifos do autor). Esta característica
permite relacionar o habitus com determinadas práticas e situações, produzindo categorias de
percepção comuns (BOURDIEU, 2013, p. 96). O habitus torna-se a gênese das ações dos
agentes e o que produz as movimentações dentro do espaço simbólico. As ações
desempenhadas neste espaço visam alcançar autonomia, esta entendida como o “[...] poder de
definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus próprios

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interesses” (BOURDIEU, 2007c, p. 125). A execução do poder simbólico é uma das formas
de adquirir autonomia dentro do espaço. Ocupando uma posição elevada, o agente intervém
na definição do mundo, moldando-o com o princípio de beneficiar-se. Os dominantes
conquistam o controle da produção simbólica em um campo, utilizando os instrumentos para
exprimir o seu ponto de vista próprio sobre o social (BOURDIEU, 2007c, p. 152).
Segundo Martino, o poder simbólico é uma forma de dominação invisível e se define
nas ações desenvolvidas em um campo. Seguindo a norma que concebe a eficácia da
influência como inversamente proporcional à visibilidade do poder executado, ou seja, quanto
menos visível, mais eficaz, um valor simbólico é atribuído às ações dos agentes (MARTINO,
2009, p. 151). Essa invisibilidade é resultado da ideia de ilusio, o que, segundo Martino, se
trata da recusa de identificar e reconhecer os interesses dos agentes de um campo. Torna-se
uma negação, implícita ou explícita, da característica arbitrária das ações decorrentes do
poder simbólico (MARTINO, 2009, p. 151). O autor explica que a ilusio é uma expressão do
poder simbólico. Para Martino,

A ilusio mantém o campo em atividade e garante a aceitação tácita das regras


envolvidas. Aprender as regras do jogo é igualmente deixar de vê-las. Depois de um
tempo os agentes passam a negar sua existência. O que não pode ser organizado
conforme a razão prática operacional de um campo tende a ser desprezado como
irrelevante ou inexistente. A negativa dessas práticas costuma ser um indício da
força simbólica de sua atuação (MARTINO, 2009, p. 151; grifo do autor).

A ilusio é uma forma de passividade adotada pelos agentes mediante uma força
simbólica aplicada sobre eles. Esta prática garante a aplicabilidade do poder simbólico e
propaga a ideologia vigente. Dessa forma, pode-se conceber que o poder simbólico e as suas
aplicações, ilusio, são opressores e servem para a manutenção de uma ideologia. Bourdieu
compreende a lógica da dominação como algo exercido “[...] em nome de um princípio
simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado”
(BOURDIEU, 2012, p. 8). A dominação é exercida mediante uma propriedade distintiva,
podendo ser um idioma ou estilo de vida (modo próprio de pensar, falar ou agir)
(BOURDIEU, 2012, p. 8), como é o caso da dominação masculina. Logo no primeiro contato
entre um indivíduo e o mundo, as instituições baseiam-se nas diferenças dos órgãos
reprodutores para aplicar a primeira divisão social entre os indivíduos. A categorização
baseada nos órgãos reprodutores é conhecida por sexo biológico. Além desta divisão
biológica, outra categorização é imposta: a divisão por gênero. Divididos entre os gêneros
masculino e feminino, os indivíduos estão sujeitos às definições sociais sobre cada gênero.

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Para Beauvoir, a biologia dos corpos não conduz a vida dos indivíduos, pois “não é um corpo,
é enquanto corpos submetidos a tabus, a leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se
realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a
fisiologia que pode criar valores” (BEAUVOIR, 2016, p. 64). Perrot complementa esse
raciocínio dizendo que o gênero é oposto ao sexo biológico e designa as relações dos
indivíduos pela cultura e pela história (PERROT, 2009, p. 111). A divisão por gênero impõe
regras à vida dos indivíduos, com afirma Bourdieu ao dizer que as diferenças dos órgãos
sexuais “[...] são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios de divisão
da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos
ao homem e à mulher” (BOURDIEU, 2012, p. 24). Dessa forma, a divisão por gêneros torna-
se base para a dominação masculina.
A dominação masculina não se encontra na gênese social. Para Bourdieu, a “força
particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas
operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica
que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (BOURDIEU, 2012, p.
33; grifos do autor). Dessa forma, compreende-se que a dominação masculina busca
naturalizar uma opressão que foi construída no espaço social. Usando estratégias como a
ilusio, os agentes que se beneficiam da lógica de dominação masculina atuam com o objetivo
de mascarar as opressões e assim torná-las menos visíveis. Seja pelo aprendizado ou pela
omissão, as opressões não são combatidas e se infiltram nas relações sociais. São exemplos os
casos do machismo e a misoginia, conceitos que têm o seu significado relacionado com o ódio
ou aversão às mulheres.
Para Bourdieu, o poder simbólico pode promover uma violência simbólica. O autor
define violência simbólica como “[...] uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita
dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e
outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la” (BOURDIEU, 1997, p. 22). É nítida a
relação que o autor faz entre a dominação masculina com a violência simbólica. Nas palavras
do autor:

[...] sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o


exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultado daquilo que eu chamo
de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas,
que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou,
em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2012, p. 7-8).

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Assim como o poder simbólico, a violência simbólica não é facilmente reconhecida.


Esta violência é aplicada de forma sutil nos sistemas simbólicos e é refletida nas relações
sociais. Exercida na lógica de dominação masculina, a violência simbólica torna-se uma
violência de gênero. Baseada em construções sociais sobre os gêneros, a violência simbólica é
empregada como uma estratégia em prol da manutenção da dominação masculina, ou seja,
propaga coerções sociais a serem impostas à mulher. Em um sistema que se beneficia da
submissão feminina, diversas instituições sociais colaboram mantendo a organização deste
campo. Bourdieu afirma que as estruturas de dominação são “[...] produto de um trabalho
incessante (e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos
(entre os quais os homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e
instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado” (BOURDIEU, 2012, p. 46; grifos do autor).
Com a ascensão dos meios de comunicação, outra instituição ocupou-se juntamente desta
função: a mídia.

Mito da beleza: a expressão da violência simbólica de gênero na mídia

Inserida na lógica de dominação masculina, a beleza passou a ser vista pelo seu valor
simbólico. Para Wolf, “a ‘beleza’ é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro. Como
qualquer, sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no mundo ocidental,
consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino”
(WOLF, 1992, p. 15). Com o objetivo de manter o controle masculino sobre as mulheres, foi
desenvolvido o mito da beleza. Segundo Wolf, este mito é a ideologia que exerce controle
sobre a aparência das mulheres. Para a autora, o mito da beleza surgiu como resposta às
conquistas da segunda onda do movimento feminista, que ocorreu entre os anos 1960 e 1980
(WOLF, 1992, p. 13). Segundo a autora, o mito da beleza se fortaleceu para assumir o lugar
de coerção social daquelas mulheres que conquistaram um pouco de liberdade com a abertura
para o processo de desnaturalização dos mitos da maternidade, domesticidade, castidade e
passividade impostos à mulher (WOLF, 1992, p. 13). Para ter êxito coercitivo, o mito da
beleza não atua na aparência da mulher, mas determina o seu comportamento (WOLF, 1992,
p. 17).
A mídia está relacionada diretamente com o mito da beleza. Com o avanço dos meios
de comunicação, as práticas comunicacionais passaram a fazer uso frequente de imagens
femininas, estas principalmente relacionadas com a propagação do consumo. A mídia
favoreceu a transmissão de imagens produzidas com base em padrões estéticos contrários a

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realidade de grande parte das mulheres. São expostos exemplos do que são considerados
socialmente como bonito, e, consequentemente, aqueles que não se enquadram no padrão são
pressionados a buscar a falsa perfeição. Wolf salienta que o mito da beleza impõe um limite à
aparência da mulher. Para ela, “a ideologia da beleza ensina às mulheres que elas têm pouco
controle e poucas opções. As imagens da mulher segundo o mito da beleza são simplistas e
estereotipadas. A qualquer momento existe um número limitado de rostos ‘lindos’
reconhecíveis” (WOLF, 1992, p. 64). O resultado disto é a diminuição de percepções
femininas nas quais as mulheres poderiam se reconhecer, pois, “através de percepções tão
limitadas do universo feminino, as mulheres concluem serem suas opções igualmente
limitadas” (WOLF, 1992, p. 64). Por este fator, por ter sua eficácia acentuada quando a vítima
não reconhece a violência que lhe é imposta, e por ser construído nas estruturas simbólicas, o
mito da beleza torna-se uma violência simbólica de gênero.
A mídia utiliza o mito da beleza na medida em que este lhe serve para incitar o
consumo. A indústria do consumo soube apropriar-se da imagem feminina e empregá-la como
atrativo em anúncios ou para ilustrar promessas de cosméticos e tratamentos de beleza. Wolf
salienta esta questão dizendo que as mulheres são constantemente alvos de mensagens
produzidas na lógica do mito da beleza, e, dessa forma, tornam-se sensíveis às investidas das
instituições sociais dizendo o que elas devem fazer com a sua aparência (WOLF, 1992, p.
343-344). Através disto, a autora ressalta que “[...] as instituições estão nos passando uma
mensagem muito clara de que endossam qualquer grau de violência” (WOLF, 1992, p. 343-
344). Uma forma de propagar a violência simbólica de gênero na mídia é fazer uso de
representações equivocadas da mulher. Teixeira afirma que as representações são formuladas
com base nas características específicas de um grupo e constituem um processo social pelo
qual as diferenças entre os mesmos são constituídas ou modificadas. Segundo a autora, as
representações “[...] têm um papel ativo na produção de categorias sociais, tais como gênero,
raça/etnia, classe, sexualidade, geração (TEIXEIRA, 2009, p. 45). São elas que transformam
esses diferentes eixos em marcadores culturais construindo desigualdades” (TEIXEIRA,
2009, p. 45). Portanto, usar uma imagem que reforça alguma coerção social imposta à mulher
é contribuir para que a violência continue. Dessa forma, pode-se conceber que mídia é uma
das instituições responsáveis pela manutenção da dominação masculina. Teixeira ressalta a
responsabilidade da mídia afirmando que os discursos e argumentos transmitidos pelos meios
de comunicação contribuem para a reformulação de uma identidade feminina por parte da
sociedade (TEIXEIRA, 2009, p. 46). Quando usa imagens que não representam a realidade da
mulher, a mídia fornece material para a criação de uma identidade feminina equivocada. Esta

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prática prejudica a mulher de duas formas: 1) a sociedade adota uma concepção feminina
errada e discrimina quem não se enquadra no padrão estipulado; e 2) as mulheres perdem
referências de atuação e passam a questionar o que até então constituía a sua identidade.
Percebe-se que os danos atingem a mulher nos níveis externo (1) e interno (2), o que
demonstra o grau desta violência simbólica de gênero.
As representações na mídia aproximam-se de simulacros. De acordo com Oliveira,
Fernandes e Silva, as imagens na mídia são produzidas com o objetivo de reduzir a “condição
de reflexo de uma realidade referencial” (OLIVEIRA; FERNANDES; SILVA, 2009, p. 14).
Sem representar a realidade, as imagens midiáticas tornam-se meio de transmissão de
estereótipos. Sobre esta questão, Oliveira, Fernandes e Silva afirmam que a presença de
imagens femininas na mídia “[...] classifica ou elege determinadas configurações corpóreas e
identitárias, ela regula um modo de presença, gerando representações sociais que,
compartilhadas no coletivo, apontam para a consolidação de estereótipos” (OLIVEIRA;
FERNANDES; SILVA, 2009, p. 23). Os estereótipos referem-se a conceitos compartilhados
socialmente que são associados a um grupo, promovendo a noção de similaridade entre os
indivíduos que o compõem. Por partir de uma concepção externa, os estereótipos transmitem
a ideia de que a similaridade constatada por terceiros é elemento norteador dos
comportamentos de um grupo. Para Oliveira, Fernandes e Silva, os estereótipos são capazes
de “[...] promover a cristalização de percepções e valores, mesmo diante da evidência de
informações contrárias, o que faz com que se associe a determinado estereótipo a
característica de verdade absoluta” (OLIVEIRA; FERNANDES; SILVA, 2009, p. 23).
A partir dos pontos abordados, questionam-se as representações da mulher que a
mídia usa. Uma pesquisa realizada no ano de 2013 analisou um universo de 1.501 respostas
de entrevistados de 100 municípios de todas as regiões do Brasil. Os resultados mostraram
que 62% acham que a propagandas de televisão não mostram a mulher que, além de ser
esposa e mãe, trabalha e estuda (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Do universo,
65% concordam que o padrão de beleza nas propagandas na televisão é muito distante da
realidade da mulher brasileira, e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas quando
não têm o padrão de beleza das propagandas de televisão (INSTITUTO PATRÍCIA
GALVÃO, 2013). Questionados sobre a função da representação da mulher na mídia, 84%
dos entrevistados concordam que o corpo da mulher é usado para promover a venda de
produtos nas propagandas de televisão (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Diante
disto, 70% dos entrevistados defendem uma punição aos responsáveis por propagandas que
mostram a mulher de modo ofensivo (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013). Os dados

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da pesquisa mostram que a representação da mulher na mídia não reflete a realidade; pelo
contrário, produz uma violência simbólica de gênero. A redução da mulher a sua aparência é
uma clara aplicação do mito da beleza. Fortalecendo a ideia de que as mulheres devem seguir
um padrão de aparência, o mito da beleza regula a atuação da mulher, retirando da mesma as
disposições para questionar a lógica de dominação masculina.
Outra pesquisa, esta realizada no ano de 2016, abordou a forma como o gênero e a
raça são representados na mídia. O universo pesquisado foi de 8.051 peças publicitárias,
sendo produções de 207 marcas veiculadas na televisão e 889 publicações de 127 marcas
distintas propagadas na rede social Facebook. Do total, 26% das peças analisadas na televisão
mostravam a mulher como protagonista, destas, 84% eram brancas e 62% possuíam cabelos
lisos. No Facebook, a mulher era protagonista em 22% das publicações, sendo que 82% eram
brancas e 69% tinham cabelos lisos (HEADS PROPAGANDA, 2016). Outro dado importante
mostra que são investidos anualmente aproximadamente 21 milhões de reais em mídias que
reforçam estereótipos de gêneros na televisão; enquanto, neste mesmo período, o investimento
aproximado em mídias que empoderam2 ao quebrar estereótipos é de aproximadamente 12
milhões de reais (HEADS PROPAGANDA, 2016).
Os dados das duas pesquisas mostram que a mídia ainda precisa mudar a forma que
representa a mulher. Prova disto são as reclamações enviadas ao Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Dentre tantas denúncias, um caso julgado pelo
órgão em 2017 foi comentado por todo o país. Motivada por centenas de denúncias, foi aberta
uma apuração sobre a publicidade feita por uma fabricante de móveis. As denúncias
afirmavam que a empresa utilizava a imagem de uma mulher nua ou seminua em poses
sensuais como atrativo para os anúncios dos produtos. O CONAR reconheceu a denúncia e o
júri considerou que “há clara objetificação do corpo da mulher e exposição de nudez de
maneira totalmente descontextualizada” (CONAR, 2017). A decisão foi pela sustação das
peças publicitárias. Este caso demonstra na prática como a violência simbólica de gênero
promovida pela mídia é agressiva para com as mulheres. Neste caso a violência era explícita,
uma clara objetificação da mulher. Contudo, são propagadas pela mídia formas de violência
de gênero em níveis distintos, sendo muitas vezes imperceptíveis para outros, mas que são
agressivos para o grupo representado. Diante deste cenário, torna-se imprescindível cobrar
que os produtores de materiais veiculados na mídia atuem com responsabilidade simbólica.
Isto se torna necessário devida a maior atenção do público para com este tipo de

2
O termo empoderar compreende a ação de promover debates visando alcançar a conscientização coletiva sobre
os direitos sociais e civis de um grupo.

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comunicação, o qual agora compreende que a mídia não serve apenas ao entretenimento, mas
que almeja manter o controle sobre a sociedade.

Considerações finais

O avanço dos meios de comunicação possibilitou a entrada de um novo agente no


espaço simbólico conhecido por sociedade: a mídia. Ciente da organização simbólica em
vigor, a mídia exerce o seu trabalho visando objetivos próprios e colaborando com aqueles
que possam lhe trazer benefícios. É o caso da lógica de dominação masculina. Estruturando o
espaço simbólico de acordo com seus interesses, os agentes dominantes visam manter o
controle sobre os dominados e assim prolongar a sua posição. Para que a dominação tenha
êxito, é necessário calar a voz dos dominados e diminuir o seu poder de transformação. Na
lógica de dominação masculina os dominados são as mulheres, estas são vítimas de coerções
sociais impostas com o objetivo de anular os seus direitos. Uma destas coerções é o mito da
beleza. O uso de representações da mulher baseadas em mitos coercitivos contribui para a
manutenção da dominação masculina. Visando manter o controle sobre a imagem da mulher e
reduzir as suas capacidades a sua aparência, a ideologia da beleza atua como uma violência
simbólica de gênero. Diante desta constatação, torna-se imprescindível cobrar uma maior
responsabilidade simbólica dos produtores de conteúdo veiculados ao público pela mídia.
Trata-se de compreender o poder exercido por esta instituição e responsabilizá-la pelas
informações e, igualmente, as consequências que as mesmas provocam no espaço simbólico.

Referências

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Feminicídio: o gênero de quem mata e de quem morre

Gabriela Catarina Canal1


Naiara Sandi de Almeida Alcantara2
Isadora Vier Machado 3

Resumo
A presente pesquisa, fundamentada pela perspectiva de teóricas feministas e por obras de
Direito Penal, Criminologia, Antropologia e Sociologia Jurídica, analisa a estreita relação
entre violência doméstica e os feminicídios perpetrados na esfera conjugal e/ou de intimidade.
Objetiva demonstrar a existência de uma intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de
quem morre, ao expor como as relações de poder são capazes de impulsionar e legitimar a
posse e o controle sobre o corpo feminino, situando o feminicídio para além de sua carga
simbólica, como passo inaugural para o reconhecimento da problemática, conferindo-lhe o
status de referência para a criação de políticas públicas de enfrentamento à violência de
gênero, sem deixar de fazer considerações sobre desejos punitivistas e a consequente demanda
por judicialização das pautas feministas no cenário nacional, ressaltando como a Lei do
Feminicídio tem contribuído para reascensão deste debate.
Palavras-Chave: Feminicídio; Gênero; Violência.

1
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Graduanda em Direito; E-mail: gabrielacatarina11@gmail.com
2
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestranda em Ciências Sociais; E-mail:
nayara_sandy@hotmail.com
3
Universidade Estadual de Maringá (UEM); Mestre em Direito, Estado e Sociedade (UFSC); Doutora em
Ciências Humanas (UFSC); E-mail: isadoravier@yahoo.com.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p275 275


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1.Introdução
A lei nº 13.104/2015, a chamada Lei do Feminicídio, alterou o art. 121 do Código
Penal, com a adição do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio,
prevendo situações em que a pena é aumentada de um terço até a metade e incluiu o delito no
rol de crimes hediondos. Na letra da lei, feminicídio é a morte de mulheres por razões da
condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou
menosprezo ou discriminação à condição de mulher, cujas margens penais são de 12 a 30
anos de reclusão. Muito embora se reconheça que o fenômeno perpassa o ambiente doméstico
e familiar, a análise aborda a estreita relação entre violência doméstica e feminicídios
perpetrados na esfera conjugal e/ou de intimidade, especialmente entre casais cisgênero e
heteroafetivos, pois é no entrecruzamento destas categorias que ocorrem, estatisticamente, a
maioria dos feminicídios, recaindo, portanto, no que concebemos como a existência de uma
intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de quem morre.
A proposta é, através de uma revisão da literatura sobre o tema e por meio de análise
bibliográfica do que fora produzido (como artigos e dossiês) após a publicação da Lei
13.104/15, situar o feminicídio para além da sua carga simbólica, que tem sido utilizada para
embasar as mais severas críticas à nova qualificadora. Sem deixar de fazer considerações
dogmáticas e político-criminais, bem como no que refere à contradição existente dentro dos
próprios movimentos feministas quanto à judicialização de suas pautas, pretende-se ressaltar o
inegável viés político da adoção da nova qualificadora, que pode ser concebida como
referência, em conjunto com a Lei Maria da Penha, para a concepção de políticas públicas de
enfrentamento à violência de gênero. A pesquisa está organizada da seguinte forma: conceitos
e considerações iniciais sobre o tema; os aspectos dogmáticos da Lei do Feminicídio; a
conexão entre violência de gênero, feminismo e o direito penal, bem como entre o marcador
de raça e o feminicídio; acerca da aplicabilidade da qualificadora do feminicídio para
mulheres transgêneros e travestis e ainda, sobre os embates entre a criminologia crítica e a
feminista.
Ao final, no último capítulo, ainda incipiente, os resultados e discussões deverão
indicar a importância da inclusão do feminicídio no direito brasileiro, demonstrando de que
forma a lei contribuiu ou vem contribuindo para o processo contínuo de enfrentamento à
violência de gênero. Deverá, ainda, comprovar a tese de que há uma relação peculiar entre o
gênero de quem mata e de quem morre através de dados estatísticos que comprovam que as
mulheres morrem mais “nas mãos” de seus parceiros íntimos e dentro de seus lares.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p275 276


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2. Feminicídio ou Femicídio? Primeiros conceitos


“Femicídio” ou “feminicídio” são expressões utilizadas para denominar as mortes
violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja, motivadas por sua “condição” de mulher,
no entanto, não existem consensos em torno desses conceitos, nem no meio acadêmico,
político ou legal. O termo femicídio (do inglês, femicide) foi utilizado pela primeira vez em
1976, pela Socióloga e feminista anglo-saxã Diana Russel, com o objetivo de dar visibilidade
à discriminação, opressão e violência à mulher por parte dos homens que, em sua forma mais
extrema, resulta na morte. Na década de 90, Diana Russel e Jane Caputi aprimoraram o
significado do termo, atribuindo-lhe o sentido de consequência extrema de um padrão
sistemático de violência, universal e estrutural, fundamentado no poder patriarcal das
sociedades ocidentais (CAMPOS, 2015: 105).
A expressão femicídio voltou a ser utilizada nos anos 2000 para denunciar as mortes
ocorridas em Ciudad Juarez, no México. Pasinato (2011: 225) explica que, nas décadas de 70
e 80, houve uma política de assentamento de grandes indústrias - “as maquilas” - que se
utilizavam da mão de obra feminina (“barata e dócil”), o que provocou rearranjos nos
tradicionais papéis de gênero, pois houve um aumento do número de homens desempregados
e crescente engajamento de mulheres (jovens e migrantes), que deixavam de cumprir seus
papéis de esposas, mães e donas de casa para ingressar no mercado de trabalho, conquistando,
assim, certa autonomia financeira. Foi diante deste cenário que se iniciou uma onda de
assassinatos de mulheres.
Neste contexto, em 2004, a antropóloga e feminista mexicana Marcela Lagarde, com o
propósito de realçar a dimensão política destas mortes, bem como a impunidade e
responsabilidade do Estado sobre as mesmas, elaborou o conceito de feminicídio (tradução de
femicide para o castelhano), sem deixar de reconhecer que o sexo da vítima e a desigualdade
de gênero são as principais características destes crimes. Atualmente, embora diferentes, os
conceitos são tidos como sinônimos para as legislações latino-americanas e a literatura
feminista, o que é positivo, pois a unificação do conceito permite maior e melhor articulação
política.
3. Percurso entre direito e feminismo: embate entre a criminologia crítica e a feminista
no contexto da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio
No período entre 1532 (primeira expedição oficial) a 1822 (declaração da
independência), o Brasil foi colônia de Portugal, portanto, as regras e costumes, bem como o
sistema jurídico, econômico, político e religioso eram aqueles impostos pela Coroa
Portuguesa. Entre os séculos XVI e XIX, a justiça no Brasil seguiu os moldes das Ordenações
Filipinas, que concedia ao marido o direito de matar a sua esposa caso a surpreendesse em

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adultério (uxoricídio) ou simplesmente, se houvessem suspeitas ou boatos (MELLO, 2017).


Na tradição patriarcal desenvolvida no período da colonização, a mulher sempre fora tratada
como propriedade, em uma constante relação de submissão: ora do pai, ora do marido.
Conforme Mello (2017: 87), após a proclamação da independência surge o Código Criminal
do Império do Brasil, que aboliu a prerrogativa do marido de matar sua mulher na hipótese de
adultério, todavia, caso ocorresse, havia atenuação da pena.
Já no século XIX, ocorreram notáveis transformações na sociedade brasileira, que
atingiram diretamente as mulheres em suas relações familiares e domésticas. Desta forma, o
casamento torna-se a principal forma de ascensão social-financeira (MELLO, 2017). Neste
contexto, o Estado “fecha seus olhos” em relação à violência doméstica e familiar contra a
mulher, pois a problemática era tida como algo intrínseco ao âmbito privado, que deveria ser
solucionado pelos próprios envolvidos. Após a conquista do direito ao voto, os grupos de
feministas passaram por um processo de desarticulação e engajamento com outras causas que
tangenciavam questões sociais diversas. É somente na década de 1970 que o movimento
feminista ressurge, podendo ser considerado como segundo momento do feminismo no Brasil,
associado ao feminismo internacional. Intensificam-se, então, em razão do aumento do
número de denúncias, os debates acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Por conseguinte, o feminismo trouxe à tona a discussão acerca da violência doméstica,
familiar e de gênero, passando a cobrar do Estado uma resposta através da criação de políticas
públicas de enfrentamento (MELLO, 2017: 91). Dentre várias políticas públicas para
mulheres criadas nas últimas décadas, destacam-se o surgimento das Delegacias de
Atendimento à Mulher e a promulgação, em 2006, da Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha).
Segundo Santos (2010), a criação das Delegacias da Mulher, em 1985, representa a primeira
etapa do processo de absorção, ainda que parcial, das demandas feministas pelo Estado, que
implicou em uma intensificação do enfrentamento à violência doméstica no país, mas acabou
por reduzir a abordagem feminista à criminalização.
A segunda etapa do processo de absorção/tradução das demandas feministas pelo
Estado é considerada por Santos (2010: 160) como a da re-tradução da criminalização através
da ressignificação da violência por meio dos Juizados Especiais Criminais (JECrim), criados
pela Lei nº 9.099/1995, que, com seu teor célere e despenalizante, acabou por banalizar a
violência doméstica e familiar. Somente com a Lei Maria da Penha, que retirou a competência
dos JECrim e introduziu diversas novidades legislativas, houve um salto da indiferença à
absorção/tradução ampla, porém restrita, das demandas feministas pelo Estado a partir da
adoção de uma lei específica de enfrentamento à violência contra as mulheres.

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Tratou-se de inegável avanço no tratamento da matéria, entretanto, muitos/as


autores/as consideraram errônea a substituição do paradigma da mediação e do consenso pela
intervenção penal como forma de resolução de conflitos, que segundo Maria Lucia Karam
(2015), apenas reproduz injustiças, seletividade e estigmatização.
Analisando a complexa relação de incompatibilidade das demandas das mulheres com
a lógica do sistema penal, Vera Regina Pereira de Andrade (2016) preleciona que, na década
de 60, os movimentos de mulheres acompanhavam a tendência da Criminologia Crítica de
minimização do sistema penal através da descriminalização de condutas como o adultério e
sedução. Entretanto, nas décadas seguintes, com a criação de centros de acolhimento e, no
Brasil, da Delegacia da Mulher (1983), reforçou-se a perspectiva de criminalização no interior
do movimento, dando origem ao fenômeno que a autora chama de “publicização-penalização
do privado”. Na década de 80, o movimento feminista europeu e norte americano provocou
reformas penais que inseriam novos crimes, sob a justificativa da “função simbólica” do
Direito Penal, sustentando-o não como forma de punição, mas como meio declaratório de que
se tratam de condutas socialmente intoleráveis. Contudo, para a autora, no Brasil, esse
contexto de reformas era ambíguo, pois ao mesmo tempo em que se pugnava pela
descriminalização de determinados crimes, discutia-se a criminalização de condutas até então
atípicas, recaindo unicamente na função retribucionista de punir e castigar os homens,
demonstrando inconsistência da política criminal feminista.
Machado (2014), por sua vez, discorda da posição acima alinhavada, afirmando que o
movimento feminista assumiu, por vezes, posição inconstante por razões pragmáticas e que a
Lei Maria da Penha configura-se como “estatuto político complexo”, que vai além da função
meramente retribucionista, pois, no contexto brasileiro, os anseios por judicialização
descendem da ordem estabelecida pelo feminismo latino-americano, em meio a intensificação
das lutas por direitos e cidadania. Deste modo, a autora sustenta que as críticas endereçadas à
lei são problemáticas pois focam exclusivamente na dimensão normativo-penal, excluindo as
demais. A Lei institui, portanto, um paradoxo: trata-se de um instrumento de controle que,
contudo, foi capaz de implementar uma rede articulada de atendimento às mulheres
(MACHADO, 2014: 252). Tal paradigma, no contexto brasileiro, promoveu um embate entre
a criminologia crítica e a criminologia feminista, cuja problematização estendeu-se à Lei do
Feminicídio, e por esta razão, não poderia deixar de ser abordado.
Logo após a promulgação da Lei do Feminicídio, diversas críticas lhe foram
endereçadas, tais como a instituição de parâmetros desiguais para homens e mulheres,
configurando afronta ao princípio constitucional da isonomia; falhas técnicas e dogmáticas,

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além de impropriedades político criminais, no sentido da pouca ou nenhuma efetividade da


medida no combate à violência de gênero e, por fim, com relação à ineficácia e falência do
sistema penal para a solução da problemática.
No tocante à última das críticas apontadas, uma das mais contundentes considerações
foi realizada por Maria Lúcia Karam, em seu texto “Os paradoxais desejos punitivistas de
ativistas e movimentos feministas”, publicado na revista online Justificando, em 2015.
Argumenta a autora que ativistas e movimentos feministas ou de direitos humanos tem sido
corresponsáveis pela “desmedida expansão do poder punitivo” que acaba suprimindo direitos
humanos por meio de violações aos princípios constitucionais e garantias presentes em
declarações internacionais. Karam entende que, ao se reivindicar o rigor do sistema penal
contra aqueles/as que são apontados/as como responsáveis pela violência de gênero, ativistas
e movimentos feministas acabam, paradoxalmente, reafirmando a ideologia patriarcal, isto
porque o sistema penal promove violência, estigmatização, marginalização, sofrimento,
desigualdade e discriminação.
Nesse mesmo sentido, Vera Regina Pereira de Andrade (2016), defende uma inversão
desta polarização: se o sistema penal é ineficaz para proteger as mulheres contra a violência,
pois não possui o condão preventivo, tão pouco de ressocialização e ainda, promove a
vitimização feminina, é necessário que o Direito Penal perca força com a diminuição da
criminalização, potencializando-se ao contrário, a cidadania, através dos mecanismos
previstos na própria Constituição Federal. Em contraposição, Mello (2017) entende que a
tendência teórica do Direito Penal Mínimo deve ser repensada quanto à questão de gênero,
pois, se historicamente o Direito exerceu regulação, controle e violência contra às mulheres,
logo, uma minimização do sistema penal não irá garantir a prevenção e o enfrentamento à
violência de gênero.
Algumas das inovações no campo penal e processual penal promovidas pela Lei
11.340/06, notadamente os aumentos de penas e agravantes e a proibição de aplicação de
institutos despenalizantes promoveram a intensificação das tensões existentes sobre duas
perspectivas criminológicas, a criminologia feminista e a criminologia crítica (CAMPOS;
CARVALHO, 2011). Com a promulgação da Lei 13.104/2015, que insere a categoria
feminicídio ao Direito Penal brasileiro, tal embate sobre desejos punitivistas e a consequente
demanda por judicialização das pautas feministas no cenário nacional adquiriu ainda mais
expressão. Portanto, a inclusão da sujeita feminina foi a maior contribuição das teorias
feministas para o campo do Direito, afinal, tornou possível compreender as causas de
subordinação e opressão das mulheres, as consequências dessas práticas para a vida social das

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mesmas, as alternativas de solução da problemática, bem como os constantes desafios das


mulheres em meio a uma sociedade misógina, patriarcal e conservadora. Desde a década de
70, as mais diversas perspectivas feministas vêm tecendo críticas ao direito, a partir de um
pensamento crítico sobre as epistemologias jurídicas, sendo a produção resultante o que
caracteriza a denominada “Teoria Feminista do Direito” (CAMPOS, 2011).
Quando da promulgação da Lei do Feminicídio, em março de 2015, a então Presidente
da República declarou: “Não aceitem a violência dentro e fora de casa. Denunciem, e vocês
terão o Estado brasileiro ao seu lado” (PRADO, 2015). Ocorre que, é justamente a proposta
de “ter o Estado ao lado das mulheres” o que enseja controvérsias, de modo que a
criminalização do feminicídio tem levantado uma série de análises que questionam as
estratégias empreendidas pelos movimentos feministas brasileiros. Por outro lado, têm
surgido posicionamentos favoráveis ao processo de judicialização (RIFIOTIS, 2007: 238),
que atribuem à dimensão simbólica um viés positivo, capaz de promover uma mudança no
imaginário social (MACHADO; ELIAS, 2016).
Muito embora concordem com o argumento da falência pragmática do sistema penal,
Machado e Elias (2016) ressaltam que a inserção das categorias violência doméstica e familiar
ou feminicídio respaldam-se nas reivindicações por mudanças nominativas que deem
visibilidade ao fenômeno, para que, no plano legal, lhe seja conferido um juízo de valor
proporcional. Portanto, defendem que a inserção da categoria feminicídio em lei não produziu
uma mudança contundente na prática criminalizante. Isso porque, em razão da supremacia do
bem jurídico da vida, antes mesmo da inserção da categoria sociológica do feminicídio no CP,
as mortes de mulheres eram judicializadas com penas qualificadas em outras disposições já
existentes. Desta forma, pode-se afirmar que a Lei não tipificou uma nova conduta.
O que a nova qualificadora proporcionou foi, para além do viés simbólico de um
pretenso “efeito moral”, um efetivo teor político no sentido de esclarecer que mulheres, todos
os dias, morrem pelo simples fato de serem mulheres (ou se identificarem com este gênero), e
que o Direito Penal não podia continuar alheio a este fato, contribuindo com a perpetuação de
estereótipos de gênero, e a consequente segregação social produzida por estes. O viés
simbólico da Lei do Feminicídio deve fazer insurgir seu teor eminentemente político, presente
desde sua concepção, para embasar o contínuo movimento de enfrentamento às violências de
gênero, dando a devida visibilidade ao fenômeno. Mais do que um apelo ao direito penal
simbólico, o acolhimento do feminicídio, em uma tendência cada vez mais expressiva na
América Latina, tem como escopo desnudar a crueldade e a inescrupulosa motivação que
reveste os crimes ocorridos por razões de gênero.

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4. Quem é vítima do Feminicídio no direito penal brasileiro?


A qualificadora do feminicídio, introduzida pela Lei 13.104 em 9 de março de 2015,
alarga as margens penais para homicídios perpetrados contra a mulher por razões da condição
de sexo feminino. A qualificadora incide sobre a medida da culpabilidade e não se comunica
aos coautores do fato típico e ilícito (PRADO, 2017: 69). O art. 2º da Lei 13.104/2015 alterou
o art. 1º da Lei 8.072/1990, incluindo o feminicídio ao rol de crimes hediondos. Trata-se de
norma penal mais gravosa, portanto não retroage: a mudança só vale para crimes cometidos a
partir da vigência da Lei. A pena é de 12 a 30 anos de reclusão, não se admitindo anistia,
graça ou indulto, ou pagamento de fiança para evitar a prisão em flagrante. O regime inicial
de cumprimento é fechado e a prisão temporária tem prazo de 30 dias, prorrogável pelo
mesmo prazo. Segundo o art. 83, V, CP, o livramento condicional exige que pelo menos mais
de dois terços da pena tenham sido cumpridos.
A expressão “razões da condição de sexo feminino” pode suscitar diversas dúvidas de
interpretação, como por exemplo a ideia de que o fato de a sujeita passiva ser mulher já
configuraria, de imediato, a qualificadora. Por esta razão, o próprio legislador, no art. 121, §2-
A dispõe que tais razões se caracterizam quando o crime envolve: I - violência doméstica e
familiar; II- menosprezo ou discriminação a condição de mulher. A primeira situação de
enquadramento é claramente fundamentada pelo art. 5º4 da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da
Penha. O art. 7º da referida lei, por sua vez, traz um rol não taxativo das formas de violência
doméstica e familiar ou no contexto de relações íntimas de afeto, quais sejam: física, moral,
psicológica, sexual ou patrimonial. Deste modo, há a possibilidade da ocorrência de violência
no âmbito doméstico, podendo envolver relação familiar ou íntima de afeto, sem que
configure como determinada por razões da condição de sexo feminino. Já o segundo
enquadramento referente ao menosprezo à condição de mulher ocorre quando o agente pratica
o crime por nutrir pouca ou nenhuma estima ou apreço pela mulher vítima, configurando,
dentre outros, desdém, desprezo, desapreciação, desvalorização (BIANCHINI, 2016: 206).
Para que possa incidir a qualificadora do feminicídio, é necessário que a sujeita
passiva seja mulher e que o delito tenha sido cometido por “razões da condição de sexo

4
Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.

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feminino”. Desta forma, surge a questão: no Direito Penal, e mais especificamente, nos
dispositivos de enfrentamento à violência de gênero, quem pode ser reputada como mulher, e
consequentemente, sujeita de direito para fins de tutela do bem jurídico da vida na forma
qualificada? No trâmite da PLS 292/2013, quando chegou à Câmara, por pressão da bancada
religiosa, suprimiu-se a expressão “razões de gênero” e posteriormente, a substituiu por
“razões da condição de sexo feminino”, o que, segundo Machado e Elias (2016), não decorreu
de falta de conhecimento técnico dos/as legisladores/as, mas que se configura como uma
manobra política com o fim de excluir as mulheres transexuais e travestis da esfera de
abrangência da lei.
Segundo Scott (1989), a categoria gênero é mais útil do que o conceito de “sexo” para
se compreender identidades, expressões e papéis de homens de mulheres em sociedade, razão
pela qual, a partir da década de 70, passou a ser utilizada pelos movimentos feministas para
pontuar distinções sociais entre homens e mulheres. A utilização da categoria de gênero nos
estudos feministas proporcionou a desconstrução do modelo universal e essencialista de
mulher, abrindo a possibilidade para a construção das identidades de gênero 5 (BENTO, 2006).
Segundo dados da Organização Internacional Transgender Europe (2017), nos últimos
nove anos (01 de janeiro de 2008 à 31 de dezembro de 2016), foram reportados 2.343
assassinatos de pessoas trans em 69 países do mundo, sendo que destes, 1.834 ocorreram na
América Central e na América do Sul. O Brasil possui o maior número absoluto de mortes de
pessoas trans, seguido pelo México. Pontua Berenice Bento (2014), que no Brasil, a
população trans (travestis, transexuais e trangêneros) é dizimada diariamente, razão pela qual
sugere a nomeação do assassinato de pessoas trans como “Transfeminicídio” Desta forma,
pode-se afirmar que os transfeminicídios são motivados pelo gênero e não pela sexualidade da
vítima, pois esta é, muitas vezes, restrita ao foro íntimo, já o gênero, não existe sem
reconhecimento social, por isso, tais crimes constituem a expressão mais potente e trágica do
caráter político das identidades de gênero (BENTO, 2014: 2).
A adoção do termo gênero, na Lei do Feminicídio, tal como na Lei Maria da Penha,
teria o condão, portanto, de estender à possibilidade de aplicação da qualificadora para
mulheres trans e travestis vítimas, mortas em razão de sua condição de pertencimento e
identificação ao gênero feminino. A contrario sensu, a adoção da expressão “sexo feminino”
impediria a aplicação da lei para as mesmas. Essa interpretação decorre do dualismo existente

5
Diz respeito à identificação pessoal de gênero de alguém, que pode concordar ou não com o gênero que lhe foi
atribuído no nascimento. Por conseguinte, quem nasceu biologicamente homem e se identifica como tal, é
cisgênero. Por sua vez, aquele que nasceu biologicamente homem, mas identifica-se com o gênero feminino, é
trangênero, e vice-versa (JESUS, 2012)

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entre as categorias “sexo” e “gênero”, em que sexo remete às características biológicas e


gênero, às sociais. Assim, conforme Fausto-Sterling (2001: 77) as discussões públicas e
científicas consideram o sexo e a natureza como reais, enquanto gênero e cultura seriam
construídos, no entanto, tratam-se de falsas dicotomias, pois, assim como o gênero, o sexo
também é construído socialmente.
É possível, por conseguinte, concluir que embora a supressão do termo gênero na lei
represente um retrocesso teórico, a expressão “condição do sexo feminino” não altera a
interpretação da mesma, pois remete, igualmente, às razões de gênero. Em razão da
desconstrução do dualismo entre gênero e sexo, da constatação de que este é também uma
construção social e considerando que as mortes de mulheres transgêneros são motivadas pela
discriminação ao papel social feminino, bem como pelo desprezo àquelas que fogem do
padrão cisheteronormativo, está claro que a qualificadora do feminicídio pode e deve ser
aplicada às mesmas.
5. Mulheres negras morrem mais: o movimento feminista e negro frente ao machismo e
ao racismo
De acordo com o Mapa da Violência lançado no ano de 2015 em análise comparativa
dos dados IBGE entre os anos de 2003 e 2013, verificou-se que enquanto o número de
homicídios de mulheres brancas caiu 9,8% o número de homicídios de mulheres negras
aumentou em 54,2%. Foi identificado que a partir do momento que a Lei Maria da Penha
entrou em vigor, 2,1% das mulheres brancas deixaram de ser vitimadas pela violência
doméstica, enquanto o número de mulheres negras aumentou em 35%. Esses dados
demonstram o quanto a Lei do Feminicídio é essencial para as mulheres negras, pois são elas
que mais sofrem em função da combinação de duas variáveis: o sexo e a cor. Mulheres negras
morrem mais em razão do acúmulo de desigualdades e discriminações. Estas, além de
sofrerem com o machismo, sofrem com o racismo estrutural e institucionalizado, opressões
essas que são ainda mais expressivas se adicionados os recortes de classe e de gênero.
Muito embora as discussões propostas por mulheres negras, sejam na academia ou na
militância, sobre a saúde, afetividade, igualdade salarial, visibilidade, entre outras, tenham se
intensificado, há ainda muitas demandas de lutas para serem alcançadas pelas mesmas, que
carecem de suportes de toda a ordem. Suas demandas devem ser as de toda a sociedade, pois
só serão sanadas quando deixar de ser interpretado como um problema de um grupo
específico, e passar a ser lido da forma como realmente é, um problema que perpassa toda a
estrutura social desde a colonização do país e que deve ser pauta das discussões de todos os

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espaços, afinal, os índices de violência demonstram que as mulheres negras, com destaque
para mulheres trans e travestis, continuam sendo violentadas e mortas indistintamente.
6. O gênero de quem mata e de quem morre
Inicialmente, cumpre ressaltar que o presente capítulo configura-se apenas como
apontamentos iniciais para a discussão proposta que pretende, como dito anteriormente,
confirmar a existência de uma intrínseca relação entre o gênero de quem mata e de quem
morre. Pois bem. A grande maioria dos feminicídios, tentados e consumados, são perpetrados
por companheiros no âmbito doméstico, mesmo quando as mulheres denunciam as
ocorrências, o que denota a grande falha da rede de atendimento à violência doméstica e
familiar em evitar as chamadas “mortes anunciadas”. O feminicídio, nestes casos, geralmente
ocorre após o ciclo vicioso próprio de relacionamentos abusivos, que incluem agressões
variadas, rompimentos, perdões, novas agressões, chantagens, e assim sucessivamente, em um
cenário de negligência estatal e pouca ou nenhuma punição aos agressores.
Assim, de acordo com dados estatísticos, pode-se dizer que há uma intrínseca relação
entre o gênero de quem mata e de quem morre: em 2013, foram registrados 4.762 homicídios
de mulheres, e 50.3% foram cometidos por pessoas que tinham ou tiveram relações íntimas de
afeto com a mulher - de acordo com o que estabeleceu a Lei Maria da Penha -, sendo que em
33,2% destes casos, o autor do crime foi o parceiro ou ex-parceiro. Os índices quanto ao meio
empregado nos homicídios deixam claro o requinte de crueldade próprio dos crimes
motivados por razões de gênero: 73,2% dos homicídios masculinos foram realizados mediante
o uso de arma de fogo, ao passo que 51,2% dos homicídios de mulheres ocorreram por meio
de estrangulamento, sufocação, ou com instrumentos cortantes, contundentes ou penetrantes
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015).
Em 2013, o Brasil passou a ocupar a 5ª posição na lista de países com maiores taxas de
homicídios de mulheres, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
Em 3 anos, houve um aumento de 9% no número de assassinatos registrados. Não há,
entretanto, uma regra que permite identificar, clara e de inequivocamente, se o delito foi ou
não motivado pelo desprezo à condição feminina. O que se têm são parâmetros, os quais só
são percebidos e compreendidos quando se analisa os crimes sob uma perspectiva de gênero.
Contudo, de forma geral, é possível observar um padrão em que o corpo da mulher apresenta
marcas de violência sexual ou lesões em partes do corpo que remetam à feminilidade, como o
rosto, os seios e os genitais, os quais indicam o uso de extrema violência e tortura.
As desigualdades de gênero, sejam elas sociais, políticas, econômicas, ou culturais,
além de limitarem o acesso das mulheres às mesmas oportunidades dos homens nos campos

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acadêmicos, profissionais e políticos, também são responsáveis pela idealização, por parte de
muitos destes, de um sentimento de posse capaz de torná-las meros objetos sexuais, sob os
quais acreditam ter poder e domínio. Deste modo, infere-se que o feminicídio tem origem na
infração das normas de superioridade masculina que determinam a posse e o controle sobre o
corpo feminino. Tratam-se de crimes de poder, que visam a manutenção e reprodução deste
(SEGATO, 2006: 4).
O feminicídio foi uma categoria criada para englobar o que há em comum na agressão
e morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, evidenciando o impacto político da
desigualdade de gênero, haja vista que o fenômeno ocorre tanto em espaços públicos quanto
em privados, podendo ainda, ser executado e tolerado por agentes do Estado. Trata-se da
violação de uma série de direitos das mulheres, consagrados nos principais instrumentos
internacionais, principalmente o direito à vida, o direito à integridade física e sexual e o
direito à liberdade pessoal. A tipificação da qualificadora, por conseguinte, consiste
justamente em uma estratégia para demonstrar as especificidades dos assassinatos contra
mulheres, isto é, para retirá-los do âmbito genérico de “homicídios”, e destacá-los como
crimes oriundos do patriarcado.
7. Conclusões
Inicialmente, fora feita a diferenciação entre os termos “femicídio” e “feminicídio”,
ressaltando que embora suas concepções sejam diferentes, atualmente são tidos como
sinônimos, permitindo assim, uma unificação dos conceitos. Em seguida, é feita uma breve
retomada histórica acerca da condição da mulher no Brasil desde a colonização até a
contemporaneidade, pontuando como o Direito, de uma forma geral, influenciou no processo
de assentamento da mulher enquanto sujeita desprovida de tutela condizente com o princípio
da dignidade humana e como o movimento feminista reagiu a esse condicionamento, tornando
público o que antes era restrito ao ambiente privado. Neste diapasão, são feitas considerações
sobre a importância da categoria analítica gênero para se compreender o fenômeno do
feminicídio, demonstrando porque o Direito Penal, historicamente, tem perpetuado
discriminações negativas em face das mulheres atribuindo às mesmas a culpa por suas
próprias mortes. Desta forma, situa o feminismo como percursor de uma série de mudanças
sociais, legislativas e institucionais que culminaram com a promulgação da Lei Maria da
Penha e, mais recentemente, com a Lei do Feminicídio, que reacenderam o debate acerca dos
desejos punitivistas e a demanda por inserção das pautas feministas na agenda do Poder
Judiciário. Por fim, foram feitos apontamentos iniciais para o capítulo final da pesquisa, na
qual pretende-se comprovar, através do relacionamento de dados estatísticos, a existência de

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uma relação entre o gênero de quem mata e de quem morre, bem como sobre a influência do
marcador de raça na análise destes delitos, justificando-se a opção político-criminal de
acolhimento da qualificadora do feminicídio no Direito Penal Brasileiro.

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A naturalização da violência contra a mulher


Nathaly Cristina Fernandes1
Carolina dos Santos Jesuino da Natividade 2

Resumo: O presente trabalho trata da questão da naturalização da violência contra a


mulher, nele objetivou-se de modo geral refletir sobre os processos que naturalizam e
promovem a violência contra a mulher, especificadamente destacar quais fatores promovem
essa violência com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade; Analisar aspectos
da cultura que perpetuam e/ou validam a violência contra a mulher. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica em que foram utilizadas como fontes científicas livros, mapas da violência,
revistas e indexados nas bases de dados Scielo (Scientific Electronic Library Online), Pepsic
(Periódicos Eletrônicos de Psicologia) e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde). Concluímos a
partir dessa pesquisa que a naturalização da violência contra a mulher está apoiada a diversas
construções históricas, como o patriarcado, o sexismo, o machismo, a misoginia e a cultura do
estupro, que perpetuam e/ou validam essa violência, tomando como naturais situações de
desigualdade de poder. Muitas vezes a violência contra a mulher é banalizada, o que reforça a
ideia de que a violência contra mulheres seja tolerada, a aceitação e reprodução de tais
atitudes fazem com que situações de violência sejam vistas como normais e/ou próprias da
natureza masculina. As relações sociais de gênero construídas historicamente definem papéis
e criam modelos a serem seguidos, limitando e oprimindo vidas há séculos.
Palavras-chaves: violência; gênero; machismo.

1
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN, discente em Psicologia; nathalycrfernandes@gmail.com.
2
Faculdade de Jandaia do Sul - FAFIJAN; doutoranda pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, Mestra
em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, graduada em Psicologia pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; carolina.s.j.natividade@gmail.com.

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Introdução.
Este trabalho foi pensado a partir da questão norteadora sobre a violência contra a
mulher, investigando o que naturaliza essa violência. O interesse por esse estudo surgiu frente
a questionamentos com relação à violência contra a mulher. Problematizou-se o assunto
levantando algumas questões: a) com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade,
quais fatores promovem essa violência?; b) quais aspectos da cultura que perpetuam e/ou
validam a violência contra a mulher?. A justificava maior para o desenvolvimento deste
estudo foi o de contribuir com a pesquisa sobre a naturalização da violência contra a mulher.
Objetiva-se de modo geral refletir sobre os processos que naturalizam e promovem a
violência contra a mulher, do qual se desdobram os seguintes objetivos: destacar quais fatores
promovem essa violência com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade;
analisar aspectos da cultura que perpetuam e/ou validam a violência contra a mulher.
No âmbito acadêmico e profissional esse trabalho possibilita aprofundar o
conhecimento sobre questões de gênero e sexualidade e aspectos da cultura que naturalizam a
violência contra a mulher. Provoca reflexão sobre um tema que é muito presente em nossa
sociedade, sendo assim de total relevância. Proporciona visibilidade às necessidades dessa
população, frente ao entendimento de como se constrói e se mantêm a naturalização da
violência contra a mulher.
Esse estudo demonstra relevância social, pois oportuniza reflexão sobre o tema,
permitindo a identificação de aspectos da realidade das mulheres que são muito significantes
para o enfrentamento da violência contra essa população, violência essa que está presente em
diversos espaços, em casa, na rua e até no ambiente virtual, essa pesquisa contribui também
para a produção científica sobre a temática.
Desenvolvimento.
A violência contra a mulher refere-se a um padrão de comportamento abusivo,
conforme Dias; Cotrim (2015, p. 281) é uma grave violação de direitos humanos, em suas
múltiplas faces: simbólica, moral, sexual ou física, dentre outras. A violência simbólica se
constrói sob forma de dominação que “(...) se ampara em mecanismos simbólicos de poder a
fim de fazer com que as pessoas em situação de violência não compreendam tal conjuntura
como violência, aceitando-a (...)” (ABRAMOVAY; CUNHA; CALAF, 2009 apud VIANA;
SOUSA, 2014 p. 160), realiza-se através de símbolos e signos culturais. Sobre a violência
moral Osterne (2011 apud VIANA; SOUSA, 2014 p. 160) diz que afeta direta ou
indiretamente a dignidade, a moral da vítima, compreende-se como qualquer conduta

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discriminatória. Já a violência sexual refere-se a “(...) toda ação em que, numa relação de
poder – por meio de força física, coerção, sedução ou intimidação psicológica –, se obriga
uma pessoa a praticar ou a se submeter à relação sexual”. (LABRONICI; FEGADOLI;
CORREA, 2010 apud VIANA; SOUSA, 2014 p. 160). A violência física pode ser
compreeendida como qualquer agravo produzido através de força física ou algum tipo de
arma ou instrumento com a finalidade de causar danos à integridade corporal de outro sujeito,
esses danos vão desde leve dor até homicício.
A violência é um fenômeno histórico, cultural, sustentado socialmente, utilizado para
estabelecer poder e controle. A violência contra a mulher é:
Resultado de uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida
tanto por homens como por mulheres. A autora define violência como uma ação que
transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar,
explorar e oprimir. A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como
“sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. (CHAUÍ 1985 apud
SANTOS; IZUMINO 2005 p. 149)

O conceito de gênero refere-se à construção cultural sobre os atributos de


masculinidade e feminilidade, refere-se a diferenças e desigualdades construídas socialmente,
e não determinadas biologicamente. (VIANA; SOUSA, 2014 p. 162). Desse modo, gênero é
como cada cultura estabelece o que homens e mulheres devem ser. São criados papéis
estereotipados de que o homem é o provedor da casa, não pode chorar, é agressivo e ativo,
enquanto a mulher é a responsável pelo lar, cuidadora, passiva/submissa, sensível e tolerante.
“O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção através do
qual os sexos são estabelecidos.”(BUTLER, 1990, p. 7 apud TONELI, 2012 p. 151)
Esta definição binária, usada e aceita por séculos, serviu para consolidar o
machismo presente em muitas sociedades, segundo Torrão Filho (2005 p. 139) essa
diferenciação entre os sexos pressupõe características definidas do que é feminino e
masculino “(...) não apenas as mulheres aprendem a ser femininas e submissas, e são
controladas nisto, mas também os homens são vigiados na manutenção de sua masculinidade
(...)”, argumenta. Por exemplo, meninos aprendem desde cedo que devem ser garanhões,
enquanto à meninas são ensinadas outras atribuições.
Podemos pensar a sexualidade: “(...) como construções sociais e históricas que
sempre implicam certo tipo de conexão com as relações de poder” (TONELI, 2012 p. 151).
Antigamente a mulher era considerada propriedade do pai, e posteriormente do esposo, e não
tinha direitos. Ainda hoje vemos resquicíos desse passado quando visualizamos a situação da
mulher no mercado de trabalho, com baixos salários. A partir dessa construção dos papéis de
gênero podemos refletir sobre as características e funções corriqueiramente associadas a

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homens e mulheres. É preciso levarmos em conta que gênero e poder são suscetíveis a
questionamentos e mudanças, pois são relações historicamente criadas.
Ao pensar em naturalização da violência contra a mulher, faz-se necessário refletir
sobre as construções sociais de gênero e sexualidade pois:
Desde cedo a sociedade passa a tratar meninas e meninos de forma diferente,
atribuindo valores e desafios diferentes para cada um, diferenciações sustentadas em
razão do sexo, o que é feito de uma forma bastante naturalizada, a fim de criar na
sociedade a cultura de que homens e mulheres, em razão de suas diferenças
biológicas, possuem comportamentos e características sociais diferentes. Constrói-
se, então, a ideia de que os meninos – e, consequentemente, os homens – são mais
fortes, mais práticos, menos emocionais, menos cuidados, mais violentos e
impulsivos (e tudo isso é retirado arbitrariamente das características femininas).
(SANTOS; BUSSINGUER, 2017 p. 3)

Podemos visualizar os marcadores de gênero em diversas situações do cotidiano, o


tratamento para homens e mulheres é diferente, essa diferença se faz presente desde a
separação de cor, brincadeiras, vestuário, até situações como humor e publicidade machista,
invisibilização da violência de gênero, estupro, abuso psicológico, ameaça, agressão física,
culpabilização, humilhação, chantagem emocional etc.
Segundo Oliveira; Costa e Sousa (2015 p. 37-38) a origem da violência imposta às
mulheres é histórica, proveniente de um sistema de dominação-subordinação que determina
os papéis de cada sexo na sociedade, que se alicerçaram, durante muito tempo, em discursos
essencialistas, como se, por uma determinação biológica, a forma de sentir, pensar e perceber
o mundo fosse predefinida a priori, portanto, incontestável e definitiva. Às mulheres restaria
apenas à obediência em nome de um suposto equilíbrio familiar e social, muitas vezes
internalizado e reproduzido pelas próprias mulheres.
Nessa construção social da sexualidade, os papéis de homens e mulheres são
diferenciados, criando a ideia do feminino em contraposição ao masculino, na qual a mulher é
representada como passiva e tolerante e o homem ativo e dominante (SOUSA, 2017 p. 27 ).
Esse modelo social viabilizou violações de direitos e impôs às mulheres a condição de
inferioridade em relação aos homens.
Para continuarmos a discussão sobre a violência contra a mulher, faz-se necessário o
entendimento do que é patriarcado, pois foi dentro desse cenário, historicamente que a
violência contra a mulher se naturalizou. Pinto; Braga (2015, p. 57) definem o patriarcado
enquanto uma ideologia dominante em nossa sociedade, que propaga a supervalorização do
homem em detrimento da mulher, o que perpetua o comportamento machista e misógino,
promovendo a hierarquização dos sexos.

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Nesse sentido é importante a conceituação de termos necessários para o


entendimento das estruturas que naturalizam a violência contra a mulher, por exemplo: “(...) a
ordem patriarcal é vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero,
uma vez que está na base das representações de gênero que legitimam a desigualdade e
dominação masculina internalizadas por homens e mulheres.” (ARAÚJO, 2008 s/p) meios
que se estruturam através do tempo apoiados em discursos religiosos, científicos, históricos e
filosóficos, que as normalizam.
Podemos ver a cultura patriarcal através de comportamentos de dominação e
subjugação do homem, reproduzindo desigualdade entre os sexos, o que consequentemente dá
continuidade às construções de gênero através de atitudes machistas. Podemos observar que
de modo geral meninas são incentivadas a ter responsabilidade mais cedo, enquanto meninos
são ensinados que amadurecem depois, como se fosse algo pré-determinado, tudo isso reforça
uma divisão comportamental, sendo assim o patriarcado auxiliou na criação dos papéis de
gênero (sexismo) do qual discutiremos a seguir.
Segundo Ferreira (2004 apud MESQUITA FILHO et al. 2011 p. 556 ), o sexismo
seria resquício da cultura patriarcal, ou seja, utilizado enquanto instrumento pelo homem para
garantir as diferenças de gênero, que se legitimam através de atitudes de desvalorização do
sexo feminino que vão se estruturando ao longo do curso do desenvolvimento, apoiadas por
instrumentos legais, médicos e sociais que as normatizam. O sexismo, portanto é uma
construção da sociedade patriarcal, que atinge homens e mulheres, pois são criados
estereótipos de gênero, ou seja, papéis de gênero.
Frente a isso podemos falar sobre o machismo, que é a opressão que diz que o gênero
mulher é inferior ao gênero homem e que fez o papel de gênero feminino ter certas
características como a submissão ao homem, que acarreta inúmeras consequências.
Entende-se como machismo, a conduta de acreditar que o indivíduo do sexo
masculino é superior, em qualquer aspecto, sobre o sexo feminino, acreditando que
as mulheres devem ser submissas a estes. Trata-se de algo que está enraizado em
nossa sociedade, pois desde os primórdios os homens acreditavam que eram
superiores às mulheres e estas precisaram batalhar muito para conseguir igualar os
seus direitos. Mesmo que de uma forma mais branda, o machismo ainda está
extremamente presente em nossa sociedade e se mostra principalmente quando se
fala sobre a violência contra a mulher. (GARCIA et al. 2017, p. 01)

Em conformidade com Garcia et al. (2017, p. 02), é possível observar a cultura


machista em diversos aspectos da sociedade, incluindo na música, onde essa cultura torna-se
explícita, muitas vezes ilustrando a mulher como objeto sexual. Essa naturalização do
machismo leva a uma também naturalização da violência contra a mulher, que
consequentemente, leva a um aumento da desvalorização dessa mulher enquanto ser atuante

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sobre seu próprio corpo e vontades, fazendo com que seja vista apenas como um objeto de
satisfação do homem.
Beijos roubados, assobios, olhares e comentários são comportamentos que, mesmo
sem denotar ato sexual, configuram uma forma de exercer o poder e a virilidade
moral dos homens sobre os corpos femininos. E, ao silêncio da mulher, a
manutenção do status quo é perpetuada. (SANTOS, 2015 p. 29)

Vejamos o conteúdo de algumas músicas “populares” em muitos círculos: “Só


surubinha de leve” (Mc Diguinho); “As mina pira” (Fernando e Sorocaba) e “Agora vai
sentar” (Mcs Jhowzinho E Kadinho Feat. Wesley Safadão).
Na letra de “Só surubinha de leve”, é incentivado o ato de dopar mulheres para
estuprá-las. Nesse caso a violência está explícita, estendendo as raízes da cultura do estupro e
da misoginia. “Hoje vai rolar surubinha, só surubinha de leve, surubinha de leve com essas
filha da puta, taca bebida depois taca pica, e abandona na rua”. Muitas vezes a violência e o
abuso sexual podem ser retratados exatamente da forma como está na música, como "se não
fosse nada demais". Na música “As mina pira” o fator bebida está relacionado com a
informação "tá fácil de pegar". Na música “Agora vai sentar” os detalhes são sutis, mostrando
que homens dificilmente sabem lidar com um não. “Tu pediu, agora toma, não adianta tu
voltar, menina, agora você vai sentar”.
A letra relata que a mulher não tem como voltar atrás e que a relação sexual vai existir de
qualquer maneira, mesmo que ela negue, o desejo do homem é o que prevalece.
As piadas/músicas/comportamentos machistas perpetuam o machismo e
consequentemente a violência de gênero, pois mostram que as mulheres devem ser usadas
como objetos sexuais, solidificando a ideia de que os homens são melhores que mulheres,
sendo assim, dão continuação a inferioridade, subordinação, exploração e desvalorização de
gênero.
Silva; Duarte (2017 p. 01) conceituam misoginia como sendo a “aversão e ódio ao
sexo feminino. Dela surgem vários problemas sociais, como a violência, o abuso sexual, a
repressão, a inferiorização e discriminação contra a mulher”. Frente a isso, podemos pensar na
cultura do estupro.
Compreende-se cultura do estupro como o pensamento que tange dentro de uma
sociedade em que, perante um caso de abuso sexual, a conduta da vítima seja a primeira a ser
analisada, e não a do agressor. Uma cultura que tem por objetivo transformar a mulher em um
objeto sexual e a culpar por isso (SILVA; DUARTE, 2017). A partir do momento em que a
mulher não adere aos costumes e valores ditados por um sistema machista, o estupro, assim
como todos os tipos de violência contra a mulher são toleráveis e vistos por meio do viés de

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que houve uma provocação da vítima, que o abuso foi merecido. Dessa forma o patriarcado, o
machismo, a misoginia e a cultura do estupro, uma vez que legitima a superioridade
masculina nas relações, são fatores que promovem e/ou perpetuam a naturalização e
invisibilização da violência contra as mulheres.
De acordo com dados do relógio da violência – Institudo Maria da Penha, no Brasil a
cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal; a cada 6.3 segundos; uma
mulher é vítima de ameaça de violência; a cada 6.9 segundos, uma mulher é vítima de
perseguição; a cada 7.2 segundos uma mulher é vítima de violência física; a cada 2 minutos
uma mulher é vítima de arma de fogo; a cada 16.6 segundos uma mulher é vítima de ameaça
com faca ou arma de fogo; a cada 22.5 segundos uma mulher é vítima de espancamento ou
tentativa de estrangulamento; a cada 1.4 segundo, uma mulher é vítima de assédio; a cada 1.5
segundo uma mulher é vítima de assédio na rua; a cada 4.6 segundos, uma mulher é vítima de
assédio no trabalho; a cada 6.1 segundos uma mulher é vítima de assédio físico em transporte
público.
Conhecer e refletir sobre esses dados se faz necessário para o enfrentamento da
violência contra a mulher, violência essa que muitas vezes ocorre dentro da família da vítima,
vale lembrar que muitos casos não são notificados às autoridades, agravando ainda mais a
situação de mulheres vítimas de violência, o que torna os indicadores sobre essa temática,
ainda mais assustadores. A violência física e/ou assédio sexual está relacionado à manutenção
de uma relação desigual de poder, que autoriza aos homens a violação do corpo e dos direitos
das mulheres, em virtude da reafirmação de uma masculinidade que se coloca superior às
mulheres. É o que acontece com o estupro ou com os assobios e provocações dirigidas às
mulheres nas ruas, o que reproduz a ideia de que, na sua posição masculina, tem o direito de
julgar, avaliar ou mesmo de controlar a sexualidade e o corpo de outra pessoa. É necessário,
portanto, desconstruir essa masculinidade, questionar esse “modo de ser homem” que
reproduz e legitima uma opressão sexista, é preciso pensar sobre possíveis formas de
enfrentamento dos mecanismos que produzem homens ofensores, agressores ou estupradores.
Os dados encontrados na pesquisa acima citada levam a questionar sobre em que
local a mulher pode estar segura. Vale lembrar que o ambiente doméstico se constitui, muitas
vezes um local de vulnerabilidade para as mulheres:
Além da maior vulnerabilidade da mulher no lar, dada a sua maior exposição ao
agressor e a distância das vistas do público (invisibilidade do problema), é comum
que o agressor prevaleça-se desse contexto de convivência para manter coagida a
mulher, desencorajando-a a noticiar a violência sofrida aos familiares, amigos ou às
autoridades. Essa situação fataliza o quadro de violência e a mulher, sentindo-se sem
meios para interromper a relação, toma-o por inevitável. Submetida a um limite

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sempre cruel e não raro fatal, a mulher acaba aceitando o papel de vítima de
violência doméstica. O agressor conhece a condição privilegiada decorrente de uma
relação de convívio, intimidade e privacidade que mantém ou tenha mantido com a
vítima, prevalecendo-se dela para perpetrar suas atitudes violentas. De fato, seguro
do controle do “seu” território, dificilmente exposto a testemunhas o indivíduo
violento aumenta seu potencial ofensivo, adquirindo a conformação de um assassino
em potencial. (BIANCHINI, 2012, s/p)

Sendo assim, muitas mulheres permanecem em relacionamentos abusivos por medo,


da reação do parceiro, medo o que os outros irão pensar, medo de ficar sozinha, falta de
autoestima, ameaças, culpabilização da vítima, dentre outros fatores.
Considerações finais.
Concluímos que a naturalização da violência contra a mulher está apoiada a diversas
construções históricas, como o patriarcado, o sexismo, o machismo, a misoginia e a cultura do
estupro, esses aspectos da cultura perpetuam e/ou validam essa violência, tomando como
naturais situações de desigualdade de poder.
Muitas vezes a violência contra a mulher é banalizada, o que reforça a ideia de que a
violência contra mulheres seja tolerada, a aceitação e reprodução de tais atitudes fazem com
que situações de violência sejam vistas como normais e/ou próprias da natureza masculina. As
relações sociais de gênero construídas historicamente definem papéis e criam modelos a
serem seguidos, limitando e oprimindo vidas há séculos.
Faz-se necessária a reflexão a fim de desnaturalizar determinados comportamentos
que influenciam e mantêm essa violência, seja através da família, da escola e/ou igreja e o
Estado, violência essa que se camufla nas coisas mais singelas, muitas vezes disfarçada de
cuidado, proteção e amor, essa violência passa despercebida pela maioria das pessoas, sendo
vista e reproduzida como algo natural. É importante conscientizar os adultos e educar as
crianças, de maneira que os meninos respeitem as meninas desde a infância. Que a
sexualidade e questões de gênero sejam ensinadas de forma mais saudável, quebrando padrões
de conduta violenta, empoderando meninas com relação ao seu próprio corpo e lugar na
sociedade. O combate às questões que tangem a violência contra a mulher não devem ser uma
luta apenas das mulheres, mas sim de toda a sociedade, demanda repensar nossas práticas,
atitudes e comportamentos. Mais estudos sobre essa temática são essenciais para a mudança.

