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Rio de Janeiro
2019
Rio de Janeiro
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
MARUYAMA, Raquel Leiko Machado
Núcleos Criativos: O desafio de desenvolver e viabilizar
projetos audiovisuais / Raquel Leiko Machado Maruyama. - Rio de
Janeiro, 2019.
101 f. : il., color.
__________________________________________
Prof. Dr. João Luiz de Figueiredo - Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM)
Orientador
__________________________________________
Prof. Dr. Diego Santos Vieira - Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM)
Avaliador (a) 1
__________________________________________
Prof.ª Dra. Katia Augusta Maciel – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Avaliador (a) 2
AGRADECIMENTOS
À Hadija Chalupe e Pedro Curi, agradeço o incentivo sem o qual eu não teria iniciado essa
jornada.
À ESPM, seu corpo administrativo e docente que tornaram possível essa travessia.
Ao meu orientador, professor João Luiz de Figueiredo, pelo estímulo, confiança, paciência,
escuta e generosidade neste processo de aprendizado.
À Katia Augusta Maciel e Diego Santos Vieira, professores que aceitaram compor a banca de
avaliação e muito contribuíram neste desafio que é encontrar o melhor caminho para uma
pesquisa.
A todos os profissionais que aceitaram participar deste estudo na condição de entrevistados e
compartilharam informações, dados e percepções nesta árdua tarefa de estudar e melhor
compreender o setor audiovisual brasileiro.
Aos colegas de mestrado, que trouxeram suas vivências e experiências profissionais para a
sala de aula e a tornaram um ambiente de troca, colaboração e crescimento.
Um obrigada especial à Marina Band, parceira na vida profissional, neste mestrado, no pós-
aula, corridas inusitadas de táxi e momentos de subjetividades peculiares com reflexões
desafiadoras.
À Eloisa Madeira, pela acolhida que tornou mais suave essa caminhada.
Às minhas irmãs, pelo apoio e tolerância com minhas ausências em período tão delicado de
nossas vidas.
Ao meu companheiro, Alexandre Madeira, presença encorajadora, pelo amor e pela arte que
sempre me emocionam.
E agradeço muito profundamente a todos e todas que são fonte de amizade, carinho, amor,
compreensão, alegrias e acolhimento: Fábio Maia, Flávia Junqueira, Gustavo Carvalho,
Juliana Azevedo, Lucila Robirosa, Marília Gomes, Patrícia Assis e Tatiana Martinelli.
RESUMO
ABSTRACT
The present work analyzes the development of audiovisual projects in the creative core
modality, financed through a public notice of the Audiovisual Sectorial Fund. The objective is
to verify if there are substantial differences in the way the creative cores that managed to renew
the investiment with the FSA structured themselves internally and in the way they relate to the
market compared to cores that did not obtain the investiment renewal. This assumption was
investigated through a qualitative research through in-depth interviews. It was heard cores’
leaders that aimed the viability of at least two fifths of their projects and cores’leaders that did
not reach the same success. The results found were analyzed based on concepts such as
Intervenor State and Regulatory State by Ana Carla Reis, culture economy by Françoise
Benhamou, creative class by Richard Florida, and creative industries ecosystem by Paul
Jeffcutt. They point to the fact that there are more similarities than differences between both
groups, but it reveals the importance of leader’s and production companies relational capital.
The data and information obtained allow a more systematized view of the development phase of
films and series and has applicability for professionals who works as producers, creators and
scriptwriters, interested in setting up a creative core, to improve their planning and execution
strategies to optimize the chances of making their projects viable. In the public sphere, the
content of this research also contributes to the process of evaluation and qualification of policies
for the audiovisual sector.
LISTA DE TABELAS
Tabela 4 - Projetos dos Núcleos Criativos selecionados nas edições 2013, 2014, 2015,
2016 e 2017 de acordo com o segmento de mercado, formato e tipologia ... 50
LISTA DE GRÁFICOS
LISTA DE QUADROS
Quadro 20 - Atribuições do líder e formas de interação com a equipe e com o conteúdo .... 75
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13
1 INTRODUÇÃO
Um ano após esta entrevista, o Estado fez uma intervenção substancial neste cenário.
A Agência Nacional do Cinema (Ancine), através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA),
lançou três editais para financiamento – com recursos públicos federais - de projetos de
desenvolvimento de obras seriadas, não seriadas de longa-metragem e de formatos de obra
audiovisual destinados aos segmentos de televisão aberta e por assinatura, salas de exibição e
vídeo por demanda. Foram eles: Prodav 03 para seleção de propostas de Núcleos Criativos
com cartelas de, no mínimo, cinco projetos cada; Prodav 04 para seleção de projetos
individuais na modalidade laboratório de desenvolvimento, que incluía a tutoria de
especialistas indicados pela Ancine; Prodav 05 para investimento em projetos individuais a
serem executados de forma autônoma pelos selecionados. Reunidos, estes editais destinavam
R$ 33 milhões ao desenvolvimento de projetos.
O lançamento destes três editais está circunscrito em uma tradição intervencionista
do Estado brasileiro no setor audiovisual que remonta à década de 30, na era Vargas, com a
criação do “Instituto Nacional de Cinema Educativo, primeiro órgão voltado para a atividade,
o qual apoiava a produção de documentários de curta-metragem” (MATTA, 2007, p. 1).
Desde então, foram implementadas, revogadas e reestruturadas diversas políticas públicas
federais regulatórias e de fomento para o setor como a fundação da Empresa Brasileira de
Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme) – liquidada em março de 1990 pelo governo Collor
(IKEDA, 2015), elaboração de mecanismos de incentivos fiscais e a criação da Ancine e do
FSA (SILVA, H., 2010; SILVA, I., 2001; IKEDA, 2015; SIMIS, 2008).
Até o momento de publicação dos editais Prodav 03, 04 e 05, todas as chamadas
públicas do FSA tinham como objetivo o investimento em produção ou comercialização de
filmes e séries. Não havia financiamento específico por parte do FSA para os custos inerentes
à etapa de desenvolvimento de uma obra audiovisual, que incluem, entre outras atividades, a
criação de argumentos, escaletas, roteiros, sinopses, perfil dos personagens, bíblia, definição
de formato, aquisição de direitos autorais e produção de episódios-piloto. A única alternativa
para os produtores era incluir estas despesas no orçamento de produção de suas obras.
Ao ter uma cartela de projetos selecionada no edital Prodav 03 de Núcleos Criativos, o
produtor recebe até R$ 1 milhão, recursos que devem ser empregados para remunerar artistas
e técnicos envolvidos nesta etapa, bem como a aquisição de direitos. Em contrapartida, tem a
responsabilidade de entregar, ao final de 24 meses, não apenas um roteiro, mas também
orçamento, plano de financiamento e folheto de comercialização.
A proponente do Núcleo assume ainda o compromisso de resultado, ou seja, o de
viabilizar a produção de parte de seus projetos desenvolvidos. Caso a meta não seja
15
o investimento em Núcleos Criativos. Para ser elegível neste edital, a proponente tem que
preencher quatro requisitos: já ter sido contemplada em chamada pública do edital Prodav 03;
ter concluído o desenvolvimento de todos os projetos de sua cartela; comprovar a viabilização
de, ao menos, dois quintos destes mesmos projetos; e apresentar nova proposta contendo no
mínimo cinco novos títulos.
De acordo com balanço publicado pela Ancine, ao todo, os editais do Prodav 03
lançados nos anos de 2013, 2014, 2015, 20162 e 2017 (BRDE, 2018) selecionaram 107 Núcleos
Criativos. Isto representa um investimento federal de R$ 105,5 milhões. Até o momento de
conclusão desta pesquisa, 12 obtiveram a renovação do contrato de investimento, através do
Prodav 13/2016, para o desenvolvimento de nova cartela de projetos.
Uma análise qualitativa dos dados que serão levantados permitirá identificar as
metodologias empregadas no processo criativo, competências artísticas e profissionais
mobilizadas na viabilização dos projetos e de que forma os núcleos se articularam com agentes
do mercado.
Como os Núcleos Criativos selecionados pelo edital Prodav 03/2013 mobilizam suas
competências internas e articulações externas junto aos demais agentes da cadeia produtiva para
aumentar as chances de viabilização de projetos e consequente renovação do investimento junto
ao FSA?
1.4 JUSTIFICATIVAS
1.5 OBJETIVOS
2 REFERENCIAL TEÓRICO
3
Há uma variação de itens a serem entregues, de acordo com a tipologia de cada projeto, como será abordado no
capítulo 4
21
Uma análise inicial da relação de itens que devem ser entregues ao FSA ao final do
desenvolvimento evidencia a necessidade de atuação de ao menos duas categorias
profissionais durante o processo: roteiristas e produtores - uma vez que o conceito de
projeto desenvolvido inclui roteiros, orçamento de produção e plano de financiamento.
Ambos estão envolvidos em uma dinâmica de criação, mas isto não significa que esta
relação seja fluida, sem tensões e desprovida de hierarquias no contexto de um Núcleo
Criativo. O presidente da Pixar Animation e Disney Animation, Ed Catmull, em seu livro
Criatividade S.A. aborda um conflito que identificou durante a produção do filme Toy
Story. Os artistas e técnicos
[...] “acreditavam” que os gerentes de produção eram pessoas de segunda classe
que impediam – em vez de facilitar – a boa produção de filmes, controlando
excessivamente o processo. [...] disseram que os gerentes de produção eram
apenas areia nas engrenagens. (CATMULL, 2014, p. 76)
Na década de 90, o Department for Digital, Cultural, Media & Sports do Reino Unido
publicou um relatório sobre Indústrias Criativas segundo o qual as atividades deste setor
seriam aquelas que têm “a sua origem na criatividade, competência e talento individual, com
potencial para a criação de trabalho e riqueza por meio da geração e exploração de
propriedade intelectual” (UK GOVERNMENT, 2001, p. 5, tradução nossa). Este conceito
muitas vezes é o ponto de partida de estudos sobre cultura, economia e desenvolvimento –
aqui no sentido de desenvolvimento econômico e social - sejam eles para questionar suas
limitações, ampliar sua abrangência ou rejeitá-lo.
Ao realizar uma revisão bibliográfica sobre o tema, Bendassolli et al (2009) identifica
quatro componentes principais que permeiam todas as definições de indústria criativa: o
primeiro é a criatividade como elemento essencial e capaz de gerar propriedade intelectual; o
segundo é o tratamento de cultura sob a forma de objetos culturais cuja percepção de utilidade
por parte do consumidor é o que lhes atribui valor; o terceiro apóia-se na premissa de que
predominam a produção e o consumo de bens imaterias, símbolos e significados, sobre bens
materiais; e o quarto é a convergência entre artes, negócios e tecnologias.
Criada em 2011 e extinta em 2014, a Secretaria da Economia Criativa do Brasil
(SEC), vinculada ao Ministério da Cultura, deixou um importante legado sobre o tema ao
publicar o Plano da Secretaria da Economia Criativa (BRASIL, 2011). O documento
evidencia uma opção pelo termo “economia criativa” sob a justificativa de que este privilegia
“a análise dos processos de criação e de produção, ao invés dos insumos e/ou da propriedade
intelectual do bem ou do serviço criativo” (BRASIL, 2011, p. 22). A partir deste princípio, a
SEC adota a definição de “setores criativos”, cujas premissas haviam sido anteriormente
discutidas pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD).
[...] os setores criativos são aqueles cujas atividades produtivas têm como
processo principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou serviço,
cuja dimensão simbólica é determinante do seu valor, resultando em
produção de riqueza cultural, econômica e social. (BRASIL, 2011, p. 22)
Executivo da Pixar, Catmull assumiu como missão a busca permanente por uma “cultura
criativa sustentável” (CATMULL, 2014, p. 79) porque desta forma a empresa continuaria
realizando filmes considerados originais, que geravam lucro e também proporcionariam algum
tipo de contribuição positiva para a sociedade.
26
3 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Para estudar o tema proposto, foi realizada uma pesquisa exploratória, de abordagem
qualitativa, que articulou levantamento bibliográfico, levantamento de campo (GIL, 2002) e dados
secundários para buscar informações que permitissem corroborar, ou refutar, o argumento central
de que há diferenças substanciais na forma como os núcleos se estruturam internamente e se
relacionam com o mercado à sua volta que possam ser determinantes na viabilização de seus
projetos.
Foram considerados apenas núcleos que receberam investimento da primeira edição da
chamada pública Prodav 03, lançada em 2013. Isto porque todos os contemplados receberam o
investimento e o prazo de dois anos para conclusão do desenvolvimento venceu para todos.
Os núcleos foram divididos em duas tipologias: aqueles que comprovaram a viabilização
mínima de projetos e obtiveram renovação do investimento do FSA para desenvolver nova cartela
e aqueles que não comprovaram a viabilização. Ao longo do trabalho, para simplificar a leitura de
quadros e tabelas, utiliza-se as nomenclaturas Núcleos Renovados e Núcleos Não Renovados para
identificar cada grupo, respectivamente.
As principais fontes de dados secundários foram a Ancine e o Banco Regional do
Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), agente financeiro do Fundo Setorial do Audiovisual.
Não raramente, as informações estavam dispersas em relatórios, tabelas e planilhas diferentes, o
que exigiu um esforço de compilação e organização para visualizar as informações pesquisadas
como distribuição geográfica dos núcleos, tipos de projetos desenvolvidos e quantitativo de obras
já viabilizadas.