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Uma análise dos discursos do ‘Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil’: A construção de um


crime

Maria Giulia Lima Carlessi1


Marcos Alexandre Gomes Nalli2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os discursos apresentados no


recente “Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017” de autoria das pesquisadoras
Milena C. C. Peres, Suane F. Soares, e Maria C. Dias, a partir do projeto de pesquisa
Lesbocídio – As histórias que ninguém conta, uma iniciativa do Núcleo de Inclusão Social –
NIS e do Nós: dissidências feministas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O
grupo de pesquisa criado em 2017 tem como objetivo o resgate das histórias e casos das
lésbicas vítimas de lesbocídio no Brasil, em uma atuação dupla de criar um espaço de
memória coletiva destes e apresentação desses dados às instituições competentes. Sendo
assim, pretende caracterizar os assassinatos e suicídios da comunidade lésbica brasileira,
alertando para os números e construindo um banco de dados para visibilizar essa população,
visto a não existência de levantamentos de dados oficiais para os tais casos e nem mesmo a
caracterização e tipificação do crime do lesbocídio (assim como de lesbofobia, homofobia e
transfobia) no país. O Dossiê foi construído através de notícias divulgadas pela mídia e redes
sociais, em parceria com outros dados coletados e divulgados por organizações de lésbicas e
organizações LGBTQ+. Esse trabalho busca apresentar brevemente os dados obtidos pelo
Dossiê e analisar os discursos construídos sobre estes utilizando como metodologia a leitura e
análise dos textos referenciados. Para a análise, será empregado o procedimento arqueológico
de Michel Foucault visando estabelecer e descrever as relações entre os discursos obtidos nos
materiais consultados. Os resultados obtidos demonstram o esforço das autoras do dossiê em
fundamentá-lo cientificamente, a partir do desenvolvimento metodológico da coleta e análise
de dados não oficiais, além da aproximação do fenômeno de violência contra lésbicas às
exigências da teoria jurídica e policial, delineando sua definição, tipificação e diferentes
motivações. Ressalta também o esforço da sociedade civil, organizações sociais e acadêmicas
em pressionar os órgãos judiciários, governamentais e poderes públicos para a tipificação de
crimes – como ocorreu com o feminicídio. A análise do Dossiê tem então como um de seus
resultados evidenciar as estratégias discursivas utilizadas para a implementação política da
nomeação devida dos crimes contra mulheres lésbicas.
Palavras-chaves: lesbocídio; análise do discurso; Foucault.

1
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Mestranda em Psicologia Social e Institucional (UEL/PR);
mariagiuliacarlessi@gmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR); Doutor em Filosofia (UNICAMP) e Pós-Doutor em
Epistemologia (EHESS/Paris – França); marcosnalli@yahoo.com

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Introdução

Como um crime é feito? Não, a pergunta não é pela melhor forma de executar um
crime, a busca pelo crime perfeito. A questão é outra, a questão é entender como se dá a
tipificação jurídica de um crime. Há um paradoxo como ponto de partida na racionalidade
taxonômica e tipológica do Direito de que ele sempre parte do fato, da empiricidade do fato,
para daí poder regulamentá-lo. Mas para regulamentar algo que ainda não se deu no âmbito
jurídico, que não tem, não dispõe de estatuto jurídico, como reconhecê-lo como tal?
A razão de apresentar tal comunicação tem como finalidade tentar captar como a
produção discursiva de um dossiê – o recém-publicado Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: De
2014 até 2017 de autoria de Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe Soares e Maria
Clara Dias – contribui para pensar como um terreno de objetividade pode ser constituído
discursivamente e desse modo impactar, forçar, o reconhecimento de um ato, um ato
criminoso duplamente qualificado: a do assassínio de pessoas por sua condição mulher e por
sua condição lésbica. É como se o lesbocídio fosse uma especificação, não apenas
terminológico-conceitual, mas também objetiva, diante do crime do feminicídio. É buscar
forçar um reconhecimento, o de criar um campo de visibilidade discursiva que permite
constituir um ato com uma determinada tipificação criminológica, mas que ainda não é da
ordem do direito. É criar, por discursos, uma objetividade específica, um ato alçado à
condição de fenômeno social e de crime; portanto fazer um estatuto, tanto social quanto
jurídico, constituído pelo discurso, ou melhor pelos discursos acionados e estruturados no
corpo da malha discursiva do dossiê.
Inevitavelmente há de se fazer um tratamento que contraponha o dossiê, o texto, com
a produção discursiva, mais próprias ao Direito, com a formação discursiva do objeto do
feminicídio. Ela poderá explicitar em certa medida como o dossiê se coloca como uma fenda
permitindo desdobramentos outros e outras atenções e especificações, e assim forçar desde
fora do Direito a necessidade de pensar este outro ato. Quer dizer, uma objetividade não é
constituída apenas pelo universo fechado do Direito como instituído, mas permeado,
atravessado por movimentos outros advindos de outras origens e fontes. Antes, aqui se trata
de intentar forçar ao Direito pelo reconhecimento e tipificação do ato de lesbocídio.
Este trabalho busca apresentar brevemente os resultados obtidos pelo Dossiê e analisar
os discursos construídos sobre estes utilizando como metodologia a leitura e análise do dossiê,
utilizando de ferramentas conceituais de Michel Foucault. Dado que a arqueologia não é um
método mas sim um procedimento, uma forma de pensar a posição do pesquisador frente a

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determinado objeto, adotamos tal postura para pensar a construção de um dossiê sobre o
lesbocídio – como acontecimento – e traçar seu esforço de ser reconhecido pelo direito quanto
fato, o que possibilitaria seu esquadrinhamento, definição, possível legislação e punição frente
a esse tipo de violência contra uma população sistematicamente excluída e não-dita que, ao
compilar e publicar o dossiê, coloca em circulação tal discurso que inquieta, abrindo
condições de possibilidade de fala e proliferação deste, tornando-o assim fato.

Desenvolvimento

A noção de discurso em Foucault é tema recorrente em sua obra e marca uma ruptura
radical do autor com as noções estruturalistas vigentes da época, tanto da linguística, quanto
da filosofia e história por confrontar conceitos estabelecidos nas ciências e, inclusive,
questionar o estatuto de verdade dos mesmos. Em sua obra Arqueologia do Saber, publicada
originalmente em 1969, Foucault apresenta o procedimento arqueológico, uma forma de
manusear o documento e conceber a história, se afastando das ideias da história clássica
pautada na linearidade do tempo e do discurso e sua busca pela gênese e verdade dos fatos
históricos. Foucault (2008) afasta-se da noção clássica da história e busca compreendê-la a
partir da descontinuidade, questionando a história dos grandes fatos históricos, seus
documentos e monumentos tidos como verdadeiros e, ao invés de descrevê-los, passa a
questionar como um conceito produz coisas, concebendo o discurso em sua materialidade
produtora. Para isso, coloca o discurso como série de acontecimentos, cuja análise pretende
estabelecer e descrever as relações entre eles e com os acontecimentos de outras ordens –
política, econômica, institucional. E o acontecimento coloca o discurso na ordem prática, da
ação e produção, na fronteira tênue do material/imaterial:
“Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem
qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se
efetiva, que é efeito; (...) este tênue deslocamento, temo reconhecer nele como
que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz
mesma do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade.”
(FOUCAULT, 1996, p. 57-59)

Ao conceber o acontecimento e propor uma arqueologia do discurso, Foucault (2008)


questiona o estatuto de fatos e a cristalização de verdades pautadas em documentos, estes
registros tidos como fiéis de verdades históricas, universais e estáticas, naturalizadas e
reconhecidas pelas ciências organizadas em disciplinas, como a medicina, o direito, a
psicologia, a história, a sociologia entre outras. A arqueologia, contrariamente às pretensões

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das ciências humanas, compreende a verdade não como um fato objetivo, mas como uma
produção e nesse sentido, como um efeito, oriundo de regimes de verdades imanentes aos
discursos (isto é, as formações discursivas) dos quais são um de seus produtos.
“no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um
dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se
pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu
chamo de acontecimento.” (FOUCAULT, 2010, p. 255)

Para isso, o procedimento arqueológico foca na forma e não no conteúdo do discurso,


visto que as transformações dos regimes de verdade se dão a partir das modificações das
regras das formações discursivas. Em Arqueologia do Saber, Foucault (2008), apresenta
quatros modalidades enunciativas para análise dos discursos: Quem fala? De onde fala?
Porque fala? Para quem fala? Recolocando a análise no âmbito da forma, buscando o lugar e a
ordem dos discursos em relação aos demais acontecimentos, as condições de possibilidade de
existência destes e estabelecer os regimes de verdade que os atravessa, ou seja, como um
discurso assume estatuto de verdade e outro não, como se produz uma legitimidade
discursiva.

Quem fala?

“Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões


para ter esta espécie de linguagem? (....) Qual é o status dos indivíduos
que têm - e apenas eles - o direito regulamentar ou tradicional,
juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir
semelhante discurso?” (FOUCAULT, 2008, p.56)

Como já pontuado, Foucault (2008) propõe quatro modalidades enunciativas para se


analisar o discurso, e que darão nome aos subitens utilizados em essa análise, ainda que essa
divisão se aproxime mais de um facilitador didático, visto que essas modalidades se
interpelam e complementam-se. Pensar quem fala é pensar em quem tem a autorização para
fazê-lo sob as égides do saber-poder na produção de verdades, através de procedimentos de
exclusão e interdição, pois a produção do discurso – perigosa produção de materialidade – é
permeada por procedimentos de controle, seleção, organização e redistribuição.
O dossiê aqui analisado é fruto do trabalho do grupo de pesquisa “Lesbocídio – as
histórias que ninguém conta” da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, uma
iniciativa do grupo “Nós: dissidências feministas” e conta com a colaboração do projeto
Núcleo de Inclusão Social (NIS), atualmente vinculado como projeto de extensão do
Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva da

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UFRJ/UFF/UERJ/Fiocruz e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ. O grupo


de pesquisa “Lesbocídio – as histórias que ninguém conta” segundo o Diretório dos grupos
de pesquisa no Brasil Lattes, foi criado em 2017, vinculado ao Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da UFRJ, e objetiva resgatar as histórias e informações sobre lésbicas
assassinadas e que se suicidaram por conta da lesbofobia, além de apresentar esses dados às
instituições responsáveis. Sendo assim, pretende caracterizar os assassinatos e suicídios da
comunidade lésbica brasileira, alertando para os números e construindo um banco de dados
para visibilizar essa população, visto a não existência de levantamentos de dados oficiais para
os tais casos e nem mesmo a caracterização e tipificação do crime do lesbocídio (assim como
de lesbofobia, homofobia e transfobia) no país.
O grupo de pesquisa Lesbocídio - As histórias que ninguém conta, atualmente, atua
com três participantes – as mesmas autoras do dossiê, sendo suas duas líderes: a Prof.ª Dr.ª
Maria Clara Dias, formada em Psicologia, mestre e doutora em Filosofia. Atualmente é
professora titular da UFRJ, e membro efetivo do programa de pós-graduação em Filosofia e o
programa interinstitucional e interdisciplinar de pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e
Saúde Coletiva. Coordena o Núcleo de Ética Aplicada (NEA) do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da UFRJ; o grupo de pesquisa em Direitos Básicos, Justiça Social e Políticas
Públicas (CNPq); o grupo de pesquisa Nós: dissidências feministas (CNPq); o grupo de
pesquisa Perspectiva dos Funcionamentos: teoria e prática (CNPq) e o projeto de extensão
Núcleo de Inclusão Social (NIS); e a Prof.ª Dr.ª Suane Felippe Soares, formada em
Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal Fluminense, especialista
em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), mestra e doutora
pelo Programa em Associação Ampla de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde
Coletiva/PPGBIOS, sob orientação da Professora Doutora Maria Clara Dias e, atualmente,
professora substituta em Bioética e Ética Aplicada (NUBEA-IESC) - UFRJ; e a terceira
participante é Milena C. C. Peres, graduanda em Jornalismo pela FACHA - Faculdades
Integradas Hélio Alonso e integrante do projeto NIS, do NÓS e do NEA, todos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, coordenados pela Prof.ª Dr.ª Maria Clara
Dias. A formação do grupo de pesquisa chama atenção por seu caráter interdisciplinar,
envolvendo diversas áreas de conhecimento como a Psicologia, Filosofia, História e
Jornalismo, atravessados por uma temática em comum: a Ética aplicada e a Inclusão Social,
aspectos que aproximam o dossiê da área do Direito e das políticas públicas, norteados pelos
estudos de gênero e estudos feministas.

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De onde fala?

O subitem anterior apresenta minunciosamente o lugar de onde estas pesquisadoras


falam: De maneira geral, estão localizadas dentro da Universidade, em associação com
programas de pós-graduação, quase completamente ligadas às instituições de ensino e
pesquisa públicas. Foucault (1996) traz a ideia de “sociedade de discurso” para pensar estes
espaços de produção de discurso – como a universidade – ainda que hoje estas apresentem-se
mais difusas porém mantêm seu caráter coercitivo, visto que sua “função é conservar ou
produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente
segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição.”
(FOUCAULT, 1996, p.39). A academia é um espaço de produção de discursos, submetidos a
um determinado sistema de regras para sua escrita e formatação, distribuído em espaços
específicos e restritos – os congressos, simpósios, publicações em revistas consideradas
científicas. O espaço acadêmico é de onde os que ali falam obtém seus discursos e também o
espaço que os legitima e os aplica, produzindo esse espaço como um “guardião da razão”,
efeito de um regime de verdade pautado na ciência pois “todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que eles trazem consigo.” (FOUCAULT, 1996, p.44).
Assim, a aproximação das pesquisadoras com a temática da Ética aplicada e Inclusão
Social chama atenção para a função social da Universidade de retorno à população, seja
fundamentando cientificamente através de dados e teorias a construção de políticas públicas
ou através de projetos de extensão atendendo diretamente a comunidade externa. Dessa
forma, o dossiê não tem o peso de ser um documento oficial. Não é um documento feito por
nenhuma agência governamental. E como tal não é ou não faz parte de nenhuma estratégia
governamental. Sua origem é outra e certamente suas pretensões políticas são também
distintas, pois conforme Foucault (1996, p.10) “o discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar”. Nesse sentido o dossiê pode ser pensado como uma prática que,
em sua discursividade, é já política. Coletar, sistematizar e publicar os dados contidos no
dossiê possui objetivos para além da pesquisa acadêmica em si, do avanço científico, mas a
necessidade de visibilizar e pressionar as instituições competentes para a criação de um fato: o
lesbocídio.

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Porque fala?

O dossiê é constituído de seis tópicos principais, sendo eles: 1) Introdução:


Apresentação do dossiê em linhas gerais, como sua organização, metodologia de coleta dos
dados, conceitos utilizados e breve histórico do levantamento coletado; 2) Conceito:
Exposição dos termos feminicídio, lesbocídio e múltiplas opressões; 3) Apresentação: São
apresentados os objetivos, metodologia e caracterizados os tipos de lesbocídio – que serão
apresentados posteriormente; 4) Estatísticas: Os dados em si, sendo feito primeiramente um
histórico e, em sequência, apresentados os dados dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017,
seguidos de comparativos gerais, a diferenciação entre assassinatos x suicídios e a ausência de
informações (não informados); 5) Conclusão; 6) Referências Bibliográficas. O objetivo do
trabalho não consiste em revisar e apresentar todos os dados do dossiê, sendo assim, serão
destacados pontos importantes para atender o objetivo de caracterizar e construir o crime de
lesbocídio, como pretendido. Segundo as autoras, o dossiê
“tem como foco de suas atividades o resgate de informações e histórias de lésbicas
vítimas de lesbocídio no Brasil e atua em dois planos: criando um espaço de memória
coletiva das lésbicas assassinadas e que cometeram suicídio e apresentando a demanda
das mortes às instituições competentes.” (PERES; SOARES; DIAS, 2018, p.2)

Os dados que constam no dossiê foram obtidos a partir do monitoramento de redes


sociais, meios de comunicação de notícias criminais, tanto nacionais quanto locais, sites e
jornais eletrônicos através da busca por descritores como lésbica assassinada, mulher
homossexual assassinada, entre outros. Contou também com a utilização de dados e casos
acompanhados por grupos e organizações lésbicas, além de lésbicas autônomas que noticiam
violências. Ainda foram levantados materiais anteriores com levantamentos estatísticos e
memórias, com destaque para dois trabalhos divulgados via blogs, sendo um deles o In
Memoriam: Lesbian Murder Victim (https://inmemoriamlesbian.blogspot.com.br/) – que
concentra informações de lésbicas assassinadas pelo mundo e do site nacional Homofobia
Mata (https://homofobiamata.wordpress.com/), organizado Grupo Gay da Bahia (GGB), que
há 37 anos registra e divulga casos de violência contra a comunidade LGBTQ+ no Brasil.
Após o levantamento de um caso, o mesmo passa por três etapas: 1) Checagem de
informações compartilhadas, ou seja, o mesmo deve ter, no mínimo, três narrativas de fontes
diversas; 2) Catalogação do caso onde é registrado no banco de dados informações da vítima e
do crime; 3) Monitoramento judicial do caso, assim todos os casos são monitorados
constantemente até o término do processo judicial. Por fim, os casos são divulgados através

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das mídias do grupo Lesbocídio – As histórias que ninguém


(https://lesbocidio.wordpress.com/) para acesso e colaboração da sociedade civil.
Deve-se ressaltar que a utilização desses materiais não é apenas uma escolha
metodológica, mas contingencialmente limitada pela dificuldade, e por que não inexistência,
de dados oficiais. Nesse sentido, pode-se mostrar, inclusive que, apesar da aparente limitação
metodológica da pesquisa e levantamento de dados, esta pode ser situada em sua potência
política, transformando a dificuldade de acesso a esses dados em um operador crítico
contundente para o propósito do dossiê de compilar esses números e histórias, visibilizando a
comunidade lésbica e a lesbofobia e, assim, pressionar as instituições competentes. Como
Foucault (1996) aponta no livro A ordem do discurso, ao nos depararmos com novos objetos
de estudo é preciso conceber novos instrumentos conceituais e fundamentações teóricas,
porém, para que esses objetos tomem estatuto de verdade, devem obedecer às regras
discursivas, como na construção de um dossiê com dados estatísticos, fundamentados em
diferentes áreas de saber e dentro de um espaço reconhecido para falar, a academia. Ao
estruturar um documento, que atende a metodologia científica, o dossiê, ainda que não
obtenha o estatuto de dado oficial – dada sua impossibilidade de contar com órgãos jurídicos,
policiais e estatísticos estatais para tal – abre caminhos para fazê-lo, alerta a sociedade civil
para um fato e constrói discursos que passam a circular e então, a existir.
Segundo o Dossiê “estas pesquisas são negligenciadas de forma sistemática e a
invisibilidade das mortes é só mais uma das privações sofridas por todas as pessoas que de
alguma forma são marginalizadas em nossa sociedade” (PERES; SOARES; DIAS, 2018,
p.106). Destacam-se aqui os procedimentos de exclusão e interdição do discurso pois “que
não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância,
que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1996, p.9). O tabu
do objeto: a lesbianidade em si – em uma sociedade heteronormativa, falocêntrica e patriarcal
a existência de mulheres lésbicas e a produção de discursos destas constituem perigos ao
sistema vigente, pois não se trata apenas do dizer, mas sua relação com o poder e o desejo, sua
possibilidade de fazer existir o que quer que seja e assim, seus procedimentos de exclusão,
interdição, rejeição “que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e
reconduzem; enfim, que não se exercem sem pressão, nem sem ao menos uma parte de
violência.” (FOUCAULT, 1996, p. 14). E os dados compilados pelo Dossiê apresentam que
não se trata de violência mínima para fazer calar: De 2014 até o fechamento do dossiê o
número de mortes vem crescendo.

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“Em 2017, foram registradas 54 mortes de lésbicas no Brasil (...) Houve um aumento
de mais de 237% no número de casos de 2014 para 2017 e de 80% em relação ao
mesmo período do ano anterior. Foi o maior número de casos registrados em toda a
história das pesquisas lesbocídios no Brasil. Foi também o maior número de casos de
suicídios registrados em toda a história das pesquisas lesbocídios no Brasil, 19 casos
só neste ano, representando 32% dos suicídios de toda a comunidade LGBT+ no
Brasil, no ano.” (PERES; SOARES; DIAS, 2018, p.62)

As autoras apontam que a formulação do conceito de lesbocídio, assim como a


utilização do termo feminicídio, são “formas estratégicas de enfrentamento às violências que
são praticadas contra as mulheres e contra as lésbicas” (PERES; SOARES; DIAS, 2018,
p.16), já que a utilização de termos específico auxiliam na identificação e na universalização
dos temas, colocando-os em circulação, conferindo-lhes existência e, ao esquadrinhá-lo em
um local autorizado a falar, autenticado pela ciência como verdade por sujeitos autorizados a
fazê-lo – pesquisadoras, mestras e doutoras – possibilita fazer pressão ao poder público, como
ocorreu para a aprovação da lei do feminicídio, e como pontua Foucault (1996, p.18) “essa
vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a
exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade - uma espécie de
pressão e como que um poder de coerção”. Nesse sentido, o desenvolvimento de trabalhos
como o Dossiê, assentados sobre os saberes sociológico, psicológicos, históricos, do direito e
da ética quanto disciplinas, possibilitam atingir seus objetivos de se fazer vistas e ouvidas.

Para quem fala?

Visto que o objetivo desse dossiê é de conceituar o lesbocídio, apresentar dados


estatísticos, fundamentados a partir de saberes variados e legitimados pela ciência, para atrair
a atenção do Estado e dos poderes públicos, ao fazê-lo a partir da via institucional da
universidade, tem a possibilidade de acesso ao Direito, que, inicialmente buscou suporte e
justificativas nas teorias do direito mas, segundo Foucault (1996, p. 19) “a partir do século
XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra
da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de
verdade.”. Para tal, o dossiê compila não só a definição geral do lesbocídio, “como morte de
lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e discriminação contra a existência
lésbica” (PERES; SOARES; DIAS, 2018, p.19), mas também o respalda a partir de
tipificações já reconhecidas pelo direito como o feminicídio – um tipo de violência específico
contra mulheres, e não mais meramente homicídio – e como o crime de ódio – violências
motivadas por preconceito. Vai além, ao esquadrinhar as especificidades das motivações que

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levam às práticas do lesbocídio: lesbocídios declarados; lesbocídios como demonstração de


virilidades ultrajadas; lesbocídios cometidos por parentes homens; homens conhecidos sem
vínculo afetivo-sexual ou consanguíneo; assassinos sem conexão com a vítima; suicídio ou
crime de ódio coletivo; as lésbicas, a multiplicidade de opressões e o tráfico de drogas; o
lesbocídio como expressão de desvalorização das lésbicas. Não se fará a explanação de cada
uma dessas categorias, visto que as mesmas se encontram disponíveis no Dossiê, porém a
apresentação destas de maneira geral ilustra a tentativa das autoras de aproximação à teoria
jurídica, no trabalho de catalogação e especificação das motivações para o crime de
lesbocídio, e também da prática policial, posto que os crimes de ódio com características
lesbocidas acabam sendo
“sistematicamente ignorados e invisibilizados, inclusive por haver
um desconhecimento, por parte da polícia, de que este tipo de crime ocorre,
na forma como ocorre. Tal falha sistemática nas investigações comprova a
demanda por treinamentos dos investigadores com relação
à ampliação do conhecimento sobre direitos lésbicos e outras temáticas”
(PERES; SOARES; DIAS, 2018, p.34)

Compreende-se, por fim, o esforço das autoras em delinear o fenômeno do lesbocídio,


dotá-lo de motivação e especificidades, construí-lo assim como um fato a ser reconhecido
pelo direito quanto uma demanda urgente, chamar atenção do Estado e dos poderes públicos.
E se Foucault (1996, p.8) nos questiona: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as
pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o
perigo?”, esse dossiê nos ajuda a responder e perceber a realidade material da palavra, na
potência de poder dizer.

Considerações finais

Os resultados obtidos apontam que os discursos no Dossiê se caracterizam por um


esforço de configurar o crime de lesbocídio quanto tal, visto que a tipificação de crimes –
como ocorreu com o feminicídio - demanda grande esforço da sociedade civil e organizações
sociais em pressionar os órgãos governamentais e judiciários competentes. Assim, a utilização
de termos como lesbocídio apresenta-se como uma estratégia de enfrentamento à
invisibilidade da população lésbica e da violência praticada contra essa comunidade, além da
construção do fenômeno do lesbocídio em si. Com a utilização do termo, fomentado pelos
dados coletados – ainda que não oficiais (o que não deixa de ter sua relevância para a
tipificação e visibilidade do crime em tela) – e pelos discursos agenciados e legitimados pelo
saber-poder no Dossiê, assiste-se uma poderosa ação política – a de dar nome às coisas, nesse

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caso, um crime – de tal modo que, para além dos poderes constituídos -governos, magistrados
e legislativo - mas a sociedade como um todo, se veem obrigados a reconhecer o fenômeno,
outrora invisível e ignorado, agora evidente e problemático.

Referências

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos IV Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2010.

PERES, Milena Cristina Carneiro Peres; SOARES, Suane Felippe; DIAS, Maria Clara.
Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018.

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Mídia, patriarcado, capitalismo e perpetuação da cultura do estupro

Bruna Santiago Franchini1

Resumo: A cultura do estupro, resumidamente, é um “complexo de crenças que encoraja a


agressão sexual pelos homens e apoia a violência contra as mulheres” (BUCHWALD et al,
1993), de forma que se utiliza a violência sexual e a objetificação, principalmente, em prol da
manutenção da supremacia masculina e das exploração e subordinação femininas. Uma das
formas pelas quais esse fenômeno se manifesta é por meio de violência simbólica:
representações misóginas de mulheres, reduzindo-as a meros objetos sexuais e/ou reforçando
estereótipos de gênero (cuja existência, por si só, já é uma violência).
A mídia, por sua vez, é uma das instituições sociais por meio das quais discursos e ideologias
podem ser veiculados (THOMPSON, 1998; BRITTOS E GASTALDO, 2006). Sabendo desse
potencial de difusão e de criação de uma hegemonia, grupos socialmente dominantes
utilizam-na em busca da concretização de uma hegemonia cultural que garanta sua própria
manutenção no poder (ANGELI, 2011); e uma vez que não há regulamentação estatal para
garantir a distribuição democrática de espaços midiáticos entre os diversos setores e as
diversas vozes da população (Barbosa, 2009), o resultado é a veiculação maciça
exclusivamente de ideologias de camadas dominantes da sociedade, que, naturalmente,
buscam naturalizar e institucionalizar sua própria liderança, tanto por meio de sua afirmação
quanto por meio da alienação das camadas dominadas. Sendo nossa sociedade capitalista,
machista e racista, dentre outros predicativos, então o discurso mainstream veiculado por uma
mídia não democrática como a nossa refletirá essas estruturas de poder – inclusive como
estratégia de manutenção da supremacia masculina burguesa.
Consequente e logicamente, uma das formas de se combater a reprodução da cultura do
estupro é justamente a ocupação desses espaços: a democratização das mídias (DOS
SANTOS, 2009); porque, com isso, a tendência é a criação e a reprodução de discursos
heterogêneos que busquem retratar, representar e dar voz de fato à realidade e aos discursos
de diversos segmentos sociais (RODRIGUES, 2009), e que não simplesmente intencionem a
perpetuação de um poder.

Palavras-chaves: mídia; patriarcado; capitalismo.

Introdução

Em 2016, as pesquisas no Google sobre a expressão “cultura do estupro”


dispararam no Brasil. O motivo: uma adolescente fora vítima de um estupro coletivo (dentre
cujos responsáveis estava inclusive seu namorado à época) no estado do Rio de Janeiro. Mas
pior do que o próprio acontecimento foi sua reverberação: um vídeo do estupro foi postado na
internet e incessantemente compartilhado, sem qualquer escrúpulo ou preocupação com a

1
Formada pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP/USP), bacharela; atualmente, aluna especial em
duas disciplinas do Programa de Pós-gradução em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara (FCLAR/Unesp) e aluna da especialização em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo
Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO). bruna.franchini@usp.br

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vítima; inclusive, muitas vezes, tal compartilhamento vinha acompanhado de críticas à sua
idoneidade. Já não bastasse o trauma sofrido, a sobrevivente ainda tinha de lidar com milhares
de pessoas culpando-a pelo acontecido – automaticamente desresponsabilizando os próprios
estupradores.
Por que isso acontece? Por que a vítima de uma violência sexual é quase sempre
culpabilizada, seja ela jovem, idosa, branca, negra, rica ou pobre? Qual é a lógica por trás
desse raciocínio de que a violência sexual cometida por homens não é tão errada assim? E
qual é o papel desempenhado pela mídia e pela publicidade dentro desse fenômeno que
convencionamos chamar “cultura do estupro”?

Cultura do estupro: conceito

A compreensão do conceito de “cultura do estupro” e de suas manifestações na


realidade material exige o resgate de alguns importantes conceitos e teorias feministas a
respeito da origem da opressão da mulher (e, consequentemente, da supremacia masculina).
Façamos uma breve revisão bibliográfica, começando por Beauvoir:
A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em
relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o
Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 1949, a, p. 10)

A filósofa existencialista com isso quer dizer que a mulher se constitui enquanto
negação do que o homem é – ou melhor, o homem se constitui enquanto ser humano; a
mulher, enquanto fêmea. Ao homem são atribuídas as características de um ser humano, ao
ponto de a palavra “homem” ser seu sinônimo; enquanto que à mulher resta o sexo, a
animalidade (não à toa ao longo da história mulheres foram por vezes consideradas homens
defeituosos).
Eventualmente surgiria o embate: aquele que consideramos “Outro”, por sua vez,
também se considera “Um” e nos considera “Outros”, e disso surge a reciprocidade, a
conscientização de que, em dada relação, é-se Um e Outro ao mesmo tempo. Porém, não foi o
que aconteceu na relação entre os sexos: a mulher não se reconheceu, nunca, enquanto Um:
ela se sujeitou a esse ponto de vista alheio a ela mesma (BEAUVOIR, 1949, a). Essa sujeição
é fruto da própria construção social do que significa ser mulher, como a autora depois
exploraria no volume II, iniciado pela célebre frase:
NINGUÉM nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto

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intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.


Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro. (BEAUVOIR, 1949, b, p. 9)

Esse é um fato curioso para a existencialista, pois se trata de uma contraintuição:


“Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, sente-a como uma necessidade
indefinida de se transcender” (BEAUVOIR, 1949, a, p. 23). Essa transcendência, em oposição
à imanência, é, em si, a busca pela existência plena, que só se possibilita pelo aproveitamento
(e pela presença) de possibilidades materiais de realização pessoal e, naturalmente, de
liberdade para que isso ocorra. A esse processo de superação da imanência para o alcance da
transcendência – movimento circular, que ocorre, ou deveria ocorrer, por toda a vida –
chamamos retorno. E, continua a filósofa, “[s]e a mulher se enxerga como o inessencial que
nunca retorna ao essencial é porque não opera, ela própria, esse retorno” (BEAUVOIR, 1949,
a, p. 13).
Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo,
como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se
num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-
se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será
perpètuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.

A mulher não opera esse retorno justamente por conta de forças alheias a sua
vontade que se beneficiam dessa manutenção da mulher em sua imanência – o próprio
patriarcado. E a limitação existencial da mulher à condição de “Outro” – ou, em outros
termos, a queda da transcendência na imanência – ocorre a “a degradação da existência em
si”, a impossibilidade de realização da mulher em todas as suas possibilidades. Ela
permanece, então, no status (ainda filosófico) de coisa. No entanto, Beauvoir não se
aprofunda – nem intencionava fazê-lo – nas origens materiais do patriarcado e em como esse
sistema se apresentou ao longo da história, buscando especular a origem da dominação
masculina apenas como guia para compreensão da condição feminina atual (e o que se pode
fazer para revertê-la).
Uma análise profunda desse sistema chamado patriarcado viria depois. Gerda
Lerner, em 1986, publica um extenso trabalho de antropologia – The creation of patriarchy –
fruto de anos de pesquisa a respeito justamente das origens e da criação do patriarcado.
Analisando como se davam as relações sociais por meio de documentos históricos, Lerner
reafirma o que a antropologia feminista já vinha falando havia tempo: a dominação masculina
não poderia ser natural, uma vez que, se o fosse, seria universal (LERNER, 1986, p. 7); e a
antropologia foi feliz em encontrar exemplos de sociedade em que a divisão dos sexos não

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colocava um em superioridade ao outro – e que, ainda que houvesse uma divisão sexual do
trabalho, ambos os sexos atuavam reciprocamente com a busca mútua de manutenção daquela
sociedade.
Ela vai além ao refutar a hipótese de Engels de que a dominação da mulher havia
se iniciado com o surgimento da propriedade privada. Lerner demonstra, nos capítulos um e
dois, que a exploração das capacidades sexual e reprodutiva das mulheres pelos homens
ocorreu antes do surgimento da propriedade privada e da divisão da sociedade em classes. Nas
formas mais arcaicas de sociedade, a mulher era utilizada pelo patriarca da família como
moeda de troca (tanto para fazer alianças quanto para evitar conflitos), mas também porque
mais mulheres em uma sociedade significava mais crianças (consequentemente, mais força de
trabalho). Assim, mulheres eram trocadas e tinham valor da mesma forma que terra e outros
bens materiais. Se um grupo ou civilização, por outro lado, atacava e destruía outro, as
mulheres não eram mortas, como homens, mas mantidas e escravizadas – e sua prole com o
patriarca era de propriedade deste, (LERNER, 1986, pp. 45-46, 212-214). Lerner diz que a
classe não é uma construção social separada do gênero; a classe é expressa em termos de
gênero (LERNER, 1986, p. 213).
Ela vai adiante e mostra como ao longo da história a mulher foi feita de objeto
(dotada de valor econômico) devido a suas capacidades sexuais e reprodutivas. Primeiro
enquanto escrava, depois por meio de casamentos arranjados, depois enquanto esposa; sempre
houve um papel a ser desempenhado pela mulher.
Se o patriarcado, da forma como descrito por Lerner, é o sistema caracterizado
pela supremacia masculina (e pela correspondente subordinação feminina), as relações sociais
de sexo são a esfera onde a ideologia patriarcal se manifesta:
A constância dos sexos e a constância da escravidão provêm da mesma
crença, e, como não há escravos sem mestres, não há mulheres sem homens.
A ideologia da diferença sexual funciona como censura em nossa cultura
quando mascara, com base na natureza, a oposição social entre homens e
mulheres. Masculino/feminino, homem/mulher são categorias que servem
para esconder o fato de que diferenças sociais sempre pertencem a uma
ordem econômica, política e ideológica. [...] Porque não há sexo. Não há
nada além de um sexo que é oprimido e um sexo que oprime. É a opressão
que cria o sexo, e não o contrário. O contrário seria dizer que o sexo cria a
opressão, ou dizer que a causa (origem) da opressão pode ser encontrada no
próprio sexo, em uma divisão natural de sexos que pré-existe à (ou que
existe fora da) sociedade. (tradução livre) (WITTIG, 1996, p. 25)

Kathleen Gough, no ensaio The Origin of the Family, também analisa o poder
masculino, desta vez, enquanto materializado no patriarcado por meio da família e do
casamento. São apontadas oito características fundamentais deste poder manifestadas tanto

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em sociedades arcaicas quanto em contemporâneas: (i) negar a sexualidade da mulher; (ii)


forçá-la à relação com o homem; (iii) controlar ou explorar o trabalho da mulher a fim de
controlar sua produção; (iv) controlar a própria mulher ou afastá-la de suas crianças; (v)
confiná-la fisicamente e a privar de seus movimentos; (vi) usá-la como objetos em transações
masculinas; (vii) restringir sua criatividade; e (viii) retirá-la de amplas áreas de conhecimento
e de realizações culturais da sociedade (GOUGH, 1975, pp. 60-70). Essas são e foram as
formas pelas quais as mulheres foram mantidas sob controle dos homens – controle
especialmente brutal quando se percebe que é feito não só por meio de violência física (o ato
sexual forçoso e a confinação), mas também psicológica (a restrição do trabalho intelectual e
a limitação do convívio social).
Novamente, retornando a Lerner e Beauvoir, ressalta-se que a “colaboração” da
mulher é caráter essencial da manutenção desse sistema, uma vez que o patriarcado não
somente nega à mulher sua humanidade, mas faz com que ela acredite sequer ser merecedora
de tal humanidade – a mulher internaliza essa violência: a mulher não só é controlada pelo
homem, como é socializada para não entender esse controle como uma violência, mas como
parte da vivência normal em sociedade e em relacionamentos heterossexuais, mantendo-se,
ainda que em erro, “voluntariamente” atada a seu opressor e sem questionar sua posição de
subordinação.
Por fim, analisando a gênese dos direitos civis e políticos, Pateman, em The
sexual contract (1988), busca revelar que por trás de todo contrato social (na concepção
sociológica) existe um contrato sexual, de dominação de um sexo pelo outro, anterior:
O contrato original é um pacto sócio-sexual, mas a história do contrato
sexual tem sido reprimida. Relatos padrões da teoria do contrato social não
discutem a história toda e teóricos contratualistas contemporâneos não
fornecem nenhuma informação de que metade do acordo está faltando. A
história do contrato sexual também é sobre a gênese dos direitos políticos, e
explica por que o exercício do direito é legítimo – mas essa história é sobre o
direito político como um direito patriarcal ou sexual, o poder que homens
exercem sobre mulheres. A metade faltante da história consta como uma
forma especificamente moderna de patriarcado foi estabelecida. A nova
sociedade civil criada por meio do contrato original é uma ordem social
patriarcal. (tradução livre) (PATEMAN, 1988, p. 1)

O contrato sexual a que ela se refere – da dominação masculina – também tem


fundamento na ideia de que o homem é um ser humano; portanto, apto, portador e merecedor
de direitos (no contexto de elaboração das teorias contratualistas, direitos políticos e civis),
em oposição à mulher – o contrato sexual, portanto, é reflexo (ou, nas palavras de Pateman, é
a forma de constituição) do próprio patriarcado:

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A dominação dos homens sobre as mulheres, e o direito dos homens de


igualmente acessar as mulheres, é posta em pauta na elaboração do pacto
original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é
uma história de sujeição. O contrato original constitui ambas liberdade e
dominação. A liberdade dos homens e a sujeição das mulheres são criadas
por meio do contrato original – e o caráter da liberdade civil não pode ser
compreendido sem a metade faltante da história que revela como o direito
patriarcal do s homens sobre as mulheres é estabelecido via contrato. A
liberdade civil não é universal. A liberdade civil é um atributo masculino e
depende do direito patriarcal. [...] O pacto original é um contrato tanto
sexual quanto social; é sexual no sentido patriarcal – ou seja, o contrato
estabelece o direito político do homem sobre a mulher – e também sexual no
sentido de estabelecer uma ordem no acesso dos homens aos corpos das
mulheres. O contrato original cria o que hei de chamar, assim como
Adrienne Rich, “a lei do direito sexual masculino”. O contrato está longe de
ser oposto ao patriarcado; contrato é o meio pelo qual o patriarcado moderno
se constitui. (tradução livre) (PATEMAN, 1988, p. 2)

Assim, sobre a violência característica das relações entre homens e mulheres e


sobre a ideologia de superioridade masculina, temos, em resumo: que as mulheres foram e são
socializadas para se submeterem à violência masculina; que os homens, por sua vez, foram e
são socializados para exercer poder sobre elas; e que o que garante a subsistência da
supremacia masculina são seus próprios efeitos e suas próprias construções, pois se trata de
um sistema que se retroalimenta.
Mas onde entra, nessa história, o estupro? Por que violência sexual?
Susan Brownmiller introduz a (atualmente pacífica) ideia de que o estupro e o ato
de estuprar são sobre poder, e não sobre sexo – “all rape is na exercise in power”
(BROWNMILLER, 1975, p. 256). O homem sente que possui o direito de estuprar a mulher
por conta do poder que a sociedade lhe confere sobre ela (SAFFIOTI, 1987, p. 18). Nos
primórdios da sociedade, era o ato perante o qual o homem tomava posse da mulher:
Parece eminentemente sensível levantar a hipótese de que a captura violenta
e o estupro de uma mulher por um homem levou inicialmente ao
estabelecimento de um casal-protetorado rudimentar e algum tempo depois à
solidificação madura do poder masculino, o patriarcado. Como a primeira
aquisição permanente do homem, seu primeiro pedaço de propriedade real, a
mulher foi, de fato, a pedra fundante, o pilar da “casa do pai”. A extensão
forçada do homem à sua companheira, e, mais tarde, à sua prole foi o
começo de seu conceito de propriedade. Conceitos de hierarquia, escravidão
e propriedade privada surgiram após, e somente puderam ser afirmados com,
a subjugação inicial das mulheres. (tradução livre) (BROWNMILLER, 1988,
p. 18-19)

A autora exemplifica como em diversas sociedades e em seus códigos legais


(Hebreus, Mesopotâmicos, Judeus, a própria Bíblia – BROWNMILLER, 1988, p. 16-30) a
mulher era vista não como um ser humano, mas como propriedade; e a violação da dignidade

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sexual da mulher era uma questão de violação de propriedade masculina (BROWNMILLER,


1988, p. 19). Ela cita, ainda, a banalidade do estupro de escravas e do uso do estupro como
arma, instrumento de terror em guerras. Nessas duas situações, o estupro opera numa situação
de vantagem em que a vítima basicamente não tem chance de corrigir ou de se queixa dessa
injustiça. Só que o estupro também acontece fora de uma situação de violência física:
Mas estupradores podem também operar dentro de um ambiente emocional
ou dentro de um relacionamento de dependência que provê uma estrutura
hierárquica e autoritária própria que enfraquece a resistência da vítima,
distorce sua perspectiva e confunde sua vontade. (tradução livre)
(BROWNMILLER, 1988, p. 256)

A forma como a mulher foi socializada ao longo da história e como somos ainda
hoje criadas contribui para a formatação de um contexto propício à redução de nossa
resistência frente ao estupro (para usar as palavras da autora). Mais adiante, ela continua:
Mulheres são treinadas para serem vítimas de estupro. O simples
aprendizado da palavra “estupro” já é uma tomada de instruções sobre a
relação de poder entre homens e mulheres. [...] (tradução livre)
(BROWNMILLER, 1988, p. 309)

Mas, para além de sermos treinadas a sermos vítimas, a nossa subordinação –


especialmente a sexual – é erotizada, a própria hierarquia entre os gêneros é erotizada; e, mais
do que isso, são capitalizadas. A sexualidade do homem é moldada por essa erotização da
violência, e a pornografia e a prostituição são manifestações práticas dessa capitalização
(STOLTENBERG, 1993, p. 69-70; GIOBBE, 1990, p. 69-72).
Portanto, até agora temos que, social e historicamente, a mulher (i) desde as
sociedades mais arcaicas teve suas capacidades sexual e reprodutiva exploradas e reificadas,
basicamente tratadas como commodity, assim como a terra; (ii) por conta de séculos de
exploração e de socialização para a passividade e a subalternidade, inculcando nas próprias
mulheres que era isso que elas mereciam, a mulher perdeu, individual e coletivamente, o
senso de própria humanidade; (iii) consequentemente, não é reconhecida enquanto ser
humano nem filosófica nem politicamente, uma vez que essa condição é exclusiva dos seres
humanos adultos do sexo masculino; (iv) foi excluída de todas as esferas de direitos e
poderes, uma vez que todas as instituições emergidas no patriarcado surgiram também com o
propósito de garantir e manter a supremacia masculina; (v) é mantida, mediante um processo
de intimidação, em posição de subordinação e em estado de medo constante, dentre outros
fatores, pela violência sexual exercida pelos homens; (vi) é ensinada a almejar estar ao lado
de seu opressor, em um relacionamento em moldes que mantenham sua subordinação; e (vii)
tem sua subordinação erotizada e capitalizada, ao passo que sua emancipação é desdenhada e

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ridicularizada. Por fim: esse sistema de dominação foi se institucionalizando ao longo da


história para garantir sua perpetuação, e segue, até hoje, inventando e reinventando novas
formas de manter a mulher em posição de subordinação, conforme as formas antigas vão
sendo superadas.
Se até o século passado, por exemplo, o próprio sistema de leis determinava a
inferioridade da mulher em relação ao homem em direitos e deveres em diversas sociedades, a
tendência mundial é de equiparação entre os sexos; assim, pelo menos consta no texto das leis
que homens e mulheres são iguais (cai por terra o argumento da desigualdade jurídica). Mais:
se até o século passado as mulheres dependiam de homens (o pai ou o marido) para seu
sustento material, depois do advento das guerras mundiais (que forçaram as mulheres para
fora de casa pelo simples fato de que os homens estavam no front) a mulher adentrou no
mercado de trabalho, vislumbrando, com isso, a possibilidade de autossuficiência e de cortar
seus laços de dependência material com homens. Se até o século passado as mulheres tinham
pouca ou nenhuma liberdade sexual (uma vez que a liberdade sexual feminina era associada à
falta de caráter e minava as possibilidades de ascensão social feminina, que se dava
majoritariamente pelo casamento), com a eclosão da chamada “revolução sexual” e a
popularização da pílula anticoncepcional a mulher agora vislumbrava a possibilidade de viver
sua vida sexual não só com finalidades reprodutivas e familiares.
De fato, todas essas “conquistas” (muito entre aspas, porque meramente
paliativas) geraram na mulher do século XXI a sensação de liberdade e de potência. Saffioti
cita dados de uma pesquisa do IBGE em que se perguntava às mulheres “como é ser mulher
hoje?” e demonstra quais conquistas as mulheres valoriza(va)m: grande parte das mulheres
ressaltou a importância da inserção do mercado de trabalho para garantia de sua
independência (39%) e outra grande parte ressaltou a liberdade de tomar decisões e de agir
conforme seus desejos (33%). Poucas mulheres (8%) mencionaram a conquista de direitos
políticos (SAFFIOTI, 2004, p. 43).
E, ainda assim – apesar de todas essas “conquistas”, apesar de a própria mulher
brasileira moderna acreditar em suas agência e liberdade – a supremacia continua, porque as
desigualdades materiais continuam, porque a ideologia de superioridade masculina continua,
porque a violência sexual continua. E todas as formas de violência sexual – estupro, assédio,
assédio sexual e violência sexual contra crianças – resistem para lembrar as mulheres de sua
subordinação; para, utilizando desse processo de intimidação, mantê-las, como disse
Brownmiller, em um estado de medo constante (BROWNMILLER, 1988, p. 15), para, assim,
manter a supremacia masculina e o sistema patriarcal.

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É nesse contexto de manutenção da subordinação feminina mediante a violência


sexual – o estupro, principalmente – que podemos falar em uma cultura do estupro. A
definição a seguir, que serve de base a este trabalho, resume de forma sucinta e didática o que
é uma “cultura do estupro” e em que tipo de ideologia ela se assenta (g.n.):
O QUE É UMA CULTURA DO ESTUPRO? É um complexo de crenças
que encoraja a agressão sexual pelos homens e apóia a violência contra
as mulheres. É uma sociedade em que a violência é vista como sensual e a
sexualidade é vista como violenta. Em uma cultura do estupro, mulheres
recebem um continuum de ameaça de violência que varia de insinuações
sexuais ao toque sexual ao próprio estupro. Uma cultura do estupro tolera o
terrorismo físico e emocional contra as mulheres e os apresenta como a
norma.
Em uma cultura do estupro, ambos homens e mulheres presume que a
violência sexual é um fato da vida, tão inevitável como a morte e como
impostos. Essa violência, entretanto, não é nem biológica nem divinamente
ordenada. Muito do que aceitamos como inevitável é, na verdade, a
expressão de valores e de atitudes que podem mudar. (tradução livre)
(BUCHWALD et al, 1993, preâmbulo)

Mídia e cultura do estupro


3.1 Mídia e poder
Partiremos do princípio de que toda representação traz consigo uma carga
simbólica, uma ideia que se presta a fortalecer ou reivindicar determinados valores. É o que
nos explica Uzêda da Cruz em seu trabalho de análise de propagandas de cerveja (g.n.):
[...] as representações sociais são imagens construídas sobre o real,
pontos de vista que são elaborados a partir de uma determinada posição no
espaço social. A representação de um grupo social nada mais é do que uma
dentre tantas representações sobre a realidade. Por meio das instituições
(mídia, Estado, escola), são construídas e transmitidas certas
representações sobre o que é ser homem e ser mulher na sociedade que
são reiteradas nos discursos e percebidas como realidade, pelo indivíduo,
formando, assim, ou se propondo a formar, um discurso dominante sobre
aquela temática. As representações são socialmente produzidas e partilhadas
dentro de um contexto histórico específico, são constituídas a partir da
experiência, das informações e dos modelos de pensamento recebidos,
transmitidos e construídos por meio da tradição, da educação, da mídia, da
vida cotidiana, enfim, da cultura. (CRUZ, 2008)

Assim, as representações sociais realizadas pelas instituições – em especial, pela


mídia – se baseiam em discursos já presentes na sociedade; e, ao replicá-los, esses discursos
são reforçados. A autora, no excerto acima, não mencionou a questão do poder, que julgamos
fundamental: a escolha da forma como se vão representar determinados tipos sociais não é ao
acaso; em uma cultura do estupro, ela se presta justamente a naturalizar e a neutralizar a
violência contra a mulher.

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A respeito da doutrinação feita pela mídia, a autora continua (g.n.):


A mídia, segundo Scott (1995), é uma dimensão organizacional, pois
traduz o mundo simbólico em normas e valores, mobilizando o desejo do
telespectador para certos modos de pensamento, comportamento e
modelos que servem para a construção ou desconstrução dos valores
tradicionais e dominantes. É uma instituição social que funciona como um
espelho, refletindo os conceitos e as ideias que estão inseridas no cotidiano
social, produzindo discursos que fazem parte do imaginário coletivo,
permeando e invadindo as nossas vidas, na medida em que existe um
transbordamento do mundo midiático, deixando transparecer uma nova
forma de percepção e interpretação da realidade. Desse modo, a produção
dos comerciais é alimentada por essas imagens que circulam na sociedade
contemporânea. (CRUZ, 2008)

No mesmo sentido ensinam, respectivamente, Mota-Ribeiro e Sandra de Souza


Machado – de que a mídia não é mero espelho; e que ao reproduzir determinadas imagens ela
contribui para reforçá-las (g.n.):
A importância da publicidade enquanto discurso social advém do facto de
ela não apenas reflectir, espelhar, modelos socialmente aprovados, mas
também contribuir para a incorporação de valores e tendências sociais.
(MOTA-RIBEIRO, 2003)
As más representações, os silenciamentos, as omissões, as aculturações e os
estereótipos de gênero, nos Meios de Comunicação de Massa (MCM) –
Mass Media –, terminam por fomentar, retroalimentar e perpetuar papéis
sociais arcaicos, machistas e misóginos, ao normatizar as violências
simbólicas e/ou físicas contra as mulheres. Especialmente, no que tange a
indústria de entretenimento que engloba a imprensa mainstream e as
produções audiovisuais dos maiores grupos midiáticos brasileiros.
(MACHADO, 2017)

Erving Goffman dá a isso o nome de “hiper-ritualização”:


By and large, advertisers do not create the ritualized expressions they
employ; they seem to draw upon the same corpus of displays, the same ritual
idiom, that is the resource of all o fus who participate in social situations,
and to the same end: the rendering of glimpsed action readable. If anything,
advertisers conventionalize our conventions, stylize what is already a
stylization, make frivolous use of what is already something considerably cut
off from contextual controls. Their hype is hyper-ritualization. (GOFFMAN,
1979)

Ana Veloso afirma que a mídia constitui “sustentáculos para o exercício do poder
pelas elites”, uma vez que influencia a “produção mental” e é responsável pela “massificação
das ideias de uma época” (VELOSO, 2014). É nesse sentido – sobre a questão da mídia e
reprodução de discursos ligados à manutenção do poder – que Brittos e Gastaldo afirmam:
[...] o ato de enunciação possui uma dimensão sociológica, na medida em
que toda ação social é um ato de comunicação. Assim, quando alguém fala,
o faz de algum lugar, com certa autoridade e dirigindo-se a alguém. Todas
estas instâncias do ato de enunciação possuem uma dimensão social, que
tornam o discurso um instrumento de poder. Este poder se manifesta nas

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relações de força estabelecidas entre grupos que coexistem em uma mesma


sociedade, cada qual manejando uma competência linguística que lhe é
correspondente. Na nossa sociedade, o poder de definição da realidade
presente no ato de enunciação está em grande parte localizado no discurso da
mídia, de um modo mais sutil e simbólico no discurso publicitário e de um
modo mais explícito no chamado discurso jornalístico. (BRITTOS E
GASTALDO, 2006)

Thompson explora mais a fundo essa relação entre discurso e poder, que ele
define como
a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a capacidade
de intervir no curso dos acontecimentos e em suas consequências. No
exercício do poder, os indivíduos empregam os recursos que lhe são
disponíveis; recursos são os meios que lhes possibilitam alcançar
efetivamente seus objetivos e interesses. [...] Há recursos controlados
pessoalmente, e há também recursos acumulados dentro de organizações
institucionais, que são bases importantes para o exercício do poder.
Indivíduos que ocupam posições dominantes dentro de grandes instituições
podem dispor de vastos recursos que os tornam capazes de tomar decisões e
perseguir objetivos que têm consequências de longo alcance. (THOMPSON,
1998)

O autor adota a distinção proposta por Michael Mann das quatro formas de poder:
econômico, político, coercitivo e simbólico. Essas distinções, de caráter analítico, relacionam
cada poder a uma atividade humana específica e a seus recursos específicos. De acordo com a
natureza de cada poder, ele é exercido, majoritariamente, por determinadas instituições ou
grupos sociais.
O poder simbólico ou cultural nasce da atividade de produção, transmissão e
recepção do significado das formas simbólicas, estando intimamente ligado, portanto, à
produção de conhecimento, à comunicação e à interpretação. Os seres humanos estão
constantemente em processo de comunicação e em atividades de expressão de si e de
interpretação dos símbolos utilizados pelos outros. É nesse processo que as instituições que
detêm o poder simbólico vão atuar: elas têm a capacidade de valorar acontecimentos, ações,
fenômenos e outras instituições.
As relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de
poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou
simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas
relações e que, com o dom ou o potlatch, podem acumular poder simbólico.
É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de
conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de
instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem
para assegurar a dominação de uma classe sobre outra. (BOURDIEU, 2000)

O caráter de dominação do discurso midiático é extremamente relevante para este


trabalho. Bourdieu, como dito acima, apontou o caráter de manutenção da dominação de uma

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classe sobre a outra – no conceito marxista de classe – do discurso midiático. Mas, mais do
que reproduzir (e produzir) conteúdos específicos de uma classe social, a mídia hegemônica
também enxerga etnia, religião, idade e, consequentemente, sexo. Mesmo que essas categorias
não estejam inseridas na teoria original de Bourdieu, a realidade material acerca das pessoas
por trás da produção de mensagens na mídia já predetermina o tipo de conteúdo que vai ser
produzido – se só constam homens brancos e heterossexuais na produção de conteúdo X, esse
conteúdo vai ser marcado pelo olhar de homens brancos e heterossexuais, por exemplo.
A mídia, portanto, é um centro de poder simbólico, uma vez que não só produz e
veicula mensagens e informações, como também faz a mediação da informação – que, por si,
é uma violência simbólica, uma vez que age como “filtro”, impedindo que se reconheça o
conteúdo total da informação e lhe impondo sentidos predeterminados (OLIVEIRA, 2009).
Os meios de comunicação, assim, seguem uma agenda política e ideológica:
[os meios de comunicação] possuem um mecanismo ideológico próprio. Ao
selecionar, ordenar e enunciar os acontecimentos da história, os meios de
comunicação apresentam-se como um lugar de tensão em que operam forças
que levam tanto ao enfraquecimento da memória e ao esquecimento, quanto
à sua estabilização. [...] À proporção que associam comportamentos, valores,
atitudes a um ou a outro gênero, as representações midiáticas ajudam a
formular o que reconhecemos feminilidade e masculinidade, estando
imbuídas, portanto, as relações de poder entre os gêneros, reiterando e
construindo desigualdades. A mídia forma opinião, uma opinião deformada
sobre a imagem da mulher, criando uma falsa realidade sobre ela.
(CHAVES, 2015)

Assim, Ana Veloso resume a maior dificuldade de se estudar a questão feminina


na publicidade (g.n.):
[...] analisar a posição feminina nesse campo significa refletir sobre como
ampliar o som das vozes das mulheres em um país onde poucos grupos
controlam a produção de conteúdo em um mercado que não respeita
legislação vigente, e onde parlamentares, grupos empresariais e religiosos
operam concessões de rádio e televisão quase sem nenhuma regulação pelo
Estado (inclusive com a inexistência de um órgão regulador para disciplinar
o setor da radiodifusão). Sendo assim, o Estado brasileiro permite o
crescimento do poder político e econômico das corporações de mídia que
operam em escala nacional. Mesmo no setor da publicidade, apesar da
existência deum organismo como o Conselho Nacional de Autorregulação
Publicitária (Conar), os abusos são recorrentes, sem que o Estado e a
sociedade tenham condições efetivas de impedir que as mulheres sejam
frequentemente apresentadas como mercadorias e vejam seus direitos
humanos atacados pela veiculação de propagandas que reafirmam o
machismo, o sexismo e a violência simbólica contra o público feminino.
E, quando os grupos feministas organizados tentam alertar sobre os prejuízos
que alguns comerciais podem causar, geralmente têm suas reivindicações
rotuladas como censura à liberdade de criação publicitária. (VELOSO,
2014)

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Analisando esse fenômeno pelo viés marxista, Gramsci criou o conceito de


hegemonia cultural – uma liderança moral e intelectual, distinta do uso de força armada, e que
pode ser formada por consenso político-cultural por meio de instituições como igrejas, escolas
e a própria mídia. Esta cria um estado de dominação quando foca nas elites e nas ideologias
dominantes, consequentemente negligenciando grupos subordinados (ANGELI, 2011). A
mídia, ocupando seu lugar na superestrutura, portanto, tem a potência de controlar a
sociedade – ou seja, as forças produtivas e as relações de produção, ou infraestrutura – por
meio da imposição invisível da ideologia hegemônica dominante.

3.2 Cultura do estupro na mídia


A cultura do estupro aparece na mídia em suas mais diversas formas: programas
de televisão, filmes, novelas, revistas, jornais, publicidades, reportagens e vinhetas. Uma
breve busca com qualquer ferramenta de pesquisa na internet evidencia o quanto se tem
discutido a representação da mulher na mídia enquanto motor de manutenção – e de reiteração
– de estereótipos e papéis sociais de sexo.
Analisando documentários, pesquisas, entrevistas e trabalhos publicados sobre o
assunto, há convergência em vários pontos, destacando-se aquele de interesse a esse trabalho:
a mulher, muitas vezes, é tratada como um objeto (ou “pedaço de carne”), principalmente
sexual, e em situações degradantes ou que fazem alusão a abusos sexuais. Podemos tratar
desse fenômeno como a hipersexualização.
Em sua tese de doutoramento, Simone Freitas comparou os estereótipos de gênero
televisivos presentes nas televisões portuguesa e brasileira, analisando 245 anúncios
portugueses e 139 brasileiros. Os estereótipos femininos retratados foram agrupados em
quatro tipos: a rainha do lar (dona-de-casa, mãe, escrava doméstica), a mulher objeto (sempre
em anúncios voltados ao público masculino), a escrava da beleza (propagandas e anúncios de
cosméticos) e “a nova mulher” (multimulher – que trabalha, cuida da casa, das crianças, do
marido e ainda tem vida social), sendo que a representação dominante, segundo diversas
pesquisas, é a de mulher objeto (ARAÚJO, 2014).
Por sua vez, o documentário “Mujeres brasileñas: del icono mediático a la
realidad”, de 2004, traz uma análise da representação da mulher especificamente no cenário
brasileiro, destacando pontos como a necessidade de regulamentação da mídia como condição
para sua democratização, e os impactos dessa representação na subjetividade de meninas e
jovens mulheres ainda em formação. Levanta-se o questionamento: se a mídia o tempo todo
retrata somente um tipo de mulher (a loira, alta, branca, magra e heterossexual) bem-sucedida

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ou exaltada e esse “sucesso” está ligado à mercantilização de seu corpo, à sexualização


precoce de meninas e à sujeição à violência, então as meninas aprendem desde cedo a imitar
essa mulher, buscando a aceitação ou a ascensão social (MUJERES BRASILEÑAS..., 2014).
É bom ressaltar, ainda, que a hipersexualização da mulher não se resume à exibição de corpos
femininos nus ou seminus; mas como esses corpos são retratados em comparação a como os
corpos masculinos o são.
Longe de se sentirem representadas por isso, a maioria das mulheres hoje
reconhece a forma violenta com que seu sexo é retratado. Em pesquisa feita pelo Instituto
Patrícia Galvão em parceria com o DataPopular, 58% das mulheres entrevistadas entendem
que as propagandas na TV mostram a mulher como objeto sexual; e 84% concordam que o
corpo da mulher é usado para promover a venda de produtos nas propagandas na TV
(INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2013).
Se, como vimos, a “cultura do estupro” consiste na ideia de que mulheres são
meras propriedades masculinas – desprovidas de subjetividade, autonomia e humanidade –,
sendo, consequentemente, plenamente aceitável e justificável o acesso sexual não consentido
a seus corpos, a representação em massa de mulheres reduzidas a seus corpos ou a sua
sexualidade só reforça essa mesma cultura do estupro:
As propagandas, por exemplo, constroem e disseminam a imagem de uma
mulher sexualmente desejável e disponível a todo tipo de assédio. Ela é
identificada como aquilo a que todos os homens devem aspirar e possuir,
podendo ser incorporada pelas mulheres como aquilo que elas devem se
tornar para poder obter uma valorização social. [...] É importante ressaltar
que, em muitos casos, a propaganda, assim como diversos temas tratados em
programas de auditório, não somente promovem o machismo, mas também
fazem apologia a crimes de assédio, de estupro, de exposição pornográfica
pública e até de violência doméstica. (CHAVES, 2015)

Conclusão

A escolha da forma como se representa qualquer fenômeno, ideia ou classe de


pessoas não só é um espelho da própria situação desses entes na sociedade, como também a
reforça; e, considerando que a mídia, enquanto instituição que propaga e institui determinados
discursos, serve como locus de disputa de narrativas políticas, os grupos que dela dispõem
vão utilizá-la precisamente para propagar os discursos que lhe são interessantes – ou seja,
discursos que sirvam à manutenção de seu poder e do status quo. Em uma sociedade
capitalista, racista e misógina, por exemplo, discursos de apoio à libertação feminina e de
combate à desigualdade social e à marginalização de pessoas pretas serão, automaticamente,
considerados subversivos e deslegitimados, justamente porque buscam a inversão da ordem

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social. E, ainda, se os grupos explorados e em estado de dominação combatem de frente


discursos que lhes são prejudiciais, tentando inibir sua reprodução, então prontamente se
evoca o princípio da “liberdade de expressão” e se acusam esses grupos de “censura”.
A mídia, assim, representa a mulher da forma como o faz, naturalizando a
violência sexual, como agenda política: por meio da veiculação, reiteração e,
consequentemente, perpetuação de discursos misóginos, as mulheres continuam sendo
reduzidas a objetos sexuais, e esse estereótipo atua como barreira para que mulheres sejam
levadas a sério e tratadas com dignidade. Consequentemente, são paulatinamente excluídas de
espaços públicos e de poder – espaços que lhes garantiriam a agência para, por exemplo,
mudar a própria forma como são representadas. Portanto, o patriarcado detém o controle sobre
a mídia para, através dela, propagar, dentre outros, discursos que perpetuarão a naturalidade
da subordinação feminina – por meio, principalmente, da manutenção da cultura do estupro.
Uma possível – lógica – solução, assim, é exatamente a ocupação dos espaços e
instituições de formação e de reprodução de discursos sociais. Por meio dessa ocupação,
então, poderemos fortalecer e difundir narrativas heterogêneas, verdadeiramente
representativas, que ofereçam, ao menos, um contraponto aos discursos hegemônicos.

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Vivências da população LGBT que podem levar ao suicido

Beatriz Maria dos Santos Santiago Ribeiro1

R e s u m o : A população LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros – é considerada


vulnerável, pois sofre cotidianamente violência, e muitas vezes não procuram acesso aos
serviços públicos de saúde e aos seus direitos humanos. Em vista disso há necessidade de
visar para este público, conhecendo preconceitos vivenciados pelas LGBT. A pesquisa tem
por metodologia a revisão bibliográfica com abordagem qualitativa em saúde mental.
Objetivou-se conhecer os preconceitos vivenciados pela população LGBT, os quais pedem
reflexão e atenção dos profissionais da saúde frente a essa realidade, prevenindo e buscando
metas que reduzem o adoecimento dessa população. Nessa perspectiva, destaca-se a
importância da Estratégia Saúde da Família no planejamento de ações que levem à atenção
das violências. Elaboração de ações voltadas para as questões específicas dessa população.
Evidencia-se a necessidade do enfermeiro desenvolver ações educativas, promovendo cursos
e palestras informativas, fornecendo-lhes mais conhecimento e preparo para evitar ou intervir
em situações que podem ser prejudicial a este público, diminuindo a demanda nos serviços de
saúde e, muitas vezes, salvando vidas.

Palavras-chave: Preconceito; Saúde mental; LGBT.

1
Universidade Estadual de Londrina (UEL); Mestranda em enfermagem; E-mail:
b eatrizsanti ago 1994@h otmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p197 197


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Introdução.
A população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) são vítimas diárias de
homofobia, exemplo disso são as ofensas verbais como: bichas, veados, sapatonas entre
outras (Venturi, 2008). A diversidade sexual é categorizada em: heterossexuais, bissexuais,
homossexuais (gays e lésbicas) e, também, transgêneros, ou seja, travestis e transexuais e
Drag Queen (DE JESUS, 2012). Pelo contexto social e cultural ocorre a atribuição do gênero
presente no corpo desde o nascimento. Ora, cada ser humano têm identidades de gênero,
distintas entre si, sejam quais forem os seus atributos corporais (COLLING, 2013).
Gênero e sexualidade são poucos discutidos em ambiente escolar, logo há necessidade
de um mediador de informações para esclarecer dúvidas acerca da sexualidade para os
adolescentes e a importância social da identidade de gênero (PELLOSO, CARVALHO,
HIGARASHI, 2008). Os valores culturais e sociais são construídos por círculo de vivências e
interações sociais, nos quais descrevem os gêneros masculinos e femininos, logo há
necessidade dos profissionais que exercem função na educação e na saúde trabalharem com
esse tema, que muitas vezes passam despercebidos pelos mesmos, utilizando uma abordagem
do conhecimento e reconhecimento das diferenças.
Embora sendo vista como um tabu social, as questões de gênero devem ser trabalhadas
com enfoque na promoção de saúde e assim a prevenção de doenças, conceituando a
igualdade e estabilização de valores e as técnicas de diferenciação e preconceitos que afeta
tanto a democracia quanto autonomia do ser humano em si. Falar em sexualidade é um
desafio para os profissionais da educação e da saúde, mas que são fundamentais (PELLOSO,
CARVALHO, HIGARASHI,2008).
Vale lembrar, que a escolha do tema surgiu após o estágio de enfermagem no Caps
AD, no qual havia vários pacientes com histórico de tentativa de suicídio, depressão, dentre
outras doenças, decorrente do preconceito vivenciado em sua vida, o que despertou o interesse
de elaborar um estudo para obter uma visão mais ampla, sobre os preconceitos vivenciados no
dia a dia da comunidade LGBT. Enquanto Enfermeira, atuando em uma equipe de Urgência e
Emergência no Pronto Socorro de médio porte, foi possível identificar a necessidade de
informações à população e o planejamento de ações em relação à aceitação das pessoas
LGBTs como um todo. Acredita-se que muitas violências tanto físicas quanto verbais podem
ser evitadas por meio de orientações de Enfermagem a comunidade. Neste contexto podemos
destacar que os profissionais da Estratégia Saúde da família podem ser capacitados para levar

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p197 198


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às orientações a população, pois fazem parte da rotina dos profissionais dos programas ESF.
Por conseguinte, objetivou-se conhecer preconceitos vivenciados pelas LGBTs.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, a revisão de literatura tem por finalidade a
reunião e o aprofundamento de subsídios de modo a compreender como vem sendo construído
este corpo de conhecimentos (Polit, Beck , Hungler 2004). O levantamento dos dados foi
realizado no período de janeiro a abril de 2017.

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Desenvolvimento.

Sexualidade

A sexualidade pode ser definida como uma marca única do ser humano, que
transcende a consideração meramente biológica, centrada na reprodução das capacidades
instintivas, ela é a própria vivência e significação do sexo (Nunes e Silva, 2006). Já segundo
Bonfim (2010), a sexualidade aponta uma característica íntima em nosso ser, não relacionado
ao sexo que é definido por uma marca biológica, mas sexualidade como marca humana.
A sexualidade se configura como um dos núcleos estruturantes que formam a
totalidade humana, sendo uma das dimensões humanas mais complexas. Atualmente é
interpretada e transmitida pela sociedade, na maioria das vezes, ainda de maneira reducionista
e repressiva, expressa na forma de relação sexual entre um homem e uma mulher (ato sexual),
a procriação da espécie entre os mesmos e os órgãos reprodutivos (pênis e vagina), tornando
se difícil aceitação da LGBT, visto que a sociedade está inserida algumas vezes no modelo
tradicional homem e mulher. Nessa perspectiva, a sexualidade diz respeito aos nossos
sentimentos, e não apenas a biologia centrada na reprodução das capacidades instintivas do
ser humano.
Vale destacar que a identidade sexual é a forma de identificar-se psicologicamente
como homem ou mulher, pode ser denominado de uma expressão simples de sexo psicológico
(FIGUEIRÓ, 2007). Já a identidade de gênero é uma construção social, no qual o indivíduo se
identifica para si próprio e aos que o rodeiam, sobre à percepção a si como ser “masculino” ou
“feminino”, ou ambos (Bonfim, 2010).

Diversidade sexual

A diversidade é entendida como à diferença, à variedade, à abundância, este termo


usado para designar as várias formas de expressão da sexualidade. De acordo com ABGLT
(2010), a diversidade sexual abrange pessoas: heterossexuais, bissexuais, homossexuais (gays
e lésbicas) e, também, transgêneros, ou seja, travestis e transexuais e Drag Queen. Na qual
diferenciamos em:
Heterossexuais: indivíduos que sentem atração por pessoas do sexo oposto.
“Indivíduo amorosamente, fisicamente e afetivamente atraído por pessoas do sexo/gênero

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oposto. Heterossexuais não precisam, necessariamente, terem tido experiências sexuais com
pessoas do outro sexo/gênero para se identificarem como tal” (ABGLT 2010, p. 13).
Bissexuais: são pessoas que sentem atração por ambos os sexos (masculino e
feminino). “É a pessoa que se relaciona afetiva e sexualmente com pessoas de ambos os
sexos/gêneros. Bi é uma forma reduzida de falar de pessoas Bissexuais” (ABGLT 2010, p.
11).
Homossexuais: pessoas que sentem atração física, emocional e afetiva pelo mesmo
sexo ou gênero.
Gays: refere-se em geral aos homossexuais do sexo masculino. “Éa pessoa que se
sente atraída sexual, emocional ou afetivamente por pessoas do mesmo sexo/gênero”
(ABGLT 2010, p. 14).
Lésbicas: refere-se em geral, a homossexual do sexo feminino, abarcado como a
“mulher que é atraída afetivamente e/ou sexualmente por pessoas do mesmo sexo/gênero. Não
precisam ter tido, necessariamente, experiências sexuais com outras mulheres para se
identificarem como lésbicas” (ABGLT 2010, 23p. 14).
Travestis: fisiologicamente, é um homem (ou mulher), mas se relaciona com o mundo
como mulher (homem), a “terminologia utilizada para descrever pessoas que transitam entre
os gêneros. São pessoas cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de
sexualidade” (ABGLT 2010, p. 17).
Transexuais: pessoas que não aceitam o sexo que ostentam anatomicamente. “Pessoa
que possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. Homens e
mulheres transexuais podem manifestar o desejo de se submeterem a intervenções médico-
cirúrgicas para realizarem a adequação dos seus atributos físicos de nascença (inclusive
genitais) a sua identidade de gênero constituída” (ABGLT, 2010, p. 17).
Drag Queen refere-se a “atores transformistas (homossexuais ou não), que, no seu
cotidiano, andam vestidos de homem, exercendo profissões diversas, não afeitas ao
transformismo, durante o dia” (ABGLT 2010, p. 16).

Discriminações

O Ministério da Saúde aponta que a identidade sexual e a identidade de gênero são


representações de um processo complexo de discriminação e de exclusão, dos quais derivam
os fatores de vulnerabilidade, como podemos mencionar “a violação do direito à saúde, à
dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento”. A população

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LGBT, devido a não adequação de gênero com o sexo biológico ou à identidade sexual, é
agredido seus direitos humanos básicos (Brasil, 2008 p. 01).
Podemos conceituar preconceitos, discriminações e violências a um grupo como
homofobia, este termo é utilizado quando são de algumas formas julgados seus
comportamentos, aparências e estilos de vida. (Junqueira, 2007). Os números são altos de
acordo com o Ministério da Saúde. Dois em cada três entrevistados (67%) já sofreram algum
tipo de discriminação motivada pela identidade sexual, proporção que alcançou 85% em
travestis e transexuais. O que chama atenção 14,5% dos participantes do estudo feito na
Parada Gay de São Paulo referiu terem sofrido algum tipo de homofobia, nos serviços da rede
de saúde (Brasil, 2008).
De acordo com os dados baseados no Relatório de violência homofóbica no Brasil,
2013, as categorias e levantamentos são: violência Psicológica 40,1% com subtítulo
Humilhações 36,4%; Discriminação 36% com subtítulo Discriminação por orientação sexual
77,1%, Violência Física 14,4% com subtítulo Lesões corporais 52,2%, Negligência 3,6% com
subtítulo Negligencia em amparo e responsabilização 58,%, prevalecendo a violência contra
pessoas do sexo biológico masculino (homens), gays, com 54% e 26% travestis. Também
destaca violências físicas como Facadas 22,4% Alvejadas a tiro 21,9% Espancadas 8,6%
Estranguladas 6,2% Apedrejadas 5,2% Pauladas 4,4% Asfixiadas 2,6% 24 Carbonizadas
1,6% Afogadas 0,5%.
O movimento homossexual brasileiro desde os anos 80 tem dado visibilidade aos
crimes motivados pela orientação sexual, divulgando o termo homofobia para designar tais
atos (Ramos e Carrara 2006),
Leony afirma que Homofobia é um termo designado como o “ódio explícito,
persistente e generalizado; manifesta-se numa escala de violência desde as agressões verbais
subsumidas nos tipos penais contra a honra até os extremados episódios de violência física,
consumados com requintes de crueldade” (2006, p.1). Um estudo exploratório-descritivo, as
enfermeiras definiram violência como algum ato, situação ou ação que coloque o indivíduo
em prejuízo ou dano, ou ainda em risco no seu bem-estar envolvendo os aspectos físico,
psicológico, social, cultural e espiritual (RÜCKERT,2008).
Em um estudo qualitativo, num depoimento de um homossexual explicita várias
formas de agressões e sofrimentos causados por homofobia. Como podemos destacar:
“(...) Já sofri vários tipos de violência”.
“(...) um deles me deu um soco, que eu rodei”.

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“(...) Outra vez, um velho me chamou e me ofereceu cinco reais para transar, eu não
aceitei”.
“(...), ele me bateu e saiu correndo”.
“(...). Uma outra vez, quando távamos no ponto (...), vinham passando os rapazes do
tiro de guerra nos xingando e com a mão nos órgãos sexuais, apontando pra gente”.
“(...); o nosso ponto é perto de uma igreja evangélica; várias vezes durante o culto,
tarde da noite, os pastores nos xingam dizendo: ‘queimem no inferno, bando de filhos do
demônio”.
“(...) Não é rara a notícia de crimes homofóbicos com desfechos que relatam a morte
de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e homossexuais” (Alencar, 2008, p. 6).
Em um relatório de causa mortis, preparado pelo grupo gay da Bahia, mostra o
aumento significativo dos números de assassinatos nos últimos 30 anos, sendo que no início
do terceiro milênio marcado por uma morte a cada dois dias (Mott & Cerqueira, 2000).
É necessário salientarmos a necessidade de um olhar para esse público, o qual com o
tempo sofre traumas psíquicos decorrente da crueldade da homofobia, ale lembrar que, de
acordo com a Política Nacional de Humanização (PNH), o acolhimento constitui uma
estratégia utilizada para subsidiar alterações na organização do processo de trabalho em
serviços de saúde, com o intuito de garantir acesso, atenção resolutiva, escuta qualificada e
responsabilização pela integralidade da assistência aos usuários. Contudo, embora muito já
tenha sido conquistado, ainda há muito a melhorar (COSTA; CAMBIRIBA, 2010).
Cada ser humano sente atrações sexuais e afetivas distintas e tem formas e maneiras de
se vestir e se portar, algumas fogem dos padrões impostos pela sociedade como “correto e
normal”, porém, não deixam de serem pessoas dignas do nosso respeito. A diversidade
sexual, comparada, por exemplo, como batatas, existem vários tipos, tamanhos, formas, cores,
e sabores e apesar dessas diferenças não deixam de serem batatas. Assim como elas, são as
pessoas, diferentes.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p197 203


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Considerações finais

Sobremaneira é possível perceber que os preconceitos, infelizmente, estão presentes


em situações do cotidiano da população LGBT, e que agressões e sofrimento dirigido a esse
público pode levar ao suicídio, logo mostra-se necessário à importância da orientação,
conscientização ao ser humano, e o debate sobre esse assunto para conhecimento dos tipos
mais ocorrentes de violência que a população LGBT sofre no Brasil. É de extrema valia o
professor realizar intervenções na sala de aula, abordando temas de sexualidade e gêneros
com os seus alunos. O profissional de saúde necessita orientar e fornecer o suporte necessário
as vítimas.
Esclarecer a importância da compreensão e conscientização do conteúdo sobre a
sexualidade na área da saúde com enfoque em população LGBT pode possibilitar a realização
de intervenções capazes de contribuir para o acolhimento e atendimento de pessoas
homossexuais no qual sofreram violências na sociedade.
Sugere-se a continuidade das pesquisas sobre essa temática, pois há poucos estudos
relacionados, tendo como ponto inicial as problematizações LGBT com enfoque em saúde
mental. Enfatiza-se à conscientização a população em relação à igualdade desse grupo, ações
voltadas para contribuir conhecimento da população em geral, para que elas possam saber
como lidar e evitar preconceitos, e levantar informações que possam contribuir para que os
profissionais das áreas da saúde ampliem sua visão, desenvolvam competências e ações, para
prevenir agravos à saúde em virtude desses acontecimentos.

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Relato de experiência sobre trabalho realizado com homens autores de violência


na cidade de Pelotas/RS

Duilia Sedrês Carvalho Lemos1


Gisele Scobernatti2
Michele Mandagará de Oliveira³

Este artigo trata de um relato de experiência acerca do atendimento prestado a homens autores
de violência de gênero contra as mulheres, realizado durante os anos de 2016 e 2018, em um
serviço que atua no enfrentamento de todas as formas de violências comuns às relações de
intimidade em um município do interior do Estado do Rio Grande do Sul e objetiva apresentar
a discussão reflexiva sobre a realização de grupos com esses homens. O atendimento se
sustenta na identificação de distorções cognitivas; dos estereótipos de gênero e fatores
externos que possam estressar e vulnerabilizar os indivíduos, para então buscar o
desenvolvimento emocional e empático e a corresponsabilidade doméstica e familiar. O que
se deixa vislumbrar, após a realização de 10 grupos é que inicialmente os participantes
revoltam-se por estarem inseridos no trabalho mas posteriormente associam a participação a
ganhos para as suas vidas, observamos melhorias nas questões de empatia, de melhor
comunicação e de evolução no que tange a auto conhecimento e ao convívio familiar. Foi
realizada testagem psicológica nos grupos e nas devoluções se observou dificuldades em
manejar raiva, descrever emoções e resolver conflitos de forma mais acertiva. Além destes
destaca-se a importância do trabalho multiprofissional e da busca constante em atualizações.
Palavras Chaves: Violência de Gênero, Masculinidades, Reeducação.

1
Psicológa pela Universidade Católica de Pelotas (2011 Aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós
Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas. (Bolsista CAPES) E—mail:
duilia.carvalho@gmail.com
2
Coordenadora do Núcleo de Atenção a Criança e ao Adolescente; Doutora em Psicologia (2018) pelo Programa
de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
E-mail: gscober@terra.com.br.
³Professora adjunta do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Faculdade de Enfermagem da
Universidade Federal de Pelotas; Doutorado em Enfermagem em Saúde Pública pela Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (2008); E-mail: mandagara@hotmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p223 223


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ISSN 2177-8248

Introdução:
Diante de uma produção teórica que exaustivamente tem sido realizada articulando
gênero e violência; sexualidade e violência, enfocando primordialmente as vítimas, propõe-se
trilhar esse caminho com o foco direcionado para a reflexão acerca da constituição das
masculinidades, em específico aquelas que se utilizam da violência nas relações de
intimidade.
Uma tendência recorrente na produção científica e, bandeira de algumas das
perspectivas feministas, é examinar a temática da Violência contra as mulheres a partir de
uma polarização dos lugares de homens e mulheres, em que a violência sofrida pela mulher é
entendida como uma violência estruturada por um padrão de relações hierárquico
(MENEGUEL et al., 2000), legitimado por aspectos culturais decorrentes da socialização de
gênero, no qual as mulheres sofreriam violência por serem mulheres (SCHRAIBER &
D’OLIVEIRA, 1999), e os homens, em contrapartida, como aqueles que exercem
modalidades de vitimização física, psicológica e/ou sexual de forma exclusiva ou combinada
e intencional sobre a pessoa com quem mantém um vínculo de intimidade: sua esposa ou
companheira (CORSI, 2004; HEISE, PITANGUY E GERMAIN, 1994)
De modo a pensar a violência de gênero contra mulheres, a partir do trabalho com
homens autores de violência, trazemos para compartilhar o relato da experiência acerca do
atendimento prestado a homens autores de violência de gênero contra as mulheres e, objetiva
promover a discussão reflexiva sobre o desenvolvimento de atividades grupais para esses
homens, tomando como analisador o modo como as masculinidades são forjadas socialmente,
afastando-se das explicações positivistas dos papéis sociais e/ou aquelas fundamentadas nas
explicações biológicas. Os atendimentos acontecem no Núcleo de Atenção à Criança e ao
Adolescentes – NACA que há 18 anos atua no enfrentamento de todas as formas de violências
comuns às relações de intimidade no município de Pelotas/RS.
Todos os participantes dos grupos foram encaminhados pelo Juizado Especial da
Violência Doméstica, Centro de Atendimento a Mulheres em situação de Violência e, Vara de
Execuções Criminais.
Os primeiros programas de atenção a homens autores de violência surgiram nos
Estados Unidos e Canadá na década de 80, seguidos pela Austrália, França, Reino Unido e
países escandinavos, na década de 90. Na América Latina, o pioneiro foi a Argentina a criar
intervenções junto a essa população, depois México, Nicarágua e Costa Rica (NATIVIDADE,
et al, 2007)

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No Brasil, os primeiros ensaios de intervenções voltadas para homens autores de


violência acontecem na década de 90, mesmo que a atenção a esses homens já se deixasse
vislumbrar em algumas ações sob a perspectiva de gênero ainda na década de 80, a
consolidação de serviços específicos somente vai se dar no final dos anos de 1990
(OLIVEIRA, GOMES, 2009).
A análise desses programas evidencia que eles nasceram numa perspectiva
complementar aos programas de atenção e prevenção da violência contra as mulheres
partindo-se do pressuposto que a responsabilidade primária por tais violências seria de quem a
exerce e, a maior parte deles não se traduzia no tratamento de “doenças”, mas em processos
de natureza reflexiva que possam contribuir para a assunção de suas responsabilidades nas
situações de violência protagonizadas por eles (OLIVEIRA, 2013).
Atualmente, o que se tem visto é que algumas intervenções tomam a categoria
gênero como essencial às análises, enquanto outras a veem como complementar, entretanto, a
ideia que parece agregar simpatizantes de ambas correntes é que a tônica da responsabilização
dos homens, ou pelo menos a discussão quanto à dimensão ética e política das intervenções
(OLIVEIRA , GOMES, 2011), esteja contemplada.
De igual forma não há consensos quanto ao modelo técnico de intervir; há aqueles
que advogam uma intervenção pautada pela perspectiva de gênero por ser uma abordagem
que contempla os aspectos sócio culturais presentes no fenômeno, e fazem a crítica ao modelo
que toma o fenômeno como próprio a relação conjugal por acreditarem que tal abordagem é
essencialmente psicologizante.
Sem deixar de considerar os compromissos políticos propostos pelo feminismo,
buscaremos, entretanto, evidenciar que nossas intervenções embora, possam estar ancoradas
na perspectiva de gênero, têm caminhado em direção a uma perspectiva mais relacional que
nos permita intervir junto a essas pessoas que vivem conjugalidades violentas. Entendendo
que a violência de gênero tem suas raízes também num modelo de conjugalidade ocidental
calcada na ideia de amor romântico (GROSSI, 1998) e que possa de cada história de vida,
reconhecer o que é peculiar, singular a cada vivência.
No Brasil, os programas de atenção a homens autores de violência parecem que, em
sua quase totalidade, nascem vinculados às políticas de atenção e prevenção da violência
contra as mulheres e são motivados pela possibilidade de reeducar esses homens, promovendo
“o reconhecimento de suas responsabilidades pela violência perpetrada e, ressignificando
assim as suas próprias relações de gênero” (MORAES, RIBEIRO, 2012, P. 42).

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Deste modo, olhar para a realidade brasileira e a maneira como foi se constituindo a
agenda pública de combate a violência contra as mulheres, parece um bom meio para que
possamos compreender os caminhos e os descaminhos percorridos ao longo dessas últimas
três, quase quatro décadas de forte protagonismo dos movimentos que lutam pelo fim dessa
forma de violência.
O município de Pelotas conta com uma rede de proteção à mulher vítima bem
estruturada e que vem se consolidando graças a articulação de inúmeros serviços e
dispositivos permanentemente engajados e que resistem aos reveses das mudanças de
governo, que inevitavelmente podem afetar a agenda pública.
E é dessa de articulação e mobilização permanente, a partir das discussões na Rede
de Atenção a Mulher Vítima de Violência que nasceu a ideia de construir uma estratégia que
pudesse acolher e trabalhar com os homens autores de violência com o intuito de atender
inicialmente as expectativas das mulheres que, em atendimento, manifestavam o desejo pela
mudança de comportamento por parte dos parceiros.
Assim, em julho de 2015 passou a ser executado no município o projeto “violência
por parceiros íntimos: histórias que a gente precisa saber” e os primeiros grupos formaram-se
então por homens encaminhados pelo Centro de Referência em Atendimento a Mulher Vítima
de violência e pelo Juízado Especializado em Violência Doméstica, posteriormente a Vara de
Execuções Criminais passou de igual forma a encaminhar homens para atendimento.

Metodologia
Segundo SANTOS (2011) o relato de experiência trata-se de uma história
informativa e como a mesma é refletida no contexto que está inserida. Precisa conter os
resultados obtidos e lições aprendidas com exemplos da prática.
Neste relato de experiência traremos dados e informações acerca dos grupos
reflexivos por entender que a construção do grupo e as características do trabaho realizado
contribui de forma concreta aos estudos deste modelo de trabalho.

Funcionamento e características dos grupos


Uma vez encaminhados ao NACA, os homens foram acolhidos por uma assistente
social e uma psicóloga para entrevista individual que objetivava conhecer a história pregressa
do usuário e seu posicionamento frente ao ato de violência por ele cometido.
Além da entrevista inicial, foi realizado o genograma familiar, a fim de evidenciar os
padrões de funcionamento e as interações emocionais familiares; a realização de diagnóstico

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diferencial e a investigação de possíveis Comorbidades (uso de álcool-drogas ou


psicopatologias, por exemplo) diagnosticadas ou não no autor da violência, que poderiam
demandar urgência em encaminhamentos de outras naturezas,ou seja, que perpassem por
questões médicas e de saúde visando a diminuição ou controle de sintomas que prejudiquem o
trabalho em grupo e com foco nas questões de violência.
Cabia ao profissional da psicologia ainda investigar as possibilidades de inserção em
grupo e em que tipo de grupo.
Após esse momento, o caso era analisado por equipe interdisciplinar que agendava o
início da participação nos grupos. Trabalhamos com dois grupos distintos (reflexivo e de
psicoterapia) que tem como diferencial a posição do homem frente ao ato de violência.
Grupo de psicoterapia voltado para aqueles homens que assumiram seus atos
violentos na relação conjugal, mas que, sobretudo reconheceram sua responsabilidade nos
eventos violentos e manifestavam um mínimo de intenção de mudança.
Nesta modalidade de grupo a coordenação do trabalho ficou sob a responsabilidade
de profissionais da psicologia (dois para cada grupo) e as estratégias de trabalho objetivaram:
a) ajudá-los a identificar as situações que desencadeiam os comportamentos violentos e a
desenvolver formas positivas e não-violentas para expressar a sua raiva; b) trabalhar as
relações de violência anteriores na família e compreender como estas podem estar
relacionadas ao comportamento atual; c) verificar e questionar suas crenças; d) avaliar o
quanto estão motivados para receber ajuda para alterar o comportamento violento; e)
considerar e resignificar questões emocionais como sentimentos de desamparo, abandono,
desamor e baixa autoestima; f) qualificar a capacidade empática; g) intervir nas reações
emocionais excessivas ou deficitárias e h) prevenir recaídas.
Neste modelo não existe tempo previsto para o término do tratamento tendo em vista
que estavam envolvidas na problemática questões cristalizadas e complexas.
Os grupos reflexivos foram destinados aos homens que não assumiram suas condutas
violentas na relação conjugal, que revelam pouca capacidade de insight e manifestavam
possíveis distorções acerca de sua responsabilidade na situação abusiva. Os grupos reflexivos
têm começo, meio e fim, e não admitem inserções ao longo de sua vigência, e tem a duração
de 12 a 15 encontros e contam com a participação de em média oito participantes.
Nesta modalidade de grupo a coordenação do trabalho ficou sob a responsabilidade
de profissionais da psicologia (dois para cada grupo) e as estratégias de trabalho objetivaram:
a) identificar distorções cognitivas; b) verificar e questionar suas crenças, trabalhando
questões de gênero; c) identificar fatores externos que possam estressar e vulnerabilizar os

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indivíduos; d) desenvolvimento emocional e empático e, e) corresponsabilidade doméstica e


familiar.
Nos casos em que foi identificado, ainda durante o acolhimento, prejuízo psiquiátrico
que pudesse interferir na relação terapêutica e no fluxo das demandas coletivas, foi feita a
contraindicação de inserção no programa de acompanhamento, sendo o usuário encaminhado
para serviço específico a suas necessidades. Em alguns casos como no abuso de substâncias
psicoativas foi possível o usuário participar dos grupos no NACA e do CAPS Ad em
concomitância realizando trabalhado de cuidado integral.

A experiência em si
Entre o ano de 2016 até março de 2018, foram atendidos cerca de 100 homens,
divididos em dez grupos distintos. Os primeiros encontros tinham como objetivo
contextualizar o objetivo do grupo no qual o usuário estava inserido, métodos de trabalho que
seriam utilizados, formação de vínculos entre os participantes e com a equipe técnica.
Ainda nos primeiros encontros trabalhamos através de dinâmicas de grupo o papel de
homem e mulher na sociedade e o quanto esses pais estão impregnados em nosso
funcionamento mesmo que não percebamos.
Ainda nos encontros iniciais realizamos um encontro destinado a discussões sobre a
Lei Maria da Penha(LMP) e os impactos dessa legislazação, trabalhando com os homens
como funcionam as leis e as razões pelas quais o Estado precisa intervir em questões tão
íntimas. Foram realizadas explicações sobre os tipos de violência e discussão de casos que o
mesmo presenciram, vivenciaram ou tomaram conhecimento através de mídias.
Dedicamos um encontro às concepções de gênero e papéis sociais construídos, esse
trabalho foi realizado através de dinâmica que tinha como objetivo que os participantes
escolhessem brinquedos que “lembrassem” sua infância. Dispusemos na sala uma série de
brinquedos: bonecas, panelinhas, robos, carrinhos, bolas de futebol, ferramentas, maquiagens,
lápis e papel. Após a escolha do brinquedo os homens deveriam expor ao grupo as razões da
escolha e o que esse brinquedo tem de relação com a sua história. Nesse momento foi possível
observar o peso que escolher “brinquedos de menina” impactava e amedronatava os homens.
E após a divisão das escolhas realizávamos roda de conversa sobre como nasceu a
importância dos papéis e o quanto os homens acabam também embuidos pelos ditos de que
homem para ser homem precisa atender a alguns pontos que nem sempre são a escolha de
todos.

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Nesse encontro realizamos apresentação de vídeo que trabalhava as perdas de


características importantes de afeto em razão de uma dita “masculinidade padrão”.
Após esse momento inicial realizamos dois encontros denominados: Orientação
Jurídica. Momento em que os participantes do grupo puderem questionar e esclarecer dúvidas
junto a profissional Bacheral em Direito convidada a participar dos encontros. Na maior parte
dos grupos houve grande proveito deste momento e alguns participantes ainda tiveram a
oportunidade de agendar horários em individual para orientações.
Posteriormente realizamos aplicação de inventário de Expressão de Raiva como
Estado e Traço (STAXI, do inglês, State-Trait Anger Expression Inventory) com a finalidade
de mensurar experiências e expressões de raiva. Segundo NASCIMENTO (2006) a
experiência de raiva no STAXI é avaliada como estado e traço. O estado de raiva é emocional
e são sentimentos negativos que variam de intensidade em função de uma situação como, por
exemplo, injustiça. Já o traço de raiva é a disposição, maior ou menor, do indivíduo para
perceber várias situações como desagradáveis ou frustradoras, tendendo a reagir sobre elas.
Com relação às expressões da raiva, estas são concebidas de três formas A primeira é a raiva
para fora, que é a expressão da raiva em relação aos outros ou aos objetos; a segunda é a raiva
dirigida para dentro, que são os sentimentos e, por fim, a terceira expressão é o grau de
intensidade com que as pessoas tentam controlar a expressão. O STAXI é composto de 44
itens que formam oito subescalas, quais sejam, Estado de Raiva, Traço de Raiva, Raiva para
Dentro, Raiva para Fora, Controle da Raiva, Expressão da Raiva, Temperamento Raivoso e
Reação de Raiva. A subescala Traço de Raiva é a somatória de Temperamento Raivoso com
Reação de Raiva. Já a Expressão da Raiva é a somatória das subescalas Raiva para Dentro,
Raiva para Fora e Controle da Raiva.
Após a aplicação da testagem, realizamos a devolução dos resultados aos homens
para que pudéssemos esclarecê-los acerca de seus posicionamentos frente a eventos que
suscitam violência como forma de resolução de problemas. Esse momento foi marcado por
especial crescimento do grupo por já ter caminhado um período junto e por localizar nos pares
no grupo o quanto as questões de violência e raiva são pertencentes ao dia-a-dia dos mesmos
A partir dos dados observados no STAXI iniciamos a parte de desenvolvimento
empático, melhor manejo com as emoções e a qualificação das relações familiares. Iniciamos
com o debate do que são as emoções e de quais os acontecimentos externos interferem no
modo como nos relacionamentos com os outros.
Através de dinâmica de grupo discutimos longamente sobre maneiras de resolução de
problemas e meios de obter maior êxito nas relações interpessoais. Destinamos um encontro

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para trabalhar comunicação interpessoal e os impactos da forma como nos comunicamos ou


não nos comunicamos.
O último encontro em todos os grupos foi destinado a avaliação que seu deu por
preenchimento de uma ficha individual e não identificada. Após o preenchimento das fichas
as coordenadoras deram pareceres individuais aos homens e também todos puderam dividir
como foi a experiência.
Observamos que o desejo de continuar participando dos encontros aumenta
progressivamente. Na maior parte dos grupos o último encontro é marcado inclusive por
dificuldade dos participantes de irem embora do NACA.
Após o encerramento dos grupos foi feito envio de documentos com freqüência e
informações sobre o casos aos orgãos que encaminharam os homens para o NACA. E em
alguns casos foi realizado encaminhando dos participantes ao grupo denominado: grupo de
psicoteria.

Resultados e Discussão
Para MISTURA (2015) as medidas de reeducação dos homens autores de violência
ainda são escassas no cenário brasileiro. Mesmo assim, consideramos que o enfrentamento a
violência através de atitudes de educação pode ser um dispositivo importante ao combate de
um problema que atinge não apenas as mulheres, mas os espaços de crescimento de crianças e
adolescentes.
A experiência de trabalhar com os homens autores de violência reforça inicialmente
como BILLAND E PAIVA (2016) destaca que a maioria dos homens autores de violência
contra mulheres não se responsabiliza por seus atos espontaneamente, resiste aos esforços dos
facilitadores para levá-los a expressar empatia e fragilidades e não adere a intervenções que
exigem que assumam outros discursos. Ao longo do processo dos atendimentos pode-se
observar a crescente evolução no sentido de refletir sobre as atitudes e pensamentos violentos
e como esse processo de trabalho em grupo e de espaço de escuta por si já se mostra
terapêutico e uma experiência positiva tanto para os participantes quanto para os profissionais
envolvidos.
Consideramos ainda positivo o fato de o trabalho atuar como enfrentamento por duas
vias: inicialmente como auxílio na reflexão das atitudes já vivenciadas e mais ainda
corroborando com o pensamento de MINAYO E SOUZA (1999) tornando público algo que
anteriormente era tratado como privado na ideia de que socializar trabalhos de prevenção
como parte do enfrentamento da violência.

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No trabalho desempenhado com grupos de homens autores de violência foram


utilizadas técnicas de socialização de conteúdos referentes a questões de gênero,
esclarecimentos sobre a Lei Maria da Penha, discussão sobre a importância das Leis que
atuam na proteção das minorias e de quem historicamente sofreu/sofre violência – mulheres,
negros, idosos,dinâmicas de grupo, aplicação de testagens para avaliação de raiva e prevenção
a novos episódios envolvendo violência como a forma de resolução de conflitos.
Encontramos dificuldade na literatura quanto a metodologia dos grupos já existentes
no Brasil. Ainda não localizamos instrumentos e materiais com compravação de eficácia.
Observamos que ao longo dos encontros, os homens vão alcançando novas
percepções sobreo papel feminino antes concebido, o que vai ao encontro do estudo realizado
por PAIVA E BILLAND (2016) quando fazem referência a ampliação de consciência com
relação ao,acontecimentos de suas relações.Talvez possamos pensar que a ressignificação no
modo como esses homens passam a perceber e reconhecer o papel, o lugar, os fazeres, as
competências das mulheres, possa ser, em parte, resultado da experiência de duas mulheres
conduzindo um grupo de homens que, ao fim, permitiu a construção de um novo olhar sobre
as mulheres, inclusive concebendo que elas podem e desempenham de forma excelente os
papéis aos quais se objetivam. Podendo, por essa perspectiva, fazer um contraponto
importante em relação ao pensamento que advoga que o trabalho com homens realizado por
homens obtém maiores resultados, em razão da facilidade de formação de vínculos e pela
sensação de coletivo no grupo (MISTURA,2015).
No trabalho que realizamos de testagem de raiva os maiores resultados apontaram
para dificuldader em expor suas emoções e as tentativas, da maior parte dos participantes, em
controlar a raiva. Foi possível trabalhar junto aos homens os estigmas que envolvem as
discussões de relações e o quanto a característica de flexibilidade e habilidade para discussão
é atribuida ao feminino. Localizamos ainda alguns participantes que apresentavam
significativa dificuldade em acessar e discutir questões de raiva, nesses casos buscamos
elucidar através de exemplos e de discussões em grupos o prejuízo que não falar ou não
assumir ter raiva traz as relações afetivas.Com relação aos resultados encontramos pontos que
aparecem em alguns estudos, dentre eles o de ANDRADE E BARBOSA (2008) que aponta:
resistência inicial dos participantes, aumento do nível de comunicação, novas formas de
resolução de conflitos, mudança de discurso,aumento no reconhecimento de dificuldades no
trato com as mulheres e construção de novas possibilidades.

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Conclusões
Ao analisar as avaliações feitas pelos participantes, podemos observar o quanto a
experiência coletiva de tornar-se parte de um grupo, foi avaliado de forma positiva. Alguns
deles manifestaram expectativas de que novos integrantes persistam no atendimento,
vencendo a fase inicial de Revolta3. Dar espaço para poder vencer, a resistência inicial, já
descrita em alguns estudos é, para os membros do grupo fundamental para que se possa
efetivamente ter ganhos com a experiência grupal. A maioria dos homens disse ter obtido
melhor conhecimento sobre a LMP e sobre suas questões emocionais.Aprendemos todos os
dias que entramos em contato com outras pessoas, especialmente em um “terreno” de tantas
incertezas e novidades observamos a necessidade de flexibilidade por parte do profissional
que realiza estas tarefas.
Consideramos ainda a importância do trabalho com profissionais de diferentes áreas
que agregam visões múltiplas que colaboram para o desenvolvimento dos grupos. A cada
novo grupo foi possível buscar melhorias a partir dos discursos dos próprios participantes.
Realizamos adaptações a cada novo encontro visando a construção efetiva de mudanças.
Ainda existe muito o que estudar, efetivamente questionar junto aos coordenadores
dos grupos quais os instrumentos de avaliação que auxiliam na melhoria do trabalho; qual a
experiência que os homens que participaram levam para as suas vidas; quais outros assuntos e
temáticas precisam ser explorados e ainda, a importância de manter um bom vínculo com os
trabalhadores da rede psicossocial que atendem as mulheres vítimas, de forma a construir um
trabalho coletivo com o objetivo de evoluir na proteção das vítimas e na propagação de uma
vivência masculina mais “saudável”.

3
É assim que os participantes do grupo definem o momento de chegada ao NACA.

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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
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PRATES, Paula & ANDRADE, Leandro. Grupos Reflexivos Como Medida Judicial para
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Mulheres chefes de família: uma análise sobre a construção das famílias


monoparentais femininas

Jaqueline Volpato1
Poliana Savala2

Resumo

A família é uma das instituições mais antigas da humanidade, transformando-se no decorrer


dos séculos. Dentre essas transformações, surgiram as novas configurações de família, entre
elas a monoparental. Apesar de parecer um fenômeno novo, as famílias monoparentais,
especialmente as chefiadas por mulheres, sempre existiram sendo que as primeiras se
constituíram por mulheres viúvas e mães solteiras. O trabalho que apresentamos é resultado
de uma pesquisa qualitativa com o objetivo de conhecermos quais são as condições que
configuram as famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Realizamos um estudo, através
de um suporte bibliográfico, enquanto uma modalidade de estudo e análise de documentos de
domínio científico, propiciando o conhecimento de obras que tratam dos assuntos propostos.
O campo empírico se constituiu no Centro de Referência de Assistência Social, instituição
pública, sem fins lucrativos que visa à prevenção da violação de direitos dos indivíduos e da
ampliação do acesso aos direitos dos cidadãos. Dentre os serviços ofertados pela instituição
encontra-se o Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF), do qual elegemos os sujeitos
da pesquisa, ou seja, duas mulheres chefes de família, às quais denominamos de 'E' e 'C',
iniciais de seus nomes. Para coleta das informações fizemos uso da entrevista com roteiro pré-
estabelecido; os diálogos foram gravados e transcritos, em seguida fez-se a sistematização e
abstração das categorias, resultando na interpretação de que os fatores que levam à
monoparentalidade podem ser involuntários, como no caso da viuvez, ou voluntários, como
pela separação, celibato, opção por criar os filhos sozinha ou abandono por parte de um dos
companheiros, além da violência de gênero, como um dos mais fortes motivos que levam à
monoparentalidade feminina. Acreditamos que desvelar os fatores e/ou motivos da
monoparentalidade feminina possibilita a compreensão da atual amplitude do fenômeno, bem
como a necessidade, a importância do engendramento de políticas públicas que atendam suas
necessidades.

Palavras-chaves: família; monoparentalidade; famílias chefiada por mulheres.

1
Bacharel em Serviço Social formada em 2016 pela UNESPAR/Campus de Apucarana.
E-mail: jaqueline-_-volpato@hotmail.com
2
Especialista em Gestão de Projetos Sociais pela UNOPAR – Universidade Norte do Paraná – 2017. Bacharel
em Serviço Social formada em 2016 pela UNESPAR/Campus de Apucarana. E-mail:
poliana_savala@hotmail.com

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Introdução

A família é uma das instituições mais antigas da humanidade, que veio se


transformando no decorrer dos séculos, acompanhando a evolução de nossa sociedade. Dentre
essas transformações, surgiram as novas configurações de família, entre elas a monoparental.
Apesar de parecer um fenômeno novo, as famílias monoparentais, especialmente as chefiadas
por mulheres, sempre existiram sendo que as primeiras eram famílias de mulheres viúvas e
mães solteiras. Com o advento do divórcio a monoparentalidade ganhou uma visibilidade
maior, que só vem evoluindo com o decorrer dos anos.
A proposta investigativa foi a de conhecermos, através de uma pesquisa qualitativa,
um estudo de caso, quais são as condições que configuram as famílias monoparentais das
mulheres acompanhadas pelo Programa de Atenção Integral á Família (PAIF), do Centro de
Referência de Assistência Social de Sabáudia/PR.

Família: as configurações e relações familiares

Breves considerações sobre família

Definir sobre família implica considerar a realidade social, política e familiar,


tornando tal conceito subjetivo, ou seja, considerando o tempo e espaço de sua definição.
Quase sempre conceituamos família como um grupo de pessoas, com funções
específicas, em relações estruturadas, denominadas por pesquisadores como genograma. Na
família sempre há a presença de um responsável pelo grupo, trata-se de integrante
denominado como ponto de referência em relação aos demais membros, ou seja, “[...] desta
forma, a posição em que cada indivíduo ocupa dentro da família está associada ao vínculo em
que o mesmo possui com o responsável familiar.” (IBGE, 2010, p. 32). Trata-se de um
coletivo com valores, conhecimentos, práticas e crenças que formam uma dinâmica de
funcionamento. (SIMIONATO, 2003, p.19).
A ideia de família associa-se a um sistema, formado pelo conjunto de relações
dinâmicas entre todos os seus componentes, que seguem regras específicas e se situam em
uma determinada conjuntura. Para que este sistema denominado família, tenha um bom
desenvolvimento é preciso que permaneçam em constante transformação e estejam sempre
sujeitos a modificações. Uma definição associada a esse conceito é colocada por Simionato
(2003, p.57): “Família também pode ser conceituada como uma unidade de pessoas em

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interação, um sistema semi-aberto, com uma história natural composta por vários estágios,
sendo que a cada um deles correspondem tarefas específicas por parte da família.”
A família pode se caracterizar pelo ajuntamento de crenças que serão os princípios
norteadores na formulação das regras, das quais os integrantes do sistema irão seguir. Diante
disso, pode ser definida como o ambiente onde os indivíduos se desenvolvem biológico e
psicologicamente e se preparam para enfrentar a vida fora de seu sistema familiar de origem,
a fim de se adaptarem aos novos sistemas que farão parte.
Percebemos que na literatura inúmeros são os conceitos sobre família, no entanto, o
que se mostra em comum é o fato da união de seus membros, não considerando apenas a
presença de laços consanguíneos, mas a intimidade, amizade, respeito mútuo, troca e
enriquecimento conjunto. Assim, é válido ressaltar que a família pode, também, ser formada
por somente um indivíduo e independente de qual seja o tipo de arranjo familiar todos
possuem o mesmo intuito, o de obter meios de sobrevivência. Em outras palavras, a
ampliação do conceito de família permite o reconhecimento de outras entidades familiares,
como a uniões de pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da filiação socioafetiva, entre
outras.

A questão da monoparentalidade

Resumidamente, podemos definir a família monoparental, segundo Vitale (2002, p.


46): “[…] como lares constituídos por um único progenitor que mantêm seus filhos na fase de
criança, adolescente e jovem.”
A expressão “família monoparental” começou a ser usada na França, a partir da
metade dos anos setenta, no século passado, para classificar lares em que as pessoas viviam
sem cônjuge, tendo um ou mais filhos solteiros e menores de 25 anos. A partir, dessa década
essa família começou a ser considerada um fenômeno social 3, ou seja, a condição de
monoparentalidade já existia, apenas ganhou uma maior visibilidade a partir desse período.
Este modelo de família é reconhecido no Brasil como unidade familiar, conforme
prescreve a Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 226, no inciso 4º: “Entende-se,
também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
3
“A expressão fenômeno social designa os fenômenos que decorrem da vida social e do comportamento
humano, tais como os fenômenos econômicos (desemprego, crescimento econômico, inflação, riqueza e sua
distribuição), demográficos (crescimento populacional, emigração e imigração, distribuição por faixas etárias),
sociológicos, políticos, históricos, etc.” Disponível em: http://knoow.net/cienceconempr/economia/fenomenos-
sociais/ Acesso em 21 fev. 2016.

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descendentes.” Assim, seja o pai ou a mãe que conviva e seja responsável pelos filhos, eles
serão considerados uma família.
Várias são as origens da família monoparental, podendo estas ser voluntárias ou
involuntárias. A viuvez foi responsável pelo surgimento da monoparentalidade, mas o
aumento no número de divórcios na década de setenta, fez com que ele se intensificasse.
Segundo Zamberlam (2001, p.100):

[...] enquanto o fenômeno anterior era vivido pela imposição de uma situação
(viuvez), atualmente a monoparentalidade tende a ser decorrência direta de uma
opção (celibato ou separação), logo, efeito de uma vontade deliberadamente,
manifestada por esta nova forma familiar.

Atualmente, temos a separação como uma das principais causas da


monoparentalidade, sendo que estas eram famílias biparentais 4, que mudaram sua situação
devido ao divórcio. A separação entre os casais sempre existiu, no entanto, antigamente era
considerada uma situação informal. Somente no decorrer dos anos, com as transformações
politicas, econômicas, sociais e culturais que aconteceram na sociedade é que esta situação foi
legalizada através de leis. No caso do Brasil o divórcio foi estabelecido pela Lei nº 6.515/77.
(SANTOS, 2009).
Presenciamos também mulheres que optam por uma produção independente através
da inseminação artificial ou que decidem pela adoção, formando assim suas famílias; e as que
são mães solteiras, seja por abandono do companheiro, ou por opção de criar os filhos
sozinha. E, não podemos deixar de citar, o celibato, que segundo Santos (2009, p.2) “[...] é
mais comum em classes mais ricas, motivado a partir das escolhas profissionais e aspirações
sociais, especialmente as mulheres.”
Podemos perceber que a maioria das famílias monoparentais são de chefia feminina,
já que nos casos de separação os filhos tendem a permanecer com a mãe e nos casos de
celibato ou criação individual dos filhos, essas são decisões que partem das mulheres. Os
dados estatísticos apenas reforçam essa constatação. Segundo o último Censo Demográfico
(2010), realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em famílias
formadas por um responsável sem cônjuge e com filhos, as mulheres são a maioria na
condição de responsável, representando 87,4%.

4
Família composta por um casal, pai e mãe, e seus filhos. Disponível em:
http://www.dicionarioinformal.com.br/biparental/ Acesso em 21 de fev. 2016

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Alguns resultados para discussão

Baseado na fundamentação teórica apresentada escolhemos, do grupo de mulheres


inseridas no PAIF (Programa de Atenção Integral às Famílias), do CRAS de Sabáudia/PR
dois sujeitos para a pesquisa, que se encontram na seguinte condição: uma viúva e outra,
separada, às quais denominamos por letras 'E' e 'C'.
A viúva E. tem 43 anos de idade, com fundamental incompleto e sem uma
qualificação profissional, se dedicando somente aos afazeres domésticos. É beneficiária do
Programa Federal, Benefício de Prestação Continuada (BPC), recebendo o valor mensal de
R$ 788,00. Sua família se constitui por ela e mais um filho, uma filha e um neto recém-
nascido. Ela foi casada duas vezes; se separou do primeiro marido e, conviveu com o segundo
por 20 anos, enviuvando depois desse tempo e tornando-se assim chefe de família, sem nunca
ter sido antes.
Separada, C. tem 32 anos de idade, com fundamental completo, não exerce uma
atividade remunerada, sendo do lar. É beneficiária do Programa Federal Bolsa Família e
também recebe pensão alimentícia, somando uma renda total de R$ 660,00 por mês. Sua
família é composta por ela e mais dois filhos, uma menina e um menino, de oito e cinco anos
respectivamente. C. teve uma união estável de 17 anos e se separou há um ano e seis meses,
tornando-se chefe de família.
A maioria dos estudos sobre famílias monoparentais, cuja, chefia é feminina,
apontam somente as dificuldades que elas têm em conduzir suas famílias, devido as
responsabilidades que passam a assumir diante de tal situação. Segundo Szymanski (2002, p.
17),
Ao se pensar na família hoje, deve-se considerar as mudanças que ocorrem em nossa
sociedade, como estão se construindo as novas relações humanas e de que forma as
pessoas estão cuidando de suas vidas familiares. [...] As mudanças que ocorrem no
mundo afetam a dinâmica familiar como um todo e, de forma particular, cada
família conforme sua composição, história e pertencimento social.

Neste cenário de mudanças na sociedade, a mulher que possui uma família


tradicional mantém, ainda, suas obrigações dentro de casa. Em relação a tal condição,
Simionato (2003, p. 62) aponta que as mulheres desempenham papel importante na
manutenção da vida cotidiana, exercendo o trabalho doméstico e também ajudando no
orçamento familiar, através de seu trabalho remunerado, porém, essa dupla jornada aumenta a
sobrecarga física e psicológica da mulher, trazendo agravos a sua saúde.

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Através dos relatos das mulheres que entrevistamos, foi possível percebermos parte
das responsabilidades no período em que estiveram casadas:

E.: […] antes quando ele tava doente e tudo, eu já fui tendo a responsabilidade né
[…] então eu já fui pegando, que nem, o meu dinheiro né […] Aí fazer crochê pra
vender, que eu faço crochê pra vender, e já compro outras coisas. Então antes de
morrer eu já fui, como se diz, sendo já o chefe, sem saber. […] Então, já não ligava
se ele tinha dinheiro ou não, eu já gostava mais do meu né. Já ia lá e pagava uma
água, uma luz, já comprava umas coisas pros filhos ou pagava uma conta também.

C.: Eu contribuía, assim, quando eu tinha vontade de comprar alguma coisa


diferente pra mim, pras criança assim aí eu que comprava né. Eu dava uma ajuda
assim, mas ele que bancava tudo. […] Na matéria de educação deles sempre sou eu,
sou eu que sou responsável. Nas questões dos filhos sempre fui chefe, assinar
boletim, reunião de escola essas coisa assim ele nunca foi participante, assim de tá
assim sempre presente pra sabe o que realmente tá acontecendo. Em matéria de
escola essas coisas, assim sempre era eu […].

Percebe-se que mesmo tendo companheiro, as mulheres já exerciam suas


responsabilidades financeiras ou na educação dos filhos, seja como no primeiro caso onde a
entrevistada procurava por sua independência ou como no segundo, onde o homem não
compartilhava a responsabilidade de educar os filhos.
As atividades desenvolvidas pelas mulheres dentro do núcleo familiar sempre foi de
extrema relevância para o desenvolvimento de tal agrupamento, no entanto, não recebem o
verdadeiro reconhecimento devido ao fato de serem atividades que não geram renda. Com
relação a isto, Barbosa e Soares ([19--?] p.4) afirmam que:

[...] a forma como se constitui o trabalho na sociedade capitalista reforça as


desigualdades entre homens e mulheres no mundo do trabalho, na medida em que
atribui maior valor ao trabalho produtivo e menor valor ao trabalho reprodutivo.
Nesse processo, as mulheres não se reconhecem como trabalhadoras quando não
estão no mercado de trabalho formal, as tarefas executadas por elas no espaço
doméstico não são consideradas como trabalho, porque não são remuneradas, são
realizadas como parte das “obrigações femininas” exigidas pela sociedade.

É possível perceber, nitidamente, através dos relatos feitos pelas entrevistadas e da


citação supracitada, a desvalorização do serviço doméstico realizado pela mulher, e a
exaltação das tarefas realizadas pelo homem, gerando assim a desigualdade de gênero.
Diversos são os motivos que conduzem a mulher à condição de chefia de uma
família, ou seja, a ter uma família monoparental.
A partir das entrevistas realizadas observamos a violência de gênero na relação que
estabeleceram com os maridos, sendo este um forte motivo para a monoparentalidade.
Diferente do que é pensado pelo senso comum, a violência contra a mulher não se caracteriza

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apenas pela agressão física. A Lei Maria da Penha 5, define cinco formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher: a violência física entendida como qualquer conduta que
ofenda a integridade física da mulher; a psicológica caracterizada por atitudes como ameaças,
constrangimento, humilhação, isolamento, insulto, ridicularização, etc.; a sexual entendida
como qualquer conduta que a constranja a presenciar, manter ou a participar de relação sexual
não desejada; a violência patrimonial que se consiste em reter ou destruir parcial ou
totalmente seus objetos, documentos pessoais, bens, valores, etc. e a moral caracterizada pelas
condutas de calúnia, difamação ou injúria.
Segundo os relatos,

E.: […] Que antes não tinha palavra quando ele era vivo, era isso só acabou, eu
não tinha palavra, as crianças também não [...] parece que antes, eu ficava mais
doente, hoje eu não fico tanto, passava mais nervoso, sabe. Ele falava uma coisa,
tinha que ouvir, tacava na cara que ah a casa tá num sei o que, eu ficava arrasada,
ficava quieta. Então eu me sentia minúscula, não tinha voz pra nada né.

C.: Foi verbal, foi física. aí ele me deu um soco eu dei um soco nele também e assim
foi indo... aí dessa vez que deu essa briga que nós saímos no soco eu e ele, foi a
última vez que nós tivemos briga feia... aí nós sentamos e conversamos [...] se
continua do jeito que nós tá indo aqui é melhor nós separarmos agora mesmo,
porque assim não dá... aí nós colocamos um ponto final... aí acabou... assim, nós
brigava assim de boca, não de agressão um com o outro ai encerrou.

Através das narrativas acima é possível analisar que a entrevistada C. sofreu


violência física, porém no relato das duas há a violência psicológica. É nítido que tanto a E.,
quanto a C. não mantinham uma boa relação com seus companheiros, o que sem dúvida
contribuiu para que, por vezes, já pensassem em talvez formar uma nova família somente com
seus filhos.
Mesmo insatisfeitas com a relação que mantinham com seus companheiros, as
entrevistadas até o momento permaneciam casadas, no entanto, ambas passaram por situações
que as fizeram sair da condição família nuclear e constituíssem uma família monoparental,
onde, elas mesmas eram chefes.
A respeito do motivo que as levou ao ápice para se tornarem chefes de família
monoparental, no primeiro caso, a entrevistada ficou viúva e, no segundo foi devido à
separação causada pela traição do esposo com outra mulher. Questionadas sobre o real
motivo, responderam:

5
A Lei nº 11.340. de 17 de agosto de 2006, denominada de Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir e
prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em 21 fev. 2016

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E.: Porque eu fiquei viúva.

C.: Assim, ele trocou eu por outra mulher, ele se interessou por outra mulher né e
acabou me abandonando eu com as criança e fico... e eu fiquei sozinha com as
crianças.

Tendo em vista que a família é formada por um grupo de pessoas que trocam
experiências, criam laços de afetividade e assumem o compromisso do cuidado mútuo, fica
nítido que os integrantes acabam se apegando àquelas pessoas e se acostumando com aquele
ambiente, sendo assim, quando uma família deixa de ser nuclear e passa a ser monoparental,
os primeiros sentimentos são de tristeza, de medo, dúvidas e incertezas, pois tudo é muito
novo e exige uma adaptação para viver sob as novas condições de vida. Deste modo, as
entrevistadas relataram sobre como se viram no primeiro momento quando se tornaram chefes
de família:
E.: Eu sempre me superei né, quando ele morreu eu me senti sozinha [...] De como
ia ser sem ele, como eles (os filhos) iam entender nós três sozinhos. Se eu ia
continuar naquela batalha, se ia ser igual, se ia ser difícil pra mim sem ele né […].

C.: Eu não queria sair de casa e depois da separação que minha mãe faleceu, eu
fiquei sabe que é três meses sem comer nada, não comia nada, nada, nada, nada era
café e cigarro porque eu fumo né. Eu tava com sessenta e oito quilos fui pra
cinquenta quilos, emagreci um monte […] então é onde que eu fiquei assim sabe,
num ponto da minha vida que eu fiquei sem estrutura nenhuma, sem ter aquela
pessoa pra estender a mão, pra conversar, desabafar, pra mim desabafar... aí onde
que foi que eu me apeguei em Deus... (ficou emocionada, chorou). Falei Deus se for
pra eu continuar desse jeito aí tira essa magoa que eu tenho do coração de tudo...
porque eu não aguentava, eu falava com as criança eles não obedecia, eu não tava
tendo nem cabeça pra cuidar das criança direito […].

Verifica-se nos relatos supracitados o momento de fragilidade em que as mulheres


vivenciaram, quando se depararam com a nova situação, onde toda a responsabilidade da
família pertencia a elas. Mesmo que a princípio a dificuldade em conduzir a família
monoparental prevaleça na relação da mulher com seus filhos, é importante colocar que este
se trata de um primeiro momento, onde elas não conseguem refletir sobre a possibilidade de
conduzirem a vida de forma diferente, sem seus companheiros.
Passado o período mais difícil, e com a vida já caminhando, as entrevistadas relatam
como se sentem no atual momento sendo chefes de suas famílias monoparentais.

E.: [...] Mais fácil, mais tranquilo. Então, tipo daí que ele morreu eu falei pra D. e o
D. agora eu vou ser a mãe e o pai de vocês, vocês me obedece e tudo que der certo
né, com Deus na frente vai dar certo. Um tempão que a gente não tinha plano, não
tinha sonho, a gente não sonhava mais.

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C.: [...] Hoje em dia depois que eu passei, agora foi a melhor coisa […] era mais
difícil, agora eu acho mais fácil, então tipo assim, o que eu pego aqui eu sei onde
que vai onde não vai, eu já somo as coisa tudo certinho.

Nota-se que apesar dos obstáculos que enfrentaram diariamente para conduzir sua
família monoparental, as mulheres se sentem melhor com o rompimento da família nuclear,
pois é como se demonstrassem um sentimento de libertação de um relacionamento infeliz
marcado pela violência e insatisfações. É relevante destacar aqui que os sentimentos, os
desejos e as opiniões das mulheres devem ser respeitados, e por isso mesmo que a sociedade
associe a família monoparental chefiada por mulher, com pobreza e dificuldade, é preciso
levar em conta que muitas vezes, como é o caso das entrevistadas, essas mulheres preferem
viver somente com seus filhos, mesmo que isso não seja tão fácil, a ter que conviver com um
homem violento e que não fazia questão de compartilhar as responsabilidades familiares com
a esposa 6.
A família monoparental com chefia feminina possui problemas como qualquer outra
configuração familiar, ou às vezes, enfrenta dificuldades piores, no entanto em alguns casos, a
situação em que viviam no matrimônio era tão desconfortável que não conseguem encontrar
obstáculos em conduzir sua família monoparental, como é o exemplo das entrevistadas
quando são questionadas a respeito das dificuldades em ser chefe de família.

E.: Não. Nada. Porque, por exemplo, assim eu combino e converso com a D.
converso com o D.

C.: Ai no meu ponto eu não vejo dificuldade. Não, não vejo, não vejo sabe por que
no começo do meu casamento ele não trabalhava registrado, trabalhava por dia, na
roça assim, depois de uns tempos que ele começou a trabalhar registrado, então
sempre faltava o que comer, ai sempre como não tinha onde ele ir buscar, ai sempre
quem corria atrás era eu.

Muito mais do que ressaltar as qualidades da família, as mulheres admitiram ter que
desenvolver vários papéis e mesmo assim se sentirem feliz.
E.: Agora eu me sinto uma chefona, agora eu mando em tudo, agora né (risos).
Faço uma coisa aqui, outra ali.

C.: Ah, eu me sinto assim uma mulher vitoriosa viu.

6
Aqui não queremos generalizar que todas as mulheres chefe de famílias monoparentais o são em decorrência da
violência de gênero, pois como já citado, há mulheres que optam por esse agrupamento familiar antes mesmo de
assumirem uma relação conjugal, no entanto, ressalta-se que em muitos casos, a mulher passou por alguma
situação vexatória, de violência ou de negligência, e isto justifica o fato delas optarem e se sentirem melhor sem
ter a presença masculina dentro de casa.

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Através de toda trajetória exposta até aqui sobre a vida das entrevistadas e diante
deste último relato é possível verificar que toda dor e sofrimento vivido por elas, serviram de
motivação para superarem os inúmeros obstáculos e hoje, perceberem seus verdadeiros
valores.

Considerações finais

Ao longo da história, o conceito de família sofreu inúmeras transformações,


acompanhando as mudanças da sociedade. Desde a era primitiva até a atualidade, mudaram-se
as relações e configurações familiares, abrindo espaço para os mais diversos modelos de
família, dentre eles a família monoparental.
A monoparentalidade embora sempre presente no meio social, ganhou visibilidade
somente a partir da década de setenta do século passado. Várias são as origens dessa
configuração familiar, sendo que a viuvez marcou seu surgimento.
Na atualidade, temos a separação como uma das principais causas, mas ainda há as
pessoas que optam pela monoparentalidade através do celibato, criação individual dos filhos,
entre outras. Ainda, temos questões como o abandono e principalmente a violência doméstica
que também se mostram como fatores determinantes.
Diante da análise das entrevistas com uma mulher viúva e uma separada, pudemos
compreender como foi à construção de suas famílias monoparentais, como aconteceu à
transição de uma família nuclear para uma de chefia feminina, assim como as dificuldades e
medos enfrentados.
Concluímos que apesar de todas as adversidades enfrentadas, as mulheres chefes de
família sentem-se felizes e orgulhosas pela colocação que ocupam, procurando sempre buscar
um futuro melhor para si e seus filhos.

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A abordagem das capacidades de Martha Nussbaum e as estudantes com altas


habilidades na cidade de Londrina

Lais Regina Kruczeveski1


Silvana Mariano2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discorrer acerca das desigualdades enfrentadas
pelas mulheres em âmbito global, com foco na educação, para em seguida abordar as
especificidades das estudantes com altas habilidades/superdotação. A proposta se baseia numa
perspectiva de gênero por meio da abordagem das capacidades desenvolvida por Martha
Nussbaum. Segundo esta autora, a perspectiva das capacidades permite englobar questões que
outras perspectivas, como a dos direitos humanos e das preferências, não abordam,
permitindo, assim, uma reflexão acerca das possíveis barreiras e enfrentamentos que estas
estudantes por ventura vivenciam durante o processo de desenvolvimento de suas habilidades
na educação básica.

Palavras-chave: Altas habilidades/superdotação, gênero, perspectiva das capacidades,


educação.

As desigualdades que atingem as mulheres como fenômeno global


Esta pesquisa faz parte de uma primeira aproximação com a perspectiva das
capadidades, com o objetivo de avaliar a viabilidade de apropriar esta abordagem no
desenvolvimento da dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, a ser devenvolvida no
decorrer de 2018 e 2019, que trata a questão das estudantes identificadas com altas
habilidades/superdotação.
Deste modo, é fato que em todos os tempo e em quase todas as nações as mulheres
enfrentam, em todas as esferas da vida, barreiras associadas às desigualdades entre os sexo e
às relações de gênero, seja no espaço privado, público, no âmbito educacional, econômico,
social ou cultural. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2016, apesar
da não eliminação dessas desigualdades, o progresso de empoderamento das mulheres no
mundo tem aumentado. Em termos globais, as mulheres vem obtendo progresso em todas as
esferas da vida (UNPD, 2016).

1
Universidade Estadual de Londrina; discente do Curso de Mestrado em Ciências Sociais, bolsista da CAPES.
E-mail: lais_kruczeveski@hotmail.com
2
Universidade Estadual de Londrina; professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia.
E-mail: silvanamariano@yahoo.com.br

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Ainda de acordo com o relatório, a igualdade de gênero e o empoderamento das


mulheres não devem ser vistas como questões adiconais no diálogo sobre desenvolvimento e
sim como uma dimensão dominate do discurso do desenvolvimento local, nacional e global.
Segundo o relatório, “as mulheres provaram ser atoras econômicas produtivas, tomadoras de
decisões prudentes, líderes visionárias, voluntárias compassivas e pacificadoras construtivas.
E muitas mulheres estão expandindo seus horizontes3” (UNPD, 2016, p. 41). Em todos os
lugares do globo, ações e iniciativas estão sendo propostas e executadas para contribuir com o
empoderamento das mulheres.
O relatório demonstra que gradualmente a sociedade está aceitando e apreciando o
que as mulheres podem alcançar e contribuir:

Normas, valores e marcos legais estão evoluindo. A Costa do Marfim está


combatendo a discriminação legal contra as mulheres. Enquanto na década
de 1990 muitos poucos países protegiam legalmente as mulheres da
violência, hoje 127 países o fazem. Isto é em parte o resultado de uma
conscientização bem-sucedida sobre o custo humano e econômico de tal
violência. O Líbano agora penaliza a violência doméstica. O Peru proíbe o
assédio sexual em espaços públicos. A Hungria criminalizou a violência
econômica como uma forma de violência doméstica. Cabo Verde adotou
uma nova lei em 2011 para combater a violência baseada no gênero. O
Estado da Palestina recentemente elaborou a primeira estratégia nacional da
região árabe para combater a violência contra as mulheres, com a
participação de sobreviventes de violência4 (UNPD, 2016, p. 41).

Estes dados demonstram que a situação das mulheres no mundo vem melhorando
gradativamente ao longo dos anos. Entretanto, Martha Nussbaum (2010) lança a reflexão de
que em muitos lugares do globo as mulheres ainda não têm apoio para desenvolver suas
funções mais básicas da vida e de que as barreiras e os riscos enfrentados por elas são muito
maiores que dos homens.
A autora também aponta que as mulheres são geralmente menos nutridas que os
homens, menos saudáveis, são as mais vulneráveis a todos os tipos de abuso e violência,
sobretudo sexual. A história também mostra que são as mulheres que enfrentam mais
dificuldades e preconceitos para serem alfabetizadas e quanto mais se avança nos níveis de

3
“Women have proved to be productive economic actors, prudent decisionmakers, visionary leaders,
compassionate volunteers and constructive peacekeepers. And many women are expanding their horizons”
(UNPD, 2016, p. 41)
4
“Norms, values and legal frameworks are evolving. Côte d’Ivoire is tackling legal discrimination against
women. While in the 1990s very few countries legally protected women from violence, today 127 do. This is
partly the result of successful awareness- raising on the human and economic cost of such violence. Lebanon
now penalizes domestic violence. Peru prohibits sexual harassment in public spaces. Hungary criminalized
economic violence as a form of domestic violence. Cabo Verde adopted a new law in 2011 to fight gender-
based violence. The State of Palestine recently elaborated the Arab region’s first national strategy to fight
violence against women, with the participation of survivors of violence” (UNPD, 2016, p. 41).

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educação, mais se aumentam as dificuldades. No mercado de trabalho, enfrentam desafios


como a intimidação da família e do cônjuge, a discriminação sexual na contratação, no salário
reduzido e no assédio sexual no trabalho. Além de que não existem garantias eficazes para a
proteção delas e eliminação desses enfrentamentos.
A participação na vida política se torna quase impossível diante de outras barreiras, e
apesar de muitas nações afirmarem que elas são iguais aos homens perante a lei, na prática a
situação não é bem assim. Nussbaum (2010) aponta que em muitas nações as mulheres não
possuem os mesmos direitos a propriedade que os homens, o direito de firmar um contrato, ou
liberdade religiosa e sexual. Não podem frequentar os mesmos lugares, nem ao menos o
direito de mobilidade lhes é garantido. Quando em sociedades como o Brasil, em que
aparentemente a mobilidade e a liberdade de ir e vir são evidentes, os números de mortes das
mulheres aumentam a cada ano. De acordo com a Helena Martins (2017), a taxa de
feminicídios no País é a quinta maior do mundo.
A autora relata que só em São Paulo, em uma semana, foram registrados pelo menos
cinco casos de mulheres assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros. Segundo a
Organização Mundial da Saúde (OMS), chega a 4,8 para cada 100 mulheres. No Brasil, entre
1980 e 2013, cerca de 106.093 mulheres morreram apenas pelo fato de serem mulheres.
Martins (2017) ainda acrescenta que as mulheres negras são estatisticamente as maiores
vítimas de violência doméstica.
Um caso recente que ilustra que não somente na esfera doméstica as mulheres
sofrem violência: Marielle Franco, a quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de
Janeiro, mulher, negra, oriunda do conjunto de favelas Complexo da Maré. Defensora dos
direitos humanos, das mulheres, das comunidades LGBTs, Marielle estava empenhada na
defesa de projetos de lei para proteger os direitos reprodutivos das mulheres e estava
empenhada, sobretudo, na organização dos dados da violência policial nas comunidades do
Rio de Janeiro (CARNEIRO, 2018).
As mulheres, além do convívio com a violência dentro e fora de casa, são também as
que arcam com a dupla jornada de trabalho. Nussbaum (2010) aponta para a carga que o
pensamento tradicional sobre as mulheres como as cuidadoras em sua essência exerce na
rotina das mulheres, especialmente para as mulheres pobres dos países em desenvolvimento.
A responsabilidade pelos filhos e pelos afazeres domésticos limitam-lhes o tempo de cultivar
o lazer, o desenvolvimento da cognição e da imaginação.
No Brasil, as mulheres ainda enfrentam inúmeras barreiras nos mais diferentes
espaços da vida pública e privada. É o que afirma o Relatório de Desenvolvimento Humano,

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lançado pelas Nações Unidas em 2013. O Índice de Desigualdade de Gênero apontou o Brasil
na posição 85 em um ranking de 149 países analisados (JUSBRASIL, 2014).
A necessidade de se quantificar estas desigualdades entre homens e mulheres são
de extrema necessidade tendo em vista que estes dados servem como parâmetro e base para
a criação e implantação de políticas públicas. O Global Gender Gap Index (GGI) é um
destes medidores que coletam dados em nível mundial para a mensuração dos hiatos dentre
homens e mulheres em quatro áreas básicas para o desenvolvimento: participação
econômica e oportunidades; escolarização; saúde e expectativa de vida; e empoderamento
político. Este índice foi introduzido pela primeira vez no Fórum Econômico Mundial, em
2006, com a proposta de desenhar a amplitude das disparidades de gênero e fazer um
acompanhamento do seu progresso no decorrer do tempo (WEF, 2017).
Souza (2012) afirma que o GGI é um índice internacional inovador pelo fato de
combinar dados quantitativos com dados qualitativos, além de que este índice abrange as
disparidades entre homens e mulheres a partir de quatro fatores que são a economia, a
educação, a política e a saúde, ou seja, o GGI busca abranger as principais esferas da vida e
estas dimensões são compostas por subíndices que permitem de fato equivaler as proporções
entre os números relativos a homens e as mulheres.

Este trabalho se foca no âmbito da educação que, de acordo com Nussbaum (2009),
encontra-se em estado de crise. A autora aponta que a forma como a educação vem sendo
tratada, até mesmo pela abordagem do desenvolvimento humano, tem sido pautada numa
linguagem de mercado, focando somente o enriquecimento do país e, desse modo, formando
sujeitos dóceis e de olhos fechados para as desigualdades de raça, gênero e religião e que
estas desigualdades espelham diferentes oportunidades de vida. Neste sentido, o foco desta
pesquisa é voltado a observação de algumas perspectivas metodológicas com o objetivo de
apresentar o porque a perspectiva das capacidades permitirá abranger de modo mais
completo o estudo das mulheres com altas habilidades.

Altas habilidades/superdotação: implicações relativas às questões de gênero

Angela Virgolim (2007) apresenta uma definição que será utilizada neste trabalho
sobre o que são as altas habilidades. Segundo a autora, uma criança ou adolescente
considerado/a superdotado/a é a que apresenta uma habilidade em uma ou algumas áreas do
conhecimento considerada acima da média das outras pessoas, ou seja, um:
Notável desempenho e/ou elevada potencialidade em qualquer dos seguintes
aspectos, isolados ou combinados: capacidade intelectual geral; aptidão

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acadêmica específica; pensamento criador ou produtivo; capacidade de


liderança; talento especial para artes visuais, dramáticas e musicais;
capacidade psicomotora (VIRGOLIM, 2007, p. 2).