Para a abordagem qualitativa, optou-se pela técnica de entrevista individual em
profundidade, semiestruturada, guiada por um roteiro-base de questões (DUARTE, 2006). De
caráter não probabilístico, a amostra inclui sete líderes: três de núcleos não renovados e quatro de
núcleos renovados. Os líderes, no presente estudo, enquadram-se no conceito de informante-chave
por serem fontes que estão “profundamente e diretamente envolvidas com os aspectos centrais da
questão, o que faz com que não serem entrevistados possa significar grande perda” (DUARTE,
2006, p. 70). Em apenas um dos casos, duas pessoas foram entrevistadas ao mesmo tempo. O
profissional que ocupou o cargo de líder defendeu a necessidade da presença de um segundo
integrante da equipe, produtor e sócio fundador da produtora, uma vez que, na prática, eles
atuaram juntos na liderança.
O edital Prodav 03, para efeito de cumprimento obrigatório de cotas, agrupa os estados
brasileiros em três grandes regiões: Rio de Janeiro e São Paulo; Norte, Nordeste e Centro-Oeste;
27
Minas Gerais, Espírito Santo e Região Sul. Inicialmente, tentou-se compor uma amostra que
contemplasse, em cada tipologia de núcleo, todas as regiões. Contudo, o fator disponibilidade dos
líderes foi determinante, e a lista final de participantes foi constituída por conveniência.
Todas as entrevistas foram transcritas e as informações foram agrupadas em categorias:
- Composição estratégica das cartelas de projeto: que abarca as motivações que
conduziram a escolha dos projetos inscritos no Prodav 03
- Qualificação técnica dos líderes: investiga a formação e experiências profissionais da
liderança
- Metodologia (de desenvolvimento): aborda as dinâmicas e fluxos de trabalho durante
o desenvolvimento
- Atribuições do líder e forma de interação com a equipe e com o conteúdo
- Competências profissionais mais utilizadas pelos líderes
- Reflexões dos líderes: o que eles acreditam que poderiam ter feito diferente
- Prospecção dos projetos no ambiente externo ao núcleo
No Brasil, durante a Era Vargas, encontra-se a criação de uma das primeiras instituições
estatais voltadas para o audiovisual: o Instituto Nacional de Cinema Educativo, fundado em 1937.
Ainda na década de 20, como observa Simis (2008), predominava a expectativa de “construção da
nação”, que se daria por meio do Estado, portanto, a intelligentsia da época defendia que a
educação deveria ser pela instrução pública e a reforma do ensino primário, secundário, superior e
profissional tornou-se pauta política de destaque. A inclusão do cinema nas mudanças que
estavam sendo propostas é compreensível, uma vez que, “depois da imprensa, era o meio de
comunicação mais importante” (SIMIS, 2008, p. 25). Considerando que em 1900 85% da
população brasileira era analfabeta (SIMIS, 2008), as possibilidades do uso do cinema
despertavam grande interesse, e não apenas pedagógicos. Ele poderia ser veículo de transmissão
do nacionalismo, sobretudo no período compreendido entre os anos de 1930 e 1945.
Vale destacar ainda a criação, em 1939, do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP)4, “órgão de primeiro escalão, diretamente subordinado à Getúlio Vargas” (SIMIS, 2008, p.
55). De acordo com Simis (2008), o DIP possuía cinco divisões, entre elas uma de cinema e
teatro. Em relação ao cinema, a autora destaca quatro grupos de competências atribuídas ao DIP
pelo decreto-lei 1.915:
a) fazer a censura do cinema, quando a esta forem combinadas as penalidades previstas
por lei; a Comissão de Censura Cinematográfica5 era extinta;
b) estimular e classificar a produção de filmes nacionais, diferenciando os educativos dos
outros para concessão de prêmios e favores;
c) “sugerir ao Governo a isenção ou redução de impostos e taxas federais para os filmes
4
Decreto-lei 1.915, de 27 de dezembro de 1939
5
A Comissão de Censura havia sido criada pelo artigo 6º do Decreto nº 21.240 de 1932 e era ligada ao então
Ministério da Educação e da Saúde Pública
29
modalidades: “à moda de empréstimo bancário (juros de 10% ao ano)” (AMÂNCIO, 2000, p. 25),
ou enquanto coprodutora do filme que aportava o equivalente a 30% do valor do orçamento e
passava a deter o mesmo percentual de direitos patrimoniais, com participação nas receitas
auferidas na exploração comercial (SILVA, H. 2010). Ou seja, se a rentabilidade não fosse, no
mínimo, igual ao valor investido na produção, economicamente seria um negócio deficitário.
Neste modelo, a Embrafilme analisava o projeto em seus aspectos artísticos e econômicos:
avaliava roteiro, a produtora e os riscos envolvidos (BAHIA, 2012).
De acordo com levantamento realizado por Amâncio (2000), durante seu período de
existência, de 1969 a 1990, a Embrafilme financiou 140 filmes, coproduziu outros 130, atuou
como distribuidora de 222 lançamentos e como codistribuidora de 129 títulos. Estes dados são
indicativos de que os principais focos das ações de fomento da empresa eram a produção e a
distribuição. Contudo, na gestão de Roberto Farias (1974-1979), foram realizados dois programas
especiais intitulados, respectivamente, Programa Especial de Pesquisas de Temas para Filmes
Históricos e Programa Especial de Pilotos para Séries de Televisão (AMÂNCIO, 2000).
“apenas dois tiveram prosseguimento além da etapa de pesquisa – Castro Alves e General Osório,
embora não tenham sido realizados” (AMÂNCIO, 2000, p. 87), e 22 de produção de pilotos
(AMÂNCIO, 2000). Em entrevista concedida a Tunico Amâncio, o então diretor da Embrafilme,
Roberto Farias, explica um dos aspectos que influenciaram o desenho do programa e os resultados
deste segundo programa:
A EMBRAFILME resolveu fazer isto sem consulta prévia, era um risco que ela correria,
e a partir de cada piloto, então, se iria à televisão propor – quer entrar na minissérie? O
piloto está aqui! Era mais ou menos como alguém que quisesse correr este risco nos
Estados Unidos fazia para propor alguma coisa. A televisão só entraria num roteiro
enquanto projeto e papel, se fosse com gente dela, que ela tivesse confiança. Gente de
fora, tinha que ver o produto, se não visse, ela não entraria, pelo menos era o que nós
acreditávamos. E assim a coisa foi feita. Não resultou muito. Inclusive muita gente
pegou estes projetos, uns fizeram filme de longa-metragem mesmo, complementaram
um pouquinho e em vez de fazer um piloto 16mm pra mostrar à televisão, fez um filme,
fizeram isto e os outros fizeram qualquer coisa, só porque ganharam aquele
financiamento. (AMÂNCIO, 2000, p. 92)
Em sua abordagem sobre o tema, Amâncio faz um importante paralelo com o que ele
chama de “descaso da TV Globo quanto a este programa de produção” (AMÂNCIO, 2000, p. 93).
O autor recupera uma entrevista concedida pelo superintendente-geral da Rede Globo, José
Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, à revista Veja:
Veja: Existe algum plano da Rede Globo para comprar os pilotos de seriados
financiados pela EMBRAFILME?
de 500.000 cruzeiros, não tem sentido comprar um filme que não custou menos de
2 milhões de cruzeiros. Além disso, a linguagem do cinema não é a da TV. Se a
EMBRAFILME quisesse mesmo fazer seriados para televisão, deveria ter
montado um centro de produção eletrônica, fazer os homens de cinema e televisão,
fazer pesquisas de mercado para saber o que interessa ou não fazer. Em vez disso,
preferiu jogar para (sic, por fora) 20 milhões de cruzeiros. (REVISTA Cinema em
Close-up, n. 18, p. 16 apud AMÂNCIO, 2000. p. 93)
A fala de Boni e de Farias permite identificar ao menos três polos importantes no processo:
produtores e realizadores, a Embrafilme - como órgão estatal responsável por ações de fomento à
produção - e os exibidores, neste caso os canais de televisão. Percebe-se que os dois primeiros
estiveram alinhados quando da elaboração do programa de produção de pilotos. Mas vem à tona o
fato de a televisão em si não ter sido envolvida no processo. Boni destaca três aspectos que, em sua
avaliação, impossibilitariam uma negociação por parte da Globo: o custo de produção dos pilotos,
muito acima do custo então praticado dentro da emissora, o que inviabilizaria a aquisição do
produto do ponto de vista econômico; a necessidade de realizar pesquisas de mercado para
identificar os temas que mais interessam e a diferença entre a linguagem de cinema e a televisiva.
Verifica-se aqui a relevância de uma dinâmica, desde a fase de desenvolvimento de projetos, que
inclua todos os agentes do setor audiovisual e que agregue dados, competências, informações e
análises que possam contribuir para gerar projetos com maiores chances de serem produzidos e
comercializados. Esta consideração remete ao argumento central da pesquisa aqui proposta, uma
vez que sua premissa é a necessidade de conciliação de competências criativas e mercadológicas,
ainda no desenvolvimento, para viabilizar a produção de obras audiovisuais. Ambos os programas
especiais de financiamento, para projetos de Pesquisas de Temas para Filmes Históricos e para a
Produção de Pilotos para Séries de Televisão, lançados em 1977, não foram reeditados pela
empresa.
Ainda nos anos 80 a Embrafilme entra em declínio. Problemas financeiros, administrativos
e acusações de dirigismo, fatores estes aliados a crises econômicas mundial e nacional, à elevação
do padrão tecnológico das produções de Hollywood, a concorrência da televisão e o advento do
home video culminaram na extinção da empresa (BAHIA, 2012).
Em 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello, através da Medida Provisória
151/90, colocou fim a todos os incentivos governamentais em vigor até aquele momento para
projetos culturais e o segmento cinematográfico foi especialmente impactado. De uma só vez, foram
extintas a Embrafilme, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro.
Como ressalta Ikeda (2015), o resultado foi catastrófico. Em 1992, somente três filmes
nacionais foram lançados no circuito brasileiro de salas de exibição e os títulos estrangeiros
ocuparam quase a totalidade do mercado. O market share do filme brasileiro caiu para 3,7% em
33
1995 (BAHIA, 2012). Sem a intervenção do Estado, dificilmente o quadro sofreria mudanças
favoráveis à produção, distribuição e exibição da cinematografia brasileira. Neste contexto,
organiza-se a volta da participação estatal. Mas, naquele momento, em um modelo diferente do
intervencionista vigente até a era Embrafilme, uma vez que as mudanças constitucionais político-
econômicas advindas com a redemocratização não mais permitem que o Estado seja “agente direto
de interferência na economia” (SILVA, H., 2010, p. 52).
de projetos que podem captar recursos através da Lei Rouanet sofreu alterações ao longo tempo. O
texto originalmente aprovado permitia que, através do artigo 18, fossem produzidas também obras
de longa-metragem. Desta forma, uma empresa, ao investir na produção de um filme brasileiro,
poderia abater integralmente de seu imposto devido o montante alocado no projeto e utilizar este
investimento como estratégia de marketing e posicionamento de marca. Em 1999, a redação foi
alterada pela lei nº 9.874 e as obras de longa-metragem passaram a ser enquadradas somente no
artigo 25, cujo benefício fiscal é bem menor e, consequentemente, menos atrativo do ponto de vista
econômico.
7
O artigo 25 define a tipologia de projetos e o artigo 26 versa sobre os benefícios fiscais sobre o IR
8
Este artigo foi incluído na Lei do Audiovisual em 2006 através da Lei nº 11.437
9
Instrução Normativa da Ancine nº 125 de 22 de dezembro de 2015
35
Gráfico 1 - Valores investidos em projetos de desenvolvimento de longas para cinema através dos
artigos 3º e 3ºA da Lei do Audiovisual entre 2002 e 2017
3,0M
2,5M
2,0M
1,5M 1,6M
835,7K
1,0M
1,4M 1,5M
500,0K 955,1K 916,3K 810,0K
778,3K 744,0K
562,3K 400,0K 575,5K
0,0K
Tabela 1 – Valores captados por projetos de desenvolvimento de longas para cinema através dos
artigos 3º e 3 A entre 2002 e 2017 e quantitativo de projetos por UF de acordo com a sede da proponente
UF sede da
Qtd de Valor total captado Valor total captado via
Produtora Total(R$)
Projetos via Art 3º (R$) Art 3ºA (R$)
Proponente
RJ 40 3.716.870,00 2.879.725,83 6.596.595,83
SP 29 2.614.927,40 2.168.665,90 4.783.593,30
Total 69 6.331.797,40 5.048.391,73 11.380.189,13
Fonte: ANCINE. Elaborado pela autora
37
10
0
1995 1996 1997 1998 1999
Fonte: Ancine. Listagem dos filmes lançados em salas de exibição com valores captados
através de mecanismos de incentivo 1995 a 2017. Elaborado pela autora
Apesar dos artigos 25 e 26 da Lei Rouanet serem uma opção para a viabilização de
recursos, nenhum valor foi captado por meio deles pelos filmes lançados naquele período.
Considerando que o benefício fiscal não permite a dedução, por parte do patrocinador, de
100% do valor aportado, o artigo 18 torna-se mais atrativo para as empresas que optam
por investir no cinema brasileiro.