Para a autora, quando se fala em superdotação, as pessoas comuns imaginam nomes de


pessoas importantes de grande importância para a história da humanidade, como Gandhi,
Mozart, Picasso. Apesar destes nomes terem sido de fato pessoas que apresentaram
habilidades especiais, as altas habilidades não devem ser pensadas apenas para estas pessoas,
e não somente com nomes masculinos.
O único nome feminino citado pela autora é de Marie Curie, que apesar de sua grande
contribuição para a ciência, foi somente depois de muito tempo reconhecida pelos seus feitos.
Gabriel Pugliese (2012) aponta que Marie Curie foi uma das mulheres mais importantes da
história do Ocidente moderno. Ela foi a primeira cientista a ter seu nome associado à
radioatividade e é muitas vezes lembrada pelos movimentos feministas justamente pelo tardio
reconhecimento de seus feitos.
Marie Curie desenvolveu suas pesquisas com seu marido, Pierre Curie, e ambos
compartilharam o Prêmio Nobel. Mas, foi somente após a morte prematura do marido que
Marie pode assumir a cadeira de professora na Sorbonne (SCHIEBINGER, 2001).
Schiebinger também enfatiza que para as mulheres o casamento, na época, servia como um
caminho informal para a ciência.
Apesar das inúmeras barreiras, muitas outras mulheres são reconhecidas hoje como
grandes nomes da ciência. Acontece que, quando se trata de mulheres superdotadas, estas
barreiras são um pouco mais difíceis de serem quebradas. Para Susana Pérez e Soraia Freitas
(2012), o incentivo aos “bons modos” da menina na infância pode causar o atrofiamento de
atitudes da mulher, como a capacidade de questionamento e imposição, tornando-a uma
pessoa passiva que não pergunta nem questiona na sala de aula, nem na vida. Essas barreiras e
conflitos, segundo as autoras, podem também prejudicar o julgamento que essas mulheres têm
a respeito de suas habilidades especiais.
Faust (2015) acredita que não somente a questão das altas habilidades/superdotação
como também a situação social da mulher está alicerçadaa pelas representações sociais, desde
mitos, crenças ou pensamentos. Portanto, quando uma mulher assume sua alta
habilidade/superdotação, implica a negação da sua identidade de mulher “normal”, “igual às
outras”, e acaba por se assumir “a diferente”, “a outra”, “a estranha”.
Outro fator que deve ser levado em consideração vem de Nussbaum (2010),
retomando o que já foi citado no início do texto comprometem-no que se refere ao

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comprometimento do bem-estar emocional das mulheres. Segundo a autora, a vinculação


tradicional que vincula a mulher à esfera do cuidado é também um dos principais fatores que
podem interferir no desenvolvimento cognitivo da mulher. Um pensamento criticado por
Nussbaum é aquele que afirma as mulheres como as cuidadoras primeiras, ou seja, são sempre
as mulheres as escolhidas e fortemente recomendadas a cuidar de pessoas em situação
extrema de dependência, sejam elas crianças pequenas, idosos, doentes físicos e mentais.
Este tipo de vinculação ao cuidado acontece também de modo que não exista o
pagamento para estas funções, além de eliminar o tempo que as mulheres precisam para
aproveitar o lazer, a cidadania e o desenvolvimento cognitivo.
De acordo com Faust (2015), enquanto as mulheres são geralmente associadas às
“virtudes” e “qualidades” vinculadas à intuição, sensibilidade, cuidado, compreensão e afeto,
os homens são vinculados à autonomia, força, responsabilidade e coragem. Estes pensamentos
tradicionais, ao longo da história, impossibilitaram e criaram inúmeras barreiras para a
inserção e participação efetiva da mulher na educação e, sobretudo, na produção da ciência.
Heleieth Saffioti (1976) aponta que no período do Brasil pré-capitalista acreditava-se
que de fato a mulher possuía uma inferioridade mental comparada aos homens. Neste sentido,
a negação a instrução e ao desenvolvimento da cognição que impedia as mulheres de
desenvolverem suas capacidades intelectuais de modo efetivo.
Sabe-se que as mulheres no Brasil enfrentaram inúmeros obstáculos para o acesso à
educação. O advento da sociedade capitalista e a necessidade de instrução para o mercado de
trabalho possibilitou aos poucos a inserção da mulher na educação, especialmente das
mulheres de camadas médias e superiores. Entretanto, elas ainda eram incentivadas a
desenvolverem conhecimento em apenas algumas áreas, como datilografia, educação
primária, e outras funções tradicionalmente consideradas femininas (SAFFIOTI, 1976). Com
todas as mudanças desde a década de 1970, intensificadas em períodos mais recentes, ainda
persistem nichos prioritários para o ingresso de homens e de mulheres, especialmente quando
se observam dados de matrículas no ensino superior brasileiro.
Com a emergência dos movimentos feministas e dos estudos de gênero, as mulheres
foram também, mesmo que aos poucos e sem menos dificuldades, alcançando seus lugares no
desenvolvimento da ciência ocidental que, segundo Schiebinger (2001), apresentava um
imenso viés de exclusão das mulheres e outras minorias.
A autora ainda aponta que a ciência moderna, pelo modo como foi escrita, e
desenvolvida por sujeitos homens, é resultado de séculos de exclusão das mulheres, e neste

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sentido somente poderá incluir estas minorias por meio de um profundo impacto no cerne do
pensamento social.

Perspectivas de análise, proposições para a promoção da igualdade/equidade


Amartya Sen (2012, p. 185) acredita que, “a importância da distinção entre buscar a
igualdade em diferentes espaços relaciona-se fundamentalmente com a natureza da
diversidade humana”. Neste sentido, o autor avalia que, pelo fato de sermos tão diversos, a
igualdade num espaço geralmente resulta em desigualdade em outros espaços.
Uma base de classificação que Sen (2012) aponta como bastante relevante no contexto
da desigualdade é o sexo. O autor afirma que há “disparidades sistemáticas nas liberdades que
os homens e as mulheres desfrutam em diferentes sociedades” (SEN, 2012, p. 190) e estas
diferenças não são redutíveis às diferenças na renda ou em recursos. O autor coloca que
embora a renda seja um elemento significativo que demonstra as desigualdades entre homens
e mulheres, há inúmeros outros elementos que reforçam estas desigualdades.
Existem as desigualdades que começam dentro da família, como as divisões do
trabalho doméstico, o tipo de educação recebida, as expectativas esperadas para um e outro
sexo. Sen (2012) ainda aponta que as taxas de mortalidade e morbidade refletem esta
provação diferente das mulheres em diferentes partes do mundo. Neste sentido, de que forma
seria possível a proposição de uma perspectiva de análise que permita pensar acerca destas
desigualdades entre homens e mulheres para assim promover uma igualdade/equidade?
Sen (2012), em sua obra Desigualdade reexaminada traz à tona duas perguntas: “por
que igualdade?” e “igualdade de que?” Para se pensar em possíveis respostas, é preciso
primeiro refletir acerca da diversidade que são os seres humanos, além da pluralidade de
espaços em que esta igualdade pode ser avaliada como, por exemplo, renda, riqueza,
utilidade, liberdade, bens primários e capacidades. Neste sentido, o autor inclui que “as
exigências da igualdade em diferentes espaços não coincidem precisamente porque os seres
humanos são diversos” (SEN, 2012, p. 201) e que, portanto, “igualdade em um espaço
coexiste com desigualdades substanciais em outros.
O que este autor coloca como ponto chave de sua análise é o fato de que, diante de
tantas diversidades e pluralidades existentes em todos os espaços ao redor do mundo, é
necessário, então, a reflexão de um modo de avaliação e análise que permita adentrar todos
estes fatores e observá-los com base numa perspectiva que possibilite de fato o alcance de
uma equidade/igualdade verdadeira.

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Um exemplo colocado por Nussbaum (2010) diz respeito ao custo da escolarização de


homens e mulheres. Segundo a autora, frequentemente, por conta de algumas variações
sociais, como as hierarquias tradicionais postas para homens e mulheres, em alguns lugares do
globo, a alfabetização das mulheres é mais cara que a dos homens e que, se utilizar a análise
através de um índice de recursos, estas desigualdades permanecerão recorrentes.
Umas das grandes contribuições de Sen para avaliação da economia mundial foi
observar estas especificidades, seja de classe, raça, gênero, religião e localidades diversas
para, assim, propor uma forma de avaliação que permita valorizar e pensar de modo mais
crítico a distribuição de recursos e o desenvolvimento de todas as nações. O motivo da
elaboração de uma análise através de uma perspectiva baseada nas capacidades se deu pelo
intuito de permitir abranger estas especificidades no sentido de que, mesmo que os recursos
estejam disponíveis, cada ser humano, a partir das suas especificidades, conseguirá em maior
e menor grau usufruir destes recursos. E a distribuição de recursos de modo que não se atente
as especificidades e barreiras de cada indivíduo, não é uma distribuição igualitária e justa.
Nussbaum (2010) traz um resumo que permite compreender porque outras
perspectivas não permitem uma distribuição justa e igualitária dos recursos. A primeira
abordagem posta, refere-se à abordagem do Produto Nacional Bruto (PNB). Segundo a autora,
Sen contribuiu enormemente nos Relatórios do Desenvolvimentos Humano para a superação
da concepção que associava desenvolvimento a crescimento econômico. De acordo com
Nussbaum (2010), os dados do PNB omitiam uma porção de informações que são relevantes,
como renda e distribuição de riqueza, além de informações sobre a situação das mulheres nos
diferentes lugares do mundo.
A autora defende que não somente informações de renda são necessárias para analisar
a situação das mulheres, mas também informações como cuidados com a saúde, mortalidade
infantil, liberdades políticas, oportunidades educacionais e outras categorias de informação.
Esta abordagem baseada nos recursos apresenta uma outra dificuldade que diz respeito à
variabilidade das pessoas de converter recursos em funcionalidades. Ou seja, as mulheres
foram durante anos, privadas de educação e informação, além de que em muitos lugares do
mundo, as mulheres foram sociabilizadas acreditando que possuíam e mereciam de fato, um
padrão de vida inferior ao dos homens e, neste sentido, determinados bens não lhes são
destinados, como participação política e a liberdade sexual.
A autora ressalta que estas variações, além de sociais, podem ser físicas, como, por
exemplo, uma mulher grávida precisa de mais nutrientes que uma mulher não grávida, ou uma

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criança, que precisa de mais nutrientes que um adulto. E no caso das variações sociais,
algumas delas podem estar associadas a hierarquias tradicionais (NUSSBAUM, 2010).
Uma abordagem dos recursos que se atente a estas especificidades deve, por exemplo,
oferecer uma educação em que todos os cidadãos são tratados de forma igualitária e os
recursos são distribuídos de modo justo, e, deste modo, para se alcançar esta equidade, deve-
se dedicar mais recursos aos indivíduos que possuem mais barreiras e obstáculo durante o
processo. Portanto, a educação das mulheres, em alguns lugares do mundo, se tornaria mais
cara que a educação dos homens.
Uma outra abordagem apontada por Nussbaum (2010), é a abordagem das
preferências. Esta abordagem também possui algumas limitações, mas em relação à
abordagem dos PNB possui um diferencial, pois “elas olham para as pessoas e avaliam o
papel dos recursos para a melhoria das suas vidas” (NUSSBAUM, 2010, p. 25). Entretanto, as
pessoas que usam tais abordagens costumam pensar que a forma de avaliar o papel destes
recursos é simplesmente perguntar sobre a satisfação de suas preferências.
Neste sentido, a autora coloca que as preferências não são exógenas, ao menos estas
preferências são construídas com base em condições econômicas e sociais. As mulheres não
escolhem ter ou não independência econômica enquanto não se veem como sujeitos de direito
e escolha. As preferências dos homens também são socialmente construídas. De acordo com
Nussbaum (2010), tais preferências são construídas tradicionalmente por privilégios e
subordinação e, neste sentido, uma abordagem com esta base somente reforçaria estas
desigualdades, ao invés de eliminá-las.
Assim como Saffioth já comentou que as mulheres no Brasil foram por muitos anos
privadas de educação, Nussbaum comenta que esta privação já demonstra que uma
abordagem das preferências não seria um indicador confiável. Do mesmo modo, uma
abordagem baseada nos direitos humanos também não seria uma abordagem mais adequada
para análise.
Apesar da abordagem dos direitos humanos visar a abordagem destas desigualdades, e
ter se esforçado na busca dos direitos de justiça para as mulheres, este tipo de abordagem,
segundo Nussbaum (2010), é precária alguns aspectos, que são:

Em primeiro lugar, é intelectualmente contestada: há muitas concepções


diferentes de o que são direitos e de o que significa assegurar um direito a
alguém. Seriam os direitos pré-políticos, peças de leis e instituições? Eles
pertenceriam somente a indivíduos ou também a grupos? Estariam sempre
correlacionados a deveres? E quem teria os deveres correlacionados a esses
direitos? Os direitos humanos seriam direitos a quê? Liberdade da

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interferência estatal, primeiramente, ou também certo nível positivo de bem-


estar e oportunidades? Portanto, usar a linguagem de direitos por si só não
ajuda muito: apenas suscita uma série de outras questões sobre o que está
sendo recomendado (NUSSBAUM, 2010, p. 26).

Neste sentido, uma abordagem pautada nos direitos humanos não é suficiente para
responder estas questões. Além de que, esta linguagem dos direitos, segundo a autora, está
muito associada às questões de liberdades políticas e civis, e somente na atualidade vem
sendo mais tratada no campo econômico. Em relação às mulheres, Nussbaum (2010, p. 26)
cita um exemplo, “Uma mulher que não tem oportunidades de trabalhar fora de casa não
possui a mesma liberdade de associação que uma mulher que pode trabalhar fora de casa”. Do
mesmo modo que uma mulher que não teve oportunidade de estudar terá dificuldades de
efetivar sua participação nas decisões políticas.
Outra limitação da abordagem dos direitos humanos se refere às demandas mais
urgentes das mulheres que foram ignoradas, como a violência doméstica e os abusos à
integridade física. Questões de justiça na família e do não reconhecimento do trabalho
doméstico também não foram solucionadas ou amenizadas com esta abordagem. Portanto,
qual tipo de abordagem permitiria adentrar o campo das estudantes com altas
habilidades/superdotação e que fosse capaz de analisar de forma justa todas as suas
especificidades e barreiras para uma educação emancipadora e inclusiva?

Por que a perspectiva das capacidades para observar as Altas Habilidades?


Segundo Sen (2009, p. 265), qualquer teoria ética ou filosófica, mas, em particular,
teorias da justiça, precisam escolher um “foco informacional”, ou seja, em “quais
características do mundo deve se concentrar para julgar uma sociedade e avaliar a justiça e a
injustiça” (SEN, 2009, p. 265). É neste sentido que o autor aponta, em contraste com as
abordagens baseadas nos recursos e no utilitarismo, a abordagem das capacidades.
Nesta abordagem, segundo o autor,
A vantagem individual é julgada pela capacidade de uma pessoa para fazer
coisas que ela tem razão para valorizar. Com relação às oportunidades, a
vantagem de uma pessoa é considerada menor que a de outra se ela tem
menos capacidade – menos oportunidade real – para realizar as coisas que
tem razão para valorizar. O foco aqui é a liberdade que uma pessoa
realmente tem para fazer isso ou ser aquilo – coisas que ela pode valorizar,
fazer ou ser (SEN, 2009, p. 266).

Levando em consideração a perspectiva das capacidades, é possível abordar as altas


habilidade pensando não nos recursos que se tem disponíveis para ensinar, e atender com

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eficácia as estudantes com superdotação, mas sim o que de fato se pode ou não fazer com
estes recursos e como estes recursos podem ser melhor utilizados, caso as estudantes
atendidas no Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação5 (NAAH/S) sofram
algum tipo de desmotivação ou preconceito relacionado a gênero.
Neste sentido, Nussbaum aponta que
Se operarmos apenas com um índice de recursos, repetidamente
reforçaremos desigualdades relevantes para o bem-estar. Como sugerem
muitos exemplos, as vidas das mulheres são especialmente passíveis de
levantar esses problemas; portanto, qualquer abordagem que tente lidar
adequadamente com questões das mulheres deve ser capaz de operar bem
com essas variações (NUSSBAUM, 2010, p. 24-25).

Pensando as escolas como ambientes que expressam o sexismo, o objetivo de uma


educação inclusiva que atenda as propostas de uma perspectiva das capacidades, as estudantes
com altas habilidades devem receber um tipo de atendimento que permita o total
desenvolvimentos de suas capacidades levando em consideração possíveis barreiras de
gênero.
Virgolim (2007) chama a atenção para o fato de que, nos dias de hoje, sabe-se que as
grandes mentes, no que se refere às potencialidades genéticas, não nascem inteiramente
prontas. É por este motivo que o encorajamento e o incentivo são fortemente necessários para
um melhor desenvolvimento destas potencialidades.
Quando uma criança entra na vida escola, ela, muitas vezes, não tem consciência dos
seus talentos. A autora acrescenta que muitas destas crianças não têm sequer a oportunidade
de explorar estes potenciais. Durante os primeiros anos de aprendizado, estes talentos
geralmente permanecem escondidos, e em muitos casos, escondidos durante toda a vida
adulta.
Algumas barreiras dentro da sala de aula que podem ser consideradas um complicador
é a não aceitação das suas diferenças pelos/as professores/as e colegas de turma. Se já nos
primeiros anos de escola a criança se percebe diferente, por exemplo, se a comunicação se
torna difícil devido à diferença de vocabulário e o modo de se expressar, ocorre não aceitação
por parte dos seus pares, o que envolve uma barreira e desincentivo destas potencialidades.
São nos anos iniciais da educação que muitas vezes se garante o sucesso ou o fracasso do
desenvolvimento das habilidades (VIRGOLIM, 2007).

5
NAAH/S (Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação) em 2005 pelo MEC-SECADI foi uma
iniciativa que propõe esta integração, inclusão e valorização dessas crianças e adolescentes portadores/as de
talentos. Ele funciona como um serviço de apoio pedagógico especializado, oferecendo suporte aos sistemas de
ensino no atendimento às necessidades educacionais especiais dos/as alunos e alunas com altas
habilidades/superdotação (AH/SD).

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Embora Virgolim (2007) acredita que a partir dos anos 2000 e com a implementação
no Núcleo de Atendimento para Altas Habilidades/Superdotação em 2005, houve muitas
melhorias no atendimento aos/as estudantes superdotados/as, a autora aponta alguns desafios
que ainda precisam ser alcançados, como a abrangência dos meios de comunicação que falam
sobre a superdotação. Segundo a autora, a falta de conhecimento sobre o que é a superdotação
pode aumentar os estigmas e preconceitos em relação a estas especificidades, assim como os
mitos que permanecem, sobretudo em relação a mulher superdotada.
A necessidade de materiais adequados e o desenvolvimento de técnicas diferenciadas
são essenciais para o desenvolvimento destes/as jovens e, portanto, a adaptação de diferentes
currículos e a aproximação deles/as à pesquisa e extensão, são meios capazes desenvolver
ainda mais o potencial de superdotação. No caso das mulheres, a oferta de apoio especializado
e inclusivo pode auxiliar no aperfeiçoamento e incentivo do desenvolvimento das
capacidades.

Conclusão

Para as mulheres, a aceitação da superdotação pode ser mais doloroso. Suzana Pérez e
Karina Paludo já afirmaram isto. Os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres
podem ser fatores complicadores para a aceitação destas mulheres e suas habilidades. Uma
educação emancipadora deve permitir a formação destas jovens sem o juízo de suas
habilidades. Neste sentido, não somente os/as professores/as das salas que atendam estas
especificidades devem estar preparados/as para recebe-las como também professores e
professoras das salas regulares. A escola deve estar atenta a sinais de preconceito e
estereótipos.
Um exemplo citado por uma professora da rede pública de Londrina, é uma jovem,
sem diagnóstico de superdotação, mas que vem recebendo comentário vexatórios e
preconceituosos dos colegas homens porque venceu um prêmio de robótica, que para os
meninos é uma atividade considerada masculina. Um ambiente em que mulheres são
desmotivadas a desenvolverem suas capacidades não deve ser um ambiente que auxilie no
real desenvolvimento destas capacidades. Deste modo, a quebra de paradigmas e o apoio
especializado pode permitir que visões tradicionais e do senso comum sejam esclarecidas e
que estas jovens possam desenvolver suas habilidades a partir de seus gostos e capacidades.

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Recortes sobre os processos de subjetivação de mulheres: a construção de


subjetividades a partir da militância feminista

Amanda Gaion Pedro1

Resumo: O movimento social de mulheres perpassa a história com suas demandas e lutas em
busca de conquista de direitos. Neste trabalho, apresentaremos os resultados parciais de nossa
pesquisa que enfocará a história do movimento de Londrina-PR, com o objetivo principal de
analisar o processo de produções de sentidos entre as mulheres militantes do movimento
feminista de Londrina-PR, a partir de 2012, no tocante às questões dos direitos das mulheres,
além de ter como foco de análise neste movimento as construções do mesmo como novas
narrativas sobre gênero feminino e a garantia de direitos. Nossas ferramentas de análise são as
propostas trazidas pela psicologia social discursiva e a produção de sentidos no cotidiano. O
movimento feminista pode ser considerado um mecanismo de resistência ao sistema
hegemônico que se configurou no ocidente. Neste sentido, a psicologia social é um
dispositivo que disponibiliza ferramentas comprometidas politicamente e eticamente, com
posicionamentos que busca desvelar verdades essenciais e generalizáveis, fazendo com que
esta psicologia seja trazida neste estudo como instrumento que problematize as relações
sociais de opressão e de desigualdade, desconstruindo posições ideológicas que sustentam tais
relações e questionando a naturalização do pensamento opressor. Assim, um dos objetivos
também é apresentar a metodologia escolhida para a construção desta narrativa que perpassa
pelos conceitos de cotidiano, lugar, produção de sentido, práticas discursivas e campo-tema.
Além de trazer a discussão para o campo das teorias feministas e estudos gêneros.
Consideramos que a Psicologia Social é um campo rico em ferramentas conceituais e
metodológicas e a inclusão da perspectiva de gênero e feminista deverá proporcionar avanços
nos debates sobre as relações entre os movimentos sociais e a construção de subjetividades.
Palavras-chaves: Processos de Subjetivação. Militância Feminista. Psicologia Social.

Introdução

A mobilização das mulheres em torno da conquista de direitos existe há longos anos,


com demandas específicas nas questões de gênero, que se intercruzam com categorias como
raça/etnia e classe. Demandas essas que vão surgindo ao decorrer da história e exigindo novas
soluções para tais problemas a elas designados e por elas vivenciados. A cada transformação
deste movimento, foram registradas várias ações emancipatórias no que diz respeito aos
direitos civis, políticos e sociais das mulheres. Porém, a cada mudança, novos olhares se
constroem sobre este movimento social e novas discussões se consolidam para que a garantia
do contínuo acesso das mulheres por cidadania não se dissipe e seja assegurado.

1
Universidade Estadual de Londrina; Mestranda pelo PPGPSI-UEL; amandagaion@gmail.com.

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Este trabalho é a narrativa de uma proposta de pesquisa que parte da indignação


constante de uma ativista pelos direitos das mulheres e psicóloga social que acompanha os
desdobramentos do cenário feminista na cidade de Londrina-PR, desde 2012. Através deste
acompanhamento, um questionamento sobre a subjetividade das mulheres militantes neste
movimento surgiu, fazendo com que essa pesquisa fosse possível. A psicologia social é um
campo rico em ferramentas conceituais para o entendimento dos processos de subjetivação
deste movimento, que se constitui e se reconstitui através da linguagem feminista,
proporcionando que mulheres envolvidas no movimento produzam novos sentidos para suas
vidas e para as lutas pela conquista plena de cidadania para todas as mulheres. Este é um dos
alvos desta investigação.
Os discursos que são tecidos dentro deste contexto, onde os feminismos se fazem e se
refazem, podem contribuir para a produção de sentido no cotidiano vivido das agentes deste
movimento? Essa produção de sentido através do discurso feminista pode afetar de forma
significativa o cotidiano dessas mulheres? E como é essa afetação, se assim houver? A busca
por essas respostas é que impulsiona a realização de tal pesquisa.
Para a realização do estudo no contexto do movimento feminista londrinense, é
importante partir de uma breve discussão histórica da mobilização das mulheres no ocidente,
visto que, nesta região, as redes de relações e intercomunicações se fizeram mais constantes e
influentes. Assim, no contexto sócio-histórico europeu pós-revoluções (francesa e industrial)2,
o feminismo nasce como um grito de emancipação das mulheres por direitos civis e
trabalhistas. Importante situar que nos continentes asiático e africano também houve
mobilizações de mulheres para a garantia de direitos, porém esta pesquisa buscará como fonte
histórica o movimento feminista ocidental, marcando como início deste o sufrágio.

Movimento Feminista: importantes considerações históricas

A Europa que emerge após o período histórico das revoluções burguesas,


principalmente, a revolução industrial, faz com que o movimento do sufrágio feminino
(século XIX-XX), também conhecido como a primeira onda do feminismo, criasse um
contexto de luta das mulheres pelo direito ao voto e por melhores condições de trabalho, que
possibilitassem uma significativa mudança na ordem social vigente até então (ALVES &
2
As mobilizações de mulheres que aconteceram pelos continentes asiático e africano, bem como os
movimentos da América Latina, são tão significativas quanto as mobilizações concretizadas no
contexto europeu, contudo, por uma questão de prazos institucionais, esta pesquisa se restringirá
apenas as conjunturas pós-revoluções européias, devido a forte disseminação que atingiram.

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PITANGUY, 1981). O sufrágio traçou duras lutas políticas, porém garantiu a conquista do
voto feminino e a extensão das leis trabalhistas para as mulheres, gerando caráter de cidadania
a grande parte da população feminina. Conforme cita Alves e Pitanguy (1981), as décadas de
30 e 40 representaram um período de concretização de algumas conquistas deste movimento,
como a aquisição do voto para as mulheres, o ingresso às instituições escolares e a
participação no mercado de trabalho.
Em meados dos anos 60, segundo Frazer (2007), o movimento feminista passa a
questionar as formas de dominação masculina, sustentando a inclusão do “pessoal” na visão
política. O cotidiano privado das mulheres passa a ganhar destaque no questionamento das
estruturas de dominação do homem sobre a mulher. Os problemas que antes eram entendidos
como da vida privada, na medida em que envolvem questões de justiça, se tornaram questões
de ordem pública. Nesse sentido, Pinto (2012) aponta que, neste contexto, o feminismo surge
como um movimento libertário, com o objetivo de libertar as mulheres das opressões que
vivenciam em todos os aspectos da vida. Os espaços a serem conquistados não seriam apenas
no trabalho, nos estudos ou na vida pública, mas também na questão da liberdade e autonomia
de decisão sobre si. Neste momento, acontece a consolidação da chamada segunda onda do
feminismo.
A terceira onda do movimento se concretiza mundialmente na década de 1990,
trazendo uma discussão dos modelos estabelecidos nas outras ondas, focando nas discussões
de micropolítica (RIBEIRO, 2014). As reflexões trazidas, entre outras, por Judith Butler
mudam no sentido de expor que o discurso universal é excludente, pois as opressões atingem
as mulheres de diferentes formas.
Como resultado desta terceira parte da história do feminismo concluiu-se que não
existe apenas um enfoque feminista, há diversos, principalmente, quanto “às posições
ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos diversos, com
posturas e ações diferentes”. (RIBEIRO, 2014).
Atualmente, fala-se em uma quarta onda do movimento feminista. Segundo Matos
(2010, pp. 68-69), a “quarta onda” valoriza “arenas paralelas de atuação, seja no âmbito da
sociedade civil ou no das fronteiras existentes entre esta e o Estado”, assegurando a seriedade
do debate em torno das interseccionalidades entre gênero, raça, sexualidade, classe e geração.
Consideramos que essas transformações do movimento feminista foram sendo realizadas de
acordo com os acontecimentos sociais e culturais pelo mundo. Podemos, então, dizer que a
cada onda se propagou novos objetivos, novas pautas, novos olhares, criados e intensificados,
fazendo com que esse movimento crescesse e ganhasse a participação efetiva das mulheres.

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Existem ainda, muitas contradições, impasses e desafios a serem ouvidos e trabalhados para
se alcançar maiores e melhores ações. Ações essas que possam modificar a vida de grande
parte das mulheres, principalmente aquelas que são mais atingidas pelos machismos
cotidianos e a negação de direitos, ou seja, as mulheres negras, que buscam todos os dias
formas de sobrevivência em uma cultura patriarcal e racista.

Opressão, violência e discriminação contra as mulheres

A opressão contra as mulheres é histórica, antes mesmo da organização política pela


reivindicação de direitos. O abuso contra as mulheres, em seus múltiplos sentidos e ações, era
e é um fato social existente. Para algumas feministas, a opressão contra as mulheres, pode-se
ter intensa relação com a invenção da propriedade privada, como veremos a seguir. A partir
disso, dá suporte à criação da divisão sexual do trabalho. Passa, então, a existir a separação
entre as atividades laborais, registrando assim, a diferença entre o que seria o trabalho do
homem e o trabalho da mulher.
Anterior ao surgimento da propriedade privada, Alves & Pitanguy (1981, p.66)
apontam que “nas sociedades de caçadores e coletores não havia uma divisão estrita entre
economia doméstica e economia social. Inexistia o controle de um sexo sobre o outro na
realização de tarefas ou nas tomadas de decisão”. Ou seja, as mulheres tinham poder de
decisão nos acontecimentos dessa comunidade, havia separação entre os sexos no sentido
laboral, mas não havia diferença no sentido moral, ou seja, não havia nessa ordem de
convivência uma superioridade do trabalho do homem sob o trabalho da mulher, pelo
contrário, havia um regime de parceria e solidariedade entre homens e mulheres que
impulsionava o coletivo a resistir em um contexto de difícil sobrevivência.
Porém, com o humano se tornando sedentário, passou a cultivar a terra e se estabelecer
em lugar fixo, com a invenção de alguns instrumentos para o trabalho no campo, a capacidade
de ter força física para o labor passou a ter maior valor, conseqüentemente a isso, tendo como
base a lei do mais forte e não mais os princípios das mulheres e dos homens que conduziam
juntos o mundo. O homem passa a ser supervalorizado em relação à mulher. Emerge em meio
a esse jogo de poder o patriarcado, que impulsiona até os dias de hoje a desigualdade entre
homens e mulheres.
O surgimento da diferença social e política entre os sexos trouxeram, então, grandes
perdas para a vida das mulheres, no sentindo de perder sua autonomia, seu poder de decisão e
o valor de seu trabalho. A mulher é considerada até momento o “sexo frágil”, ainda carrega

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toda a bagagem história da indiferença e da desigualdade. Até o presente momento temos que
lidar com esse tipo de pensamento arcaico, de que a lei do mais forte (fisicamente) deva
prevalecer em todas as bases de uma sociedade.
Pensando na realidade brasileira, a pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em março de 2017, sobre a disparidade entre os
gêneros analisando a renda da população, nos mostra que a média nacional do cidadão
brasileiro é de R$ 2.043,00, porém o homem continua recebendo mais. Enquanto ganham, em
média, R$ 2.251,00, as mulheres recebem acerca de 1.762,00, ou seja, a diferença gira em
torno de R$ 489,00 (KOMETANI, 2017). Ainda se tem sobre a mulher a expectativa que por
ter outras obrigações – entendidas de sua inteira exclusividade – como o cuidado da casa e
dos filhos, ela não poderá se dedicar por completo ao seu trabalho, justificando assim, o
rendimento salarial menor. Delineia-se então, até o atual momento, que o cuidado doméstico é
apenas da ordem feminina.
A violência é um marco severo que atinge milhões de mulheres no mundo, segundo
informações da Organização Mundial da Saúde, o Brasil segue sendo o 5º país no ranking de
homicídios femininos, com sua taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres
(WAILSELFISZ, 2015).
É relevante firmar que a violência contra a mulher é um problema social estrutural que
tem como base o machismo cotidiano e o patriarcado imbricados nas relações sociais,
elemento ímpar na discussão deste tema. A preocupação mais recente é “a superação dessa
violência como condição necessária para a construção da nossa humanidade”
(WAILSELFISZ, 2015, p. 7). De toda essa discussão, o que se confere de mais novo nesses
desdobramentos de superação da violência contra a vida das mulheres é a judicialização, que
podemos entender como a criminalização dessa violência, movida pelos aparelhos estatais,
tais como a polícia e o sistema jurídico, na mobilização em proteger as vítimas ou na punição
dos agressores (WAILSELFISZ, 2015).
Neste sentido, podemos citar duas leis brasileiras que tiveram suma importância nesse
processo jurídico de criminalização da violência contra a mulher que foram a Lei 11.340,
conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada em agosto de 2006, e a Lei 13.104/2015,
conhecida como Lei do Feminicídio, sancionada em março de 2015.
Em 2013 foram registrados 4.762 mortes de mulheres no país, o que representam 13
homicídios femininos diários. Em 2015 foram 4.621 mulheres assassinadas no Brasil segundo
dados do IPEA, porém, neste mesmo ano, foi constatada certa diminuição no número de

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mortes de mulheres brancas no país (queda de 9,8%), enquanto que o índice de mortes das
mulheres negras aumentou (aumento de 54,2%).
É significativo grifar nessas linhas que as mulheres negras são as principais vítimas da
violência contra as mulheres neste país. Segundo Sanematsu e Prado (2017), as mulheres
negras são as maiores vítimas de violência doméstica, de mortalidade materna, de violência
obstétrica. A maioria das mulheres mortas por agressão é negra. Os homicídios de mulheres
brancas caíram, enquanto os homicídios de negras aumentaram, conforme vimos acima.
Os dados também revelaram que as mulheres morrem mais por
estrangulamento/sufocação, objeto cortante/penetrante e objeto contundente, indicando maior
presença de crimes de ódio ou por motivos fúteis/banais. O local das mortes geralmente são
os domicílios e atualmente, no Brasil, foram registradas aproximadamente 8.000 pessoas
presas por violência doméstica (WAILSELFISZ, 2015).
Essa base histórica e de informação em relação à concretização dos fatos de violência
e opressão sobre as mulheres, faz com que o movimento feminista seja um movimento social
de suma importância ainda nos dias de hoje. Pois, é partir da organização política e social das
mulheres, em conjunto com a produção de novas formas de subjetivação feminina, partindo
do conhecimento histórico dessas lutas e a proposição de transformar as bases machistas e
patriarcais da sociedade, que mudanças podem vir a ser geradas.
No cenário político brasileiro, alguns retrocessos no que tange aos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres começaram a aparecer. Um exemplo dessa afirmação é a proposta
de Ementa Constitucional 181/2015, que pretende extinguir as permissões legais de
interrupção da gravidez, a saber, em casos de estupro, anencefalia do feto e risco para a vida
da gestante. Alguns grupos conservadores propõem inserir no texto constitucional a
“dignidade da pessoa humana desde a concepção”, desconsiderando a dignidade da mulher e
seu direito de decidir sobre seu próprio corpo. Recentemente, em Londrina-PR, houve um
avanço das pautas conservadores na Câmara Municipal, como a aprovação da Lei Municipal
n. 12.509, de 12 de junho de 2017, que acrescenta às Comemorações Oficiais do Município o
Dia do Nascituro. Mesmo com posicionamentos de diversos coletivos que lutam pelos direitos
das mulheres, do Ministério Público, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, da
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres, da Comissão dos Direitos Humanos da
OAB, contrários à proposta, a Lei foi aprovada e sancionada pelo atual prefeito Marcelo
Belinati do Partido Progressista (PP), ferindo gravemente o princípio da laicidade do Estado,
já que o fundamento da referida lei tem bases teológicas. Além de não ter respaldo jurídico,
afronta o direito das mulheres sobre seus corpos, sobre sua dignidade e as culpabiliza,

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ignorando a responsabilidade do Poder Público em garantir condições materiais e psicológicas


para as mulheres gestantes.

O Movimento das Mulheres de Londrina a partir de uma perspectiva feminista

Levando em consideração esse breve histórico trazido do movimento feminista e os


dados sobre as opressões contra as mulheres, escrever sobre esse movimento em Londrina -
PR, seus desdobramentos, suas contribuições para a realidade de algumas agentes ativas do
movimento, pensando nas ferramentas de análise produzidas pela psicologia social nesse
processo histórico-social-cultural requer contar outra história. Segundo Spink (2003, p. 22),
“nós contamos histórias e nós nos tornamos as histórias que nós contamos”. Assim, segue
minha narrativa não acabada e minha pergunta dentro deste movimento.
A pesquisadora nesta parte do escrito irá contar essa história em primeira pessoa: Ao
ingressar na área de assistência social como psicóloga de um dos CRAS (Centro de
Referência de Assistência Social) na cidade de Londrina-PR em 2011, minha prática se
iniciou atendendo famílias socialmente fragilizadas. Acolhendo as demandas, principalmente
as subjetivas, me deparei com alguns questionamentos importantes para (re)pensar o trabalho
com famílias que o serviço desenvolvia. As observações iniciaram na questão de gênero,
através das quais foi possível perceber que a maioria das pessoas que atendíamos era
mulheres. Dessas, a maioria chefes de famílias, com muitos filhas/os, sendo obrigadas a
trabalhar longas jornadas para poder sustentar a si e seu núcleo familiar. O cuidado com as
crianças e jovens eram designados, muitas vezes, às instituições públicas como escola, creche
e/ou projetos socioassistenciais; algumas mulheres os deixavam sozinhos em casa ou com
parentes. Percebi que muitas mulheres ali sobrevivem apenas com a renda do Programa Bolsa
Família, pois não conseguiam um trabalho formal ou vagas nas instituições de cuidado e
educação para deixarem seus filhos. Porém, a maioria dessas mulheres trabalhava, muitas sem
registro em carteira. Havia sim, certo tipo de labor, onde a profissão que mais atendíamos era
de empregada doméstica.
Outra questão que analisei foi em relação à raça/etnia dessas mulheres: maioria negra e
indígena. Em seus atendimentos individuais, lembro-me de me deparar com outra questão
bastante significativa: entre 10 das mulheres que passaram por atendimento do serviço de
psicologia, oito foram abusadas sexualmente de alguma forma. Não concordava com as altas
taxas de abusos; o quanto essa experiência causou danos para a vida dessas mulheres. O
objetivo nos atendimentos era fortalecê-las a elaborar certa vivência, entendendo sua condição

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enquanto sujeito ativo no mundo, refletindo sobre si e seus pares. Porém sabia que não era
apenas isso, queria fazer mais, por elas e por mim.
Em meados de março de 2012, após o dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher),
fui convidada por um amigo a participar de uma formação feminista. Uma profissional da
Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Londrina, juntamente com uma
organização feminista estariam oferecendo essa formação. Aceitei, e ali eu passei a dar nomes
aos meus incômodos. Descobri, de fato, o que eram os estudos de gênero; fui observando que
era esse tipo de grupo que me faltava, era esse tipo de informação que eu procurava e se
encaixava perfeitamente aos meus questionamentos como psicóloga social. Passei, então, a ter
um novo olhar sobre o mundo, principalmente sobre meu trabalho. Iniciei os estudos de
gênero e das teorias feministas. A força de encontro dessas mulheres foi tão forte e intensa,
que após essa formação, outros grupos de mulheres começaram a se reunir, e disso, saiu à
primeira Marcha das Vadias de Londrina.
Era 2012 ainda, a cidade de Londrina se encontrava imersa em uma atmosfera de
transformação social vinda das mulheres, o que culminou com a Marcha. As discussões
propostas nas reuniões, onde participavam, principalmente, mulheres jovens e universitárias,
eram, principalmente, em torno da cultura de estupro devido às várias denúncias que as
mulheres faziam diariamente e aos números de abusos sexuais alarmantes em todo o país. As
preocupações em torno da Marcha por aqui eram semelhantes as das mulheres canadenses que
deram início a primeira Marcha das Vadias no mundo. A culpa internalizada por nós mulheres
pela violência sofrida era uma questão crucial, pois até hoje existe o pensamento que a
responsabilidade do abuso sexual é da vítima e não do agressor. No processo de
culpabilização da vítima de abusos sexuais, os motivos seriam as roupas curtas demais, o
comportamento “exagerado” para uma mulher, o fato de se estar as altas horas sozinha na rua,
enfim, entre outras situações que, independente do fazer da vítima, a culpa recai sobre ela.
A Marcha das Vadias nasce desses questionamentos, devido uma onda de estupros
acontecidos na Universidade de Toronto, em 2010. Um grupo de estudantes canadenses
decidiu por realizar um ciclo de palestras sobre como combater essa violência. Em uma dessas
palestras, um policial foi convidado a palestrar. Uma de suas falas foi: “Se não quiserem ser
estupradas, não se vistam como vadias!”. Parecia que faltava apenas essa declaração para
explodir uma intensa movimentação das mulheres pelo mundo, que convocava as mulheres as
ruas contra a cultura do estupro.

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A Marcha das vadias é um protesto feminista que ocorre em várias cidades do


mundo. Começou em Toronto, em 2011, com a reação à declaração de um
policial, em um fórum universitário sobre segurança no campus, de que as
mulheres poderiam evitar ser estupradas se não se vestissem
como sluts (vagabundas, putas, vadias). Reconhecendo nesta declaração um
exemplo amplamente aceito de como a violência sexual é justificada com base
no comportamento e corpo das mulheres, a primeira Slutwalk de Toronto teve
como principais bandeiras o fim da violência sexual e da culpabilização da
vítima, bem como a liberdade e a autonomia das mulheres sobre seus corpos
(GOMES & SORJ, 2014, p. 437).

Ao chegar ao Brasil, a Marcha das Vadias se espalhou pelos Estados de forma rápida e
eficaz, principalmente, por causa das redes sociais, assim como afirma Gomes e Sorj (2014, p.
437):
Desde então, por meio da rápida troca de informações proporcionada pela
internet, a marcha foi organizada em diversas cidades pelo mundo. Em países
de língua espanhola, o protesto ganhou o nome de Marcha de las putas ou
Marcha de las vagabundas. No Brasil, São Paulo foi a primeira cidade a
organizar uma marcha, em 2011, adotando o termo “vadias”. A rapidez com que
a marcha se disseminou pelo país e mobilizou a juventude é indissociável das
possibilidades que as novas tecnologias de comunicação oferecem ao ativismo
político. Já em 2012, no segundo ano do advento da Marcha das vadias, 23
cidades, de todas as regiões do Brasil organizaram protestos usando ferramentas
como Facebook, Twitter, Youtube, blogues e e-mails.

Em Londrina, a primeira Marcha das Vadias aconteceu no dia 02 de junho de 2012,


levando cerca de 800 pessoas pelas ruas da cidade. As redes sociais tiveram papel importante
neste processo, pois com a rápida circulação de informação e maior facilidade para
organização, em menos de um mês, a Marcha se concretizou. Após essa mobilização, muitas
de nós começaram a organizar suas ações políticas em coletivos de mulheres. Aqueles que já
existiam, ganharam força no município.
Passei a integrar dois coletivos: a Rede Feminista de Saúde, existente desde 1991,
ativa no Brasil todo; e criei junto com outras mulheres jovens, o Emancipação, Valorização e
Apoio - E.V.A. Coletivo Feminista. Desde então, ambos coletivos atuam nas áreas de
políticas públicas, promovendo oficinas, palestras, encontros, rodas de conversas, debates
sobre o movimento feminista e suas pautas, gênero e seus desdobramentos e educação sexual,
principalmente, para adolescentes e jovens. É nessa junção de reuniões, encontros e debates,
que o olhar da psicologia é posto, é mergulhado. No desafio dos entraves apresentados por
essa busca de igualdade, equidade, visibilidade, mudanças de paradigmas, é que a psicologia é
convidada a entrar. Buscando diálogos, encaixes, escutando as demandas, propondo junto
com as mulheres novas perspectivas de empoderamento, de mudança, de transformação de si

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e do outro, promovendo ações afirmativas e fortalecedoras para todas as mulheres. Esse


desafio é posto para nós psicólogas/psicólogos sociais, e a pergunta que faço hoje é: Como o
movimento feminista contribui e/ou contribui para os processos de subjetivação das mulheres
ativas no movimento em Londrina, tendo em vista as transformações geradas no ano de 2012?
O fazer sentido no cotidiano perpassa os meios por onde circula o discurso, este visto
pelo enfoque feminista como fonte singular e valorosa de se propagar informação e
conhecimento. Através da palavra, as mulheres passam a se conhecer e a se reconhecer no
processo de existência, como sujeito histórico-social-cultural-político. Essas subjetividades
produzidas através do contato com o movimento social feminista é foco deste trabalho que
está sendo desenvolvido, pensando, articulado e apreciado.

Considerações finais

A concepção teórica em psicologia social que trata das produções de sentidos no


cotidiano e traz a importância do discurso nesse processo é a perspectiva construcionista. Esta
será utilizada, devido ter como um de seus princípios a horizontalidade das relações entre
pesquisador(a) e pesquisados(as), valorizando a implicação mútua no processo do fazer
pesquisa, bem como no estar nos cotidianos do lugar, nos encontros que se fazem no dia a dia
(SPINK, 1999).
Nesta perspectiva, parte-se do princípio de que conhecer é dar sentido ao mundo, o
conhecimento sob a “ótica da produção de sentido implica, sobretudo, no posicionamento
perante os dados, as teorias, e os outros - nossos interlocutores diretos ou genéricos” (SPINK,
1994, p. 150). Com isso, podemos destacar alguns aspectos que este embasamento teórico
traz: dar sentido ao mundo é uma atividade cognitiva, é posicionar-se em uma rede de
relações, que é da ordem intersubjetiva, e posicionar-se mediante o fluxo dos acontecimentos,
é reconhecer-se como sujeito histórico (SPINK, 1994). O processo de cognição depende da
história do sujeito, seja na esfera individual ou das concepções discursivas que estão postas na
cultura onde se está inserido. Spink (1994, p. 150) assinala que ao pertencer “ao campo da
intersubjetividade, o dado empírico por excelência para a compreensão do conhecimento
como produção de sentido são as práticas discursivas”. É possível, então, entender por
práticas discursivas os diversos modos em que as pessoas, por meio do discurso, produzem de
forma ativa suas realidades psicológicas e sociais (SPINK, 1994).
Para a realização da pesquisa pretendo também lançar mão de alguns conceitos
importantes. O primeiro deles é o conceito de cotidiano que, por sua vez, interrelaciona-se

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com o de lugar. Pensar o cotidiano, onde se materializam as relações sociais e as relações de


poder, exige olhar para o lugar no qual se presentificam simultaneamente o todo social e as
relações sociais locais do dia a dia, carregadas de significados e sentidos. O lugar, assim, é
efervescente, assumindo constantemente variáveis e instáveis formas as quais, embora tendam
a ser capturadas e colonizadas pelos centros hegemônicos, impõem resistências com a
finalidade de buscar mudanças nas teias naturalizadas das relações opressoras. Considerando
o movimento feminista como movimento de resistência, e a psicologia social crítica como
dispositivo que oferece ferramentas comprometidas politicamente e eticamente, entendemos
esta como subsídio importante para problematizar potenciais naturalizações de relações
sociais de opressão e desigualdade. Nesse sentido, a psicologia social pode ser um artefato
bastante útil para subsidiar a reflexão sobre as lutas do movimento feminista.
Outro conceito significativo a ser utilizado neste trabalho será o de gênero, nesta
construção de pesquisa, gênero será apresentado como uma categoria de análise, um conceito.
Fundamentado nos estudos de Joan Scott (1989), onde gênero é entendido como um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos. Será traçado
um caminho de buscar romper com a ideia constante de que gênero é uma posição fixa, além
de problematizar as questões do binarismo masculino e feminino, que ainda ditam leis/regras
sobre os corpos das mulheres, suas relações e suas ações, proposições essas que são pautas
dos movimentos de mulheres. Gênero seria uma forma primária de significar as relações de
poder, além de também ser uma dimensão simbólica interligada as questões materialistas,
seria uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado (SCOTT, 1989).
Sendo assim, é importante trazer também como pilar deste trabalho acadêmico os
cinco eixos que Peter Spink (2003) apresenta como linhas de atravessamento no fazer ciência
no cotidiano, que são elas: 1) a relação entre o “sujeito pesquisado (a)” e “o (a) pesquisador
(a)”, com ênfase na pesquisa-ação, pesquisa colaborativa, participativa e na ética que as
orientam; 2) o uso de diversos métodos na mesma investigação científica, sem a preocupação
com a idéia de rigor tradicional, pensando a triangulação dos dados como elemento de
validação dos mesmos; 3) a aproximação teórica de uma abordagem construcionista sobre os
processos sociais, observando a importância da análise das práticas discursivas, entendendo-
as de modo amplo, situadas em lugares e tempos, os quais são atravessados nas atuações
cotidianas; 4) embora a pesquisa tenha um ponto de partida, é interessante evitar um
planejamento antecipado, o caminho se faria junto aos participantes da pesquisa, mesmo as
trajetórias serem desconhecidas e o destino da mesma ser inesperado; 5) a utilização de

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formas não ortodoxas de narrar à pesquisa, que estes possam ser adequados ao tipo de
trabalho pesquisado.
A pesquisa será realizada buscando integrar tais pontos mencionados acima, levando
em consideração que este estudo ainda está em construção e será construído com o contato
com o campo-tema, sendo esse uma complexa rede de sentidos que se constroem no diálogo
com o tema de pesquisa e com o contexto ao qual este está inserido (SPINK, 2014). Este
conceito, campo-tema, é entendido aqui como um emaranhado de redes de sentidos que se
interconectam, é um espaço criado, transmitido ou acionado pelo (a) pesquisador (a) e
negociado mediante a busca deste de se inserir nas suas teias de ação (SPINK, 2003). “É o
argumento no qual estamos inseridos; argumento este que tem múltiplas faces e
materialidades, que acontecem em muitos lugares diferentes” (SPINK, 2003, p. 28).
Levando em consideração que a Psicologia Social é um campo que possui muitas
ferramentas conceituais e metodológicas e a inclusão da perspectiva de gênero e feminista,
esta pesquisa deverá proporcionar avanços nos debates sobre as relações entre os movimentos
sociais e a construção de subjetividades.
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Modernidade e feminismo: aproximações e distanciamentos

Lina Penati Ferreira1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo destacar as aproximações e contradições existentes
entre o discurso da modernidade e do feminismo. Reconhecemos a dificuldade de falar de
grandes discursos como esses, por isso, tratamos de três temas caros a ambos: (1) divisão
público e privado, (2) relações de poder e (3) construção do sujeito. Entendemos que, ao mesmo
que o feminismo é fruto do discurso moderno, fortemente liberal, ele também o constituiu e o
reformulou. Reconhecemos que, dificilmente o feminismo teria surgido em um outro contexto,
que não o que levantasse as bandeiras da igualdade, da liberdade e da individualidade. O
feminismo emerge como uma crítica a narrativa moderna, uma crítica que é possibilitada pelos
princípios do próprio discurso criticado. Nesse sentido, o trabalho passará pelas temáticas,
destacando as principais críticas feministas às concepções caras à modernidade.

Palavras-chave: Feminismo. Modernidade. Crises da modernidade.

1
Universidade estadual de Londrina, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEL,
linapenati@gmail.com

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Introdução

A tese de Ulrich Beck (2011) sobre a sociedade de risco, dá centralidade há um dos


processos que se destacam enquanto consequências de um projeto de modernidade, isto é, as
“contradições do projeto de modernidade e sociedade industrial”. Para o autor, princípios que
nortearam o projeto de modernidade, como igualdade e liberdade e a própria concepção de
família nuclear, encontram-se, mais do que nunca, em contradições, sejam elas discursivas ou
concretas. O autor lembra que a sociedade moderna nunca foi totalmente industrial, pois
manteve, paralela à essa ordem estrutural, ordenamentos estamentais. Ao mesmo tempo que
estava organizada e estratificada em classes sociais, ela manteve estamentos de raça e gênero,
entre outros, o que significa que, para determinados grupos, a mobilidade social sempre esteve
restrita e se contradizia com o discurso de liberdade e igualdade que estava no cerne do projeto
de modernidade.
Se Beck (2011) relaciona esse processo às consequências da alta modernidade, isto é,
às consequências que aparecem mais claramente a partir dos anos setenta, o Brasil, há muito
tempo conhece essa realidade. Segundo Jessé Souza (2000) a modernidade brasileira, desde
seus princípios – que para o autor data da chegada da família real no Brasil – esteve
caracterizada pela seletividade dos princípios da modernidade. Aqui, igualdade e liberdade
nunca estiveram disponíveis para todos os grupos sociais. Apesar de partilhar de traços
fundamentais da modernidade, como o Estado centralizado e burocratizado e o mercado
capitalista aberto, a modernidade brasileira foi seletiva em quê e para quem asseguraria alguns
princípios, mantendo, concomitantemente, distinções baseadas na raça, no gênero, e na classe.
Nesse sentido, na visão de Bauman (2008), uma das contradições da modernidade se dá
pelo hiato entre o direto discursivamente garantido de se auto-afirmar e a capacidade de
controlar as questões sociais externas para que haja condições ou não de autoafirmação. Se, por
um lado, a narrativa dos direitos, da liberdade e igualdade e da individualização se tornou a
grande bandeira da modernidade, por outro, as condições reais que ela oferece, especialmente
em sua fase mais radicalizada ou em suas periferias, não condizem com as promessas de seu
projeto. Tal contradição foi percebida pelos movimentos sociais que representavam as minorias
sociais, como, por exemplo, o pelo movimento feminista. Inicialmente as reinvindicações desse
movimento se concentravam na tentativa de participar dessa narrativa da modernidade, por
exemplo, na luta pelo voto, porém, logo percebeu-se que, mesmo incluídas nessa narrativa,
faltariam condições reais para efetivar essa igualdade política (MIGUEL, 2014).

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O feminismo, seja enquanto movimento, seja enquanto teoria social, questionou o


projeto de modernidade em seu âmago, colocando em xeque de quê e para quem a liberdade e
a igualdade que se prometiam era concedida. Nesse sentido, o feminismo se fez e se faz
enquanto uma possiblidade de crítica ao projeto seletivo de modernidade, não só para o
questionamento de mulheres, mas para uma série de “sujeitos subalternos” (CIRIZA, 1993).
Segundo Hall (2006), o feminismo de fato foi um importante movimento e um dos principais
atores no que produziu as chamadas “crises da modernidade”. Para ele, é o potencial
questionador de fundamentos modernos que deu ao movimento feminista esse grande papel.
A racionalidade moderna, universal, abstrata e imparcial, construiu uma noção de
ciência, política e sujeito dentro desses moldes. Todavia, o que não se disse, era que esses eram
atributos masculinos. A objetividade, a imparcialidade, a neutralidade exigida por essa razão
são aspectos ligados ao masculino, e dessa forma, excluíram todos sujeitos distantes dessas
concepções (CIRIZA, 1993; HALL, 2006). O olhar localizado do feminismo, e de outros
“sujeitos subalternos”, foram importantes da desconstrução desse discurso, que de fato, sempre
encontrou problemas na existência real.
Assim, este trabalho pretende recuperar alguns debates acerca das teorias sobre
modernidade e feminismos, bem como, suas consequências. O objetivo geral é traçar uma linha
que demonstre como ambos, apesar de parecem antagônicos em algumas leituras, são
dependentes e, poderíamos até mesmo dizer, reflexivos. Para isso, destacaremos três pontos
fundamentais, tanto para a modernidade como para o feminismo, e como ambas narrativas
constroem e desconstroem esses pontos. Trataremos dos seguintes eixos: (1) divisão público e
privado, (2) relações de poder e (3) construção do sujeito. Esses temas são essenciais para
entender as mudanças ocorridas na modernidade, e que a levaram à sua nova forma, chamada
por Beck (20110) de modernidade radicalizada.

A crítica feminista à noção de público e privado

Um dos primeiros esforços contidos no projeto de modernidade era definir o que se


tornaria um problema público e o que se tornaria um problema privado. Fortemente relacionado
à ideologia liberal, esses limites se estruturam de forma a generificar cada ambiente. A esfera
do público, estava permeada pelos problemas do mundo da política, do trabalho, da reprodução,
da racionalidade, da cultura, e, todos esses círculos eram intensamente masculinizados. Do
outro lado, haviam a esfera do privado, da reprodução, onde caberiam questões relacionadas à

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família e ao cuidado, à subjetividade, esse era o mundo da natureza, e ele era todo feminizado
(PATEMAN, 2013; CIRIZA, 1993; MIGUEL, BIROLI, 2013).
No outro lado da moeda, a modernidade e o próprio liberalismo, estiaram a bandeira da
igualdade de direitos. Esse discurso de igualdade e liberdade foram suficientes para que os
“sujeitos subalternos” reivindicassem também seu espaço na história (CIRIZA, 1993). O que
ficou conhecido como “primeira onda do feminismo”, busca a igualdade ao acesso à educação
e aos direitos políticos. O que pressupunha um reconhecimento na igualdade de capacidades
entre homens e mulheres (MIGUEL, BIROLI, 2013). Esse reconhecimento questionava a
separação dada entre público e privado, e principalmente, a naturalização da mulher no mundo
do privado.
De toda forma, essa primeira investida não foi suficiente para abalar essa firmada
divisão. Surge assim um debate extenso e diversificado sobre as críticas feministas direcionadas
à dicotomia público/privado. Para essas críticas o nó do problema está no fato de que a partir
dessa dualidade criou-se uma série de fronteiras sobre o que deve ou não fazer parte dos debates
públicos, afastando, na maior parte das vezes, questões familiares, domésticas e até mesmo
trabalhistas da arena política. Garantiu-se justiça, igualdade e liberdade para um lado da divisão,
o público e masculino. As relações condenadas ao mundo do privado, em que sua maioria
envolviam as mulheres, estavam postas em outros termos: não se falava de justiça dentro da
família, porque as relações de cuidado e de reprodução da vida cotidiana foram colocadas
dentro do mundo da natureza, onde “naturalmente” a mulher é a responsável (KRITSCH, 2012).
Seguindo Luís Felipe Miguel e Flávia Biroli (2013), se por um lado algumas críticas
feministas argumentam que a não intervenção do Estado na esfera privada acoberta muitas
desigualdades no âmbito doméstico, por outro, há de se reconhecer que, parcelas do feminismo
defendem os limites do privado, enquanto uma arena própria do desenvolvimento de afetos e
relações de intimidades. Sem desconsiderar a segunda posição, entendendo a relevância e ponto
fundamental que tocam, como autonomia, liberdade, intimidade e reconhecimento das
identidades, nos focaremos a partir de agora na primeira crítica.
Isso porque, não tematizar alguns assuntos na esfera pública gerou e reproduziu uma
série de situações de desigualdades para as mulheres, como, por exemplo, a associação dessas
somente aos espaços e relações de cunho privado, ao baixo número de mulheres em arenas de
poder e de cargos políticos, a invisibilidade do trabalho doméstico e, por último, mas não
mesmo importante, a violência doméstica (KRITSCH, 2012). É nesse sentindo que o feminismo
toma como urgência o debate entre público e privado, pois “é a permanência dessa dicotomia
que torna possível que os teóricos ignorem a natureza política da família, a relevância da justiça

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na vida pessoal e, consequentemente, uma parte central das desigualdades de gênero” (OKIN,
2008, p. 307 apud KRITSCH, 2012, p. 28).
Uma ideia difundida dentro e pelo o próprio feminismo e que muito interessa à discussão
entre púbico e privado é o slogan de que “o pessoal é político”. Trataremos dessa questão por
duas faces. Assim, se por um lado, a intenção inicial era chamar a atenção de como a vida
pessoal das mulheres é constantemente influenciada por questões políticas, como é o caso dos
padrões de casamentos, quantidade de filhos a se ter, dedicação imposta à casa e à família, etc.
Por outro lado, podemos dizer também que tal chamamento revelou outra face, isto é, se
tomarmos a ideia de que poder é política e as relações entre homens e mulheres envolve poder,
então, podemos falar em uma “política sexual” e aí, mais do que nunca o pessoal se torna
político (PATEMAN, 2013; MILLET, 1969). Trataremos mais adiante desse deslocamento da
ideia de poder.
De toda forma, precisamos destacar que falar de forma crítica da divisão entre público
e privado e as desigualdades resultantes dessa dicotomia, que prejudicaram especialmente as
mulheres, não é o mesmo que falar que as mulheres nunca adentraram a esfera do público
(PATEMAN, 2013). O mercado de trabalho, inicialmente reduto das mulheres pobres e negras,
foi um importante trampolim para o mundo público. No entanto, ao olharmos a situação das
mulheres no mercado de trabalho, em especial aos cargos que ocupam e a remuneração
recebida, podemos dizer que a passagem foi incompleta. Além dos empregos estarem na
maioria das vezes relacionados as esferas domésticas e do cuidado, eles não desvincularam as
mulheres dessas arenas originais, resultando em um aumento extensivo do trabalho.
Borrar as fronteiras do público e do privado significa também atingir as bases de uma
das instituições que fundamentaram a modernidade: a família nuclear. As mudanças ocorridas
na sociedade moderna, seja pela crítica feminista, pela reflexividade da sociedade ou por tanto
outros fatores, enfraqueceram a concepção de família nuclear e estão, desse modo, relacionadas
as chamadas crises da modernidade. Aqui fica evidente a relação próxima e conflituosa entre
feminismo e modernidade: enquanto a divisão moderna público/privado fez com emergisse a
crítica feminista, especialmente sobre a condição da mulher nessa lógica, a crítica feminista fez
com que instituições bases da modernidade se alterasse e se recriassem.
Assim, a partir dessa perspectiva, uma proposta feminista radical não passa nem pela
oposição ou pela tentativa de harmonia entre as noções tradicionalmente difundidas de público
e privado. Para Pateman (2013, p. 76), a solução feminista passa pela a construção de nova
ordem social, “dentro da qual as dimensões sejam distintas, mas não separadas e nem opostas,

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e que se baseie em uma concepção social da individualidade que inclua mulheres e homens
como criaturas biologicamente diferenciadas, mas não desiguais”.

Descentralização da luta política

As diversas tentativas de desestabilizar a divisão público/privado, levaram o feminismo


também a reconhecer que o Estado não seria o único foco de atuação (MIGUEL, BIROLI,
2013). Se o “pessoal é político”, e o político envolve relações de poderes, o poder está para
além dos limites do Estado. De certo modo, é preciso reconhecer que esse é um discurso que
ecoa do feminismo, mas também de toda a sociedade, como fruto das crises que o projeto de
modernidade enfrenta ao longo do tempo (HALL, 2006; BECK, 2011).
A modernidade, em sua concepção inicial, elegeu o Estado como unificador e
centralizador de todo poder legítimo. As pessoas que quisessem disputar o poder, deveriam
disputar o Estado. Essa era a abordagem do feminismo em sua primeira fase, em que a principal
reinvindicação era a garantia de participação política. Dessa forma, a sociedade passou a se
organizar em partidos e disputar o poder através do Estado.
Os anos de 1960 e 1970, em especial o episódio de Maio de 68, são marcadores
importantes para a virada do poder centralizado no Estado (CIRIZA, 1993). Essas mudanças,
somadas as narrativas que o feminismo construía até então, são fundamentais para o
descolamento da luta política do Estado para disputas na sociedade civil. Segundo Miguel e
Biroli (2013), “o universo da política que emerge das contribuições do feminismo é, assim, bem
mais complexo do que aquele operado pelo pensamento liberal dominante”. O feminismo
reordenou alguns pressupostos estipulados pelo projeto de modernidade associado ao
liberalismo e, “vinculou, de forma irrevogável, a política à esfera da privacidade, da intimidade
e da sexualidade. (...) ele ampliou as exigências de uma leitura crítica das instituições políticas
contemporâneas e dos desafios para sua democratização efetiva” (MIGUEL, BIROLI, 2013, p.
44).
Assim, democratização para o feminismo deixou de ser um tema abordado somente nas
relações que envolvem o estado, e foi ampliado para todas as relações sociais. Passou-se a falar
então, de relações democráticas e não hierárquicas nas famílias, nos relacionamentos amorosos
e sexuais, no trabalho, e nos tantos espaços que possam haver relações sociais. A democracia
liberal enquanto um valor agregado à modernidade, reforça a ideia de igualdade, mas esse já
não é o único ponto do feminismo. Além da igualdade o feminismo passou a falar da diferença.

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A teoria feminista destacou que nem todas as diferenças são injustas ou desiguais (por
exemplo: auxílio maternidade, diferença na aposentadoria, etc.) e que é possível tratar delas em
uma outra abordagem. É nesse sentido que Elshtain (2013) fundamenta seus posicionamentos
radicais afirmando que é necessário operacionalizar com outras lógicas, e não inserir as
mulheres nas atividades tipicamente masculinas. Essa ideia é uma das bases do que ficou
conhecido por “pensamento maternal” ou “política do desvelo”, em que a diferença é destacada
pela valorização do que tradicionalmente se relaciona ao feminino, como o cuidado, a
maternidade, o zelo pelos mais indefesos, etc. (MIGUEL, 2014). Os estudos de Gilligan (apud
BENHABIB, 1987), apontaram como as mulheres compartilham de um senso de justiça
diferente dos homens, e que, ao invés de ser transformado, ele deveria ser reconhecido e
valorizado, podendo até mesmo alterar as lógicas da vida pública e política.
Outra proposta que tratou de destacar positivamente as diferenças foi de Iris Young
(2000). Sua concepção de “política da diferença” possui uma crítica demarcada ao
universalismo (masculino) do liberalismo, pois, “esse discurso, que apela a valores universais
e à humanidade comum de todas as pessoas, serve, com frequência, para neutralizar a
compreensão do impacto que as desigualdades concretas têm sobre a possibilidade de agência
autônoma dos diferentes indivíduos” (MIGUEL, 2014, p. 64). Sendo assim, Young (2000) trata
da diferença em um aspecto relacional e não essencialista, o que à permite propor uma política
da diferença emancipatória, que passa por um ideal de igualdade ao garantir participação e
inclusão de todos os grupos sociais, o que por vezes, justificaria tratamentos especiais e
diferenciados a determinados grupos.
Nesse sentido, a política da diferença se opõe ao “ideal da assimilação”, isto é, à
concepção de que ao minimizar as diferenças se produziria uma sociedade mais justa e
igualitária. Para Young, a única vantagem que esse tipo de raciocínio ofereceu foi a inspiração
para grupos oprimidos se organizarem enquanto movimento social em busca de igualdade. Mas
o que a autora quer chamar atenção é para o fato de que a partir das décadas de 1960 e 1970
esses grupos passaram não só a reivindicar igualdade, mas também afirma positivamente suas
diferenças, passaram então a afirmar que são grupos sociais com experiências e visões
específicas, o que justificaria um tratamento específico para essas pessoas. Podemos verificar
esse processo no movimento negro, gay e de mulheres emergentes na segunda metade do século
XX (YOUNG, 2000).

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O deslocamento do sujeito

Se as crises na concepção inicial de modernidade, causada principalmente pelas


mudanças a partir dos anos de 1960, alteraram as concepções de luta política, elas foram reflexo
também nas concepções de sujeito. Os novos movimentos sociais começaram a despontar no
final dos anos 60 e início dos anos 70. Esses movimentos estavam fortemente marcados por
uma carga cultural, que fazia de seus manifestantes mais atores culturais do que sociais, a partir
de uma visão clássica de movimentos sociais. Esses atores contestavam as orientações culturais
de suas sociedades, na esteira da crítica à indústria cultural.
Os novos movimentos sociais e os movimentos globais, bem como seus respectivos
Sujeitos – cultural e pessoal subjetivo – são uma expressão das mudanças que marcaram a
radicalização da modernidade. As transformações, no entendimento do sujeito e das próprias
construções de identidade, estão, nesse sentido, relacionadas a um processo mais amplo, ou
seja, as “mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao
estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude” (GIDDENS, 2002, p. 36).
Para Hall (2006), o feminismo, juntamente com os outros “novos movimentos sociais”,
evidenciou as mudanças vividas pela sociedade em meados do século XX. Contudo, para o
autor, foi essencialmente o feminismo que deslocou a concepção de sujeito moderno. Ao
elaborar uma crítica consistente ao binarismo público e privado; ao trazer novos temas para o
debate político (família, sexualidade, trabalho doméstico, divisão do trabalho, etc.); ao criar o
debate sobre a formação das identidades sexuais e de gênero; e, de modo geral, ao questionar a
noção abstrata de Humanidade a partir da diferença sexual, o feminismo qualificou o debate
sobre identidade e sujeito na teoria social (HALL, 2006). Nesse sentido é que Donna Haraway
afirma que “as desconstruções feministas do ‘sujeito’ foram fundamentais, e elas não têm
saudades da coerência dominadora” (HARAWAY, 2004, p. 244).
De fato, a concepção de sujeito universal presente nas ciências sociais não cativa, nem
de longe, a perspectiva feminista. Simone de Beauvoir (2009) já apontava críticas à ideia de um
sujeito que se pretendia abstrato e universal. Para a autora, o problema de definição da mulher
é inegavelmente da mulher, dado que homens não se definem enquanto homens, apenas o são.
Nesse caminho, a autora recusa duas explicações teóricas (recusa que também será feita por
boa parte das teorias feministas): (1) a biológica, em que mulheres e homens são identidades
naturalmente definidas; e, (2) a essencialista, que argumenta que mulheres e homens são o que
são por uma essência particular de cada sexo (BEAUVOIR, 2009).

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Os feminismos que floresceram e se desenvolveram a partir da segunda metade do


século XX foram fundamentais para construir, ou melhor, desconstruir uma noção geral,
abstrata e masculina de Sujeito da modernidade. Porém, há de se reconhecer que parte das
próprias feministas tiveram que lidar com a crítica que haviam lançado, isto é, se em
determinado momento elas evidenciaram e problematizaram a identidade abstrata – e, na
verdade, masculina – do Sujeito universal, tiveram que lidar também com as críticas
direcionadas à identidade abstrata de mulher de que muitas faziam uso. Os questionamentos
sobre quem seria o sujeito do feminismo emergiram de dentro do próprio movimento, a questão
era saber qual a identidade dessa mulher, qual a sua cor, sexualidade, classe, idade, etc.,
questões que aprofundam o debate sobre sujeito e indivíduo na teoria social.
O essencialismo combatido pelo feminismo havia se tornado uma sombra para parte da
própria teoria feminista. O caminho possível para solucionar tal questão, passava então pelo
reconhecimento da multiplicidade do indivíduo e das diferentes formas de subordinação
existentes (MOUFFE, 2003). Assim, a desconstrução do sujeito Mulher e a constatação da
importância dos outros componentes de identidade têm sido um percurso seguido por uma
parcela das teóricas feminista. Segundo Chantal Mouffe, a questão passa pelo desafio de
entender que “(...) a identidade de um sujeito tão múltiplo e contraditório é sempre contingente
e precária, fixada temporariamente na interseção dessas posições de sujeito e dependente de
formas específicas de identificação” (MOUFFE, 2003, p. 268). Para Donna Haraway (2006), o
caminho para se distanciar de uma essencialização do sujeito foi pautado desde o século XIX
pelas mulheres negras, em especial, as norte-americanas.

Considerações Finais
Esse pequeno ensaio objetivou levantar alguns pontos de aproximação e, ao mesmo
tempo, de contradição entre o discurso da modernidade e do feminismo. Esse esforço se torna
importante para pesarmos nas possibilidades de construção de novas teorias que expliquem o
social. A partir do desenvolvimento da tendência reflexiva da modernidade, pudemos observar
as mudanças em seu projeto inicial, muitas das quais, frutos da contribuição do feminismo.
Como argumenta Domingues, é a partir da reflexividade que se transforma a utopia da
modernidade em realidade desnuda, então “tornou-se possível, e necessário, criticar suas
fundações, demonstrando seu caráter contingente e suas vulnerabilidades. Além disso,
processos sociais intrínsecos ao desenvolvimento da modernidade têm vindo a por em xeque
alguns de seus pressupostos internos” (DOMINGUES, 1998, p. 212).