Os dados do Gráfico 3 demonstram que os 14 filmes lançados em 1995, reunidos,
captaram um total de R$ 1,6 milhão através de mecanismos de incentivos fiscais. Este
valor subiu para R$ 50,1 milhões em 1999, quando então 28 títulos nacionais chegaram às
salas de cinema. Entre 1995 e 1999, o maior volume de recursos foi gerado pelo artigo 1º
da Lei do Audiovisual (R$ 79,3 milhões), seguido pelo artigo 18 da Lei Rouanet (R$ 28,6
milhões) e pelo artigo 3º (R$ 15,9 milhões). Ao todo, os três mecanismos viabilizaram R$
123,8 milhões para a produção de longas. A extinção da Embrafilme havia provocado um
hiato na produção. As políticas públicas para o audiovisual implementadas a partir de
1991 privilegiaram projetos de realização que permitiram reocupar uma fatia do mercado.
Se os números demonstram que houve significativo aumento da produção
cinematográfica, por outro lado, o final dos anos 90 registrou um movimento para
reocupar a lacuna institucional deixada no setor com a extinção da Embrafilme.
[...] embora a retomada tenha alcançado públicos e prêmios pelo mundo e
reafirmado a sua vitalidade, continuou a existir a necessidade de proteger o
mercado, ou seja, de construir um locus estatal que dessa conta do
desenvolvimento, da regulação e da proteção do mercado para o cinema
brasileiro. (BAHIA, 2012, p. 15)
39
Gráfico 3 – Valores captados através de mecanismos de incentivos fiscais da Lei Rouanet e da Lei do
Audiovisual13 pelos filmes brasileiros lançados entre 1995 e 1999
40,0M
35,0M 33,9M
30,0M
Em Milhões de R$
25,0M 23,6M
20,0M
16,0M
15,0M
12,1M
9,6M
10,0M
4,8M 5,3M
4,5M 4,1M
5,0M 3,6M 3,1M
1,4M 1,8M
212,0K 0,0K
0,0K
1995 1996 1997 1998 1999
Fonte: Ancine (2018). Listagem dos filmes lançados em salas de exibição com valores captados através de
mecanismos de incentivo 1995 a 2017. Elaborado pela autora
Neste ambiente, aconteceu em Porto Alegre, no ano 2000, o III Congresso Brasileiro
de Cinema. O evento “uniu representantes da atividade cinematográfica, que declararam o
desgaste da política vigente e apontaram a necessidade de repolitização do cinema brasileiro”
(BAHIA, 2012, p. 71). Um dos resultados do Congresso foi a criação, no mesmo ano, do
Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (Gedic), através de decreto presidencial, com
representação dos ministérios da Cultura, Fazenda, Comunicações, Desenvolvimento
Indústria e Comércio Exterior, das secretarias da Casa Civil, Secretaria Geral da Presidência,
e das Comunicações além de cinco representantes dos mercados de cinema e televisão. O
relatório apresentado pelo Gedic propôs o anteprojeto da Ancine, “órgão responsável pela
gestão política estatal para o mercado de cinema nacional” (BAHIA, 2012, p. 71). Em 2001,
através da Medida Provisória 2.228-1, foi criada a Ancine:
[...] autarquia especial, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior [...] órgão de fomento, regulação e fiscalização da indústria
cinematográfica e videofonográfica, dotada de autonomia administrativa e
financeira” (BRASIL, 2001, s/p.)
13
O Gráfico 3 não apresenta dados relativos aos artigos 1ºA e 3ºA da Lei do Audiovisual porque foram inseridos
na lei apenas em 2006
40
A criação de uma autarquia especial voltada para o setor audiovisual não é um fato
isolado. Ao contrário, está inserido no contexto político e econômico dos anos 90 que,
conforme destaca Ilse Gomes Silva (2001) foi marcado pela globalização, fenômeno cujos
impactos também afetaram a esfera política e colocaram em questão o papel do Estado-
nação, sua capacidade de “implementar políticas estatais e de garantir e/ou ampliar os
direitos sociais conquistados durante o período de consolidação do Estado-providência”
(SILVA, I. 2001, p. 1).
No Brasil, em 1995, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,
foi elaborado e encaminhado ao Congresso Nacional o Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado, um conjunto de propostas administrativas e gerenciais para
“enfrentar os principais obstáculos à implementação de um aparelho de Estado moderno e
eficiente” (PECI, 2007, p. 13). Entre as proposições, o documento cita a transformação de
autarquias em agências autônomas e a continuidade do processo de privatização. “Nesse
contexto de desestatização e tentativas de reformas gerenciais, é redefinido o papel do
Estado, qualificando-o mais como regulador do que como indutor do processo de
desenvolvimento do país” (PECI, 2007, p. 14). De 1995 até 2002, além da Ancine, foram
criadas a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Petróleo (ANP), Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência
Nacional da Água (ANA), Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT) e
Agência Nacional dos Transportes Aquaviários (Antaq).
De acordo com seu regimento interno, passaram a ser de competência da Ancine,
entre outras atividades, o registro de agentes econômicos do setor, das obras audiovisuais,
a emissão do Certificado de Produto Brasileiro, o processamento e o recolhimento da
Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (CONDECINE), a
fiscalização do cumprimento da legislação audiovisual, análise, aprovação e fiscalização
da execução e prestação de contas de projetos realizados com recursos públicos federais.
O produto da arrecadação da CONDECINE é destinado ao Fundo Setorial do
Audiovisual e investido em programas de fomento das atividades audiovisuais no Brasil.
Ela será essencial para a implementação e execução de políticas públicas como o Núcleo
Criativo, objeto de estudo deste trabalho. A Ancine classifica a CONDECINE em três
modalidades de acordo com seu fato gerador: CONDECINE-Título, CONDECINE-
Remessa e CONDECINE-TELES.
41
14
Os Funcines foram criados pela MP 2.228-1
15
Instrução Normativa da Ancine nº 125
42
Pessoas físicas ou jurídicas tributadas com base no lucro real podem investir em Fundo
de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional constituídos sob a forma de
Forma de investimento condomínio fechado, sem personalidade jurídica, e administrados por instituição
financeira autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil ou por agências e
bancos de desenvolvimento.17
Benefício fiscal para
Abatimento do Imposto de Renda de 100% do valor investido, até o teto de 4% do
pessoa jurídica tributada
imposto devido
com base no lucro real
Benefício fiscal para Abatimento do Imposto de Renda de 100% do valor investido, até o teto de 6% do
pessoa física imposto devido
Fonte: BRASIL (2001). Elaborado pela autora
Como destaca Silva (2010), em paralelo ao fomento indireto, a Ancine opera também no
fomento direto à atividade audiovisual, com recursos provenientes de seu orçamento através de
editais públicos seletivos e automáticos, sendo os dois principais o Prêmio Adicional de Renda
(PAR)18 e o Programa Ancine de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro (PAQ).
O PAR era direcionado para produtoras independentes, distribuidoras e exibidores
brasileiros e teve seu primeiro edital divulgado em 2005. A partir do desempenho de longas-
metragens brasileiros nas bilheterias de salas de cinema, era concedido um prêmio em dinheiro
que deveria ser destinado a projetos específicos, de acordo com a natureza do titular da
premiação, como se observa no Quadro 8.
16
Instrução Normativa da Ancine nº 125
17
Artigo 41 da MP 2.228-1
18
Entre 2013 e 2014 foi lançado o edital Prodav 06 do Fundo Setorial do Audiovisual com o objetivo de gerar crédito
para produtoras, distribuidoras e programadoras de televisão com base no desempenho comercial de obras
audiovisuais brasileiras independentes. A partir de então, o PAR para produtoras e distribuidoras foi descontinuado,
ficando em operação somente o Pêmio para exibidores. Atualmente, a chamada pública do FSA é intitulada
BRDE/FSA Suporte Automático Desempenho Comercial 2018.
43
então, o FSA tornou-se uma das mais importantes fontes de financiamento da atividade
audiovisual independente no Brasil e instituiu um modelo no qual o Estado não se restringe a
subvencionar indiretamente a atividade, como nas leis Rouanet e do Audiovisual, nem a
investir a fundo perdido como nos casos dos editais PAR e Prêmio de Qualidade. Por meio do
Fundo, o Estado torna-se um investidor que objetiva recuperar o valor aportado e participar
dos lucros obtidos com a exploração comercial das obras.
Dessa forma, em 2008 foram publicados os quatro primeiros editais do Fundo: Prodecine
01 e Prodecine 02 voltados para o financiamento da produção de projetos de longas-metragens
para salas de cinema; Prodecine 03 para projetos de distribuição de filmes no circuito exibidor; e
Prodav 01, cujo foco era o investimento na produção de obras audiovisuais para o segmento de
TV. Os projetos de desenvolvimento, fase essencial de toda a cadeia produtiva, estavam ausentes
das ações de financiamento e foram incluídos somente no ano de 2013.
Os primeiros investimentos do FSA foram realizados em 2009, ano em que foram
divulgados os resultados dos editais lançados em 2008. Através do Gráfico 4, é possível visualizar
o impacto que ele gerou no financiamento da produção independente.
1000,0M
900,0M 622,9M
534,3M
800,0M
700,0M
441,1M
422,3M
600,0M
500,0M
400,0M 238,1M
300,0M
84,7M 92,3M
200,0M 366,7M
29,5M 20,6M 306,0M
249,8M 259,1M
100,0M 181,4M 178,7M 184,1M
124,4M 147,3M
0,0K 12,3M 14,6M 13,5M 10,2M 11,4M 8,4M 12,3M 8,3M 1,5M
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Entre os anos de 2009 e 2017, o FSA foi a fonte que investiu o maior volume de recursos
federais em projetos audiovisuais em um total de R$ 2,5 bilhões, seguida pelos mecanismos de
incentivos fiscais das leis Rouanet, do Audiovisual e MP 2.228/01 que, reunidas, viabilizaram R$
46
20
Instrução Normativa da Ancine nº 96 de 15 de dezembro de 2011
47
Até o momento em que esta matéria foi publicada, as principais fontes federais de
financiamento que poderiam ser acessadas para a etapa de desenvolvimento eram o PAR, o PAQ e
os Artigos 3º e 3ºA da Lei do Audiovisual. A roteirista Ana Paul, em depoimento à mesma
reportagem, aponta uma distorção no uso dos recursos:
48
Os editais de roteiro também não são solução e precisam urgentemente ser revistos.
De periodicidade incerta, não servem como pagamento inicial para um roteirista
trabalhar num projeto. Não raro, o roteirista já está escrevendo, mesmo sem o
resultado e, para piorar, as produtoras entendem que o prêmio é na verdade de
desenvolvimento da pré-produção e mordem metade do valor. Com isso, esses
editais só têm interessado a diretores que também escrevem seus próprios roteiros ou
então iniciantes em busca de um lugar ao sol”. (CARNEIRO, 2013, s/p)
Dois anos antes da publicação desta matéria pela Revista de Cinema, ocorreu uma
importante mudança no cenário audiovisual do país. Foi aprovada a Lei 12.485 de 12 de setembro
de 2011 que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado. Ela estabeleceu cotas
mínimas obrigatórias de conteúdo brasileiro e de conteúdo brasileiro de produção independente a
serem veiculadas no horário nobre de todos os canais de espaço qualificado da TV paga, sejam eles
brasileiros ou internacionais. Isto provocou uma demanda por obras audiovisuais brasileiras sem
precedentes, a serem produzidas em larga escala e com qualidade.
O Informe de Monitoramento de Mercado da TV Paga (ANCINE, 2012a.), apresenta dados
relativos ao ano de 2011, antes da entrada em vigor da obrigatoriedade das cotas de conteúdo
brasileiro. Naquele ano, 16 canais monitorados21 pela Agência, reunidos, veicularam
aproximadamente 9.286 horas de obras brasileiras. O Informe de Acompanhamento de Mercado da
TV Paga (ANCINE, 2015), apresenta a evolução do volume de horas de obras brasileiras veiculado
nos canais brasileiros e estrangeiros entre os anos de 2012 e 2014.
Observa-se pela Tabela 3 que em 2012 o total de horas praticamente dobrou em relação ao
ano anterior chegando a 26.220 em 2014. Verifica-se ainda que o aumento mais significativo foi
entre os Demais Canais, que incluem todos os canais estrangeiros em operação no Brasil, o que
demonstra o impacto direto da obrigatoriedade de cumprimento de cotas de conteúdo nacional.
21
AXN, Canal Brasil, Cinemax, HBO, HBO Family, HBO Plus, Max Prime, Sony, Telecine Action, Telecine
Cult, Telecine Fun, Telecine Pipoca, Telecine Premium, Telecine Touch, TNT e Warner Channel. Não
constavam do monitoramento os Multishow e GNT cujos dados só passaram a integrar os relatórios da Ancine a
partir de 2012.
49
Estes números evidenciam o quanto a demanda por obras audiovisuais brasileiras cresceu
rapidamente e exigiu dos agentes de mercado uma adaptação rápida a esta nova realidade. E isto não
era possível se um elo primordial não fosse estabelecido: o desenvolvimento.
Em 2013, durante o Rio Content Market, principal evento de mercado audiovisual no Brasil,
o então diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema, Rangel, apresentou o Plano de
Diretrizes e Metas para o Audiovisual. A principal diretriz definia como prioridade:
Estabelecer as bases para o desenvolvimento da atividade audiovisual, baseada na
produção e circulação de conteúdos brasileiros, como economia sustentável,
competitiva, inovadora e acessível à população e como ambiente de liberdade de
criação e diversidade cultural. (ANCINE, 2012b.)