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Assim, ao mesmo que o feminismo é fruto do discurso moderno, e ao mesmo tempo,


fortemente liberal, ele também o constituiu e o reformulou. É necessário, nesse sentido,
reconhecer que, dificilmente o feminismo teria surgido em um outro contexto, que não o que
levantasse as bandeiras da igualdade, da liberdade e da individualidade. O feminismo emerge
como uma crítica a narrativa moderna, uma crítica que é possibilitada pelos princípios do
próprio discurso criticado (CIRIZA, 1993).

Bibliografia
BAUMAN, Z. A sociedade individualizada: vida contadas e histórias vividas. Tradução: José
Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BEAVOUIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: nova
Fronteira, 2009.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2ª Ed. Trad. Sebastião do
Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.
BENHABIB, Seyla. O Outro generalizado e o Outro concreto: a controvérsia Kohlberg-
Gilligan e a Teoria Feminista. In: BENHABIB, S. e CORNELL, Drucila. (orgs.). Feminismo
como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1987, p. 87-102.
CIRIZA, Alejandra. Feminismo, política y crisis de la modernidad. 1993.
DOMINGUES, José Maurício. Modernidade, tradição e reflexibilidade no Brasil
contemporâneo. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, n. 10, v. 2, p. 209-
234, outubro de 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPeA, 2006.
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.
Cadernos Pagu, Campinas, n. 22, p. 201-246, 2004.
KRITSCH, Raquel. O gênero do público. In: BIROLI, Flávia e MIGUEL, Luis Felipe (orgs.).
Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012, p. 17-
45.
MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia (orgs.). Introdução. Teoria política feminista: textos
centrais. Vinhedo, Editora Horizonte, 2013.
MIGUEL, Luis Felipe. Igualdade e diferença. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia.
Feminismo e política: uma introdução. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 63-78.
MILLET, Kate. Política sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970.

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MOUFFE, Chantal. Feminismo, cidadania e política democrática radical. In: MIGUEL, Luís
Felipe; BIROLI, Flávia (orgs.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora
Horizonte, 2003, p. 265-282.
PATEMAN, Carol. Críticas Feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, L. F.;
BIROLI, F. (orgs.). Teoria Política Feminista: textos centrais. Vinhedo: Ed. Horizonte, 2013,
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PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v.11, n.2, p. 263 a 274, 2008.
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Dabat e Maria Betânia Ávila. Disponível em:
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SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília:
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YOUNG, Iris. La justicia y la política de la diferencia. Madrid: Cátedra, 2000.

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Um feminismo radical é necessariamente um feminismo materialista?

Kelly Cipriano1
Mayara Santiago2
Rafaela Cyrino3

Resumo:

O presente trabalho parte das leituras e análises realizadas coletivamente pelo Grupo de
Pesquisa Feminismo Materialista, na Universidade Federal de Uberlândia, que busca
compreender as raízes dos processos de dominação social, a partir dos nexos causais
estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo. Propomos aqui responder ao seguinte
questionamento: um feminismo radical é necessariamente materialista? Para tanto,
recorremos à análise de Christine Delphy a medida que esta apresenta os seguintes
fundamentos: uma teoria crítica da história e o postulado de que a produção e reprodução da
vida material são a base da organização social. Após discutir a proposta de feminismo
materialista da autora, abordamos, a partir o pensamento de feministas radicais como
Shulamith Firestone em A dialética do sexo: um estudo da revolução feminista, Gayle Rubin,
em Tráfico de Mulheres: Notas sobre a economia política do sexo e Kate Millet, em Política
Sexual as possibilidades de intersecções possíveis do feminismo radical com o feminismo
materialista, formulado por Delphy. Os resultados dessas análises nos indicam que o
feminismo radical não necessariamente será um feminismo materialista, devido ao fato de que
algumas autoras se afastam da perspectiva materialista e da abordagem da opressão de forma
estrutural, ainda que busquem pele gênese da opressão das mulheres e trabalhem com a ideia
de revolução.
Palavras-chaves:feminismo; radical; materialista.

1
Universidade Federal de Uberlândia; graduanda em Ciências Sociais; kellycsbrandao@gmail.com.
2
Universidade Federal de Uberlândia; graduanda em Ciências Sociais; santiago.mayara@yahoo.com.
3
Universidade Federal de Uberlândia; doutora em Sociologia (UFMG) e professora adjunta no Instituto de
Ciências Sociais (UFU); rafaelacyrino@ufu.br

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p123 123


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Introdução.
O presente trabalho parte das leituras e análises realizadas coletivamente pelo Grupo
de Pesquisa Feminismo Materialista, na Universidade Federal de Uberlândia, que busca
compreender as raízes dos processos de dominação social, a partir dos nexos causais
estabelecidos entre capitalismo, sexismo e racismo. Dessa forma, propomos aqui discutir, a
partir do pensamento da socióloga francesa Christine Delphy, em que medida o feminismo
radical se insere na proposta do feminismo materialista no sentido de responder à questão
proposta neste paper: um feminismo radical é necessariamente materialista?
Para investigar esta questão, partiremos das formulações de Delphy a propósito do
chamado feminismo materialista, tendo por base o seu artigo original escrito em 1974, a partir
do qual o termo foi cunhado, assim como outros artigos da autora que esclarecem melhor a
sua abordagem. Após discutir a proposta de feminismo materialista da autora, iremos abordar,
a partir o pensamento de feministas radicais como Shulamith Firestone, em A dialética do
sexo: um estudo da revolução feminista, Gayle Rubin, em Tráfico de Mulheres: Notas sobre a
economia política do sexo e Kate Millet, em Política Sexual, as possibilidades de intersecções
possíveis do feminismo radical com o feminismo materialista, formulado por Delphy.
O feminismo materialista de Delphy utiliza de duas fundações principais para a
análise. São essas: uma teoria da história, pela qual busca compreender a dominação de
grupos sociais por outros; e o postulado de que a produção e reprodução da vida material são
a base da organização social. Logo, para o entendimento do feminismo materialista de Delphy
deve haver a compreensão histórica da opressão sofrida pelas mulheres e como as relações
materiais a definem. É de grande relevância para a teoria da autora a utilização da categoria da
totalidade, uma vez que essa possibilita compreender como as diversas dimensões da opressão
sofrida pelas mulheres se inter-relacionam: política, econômica, social, entre outras.
Em O inimigo principal (DELPHY, 2015), temos um claro exemplo de como a sua
abordagem materialista pretende explicar os processos de dominação de um sexo sobre o
outro. Partindo da compreensão de que a base material da opressão das mulheres deve ser
procurada na participação específica destas na produção, Delphy se propõe a pensar a família
como uma unidade de produção baseada na exploração econômica do trabalho gratuito das
mulheres. Desta forma, para a autora, a realização do trabalho doméstico e a criação dos
filhos constituem tarefas de produção e fazem parte de uma exploração econômica cuja
origem se encontra nas relações de servidão perpetuadas pela família.
É explicitado este argumento no seguinte trecho:

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Constata-se a existência de dois modos de produção em nossa sociedade: a


maioria das mercadorias é produzida no modo industrial; os serviços
domésticos, a criação dos filhos e algumas mercadorias são produzidos no
modo familiar. O primeiro dá lugar à exploração capitalista. O segundo, à
exploração familiar, mais exatamente, patriarcal.(DELPHY, 1970: 111)

Ao localizar a base material da opressão das mulheres no modo de produção patriarcal


e na exploração econômica da “classe das mulheres” que este implica, Delphy formula a sua
proposta revolucionária visando libertar as mulheres das relações de servidão específicas
deste modo de produção. A autora argumenta que para isso é necessário a destruição total do
sistema de produção e reprodução patriarcal, por meio de uma revolução que implique na
apoderação do poder político, que modificaria toda a base social presente. Certamente, isto
implica em modificar a falsa consciência e a consciência de classe das classes patriarcais,
mas, como Delphy reitera de maneira importante em seus escritos: é necessário se ater aos
fatores estruturais que estão na base desta exploração. Isto significa, para a autora, não reduzir
a opressão à sua expressão ideológica (sexismo, racismo), ocultando-se aquilo que, para a
autora é o mais importante: as relações sociais concretas, as relações produtivas, a divisão
sexual do trabalho, a exploração econômica da classe das mulheres
Após caracterizar o feminismo materialista tal como pensado por Delphy, partiremos
para o campo do feminismo dito radical, no sentido de estabelecer pontos de aproximação
e/ou distanciamento possível entre os dois feminismos. Embora não tenhamos encontrado na
literatura uma definição precisa acerca do feminismo radical, pode-se afirmar que este se
caracteriza por uma abordagem revolucionária, no sentido de que pretende demolir as bases
do sistema de opressão de sexo. Neste sentido o feminismo radical se distancia bastante de um
feminismo liberal, o qual se centra em uma emancipação política centrada em reformas,
geralmente de cunho jurídico, que supostamente estabeleceriam uma relação de igualdade
entre homens e mulheres.
O feminismo radical, portanto, é intrinsecamente revolucionário, embora a revolução não seja
pensada da mesma maneira pelas feministas que se alinham a esta perspectiva. Isto porque a
proposta revolucionária de cada feminista dita radical baseia-se na interpretação realizada
acerca da origem dos processos de opressão sexual. De fato, parafraseando Marx (2013)
quando este afirma que “ser radical é tomar as coisas pela raiz”, pode-se aventar que, embora
a preocupação com a origem (raiz) da opressão das mulheres seja uma característica que

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define uma feminista radical, as divergências entre as autoras acerca da “raiz” da opressão
sexual, culmina, necessariamente, em diferentes propostas de revolução.
Como foi abordado anteriormente, Christine Delphy, feminista que se auto-define
como materialista e que pode ser enquadrada na perspectiva “radical”, localiza o processo de
opressão das mulheres no modo de produção dito patriarcal, baseado em relações de servidão
e exploração de sexo. A sua proposta revolucionária parte, portanto, dessa análise estrutural.
Para uma melhor compreensão entre as possibilidades de entrecruzamento entre o feminismo
materialista e radical iremos explorar o pensamento de algumas autoras feministas radicais, no
sentido de se compreender se a raiz do processo de opressão implica, necessariamente, uma
abordagem material.

Desenvolvimento:
Em A Dialética do Sexo: um estudo da revolução feminista, de 1970, a autora
estadunidense Shulamith Firestone, coloca-se como feminista radical na medida em que
abarca a ideia de revolução como alternativa de superação da opressão às mulheres (1970:11).
Opressão essa que penetra os âmbitos da cultura, política, economia e que, diante disso,
reivindica, segundo a autora, pressupostos materialistas de superação.
Para a autora, recorrer ao materialismo é importante para analisar a guerra do sexos e,
portanto, alcançar a Revolução Feminista, assim como o antagonismo de classe é fundamental
para a revolução econômica. Firestone pontua, contudo, que é preciso localizar o substrato
sexual da dialética histórica que, segundo a autora, não foi ainda explicado, ocasionando uma
certa incapacidade de se pensar a opressão às mulheres: “Pois um diagnóstico econômico que
remonta à propriedade dos meios de produção, e até dos meios de reprodução, não explica
tudo. Existe um nível da realidade que não deriva diretamente da economia.” (FIRESTONE,
1970:16)
Assim como Delphy, Firestone preocupa-se em localizar na história a raiz da opressão
às mulheres. No entanto, ela argumenta que a leitura do materialismo histórico é uma análise
estritamente econômica. Segundo FIRESTONE (1970, p.22):

“(...) o feminismo radical amplia suas análises, dando a elas uma base ainda
mais profunda em condições objetivas, explicando com isso muitas das suas
questões insolúveis. Como fundamento de nossa própria análise, devemos
expandir a definição do materialismo histórico de Engels.”

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Ainda que a abordagem de Firestone aponte para uma base material diferente da
proposta por Delphy, entende-se que o desempenho em realizar uma análise histórica que
permita compreender a gênese do processo de opressão a aproxima do parâmetro análitico
proposto por Dephy. Sua argumentação indica que a origem da subordinação e exploração
encontra-se no própria distinção sexual e na dinâmica da família biológica.
Firestone caracteriza essa família biológica a partir de quatro aspectos fundamentais.
O primeiro deles diz respeito o fato de que as mulheres estiveram, durante toda a história, à
mercê de suas condições biológicas, como a menstruação, menopausa, amamentação e partos
dolorosos e, em função disso, tornaram-se dependentes em relação aos homens. O segundo
aspecto indica que os filhos exigem maior desempenho das pessoas adultas que os demais
animais e, portanto, seu vínculo de dependência é bastante significativo. Em terceiro lugar a
autora aponta para a interdependência entre mãe e filho, responsável por moldar a psicologia
das mulheres e, por fim, Firestone argumenta o fato de que a primeira forma de divisão sexual
do trabalho veio da condição natural de reprodução da vida humana.
A respeito do sistema de classes sexuais a autora aponta que:

“Apesar de o sistema de classes sexuais ter-se originado em condições


biológicas básicas, isto não garante que, uma vez tendo sido varridas as bases
biológicas de sua opressão, as mulheres serão livres. Ao contrário, a nova
tecnologia, especialmente o controle de fertilidade, pode ser usada contra
elas, para reforçar o sistema de exploração estabelecido.” (FIRESTONE,
1970, p. 20)

Esta questão, para a autora, se torna um problema essencialmente político. Não


caberia, portanto, justificar a conservação da organização desigual entre as classes sexuais,
sob o pressuposto de que este é um dado natural. Dessa forma, a superação de tal impasse
partiria da eliminação das classes sexuais e mais uma vez se faz presente a perspectiva
materialista na análise da autora. Suprimir a opressão exigiria revolução, uma transformação
total das relações entre os sujeitos sexuais, exigindo que a classe baixa, neste caso, as
mulheres, se revoltassem e tomassem o controle dos meios de reprodução da vida, passando a
exercer o papel de proprietárias de seus próprios corpos e de sua fertilidade.
Tal revolução aconteceria por meio do estabelecimento de uma nova tecnologia
associada às instituições sociais de nutrição e educação das crianças, levando, portanto, à
superação do privilégio masculino e da divisão sexual. Por meio do estabelecimento da
reprodução artificial, homens e mulheres alcançariam a independência em relação ao

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nascimento, possibilitando a eliminação da divisão sexual do trabalho. A revolução proposta


por Firestone, portanto, permitiria suprimir a atribuição cultural dada aos órgãos sexuais que
coloca homens e mulheres em posições não só diferentes mas hierárquicas, baseadas no
desempenho, pelas mulheres, de papéis sociais exploratórios.
Diferentemente de Firestone e Delphy, Gayle Rubin localiza a gênese da opressão e da
subordinação social das mulheres nos sistemas de parentescos e nos processos psíquicos que
são objeto de estudo da psicanálise. Esta autora afirma que existe um aparato social
sistemático que molda as mulheres e consequentemente as oprime, analisando, para isto, as
teorias formuladas por Sigmund Freud e Claude Lévi-Strauss. A obra destes autores, de
acordo com Rubin, nos fornece descrições e explicações importantíssimas para a
compreensão dos processos sociais de subordinação feminina.
Rubin, diferentemente de Delphy, denomina as relações e estruturas a serem estudadas
de “sistemas de sexo/gênero”, e não de patriarcado. Ela argumenta que:

Um “sistema de sexo/gênero”, numa definição preliminar, é uma série de


arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em
produtos da atividade humana, e nos quais essas necessidades sexuais se
transformadas são satisfeitas.(RUBIN, 1975: 2)

Assim, a autora busca compreender como a sociedade transforma a sexualidade


biológica em sistemas de opressão e dominação de um sexo sobre o outro. Tudo indica que,
Rubin, a partir da categoria da totalidade, pressupõe, não uma relação de oposição, mas uma
indissociabilidade entre a dimensão material e cultural, pois a “troca de mulheres” oferece,
historicamente, uma base material para a organização cultural da opressão das mulheres.É
neste sentido que os sistemas de parentesco não significam apenas a imposição da
organização cultural sobre os fatos da procriação biológica, mas remetem a um sistema de
relações sociais em que as mulheres se tornam presas dos homens.
Rubin pontua que a análise marxista falha em conceituar a opressão sexual e por isso
recorre às obras de Lévi-Strauss e Freud, no entanto a autora compreende que há um fator
material determinante na construção da sexualidade e reconhece a concepção materialista de
que a história é determinada pela produção dos meios de existência necessários. Esse fator é
explicitado pelas trocas de mulheres nas relações de parentesco bem conceituado na obra
“Estruturas Elementares do Parentesco”.

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Ademais, no processo de produção e reprodução dos sistemas de sexo/gênero, as


mulheres são incluídas através do trabalho doméstico na reprodução do trabalhador, de quem
é tirada a mais-valia, assim elas se inserem nesse circuito. Além disso, Rubin utiliza da
análise de Engels para argumentar que a organização social é determinada pela produção
econômica e por outras formas de produção, que se inserem na família.
Por conseguinte, a análise é focada nos sistemas de parentesco, que para a autora são
formas observáveis e empíricas dos sistemas de sexo/gênero. Inicialmente, este sistema é mais
complexo que um conjunto de ligações estritamente biológicas, no qual o parentesco é:
“Entendido claramente como uma imposição da organização cultural sobre os fatos da
procriação biológica” (RUBIN, 1975:11).
De acordo com a autora, nesta obra Lévi-Strauss compreende que essencialmente os
sistemas de parentesco se apoiam na troca de mulheres, por esse motivo é uma obra que tem
implicitamente uma teoria sobre a opressão sexual.
Ligado à noção de dádiva e trocas de Marcel Mauss, Rubin afirma que o casamento,
de acordo com Lévi-Strauss, é uma forma elementar de troca no qual a mulher é o presente
principal. A realização destas trocas entre grupos e famílias é garantida pelo tabu do incesto
que determina universalmente proibições e garante a realização de casamentos, por um
objetivo social de exogamia e aliança entre grupos diferentes.
De fato, com a realização da troca de mulheres, estabelecem-se relações de parentesco
entre grupos diferentes que resultam em uma ampla rede de relações e consequentemente em
uma estrutura de parentesco. Dessa maneira é afirmado por Rubin, que o parentesco é
organização e essa cria poder, então é necessário compreender o que é organizado e quem
organiza. Evidentemente, as mulheres que são o objeto da troca e esta oferece as bases para o
entendimento e a localização da opressão das mulheres inserido e advindo do interior de
sistemas sociais arbitrários, não justificados biologicamente.
Cumpre ressaltar que as trocas não se restringem unicamente às mulheres, mas
também são trocados status, nomes, direitos e pessoas, em sistemas de relações sociais. Isto
gera uma discrepância de direitos de homens e mulheres e a subordinação das mesmas.
Rubin argumenta, ainda, que não é somente a troca de mulheres que origina a
desigualdade e a opressão contra elas. A reprodução do parentesco é um processo que envolve
fatores também determinantes na conservação da desigualdade entre os gêneros, e a
psicanálise é fundamental para a compreensão dela. Por esse motivo, a autora recorre,
também, às teorias psicanalíticas de Freud e Jacques Lacan.

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De acordo com Rubin, a Psicanálise ajuda a entender o processo pelo qual as crianças
são, desde cedo, impregnadas com as convenções de sexo e gênero. Ou seja, a autora irá
buscar na Psicanálise uma teoria sobre a reprodução do parentesco, visto que a mesma
descreve “os mecanismos pelos quais os bebês são divididos e deformados, de como bebês
bissexuais, andróginos, são transformados em meninos e meninas”.
A partir de uma leitura crítica da antropologia de Lévi- Strauss e da psicanálise
freudiana, Rubin propõe que a revolução feminista deveria operar a partir de uma revolução
nos sistemas de parentesco. A proposta envolve resolver a crise edipiana da cultura
reorganizando o campo do gênero e do sexo, para que cada experiência individual seja menos
destrutiva e mais livre.E para isto, afirma Rubin (1975, p. 11) “nós necessitamos de uma
economia política dos sistemas sexuais”.
A complexidade do pensamento de Gayle Rubin tornou um pouco mais difícil a
empreitada aqui proposta de analisar os pontos de aproximação e distanciamento entre a sua
perspectiva feminista radical e o feminismo materialista de Delphy. Embora Rubin dê uma
grande atenção às modelagens sociais e culturais que acompanham uma socialização de
gênero de matriz heterossexual, privilegiando, portanto, a dimensão cultural dos processos de
opressão, sua concepção de cultura está intrinsicamente relacionada com a organização das
relações sociais concretas, com a divisão sexual do trabalho, com a economia política, não se
constituindo, portanto, em uma esfera autônoma e descolada das dimensões materiais da
realidade social.
Finalmente, a leitura de Kate Millet no livro Política Sexual, nos sugere pensar que a
raiz da opressão, para esta autora, é localizada sobretudo no âmbito cultural. A autora
apresenta a tese de que a transformação da situação das mulheres se daria em vias de uma
revolução sexual que promoveria o fim das inibições e dos tabus sexuais. Seu objetivo,
portanto, seria o de minar a instituição patriarcal, acabando com a chamada ideologia da
supremacia do macho e a tradição cultural que se mantém através dos papéis de gênero.
Segundo Millett (1974, p. 10):

“Isto permitiria uma integração de subculturas sexuais, uma assimilação de


ambos os lados da experiência humana até aqui excluídos da sociedade. Da
mesma forma, seria conveniente reexaminar as características definidas como
“masculinas” ou “femininas” e reconsiderar o seu valor no aspecto humano: a
violência encorajada como manifestação de virilidade e a excessiva
passividade definida como característica feminina, inúteis em ambos os
sexos; a eficiência e o intelectualismo do temperamento “masculino” e a

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ternura e a consideração ligadas ao temperamento feminino, recomendáveis a


ambos os sexos sem distinção”.

O posicionamento abolicionista fica evidente no pensamento da autora, haja vista seu


empenho em atacar as categorias do gênero que atribuem uma série de atributos sociais e
psicológicao aos diferentes sexos, ou seja, a construção social do “ser homem” e do “ser
mulher”. Contudo, sua proposta de revolução é concebida a nível comportamental, com um
nítido foco na dimensão ideológica da sociedade. Este foco na dimensão ideológica da
opressão afasta a sua abordagem da perspectiva materialista proposta por Delphy, como pode
ser evidenciado no trecho abaixo:

“Deve ficar claramente assente que a “arena” da revolução sexual” se situa


muito mais na consciência do homem do que nas instituições por ele criadas.
A sociedade patriarcal está de tal forma enraizada que o tipo de estrutura que
ela determina em ambos os sexos é talvez mais um hábito de espírito e um
tipo de vida do que um sistema político determinado.” (MILLETT, 1974, p.
12)

De acordo com Millett, o patriarcado é o sistema responsável por definir a relação de


diferenciação social, antes mesmo da distribuição de renda e, promoveria mais efeitos no
campo da consciência do que propriamente nas instituições sociais. Ao pensar a problemática
da maternidade, por exemplo, a autora aposta na libertação das mães, no que tange a
obrigação para com os filhos. Contudo, sua argumentação não coloca em xeque a relação
entre os sexos, que seria, na proposta de Delphy, fundamental para transformar o
condicionamento das mulheres.
Ainda que Kate Millet apresente a gênese do processo de opressão e uma proposta de
superação, compreende-se, de fato, que a sua análise se afasta do materialismo de Delphy na
medida em que não há uma adesão da autora à categoria da totalidade, não ocorrendo,
portanto, um empenho da autora em buscar os nexos causais existentes entre os processos de
opressão. Este pode ser visto como um outro ponto de distanciamento entre o feminismo
radical de Millet e o feminismo materialista proposto por Delphy.
A pouca atenção dada à produção e reprodução da vida material, a partir do
pressuposto de que o sexo é o grande responsável pela distinção e desigualdade entre os
indivíduos na sociedade, somada à ênfase na explicação e superação da dimensão cultural da
opressão, isto é, da prerrogativa idealista de que a mudança nas ideias seria o elemento central

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para a mudança da realidade nos permite concluir que Millet, é a autora, dentre as analisadas,
que mais de afasta da proposta do feminismo materialista de Delphy.

Considerações finais:
A partir dessas considerações, cabe resgatarmos o questionamento que deu início a
discussão realizada ao longo deste trabalho: um feminismo radical é necessariamente
materialista? Os estudos feitos a partir das obras das autoras apresentadas aqui, nos permite
evidenciar pontos de aproximação e de distanciamento em relação às categorias propostas
pelos parâmetros analíticos de Christine Delphy.
No que se refere à Shulamith Firestone, a utilização do materialismo como recurso
para análise da guerra dos sexos, é ressaltada diversas vezes pela autora. Isto se deve ao fato
de que a opressão é compreendida nas dimensões econômica, cultural, política. Nessa
perspectiva, a capacidade reprodutiva das mulheres é o aspecto responsável por fundar a
primeira forma de divisão do trabalho. Dessa forma, Firestone se aproxima do feminismo
materialista, na medida que identifica a base material da opressão às mulheres própria
distinção sexual e a família biológica, propondo sua superação por meio da eliminação das
distinções que culminam na subordinação das mulheres e, para, além disso, na superação de
todos os sistemas de classe.
Em relação a análise de Gayle Rubin, há uma aproximação de uma leitura materialista
na medida em que ela compreende que as estruturas de parentesco constituem uma base
material relacionada a um elemento histórico e cultural que formam relações e identidades
sociais. Isso ocorre por uma interdependência da esfera produtiva e reprodutiva, no âmbito da
família. Assim, há uma produção, por meio da atividade humana, especificamente pelas
relações de parentesco que estruturam essas relações de gênero.
Diferentemente de Firestone e Rubin, a proposta de Kate Millett apresenta mais pontos
de distanciamento em relação ao feminismo materialista do que de aproximação. Ainda que a
autora trabalhe com a ideia de revolução, sua análise é restrita a nível cultural, haja vista sua
compreensão de que a estrutura do patriarcado se refere muito mais a um hábito de espírito e a
um tipo de vida do que a um sistema político determinado. Além disto, afirmação de Millett
(1974) de que as distinções sociais não estão baseadas na riqueza ou na posição social, mas no
sexo, pode ser vista como um outro fator que a afasta de uma perspectiva materialista, pela
pouca atenção concedida pela autora à maneira como a vida é materialmente produzida e
reproduzida. A transformação da situação das mulheres ocorreria, portanto, por um viés

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ideológico e não no campo das instituições sociais. Além disso, a autora não recorre à
categoria da totalidade para compreender os processos de opressão.
Concluímos, portanto, que o feminismo radical não necessariamente será um
feminismo materialista conforme proposto por Delphy (1974), isto significa que, ainda que
algumas autoras aproximem-se da perspectiva materialista e da abordagem da opressão de
forma estrutural, outras autoras podem se afastar. O fato de o feminismo radical propor a
busca pela gênese da opressão e implicar em uma proposta de revolução sexual, por si só, não
confere a ele o conteúdo estrutural necessário para ser compreendido enquanto uma
abordagem notadamente materialista.

Referências:
DELPHY, Christine. A materialist feminism is possible. Feminist Review, no 4. Reino Unido,
março de 1980, pp. 79-105. Disponível em:
<https://link.springer.com/article/10.1057%2Ffr.1980.8>. Acesso em 28 maio 2018.

DELPHY, Christine.O inimigo principal: a economia do patriarcado. Revista Brasileira de


Ciência Política, no17. Brasília, maio - agosto de 2015, pp. 99-119.

FIRESTONE, Shulamith. A dialética do sexo: um estudo da revolução feminista. Rio de


Janeiro: Labor do Brasil, 1976. Edição original: 1970.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito. Boitempo: São Paulo, 2013

MILLETT, Kate. Política Sexual. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1974.

RUBIN, Gayle. Tráfico de Mulheres: Notas sobre a economia política do sexo. Recife: SOS
Corpo, 1993.

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Os debates feministas sobre a Tecnologia: o mito da invenção e a cultura

Lara Facioli1

Resumo: o trabalho apresentado aqui consiste em uma tentativa de sistematização de parte da


crítica feminista, especificamente aquela que contribui com o campo de intersecção entre
Ciências Sociais e Tecnologias. Partimos do pressuposto de que a teoria social feminista foi
uma das grandes vertentes teórico-conceituais que nos auxiliou a pensar o fenômeno de
desenvolvimento e consolidação de nossas relações mediadas, tanto de um ponto de vista
crítico, quanto contextual e histórico, atentando para as relações de poder e conflitos de
interesses que compõem esta temática. Para alcançarmos nosso objetivo, retomaremos a
discussão de ciborgue de Donna Haraway (1985) como possibilidade de ruptura dos padrões
corpóreos de gênero, no sentido de apontar como esta tese teve força no contexto de
surgimento das tecnologias comunicacionais, influenciado o movimento do ciberfeminismo;
abordaremos a discussão levantada por Teresa de Lauretis (1994), acerca da Tecnologia do
Cinema que se constitui enquanto o que a autora chama de Tecnologia de Gênero e, por fim,
incorporaremos o debate da crítica ao mito do homem inventor que continua a imperar sobre
nossas atuais impressões do desenvolvimento das tecnologias e que é fortemente criticado por
Judy Wajcman (1999) em seu debate sobre a Modelagem Social da Tecnologia.

Palavras-chaves: teorias feministas, Tecnologia, mídias digitais

1
Pós-Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da UEL, doutora em Sociologia pela
Universidade Federal de São Carlos, email: larafacioli@yahoo.com.br

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Introdução. (Os subitens devem estar em negrito e separados por um espaço).


Este trabalho compõe um cenário de pesquisa mais amplo que integra um conjunto
de investigações acerca dos usos da internet por mulheres no contexto da sociedade brasileira
dos últimos anos. Trata-se de uma sistematização de conteúdos lidos e refletidos ao longo de
minha pesquisa de mestrado, doutorado e, mais recentemente, de um estágio de pós-
doutoramento realizado na Universidade Estadual de Londrina.
Em linhas gerais, a pesquisa de mestrado e a de doutorado se debruçaram sobre a
utilização da internet por mulheres das classes populares brasileiras. A primeira tentou
compreender como se estabeleciam práticas de ajuda-mútua em rede e a segunda, de forma
mais ampliada, apontou para como o acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação,
por parte deste público, interfere no que podemos chamar de horizontes de aspiração dos
sujeitos em questão. Os resultados caminharam no sentido de apontar o papel central que a
mídia digital ocupa nas relações sociais contemporâneas, especificamente, estabelecendo um
novo arranjo de circulação de repertórios culturais e simbólicos que acaba por expandir
fronteiras geográficas e reelaborar a compreensão que os sujeitos conectados têm de si
mesmos, de suas relações amorosas, afetivas, profissionais, para mencionar alguns exemplos
de aspectos da vida alterados pelas mídias (FACIOLI, 2013; FACIOLI, 2017).
A atual Pesquisa de pós-doutoramento tem como proposta realizar um esforço de
compreensão do papel das mídias digitais e da organização em rede para a formulação das
pautas, repertórios e iconografias dos movimentos feministas contemporâneos no Brasil. Se
em meu mestrado e doutorado me debrucei sobre a utilização da rede por mulheres comuns,
em seu cotidiano, principalmente, em meio às discussões sobre seus afetos e relações
amorosas, em meu pós-doutorado, o intuito tem sido refletir sobre a relação entre tais mídias e
as práticas políticas dos sujeitos declaradamente feministas e militantes ativistas. Qual o papel
das tecnologias comunicacionais e informacionais na atuação intitulada feminista? Como este
debate se mostra como fruto do contexto histórico dos últimos anos da sociedade brasileira,
contexto este não só marcado pela popularização das tecnologias, mas por aspectos
socioeconômicos e políticos específicos?
Tais questões tem se constituído enquanto um desafio de pesquisa bastante grande no
atual contexto político da sociedade brasileira e mundial, devido a intensificação da utilização
das ferramentas comunicacionais na organização e encontro político de grupos diversos, o que
inclui de ativistas feministas. Dessa forma, apesar de relevância deste debate no atual
momento vivido por nós, este texto, estará restrito às reflexões teóricas. Em outros termos, ele

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terá como objetivo sistematizar um conjunto de teorias feministas que nos auxiliam a refletir
sobre as relações que estabelecemos com as tecnologias e sobre como a teoria social se
debruçou sobre estas ferramentas tecnológicas.
Se as Tecnologias da Informação e da Comunicação se mostram espaços
privilegiados para sujeitos que, historicamente, se inseriram em relações de poder específicas,
no caso, relações de gênero que alocam as mulheres, via de regra, no polo fragilizado do
poder; notei, ao longo de meus levantamentos bibliográficos, que as teóricas feministas têm
apontado para os problemas e limites de nossa compreensão social acerca da tecnologia. Em
outras palavras, a tecnologia foi e é espaço de disputa social e também na teoria social e, as
teóricas com sensibilidade aguçada para relações de gênero, tem se colocado criticamente
neste campo de estudos com vistas a marcar posição e estabelecer um ponto de vista crítico,
contextual e que leva em conta as relações de poder que atravessam a temática da Tecnologia.
Isto posto, o trabalho apresentado aqui consiste em uma tentativa de apresentação de
parte da crítica feminista, especificamente aquela que contribui com o campo de intersecção
entre Ciências Sociais e Tecnologias. Partimos do pressuposto de que a teoria social feminista
foi uma das grandes vertentes teórico-conceituais que nos auxiliou a pensar este fenômeno
tanto de um ponto de vista crítico, quanto contextual e histórico, atentando para as relações de
poder e conflitos de interesses que compõem o debate em torno da temática da Tecnologia.
Tecnologia, para este texto, vale ressaltar, não se restringe somente àquelas
comunicacionais, mas em termos mais amplos, diz respeito às ferramentas técnicas de
utilização/transformação da realidade cotidiana. A leitura sobre o desenvolvimento
tecnológico, estabelecido pelas teóricas feministas mencionadas neste texto não se restringe às
mídias digitais e comunicacionais, apesar de fazermos, todo o tempo, o exercício de
pensarmos como este conhecimento é útil para a compreensão das relações mediadas pelas
Tecnologias da Informação e Comunicação da atualidade.
Para alcançarmos nosso objetivo, portanto, retomaremos a discussão de ciborgue de
Donna Haraway (1985) como possibilidade de ruptura dos padrões corpóreos de gênero, no
sentido de apontar como esta tese teve força no contexto de surgimento das tecnologias
comunicacionais, influenciado o movimento do ciberfeminismo; abordaremos a discussão
levantada por Teresa de Lauretis (1994), acerca da Tecnologia do Cinema que se constitui
enquanto o que a autora chama de Tecnologia de Gênero, discussão que, quando expandida
para a reflexão acerca das mídias digitais, nos possibilita colher bons frutos na compreensão
sobre a forma como as mídias digitais também instigam roteiros de inteligibilidade de gênero;
e, por fim, incorporaremos o debate da crítica ao mito do homem inventor que continua a

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imperar sobre nossas atuais impressões do desenvolvimento das tecnologias e que é


fortemente criticado por Judy Wajcman (1999), bem como evidenciaremos a tese da autora da
Modelagem Social da Tecnologia.
Vale ressaltar, que este conjunto de saberes foi fundamental não somente no percurso
de pesquisa que tenho desenvolvido, mas se constrói como repertório teórico-conceitual que
merece ser revisitado e sistematizado para que possamos pensar o surgimento, os limites e
possibilidades advindas da consolidação e utilização das Tecnologias em nosso cotidiano de
relações sociais.

O ciborgue, o cyber e as possibilidades da tecnologia: as contribuições de Donna


Haraway

A produção da teórica feminista Donna Haraway, autora de um dos textos clássicos a


respeito da relação humano-máquina ou humano-tecnologia – Um manifesto para os ciborgs:
ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80 - se insere no contexto norte-
americano dos anos 70 e 80. Este momento, atravessado por novas pautas políticas acerca dos
processos de dominação das sociedades capitalistas, se caracterizou, segundo Miriam
Adelman, pelo surgimento de uma Nova Esquerda Mundial que se apresentava por meio de
uma nova orientação composta por cinco elementos centrais:

1) a reinterpretação da teoria marxista, enfatizando mais a categoria


filosófica de alienação do que a categoria econômica de exploração,
combinando ainda marxismo com existencialismo e psicanálise; 2) um novo
modelo de sociedade socialista, que não se restringia aos termos de tomada
de poder do Estado e nacionalização dos meios de produção, mas exigia
também a transformação da vida cotidiana, da família, da sexualidade e das
relações entre homens e mulheres, assim como do uso do tempo livre; 3)
uma nova estratégia transformativa, baseada na noção de que as mudanças
culturais antecedem mudanças sociais e políticas, de modo que os indivíduos
não deveriam ser sacrificados em nome do “controle coletivo”, pois novos
estilos de vida e modos de comunicação dariam forma a toda uma série de
alternativas às instituições do status quo; 4) avanço de novos conceitos de
organização não baseados no partido; nestes a ação direta era privilegiada, e
procurava-se a transformação dos indivíduos no processo de “mudar a vida”
(muito diferente da noção de uma transformação da pessoa “após a
revolução”); 5) o proletariado não mais como o sujeito por excelência da
revolução, de modo que outros grupos – jovens universitários, grupos
marginalizados, a “nova classe trabalhadora” etc. – passaram a ser vistos
como os que dariam a tônica e a liderança aos novos movimentos sociais.
(Adelman, 2016, p. 40)

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Estes elementos são demandados em pautas políticas dos novos movimentos sociais
atentos ao desenvolvimento da sociedade capitalista do século XX, cujas mudanças deixam
evidente a insuficiência do debate de classe, mobilizado pela teoria social marxista, no
tratamento das relações de poder daquele contexto. Em outros termos, a revolução socialista
não daria conta de proporcionar uma sociedade mais igualitária para mulheres, negros,
homossexuais e outros grupos também subalternizados. O poder, para grande parte desses
movimentos e teorias, se instaurava não somente nas relações econômicas, mas adentrava a
esfera da vida cotidiana, do lar, das relações afetivas e se instalava também no nível mais
molecular de nossa existência, o corpo.
Vale ressaltar que os Movimentos Feministas, efervescentes neste contexto, se
constituam enquanto grupos centrais capazes de propor tanto uma nova concepção de política,
com objetivo de politizar a esfera privada2 e dos afetos, como também pressionar as análises
sociais da época que apelavam, ainda, para a ortodoxia marxista e a centralidade das relações
econômicas no mundo social. Os chamados Novos Movimentos Sociais, principalmente os
feminismos, contribuíram para uma virada epistemológica e paradigmática na compreensão
da sociedade, na medida em que evidenciaram a centralidade da Cultura (HALL, 1997) na
vida contemporânea e nas relações que a sustentam. De forma mais simples, as relações de
poder são reproduzidas por discursos culturais, midiáticos, tecnológicos, educacionais e as
transformações precisam ocorrer também no nível dos valores, costumes, dos aspectos
simbólicos de existência.
O corpo como espaço afetado pelo poder e também como possibilidade de resistência
se evidencia, no caso dos movimentos feministas e de mulheres, com o advento, nos anos 60,
da Pílula Anticoncepcional, Tecnologia científica fundamental no processo de desvinculação
da sexualidade e das práticas sexuais da gestação e da maternidade. Para as mulheres
engajadas da época, seria possível, enfim, romper com o destino biológico da maternidade e
colocar em pauta o prazer, a autonomia de escolha ou não da vivência da maternidade e a
liberdade do próprio corpo, não mais vinculado ao roteiro final do “ser mãe”.
O ciborgue de Donna Haraway é fruto desse contexto e se constituía enquanto uma
criatura metafórica formada por uma fusão fundamental entre máquina e humano, mistura de
realidade social com a realidade ficcional, não constituindo um corpo sólido com
componentes definidos como este corpo de carne e osso que nos sustenta. Tratava-se da

2
Uma das bandeiras dos movimentos feministas dos anos 60 e 70 era sintetizada pela frase “O Privado
também é político”

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metáfora dessa nova política em um mundo marcado de forma crescente pelo


desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
Haraway, como uma das grandes teóricas que elaborará uma crítica a forma de
construção do conhecimento científico e tecnológico, aponta a necessidade de
desenvolvimento de uma visão histórica sobre a ciência e sobre a tecnologia como cultura,
questões que necessitam ser compreendidas contextualmente. Segundo a autora é preciso
elaborar uma crítica à separação da ciência da sociedade, como se a primeira fosse um ente
neutro, capaz de se afastar das relações sociais e construir formas isentas de elaboração de
teorias e saberes. Para ela, as teorias feministas e a noção de construção social da ciência deve
defender a ideia de que a esta última não é um espaço de grandes verdades a serem
aplicadas, e propõem, em seu lugar, uma noção de ciência como constructo social.
A autora, ao mesmo tempo em que se debruça sobre o advento das Tecnologias e
sobre a crítica ao repertório científico ocidental, apresenta-nos um forte otimismo a respeito
das possibilidades que as Tecnologias teriam para ultrapassar as barreiras corpóreas impostas
pelo gênero. Provocativa, em seu Manifesto Cirborgue, Haraway diz que prefere ser um
"cyborg" - um organismo cibernético, como um animal com um implante humano - a uma
"deusa" ecofeminista (Haraway, 1985). A autora oferece uma saída capaz de reformular um
tema antigo: o potencial libertador da ciência e da tecnologia. Ela observa o grande poder da
ciência e da tecnologia para criar novos significados e novas entidades, para produzir novos
mundos, novas relações e, no limite, novos corpos, corpos híbridos.
No limite, o ciborgue de Haraway se constrói enquanto a corporificação do
rompimento de algumas fronteiras e binarismo tão caros a própria epistemologia ocidental:
aquela existente entre natureza e cultura, humano e animal, homens e mulheres, mente e
corpo.
Donna Haraway foi autora fundamental e influenciadora dos movimentos sociais e
debates teóricos do chamado Ciberfeminismo. Sua discussão sobre as possibilidades das
tecnologias na elaboração da metáfora do ciborgue, desenvolvida em 1985, reverberou em um
movimento que viu no advento da internet e das mídias digitais comunicacionais, um espaço
de criação alternativa de estéticas que rompiam, assim como o ciborgue, com as fronteiras
construídas do gênero.
Em países da Europa Central, da Escandinávia e, principalmente, nos Estados
Unidos, a década de 1990 foi marcada pela organização de grupos da sociedade civil
organizada comprometidos com reflexões sobre a participação das mulheres na política, sobre

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o acesso delas às novas tecnologias e sobre as supostas transformações dos papéis de gênero
que as mídias poderiam proporcionar.
Um exemplo ilustrativo a respeito do cyberfeminismo é o coletivo australiano
VNSMatrix, formado basicamente por mulheres que enxergavam na internet um espaço de
experimentação. Isso envolvia estratégias, mediadas por blogs, salas de bate papo, elaboração
de instalações de vídeos, dentre outros tipos de atividades realizadas pelo grupo. Segundo
Virginia Barratt, uma das integrantes do grupo na época “a paisagem tecnológica era muito
seca, cartesiana, respeitosa. Era acrítica e esmagadoramente dominada por homens. Era um
espaço masculinista, nomeado assim, e os guardiões dos códigos (culturais e logos)
mantinham controle da produção de tecnologia.”3.
Esses grupos, portanto, tinham como objetivo fazer uso da rede para apresentar
outras possibilidades de vivência corporal, da sexualidade, com propostas que questionavam
as fronteiras entre corpo e máquina. Não à toa o ponto de partida do grupo foi a pornografia e
a elaboração de material audiovisual sobre o corpo da mulher e seu prazer. O Cyberfeminist
Manifest for the 21st Century, lançado pelo grupo na segunda metade da década de noventa
diz:

“Nós somos vadias modernas, a anti-razão positiva ilimitada, frenética e


implacável. Nós vemos e fazemos arte com nossa buceta. Acreditamos em
gozo, loucura, santidade e poesia. Nós somos o vírus da nova desordem
mundial, rompendo o simbólico desde dentro, sabotando a estrutura
patriarcal. O clitóris é uma linha direta com a matrix. VNS matrix –
exterminadoras dos códigos morais, mercenárias do lodo abaixo do altar da
abjeção que sondam o templo visceral, infiltrando, interrompendo,
disseminando e corrompendo o discurso. Nós somos o futuro-vadia”4

Este momento histórico, de surgimento da internet, é atravessado pela crença de que


a rede poderia ser espaço propício a subversão da realidade off-line e, no caso dos
movimentos feministas, de transformações de noções fixas de gênero, sexualidade,
feminilidade. Tratava-se de um contexto marcado por menor regulação das mídias por parte
do mercado e das grandes corporações. O advento da chamada Web 2.0 acontece quando a
internet deixa de ser monopólio de especialistas ou experts, quando a linguagem dos
programas se simplifica e o conteúdo passa a ser massivamente gerado por usuários, mas
gerido por essas grandes empresas para gerar lucros. Exemplo disso são sites como o

3
Para acessar entrevista completa: https://motherboard.vice.com/pt_br/article/um-historia-oral-das-
primeiras-ciberfeministas
4
Tradução livre

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Youtube, que se baseiam na criação de conteúdo pelos usuários, mas apresentam todo um
suporte mercadológico de propagandas e investidores.
Dessa forma, a promessa de um futuro robótico, ciborgue e mais democrático
figurava na postura otimista dos movimentos ativistas desenvolvidos em rede e mesmo nas
teorias elaboradas nos anos 90, de advento das tecnologias comunicacionais e informacionais.
Com o passar do tempo e com o aprofundamento das reflexões em torno dessas
novas tecnologias comunicacionais, percebeu-se que a velha promessa de promoção de um
híbrido corpo-máquina, proposto por Haraway, bem como da criação de um espaço “virtual”
capaz de permitir ao sujeito um trânsito por fronteiras de gênero, não vingou. Pelo contrário,
em rede, os roteiros e identidades não somente estão colocados, da mesma forma que na
esfera desconectada, como também são reforçados pelo próprio mercado tecnológico e de
informações.
Voltaremos nesse debate mais adiante, mas é importante reter, até o momento, a
maneira como as reflexões de Donna Haraway auxiliaram a pensar sobre os limites e,
principalmente, sobre as possibilidades de potencias das Tecnologias. No interior das próprias
teorias feministas, quando debruçadas sobre este aparato técnico, vai surgir um repertório
teórico-conceitual que aponta para como tais ferramentas tecnológicas podem ser espaço de
manutenção de relações de gênero, mais do que da possibilidade ciborgue.

Teresa de Lauretis, as Tecnologias de Gênero e as mídias digitais

O conceito de tecnologia desenvolvido por Teresa de Lauretis, também na década de


80, tem influência no pensamento do teórico francês Michel Foucault e sua concepção de
tecnologia sexual, que aponta para o fato de que o conjunto de efeitos produzidos em corpos,
comportamentos e relações sociais é moldado por meio do desdobramento de uma articulação
complexa de tecnologias políticas. Lauretis, no entanto, atenta para as diferenças de gênero
que são produzidas pelas tecnologias e estabelece os limites do teórico francês, que não tratou
de relações de gênero:

A construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias de


gênero e discursos institucionais com poder de controlar o campo do
significado social e assim produzir, promover e implantar
representações de gênero. Mas os termos para uma construção
diferente do gênero também existem, nas margens dos discursos
hegemônicos (LAURETIS, 1994, p. 228).

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A obra de Lauretis, fruto de um mesmo contexto de reflexão sobre a importância da


cultura e dos sistemas de representação que constroem o gênero, se debruçou sobre a
tecnologia cinematográfica como aquilo que consolida roteiros discursivos acerca do que
seriam os papéis sociais de homens e mulheres.
Para Lauretis, o gênero, assim como a sexualidade, não são mero dado de
essência e natureza, originados em algo pré-existente nos corpos humanos, mas sim um
conjunto de resultados produzidos sobre esses corpos, sobre comportamentos e relações
sociais. Por isso, ela o trata como uma tecnologia política – a Tecnologia de Gênero –
originada de forma tecnosocial e biomédica (LAURETIS, 1987, p. 3). Desenvolvendo essa
proposição, Lauretis parte da noção de que gênero é uma representação que possui
implicações sociais e subjetivas para a vida das pessoas e se faz em meio a aparatos como a
escola, a mídia, a família, as leis.
Do ponto de vista da teórica e de sua análise sobre o cinema, é possível inferir que o
cinema reproduz o gênero por meio de elementos já existentes na sociedade. Lauretis trabalha
com a ideia de tecnologia de gênero, em sua análise da sétima arte como representante de uma
tecnologia sexual na medida em que, segundo ela, trata-se de uma representação de gênero
constituída via mídia cinematográfica, mas não só, também subjetivamente absorvida por
cada pessoa que se dispõe a estar frente à tela (Lauretis, 1994, p. 222).
A partir dos estudos de Teresa de Lauretis sobre a tecnologia do cinema, é possível
entender as mídias digitais da atualidade também como tecnologias de si e de gênero, na
medida em que permitem produção de sujeitos. Sob esses aspectos, mais do que tecnologias
de informação e comunicação, as mídias digitais são tecnologias do eu, tecnologias do sujeito.
No caso das pesquisas com mídias digitais e utilização da internet, que nortearam
este trabalho, temos três níveis de dinâmicas que atuam como tecnologias de gênero e de
constituição dos sujeitos. A primeira, está no âmbito dos regimes de representação feitos dos
sujeitos pelas equipes que coordenam os sites e redes sociais da internet e que são
responsáveis por seus conteúdos; a segunda, está colocada na forma como os sujeitos recebem
essas imagens e incorporam-na subjetivamente e, a terceira, menos tratada pela autora uma
vez que seu foco são as tecnologias cinematográficas e televisivas, é aquela da interação
direta e do compartilhamento intersubjetivo dessas mensagens midiáticas.
A concepção de Tecnologia de Gênero, nesse sentido, nos auxilia a refletir sobre
aspectos fundamentais nos estudos sobre o advento e consolidação das Tecnologias
Comunicacionais: primeiro, aponta para a centralidade que a cultura possui na elaboração de
discursos sobre o sujeito, que são incorporados ao cotidiano, reproduzidos, de forma nunca

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antes vista sem a mediação desses novos aparatos técnicos; segundo, mostra que tais
tecnologias não possuem, necessariamente, um potencial transformador, como esperava a
metáfora do ciborgue desenvolvida por Donna Haraway, elas não são neutras nem se
apresentam isentas de consolidar relações de poder atuantes nas diversas esferas sociais.
Podemos, neste momento de nossas reflexões, estender a análise de Lauretis àquelas
dinâmicas atravessadas não só pelas tecnologias de Broadcasting, ou seja, aquelas
caracterizadas pela produção de conteúdo de forma verticalizada cujo polo emissor é
concentrado em centrais televisivas e cinematográficas, mas também para as mídias digitais
com acesso a internet, cujo conteúdo é apresentado no formato em rede e também pode ser
produzido e compartilhado pelos sujeitos.
As mídias digitais e as diversas plataformas em rede como blogues, sites de notícias,
redes sociais como Facebook, Twitter também se apresentam enquanto tecnologias de gênero,
disseminadoras de repertórios de gênero específicos, mas não só, são estimulados recortes de
gênero, classe social, relações raciais, para mencionar alguns exemplos sobre como estes
aparatos tecnológicos atuam em nossas vidas e relações sociais.
A autora Danah Boyd (2001) em um texto recente onde analisou o papel das
identificações em comunidades online abordou como as plataformas em rede se utilizam de
três aspectos demográficos para definir o público que as integra, são elas: idade, sexo e
localização. Não havendo a possibilidade de recusar se expor por meio dessas categorias, uma
vez que, a própria dinâmica online persuade o sujeito a autoclassificação por meio de
mensagens como ―sexo é um valor necessário para realizar sua conta em nosso site‖; ―saber
sua localização melhora os serviços que podemos oferecer para você‖, dentre outras.
Para a autora, tais características fazem das plataformas, espaços que, ao contrário de
permitir o reforço da diferença e a diversidade de perfis de sujeitos, nos conduz a uma
generificação através do sexo biológico, dando possibilidade de só existirem homens ou
mulheres no preenchimento dos perfis e também prevê, por meio da localidade e do código
postal, o CEP, recortes de classe social e de raça. Este aspecto facilita a seleção de imagens,
propagandas e códigos de consumo que irão aparecer para os frequentadores daquele site ou
rede social.
Esta recolhida de informações a respeito dos sujeitos, cobrada pelos anunciantes das
plataformas, não seria possível com tamanha eficiência nos espaços off-line, como é na
internet onde a possibilidade de preenchimento de perfis em larga escala, permite um fluxo de
informações rápido e intenso. Dessa forma, a dinâmica em rede permitiu, como nunca antes,

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uma intensidade de divulgação de bens materiais de consumo direcionados para nichos de


mercado específicos colhidos e criados online.

Esta explicação estereotipada sugere que os consumidores obtém algo fora


do seu "ato" de participação. Ao revelar a sua identidade, os consumidores
irão obter um melhor serviço e conteúdo mais significativo. Aqui,
demografia cria consumidores; antigos vetores de desigualdade social
tornam-se novas oportunidades de marketing. Para empresas digitais, a
definição precisa de populações de usuários parece não ter desvantagens
óbvias: os anunciantes estão felizes e os consumidores / usuários tem uma
experiência melhor. No entanto, nestes atos simples de definição, o negócio
on-line ajuda a reinscrever distinções sociais e culturais existentes. (BOYD,
2001, p. 6).

Para Boyd, embora as plataformas garantam anúncios eficientes com a promessa de


que o trabalho oferecido aos usuários se torna personalizado na medida em que mais
padronizado e direcionado de acordo com o perfil preenchido, essa dinâmica é responsável
por manter distinções sociais e consolidar relações de desigualdades. Além disso, a
combinação entre sexo, idade e CEP permitem presumir elementos raciais, de classe social,
hábitos de consumo.
Em outros termos, a própria dinâmica da rede estimula recortes de gênero, raça,
classe, dentre outros, o que faz com que, por exemplo, mulheres de classe média baixa, negras
e moradoras das periferias de determinada cidade, não acessem conteúdos compartilhados e
divulgados por homens, brancos e de classe média alta. Nas pesquisas realizadas em meu
mestrado e doutorado, era perceptível como as mulheres da periferia do Rio de Janeiro,
tinham acesso a conteúdos, propagandas, repertórios que correspondiam a sua situação em
meio às relações sociais fora da rede. Uma moradora da Baixada Fluminense não acessava
conteúdo de moradia, festas, eventos na Zona Sul ou no centro da capital carioca. A rede,
nesse caso, mantém o isolamento e as hierarquias sociais.
Dessa forma, as mídias digitais também se mostram Tecnologias de Gênero, de si e
de produção de sujeitos, o que faz com que a teoria desenvolvida por Teresa de Lauretis em
sua análise das Tecnologias cinematográficas, permita-nos compreender também como atuam
as Tecnologias Algorítmicas que modulam, atualmente, nossas relações sociais, nossa
compreensão da realidade e de nós mesmos. Gênero continua sendo fator fundamental que
atribui inteligibilidade aos sujeitos e as Tecnologias diversas, sejam digitais e
comunicacionais ou cinematográficas e televisas, não promoveram uma sociedade ciborgue,
andrógina, não generificada; pelo contrário mobilizam e atuam a partir de repertórios sociais
já existentes.

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Judy Wajcman, o mito do homem inventor e a modelagem social da tecnologia

Quando Judy Wajcman escreveu e lançou, em 2004, sua obra intitulada


Tecnofeminismo, as análises dos estudos de gênero a respeito da ciência e da tecnologia
estavam consolidadas por autoras como Donna Haraway e Teresa de Lauretis. O
Tecnofeminismo (2004), na obra da autora, se abre como uma exploração da redefinição da
tecnologia feita pelo feminismo, para o qual a tecnologia deixou de ser pensada como
ferramenta neutra e asséptica, para ser compreendida como prática social que pressupunha
uma fonte de poder masculino e de constante exclusão das mulheres. Dito de outro modo, o
feminismo repensou a tecnologia como fator de construção de gênero.
Nesta obra, Wajcman retoma a discussão do já mencionado Ciberfeminismo no
sentido de apontar suas limitações ao acreditar nas redes sociais como espaço efetivo de troca,
no qual os valores lineares, hierárquicos e patriarcais seriam substituídos pela horizontalidade
e pela comunidade. Para esta corrente de pensamentos sobre as redes digitais, o espaço
“virtual” seria aquele lugar do imprevisível, onde as identidades fluem, de modo que as
posições duais se desarticulam. A autora detecta, nessas afirmações, a simplificação da
compreensão da tecnologia, compreendida de maneira fossilizada, que não considera seu
percurso histórico e as relações de poder que a atravessam.
Da mesma maneira crítica, a autora retoma também a problemática do ciborgue e
aponta para o problema de fetichização dessa metáfora na compreensão da relação humano-
máquina. Wajcman aponta que o ciborgue da cultura popular, pouco tem a ver com aquela
proposta de Haraway e que, na verdade, se situa em meio ás ideologias hegemônicas e
binárias da cultura ocidental moderna.
O Tecnofeminismo proposto por Wajcman tem como característica fundamental o
que a autora chama de análise responsável da tecnologia: fugir da tecnofobia, ou seja, do
discurso de que a tecnologia seria a grande responsável pelos males que nos cercam, e escapar
também do otimismo exacerbado que aponta a tecnologia como grande promessa de
identidades fluídas e de rupturas com o poder.
Uma das teses desenvolvidas pela autora, para fazer frente a estas visões correntes
acerca das funções sociais das tecnologias, diz respeito a elaboração do que chamou de
Modelagem Social da Tecnologia (1999), segunda a qual a tecnologia é moldada em um
processo social que não tem uma força dominante única. Assim, entendemos que a tecnologia
disponível é o resultado de um conjunto complexo de relações sociais que envolvem ciência,

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técnica, Estado, mercado, pessoas entre outros fatores. Muito embora a autora se debruce com
bastante afinco nas tecnologias comunicacionais, este debate pode se expandir para análise de
qualquer aparato tecnológico e também de discursos, práticas e “descobertas” científicas.
Em outros termos, esta tese se opõe tanto àquela que aponta para o determinismo
tecnológico, ou seja, que tenta mostrar a tecnologia como aquilo que constrói relações sociais
e que manipula os sujeitos a determinado tipo de ação, quanto àquelas teorias consideradas
otimistas acerca da tecnologia e também da ciência como promotoras de uma concepção
confiante na possibilidade de superação dos dilemas sociais. Dentre os teóricos e teóricas que
apresentam uma análise otimista acerca da função das tecnologias na sociedade, podemos
mencionar também as teorias utópicas, das quais faz parte, por exemplo, Pierre Levy (1999),
que se dedicou com maior foco às promessas das tecnologias como superadoras de fronteiras
e de diferenças, como espaço de desenvolvimento de outras realidade, no Cyberespaço, que se
distinguiriam das formas convencionais de vida. Em termos mais amplos, a crença no
progresso e no desenvolvimento científico e tecnológico é aquilo que marca as sociedades
modernas e que faz com que se alimente a crença na ideia de que estes saberes,
conhecimentos e técnicas são isentos e neutros de interesses e conflitos.
A tese da modelagem, desenvolvida por Wajcman, se contrapõe a essa concepção de
que tanto a ciência, quanto a tecnologia possuem um desenvolvimento autônomo em relação
às forças sociais de uma sociedade. De acordo com a autora:

Para entender a força desse argumento, é necessário ver o que há de errado


com nossa noção comum, mas totalmente mistificada, do inventor heroico.
De acordo com essa noção, grandes invenções ocorrem quando, em um flash
de gênio, uma ideia radicalmente nova se apresenta quase pronta na mente
do inventor. Esta maneira de pensar é reforçada pelas histórias populares
sobre a tecnologia, nas quais a cada dispositivo está anexada uma data
precisa e um homem particular (algumas são, de fato, as mulheres nas listas
estereotipadas) a quem a invenção inspirada “pertence”. Um ataque
importante a essa noção inspiradora de invenção foi montado por um grupo
de escritores americanos, o mais importante dentre eles William Ogburn,
que, a partir da década de 1920, estabeleceram a tarefa de construir uma
sociologia da tecnologia (Westrum, 1991). Em um artigo de 1922, Ogburn e
sua colaboradora, Dorothy Thomas, argumentaram que, longe de ser o
resultado de flashes imprevisíveis de inspiração, as invenções eram
inevitáveis. Uma vez que os “elementos culturais constitutivos necessários”
estão presentes - o mais importante é incluir tecnologias componentes -
existe um sentido em que uma invenção deve ocorrer. “Dado o barco e a
máquina a vapor, o barco a vapor não é inevitável?”, perguntou Ogburn e
Thomas (1922, 90). Eles consideravam isso uma evidência crucial para a
inevitabilidade da invenção que muitas vezes, de fato, foram feitas de forma
independente por mais de uma pessoa. (WAJCMAN, 1999, p. 7)

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O desenvolvimento do mito das invenções, acompanhado pelo mito do homem


inventor, segundo a tese de Wajcman, desconsidera o que a autora chama de Modelagem
Social da Tecnologia. Em outros termos, impedem de compreendermos as forças sociais que
atravessam o surgimento e consolidação de cada uma das ferramentas técnicas. Como
exemplo, a autora utiliza o caso do desenvolvimento do computador pessoal como fruto não
só dos avanços nas áreas de microtecnologias e do microchip, mas aponta para as negociações
entre manifestantes da contracultura dos anos 60 e as empresas da computação.
Reflexões como a de Wajcman não incorrem no equívoco de apelar para o
determinismo tecnológico que considera que a pesquisa científica e tecnológica gera a si
mesma, inventadas em uma esfera independente para, em seguida, criar novas sociedades e
condições humanas.
De acordo com a pesquisa sobre o surgimento e consolidação da televisão de
Raymond Willians, autor dos Estudos Culturais, que compartilha do ponto de vista de teorias
como a de Wajcman, não podemos desvincular as tecnologias de sua história de
desenvolvimento: a história, afirma ele, “é a força primária determinante, porque ela nos
produz, assim como produz a televisão”.
Em outros termos, as pesquisas sobre os adventos tecnológicos precisam recuperar os
conjuntos de interesses sociais, históricos e políticos que fazem com que cada ferramenta
dessas seja possível, utilizável e durável.

Conclusões ou considerações finais.

Este texto consistiu em uma tentativa de sistematizar alguns conhecimentos


apresentados pelos repertórios dos estudos de gênero acerca de suas analises sobre os
adventos de aparatos tecnológicos.
Apontamos que a crítica feminista foi e tem sido fundamental na compreensão de
nossas relações mediadas por estas ferramentas técnicas. Retomamos o debate de Donna
Haraway a respeito da metáfora do Ciborgue apontando para as expectativas geradas pelas
mudanças tecnológicas nos roteiros e padrões consolidados de gênero, principalmente no
contexto dos anos 60 e 70.
Também no seio das teorias feministas acerca da Tecnologia, vimos nascer um ponto
de vista que insere tais aparatos em relações de poder, na história e em meio a contextos
sociais e culturais que precisam ser pensados de maneira realista e materialista. Com isso,
apontam teóricas como Teresa de Lauretis e Judy Wajcman, não incorrendo em pontos de

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vista otimistas, que percebem a tecnologia como possibilidades únicas de transformação, ou


pessimistas, que apontam para como somos dominadas pelas mudanças tecnológicas, sem
possibilidade de rupturas e saídas.
A atenção para a crítica feminista à Ciência e à Tecnologia é território fértil que
chama nossa atenção para os dilemas que enfrentamos em um mundo cada vez mais
tecnológico, especialmente, se considerarmos os avanços das mídias digitais, das conexões
móveis e das redes sociais em nosso cotidiano de relações. Entender essas mídias inseridas em
seus contextos sociais específicos permite-nos reconhecer seu potencial transformador e
também seus limites apontados quando notamos, por exemplo, a reprodução de relações de
gênero, de classe social, dentre outros fatores, presentes nos cálculos algorítmicos das redes
de computadores que acessamos na atualidade.
Se os estudos de gênero se constituíram enquanto uma virada paradigmática, nos
termos de Thomas Kuhn (2011), por romper com binarismos típicos da construção do
conhecimento nas Sociedades modernas (natureza x cultura, razão x emoção, público x
privado); os estudos feministas direcionados á observação das Tecnologias colocam em
cheque o mito de homem inventor e apontam, rompendo com outro binário (pessimismo e
otimismo tecnológico), para a necessidade de inserirmos os adventos tecnológicos em seu
contexto histórico-social e cultural.

Referências

ADELMAN, Miriam. A Voz e a Escuta – Encontros e Desencontros entre a Teoria Feminista


e a Sociologia Contemporânea. Curitiba: Blucher, 2009. Ler p.23-84.
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practices. University of Surrey, June 21-22, 2001.
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University Press, 2014.
______; Ellison, N. B. Social network sites: Definition, history, and scholar- ship. Journal of
Computer-Mediated Communication, 13 (1), 2007. Acesso em: 19 de julho de 2016.
FACIOLI, Lara Roberta Rodrigues. Mídias Digitais e Horizontes de Aspiração: um estudo
sobre a comunicação em rede entre mulheres das classes populares brasileiras. São Carlos.
230f. Tese (Doutorado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
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______. Conectadas: uma análise de práticas de ajuda-mútua feminina na era das Mídias
Digitais. UFSCar, 2013. São Carlos: Dissertação de Mestrado (Sociologia – UFSCar), São
Carlos.
HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Revista Educação e Realidade, v.2, número 2, 1997.
HARAWAY, D. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do
século XX. In. Tadeu, T.(Org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções científicas. 11ª Edição, São Paulo: Editora.
Perspectiva, 2011.
LAURETIS, Teresa. Tecnologia de Gênero. In: Tendências e Impasses, o feminismo como
crítica da Cultura. Editora Rocco, Rio de janeiro, 1994.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
WAJCMAN, Judy. The social shaping of technology. 2nd ed., Open University Press,
Buckingham, UK, 1999.
WILLIAMS, R. Televisão: tecnologia e forma cultural. Trad. Márcio Serelle; Mário F. I.
Viggiano. 1a ed. São Paulo: Boitempo; Belo Horizonte, PUCMinas, 2016.

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Teorias sociais sobre agência: contribuições do feminismo negro e da abordagem


das capacidades

Silvana Mariano1
Márcio Ferreira de Souza2
Lina Penati Ferreira3

Resumo: Nos estudos sobre as vivências das mulheres, por vezes enxergamos puramente
subordinação; outras vezes vislumbramos demasiado voluntarismo. É possível uma agenda de
pesquisa feminista que realize investigações com mulheres escapando de concepções
ontológicas que as tomam universalmente como vítimas, sem capacidade de agir e escolher, ou,
outras vezes, atomizadas e com elevada capacidade de transformação? A presente proposta trata
da problematização sociológica a respeito das teorias da agência em busca de formulações
capazes de orientar estudos que abordam a autonomia de mulheres em situação de pobreza.
Partimos das perspectivas críticas feministas, embasando-nos em discussões travadas por
intelectuais de diferentes nacionalidades e matizes teóricos que buscaram apresentar um novo
ponto de vista acerca dos olhares que emergiram sobre o indivíduo e a individualidade na
modernidade. Temos como objetivo informar investigações sobre a autonomia das mulheres
em situação de pobreza, em grandes centros urbanos, adotando-se a perspectiva interseccional
que leva em consideração, em especial, os cruzamentos de gênero, raça e classe. Nesse
empreendimento articulamos contribuições do campo do feminismo negro com a abordagem
das capacidades e a sociologia da reflexividade. Com este esforço, estamos compondo uma
moldura explicativa que nos permita acessar as percepções que nossas entrevistadas apresentam
sobre suas trajetórias e aspirações de vida, observando um repertório de narrativas que
interconectam as relações de gênero, de classe, de trabalho e da família.

Palavras-chave: feminismo; autonomia feminina; pobreza.

1
Universidade Estadual de Londrina, doutora em Sociologia pela UNICAMP e professora adjunta do
Departamento de Ciências Sociais da UEL, silvanamariano@gmail.com
2
Universidade Federal de Uberlândia, doutor em Sociologia pela UFMG e professor associado do Instituto de
Ciências Sociais da UFU, marcfs@uol.com.br
3
Universidade Estadual de Londrina, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEL,
linapenati@gmail.com

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Introdução

O lugar que a noção de indivíduo ocupa na teoria sociológica e no pensamento político


encerra questões que interconectam os debates sobre agência e sobre desenvolvimento. Esses
debates se deparam com questões que por vezes são lançadas pelo feminismo e por vezes
desafiam o feminismo. Da crítica formulada a partir do feminismo negro encontram-se
reivindicações por uma teoria feministas que “não seja informada pela ideologia do
individualismo liberal” (hooks, 2015, p. 201). Entre estudos feministas sobre família
encontram-se acusações de que perspectivas feministas informadas pela noção de
individualização estariam presas a vieses de classe que não abarcam as experiências das
mulheres e das famílias trabalhadoras ou das camadas populares (SARTI, 2004; TRAD, 2010).
Há ainda as críticas dirigidas ao colonialismo que veem noções como liberdade individual e
igualdade como próprias de um pensamento eurocêntrico e, enquanto tal, também opressor.
Tais noções, quando incorporadas em projetos internacionais de desenvolvimento, não
respeitariam as diferenças culturais e a pluralidade e sustentariam, ainda, um tipo nocivo de
paternalismo4.
A síntese que pode ser feita desses debates é de que, no interior dos estudos e da
política feminista, há um incômodo persistente com as categorias do pensamento liberal. Deste
incômodo resultam críticas e recusas à noção de individualização. Não obstante tais críticas, e
sem querer desprezar a importância delas para colocar em relevo certas limitações dos projetos
de desenvolvimento, nosso argumento pretende sustentar que o ideal de autonomia feminina
exige que se mobilize, de modo crítico, noções que são herdadas do liberalismo político.
Em outros momentos, já discorremos sobre as críticas do feminismo ao sujeito
universal, abstrato, masculino, proprietário e heterossexual (MARIANO, 2005 e 2008). Para os
propósitos deste momento precisamos acentuar que uma teoria e uma política feministas que
pretendam atribuir alguma potência à capacidade de ação das mulheres devem ser crítica às
noções políticas erigidas no interior do pensamento liberal, mas não podem aderir à recusa
dessas noções.
Badinter (BADINTER, 2005), em diálogo com o feminismo radical de origem
estadunidense, critica as correntes feministas que, na ansiedade de amplificar seu poder de

4
Parte das críticas à agenda do desenvolvimento pode ser encontrada em: CORNWALL, Andréa; HARRISON,
Elizabeth; WHITEHEAD, Ann. Introdução: reposicionando feminismos em gênero e desenvolvimento. Revista
Feminismos, v. 1, n. 1, 2012.
Sobre um diálogo entre as críticas ao colonialismo e a defesa de uma concepção feminista de desenvolvimento
universalista, ver: NUSSBAUM, Martha Craven. Las mujeres y el desarrollo humano. Herder Editorial, 2012.