Para concorrer no edital Prodav 03/2013, era preciso compor uma cartela com no mínimo
cinco projetos e cada um deles já deveria identificar o segmento de mercado ao qual o projeto da
obra audiovisual se destinava, o formato e a tipologia de acordo com o disposto no edital, conforme
o Quadro 9. Uma cartela poderia conter projetos para apenas um, dois ou para os três segmentos de
mercado, bem como variar, formato e tipologia.
QUADRO 9 - Tipologia de projetos aceitos de acordo com o segmento de mercado ao qual se destinam
Segmento de Mercado Formato Tipologia
Ficção
Sala de Exibição Longa-Metragem
Animação
Ficção
Animação
TV Paga ou Aberta Obra Seriada
Documentário
Formato de Obra Audiovisual
Ficção
Vídeo por Demanda Obra Seriada
Animação
Fonte: BRDE. Elaborado pela autora
TABELA 4 - Projetos dos Núcleos Criativos selecionados nas edições 2013, 2014, 2015, 2016* e 2017
de acordo com o segmento de mercado, formato e tipologia
Qtd de
Segmento de Mercado Formato Tipologia %
Projetos
Longa-Metragem Ficção 199 37,48%
Sala de Exibição Longa-Metragem Animação 15 2,82%
Longa-Metragem Documentário 18 3,39%
Subtotal 232 43,69%
Obra Seriada Ficção 168 31,64%
Obra Seriada Animação 57 10,73%
TV Paga ou Aberta Obra Seriada Documentário 64 12,05%
Obra Seriada Formato de Obra Audiovisual 6 1,13%
22
Telefilme Ficção 3 0,56%
Subtotal 298 56,12%
Obra Seriada Ficção 1 0,19%
Vídeo por Demanda
Obra Seriada Animação - -
Subtotal 1 0,19%
TOTAL 531 100,00%
Fonte: Fonte: Ancine. Elaborado pela autora
* Os dados disponibilizados pela Ancine não informavam formato, tipologia e quantidade de projetos de 10
núcleos selecionados no edital Prodav 03/2016
22
Apesar dos dados publicados pela Ancine mencionarem telefilme, o texto dos editais não prevê a aceitação
desta tipologia
51
A Tabela 4 mostra que nas edições de 2013 a 2017 predominam os projetos destinados
aos segmentos de TV Paga ou Aberta (56,12%) com um total de 298. As salas de exibição
figuram em segundo lugar (43,69%), totalizando 232, enquanto Vídeo por Demanda totaliza
apenas 1 (0,24%). Já em relação à tipologia, o maior quantitativo é de longa-metragem de
ficção (199), seguido pelas séries de ficção (167). Entre os 531 projetos, apenas (1,13%) são
para desenvolvimento de formato de obra audiovisual seriada. Os longas de documentário
passaram a ser aceitos na edição 2015 do edital e somam 18 projetos (3,39%).
Todas as propostas inscritas passam pela primeira etapa do processo, chamada de
seleção, de caráter classificatório e eliminatório. Nesta fase, cada proposta é avaliada por dois
analistas da Ancine que atribuem notas de 1 a 5 para cada um dos quesitos detalhados no
Quadro 10. A média de cada quesito é ponderada por um peso. Todas as propostas são
classificadas de acordo com a nota obtida. As que obtiverem nota inferior a 50%, ou seja, 2,5,
são automaticamente desclassificadas.
Para a segunda etapa, a decisão de apoio financeiro, é constituída uma Comissão de
Seleção mista com cinco integrantes: dois da Ancine e três “profissionais independentes, com
notório saber e experiência no mercado audiovisual” (BRDE, 2014a, p. 8). Esta comissão
recebe as propostas melhores classificadas, com um quantitativo mínimo igual ao dobro da
meta financeira de investimento do edital.
QUADRO 10 – Critérios de Avaliação para Seleção de Núcleos Criativos pelo Prodav 03/2013
QUESITOS PESO
Fonte: BRDE
52
Até o ano de 2017 o FSA lançou cinco23 edições do edital Prodav 03, o que viabilizou um
total de R$ 105,5 milhões que contemplaram 107 Núcleos Criativos (ANCINE, 2017b.). Observa-se
na Tabela 5 que a sede da maioria dos núcleos contemplados está no eixo Rio-São Paulo que
representa 56,07% do total com um quantitativo de 60 propostas selecionadas.
TABELA 6 - Relação de Núcleos Criativos que foram renovados através do Prodav 13/2016
Ano do
edital
UF NOME DO NÚCLEO CRIATIVO RAZÃO SOCIAL DA PROPONENTE Prodav 03
em que foi
selecionado
RJ NÚCLEO DE CRIAÇÃO GIROS GIROS PROJETOS AUDIOVISUAIS S.A. 2013
VIDEOFILMES PRODUÇÕES
RJ NÚCLEO VIDEOFILMES 2013
ARTÍSTICAS LTDA.
SP MIRA LAB RM PRODUÇÕES ARTÍSTICAS LTDA 2013
CALEIDOSCÓPIO NARRATIVAS
3 TABELA FILMES E PRODUÇÕES
RJ MULTIFACETADAS PARA 2013
ARTÍSTICAS LTDA
CRIANÇAS E JOVENS
Até a presente data, 12 dos 107 núcleos tiveram a renovação do investimento aprovada
pelo FSA através do Prodav 13/2016, conforme Tabela 6. É possível verificar que 11 núcleos
haviam sido contemplados na primeira edição do Prodav 03 que financiou ao todo 28
propostas. Ou seja, o índice de renovação daquele ano, até o encerramento de coleta de dados
deste trabalho, está na casa de 39,29% e ainda pode aumentar.
Em relação ao desempenho na meta de viabilização e, consequentemente, na
renovação do núcleo, deve-se considerar alguns marcos temporais importantes: o resultado
final da segunda edição foi divulgado em setembro de 2015. Os vencedores receberam os
recursos e iniciaram as atividades ao longo do ano de 2016. Considerando que eles tiveram
dois anos para concluir o desenvolvimento dos projetos, somente a partir de 2018 estariam
aptos a pleitear uma renovação, claro, com a condição de que tenham conseguido acessar o
financiamento mínimo exigido para a etapa de produção. A relação de produtoras vencedoras
da edição de 2017 só veio a público em dezembro de 2018 e estes ainda estão na fase inicial
de todo o processo.
24
Inicialmente, o prazo para conclusão era de 18 meses e foi posteriormente alterado para 24 meses
55
líder, os demais profissionais integrantes do Núcleo também são analisados. De acordo com o
quesito número 4, a qualificação técnica destes profissionais será avaliada, com ênfase no
histórico de projetos de obras e de formatos desenvolvidos.
O edital não define objetivamente as categorias profissionais das pessoas que podem
atuar em um Núcleo. Mas a partir de itens de despesas que podem ser financiadas com o valor
do investimento a ser recebido do FSA e dos itens a serem entregues quando o
desenvolvimento for concluído, é possível deduzir que a composição de um núcleo pode
agregar profissionais de diversas áreas como roteiro, produção, direção, assistência de
direção, pesquisa, ilustração, animação, designer gráfico e tradução.
4.4.1. São considerados itens financiáveis todas as despesas relativas à aquisição de
direitos e à contratação de profissionais e/ou serviços, englobando a totalidade das
atividades necessárias e inerentes à realização, cumulativa ou alternativa, de
pesquisa; elaboração do conceito da obra audiovisual; escritura da narrativa;
montagem do universo da trama; concepção e modelagem dos personagens; desenho
de cenários e storyboard; elaboração dos orçamentos; planejamento financeiro,
inclusive estratégia de comercialização de direitos; definição dos direitos artísticos
necessários à produção; planejamento do desenho de produção; elaboração de
materiais gráficos para comercialização dos projetos; produção de conteúdos
audiovisuais promocionais; arranjos originais de criação técnica, artística e
econômica; projeto; tradução; diagramação e confecção de projeto etc.
25
Nos projetos documentais não se entrega roteiro, mas objeto e estrutura
57
QUADRO 13 - Conjunto de informações a serem apresentadas posteriormente ao
desenvolvimento do projeto de Obra Seriada de Animação
(conclusão)
Informação
g) Sinopses da totalidade de episódios;
h) Orçamento e plano de financiamento;
Folheto de comercialização (apresentação da série para aquisidores diagramado em formato A4 frente e
i)
verso, colorido);
Folheto de comercialização (apresentação do demo jogável para aquisidores diagramado em formato
j)
A4 frente e verso, colorido, versões em português e inglês) (OPCIONAL).
Fonte: BRDE
26
Conforme Instrução Normativa da Ancine nº 125, a análise complementar só pode ser solicitada quando
comprovada a garantia de financiamento de no mínimo 20% do valor total do orçamento de produção
59
A definição destas três opções nos permite concluir que o conceito de viabilidade para
o FSA está diretamente relacionado ao caráter econômico, ao plano de financiamento da
produção das obras audiovisuais e à capacidade do proponente de alavancar os recursos
necessários para levar a história do papel às telas. Quando um Núcleo viabiliza seus projetos,
isto significa que ele alcançou êxito no mercado, pois conseguiu articular de forma adequada
todos os profissionais envolvidos no processo criativo e os recursos financeiros de modo
efetivo, ao mesmo tempo em que tornou-se apto a solicitar novo investimento, de R$ 1 milhão,
para desenvolver nova cartela de projetos e manter ativo o fluxo de criação e produção.
Se considerarmos que os recursos para produzir um filme ou uma série encontram-se,
majoritariamente, em fontes externas à produtora, na esfera pública na qual estão o FSA, editais
do Minc, de secretarias estaduais e municipais de cultura, bem como na esfera privada onde
encontram-se patrocinadores, investidores, canais de TV e distribuidoras que podem, ou não,
utilizar mecanismos de fomento indireto, bem como plataformas de streaming e coprodutores
internacionais que investem recursos próprios, é possível concluir que a obtenção de recursos
para produzir uma obra audiovisual depende de uma interseção entre o ambiente interno da
produtora e o externo. De que forma as produtoras mobilizam as competências técnicas,
artísticas e de produção, ainda na etapa do desenvolvimento, para criar o elo com demais
agentes do mercado e formalizar parcerias que irão garantir a produção, exibição e
comercialização de seus projetos? Encontra-se aqui uma das questões centrais desta pesquisa,
que será abordada a partir do resultado das entrevistas realizadas com líderes de núcleos do
Prodav 03/2013.
60
Uma carteira de projetos só pode ser inscrita por uma produtora brasileira
independente, devidamente constituída e registrada na Ancine. Desta forma, antes mesmo de
ter seu núcleo selecionado pelo FSA para receber investimento, a produtora é confrontada
com a necessidade de tomar decisões estratégicas relacionadas ao desenvolvimento pois ele “é
o momento inicial e crucial quando o produtor tem que decidir sobre duas questões
fundamentais: qual filme fazer e como fazê-lo” (PARDO, 2002, p. 52, tradução nossa). Em
relação ao núcleo, era preciso decidir para quais segmentos de mercados seriam os projetos
(sala de exibição, televisão ou VOD), o formato (obra seriada ou longa-metragem) e a
tipologia (ficção, documentário ou animação).
61
Seriada
Obra
Giros RJ Dias de Vitória Não Viabilizado Televisão Ficção
Seriada
Obra
Jota o Bichoglota Não Viabilizado Televisão Ficção
Seriada
Não Viabilizado
Obra
Vida Real (projeto Televisão Ficção
Seriada
substituído) **
Não Viabilizado
Desde que o Obra
(projeto Televisão Ficção
Samba é Samba Seriada
substituído) **
Sala de
Cora (ex Antônio) Viabilizado Longa Ficção
Exibição
Sala dos Viabilizado Televisão Obra Ficção
Roteiristas Seriada
Antes Tarde do Sala de
que Nunca Viabilizado Exibição Longa Ficção
Desde que o Sala de
Não Viabilizado Longa Ficção
Samba é Samba Exibição
Sala de
Rancho Paraíso Não Viabilizado Longa Ficção
Exibição
Mira Filmes SP Eu Quero Ter 1
Milhão de Obra
Não Viabilizado Televisão Ficção
Amigos (2ª Seriada
temporada)
Sala de
Amanhã eu Conto Não Viabilizado Longa Ficção
Exibição
Não Viabilizado
Obra
Sexo Casual (projeto Televisão Ficção
Seriada
substituído) **
Não Viabilizado Obra
O Confessionário (projeto Televisão Ficção
Seriada
substituído) **
63
(conclusão)
Destinação
Produtora UF Título Status Inicial Formato Tipologia
Cidades Obra
Viabilizado Televisão Documentário
Fantasmas Seriada
Quem é a Sala de
Primavera das Viabilizado Longa Documentário
Exibição
Neves
Nada a Perder Não Viabilizado Televisão Obra Ficção
Núcleos Renovados
Seriada
Obra
Casa de A Todo Volume Não Viabilizado Televisão Ficção
Seriada
Cinema de RS Fuinha e Obra
Não Viabilizado Televisão Ficção
Porto Alegre Caçapava Seriada
Sala de Longa-
Baby 7 Não Viabilizado Ficção
Exibição Metragem
Não Viabilizado
Decoração Obra
(projeto Televisão Documentário
Popular Seriada
substituído) *
Não Viabilizado
Obra
O Harem (projeto Televisão Ficção
Seriada
substituído) *
Fonte: Ancine. Elaborado pela autora
* Projetos que foram produzidos e lançados comercialmente, mas através de modelo de financiamento e de
direitos patrimoniais incompatíveis com a definição de obra brasileira de produção independente, razão pela qual
não puderam ser contabilizados como viabilizados
** O edital permitia a substituição de projetos. Para tanto, era preciso submeter a solicitação ao FSA e apresentar
o novo projeto que seria incluído na cartela. Uma vez aprovada a troca, o projeto substituído deixava de
constituir a cartela e não seria mais contabilizado para aferição de viabilização.