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denúncia, adota, muitas vezes sem se dar conta, concepções políticas que vitimizam ou
infantilizam todas as mulheres. As agendas feministas que dão destaque a temas como violência
contra a mulher, assédio e estupro incorreriam frequentemente em abordagens vitimistas.
Podemos interpretar o questionamento levantado por Badinter como a reinvindicação por uma
abordagem que reconheça o agenciamento feminino, isto é, que reconheça as mulheres como
seres dotados da capacidade de agir e de realizar escolhas. Encontramos o mesmo tipo de
reivindicação também em autoras como Angela Davis (2016) e hooks (2015). As abordagens
que vitimizam ou infantilizam as mulheres são igualmente aquelas que adotam o mito da
fragilidade feminina, e tal mito é informado por referências de classe e de raça (DAVIS, 2016
e hooks, 2015). De comum entre essas posições vemos a defesa de um feminismo que opere
com noções e categorias que deem conta da diversidade das mulheres e que as reconheça como
agentes. Se há algum acordo em torno dessas reivindicações, concordaremos que a autonomia
feminina passa pela agência e que não existe agência sem individualização.
Neste ponto nos encontramos com a abordagem das capacidades como suporte de uma
teoria da justiça universalista que oriente as políticas de desenvolvimento.

Indivíduo e agência na teoria da estruturação e na abordagem das capacidades

Tratar de temáticas relacionadas ao indivíduo e sua agência não é uma novidade na


sociologia. Dentro dos debates desta área, sempre houve aqueles que entendessem o indivíduo
enquanto unidade básica de análise da sociologia. Do outro, havia aqueles que afirmavam que
o indivíduo não poderia representar o objeto sociológico em si, mas seriam as relações mais
estruturais ou sistêmicas o verdadeiro foco de interesse. O cenário em meados do século XX
era de uma sociologia marcadamente dividida entre defensores de teorias mais “estruturais” e
objetivistas e teorias mais “individualizadas” e subjetivistas. De um lado, estava o
funcionalismo e o estruturalismo, que, apesar de algumas diferenças, compartilhavam um ponto
de vista naturalístico e objetivista, além da ideia de que o todo é maior que as partes ou de que
a sociedade é mais relevante que os sujeitos sociais. E, na outra ponta, estavam a hermenêutica
e as linhas interpretativistas que negam qualquer aproximação entre ciência natural e social e
que colocam a experiência subjetiva no centro das análises, dando pouca ou nenhuma atenção
ao poder de coerção das estruturas (GIDDENS, 2003).
Na tentativa de amenizar essa separação demarcada, uma série de teorias passou a
buscar uma saída ao império da estrutura ou ao império do sujeito (GIDDENS, 2003;
BOURDIEU, 2007). Para Giddens, o ponto é que o objeto de estudo da sociologia não deve ser

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"a experiência do ator individual nem a existência de qualquer forma de totalidade social, mas
as práticas sociais ordenadas no espaço e no tempo" (GIDDENS, 2003, p. 2). A tentativa do
autor é por desenvolver uma teoria que não sufoque ou acabe com a autonomia do indivíduo,
sem que, para isso, tenha que se abrir mão de pontuações específicas sobre certas condições
sociais previamente determinadas no âmbito social.
Assim, a noção de agente proposta pela teoria da estruturação de Giddens envolve
“aspecto inerente do que [esses agentes] fazem, a capacidade para entender o que fazem
enquanto o fazem” (GIDDENS, 2003, p. XXV). Nessa concepção estão incluídas as
capacidades reflexivas do cotidiano, que estão diretamente relacionadas à consciência prática,
à capacidade de agir e à consciência discursiva, à capacidade de refletir e explicar o próprio
agir. Assim, o monitoramento reflexivo é uma característica da ação cotidiana do próprio
indivíduo, bem como a racionalização da ação, que se faz presente por meio de um
"entendimento teórico" que o agente tem das bases de suas atividades – o que não significa
poder explicar as bases de sua racionalidade discursivamente, como esperam alguns autores
(GIDDENS, 2003).
Mais específica é a noção de agência proposta pelo mesmo autor. Ela “não se refere às
intenções que as pessoas têm ao fazer as coisas, mas a capacidade delas para realizar essas
coisas em primeiro lugar” (GIDDENS, 2003, p. 10). Envolve a ideia de escolha para agir de
modo diferente, ou até mesmo não agir – caso seja uma escolha. Mas aqui vale atentar para o
fato de que motivações e ações não são as mesmas coisas. Como afirma Giddens (2003, p. 11),
posso ser “autor de muitas coisas que não tenho a intenção de fazer e que posso não querer
realizar, mas que, não obstante, faço. Inversamente, pode haver circunstâncias em que pretendo
realizar alguma coisa, e a realizo, embora não diretamente através de minha "agência""
(GIDDENS, 2003, p. 11).
Margaret Archer (2011), por sua vez, também se dedica a esse clássico desafio
sociológico e, travando controvérsias com Bourdieu e Giddens, se dedica à produção de um
arranjo teórico que dê conta de explicar relação entre habitus e reflexividade. Autores que se
dedicam a essa empreitada compartilham da avaliação de que, a despeito das promessas, a
sociologia de Bourdieu se revela ainda predominantemente determinista, enquanto a sociologia
de Giddens, em contraposição, exageraria a capacidade de agência do indivíduo. Archer
pretende avançar nesse terreno com a análise morfogenética, operando com o entrelaçamento
da estrutura, da cultura e da agência. Estas são coisas que se entrelaçam, mas não são
inseparáveis. Uma concepção deste tipo oferece-nos contribuições para explicações sobre a

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relação entre mudança e conservação social, além de entrelaçar também diferentes níveis de
análise, o micro, o meso e o macrossocial.
O arcabouço de Archer nos oferece uma moldura explicativa para as formas de ação
das mulheres, tendo em vista a questão central em torno da relação entre habitus e reflexividade.
Como essas mulheres agem em seus respectivos contextos? Como suas trajetórias são marcadas
por constrições sociais como também por escolhas? Como tratar do peso dos sistemas de classe,
de gênero e de raça? Para Archer (2011, p. 159), “as influências da ordem social sobre a agência
não devem ser localizadas nem inteiramente no interior dos agentes nem inteiramente fora
deles”.
Quando nos dedicamos às investigações sobre autonomia feminina em contextos de
pobreza urbana, há um pano de fundo do interesse de nossa agenda de pesquisa que envolve o
tema da mudança social. Para o tratamento desta questão, nos apoiamos novamente em Archer.
Para a autora, “todas as propriedades estruturais encontradas em qualquer sociedade são
continuamente dependentes da atividade. Não obstante, é possível separar estrutura e agência
por meio do dualismo analítico e examinar suas relações de forma a dar conta da estruturação
e reestruturação da ordem social” (ARCHER, 2011, p. 161-2). Neste processo ocorre uma
dupla morfogênese, a transformação da estrutura e da agência, o que deve ser explicado tanto
em termos diacrônicos como sincrônicos.
Ainda para Archer (2011, p. 179),
A única maneira de explicar com alguma precisão o que as pessoas
fazem, em vez de recorrer a correlações entre pertencimento grupal e
padrões de ação, cujo poder de explicação, via de regra, deixa a desejar,
será atingir o equilíbrio certo entre poderes emergentes pessoais, culturais
e estruturais. Para dar conta tanto da variabilidade como da regularidade
nos cursos de ação tomados por aqueles situados em posições similares,
é preciso reconhecer nossa singularidade como pessoas, sem negar que
nossa socialidade seja essencial para que sejamos reconhecíveis como
pessoas humanas.

Para nossos propósitos do momento, devemos destacar que os estudos feministas, com
as críticas às noções como objetividade, subjetividade, sujeito, classe social, entre outras
contribui significativamente para esses empreendimentos de reformulações teóricas
(MARIANO, 2008).
A noção de agência, mesmo em suas variações entre Giddens e Archer, está próxima
do conceito de capacidades desenvolvido por Amartya Sen (2012) e Nussbaum (2002). Na
lógica de Sen, a vida é entendida como um conjunto de modos de ser e exercer atividades. Dessa
forma, a avaliação da vida é a avaliação das capacidades de se efetivar essas atividades e
funcionamentos. Se, por um lado, os funcionamentos são elementos constitutivos da vida, por

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outro, as capacidades são as combinações de funcionamentos que uma pessoa pode atingir,
sendo que as capacidades são centrais, pois refletem a liberdade de escolher o modo de viver.
Assim chegamos a três conceitos-chaves para o enfoque das capacidades: funcionamento,
capacidade e liberdade (SEN, 2012). Por funcionamento Sen entende os estados e ações inter-
relacionados das pessoas, que abrangem desde questões nutricionais até a participação na vida
comunitária. Seriam exemplos de funcionamento desde o fato de ter uma nutrição adequada, de
não estar doente ou a perspectiva de se evitar a morte prematura, até questões mais abrangentes,
como ser feliz, ter respeito próprio, participar da vida em comunidade, entre outros (SEN,
2012).
A ideia de capacidade está diretamente ligada e próxima à de funcionamentos. A
capacidade é um conjunto de variáveis (funcionamentos) relevantes para o bem-estar de uma
pessoa (AZEVEDO; BURLANDY, 2010). Sen (2012) toma a comparação entre orçamento e
capacidades como exemplo, isto é, “da mesma forma que um ‘conjunto orçamentário’ no
espaço de mercadorias representa a liberdade de uma pessoa para comprar pacotes de
mercadorias, um ‘conjunto capacitário’ reflete, no espaço de funcionamentos, a liberdade da
pessoa para escolher dentre vidas possíveis” (SEN, 2012, p. 80).
É dessa forma que a ideia de liberdade já aparece como central na teoria de Sen.
Significa as oportunidades reais para realizar os funcionamentos, isto é, a liberdade para
escolher a vida que deseja ser vivida. Liberdade deixa de ser então um meio, um “pacote de
bens primários”, e passa a ser vista como fim, como o conjunto capacitário que permite ou não
que a pessoa converta funcionamentos em bem-estar. Assim, para Sen, há um abismo entre “o
fazer” e “o escolher fazer e se assim desejado, fazê-lo”. Por exemplo, o jejum é a escolha sobre
não comer. Assim, o indivíduo utilizou-se de sua liberdade, de seu “conjunto capacitário”, para
tomar tal decisão; situação muito diferente daquele que “passa fome”, em que o não comer não
é uma escolha, mas a única realidade possível (SEN, 1993, 2012).
A aproximação da ideia de agência de Giddens (2003) e de capacidade de Sen (2012)
nos parece viável uma vez que ambos estão tratando do indivíduo enquanto um ser que possui
a possibilidade de agir, e não o entende enquanto um “drogado sistêmico” como algumas teorias
chegaram a afirmar, isto é, um indivíduo sem capacidade para atuar frente a estruturas, sistemas,
coerções, etc. Outra aproximação possível se dá pelo refinamento de ambas as perspectivas em
distinguir a ação da vontade de agir ou da capacidade de agir.
A teoria da estruturação, porém, vai além do reconhecimento da agência. Giddens
(2003) adiciona em sua proposta o conceito de agência relacionado à concepção de poder.
Assim como em Bauman, agência, capacidade, liberdade e poder estão estritamente

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relacionados, pois “quanto maior minha margem de manobra, maior o meu poder. Quanto
menos liberdade de escolha tenho, mais fracas são minhas chances de luta pelo poder”
(BAUMAN, 2008, p. 47). Enquanto as teorias estruturalistas e objetivistas partem do
pressuposto de que, quando há coerção ou quando o indivíduo “não tem escolha”, não há uma
ação, como se suas atitudes fossem sempre reações, a noção de agência oferece um caminho
para compreender a ação do indivíduo. Então, “a ação depende da capacidade do indivíduo de
‘criar uma diferença’ em relação ao estado de coisas ou curso de eventos preexistente. Um
agente deixa de o ser se perde a capacidade para ‘criar uma diferença’, isto é, para exercer
alguma espécie de poder” (GIDDENS, 2003, p. 17). Nesse sentido é que as concepções de
agência e poder até agora apresentadas podem se alinhar ao que parte da teoria feminista vem
ressaltando.
A abordagem das capacidades, muito frequentemente atribuída a Sen, conta também
com importantes contribuições de Martha Nussbaum (2002) colocando as mulheres no centro
dos debates sobre desenvolvimento5. Um dos aspectos que Nussbaum destaca de sua obra é a
vinculação que ela faz entre a abordagem das capacidades e o liberalismo político. Com isto,
queremos chamar atenção para o fato de que esta abordagem, a exemplo das teorias da agência,
concede valorização especial às escolhas, ou preferências, para empegar o conceito adotado por
Nussbaum. Portanto, o indivíduo é um tópico especial de reflexão nessas concepções. Ao tratar
das capacidades humanas e seu vínculo com os desafios para o desenvolvimento humano,
Nussbaum defende uma análise que considere os aspectos econômicos, institucionais e
emocionais. Tal abordagem é compatível com aquela defendida por Archer que opere com o
entrelaçamento entre estrutura, cultura e agência.
Como aponta Nussbaum (2002, p. 28),
con demasiada frecuencia se trata a las mujeres no como fines em sí
mesmos, como personas con una dignidade que merece respeto por
parte de la leyes e de las instituiciones. Por el contrario, se las trata
como meros instrumentos para los fines de otros: reproductoras,
encargadas de cuidados, puntos de descarga sexual, agentes de
prosperidade general de uma família. A veces, este valor instrumental
es fuertemente positivo; outras veces, puede ser realmente negativo.

Seu enfoque das capacidades pressupõe a consideração das mulheres como indivíduos
e exige, como centro normativo de sua teoria, que se tome as mulheres como um fim em si
mesmas. Considerando a constatação de que as desigualdades entre os sexos é um fenômeno

5
Embora Sen tenha alcançado grande notoriedade com a abordagem das capacidades, interessa-nos igualmente os
aportes de Nussbaum para essa abordagem. Aqui não teremos espaço e oportunidade para discorrer sobre as
aproximações e distanciamentos entre as duas propostas.

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global, bem como as indicações das fortes correlações entre desigualdades de gênero e pobreza,
Nussbaum (2002, p. 31-2 – tradução nossa) incita que
o pensamento político e econômico internacional deve ser feminista,
atento, entre outras coisas, aos problemas especiais que as mulheres
enfrentam por causa de seu sexo em quase todas as nações do mundo,
problemas sem cuja compreensão não se pode enfrentar corretamente
os temas da pobreza e do desenvolvimento.

Nussbaum (2002, p. 64 – tradução nossa) também tem alertado que “é crucial


compreender como o contexto marca tanto a escolha como a aspiração” na formação das
“preferências adaptativas” ou “deformação das preferências”. Se desenvolvimento significa
ampliação das liberdades e se as liberdades são dimensionadas com referências às opções de
escolhas ao alcance dos indivíduos, considerando-se aí as desigualdades na distribuição dessas
oportunidades, decorre então que uma teoria da agência é indispensável e incontornável para o
tratamento dessas questões. Essa agenda coloca em evidência também as peculiaridades dos
grupos sociais que historicamente encontram mais obstáculos para o reconhecimento de seu
status de indivíduo, no que se incluem as mulheres, os negros e os pobres.
A base filosófica universalista de Martha Nussbaum (2002), sensível ao pluralismo e às
diferenças culturais, é fundamental para entender sua preocupação na relação entre justiça
social e mulheres. Ao elencar um série de pontos em que as mulheres se encontram em
desvantagens – maior desnutrição, piores índices de saúde, maiores vulnerabilidades à
violência, desigualdade no mercado de trabalho, entre outros –, a autora sustenta o argumento
de que as mulheres necessitam de maior apoio no que se refere ao desenvolvimento das
capacidades. Assim, segundo ela, “de todas estas maneras, las desiguales circunstanciais
sociales y políticas dan a las mujeres capacidades humanas desiguales” (NUSSBAUM, 2002,
p. 28).
Ao tratar da importância da conquista do status de indivíduo pela mulher, Danielle
Ardaillon e Teresa Caldeira (1984, p. 5) afirmam que,
a mulher não ê um indivíduo pleno. Esta categoria aplicada à sua
situação só revela uma série de inexistência, uma sequência vazia; é
pela negativa que se pode falar da mulher como sujeito: ela é o Outro.
Entretanto, é esta mesma categoria de indivíduo a que a mulher não
corresponde, que permite forjar o projeto de sua libertação. É o que
permite fundamentar a sua revolta, o parâmetro que permite estabelecer
que a mulher deve lutar para se fazer, a referência sobre a qual se
assenta a sua pretensão de igualdade, uma vez que é identificada com a
condição humana.

Ecoa a voz do feminismo negro

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Diversas autoras representantes do feminismo negro apresentaram relevantes


contribuições para as abordagens teóricas de gênero e para as pautas feministas. Desse modo,
entendemos a importância do feminismo negro para a elucidação das teorias sociais sobre a
agência. O sentido de “feminismo negro”, aqui exposto, diz respeito ao seu significado
sociológico, atribuído por Patricia Hill-Collins (2016) pelo entendimento de que “consiste em
ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um ponto de vista de e para mulheres
negras” (HILL-COLLINS, 2016: p. 101). Essa autora adverte sobre a impossibilidade de
disjunção entre “estrutura e conteúdo temático de pensamento das condições materiais e
históricas que moldam as vidas de suas produtoras”, reforçando desse modo que, embora seja
produzido por mulheres negras, o feminismo negro pode ser descrito por outras pessoas. Um
ponto importante em relação ao pensamento feminista negro é que Hill-Collins se posiciona
frente ao fato de que as mulheres negras “defendem um ponto de vista ou uma perspectiva
singular sobre suas experiências e que existirão certos elementos nestas perspectivas que serão
compartilhados pelas mulheres negras como grupo” (HILL-COLLINS, 2016: p. 102).
Essa percepção é um elemento que aproxima diversas pensadoras do feminismo negro,
também, no sentido de que ao vivenciarem sua experiência da “negritude”, chamam atenção
para o fato de que a reflexão sobre a questão de gênero, quando provinda de intelectuais
feministas de origem branca, deve ser construída de maneira a não se negligenciar a importância
da articulação da raça com uma série de variáveis significativas (classe, região, idade,
orientação sexual) que, por sua vez, no dizer de Hill-Collins, “moldam as vidas individuais de
mulheres negras”, apresentando “resultado em diferentes expressões desses temas comuns”
(HILL-COLLINS, 2016: p. 102).
Sob esse aspecto é significativa a crítica de bell hooks à obra A mística feminina, de
Betty Friedan, publicada em 1963. A despeito de ser uma obra ainda reverenciada como “o
livro que abriu caminho para o movimento feminista contemporâneo”, hooks a vê como uma
reflexão elaborada como se um considerável contingente de mulheres não existisse. A autora
está se referindo às mulheres “que são mais vitimizadas pela opressão machista”, aquelas que
são “agredidas todos os dias, mental, física e espiritualmente” e se encontram em situação de
impotência para a mudança de sua condição na vida. Complementa hooks que “estas são a
maioria silenciosa. Uma marca de sua condição de vítimas é que o fato de aceitarem sua sina
na vida sem questionamento visível, sem protesto organizado, sem fúria ou raiva coletivas”
(hooks, 2015: 193). Segundo hooks,
Friedan transformou suas dificuldades e as de mulheres brancas como
ela em sinônimo de uma condição que afetaria todas as mulheres nos

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Estados Unidos. Ao fazê-lo, desviou a atenção de seu classismo, seu


racismo, suas atitudes sexistas em relação à massa de mulheres norte-
americanas. No contexto de seu livro, ela deixa claro que as mulheres
que considerou vítimas de sexismo eram mulheres brancas com
formação universitária que foram obrigadas pelo condicionamento
sexista a permanecer em casa (HOOKS, 2015: 194).

Tal crítica, conduzida por hooks a Betty Friedan, é também direcionada de modo mais
generalizado às mulheres brancas que dirigem o movimento feminista contemporâneo no
sentido de que estas “raramente questionam se sua perspectiva sobre a realidade da mulher se
aplica às experiências de vida das mulheres como coletivo” (hooks, 2015: 195), ainda que venha
a registrar a emergência de uma consciência mais elevada sobre os preconceitos de raça e classe
nos últimos anos, no âmbito do movimento feminista. O resultado da “recusa feminista” em
atentar para as hierarquias sociais, contribuiu para a negligência da articulação entre raça e
classe. Neste sentido, hooks defende a argumentação de que “apenas se analisando o racismo e
sua função na sociedade capitalista é que pode surgir uma compreensão profunda das relações
de classe. A luta de classes está indissoluvelmente ligada à luta para acabar com o racismo”
(hooks, 2015: 215-216).
Tomando hooks como referência, podemos observar que um ponto de partida para a
reflexão sobre a dimensão da autonomia pode ser identificado em um campo de oposição que
nos conduz ao questionamento sobre a que a autonomia se contrapõe. Interessa-nos refletir
sobre a dimensão sociológica e política da autonomia, fundamentando-nos nas perspectivas
feministas, em particular o próprio feminismo negro, que tem levado a cabo a abordagem crítica
e desconstrucionista do termo.
Do ponto de vista teórico, hooks contribui para a possibilidade de reflexão sobre a
própria condição das mulheres em situação de pobreza no Brasil. Para tratarmos da questão da
autonomia dessas mulheres, é fundamental considerarmos a perspectiva interseccional, que
garantirá, do ponto de vista empírico, compreendermos com mais clareza a realidade específica
de tais mulheres.
Se hooks reconhece a conexão raça e classe como condição sine qua non para a questão
feminista, Patricia Hill-Collins lança um olhar sobre a problemática seguindo em direção
similar, ao enfatizar, por sua vez, que

embora o ponto de vista de mulheres negras exista, seus contornos


podem ainda não se dar de forma clara para as próprias mulheres negras.
Logo, um papel para mulheres negras intelectuais é o de produção de
fatos e de teorias sobre a experiência de mulheres negras que vão
elucidar o ponto de vista de mulheres negras para mulheres negras. Em

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outras palavras, o pensamento feminista negro contém observações e


interpretações sobre a condição feminina afro-americana que descreve
e explica diferentes expressões de temas comuns (HILL-COLLINS,
2016: 102).

O percurso argumentativo, percorrido por Hill-Collins, considera o ponto de vista


histórico como importante para a compreensão da construção de um “pensamento feminista
negro”, tendo em vista a produção intelectual de mulheres negras, pautada em uma tradição de
base oral, criada por “mulheres negras comuns”, comprometidas com seus múltiplos papéis
sociais (mães, professoras, músicas e pastoras). Sob esse ponto de vista específico, Hill-Collins
se posiciona contrária à definição de “pensamento especializado”, segundo Berger e Luckmann
destacam em seu clássico A construção social da realidade, calcados na sugestão de que uma
“teoria pura” emerge a partir de “teorias legitimadoras especializadas”. Num sentido oposto, a
autora busca argumentar, em consideração a uma “sabedoria tradicional”, entendendo-a como
uma espécie de saber que diz respeito a “um sistema de pensamento e que reflete as posições
materiais de seus praticantes”. Daí a importância do reconhecimento das lutas, da oralidade,
das tradições das mulheres negras.
Aprender com a outsider within (que em traduções literais corresponderia a
“forasteiras de dentro” ou “estrangeiras de dentro”), significa, para Hill-Collins, considerar o
lugar de fala, as experiências singulares de mulheres negras, tal como observa ao fazer
referência à própria bell hooks que escreveu, a partir de um relato sobre sua infância em uma
pequena cidade de Kentucky: “viver como vivíamos, na margem, acabamos desenvolvendo
uma forma particular de ver a realidade. Olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro
para fora... compreendíamos ambos” (hooks, 1984: vii apud HILL-COLLINS, 2016: 100).
O sentido que carrega a expressão outsider within, encontra respaldo nas trajetórias de
mulheres negras que, historicamente, vieram ocupando posições marginais em ambientes
marcados por grupos dominantes brancos, exercendo funções de cuidados domésticos, se
responsabilizando pela limpeza das casas, pela cozinha, pelos cuidados das crianças das
famílias brancas, além de oferecerem “importantes conselhos aos seus empregadores e,
frequentemente, tornavam-se membros honorários de suas ‘famílias’ brancas”. Assim, “essas
mulheres viram as elites brancas, tanto as de fato como as aspirantes, a partir de perspectivas
que não eram evidentes a seus esposos negros ou aos grupos dominantes” (HILL-COLLINS,
2016: 99). O acesso de mulheres negras ao ambiente acadêmico, não significou diretamente
uma libertação de tal condição de outsider within, tendo em vista que ao longo de muitas
décadas, vieram, também, ocupando papeis marginais na academia. Paradoxalmente, a despeito
de tal condição, “esse status de outsider within tem proporcionado às mulheres afro-americanas

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um ponto de vista especial quanto ao self, à família e à sociedade” (HILL-COLLINS, 2016:


100).
Voltando à observação de Hill-Collins acerca do olhar sobre as mulheres negras como
importante em seu processo de construção a partir da articulação com outras dimensões da vida
social, cabe-nos destacar que determinadas intelectuais representantes do feminismo negro
chamaram atenção similar, a exemplo das afro-americanas Angela Davis (2016), Kimberlé-
Crenshaw (2002), bell hooks (2015) e, no caso brasileiro, de Sueli Carneiro (2005) e Lélia
Gonzáles (1984). São teóricas que valorizam a perspectiva da interseccionalidade, à medida
que partem da compreensão de que as mulheres vivenciam modos e situações de opressão em
grau e intensidade diferenciados. Um argumento geral, que conduz as interpretações ou
explicações sobre as variações das formas de opressão, aqui pensado como tema fundamental
da teoria da interseccionalidade, está calcado na ideia de que ainda que todas as mulheres
possam experimentar a opressão, sob o princípio das teorias de gênero, elas se encontram em
diferentes contextos que emergem como dispositivos de desigualdades sociais. Tratam-se de
interseções com múltiplas dimensões da vida social, cuja variação irá impactar qualitativamente
as experiências singulares das mulheres.
Angela Davis, por exemplo, empenhou-se, numa série de artigos, em abordar a
interseção entre as dimensões de gênero, raça e classe, atentando para a intensificação do grau
de opressão a que estão sujeitas as mulheres negras em relação às mulheres brancas, ou mesmo
das mulheres brancas trabalhadoras em relação às mulheres de classe média.
A categoria da interseccionalidade, da maneira como foi abordada por Kimberlé
Crenshaw (2002), se configura como conceituação que possibilita uma compreensão das várias
formas de associações de múltiplos sistemas de subordinação, que recebem várias
denominações: “discriminação composta”, “cargas múltiplas”, “dupla ou tripla discriminação”.
Segundo Crenshaw (2002, p. 177):
É uma conceituação do problema que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo,
o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos
dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Intelectuais negras, no Brasil, também atentaram para a dimensão da


interseccionalidade. A despeito da pioneira Lélia Gonzáles, que no texto Racismo e sexismo na
cultura brasileira (1984) apresenta uma longa epígrafe extraída de Frantz Fanon, partindo da

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problemática aventada por esse autor martinicano com o propósito de abordar a identificação
do dominado com o dominador a fim de estabelecer fontes explicativas para uma melhor
compreensão acerca da questão racial e do sexismo na cultura brasileira, contribuindo, desse
modo, com o processo de desconstrução da propagada e cristalizada ideia de “democracia
racial” no Brasil ou com o “esquecimento” das categorias raça e sexo na compreensão de nossa
formação cultural, conforme identificada nas leituras que faz de intérpretes do Brasil como,
respectivamente, Gilberto Freyre e Caio prado Júnior. A categoria de interseccionalidade, que
é apontada como uma problemática relevante em Kimberlé Crenshaw, na década de 1990, para
a reflexão sobre as condições das mulheres negras, já se fazia presente em Lélia Gonzáles, senão
pelo uso do termo específico, mas pelo significado por ele carregado.
Pensar as teorias sociais sobre a agência a partir das contribuições do feminismo negro
e das perspectivas sobre a interseccionalidade, tão propagadas por essa corrente de pensamento,
nos possibilita compreender com mais clareza os dispositivos de desigualdades como estruturas
hierárquicas calcadas em relações de poder. A proposta teórica de Crenshaw em sua abordagem
sobre a interseccionalidade, bem como das outras autoras negras aqui citadas, que se dedicaram
às reflexões sobre as condições de opressão das mulheres, aponta para o forte vínculo entre
ideologia e poder que se estabelece em favorecimento do controle de grupos de dominantes
sobre os seus subordinados alimentando, dessa maneira, justificativas, nem sempre muito
claras, para os dispositivos de opressão.

Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi elucidar algumas abordagens sobre autonomia e
agenciamento na teoria social e feminista, por entendermos que estas podem contribuir nas
pesquisas com foco na situação de mulheres pobres. Diferente do que tradicionalmente se
afirmou, pessoas em situação de pobreza possuem, ainda que com certos constrangimentos,
possibilidades de agir. As noções debatidas neste texto, como indivíduo, agência, autonomia,
capacidades e interseccionalidade, compõem um arcabouço teórico para lidar com esse tipo de
temática.
A combinação de teorias que dão centralidade à capacidade de agir do indivíduo, mesmo
frente a barreiras e estruturas, nos parece uma saída para lidarmos analiticamente com a
problemática relativa às mulheres em situação de privação. Além disso, ao evocar as
contribuições do feminismo negro, nos deparamos com uma realidade multifacetada, isto é, na
qual as categorias como gênero, raça e classe devem estar disponibilizadas de modo a se

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articularem para, desse modo, melhor contribuir para a possibilidade de efetivação de análises
que garantam abarcar com mais precisão a complexidade que caracteriza a problemática em
questão.
De todo modo, ainda resta saber qual de fato é a realidade das mulheres em situação
de pobreza nos grandes centros urbanos brasileiros. Como essas mulheres tem lidado com as
situações de privação a que estão expostas? Quais as possibilidades de agenciamento nessas
condições? Quais estratégias têm sido mobilizadas nas tentativas de melhoria de vida? Essas
são questões que devem ser verificadas empiricamente, para que sejam melhor respondidas,
sem que se perca o horizonte teórico aqui abordado.

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As representações sociais dos profissionais de saúde sobre a violência sexual contra


a mulher

Ana Julieta Parente Balog1

Resumo: Posto que a violência é um fenômeno estrutural e cultural, ela ainda ocorre de maneira
diferente entre mulheres e homens adultos. Pois, enquanto eles são as principais vítimas da
violência urbana, as mulheres são da doméstica e familiar, aquela que faz parte do que
conhecemos como violência de gênero, que é um tipo de violência orientada pelo gênero da
vítima. Dentre os cinco tipos de violência contra a mulher definidos pela Lei Maria da Penha,
a violência sexual é o objeto de estudo da presente pesquisa. Essa violência possui forte caráter
de dominação e poder, na maioria das vezes do homem sobre a mulher; mantendo as mulheres
em constante estado de medo (FRENCH, 1990). Destarte, apesar da importância de estudos que
envolvam a atenção prestada às vítimas de violência sexual, constatou-se – a partir de revisão
bibliográfica prévia – que as pesquisas na área são escassas. Nesse sentindo, a presente pesquisa
busca entender quais são as representações dos profissionais da saúde sobre a violência sexual
contra a mulher. Para a realização da pesquisa foram escolhidas duas cidades do interior
paulista, onde foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os profissionais e posterior
análise destas utilizando a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2016). Também buscou-
se elaborar um perfil socioeconômico das vítimas e do agravo a partir de dados colhidos nos
boletins de ocorrência (BOs) feitos entre os anos de 2011 e 2016. Visto que a pesquisa se
encontra em andamento, os resultados obtidos giram entorno de algumas informações dos BOs
já colhidos e uma breve e prévia análise a partir das entrevistas já realizadas. A partir destes
dados, pode-se citar como apontamento preliminar o fato dos profissionais possuírem o mesmo
entendimento sobre o que é a violência sexual e, apesar disto, representarem as causas da
mesma de forma ambígua. Pois, ao tempo que a reconhecem como uma violência realizada
contra a vontade da vítima, alguns buscam justificar, mencionar como possíveis causas, a
ausência de educação para as vítimas – formas de se portar etc.

Palavras-chaves: Representação social; violência sexual; profissionais de saúde.

1
UNESP/FCLAr. Mestranda em Ciências Sociais pelo PPGCS/UNESP/FCLAr e Bacharela em Ciências Sociais
pela UECE. julietaparente@yahoo.com.br.

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Introdução
Violência é um termo utilizado para nomear das mais cruéis às sutis formas de agressão
e está presente nas mais diversas formas de sociedade do mundo, ceifando todo ano a vida de
milhares de pessoas. É uma forma de legitimar o poder usada desde os primórdios da
humanidade.
Pode ser conceituada como o uso da força, seja ela física, psicológica ou intelectual
etc., para coagir outrem a fazer algo contra sua vontade; “constranger, incomodar, tolher a
liberdade de alguém; impedir outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de ser
gravemente ameaçada, espancada ou até mesmo morta” (BASTOS, 2011. p. 52).
No Brasil, ela atinge majoritariamente os pobres e não-brancos e ocorre, também, de
forma distinta a depender do gênero da vítima. As mulheres são as principais vítimas da
violência doméstica, bem como de violências que de alguma forma envolvam divisões
desiguais de força e poder. Este também é o caso de crianças e adolescentes, indivíduos que
historicamente (FALEIROS; FALEIROS, 2008) – assim como as mulheres – possuem menos
poder.
Apesar de na sociedade capitalista o principal fator de desigualdade e violência ser a
classe social, isto não desautoriza estudos que façam o recorte de gênero ou racial, visto que
estes fatores em conjunto aumentam as chances de sofrer alguma violência ao longo da vida,
e.g. mulher negra e pobre. Este é um estudo que tem recorte de gênero, e que tem a pretensão
de alguma forma auxiliar na construção de políticas públicas, pois compreende-se que é a partir
delas que algum processo de mudança social se torna possível.
Destarte, a violência sexual – como todas as formas de violência – atinge mais pessoas
em situação de vulnerabilidade. Seja pelo seu caráter de dominação e poder, por construções
desiguais de gênero, junto a condições de existência degradantes que coloquem os indivíduos
em situação de fragilidade perante outrem. É perpetrada, na maioria das vezes, pelo homem
sobre a mulher (BOURDIEU, 2015) – seja qual for a sua idade –, mas não apenas.
Ela é definida pelo Ministério da Saúde como toda ação “na qual uma pessoa em relação
de poder e por meio de força física, coerção ou intimidação psicológica, obriga uma outra ao
ato sexual contra a sua vontade, ou que a exponha em interações sexuais que propiciem sua
vitimização, da qual o agressor tenta obter gratificação” (Ministério da Saúde, 2001, p. 17),
podendo ocorrer tanto de forma forçada dentro de relações afetivas, bem como por meio de
estupro por desconhecido, abuso sexual infantil por parte de parentes ou conhecidos, assédio
sexual etc.

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Para além do seu caráter de dominação, a violência sexual também envolve outros
fatores sociais que, de maneiras diferentes, facilitam a sua ocorrência. Por exemplo: uma
socialização não desigual entre os sexos; uma socialização que, não necessariamente, seja
sexualizada e que envolva outros meio de interagir com outrem; condições de existência não
degradantes (SOUZA, 2016); ruas bem iluminadas; moradias adequadas; venda mais regulada
de álcool; baixo crescimento da economia; alto desemprego alto; uma socialização precária que
refletem em interações precária; normalização de comportamentos violentos e machistas por
parte da mídia (SILVA, 2016) etc. O ponto é: a criminologia crítica demonstra que o crime é
um fato social e que vários vetores contribuem para a ocorrência ou não dele. O enfretamento
dessa violência, portanto, depende da mudança de fatores sociais, seja no campo da prevenção,
tratamento ou punição.
Destarte, os dados entorno da violência sexual dão conta de aproximadamente 50 mil
estupros consumados e quase 7 mil tentativas registrados pela polícia no ano de 2017, de acordo
com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017. No entanto, Cerqueira e Coelho (2014)
apontam que esse número representa cerca de 10% do total de casos que ocorre anualmente.
Um estudo feito pelo Ipea em 2014, estima que ocorrem anualmente no país cerca de
527 mil tentativas ou estupros consumados (CERQUEIRA; COELHO, 2014). As razões da não
denúncia são diversas, seja por vergonha, por sentir-se culpada ou ainda por sofrer a violência
dentro de uma relação afetiva e não reconhecê-la enquanto um estupro. Isto acaba por
subnotificar este tipo de violência, gerando dados que possivelmente não dão conta da realidade
do problema.
Mesmo quando denunciados à polícia, muitos desses casos não chegam ao sistema de
saúde, trazendo à tona duas questões centrais: a) os profissionais não estão sabendo identificar
vítimas dessas violências, logo não há notificação da sua existência; ou b) as vítimas,
efetivamente, não procuram os serviços se saúde na pós-violência (BARROS, 2014).
Pesquisas também indicam para diferentes fluxos de continuação da denúncia pós-
violência (VARGAS, 2008), para o não uso adequado ou completo do protocolo de atendimento
do Ministério da Saúde para casos de violência sexual (ANDALAFT NETO et al, 2012), bem
como a falta de articulação entre os sistemas de segurança e saúde (COSTA, 2015), ou dentro
do próprio sistema – no caso, saúde – para a continuação do tratamento (BARROS et al, 2015).
Para além das questões sociais e psicológicas envolvidas, reconhecendo-se o estado de
fragilidade da vítima, problemas como não uso de protocolos adequados e falta de articulação
entre ou dentro dos próprios sistema de apoio podem dificultar o tratamento na pós-violência
ou, ainda, afastar este indivíduo que não mais procura os serviços.

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Nesse sentido, estas informações nos levam a questionar o que ocorre para a não adesão
das vítimas nos processos de tratamento do agravo, no que se refere ao atendimento prestado
pelos profissionais de saúde. Há algo nesse atendimento que afasta a vítima, provocando a sua
não adesão no tratamento?
Destarte, o papel dos profissionais de saúde que realizam o primeiro atendimento é
importante na medida em que as impressões da vítima – muitas vezes já fragilizada pela
violência – sobre o atendimento recebido vão influenciar na sua adesão, ou não, ao tratamento,
seja ele profilático ou psicológico, que são importantes na medida em que previnem de
possíveis DSTs, uma gravidez indesejada etc., e auxiliam no processo de ressocialização deste
indivíduo após o episódio de violência.
Do ponto de vista psicológico, traumas não tratados podem não ser evidentes num
primeiro, mas virem à tona anos depois ou causarem problemas relacionados a síndromes do
pânico. Este tipo de problema causa um processo de adoecimento no próprio indivíduo e na sua
família, além de atrapalhar na sua inserção social e econômica na sociedade.
De modo que os profissionais que de alguma forma não realizam um bom acolhimento,
de maneira mais humanizada – percebendo o indivíduo enquanto sujeito e não só como um
corpo de necessita de tratamento –, podem afastar essas vítimas ou, ainda, revitimizá-las.
Isto posto, o questionamento entorno do atendimento prestado a vítima, mas,
principalmente, sobre como os profissionais da saúde representavam a violência e a vítima,
surgiu. Pois, estudos dão conta que mesmo em locais de referência para o atendimento, muitos
profissionais deixam suas preconcepções sobre o agravo se fazerem presentes no momento do
atendimento (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006; LIMA,
2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al, 2015; COSTA, 2015).
A questão se torna mais significativa por não haver muitos estudos que envolvessem a
temática da violência sexual, juntamente ao atendimento na saúde e a forma como os
profissionais a representavam. A maioria das pesquisas já realizadas dizem respeito ao
acolhimento da vítima no sistema de saúde, na segurança, perfis sociodemográficos sobre quem
sofre mais com este tipo de agravo – de acordo com notificações na saúde ou segurança
(OLIVEIRA et al, 2005; MATTAR et al, 2007; SOUZA, 2012; FACURI et al, 2013; BARROS,
2014; LIMA, 2014; DELZIOVO et al, 2017; NUNES; LIMA; MORAIS, 2017).
No entanto, poucas foram as pesquisas encontradas quando o questionamento principal
girava entorno de “como os profissionais de saúde representavam a violência sexual contra
mulheres”.

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Nesse sentido, optou-se por estudar duas cidades de médio porte do interior paulista:
São Carlos e Araraquara. Essa escolha foi feita pela possibilidade de realização da pesquisa nos
dois municípios, seja pela sua proximidade e pela facilidade de locomoção da autora em ambas,
além da ausência de pesquisas sobre o tema2.
Ambas as cidades são similares tanto demográfica e economicamente, como em
qualidade de vida. Araraquara é um município que possui aproximadamente 220 mil habitantes
(IBGE, 2010) e ocupa atualmente o 14º no Ranking do Índice de Desenvolvimento Humano
dos Municípios Brasileiros (IDHM). É um pólo universitário, abrigando universidades públicas,
particulares e institutos de formação técnica. Possui uma ampla rede de saúde, contado com
dois hospitais públicos, além de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas
de Saúde (UBSs). Porém, atualmente não possui um protocolo de atendimento a vítimas de
violência sexual, um fluxograma para melhor visualização de como deve ser realizado o
atendimento ou um centro especializado para o tratamento deste agravo, apesar de possuir um
Centro de Referência da Mulher (CRM).
São Carlos, por sua vez, é também um importante centro regional industrial, além de
pólo acadêmico – com duas grandes universidades públicas, além de institutos de formação
técnica e faculdades particulares. Conta com uma população de 242 mil habitantes (IBGE,
2010) e com uma rede de saúde um pouco menor, possuindo dois hospitais públicos, uma
quantidade inferior de UPAs (cinco, ao total), bem como uma rede de UBSs. No município,
porém, diferentemente de Araraquara, há um protocolo de atendimento a vítimas de violência
sexual e um local específico para o atendimento destes indivíduos, que é realizado no Centro
de Especialidades do Município (CEME), dentro do Ambulatório de Sexualidade Humana em
conjunto com o Programa de Atendimento a Vítimas de Abuso e Violência Sexual (PAVAS).
Com relação ao crime de estupro, a partir de dados da Secretaria de Segurança Pública
do Estado de São Paulo (SSP-SP), em Araraquara nos três primeiros meses desse ano foram
registrados 16 consumados, em 2017, 66 e, em 2016, 43. Em São Carlos: 4, 27 e 31,
respectivamente. Nas duas cidades, analisando dados dos últimos cinco anos, cerca de 80% dos
casos são de mulheres/meninas. Também em 80% dos casos, o crime ocorreu em residências.
Quase 70%, são de vulneráveis3.

2
A partir da realização de revisão de literatura, nenhum estudo já publicado sobre a temática foi encontrado em
ambas as cidades.
3
Lei nº 12.015, 7 de agosto de 2009. Artigo 217 do Código Penal (CP).

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Metodologia
A partir do que foi posto, optou-se por realizar uma pesquisa de abordagem mista –
metodologia qualiquantitativa (CRESWELL, 2007). Tem-se como objetivo geral compreender
como os profissionais da saúde representam a violência sexual contra a mulher, e objetivos
específicos: a) entender como se estrutura o atendimento prestado as vítimas de violência
sexual; b) conhecer as representações sociais dos profissionais da saúde, que atendem essas
vítimas, sobre o crime; c) construir o perfil das vítimas e dos crimes; d) confrontar o perfil das
vítimas e dos crimes com as representações colhidas; e) analisar de que formas as
representações podem influenciar na prática do atendimento prestado às vítimas; e f)
compreender se essas representações podem contribuir para a naturalização da violência.
No entanto, neste artigo serão apresentados apenas resultados prévios desta pesquisa, de
modo que todos os objetivos não estarão presentes pois, para tanto, necessitam de um melhor
desenvolvimento e a realização de mais entrevistas com os profissionais.
A escolha dos profissionais de saúde como participantes da pesquisa deve-se pela a
importância destes profissionais no primeiro atendimento prestado as vítimas de estupro –
sendo eles os principais responsáveis por orientar a vítima na realização da profilaxia das
infecções sexualmente transmissíveis, tais como HIV, a contracepção de emergência e
realização de exames, além de um acolhimento psicológico – bem como na promoção de meios
para a sua prevenção. De modo que se deu prioridade a profissionais como enfermeiros,
médicos, psicólogos e quaisquer outros profissionais que participassem desse primeiro
atendimento.
Este estudo se justifica pela necessidade de um melhor entendimento de como os
profissionais que atendem as vítimas de violência sexual representam o agravo e como isso
reverbera no atendimento prestado, visto que a forma como eles prestam o atendimento diz
muito sobre como representam a violência. Afinal, tais práticas podem não só revitimizar o
indivíduo que está em busca de assistência, como agravar os traumas e consequências da
violência caso o atendimento não seja feito de forma adequada.
Parte-se da hipótese que os profissionais possuem representações que vão ao encontro
do senso comum, mesmo com toda a capacitação que eles em princípio recebem. A partir do
resultado de pesquisas anteriores (CAVALCANTI, 2004; CAVALCANTI; GOMES;
MINAYO, 2006; LIMA, 2013; BARROS, 2014; ARAÚJO; CRUZ, 2014; BARROS et al,
2015; COSTA, 2015), supõe-se que apesar de suas formações, as representações socialmente
aprendidas e reforçadas são mais fortes, acabando por repercutir de forma implícita no
atendimento para com as vítimas e na naturalização da violência.

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Breve análise das representações


Posto isto, após o início da aproximação das respectivas instituições, foi possível
entrevistar, até o momento, quatro profissionais de dois serviços de referência. Três deles
pertenciam a um único serviço, enquanto que o primeiro era de um outro local. Sendo a análise
apresentada aqui prévia e sujeita a modificação ao longo da execução desta pesquisa, a partir
da realização de outras entrevistas.
Estes profissionais reconhecem que a violência sexual é um ato realizado contra a
vontade da vítima, que também ocorre dentro de relações afetivas, apesar de, nesses casos, ser
menos denunciada. Os profissionais sabem que o fato de ser menos denunciada é resultado,
em grande parte, da crença de que as mulheres teriam “obrigações” a cumprir com a pessoa
que possui um relacionamento afetivo.
“[...] a gente vem de uma cultura de que a mulher que você casou e você...
pode tudo, seu marido pode tudo, você tem que fazer tudo o que seu marido
quer. A mulher ainda é submissa aos desejos do marido. Então, a gente tem
um pouco dessa cultura. Então, a mulher casada demora um pouco mais para
identificar sinais de violência, principalmente violência sexual dentro do
casamento.” (Entrevista 1)

É recorrente na fala dos entrevistados que estas vítimas são não só maioria de
mulheres, mas de mulheres jovens ou crianças. Este dado converge com as informações
encontradas junto a SSP-SP, referentes, por exemplo, ao município de Araraquara, onde mais
da metade das vítimas de violência sexual eram crianças ou adolescentes, maioria do sexo
feminino, vitimadas em local doméstico.
Como pode ser visto (ver figura 1), na cidade de Araraquara entre os anos de 2011 e
2016, o estupro de vulnerável representou 60,4% do total de casos registrados na cidade.
Nestes casos, onde a vítima era menor de 14 anos, em 84,5% das situações foram violências
perpetradas em ambiente doméstico, na residência das vítimas.
Este dado vai ao encontro as informações obtidas nas entrevistas, onde os
profissionais reconhecem que estas crianças sofrem a violência em casa, sendo vitimadas por
parentes, familiares ou conhecidos da família.
Esta informação também aparece em pesquisa de Vargas (2008), onde é possível
constatar que estes também são os casos onde a retirada da denúncia é realizada em maior
número, diferente das denúncias realizadas contra agressores que não pertencem ao círculo
social ou familiar da vítima.

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Figura 1.

Estupros em Araraquara (2011-2016)

Estupros Local do estupro de vulnerável

residência
84,5%

não vulnerável vulnerável


39,6% 60,4%

via pública
6,9%
estabelecimento de
outros ensino
1,7% transporte 5,2%
coletivo hospital
0,9% 0,9%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da SSP-SP.

Segundo um dos entrevistados, também é recorrente – no caso dos serviços de saúde


– o abandono do tratamento, que a princípio deveria ser de pelo menos 6 meses, contando com
atendimento psicológico. Entretanto, na maioria das vezes, às vítimas não chegam ao
atendimento e das que chegam poucas completam 6 meses.
“O prazo que a gente vê é de 6 meses de continuidade, no máximo um ano.
Mas vamos pensar em 6 meses, elas descontinuam o atendimento. Por
vergonha, por medo, por negação, não querem mais lidar com o assunto da
violência. [...] Então, elas tem uma continuidade maior no atendimento
aqui [...], que é o programa de atendimento das vítimas de abuso, mas
geralmente a média é 6 meses”. (Entrevista 2)

Além disso, estes profissionais reconhecem a dificuldade de denuncia em casos que


envolvem parentes, familiares ou conhecidos. Relatam que nessas situações, sejam crianças,
adolescentes ou mulheres adultas, a denuncia não ocorre por medo, por vergonha, porque
precisam financeiramente do abusador – quem sofreu a violência ou o responsável pela vítima.
Quanto as possíveis causas, estes profissionais têm explicações diversas para o
problema. Desde a negação de que existe uma causa específica (ver quadro 1), a baixa

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autoestima da vítima, dependência financeira, problemas com drogas por parte do agressor,
falta de uma “boa educação”, onde a pessoa saiba se portar – neste caso, se referia a pessoas
do sexo feminino.

Quadro 1.
Possíveis causas da violência sexual

“Eu acho que a baixa autoestima da mulher, o medo de perder esse companheiro, a
dificuldade de falar “não”, a submissão, a dependência financeira... Tudo isso faz com que
ela se submeta a essa violência, a essa aceitação.” (Entrevista 1)

“Não existe nenhum trabalho que diga assim: é um problema hormonal, é um problema
psíquico. A gente não sabe muito bem a causa que leva uma pessoa a realizar um ato de
violência sexual contra o outro. No caso de pedofilia, que é o adulto que pratica atos
libidinosos ou até conjunção carnal com menores, tem que ter uma cronicidade. Então, ele
tem que se relacionar só com crianças por um tempo hábil, por um tempo prolongado. [...]
Então, você que vê que não existe só isso, não são só as crianças. Embora, agora, no nosso
município, aqui [...], eu tenha atendido muito mais crianças.” (Entrevista 2)

“Então, na verdade a gente não tá entendendo esse mundo, né filha. Dá a impressão que
mais por causa das drogas, porque não tá certo primo tentar violentar parente... pai... Então,
eu acredito que seja muita droga. E mal orientado, né, sem orientação, porque...”
(Entrevista 3)

“Deixar bem claro, o que eu acho assim nada justifica o agressor, a violência do agressor.
Mas ambas as partes as vezes a gente vê ou ouve falar, a gente observa que as pessoas
também se... principalmente as meninas em fase escolar, na faculdade, elas não são tão
assim... Eu não sei, acho que vai muito da criação de casa e da família... dessas meninas
como se comportar. O comportamento delas, então eu acho que tudo isso ajuda a... tem
probabilidade de ter mais, entendeu? O homem... Eu quero dizer assim, uma menina mais
levada, mais assim... a roupa dela, o traje de roupa que ela usa. Não que justifique, não é
isso.” (Entrevista 4)

Fonte: Elaboração própria a partir das entrevistas realizadas.

As representações desses profissionais sobre as causas dessa violência não


convergem, em dois casos deles as explicações são, inclusive, bastante genéricas e remetem a
explicações vistas com recorrência no senso comum, em que se atribui a causa da violência a
vítima ou ao uso de drogas – não ficou claro se lícitas ou ilícitas – pelas pessoas (ver quadro
1).
No que diz respeito as consequências, os profissionais são unânimes em afirmar que
elas são inúmeras, recorrentemente atribuem problemas físicos e psicológicos como

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decorrentes da violência, afirmando junto a isto que quando o tratamento proposto é realizado
de forma correta, parte destas consequências – no caso, as físicas – são remediadas.
Quando questionados sobre como prevenir esta violência, as repostas sempre giram
entorno de “uma melhor educação”. No entanto, na maioria das entrevistas essa melhor
educação é citada de modo genérico, sem ligação as questões de gênero envolvidas, ou a
fatores sociais que deixam essas crianças, adolescentes e mulheres em situação de maior
vulnerabilidade.
Por um lado o apontamento é positivo, pois a educação tomada em sentido latu é a
solução. Em uma das entrevistas foi citada a participação da escola na prevenção de abuso
sexual infantil, o que é um bom apontamento porque passa necessariamente pela discussão de
sexualidade. Por outro, é possível perceber que o entendimento do que é educação não passa
pela discussão de gênero.

Apontamentos preliminares
A partir dessa análise prévia, foi possível afirmar que, de modo geral, esses
profissionais entendem que a violência sexual é qualquer ato feito sem o consentimento da
vítima, sendo as crianças e adolescentes – principalmente do sexo feminino – as principais
vítimas, mas também reconhecem que mulheres jovens também são vitimadas por essa
violência. São casos que ocorrem, em sua maioria, em local doméstico, perpetrado por
familiares, parentes ou conhecidos.
Esses profissionais representam a violência de forma ambígua, pois ao tempo que
reconhecem como uma violência realizada contra a vontade da vítima, alguns buscam
justificar, mencionar como possíveis causas, a ausência de educação para as vítimas – no
sentido de como se portar, coisas que não devem ser feitas por meninas. Este tipo de
representação vai ao encontro do que está arraigado no senso comum, quanto a culpabilização
das vítimas pela violência sofrida – talvez, isso se explique pela pouca formação dos
profissionais que demonstraram estas representações. No entanto, estes profissionais também
entendem que a violência possui sérias consequências tanto físicas como psicológicas para
suas vítimas. Consequências estas que podem continuar por todo o resto da vida da vítima.
Nesse sentindo, é preciso que políticas públicas que proponham formações mais
adequadas para os indivíduos, em que eles possam compreender que para além de um corpo
que necessita de tratamento pós violência, as causas e consequências da violência são,
sobretudo, sociais. As vítimas não precisam de piedade, muito menos de julgamento, mas de
meios pelos quais possam se reintegrar – caso não consiga sozinha – na sociedade.

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Com relação especificamente à saúde, até o momento que foram entrevistados


profissionais que fazem o atendimento mais pontual, a representação que se tem das vítimas é
suficiente para o atendimento adequado, visto que os profissionais que em algum momento
demonstraram uma representação que possa, de algum modo, culpabilizar as vítimas não tem
não tem grande conato com elas, são o que realizam apenas o encaminhamento à farmácia –
para receber a medicação profilática – ou que fornecem maiores informações sobre onde se
deve prosseguir o atendimento, não possuindo a oportunidade de demonstrarem esta
representação para vítima. A hipótese é que a interferência da representação possa ser mais
relevante, nos profissionais que fazem o atendimento continuado (médicos e psicólogos), o
que até o momento não foi observado algo que prejudique o atendimento.

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Apontamentos sobre violência sexual a partir da análise do perfil de mulheres atendidas


em um serviço universitário de referência em Cuiabá (MT)

Danielle Maiby Rodrigues Dias1


Silvana Maria Bitencourt2

Resumo: Este trabalho tem como objetivo principal investigar as concepções de gênero
das/os profissionais da saúde a partir da compreensão destes sobre a violência sexual sofrida
pelas mulheres que procuraram um serviço universitário de referência de Cuiabá - MT. Nesse
sentido destacamos dados sobre as características das mulheres agredidas e dos agressores,
bem como das circunstâncias nas quais as agressões ocorreram, a partir de uma análise
documental dos Livros de Registros do Programa de Atendimento a Vítimas de Violência
Sexual referentes aos atendimentos de mulheres realizados nesse serviço no período de 2010 a
2017. Ainda que nas últimas décadas alguns avanços tenham sido conquistados em termos de
legislações e políticas e a subordinação das mulheres tenha sido sensivelmente reduzida, as
violências de gênero inscritas na cultura machista ainda persistem como fato social e político
e demandam a intervenção do Estado para minimizar seus efeitos. A análise é realizada a
partir dos estudos feministas e de gênero, esses que atuam questionando os valores pautados
em categorias universais, como, por exemplo, ‘homem’ e ‘mulher’, possibilitando vislumbrar
suas limitações e prejuízos para as relações de gênero. Os resultados parciais indicam que a
violência sexual é um fenômeno democrático, pois atinge mulheres de distintas classes, cor,
escolaridades. Entretanto, é significativo o percentual de mulheres jovens, no auge da idade
reprodutiva (46%) e de mulheres universitárias (26%) atendidas no programa. Os dados
sugerem que as agressões estão mais relacionadas ao comportamento de agressor do que das
vítimas.

Palavras-chaves: Gênero; Violência Sexual; Profissionais de Saúde.

1
Assistente Social; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato
Grosso; e-mail: dmaiby.ss@gmail.com.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso; Doutora
em Sociologia Política pela UFSC; e-mail: silvanasocipufmt@gmail.com.

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Introdução
Este trabalho é constituinte de uma pesquisa de Mestrado em Sociologia que tem
como objetivo principal investigar as concepções de gênero dos/as profissionais da saúde que
trabalham em um serviço universitário de referência em Cuiabá – MT e atuam na assistência
às mulheres que sofreram violência sexual. Nessa ocasião, nosso enfoque é apresentar uma
breve análise dos dados quantitativos extraídos dos Livros de Registros de Atendimentos às
Vítimas de Violência Sexual visando refletir sobre as caraterísticas das mulheres sexualmente
violentadas e das circunstâncias em que foram agredidas3.

As políticas voltadas para a assistência de vítimas de violência sexual, não se


restringem a mulheres, considerando que homens, crianças e adolescentes também podem
sofrer esse tipo de agressão. Porém, nosso recorte metodológico tem como foco a violência
sexual sofrida por mulheres adultas, uma vez que mesmo com alguns avanços nas
legislações para coibição e punição desse tipo de delito, a exemplo da Lei Maria da Penha
(BRASIL, 2006) e da formulação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra
as Mulheres (BRASIL, 2011), nota-se que o poder público tem investido mais na assistência
de mulheres que já sofreram a violência do que em ações preventivas e educacionais que
poderiam modificar o pensamento misógino que confere uma posição social secundária às
mulheres.

Considerando que as instituições e as/os profissionais da saúde desempenham um papel


fundamental no âmbito das políticas públicas para a superação da violência e de suas
consequências é fundamental que estas/es compreendam a violência sexual como uma
expressão do conjunto das violências de gênero que permeiam as relações de poder entre
homens e mulheres. Assim, subdividimos esse trabalho em três itens: no primeiro
identificamos o corpo feminino historicamente construído como “alvo preferencial” da
violência masculina e a cultura do estupro que corrobora para a perpetuação e
inimputabilidade dos agressores. No segundo discorremos sobre a contribuição dos estudos
de gênero e feministas para o reconhecimento das violências de gênero enquanto um fato
social e político e, por último, apresentamos os dados extraídos dos Livros de Registros do

3 Dois motivos contribuíram para a realização dessa pesquisa, ora em virtude de uma das autoras ter
trabalhado em um hospital que é referência na assistência a vítimas de violência sexual, ora em decorrência do
ingresso da mesma no Mestrado em Sociologia a fim de se aprimorar nos estudos feministas e de gênero.

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Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual referentes às mulheres, agressores


e as circunstancias em que as violações ocorreram e as analisamos.

O corpo feminino e a cultura do estupro

A violência sexual é uma forma específica do conjunto de violências às quais as


mulheres estão sujeitas. É um subproduto de relações sociais desiguais baseadas nas
diferenças sexuais. O reconhecimento da condição de opressão a qual as mulheres são
constantemente submetidas é significativo para que a assistência seja prestada na
perspectiva de gênero e feminista.

Conforme Engel (2017, p. 26-27), a cultura do estupro é “compreendida como um


universo de práticas e símbolos compartilhados que justifica ou minimiza a gravidade e a
dimensão social do estupro e de outras formas de abuso, possibilita e naturaliza incontáveis
violações e mortes de meninas e mulheres”.

Partindo desta perspectiva, vale a pena ressaltar a grande repercussão nacional da


notícia sobre um estupro coletivo sofrido por uma adolescente de dezesseis anos no Rio de
Janeiro/RJ4. O caso gerou comoção nas redes sociais, ocasionando uma onda de discussões
virtuais e dividiu opiniões nas redes sociais entre aquelas que se solidarizaram com a
adolescente e indignaram-se com a violência, enquanto outras responsabilizaram a vítima, a
partir das informações que circulavam nas mídias sociais. Informações, essas que
colocavam em dúvida a “inocência” da adolescente.

Longe de ser uma exceção, esse caso explicita o tratamento moralizante que as
vítimas de violência sexual estão sujeitas. Historicamente, nossa sociedade tem adotado
uma atitude ambígua em relação à mulheres sexualmente violentadas, pois, se por um lado o
estupro é reconhecido pelo sistema de justiça brasileiro como um crime sério, de outro, esse
tipo de delito está carregado de teor moral, cabendo às mulheres provar sua honra mediante
sua conduta no meio social (COSTA, 2016).

Nota-se que na contemporaneidade ainda persistem noções preconcebidas,


estereótipos e mitos sexuais que propagam a ideia de que “[...] o estuprador nem sempre é

4
Notícia disponível no site do G1: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/jovem-que-teria-sido-
vitima-de-estupro-coletivo-faz-exames-no-
rio.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1. Acesso em 30/05/2018.

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inteiramente responsável por seus atos e a vítima é, com frequência, chamada a


compartilhar uma parte (senão toda) da culpa pelo ocorrido” (FIGUEIREDO, 2014, p. 154).

Por isso é importante que as/os profissionais da saúde recebam formação continuada
para o manejo clínico, social, cultural e psicológico para lidar com mulheres violentadas
sexualmente.

A contribuição dos estudos de gênero e feministas para o reconhecimento da violência


de gênero enquanto fato social e político

Ao inserir novas abordagens e questões científicas à Sociologia, os estudos feministas


de gênero têm contribuído para questionar as desigualdades de gênero que operam na
construção das relações sociais. A crítica feminista tem como objetivo questionar os
discursos que fundamentam a dominação masculina e justificam a ordem sexual vigente a
partir de determinismos biológicos e sociais

Sendo o conhecimento da organização social da diferença sexual o objeto de pesquisa


dos estudos de gênero e feministas, as teóricas feministas demonstram que as diferenças
físicas não são fixas e naturais, mas sim resultantes do conhecimento que temos sobre o
corpo disposto dentro de um vasto campo de contextos culturais discursivos (SCOTT, 1988
apud NICHOLSON, 2000, p. 10).

Compreensões generalizadas da relação aparentemente natural entre o masculino e o


feminino, impõem definições normativas de gênero que são tomadas como “verdades”.
Buscando desvelar como tais definições são históricas e socialmente construídas,
pesquisadoras como Scott (1990), Nicholson (2000) e Butler (2012) produziram estudos que
são referência no campo científico ao questionar o controle social exercido sobre as
mulheres, por meio da disciplina dos corpos e da sexualidade.

Para os estudos feministas e de gênero as questões do corpo são centrais, pois este
tem sido um construto social permeado de poder e inúmeras formas de dominação masculina.
Assim, ampliar a noção do corpo para além da sua fisiologia e anatomia, é situá-lo em um
debate político evidenciando os valores históricos e transitórios que demarcam espaços
sexuados onde transitam ação e poder.

Trazer à luz esses questionamentos tem possibilitado novas reflexões acerca das
relações de gênero e desnaturalizado discursos “universais”, portanto, excludentes, que

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discriminam as mulheres em razão de seu sexo ao subtrair seu papel de sujeito e a posse de
seu corpo. De acordo com Minayo e Souza (1999) a questão da violência era tradicionalmente
vinculada ao domínio do direito criminal e da segurança pública. A partir das décadas de 1960
e 1970 quando a saúde começou a ser compreendida como uma questão complexa relacionada
a determinações sociais e condicionantes culturais, essa temática passou a integrar os debates
e os serviços de saúde.

É provável que o fato de a saúde ter se constituído em torno do “[...] modelo médico e
biomédico cuja racionalidade tende a incorporar o social apenas como variável “ambiental”
da produção das enfermidades” (MINAYO e SOUZA, 1999, p. 8) tenha contribuído para a
incorporação tardia da questão da violência nos serviços de saúde e para a persistência da
desarticulação entre o conhecimento científico produzido sobre a violência e as práticas em
saúde.

Os movimentos feministas foram significativos para influenciar a inclusão da


violência como objeto de intervenção dos serviços de saúde. “Sua filosofia e método de
trabalho buscando sensibilizar as mulheres e a sociedade em geral sobre a violência de
gênero, criando nova mentalidade e buscando implodir a cultura patriarcal, têm gerado
mudanças essenciais nas abordagens do setor saúde” (MINAYO e SOUZA, 1999, p. 9).

Mas somente nos anos de 1980 a violência passou a ser tema recorrente na agenda dos
debates e das ações em saúde e se consolidou nos anos 1990, na ocasião da criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que de forma fragmentada e progressiva.

Nas últimas quatro décadas, pesquisadoras como: Safiotti, 2004; 2015; Grossi, 1994;
Gregori, 1993, entre outras realizaram pesquisas com ênfase nas violências de gênero,
explicitando seu caráter discriminatório e afirmando que este é um fenômeno social
persistente, multiforme que perpassa as dimensões físicas, psicológicas, morais e econômicas,
tanto no nível micro quanto no nível macrossociológico.

A articulação dos movimentos feministas com os estudos científicos, deram maior


visibilidade sociológica às violências de gênero, propiciando condições históricas para sua
análise enquanto uma questão política legítima que demanda a intervenção do Estado,
portanto elaboração e implementação de políticas públicas voltadas para o seu
enfrentamento (BANDEIRA; AMARAL, 2017).

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Assistência à mulheres vítimas de violência sexual em um serviço universitário de


referência em Cuiabá – MT

Desde os anos de 1980, quando a questão da violência foi reconhecida como questão
de saúde pública, os serviços de saúde passaram a oferecer atendimento às vítimas de
violência sexual. O Ministério da Saúde vem atualizando constantemente suas diretrizes ao
longo das últimas décadas, criando normativas para o atendimento, a partir de parcerias com
as Secretarias de Saúde estaduais, sociedades científicas e os movimentos sociais. Como
consequência desse esforço coletivo, foram criadas normas técnicas e protocolos clínicos para
acolhimento, atendimento e notificação de violências.

A Portaria 2.415/2014 inseriu na tabela de serviços especializados do CNES, o


atendimento multiprofissional de vítimas de violência sexual sob o código 165, que engloba:
“[...] acolhimento; escuta qualificada; atendimento clínico humanizado; atendimento
psicológico e social; anamnese e registro em prontuário; realização de exames e profilaxias
necessárias; notificação da violência sexual e outras violências; consultas e retornos para
tratamento ambulatorial, de acordo com o caso” (BRASIL, 2014).

A Portaria 485/2014 estabelece que as equipes devem ser compostas por 1 Médica/o (em
especialidade clínica) ou 1 Médica/o em especialidades cirúrgicas; 1 Enfermeira/o; 1 Técnica/o em
enfermagem; 1 Psicóloga/o; 1 Assistente social; e 1 Farmacêutica/o.

Na unidade de saúde onde está sendo feita a pesquisa funciona desde 2003 uma
política voltada para o atendimento de vítimas de violência sexual. Essa política visa oferecer,
sobretudo, medidas de emergência aos casos de violência sexual recente, isto é, que ocorrem
nas últimas 72 horas e, também, a interrupção da gestação decorrente de estupro5.

Esta unidade de saúde está registrada no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de


Saúde (CNES)6 como uma referência em Atenção Integral à Vítimas de Violência Sexual

5
De acordo com o Código Penal Brasileiro que é de 1940, em seu artigo 128 estipula duas situações em que o
aborto é permitido: 1. Quando não há outra forma de salvar a vida da gestante e 2. Quando a gravidez é
decorrente de estupro e se este for o desejo da mulher ou de seu representante legal (no caso de menores de
idade ou quando existe algum tipo de comprometimento intelectual da mulher/adolescente).
6
Sistema Informações em Saúde, criado em 1999, visando informar gestores (Ministério da Saúde, Secretarias
de Estado de Saúde, Secretarias Municipais de Saúde, etc.) sobre a capacidade física instalada, os serviços
disponíveis e profissionais vinculados aos estabelecimentos de saúde, equipes de saúde da família,
constituindo um quadro amplo acerca dos dados de abrangência nacional para efeito de planejamento de

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(crianças, adolescentes mulheres, homens, pessoas idosas); referência para interrupção da


gravidez nos casos previstos em Lei; e no atendimento ambulatorial das vítimas. Funciona de
forma ininterrupta, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.

O primeiro contato da mulher com o serviço é realizado por assistentes sociais, que
efetuam uma entrevista utilizando um instrumental padronizado; providenciam o prontuário;
preenchem parcialmente a ficha de notificação compulsória; orientam sobre o registro do
Boletim de Ocorrência e a realização do exame de corpo de delito, assim como acerca do
funcionamento do programa, enfatizando a importância de ambos.

A seguir a mulher é encaminhada para a Clínica de Ginecologia e Obstetrícia onde


uma/um médica/o realiza a anamnese; exame clínico geral e ginecológico (se necessário);
preenche a outra parte da ficha de notificação compulsória e solicita exames a fim de
detectar DSTs e gravidez decorrente do estupro.

Se for caso de violência sexual recente, após fazer os exames, são ministradas as
primeiras doses das medicações para evitar contaminação por HIV, e a contracepção de
emergência, pois essas medicações tem maior eficácia se forem aplicadas nas primeiras 72
horas após o estupro.

Por fim, a mulher retorna ao Serviço Social que finaliza o primeiro atendimento,
certificando-se de que todas as informações relativas ao tratamento foram oportunizadas
bem como as orientações pertinentes ao funcionamento da rede de proteção social.

A assistente social que iniciou o atendimento faz as anotações gerais sobre a vítima,
agressor e as circunstâncias em que ocorreu o estupro no Livro de Registros do P.A.V.V.S.,
elaborando ao final um breve relato da agressão, conforme a narrativa da vítima.

A análise documental que apresentamos a seguir é referente aos atendimentos


realizados no período de 2010-2017 contidos nos Livros de Registros do Programa de
Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (P.A.V.V.S.) tem como objetivo caracterizar a
vítima; caracterizar o agressor e as circunstâncias em que a violência sexual aconteceu.

É importante sinalizar que encontramos algumas limitações em nossa pesquisa, pois o


fato de que os dados aqui apresentados foram coletados com base nas anotações dos Livros

ações em saúde e dar transparência à sociedade de toda a infraestrutura de serviços de saúde bem como a
capacidade instalada existente e disponível no país. (Texto informado no site do CNES).

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de Registros do P.A.V.V.S7. realizadas por diferentes profissionais, identificamos que


algumas informações não foram preenchidas, isso pode ter ocorrido ou por não terem sido
indagados ou porque a mulher não respondeu. Essa é uma dificuldade recorrente em estudos
deste tipo, o que não invalida os achados, mas indica cautela na interpretação dos dados.
Para este estudo foram coletados os seguintes dados: 1) perfil sociodemográfico das
mulheres: idade (todas maiores de 18 anos), cor, religião, renda familiar, escolaridade,
situação marital; 2) aspectos da agressão: local da ocorrência; circunstâncias; características
do/s agressor/es (se conhecido/s ou desconhecido/s, único ou múltiplos); estratégia de
intimidação (força física, ameaça verbal, armas, drogas); se registrou boletim de ocorrência
e a origem do encaminhamento para o hospital.

Foram encontrados 417 registros de atendimento de mulheres sexualmente


violentadas entre os anos de 2010 e 2017, com idades variadas entre 18 e 85 anos, sendo
que 64% eram mulheres jovens com idades entre 18 e 30 anos, ou seja, no auge da idade
reprodutiva.

Quanto à cor, 56% se autodeclararam pardas, 27% brancas, 8% negras e em 9% dos


atendimentos essa informação não foi registrada. No que se refere à religião, 34% disseram
ser católicas, 32% evangélicas, 11% não tinham religião, 3% eram de outras religiões e em
20% dos atendimentos a informação não foi registrada.

Nas fichas nas quais constava informação sobre a renda familiar, 28% disseram ser de
aproximadamente um salário mínimo, 13% até dois salários mínimos, 14% informaram
valor superior a três salários mínimos, enquanto 10% tinham renda inferior a um salário e
2% não tinham renda. Em 33% dos atendimentos a informação não foi registrada.

Quanto a escolaridade, 4% não eram alfabetizadas, 18% tinham o ensino fundamental


completo ou incompleto, sendo que 46% tinham cursado o ensino médio parcialmente ou
integralmente, enquanto 26% eram estudantes universitárias ou já haviam concluído o nível
superior. Em 6% dos atendimentos a informação não foi registrada.

7 O acesso aos Livros foi solicitado a Chefia da Unidade de Atenção Psicossocial que autorizou a coleta dos
dados em fevereiro de 2018.

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Acerca da situação marital 63% disseram ser solteiras, 15% casadas, 11% conviviam
maritalmente com parceiros/as, 5% divorciadas e 2% viúvas. Em 4% dos atendimentos a
informação não foi registrada.

Alguns aspectos relacionados a agressão e ao/s agressor/es também foram observados


e corroboram para a reflexão acerca da violência sexual sofrida por essas mulheres.

Quanto ao local, 36% foram violentadas em via pública (comumente descritas como
matagal ou terreno baldio); 29% em suas casas; 9% na casa do/s agressor/es; 19% em
lugares diversos (motéis, ou lugares que as vítimas não souberem ou não puderam
identificar). Em 7% dos atendimentos a informação não foi registrada.

A estratégia de intimidação que os agressores utilizaram são diversas e podem ter


utilizadas simultaneamente, sendo as mais citadas: força física 36%, arma 26%, álcool 9%,
ameaça 5% e drogas 3%. Em 21% dos atendimentos a informação não foi registrada. Esse
fato pode estar relacionado a perda de consciência das vítimas durante as agressões.

Das 417 vítimas, 70% (293) foram violentadas por desconhecidos e 26% (107) por
conhecidos. Por 17 vezes (4%) essa informação não foi registrada. Entre os agressores
conhecidos podemos subdividi-los em três grupos: sendo 1) parceiros ou ex-parceiros que
correspondem a 27%. 2) familiares das vítimas (pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos,
cunhados, enteados e genros) que correspondem a 17% e, 3) vizinhos, amigos, paqueras, ou
conhecidos de amigos ou de familiares, que equivalem a 55%.

Considerações finais
Este trabalho apresentou os dados referentes as características das mulheres
agredidas e dos agressores, bem como das circunstancias em que as agressões ocorreram
que foram atendidas em um serviço universitário de referência em Cuiabá – MT. e fazem
parte de uma pesquisa que está em andamento que investiga as concepções de gênero das/os
profissionais da saúde que atuam nesse tipo de assistência.

O levantamento dessas informações nos permitiu verificar que a violência sexual é


um fenômeno democrático, pois os agressores não escolhem suas vítimas a partir da cor,
religião, situação marital, renda familiar, mas sim de acordo com a situação que lhes seja
mais favorável para cometer o estupro sem serem identificados e punidos.

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Observa-se que a maioria (46%) das mulheres atendidas no referido serviço tinham
entre 18 e 30 anos de idade, isto é, são mulheres jovens, no auge da idade reprodutiva.
Entretanto, outras mulheres que não correspondem à representação social da mulher vítima
de violência sexual foram atendidas no P.A.V.V.S., a exemplo da idosa de oitenta e cinco
anos.

O percentual de mulheres universitárias (26%) é significativo para reflexão sobre as


festas promovidas por estudantes universitários/as nas quais as denúncias8 de violência têm
sido recorrentes e propõem um rompimento com o silêncio construído historicamente pela
comunidade acadêmica em torno das violências de gênero que perpassam o cotidiano das
universidades.

O atendimento de mulheres violentadas sexualmente requer dos profissionais


formação técnica e humana, bem como compromisso ético político com a afirmação dos
direitos das mulheres. Mas para tanto, os profissionais precisam de condições concretas de
se ausentar da rotina das instituições para participar de espaços de reflexão sobre a violência
sexual enquanto objeto de ação de intervenção dos serviços de saúde e que também permita
a compreensão de que o estupro, “Embora seja uma situação limite, é um ato que deve ser
entendido como o ponto extremo de um continuum de negação da autonomia das mulheres
sobre seus corpos” (OLIVEIRA, 2007, p. 456).

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Órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS. Brasília, DF, nov 2014.

8
Links para as notícias: http://www.mtagora.com.br/estado/ele-disse-que-eu-iria-gostar-de-ser-estuprada-diz-
jovem-violentada/143262288, acesso em 30/05/2018.
https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/universitaria-e-estuprada-enquanto-dormia-apos-festa-e-
suspeito-e-preso-em-cuiaba.ghtml, acesso em 30/05/2018.

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Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a
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Da luta à espera: relações de cuidado entre acompanhantes de doentes de câncer

Eduardo da Silva1
Marlene Tamanini2

Resumo: Neste trabalho, tomo o encargo de apresentar o andamento de minha pesquisa de


mestrado, que tem se desdobrado no pátio do Hospital Erasto Gaertner, também conhecido
como “hospital do câncer”, em Curitiba. De modo específico, objetivo analisar o sentido de
cuidado que as pessoas envolvidas constroem em situações de acompanhamento de familiares
com câncer e como elas se percebem e percebem o outro que é cuidado. Objetivo, ainda,
observar se nos relatos das cuidadoras em contexto de câncer podem ser identificados
desafios específicos para o cuidado relativos à habilidades, técnicas, valores, políticas, entre
outros. E, por fim, problematizar a gendrificação da prática do cuidado. Para atingir este
propósito, recorro à metodologia qualitativa e a técnicas como a aplicação de entrevistas
semi-estruturadas e a observação participante. Curiosamente, longe de ser uma prática
valorada, responsável pela manutenção de corpos e meio ambiente, como sugerido por Tronto
e Fisher (1990), o cuidado é percebido como da esfera das emoções, do feminino, do privado.
De fato, as mulheres compõem um número expressivo no universo de
acompanhantes/cuidadores de doentes de câncer. Suas rotinas são reorganizadas para que
consigam oferecer auxílio àqueles que, agora, experienciam a vida sob o viés da doença.
Ademais, suas narrativas revelam percepções ambivalentes no que tange à vivência do
cuidado.
Palavras-chaves: Câncer; Cuidado; Relações de Gênero.

1
Graduado em Ciências Sociais pela UFPR. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
referida universidade. Bolsista CAPES. dudu1991eduardo@gmail.com.
2
Doutora em Ciências Humanas pela UFSC. Pós-Doutora pela Universidade de Barcelona. Professora no
Departamento de Sociologia da UFPR e professora e Coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da mesma
universidade. tamaniniufpr@gmail.com.

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1. Introdução.
Este trabalho3, que constitui um recorte do andamento de minha pesquisa de
mestrado, tem o propósito de compreender como as acompanhantes/cuidadoras 4 dos doentes
de câncer percebem e vivem a prática do cuidado, bem como se enxergam no interior dela e
àqueles que são cuidados. Importa, também, constatar se nos relatos das
acompanhantes/cuidadoras em contextos de câncer podem ser identificados desafios
específicos para o cuidado, estes relativos à habilidades, políticas, técnicas, valores, entre
outros. Por fim, interessa problematizar a gendrificação da prática do cuidado, uma vez que o
encargo de acompanhante/cuidador é encabeçado sobretudo por mulheres.
Creio que o contato mais imediato com minha família materna, que reside em uma
cidade de médio porte na região noroeste do Paraná, foi uma das razões para que eu me
interessasse em estudar experiência de doença e, neste momento, relações de cuidado. Em um
período aproximado de dez anos, tivemos cinco casos de câncer na família, os quais
resultaram nas mortes de três dos cinco elementos que adoeceram. Além disso, a dedicação
exaustiva de uma família composta majoritariamente por mulheres ao cuidado das crianças,
de enfermos (jovens ou idosos) e do espaço de suas casas e suas consequentes reclamações
sobre a desvalorização de suas tarefas contribuíram com problematizações acerca de um
cuidado gendrificado e de alternativas para a valorização social de suas práticas.
No campo teórico, as obras de Susan Sontag (1984), “A Doença Como Metáfora”, e
de Elizabeth Kubler-Ross (1996), “Sobre a Morte e o Morrer”, foram motores importantes
para que eu me interessasse pelos referidos temas. Na primeira, a estudiosa discorre sobre os
significados do câncer e da tuberculose em sociedades ocidentais no desenrolar do tempo.
Enquanto a segunda contou com significados contraditórios e volúveis, o primeiro parece ter
tido desde sempre um significado maléfico e implacável. Os estudos de Kubler-Ross, por sua
vez, ajudaram-me a perceber o câncer como uma doença de processos (seqüenciais,
entrecruzados ou não exatos), que faz adoecer também a teia de relações do doente.
Para o desdobramento desta pesquisa, tenho tomado como espaço de análise uma
parte específica do pátio do Hospital Erasto Gaertner, também conhecido como “hospital do

3
Saliento que este escrito se trata de uma versão revisada e reorganizada de trabalho que fora apresentado no IX
Seminário Nacional Sociologia & Política, evento promovido por docentes e discentes do Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná .
4
Embora o acompanhamento seja uma modalidade de cuidado executada por indivíduos diversos, opto por
identificar aquelas que constituem meu objeto de investigação como “acompanhantes/cuidadoras”, de forma a
diferenciá-las daqueles que acompanham esporadicamente e daqueles que têm no cuidado uma profissão e,
quiça, não experienciam o ambiente hospitalar.

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câncer”, em Curitiba. A parte específica à qual me refiro é constituída por uma ampla área
verde, com árvores, bancos e gramado. Através dela, tem sido possível acessar todo tipo de
pessoa.
Entretanto, minha experimentação em tal espaço não é uma novidade, visto que, para
minha monografia de graduação defendida em 2015, desenvolvi no mesmo, entre o fim de
2012 e meados de 2014, um trabalho baseado em entrevistas e observação. Por aquele tempo,
importava-me apreender as experiências e os significados que doentes e acompanhantes
atribuíam ao câncer.
Ainda por aquele tempo, percebi o pátio como um espaço de espera, de instrospecção
e de sociabilidades, dedutivamente o oposto do espaço concreto do hospital. O último seria
um espaço mais nobre, um espaço de luta, em que as moléstias seriam exorcizadas. Com o
desenrolar do trabalho de campo (principalmente agora), percebi o quão equivocado seria
classificar deste modo tais espaços. Com efeito, a luta e a espera mostravam-se presentes nos
dois contextos e marcavam as vivências de todos aqueles que experienciavam o câncer como
uma “doença coletiva”.
O termo “doença coletiva” foi usado em minha monografia para assinalar um
adoecimento conjunto (ou seja, encarado por enfermos e a comunidade mais imediata)
construído por uma doença percebida com sinônimo de morte. Que o leitor perceba a “doença
coletiva” não como uma patologia compartilhada, mas como uma circunstância que faz
adoecerem espiritual e fisicamente aqueles que possuem posição imediata em relação ao
indivíduo enfermo. A manifestação do câncer fazia irromper em outrem distúrbios
alimentares, doenças mentais e privações de sono, a título de exemplo.
Colocado isto, enfatizo que este escrito está dividido em três momentos importantes.
Na atual seção, apresento ao leitor o contexto da pesquisa e um vislumbre geral do texto. Por
conseguinte, em um primeiro momento da seção “desenvolvimento”, discorro um pouco
acerca da experiência da pesquisa. Depois, trago à baila uma ligeira discussão com os estudos
do cuidado, principalmente com teóricos como Ângelo Soares (2012), Arlie Hochschild
(2012), Carol Gilligan (1982), Joan Tronto (1997, 2007), Pascale Molinier (2012) e Rachel
Salazar Parreñas (2012). Ainda nesta seção, tomo as falas de cinco acompanhantes/cuidadoras
– Bárbara, Beatriz, Glauce, Nicole e Pâmela -, com o intuito de, ulteriormente, preencher um
pouco das lacunas deixadas pelas questões que abriram este texto. Finalmente, em breve seção
de fechamento, retomo alguns dos principais apontamentos concernentes à pesquisa.

2. Desenvolvimento.

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Primeiramente cabe enfatizar que, para a execução desta pesquisa, aproprio-me do


método qualitativo e de técnicas como as entrevistas semi-estruturadas e a observação
participante, as quais têm contribuído sobremodo com o delineamento de um diário de campo.
Como bem perceberam Jean-Pierre Desleuries e Michele Kérisit (2008), a pesquisa
qualitativa apreende dados que não são mensuráveis, tais como uma representação, uma
opinião ou uma atitude. Permite que o investigador tenha um entrosamento singular com o
campo, que, além de reservatório de dados, suscita cada vez mais o refinamento das questões.
Também, garante o contato com o vivido dos atores ali contidos, vivido este que pede a
interpretação dos atores e a interpretação do investigador no interior da pesquisa.
Os aprimoramentos no interior de uma pesquisa são graduais, apontamento que
quebra a ideia de uma pesquisa que deve despontar de modo perfeito (QUIVY; 1992).
Curiosamente, o não contato por quase quatro anos com meu espaço de investigação fez com
que eu, ao deparar-me novamente com ele, fosse tomado pela sensação de estranhamento.
Inicialmente me senti bastante incomodado em abordar as pessoas presentes no pátio.
Com o passar das semanas, fiquei mais à vontade para dialogar com elas e,
sobretudo, reafirmar-me enquanto pesquisador. Disto depende o sucesso de meu empenho. De
todo modo por estar no campo, autonomamente, tenho carregado o temor de ter minha
pesquisa desqualificada, sentimento que, creio, assalta tantos outros pesquisadores.
Outra dificuldade tem sido acessar meu público alvo em profundidade –
acompanhantes que são cuidadoras permanentes. A estada destas no pátio quase sempre se vê
orquestrada pela pressa. Com exceção de uma, quatro das acompanhantes/cuidadoras
presentes neste texto estavam no pátio do hospital em um momento de intervalo. Por outro
lado, percebo que o pátio constitui um universo ocupado por acompanhantes/cuidadores
permanentes ou temporários, doentes, trabalhadores do hospital e outros. Contatá-los faz com
que eu tenha percepções complexas acerca do trabalho de quem se propõe a cuidar.
A partir de agora, visito de forma breve os estudos de Gilligan, Tronto, Molinier,
Parreñas, Soares e Hochschild. Suas considerações oferecem ferramentas para um melhor
entendimento das experiências de cuidados das acompanhantes/cuidadoras. De fato, os
cuidados que elas prestam são gendrificados e atrelados às emoções. Aliás, se evidenciam de
formas múltiplas e implicam em desafios reais para quem os presta.

2.1. Considerações teóricas sobre o Cuidado.

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Conheci Julia5 em um fim de tarde de segunda-feira. Na ocasião em que a conheci,


parecia inquieta pelo tempo que esperara e pelo tempo que ainda teria que esperar pela sogra.
A última estava fazendo sua primeira visita ao Erasto Gaertner, sendo encaminhada a este
depois do resultado de um teste de Papanicolau realizado em uma unidade básica de saúde. A
medida de minha aproximação, pude perguntar sobre o porquê do acompanhamento. Julia
ofereceu-me uma justificativa baseada no status do hospital, o de hospital do câncer. Assim,
acompanhar a sogra seria equivalente a enfrentar de forma conjunta uma adversidade, já que
os estudos em um curso de técnico em enfermagem davam a ela algum tempo livre.
Julia não possuía uma experiência profunda com o cuidado da sogra. No entanto,
chamou a minha atenção os planos futuros de cuidar da mãe, portadora do vírus HIV.
Então, no curso mesmo, a gente... Eu comecei esse ano, né?! Então faz três meses
que eu tô fazendo o curso. É recente ainda. No curso a gente aprendeu sobre isso...
Que não é só o paciente que sofre. Quem cuida, né, quem fica ali também sofre. [...]
É, assim, falando bem abertamente, né. A minha mãe, tipo, ela tem HIV, sabe? E eu
penso assim: no futuro... assim, claro, faz dezoito anos já. Ela tá bem, né,
aparentemente. Mas eu penso assim: eu não tenho filho e nem quero ter. Porque eu
penso assim: se um dia ela precisar de alguém, vai ser eu, sabe? Eu até quero que
seja eu, sabe? Porque, assim, a minha irmã tem filho, o meu irmão é meio, tipo, é
homem, entendeu? (Julia, 28 anos, estudante de técnico em enfermagem).

A fala de Julia revela escolhas de vida (fazer técnico em enfermagem) e renúncias


(não ter filhos) em prol da provisão de um cuidado futuro à mãe. Ao mesmo tempo, enxerga
no acúmulo de responsabilidades de outrem (irmã que cuida dos próprios filhos) um
empecilho para o fornecimento de um cuidado magnificente. Ademais, vê uma
incompatibilidade entre cuidado e o sujeito homem.
Não por acaso, a fala de Julia reporta-me à Carol Gilligan (1982), estudiosa cuja obra
“Uma Voz Diferente” é considerada basilar para os estudos sobre o cuidado. Nela, Gilligan
sugere divergências no desenvolvimento moral e na identidade de homens e mulheres. Neste
contexto, Gilligan tem o propósito de contribuir com as pesquisas sobre o desenvolvimento
humano, trazendo à baila uma melhor representação sobre as mulheres. Com efeito,
representações androcêntricas eram correntes na ciência.
Gilligan enfatiza que a teoria universalista do desenvolvimento moral não poderia ser
usada como ferramenta explicativa da realidade de todas as pessoas. A partir deste argumento,
ela levantará uma crítica à Freud e afirmará que sua pesquisa estava baseada em uma

5
Neste texto os nomes de minhas interlocutoras são fictícios.

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perspectiva não universalizante. Sendo assim, a moralidade – objeto de vertentes científicas


androcêntricas e também da teoria gilliganiana – deve ser analisada em seu contexto6.
Ao contrário do que pregava o conhecimento hegemônico, as mulheres possuiriam,
sim, uma moralidade, esta baseada em uma ética do cuidado. Sua consideração pelas relações
seria seu grande potencial. Deste modo, as meninas estariam inclinadas a desenvolver uma
ética do cuidado, pois teriam uma cognição voltada para a manutenção dos relacionamentos.
Os meninos, por outro lado, desenvolveriam uma ética da justiça, pois teriam uma cognição
vinculada à capacidade lógica. Aqui, Gilligan percebe uma oposição entre relação e
autonomia.
A cientista política Joan Tronto (1997, 2007) foi uma crítica proeminente de
Gilligan. Ela e outras teóricas feministas acusaram Gilligan de essencializar papéis de gênero.
Tronto, por exemplo, criticou a atitude de transformar um atributo majoritariamente feminino
em virtude e, consequentemente, defendê-lo como causa. Para ela, a questão deveria ser
melhor refletida, pois todo cuidado e toda necessidade de cuidado implica em discutir o
cuidado democrático e a democracia do cuidado.
Em sua teoria, Tronto percebe o modelo dual de cuidado como normativo, ineficiente
e também ideológico. Segundo ela, deve-se reconhecer que as relações de cuidado não se
restringem a uma relação entre dois indivíduos. Elementos outros também se comprometem
com sua provisão. No jogo interacional entre mãe e filho, a título de exemplo, agentes como
avós, irmãos e tios mostram-se importantes, pois também oferecem cuidados. De toda forma,
esta rede segue sendo feminina.
Para Tronto, o cuidado deve estar no centro da vida política, deve ser um valor
democrático, envolvendo o máximo de pessoas, de forma que o esgotamento de um único
indivíduo seja suprimido. Assim, esta estudiosa reconhece que aqueles que provêm o cuidado
também são vulneráveis e necessitados de cuidado; todos precisam ser cuidados. Destarte, o
cuidar deve ser visto como uma oportunidade de aprimorar relacionamentos, não como uma
prática desprezível e relegada a grupos sócio-historicamente enfraquecidos.
Curiosamente, em nossa sociedade, homens e mulheres cuidam. No entanto, o objeto
do cuidado modifica-se conforme o gênero. Tronto enfatiza que homens têm “cuidado com”,
ao passo que mulheres vêem-se encarregadas do “cuidado de”. O “cuidado com” diz respeito

6
O contexto em questão concernia a teorias binarizantes, ainda se as mesmas estivessem sendo produzidas para
desnaturalizar os determinimos biológicos, psicológicos, morais, éticos e/ou históricos no seu amplo sentido.
Gilligan não deixa de cair na armadilha dos binários, por mais que toda a sua produção seja crítica para o
contexto.

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à objetos menos concretos e sobremodo valorizados socialmente. As transações financeiras


constituem um bom exemplo de objeto que recebe o “cuidado com”. O “cuidado de”, por
conseguinte, embora diga respeito à objetos concretos (leia-se seres vivos), não recebe tanta
valorização. O imbricamento entre “cuidado com” e homens e “cuidado de” e mulheres
remete-me à oposição entre autonomia e relação sugerida por Gilligan.
Para que vivamos o cuidado enquanto valor democrático, é necessário que os
binômios sejam quebrados e diluam-se entre si, mas sobretudo que o cuidado ganhe a esfera
pública, das políticas, do Estado e da valorização social. Ao contrário de estudiosas como
Pascale Molinier (2012) e Rachel S. Parreñas (2012), Tronto e Berenice Fisher (1990)
enxergam o cuidado enquanto algo que perpassa as relações domésticas e imediatas. Cuidar
implica em uma responsabilidade sistêmica, em uma atitude de comprometimento com o meio
e os seres vivos, que demanda a continuação, manutenção e reparação destes.
Ângelo Soares (2012) chama a atenção para as variações da prática do cuidado, ou
seja, cuidar pede competências diferenciadas de acordo com o contexto. É importante que o/a
cuidador/a as adquira, para que não seja supreendido/a por situações inusitadas. No contexto
desta pesquisa, cuidar de alguém com câncer de mama e de alguém com leucemia impõe
desafios, experiências e técnicas bastante distintas.
A prática do cuidado, conforme Soares, vê-se atravessada por três dimensões – uma
emocional, uma relacional e uma sexual. Na primeira, a pessoa que oferece cuidado deve
saber gerenciar suas emoções conforme a situação. Na segunda, deve apropriar-se da
capacidade de viver bem, de atenuar conflitos, de relevar as necessidades de quem recebe o
cuidado. Por fim, o trabalho de cuidado delineia uma dimensão sexual, sendo esta percebida
no toque ao corpo do outro, de suas excreções, de sua intimidade. Deve-se reconhecer que
estas se encontram fortemente entrecruzadas. Os trabalhos de Arlie Hochschild (2012) sobre
barrigas de aluguel indianas e de babás que migram de países periféricos para os de primeiro
mundo e o de Parreñas sobre trabalhadoras filipinas na noite toquiana são exemplos
proeminentes para que enxerguemos tais dimensões.
Retomando Tronto, o cuidado possui também dimensões morais – a capacidade de
atenção, a autoridade e autonomia e o particularismo. A capacidade de atenção é algo
adquirido por meio da prática. Pode por à prova a sanidade do/a cuidador/a e pede que,
diferente de fazer as vontades do beneficiário do cuidado, ele/a saiba o que deve ser feito. A
autoridade e a autonomia trazem à tona as desigualdades sob as quais estão fixadas a relação
entre cuidado e cuidador/a. Embora o/a último/a possua certa autoridade em face do primeiro,
é necessário que haja o reconhecimento do indivíduo cuidado enquanto autônomo e detentor

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de racionalidade. O particularismo, enfim, pede que a relação de cuidado seja analisada


conforme seu contexto, pois julgamentos universalizadores não nos permitirão entender bem a
prática do cuidado.
A fim de elucidar as dificuldades que envolvem esse tipo de trabalho, Molinier
apresenta-nos cinco faces do “care” (“care como gentleness”, “care como savoir-faire
discreto”, “care como trabalho sujo”, “care como um trabalho inestimável”, “care como uma
narrativa ética”).
Juntamente com outras estudiosas (Paperman e Laughier), Molinier rejeita traduzir a
expressão “care” para as expressões “soin” (cuidado) e “solicitude”. “Soin” indica algo a ser
tratado, uma doença individual ou social; enquanto que “solicitude” implica numa atitude de
compaixão para com o outro cujo desdobramento ali contido é invisibilizado. O “care” diz
respeito à saúde, à vida, ao movimento. É uma atividade ou trabalho que, em seu interior,
dispõe de agentes enquadrados em diferentes posições.
Posto isto, no “care como gentleness”, cuidado e gentileza se fundem. É uma tarefa
que reconhece a humanidade daquele que é beneficiado por ela. É prestado de forma
conveniente e também com rapidez. O “care como savoir-faire discreto” pede que o/a
cuidador/a detenha um saber acerca daquilo que está fazendo e o execute da melhor maneira,
sem dar margem a complicações.
No “care como trabalho sujo”, nota-se um vínculo entre seres humanos e tarefas
relativas à sujeira, à morte e à doença. Por serem repugnadas pelo todo, acabam delegadas às
pessoas que são percebidas como abjetas. No “care como um trabalho inestimável”, percebe-
se que quem presta o cuidado vê um sentido em sua agência. A resposta do recebedor do
cuidado (seja por meio da presença, seja por meio de um sorriso) faz com que aquele/a que o
presta perceba seu encargo como intransferível e urgencial.
Por fim, no “care como uma narrativa ética”, Molinier destrincha as histórias de duas
mulheres que conhecera na Colômbia, em um grupo de faxineiras chefes de família. Marlen
guardava ressentimento dos pais, principalmente da mãe, mas ainda frequentava dois
empregos para garantir-lhes o sustento. Por sua vez, Mariam nutria desconforto em relação à
nora, pois achava que esta tinha traído seu filho, dando à luz duas crianças que pouco se
pareciam com a família em geral. Molinier constata que o amor e o dever não seriam critérios
explicativos para justificar o desdobramento dessas mulheres. Elas não encaravam o cuidado
como uma virtude moral. De toda forma, não obstante as desavenças, atendiam às
necessidades de seus entes.

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A partir destes apontamentos, pode-se reconhecer que o cuidado é uma peça basilar
em nossas relações. Tanto “indivíduos independentes” quanto “indivíduos em situação de
vulnerabilidade” estão circunscritos em uma rede complexa de cuidados. Não existe
autossuficiência. Entretanto, o cuidado pode garantir bem estar, mas também pode
desencadear a degradação, tanto para beneficiários quanto para prestadores. Além do mais, as
relações de cuidado revelam também desigualdades de gênero, étnico-raciais, de classe, entre
outros.

2.2. “O Que Dizem as Acompanhantes/Cuidadoras dos Doentes de Câncer?”


Nesta seção, tomo os relatos de cinco acompanhantes/cuidadoras de doentes de
câncer, são elas Bárbara, Beatriz, Glauce, Nicole e Pâmela. Todas elas, com exceção de
Glauce, estavam acompanhando pessoas muito próximas de seu convívio – esposo (Bárbara),
pai (Beatriz), irmã (Nicole) e irmão (Pâmela). Glauce, diferentemente, estava acompanhando
a sogra do filho pela primeira vez e mostrou-se animada para prestar-lhe ajuda em outras
ocasiões.
As entrevistas com os dois primeiros nomes aconteceram sem gravador. Quando tive
contato com Bárbara, por exemplo, eu ainda não tinha começado a fazer uso do dispositivo.
Beatriz, por sua vez, gentilmente negou a possibilidade de ter sua conversa gravada, mas
aceitou que eu fizesse anotações acerca da mesma. As demais mulheres não se opuseram ao
uso do gravador. Contudo, tive o cuidado de explicar de que modo o áudio seria utilizado para
todas elas.
Antes de elucidar pontos comuns e divergentes nas falas dessas mulheres, faz-se
importante discorrer sinteticamente acerca de suas vidas. Uso os próximos parágrafos para
fazê-lo, organizando a sequência de acordo com o momento em que as conheci.
Bárbara é uma senhora de 60 anos, católica, costureira e que cuida do marido, doente
de câncer na próstata. Ela contou que, devido à doença deste, trabalha bem menos do que
antes e precisou deixar de lado hábitos que lhe fazem bem, como ir ao bairro Centro para
olhar vitrines, algo muito importante para uma costureira. Hoje tem uma vida dedicada a
proporcionar bem-estar ao marido.
Beatriz tem 37 anos, é evangélica, está fora do mercado de trabalho e acompanhava o
pai, que está com câncer no estômago. Quando tive contato com essa mulher, ela parecia
chorosa. No desenrolar da conversa, mostrou indignação pela falta de envolvimento,
principalmente dos irmãos, com o pai. Por ela estar em casa, seus familiares lhe delegavam o

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encargo de acompanhamento/cuidado. A entrevista foi iniciada com a negação do uso do


gravador, mas à medida que se desenrolava ganhava colocações importantes.
Glauce tem 43 anos, é evangélica, trabalha como diarista e empregada doméstica e
estava acompanhando a sogra de seu filho pela primeira vez. Como proposto, ela mostrou-se
muito entusiasmada para cuidar mais vezes. Em nossa conversa, ela foi muito atenciosa, rica
em detalhes e manifestou uma narrativa carregada de um discurso religioso de amor ao
próximo.
Nicole tem 50 anos, não tem religião, trabalha como agente educacional I (limpeza
na escola) e também cuida da irmã, que descobriu um carcinoma depois de sentir dores fortes
no braço e no peito. A irmã de Nicole, apesar de ter casa própria, marido e filhos, hoje mora
com Nicole e sua família, pois em sua realidade original “se sentia limitada para ser cuidada”
(palavras de Nicole). Minha informante se expressava muito bem, foi rica na apresentação de
detalhes e concedeu-me entrevista enquanto outros familiares estavam na parte de dentro do
hospital, visitando a irmã.
Pâmela tem 44 anos, é evangélica e deixou o mercado de trabalho para cuidar do
irmão, que está com câncer na garganta. Embora esteja afastada do mercado de trabalho, sua
vida tem sido bastante agitada, pois tem que dar conta sozinha de cuidar dos pais idosos, da
filha, do neto e do irmão doente. Ela contou-me que, embora outras pessoas se ofereçam para
acompanhar/cuidar, o irmão só quer que ela o faça. Os cuidados da mãe dos dois é dispensado
pelo irmão, porque ele não quer que sua situação a faça sofrer. Ele esperava que ele cuidaria
da mãe no atual momento, não o contrário. Quando entrei em contato com Pâmela, ela
perguntou-me se a entrevista seria rápida.
Essas mulheres relatam ter uma vida repleta de obrigações. Cuidar da casa, de
familiares doentes, dos filhos, dos netos, dos pais e trabalhar fora estão entre elas. Os
discursos de Bárbara e Beatriz mostram-se mais crus, ou seja, retratam o quão desafiadora é a
tarefa de acompanhar/cuidar e os impactos que esta exerce sobre suas vidas. Glauce, Nicole e
Pâmela enxergam o acompanhamento/cuidado como uma atividade gratificante, que tem
proporcionado a elas crescimento pessoal. A respeito disso, Glauce afirma...
Olha, eu vou te falar uma pura verdade. Hoje em dia, no país que nós estamo, a
gente tá aqui é pra ajudar qualquer um, sabe?! Seja ele qual ele for: estranho, velho,
novo, criança... Você tá bom de saúde, você tem que ajudar o próximo. Então eu
gosto de ajudar as pessoa. Deixei de trabalhar hoje pra vir aqui. (...) Porque a saúde
é mais importante que o dinheiro. O dinheiro não compra a saúde e nem a felicidade.
Então por isso que eu fiz isso. E não me arrependo, sabe? E falei: se precisar ficar à
noite, eu fico à noite, sabe... Porque além dela ser sogra do meu filho, eu sei que ela
tem duas filha e as duas filha trabalha, né. Então daí sempre tá trocando de gente
aqui. Mas como não tinha ninguém pra vir, eu vim hoje fazer a minha caridade, que
Ele mandou eu fazer, sabe? Porque amanhã eu não sei, posso precisar. Ou você pode

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precisar de mim ou eu precisar de você. De repente a gente se topa por aí, né? Então
a gente tem que ajudar o próximo. Eu tenho os meus defeito: eu fumo. Tô indo na
igreja, tô pedindo, tô orando. Eu sei que uma hora Deus vai me libertar. Mas eu não
vou deixar de ajudar o próximo. Pode ser quem for, com qualquer coisa que
precisar, eu ajudo, assim, tando no meu nível, né. Então eu acho uma coisa bonita,
né? Eu sempre gostei de cuidar de... Olha: cuidei da minha avó, que morreu. Cuidei
do finado meu sogro, que morreu. Cuidei do meu padrinho. Cuidei do outro meu...
padrasto. E também cuidei de um senhor que a filha tava com nojo de dar banho e eu
dei banho nele (Glauce, 43 anos, diarista e empregada doméstica).

É curioso constatar que, nos relatos de Bárbara, Beatriz, Glauce e Nicole, a


impossibilidade de outros indivíduos assumirem o acompanhamento/cuidado está associada
ao vínculo destes com o mercado de trabalho. Glauce, embora também fosse uma
trabalhadora, viu nos compromissos de trabalho de seus afins uma genuína impossibilidade,
não um desvio de caráter. Já Beatriz e Nicole percebiam a urgência do próprio trabalho em
detrimento do auxílio a outrem como problemática. Quando perguntada sobre se teria alguém
para auxiliá-la no acompanhamento/cuidado, Nicole enfatizou...
Como eu falei pra você, não temos tempo, fica difícil, porque “eu tenho que isso, eu
tenho que aquilo”. Eles não se disponibilizam. E quem até tenta, digamos que, não
tenta, assim, tão a fundo, realmente. É mais nessas horas, assim, de internação que
parece que cai a ficha, sabe como? Aquele egoisminho que a gente tem, né? Que eu
sou mais importante, eu tenho outras prioridades. Não é que não a amem. Na
realidade, eu acho que isso é uma falha até mesmo, um pouco, de educação, não
digo só de mãe, pai, mas da pessoa, é, abrir os olhos para a vida de uma maneira
diferente, né? (Nicole, 50 anos, agente educacional I).

Beatriz discordava do argumento utilizado pelos irmãos de que seria sua obrigação
cuidar do pai, já que estaria desempregada, portanto ociosa. Segundo ela, o cuidado da casa e
dos filhos, principalmente da filhinha pequena, também seriam responsabilidades onerosas.
Incomodava-lhe experienciar o acompanhamento/cuidado e não conseguir chegar em casa a
tempo de ver a filhinha acordada. Todas as tentativas que empreendera para cobrar um maior
comprometimento dos irmãos haviam sido frustradas. Como não conseguia resolver nada
pacificamente, recorria às brigas e aos xingamentos, métodos que também não resolviam sua
situação. Beatriz cria que as muitas desculpas dadas por seus afins para não
acompanharem/cuidarem de seu pai deviam deixá-lo triste, pois assim ele se sentiria
preterido.
Tanto Beatriz quanto Pâmela chamaram a atenção para a falta de descanso, mesmo
tendo que enfrentar dias desafiadores. Apesar do cansaço, o que mais incomodava Nicole, por
exemplo, era a situação do irmão, que implicava na ausência deste do lar.
Não durmo. Que nem essa noite mesmo eu dormi pouco. Dormi acho que umas três
horas só. Eu não durmo, eu tenho insônia, eu tenho insônia, eu não durmo. [...] Eu tô
exausta aqui, mas eu vou chegar em casa, tomar um banho e não vou dormir, porque
eu sei que ele tá aqui. Fica um buraco naquele quarto. Não tem como, a casa tá
vazia. Isso é amor demais, né? (Pâmela, 44 anos, cuidadora do irmão).

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Além de Pâmela, Nicole também parecia nutrir uma grande consideração pela irmã.
Disse-me que, depois dos filhos, a pessoa cuidada era a mais importante de sua vida. Para
essas duas mulheres, cuidar não era a parte mais difícil. As dificuldades e o sofrimento que
sentiam estavam atrelados às dificuldades e ao sofrimento dos entes cuidados.
As atividades de cuidado, para além do acompanhamento, faziam-se evidentes no dar
um medicamento, no fazer comida, no ir a um lugar que a pessoa doente gostava, no
higienizar o beneficiário do cuidado, entre outros. Nicole afirmou que, entre suas medidas de
cuidado, concedia à irmã “pequenos prazeres” e, principalmente, dedicava-se à ouvi-la.
A principal é ter tempo para ouvi-la. Essa é a principal, que a gente mais faz. [...] É
que, assim, ela já tem também histórico de depressão, entendeu? Aqui tem um
atendimento muito bom também que ela também faz. Então a principal é essa. Em
segundo lugar, proporcionar os pequenos prazeres que ela não tinha acesso, que pra
ela é importante. [...] Fomos ao Jardim Zoológico, fomos ao Jardim Botânico,
Parque Barigui, coisas assim... Viajamos pra rever parentes que não se via desde a
infância. Essas coisas assim. Mas o mais básico mesmo é esse. (Nicole, 50 anos,
agente educacional I).

Dentre as minhas informantes, Beatriz foi a única que percebeu como constrangedora
uma situação que vivera na experiência de cuidar do pai. Conforme ela, dar-lhe banho foi uma
tarefa embaraçosa, pois teve que vê-lo nu. Além disso, ele era muito pesado, portanto deveria
ser higienizado por um homem, não por ela. Perguntei-lhe se gostaria de ser ajudada por
agentes de outras esferas e ela respondeu negativamente, afirmando que uma melhor
organização da família seria a solução ideal.
De fato, Beatriz concedeu-me uma entrevista baseada nas dificuldades que enfrenta
no processo de acompanhamento/cuidado, mas ainda assim percebeu-se como a pessoa mais
indicada para executá-lo. Nas palavras dela, sua irmã mais velha é muito ranzinza, enquanto
que sua irmã mais nova deixa o pai fazer tudo o que quer. Ela, diferentemente, seria a junção
dos dois mundos. No processo de amparo ao pai, o marido de Beatriz a tem incentivado
bastante. “Você faz de coração”, “Deus vai te recompensar”, “você está fazendo a sua parte” e
“estamos ajudando e não sendo ajudados” têm sido algumas das expressões lenitivas usadas
por ele para confortá-la.
Beatriz encarava a visitação ao hospital como uma experiência triste.
Acompanhantes/cuidadoras como Glauce e Nicole também, mas ainda assim assinalavam o
caráter despertador desta em uma realidade de preocupações supostamente triviais.
Se eu pudesse botar a mão na pessoa e curar ela, com a força de Deus, eu faria isso,
sabe? Porque é muito triste cê ver a pessoa ali, sabe? Por mais que você ajude, cê dê
alegria, mas não é aquilo que você quer. Você queria tar no lugar da pessoa. Então é
meio complicado. [...] Ah, eu te digo: essa experiência é bom pra gente passar pras
outras pessoas, né? Como às vezes tem muita pessoa que reclama de pouca coisa. E

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você sabe que o mundo aqui fora, você vendo as pessoas passando se reclamam
demais pelo pouco que se passa. Então isso aí é um exemplo pra você superar muita
coisa. Às vezes a pessoa tá com um pé machucado ali e reclama e não sabe onde tá
as outras pessoas que tão aí... O que a gente passa é mínimo do mínimo que eles
passam aí. (Glauce, 43 anos, diarista e empregada doméstica).

De acordo com Nicole, o Hospital Erasto Gaertner oferece assistência psicológica


para o doente de câncer e também para a família. No entanto, minhas interlocutoras relataram
que não recebiam nenhum tipo de assistência (seja ela psicológica, prática ou material) para
melhor executarem suas funções. No que diz respeito à ajuda material por parte do governo,
Pâmela relatou que tentou conseguir desconto para o ônibus e não conseguiu.
Em resumo, todas as mulheres que vivenciavam o acompanhamento/cuidado mais
profundamente (Bárbara, Beatriz, Nicole e Pâmela) reconheceram que estavam diante de uma
tarefa desafiadora. Bárbara, Beatriz, Glauce, Nicole e Pâmela atribuíram seus desdobramentos
ao amor ou consideração que nutriam pela pessoa cuidada ou por outras próximas a ela.
Nicole foi a única que usou expressões como “adoro”, “amo” e “privilégio” para definir a
experiência de cuidar do irmão. Bárbara e Beatriz, todavia, lançaram luz às restrições que a
prática do acompanhamento/cuidado manifestava sobre suas vidas.
Glauce e Nicole mostraram que o envolvimento com seus entes atribuíam a elas o
sentimento de utilidade e possibilitava-lhes reorganizar suas percepções de mundo. O contato
com outros casos dentro do hospital foram apontados por Beatriz, Glauce e Nicole como
responsáveis para que vissem a vida de outra forma.

3. Considerações finais.
As relações de cuidado são responsáveis por cristalizar nossos vínculos. Em nosso
contexto, os resultados do cuidado são valorizados. Sua prática, porém, é considerada
desprezível e invisibilizada, sendo assim relegada a grupos sócio-historicamente fragilizados.
De toda forma, a tarefa de cuidar implica em desafios para aqueles que dela se apropriam.
No contexto desta pesquisa, as acompanhantes/cuidadoras denunciam dificuldades na
prática do cuidado. Fazê-lo resulta no acúmulo de responsabilidades, em reorganização do
cotidiano e na aprendizagem de fazeres específicos para tratar de alguém doente. Em algumas
situações, no entanto, a experiência do acompanhamento e do cuidado possibilita-lhes uma
nova percepção a respeito de si próprias, daqueles considerados vulneráveis e dos outros (ou
seja, aqueles que não vivenciam intimamente o mundo da doença nem experimentam a
realidade do hospital).

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Diante desta nova percepção, algumas relatam uma sensação de bem-estar e de


utilidade por conta da execução do acompanhamento/cuidado, embora as dificuldades. Aqui,
as noções que os “outros” constroem acerca das dificuldades são desprestigiadas.
Pode-se dizer que o vínculo afetivo e o não comprometimento de outros entes
possíveis no encargo do acompanhamento/cuidado são fatores importantes que movem essas
mulheres. Parte expressiva das acompanhantes/cuidadoras chamam a atenção para uma
assistência prática (sobretudo por parte da família) e material (financeira por parte do Estado)
diminuta ou inexistente para uma melhor execução do cuidado pelo qual foram
responsabilizadas ou se responsabilizaram. De fato, é naturalizada a sobrecarga a que são
submetidas, o que inviabiliza uma distribuição humana, equitativa e democrática do cuidado.

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Cuidado voluntário na prevenção de suicídio: a experiência de homens e mulheres


dentro do Centro da Valorização da Vida em Curitiba
Henrique da Costa Valério Quagliato1
Marlene Tamanini2
Resumo
O presente trabalho é parte do processo de dissertação em desenvolvimento que tem por
objetivo entender como se dá a experiência de homens e mulheres que prestam cuidado
voluntário na prevenção de suicídio através do Centro de Valorização da Vida (CVV), em
Curitiba. O estudo se propõe a ampliar nas discussões sobre gênero e cuidado, e, pretende
compreender de que maneira os significados produzidos pelos sujeitos dentro da prática do
cuidado voluntário na prevenção de suicídio no CVV influenciam em suas próprias
experiências gendrificadas. O intento da pesquisa é considerar a conexão entre biografias e
discursos que envolvem as vivências do cuidado em um determinado espaço social. Para isso
utilizamos como base as teorias do cuidado, juntamente com as metodologias de entrevista
narrativa e análise de discurso. Este texto procura apresentar e discutir a) a produção
acadêmica que envolve o tema; b) as questões teóricas relevantes; e c) os desafios empíricos e
metodológicos que envolvem o esforço de colocar o cuidado em evidência enquanto
componente político das vidas individuais.

Palavras Chave: cuidado; gênero; voluntariado; Centro de Valorização da Vida

Introdução – Do objetivo de pesquisa à subjetividade da autoria

Este texto advém de uma dissertação ainda em andamento, que tem por objetivo
compreender a experiência de homens e mulheres que prestam cuidado voluntário a pessoas
com ideação suicida através do Centro de Valorização da Vida (CVV) em Curitiba. As
categorias empregadas na pesquisa têm o intuito de entender como essa maneira de cuidar
produz significados próprios e como esses significados, por sua vez, compõem as vidas dos
sujeitos que formam o CVV. Assim, essa investigação se volta para as narrativas dos agentes
através de metodologias de ordem qualitativa. Acredito que o esforço de conhecer o lugar
subjetivo das biografias individuais e das vivências inevitavelmente gendrificadas,

1Aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia na UFPR, graduado em Ciências Sociais. E-


mail: henriquequagliato95@gmail.com
2 Professora do Departamento de Sociologia do Curso de Ciências Sociais e do Departamento de Pós-graduação
em Sociologia na UFPR, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:
tamaniniufpr@gmail.com

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p43 43
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entendendo-as como um conjunto de artesanias discursivas, representa a possibilidade de


considerar as consequências políticas de uma atividade tão comumente relegada ao campo
supostamente intocável do pessoal.

Sendo assim, esse artigo se propõe a discutir de maneira crítica um apanhado de


publicações sobre as teorias do cuidado, os estudos do voluntariado e as produções do
Centro de Valorização da Vida e sobre ele mesmo, tendo em vista a importância da
consideração dessas temáticas dentro dos estudos de gênero. Ao mesmo tempo, pretendo
expor uma estrutura metodológica ainda em construção – refletindo sobre a necessidade de
desnaturalização do cuidado e consideração de outras técnicas de pesquisa.

Contudo, antes se faz necessário refletir sobre a apreensão subjetiva das categorias e
conceitos utilizados aqui. A adoção de uma perspectiva epistêmica que reconheça a crítica
feminista da localização e da situacionalidade dos modos de conhecimento requer uma
reflexão sobre a utilização e percepção das ferramentas de pesquisa e da delimitação do
objeto. Tento evitar a formulação clássica do conhecimento objetivo que parte da
autoevidência das categorias como forma primeira de delimitação de uma fronteira mais ou
menos hermética entre o sujeito do conhecer e o objeto do conhecimento. Para isso, pretendo
apresentar o objeto e o locus que escolhi para minha pesquisa enunciando a minha própria
posição subjetiva enquanto autor e indicando como compreendo algumas das categorias
utilizadas nessa investigação.

Em primeiro lugar, minha situação como pesquisador. Considero importante enunciar


alguns traços de minha subjetividade para que esteja claro o caminho pelo qual encontro meu
tema de pesquisa. Falar sobre minha posição enquanto pessoa branca, heterossexual,
pertencente ao que se chama de classe média e advindo de uma tradicional socialização
católica é importante para que a análise leve em conta percepções anteriores a respeito de
temas como o cuidado, o voluntariado e o gênero em minha própria experiência. Ao mesmo
tempo, deve-se notar que o meu interesse pelo cuidado de pessoas com ideação suicida e meu
encontro com a temática advém de reflexões ainda correntes sobre infelizes episódios em
minha vida pessoal.

A composição de minha experiência enquanto pesquisador indica a maneira como


compreendo a noção de experiência como categoria de acesso a meu objeto de pesquisa.

DOI: 10.5433/SGPP.2018v5p43 44
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Entendendo as narrativas trazidas pelas mulheres e homens a respeito de como e por que
cuidam através do Centro de Valorização da Vida como meu objeto, palavra experiência
assume um papel importante para o processo de construção da pesquisa. Concebida aqui
como lugar construído e não como evidência dada, a noção de experiência deve levar em
conta não só a fluidez do deslocamento entre círculos e papéis sociais mas a própria posição
dos indivíduos em relação aos discursos e práticas de seu tempo.

Trata-se, dessa maneira, de uma noção de experiência calcada na diferença e na


multiplicidade. A atenção ao empírico em suas contrariedades e complexas variedades
significa que a utilização de categorias unitárias como “a mulher” ou “o homem” ou mesmo
“o cuidado” seriam prejudiciais ao objetivo da pesquisa. Assim, embora pareça ser impossível
agir como se essas palavras fossem novas ou desconhecidas para mim, quando as encontro em
campo ou mesmo na revisão bibliográfica tento manter presente o pressuposto de que, mesmo
nos inevitáveis momentos de abstração e generalização, a incompletude do genérico frente ao
concreto é um imperativo da forma crítica de conhecer.

O Centro de Valorização da Vida, suas histórias sobre si a as pesquisas sobre a entidade.

Quando decidi que o CVV seria o locus de minha investigação, fui atrás de todos os
livros que pude encontrar sobre o grupo. Tive acesso a alguns volumes, que em sua maioria se
tratavam de memórias escritas em comemorações de aniversário da entidade e suas filiais.
Através deles, tive meu primeiro contato as narrativas de pessoas que escolheram contar
algumas histórias sobre os Centros de Valorização da Vida.

Em primeiro lugar, essas publicações, encontradas muito mais facilmente em sebos do


que em livrarias, contém memórias (individuais e coletivas) refletidas. Algumas reencenam a
disposição das preocupações, ações e pessoas que fundam os Centros da Valorização da Vida,
outras escolhem explicitar o lugar do CVV na construção coletiva que chamamos hoje de A
História do século XX. Ali estão olhares que, na artesania de suas próprias lembranças,
enunciam os motivos, inspirações e pilares da maneira como o Centro de Valorização da Vida
se vê no mundo. Lê-se uma declaração formatada do caminho comum de voluntárias e
voluntários que oferecem o que eles chamam de calor humano e escuta a pessoas com ideação
suicida. De maneira mais simples, acredito que lá esteja escrito – e não nos esqueçamos de

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todos os processos que existem entre a palavra pensada e a palavra escrita – o que esses
sujeitos têm interesse (e provavelmente orgulho) de lembrar. Olhando para trás, essas
narrativas constroem o esforço de “ligar os pontos” na construção de uma figura maior. Do
presente para o passado, elege-se o que se considera contínuo e relevante na experiência de
cuidar através do CVV.

Cito os principais nódulos discursivos comuns às narrativas as quais tive acesso até o
momento. Primeiramente, os voluntários e voluntárias consideram que o CVV existe em
relação a uma apreensão do estado das coisas. Em uma perspectiva retrospectiva, esses livros
constroem a imagem de uma sociedade que justifica a necessidade da existência do Centro de
Valorização da Vida. Nesse discurso, a entidade representa a resposta para uma carência, o
preenchimento de um espaço vazio. A oferta de calor humano, escuta, compreensão e amizade
– pilares na atitude voluntária como vista pelo CVV – só tem sentido frente a um diagnóstico
que constrói um quadro onde a falta desses elementos representa um problema.

A enunciação da filosofia e missão do Centro de Valorização da Vida exprimem, de


maneira mais ou menos homogeneizada desde a sua criação na década de 1960, uma certa
apreensão do mundo – que, aliás, não é exceção a seu tempo. Solidão, superficialidade e
rigidez nas relações humanas são percepções negativas bem comuns frente as memórias
imediatas da Segunda Guerra Mundial e a vivência em meio à Guerra Fria que marcavam a
época. Não à toa, a maneira pela qual o CVV tem pretendido atuar na prevenção de suicídio
no Brasil é profundamente informada pela psicologia de Carl Rogers (PRUDENTE, 2005).
Seu método de terapia centrada no paciente partia de um entendimento semelhante do mundo
e oferecia o que chamo de um discurso da produção científica de liberdade em condições de
consultório (seu substituto possível para as condições laboratoriais). O protocolo rogeriano –
adaptado de maneira integral pelo CVV – de autenticidade de si, compreensão empática e
busca da “pessoa” por trás da máscara – representa a possibilidade de ajudar o mundo. Para
Rogers e para o Centro de Valorização da Vida, as características desse tipo de “relação de
ajuda” – talvez possamos chamá-la “relação de cuidado” agora – representam um modelo de
conduta ética para a cura da sociedade a partir das relações interpessoais.

Se a relação de cuidado contém no mínimo duas partes, acredito que seja válido
entender de que maneira os livros que contém os relatos de voluntários e voluntárias sobre o
Centro de Valorização da Vida reconhecem a figura da pessoa que necessita de cuidado. Ainda

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que seja uma organização voluntária, o CVV difere da maioria delas por não estar interessado
na promoção de direitos. Sua causa principal não se vê no mundo das leis, desigualdades
sociais ou da justiça. Nesse sentido, coloca-se na contramão do discurso sobre o voluntariado,
solidarismo e cidadania que surge no Brasil dos anos 19903, como retrata Araujo (2008). Não
se trata do cidadão, mas da pessoa.

O modelo de relacionamento adotado pela entidade – segunda enunciação discursiva


que nomeio aqui – se baseia numa espécie de diálogo intersubjetivo que pressupõe a
manutenção contínua das subjetividades individuais. Nessa enunciação, o discurso aloca o
sujeito “fora” (ou “para além”) das estatísticas socioeconômicas ou dos tradicionais perfis
demográficos. Acredito que, na lógica interna desse discurso, ocupações profissionais,
condições de cidadania, status econômico, de gênero ou classe são vistos como barreiras até a
pessoa. A condição para cuidar é despir os indivíduos – tanto aquele oferece, como aquele que
recebe ajuda – dessas facetas que impediriam a “emergência da pessoa” (SANTOS, 2012;
FOCÁSSIO, COCHON e LORENZETTI, 1989).

Essa elaboração do humano carrega consigo a possibilidade a e necessidade de


espelhamento nessa relação de cuidado/ajuda. Há uma reciprocidade necessária no processo.
Dentro das narrativas que representam a construção da filosofia interna do Centro de
Valorização da Vida promover o crescimento, amadurecimento e autoconhecimento do outro
requer que o mesmo se faça para si. Partindo de pontos diferentes, cuidador e receptor do
cuidado crescem juntos. O enriquecimento fruto do que Rogers chama de “compreensão
empática” (compreender com o outro) é um caminho conjunto e comunicativo em direção à
“vida plena”. Acredito que esse seja o argumento para a aplicação universal da diagnose e
cura do mundo dentro do conjunto discursivo construído pelos sujeitos que narraram essa
história do Centro de Valorização da Vida: nesse contexto, cuidar do outro é cuidar de si.

Há ainda uma questão importante que notei lendo as memórias publicadas por
voluntários e voluntárias sobre suas experiências dentro do Centro de Valorização da Vida: a
ambígua presença da religião. O início do CVV é sempre reencenado dessa maneira: alguns

3 É importante lembrar que o envolvimento voluntário com as causas filantrópicas no Brasil existe desde o
século XIX (quando era organizado principalmente em torno da Igreja Católica). Da década de 1940 até
1990 o Estado brasileiro incentivou a causa do voluntariado institucionalizando a Legião Brasileira de
Assistência (LBA). Como mostra Barbosa (2017), tratava-se de uma atividade marcada fortemente pelo
envolvimento feminino, colocando figuras como primeiras-damas da Nação, estados e municípios como
figuras de frente da associação.

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jovens frequentadores da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP), preocupados


com o estado das coisas em seu tempo, se inspiram no trabalho de um reverendo da Igreja
Anglicana do Reino Unido e fundam um serviço de atendimento telefônico de pessoas com
ideação suicida que se chamaria CVV – Samaritanos em sua primeira forma. Contudo, na
artesania dessas narrativas escritas, conforme se caminha pela segunda metade do século XX,
a religiosidade vai deixando de ser mencionada – sem, contudo, deixar de estar presente. Em
algum momento não muito bem delimitado entre os anos 1970 e 1980, o personagem “Centro
de Valorização da Vida” passa por uma mudança: torna-se uma associação a-religiosa e
abandona o que é descrito como salvacionismo. Na lógica interna desse discurso, trata-se de
uma mudança tolerante em busca da pessoa – que poderia estar também escondida atrás da
religião.

Constrói-se assim um discurso laico operado por religiosos. Mesmo as narrativas mais
recentes sobre a trajetória do CVV citam orações que marcam o início dos plantões de
atendimento ou aparições de espíritos durante as madrugadas, ainda que afirmando para si
uma posição de separação frente a religião. A própria figura do bom samaritano, ferramenta
cristã que serve a função de direcionamento moral, persiste até hoje como guia para as ações
dos voluntários e voluntárias. O samaritanismo aqui evidencia não só a orientação religiosa
em vestes laicizadas, mas um tipo específico de disposição espiritual: o norteamento espírita
para a caridade para o altruísmo. A caridade é a condição fundamental para a salvação na
doutrina presente no Livro dos Espírito e n’O Evangelho Segundo o Espiritismo. Acredito,
com isso, que não seria absurdo assumir que a orientação veladamente religiosa do Centro de
Valorização da Vida tem um papel importante no recrutamento de seus contribuidores ou
mesmo na construção coletiva dos conceitos de sua missão e de sua história.

Pesquisas sobre o Centro de Valorização da Vida também foram feitas, principalmente


no sul e sudeste do Brasil. Entre as que mais interagem com a temática deste trabalho estão
investigações como as de Dockhorn (2007), analisou o perfil sociodemográfico dos CVVs de
Porto Alegre, Florianópolis, Blumenau e Novo Hamburgo, encontrando uma maioria de
mulheres (68%), pessoas com ensino superior completo (61%), com renda própria (81%) e
majoritariamente religiosas (90%). O estudo constatou também que quase metade (48%) dos
entrevistados e das entrevistadas já realizaram outras atividades voluntárias. Prudente (2005)
estuda a conexão entre a psicologia de Carl Rogers e o desenvolvimento das atividades do
Centro de Valorização da Vida desde a década de 1960 até os anos 2000 através da análise de

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boletins internos da entidade. Por fim, deve-se mencionar o trabalho etnográfico de Martins
(2015) que compara o Centro de Valorização da Vida ao programa SOS Voz Amiga em
Portugal, entendendo como a laicização das ferramentas de confissão e testemunho contribui
para a construção da validação e gestão do sofrimento, mas também dignificação e cultivo de
si através das modalidades de fala e escuta.

Voluntariado – motivações, estruturas e agências

Não há novidade em afirmar que o trabalho voluntário é marcado pelo cultivo de


valores como o altruísmo e a abnegação de si. É comum que se discuta quais são as
“recompensas” – mesmo que veladas – de esforços no engajamento em torno do voluntariado
– provavelmente é por isso que muitos dos estudos sociológicos sobre o fenômeno o
expliquem a partir da teoria da dádiva maussiana. Além dos valores já citados, o
desenvolvimento pessoal, amadurecimento, formação e autoconhecimento são alguns dos
elementos que tornam, para Meister (2003) e para Cavalcanti (2002), o engajamento da área
uma ação dotada de sentido e de intenção reformadora.

A perspectiva de gênero aplicada às motivações do trabalho voluntário apresenta um


complexo quadro de entendimento do lugar das experiências femininas no terceiro setor.
Albert e Velázquez (1999), por exemplo, afirmam que o grande número de mulheres
envolvidas no voluntário reflete uma reprodução estrutural do lugar feminino no âmbito
doméstico. Para as autoras, a presença da mulher nas atividades voluntárias evidencia uma
soma de dois grandes fatores: a dificuldade da entrada no mercado de trabalho e a
naturalização das responsabilidades do cuidado. Assim, enfrentando dificuldades do
desemprego, as mulheres se voltam para ONGs e associações filantrópicas ou de caridade
num processo de continuação da prática do cuidar atrelada ideologicamente ao feminino. O
cuidado das crianças, idosos, doentes ou desabilitados no ambiente doméstico se expande para
o trabalho humanitário, reforçando o papel social da mulher como cuidadora.

Contudo, se Albert e Velázquez trabalham com um quadro de reprodução estrutural do


lugar da mulher, Martins (2013; 2015) apresenta a possibilidade de uma outra leitura para a
inserção da mulher na filantropia. Tendo em vista as construções discursivas do século XIX
que vinculavam a bondade e a caridade à maternidade e, portanto, à feminilidade, a autora
enxerga no chamado das instituições religiosas e médicas para as mulheres das classes médias

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ocuparem-se de atividades benemerentes uma saída discursiva aproveitada por essas figuras
para se inserirem de maneira moralmente válida no âmbito do público – até então negado
discursivamente à mulher. Num sentido contrário da análise através da noção de reprodução,
aqui a agência feminina está em foco. A feminilidade torna-se uma ferramenta estratégica na
ocupação real de um espaço social localizado apenas na província do masculino.

Como aparece o tema cuidado

Ainda que o termo não apareça com frequência nas publicações ou propagandas do
Centro da Valorização da Vida, haverá problema em delimitarmos as relações de ajuda
oferecidas pelos voluntários e voluntárias que compõem a entidade como formas de cuidar?
Tendo em vista as especificidades das práticas próprias do CVV no atendimento de pessoas
com ideação suicida apresentadas anteriormente, não será difícil pensar o cuidado analisando
as atividades do grupo através da definição conceitual oferecida por Joan Tronto: o cuidado é
um tipo de atividade que tem por objetivo manter, dar continuidade ou reparar o mundo em
que vivemos para que vivamos da melhor forma (TRONTO, 2013). Contudo, é necessário
entender como o conceito e as discussões em torno dele se formaram.

É possível datar relevantes menções às práticas do cuidado nos estudos feministas dos
anos 1970 e 1980. Ali, autoras como Kergoat, Chodorow e Nicholson começavam a incluir
esse conjunto amplo de atividades nas discussões sobre o lugar da mulher nos espaços da
sociedade – fosse na dicotomia das esferas do público e doméstico, ou no ramo da divisão
sexual do trabalho dentro dos âmbitos da produção e reprodução. Nesse contexto, começava a
se formar uma crítica ao marxismo e ao estruturalismo que levava em conta um conjunto de
atividades problematicamente naturalizadas no papel social e biológico da mulher. A
vinculação discursiva do corpo feminino à maternidade lhe garantia (ou condenava) um lugar
moral e sócio-econômico de atenção ao outro, abnegação e carinho essencializados. Assim, a
atenção ao tema do cuidado se inicia como forma de pensar a emancipação feminina.

Contudo, o cuidado ganha pela primeira vez uma robustez conceitual com a análise de
Carol Giligan em In a Different Voice. Psychological Theory and Women’s Development
(publicado originalmente em 1982). O trabalho da área de psicologia do desenvolvimento
moral constrói, com objetivo de alargamento da epistemologia sobre o comportamento
humano, um modelo binário que propõe padrões de conduta para as socializações masculina e

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feminina. A primeira delas seria o que a autora chamou de ética da justiça – baseada em uma
sociabilidade marcada pela autonomia baseada na individuação, impessoalidade de princípios
hierárquicos como forma de resolução de conflitos e dinâmica social que tem o outro como
figura imaginada ou genérica. Por outro lado, a socialização feminina, seria marcada pelo que
a autora chamou de ética do cuidado – conduta baseada principalmente numa lógica da
interconexão e interdependência, na sociabilidade que visa o outro como entidade concreta e
portadora de necessidades específicas que afetam toda a configuração da rede de inter-
relações. Trata-se de uma pesquisa que, numa crítica ao modelo tradicional de
desenvolvimento humano (Freud e Kohlberg, principalmente), garante ao cuidado uma grande
importância para o entendimento das relações humanas tentando compreender o lugar das
mulheres como mais do que a exceção de um conjunto de regras estabelecidas por padrões
masculinos.

Esse mapeamento é então aproveitado por Nel Noddings (1986) em sua investigação
filosófica sobre os arquétipos do cuidado em termos de relações interpessoais –
principalmente interações face-a-face. Partindo da figura feminina que cuida e da figura
masculina que recebe cuidado4, a autora tentou entender como a reciprocidade e o
envolvimento mútuo são necessários para o estabelecimento de uma relação de cuidado. A
consideração de questões como o reconhecimento, a disposição e a aceitação das duas partes
constituintes se torna uma questão importante para pensar uma relação como essa. Assim, a
apreensão da realidade do outro como possibilidade para si, o partilhamento e a imersão –
difícil tradução do termo original engrossment – se tornam fundamentais para uma filosofia
ética que tenha o cuidado como mote de cada relação interpessoal.

A partir das contribuições de Joan Tronto para o debate, sob uma perspectiva da
ciência política, uma nova questão entra em cena. A construção de seu projeto teórico se dá
em resposta direta à reflexões e pressupostos de Noddings para o debate sobre o cuidado
como forma ética de pensar o social e o político. Advogando por cuidado feminista para além
do feminino e aplicando o conceito a uma realidade mais ampla, Tronto propõe visão
democrática do cuidado (1997; 2013). Dessa forma, é possível adereçar as assimetrias sócio-
econômicas e gendrificadas nos discursos sobre o cuidado.

4 É necessário lembrar que, segundo Noddings, os arquétipos masculinos e femininos não são imediatamente
identificados a homens ou mulheres. Trata-se de uma distinção utilizada como ferramenta de análise.

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Uma definição mais ampla como a que foi apresentada no começo desta sessão parte
da ideia de que a vulnerabilidade que leva todos nós a necessitarmos de cuidado em algum
momento de nossas vidas deveria ser um princípio fundamental pelo qual pensamos a
igualdade em nossas sociedades. Uma das constatações principais da análise de Tronto (2013)
é representada dessa forma: a prosperidade sócio-econômica de determinados indivíduos que
reforça um discurso da autonomia e responsabilidade individual pela prosperidade em um
regime neoliberal só é possível pela invisibilidade e rebaixamento dos serviços de cuidado
que possibilitam a vida e os privilégios dessas pessoas (TRONTO, 2013). Assim homens
brancos e pessoas de classes mais abastadas em geral recebem um “passe livre” da
necessidade de cuidar enquanto grupos majoritariamente vulneráveis (mulheres, indivíduos
não-brancos e imigrantes, por exemplo) exercem o cuidado desvalorizado que possibilita o
sucesso do sujeito neoliberal ideologicamente independente. Ao mesmo tempo, uma visão
feminista da prática do cuidar desnaturaliza o binário mulher (cuidadora)/ homem (receptor
do cuidado) e questiona a oposição diametral entre masculinidade e cuidado em nossa
sociedade.