O Quadro 17 nos mostra que entre os núcleos que não viabilizaram o mínimo de
dois quintos dos projetos27 para se inscrever no edital de renovação – Prodav 13/2016 -, houve
uma predominância de séries para TV, sendo 17 no total, contra apenas três longas para
cinema. A prevalência de propostas para televisão também é verificada entre os núcleos que
obtiveram a renovação do investimento. Entre os 32 títulos, 24 possuem como destinação
inicial o mercado televisivo e nove são para salas de exibição.
É interessante considerar que as inscrições para o primeiro edital de Núcleos
Criativos foram encerradas em 10 de março de 2014. Naquele momento, o mercado estava
sendo impactado pela Lei 12.485 - que entrou em vigor em 2011 e foi regulamentada pela
Instrução Normativa nº 100 da Ancine em maio de 2012 - e estabeleceu cota obrigatória de
conteúdo brasileiro e também independente a ser cumprida por canais de TV paga. Entre os
anos de 2012 e 2014, conforme dados da Ancine (ver Tabela 1) o volume de horas de
programação brasileira no GNT teve um aumento de 16,5% e entre os demais canais
27
Até o momento de conclusão desta pesquisa, os Núcleos Criativos das produtoras TV Norte Independente e
Polo MS de Cinema não haviam reunido as condições exigidas para comprovar a viabilização de no mínimo dois
quintos de seus projetos. Os projetos não viabilizados continuam em prospecção e, se conseguirem o
financiamento mínimo exigido para a etapa de produção, suas respectivas produtoras poderão se inscrever no
edital de renovação Prodav 13/2016.
64
monitorados este aumento foi de 31,2%. Portanto, é compreensível que muitas apostas
tenham sido feitas em projetos para televisão, um espaço que, claramente, estava se
ampliando para o conteúdo brasileiro e também independente.
A análise da composição das cartelas e dos status dos projetos evidencia outro fato
pertinente: entre os núcleos que não obtiveram a renovação do investimento, todos
conseguiram viabilizar ao menos uma de suas propostas. TV Norte Independente (PA) obteve
êxito na captação de recursos para produzir o longa de ficção A Herança, Polo MS de Cinema
(SP) viabilizou a série documental Roda de Choro, e a Boutique Filmes (SP) produziu e
lançou a série de animação Papaya Bull. Além desta obra, a Boutique Filmes realizou
também as séries ficcionais 3% e Zoo da Zu para o público infanto-juvenil. Contudo, o
financiamento da produção destas duas últimas, bem como a titularidade de seus direitos
patrimoniais, não permite que elas sejam classificadas como obras brasileiras independentes,
condição obrigatória para que a obra seja considerada viabilizada perante o FSA, como
explica o líder Tiago Mello:
A gente foi muito exitoso, talvez seja o Núcleo que teve mais resultado [...], mas por
outro lado a gente não fez as negociações com recurso público. A gente não
produziu as coisas com recurso público, então a gente não enquadrou na regra,
exatamente, do FSA28. (MELLO, 2018)
Jorane Castro, líder do núcleo da TV Norte Independente (PA), expõe a razão que
motivou a formação de uma cartela com três projetos para cinema e três para televisão:
(A TV Norte) é uma dessas produtoras que tá começando no conteúdo, [...] que
sempre fez campanha, que sempre fez publicidade pra atender o mercado local. Tava
se posicionando como uma produtora de conteúdo. [...] a gente apostou em dar uma
diversificada, [...] ter uma possibilidade no cinema, três projetos no cinema, e
também três projetos pra televisão, sendo que um de ficção e duas (séries) de
documentário. [...]. Na verdade era assim, tipo fazer (uma) aposta em vários
formatos e ver qual seriam os mais bem desenvolvidos e o que poderia,
eventualmente, ter o lançamento mais certo29. (CASTRO, 2018)
28
MELLO, Thiago Gomes de. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. São Paulo/Rio de
Janeiro, 10 dez. 2018.
29
CASTRO, Jorane Ramos de. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. Belém/Rio de
Janeiro, 12 nov. 2018
65
de séries para TV. Segundo ele, esta opção foi influenciada pela Lei 12.485 - que entrou em
vigor em 2011 e foi regulamentada pela Instrução Normativa nº 100 da Ancine em maio de
2012 - e estabeleceu cota obrigatória de conteúdo brasileiro e também independente a ser
cumprida por canais de TV paga.
[...] eu, particularmente, achava que [...] haveria uma ênfase na televisão, por isso a
opção por séries. [...] apostando que... é, duma legislação mais favorável. [...] eu
achava que isso [...] seria quase restritivo, sabe, para o cinema, que isso ia induzir,
de alguma maneira, o mercado a optar só por este tipo de conteúdo, mais voltado pra
televisão. Mas eu percebi depois que não era bem assim também30. (FILHO, 2019)
Para a Boutique Filmes, cujos projetos eram todos de séries ficcionais para TV, a
composição da cartela teve uma relação significativa com a experiência profissional de seu
líder e sócio fundador, Tiago Mello:
[...] naquela época a empresa tava começando [...] era o que a gente trabalhava [...].
Infantil a gente sempre foi muito forte e a gente tava começando a trabalhar com
essa coisa de fazer ficção científica, a gente queria fazer, então são dois projetos. E
animação também que é uma coisa que historicamente eu trabalhei bastante [...], eu
fiz o Sítio do Pica-Pau Amarelo, fiz a primeira coprodução Brasil-Canadá que
chama Escola pra Cachorro, pra televisão [...] são coisas que já tava no DNA da
Boutique. (MELLO, 2018)
Mello faz ainda um paralelo entre os projetos que seriam desenvolvidos e a audiência
que gostariam de alcançar:
[...] a gente queria fazer coisas que alcançassem grandes audiências, que viajassem
pra outros países.
[...] histórias que sejam surpreendentes pras pessoas, pra quem tá vendo, [...] sempre
teve essa vontade de contar uma boa história também. (MELLO, 2018)
30
FILHO, Joel Pizzini. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. Rio de Janeiro, 25 jan. 2019
31
SILVA, Flávia Lins e. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. Porto/Rio de Janeiro, 21
nov. 2018
32
TAMBELLINI, Flávio Ramos. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. Rio de Janeiro, 21
nov. 2018
66
O foco na viabilização foi diretamente citado por quatro dos sete entrevistados, sendo
dois líderes entre os núcleos não renovados e dois no grupo que obteve êxito na renovação do
investimento. Esta abordagem situa, já na etapa do desenvolvimento, a preocupação não
apenas com a história que se quer contar, mas também com as possibilidades de viabilização
financeira do projeto como foi o caso, também, para a produtora paulista Mira Filmes. Ela foi
a primeira a concluir o desenvolvimento de seus projetos e a formalizar o segundo contrato de
investimento com o FSA para desenvolver uma nova carteira. Fundada por Gustavo Rosa, e
tendo como líder Leonardo Levis, também sócio, a empresa inscreveu uma cartela com sete
projetos de ficção. Ambos externaram a importância de considerar as possibilidades de
financiamento da produção de um projeto antes mesmo de inseri-lo na cartela:
[...] pra gente achar que vale a pena colocar o projeto lá, a gente tem que achar que é
viável e pra achar que é viável, a gente tem que fazer um planejamento de
viabilização dele no final das contas. (LEVIS, 2018)33.
Rosa aborda a estratégia de pensar o financiamento ao citar o exemplo dos filmes Cora e
Antes Tarde do que Nunca - ambos já filmados e com lançamento previsto para o ano de 2019.
[…] o Cora era um projeto claramente mais experimental, mais de arte. Então a gente
falou: - Bom, não pode ser um projeto caro, a força dele é ser um filme barato, um filme
que você consiga viabilizar com o que a gente chamava de um dinheiro. Então a gente
sabia que ele era um filme que não podia passar, de jeito nenhum, de um milhão de reais,
era um filme abaixo de um milhão. Mais que um BO. […] e aí a gente, já tendo isso em
mente, sabe, quando tá escrevendo um roteiro, que também é um roteiro pra mais ou
menos nesse tamanho e o plano de financiamento dele, obviamente, passa por editais que
valorizam filmes mais de arte, mais experimentais. E não são muitos. Aí você olha lá e
fala: - Ah, pode ser o fomento do estado, pode ser o Prodecine 5, pode ser a Spcine. […]
E aí esse é o plano pra ele. Não tem muitas possibilidades. Aí você tem um projeto maior
tipo o Antes Tarde, que precisa um elenco, é uma história que envolve muito mais
produção e tudo, beleza, é um filme maior, já é um filme […] de alguns milhões, quatro
milhões e pouco e tal, aí então você pega e fala assim: - Bom, esse filme […] cabe num
artigo 3º, que é o caso do que a gente acabou fazendo, então isso tava desde o início. A
gente sabia que o Antes Tarde era um filme pra ser feito com outro tamanho. (ROSA,
2018)
Nos dois casos citados por Rosa, a estratégia de financiamento inclui recursos
públicos. Percebe-se que o produtor que, como veremos mais à frente, atuou junto com o líder
na condução do desenvolvimento, conhece os mecanismos de financiamento de obras
33
LEVIS, Leonardo. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. São Paulo/Rio de Janeiro, 5
dez. 2018
34
MOURA, Gustavo Rosa de. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. São Paulo/Rio de
Janeiro, 5 dez. 2018
67
contrato anexa ao texto da chamada pública define que a pessoa que irá ocupar esta função
deve ter “larga experiência em desenvolvimento de projetos”. (BRDE, 2014, p. 21). Desta
forma, mapeamos a qualificação técnica dos líderes que participaram deste estudo
subdividindo-a em formação acadêmica, funções exercidas em projetos audiovisuais e outras
experiências.
Através do Quadro 18 observa-se que todos possuem ensino superior completo na
área de ciências humanas. Entre eles, apenas dois possuem formação acadêmica em Cinema:
Jorane Castro, líder do núcleo da produtora paraense TV Norte Independente, e Leonardo
Levis, líder do núcleo da Mira Filmes, empresa com sede na cidade de São Paulo.
• Graduação em • Roteirista
Thiago Gomes de Academy of Television
Comunicação Social • Diretor de Conteúdo
Mello Arts & Sciences
– Jornalismo • Produtor
(International Emmy)
• Diretor da Fundação de
Cultura de Campo Grande
• Graduação em
• Curador de mostras de
Engenharia Civil –
cinema
não concluída • Roteirista
• Professor no curso de
• Graduação em • Assistente de direção
Joel Pizzini Filho cinema da PUC
Comunicação Social • Diretor
• Professor do curso Cinema
– Jornalismo • Produtor
de Arte, no Parque Lage
• Graduação em
• Criação de performances e
Ciências Sociais
instalações de artes
plásticas
• Graduação em • Roteirista
Flávia Lins e Silva Comunicação Social • Diretora • Autora de livros infantis
– Jornalismo • Produtora
Líderes de Núcleos Renovados
• Roteirista
• Graduação em • Crítico de cinema
Flávio Ramos • Assistente de Direção
Economia e • Professor da Escola de
Tambellini • Diretor
Sociologia Cinema Darcy Ribeiro
• Produtor
• Roteirista
• Graduação em • Professor no curso de
Gilberto José Pires • Assistente de Direção
Comunicação Social Realização Audiovisual da
de Assis Brasil • Diretor
– Jornalismo Unisinos
• Montador
• Roteirista
• Graduação em
Leonardo Levis • Diretor • Crítico de cinema
Cinema
• Produtor
Fonte: Elaborado pela autora
69
Percebe-se ainda que quatro líderes também atuam em educação como professores de
cursos na área de cinema. A análise destes aspectos da qualificação técnica demonstra que,
entre os núcleos abordados nesta pesquisa, todos os líderes possuem uma experiência
profissional múltipla que vai além da habilidade em escritura de roteiros. “A produção de um
filme se refere a tudo que envolve fazer um filme, incluindo seu planejamento e captação dos
recursos” (RODRIGUES, 2005, p. 67). O produtor é um tomador de decisão, um
35
BRASIL, Gilberto José Pires de Assis. Entrevista concedida a Raquel Leiko Machado Maruyama. Porto
Alegre/Rio de Janeiro, 30 nov. 2018
70
empreendedor criativo e gerente de projetos “que deve manter o equilíbrio entre tempo, custo
e qualidade” (PARDO, 2002, p. 49, tradução nossa)
O exercício prévio da atividade de direção em projetos de curtas, longas ou séries por
parte dos líderes aporta competências substanciais que contribuem para o desenvolvimento de
projetos uma vez que a direção é:
[...] responsável pelo final das imagens no sentido artístico. A sua principal função é
apresentar da melhor maneira possível cada cena, em cada caso posicionando a
câmera com o objetivo de registrar de maneira eficaz cada ação e cada detalhe
dramaticamente importantes [...] a parte mais importante da direção envolve a
orquestração da ação filmada, assegurando que a ação e o diálogo, através dos
planos correspondam a uma certa visão do roteiro, criativamente transformando o
cenário em ação, luz e som. (RODRIGUES, 2005, p. 70)
Em um núcleo criativo, entre outras ações, são desenvolvidas histórias que vão se
materializar em roteiros que servirão de base para a realização de séries e longas dos mais
variados tipos - documentais, ficcionais, de animação – e gêneros – comédias, dramas,
policias. A condução de um processo de desenvolvimento, e neste caso falamos da condução
do desenvolvimento de, no mínimo, cinco projetos em um período de dois anos, implica um
nível considerável de dinâmicas interpessoais e “a interação humana é muito mais complexa
do que a teoria da relatividade ou a das cordas, é claro, mas isso apenas tornou-a mais
interessante e importante.” (CATMULL, 2014, p. 79).