Nesse sentido, Tove Petersen (2012) produz uma crítica muito semelhante a proposta
de Tronto a respeito da politização do cuidado frente a noção de altruísmo envolvida em
algumas de suas práticas. Para as duas autoras, a abnegação – Tronto (2013) utiliza o termo
samaritanismo que, devemos lembrar, é o mote do CVV – torna-se um problema na discussão
politizada e feminista do cuidado, dados os movimentos históricos de essencialização e
construção discursiva do sujeito feminino em torno desse ideal caridoso tão profundamente
ligado à maternidade que naturaliza o local do feminino. Ao mesmo tempo, a ideia da
renúncia representa uma dificuldade para pensar a interação sujeitos políticos com interesses
próprios. Tão importante quanto pensar na possibilidade da ação desinteressada é nos
questionarmos se há espaço validado no discurso comum para o interesse de pessoas
comumente silenciadas.

Se a conexão entre masculinidade e cuidado tem sido, mesmo sob pontos de vista não-
binários, uma questão importante na formulação dos estudos do cuidado, existe ainda um
último autor ao qual farei referência nesta sessão. Niall Hanlon produziu em 2012 um estudo
investigando a relação entre homens, masculinidades e cuidado. Fazendo uso das noções de
masculinidade hegemônica de Connell e da teoria dos campos de Bourdieu, o autor promove
uma explicação sobre como a conexão com o cuidado representa uma queda na posição

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hierárquica entre os modos de ser masculino. Não cabendo na estruturação da masculinidade


hegemônica, o contato com a prática do cuidar, não tem sentido para muitos dos homens
sobre os quais o estudo fala (HANLON, 2012, p. 78). A oposição simbólica entre
masculinidade e trabalho emocional também torna a posição do homem que cuida uma
configuração sem lugar próprio nas províncias binárias socialmente estabelecidas entre o
masculino e o feminino. Esse limite dual é criticado pelo autor por sua simplicidade na
concepção de masculinidade e por reafirmar assimetrias gendrificadas. Em conclusão, afirma
que o envolvimento de homens nas práticas do cuidado é a principal forma de promover uma
desconstrução dessa separação simbólica.

Em minha análise, as teorizações de Hanlon e Tronto oferecem perspectivas contrárias


sobre as definições de cuidado. Se a segunda autora vê problemas em identificar práticas
discursivamente masculinas de proteção e provisão como formas de cuidar – por conta do
exercício de controle do outro historicamente embutido nelas – o primeiro adota uma
definição mais complacente. Hanlon (2012) escolhe levar mais em conta as definições de
cuidado apresentadas por seus entrevistados, evitando problematizá-las como fez Tronto
(2013). Dessa maneira, o lugar teórico do qual Tronto parte – mais amplo e direcionado a
pensar o cuidado para além do feminino e do masculino – representa um propósito diferente
de Hanlon – que escolhe partir de seus entrevistados para se aprofundar nos significados do
cuidado como vistos por aqueles envoltos no sistema de masculinidade hegemônica.

A maneira como apreendo as teorizações desses autores em um diálogo crítico serve


aos propósitos de minha pesquisa. A descrição dos conceitos apresentados envolve não só
modelos aos quais poderemos comparar as dinâmicas do cuidado dentro do Centro de
Valorização da Vida, mas, principalmente, nos propicia entender de que maneira a politização
do cuidado é possível. Nas relações de pequena ou grande escala, assimetrias e dinâmicas de
atração e repelência em relação ao cuidado influem nas experiências individuais, constituem
subjetividades e marcam, muitas vezes de maneira pouco notada, a formação das
subjetividades dos indivíduos. Nesse sentido, são conceitos que propiciam uma visão do
íntimo que não pode se separar do social, pois não se constrói sem ele. O cuidado é uma
forma de entender a relação entre vidas e significados, estejamos falando da atenção e carinho
aos familiares, das discussões parlamentares ou da prevenção de suicídio.

Considerações finais sobre uma metodologia inconcluída

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Por fim, é necessário que dediquemos uma sessão à consideração do lugar da


metodologia na construção dessa investigação. É importante lembrar que o estabelecimento
de uma metodologia não pode ser insensível às impressões do contato empírico e deve ser
mais do que a soma irrefletida de técnicas de análise e coleta de informações. Trata-se de um
movimento crítico de entendimento e utilização contextualizada de formas de conhecer o
social.

Nesse sentido, afirmo, de maneira breve por conta do espaço reduzido, que minha
pesquisa faz uso de um conjunto de técnicas estabelecidas no âmbito qualitativo da pesquisa
social. Para além, considero-a qualitativa não por se basear em uma maneira interpretativa e
subjetiva de conhecer – isso seria reforçar a descorporificação do sujeito do conhecimento
quantitativo “duro” – mas por escolher enunciar e tomar proveito desses fatores como fonte
válida de entendimento de meu objeto e locus de pesquisa. Evitando a armadilha da ciência
clássica apontada por Harding (1993) em tentar produzir um único modelo coerente e
generalizável para dar conta de realidades instáveis ou se basear em formas como as das
ciências físicas e biológicas que pretendem um problemático modo de conhecer falsamente
separado dos valores políticos (Idem, 1996), reconheço a importância de enunciar a forma de
apreensão das noções utilizadas de uma maneira humana – transpassada por posicionamentos
políticos, sentimentos e emoções – com o intuito de construir um conhecimento que não
imponha um sistema teórico abstrato a uma realidade complexa.

O percurso pelo qual buscamos conhecer nosso objeto – definição literal da etimologia
da palavra méthodos – é profundamente informado pela noção de discurso como desenvolvida
por Michel Foucault. Sendo mais do que apenas um conjunto de estruturas verbais ou temas
textuais, a noção de discurso representa o conjunto de enunciados de verdade que informam
as práticas da vida, definindo sujeitos e modos moralmente válidos de ser e ver o mundo.
Embora o discurso defina, conecte a palavra à coisa no mundo, seria um equívoco garantir-lhe
a qualidade de falsa consciência enquanto invenção para o beneficiamento imediato de um
determinado grupo ou camada social específica. Trata-se de um princípio constitutivo das
relações e subjetividades, não de uma ferramenta repressiva. Nas práticas, os discursos se
proliferam indefinidamente (FOUCAULT, 1999, p. 8). Emprestam realidade ao que se
conhece e, por conseguinte, estão ligados à ação cotidiana. Dentro dele as práticas têm
significado e em sua repetição elas o realizam e o transformam. O que é construído no

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conjunto de narrativas de mulheres e homens sobre sua experiência dentro do Centro de


Valorização da Vida é, em uma perspectiva delimitada, um conjunto de discursos sobre uma
forma moralmente válida de cuidar. Especificamente, uma forma verdadeira – portanto,
construída – de cuidar de pessoas com ideação suicida.

Sendo as narrativas dos sujeitos que cuidam voluntariamente através do CVV meu
objeto de pesquisa, neste momento a entrevista narrativa está estabelecida como principal
técnica de acesso a essas pessoas. Muito além do fato de que a metodologia e meu objeto
partilham um termo específico em sua descrição imediata, a escolha dessa forma de captar
informações tem razões mais profundas. Sua principal característica é a não estruturação do
andamento da entrevista a fim de evitar impor direcionamentos à fala dos entrevistados e
entrevistadas – aqui estão incluídos componentes como uso de linguagem específica,
ordenação dos fatos ou mesmo pré-seleção dos tópicos e eventos interessantes. Como
afirmam Bauer e Jovchelovitch (2010), esta é uma técnica indicada para apreender narrativas
– histórias contadas pelas pessoas – que, em retrospectiva, dão sentido ao determinado
conjunto de acontecimentos e sentimentos em cruzamento com contextos sócio-históricos.

A análise de discurso – que vem sendo aplicada aos livros que contém as narrativas de
voluntários e voluntárias citados anteriormente e será também aplicada às transcrições das
entrevistas – representa aqui uma relação com o dado de pesquisa. Meu interesse principal
não será verificar a veracidade dos fatos com quais irei me deparar, mas entender como esses
acontecimentos são retratados. Gil (2010) parte do discurso como prática social, como
estrutura linguística construída pelas relações intersubjetivas das quais emana e que, por estar
inserida nesse conjunto de ações, é sempre retórico – se justifica na sua forma de constituir os
fatos. Num mesmo sentido, Orlandi (2009) oferece uma máxima fundamental para nossa
análise: a de o discurso deve operar entre o dito e o dizível (ORLANDI, 2009, p.32). Assim,
mais importante do que o que é dito, é a maneira como se diz. É nesse exercício coletivo e
subjetivo de “ligar os pontos” na construção de experiências vividas que acredito ser possível
entender a experiência das pessoas que cuidam através do Centro Valorização da Vida.

Por fim, partindo da provisoriedade das formas escolhidas para compreender o


fenômeno estudado, indicamos que ainda estão sendo considerados a soma ou substituição de
metodologias no decorrer da pesquisa. A observação participante, por exemplo, tem se
mostrado uma possibilidade cada vez interessante para o acesso das dinâmicas próprias à

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prática do cuidado e possibilidade de enunciação das relações – intelectiva e afetiva – entre


observador e observado. A constatação mais importante na consideração do processo de
pesquisa é a de que a descoberta interminável de sutilezas e complexidades na relação com o
objeto de pesquisa leva a um processo constante de reconsideração das formas válidas e
necessárias de entender de maneira honesta e justa os significados de um determinado grupo
social

Referências
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Movimentos e epistemologia feministas: um novo olhar sobre a ciência.

Ana Claudia Coutinho da Silva1


Cintia de Souza Batista Tortato2

Resumo: O objetivo desse artigo visa compreender por meio de um resgate histórico do
movimento feminista a adentrada de uma nova ciência no espaço acadêmico e a construção de
um conhecimento científico a partir da perspectiva feminista. Considerando as epistemologias
feministas como uma necessidade advinda dos próprios movimentos feministas. A
metodologia utilizada é por meio de revisão bibliográfica dos trabalhos feitos nas últimas
décadas acerca da trajetória dos movimentos feministas e o processo de ruptura com a ciência
tradicional. Foi através da denúncia da ciência tradicional com o perfil objetivista, sexista e
excludente que as mulheres constroem um novo fazer ciência. Rompendo paradigmas e
trazendo uma nova forma de fazer ciência que (re) constrói a história das mulheres na
sociedade.
Palavras-chaves: Gênero; Epistemologia feminista; Movimentos feministas.

1
Mestranda no curso de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Instituto Federal do Paraná-
campus- Paranaguá. Anacoutinhosociais@gmail.com.
1
Professora Doutora no curso de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Instituto Federal do
Paraná – Campus Paranaguá. Cintia.tortato@ifpr.edu.br.

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Introdução.
Pensar a construção histórica do movimento feminista é trazer à luz as tantas lutas de
mulheres que desde há muito tempo vem travando verdadeiras batalhas dentro e fora de seus
lares para serem ouvidas, respeitadas e consideradas como pessoas de direitos. No que diz
respeito à construção da ciência, além da consideração de sua participação e protagonismo,
muitas mulheres denunciaram a exclusão e ofereceram os elementos que o movimento
feminista, a partir das suas primeiras articulações foi questionando cada vez mais o caráter
sexista da ciência.
O feminismo começa denunciando a ciência objetivista, dicotômica e androcentrica
que estava consolidada. As reflexões feministas questionam, de forma contundente, o modo
dominante de fazer ciência, praticada no masculino e centrada no universo do homem.
Margareth Rago (2003, p.25), ressalta que essa ciência “remete ao branco, heterossexual,
civilizado do primeiro mundo”. Excluindo e colocando a margem todos aqueles que escapam
este modelo de referência.
A construção da critica feminista à ciência, surge no momento de profundas
mudanças e reformulação nos sistemas de pensamento que operavam aquele contexto. A
partir da Segunda Guerra Mundial, o mundo começa a se questionar que tipo de conhecimento
e ciência esta sendo produzido. Ciência para quem e para que?
Conforme aponta Sardenberg (2002), depois desse primeiro momento que foi o
apontar os erros e consequência de uma ciência excludente nasce à necessidade de propor um
novo olhar para a ciência. Nesse sentindo, como Margareth Rago (2000) diz que o aporte
teórico produzido pelos feminismos dentro e fora da academia, foi de extrema importância
para pensar as relações entre epistemologia feminista e a historia das mulheres.
Ainda, segundo a ótica da Francine Descarriés (2000, p.11) a construção das
reflexões e problematizações feitas dentro dos movimentos feministas e das mulheres
apontaram a critica da forma de fazer ciência, que até então eram hegemônica, e direcionaram
para uma produção de epistemologia própria, construída pelas e para as mulheres. “Proposto
para pensar e dizer as mulheres; como interrogação sobre a condição e suas posições na
historia”.
Dessa maneira, é possível construir de forma dialética a importância dos movimentos
feministas para a conquista do espaço dentro da academia, que possibilitou recontar a história
das mulheres, abrindo caminho para o debate acerca das demandas e conquistas dos
feminismos. O conceito de feminismo aqui utilizado, como define Vera Soares (1995), parte
do princípio de que o feminismo é uma ação política das mulheres, que interliga teoria, prática

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e ética para tornar as mulheres, sujeitos históricos da transformação de sua própria condição
social e do mundo em que vivem.
Assim, a proposta deste trabalho está em compreender por meio de um resgate
histórico do movimento feminista a adentrada dessa nova ciência no espaço acadêmico e a
construção de um conhecimento científico a partir da perspectiva feminista. Considerando as
epistemologias feministas como uma necessidade advinda dos próprios movimentos
feministas.

2 Marco histórico do movimento feminista.

Conforme Cynthia Sarti (2004) aponta, o feminismo enquanto movimento social é


essencialmente moderno, pois surge no contexto iluminista e das ideias transformadoras da
Revolução Francesa e Americana que se espalham, em um primeiro momento, em torno das
demandas por direitos sociais e políticos. Mobilizou mulheres de muitos países da Europa,
dos Estados Unidos e, posteriormente, de alguns países da América Latina, tendo seu auge na
luta sufragista no fim do século XIX e início do século XX.
Na revolução Francesa, no século XVIII, já era possível identificar mulheres que de
forma mais ou menos organizada lutaram por seus direitos à cidadania, buscando um
reconhecimento que não fosse somente dentro de suas casas como mães e esposas. O primeiro
grande movimento, que começou a se tornar mais visível na segunda metade do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX, foi o chamado movimento sufragista, a luta e campanha
pelos direitos políticos das mulheres de votarem e serem votadas. (CELI PINTO, 2003). O
movimento sufragista se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos, construindo assim a
primeira vaga de feminismo organizado no mundo, ou que é chamado de primeira onda do
feminismo.
No Brasil não foi diferente e a primeira fase do feminismo teve como foco a luta das
mulheres pelos direitos políticos. Esta luta esteve associada diretamente ao nome de Bertha
Lutz3 que durante a década de 1920, exerceu uma inegável liderança entre as mulheres.
Porém, no Brasil, segundo Celi Pinto (2003), não houve uma organização imediata como na
Europa. Nessa fase do movimento sufragista aqui no Brasil, o feminismo esteve intimamente
associado a personalidades. Mesmo quando apresentou algum grau de organização, estava
3
Liderança feminista importante na década de 1920. Formada em Biologia em Paris na Universidade de
Sorbonne, quando retorna ao Brasil se torna a segunda mulher a exercer um cargo público através de concurso
no Museu Nacional. Em 1934 se forma em Direito. Junto com outras mulheres em 1919 fundou a Liga para
Emancipação Intelectual da Mulher, que mais tarde veio a chamar Federal Brasileira Pelo Progresso Feminino -
FBPF.

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ligado ao esforço pessoal de alguma mulher que, por sua excepcionalidade, na maioria das
vezes intelectual, rompia com os papéis estabelecidos pela sociedade e se colocava no mundo
público, na defesa de novos direitos para as mulheres.
Em busca da cidadania, surgiram então, diversas manifestações do movimento
feminista, no início do século XX. Duas tendências, que tiveram grande significado na época
foram identificadas. A primeira tendência teve como foco o movimento sufragista liderado
por Bertha Lutz. Celi Pinto (2003, p.26) chama este momento de feminismo “bem
comportado”, pois existia um caráter conservador, que não questionava a opressão da mulher.
A luta pela conquista das mulheres à cidadania, não se caracterizava pelo desejo de
alteração das relações de gênero, mas como um complemento para o bom funcionamento da
sociedade, ou seja, “sem mexer com a posição do homem, as mulheres lutavam para ser
incluídas como cidadãs. Esta parece ser a face bem-comportada do feminismo brasileiro do
período” (CELI PINTO, 2003, p. 15).
A segunda tendência do feminismo no Brasil, Celi Pinto (2003, p.38) caracteriza de
feminismo “mal comportado”. Essa vertente reuniu uma gama heterogênea de mulheres, na
grande maioria mulheres intelectuais, professoras, jornalistas, escritoras, que, buscavam além
da participação política, defendiam também o direito à educação e falavam em dominação
masculina. Elas começavam a abordar temas, que para a época eram delicados e considerados
tabus, como por exemplo, a sexualidade e o divórcio.
A terceira vertente que a autora Celi Pinto (2003), chama de o menos comportado dos
feminismos, se manifesta especificamente no movimento anarquista e no Partido Comunista,
tendo como precursora Maria Lacerda de Moura.
Nesse contexto do início do século XX em que essas três grandes vertentes estavam
sendo vivenciadas por múltiplas mulheres e movimentos distintos, foi fundado o Partido
Republicano Feminino, em 1910, diante da conformação com a não aprovação do voto
feminino pela Constituinte. Merece atenção esse fato, porque como aponta Eva Blay (2003),
se trata de uma ruptura, pela razão de ser um partido político composto por pessoas que não
tinham direitos políticos, cuja atuação teria que ocorrer fora da ordem estabelecida.
Entre o fim da década de 1930 e meados da década de 1940 também existiram, outras
manifestações de mulheres. Como o movimento libertário anarquista, que era constituído por
mulheres operárias e intelectuais de esquerda. As manifestações mais radicalmente feministas
parecem surgir aqui, no sentido de uma clara identificação da condição explorada da mulher
como decorrência das relações de gênero (CONSTÂNCIA DUARTE 2003).

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Essa primeira fase do feminismo brasileiro, segundo Celi Pinto (2003, p. 38), era a luta
pela cidadania em seu nível mais básico, porém acaba se dividido entre o “feminismo
comportado e mal comportado”. O primeiro não afronta os poderes, mas busca apoio neles. O
segundo era de enfrentamentos, expressando em passeatas, no confronto com a justiça e nas
atividades de mulheres livres pensadoras que criavam jornais e escreviam livros e peças de
teatro. Trazia para a discussão o mundo do trabalho, que era bem distante das preocupações
das feministas de elite.
A segunda onda do feminismo, que desabrochou nas décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos e na Europa, está entrelaçada com toda a efervescência política e cultural que
estava ocorrendo. Na Europa, o mito que caiu por terra, era o sonho da revolução socialista
liderada por uma vanguarda representada pelos partidos comunistas. Conforme Margareth
Rago (1996) o movimento hippie, nos Estados Unidos, e o maio de 1968, em Paris, foram às
expressões mais fortes de uma nova era, nascida após a Segunda Guerra Mundial.
Esse novo movimento que surgiu não trazia somente inovação, mas também tinha
caráter revolucionário, pois colocavam em xeque os valores tradicionais e conservadores da
organização social. Eram as relações de poder e hierarquia nos âmbitos público e privado que
estavam sendo desafiadas. Foi nesse contexto que nasceu o novo feminismo no mundo
ocidental, chamado de segunda onda (LIA ZANOTTA, 2016).
A luta então era em torno de que o “pessoal é político", de acordo com Carole
Pateman (1996, p.46), não somente como uma bandeira de luta mobilizadora, mas também
como um questionamento profundo dos parâmetros conceituais do político. Ao afirmar que o
“pessoal é político”, o feminismo trazia para o espaço da discussão política, as questões até
então vistas e tratadas como específicas do privado (violência domésticas, relações familiares,
aborto, cuidados com os filhos, divisão das tarefas domésticas) quebrando a dicotomia
existente entre o público e o privado, base de todo o pensamento liberal sobre as
especificidades da política e do poder político.
Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e as suas
instituições, a economia e a tudo mais identificado com o político. Já o privado se relaciona
com a vida doméstica, familiar e sexual, identificando-se como o pessoal, alheio à política.
Como aponta Carole Pateman:
[...] chamou a atenção das mulheres sobre a maneira como somos levadas a
contemplar a vida social em termos pessoais, como se tratasse de uma
questão de capacidade ou de sorte individual [...] as feministas fizeram finca-
pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão estruturadas por fatores
públicos, por leis sobre a violação e o aborto, pelo status de esposa, por
políticas relativas ao cuidado das crianças, pela definição de subsídios

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próprios do estado de bem-estar e pela divisão sexual do trabalho no lar e


fora dele. Portanto, os problemas pessoais só podem ser resolvidos através
dos meios e das ações políticas (PATEMAN, 1996, p. 47).

Porém, o cenário no Brasil era outro. O golpe Militar de 1964 inaugurou os longos
anos de um regime marcado por cassação de direitos políticos, censura prisões arbitrárias,
tortura e exílio. O segundo momento do feminismo no Brasil, teria nascido durante esse clima
político do regime militar, no início dos anos 1970. Conforme aponta Cynthia Sarti:

[...] embora influenciado pelas experiências europeias e norte-americana, o


início do feminismo brasileiro dos anos 1970 foi significativamente marcado
pela contestação à ordem política instituída no país, desde o golpe milita de
1964. Uma parte expressiva dos grupos feministas estava articulada a
organizações de influência marxista, clandestinas à época, e fortemente
comprometida com a oposição à ditadura militar, o que imprimiu ao
movimento características próprias (SARTI, 2004, p.36).

E, neste sentido a década de setenta os formatos dos movimentos são múltiplos,


através de diversos tipos de grupos, se articulavam às mulheres de movimentos populares,
sindicais, partidárias de esquerda e grupos de SOS para mulheres que sofriam violência. O
contexto político brasileiro, na década de setenta exige dos movimentos feministas, a luta pela
democracia e pela anistia. Diferente do contexto dos movimentos que eclodiam na Franca e
nos Estados Unidos (LIA ZANOTTA, 2016).
Esta segunda onda caracterizou-se, no Brasil, como uma resistência contra a ditadura
militar e, por outro lado, como uma luta contra a hegemonia masculina, a violência sexual e
pelo direito ao exercício do prazer. Margareth Rago (2003, p.02) ressalta que a grande maioria
das feministas, nesta época, esteve envolvida ou foi simpatizante da luta contra a ditadura no
País. Muitas delas foram presas, perseguidas e exiladas pelo regime. “A contrapartida à
violenta ditadura militar foi à explosão de uma vigorosa cultura da resistência”.
O Ano Internacional da Mulher em 1975, decretado pela Organização das Nações
Unidas (ONU), foi um marco da mobilização de mulheres no mundo. Ainda existiam a forte
censura e a repressão política, embora já houvesse passado o que é considerado o pior período
depois do golpe militar. Nesse mesmo ano, muitos eventos de natureza e abrangência
diferenciada marcaram a entrada definitiva das mulheres e de suas questões na esfera pública.
(LIA ZANOTTA, 2016).
Com a volta de muitas mulheres exiladas, no começo dos anos 1980, a corrente
feminista se fortalece no movimento de mulheres brasileiras. Essas exiladas trouxeram com
elas, a influência dos movimentos feministas atuantes na Europa. Esse momento acabou por

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fortalecer a sociedade brasileira em vários aspectos, uma vez que muitos grupos criaram
organizações em vários espaços da sociedade brasileira, tanto dentro do espaço acadêmico
como e Organizações Não Governamentais (ONGs) e buscaram influenciar as políticas
públicas em áreas especificas, como em relação à questão da violência doméstica e da saúde,
utilizando os canais institucionais. (CELI PINTO, 2003).

2.1 A conquista do espaço acadêmico.


Os estudos acadêmicos sobre a mulher no Brasil, com a perspectiva de transformação
da condição feminina, segundo Celi Pinto (2003), têm início nos 1960, com o trabalho
pioneiro de Heleieth Saffioti4, intitulado “A mulher na sociedade de classes: Mito e
realidades”. É nesse período da década de 1960, que as mulheres brasileiras começaram a
transcender seu cotidiano doméstico, fazendo despontar um novo sujeito social: mulheres
anuladas emergiram como inteiras e múltiplas.
Surge neste contexto, a necessidade de propor novas maneiras de pensar a cultura e o
conhecimento. Nesse sentido, os estudos feministas têm como fundamento questionar os
paradigmas das ciências e as definições tradicionais e objetivistas da sociedade. Para Guacira
Louro (1997, p.154), “os desafios da pesquisa feminista são fundamentalmente desafios
epistemológicos”, pois teria como norte discutir quem pode conhecer, que áreas, que
domínios da vida podem ser objetos de conhecimento, que tipo de pergunta deve ser feita.
Dessa maneira, segundo a autora, a subversão da epistemologia feminista, foi
responsável por uma transformação no modo de construção, nos domínios do conhecimento.

Isso ocorre fundamentalmente porque ele [o feminismo] redefine o político,


ampliando os seus limites, transformando seu sentido, sugerindo mudanças
na sua “natureza”. Se o “pessoal é político” [...] então se compreenderá de
um modo novo as relações entre a subjetividade e a sociedade, entre os
sujeitos e as instituições sociais. “E a recíproca também pode ser aplicada,
pois “o político também é pessoal” nossas experiências e práticas individuais
não apenas são construídas no e pelo social, mas constituem o social”. Isso
permitiu que “se observassem vínculos de poder antes desprezados”
(LOURO, 1997, p. 148-149).

4
Graduou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo
(USP) em 1960. Suas primeiras pesquisas sobre a condição feminina datam desta década. Defende sua tese em
1967, na faculdade de Filosofia, ciências e Letras de Araquara (UNESP). Sendo orientada pelo professor
Florestan Fernandes. Esta tese foi publicada pela Editora Vozes, em 1976 com o título de “A Mulher na
Sociedade de Classes: Mito e Realidade”. Sendo uma das contribuições mais importantes para os estudos
acadêmicos acerca da mulher no Brasil.

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O compromisso com a transformação social e a afirmação das mulheres como sujeitos


políticos, históricos e sujeitos do conhecimento, marca os estudos feministas. Desta maneira,
a construção de uma produção teórica útil a pratica política feminista é fundamental.
Afinal durante séculos a história da mulher na sociedade foi apagada, Margaret Rago
(1996) levanta algumas questões: é possível existir uma maneira feminina de escrever e fazer
história? É necessário reavivar o passado dessas mulheres?

Ter um passado e uma história é uma necessidade dos vivos e, como diria
Pierre Nora, traduz o profundo mal-estar do homem contemporâneo diante
dos fenômenos de desenraizamento, de desterritorialização, de perda das
referências tradicionais que organizavam sua vida. Nesse contexto, o
passado é necessário para garantir a construção de nossa identidade,
fundando nossas tradições, enraizando-as no tempo e no espaço, definindo
nossas raízes. Uma referência histórica, uma garantia psicológica e um porto
seguro emocional, a partir da construção de uma linha de continuidade, que
nos localizaram no tempo (RAGO, 1996, p. 14).

Dessa forma, a autora ressalta que não só é possível escrever uma história com o olhar
feminista como é necessário fazer. O feminismo acaba por colocar o dedo nessa ferida,
pressionando o passado para ser visto e revisto, exigindo novas explicações, buscando os
arquivos para passar a história a limpo, pois as mulheres foram e ainda são esquecidas não só
em suas reivindicações, em suas lutas, em seus direitos, mas em suas ações.
As mulheres durante muito tempo foram suprimidas da história, foram alocadas na
figura da passividade, sendo caladas, e sendo desvalorizadas, ficando nas sombras da esfera
do privado. O feminismo, então, aponta para a crítica da grande narrativa da história,
mostrando o poder que sustenta as redes discursivas universalizastes. Nas palavras de
Maragareth Rago (1996):

Insatisfeitas, e por influência mesma do feminismo, fomos mais longe ainda:


perguntamos pelo que os homens cultos haviam falado sobre nós. Como nos
construíram? O que disseram de nosso corpo, de nossa sexualidade e sobre
nossas ancestrais? Como nos representam, ou melhor, como nos inventam na
literatura, nas artes e nos discursos científicos? Os resultados foram
diversificados, mas convergentes enquanto denúncia da dominação sexista,
ideológica e cultural (RAGO, 1996, p. 16).

Portanto, há uma denúncia ao conservadorismo e a misoginia do pensamento científico


do século XIX e meados do século XX ao construir uma determinada referência de
feminilidade e um ideal de identidade feminina. É nesse processo que o feminismo causa um
grande impacto na academia e na produção científica, ganhando espaço e abrindo campo para

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estudos sobre as mulheres, o universo feminino, a cultura feminina, as relações entre os


sexos/gêneros. E com isso, o próprio feminismo foi colocado como tema, como objeto
histórico: suas origens, seus movimentos, suas lideres e mentoras, suas produções, seus temas
e suas conquistas (CECILIA SARDENBERG, 2002).
É nesse processo de transformação, que se abre espaço para a revolução científica.
Thomas Kuhn (1997, p.125) ressalta que “As revoluções científicas são aqueles episódios de
desenvolvimento não cumulativos nos quais um paradigma mais antigo é total ou
parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior”. Portanto essa crise trás
mudanças de paradigmas, uma mudança na forma de ver o mundo e redefinindo as teorias na
ciencia, possibilitando a revolução científica e novas descobertas científicas.
Assim, o reconhecimento da questão feminina como pauta feminista só emerge na luta
e na crítica feminista contemporânea. Boaventura dos Santos (1989, p.48), denomina esse
período como “transição paradigmática”. É a passagem dos paradgimas da ciência objetivista,
que separa a natureza e cultura, de discurso de construção científica neutra para um novo tipo
de ciência que vai buscar superar esses conceitos.
Há então, a necessidade de formulações teóricas que pudessem explicar a condição de
subordinação das mulheres em relação aos homens na sociedade. Segundo Lia Z. Machado
(1997), a constituição desses estudos no campo intelectual foi primordial no interior dos
movimentos feministas:

A necessidade da constituição de um novo olhar teórico aos poucos


reivindicou espaços próprios, como a criação de revistas feministas de
caráter prioritariamente teórico, e a constituição de grupos de estudos,
pesquisas e elaboração teórica junto a instituições universitárias e de
pesquisa (MACHADO,1997, p.94).

No início este novo olhar teórico, ou seja, os esforços da teoria feminista segundo a
análise de Sandra Harding (1993) eram de “reinterpretar as categorias de diversos discursos
teóricos de modo a tornar as atividades e relações das mulheres analiticamente visíveis no
âmbito das diferentes tradições intelectuais” (HARDING, 1993, p. 07). Pois, se a natureza e
as atividades das mulheres são tão sociais quanto às dos homens, o discurso teórico deveria
revelar com clareza e detalhar essas construções.
Como afirma Lia Machado (1997, p.107), a perspectiva feminista gera uma nova
forma de pensar e fazer ciência, “trata-se da introdução de um olhar situado na produção do
saber”. O que seria esse novo fazer ciência? A epistemologia, significa o discurso sobre a
ciência.

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Segundo Helen E. Longino (2008, p.505), a epistemologia é “um campo de pesquisa


que investiga o significado das afirmações e atribuições do conhecimento, as condições e
posssibilidade do conhecimento, a natureza da verdade e da justificação”. Epistemologia se
define pela reconstrução racional do conhecimento científico do ponto de vista lógico,
liguístico, sociológico, interdisplinar, político, filosófico e histórico.
A historiadora Margaret Rago (1998, p.23), ressalta que o feminsimo não só constrói
uma “epistemologia feminista como também apresenta um projeto feminista de ciência”. O
feminismo não só aponta uma crítica ao modo dominante, sexista, excluedente de produção da
ciencia, como tambem propõe um modo alternativo de produzir o conhecimeto científico.
Ainda , segundo a critica da autora, as mulheres teria uma experiência histórica e
cultural particular e diferente da masculina. Experiência essa que está classificada como das
margens, da contrapartida. Que busca uma nova linguagem, e na produção de um
contradiscurso da hegemonia da produção cientifica. Porém esse caminho não foi e nem é
fácil, encontrando diversos obstaculos e rejeição dentro desse espaço hegemônico e
dominante que é a academia científica.
Ao mesmo tempo, Maragareth Rago (1996, p.12), enfatiza que não podemos atribuir
todas as mudanças positivas e negativas ao feminismo, seria ingenuidade afirmar que todas as
teorias feministas rompem absolutamente com a forma dominante de se produzir
conhecimento científico, assim como ocorre rupturas, há também continuidade em relação à
“tradição científica”.
Porém, também não se pode simplesmente ignorar um movimento social, político e
intelectual que teve um profundo impacto na sociedade brasileira e no mundo, de modo geral.
O feminismo ao questionar a organização sexual, social, política, econômica e cultural de um
mundo profundamente hierárquico, autoritário, masculino, branco e excludente adquire uma
importância incontestável (RAGO, 1998).
Desta forma, a retomada da problemática feminista como questão intelectual, aponta a
ciência, como um fenômeno social resultante de processos históricos. Esse processo foi
importante para a denúncia da presença marcante da “invisibilidade da mulher”, na história da
ciência. Cecília Sardenberg (2014, p.37) ressalta que um dos principais objetivos do
desenvolvimento do campo feminista acadêmico, é a denúncia da invisibilidade da mulher e a
necessidade de preencher as lacunas na literatura e na história para reconstruir a identidade da
feminina longe do discurso biologizante.
Nesse sentido, é primordial construir um marco teórico da pesquisa sobre os estudos
de gênero enfatizando a relação entre os movimentos feministas e o Estado. Claudia Costa

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(1998), em seu trabalho intitulado O tráfico de gênero, ressalta que o feminismo é construído
em um amplo discurso diverso sobre as relações de poder.
Portanto, ao levantar questionamentos a partir de diferentes sujeitos, a epistemologia
feminista questiona as relações de poder estabelecidas entorno das questões sociais e isso
inclui o próprio “fazer ciência”. Segundo Diana Maffia (2007, p 113), a construção da
epistemologia feminista mais consistente encontra-se na ligação entre “conhecimento” e
“poder”. Isso ocorre, pois a um reconhecimento da legitimação do conhecimento interligado
as redes de dominação e exclusão.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito do artigo é trazer a luz sobre a importância do movimento feminista para a


construção dessa nova ciência. Dialogar com as autoras feministas, como forma de reafirma
que não é possível construir uma epistemologia feminista que não esteja alinhada com o
movimento social feminista.
A crítica feminista tem avançado no sentido de sair da denuncia da exclusão e
inviabilidade das mulheres no mundo científico, para construir os próprios questionamentos e
pressupostos de uma nova ciência. Temos ampliado os debates e aprofundado cada vez mais a
produção de uma ciência que não seja androcentrica.
O desafio é pensar o que torna um saber especificamente feminista? Para uma ciência
feminista a denuncia e o combate de uma ciência androcentrica, não basta. Neste sentindo,
apresenta-se a necessidade de produzir saberes e conhecimentos que não sejam apenas sobre
ou por mulheres, mas que tenham relevância para as mulheres. Esse seria o maior objetivo do
projeto feminista na ciência, é mostrar os avanços registrados e também os desafios para se
construir um projeto político e cientifico feminista.
Transformar os movimentos feministas em objeto de estudo acadêmico não só foi uma
conquista como é necessário para afirmar a importância da mulher em todos os espaços
sociais. Construir a relação dos movimentos sociais feministas com a conquista do espaço
acadêmico, para construção de uma ciência que aponta o dedo para a velha forma de se fazer
ciência, repleta de preconceitos e sexista, é a tarefa primordial para a epistemologia feminista.
A conquista desse espaço, no meio científico foi e é uma luta árdua, e ainda distante
de acabar. Entrelaçar a pratica feminista ao conhecimento elaborado dentro do espaço

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acadêmico, se torna um projeto político. É trazer à luz, aquilo que é oculto e subjetivo, ou
recluso no privado. Tornando questões individuais para uma perspectiva coletiva.
Por tanto, quando se define feminismo como uma ação política que interliga teoria,
pratica e ética como meio para tornar as mulheres sujeitos históricos do mundo em que vivem,
reafirma-se a ideia que a pesquisa feminista tem como norte a construção de uma
epistemologia. Pois os estudos feministas têm como fundamento questionar os paradigmas
das ciências, discutir quem pode conhecer que tipo de perguntas deve ser feitas. .As ciências
construídas pelas mulheres feministas buscam uma nova linguagem e a produção de um
contradiscurso da hegemonia dominante da produção cientifica.

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Feminismos do Terceiro Mundo e as vozes silenciadas: a realidade das mulheres


camponesas do Oeste de SC

Jocieli Decol1

Resumo: O objetivo principal deste estudo é analisar o contexto de violência de gênero na


agricultura familiar no Oeste de Santa Catarina e elucidar a atuação das mulheres para
superar essa opressão. Por meio do arcabouço teórico do feminismo terceiro mundista e dos
relatos das mulheres que vivem na região, documentados n​a reportagem especial “Sozinhas:
Histórias de mulheres que sofrem violência no campo” (desenvolvida pelo jornal Diário
Catarinense), buscamos elucidar a luta dessas mulheres e apresentar possíveis caminhos para
a superação da violência de gênero na região. ​A pesquisa caracteriza-se como exploratória e
descritiva, em que utiliza-se de métodos qualitativos, essencialmente a pesquisa bibliográfica,
incluindo também os relatos apresentados na reportagem citada acima.

Palavras-chave: Feminismos do Terceiro Mundo, violência de gênero, opressão, mulheres


camponesas, oeste de Santa Catarina.

Introdução

Nos últimos anos os debates sobre gênero e violência contra as mulheres têm se
expandido e alcançado espaço na mídia, nas rodas de conversa, nas redes sociais. No entanto,
os números das violências e mortes de mulheres no Brasil também vêm crescendo, e mais do
que nunca precisamos encontrar alternativas para superar essa realidade. O movimento
feminista ocidental dominante, que incorpora a luta pela igualdade de gênero e o fim da
opressão patriarcal, muitas vezes deixou de lado em suas análises muitos fatores que
envolvem as realidades das mulheres no Terceiro Mundo2, na periferia do sistema

1
​Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO); Graduada em Relações Internacionais (UFSM) e
cursando especialização em Epistemologias do Sul pela CLACSO; E-mail: jocidecol08@gmail.com

2
Atualmente, a configuração dos Não-Alinhados de Bandung, que possibilitou a criação do conceito de Terceiro
Mundo não existe mais, porém “a cartografia imaginária que justificou o Terceiro Mundo ainda existe”
(GROVOGUI, 2011, p. 178). E, por isso, o conceito de Sul Global, que passa a ser mais utilizado, “capta o
espírito engajado do Terceiro Mundo e continua nos convidando para um reexame dos fundamentos intelectuais,
políticos e morais do sistema internacional”(GROVOGUI, 2011, p. 175). Este convite é feito também pelo

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internacional. Observando esse déficit e criticando o caráter universalista e eurocêntrico da
abordagem ocidental, surgem os feminismos do Terceiro Mundo, os quais procuram a
inclusão das diferenças e a ampliação do conceito de “mulher” homogêneo para “mulheres”
diverso. Por meio das reflexões construídas pelas feministas periféricas apresentamos neste
estudo a realidade das mulheres camponesas do Oeste de SC e sua agência frente às múltiplas
opressões que sofrem diariamente. Para tanto, o artigo será dividido em duas sessões. Na
primeira serão apresentadas as principais contribuições dos feminismos periféricos/terceiro
mundistas para compreendermos a realidade das mulheres que se encontram nesse espaço
geopolítico. Na segunda sessão serão apresentados os dados referentes à violência contra as
mulheres no Brasil, e mais especificamente, no estado de Santa Catarina. Nessa parte também
trazemos à tona trechos de depoimentos de mulheres vítimas de violência de gênero na
região, os principais fatores que constroem essa realidade, e as formas de agência encontradas
por essas mulheres para superar a opressão no campo.

Feminismos do Terceiro Mundo: a necessidade de um pensamento interseccional

O movimento feminista se constrói a partir da luta das mulheres desde o século XIX
pela igualdade entre os gêneros. Para alcançar esse objetivo o movimento almeja a dissolução
da estrutura machista, sexista e patriarcal sobre a qual se mantém nossa sociedade. Porém, o
feminismo que pretende falar pelas “mulheres”, na maioria das vezes contemplou apenas a
fala de mulheres brancas, ocidentais e socialmente abastadas. O surgimento do movimento
feminista não ocorre a partir das maiores vítimas da sua opressão: as mulheres negras,
pobres, periféricas. Essas vozes têm conseguido pouco ou nenhum espaço dentro desse
discurso, elaborado majoritariamente por mulheres brancas, ocidentais e acadêmicas (bell
hooks, 2010). Para responder a esse movimento surgem os feminismos do terceiro mundo, os
quais objetivam chamar a atenção para as diferenças dentro do unidade analítica “mulheres”.
A ideia de Terceiro Mundo apresentada aqui refere-se aos países que sofreram e
sofrem com os impactos da colonização, que tiveram suas estruturas sociais, econômicas e

conceito de periferia, que, elaborado por autores da Teoria do Sistema Mundo e da Teoria da Dependência,
chama atenção para o caráter hierárquico e desigual do Sistema Internacional. Para os fins deste estudo os
termos Sul Global, Terceiro Mundo, e Periferia serão utilizados como sinônimos. Considerou-se necessária a
utilização destes, uma vez que, são os conceitos que possuem maior alcance no âmbito acadêmico e foram os
que trouxeram visibilidade à discussão sobre a parte menos privilegiada do globo.

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políticas deformadas por esse processo. Em termos geográficos, portanto, estão inclusos
América Latina, Caribe, África, sul e sudeste da Ásia, China e Oceania. Mas, também são
consideradas parte do Terceiro Mundo latinxs 3, indígenas, negrxs, asiáticxs que estão na
Europa, EUA e Austrália (MOHANTY, 1991). As interconexões entre a localidade periférica
e as estruturas de opressão têm impactado profundamente a realidade do Terceiro Mundo.
Machismo, eurocentrismo, racismo e muitas outras formas de opressão marcam o dia-a-dia
dessas pessoas, especialmente as mulheres. Nesse sentido, o conceito de Terceiro Mundo “é
também uma forma de auto-empoderamento” (MOHANTY, 1991, p-.) uma vez que
reconhece as ligações entre localidade, identidade e opressão e busca formas de superá-las. O
feminismo ocidental dominante, no entanto, não incorporou inúmeras variáveis que compõem
a realidade e a subjetividade das mulheres periféricas, compreendendo-as de forma
homogênea e colonial. É com o surgimento dos feminismos do terceiro mundo/periféricos
que a visão universalista do feminismo ocidental passou a ser questionada devido ao “seu
universalismo, etnocentrismo, anglo-eurocentrismo, branqueamento e pela negligência de
questões coloniais e raciais que atravessam etnias, nacionalidades e geografias”
(BALLESTRIN, 2017, p. 1040). O grito dos feminismos do terceiro mundo é pelo
reconhecimento das diferenças e da complexidade que o termo “mulheres” envolve. Uma vez
que estas se constroem como sujeitos “através de uma complicada interação entre classe,
cultura, religião e outras instituições” (MOHANTY, 1984, p.-) ou seja, “ não são “mulheres -
um grupo coerente -” (MOHANTY, 1984, p.-). Compreender a interação e, na maioria das
vezes, a sobreposição de opressões é questão chave aos feminismos periféricos. Isso porque,
uma mulher negra e pobre, por exemplo, não sofre apenas o machismo devido ao seu gênero,
mas também racismo pela sua cor, e preconceito devido a sua classe social. Desse modo, a
4
interseccionalidade (hooks; CRENSHAW), negligenciada pelo feminismo ocidental, é
essencial para entendermos as realidades do terceiro mundo.

3
Compreendendo que a linguagem e a escrita também são reflexos das estruturas de poder que envolvem a
sociedade, a escrita utilizando o masculino como expressão de plural e neutralidade carrega o machismo que
impera socialmente. Por isso, a autora optou pelo uso do x como forma de chamar atenção para este fato e
provocar reflexões acerca do poder opressor da linguagem.
4
“A intersecionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com
grupos sobrepostos. Assim, ao sobrepormos o grupo das mulheres com o das pessoas negras, o das pessoas
pobres e também o das mulheres que sofrem discriminação por conta da sua idade ou por serem portadoras de
alguma deficiência, vemos que as que se encontram no centro – e acredito que isso não ocorre por acaso – são as
mulheres de pele mais escura e também as que tendem a ser as mais excluídas das práticas tradicionais de
direitos civis e humanos” (CRENSHAW, 2004, p. 10).

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No arcabouço amplo de Feminismos do Terceiro Mundo ou Periféricos incluímos aqui
diversos movimentos feministas: feminismo negro, feminismo lésbico, ecofeminismo,
feminismo pós-colonial e decolonial, feminismo indígena, feminismo chicano, entre outros 5.
Mesmo apresentando enfoques teóricos e metodológicos distintos, esses movimentos são
localizados em um espaço geopolítico comum (Terceiro Mundo/periferia). Além disso,
denunciam o etnocentrismo do feminismo ocidental elucidando “experiências de mulheres
excluídas e impulsionando por várias frentes para que o projeto intelectual e político do
feminismo seja descolonializado, democratizado e consiga criar as alianças necessárias para
apoiar processos transformadores " (SUAREZ;HERNANDEZ, 2008, p. -). Segundo Chandra
Mohanty (1991), uma das principais autoras desse movimento, os escritos feministas
periféricos enfatizam 1) o entendimento da simultaneidade de opressões como essencial para
compreender as experiências das mulheres no Terceiro Mundo; 2) o crucial papel do Estado
na vida cotidiana dos povos periféricos; 3) a importância da escrita e da memória na
construção de uma agência opositiva; 4) as distintas organizações, entendimentos,
contradições e subjetividades que compõem a complexidade das mulheres no Terceiro
Mundo (MOHANTY, 1991). Sendo assim, os feminismos do terceiro mundo argumentam
que o núcleo do movimento colonialista do feminismo ocidental com relação às mulheres do
terceiro mundo está na suposição de que essas mulheres formam um grupo homogêneo. Essa
categoria analítica trata a todas as mulheres como iguais, sem levar em consideração
diferenças de classe, raça, sexualidade, entre outras. Analisam “a mulher” do terceiro mundo,
e não “as mulheres”, em suas múltiplas diferenciações. Essa mulher vista pelo ocidente “leva
uma vida essencialmente limitada devido ao seu gênero feminino (leia-se sexualmente
constrangida) e seu pertencimento ao terceiro mundo (leia-se ignorante, pobre, sem educação,

5
“​Entre otras muchas posibles adscripciones, de manera más concreta, pertenecerían a esta genealogía feminista
propuestas como el Feminismo del Tercer Mundo o “The Third World Feminism” (Mohanty, 2008 [1984]12 y
2008 [2003]) y su denuncia de la mujer del “tercer mundo” entendida como víctima esencial, así como su
propuesta de feminismo antiimperialista y anticapitalista; el eco-feminismo y sus diversas corrientes (Puleo,
2011); el feminismo lesbiano en su desvelamiento de la heterosexualidad como régimen político y no como
opción sexual (Wittig, 1977 y 2006 [1992]; Rich 2001 [1980]; Clarke (1988); el feminismo negro y su
interseccionalidad entre género, raza y clase (Hull, Bell y Smith, 1982; bell hooks, 2004 [1984]; Angela Davis,
2005 [1981]; Patricia Hill Collins, 2000 [2004]; Audre Lorde, 2003 [1984]); el feminismo chicano y el
feminismo de las “mujeres de color”, así como su concepto de frontera como metáfora epistémica (Moraga y
Castillo, 1988; Gloria Anzaldúa, 2004 [1987]); y más en la actualidad, los incipientes feminismos indígenas
(Hernández, 2003 y 2008; Marcos, 2010, Rivera, 2008) y los feminismos islámicos (AA.VV, 2008; Mahmood,
2008; Bradan, 2012); así como el denominado feminismo decolonial (Lugones, 2005, 2008 y 2010)” (MEDINA
MARTÍN, 2013, p. 63-4).

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limitada pelas tradições, doméstica, restringida a família, vítima, etc.)” (MOHANTY, 1984,
p.-).
Como ressaltado pelas teorias pós-coloniais e decoloniais, a construção do
conhecimento não é uma ação apolítica, mas pelo contrário, envolve relações de poder e é
moldada pelas condições sociais e ideológicas na qual o sujeito se encontra. Do mesmo
modo, “as práticas do feminismo acadêmico (seja de leitura, escrita, crítica ou textual) estão
inscritas nas relações de poder, relações que elas enfrentam, resistem ou, até possam
respaldar implicitamente. Não existe, portanto, a academia apolítica” (MOHANTY, 1984,
p.-). Precisamos, portanto, entender essas relações e procurar formas de pensar e agir que
envolvam a decolonização6 do conhecimento. O estabelecimento de uma ​ética da
singularidade, proposta por Spivak e compartilhada também por Teresa da Cunha e
Terezinha da Silva, aparece como um instrumento na busca pela decolonização. A ética da
singularidade é descrita como “uma pesquisa pela compatibilidade entre pessoas
culturalmente situadas; isto é, uma questão de alteridade face a face, e abrindo espaço para a
existente polifonia, dispensando abstrações e avaliações categóricos” (CUNHA;SILVA,
2016, p.2) Deste modo, “fornece nos a possibilidade de novos conceitos, Metodologias
Narrativas Epistemologias, performances sociais que pressupõem a decolonização do
pensamento” (CUNHA;SILVA, 2016, p.2). Em busca dessa decolonização devemos,
portanto, apresentar um pensamento subversivo à ordem dominante e alternativo para novas
realidades e assim acabar com o ​monstro de três cabeças 7
que nos oprime: capitalismo,
colonialismo e patriarcado.

patriarcado porque o corpo das mulheres só faz sentido quando é propriedade dos homens;
capitalismo do Estado mínimo e porque quanto menor o Estado, menor treinamento de
professoras/es, e melhor para os interesses de poucos; e o colonialismo no comportamento
dx outrx, aqui a relação outro-com-outro como um incontrolável selvagem que não foi
salvo de sua degeneração” (CUNHA;SILVA, 2016, p.6).

6
Optou-se na pesquisa pela utilização do termo ‘decolonização” em detrimento de “descolonização”. Isso
porque, diferentemente do último que em termos históricos diz respeito à superação do colonialismo, utilizar o
termo “decolonização” implica, como nos mostra Catherine Walsh “colocar em evidência que não existe um
estado nulo da colonialidade, mas sim posturas, posicionamentos, horizontes e projetos de resistir, transgredir,
intervir, in-surgir, criar e influenciar. O decolonial expressa, então, um caminho de luta contínua na qual se pode
identificar, visualizar e estimular “lugares” de exterioridade e construções de alter - (n)ativas.” (WALSH, 2013,
p. 25).
7
​Termo utilizado pela poeta angolana Rachel Lima.

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Deste modo, para conseguir destruir essas bases opressoras da sociedade precisamos
ser mais que feministas, precisamos decolonizar o próprio feminismo. E para isso é
imprescindível considerar a diversidade de experiências e realidades sociais das mulheres. Ou
seja, pensar a complexidade e a diversidade do ser mulher nos distintos pontos do mundo e,
portanto, reconhecer a fala subalterna e a riqueza epistemológica de cada discurso
(CUNHA;SILVA, 2016). Evidenciar a luta de mulheres periféricas e reconhecer a
importância das suas vozes e agências é o que pretendemos fazer nesse estudo, que enfoca na
realidade das mulheres agricultoras do Oeste de Santa Catarina.

As vozes silenciadas e a luta por autonomia: as mulheres camponesas do Oeste de SC

A cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal no Brasil, a


cada 1,4 segundos uma mulher é vítima de assédio (fonte: relógios da violência do Instituto
Maria da Penha, 2018). Segundo dados Dados do ​Anuário Brasileiro de Segurança Pública​,
em 2016 o Brasil registrou 49.497 casos de estupro. Em 2013, 4.762 foram assassinadas no
Brasil, 50,3% desses crimes foram cometidos por familiares, e em 33,2% destes casos, o
assassino foi o parceiro ou ex. As mulheres negras são ainda mais violentadas, entre 2003 e
2013, houve aumento no registro de mortes em 54% (Mapa da Violência 2015, Flacso). Em
2017, 946 mulheres foram vítimas de feminicídio, ou seja, assassinato em função de seu
gênero, mortas pelo fato de serem mulheres (Monitor da Violência - G1, 2018). A violência
contra a mulher tem várias faces e atinge inúmeras mulheres em todo o Brasil e no mundo.
Violência física, violência patrimonial, violência moral, violência sexual e violência
psicológica. Os dados são assustadores e infelizmente crescem a cada dia. No Brasil, apenas
em agosto de 2006, a violência doméstica e familiar passou a ser considerada crime por meio
da aprovação da lei n. 1.340, conhecida como Lei Maria da Penha, a qual cria instrumentos
para prevenir e coibir a agressão no ambiente familiar (dados do Relógio da Violência,
Instituto Maria da Penha, 2018).
Nos últimos anos os debates acerca da violência contra a mulher tem crescido e a
busca por conscientização e políticas públicas que atendam as demandas das mulheres
vítimas de violência tem estado em pauta. No entanto, para muitas pessoas o assunto
violência contra as mulheres continua sendo um tabu e inúmeras mulheres sofrem caladas,
sendo vítimas de abusos muitas vezes dentro de sua própria casa. Essa é a realidade de muitas

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mulheres que vivem no interior, em cidades longes dos grandes centros, distantes de
delegacias especializadas, de oportunidades econômicas, de assistência pública, de ajuda. O
medo do agressor, do julgamento social e também a preocupação com os filhos faz com que
muitas mulheres não denunciem, e vizinhxs ou pessoas que muitas vezes presenciam a
agressão se calam pelo medo ou pela cultura do “em briga de marido e mulher não se mete a
colher”. A banalização da violência no ambiente doméstico, fruto da cultura machista que nos
encontramos é um empecilho na luta contra a violência e faz com que muitas mulheres
enxerguem a violência sofrida até como algo “do cotidiano”. É urgente debatermos esse tema
com as mulheres do campo e pensarmos em alternativas para superar essa realidade
opressora.
O estado de Santa Catarina, foco deste Estudo, apresentou cerca de 47 casos de
feminicídios em 2017 (Diário Catarinense, 2017). Desde a criação da Lei Maria da Penha, as
mortes por feminicídios no Estado somam 285 processos penais da Justiça (G1, 2017).
Chapecó foi a cidade que mais registrou ações ajuizadas dentro da Lei do Feminicídio com
20 casos. A cidade, localizada no Oeste de Santa Catarina, ocupa o 3ª lugar no ranking de
violência contra mulheres no Estado (Rádio AL, 2017). A região oeste de Santa Catarina
abrange cidades de médio e pequeno porte, as quais possuem, em sua grande maioria, a
agricultura como principal atividade produtiva. A agricultura familiar é protagonista dessa
produção e envolve toda a reunião. Apesar das vantagens da vida no campo, do contato com a
natureza e da vida em comunidade, a realidade rural de muitas famílias é marcada por
inúmeras horas de trabalho, muitas vezes em condições precárias, sujeição ao contato com
agrotóxicos, a necessidade de plantar cada vez mais e perceber o pouco valor dados aos
alimentos advindos dali, enquanto o agronegócio recebe os mais altos subsídios estatais, a
agricultura familiar luta para manter-se viva. Além desse contexto de exploração que vivem
xs pequenxs agricultorxs, as mulheres, nesse cenário, sofrem novamente, uma sucessão de
violências: (1) em relação a sua posição como agricultora em um país voltado para o
agronegócio; (2) violência relacionada a sua segurança alimentar e saúde física e mental
devido à intensas exposições a agrotóxicos extremamente prejudiciais ao ambiente; e (3)
violências de gênero dentro do ambiente familiar, que de tão frequente acaba se tornando
parte da rotina de tantas mulheres camponesas. A visão patriarcal e machista na qual se
sustenta a sociedade brasileira, que pensa a mulher como submissa ao homem, espera que as
mulheres cuidem da casa, dxs filhxs, do marido, ajudem no trabalho e ainda, que sofram

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caladas violências diárias. A maioria dessas mulheres depende economicamente de seus
maridos, uma vez que são eles que administram o dinheiro dentro de casa. Essa situação,
aliada a preocupação com xs filhxs e o julgamento social, acaba impedindo denúncias e
provoca a perpetuação das violências de gênero no campo.
No último mês (junho/2017) ocorreu uma importante iniciativa do jornal Diário
Catarinense (DC) sobre a violência contra as mulheres do campo em SC. A reportagem
especial “Sozinhas: Histórias de mulheres que sofrem violência no campo”, desenvolvida
pelo jornal, traz à tona diversos relatos de violências sofridas por mulheres no estado. Esses
relatos estão disponíveis na plataforma digital8 do Jornal, juntamente com fotos e áudios que
retratam essa triste realidade do ambiente rural. Essa pesquisa é resultado dos esforços da
repórter Ângela Bastos e o repórter fotográfico Felipe Carneiro, que percorreram milhares de
quilômetros pelo estado coletando informações sobre a realidade das mulheres agricultoras,
buscando entender porque SC é o quarto estado mais violento com relação às mulheres no
país. A exposição desses fatos através da voz e imagem daquelas que são oprimidas instiga a
reflexão sobre o tema, muitas vezes deixado de lado, ocultado pela população local. A
violência contra a mulher se tornou algo tão presente que virou rotina em muitos lares no
interior. Segundo o DC, a cada 12 minutos uma mulher é agredida em SC, e a dificuldade de
acesso à delegacias especializadas, de locomoção no campo, além do julgamento dos
vizinhos e vizinhas faz com que muitas mulheres sofram caladas as dores do machismo. Dar
voz a essas mulheres é o primeiro passo para evidenciarmos esse problema tratado como
banal, mas que é um dos principais algozes da nossa sociedade. Por isso, seguem abaixo
alguns trechos das entrevistas feitas pelo DC.

Com o passar do tempo, a violência só cresceu. Chegaram os espancamentos.


Independentemente do que a agricultora tivesse feito ou estivesse fazendo: trabalhando na
lavoura, lavando a louça, limpando a casa. Com uma força física desproporcional em
relação à dela, o homem jogava-lhe cadeiras, dava-lhe chutes, a arrastava pelos cabelos.
Muitas vezes, lembra-se, ela buscava explicação para uma vida tão atormentada. — “Sofri
muito na mão dele. Fui massacrada, estuprada. Na verdade, eu não sei se apanhava porque
ele gostava de me bater ou se era um vício que ele tinha de me espancar”. Ade revela que
muitas vezes pensou em pedir ajuda. Mas tinha medo de represálias, de que alguma coisa
ruim pudesse acontecer com quem tentasse protegê-la.

— “Eu fui muito violentada. Perguntava por que estava fazendo aquilo, mas ele não
respondia, ficava quieto, saía até de perto para não responder”. As marcas desse tormento

8
​http://www.clicrbs.com.br/sites/swf/violencia_contra_mulheres_do_campo/sozinhas.html

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estão nas costas, pernas, joelhos, braços, mãos. Até no dedo quebrado. Mesmo na condição
de vítima, Tânia era tomada por sentimentos comuns a outras mulheres: tinha medo e
vergonha. Se saísse de casa, usava roupa de manga comprida para tapar hematomas e
arranhões. Se fosse receber visita, escondia louças e móveis quebrados.— “Eu colava
papel, botava adesivo, para que não vissem as coisas destruídas”. — “Eu corria com as
crianças e me escondia no mato para não morrer”. Um dia, recorda, ela precisou ir à
cidade. A carona atrasou e, ao retornar para casa, foi recebida com chutes e pontapés que
atingiram as partes íntimas. Foi proibida de procurar socorro médico. Por causa dos golpes,
urinou sangue durante um mês. A maior parte das agressões acontecia durante a noite. —
“Tinha vezes que eu pedia pelo amor de Deus que o dia não anoitecesse e que continuasse
claro para eu não passar tudo de novo”.

— “O mais forte, o que mais me doeu em meus 35 anos de casamento foi ele, o meu
marido, ter brigado, me ameaçado de morte e não ter permitido eu dar adeus. Quando
cheguei, meu pai já estava morto e enterrado”. Dias depois, a mãe dela reuniu os filhos e
fez uma proposta. Daria a parte das terras a que tinha direito como viúva para Eraci, desde
que fossem morar perto, em Arroio do Tigre, no Rio Grande do Sul. A reação do marido
foi um desastre. Se ela quisesse, poderia ir, mas a filha ficaria com ele. — “Até a menina
ele tentou me tirar na vida”.

Na busca por alternativas para uma vida melhor no campo, surgem no Brasil na
década de 80 diversos movimentos de luta social liderados por mulheres. Em Santa Catarina
(SC) surge o Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) mais tarde chamado de
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) um dos principais movimentos de mulheres
agricultoras do país. Uma tentativa de superar a dependência econômica, a violência e
melhorar a realidade do campo para as mulheres. Um agrupamento de vozes, que juntas são
mais fortes. Segundo Valdete Boni, o movimento teve três principais fases. Em um primeiro
momento o discurso é voltado para as questões trabalhistas, sendo o foco maior a classe. Na
segunda fase, o discurso incorpora questão de gênero e não apenas classe como
anteriormente. O momento atual, abarcando os anteriores, volta-se principalmente, para
questões que envolvem a segurança alimentar, lutando pela defesa do meio ambiente e a
produção de sementes crioulas (BONI, p.15). Como destaca o próprio movimento:

Toda esta bagagem trazida pelos movimentos autônomos de mulheres, associada aos demais
movimentos, reafirmou a luta das mulheres em dois eixos: Gênero e Classe. Somos mulheres
que lutamos pela igualdade nas relações e pertencemos à classe das trabalhadoras e
trabalhadores. Nessa trajetória de luta e organização das mulheres camponesas foi sendo
construída uma mística feminina, feminista e libertadora, cujo conteúdo se expressa no
Projeto Popular que o Movimento está comprometido que articula a transformação das
relações sociais de classe com a mudança nas relações com a natureza e a construção de
novas relações sociais de gênero. (MMC, 2017).

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Os dois eixos pelo qual o movimento se guia são, portanto, Classe e Gênero. A
conexão entre ambos é que forma a identidade do grupo, pois são mulheres, mas mulheres
camponesas. A vida rural é parte fundamental do autorreconhecimento dessas mulheres, por
isso, ao analisarmos sua atuação devemos ser conscientes dessa interseccionalidade, como
nos mostraram as feministas do terceiro mundo. Deste modo, estas mulheres se
autodenominam como camponesas, ou seja, produzem os alimentos que dão sustento à
família, “é a pequena agricultora, a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, as
extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras,
sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas” (MMC, 2017). O
Movimento das Mulheres Camponesas atua na “luta das mulheres pela igualdade de direitos e
pelo fim de qualquer forma de violência, opressão e exploração praticada contra a mulher e a
classe trabalhadora”. O caminho que pretendem traçar para conquistar uma realidade melhor
é através da “produção de alimentos saudáveis, pela construção de um projeto de agricultura
ecológico e pela luta pela libertação da mulher” (MMC,2017).

Considerações Finais

As realidades e subjetividades das mulheres no Terceiro Mundo são complexas e


envolvem diversos fatores. Sendo assim, a localidade que compartilham e as opressões
advindas desse contexto, além da raça, orientação sexual, classe social, entre outros
elementos precisam ser analisados e entendidos a partir da interseccionalidade. As mulheres
camponesas sofrem opressões sobrepostas, ou seja, sofrem devido ao seu gênero, a sua
dependência econômica, a sua cor da pele, etc. Superar essa realidade envolve a compreensão
das interligações entre esses fatores. Alguns dos principais fatores, observados na pesquisa,
que contribuem para a perpetuação da violência de gênero no campo são a (1) dependência
econômica dos maridos; (2) a distância das residências do campo de delegacias, postos de
saúde, instituições educacionais e de lazer; (3) o medo do julgamento social e (4) a
preocupação com relação a situação dxs filhxs. Nesse sentido, tentaremos apresentar algumas
sugestões que podem ser alternativas para ultrapassar essa realidade. Como vimos no texto, a
união das mulheres em busca de uma vida melhor no campo resultou na criação do
Movimento de Mulheres Camponesas, o qual tem sido um importante instrumento nessa luta.
A união das vozes oprimidas se transformou em força social e fez com que o tema da

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violência contra as mulheres no campo recebesse maior atenção social. Acreditamos que
investimentos no empreendedorismo das mulheres do campo pode ser um grande aliado para
a conquista da independência financeira dessas mulheres e assim, seu empoderamento. Nesse
sentido, o cooperativismo, surge como um importante instrumento para esse fim. As
cooperativas podem ser definidas como “empresas de propriedade conjunta e de gestão
democrática guiadas por valores de ajuda mútua, responsabilidade compartilhada,
democracia, igualdade, equidade e solidariedade” (UNISOL, 2010). Nesse ambiente, as
mulheres obtêm a possibilidade de decidir em conjunto, socializar, ascender
economicamente, compartilhar experiências, e fortalecerem-se umas às outras. Deste modo,

Para as mulheres, as cooperativas têm um papel chave a desempenhar, pois são capazes de
responder às suas necessidades práticas e estratégicas. Cooperativas formadas
exclusivamente por mulheres ou constituídas por homens e mulheres oferecem meios
organizativos eficazes para as sócias e empregadas melhorarem seu nível de vida, por meio
das oportunidades de exercer trabalho decente e facilidades de poupança, crédito, saúde,
habitação e serviços sociais como educação e capacitação. As cooperativas também
oferecem às mulheres meios para participarem de atividades econômicas e exercerem
influência, conquistando autonomia e auto-estima graças a esta participação. Elas
contribuem, ainda, para melhorar a situação econômica, social e cultural das mulheres,
promovendo a igualdade e mudando os preconceitos institucionais (UNISOL, 2010).

Outra ação essencial que deve partir do poder público é a promoção de campanhas de
conscientização sobre violência no campo e de como agir frente a casos de violência,
juntamente com o fornecimento de acompanhamento psicológico e jurídico. Por fim, a
localidade e o gênero que compõem as delegacias da mulher interferem na luta pelo
empoderamento e fim da violência. O desenvolvimento de delegacias da mulher/ou alguma
representação dessas no interior e sua composição feita por agentes do gênero feminino
facilitaria o processo de denúncias e também o atendimento às vítimas.

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Apresentação

De 13 a 15 de junho de 2018 realizamos a quinta edição do Simpósio Gênero e


Políticas Públicas, na Universidade Estadual de Londrina. O evento tem sido realizado
bienalmente na mesma universidade, desde 2010, e pretende se consolidar como um
espaço de intercâmbio entre pesquisadoras/es, estudantes, profissionais e ativistas que
atuam na interface das áreas de estudos de gênero e de políticas públicas. Marcado pelas
diversidades teóricas e disciplinares, esta edição foi mais uma oportunidade para reunir
pessoas que demandam, planejam, executam e investigam as políticas públicas, adotando
a perspectiva de gênero para tal.

A edição V contou com 11 grupos de trabalho e uma rica programação com


Conferência, Mesa-Redonda e Minicursos. Tivemos a honra de receber no Centro de
Letras e Ciências Humanas, da Uel, pessoas vindas de todas as regiões do país e de
variadas unidades da federação. Tendo à frente da organização o Grupo de Pesquisa
Gênero e Políticas Públicas (GEPOP/Uel), o Simpósio propiciou o envolvimento de
diferentes grupos de pesquisa da Uel e de outras universidades brasileiras para a sua
realização.

Os conflitos políticos têm se destacado no campo dos estudos de gênero no Brasil.


Por um lado, houve no passado recente um período de forte expansão dos investimentos
e das pesquisas. Por outro lado, nos últimos anos, temas caros a esse campo têm sido
fortemente atacados e combatidos em diferentes esferas, diversos níveis da administração
pública e, em menor medida, nas universidades.

Eventos especializados nos estudos de gênero, para além de suas contribuições


acadêmicas para o desenvolvimento das pesquisas em diversas áreas do conhecimento,
também são relevantes como espaços públicos nos quais a própria função das
universidades é colocada em disputa. Assim, ao longo das 5 edições até o ano de 2018,
construímos esse simpósio dando ênfase na interação entre as questões de gênero e o
campo das políticas públicas, mas, igualmente, garantindo espaço em sua programação

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para o debate sobre as diferentes questões e dimensões relevantes para a construção de
uma sociedade livre do sexismo, do racismo e das diversas formas de opressão.

A luta contra as diversas formas de opressão, fundadas em classe, raça, gênero,


sexualidade e religião, entre outras, move as disposições das pessoas envolvidas na
organização e na realização deste Simpósio. Produzir conhecimento engajado e construir
uma universidade socialmente referenciada são princípios que nos orientam.

Nesta publicação, reunimos artigos que foram apresentados e discutidos durante


o Simpósio em todos os grupos de trabalho. Este é o resultado de um trabalho valoroso
realizado por especialistas de diferentes áreas e em diferentes níveis de formação. Os
textos foram discutidos e aprofundados nesses grupos e receberam avaliações e sugestões
de coordenadoras, coordenadores, debatedoras e debatedoras para seu aperfeiçoamento.

Trazemos ao público esses resultados, com votos de que eles enriqueçam os


estudos e pesquisas sobre Gênero e Políticas Públicas.

Comissão Organizadora

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