O próprio edital demandava, no ato da inscrição, que cada produtora apresentasse a
metodologia que iria balizar o trabalho a ser realizado. Durante as entrevistas, procurou-se
identificar quais eram as categorias profissionais envolvidas no processo e compreender de
que forma cada um dos núcleos se organizou internamente.
71
• Roteiristas
3 Tabela Filmes líder
• Produtora
• Cada um era dono do seu projeto e tinha
• Colaboradores para os roteiros
liberdade para acatar, ou não, as sugestões
da líder
• Trabalho remoto de escritura
• Sala de roteiristas com expediente diário na
• Líder
produtora
Giros • Roteiristas
• Reuniões presenciais entre o líder e
• Produtor
roteiristas
• Grupos de três ou quatro roteiristas por
projeto
• Uma sala de roteiristas para cada projeto, na
sede da produtora
• Normalmente, os roteiristas de cada projeto
se reuniam na sala diariamente, na parte da
Núcleos Renovados
manhã ou da tarde
• Líder • Reunião geral, entre o líder, os roteiristas de
Casa de Cinema de • Roteiristas todos os projetos e os demais sócios da
Porto Alegre • Diretores produtora uma vez por semana, à noite,
• Produtora durante os quatro ou cinco primeiros meses.
Após este período, ela passou a ser uma
reunião mensal.
• O trabalho de escritura de cada grupo de
roteiristas, além do acompanhamento do
líder, tinha também o acompanhamento de
um dos outros dois sócios da produtora que
periodicamente se reunia com a equipe
72
A composição de equipe de cada núcleo variou de acordo com os projetos que foram
desenvolvidos, como foi o caso da Polo MS de Cinema e Vídeo que contou com um consultor em
antropologia para a obra documental Além das Palavras - cujo tema era a comunicação não verbal
-, e um diretor musical para a série Roda de Choro. A Boutique Filmes, que contava com duas
propostas de animação, agregou equipe técnica de desenho ao processo. Constata-se ainda que,
além de roteiristas, há designers, pesquisadores, diretores criativos e a figura do produtor, que está
presente em todas as equipes.
Deve-se considerar que as categorias profissionais elencadas no Quadro 19 se ativeram
ao que foi citado pelos líderes. Além das funções mencionadas, é possível que outros tipos de
especialistas, prestadores de serviços e técnicos tenham sido envolvidos em cada um dos núcleos.
No que diz respeito à metodologia, todos os entrevistados mencionaram ter utilizado o
método de sala de roteiristas que, de acordo com Kallas (2016), existe nos Estados Unidos desde
os anos 50 e foi sofrendo alterações com o tempo,
[...] passou de três ou quatro roteiristas para quinze. Hoje, em razão de limitações
orçamentárias, elas voltaram a ficar menores. Quer seja um grande grupo de
comediantes tentando levar a melhor uns sobre os outros com piadas numa sitcom ou
roteiristas sendo encarregados de episódios específicos depois que um pequeno grupo de
escritores planeja ou cria os beats do enredo juntos, o importante é a presença física dos
roteiristas num único espaço – daí a “sala”. (KALLAS, 2016, p. 219)
Embora o trabalho dos roteiristas dos Núcleos tenha passado pela sala, nas sedes das
produtoras, em praticamente todos os casos ela não foi o ambiente exclusivo do processo de
escritura e os roteiristas também atuaram de forma remota, em maior ou menor grau.
Em três Núcleos, TV Norte Independente, Mira Lab, e Casa de Cinema de Porto Alegre,
verificou-se que além da comunicação entre os líderes e os roteiristas, houve também uma
conexão transversal constante em uma dinâmica intensa de troca e colaboração entre os
73
profissionais envolvidos nos diferentes projetos. Paralelo ao trabalho de cada grupo, havia
reuniões presenciais periódicas com a presença de todos os integrantes.
[…] o nosso Núcleo nunca foi um Núcleo que cada um leva o seu roteiro pra casa, faz e
entrega. A gente faz ele coletivamente. Todos os roteiros passam por muitas mãos. Não
necessariamente para serem escritos, mas pra serem lidos, comentados. Todos recebem
um escrutínio muito grande. E pra isso funcionar bem, a dinâmica tem que estar muito
azeitada, tem que estar todo mundo, de fato, podendo falar, se sentindo à vontade pra
criticar e ao mesmo tempo com uma cabeça voltada para o bem do projeto. (MOURA,
2018)
A equipe liderada por Jorane Castro se reunia duas vezes por semana e ela aponta o
caráter formador que estes encontros tiveram porque os roteiristas, em sua maioria, eram
jornalistas e, antes de serem contratados para o Núcleo, nunca tinham trabalhado em um projeto
de longa-metragem de ficção. “Foi um processo muito intenso, muito interessante como formação
[...]. Eu acho que a gente teve um bom resultado, eu acho que são roteiros que tem potencial”
(CASTRO, 2018)
No Pará, o primeiro curso universitário foi aberto apenas em 2011. Portanto, em 2013
ainda não havia profissionais com formação específica em cinema ou roteiro que tivessem se
graduado na região. Castro destaca que, apesar de não possuírem uma capacitação formal na área,
os indivíduos possuíam sólido capital cultural:
[...] eram pessoas capacitadas, pessoas com formação sólida cultural, de grandes
referências, [...] pessoas que leem muito, que veem muito filme, que veem muita
série, então [...] tinha pessoas capacitadas, mas ao mesmo tempo [...] nenhum deles
tinha formação, uma formação digamos assim acadêmica e formal na área do
cinema. (CASTRO, 2018)
A gente montou núcleos diferentes por projeto [...] cada projeto tem a sua dinâmica,
fazendo reuniões semanais. (MELLO, 2018)
Gustavo Rosa, da Mira Filmes, destaca um desafio importante a ser vencido no interior
de um Núcleo:
74
[…] é muito importante […] você criar um ambiente que seja um ambiente criativo
saudável. […] montar um ambiente criativo coletivo é um desafio humano. Você
tem um monte de egos, você tem ideias em pauta que as pessoas se apegam e então é
fácil, muito mais fácil, do ponto de vista humano, você pegar o seu roteiro e ir
trabalhar na sua casa […] A gente sempre teve uma ideia de criar um ambiente em
que a gente pudesse chegar e falar, a gente já cansou de jogar roteiro fora […] por
exemplo, o Antes Tarde, o Rancho Paraíso, O Penguim, o Amanhã eu conto, são
casos em que se você pegar a primeira versão do roteiro e a versão que tá agora,
você fala: caramba, a premissa tá aí, mas o roteiro mudou completamente. […] E é
orgânico isso […] porque às vezes você escreve o roteiro, lê, não sei o quê, e fala: -
Não, pera, não é pra cá, tá errado, vai. E é duro, e é um processo. Então a gente tá o
tempo todo tentando melhorar essa dinâmica, às vezes ela tá melhor, às vezes não tá,
[…] a gente fez muitas coisas que a gente não gostou no sentido de dinâmica, só que
sempre que a gente detecta, a gente tenta mudar. (MOURA, 2018)
A experiência vivenciada por Gustavo Rosa dialoga com a de Catmull para quem:
[...] descobrir como construir uma cultura criativa sustentável – que levasse de fato, a
sério, coisas como honestidade, excelência, comunicação, originalidade e autoavaliação,
por mais que isso incomodasse – não era uma tarefa única. Era um trabalho de todos os
dias, em tempo integral, que eu queria realizar. (CATMULL, 2014, p. 79)
Neste ambiente criativo que é o Núcleo, é pertinente olhar para a forma como a liderança
foi exercida. Qual foi o papel dos líderes no processo de desenvolvimento e quais competências
eles acreditam ter empregado mais no exercício da função. A observação do Quadro 20 coloca em
evidência que o líder, em todos os núcleos desta pesquisa, foi uma figura cuja atuação esteve, de
fato, diretamente ligada à produção do conteúdo dos projetos através de ações como a leitura dos
textos produzidos, a realização de script doctoring36, discussões sobre personagens, cenas e
diálogos.
Mas se por um lado todos os líderes acompanharam o desenvolvimento dos roteiros
propriamente ditos, observa-se que em alguns casos as atribuições foram além desta seara. Dois
deles, Jorane Castro e Flávio Tambellini, fizeram menção à participação em pitchings, que é uma
ação diretamente relacionada à prospecção dos projetos e consiste na apresentação dos mesmos
para agentes do mercado como representantes de canais de TV e distribuidores. Ou seja, o líder é
uma figura que também pode participar diretamente no contato com o ambiente externo ao
Núcleo onde estão os possíveis parceiros para viabilizar os projetos.
O Quadro 20 também sugere que a liderança não é necessariamente uma função a ser
desempenhada por uma única pessoa, como mostra os casos das produtoras Mira Filmes e Casa
de Cinema de Porto Alegre, respectivamente lideradas, formalmente, por Leonardo Levis e
Gilberto Assis Brasil.
36
Script doctoring é o termo utilizado para definir o trabalho de análise de roteiro que tem o objetivo de
aprimorar o trabalho realizado durante o desenvolvimento podendo incluir, por exemplo, a verificação de
possíveis problemas de estruturas, proposição de mudanças relativas a perfil de personagens, arco dramático e
sequências. Normamente é realizado por profissional da área de roteiro.
75
Flávio “[...] na época que eu me associei com a Giros “[...] recebendo o que tava sendo escrito, e
Tambellini [...] eu tinha uma grande experiência em cinema trabalhando, devolvendo, dizendo não, esse
e pouquíssima em televisão e a Giros era o aqui tem que ir pra esse lado ou pra esse
contrário, ela tinha basicamente em televisão, lado. Era muito uma visão de produtor, [...]
documentário, ela não tinha ficção. Então eles claro que aceitando ideias, com liberdade e
me (chamaram) justamente pra ajudar a tudo, mas [...] pra atingir o que a gente
gerenciar essa parte de ficção.” queria.”
Na Mira Filmes, a liderança foi articulada entre Leonardo Levis e Gustavo Rosa de
Moura, que atuaram de forma complementar. Na avaliação de Moura, enquanto ele exercia um
papel mais generalista, Levis estava com o olhar mais voltado para a qualidade dos roteiros, mas
ambos acompanharam todo o processo e enfatizam que a divisão entre eles não foi estanque. O
Núcleo da Casa de Cinema de Porto Alegre contou com a atuação de seus quatro sócios-
fundadores sendo que Nora Goulart foi a produtora responsável pela prospecção dos projetos,
fazendo a ponte com o ambiente externo, Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo acompanhavam a
produção textual de cada equipe enquanto Giba Assis Brasil atuou como uma espécie de
77
coordenador geral das dinâmicas internas, promovendo a interação entre todos os profissionais,
organizando e conduzindo todas as discussões relacionadas ao conteúdo.
Através do depoimento dos líderes, é possível reparar que, no que tange à forma de
interação com a equipe, houve uma variação do grau de liberdade concedido aos roteiristas. Joel
Pizzini expõe que seu foco está na linguagem e acredita que sua função não é dizer para sua
equipe o que ela deve fazer, mas sim problematizar, propor reflexões e, dessa forma, contribuir
para que as melhores características de cada projeto sejam potencializadas. Flávia Lins e Silva
declara que em seu Núcleo, uma vez que cada um era dono de seu projeto, a proposta consistia em
dar total liberdade para acatar, ou não, suas proposições enquanto líder. Já a abordagem de Flávio
Tambellini, que liderou o núcleo da Giros, menciona que havia liberdade, mas que houve uma
atuação também de produtor no sentido de conduzir a equipe a chegar onde se queria.
Alguns tiveram presença direta também nas ações negociais com agentes do setor,
participando de reuniões e mercados com o propósito de formalizar parcerias para o
financiamento e produção dos filmes e séries. Outros não tiveram esse papel, mas nestes casos
sempre mencionaram que havia outro integrante da produtora responsável por este trabalho. O
que sugere o resultado destas entrevistas é que uma participação mais ativa ou passiva do líder na
dimensão negocial não necessariamente determina o êxito da viabilização do mínimo de dois
quintos da cartela como mostra o caso da Casa de Cinema de Porto Alegre no qual o papel de
levar os projetos para o mercado coube à Nora Goulart e não a Giba Assis Brasil, líder oficial.
Mesmo assim, conseguiram viabilizar dois longas documentais da cartela.
Considerando que todos os líderes entrevistados, em seus percursos profissionais,
atuaram em roteiro, direção, produção e alguns deles acumulam experiência como professores,
procurou-se verificar se alguma competência específica foi mais utilizada durante o trabalho
exercido no núcleo. A fala de Gustavo Rosa, conforme reproduzida no Quadro 21 chama a
atenção para o fato de que ele considera a liderança uma função complexa, que possui uma
dimensão de roteiro e produção. Jorane Castro também confere destaque às competências
adquiridas no exercício destas duas funções e cita ainda a direção, embora acredite que, entre as
três, foi a que ela menos utilizou como líder.
Para Flávia Lins e Silva, seus 25 anos de carreira e a experiência em cinema e TV
fizeram com que ela conheça muito bem a linguagem audiovisual. Em sua liderança, ela afirma
ter utilizado, essencialmente, sua faceta de roteirista. É interessante notar que Gilberto Assis
Brasil destaca sua experiência como professor uma vez que as reuniões gerais que organizava e
conduzia ao longo do processo, em suas palavras, tinham uma “dinâmica um pouco de aula”.
78
“[...] se fosse pontuar mais, seria roteiro e produção. [...] poderia dar
um destaque um pouquinho maior pro roteiro, pelo fato da gente estar
numa sala de roteiristas e pensar a narrativa e [...] para a produção na
época em que a gente tava no momento final [...] fazendo a
Núcleos NÃO Renovados
Jorane Castro cita o exemplo de uma série de ficção sobre jornalismo investigativo
na Amazônia cuja trama giraria em torno de temas como invasão de reservas indígenas,
extração de madeira clandestina, poluição de mercúrio nos rios. A princípio, a história teria
quatro protagonistas.
A gente achou que essa estrutura narrativa poderia ficar muito complexa. [...] E aí a
gente criou um protagonista, que seria um jornalista já meio blasé, meio cansado e
em torno dele tinha pessoas jovens, jornalista empolgado, uma fotógrafa empolgada
e pessoas que podiam contrapor, um pouco como (na série) House, por exemplo. [...]
a gente começou querendo uma coisa muito elaborada e muito sofisticada que, na
verdade, quando você transcreve pra televisão, ela tem que ser um pouco mais
simplificada pra você chegar realmente onde você quer chegar que é comunicar com
o público algumas questões bem sérias como, por exemplo, essas que a gente queria
comunicar. (CASTRO, 2018)
Por outro lado, Joel Pizzini explica que em sua interação com os autores sua preocupação
maior era com “as questões conceituais, de linguagem, a estrutura narrativa, a qualidade estética da
concepção, tentar sair desses modelos mais clichês tanto de animação quanto documentário”
(FILHO, 2019). Neste caso, variáveis econômicas, no momento de escritura dos projetos, não foram
determinantes.
Enquanto ambiente de trabalho coletivo para desenvolver filmes e séries que venham a ser
produzidos, exibidos e comercializados, um núcleo é algo muito orgânico onde convergem
múltiplas experiências e personalidades. É um ambiente onde precisam ser articuladas a
criatividade, variáveis econômicas, mercadológicas e aquelas relativas à viabilidade logística de
produção já que “nas indústrias criativas, a polivalência é intrínseca à própria organização”
(BENDASSOLI; CUNHA (Org), 2009, p. 29).
Entre a abertura das inscrições do Prodav 03, em 2013, até o presente momento,
passaram-se mais de cinco anos. O referido edital já está em sua quinta edição e entre os
participantes deste estudo quatro núcleos já estão desenvolvendo os projetos de uma segunda
cartela. Tendo sido as primeiras empresas beneficiadas por esta política pública de fomento direto
ao desenvolvimento do FSA, foi proposto aos líderes uma reflexão sobre o que poderiam ter feito
de modo diferente no processo.
Uma preocupação com uma maior diversidade de gênero e raça entre os profissionais
que integraram o núcleo surgiu na resposta de Flávio Tambellini que afirma ser importante
“dividir entre mulheres [...], ter roteirista negro [...] (porque) esse caldeirão cultural [...] é muito
importante” (TAMBELLINI, 2018). Para Florida (2012), embora diversidade tenha se tornado
um tema político em evidência, é fato que, mesmo nas classes criativas permanecem as antigas
divisões de raça e gênero, mesmo que novos caminhos tenham sido abertos para mulheres e
minorias étnicas.
No Pará, Jorane Castro reflete sobre a metodologia aplicada no núcleo que conduziu e
explica que houve
[...] uma preocupação de ser democrático, de ter um processo democrático onde [...]
por mais que tivesse roteirista e roteirista assistente, que não houvesse uma
hierarquia, [...] que não houvesse uma maneira de falar que um tivesse um tom de
voz acima do outro. Sempre tava pensando em dividir as ideias com o maior
respeito. Funcionou, tá. Todo mundo foi até o final com essa mesma ideia, só que
precisava talvez de um pulso mais forte na hora de fechar os projetos. (CASTRO,
2018)
82
Castro avalia que, principalmente na reta final, sentiu falta de haver uma figura com
maior poder decisório.
[...] a gente avançava muito em algumas questões de personagem, [...] mas na hora
[...] de trazer pro trabalho final, [...] às vezes ficava um pouco solto, a gente não
conseguia fechar. Então eu acho que isso talvez fosse uma maneira de melhorar, [...]
concentrar mais, talvez, fechar mais, porque eu gosto da ideia de você trocar ideias e
de pensar juntos a narrativa e tudo o mais, mas às vezes não é objetivo isso,
entendeu?
Ao fazer esta análise, Jorane Castro também faz alusão ao fato de que, no Brasil,
ainda não há uma figura que seria equivalente à figura do showrunner, presente nas séries de
TV dos Estados Unidos. Lá, na maioria das vezes, esta pessoa “é o roteirista chefe e o
produtor executivo da série de TV” (LANDAU, 2014, p. xvii) e tem a palavra final não
apenas sobre os roteiros, mas sobre todos os aspectos de produção incluindo elenco, locações,
direção de arte e corte final dos episódios. Se uma produtora monta uma cartela com projetos
de autores diversos e roteiristas que não pertencem ao quadro societário da empresa, é ainda
mais legítima a preocupação em identifiar a pessoa que, diante de qualquer impasse, poderá
tomar as decisões criativas estratégicas mais pertinentes para que o projeto continue
avançando.
O núcleo da Mira Filmes que, antes mesmo do edital já havia se organizado
internamente para desenvolver projetos, tem uma preocupação permanente com a metodologia
porque o desenvolvimento ocorre “dentro de um mercado que está em constante mutação”
(LEVIS, 2018). Como a empresa atualmente trabalha nos projetos de sua segunda cartela, foram
adotadas duas mudanças em relação à primeira: uma redução do número de roteiristas fixos e
um tempo de maturação maior antes de iniciar a escrita de roteiros propriamente dita. Dedicam-
se mais à premissa, escaletas e argumentos. “No primeiro núcleo a gente abriu muito cedo as
coisas (os roteiros)” (MOURA, 2018). Leonardo Levis complementa ao explicar porque
considera melhor não ter pressa para começar um roteiro pois ele:
[…] ocupa o tempo de todo mundo. […] quando você começa a escrever, mesmo
que não fique bom, já é mais difícil de abandonar porque já teve o trabalho da
escritura, aí entra o trabalho da reescritura, entra o trabalho da re-reescritura. Então,
pra começar a escrever mesmo, o projeto tem que estar muito sólido […], a gente
precisa ter uma expectativa muito concreta dele em relação às possibilidades de
realização, isso é um aprendizado que a gente teve aí entre um e outro (núcleo).
(LEVIS, 2018)
autores estão se dedicando, estão despreparados [...] por essa falta de experiência as
pessoas ficam em discussões, às vezes, metafísicas porque na prática elas não se
efetivam, então não há uma tradição pra você ter parâmetros, tanto de produção
quanto de direção pra fazer um projeto, realmente, que vá resultar e que vai se
garantir na sua cadeia produtiva. (FILHO, 2019)
De maneira geral, os líderes fariam algum ajuste, seja na metodologia, na escolha dos
projetos e segmentos de mercado, ou na composição de suas equipes. E como a maioria
destacou, o cenário em volta do núcleo é mutável, o que demanda uma atenção constante aos
movimentos do entorno para poder promover internamente as adaptações necessárias.
84
Lei do
Audiovisual e
Papaya Bull Televisão Série Animação Nickelodeon
Boutique art 39 da MP
SP
Filmes 2.228-1
3% Televisão Série Ficção Não Informado Netflix
Zoo da Zu Televisão Série Ficção Não Informado Discovery Kids
Polo MS
Roda de
Cinema e SP Televisão Série Documentário FSA O Curta!
Choro
Vídeo
Frequência TVCom Lauro
Televisão Série Ficção FSA
3 Tabela RJ Positiva de Freitas
Filme Sala de FSA e Lei do
Derrapada Longa Ficção Não Informado
Exibição Audiovisual
Homo
Televisão Série Documentário FSA Arte 1
Brasilis
Queimamuf
Giros RJ a! Televisão Série Ficção FSA Futura
Núcleos Renovados
Marcadas
Televisão Série Documentário FSA CineBrasilTV
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Cora (ex Sala de Longa Ficção FSA Não Informado
Antônio) Exibição
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Televisão Série Ficção Não Informado OmeleTV
Mira Filmes SP Roteiristas
Antes Tarde
Sala de FSA e Lei do
do que Longa Ficção Não Informado
Exibição Audiovisual
Nunca
Globo Filmes,
Cidades Lei do
Casa de Televisão Série Documentário GloboNews e
Fantasmas Audiovisual
Canal Brasil
Cinema de RS
Quem é
Porto Alegre Sala de Lei do Globo Filmes e
Primavera Longa Documentário
Exibição Audiovisual GloboNews
das Neves
Fonte: elaborado pela autora a partir das entrevistas e dados da Ancine
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Os projetos Decoração Popular e Cidades Fantasmas eram de autoria de sócios da produtora Galo de Briga.
Em ambos os casos, foi formalizada uma parceria entre os autores e a Casa de Cinema de Porto Alegre para que
o desenvolvimento pudesse ser realizado dentro do núcleo criativo.
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tinham que era o Cidades Fantasmas e a gente de repente pegou (e disse): - Pô, esse
projeto é mais legal, funciona mais. (BRASIL, 2018)
A substituição de projetos foi realizada por mais três núcleos: Giros, Polo MS de
Cinema e Vídeo e Mira Filmes. Prevista nas regras do Prodav 03, é uma alternativa para que os
núcleos possam remodelar parte de suas estratégias e com isso ampliar as possibilidades de
viabilização. O estímulo para adoção desta manobra pode vir do ambiente externo ao núcleo,
em função de um modelo de financiamento ou de coprodução, como foi o caso de Harem, ou a
partir de uma análise interna que coloque em questão o projeto e sua estrutura, como ocorreu
com Decoração Popular que, apesar de ter “um conceito bem interessante, [...] a gente não
conseguiu transformar numa série” (BRASIL, 2018).
Entre os núcleos, a Mira Filmes viabilizou três projetos e foi a primeira a ter sua
demanda de renovação de investimento acatada pelo FSA. Sua cartela inicial era formada por
quatro obras seriadas e três filmes e a produtora também se serviu da possibilidade de substituir
projetos e trocaram as séries O Confessionário e Sexo Casual por dois longas, Rancho Paraíso
e Amanhã eu Conto, respectivamente. Ao justificarem esta estratégia, Leonardo Levis e
Gustavo Rosa fazem referência ao cenário do mercado de televisão na época e ao longo tempo
necessário até que um negócio seja efetivamente fechado com um canal.
[...] vários canais que hoje produzem série de ficção não produziam. [...] a lei de cotas
era meio novidade, então assim, não tinha muito lugar pra levar e a gente levou,
mandou pra essas rodadas de negócio de Rio Content Market, mostrou, fez reunião e
tal e começou a perceber que a coisa não tava virando. (MOURA, 2018)
Então a gente sabia que a gente não só tinha que viabilizar, como a gente tinha que
viabilizar rápido porque se a gente demorasse pra viabilizar a gente não renovava e
ficava também numa espécie de lista negra confusa […] do audiovisual. […] de certa
forma a quantidade de players de cinema era maior do que a quantidade de players de
TV disponíveis no mercado. E diante desses fatores, a gente percebeu que,
estatisticamente, as chances de viabilização rápida de projeto no cinema era maior
(sic) do que as chances de projetos de TV, que não era impossível, mas a gente
demoraria mais. (LEVIS, 2018)
Quando Levis cita uma “lista negra confusa”, ele faz alusão ao fato de que o edital
previa que a produtora só poderia se inscrever em novas chamadas públicas para
desenvolvimento se batesse a meta de viabilização de ao menos dois quintos de seus projetos.
Para evitar essa possibilidade, a Mira não apenas manteve a viabilização como uma meta, mas
como um objetivo a ser alcançado o mais rápido possível e desta forma poder continuar
acessando recursos para desenvolver novos projetos.
Outro quesito que se destaca na Mira Filmes está relacionado ao momento em que os
projetos foram levados ao mercado e de que forma.
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A gente tenta testar o projeto no mercado com o que a gente chama de mínimo
necessário. Então, claro, não adianta você testar com uma sinopse de cinco linhas e dar
um verde definitivo, mas se mesmo com uma sinopse de cinco linhas ninguém teve o
menor interesse, […] estamos falando de distribuidora […] (e) a gente mesmo não
consegue se envolver com aquela ideia pra valer, a gente abandona. Às vezes a gente
precisa desenvolver um pouco mais. Às vezes a gente chega a desenvolver uma
escaleta, ou um argumento e aí […] manda para umas pessoas lerem ou a gente
mesmo testa num edital de desenvolvimento aqui e outro ali. Soltar uma bomba e
ninguém gosta e tal, pô, então tudo bem, não vamos desenvolver. Mesmo quando as
pessoas gostam, a gente cada vez (mais) […] tem notado que esse trabalho de
maturação da base, antes do roteiro, vale a pena. (MOURA, 2018)
Atuando desta forma, a produtora pôde tomar decisões estratégicas importantes como
abrir mão de projetos que não despertaram interesse concreto por parte do mercado e incluir
longas para cinema cujo financiamento, naquele momento, conseguiam acessar com maior
facilidade e desta forma viabilizar parte de sua cartela em um prazo menor.
Outra produtora que, assim com a Mira Filmes, também tem sede em São Paulo e se
movimentou desde o início do desenvolvimento para colocar os projetos em contato com
agentes do mercado foi a Boutique Filmes. Embora tenha viabilizado apenas uma obra que
poderia ser contabilizada de acordo com os critérios do edital - a série de animação Papaya Bull
-, conseguiu fechar negócio para realizar mais dois projetos: 3%, que foi a primeira produção
brasileira para a Netflix, e Zoo da Zu, em parceria com o canal infantil Discovery Kids.
Liderado por Tiago Mello, o núcleo da Boutique que, ao contrário da Mira, apostou
100% no segmento de televisão, explica que sempre fez o “corpo a corpo” com canais, no
Brasil e no exterior, e que sua produtora é
[...] uma empresa muito ligada ao mercado [...] a gente tava sempre conversando com
canais, falando sobre o Núcleo, falando dos projetos que tavam (sic) no Núcleo, e
vendo o interesse por esses projetos, [...] eu tenho uma política de sempre estar ligado
aos canais [...]. Então a gente tá sempre trabalhando isso. A coisa é quase contínua.
(MELLO, 2018)
Indagado sobre o ele que acredita que tenha comprometido a viabilidade da série
Glimp & Badunski, Pizzini argumenta que foi
não pensar uma solução alternativa que equilibrasse a relação entre produção e
direção. [...] eu, particularmente, acho que a economia narrativa, ela leva à economia
financeira. Então se você pesquisar outras linguagens, você pode encontrar soluções
muito mais factíveis, viáveis. (FILHO, 2019)
Neste caso, o autor do projeto era também o diretor e este acúmulo de funções, na
avaliação de Joel Pizzini Filho, “é uma questão difícil. [...] nem sempre o diretor tem
experiência na escrita, tem a facilidade de expressar por escrito as suas ideias, então é melhor
ter alguém, às vezes, de fora, entre aspas, que possa criar esse diálogo, essa tensão pra poder
resultar” (FILHO, 2019)
Além de utilizar a reação do mercado como uma espécie de termômetro e de levar os
projetos para as arenas tradicionais de negócios, uma outra dimensão das negociações diz
respeito a uma espécie de capital relacional dos produtores. Flávio Tambellini, que fez uma
parceria com a produtora Giros, criada há 21 anos e que possui um histórico de mais de 2.000
horas de conteúdo para televisão e cinema, destaca que os sócios da produtora sabiam “quem é
quem” e as “injunções políticas que existem na televisão” (TAMBELLINI, 2018). A longa
trajetória e o catálogo de produções numerosas também é interpretado por Giba Assis Brasil
como um fator determinante no êxito da viabilização dos projetos da Casa de Cinema de Porto
Alegre, empresa em atividade há 22 anos tendo produzido dezenas de filmes, programas e séries
de TV: “20 anos atrás a gente não conseguiria” (BRASIL, 2018).
O depoimento de Jorane Castro, cujo Núcleo viabilizou apenas um projeto, está
alinhado com esta percepção uma vez que a produtora TV Norte Independente estava iniciando
suas atividades na produção de conteúdo audiovisual e, ao contrário de seus pares de São Paulo,
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, não contava com um histórico de realizações numerosas
nem uma rede de contatos que facilitasse o acesso direto a tomadores de decisão de canais de
TV. Sem um atalho para chegar à mesa de negociação destes executivos, eles contaram com as
inscrições em editais, participação em pitchings e rodadas de negócios. A realidade regional
também surge na fala da líder: “[...] os nossos interlocutores locais são poucos. [...] a gente
depende sempre ou de mercados, a semana que vem vai ter o mercado do Maranhão, aí tem
Mercado Nordeste Lab em Salvador, então tem vários mercados hoje, encontro de negócios na
área audiovisual” (CASTRO, 2018).
Da ideia ao público, todas as ações realizadas para a produção de uma obra audiovisual
envolvem uma grande variedade de profissionais, com diferentes níveis de autonomia para
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tomada de decisões, que estão situados em diferentes posições dentro da cadeia produtiva, mas
todos inseridos em um ecossistema.
Jeffcutt (2009), ao abordar um estudo sobre as Indústrias Criativas da Irlanda do Norte,
identificou quatro características genéricas que configuram este ecossistema: as interfaces de
conhecimento, o mix de expertise, a tecnologia e a organização.
A observação da forma como os núcleos se articularam com o mercado nos permite
ver pontos de contato com o que Jeffcutt intitula ecossistema. As interfaces de conhecimento
“constituem no mix de relações sociais, culturais e profissionais e nas redes que a empresa
possui e pode acessar.” (JEFFCUTT, 2009, p. 49). Verificou-se que dois núcleos criativos,
Giros e Casa de Cinema de Porto Alegre, eram de produtoras com mais de 20 anos de atividade,
e que outras, como a Boutique Filmes, embora mais jovens, eram conduzidas por profissionais
que já possuíam um histórico de realizações e parcerias comerciais com players como Globo,
Nickelodeon, Cartoon e Discovery Channel.
O mix de expertise engloba todas as competências que a produtora possui ou pode
acessar, não apenas criativas, mas também empresariais (JEFFCUTT, 2009). Aqui localizamos
a multiplicidade de competências articuladas pelos núcleos com profissionais polivalentes e
também, sempre que necessário, o recurso a perfis complementares como consultores e
prestadores de serviços técnicos e artísticos.
Em relação à tecnologia, “o meio da atividade criativa da empresa” (JEFFCUTT,
2009, p. 50), podemos considerar que, no caso dos núcleos criativos, foi a metodologia utilizada
para o desenvolvimento de seus projetos. E a organização, que “representa as capacidades
estruturais e operacionais da empresa” (JEFFCUTT, 2009, p. 50) relaciona-se com o trabalho de
prospecção realizado pelos núcleos, suas ações para levar seus projetos a parceiros estratégicos,
suas habilidades para fechar negócios em torno dos mesmos e, uma vez formalizada a parceria,
produzir os filmes e séries.
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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
conhecimento amplo das etapas e funções do audiovisuais; todo projeto audiovisual nasce
para alcançar determinado público cujas características importam durante o desenvolvimento;
a pertinência de apresentar os projetos ao mercado o quanto antes para tomar decisões sobre
mudanças nos conteúdos ou mesmo substituição da proposta; a observação constante e
analítica do ecossistema no qual se está inserido e todas as mudanças que ele pode sofrer -
políticas, econômicas e sociais - , é fundamental para se adaptar e garantir a sobrevivência do
negócio.
A abordagem qualitativa deste trabalho baseou-se na experiência e percepção de
líderes de núcleos criativos o que permite uma visão endógena do tema. Para avançar na
investigação das condições que determinam, ou não, o êxito na viabilização de projetos
audiovisuais desenvolvidos por produtoras independentes, sugere-se uma investigação que
integre a perspectiva dos agentes de mercado que estão situados em um ambiente externo ao
núcleo como os executivos de canais e distribuidoras que sejam os responsáveis pela análise e
aprovação de projetos.
Se este estudo não encontrou traços distintivos determinantes ao comparar os núcleos
renovados e não renovados, supõe-se que talvez a resposta esteja com aqueles que podem
dizer sim ou não para um projeto. Além de elementos tangíveis como capacidade de
investimento financeiro, perfil editorial e estratégias de posicionamento junto a públicos
específicos, as decisões destes profissionais em relação à aceitação ou recusa de um projeto
também podem ser influenciadas por elementos intangíveis e subjetivos que uma nova
abordagem qualitativa pode evidenciar.
Outro ponto que merece ser aprofundado, diz respeito ao Núcleo Criativo enquanto
política pública. Na fase inicial desta dissertação, através de uma pesquisa bibliográfica e da
análise de dados secundários, foi possível observar que no Brasil, desde a década de 70,
políticas públicas federais de financiamento para o desenvolvimento de projetos audiovisuais
tem sido elaboradas, implementadas e reformuladas. Seja por meio de programas especiais na
época da Embrafilme, de mecanismos de fomento indireto via leis de incentivos fiscais após a
retomada da década de 90, ou via fomento direto, como as linhas Prodav 03, 04 e 05 do FSA,
o Estado, enquanto interventor ou regulador, tenta promover ações voltadas a este elo da
cadeia produtiva.
O lançamento, em 2013, de uma linha do FSA dedicada a financiar Núcleos
Criativos ocorre pouco tempo depois da entrada em vigor da Lei 12.485. Ela dispõe sobre a
comunicação audiovisual de acesso condicionado e cria cotas obrigatórias de conteúdo
brasileiro de produção independente para todos os canais classificados como sendo de espaço
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qualificado. Isto impacta o mercado e gera uma demanda por conteúdo nacional sem
precedentes. O agente público, neste caso o Fundo Setorial do Audiovisual, cria fontes de
financiamento para projetos desenvolvimento que se somam às já existentes para produção e
comercialização.
Ao comparar os dados dos investimentos em projetos de desenvolvimento realizados
por meio da Lei do Audiovisual com os números do FSA, observa-se diferenças consideráveis.
No primeiro caso, ao longo de 15 anos – entre 2002 e 2017 – foram investidos R$ 11,4 milhões,
em 69 projetos de longa-metragem para cinema, todos propostos por empresas sediadas no eixo
Rio/São Paulo, enquanto o Fundo, somente pelo Prodav 03 para núcleos criativos, aportou R$
105,5 milhões no desenvolvimento de aproximadamente 600 projetos de tipologias diversas –
ficção, documentário e animação -, e destinados a segmentos de mercado variados. Não apenas
propostas de filmes para cinema são contempladas, mas também projetos de séries para canais
de TV e VOD. A política de cotas regionais também é um marco importante e com isso passam
a ser contempladas propostas de todas as regiões do país.
No segundo semestre de 2018, as linhas de desenvolvimento de projetos voltaram a
ser objeto de reformulação por parte do FSA. Durante a 49ª reunião do Comitê Gestor, foi
apresentado um estudo43 sobre os resultados das chamadas Prodav 03, 04 e 05 e, a partir, dele,
foi divulgada a resolução 186/2018 que traz o novo desenho das linhas de desenvolvimento
com algumas condições de participação substancialmente modificadas. Serão alocados R$ 10
milhões para investimento em carteiras de projetos de séries que passam a ter no mínimo dois
e no máximo quatro projetos; no Fundo financiará até 90% do orçamento total de
desenvolvimento e caberá à produtora comprovar a complementação dos 10% restantes; a
inscrição de projetos para TV será habilitada somente se forem apresentados contratos já
firmados com programadoras ou emissoras que tenham a opção de pré-licenciar os direitos da
obra audiovisual que vier a ser produzida a partir do roteiro desenvolvido.
As políticas públicas para o audiovisual brasileiro, e aqui especialmente aquelas que
fomentam a etapa de desenvolvimento, estão em constante mutação e muitas fórmulas já
foram testadas. Propõe-se uma análise dedicada a verificar quais dados e indicadores
sustentam as alterações apresentadas pelo Comitê Gestor do FSA e quais foram os resultados
encontrados pelo estudo da Ancine em relação aos impactos do Prodav 03, 04 e 05.
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O estudo realizado não foi publicizado
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REFERÊNCIAS
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P1. Quais são os formatos e gêneros dos projetos de seu Núcleo Criativo e quais foram as
razões que levaram vocês a escolher estes projetos?
P2. Em relação à equipe, quantas pessoas integraram o Núcleo Criativo e qual a função de cada
uma?
P4. Você poderia descrever sua trajetória profissional e explicar como exerceu sua função de
líder no Núcleo?
P5. Para que seja possível receber investimento do FSA para um segundo Núcleo Criativo, é
preciso comprovar a viabilização de realização de, no mínimo, dois quintos dos projetos da
primeira cartela. E os critérios de viabilização para o FSA estão diretamente relacionados com
recursos captados para a etapa de produção. Durante o processo de desenvolvimento, foram
adotadas estratégias específicas com o objetivo de captar recursos para a produção dos projetos?
Caso sim, poderia descrevê-las?
P6. Durante o processo de desenvolvimento, a escritura dos roteiros foi influenciada por algum
profissional externo ao Núcleo como distribuidor ou representante de canal de TV?
P7. Ainda sobre o processo de escritura de roteiros, foram utilizados elementos como custo de
produção, dados de mercado, perfil editorial de canal de TV ou algum outro que possam ter
impactado na escritura ou reescritura dos projetos? Caso sim, poderia explicar como isso
ocorreu?
P8. Do ponto de vista de viabilização, qual o status de cada um dos projetos da cartela?
P9. Qual sua opinião sobre os Núcleos Criativos enquanto política pública?
P10. Hoje, ao analisar o processo de desenvolvimento dos projetos no núcleo criativo, faria algo
diferente? Caso sim, o que seria e por quê?